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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ASSASSINO / Georges Simenon
O ASSASSINO / Georges Simenon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

ERA tão íntima a mistura entre a vida de todos os dias,  os fatos e os gestos convencionais e a aventura a mais  inesperada, que o Dr. Kuperus, Hans Kuperus, de Sneek,  na Frísia Holandesa, sentia uma excitação quase voluptuosa, que lembrava os efeitos da cafeína; por exemplo. 
Ele estava em Amsterdam, como em todas as primeiras terças-feiras do mês. Era janeiro. Vestia, por isso,  sua peliça de gola de lontra e, como nevava, galochas por cima dos sapatos. 
Esses detalhes não têm importância, mas são incorporados ao relato para que fique bem claro que as circunstâncias eram as mesmas de todas as primeiras terçasfeiras do mês. Inclusive este pequeno fato ainda: ao sair  da bela estação em tijolos vermelhos, ele foi tomar um  cálice de genebra em frente, coisa que jamais revelava, por não ser correto entrar desacompanhado num café  vergünning* às dez horas da manhã para beber.
Nevara toda a noite, nevava ainda àquela hora, mas  a atmosfera era alegre, nada sombria. Os flocos desciam  docemente, tão espaçados que não colidiam uns com os outros no ar. E, de tempos em tempos, o sol se mostrava  num céu azul já desmaiado. No solo, a neve se acumulava sem derreter. Varriam-na para a margem das calçadas, onde formava pequenas muretas. Na superfície dos  canais, junto das margens, congelara numa película
*1. Existem nos Países Baixos cafés vergünning, que têm o direito de vender bebidas alcoólicas, e cafés verlof, que só servem bebidas não-alcoolizadas.
brilhante, e os barcos passavam com os cascos aureolados  de agulhas de gelo.
A aventura começou com a segunda dose de Bols, à  qual Kuperus fizera juntar algumas gotas amargas, para  mudar o sabor. Não gostava verdadeiramente de genebra.
Pagou, enxugou a boca, levantou a gola e saiu, de  mãos nos bolsos e pasta debaixo do braço. 

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Normalmente, deveria ter ido à casa de sua cunhada, no bairro elegante do Jardim Botânico, coisa que se  fazia de bonde. Teria almoçado e, depois, às duas horas,
percorreria a pé os trezentos metros que o separavam do  edifício novo, em tijolos vitrificados, no qual se reuniam, na primeira terça-feira de cada mês, os médicos
da  Associação de Biologia. 
Não foi nem à sua cunhada, a gorda Mevrouw*  Kramm, nem à Associação, e isso bastou para lhe dar  uma extraordinária sensação de leveza, como se, pela  primeira
vez na vida, tivesse cortado o fio que, como um  balão cativo, o prendia à terra. 
Enfiou pela grande rua que conduz ao quarteirão  dos teatros e foi parando diante das vitrines de todos os  armeiros. Podia ter entrado no primeiro. Preferiu ver
quatro, cinco. E, ao mesmo tempo que contemplava as  armas, via-se também no espelho dos vidros. 
Que tinha ar provinciano, sabia-o muito bem, principalmente quando tirava o chapéu. Jamais conseguia  alisar direito os cabelos, de um louro arruivado. Era alto
e forte. Gente que não entendia nada do assunto costumava dizer: 
- É um colosso!  Mas ele, que se conhecia, que se encarniçava em se  conhecer a si mesmo, sempre se julgara um fraco. Seu  rosto, por exemplo! As pálpebras pesadas,
os olhos saltados... E a prega da boca, o nariz ligeiramente de viés... 
Estava exausto. Era um deficiente, para empregar a  palavra que tanto impressionava os seus pacientes. Tinha
*2. Senhora, em holandês.
carência de fosfatos e, dentro em pouco, quando houvesse andado mais do que devia, ia fatalmente sentir um certo mal-estar no peito. 
Só que, dali por diante, isso não teria mais nenhuma  importância! Tomou impulso, ou melhor, remanchou  ainda em face de três mostruários de armeiros, depois entrou
num deles, o menor, onde viu por trás do balcão um  homenzinho com um pequeno barrete em forma de solidéu na cabeça. 
- O senhor tem revólveres?  Que idiotice perguntar aquilo! O mostruário transbordava de revólveres! 
Tocou a arma com reverência, não sem um pequeno  calafrio, como os doentes tocam o instrumento brilhante  que vai ser usado neles, para abrir um panarício ou sondar
um estômago. 
Pediu que fosse carregada, meteu-a no bolso, conferiu a hora. E pensou que, normalmente, estaria tomando  chá e comendo sanduíches de queijo em casa da cunhada,
a Sra. Kramm. 
Como não queria fazer nada disso e como era cedo  para o trem - três horas de espera -, entrou num bom  restaurante, em que por economia não ia nunca, e pediu  uma
refeição completa, uma refeição à francesa, com  hors-d'oeuvre, vinho, sobremesas: bomba de chocolate  gelada, queijo e frutas. Estava sozinho numa mesa. Sentia
calor. Tinha a impressão de que o revólver deformava  o bolso do sobretudo pendurado no cabide. 
Chegou a rir com escárnio!  Por fim, entrou num cinema e viu o começo de um  filme cujo final jamais saberia. 
A partir das três horas, a mistura entre o hábito e a  aventura ficou ainda mais acentuada, pois Kuperus executou com perfeita exatidão os gestos que só deveria

fazer no dia seguinte. Afinal de contas, a diferença era de  um único dia.
Das outras vezes, chegava terça-feira, assistia à tarde a sessão da Associação, jantava e passava a noite em  casa da cunhada. Na quarta de manhã, desincumbia-se
das tarefas de que sua mulher o encarregava e, às três, tomava o trem de volta para Enkhuizen. 
Um dia só de diferença! Isso, no entanto, mudava  tudo! Sem dúvida, às terças, havia feira em Enkhuizen,  pois o trem estava cheio de gente que ele não conhecia,
gente de outra classe, muito diferente dos seus companheiros das quartas. Alguns tinham gorros de pele, como  ele próprio usava em Sneek, mas que jamais se permitiria
pôr na cabeça em Amsterdam. 
Esses desconhecidos o cumprimentaram de cabeça,  pois é costume cumprimentar as pessoas quando se entra  num compartimento de trem. Em seguida, puseram-se a  falar
dos seus negócios, e o assunto foi todo sobre porcos  dinamarqueses e porcos letões. 
Ainda um pormenor, sem importância evidentemente, mas assim mesmo um pormenor: na quarta-feira, em  seu compartimento de primeira classe, teria encontrado o  prefeito
de Stavoren, o de Leeuwarden e o de Sneek, uma  vez que, nas primeiras quartas-feiras, realizava-se em  Amsterdam a conferência mensal dos prefeitos.... 
Duas horas de viagem para Enkhuizen. Apalpou  várias vezes o revólver no bolso e esteve a ponto de sorrir. 
Daí por diante a diferença em relação às quartasfeiras se fez cada vez mais sensível. O Princesa Helena esperava no cais, como de hábito. Era um belo barco branco,
em serviço havia apenas um ano. Kuperus conhecia o  capitão, os oficiais, os comissários de bordo, todo mundo em suma, mas não reconheceu um só passageiro. 
Sempre de pasta debaixo do braço, desceu para o  grande salão, onde às quartas encontraria os três prefeitos na mesa do fundo, invariavelmente a mesma, para 
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onde logo eram trazidos dois baralhos para o bridge e  três grandes copos de cerveja Amstel. 
Pois a travessia do Zuyderzee, de Enkhuizen para  Stavoren, dura apenas hora e meia, o tempo de dois rubbers, se alguém não insiste em blefar. Era sempre o prefeito
de Leeuwarden quem blefava, quando estava sem  sorte. 
Como era terça-feira, trouxeram-lhe cerveja, mas  não as cartas. O comissário observou: 
- O senhor está um dia adiantado!  E ele se deu a satisfação de replicar:  - Estou com um ano de atraso!  A bordo, na terra, não era também o mesmo tipo de  gente
das quartas. Só desconhecidos, que iam todos a  Leeuwarden, para uma feira de novo ou para algum congresso. 
A noite caíra.. O Zuyderzee estava calmo. A hélice  girava monótona. Um inglês lia um grosso jornal do seu  país. 
Um ano de atraso! Era isso. E Kuperus revirava esse  pensamento na cabeça com voluptuosidade.
Quase um ano antes - a diferença era de dois dias  -, numa sexta-feira tão fria que o governo deu feriado  escolar, ele recebeu uma carta muito mal escrita (propositadamente?):
"Honrado Doutor,  É penoso ver um homem como o senhor ridicularizado e ignorante do fato. Alguém que o respeita avisa  que a Sra. Kuperus engana-o cada vez que o
senhor viaja.  Ela vai se encontrar com um dos seus amigos, Mijnheer*  de Schutter no bangalô dele nos Lagos, e às vezes passa a  noite lá."
*3. Senhor, em holandês.
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Alguém que o conhecia, sim! Mas alguém que o conhecia mal! Porque Schutter não era seu amigo.
Na opinião das pessoas, sim. Mas no fundo, não.  Mijnheer de Schutter, advogado que, por ser rico, não se  dava ao trabalho de advogar, era da Academia de Bilhar,
como Kuperus. Era presidente da sociedade, enquanto  Kuperus fora eleito, na última assembléia, apenas membro do comitê.
Schutter pertencia a uma família aristocrática. Era,  na verdade, Conde de Schutter, mas não usava o título e  afetava zangar-se quando o empregavam - o que era
afinal de contas mais um modo de se distinguir. 
Tinha a idade de Kuperus, quarenta e cinco anos,  embora aparentasse trinta e cinco, mesmo com os cabelos prateados. Era esbelto e vestia-se num alfaiate inglês
de Amsterdam. 
Falava francês, inglês e alemão, e viajara o mundo  inteiro, como provavam as ampliações fotográficas que  cobriam as paredes de sua casa. 
E que casa! A mais bela de Sneek! Vizinha à Prefeitura. Quase mais bela do que o prédio oficial. Datava,  aliás, da mesma época, em tijolos negros, com pequenos
vidros róseos nas janelas e chaminés em autêntica porcelana de Delft! 
Schutter era conselheiro comunal. Poderia ter sido  nomeado inspetor de pesos e medidas. Deixava, porém,  que lhe propusessem esse posto a cada eleição, só para
ter  a alegria de recusá-lo. 
Schutter possuía um barco nos Lagos, não um barco  de seis metros, não um de nove metros, não um tialke,  mas um iate marítimo, que batizara de Cruzeiro do Sul e
que tivera de ser posto hors-concours, pois ganhava todas as competições.
Schutter tinha lábios finos, que lhe davam um sorriso superior, ao mesmo tempo distante e indulgente, um  sorriso "à la Voltaire', como diziam certos membros da
Academia de Bilhar.
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Schutter ia todos os anos à Côte d'Azur e à montanha... 
Schutter...  Era, antes de tudo, o único homem de Sneek a quem  se permitia ter má reputação. A cidade precisava de um:  pois era ele! Um homem de quem se dizia:
- É dono de todas!  Isto é, de todas as mulheres! Inclusive as casadas!  Um outro qualquer ficaria mal visto, seria posto no index, expulso da sociedade. 
Schutter era o grande charmoso a quem tudo se permite. Fora eleito, sem se candidatar, para a presidência  da Academia de Bilhar, quando todos sabiam que Kuperus
esperava esse lugar havia anos e anos. 
Era assim o Sr. de Schutter!  E a Sra. Kuperus, Alice Kuperus, era mulher de trinta e cinco anos, gordinha, um pouco robusta demais,  mas rosada e tenra, com um
sorriso fresco e olhos claros.  Mulher estimável, comum; sem uma gota de maldade. 
Kuperus não lhe recusava nada. Tinha, para o seu  guarda-roupa de inverno, a mesma modista que a mulher  do prefeito. E era dona, há dois anos, do mais belo mantô
de astracã de Sneek. Kuperus mandara mudar recentemente a mobília do salão para que ela pudesse dar seus  chás num ambiente moderno e comprara um bar portátil  para
os coquetéis. 
O barco ronronava. De tempos em tempos, ouvia-se  o som de um bloco de gelo que se fendia a um golpe da  roda de proa, e o deslizar subseqüente do gelo ao longo
do casco. 
O comissário, que conhecia Kuperus, vigiava o momento de trocar o copo de cerveja dele. 
- Um conhaque!  Aquilo já raiava o escândalo. Ele jamais bebera conhaque a bordo. Era por demais conhecido. Mas estava  nas nuvens, pensando no revólver. 
Alice Kuperus fora então... 
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Ele não dera ouvidos à denúncia anônima. Esperara  dois meses antes de ir investigar pessoalmente, primeiro  porque causaria surpresa a sua ausência da Associação
em Amsterdam, depois porque a coisa era de fato complicada... 
Seria preciso dissimular tanto! Fingir que tomava o  trem! Esconder-se em alguma parte até de noite. Ora, todo mundo em Sneek conhecia o Dr. Kuperus! Por fim,  esperar
a noite seguinte para voltar para casa! 
Pois ele o fizera. Quando veio o degelo das neves,  foi dormir em casa da sua velha ama, pretextanto à mulher uma história qualquer. E ela, que ainda usava o traje
nacional das frísias, não engolira a história. 
Em todo caso, era verdade: ele os vira, todos os  dois, Schutter e a Sra. Kuperus, entrando no bangalô  construído à margem do canal, bem perto do lago, bem  perto
também do ancoradouro de inverno do Cruzeiro  do Sul. Ali, no verão, o advogado costumava receber.
Era um bangalô de madeira. Em torno, exceto um  caminho usado outrora para a sirga e agora quase sumido, tudo era água, a água dos canais, a do lago, de todos os
lagos que começavam naquele ponto.
E não ficava a mais de quilômetro e meio da cidade.  - O senhor não tem bagagem?  Ele conteve o riso ao encarar o comissário. Esteve a  ponto de dizer:
- Sim! Uma bagagem importante, terrível, no bolso do meu casaco de pele...
Pelas vigias, já eram visíveis as luzes vermelhas e  verdes do porto de Stavoren.
Levou um ano a se decidir! E talvez não se decidisse  nunca se, quinze dias antes, Schutter não houvesse sido  reconduzido à presidência da Academia de Bilhar.
Pois Kuperus se candidatou! Mas seu nome foi posto sumariamente de lado, sem votação secreta!
Há um ano que reunia forças, que se decidia a  agir...
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Agora estava feito. A prova era o fato de encontrarse a bordo do navio das terças em vez do navio das quartas. 
- Olhe, Peter!  Quase deixou dez florins para o comissário. Pensou  a tempo que tal extravagância seria comentada. Deu então apenas um, o que já representava dez
vezes o dobbeltje habitual de gorjetas. 
O resto, de Stavoren a Sneek, estava planejado ainda com maior minúcia. Havia dois compartimentos de  primeira classe no trem. Ocupava sempre o mesmo, e  sempre
sozinho. Conheciam-no. Era como se o reservasse. 
Descendo do barco, atravessou os trilhos e subiu ao  seu compartimento, o dos fumantes, pois fumava charuto. 
- Boa noite, Sr. Kuperus...  E o empregado deve ter cometido o erro de pensar  que já estava na quarta-feira, tão regulares eram as passagens dele. 
Só restava esperar pelas paradas e pelos avisos:  - Hindelopen...  Depois:  - Workum!  Que o homem pronunciava:  - Woorekum...  Por fim, Sneek, sua pacífica estação,
limpa e acolhedora, de onde se dirigia habitualmente para a Groote,  Markt. * Àquela hora tudo estava escuro, salvo as vidraças do Café Onder de Linden. 
A sede da Academia de Bilhar! Passava por lá sempre que voltava para casa. Tomava uma última cerveja.  Perguntavam-lhe:
*4. Grande praça, geralmente do mercado.
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- O que há de novo em Amsterdam?  E ele dava as notícias, que acabava de ler na última  edição do Telegraaf... 
O que alterou tudo foi um acaso à-toa. O trem passou, como esperado, por Hindelopen, por Workum. Mas  poucos minutos antes de chegar a Sneek, algum imprevisto obrigou
a composição a diminuir a marcha e logo a  parar completamente. 
Havia tanto gelo nas vidraças que Kuperus não enxergava nada do lado de fora. Abriu a porta, divisou a  chaminé de uma cremeria, uma rede de canais meio gelados,
e reconheceu o lugar. 
Estavam a menos de quinhentos metros do bangalô  de Schutter! 
Não refletiu. Tomou a pasta, pois isso era nele um  gesto maquinal que não teria deixado de fazer mesmo  nas mais trágicas circunstâncias. Saltou, degringolou pelo
talude e chegou embaixo quando o trem recomeçava a  andar. 
Do que se passou em seguida é quase impossível falar.  O Dr. Kuperus decidira acabar com a história. O que  quer dizer que já estava acabada. Acabada para todos
três, para Schutter (cujo prenome era Cornelius!), para  Alice (que levava o sobrenome Kuperus) e para ele mesmo, Hans Kuperus. 
A prova era o revólver, frio, gelado, no bolso. Não  se tratava de uma idéia no ar. Refletira um ano inteiro.  Sabia o que estava fazendo. 
Em torno dele, a neve e os bolsões de sombra formados pelos canais, muitos dos quais desativados; na escuridão da noite, só uma pequena luz, a do bangalô de  Schutter.
Logo, este se achava lá. Logo, tudo estava, por assim dizer, terminado por antecipação. 
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Pôs-se a andar, depois que o trem desapareceu cuspindo fogo e incendiando o céu. Chegou às proximidades  da casa e avançou mais prudentemente, para não fazer  estalar
a neve endurecida, bem mais espessa que a de  Amsterdam. 
Em certo momento, fazia tanto frio que ele se perguntou se o seu dedo não estaria por demais entorpecido  para puxar como convinha o gatilho. 
A cidade ficava longe. Suas luzes formavam no céu  um halo amarelado. 
Schutter se vangloriava de conquistar todas as mulheres! Alice estava entre elas! Alice vinha ao bangalô dele, como as outras! 
Não teve dificuldade em comprovar isso. Não se davam ao trabalho de fechar as persianas, de tal modo contavam com o isolamento. 
Kuperus aproximou-se sem ruído, colou o nariz ao  vidro, e viu sua mulher de combinação bebendo alguma  coisa, enquanto Schutter dava nó à gravata. 
A sala era bonita. Não se tratava de um quarto de  dormir, mas de uma espécie de estúdio, com fotos de  Schutter em todos os países do mundo, em tudo que era  espécie
de roupa. Em cima da mesa havia copos com licor. 
Alice se vestia, como se tivesse um longo hábito de  fazê-lo naquele lugar! Falava! Não era possível ouvir as  palavras. Via apenas os personagens. O homem fumava
um dos cigarros que se gabava de mandar buscar no Egito e que não eram em nada melhores do que os honestos  cigarros holandeses. 
A pasta o atrapalhava, debaixo do braço, mas Kuperus não a largou. Sentia que não devia largá-la. Devia  permanecer ele mesmo, integralmente. 
O que estariam dizendo? Conversavam simplesmente, sem qualquer envolvimento, como velhos amantes.  Alice passava um pouco de pó no rosto, olhando-se no  espelho
que lhe era familiar. 
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Devia censurar alguma coisa ao companheiro, talvez  lhe fizesse uma cena de ciúmes, pois uma certa dureza  estampava-se na sua expressão e um sorriso fátuo no rosto
do homem.
Ele metia o alfinete de pérola na gravata. Sentir-se-ia desonrado se não usasse uma pérola.
- Presente da mulher de um marajá... - dizia  quando na Academia de Bilhar. 
O ritmo se acelerava. Alice, sem dúvida, queria ir  embora. Dirigiram-se juntos para a porta. Kuperus sentia frio. Tirara a luva da mão direita, e essa mão estava
absolutamente gelada. 
Escuridão. Schutter apagou todas as luzes ao mesmo tempo. Agora fechava a porta com cuidado, como  um pequeno-burguês, enquanto a companheira esperava. 
Seria talvez chegado o momento?  O doutor, que tinha o dedo no gatilho, não atirou.  E o casal se afastou, tomando o caminho da sirga,  abandonado há muito, pois
acompanhava um canal invadido pelos juncos por onde os barcos não passavam  mais...
De braços dados, iam por ele. No céu havia clarões  intermitentes de luar...
Kuperus apertava a marcha, aproximava-se...  Mas não atirava. Seu dedo, por causa do frio,  colava-se ao aço. Talvez tivesse pensado demais naquilo,  previsto demais
tudo aquilo...
Pensara entrar no bangalô, fazer-lhes um sermão...  Duas sombras moviam-se à sua frente... Ele estava  agora a dez metros de distância. Foi Alice quem desencadeou
o gesto, parando e voltando-se, inquieta. O outro,  para tranqüilizá-la, voltou-se também.
Então, Kuperus atirou. Uma, duas vezes. E uma vez  mais, porque Schutter não caía de todo, estava apenas de  joelhos.
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Disse consigo próprio que talvez ele sofresse, e esvaziou a arma a queima-roupa a fim de acabar com aquilo. 
Seu coração batia, sentia a agonia que tanto temia, e  teve de ficar imóvel junto deles, com a mão espalmada  sobre o lado esquerdo do peito durante vários minutos.
Para matar-se também teria sido preciso carregar de  novo a arma. 
E agora?  Um pensamento dominava: Schutter estava morto!  Um outro pensamento se insinuava por debaixo deste: uma vez que Schutter estava morto, era mesmo necessário
sacrificar-se? 
Os dois corpos estavam a um metro, se tanto, dos  caniços do canal. A lua acabara de mostrar-se, serena como só o é em noites geladas de inverno.
Kuperus  respirou  fundo  várias vezes,  lançou o  revólver à água e logo se arrependeu do gesto, pois era  perto demais.
Tanto pior!  Conferiu o relógio. Tinha tempo de...  Bastava empurrar os dois corpos. Alice estava bem  morta. Parecia ter fechado os olhos. Ou seria um efeito  da
lua?
Pôs mãos à obra, para acabar de vez. Ria, pensando na Academia. E antes que Schutter mergulhasse,  tirou-lhe a carteira do bolso.
Estava como que intoxicado, com tudo o que bebera  e tudo o que fizera. Mas sua embriaguez, ao invés de  fazê-lo perder a cabeça, dava-lhe uma calma extraordinária.
Por exemplo, no caminho lançou a carteira em outro canal, ainda mais antigo e mais abandonado que o  primeiro, e teve a precaução de pôr uma pedra dentro dela.
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Tinha um só pensamento: ir para o Café Onder de  Linden, 'onde ainda haveria quatro ou cinco jogando bilhar. Beberia. Tinha sede. Sonhava com um enorme copo  de
cerveja, desses em forma de flate de champanhe.
Atravessou um subúrbio. Não fazia projetos para o  futuro, nem mesmo para o dia seguinte.
Pensou na sua passagem de trem, que não entregara  na estação de Sneek. Mas isso já lhe acontecera antes.  Todo mundo sabia que ele desembarcava daquele trem,  que
às vezes o funcionário não estava em seu posto, ou  ainda que o Dr. Kuperus saía pelo restaurante para ganhar tempo. 
Comeu a passagem!  Estava completamente ébrio. Teria rolado alegremente pelo chão. Teria dado gritos de alegria! Ou rebentado em soluços. 
O que o chamou à realidade foi a vista da Prefeitura, com a casa de Schutter ao lado e, mais ao fundo, as  luzes pálidas do Onder de Linden. 
Olhou a hora. Se tivesse vindo diretamente de trem  chegaria com uma diferença de menos de quinze minutos. 
Examinou as mãos à luz de um lampião de gás. Estavam limpas, graças à neve. 
Entrou. Sabia que onda de calor e conforto o acolheria. Sabia que o garçom acorreria. O velho Jef, trabalhando ali há trinta anos. 
- Boa noite, doutor.  - Boa noite, Jef. Os cavalheiros ainda estão aí?  Era outra tradição. Ouvia as bolas que rolavam e se  entrechocavam. Mesmo assim, perguntava
invariavelmente: 
- Os cavalheiros ainda estão aí?  Ao que Jef retrucava:  - Bom tempo em Amsterdam?  - Não vale o da nossa Frísia - era a resposta habitual. 
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Assim foi. Todos os ritos observados, inclusive o da  sua entrada na sala na ponta dos pés, pois o'arquiteto,  em mangas de camisa, preparava uma carambola.
Aperto de mão silencioso aos outros jogadores. A  carambola foi um sucesso.
- E Amsterdam?  - Tudo bem. Os canais por lá ainda não têm gelo...  E indagou, olhando os dois árbitros de pé junto do  bilhar:
- A partida vale para o campeonato?  -  Claro!  - Preciso me inscrever! - anunciou.  Jamais concorrera. Dizia aquilo da boca para fora.  Sentia necessidade de dizer
alguma coisa, e um impulso  levou-o a acrescentar:
- Da próxima vez postularei seriamente a presidência.
O quadro estava lá, pendurado a uma das colunas  de carvalho envelhecido, com o nome de Schutter em vermelho e todos os outros nomes em negro. Não eram mais  que
cinco os presentes no café, lugar confortável, de  móveis lustrosos e poltronas em que a gente afundava e  copos de cerveja que transbordavam sobre as rodelas de
papelão.
Alguém lhe trouxe o seu, não precisou pedi-lo (uma  grande flâte como sonhara há pouco), e ele o esvaziou de  um só gole, murmurando:
- Outro...  - Nada de novo? - perguntou alguém, também  maquinalmente.
- Nada...  Depositara a pasta em cima de uma das mesas. De  hábito, ficava mais ou menos um quarto de hora, antes  de voltar para casa, na rua vizinha, perto do
velho canal. 
Ouvia-se vagamente a música do cinema ao lado. Já  haviam redigido uma petição a respeito disso, a música  incomodava certos jogadores. 
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De súbito, Kuperus riu em silêncio. Pensava que  ninguém se dera conta de que era terça e não quarta.  Pois, numa primeira terça-feira do mês, ele não poderia  estar
ali!
Ele os sugestionara! Bastara vê-lo e pensaram:  - Hoje é quarta-feira!  Bebeu um segundo copo e pediu uma genebra.  - Estou com uma nevralgia... - teve de explicar.
Era preciso não recair na realidade brutal. Era melhor pensar, por exemplo, que ia entrar em casa e que sua  mulher não estaria lá. Seria Neel, a empregada, que
lhe  abriria a porta. 
De camisola! Era quase certo, pois àquela hora, e  como ele não era esperado, ela já teria deitado. 
Já a vira de camisola. Não a tocara jamais, por causa de todas as complicações prováveis. 
Mas e agora?  Talvez viessem prendê-lo no dia seguinte, ou no outro, quando muito. Não tinha mais nada a perder! 
E pensava com tal intensidade que temeu haver falado em voz alta. 
- Kuperus! - alguém chamou.  Era para servir de juiz a uma tacada mais difícil. Debaixo das mesas, braseiros cheios de cinzas quentes impediam que a madeira empenasse.
- Kees aqui pretende que seu parceiro...  Ele não prestara atenção ao jogo. Deu-se o prazer de  decidir a questão contrariamente ao bom senso. Sobretudo porque Kees
era amigo de Schutter! 
- Kees está errado. Vou bastante a Amsterdam para saber que lá não se discutiria um golpe assim! 
Kees foi punido, perdeu três pontos no campeonato.  Era uma primeira vitória!  - Boa noite... Minha mulher deve estar aflita... -  conseguiu articular.
Estavam todos de tal modo enfeitiçados, que continuavam a acreditar que era de fato quarta-feira, e que a  mulher dele estaria a esperá-lo...
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Na rua, atravessando a ponte levadiça, o Dr. Kuperus só pensava em Neel, que viria abrir a porta de camisola, com o mantô por cima dos ombros, e os pés descalços,
sem dúvida nenhuma!
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Capítulo 2
JÁ acontecera a Kuperus acordar a bordo, principalmente quando fizera a travessia do Spitsbergen, e, da primeira vez, ao abrir os olhos, gozara de uma sensação de
desenraizamento, ficara repetindo consigo que estava em  pleno mar, num barco que vogava em direção ao Oceano  Glacial. 
Que dizer da presente aventura? Devia ser por volta  de sete horas, pois começava a clarear e ouviam-se os desempregados que raspavam a neve das calçadas. Kuperus
não abriu os olhos de vez: apenas o suficiente para se deixar penetrar da penumbra familiar do quarto, do seu  quarto. 
Ouviu uma respiração perto dele. Alguém dormia, e  não era Alice Kuperus, mas Neel a empregada! Era a perna quente de Neel que tocava a sua! 
O que houvera com o mundo? Dali por diante, todos os dias, todas as noites, Kuperus poderia ter Neel ao  seu lado, ou uma outra Neel de cada vez... 
Perguntava-se qual seria a reação da moça. Aproveitaria a ocasião para fazer feriado? Comportar-se-ia  como sempre? 
O ritmo da respiração dela mudou. Deu um suspiro,  estendeu um braço, fez um movimento como se fosse se  enfiar mais nas cobertas, mas logo pôs uma perna para  fora,
depois a outra. 
Seus gestos deviam ser os mesmos das outras manhãs, quando acordava na mansarda. Percebia-se que
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estava apenas meio acordada, os olhos mortiços, a carne  preguiçosa. Olhou Kuperus, que fingiu dormir ainda, e,  sentada à beira da cama, começou a pôr as meias,
depois
uma cinta elástica. 
Saiu, por fim, sem se lavar, e ele ouviu-a acendendo  o fogo na cozinha, depois fazendo o café. 
Quanto a Alice Kuperus, estava morta, bem morta!  E Schutter também! 
Estaria Neel a par da ligação dos dois? Quando ele  chegou, na noite anterior, perguntou, admirando-se por  representar tão bem a comédia: 
- A senhora está dormindo?  Porque devia imaginar a mulher na cama!  - A senhora não está em casa - respondera a empregada. 
- Como não está em casa?  - Acho que recebeu um telegrama de Leeuwarden... A tia está muito doente... 
- Quando deve voltar?  - A senhora disse que voltava amanhã...  E ele sabia que não voltaria mais! E Neel - bastava  olhar para ela - pressentia talvez o que iria
acontecer! A  prova é que murmurou: 
- Posso subir para me deitar de novo?  - Traga primeiro, por favor, uma xícara de chá no  meu quarto. 
E dizer que desde que ela estava com eles, já há três  anos, sentira ondas de desejo toda vez que ficavam sozinhos, e jamais ousara lhe fazer uma carícia! Estava
convencido de que era moça bem comportada, quer dizer, ignorante. 
- Não vá embora... - disse ele num sopro, quando  ela pôs o chá na mesa de cabeceira. - Venha cá... Não  tenha medo. 
- Oh! Não tenho medo.  E não tinha mesmo! Também não era a primeira vez  que aquilo lhe acontecia! Ele é que estava nervoso, e não  só por causa dela, mas por causa
de tudo! Tinha de estar 
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nervoso. E isso se traduzia numa tal febre amorosa que  Neel disse algo inesperado, extraordinário:
- Puxa! Como o senhor tem fogo! 
Aporta se abriu por fim. Neel pôs a bandeja com o  café na mesa de cabeceira e foi descerrar as cortinas, revelando os galhos negros das árvores contra um céu de
neve. Tivera tempo de se vestir corretamente, penteara os  cabelos, pusera um avental limpo. E os braços rosados  cheiravam a sabonete. 
O Dr. Kuperus não saberia dizer se a moça era bonita. Tinha a cara larga das camponesas, os traços mal desenhados. Sem dúvida, o corpo não tinha nada de acadêmico,
mas a carne era opulenta e rija, a tal ponto que naquele mesmo instante ele a olhava com desejo. 
- Que horas são, Neel?  - Oito, senhor.  Respondera exatamente como nos outros dias, o que  o tranqüilizou. 
- Há gelo?  - Não. Mas vamos ter neve. Que terno o senhor vai  usar? 
- O preto. Diga, Neel... Não foi muito estranho  dormir na minha cama? 
- Por que, senhor?  - Teve muitos amantes, antes de mim? Escute,  Neel. Gostaria de saber quando você começou, com que  idade... 
- Com quinze anos, quando era babá em Amsterdam. 
- E depois?  - Depois...  Fez um gesto que significava que aquilo tinha muito  pouca importância. 
Ele se barbeou, vestiu-se. Neel não lhe saía do pensamento, malgrado todas as preocupações. Mirou-se no 
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espelho com mais atenção do que de hábito e achou-se  um pouco inchado. Aquilo lhe acontecia. Em certos dias  sua carne ficava mais balofa, e isso o deixava preocupado.
Que iria acontecer agora? Via o canal debaixo das  suas janelas, as árvores nuas. A campainha tocou e, pelos diversos ruídos que se sucederam, compreendeu que o
primeiro cliente do dia fora admitido na sala de espera. 
Em primeiro lugar, devia continuar a admirar-se da  ausência de sua mulher e, num dia ou dois, notificar essa  ausência à Polícia. Era fácil, fizera a experiência
com  Neel. Ele que antes não sabia mentir, sentia-se agora perfeitamente à vontade no papel. 
O que poderia traí-lo? Ninguém o vira. Como imaginar que descera do trem entre uma estação e outra? 
Saiu do quarto e foi para a sala. Era obrigado a sorrir, pois aquela sala tinha sua história. Há menos de um  ano, Alice Kuperus declarara que seu salão não era
suficientemente moderno. Mandara vir catálogos de móveis  de Haia e Amsterdam. E discutira com ele, que julgava a  despesa inútil, achando que a velha sala ainda
estava  apresentável.
Depois decidira-se.  - Pois você terá sua sala nova.  Ora, três dias depois recebera a carta anônima. No  momento em que a mulher passava os dias examinando  montanhas
de amostras para o papel de parede, o carpete, a coberta de mesa... 
Passou ao consultório, abriu a porta da sala de espera. Já havia àquela hora cinco pessoas. Logo seriam vinte, pois ele dava consultas a um florim. Vestira o jaleco
branco e mostrava-se, como sempre, frio e digno. Era capaz de se ver de fora, com olho clínico. Estava satisfeito  com seu próprio desempenho. 
Entrou uma senhora com um menino que tinha feridas no rosto; ele apanhou o receituário para escrever a  fórmula de uma pomada. No mesmo instante empalideceu, sentindo
de novo a agonia no peito. 
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Alguém sabia! Pensara em tudo, menos nisso! Alguém sabia ou, em todo caso, logo saberia. Como um detalhe assim lhe escapara? 
O mais terrível era que ignorava o nome desse homem. (Ou seria uma mulher?) Tratava-se da pessoa que  escrevera a carta anônima! 
Essa pessoa compreenderia tudo quando viesse a ter  conhecimento do duplo crime. 
Quem seria? Um dos seus amigos do Onder de Linden? Por que não a própria Neel, Neel que estava a par  de tudo? 
O que bloqueara seu pensamento até então? Neel,  evidentemente, sabia de todo o enredo, pois via Alice Kuperus sair de casa toda vez que o doutor viajava para  Amsterdam!
E jamais dera um pio! 
Obviamente, Alice comprara o silêncio da moça...  Não conseguia recordar a fórmula da pomada. Por  um momento, chegou a se perguntar que diabo fazia  aquele menino
constelado de perebas à sua frente. Finalmente, controlou-se, suspirou, escreveu a receita e abriu  a porta para deixar passar "o seguinte', um velho que sofria
de nevralgias nas costas. 
E se Neel tivesse mesmo escrito a carta?  Não errara: houve vinte e dois clientes nessa manhã.  Às onze horas, como de costume, interrompeu as consultas para ir
tomar uma xícara de chá e comer uma fatia de  pão com manteiga. 
Serviam-no na sala de jantar, que cheirava a cera,  pois era o dia de limpeza. Sentiu vontade de dar uma volta pela cozinha, de rondar em torno da empregada. 
- O senhor quer mais alguma coisa? - perguntou  ela. 
O curioso era que ainda a desejava. Quis saber simplesmente: 
- A senhora ainda não voltou?  - Não... E isso me surpreende...  Teria de levar aquilo até as cinco da tarde, quando  iria ao café e alguém mencionaria Schutter.
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Almoçou sozinho. Olhava Neel pelo espelho.  - Eu dei prazer a você, ontem à noite?  - Por que pergunta isso?  - Gostaria de fazer de novo?  - O senhor sabe muito
bem que a senhora volta...  Se ela desconfiar... 
Que lhe importava, afinal de contas, ir para a prisão? Conhecia o juiz, Anton Groven. Era também jogador de bilhar, e mau jogador, por ser míope. Ficaria de  um
lado da mesa, e Kuperus do outro, com seu advogado. Será que o juiz o chamaria de "Hans', como de hábito? 
Tomou a valise e fez suas visitas na cidade, enfiado  no casacão. No grande canal, dezenas de barcos estavam  apertados uns contra os outros, imbricados, trepidando
com todos os seus motores a óleo, pois havia uma feira  de animais, e estes, trazidos do campo, vinham embarcados pelos canais que convergiam para a cidade. 
Kuperus teve de passar pela Praça da Prefeitura. E  foi com uma nova expressão que olhou a casa de Schutter: o falecido era o único cidadão de Sneek a ter um criado
de quarto de colete listrado e um maTtre d'hôtel que  servia a mesa de casaca e luvas brancas! 
Quanto a Kuperus, contentava-se com Neel e com  uma faxineira que vinha duas vezes por semana. 
E se fosse ela, a arrumadeira, a autora da carta anônima? Ele jamais a olhara direito. A bem dizer, não a conhecia. Tanto quanto podia lembrar, era um mulheraço,
numa confusão de saias pretas... Feia como uma condenada, de cara vermelha, meias também pretas, cabelos  sempre desgrenhados. 
Uma escarlatina aqui, um parto mais adiante... Para o dia seguinte talvez, ou para aquela noite mesmo?...  Como se paria em Sneek! Em dezembro, fora acordado  exatamente
vinte e seis vezes para atender a mulheres que  davam à luz. 
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Quando entrou no café, às cinco horas, sentia-se  inexplicavelmente exausto. Não fizera mais visitas do  que nos outros dias. Nem dera mais consultas. Apenas,  havia
nele agora como que uma espécie de engrenagem  que girava com velocidade pouco habitual, excessiva. 
Depôs a valise no canto costumeiro. O velho Jef lhe  tirou o casacão. Apertou a mão de Pijpekamp, de Van  Malderen, de Loos. 
- Ninguém vai poder patinar neste inverno - disse  Van Malderen, o advogado. - Gela numa noite e logo a  seguir degela... 
Havia, na sala quieta, um relógio de parede que Kuperus sempre achara impressionante. Era muito alto. O  mostrador não se distinguia do comum, desbotado, com  caracteres
romanos. Mas havia o pêndulo, um imenso  pêndulo de cobre, que sempre refletia a luz. E quando a  gente olhava o pêndulo, parecia que no relógio, e só nele,  os
segundos eram muito mais longos do que em qualquer  outro. 
Isso, em parte, era verdadeiro. Fazia calor. A Praça  da Prefeitura, com sua pavimentação desigual, estava  deserta, povoada apenas de uma ou duas silhuetas como
se vêem nas paisagens dos museus. Do clube via-se a torrezinha gótica da Prefeitura, com seus arremates pontudos, cônicos, dourados. 
E Jef se deslocava sem ruído pelo soalho mais liso  do que todos os soalhos do mundo. As mesas escuras  eram lustrosas. E havia pequenas rodelas de papelão como
descanso para os copos. Tudo brilhava. Tudo vivia  numa quietude beatífica, inclusive o proprietário, Loos,  o qual, quando não havia ninguém no estabelecimento,
se sentava junto do fogão quadrado, botava os óculos e  lia durante horas o Telegraaf. 
Ficavam por vezes três ou quatro em volta de uma  mesa sem falar. Apenas uma frase era dita, de longe em  longe.  Fumavam.  Alguns,  como  Van Malderen,  tinham
seus cachimbos num suporte apropriado e seus potes de fumo guardados em lugar certo, por trás do
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balcão. Mas era o odor dos charutos que dominava, misturado ao da genebra.
- Schutter não veio?  Era Kuperus quem falava, acendendo um charuto.  Olhava o fogo através da guarda de mica translúcida. As  lâmpadas já estavam acesas por cima
do grande bilhar  das competições de gordos pés admiravelmente esculpidos. 
-Ninguém o viu desde ontem...  E Loos, atiçando o fogo sem pressa, e também sem  deixar de fumar, soltando pequenas baforadas, acrescentou: 
- O curioso é que o mattre d'hôtel dele veio ainda  há pouco perguntar se não tínhamos notícias dele... 
Van Malderen piscou o olho. Do grupo era quem  mais histórias marotas conhecia, e contava-as com um ar  lúgubre que se harmonizava com sua figura: era magro,  apagado,
e fazia questão de se vestir com a sobriedade de  um pastor protestante. 
- Outra mulher provavelmente. Em mim é que não  bota chifres: a Sra. Van Malderen é tão feia que nunca  serei enganado... 
Era verdade! E ele de fato se alegrava com isso!  - Quem joga uma partida comigo? - perguntou  Kuperus. 
- Quanto aposta?  - Um florim...  Van Malderen aceitou o desafio, os dois tiraram o  paletó e puseram elásticos nas mangas da camisa. Cada  um tinha seu taco particular,
preso a cadeado na taqueira. 
- Em duzentos pontos!  Em meio à partida, dois ou três camaradas entraram, entre outros o dono da tabacaria vizinha, que, ao  apertar as mãos de amigos, divertia-se
em lhes enfiar sorrateiramente um charuto. 
- Experimente este... - dizia. 
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Kuperus ganhava. Uma série de sessenta, para começar... Havia um grande espelho no qual ele se via jogar; não podia fazer um movimento sem se olhar nele. 
E dizer que matara Schutter! Pensava menos na mulher. Era quase menos grave. Principalmente porque só  teria repercussão na sua própria vida. 
Ao passo que Schutter! Falava-se dele à volta, em  meio à contagem dos pontos. 
- O prefeito me dizia justamente que Schutter vai  se candidatar às eleições gerais dentro de seis meses... 
- Em que chapa?  - Na chapa progressista, evidentemente!  Pois Schutter, para enfurecê-los, ou por esnobismo,  Schutter, o único a se fazer servir por um maftre
com luvas brancas, afetava idéias de esquerda! 
- É um conversa-fiada... - disse Kuperus, debruçando-se sobre o bilhar. 
E pensou: "Era um conversa-fiada..."  - É um homem extremamente inteligente... Faz tudo o que quer... E tem êxito em tudo que empreende... Se  for candidato, se
elege. 
- Aposto que não será candidato!  Era sempre a voz de Kuperus, que prosseguia a nova  série e contava os pontos ao mesmo tempo. 
- Ao contrário, acho que tem possibilidades. O  atual deputado está com setenta e dois anos... 
- E Schutter, quantos tem?  - A minha idade...  Kuperus outra vez! Era mais forte do que ele. E, ao  falar, deu uma olhadela ao espelho para observar sua expressão.
Perfeito! Estava em plena forma! O rosto inchado  de de manhã desaparecera. Tinha na comissura dos  lábios o esboço de um sorriso, mas tão vago que só ele  mesmo
podia percebê-lo.
- Quarenta e quatro?  - Quarenta e seis.
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Pois parece mais moço. É verdade que ele se cuida.
- No colégio - articulou Kuperus - ele já fazia as  unhas e tomava banho todos os dias.
Pronto! Duzentos pontos! Ganhara! Embolsou o  florim de prata que Van Malderen tirou de uma carteirinha com gestos de avaro.
- Terei de inventar alguma coisa para explicar essa  despesa excessiva a minha mulher - suspirou o advogado.
Aquilo o divertia, representar. Todo mundo sabia  que a mulher nunca ousaria lhe fazer uma observação.
- Não sei por onde anda a minha - arriscou, por  fim, Kuperus. - A empregada me disse que ela recebeu  um telegrama de uma tia de Leuwarden e se mandou para  lá.
Van Malderen comentou:  - Você é que tem sorte!  Este teria sido capaz de escrever a carta anônima.  Kuperus, infelizmente, a destruíra. Rasgara-a em pedacinhos,
queimados em seguida. Nem se lembrava mais da  letra. Sim, Van Malderen era capaz de uma coisa daquelas, só para se divertir. E, nesse caso, não diria nada.  Contentar-se-ia
em gozar  a superioridade de saber,  lançando talvez algumas frases ambíguas, como aquela:
- Você é que tem sorte!  A porta se abriu, e todos os homens se entreolharam  de modo especial, pois foi uma mulher jovem que entrou  e que, indiferente à fumaça
em torno das lâmpadas,  sentou-se ao fundo da sala e pediu um licor.
- É possível jantar? - perguntou ela.  Jef respondeu que sim, quase a contragosto. Era  loura, de um louro artificial, e vestia-se como nenhuma  mulher de Sneek
jamais se vestira. Usava batom. E saltos  tão altos que era um mistério poder se equilibrar neles.  Para cúmulo da afetação, tirou da bolsa uma cigarreira  de ouro
e acendeu um cigarro. 
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Que vinha de Amsterdam, era evidente. Olhava com  ar divertido e sem qualquer acanhamento o café onde tudo era concebido para homens ou, mais exatamente, para os
burgueses de Sneek. 
- Garçom!  Jef precipitou-se, guardanapo no braço.  - Sabe onde mora o Conde de Schutter?  - O conde? - balbuciou Jef. - A senhora se refere ao Sr. Cornelius de
Schutter? 
- É o nome dele, sim.  Todo mundo escutava. Na sala só se ouvia o ronco  da estufa. 
- Mora a cem metros daqui, na praça, ao lado da  Prefeitura. 
- É possível telefonar para ele?  - É mais rápido ir até lá.  - Não lhe pediria isso. Pergunto apenas se ele tem  telefone. 
- Certamente. O número é 133.  - Posso falar daqui?  - A cabine fica à esquerda dos banheiros...  Ela se levantou, sacudiu a cinza do cigarro e atravessou o café
sem fazer caso dos que a observavam. Fechada a porta da cabine, ouviram-se uma campainha abafada, um dique, depois um murmúrio confuso. 
Nova troca de olhares. Van Malderen fez sinal a Jef:  que renovasse as bebidas. 
- Mais uma! - suspirou Loos.  E Van Malderen disse em voz baixa:  - Foi talvez por isso, por saber que ela vinha atrás  dele, que tomou a precaução de sumir do mapa...
A mulher deixou a cabine, dirigiu-se de novo a Jef:  - Vocês têm quartos?  - Não senhora. Isso não é um hotel. Mas posso lhe  reservar um quarto no Hotel da Estação.
É muito bom.  Tem água corrente... 
- Mas primeiro um outro cherry-brandy, por favor... 
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Estava preocupada. Três jovens entraram para jogar bilhar. Não faziam parte do grupo habitual. Eram  pequenos empregados, o mais velho não teria mais de  vinte e
cinco anos. Pareciam sentir uma necessidade incoercível de falar e rir o tempo todo. 
- Garçom!  - Sim, senhora.  - O Conde de Schutter vem sempre aqui?  - Todos os dias, senhora.  - Não disse a ninguém que ia fazer uma viagem?  - Não, senhora. 
Loos se ergueu, julgando que cabia ao dono da casa  responder pessoalmente.
- Ontem mesmo esteve aqui, às três horas - disse.  - Estou surpreso com sua ausência hoje. O maitre d'hôtel dele me telefonou há pouco para dizer que está aflito.
Kuperus, entorpecido, tocava o fogão com os pés.  Acendera o charuto que o dono da tabacaria lhe dera. E  espremia os olhos para observar aquela mulher extravagante.
Coisa curiosa! Constatava que ela não o impressionava. Era bela, no entanto Neel, mal vestida, mal penteada, com suas formas grosseiras, fazia subir um calor a
seu rosto. Pensava nisso ainda agora. Tinha até um problema a resolver com relação a ela.
Ousaria, nessa noite, fazê-la dormir na sua cama?
Não era tão simples quanto parecia! Pois, afinal de contas,  ele  estava  oficialmente à  espera  da  esposa.  Tinha  obrigação de se afligir. Ou já teria esperado
demais?
- Jef. Veja no catálogo se a Sra. Costens, em Leeuwarden, tem telefone.
A  Sra. Costens era a pretensa tia doente. Logicamente, deveria telefonar para ela.
Vira-a  duas  vezes.  Era  uma  mulher grandalhona,  vulgar.  Alice não  falava nela  porque era  dona  de  uma
peixaria. rigor, gor, u  a peixaria tem telefone! Jef folheava o  gordo livro. Kuperus _ puxava baforadas no charuto e
pensava na mulher, olhando ao mesmo tempo a estranha  de cabelos louros.
Havia um elo entre eles: Schutter! Por que aberração teria ele desejado Alice Kuperus? Será que a julgava excitante?
E ela, principalmente ela, como pudera se lançar numa aventura assim? Quanto mais pensava no assunto,  menos entendia. Alice era exatamente o oposto da mulher que
faz essas loucuras.
Parecia um bombom. Cheirava a açúcar. Nutria-se,  aliás, de doces e tortas, e sua pele tinha um tom rosado  de marzipã. Era capaz de virar e revirar amostras durante
uma semana para comprar ao fim uma pequena toalha  de mesa.
Comia determinada marca de chocolates só porque  cada caixa continha figurinhas, simples cromos lustrosos, representando todas as flores do mundo - que ela  colava
num álbum!
- Serve a peixaria? O senhor deseja que eu faça a  ligação?
- Sim.  Os moços eram de fato excessivamente barulhentos.  Van Malderen suspirava de modo cômico, lançando  olhares à estranha.
- Deve ser maravilhosa a condição de celibatário!  Quanto a mim, jamais gozei desse estado...
- Salvo antes de se casar...  - Perdão! Eu tinha minha mãe, uma santa mulher  cuja idéia fixa era me guardar puro para a futura esposa...
- E guardou?  - Na proporção de uns setenta e cinco por cento...  - A Sra. Costens no aparelho!  Mais um minuto e ele dizia:  - É a senhora, tia? Está melhor? Como
diz... Minha mulher não está aí?
Representava a comédia para ele mesmo, porque estava sozinho na cabine acolchoada. Fazia, à perfeição,
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caretas de perplexidade, depois de susto. Quando saiu, tinha os olhos apertados.
- Meus amigos... Jef... Um cálice de genebra.  - O que tem você?  - Meus amigos... O que aconteceu...  Baixou a voz.  - Minha mulher devia estar em Leeuwarden...
E  não está...
Engoliu a genebra de um trago, olhou-se no espelho.  - A empregada deve ter entendido mal - sugeriu  Loos. - Trata-se de uma outra tia...
- Nós não temos outra tia!  Van Malderen fixou comicamente a ponta dos  próprios sapatos.
- Desculpem-me - disse Kuperus. - Preciso ficar  só, refletir.
Saiu, de olhos arregalados, e conservou-os assim até  a esquina da praça, onde assumiu de súbito a expressão  neutra de sempre.
A rigor, que expressão deveria ter? Já não sabia. Fizera o necessário. Mas, e agora? Era cedo demais para ir  à polícia. E, em casa, encontraria Neel.
 Encontrou também a sala de jantar. Em cima da  mesa havia um grande abajur de seda rosa, de modo que  tudo ficava rosa: era de uma doçura indizível.
- A senhora não voltou?  - Não, senhor.  - Alguém telefonou?  - Telefonaram pedindo que o senhor vá em casa  dos Meeus assim que puder. Parece que o doente piorou.
- Neel...  - Sim...  - Olhe-me nos olhos, Neel! A senhora não está em  casa da tia. Você sabia disso, não é mesmo?
- Sim, senhor.  Com toda a simplicidade! E olhava-o nos olhos, como ele ordenara.
- Aonde foi então?
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- Não sei, senhor. Ela não disse.  - E você não imagina onde terá ido?
- Não, senhor.  - Venha cá.  Ele jantava. Ela estava de avental branco.  Ele  passou-lhe o braço pela cintura.
- Você gosta de mim um pouquinho, Neel?  - O que o senhor quer dizer com isso?  - Aquilo deu prazer a você, ontem à noite?  Sempre essa pergunta!  - Gostaria de
fazer de novo?  - E se a patroa chegasse?  - Mas sua patroa não faz a mesma coisa? Hein?  Pode responder, agora...
- Sim, posso.  - Você sabia?  - Sabia, claro.  - E o que pensava disso?  - Que é uma desgraça, uma mulher que tem tudo o  que deseja...
E seus olhos, naturalmente, percorriam os móveis  confortáveis, a mesa bem posta.
- Continue...  - Eu achava que não valia a pena...  - Valia a pena o quê?  - Que ela enganasse o senhor.  - Sente-se aqui.  - Eu?  - Sim, você! Jante comigo!  -
Prefiro não fazer isso!  - Por quê?  - Porque não é coisa que se faça.  - Mas você dormiu na minha cama!  - É diferente... Além disso, tenho ainda muito que  fazer
na cozinha... O senhor não ficará aborrecido comigo?
Uma vez só, ele se olhou no espelho. Sentia calor.   II  Tinha medo. Medo sem saber exatamente de quê. Não
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era medo de ser preso. Não. Era um medo vago, uma  angústia como a que, por vezes, apertava seu peito.
Comeu depressa, sem vontade, abriu a porta da cozinha. 
- Não acabou ainda?  - Falta lavar a louça...  - Lave amanhã. Venha...  Era uma necessidade. Não queria ficar só.  - E se a senhora chegar?  - Não vai chegar, ande
logo!  Tanto pior. Não devia dizer isso, mas dizia-o de  propósito. 
- Venha, querida...  Ah! Sim! Era muito pior que o barco do Spitsbergen! A casa inteira, com seus quartos escuros, uma única  luz na mesa de cabeceira, navegava
num mundo desconhecido, incoerente, em que se destacava a combinação  cor-de-rosa de Neel, que tirava as meias, debruçada para  a frente, os cabelos escondendo o
rosto. 
Para onde navegavam?  A boca de Neel, como a de Alice Kuperus, tinha gosto de chocolate! Do mesmo chocolate das figurinhas! 
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Capítulo 3
TODO mundo o julgava muito digno. De tal modo, que  escapou ao ridículo. E, no entanto, não se dava ao trabalho de representar. Fazia com naturalidade o que tinha
de fazer. 
Assim, foi ver o chefe de polícia, um magro alto que  ele conhecia há muito tempo e que andava sempre de fraque. Um homem soturno. Tanto melhor para Kuperus  que,
devido à natureza do assunto, não tinha de se mostrar alegre. 
- Sente-se. Vai bem?  - Muito bem.  - A Sra. Kuperus também?  - Aí está! Não sei... Vim justamente comunicar à  Polícia que minha mulher está desaparecida há dois
dias. 
Fazia aquilo como uma obrigação, com ar de enfado. E foi esse enfado que se tomou como a expressão pudicamente velada de uma grande dor. 
- É estranho... - murmurou o chefe de polícia, os  olhos fixos nos carvões acesos da grelha do aquecedor. 
- Que minha mulher tenha desaparecido?  - Que me anunciem ao mesmo tempo uma outra  desaparição, a de um dos seus amigos, Schutter, o advogado... 
Kuperus deu de ombros, como se dissesse que aquilo  nada tinha a ver com o seu problema. Divertia-se em verificar que até pessoas como o chefe de polícia o olhavam
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com pena, acompanhavam-no à porta como se acompanha um doente, apertavam-lhe a mão demoradamente. 
- Prometo-lhe fazer o impossível... Vamos esperar  que não passe de uma fuga, talvez um mal-entendido... 
Kuperus agradeceu com um sorriso pálido. Na rua,  deteve-se diante de uma vitrine (a de uma farmácia, por  acaso, onde não havia nada em exposição além de um  imenso
bocal amarelo) e se olhou no vidro. Ficou surpreso ao constatar que tinha o ar de um perfeito viúvo. 
Teria podido, às cinco horas, evitar o Onder de Linden, mas julgou, pelo contrário, que ir até lá era uma necessidade. Chegou com a maleta de médico, depositou-a
no canto, deixou deslizar o casacão para os braços de Jef  e murmurou, antes de se voltar para os outros: 
- Está gelado, hoje.  Gelado mesmo, firme, desde cedo. Uma capa de gelo já se formava na superfície dos canais que cortam  Sneek em retângulos regulares. Quem poderia
saber o  que havia de providencial naquilo? Ninguém! E era por  isso que Kuperus repetia, dando a mão a Van Malderen,  a Loos, depois a dois outros que estavam lá:
- Gela firme!  Observou  que  a  mulherzinha  loura  da véspera  também se achava presente, no mesmo lugar, e que fixava nele um olhar duro. Como já era a segunda
vez que a  via, achou correto inclinar-se ligeiramente na sua direção. 
- E então? - fez Van Malderen, no mesmo tom  em que diria: Meu pobre amigo! 
Kuperus contentou-se em suspirar:  - Sim...  E estendeu as pernas para o fogo, enquanto Jef lhe  retirava as galochas. 
- O jornal deu... - murmurou Van Malderen depois de uma pausa. 
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- Ah! Mencionam minha mulher?  - Não! De Schutter... O eminente advogado desapareceu sem deixar a menor pista, mas espera-se ainda  que se trate de uma viagem repentina...
Kuperus se virou. Havia alguém atrás dele, a mulher  loura, de pé, com ar preocupado: 
- O senhor é o marido, pois não?  - O marido de quem?  Van Malderen desviou o rosto. Temia não conseguir  ficar sério. Só Kuperus continuava natural, inacreditavelmente
natural. 
- O marido da mulher que fugiu com Cornelius -  esclareceu a desconhecida. 
Ele começou por acender o charuto e, durante algum tempo, seu rosto ficou mais grave e mais digno. Depois, olhou em volta, como que para enfrentar a adversidade.
- Ignoro se há alguma verdade no que diz. Estamos todos mais ou menos à mercê da desgraça mas, até  que me dêem prova do contrário, não me permitirei duvidar da
honra de uma mulher... 
Os circunstantes estiveram a ponto de aplaudir. Só a  desconhecida mostrava impaciência. Já não era a viajante elegante e longínqua da véspera:  sua vulgaridade
apontava, agora, nas atitudes e na voz: 
- E o senhor não tem idéia do lugar para onde possam ter ido? 
E ela os olhava a todos como se os responsabilizasse  coletivamente pelo que lhe acontecia. 
- Creia que estou desolado, minha senhora... que  estamos todos desolados... 
Jogou bilhar, depois, o que todo mundo considerou  muito adequado. Tinha o ar de alguém que quer tirar da  cabeça preocupações por demais acabrunhantes. A verdade
é que pensava em Neel. 
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Tudo mais não tinha importância. Kuperus dava  suas consultas, fazia suas visitas, passava uma hora com  os amigos, tomava suas refeições, lia o Telegraaf, e o termômetro
marcava, agora, dez graus abaixo de zero. Ninguém tentou sequer ir até lá para ver se havia algum  indício. 
Das suas janelas, o médico podia ver o canal gelado  e os marujos que, toda manhã, cortavam uma fita de gelo em torno dos barcos. As crianças usavam gorros de lã
multicolorida, desses que cobrem as orelhas  e deixam  apenas o rosto de fora, cachecóis e botinhas de borracha.  A neve endurecera nas ruas, e ouviam-se de longe
os passos dos transeuntes. 
O que podia ele fazer? Um comissário veio vê-lo em  casa, tão respeitoso quanto o chefe de polícia. Kuperus  ofereceu-lhe um copo de vinho, pois tinha por acaso
uma  garrafa de borgonha posta para perder o frio da adega ao  lado da lareira. O comissário abriu um caderninho e tomou suas notas. 
Que vestido usava a Sra. Kuperus? A que horas partira? De que cor era o seu mantô... 
- Vou chamar Neel - disse o doutor.      Foi Neel quem respondeu às perguntas do policial.  Parecia mais perturbada do que ele. Estava nervosa naquele dia. Quebrara
um prato, ao lavar a louça, o que era  mau sinal; e como Kuperus, enquanto comia, a puxara  para junto dele, dissera com mau humor: 
- Procure ficar sério!  Ela lhe falava cada vez mais familiarmente. Quando  o comissário saiu, entrou no salão sem ser chamada,  mantendo os olhos baixos, à moda
das camponesas. 
- Posso lhe falar por um minuto, senhor?  - O que deseja, Neel?  - Deveria ter dito isso antes... Acho melhor não  passar as noites no seu quarto... O resto não
tem importância, mas vão acabar sabendo que durmo na sua cama.  A mim mesma isso me constrange. Era isso.  - E por que me diz isso hoje? 
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- Por quê? Não sei.  - Por que não me disse a mesma coisa ontem, ou  anteontem? 
Ela deu de ombros:  - O senhor quer mesmo saber? Para mim, tanto  faz. 
- Então, fale!  - É Karl que não está satisfeito... O senhor já foi  muito longe! Karl é o meu namorado... 
- E hoje é o dia em que vai encontrá-lo?  Novo alçar de ombros.  - Não.  - Ele sabe que você está comigo, desde alguns dias?  - Claro!  - É por isso que você não
quer mais...  Ela se impacientou e por pouco não bateu com o pé  no chão. 
- Mas não! O senhor não entende. Sei que não vai  me despedir. Posso, então, falar. Há cinco meses já que  Karl dorme aqui. 
- Aqui em casa?  - No meu quarto...  - E como entra e sai sem ser visto?  - Eu...  Ruborizou-se, hesitou, depois foi em frente, de cabeça baixa: 
- Eu lhe dei uma cópia da chave. Entra tarde da  noite, quando todos já estão dormindo, e sai bem cedinho... 
- Nesses últimos dias também?  Ela fez que sim com a cabeça. Ele ficou desorientado. O sangue lhe fugiu do rosto, sentiu tonteira, encheu o  copo de vinho. 
- Quer um pouco, também?  - Não, obrigada. Não gosto de vinho.  - E que espécie de homem ele é?  - Karl? É um alemão, de Emden... 
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- E o que faz?  - Nada... Não encontrou emprego ainda. Quando  há algum banquete, chamam-no para ajudar... 
- Deixe-me só, está bem?  - E estarei livre esta noite?  - Sim. Ou, melhor, digo-lhe qualquer coisa daqui a  pouco. 
Instalou-se na poltrona, junto do fogo. O abajur banhava a sala de luz cor-de-rosa. Todos os móveis estavam bem cuidados e limpos. Os cristais cintilavam no  aparador.
Os cobres irradiavam reflexos opulentos. Caixas de charutos empilhavam-se, à direita da lareira, e a  garrafa de borgonha ainda tinha vinho. 
Kuperus não pôde permanecer sentado. Chegou a  abrir a boca para gritar alguma coisa, mas não o fez, pois  viu a tempo sua imagem no espelho. 
Era inimaginável! Aquilo transtornava toda a sua  existência. Era de tal modo inaudito, que ficava a se perguntar se Neel não lhe teria mentido. 
Há cinco meses um homem dormia na mansarda toda noite! E ninguém dera por isso! Ia e vinha como se estivesse  em  sua própria  casa.  Vivia-se  num  seio  de  Abraão.
E ele, que jamais ousara roçar com a mão o estufado corpete da empregada! 
Esse homem, esse Karl, tinha uma chave! Mas o  mais extravagante, o mais terrificante era que, depois  dos acontecimentos, ele continuava lá, dormia sozinho  na
cama de ferro de Neel, enquanto ela... 
Chamou-a. Tocou a campainha como se faz para  chamar uma empregada. Ia e vinha pelas duas salas porque a larga porta de comunicação estava aberta entre a  de visitas
e a de jantar. 
- Ele ama você, esse homem?  - Acho que sim.  - Não tem ciúme?  - Não sei.  - Enfim, ele aceitou que você dormisse comigo?  Aceita ser traído? 
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- Não é a mesma coisa.  - O que não é a mesma coisa?  - O senhor! Karl é bastante inteligente para saber  que é necessário...
- Muito bem. Pode ir...  - E esta noite?  - Esta noite, você dorme comigo, entende? É necessário, como você mesma diz. Mas agora saia, por  Deus! 
Não podia mais. Jamais teria imaginado que uma  coisa daquelas pudesse transtorná-lo assim. Estava com  ciúmes de Neel! Sofria, por ter ouvido que suas relações
não tinham importância... 
Essa constatação o estarrecia. Farejava um perigo,  sem saber qual. Teve de sair, para acalmar-se, e andou  ao longo dos canais, nos cais praticamente desertos.
E se fosse ele, esse Karl, o autor da carta anônima?  Um bandido, sem dúvida, uma vez que não trabalhava  nem tinha domicílio. Que esperava? E quanto tempo esperaria
para extorquir-lhe dinheiro? 
O Dr. Kuperus passou pela frente do Onder de Linden, mas contentou-se em lançar um olhar para dentro,  sem  entrar.  Os  quatro  bilhares  estavam  ocupados.  Chegava-se
ao fim do campeonato anual. Junto do balcão, a moça loura estava sentada em companhia de Van  Malderen e de uma outra pessoa de costas para a janela. 
- Meu chá! - gritou Kuperus, ao subir para o  quarto naquela noite. 
Ele não tomava chá antes de dormir e nunca havia  tomado. Mas, no primeiro dia, servira-se dessa desculpa  para atrair Neel e, daí por diante, a coisa passara a
tradição. 
Pôs o robe de chambre. Pouco depois, a empregada  subiu, depositou a bandeja em cima da mesinha de cabeceira, evitando encarar o médico. Então, de olhar sombrio,
começou a despir-se. 
- Ele está lá em cima? - perguntou Kuperus.  - Está. 
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- E que foi que disse?  - Nada. O que poderia dizer?  Ela abriu a cama, já de camisola, meteu-se entre os  lençóis antes dele, e esperou, as mãos cruzadas atrás
da
nuca.
- Que importa ao senhor, depois, que eu durma  aqui ou no meu quarto?
Ele não respondeu. Escovava os dentes.  - O senhor não tem ciúmes de mim, imagino...  Ele estremeceu, olhou-a, viu-a muda e emburrada,  como na maioria das vezes.
- Você o ama?  - Não sei.  - Como ele é?  - Alto, muito magro, olhos ardentes...  - Não sabe o que ele fazia antes, na Alemanha?  - Não sei. Contou-me apenas que
houve um problema por lá. Ele tem boa instrução... Não era qualquer  um...
- E onde você o encontrou?  - Na rua... Ele me seguiu vários dias quando eu  saía para as compras...
- Há quanto tempo?  - Cinco meses, já lhe disse...  Se era verdade, então não poderia ter escrito a carta.  Kuperus deitara-se. Sentia o calor do corpo de Neel,
o  qual, não obstante, permaneceria apático.
- Neel!  - Sim...  - Responda com franqueza. Você fica com ele como fica comigo?
- Como?  - Assim frígida, insensível...  - Fico.  Era verdade. Ela não hesitara. O tom era o da sinceridade. Aliás, não se teria dado o trabalho de mentir. 
- E se tivéssemos descoberto esse Karl quando minha mulher ainda estava aqui? 
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- Eu teria sido despedida...  - E se não conseguisse outro emprego?  Ela suspirou, como se dissesse que aquilo não lhe fazia diferença e que todas aquelas perguntas
eram ociosas. 
Estava de mau humor. Fixava o teto ainda mais obstinadamente do que de hábito. 
- O que faz ele o dia inteiro?  - Como posso saber?  - É você quem lhe dá de comer, naturalmente!  - Sem dúvida.  Sobra sempre o suficiente para  alimentá-lo...
Preferiu não pensar demais naquilo, que lhe trazia à  memória um pequeno mistério que havia intrigado por  muito tempo sua mulher. Até o fim, praticamente: o  mistério
do sumiço das sobras da mesa. Pois agora estava esclarecido. Mas era tarde demais. 
- O que pensa de mim, Neel?  - O que deseja que eu pense?  - Diga a verdade. Você sabe que eu permito.  - Sei. E é engraçado.  - O que é engraçado?  - E se dormíssemos?
- Eu lhe perguntei o que é engraçado.  - O senhor! Tudo o que o senhor faz! A maneira  como me conquistou. Tudo, enfim! Não sei explicar. Vamos fazer alguma coisa
ou dormir? Tenho de acordar às  sete da manhã. 
Ele gostaria de responder com indiferença: "Se é assim, durma!" 
Mas não podia! Aquilo se tornara uma necessidade  para ele. 
Passou horas sem dormir, a pensar naquele homem  deitado por cima da sua cabeça e dentro da sua casa. 
Não ousara dar ordem a Neel de botá-lo na rua. Talvez ela se fosse com ele. Era, até, muito provável. Quem  sabe, também, se não daria com a língua nos dentes? 
48 
Por outro lado, não podia suportar a idéia de que a  empregada iria reunir-se a esse Karl na água furtada. Ele  a escutava dormir. Neel esticara um braço que lhe
tocava  o ombro. 
O que faria ainda em Sneek a mulher de cabelos louros? E por que ficava a rondar o Onder de Linden? 
Não tinha medo. Não! Não tinha mais medo de nada. E tanto era verdade que teve, certa hora, vontade de  subir à mansarda para pôr tudo em pratos limpos com  Karl.
Principalmente, para ver como ele era... 
E por que não? No ponto a que chegara...  Essa noite passada toda entre a vigília e o sono teve  um resultado curioso na manhã seguinte. Sentia-se vazio,  mas de
cabeça leve. Quando entrou no consultório e vestiu o jaleco branco, perguntou-se de que servia tudo  aquilo, e abriu a porta como que em sonhos. A primeira  coisa
que viu foi o velho, de quem tratava havia muito  tempo e que o fazia crer que sofria de nevralgias nas costas. 
- Bom dia, doutor. Estou melhor... A noite passada, ainda me levantei três vezes... Se fico deitado, sufoco. A única solução é ficar de pé junto da cama... 
- Que idade tem o senhor?  - Sessenta e quatro... Logo farei sessenta e cinco.  Se não fossem essas dores que me pegaram há dois  anos... 
O homem começou a tirar a roupa, e Kuperus, conferindo a ficha dele e pondo em ordem os seus instrumentos, não o percebeu. Quando se voltou, deu com o paciente de
peito nu, um peito descarnado e amarelento à  luz pálida que banhava o consultório. 
- O senhor pode se vestir...  - Não vai me examinar?  - Eu o examinei há quinze dias.  - Mas estou pior...  - Por isso mesmo...  - O que quer dizer? 
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A angústia crescia, uma angústia gelada, na voz do  velho. 
- O senhor já viveu sessenta e quatro anos, não é  mesmo? Nem todo mundo tem a mesma sorte. 
- O senhor crê...  - Sim, creio. Acabou-se. Tem, digamos, um mês  de vida. Vista-se, vamos, mais depressa... 
Eram aborrecidas essas pessoas que choramingavam  de medo da morte! Pois ele mesmo não era um doente?  Não consultara já os seus confrades? 
Mas isso fora antes. Agora, tudo mudara. Não se esquadrinhava mais ao espelho, não escutava mais as palpitações do coração. Comia de tudo, bebia de tudo, e fazia
excessos todas as noites. 
O velho chorava! Aquilo lhe deu asco e Kuperus  empurrou-o para a sala de espera. 
- O seguinte!  Já não tinha medo do autor da carta anônima. Pensava ainda no assunto, mas era quase um divertimento:  uma espécie de jogo de adivinhação. 
Neel? Van Malderen? Alguém que ele não conhecia?  Teria gostado de saber, mas por simples curiosidade. Fitava atentamente o semblante dos que lhe dirigiam a palavra,
porque pensava que o autor da carta não resistiria  ao desejo de vir contemplá-lo. 
O mais aborrecido foram as outras cartas, assinadas: a do cunhado de Amsterdam, a da tia de Leeuwarden, as das inúmeras amigas de Alice Kuperus. 
Os  jornais  tinham  noticiado  sua  desaparição.  Escreviam-lhe, a ele, pedindo notícias. O cunhado de  Amsterdam estava contrariado: era professor e temia  que
o escândalo prejudicasse sua carreira. Chegava a ter  raiva de Kuperus por não haver abafado, o caso. 
Quanto à loura oxigenada do Onder de Linden, sua  presença explicava-se. Fizera confidências a Van Malderen, que tinha aliás todo o aspecto de um padre confessor.
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Chamava-se Lina. Schutter costumava enviar-lhe  duzentos florins por mês e passava de tempos em tempos  uma semana com ela em Amsterdam. 
Ora, o dinheiro dela acabara. Não tinha sequer o  bastante para voltar para casa! Nem para pagar a conta  do hotel, que aumentava dia a dia... 
- Ela espera que façamos algo, que um de nós a auxilie... - disse Van Malderen. - Não é má pessoa... Se  eu não tivesse mulher... 
Seu olhar desmentia as palavras. Kuperus ficou persuadido de que Van Malderen já havia sucumbido à tentação e adiantado alguns "subsídios' a Lina... 
- Alô? É o senhor, doutor? Perdoe-me incomodálo e, principalmente, dar-lhe talvez uma alegria falsa.  Comunicam-me de Londres, sob todas as reservas, evidentemente,
que chegou a Douvres uma pessoa vestida  quase exatamente como sua mulher e desprovida de documentos de identidade. 
Era o chefe de polícia.  - É preciso que eu vá identificá-la? - perguntou  Kuperus, com a voz que convinha. 
- Ainda não. Creio que seria inútil. Pedi uma fotografia, que vão enviar por belinograma.* 
Aquilo não podia eternizar-se. Os dias passavam.  Fevereiro chegava e, com ele, o degelo. Era, então, uma  questão de tempo. Os corpos, naquelas condições, não 
ficariam no fundo do canal. E mesmo tratando-se de local deserto, alguém de passagem poderia vislumbrar alguma coisa, nem que fosse um pedaço de vestido ou de  sobretudo.
*5. Os leitores de Simenon sabem que belinograma é o documento transmitido  pelo belinógrafo, inventado pelo francês Édouard Bélin. Foi o primeiro aparelho de telefotografia.
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Outro acontecimento foi o encontro entre Kuperus e  Karl. Pois os dois se encontraram! O médico não podia  mais viver sem conhecer o homem da mansarda. 
Certa manhã, aproveitando-se do fato de que Neel  descera para acender o fogo e fazer café, Kuperus subira  na ponta dos pés e abrira a porta de repente. 
Havia, com efeito, na cama, um rapaz, muito jovem, com a barba por fazer, que abriu lentamente os  olhos e que, imóvel debaixo das cobertas, contentou-se  em franzir
o cenho. 
- Desculpe-me... - começou Kuperus, maquinalmente. 
Era ridículo, mas não achara outra coisa para dizer.  Depois, atentando à respiração de Karl, continuou: 
- Você está doente?  - Ein wenig... Um pouco... - disse o outro em alemão. 
- Desde quando?  - Fiquei de cama o dia inteiro, ontem.  Kuperus tomou-lhe o pulso, tocou-lhe a fronte com  a mão. 
- Uma simples gripe, mas que pode degenerar em  bronquite. Neel lhe traz alguma bebida quente? 
- Grogues!  - Suponho que vai ficar de cama hoje também?  - Seria melhor.  Não havia outro lugar para sentar-se senão na beirada da cama de Neel, e foi o que fez
Kuperus. 
- Entendo que não conseguiu ainda achar emprego? 
O alemão contentou-se em suspirar, e o outro compreendeu que aquilo queria dizer: "Não se faça de tolo.  O senhor bem sabe que não procuro emprego nenhum." 
Era um belo rapaz. Tinha traços nervosos, finamente desenhados, a boca irônica e, até, sarcástica. Suas roupas estavam amontoadas no chão. 
- Ainda não acharam sua mulher?  - Ainda não. 
52 
Dessa vez, foi Kuperus quem hesitou diante do olhar  que Karl fazia pesar sobre ele.
- Por que não ligava para Neel antes? Que diabo  lhe deu agora? 
- Eu não tinha pensado nisso.  - Eu tinha medo de sua mulher. Ela quase me apanhou uma vez. Eu disse que tinha vindo ver o gás. 
Tantas coisas que ele não sabia, que sempre ignorara! 
- Vou lhe mandar uma aspirina - disse, erguendo-  se. 
Isso foi a 2 de fevereiro. A Sra. Costens, justamente, acabava de telefonar da peixaria para perguntar se havia notícias da sobrinha. Às onze horas, um policial
uniformizado veio pedir a Kuperus, que estava no consultório e assoberbado de clientes, que fosse com urgência à Prefeitura. 
O doutor despediu os clientes, vestiu o casaco de pele e, com ele, toda a sua dignidade. Esperavam-no: o prefeito, o chefe de polícia, seu adjunto e duas outras
pessoas. Apertaram-lhe a mão com insistência, fizeram-no  sentar-se. 
- Queira nos desculpar, Dr. Kuperus. Temos uma  obrigação penosa a cumprir e desejamos que saiba que  estamos todos solidários com o senhor nas horas dolorosas por
que vai passar. 
Estava pálido, o que convinha admiravelmente à  ocasião. 
- Sua mulher foi encontrada... Quero dizer... o  corpo da Sra. Kuperus... 
O prefeito desviou o olhar, enquanto Kuperus, gelado, rígido, dava a impressão de uma grande mágoa heroicamente dominada. Ora, na verdade, Kuperus, sem  querer,
pensava em Karl! 
- Temos de lhe pedir que nos acompanhe e...  Era o degelo. Tomaram o automóvel do prefeito e  dirigiram-se para o bangalô de Schutter. Foi preciso deixar o carro
muito antes, devido ao mau estado do caminho.
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Viram, então, duas barcaças no canal, um grupo de  pessoas na margem, ao pé de uma pequena charrete.
Para percorrer o resto da estrada, o prefeito tomou  Kuperus afetuosamente pelo braço, enquanto lhe ia dizendo ao ouvido: 
- Coragem, caro amigo. Desejaria poupá-lo desse  espetáculo. Cumpre desgraçadamente identificar o corpo... 
No céu, de um branco sujo, o sol abrira uma única  passagem. Era um buraco de luz. Ainda fazia frio. Os  homens patinavam na neve que derretia. Marinheiros de  boné
abriram alas e, na charrete, Kuperus divisou um pedaço de lona que tinha aproximadamente a forma de um  corpo. 
Alguém mais lhe apertava a mão. Era Moers, o  médico-legista, que ele conhecia bem. 
- Simples formalidade... Não há infelizmente a  menor dúvida... 
Levantaram uma ponta da lona. Ele olhou. Sem tremer. Sustentavam-no dos dois lados temendo que desmaiasse. 
- Meu caro confrade, conceda-me duas palavras...  Pequenos grupos, aqui e ali. Kuperus observou que  estavam dragando o canal. 
- Sua mulher foi assassinada. Antes de ser lançada  no canal, recebeu uma bala de revólver no peito. 
O que diria Neel? E Karl, que falara da Sra. Kuperus num tom esquisito, pela manhã? 
Agora, era o chefe de polícia que o chamava à parte.  Todo mundo observava aquelas idas e vindas. 
- Melhor acabar com isso logo, não é? Você é um  homem e já deu prova de grande sangue-frio. Felicitoo... O que me resta a lhe dizer também é grave... É mais  que
provável que encontremos logo um segundo corpo... 
Não me queira mal por proferir um nome... Mas alguém  pescou um chapéu que traz as iniciais de Schutter...  Lembra-se de que as duas desaparições coincidiram...
E é  por isso que faço dragar uma parte do canal. 
54 
Kuperus não tinha nada a dizer. Apreciavam nele o  silêncio e a imobilidade. Era sempre a sua dignidade! 
- Enfrentaremos agora a questão de saber se se trata de um duplo suicídio como se vêem, por vezes, em casos semelhantes, ou de um crime... Talvez prefira voltar
para casa? 
- Obrigado. Fico até o fim das buscas...  E ficou, caminhando sozinho, para cima e para baixo, enquanto os curiosos o seguiam com os olhos. Cem  vezes passou diante
da pequena charrete, na qual o  cadáver de sua mulher estava estendido debaixo da lona. 
Não pensava em nada. Ou melhor, pensava em  várias coisas ao mesmo tempo. Por exemplo, nas intermináveis discussões que tinha com Alice, ela pretendendo que ele
não podia ter filhos, ele afirmando que era ela  que não podia. 
Aquilo quase o fez sorrir. E se tivesse um filho com  Neel? 
Ouvia as vozes dos marinheiros. Duas horas mais e  um escafandrista chegava e atarraxava seu capacete de  cobre enquanto um ajudante manobrava a bomba de oxigênio.
Um fotógrafo chegou a fim de fazer clichês para um  jornal ilustrado de Amsterdam. Era o fotógrafo em casa  de quem Kuperus fazia revelar os seus próprios filmes.
Quanto aos investigadores, que acabavam de revirar  o bangalô de Schutter, voltavam discutindo acaloradamente. Um afirmava que três pessoas tinham estado na  casa.
Os outros só descobriram traços do casal. 
Kuperus os olhava tão friamente como se o tivessem  chamado para fazer a autópsia de um desconhecido. 
O mais engraçado é que o prefeito lhe enviou, pelo  motorista, uma garrafa térmica cheia de chá e sanduíches. 
55 
Capítulo 4

O mistério começou de súbito, sem razão aparente, caiu do céu como um nevoeiro de outono e, dentro em  pouco, envolvia o Dr. Kuperus, deformando os objetos, esfumando
os seres, falseando todo contacto mais  íntimo.
Eram talvez seis horas. Kuperus estava muito cansado, pois ficara de pé da manhã à noite, à beira d'água.  Acompanhava agora o canal, não mais o canal bordado  de
vegetação, no campo, mas o gracht civilizado da rua  em que morava, com sua amurada em pedra de cantaria. 
Degelava rapidamente, e pesadas gotas pingavam  das cornijas, desenhando riscos escuros na calçada. Os  lampiões piscavam de novo na água negra do canal.
Kuperus andava. Chegava em casa. Via já a vitrine  iluminada da mercearia, três casas adiante, com os pacotes de chá e de chocolate, os macarrões compridos, arranjados
como uma espiga de trigo e amarrados ao meio  com uma fita vermelha...
O fundo da vitrine não era bastante alto que impedisse a dona da loja de olhar para fora. Havia três pessoas no estabelecimento. Ora, todas três, alertadas pela
comerciante, vieram colar o rosto na porta envidraçada  para vê-lo passar. 
Ele tinha sua chave. Ao metê-la na fechadura,  perguntou-se pela primeira vez:  - O que estarão pensando? 
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Sim, o que pensavam aquelas três mulheres que o tinham observado? Que diriam agora umas às outras,  diante do balcão de mármore branco, enquanto eram servidas? 
Fechou a porta pelo lado de dentro e franziu as sobrancelhas porque a lâmpada do corredor não estava  acesa. Não era nada: um comutador a apertar, só isso.  Mas
a acolhida não deixava de ser estranha. 
Havia dezesseis anos que morava naquela casa. Subiu os três degraus de pedra branca do vestíbulo, empurrou a porta de vidro, deteve-se em face do cabide, flanqueado
por um porta-guarda-chuvas em imitação de  Delft. 
- Neel! - chamou.  E a pequena crispação que sentira na rua diante da  atitude das mulheres se transformou numa vaga inquietação. A casa lhe parecia vazia, principalmente
sem vida.  No térreo havia duas grandes peças, a sala de visitas e a  de jantar. Depois, atrás da escada, a cozinha e a lavanderia. Havia também um pequeno pátio
calçado, de paredes caiadas de branco. 
O consultório e a sala de espera ficavam na sobreloja e até lá a passadeira vermelha da escada tinha uma capa, porque os doentes não se davam ao trabalho de limpar
os pés. 
- Neel!  Nenhuma luz na cozinha. Ora, Neel sabia que ele  não gostava que ela saísse de tarde! Entrou no salão,  acendeu a luz e ficou de pé, indeciso, sem saber
onde  meter-se, olhando o próprio cenho franzido no espelho.  Enfim, um ruído lá em cima. Uma porta batendo. Passos... 
Neel entrou, um pouco vermelha, lançou um olhar  incerto ao doutor:
- Então, a patroa está morta... - disse.  Ele concordou de cabeça, gravemente, examinando-a ao mesmo tempo e fazendo-se a mesma pergunta mental:
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"O que pensaria Neel?"  - Onde estava?  - No meu quarto. Fui levar uma xícara de chá para  Karl... 
- Falaram disso?  Ela não negou. Neel soubera da história pelas vizinhas ou pelos fornecedores. E discutira o problema com  Karl. Ele pensou consigo que valia a
pena tentar uma experiência. Avançou em direção a ela sem que a moça pudesse adivinhar o que ia dizer. 
Ela o viu aproximar-se como de hábito, sem espanto. Deixou-se também acariciar. Disse apenas: 
- Como pode pensar numa coisa dessas?  Mas ela não recuou. Não teve medo. Não estremeceu ao seu contacto. 
A questão era saber se sua calma provava alguma  coisa, e se Neel, vendo nele um assassino, teria manifestado qualquer espécie de reação. 
- Pode servir o jantar.  Sem dúvida, ela saía da sala mais alegremente do  que tinha entrado. Mas isso também não queria dizer nada, fora sempre assim. 
Como saber? E com os outros, com todos os demais? 
Haviam achado o cadáver de Schutter um pouco antes do anoitecer. Um inspetor notara a ausência da carteira no bolso. Fora aberto um inquérito. 
Fez uma experiência na manhã seguinte com uma  doente, mulher gorda, que vendia queijos e era portadora de um quisto. Antes de abrir a porta para ela, deu aos  seus
traços o máximo de rigidez. Teve gestos bruscos, palavras curtas, quase brutais. 
E observava atentamente a mulher, perguntando-se  todo o tempo: 
"Terá medo de mim?"
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Não tinha! Estava apenas surpresa! Não compreendia e talvez se dissesse que o médico também estava doente.
- Não dou consultas amanhã, nem depois de amanhã, por causa dos funerais. 
- Ah! O senhor perdeu uma pessoa da família...  Ela nem sabia!  Recomeçou a experiência com os outros. Seu andar  ficou mais solene, para impressionar as pessoas.
Fixava-as de repente na pupila a fim de surpreender algum sentimento escondido.
O cunhado chegou de Amsterdam, a tia de Leeuwarden, dois outros parentes mais, dos quais um era um homem magro, de nariz vermelho, já de luto do pai. Como  estava
resfriado, dava a impressão de chorar continuamente.
Kuperus teve de ir à casa do juiz, seu amigo Anton  Groven, que o recebeu com grande cordialidade e uma  profusão de desculpas, e que lhe fez algumas perguntas
sem maior importância.
- Como a autópsia foi feita, não há mais razão para retardar as exéquias.
Kuperus mandara fazer um terno preto, e pôs crepe  no chapéu. A sala de visitas foi transformada em câmara  mortuária. Veio, por fim, o caixão, acenderam-se os
círios, e aquilo virou um velório como todos os velórios,  com a campainha da porta da rua envolvida em pano  preto e a porta travada o dia inteiro para permitir
que as  pessoas desfilassem livremente diante do corpo.
O cunhado de Amsterdam pernoitou na casa. A tia  voltou para a sua peixaria, mas viria de novo por ocasião  do enterro.
Alice Kuperus era de família católica, de Amsterdam, e encomendou-se missa.
Quando Neel declarou à noite, terminantemente:  - Não! Enquanto a patroa estiver debaixo deste teto, não quero...
E ele, olhando-a nos olhos:
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- Com uma condição: você tampouco dormirá lá  em cima!
Tinha ciúmes! Não podia suportar a idéia de que ela  iria dormir com Karl. Havia três quartos no primeiro andar, e obrigou-a a ocupar um deles, levantando-se duas
vezes durante a noite para verificar se não teria deixado o  leito.
O cunhado, insone, entreabriu a porta.  - O que é?  E Kuperus, de pijama, pés descalços:  - Não consegue dormir?  - E você?  - Eu não preguei olho!  Fazia-o de propósito,
mas nem por isso era menos  sincero. Tinha uma real necessidade de se sentir bizarro  e, sobretudo, de ver o efeito da sua estranheza nas pessoas.
Alguns deviam acusá-lo, era fatal. O jornal local,  evidentemente, por causa da carteira desaparecida, falava de um crime crapuloso. Mas como não pensar que pudesse
ser também um crime passional?
Será que o juiz de instrução não discutira essa  hipótese com o promotor e com a polícia? Não o vigiariam? Será que, sem nada lhe dizer, não o envolveriam  na teia
cerrada de um inquérito?
- Você não encontrou ninguém, quando saiu para  as compras?
- Não. O que quer dizer?  - Nada.  Queria dizer um policial. Poderiam ter mandado vir  algum de Amsterdam, como se costuma fazer em casos  semelhantes. E para não
despertar as suspeitas de Kuperus, ele abordaria Neel na rua ou numa loja.
A irmã de Alice veio no dia do enterro. Estava  grávida. Era como que um retrato vivo da irmã, apenas  cinco anos mais jovem, e Kuperus não cessou de rondar  em
torno dela. Aquela, pelo menos, não suspeitaria dele?  Parecia-lhe impossível e, no entanto, não conseguia
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perceber o menor traço de perturbação quando se aproximava dela. Ela o beijara nas duas faces, como de tradição  na família. E chorara um pouco, balbuciando:
- Quem teria imaginado...  Não se tratava de um serviço fúnebre como os outros. Não se podiam dizer as palavras habituais, que pareceriam deslocadas. Apertava-se
longamente a mão de  Kuperus, em silêncio. 
Como dizer-lhe:  - Pobre mulher!  Ou mesmo:  - Tão jovem ainda!  Ela o enganara! Sua desonra era pública! Era a primeira vez que um caso semelhante ocorria em Sneek,
um  caso que "não se podia discutir na frente das crianças. A  própria irmã de Alice deixara em casa o filho de sete  anos, para não expô-lo a possíveis comentários.
Pelo mesmo motivo, o vigário propusera uma missa  comum, depois de ter falado numa simples bênção do  corpo, sem mais nada. 
Havia muita gente, uma longa fila de roupas negras  e guarda-chuvas atrás do carro fúnebre. Mas era gente  fria, de olhos secos, gente que cumpria um dever, mas
sentia-se ao mesmo tempo obrigada a deixar patente sua  reprovação. 
Havia curiosos em todas as portas, para ver passar  Kuperus, que se mantinha muito ereto e de cabeça erguida. Ao invés de fixar o carro, olhava as pessoas nos  olhos.
Nenhuma flor, evidentemente! Nenhuma coroa!  E, no dia seguinte, as mesmas pessoas acompanharam o enterro de Schutter, e mais duas mulheres de luto,  elegantíssimas,
duas primas vindas de Amsterdam em  companhia do seu advogado. 
Kuperus viu passar o cortejo. Acompanhou seus parentes à estação e, de noite, empurrou a porta do Onder  de Linden, onde ninguém o esperava. 
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Todo mundo se calou. Ele apertou as mãos em  círculo, sentou-se, disse a Jef: 
- Uma genebra com angustura!  Produzia-se o mesmo fenômeno que já observara  em casa. Agora, a casa em que vivera durante quinze, dezesseis anos, parecia-lhe ter
subitamente mudado- ou  melhor, deixado de viver. Não havia mais razão para que  um objeto ocupasse um lugar em vez de outro, e parecia-lhe inacreditável que ele
e Alice tivessem discutido tanto e  hesitado tanto antes de proceder às menores alterações.
O Onder de Linden era a mesma coisa! Havia anos  também que tinha ali seu canto favorito, seu taco de bilhar, seu nome no quadro dos membros do comitê. 
Foi em tom levemente sarcástico que perguntou:  - O que há de novo?  Van Malderen respondeu, com um suspiro:  - Vamos ter de fazer eleições...  - Ah, sim...  Seu
olhar dirigiu-se para o quadro, e uma idéia lhe  veio ao espírito. 
- Quem se candidata à presidência?  Tratava-se de substituir Schutter!  - Não há nenhuma candidatura oficial por enquanto. Que tal Pijpekamp? 
- Pijpekamp! Mas ele é incapaz de fazer cinqüenta  pontos!   objetou Kuperus. 
- Mas é quem oferece o prêmio todos os anos.  - Porque vende objetos de arte.  - Quem poderíamos eleger, então?  Kuperus bebeu,  levantou a cabeça, enxugou os  lábios.
- Muito bem - escandiu, olhando-os um depois  do outro -, o que me impede de me candidatar? 
Não tiveram coragem de protestar! Só Loos, o dono do café, baixou a cabeça, e Kuperus apostrofou-o: 
- O que quer dizer isso, Loos? Minha candidatura  o desagrada? Tem alguma coisa contra ela? Vamos, fale!  Sabe muito bem que não gosto de golpes baixos... 
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Tremia, quase. Parecia-lhe que ia saber, por fim.  - Não é isso - balbuciou Loos, enleado. - Você  está de luto... 
- E isso me impede de jogar bilhar?  - Pelo contrário! - aprovou Van Malderen, talvez  com um grão de ironia, pois com ele nunca se podia ter  certeza. - Muito pelo
contrário! É o momento de fazer  tudo para esquecer... 
A candidatura estava lançada! A candidatura à presidência, ocupada tantos anos por Schutter. 
À noite, sentiu necessidade de contar o fato a Neel.  - Vão me eleger presidente da Academia de Bilhar... 
Ela não sabia o que era, mas ele lhe contara assim  mesmo! 
Quanto à carta anônima, ninguém se traía. Alguém,  no entanto, a escrevera. Havia, em algum lugar, nos  Países Baixos, na cidade, sem dúvida (não tinha pensado,
na época, em verificar o carimbo dos correios no envelope!), havia alguém que sabia, que podia, de uma hora para outra, ir ao juiz e dizer: 
- O assassino de Schutter e da Sra. Kuperus é...  Por que não o fazia?  Podia também vir bater à sua porta, subir os três degraus de pedra branca, ser recebido na
sala de visitas ou  no próprio consultório. Podia olhar o doutor, sorrindo.  Podia brincar com ele, como gato brinca com rato. 
- Diga-me, caro doutor, seria extremamente gentil  se me desse mil florins... 
Ou dois mil, ou cinco mil! Podia exigir o que quisesse, dormir no quarto grande com Neel, se aquilo lhe desse prazer, tomar todas as refeições na casa, fazer...
Ora, ninguém se apresentava! Ou melhor, ninguém  agia desse modo. Mas que prova possuía de que o autor 
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da carta não era Neel, ou Van Malderen, ou Loos, que  baixara a cabeça, ou mesmo Karl?
Este ficara curado da gripe. Duas vezes Kuperus  perguntara à empregada:
- Ele arranjou emprego?  E ela respondera simplesmente:  - Não.  Como se, em suma, essa questão não fosse importante. 
Então, de súbito, ocorreu-lhe que poderiam descobrir a presença de Karl na casa. Que explicação daria?  Poderia dizer às pessoas que mantinha o vagabundo dentro
de casa por ser amante da empregada? 
- Neel, preciso ter uma conversa com Karl.  - Ele saiu. Não sei a que horas volta.  - Neel, é preciso que ele vá embora, que vá hoje  mesmo. 
Ela esperou o resto, certa de que viria alguma proposta em seguida. 
- Eu lhe darei cem florins. Ele irá procurar trabalho em Amsterdam, em Rotterdam, ou outra cidade, do  outro lado do Zuiderzee. E se não encontrar nada logo,  eu
o ajudarei de novo... 
- Eu falo com ele.  Ele se perguntava se a aceitação ou a recusa de Karl  provariam alguma coisa. Mas não! Não tinha meios de  saber. À noite, Neel veio anunciar:
- Karl concorda em tomar o trem das onze...  Kuperus hesitou. Deveria subir e ver o rapaz? Preferiu não encontrá-lo e entregou os florins à empregada.  Mais tarde,
ouviu passos na escada, depois a porta que se  fechava. 
- Neel! - gritou, debruçado ao corrimão. - Suba! 
Olhou a moça nos olhos, debaixo da lâmpada.  - Está triste?  - Um pouco.  - Você o amava de verdade? 
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- A gente sabe se ama?  - Por que ele aceitou, se amava você?  - Porque era preciso.  - Dispa-se. Não quero mais que você tenha um  amante, entende? Ninguém além
de mim. 
Era um calor que lhe subia à cabeça e, então, nada  mais havia no mundo senão a carne um tanto insossa de  Neel e seus olhos, que permaneciam indiferentes, mesmo
no auge das suas relações. 
- Você me detesta, Neel?  - Não.  - Por quê?  - Não sei.  - Tem medo de mim?  - Também não.  E, no entanto, ele lhe machucava as carnes! Como  no primeiro dia, ela
bem poderia suspirar: 
- Como o senhor tem fogo!  Ele se debruçava sobre aqueles olhos meio cinzentos. Fixava-os bem de perto, até ficar com as pupilas encarquilhadas e doloridas. Não
sabia o que fazer para agitar as águas daqueles olhos parados. 
- Neel...  - Sim...  - Não tem medo de viver sozinha na casa comigo?  - Por quê?  - Você não tem medo?  - Não.  - Neel...  - Sim...  - Não há gente que diz que fui
eu que matei a sua  patroa e Schutter? 
Dizia essas coisas sem largá-la, abraçando-a sempre.  - Responda! Não tenha receio de responder.  - Sim, há.  - E o que dizem?  - Que jamais se esclarecerá o caso.
- O que mais? 
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- Que essa história pode prejudicar sua situação de  médico.
- O que mais?  - Que o senhor sempre teve um ar meio esquisito...  Com essa, ele rebentou de rir, de um riso duro, porque era falso, arquifalso! As pessoas eram
imbecis ou cegas! Durante a vida inteira, a sua vida anterior ao acontecimento, ele fora, muito pelo contrário, o mais banal  dos seres, um holandês tão parecido
com os outros quanto possível, um médico como todos os médicos de  província, um marido como todos os maridos! 
Seu único receio fora sempre se fazer notado, fazer  uma coisa insólita! 
A sua casa não era, então, exatamente o que devia  ser para a sua situação, seu lugar na sociedade? Até o  menor bibelô! E as refeições, iguais, nos mínimos Betalhes,
às que todas as casas de um burguês holandês preparavam nos mesmos dias! 
Fizera o cruzeiro do Spitzbergen porque, naquele  ano, tinha havido uma excursão para médicos, a preço  reduzido. Trezentos da sua profissão aproveitaram-se da 
oportunidade. 
Fora a Paris, mas para uma exposição, e de novo em  grupo! 
Como ousavam insinuar que tinha ar esquisito! Assim julgam as pessoas! As mesmas pessoas que acorriam  para vê-lo passar agora e cujas reações ele examinava detidamente!
- E você, Neel, o que pensa?  - Não penso.  - O que pensa de mim?  - O senhor me machuca!  - Você seria capaz de ficar comigo para o resto da  vida? 
- Não sei.  Por que a idéia de que Neel poderia deixá-lo o assustava? 
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- Quero que fique comigo, entende? Eu pago o que  você pedir. Mas proíbo você de ir embora! Proíbo você  de dirigir a palavra a outros homens! 
- Mas tenho de falar com o açougueiro, com o homem do armazém... 
- Imbecil!  E ele ainda não sabia! Ela estava lá, apertada contra  o seu corpo, e nenhum poder do mundo lhe permitia saber o que havia por trás daquela fronte obstinada
e lustrosa! 
- Olhe para mim, Neel.  - O senhor me pede todo o tempo que olhe para o  senhor... 
- Porque preciso saber, um dia, o que você pensa... 
- Mas se lhe digo que não penso!  Dormiu, exausto, e acordou com forte dor de cabeça. Era obsedante. Não sabia o que fazer para escapar  à obscuridade que o envolvia,
àquele vazio, àquela ausência de vida, em que a sua se esgotava, esmorecida, como uma chama em ar rarefeito. 
Era isso, sim. Exatamente. Ele estava solto no ar,  desligado das coisas. Evoluía sozinho num universo indiferente. Tocava num objeto, e era como se esse objeto
não tivesse consistência; falava às pessoas, e as pessoas  não estavam no mesmo mundo que ele. 
Até no café! Sua candidatura era oficial. Os membros da Academia de Bilhar não tinham dito nada, pelo  menos diante dele; mas ficara decidido que seria o sucessor
de Schutter, já que se dispunha a servir. 
Mas não o felicitavam. Não manifestavam nenhuma  alegria. E se ninguém recusava jogar com ele, também  ninguém o convidava espontaneamente para uma partida. 
Então, ele fazia de propósito: convidava a todos,  pagava rodadas de cerveja e de genebra, porque o dinheiro, como tudo mais, perdera o sentido para ele.  Que lhe
importava gastar ou não?
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Ninguém lhe contou o que se passara com Lina. O  pouco que soube foi por ouvir dizer.
Segundo uns, Van Malderen pagara as suas contas  no hotel. Segundo outros, Loos também contribuíra,  mas sem que o advogado soubesse.
Em todo caso, quando os herdeiros de Schutter vieram para o enterro e demais formalidades, Lina se apresentou na casa do defunto. Os herdeiros eram, de fato,  herdeiras,
as duas primas de Amsterdam. Houve uma  discussão entre elas e Lina, que reclamava o capital da  renda que Schutter lhe dava quando vivo.
Terminara por uma verdadeira batalha, no salão vizinho da câmara mortuária. O vestido de uma das primas  fora rasgado, e Lina continuava em Sneek, sempre sob a
proteção de Van Malderen e, talvez, de Loos.
Apenas, seu amante (ou os dois?) lhe proibia (proibiam?) mostrar a cara no café. Não morava mais no hotel e sim num quarto mobiliado do bairro novo.
Por que não se falara disso com Kuperus, como com  todo  mundo?  Ele  chegava  a  detestar  a  todos.  Desprezava-os também, ao mesmo tempo, olhava-os  com rancor,
obrigava-os a apertar-lhe a mão.
Mostrava-se voluntariamente desagradável, e ninguém ousava revidar.
No dia em que foi feito presidente, quebrou a tradição: evitou pronunciar o nome do seu predecessor. Depois, teve a idéia de anunciar:
- Espero que esta nomeação seja apenas o prelúdio  de uma eleição mais importante. O parlamento se renova  dentro de dois anos. Posso dizer-lhes desde já que postularei
um mandato dos cidadãos de Sneek...
Os aplausos foram frios, sem convicção. Por seu lado, Kuperus, implacável, esquadrinhava todos os rostos,  os olhos sobretudo, que não queriam trair os seus segredos.
Porque, afinal de contas, aquela gente pensava! Tinha alguma opinião sobre ele e sobre a tragédia!
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Tomá-lo-iam por assassino? Sim ou não? Seria por medo que  nada diziam?
Acabou por crê-lo. Duas vezes foi ter com o juiz sem  ser convidado. Das duas vezes disse "você' ao magistrado  e estendeu-lhe a sua charuteira sem que o outro ousasse
recusar. Em compensação, Groven apenas disse:
- O inquérito segue seu curso, sem trazer qualquer  elemento novo. É possível que não se chegue a nenhum  resultado...
Pela primeira vez, Kuperus considerou a eventualidade de uma prisão. Supondo que o prendessem: que lhe  fariam?
Antes, não teria hesitado em responder. Para não  passar dez ou vinte anos de prisão, teria dado um tiro nos  miolos.
Agora, não! Por que não ir para a prisão? Seria  mais infeliz na prisão que em outro lugar qualquer? A  única coisa que o atormentaria: saber que Neel...
A menos que... E por que não? Ele teria a coragem  de matá-la antes de ser preso, se bem que estivesse inteiramente tranqüilo... Seria melhor do que permitir a Neel
partilhar o leito de outros patrões, que ela fitaria com  seus olhos pálidos...
Conseguia pensar coisas assim andando pela rua,  entre gente que ia para o trabalho. Parava em frente a vitrines, como os outros, olhava os objetos expostos,
continuava a pensar:
Sim! Era simples, pensando bem...  - Neel! - chamou, ao voltar para casa.  Ela vinha da lavanderia, com as mãos cheias de espuma de sabão, que era dia de cuidar
da roupa. 
- Neel! Tomei uma grande decisão a seu respeito.  - Qual?  - Não posso dizer... Mas saiba que foi hoje que  descobri o quanto me apego a você... 
Ela deu levemente de ombros, e uma idéia, mais  uma vez, passou pela cabeça de Kuperus. 
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Antes, refletia. Não se permitia ter inspirações ou  acalentar quimeras. Agora, exteriorizava tudo o que lhe  vinha à cabeça, mesmo e principalmente os pensamentos
mais bizarros.
- Lava a roupa, hoje? - perguntou.  - Sim...  - Pois é a última vez. Vamos tomar outra empregada.
- Para fazer o quê?  - Para fazer o serviço. Assim, você estará tranqüi-
- Não diga tolices... - resmungou ela, voltando  para a lavanderia.
E ele julgou ouvir:  - Se pensa que é assim que as coisas vão se arranjar...
Nisso, tinha razão. Não lhe perdoariam manter uma  ligação daquelas. Mas pouco se importava com isso.  Pouco se importava com o mundo. Uma só coisa o interessava:
saber o que as pessoas pensavam.
E, como não o conseguia...
O inverno terminava, e as crianças já retomavam o  hábito de brincar na rua. Debaixo do lampião de gás, a  dez metros da casa do doutor, havia um ligeiro desnível
da calçada. Gerações de meninos aproveitavam-se dele  para jogar gude.
Uma tarde, Kuperus saiu de casa, maleta na mão,  vestido com um sobretudo preto que tinha mandado fazer para o luto. Estava preocupado, isto é, perguntava-se  por
onde começaria a sua ronda de visitas, e nem viu as  crianças.
- Atenção! Aí vem ele!  E o menino mais próximo, acocorado junto das bolas, levantou-se bruscamente, abriu caminho, colou-se à
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casa. Tinha um cachecol de lã, vermelho, uma cicatriz na  testa, que Kuperus notou imediatamente
O médico estacara. Os meninos também. Ficaram  lá, todos eles, petrificados, a se olharem. Isso durou alguns segundos, como se a vida tivesse ficado suspensa  por
um momento. 
Enfim, de repente, o menino de cachecol vermelho  entrou em pânico e fugiu correndo, enquanto seus camaradas também se espalhavam. 
De que tinham medo? Por quê? O que teriam ouvido? 
Kuperus se pôs de novo a caminho, mas não podia  se impedir de olhar para trás, e via o grupo se formar de  novo, um pouco mais adiante, um grupo de quatro ou  cinco
meninos congestionados, que o acompanhavam  com os olhos. 
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Capítulo 5
TUDO estava preparado, e Kuperus ia e vinha entre a sala de visitas e a de jantar, não sem lançar uma olhadela  à própria imagem no espelho da lareira.
Já fazia meia hora que Neel fechara as janelas, ajudada por Beetje, mocinha de seus dezesseis anos, gorda  para a idade, e vesga. Neel escolhera a auxiliar, e era
ela  quem a punha para trabalhar. O doutor quase nunca se  encontrava com ela, mas a diferença era que Neel agora  estava sempre arrumada, de negro e avental branco.
O carrilhão da sala de jantar (Kuperus, que sempre  desejara um, comprara-o depois de um ano de casado)  deu cinco horas, e o médico, sentado numa poltrona,  levantou-se
para apanhar um charuto na caixa em cima  da mesa. Hesitou, porém, pensando que não seria correto receber seus convidados de charuto na boca.
No mesmo instante, esboçou um sorriso sarcástico e  cortou com os dentes a ponta do charuto. Que diabo! Esquecera que aquelas mesquinharias já não contavam para
ele. Que lhe importava que a Sra. Van Malderen ficasse chocada?
O mais divertido é que ela não ficaria chocada. Estava habituada ao cheiro do charuto. Então, por que durante anos e anos ele não se permitira fumar enquanto esperava
convidados? 
Por quê? Porque sua mulher... Não, não era verdade!   Ele mesmo era tão meticuloso quanto Alice em
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matéria de etiqueta, provava isso agora, involuntariamente.
Havia anos que recebiam os Van Malderen todas as  quintas-feiras, às cinco. Uma vez por mês, ficavam para  jantar. Depois dos acontecimentos, Kuperus não pensara
mais nisso. Foi Van Malderen quem lhe disse, alguns dias  antes, no Onder de Linden, com algum embaraço: 
- Diga-me uma coisa, Hans. Sabe que minha mulher não está nada contente? 
- Por quê?  - Por que não vê você mais...  E era por isso que vinham, Franz, que seria de todo  mundo com a maior desfaçatez, ela com seu ar curioso,  seus olhinhos
irrequietos, que logo esquadrinhavam todos os recantos da sala. 
Era mulher trigueira, de peito batido, de uma raça  da qual não se encontraria um segundo exemplar em toda  a Frísia. E baixinha, além de tudo, mais baixa que o
marido uma cabeça e meia. 
Kuperus acercou-se da estufa de aquecer a casa, que  era imensa, com ornamentos de cobre e o resto em  faiança escura. Apalpou a garrafa aberta de borgonha,  que
perdia ali o frio da adega, com a rolha já puxada pelo meio. 
Em cima da mesa duas bandejas estavam preparadas, como no tempo da Sra. Kuperus: uma com o serviço  de chá e o pão grelhado, flanqueado de mel e docinhos;  outra
com os copos de cristal pesado e a caixa de charutos.
De repente, e pela primeira vez na vida, Kuperus fez  uma coisa inaudita. De tal modo inaudita que sentiu  mais uma vez necessidade de se olhar ao espelho: serviu-se
de um copo de vinho e começou a beber, sozinho, sentado na poltrona da esquerda, com as pernas cruzadas  em frente ao fogo. E fumava! A fumaça, enovelada, ia  enrolar-se
no abajur de seda rosa! E nascia o odor característico daquelas reuniões, mistura de tabaco de Porto  Rico e perfume de vinho, do vinho já ligeiramente
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aquecido contra um fundo permanente de cheiro de linóleo e  de cera de soalho.
A campainha tocou. Ouviu Neel indo abrir, a voz de  Franz, de quem a empregada recebia o sobretudo, a voz  estridente de Jane Van Malderen, que perguntava: 
- Teremos chegado cedo demais? O doutor já terminou suas consultas? 
Depois, passos... A porta que se abria... Jane Van  Malderen que se precipitava para ele e que o beijava  dando-lhe com a ponta do nariz no rosto. 
- Meu pobre Hans... Como vai?  E ele, muito frio:  - Admiravelmente!  Os dois homens se contentaram com um aperto de  mão. Jane, no entanto, olhava em volta e exclamava:
- Nada mudou aqui! Fico com uma sensação esquisita revendo todas essas coisas... 
Seu olhar corria pelas duas bandejas, pela lareira  sem um grão de pó. 
- Você está bem cuidado, não é? É tão difícil, para  um homem só! O que sei é que quando deixo Franz por  três dias, as empregadas não fazem mais nada!
Parece-me, até, que Neel mudou para melhor, que está mais bem  tratada, mais bonita...
Van Malderen sentara-se com um suspiro, pois sabia  que a mulher podia se encarregar sozinha da conversação. 
- Devo tocar, pedindo o chá, Hans?  - Toque!  - Você mudou também. Terá ficado - como direi? - mais másculo... Disseram-me que você envelheceu, mas a meu ver está
melhor assim... 
Neel trouxe o chá e Kuperus divertiu-se a pisar-lhe a  ponta do pé, sem motivo, apenas pelo prazer do contacto  com ela. 
- Obrigado, minha pequena Neel... - disse.  Sabia que essa familiaridade chocaria a Sra. Van  Malderen. Fazia-o justamente com esse objetivo. Queria 
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despertar suspeitas. Tinha quase vontade de lhes dizer  que a empregada era sua amante. 
- Ela não ficou muito desenvolta, sem Alice? -  perguntou Jane logo que Neel saiu da sala. 
E, logo, representou uma pequena comédia, como  era de prever. Ao nome de Alice, corou, hesitou, deu-se  pressa em acrescentar: 
- Perdão, meu pobre Hans... Não lhe devia recordar essas coisas... 
Mas ele a olhava tranqüilamente, bebericando seu  vinho. 
Na sala de visitas, o lustre não fora aceso. Era ainda  uma tradição, para que o ambiente ficasse mais íntimo.  Estavam na sala de jantar, onde a estufa era melhor.
Via-se, pelo arco, a peça contígua numa doce penumbra.
Jane suspirou, assoou o nariz.  - Quem poderia imaginar isso da última vez... Você deve ter sofrido muito, Hans!
Seu marido suspirou, como se pensasse que a cena  era inevitável. Recostara a cabeça no alto espaldar da  poltrona e fumava, olhando para cima.
- ...um casal tão unido! Mas, sim! Eu o dizia a  Franz sempre que a gente vinha aqui ou que vocês iam lá  em casa... A única infelicidade é que não tiveram filhos...
Para escandalizá-la, Kuperus disse, olhando a cinza  do charuto:
- Ainda é tempo!  - Oh! Hans...
- O que Hans? Pensa que estou velho demais para  fazer um filho?
- Não fale assim... Principalmente aqui! O retrato  de Alice nos contempla...
Era exato! Um pequeno retrato, no qual não pensava mais, não via mais, de tal forma se habituara com ele  naquele lugar! Um retrato que tinham mandado fazer em
Paris, pensando que sairia melhor do que em Sneek. Tiveram uma discussão por causa disso. Kuperus, por
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princípio, recusava entusiasmar-se, achava a reputação  de Paris exagerada, a cidade suja, as mulheres por demais maquiladas... 
- Você se fará fotografar em Sneek, onde isso vai  custar muito menos e ficará tão bem feito quanto em Paris... 
Ela preferira Paris. O retrato era banal. Lá estava,  na sua moldura, em cima de um aparador de mogno, ao  lado de outras fotografias. 
Do nariz, o lenço da Sra. Van Malderen passou aos  olhos: 
- Como ficou sabendo, Hans?  - Sabendo do quê?  Olhava-a duramente, agressivo, como se comprazia  agora em olhar as pessoas, como se tivesse sempre a intenção de
intimidá-las. 
- Você entende o que quero dizer...  - Ah! Sim, disse ele, com um riso sardônico, você  pergunta como fiquei sabendo que ela me enganava com  o nosso execelente
amigo Schutter! 
- Hans!  - O que Hans?  - Ela está morta!  - E daí?  - Ela expiou... Eu, que conhecia Alice, estou certa  de que ela não foi culpada... Quem sabe? Talvez tivesse
cedido pela primeira vez... 
- À sua saúde, Franz! Não acha bom este borgonha? 
Durante alguns instantes, o silêncio foi completo.  Incapaz de suportá-lo na imobilidade, a Sra. Van Malderen aproveitou-se dele para passar manteiga numa torrada
que fez estalar ruidosamente na sua boca de roedora. 
De repente, ergueu-se. Sem que se pudesse prever  aonde ia, precipitou-se para uma poltrona que estava no  ângulo do salão contíguo e voltou com um novelo de lã
azul-claro no qual havia duas agulhas espetadas. Um
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pequenino quadrado de tricô, de dez centímetros por dez,  pendia da ponta do fio.
- Fui eu quem lhe ensinei esse ponto, uma semana  antes... - exclamou Jane alisando a matéria leve, cuja  tonalidade era verdadeiramente angélica. - Eu a aconselhara
a fazer um suéter ligeiro, para usar em casa... Foi  durante o auge do frio... Que ela não teve, afinal, de suportar... 
- Mas sim! Debaixo do gelo...  Era a voz de Kuperus. O próprio Franz estremeceu,  e sua cabeça deixou o encosto da cadeira. Olhava o  médico com algum temor, enquanto
Jane exclamava: 
- É atroz!  - Foi particularmente atroz quando os retiraram...  Imaginem que Schutter, apanhado pelo gancho da draga,  por pouco não foi cortado em dois... Tinha
a cara inteiramente aberta, como uma janela... 
- Cale-se, por favor!  - Não fui eu quem começou.  - Posso lhe dizer uma coisa, Hans?  - Como quiser.  - Eu o conheço bem... Há doze anos que somos  amigos, que
você e Alice se fizeram nossos únicos amigos  verdadeiros... Pois bem! Você está excessivamente fechado na sua dor... Não o negue... Eu o vejo passar todo  dia...
Ela tinha, de fato, uma casa com sacada, onde vivia  a espiar o movimento da rua a maior parte do tempo. 
- As pessoas se viram para observá-lo, de tal modo  é estranho o seu jeito... Sente-se que você não quer deixar perceber a mágoa, que ela fermenta dentro de você.,.
Não foi o que eu disse a semana passada, Franz? E não  disse também que viria dar conselhos a ele? 
Kuperus encarava-a sem titubear e Van Malderen  parecia contrafeito. 
- Sabe que estou sendo sincera, não é, Hans? Pois  bem. Vim dizer-lhe o seguinte: é preciso que você viaje...
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Ele se conteve a custo. Seus traços endureceram.  Seus dentes morderam o charuto.
- Deve viajar por algum tempo... Vá ao sul da  França ou à Suíça... Visite os museus italianos... Você  tem recursos, eu sei... Pensará em outras coisas... 
Ela hesitou, tomou um gole de chá e fixou os olhos  na toalha para continuar: 
- Talvez encontre uma jovem, ou melhor, uma  viúva que lhe convenha... Deus sabe o quanto me custa  lhe dizer isso, eu que gostava tanto de Alice... Mas, na  sua
idade, a vida não acabou... 
- Você não tem ninguém em vista para mim, desde  já? - perguntou ele sem que pudessem saber se brincava. 
- Não conheço ninguém por aqui... Seria melhor,  aliás, que ela não fosse daqui, que ela não soubesse... 
Kuperus tinha as pálpebras semicerradas. Fazia calor. O borgonha lhe incendiava as faces e ouvia-se o ronco das chamas na estufa, como no Onder de Linden. De  tempos
em tempos, passava um caminhão na rua, ou  soava o apito de um barco a motor, pedindo a abertura  da ponte. 
Ele percebia a um metro de distância as feições irregulares de Jane, seu pescoço magro, com o pequeno decote ornado de um camafeu. Sentia Van Malderen à sua  esquerda,
e via as baforadas de fumo subirem da poltrona forrada em tapeçaria. 
Tudo aquilo era fluido, deliberadamente esfumado.  As lâmpadas da casa velavam-se de tecidos mais ou menos opacos, que davam uma claridade ora rosa ora azul,  como
no quarto de dormir, ora amarelada, como no salão. 
A poltrona era neutra, tinha todas as cores do arcoíris,  mas  pálidas,  misturadas  umas  às  outras,  de  propósito. 
E assim tudo o mais! Esquecia-se por um instante  que alguma coisa mudara, e podia imaginar Alice sentada ao pé de Jane Van Malderen, com um trabalho de
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tricô em cima dos joelhos, falando à meia-voz para não  perturbar a conversação dos homens.
Lembrava-se, por exemplo, que em meio a uma discussão com Franz, ouvia de súbito a voz da mulher, que  sussurrava: 
- Três pontos do direito, um ponto do avesso, é isso? 
Jane lhe tomava o tricô das mãos e...  Mas aquilo tudo acabara, com mil demônios! Por  que vinham esses dois representar essa comédia? Que teriam eles em vista?
A rigor, em menos de meia hora já  haviam mostrado o jogo: queriam vê-lo pelas costas! 
Suprimi-lo! Suprimi-lo da cidade, é claro! Franz  não dissera nada, mas quando ele tinha missão desagradável a cumprir, todo mundo sabia que a delegava à  mulher.
Só que esta fora um pouco precipitada. 
Kuperus levantou-se, suspirou, espreguiçou-se, lançou o charuto à lareira, acendeu um novo. 
Sua atitude mudara. Endurecera. Sentia-se que ia  tomar a ofensiva. Jane serviu-se de chá. 
- O que se diz? - perguntou, dirigindo-se à mulher. 
- Como? Por quê?  - Pergunto o que se diz de mim na cidade. Você  não me vai convencer de que não se diz nada. É, sem  dúvida, a primeira vez em trinta anos (quando
houve o  assassinato de duas meninazinhas!), é a primeira vez, digo  eu,  que  se  passa  em  Sneek  acontecimento  tão  dramático. Schutter, o homem mais rico da
cidade, o  mais elegante, o mais simpático, é morto ao mesmo tempo que a mulher do Dr. Kuperus! 
- Hans!  - Então não se pode falar disso? Perdão! Há pelo  menos uma pessoa que tem o direito de fazê-lo, sou eu!  Pois bem. A cidade fica sabendo que esse pobre
Kuperus  era enganado...  -  Cale-se! 
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- Eu disse enganado... E ainda aí, se alguém tem o  direito de pronunciar a palavra verdadeira... Agora: o  que andam dizendo por aí? 
Van Malderen mexeu-se na sua poltrona. A mulher  começou, timidamente: 
- O que quer você que façam? Lamentam você...  - Não é verdade.  - Como não é verdade?  - Não se tem pena de um homem ridículo.  - A dor não é ridícula.  - E se
não sinto dor nenhuma?  - Você está nervoso, Hans. Vê que tenho razão,  que precisa sair, que deve tentar esquecer... 
- Não!  - Por quê?  - Porque desejam que eu me vá!  - E então?  - Então, desejo irritar as pessoas. O que dizem?  Que eu estava a par dos amores de minha mulher
e de  Schutter? 
- Oh! - indignou-se Jane.  - Responda!  - Ninguém jamais disse uma coisa dessas.  Sabia muito bem aonde iria chegar. Poderia ter estacado à beira do abismo, mas
não quis. Continuava de pé,  com a cabeça à altura do abajur cor-de-rosa que pendia  por cima da mesa e iluminava a toalha bordada. E o novelo de lã azul estava
em cima dessa mesa, exatamente  como se Alice fosse pegá-lo para continuar seu tricô. 
- Quem é o suspeito do crime?  - Vou lá saber, eu?  - Você não devia atormentar Jane - disse Van  Malderen do seu lugar. 
- Então, responda por ela.  - Ninguém sabe. O que espera que digam?  - É justamente quando não se sabe de nada que se  fala. O que dizem?  - Que foi um vagabundo...
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Kuperus não podia mais, queria acabar com aquilo  de vez. Mas com o quê? Com aquela angústia, aquela impaciência, aquela espécie de vertigem, aquele mal-estar  sem
nome. 
- E eu?  - O que, você?  - Eu também poderia matá-los. Ninguém sugere isso? 
- Hans! Cale-se! Cale-se, ou vou embora...  E Jane enxugava os olhos com o lenço. Sua garganta  palpitava. 
- Falemos de outra coisa... - suplicou. - Se eu tivesse imaginado... 
- Quanto a mim - disse Kuperus com calma -,  estou certo de que haverá quem suspeite de mim e o diga... 
- Que lhe importa isso?  Ficou impassível. Os outros nada perceberam. Mas  recebera essa resposta como uma pedra. Ficou por algum  tempo sem poder falar, sem poder
sequer levar o charuto  aos lábios. 
- Nada, naturalmente - disse, por fim.  Só que agora Van Malderen se lançava, por sua vez,  e ficava patente, pouco a pouco, o verdadeiro sentido da  visita. 
- Deve reconhecer que, na situação em que estava,  nós, da Academia, quisemos lhe dar uma prova de  afeição e de confiança elegendo você presidente... 
E Kuperus, implacável:  - Eu me candidatei, afinal de contas.  - Você foi feito presidente por unanimidade!  - Porque era uma eleição às claras, levantando as  mãos...
Aposto que haverá a essa altura quem se arrependa... 
- Você é injusto... Torna a nossa posição delicada... Não vê que eu percebo que está desesperado e que  de um dia para o outro isso acabará mal? Eu observo
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você todos os dias, no Onder de Linden... Jane vê você passar... Os amigos comentam conosco...
- Afinal, você chega ao ponto!  - Sim, é preciso!  Van Malderen se pôs de pé, por sua vez, cruzou as  mãos por debaixo das abas do fraque. 
- Você mesmo se dá conta da situação, com a diminuição da sua clientela... 
Era exato. Em um mês, Kuperus perdera metade dos  doentes. 
- Você conhece os frísios tão bem quanto eu, os de  Sneek em particular. Aqui, tem-se verdadeiro horror do  escândalo... As pessoas se julgariam comprometidas se
entrassem, mesmo em busca de cuidados médicos, na casa de uma mulher que... 
- Que traiu o marido - completou Kuperus. -  Pode dizer. 
- Mas é assim... Se você tivesse um filho, o vazio se  faria em volta dele na escola... 
- Como se fará à minha volta, não é isso?  - Ninguém culpa você. Todos têm pena de você...  - Para mim, tanto faz.  Proferira essas palavras num tom leviano, quase
jovial. 
- Que vão todos à merda, todo mundo, a Academia de Bilhar, os meus doentes, as jovens viúvas que eu  poderia conhecer no exterior... 
Jane sufocava, fazia sinais ao marido, mostrando a  garrafa. Imaginava, sem dúvida, que Kuperus estava bêbado. 
- Vocês são incapazes de compreender. Vejamos!  Aposto como Jane levou uma hora se vestindo e que foi  ao cabeleireiro antes de vir aqui! Como é curioso! E tudo
porque se habituou a agir assim ano após ano, porque é  assim que se faz, porque há que guardar as conveniências... 
Entreabriu a porta e gritou para a escuridão do corredor:
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- Neel! Uma outra garrafa, por favor, sim, minha  boneca?
Depois, voltando à sala, tomou nas mãos o retrato  da mulher e olhou-o:
- Ao tempo dela, teria sido impróprio servir uma  segunda garrafa. Inimaginável! Poderiam pensar que somos uns bêbados! Bando de imbecis... 
- Hans!  Ele imitou a voz estridente da Sra. Van Malderen:  - Hans! Hans pouco se importa com a senhora, entende? Não vai passear na Suíça ou não sei onde para 
agradar os cidadãos de Sneek que começam a ter medo  dele. 
Deteve-se, um pouco assustado com a palavra que  acabava de pronunciar. Observou-os. Não se mexiam.  Neel entrou com uma nova garrafa e enquanto lhe tirava  a rolha,
Kuperus deu uma palmada nas ancas da empregada. 
Fechou a porta em seguida, passou a mão pela fronte, e voltou a ocupar-se dos seus hóspedes. 
- Do que estávamos falando? Não querem se sentar? Não é ainda a hora habitual de ir embora... A tradição exige que fiquem até seis e meia, a menos que se  trate
da segunda quinta-feira do mês, o que lhes daria direito a jantar... 
Jane se voltou para o marido.  - Franz! Diga alguma coisa! Obrigue-o a se calar.  Não deixe que beba mais... 
Kuperus enchia o próprio copo. O vinho, que viera  diretamente da adega, estava gelado e mais ácido que o  primeiro.
- Escute, Hans, e procure ver as coisas com sensatez.
- Não!  À força de se assoar, Jane tinha o nariz vermelho,  vermelho como uma cereja que começa a amadurecer.
- Até agora você se portou com grande dignidade,  e todo mundo reconhece você...
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- Obrigado!  - Vamos deixar você. Reflita. Pense que tudo o que  dissemos foi por amizade. 
- Mais uma vez obrigado.  - Jane?  Van Malderen interpelava a mulher com uma interrogação no olhar. Queria saber se estava pronta para  partir. Ela fez que sim,
com a cabeça, dirigiu-se para a  porta, deteve-se no meio do caminho.
- Não gostaria de deixar você assim:.. Pergunto-me se...
- Se  não  farei  alguma  tolice?  Tranqüilize-se!  Quando tiverem saído, chamo Neel, que acabaram de  ver, e conversamos os dois, amavelmente, esperando a  hora
de irmos para a cama... Vocês são os primeiros a saber da notícia oficial, mas talvez já se comente alguma  coisa no quarteirão... Já há alguns dias botamos dois
lugares na mesa. É mais alegre. E, afinal, estou acostumado assim...
- Venha, Franz!  Jane  sentia-se  perdida.  Enfiava  o  mantô  ao  contrário, um mantô que mandara fazer copiando um de  Alice. Só que o da. Sra. Kuperus era havana
e o dela  cinza-azulado.
- Vejo  você  amanhã?  -  perguntou  Franz,  estendendo-lhe a mão.
- Amanhã e todos os outros dias... Pois não sou o  presidente da Academia de Bilhar? A menos que me destituam à força.
-Oh!  - Adeus, então, crianças. Durmam bem. Estou certo, aliás, de que dormirão mal. Até logo, minha valente  Jane... E, principalmente, não deixe de estar na sua
sacada amanhã para me ver passar!
Viu de relance a rua, o parapeito do canal, os postes  de amarração entre as árvores, e as casas fronteiras, de  empenas denteadas. Quando fechou outra vez a porta,
ficou um momento imóvel, -com a mão no peito, porque 
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sentia uma daquelas pontadas que tanto o aterrorizavam. Pensou em chamar um dos seus confrades, um especialista do coração, que já visitara uma vez e que lhe  dissera
não ser nada de grave. 
Era estranho estar só no corredor deserto, iluminado por uma lanterna com vidros de cor. Ao fundo, leitosa, via-se a porta da cozinha, cujos vidros não eram polidos.
Atrás dessa porta, uma sombra se movia. 
E, no alto da escada, a escuridão. O porta-guardachuvas tinha sua história também. Ainda uma briga! Alice o dera ao marido como presente de aniversário, coisa  que
o pusera furioso: não se tratava de um objeto pessoal. Em meio à discussão, ameaçara dar à mulher, pelo  aniversário dela, um cachimbo ou uma caixa de charutos.
Como isso era idiota! E como parecia remoto! Tal  como o dia em que escolheram juntos o cabide grande do  vestíbulo. Ela o queria em carvalho encerado, ele preferia
o bambu. Alice achava pobre o bambu... 
Acabaram comprando um cabide de carvalho encerado, com ornamentos de bronze e um espelho biseauté  no meio. O móvel provinha da Casa Versma, a grande  loja da esquina
da praça... 
Kuperus podia acompanhar com o pensamento os  Van Malderen. Adivinhava Jane pendurada ao braço do  marido, esbaforida com as largas passadas dele, ambos  discutindo
o seu caso. 
Imaginava a chegada deles à sua casa nova, uma das  mais elegantes da cidade. O suspiro de alívio de Jane  quando tirasse as botinas, pois tinha os pés sensíveis.
Era um pesadelo! A pontada desaparecera. Kuperus  foi até a cozinha, abriu a porta e encontrou a pequena  Beetje passando roupa enquanto Neel cortava queijo em 
fatias finas. 
- O que deseja comer?  - O que você achar melhor. Mas ponha a mesa depressa. 
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Sentia-se exausto de repente. Perguntava-se se ousariam lhe tirar a presidência da Academia. Era muito importante. Não por uma questão de bilhar: a Academia  era
o círculo mais bem freqüentado da cidade, o único  que reunia todos os notáveis. Também o café de Loos  não era um café como os outros mas um local quase privado
onde se olhava com espanto e reprovação qualquer  raro intruso... 
Pedir-lhe que se exonerasse, era o mesmo que lhe dizer que suspeitavam dele. Seria como reconhecê-lo culpado publicamente. 
Então, Van Malderen ficara encarregado de encontrar um meio... Franz falara à mulher. E a mulher arranjara a visita... E toda aquela história de viagem ao exterior,
de viúva moça a desposar... 
Percebeu, quando Neel entrou com a toalha de mesa, que tinha o retrato de Alice nas mãos. Colocou-o vivamente no lugar, em cima do dunquerque, mas a empregada surpreendeu
o gesto. 
- Temos de remover todos os retratos dela! - disse. 
- Não seria correto! - respondeu Neel.  Por que, ela não sabia. Era sempre a mesma coisa.  Não era "correto' retirar as fotografias de uma pessoa  morta porque...
Deu de ombros, olhando-a, e entendeu que Jane a tivesse achado mudada. Neel se cuidava mais, penteava-se  com maior apuro, e ele julgou perceber traços de pó-dearroz
na sua pele habitualmente lustrosa. 
Não mentira ao falar de dois lugares à mesa. Decidira isso alguns dias antes, uma noite em que ela se mantinha de pé junto dele e ele lhe dissera que sentasse. 
- Eu não ousaria... - fora a resposta de Neel.  - Por quê?  - Porque isso não se faz.  - Sente-se e imediatamente, ouviu bem? E vai jantar comigo.
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Ela não conseguira engolir mais que duas ou três  garfadas, e assim mesmo com esforço. Mas o princípio  estava ali por diante admitido. Quanto a Beetje, não faziam
o menor caso dela. Ao contrário! Kuperus entrava  de propósito na cozinha, de noite, e dizia: 
- Vem dormir, Neel? Boa noite, Beetje...  Beetje não parecia compreender. Ou então aquilo  lhe era de todo indiferente. Trabalhava doze, quatorze horas por dia,
com a mesma cara, e sem dúvida nenhum  pensamento lhe passava pela cabeça. 
- Guarde o resto do vinho. Posso bebê-lo amanhã.  Sobrara ainda meia garrafa e, sem pensar, ele apanhou na gaveta a rolha especial, folheada a prata, que  usavam
nas garrafas abertas. A rolha fazia parte do serviço que ele e Alice tinham visto num catálogo e encomendado de Haia. Depois de dois anos já se via o cobre  sob
a fina camada de prata.
- Estou cansado, Neel... - suspirou, deixando-se  cair na poltrona que Van Malderen havia ocupado.
 O cheiro de charuto e de vinho ainda pairava na  peça.
- Não sinto fome.  - Mas não é bom dormir de estômago vazio. Coma  alguma coisa.
Uma frase de sua mulher, que poderia ser também  de Jane Van Malderen!
Neel acrescentou:  - Veio o homem da eletricidade... Eu paguei.  E cada objeto estava desesperadamente no lugar certo!
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Capítulo 6
NEEL, estremunhada, não teve tempo de acender o fogo e contentou-se em requentar o café no fogareiro a gás.  Kuperus fez a barba com água fria, ainda meio dormindo.
Quando desceu, a pequena Beetje chegava por sua
vez à cozinha, ainda com o rosto por lavar, os pés nus em  chinelas, um avental por cima da camisola.
- Sirva o café aqui mesmo - disse ele a Neel.  Instalou-se numa ponta da mesa da cozinha. As  duas moças, de costas para o fogo que acabavam de fazer,  olhavam-no
vagamente.  Eram  seis  da  manhã.  Estava-se em março e ainda fazia muito frio.
- Vai levar seu casacão? - perguntou Neel.  - Acho que sim.  As ruas estavam desertas e escuras. De maleta na  mão, Kuperus andava depressa, a caminho da estação,
acompanhado unicamente pelo eco dos próprios passos.  Depois, ouviram-se outros, convergindo para o mesmo  ponto. O céu começava a empalidecer. A gare estava iluminada.
De súbito, ocorreu-lhe que era a primeira vez, desde  os últimos acontecimentos, que tomava o trem. No mês  anterior, esquecera-se da reunião da Associação de Biologia
e não tivera nenhuma outra oportunidade de entrar  na estação.
Estava deserta e nua. Teve de bater no guichê para  chamar o empregado que lhe perguntou, com voz pastosa: 
- Amsterdam, primeira classe? 
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E depois? Com o bilhete na mão, tinha de passar pela borboleta, onde estava postado outro funcionário.  Ora, ocorreu a Kuperus naquele exato momento que esse  empregado
talvez soubesse alguma coisa. Não pensara  mais na história, mas agora talvez se recordasse. Avançou para o homem, um louro muito magro, de dentes  estragados, olhando-o
firme nos olhos. 
Esse homem não se lembraria de que, na famosa  noite, Kuperus, na volta, não lhe apresentara o bilhete  nem sequer descera na estação de Sneek? 
Sob seu olhar encontrou uns olhos azuis um tanto  alarmados, uma fronte que se enrugava,., talvez no esforço de recordar? 
- Amsterdam,  primeira...  -  disse  Kuperus,  apresentando-lhe a passagem cinzenta. 
- Muito bem, senhor doutor.  Fora breve demais para que pudesse tirar conclusões, mas o certo é que o homem parecera espantado e  franzira a testa. 
Kuperus instalou-se no vagão habitual, onde estava  certo de viajar sozinho. Quando o trem partiu, um raio  de sol emergiu bem atrás das pás de um moinho de vento,
como num cartão-postal ou num cartaz de turismo. 
O médico se debruçou para olhar o empregado, e lá  estava o empregado, na plataforma, a olhá-lo também. 
Agora era saber o que fazer. Lembrar-se-ia ele ou  não que Kuperus não passara pelo seu posto naquela noite? Se tinha dúvidas, podia verificar nas passagens de 
volta que estariam guardadas em algum lugar. 
E então? Iria dizê-lo ao juiz? O empregado de Stavoren, esse, vira Kuperus tomar o trem. Sabia-se que não  descera em Workum, nem em Hindelopen... 
Eis do que ele dependia agora: das imagens embrionárias que flutuavam na cabeça de um empregado de  estrada de ferro. 
Se ele falasse, saber-se-ia que Kuperus descera no  caminho. E se isso fosse divulgado... 
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"Diga ao patrão para mandar algum. Estou duro."  Era a última frase da carta que Karl dirigira a Neel.  Nada mais havia sobre o assunto. Nenhuma ameaça. Nenhum detalhe.
Karl estava "duro' e precisava de dinheiro.  Só isso. Kuperus tinha o endereço dele e decidiu ir vê-lo  em Amsterdam. 
Às oito da manhã, o trem chegou em Stavoren, onde  o barco branco estava ancorado; o sol já ia alto, e Kuperus suportava mal o casacão de pele. Quanto ao
Zuider-zee, era de azul muito pálido, com ondulações de seda,  picotado de velas de uns vinte ou trinta barcos de pesca.
Tudo se passou como de costume: o trem que apitava, o sino do barco que bimbalhava, os passageiros que  iam para o salão e pediam chá. Kuperus desembarcou como os
outros, não viu nenhum conhecido. Pareceu-lhe  que o comissário de bordo o observava de modo especial,  e preferiu ir sentar-se na ponte, com maleta ao lado e as
mãos nos bolsos, a contemplar fixamente, primeiro a  torre de Stavoren, que se afastava, depois, um quarto de  hora mais tarde, a cidade de Enkhuizen, que já emergia
ao sol.
Afinal, o funcionário de Sneek poderia ter ficado  simplesmente surpreso com o olhar que o médico lhe lançara. Ou estaria impressionado por rever tão de perto um
homem de quem os jornais tinham falado?
Kuperus não iria dormir em casa da sua cunhada,  como de hábito. Ficaria no Ritz. Há anos que olhava a  porta giratória desse hotel com vontade de  entrar.  Adivinhava-se,
lá dentro, um mundo à parte, gente cujas bagagens traziam as etiquetas de todos os hotéis "palaces' do mundo. E havia muitas vezes o ônibus da companhia aérea
estacionado à beira da calçada.
Nada, agora, o impedia de ficar no Ritz nem de tomar um avião para Paris, para Londres, para Berlim...
E, no entanto, seguiu o mesmo ritual de sempre, foi  beber seu copinho de genebra no café vergünning em  frente da estação, coisa que o fez se lembrar do famoso
dia.
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O Ritz ficava ao fim da rua, junto da loja onde comprara o revólver. E eis que, misturado à multidão matinal, ao sol, em meio aos mil ruídos da grande cidade, ele
se perguntava o que pensava naquela manhã, na manhã  do grande dia. 
Andava assim mesmo, de maleta debaixo do braço.  Mas em que pensava, então? Tinha tudo decidido na cabeça, sabia o que ia fazer. Mas por quê? 
Era curioso: não conseguia reconstituir mentalmente as suas impressões daquele dia. 
Não era tão ciumento assim. Prova disso: depois,  não pensara mais, por assim dizer, na mulher. 
Estava já a cem metros do Ritz e uma verdade se fazia pressentir, que ele acolhia com mal-estar: no fundo,  não fora sua mulher que ele matara, mas Schutter! 
Quanto aos motivos... Não! Não devia pensar mais  nisso. Devia fazer qualquer outra coisa. 
- Um bom quarto, por favor.  - Com banheiro?  - Com banheiro, evidentemente!  - Dez florins. O 246...  Tomaram-lhe a maleta das mãos e ele se viu sem nada para fazer
até as duas horas. Ingleses, instalados nas  poltronas do lobby, liam jornal. Uma jovem mulher,  atriz sem dúvida, brincava com um cãozinho de nariz  achatado. Kuperus
decidiu ir ver Karl. 
Foi, pela rua comprida, até o grande edifício de tijolos vermelhos onde se vêem sempre magotes de marinheiros de boné, pois é aí que funciona a bolsa de fretes 
marítimos.
A rua de Karl ficava logo atrás, uma rua estreita e  suja, uma das pouquíssimas ruas sujas de Amsterdam,  com lojas chinesas, casas de quinquilharias e estranhas
vitrines atrás das quais apenas amarelecem quatro ou  cinco maços de cigarros. Essas vitrines são apenas o
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biombo atrás do qual floresce uma outra espécie de  comércio. Por duas vezes Kuperus teve de virar a cabeça  porque por olhares e gestos o convidavam a entrar.
O número de Karl correspondia a um cabeleireiro.  Havia uma única porta baixa à esquerda, uma escada  mal iluminada, sem corrimão. No primeiro andar, encontrou crianças
que brincavam num patamar e que lhe  indicaram uma porta do andar logo acima.
- Entre!  Empurrou a porta, que não estava trancada. Num  quarto, onde restos de uma refeição podiam ser vistos em  cima da mesa, deu com Karl, ainda deitado. Ao
lado dele, viam-se cabelos de mulher que escapavam das cobertas.
- Ah, é o senhor - murmurou, esfregando o rosto.  Bocejou, ergueu-se sobre um cotovelo, sacudiu a  companheira, que gemeu.
- Vamos! Rua! Vá dar uma volta lá fora...  Naquele momento, Kuperus chegou a invejá-lo, sua  miséria, sua indiferença. A mulher saiu da cama. Era  magra e morena,
com pequenos seios em forma de pêra,  com os bicos cor de iodo. Caçou as sandálias no chão,  lançou um olhar de desafio ao visitante, pôs um mantô  verde por cima
da sua camisa e saiu. Quanto a Karl,  contentava-se em ficar de pernas dependuradas à beira  da cama. Pernas nuas. Um raio de sol, tocando-lhe o rosto, sublinhava-lhe
os traços bem desenhados.
- Foi gentil me trazer o dinheiro. Neel vai bem?  - Vai bem, obrigado.  - Não preciso muito. Uns cinqüenta florins, o bastante para viver alguns dias...
E Karl coçava a cabeça, depois os pés, como homem  que acaba de acordar. A janela era estreita. O vestido da  mulher jazia por terra, bem como a sua roupa branca,
não muito limpa.
Kuperus calava, hesitante, constrangido. E o outro  o observava com os olhos apertados, ao mesmo tempo  curiosos e irônicos.
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- O senhor é um fenômeno estranhíssimo!  - Por quê?  - Nada. Não quero me meter no que não é da minha conta.
Isso quereria dizer que sabia? Se não, como pedira  dinheiro tão seguro de si? 
- Gostaria de lhe fazer uma pergunta - disse, por  fim, Kuperus. - Por que saiu da Alemanha? 
Admirava a calma do seu interlocutor, seus olhos  que se riam, ao sol. 
- Um acidente...  Coisa de pouca importância,  garanto-lhe. Eu andava com uma doméstica que tinha  seu pé de meia escondido no quarto. Um dia, tomei-lhe o  dinheiro,
certo de que ela não protestaria. Ao invés disso, pôs-se a gritar que a roubavam, e mal tive tempo de  derrubá-la no leito... 
Kuperus, ansioso, esperava o desfecho.  - ...com um travesseiro por cima da cara... - continuou Karl. 
O rapaz se levantou, pôs-se a procurar a escova de  dentes. 
- Apertei um bom tempo, até que ela parou de se  debater. E fui embora. Só dois dias depois, pelos jornais,  vim a saber que estava morta. E era uma boa garota,
do  gênero de Neel, sabe, uma dessas garotas que têm o ar de  fazer tudo o que a gente quer, mas das quais a gente não  sabe nunca o que pensam. 
Ficava perceptivelmente mais e mais sombrio. Depois de ter passado uma toalha molhada no rosto e de enfiar umas calças, encarou Kuperus e disse, sem insistir: 
- E o senhor? 
- O que quer dizer? 
- O que foi que fez?  - Eu?  Karl deu de ombros e disse com pouco caso:  - Como quiser. Cada um do seu jeito, não é mesmo? Essas coisas não são tão engraçadas que
a gente goste
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de falar delas depois... Neel não me mandou nenhum  recado?
- Não.  - Vai escrever, sem dúvida. Ela tem o ar tão dócil!  Pois bem. Aposto que botaria a boca no mundo, igualzinha à outra... 
Abriu a porta. Viram a mulher de mantô verde sentada no último degrau. Karl mandou que entrasse. 
- Venha! Já acabamos...  E para Kuperus:  - Agora, o senhor já sabe onde moro. Aluguei o  quarto por mês... Se precisar de mim... 
E à mulher, dando-lhe uma nota de dez florins:  - Vá comprar cigarros para mim...  Kuperus não tinha vontade de ir embora. Alguma  coisa o prendia ali, uma necessidade
obscura de contemplar um pouco mais, de escutar, sobretudo, esse homem  que também tinha matado... 
- O que é que há?  - Nada...  - Foi o que lhe contei que deixou o senhor assim?  Não tenha medo. Esses golpes a gente nunca tem vontade  de recomeçar... 
Kuperus não arredava pé.  - O senhor tem alguma coisa a me dizer, não é?  Olhe que não lhe pergunto nada! É o senhor que fica aí,  hesitando... 
- Não! Eu vou...  Precisava ir embora! Era urgente. Senão, em um minuto, não poderia impedir-se de contar tudo àquele homem! 
- Adeus, doutor. Se tiver outra vez necessidade do  senhor, escrevo. Com a promessa de lhe pagar o serviço! 
O mais extraordinário, depois disso, era o ver-se de  novo na rua, entre pessoas normais, que iam e vinham,  em meio a bicicletas, bondes, automóveis, vitrines repletas
de pastelaria, lojas de roupas feitas, com manequins,  etiquetas de preços... 
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O que sobressaía claramente da conversa que tinham tido, era que Karl matara a empregada sem querer,  apenas para não ser preso e condenado. 
Mas - e Kuperus? Para todo mundo seria ainda  mais claro e evidente: poriam seu gesto à conta do ciúme.  Talvez por isso mesmo já o lamentassem, talvez por isso
mesmo os membros da Academia o tivessem feito presidente! 
Ora, não era verdade... Não matara por ciúme...  Não tinha rancor da mulher! A coisa ia mais fundo: depois de ter reparado no retrato da mulher, acontecia-lhe  deter-se
muitas vezes diante dele com uma certa satisfação e por duas vezes já chutara o novelo de lã de um  azul tão celeste. 
O que por pouco não provocava uma cena. Neel quisera guardar o novelo em algum lugar, talvez jogá-lo fora. E Kuperus, para grande surpresa da empregada, ficara furioso.
- Largue isso aí! Você me ouve? Proíbo você de tocar em qualquer coisa aqui! 
Por quê? Karl, por seu lado, zombava de tudo, vivia  na sua enxerga, achava sempre mulher que o servisse. E  dizia da vítima com um grão de melancolia: 
- Que pena! Era uma boa garota... 
O almoço não lhe deu nenhum prazer. Era a primeira vez que comia no Ritz. Havia muita gente. Como estivesse sozinho numa mesa, abriu o jornal, mas não leu  quase
nada, e mal percebeu o que lhe serviam.
Às duas horas chegou à sua reunião e, desde os primeiros passos no hall de altas colunas, de grandes lajes  azuis e brancas, arrependeu-se de ter ido.
Era ainda apenas uma impressão, mas bastou para  fazê-lo perder a confiança em si mesmo: como que por  acaso, todos os confrades que andavam de
um lado para  o outro, fazendo hora, no vasto salão, davam-lhe as costas ou estavam ocupados demais para vê-lo.
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Evidentemente, tinham lido os detalhes do caso nos  jornais, que tinham publicado, ademais, a sua fotografia. Mas era razão bastante? 
Aproximou-se de um dos que conhecia melhor, antigo camarada da faculdade, e estendeu-lhe a mão. O outro pegou-a, indagando com embaraço: 
- Como vai?  - Razoavelmente bem...  - Está com ar de cansaço, deveria repousar...  - Sim. Vim mesmo para me desculpar. Tenho um  compromisso para daqui a uma hora.
- Eu direi isso por você, quando a sessão começar... 
Era a primeira vez que batia em retirada. Mas, de  fato, eles eram muitos, e o ambiente excessivamente solene. Além disso, não conseguia deixar de pensar em Karl.
Pois este não encontrara o método indicado? Não  pedia nada a ninguém! Vivia no seu canto, como bem entendia! 
Como da outra vez, Kuperus passou a tarde num cinema, que mostrava um filme de opereta. Todos os personagens, em costumes de outra época, passavam a vida  cantando
e valsando. 
Quando Kuperus se viu de novo na rua, já estava escuro e a multidão adensara. Era a hora da saída dos escritórios e do comércio. 
Gente feliz, que ia para casa com fome e dormiria  um sono de chumbo! 
Por que diabo se lembrava agora do seu primeiro canivete? Tinha onze anos, então. Durante meses e meses  desejara um canivete, sem dinheiro para comprá-lo. Um  dia,
revendeu num sebo dois livros didáticos, que disse  em casa haver perdido, e foi comprar o objeto. 
Mas, oficialmente, não tinha canivete! Não podia  mostrá-lo sem despertar suspeitas. Servia-se dele às escondidas e tinha de se fechar na latrina para contemplálo
a seu gosto. 
96 
... 
Não havia qualquer razão para pensar nisso agora.  Mas haveria alguma razão para andar, como andava, a  esmo, sozinho, de maleta debaixo do braço, nas ruas de  Amsterdam?
E razões para hospedar-se no Ritz? Ou para tomar de volta, no dia seguinte, o barco em Enkhuizen, o trem em Stavoren? 
Lá, teria de encarar outra vez o funcionário encarregado das passagens, sem nada ficar sabendo! 
Em volta dele, havia uma cidade, um país, um mundo. E em tudo aquilo só um recanto era seu, uma casa escura, um círculo de luz cor-de-rosa por cima da mesa da  sala
de jantar, uma estufa de cobre e de faiança, uma empregada indiferente... 
Acontecia-lhe passar  uma hora inteira no  consultório à espera de clientes, cada vez mais raros agora. 
Então, por que não dar tudo por encerrado? Por  que não bradar em voz alta tudo o que pensava? 
Foi depositar a maleta no Ritz e saiu de novo. Não  tinha vontade de andar. Não tinha vontade de nada.  Achara que a cidade grande lhe faria bem, e não sabia  agora
onde se meter. 
Se houvesse um trem, teria voltado para casa imediatamente, empurrado a porta da cozinha, olhado Beetje, afagado a anca de Neel, cheirado o odor do café... 
Hesitou ao se ver diante do cabeleireiro e acabou  por subir a escada e bater à porta de Karl. Foi a porta da  frente que se abriu. Um velho lhe disse: 
- O senhor o encontrará no barzinho, a cinco casas  de distância... 
Kuperus jamais entrara em bares daquela espécie.  Descia-se um degrau. Havia só quatro mesas, um balcão.  O cheiro de genebra era de dar enjôo. Dois marinheiros
bebiam a um canto, sem trocar palavra. Quanto a Karl,  sozinho na sua mesa, comia uma salsicha regando-a com  cerveja. 
- O senhor outra vez? As coisas não vão bem?  - Sentia-me entediado...  - Um gim, então? Um gim, chefe... Duplo! 
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Kuperus virou-o de um trago, enquanto Karl continuou a comer tranqüilamente.
- O que é que aborrece o senhor?  - Não sei...  - Tome outro copo. É a minha vez de pagar.  Limpou a boca no guardanapo, virou-se no banco e  encarou com atenção
o interlocutor. 
- Quer que eu lhe diga uma coisa? - articulou finalmente. - Se o senhor continua, vai acabar mal. 
- O que acha?  - Não acho nada. Seus negócios não me dizem respeito. 
- Mas me diga o que acha.  Kuperus tinha um tal desejo de falar da história que  estava quase suplicante. Não podia mais. 
- Por que imagina que eu ache alguma coisa?  - Sabe muito bem o que quero dizer!  Então  Karl  fez-lhe  um  sinal.  O  dono  do  bar  escutava-os. Depois bateu no
mármore da mesa com uma  moeda para chamá-lo e pagou a conta. 
- Venha...  Atravessaram uma rua de onde vinha um som de  acordeão, chocando-se contra um bêbado que cambaleava. Havia mulheres, aqui e ali, fazendo o trotoar, mas
Karl não precisava afastá-las. Elas mesmas lhe abriram  caminho. 
No fim da rua, era o canal, um cais deserto, as luzes  de algumas barcaças amarradas. Os dois copos de gim  queimavam o peito de Kuperus, pois era álcool barato,
de cinqüenta graus, talvez. 
- Diga-me agora o que quiser.  - Você pensa, às vezes, em... Sabe de quem estou  falando... na empregada? 
Karl olhou-o nos olhos tanto quanto a obscuridade  permitia. 
- E depois?  - É tudo. 
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- Mas não!  Vamos, esvazie o saco, já que começou. Pensa que eu não vejo que tem a história atravessada na garganta? 
Era tarde demais para recuar e, no entanto, de súbito, Kuperus ficou apavorado. Pensou consigo como pudera chegar a tal ponto. 
Pusera-se à mercê do alemão. Este, ciente de que ele  ainda tinha dinheiro no bolso, poderia, com um empurrão, jogá-lo no canal. Poderia também, dali por diante,
fazer-lhe chantagem, pois Kuperus já falara demais. 
- Você sabe a verdade, não é? - balbuciou o  médico. 
- Foi o senhor? - limitou-se a dizer Karl, numa  espécie de grunido. - Eu devia ter adivinhado quando  ficou com Neel no quarto. É sempre esse o efeito... 
- Não entendo...  - Não vale a pena entender... E agora, o que quer  de mim? 
- Nada.  Na sombra, Karl encolheu os ombros, acendeu um  cigarro. Hesitava em ir-se. Por fim, disse: 
- Vou ser franco: o senhor... o senhor é um depravado. 
Um depravado!  Kuperus estava no barco. Acabava, mais uma vez,  de pôr todo mundo embaraçado. Porque era o dia da  reunião dos prefeitos. Havia três deles a bordo,
os três  com os quais costumava jogar bridge toda primeira  quarta-feira do mês. 
Kuperus sabia que não tinham a menor vontade de  jogar com ele ou de serem vistos em sua companhia. O  que não o impediu de se instalar antecipadamente à mesa  e
de preparar baralhos e fichas. Só lhes restou ocupar os  lugares habituais. 
99 
O próprio garçom parecia contrafeito. O prefeito de  Stavoren enganou-se por duas vezes dando as cartas. E  evitavam todos dizer qualquer frase que não fosse do
jogo. 
Seria ele, verdadeiramente, um depravado? Jogava,  mas pensava em outra coisa, pensava em Karl, em Neel,  em Beetje, a qual ele obrigava a lhes servir café na cama,
de manhã. 
Depois, bruscamente, tinha a sensação de que todo  mundo suspeitava dele, que todo mundo tinha a certeza  de ser ele o assassino. Mas não o prendiam! Não o interrogavam!
Talvez esperassem descobrir uma prova, como  a história da passagem. Talvez tivessem pena dele. Ou a  intenção de evitar um escândalo. 
Seria principalmente isso! Van Malderen e sua mulher haviam insistido com ele para que viajasse para o exterior. 
Ficando, obrigava-os a apertar a mão de um assassino! Talvez tivessem medo dele. Ou seria piedade? 
Em todo caso, não partiria. A experiência da viagem  a Amsterdam lhe' bastava. Não queria mais sair de  Sneek, do seu cais familiar, sua casa, seu canto. Ansiava
por estar de volta, por descansar os olhos em objetos cuja história conhecia como a palma da mão. 
- Três sem trunfo...  O prefeito de Stavoren subiu ao convés alguns minutos antes da chegada e foi o primeiro a desembarcar, para não ser visto com Kuperus. No trem,
este, como da  outra vez, viu-se sozinho no seu compartimento. 
Era de noite também, como da outra vez.  Anunciaram:  - Workum...  E dez minutos mais tarde:  - Hindelopen...  E, de súbito, ele empalideceu. O trem diminuía a 
marcha, ainda como da outra vez. Antes, jamais prestara  atenção nessa diminuição da velocidade naquele lugar.  Quase desceu... 
100 
Mas não! O trem continuava, e parou em Sneek. O  empregado estava plantado ao lado da borboleta e seus  olhares se cruzaram. O empregado disse: 
- Obrigado, senhor doutor.  Diria sempre "obrigado' daquele jeito? Não se lembrava mais. Perguntava-se se não haveria naquilo uma  ameaça. 
Atravessou a pé uma parte da cidade, de maleta na  mão, hesitou diante das vidraças acesas do Onder de Linden. 
Só havia uma coisa a fazer: entrar! Obrigar os amigos a apertar sua mão, sentar-se com eles, desafiá-los,  fitá-los nos olhos! 
Van Malderen estava presente e mostrou-se contrafeito. 
- Você foi a Amsterdam?  - Fui.  As bolas rolavam nas mesas de bilhar, iluminadas  pelos projetores. Quatro membros do círculo jogavam  bridge a um canto. 
Afora aquela frase de Van Malderen,  afora as  flácidas mãos nas suas, não havia qualquer contacto entre ele e os que o cercavam. Parecia-lhe que o próprio Jef
se mostrava distante, servia-lhe seu copo de cerveja com  uma espécie de desconfiança.
- Afinal, que fim levou a encantadora Lina?  Olhava mais particularmente Loos e Van Malderen.  Os outros sorriram.
- Partiu...  - Ora essa! Sozinha?  - Não, com o inglês que veio estudar as cremerias... 
Num dos bilhares, Kuperus divisou o juiz de instrução, o seu juiz, e o cumprimentou com a cabeça. O  outro aparentemente não se deu conta de que era cumprimentado.
Em torno dele havia como que um vácuo onde o  choque das bolas tinha um som cavo e onde por vezes 
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uma  voz  parecia  artificial.  Devia  ir  embora.  Mas  obstinava-se em ficar, pedia um segundo copo de cerveja, depois uma genebra, que lhe recordou os gins da
véspera. 
Voltara para o Ritz completamente embriagado e  não se lembrava de como se deitara. De manhã, tivera  medo de ver surgir um Karl exigente, ameaçador talvez,  mas
não aparecera ninguém até a hora do trem. 
- Como vai Jane? - perguntou a Van Malderen.  - Muito bem.  Todo mundo estava contra ele! Chocava-se por todo  lado contra paredes. Além disso, havia alguém que
não  se contentava em suspeitar dele mas que o sabia culpado.  Pois Kuperus não podia esquecer a carta anônima! 
- Um acidente... - dissera Karl, falando da empregada que sufocara com um travesseiro. 
Mas e ele? O que seria? E por que o mesmo Karl tinha dito: 
- O senhor, o senhor é um depravado!  Um depravado, ele, um homem que vivera quarenta  e cinco anos sem cometer o menor deslize, à exceção da  história do canivete?
Não enganara a mulher. Só uma  vez, em Paris. E ainda aí a coisa não passou de uma  aventura estúpida, um lance de cinco minutos, que lhe  valera semanas de pesadelo:
tinha pavor das doenças  venéreas. 
Um depravado, quem vivia há quinze anos na mesma casa, apenas preocupado em torná-la mais acolhedora e confortável? 
Um depravado, quem tivera por única ambição na  vida ser presidente do seu clube, em lugar de Schutter? 
Um depravado, quem se levantava até vinte noites  num mês para fazer partos?
Tinha ganas de chorar!  - Uma genebra, Jef!  Tanto pior se o olhavam por beber mais do que de  costume. Precisava saber, e o gim o ajudava a interrogar  a própria
alma.
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Era pacífico: Karl matara sem querer, para não ser preso. E ele era ainda incapaz de dizer por que o fizera.  - Quem faz duzentos pontos de bilhar? - disse
alto. Ninguém respondeu. Kuperus tinha as faces em fogo, os olhos brilhantes. Encarou-os um depois do outro.
- Perguntei quem quer fazer duzentos pontos -  repetiu, sentindo que a ebriedade já lhe amolecia os joelhos.
Achava que os outros não o percebiam. Mas Franz  Van Malderen, que fora mais seu amigo do que os outros, aproveitou-se da liberdade que isso lhe dava, para  dizer,
sem esconder o desprezo:
- Você está vendo que vale mais ir embora dormir.  Assim como não se lembrava de como se despira em  Amsterdam, Kuperus não poderia dizer como saiu essa  noite do
café. Quando a porta se fechou atrás dele, houve um longo silêncio, seguido de uma discussão animada.
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Capítulo 7
ERAM dez da manhã, e Kuperus acabava tardiamente  de se vestir quando, no momento de dar o nó na gravata,  estacou. A música de um piano acabava de se infiltrar
na  casa:  primeiro,  algumas notas preguiçosas, indecisas.  Depois, acordes mais firmes, que anunciavam um estudo  de Schumann. 
Não foi porque tivesse bebido na véspera que ficou  um momento sem entender por que se comovia daquela  maneira. Seu sentimento não era de surpresa mas de nostalgia.
O olhar, que o espelho lhe devolvia, era o de um  Kuperus diferente do Kuperus dos últimos dias, emocionado, quase em desvario. 
- Mia! - balbuciou ele.  Mia voltara! Estava talvez curada! E eis que o  médico, transtornado, esquecia quase a citação para que  comparecesse perante o juiz de
instrução. 
A casa vizinha, para o lado da ponte, era menor que  as outras, mas ainda mais bem cuidada, mais limpa, com  sua porta e janelas pintadas todo ano, e suas cortinas
engomadas. Era a residência dos Brandt, gente mais calma  e mais regular na sua vida do que qualquer outro habitante da rua, pois Brandt era professor do colégio
de meninos e a Sra. Brandt, inspetora da escola normal de meninas. 
Saíam de casa a hora certa, voltavam a hora certa, e  só ficava em casa, com uma espécie de governanta, a pequena Mia, agora com doze anos. 
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Mia não ia à escola. Estudava piano. E lá estava ela,  do outro lado da parede, a executar um fragmento que  Kuperus já a ouvira tocar uma centena de vezes enquanto
dava consultas. 
Mia estava doente. Passara o inverno na Suíça, e o  médico a esquecera a tal ponto que não percebera a falta  da música.
Estava de volta, afinal, e a música impregnava de  novo a casa!
- A mocinha está de volta - disse uma voz atrás  dele.
Era Neel, ocupada em escovar o chapéu dele.  - Sim, ela voltou - murmurou.  E, ao invés de seguir pelo corredor para sair diretamente, deu volta pela sala de jantar
e pelo salão. No salão havia um piano-armário, com o tampo coberto de fotografias e bibelôs. 
Sobre o banco giratório via-se uma almofada de veludo que tinham mandado fazer especialmente para Mia,  quando ela era ainda bem pequena. 
Pois, toda tarde (ela tomava lições em casa, de manhã, com um professor), vinha estudar com a Sra. Kuperus, que também tocava piano. Talvez a sua caixa de chocolates
ainda se encontrasse no bufê. 
- O senhor não está esquecendo de levar a sua maleta? - perguntou Neel, que acompanhou o médico até a  porta. 
- Não vou precisar dela.  Sentira-se aliviado, de manhã, com o papel oficial  que o convidava a se apresentar às onze horas no gabinete do juiz. Mas por causa daquelas
poucas notas de piano, que lhe recordavam tanta coisa, era com pena que  deixava a sala de visitas, que ouvia a porta da rua fechar  com um baque familiar. 
Existia um detalhe mais característico que o piano e  os chocolates: quando os Brandt voltavam do trabalho,  de noitinha, e que Mia estava ainda em casa dos
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Kperus, eles batiam na parede divisória e, a esse sinal, a menina se precipitava para casa!
A manhã era cinzenta e Kuperus esforçava-se por  dissipar a tristeza que fazia vergar seus ombros. Olhou  de passagem, com indiferença, a sacada onde, como sempre,
Jane Van Malderen podia ser vista. Por pouco não  lhe fez uma careta. 
Como Anton o chamaria?  Pois o  juiz Groven  chamava-se Anton. Estivera na escola com Kuperus.  Tratavam-se familiarmente por você. Se não se viam  mais era porque
a Sra. Groven tinha má língua e não se  entendia com nenhuma senhora de Sneek.
O autor da carta anônima teria falado, por fim? Ou  o homem da estrada de ferro fora confiar suas dúvidas à  polícia? 
Ao se levantar, Kuperus estava combativo, nervoso,  pronto a responder a qualquer ataque. Por que diabo  aquele piano se fizera ouvir, recriando um mundo, fazendo
reviver anos inteiros, desde as primeiras escalas de  Mia, que precisava ainda de duas almofadas? 
O Palácio da Justiça estava ainda mais cinzento do  que o resto da cidade, e Kuperus subiu sem hesitação ao  ministério público, bateu à porta do juiz, ouvindo,
antes  de receber resposta, um ruído de cadeiras arrastadas. 
Enfim, a porta abriu-se. Era o escrivão que segurava  a maçaneta, enquanto Anton Groven, de pé atrás da mesa, se endireitava com uma dignidade um tanto insegura.
- Tenha a bondade de entrar e de se sentar.  Não estendia a mão. Não chamava de você seu antigo camarada. Sentando-se também, ficou a torcer a barbicha enquanto
folheava um dossiê cuja grossura deixou Kuperus estupefato. 
- Fui obrigado a convocá-lo para lhe fazer algumas  perguntas antes de dar por concluída a minha instrução.  Tenho aqui um grande número de relatórios e devo tentar
esclarecer alguns pontos que me parecem ainda obscuros. 
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Era por demais perfeito. Fazia pensar num menino  de escola recitando de cor sua lição. O juiz não ousava levantar os olhos do seu maço de papéis. 
- Leio aqui, por exemplo, que, por ocasião dos  acontecimentos que nos ocupam, o senhor agasalhava,  num quarto de empregada, um senhor Karl Vorberg, de  nacionalidade
alemã, sobre o qual as informações são as  mais desabonadoras. A Polizei Praesideum, de Emden,  consultada por nós, respondeu que, com efeito, esse Vorberg é fortemente
'suspeito de assassinato, mas que, por  falta de provas, não podem pedir sua extradição... 
Anton Groven levantou, finalmente, a cabeça, com  timidez, como se temesse dar com um espetáculo penoso. 
- Sabia da presença desse Vorberg na sua casa? -  perguntou. 
- Não!  - Nesse caso, lanço mão do outro relatório que me  informa que no dia de ontem o Dr. Kuperus se encontrou  duas vezes com o dito indivíduo numa rua suspeita
de  Amsterdam. Nega-o? 
- Não!  E Kuperus rechaçou as últimas notas de piano que  lhe rodavam pela cabeça. Compreendia agora que, embora não o tivessem incomodado, haviam feito assim  mesmo
um inquérito severo a seu respeito. Fora, inclusive, seguido, sem jamais ter percebido. 
Contemplava o dossiê, afligindo-se à idéia de que  cada folha continha uma nova cilada. 
- Não desejaria apanhá-lo em contradição... Declarou que não conhecia Vorberg... Confessa agora que  se encontrou com ele por duas vezes no mesmo dia em  Amsterdam.
- Exato.  - Explique-se.  - Eu  não  conhecia  Vorberg  por  ocasião  da  tragédia. Ignorava que um homem estivesse escondido  debaixo do meu teto... 
- E como veio a sabê-lo?
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- Quando me tornei amante da minha empregada.  O escrevente hesitou em transcrever essa resposta. O  juiz olhou Kuperus com ar interrogativo. E foi o médico  quem
falou:
- Assumo a inteira responsabilidade das minhas  declarações. Tornei-me amante de minha empregada  doméstica e soube, pouco depois, que ela escondia um  homem na
sua mansarda. A fim de afastar esse indivíduo, eu lhe dei dinheiro, sob a condição de que partisse para Amsterdam. 
- Ele lhe extorquiu dinheiro?  - Era natural que me pedisse alguma compensação. Ontem, fui levar-lhe novos subsídios.
O juiz mergulhara de novo nos seus papéis. Voltou-se um instante para o escrevente, fazendo-lhe sinal de que  não anotasse o que estava para dizer.
- Era este, talvez, o ponto mais obscuro - declarou. - A Polícia estava pronta a tirar conclusões sobre a  presença desse alemão em sua casa. Será fácil interrogar
a sua empregada e enviarei a Amsterdam uma carta rogatória. Resolvido isso, não resta grande coisa no dossiê.
Poderia parecer ironia, pois que uma boa centena de  páginas datilografadas enchia o dossiê pardo.
- Suponho - continuou o juiz - que não tenha  qualquer declaração a fazer à justiça.
Dizia aquilo depressa, como se temesse uma intervenção de Kuperus.
- Responderei às suas perguntas - disse este.  - Lamento a necessidade de fazê-las. Como sabe, a  carteira de Schutter desapareceu, o que nos leva a crer  que se
trate de um latrocínio. Não obstante, não temos o  direito de abandonar outras hipóteses, inclusive a de um  crime passional. Suponho que nega haver atirado sobre
sua mulher e sobre o seu companheiro...
Kuperus ficou por um instante imóvel, tomado de  estranha hesitação. Esteve tentado a responder, por bravata:
- Não nego!
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Mas o juiz obrigou-o, pela sua atitude, a fazer um  sinal afirmativo de cabeça. 
- Naquela noite, ademais, voltando de Amsterdam, foi como de hábito ao Onder de Linden e um dos  seus parceiros de bilhar o viu, depois, entrar em casa. 
Anton Groven, que respirava profundamente, aliviado, fez um gesto no ar como se varresse nuvens... 
- Acrescento que, na hipótese do crime passional,  o senhor mal correria o risco de uma pena de prisão, mas  isso, em contrapartida, desencadearia um escândalo monumental!
Kuperus esboçou um magro sorriso.  - Entendo que não tem, por seu lado, nenhuma  suspeita? 
- Nenhuma! - disse, sem ironia.  - Anote isso, escrivão: Dr. Kuperus não tem  qualquer suspeita. 
O juiz, que se erguera, procurava acabar com aquilo  da melhor maneira possível, o que não era fácil. 
- Espero - dizia, sem ter coragem de encarar o interlocutor -,  espero que compreenda exatamente a  situação. Esse crime, esse duplo crime, foi cometido em  condições
tais que não temos nenhum indício sério, nenhuma prova formal, em todo caso. Suponho que o caso  fosse levado aos tribunais, é mais que provável que terminasse por
uma absolvição. O acusado teria sempre o  benefício da dúvida... 
O escrivão se levantara por sua vez, eclipsando-se  num reduto vizinho, onde se pôs a lavar as mãos numa  pia esmaltada. 
- Que acusado? - perguntou Kuperus.  - Não sei... Faço uma suposição... Por outro lado,  já não podemos esperar recolher, a essa altura, novas  pistas... É por isso
que lhe pedi que viesse ter comigo. É  provável que, a partir dessa tarde, o caso seja arquivado.  Seria de desejar, no entanto, que se falasse o menos  possível
disso, que nenhum incidente viesse a lembrar a  tragédia. O senhor me compreende, doutor?
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Havia dito doutor! Era mais oficial ainda. Não podia dizer Hans, evidentemente.
- Aludi aos fatos, incidentalmente,  faz poucos  dias, a um amigo comum, Van Malderen, e ele me deu  parte da sua intenção de viajar para o exterior, uma vez  terminado
o inquérito. Eu me felicito por isso; é, de qualquer ponto de vista, a melhor solução... 
Ele chegava ao ponto, afinal. Andava de um lado  para outro atrás da sua mesa, de mãos nos bolsos, destacando as sílabas para sublinhar o sentido escondido das 
palavras: 
- O senhor deu às minhas perguntas respostas satisfatórias, e estou convencido de que, hoje mesmo, essas  declarações serão confirmadas pelos interessados. Resta
um detalhe aborrecido: mas, ainda aqui, seria um indício  muito leve aos olhos do júri. A estação ferroviária procurou a sua passagem de volta e não conseguiu encontrá-la.
O funcionário, é verdade, encarregado da borboleta, admitiu que muitas vezes os passageiros, sobretudo os mais  habituais, saem pelo bar e não devolvem o bilhete...
O  senhor vê o partido que um bom advogado tiraria dessa  segunda declaração... 
Era, agora, como se ameaçasse. Com ar neutro,  proferia um verdadeiro requisitório: 
- É aborrecido também que, daquela vez, em Amsterdam, o senhor não tenha assistido à reunião mensal da  sua Associação. Presunção bem leve, não é? À qual responderia,
sem dúvida, que, não se sentindo bem, preferiu voltar para Sneek. Acresce que o senhor jamais teve  revólver, que se saiba, e não se encontrou a arma usada  no crime.
Estou resumindo, doutor... Pode ver que pus  as cartas na mesa. Hoje mesmo, repito, o inquérito será  encerrado, e eu me ocuparei de outra coisa. Desejo que  faça
excelente viagem e que, nesta cidade, não se fale  mais num caso que pode apenas servir para perturbar as  consciências... 
Imobilizou-se, então, e olhou Kuperus friamente,  firmemente. 
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- Suponho que não tem nada a acrescentar?  O médico hesitou. Por que a melodia repetida de  piano lhe passava pela mente? Por fim, lentamente, baixou a cabeça.
- Nada... - balbuciou.  - Nesse caso,  o interrogatório está terminado.  Agradeço-lhe...
Ele mesmo abriu a porta, mantendo a mão direita  na maçaneta a fim de evitar estendê-la para se despedir.  Ao invés de dizer adeus, inclinou-se, e Kuperus saiu de
cabeça baixa, chocou-se contra alguém, gaguejou uma  desculpa, e chegou à rua sem saber por onde passara.
Sentia-se tão mal que foi obrigado a parar na calçada, encostado à parede de uma casa. Ali ficou por algum  tempo imóvel, de mão no peito. Não era apenas dor física.
Era uma dor total, integral, uma dor de todo o ser, na  carne e no espírito.
Esse sofrimento foi para ele um raio de luz. Ainda  na véspera, perguntava-se por que matara. Agora, sabiao: era por causa dessa dor!
Acabava de sofrer a maior humilhação da sua vida.  Um homem que estivera no colégio com ele, um homem  a quem chamava de você, a quem chamava Anton, que  tratara
de uma doença ridícula quando eram ambos jovens, um homem que, por meia hora, o ameaçara em surdina e lhe ditara suas ordens.
Porque eram ordens, não havia dúvida a respeito!  Uma humilhação! E a sensação de impotência em  face de outro ser, a necessidade de reconhecer a própria  inferioridade
e se inclinar...
Não sentira a mesma coisa cem vezes diante de  Schutter? E quando recebera a carta anônima...
...Schutter, que era mais rico do que ele, que parecia  jovem, que era elegante, desenvolto, que levava uma vida  de fantasia e para quem tudo dava certo!
Agora, caminhando e acompanhando inconscientemente o canal, chegou em casa. Fez tinir a caixa do
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correio, como era seu costume, passou à frente de Neel sem  um olhar.
Alguns instantes mais e estava trancado a chave no  consultório, cerrando os punhos por causa da música. Já  não era Schumann, mas a Berceuse de Chopin, cujo romantismo
o exasperava. Por pouco não chorou de raiva! 
Anton diria ao promotor, a Van Malderen, aos outros todos: 
- Está feito. Ele parte...  E Van Malderen, na hora do almoço, anunciara a  Jane: 
- Está feito. Ele parte!  Alguma coisa como uma execução a frio. E os  Brandt diriam à pequena Mia, assombrada: 
- Tia Kuperus morreu, tio Kuperus foi embora...  Porque a menina vinha tão seguidamente à casa que  se tinham criado laços fictícios de parentesco: Mia dizia  "tia
e tio Kuperus'. 
Em suma, era um pouco Schutter que triunfava. Levava a melhor, até o fim, contra o doutor! 
E este rodava sem parar no seu consultório, sem saber o que fazer, chocando-se contra os móveis, desarranjando os objetos em cima da mesa de trabalho. 
Nem mesmo respondera a Anton! Saíra como um  pobre que recebeu uma esmola. Andara como um cego  pelos corredores. Talvez o seu antigo colega tivesse sentido alguma
piedade, contemplando-o de costas, a se afastar.
Gostaria de ter chorado. Isso o aliviaria.  A música, porém, fazia-o crispar-se, punha-lhe as  maçãs do rosto a arder. Chegou a bater na parede sem  que Mia compreendesse
o que queria dizer. 
Matara porque...  Não era ainda muito claro, ou melhor, era uma revelação que não se podia traduzir em palavras, nem por  idéias ordenadas.
Em suma: ele, Kuperus, vivia há quinze anos naquela casa com sua mulher. Trabalhava muito. De manhã,
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examinava uns vinte doentes mais ou menos pobres, e a  sala de espera cheirava mal.
De tarde, corria a cidade a pé, entrava nas casas, nos  quartos onde a morte preparava seus golpes, chegava,  por fim, às cinco horas, ao Onder de Linden, onde muitas
vezes os pacientes o mandavam chamar...
De noite, lia seu jornal, enquanto a mulher tricotava  ou bordava. De vez em quando, recebiam os Van Malderen. Uma vez por mês, ia a Amsterdam e dormia em casa
da cunhada.
Fizera um cruzeiro, uma viagem à França... E era tudo! Quinze anos seguidos! Quisera que fosse assim porque era preciso. Quisera que os mesmos
gestos, fossem feitos às mesmas horas e que todos os ritos de vida bem organizada fossem observados.
Quando a mulher falara em redecorar a sala de visitas, ele concordara, porque Jane Van Malderen
mudara  a sua no ano precedente. Quando a mulher lhe pedira um  casaco de pele, ele hesitara um mês, o que era lógico
e  apropriado, e lhe fizera a surpresa do presente no dia do  aniversário dela.
Apesar de tudo, tinha por vezes um desejo terrível  de tudo revirar, de pôr abaixo toda aquela construção  harmoniosa. Entediava-se. Mas não tinha razão. Aquele
era o bom caminho. Todos, em torno dele, o seguiam...
Quando se sentia excitado, ao passar por Neel,  censurava-se, chegava quase a se desprezar.
E eis que sua mulher... E Schutter! ...  Sobretudo ele! Aquele precisamente, o único que  não seguia a mesma trilha, que levava a vida como bem  queria! E dava certo!
Era o presidente da Academia! Tinha tantas aventuras quantas quisesse.
A Sra. Kuperus se deixara conquistar! ...  Então, Kuperus é que estava errado, Kuperus fora  enganado. Durante anos e anos, como um imbecil, andara em trilhos que
não levavam a lugar nenhum...
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Portanto, tudo era falso, inclusive aquela casa bem  cuidada, o salão novo, o piano, o casaco de pele e a almofada grená de Mia...
Por isso é que matara! Porque dali por diante tudo o  aborreceria, pois não acreditava mais na garrafa de borgonha posta para respirar nos dias em que vinham os
Van Malderen, porque não podia sequer ouvir Mia tocar! 
Fora enganado! A vida toda, não passara de um  consumado imbecil! Jamais o teriam eleito sequer vice-presidente da Academia!
Por que não matar Schutter, e sua mulher de contrapeso?
Depois, tanto pior. Matar-se-ia também. Ou se deixaria apanhar e diria aos seus concidadãos o que pensava  deles.
A realidade fora diferente. Por quê?! Não saberia  dizê-lo. Não se tinha matado. Tampouco tinha confessado. Contentara-se, na primeira noite, à guisa de protesto,
em fazer que Neel dormisse em sua cama.
Agora, já não sabia a quantas andava. Fora esmagado. Não ousava se olhar no espelho. Via sempre Anton  segurando a porta aberta para que ele saísse.
A música continuava... Mia estudava seis horas por  dia, queria tornar-se uma virtuose...
Se pelo menos ele pudesse chorar! Mas não. Ensaiava apenas uma careta na esperança de que um soluço  viesse do fundo, mas o soluço lhe ficava na garganta...
Abriu a porta com fúria, gritou:  - Neel!  Depois, e como Neel não viesse imediatamente, desceu. Encontrou-a pondo a mesa.
- Neel!  Ela se voltou, olhando-o com olhos indiferentes.  - Diga-me, Neel... Ninguém comenta nada, nos  fornecedores?
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- O que quer dizer?  - Nos últimos dois, três dias, ninguém comentou  nada de novo? 
- A respeito do senhor?  - Sim, a meu respeito!  - Dizem que o senhor vai embora...  - E não dizem por quê?  Neel suspirou:  - O senhor sabe muito bem...  - Mas
quero que me diga!  - Pois bem. Dizem que depois do que houve o senhor não pode mais viver em Sneek. E que, se ainda assim o senhor quisesse, tratariam de impedi-lo.
- Quem diz isso?  - Todo mundo. Os meninos do quarteirão correm  atrás de mim, põem a língua de fora... Foi o senhor mesmo que exigiu que eu contasse. 
- Não dizem mais nada?  - Dizem...  - Repita!  - Dizem que o senhor foi esperto demais para deixar provas, mas que o assassino de Schutter e de sua mulher não anda
longe... 
Kuperus lançou-lhe um olhar oblíquo.  - E você?  - Eu?  - O que pensa?  - O senhor sabe.  - Sei como?  - Não sabe mesmo? Nunca desconfiou?  Seu espanto não era fingido.
- Chega de falar disso... - concluiu, marchando  para a porta. 
- Responda! O que é que você pensa?  - Eu nunca deixei de saber - respondeu, dando de  ombros. - Fui eu quem lhe escreveu a carta... 
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Dizia aquilo como se não tivesse a menor importância. Via a conversa como uma obrigação penosa, que desejava encerrar depressa. 
- Por que escreveu a carta?  - Por causa da patroa...  - Mas por quê?  - Eu sabia que ela passava uma parte da noite fora,  quando o senhor ia a Amsterdam. Uma vez,
voltou só às  nove da manhã. 
- Continue...  - Um dia, nós duas discutimos...  - Você discutiu com ela?  - Sim. Faltava meio florim no troco das compras.  Devo ter perdido o dinheiro, por que
não iria me dar ao  trabalho de roubar meio florim. O que não impediu a patroa de ficar uma hora na cozinha a me fazer uma cena.  Acabou declarando que descontaria
o meio florim do  meu ordenado. Foi então que lhe disse... 
- O quê?  - Que se ela fizesse isso, eu contaria tudo...  Kuperus não se mexia, arrasado pela evocação desses dramas que ele roçara sem ver. Pois tudo aquilo se
passara quando ele vivia a vida mais quieta, mais minuciosamente regrada do mundo! Devia voltar para casa  instantes depois de cenas desse gênero, sem jamais perceber
coisa nenhuma!
- Ela ficou tão furiosa que me disse: "Eu desafio  você a fazer isso!"
- E você escreveu?  - No mesmo dia. No dia seguinte ela me veio pedir  desculpas. Deu-me cinco florins e suplicou que me calasse. Era tarde demais.
- E você lhe disse isso?  - Não.  - E aceitou os cinco florins?  - Aceitei.  Desde então, esperara. Porque sabia que ele sabia!  Devia se admirar por não acontecer
nada.
116
- E você lhe pediu dinheiro em outras ocasiões?  - No fim, por causa de Karl...  Confessava sem qualquer vergonha, com uma ponta  de humor. Sem dúvida, não entendia
que ninguém gosta  de remoer tais lembranças. 
- Então, quando voltei, na primeira noite, e fiz que  você subisse, com o chá, você sabia? 
- Compreendi tudo quando me acariciou...  Ficou um momento calado, depois, enfurecendo-se:  - Saia! Depressa... Saia! - gritou.  No espelho, viu que ela se retirava,
dando de ombros, e foi fechar a porta. Depois, num movimento seco,  arrancou a toalha, fazendo cair sobre o linóleo as xícaras  e pratos, que se quebraram. Por fim,
lançou ao chão um  vaso que ornava a prateleira da chaminé e cuja orelha fora colada uma vez, depois que uma empregada, muito  anterior a Neel, a tinha quebrado.
Era sempre o  mesmo  mal,  a mesma angústia:  humilhavam-no! Fora humilhado por Van Malderen!  Humilhado por Anton Groven, que devia, àquela hora,  contar a história
à mulher, durante o almoço. Humilhado por Neel... 
E Alice, que tivera de dar dinheiro à moça. Esperando que, assim, ele não viesse a saber... 
Uma luz se fez no seu espírito e quase gritou de raiva. Não era Alice Kuperus quem tomava conta do dinheiro da casa, mas ele. Assim, para dar cinco florins a Neel,
ou a mulher falseara as contas ou tivera de pedi-los a  Schutter. 
Era o mais provável. Contara em lágrimas a história  da empregada. E Schutter a tranqüilizara, dando-lhe o  dinheiro... 
Queria quebrar mais alguma coisa, mas não adiantava nada. Sentia-se mal. Sufocava. Não sabia onde se  meter nem o que fazer. A angústia crescia. Era terrível. E
o espasmo foi tal que abriu a porta gritando: 
- Neel!  Ela veio, meio preguiçosa, perguntou: 
117 
- O que é?  E ele, arquejante, com o fôlego curto:  - Telefone para o Dr. De Greef! Que venha imediatamente. 
Sentia-se fraco. Os espasmos apertavam seu coração. Era como se o espremessem como uma esponja. 
Ouviu Neel subir, manejar o aparelho, falar com a  empregada do médico. Viu-a descer. 
- Vem já. O senhor precisa de alguma coisa?  - Deixe-me sozinho.  - Seria melhor que se acalmasse, não pensasse mais  nisso. O que está feito já não está por fazer...
- Cale-se!  - O que impede o senhor de viajar tranqüilamente?  - Cale-se, vamos.  Não podia mais ver a cara dela.  - Vá, deixe-me...  Estava morrendo, talvez, e
a música, que parara um  instante, recomeçava. Conhecia todas as notas, todos os  acordes. Antecipava-os... 
E foi abrir a porta para estar seguro de ouvir a campainha tocada pelo Dr. De Greef.
118
Capítulo 8
ESTENDEU a mão para o comutador e acendeu a luz uma vez mais. O relógio, na mesa de cabeceira, marcava  onze e meia. Pela quinta ou sexta vez tomou um copo  d'água,
depois ficou a escutar de mau humor as gotas
de  chuva que crepitavam sobre o telhado do anexo.
Fazia muito calor no quarto, e Kuperus sentia-se  afogueado. Quando se deitava sobre o lado esquerdo  sentia mal-estar no peito. Mas sabia agora que não era  nada
grave.
De Greef lhe dissera isso, e era o melhor especialista,  com nome até em Gróningen e Amsterdam. Por outro lado, agira com perversidade. Já ao entrar, achara um jeito
de não apertar a mão de Kuperus.
- É para o senhor mesmo? - perguntara, depositando a maleta e tirando as luvas.
Um homenzinho magro e glacial, de cabelos grisalhos, traços finos, afilados mesmo, e pele branquicenta.
- Dispa-se.  Certamente pensava menos na possível doença do  seu confrade do que em outra coisa. Quando, para trazer  uma toalha, Neel entrou no quarto, De Greef
a acompanhara com o olhar. Sem dúvida, ouvira falar da empregada também.
- Diz que tem uma sensação de asfixia?  - A palavra não serve. É mais um espasmo...  - Respire...
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Kuperus era muito mais alto e mais forte do que o  especialista. A cabeça de De Greef chegava quando muito à altura do seu peito nu. Durante um quarto de hora o
cardiologista auscultou o colega, fazendo apenas umas  poucas perguntas breves, e nada deixando adivinhar dos  seus pensamentos. 
Por fim, chamou Neel de novo, pediu-lhe água para  lavar as mãos, depois acertou os punhos da camisa. 
- E então? - perguntou Kuperus, já impaciente.  - O senhor tem sobretudo medo!  De Greef dizia isso com desprezo, e numa voz tão  fria quanto o seu aspecto. 
- A não ser que esteja mais doente do que o senhor, uma pessoa não deve incomodar um especialista  como eu, que tem mais o que fazer. 
- Não tenho uma angina?  - Nem sombra!  - E esses espasmos?  O outro levantou os ombros.  - Escute. O médico não tem conselhos a lhe dar.  Como homem lhe dou um
só, o simples conselho de ir  embora o mais depressa possível. Leve a empregada se  ela lhe é indispensável. 
A porta acabava de se fechar, e já o piano recomeçava, na casa ao lado. Então, Kuperus encolerizou-se. Chamou Neel e disse: 
- Vá dizer aos vizinhos que parem com esse maldito piano. Explique que há um doente. Entendeu? 
A empregada entendia, mas abanava a cabeça.  - O que espera?  - Não é possível.  - O quê? Você se recusa?  - O senhor bem sabe que não se pode fazer isso...  Ele
perdera o controle e se enfurecia mais facilmente  agora que sabia não ter angina e, portanto, nenhum acidente a temer. 
Resmungando e gesticulando, foi até a cozinha, onde Beetje se ocupava em lavar a louça. 
120 
- Venha cá, você. Enxugue as mãos e diga na casa  ao lado que o Dr. Kuperus está doente e não quer música  hoje... 
A menina olhava para Neel a fim de saber o que fazer. Neel lhe fazia sinais negativos. 
- Não posso... - balbuciou ela, então.  -  O quê?!  - Não posso.  Foi uma cena odiosa, terrível. Ele começou por sacudir a empregadinha, que se pusera a chorar.
Para que  se calasse, Kuperus deu-lhe vários tabefes no rosto. Depois lançou a Neel todos os insultos possíveis e mesmo algumas ameaças pueris. 
Enfim, arquejante, fechou-se na sala de visitas, em  cujo aparador encontrou uma garrafa de genebra, que se  pôs a beber, sozinho, resmungando à meia-voz. 
Não jantou. Também não respondeu quando Neel  bateu à porta para pôr a mesa. Foi, depois, para o consultório e, em seguida, para o quarto, onde começou a  fazer
as malas. 
Estava no fim agora. Os rumores da cidade se tinham calado, e os da casa também. Só ficou a chuva, que  se obstinava em bater no zinco e nas vidraças, e o radiador
soltava vaga após vaga de calor. 
Kuperus meteu-se no seu robe, abriu a porta, subiu a  escada. No andar de cima ficava a mansarda. Ele não fazia barulho. Era como se tivesse medo de si próprio.
A  porta não estava fechada a chave e ele a abriu. Ouviu-se  um roçar de tecido, o movimento de alguém que acorda.  Adivinhou os olhos abertos de Neel, acendeu a
luz. 
Ela o encarava sem espanto, sem medo também.  Perguntou com voz calma: 
- O que se passa?  Ela também sentia calor. Toda a casa estava superaquecida. A cama vizinha estava vazia. 
- Onde está Beetje?  - Foi embora.  - Como embora? 
121 
- Voltou para a casa dos pais.  - Só porque bati nela?  Arrancada ao sono, Neel mostrava uma pele luzidia,  pálpebras pesadas. 
- Ela já queria ir embora ontem.  - Por quê?  Ela suspirou. Era como se dissesse:  "O senhor sabe o porquê tão bem quanto eu!"  - Desça! - disse Kuperus, sem encará-la.
- O senhor faz questão?  - Estou dizendo que desça!  Ela sentiu que a cena da tarde poderia recomeçar e  tirou uma perna do leito, depois a outra, calçou os chinelos,
enfiou um casaco por cima da camisola cor-de-rosa. 
- Já vou...  Arrastava os pés. Estava ainda entorpecida. No  quarto dele, observou: 
- Está quente demais. É preciso entreabrir a janela. 
Ela mesma o fez. Em seguida esperou, de pé junto  da lareira. Kuperus, que fechara outra vez a porta, não  sabia o que fazer nem o que dizer. Nem mesmo sabia ao
certo por que fora buscá-la. 
- Machuquei você? - perguntou, de novo sem encarar a moça. 
- Ah, comigo isso não tem importância.  - E Beetje, acha que ela vai falar?  - Sem dúvida.  - Não diz outras coisas de mim?  - Ela acha o senhor maluco.  - Escute,
Neel...  - Estou escutando.  - Preste atenção ao que vamos fazer: esta noite  mesmo, nós dois fechamos as malas e amanhã de manhã  apanhamos o primeiro trem para
Paris. 
- O senhor apanha o primeiro trem, se quiser...  - E você?  - Não pretendo sair daqui. 
122 
- Recusa viver comigo? Responda! Recusa?  - Recuso sair da Holanda.  - E se eu lhe disser que vamos viver na Côte  d'Azur, em Nice, por exemplo, e que você não terá
nada  que fazer o dia inteiro? 
- Para mim é indiferente.  Jamais a vira tão calma, tão segura de si. Repelia  sua proposta com total desinteresse. Depois, foi fechar a  janela, de onde vinha agora
um vento gélido. 
- Estou pronta a ajudá-lo a fazer as malas.  - Escute, Neel! Falo sério. Se você vem, caso com  você, entende? 
E ela, tão distante quanto antes:  - Não quero.  - Recusa ser minha mulher?  - Sim.  - Por quê?  - Porque essa idéia não me agrada.  - E se fico em Sneek?  - Continuo
a tomar conta da casa para o senhor, já  que comecei. 
Não ousando mais olhar para ela, pôs-se a andar de  um lado para o outro. 
- Venha dormir.  - Aqui?  - Sim, aqui.  Pelo espelho ele a observava, via-a escorregar para  dentro das cobertas depois de deixar cair o casaco no  chão. 
- E o senhor não se deita?  - Ainda não.  - Devia tomar um remédio para dormir.  Isso jamais! Não tomaria remédio nenhum! Não  queria dormir! Queria pensar. E fazia-o
febrilmente. Repassava na cabeça todos os acontecimentos do dia, via  Anton Groven com sua polidez distante, o doutorzinho  com seu desprezo glacial, revia Beetje
tentando se esquivar
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aos golpes, e Neel que recusava simplesmente se casar  com ele.
- Não vou! - anunciou, de súbito, com energia.  Esperava protestos da empregada, um sobressalto  de espanto. Nada ouvindo, voltou-se para o leito e viu-a  já meio
adormecida, com as pálpebras prestes a se fecharem. 
- Você compreende, Neel? Não vou mais. Não tenho medo deles. Não podem nada contra mim. 
- O senhor deve dormir.  - Você verá amanhã o golpe que reservo para eles.  Ah! Juntaram-se todos para me esmagar... 
Ela fechara os olhos. Vendo-a assim, de súbito, ele  se lembrou da primeira noite, sentiu o sangue subir à cabeça. 
- Você me ouve, Neel?  E sempre a chuva, lá fora, o silêncio na casa às escuras. 
Só um cantinho vivia, o canto do leito onde respirava o corpo da empregada. 
De novo adormecida, ela rosnou como um cãozinho  que alguém incomoda. 
Tanto pior para eles. Tanto pior para todos. Escrevera, com sua letra mais firme: 
"Caro amigo,  Preciso vê-lo o mais depressa possível em minha casa para tratar de assuntos da maior importância. 
Espero-o.  Hans Kuperus." 
Neel fora portadora da carta a Van Malderen, em  seu escritório de advogado. Acabava de voltar. Kuperus  esperava-a no corredor. 
- O que ele disse? 
124 
- Perguntou se o senhor viajaria.  - E o que você respondeu?  - Que não sabia.  - Ele vem?  - Não disse nada...  Em caminho, a moça comprara costeletas, um pé de
alface. Ganhou a cozinha, de onde logo vieram os ruídos  familiares da casa. Quanto a Kuperus, desceu à adega  para escolher uma garrafa de borgonha que pôs no recanto
habitual, preparando a bandeja com os copos e os  biscoitos. 
O piano tocava sempre, mas em vez de irritar o  médico a música contribuía para adensar a atmosfera para dar maior substância ao drama. 
Não partiria, estava decidido. Não só ficaria em  Sneek como faria algo de extraordinário - inverteria a  situação. 
Viu passar Van Malderen pela janela e gritou a Neel  que fosse abrir no momento exato em que a campainha  soava. 
Permaneceu na sala enquanto a empregada ajudava  a visita a tirar o chapéu e o sobretudo. 
- Aqui estou - disse Van Malderen. - O senhor  precisa de mim? 
De começo, já não dizia você. O que era significativo. 
- Sim, preciso de você ou do senhor, como preferir. Queira sentar-se. 
E Kuperus encheu dois copos de vinho, tomou um  gole do seu, enquanto armava a primeira sentença. 
- À sua saúde!  - Obrigado. Mas de manhã, não.  - Tanto pior. É, aliás, ao advogado que me dirijo.  Desejo, com efeito, mover um processo. 
Contava com o estupor, com uma reação violenta.  Mas Van Malderen contentou-se em franzir a testa.
- Acusaram-me de ser um assassino. Amigos meus  deixaram perceber que acreditavam nisso, aconselhando-me
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a abandonar o país. Não vejo senão um modo de lavar a minha honra: abrir um processo de difamação.
- Contra quem?  - Não sei ainda. Cabe ao advogado me aconselhar.  O  juiz de instrução foi o primeiro a me difamar,  convocando-me a seu escritório e dizendo-me
coisas que  constam de um processo verbal que fará fé. 
Van Malderen levantou os ombros.  - E há outros... Há sua mulher... Há o meu confrade De Greef, e este recentemente: ontem mesmo, para  ser exato... 
- Desculpe-me     suspirou Von Malderen -, é  inútil continuar, eu não poderia aceitar essa causa... 
- Recusa?  - Recuso.  - Como advogado, recusa defender um cliente?  - Como advogado e como companheiro. Como  homem, principalmente. Em primeiro lugar, o caso não
tem base, uma vez que não houve difamação pública. Em  segundo lugar,  a ação me parece ao  mesmo  tempo  ridícula e odiosa. Em terceiro... 
-  Em terceiro...  - Há causas que prefiro não defender. É estrito direito meu. Agora, se isso lhe dá prazer, chame um por  um todos os advogados que quiser. Duvido
que algum  aceite. 
E se dirigiu para a porta.  - Franz! - exclamou Kuperus.  - Sim?  - É a sua última palavra?  - Sim, a última. Desejaria, no futuro, não ter de  me dirigir a você
sobre este ou qualquer outro assunto. 
Sem esperar por Neel, Van Malderen abriu a porta,  enfiou o sobretudo e saiu para a rua. 
O piano não cessara e Kuperus foi encostar-se à lareira, observando os próprios traços no espelho. Estava  com o rosto mais inchado. Os olhos pareceram-lhe fatigados,
o lábio encrespado num ricto ruim. Sentia uma 
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lassidão de todo o ser e, ao mesmo tempo, uma grande  ternura por si próprio. 
Todo mundo lhe era hostil! Toda a cidade o atormentava. Queriam obrigá-lo a sair custasse o que custasse e eis que ele se agarrava à sua rua, à sua casa, a todas
as coisas que o cercavam, mesmo àqueles etéreos fragmentos de música. 
Ao lado do seu cotovelo estava o retrato da mulher,  o que fora feito em Paris. Kuperus examinou-o detidamente, sentindo tanta pena dela quanto de si. 
- Preparei uma costeleta para o senhor - anunciou Neel. 
Ele se virou. Ela também parecia fatigada. Suas  feições traíam o fastio. 
Teve coragem de perguntar:  - O que foi que ele disse?  O médico teve um gesto desolado, suspirou:  - Estão todos combinados contra mim!  - O senhor vê...  - O que
é que eu vejo?  - Que deve ir embora.  Ela o serviu, esperou algum tempo.  - Tenho refletido. Sinto que o senhor vai fazer tolices. Se insiste mesmo, estou disposta
a ir, digamos, até  Bruxelas, por exemplo. Parece que por lá entendem o holandês. Fico algumas semanas, até que o senhor se sinta  mais à vontade, depois volto...
Não era amor, era piedade. Fazia a proposta resignadamente. 
- Poderíamos partir pelo noturno. Não leva tempo  fazer as malas... 
- Não vou mais!  - Faz mal.  - Por quê?  - Porque nesse caso vão obrigá-lo a ir.  Ele se enfureceu de novo.  - Ninguém pode me obrigar, entende? Não têm  provas!
Mesmo se você dissesse que me escreveu uma 
127 
carta, não teria a menor significação. Quem me viu,  hein? Que me mostrem um único indício material! 
Ele foi olhar pela janela. Via-se um canto do cais,  duas árvores ainda sem folhas, o canal, as casas em frente. Alguém passava empurrando um carrinho de mão. Sinos
tocavam em algum lugar, e chovia tanto quanto antes. 
Sua respiração embaçava a vidraça.  Sentia nos  lábios o desenho da cortina de crochê. 
Uma cortina que Alice Kuperus fizera! E o cachepô  de cobre martelado, no peitoril da janela, fora comprado  por eles em Bruges, onde passaram a lua-de-mel. 
Neel regressou à cozinha, deixando a costeleta em  cima da mesa. Ele, voltando-se, descobriu a sala de visitas, a sala de jantar, os objetos em seus lugares, o piano,
a almofada no banquinho giratório, as partituras na sua  papeleira própria, e até o novelo de lã azul-celeste. 
Era um  azul  de tal  modo  irreal  que Kuperus  enterneceu-se e pegou o novelo na mão para melhor  apreciá-lo. A matéria era quase impalpável. 
Como se podia criar matéria assim celeste e tom assim tão puro? 
As agulhas ainda estavam enfiadas na lã, e deles  pendia um pedaço de tricô já começado. Devia ser um casaquinho leve, para vestir de manhã, em casa. 
Deixou cair o novelo, apanhou-o do chão, foi botá-'  lo em cima da mesa, desejoso de não mais o ver.  Também não queria ver o retrato. Afundou numa poltrona, a forrada
em tapeçaria, e pensou no jornal que lia  toda noite naquele lugar, à luz rosada que o abajur filtrava. 
Queriam que fosse embora de vez! O que faria em  outro lugar, em Bruxelas, em Paris ou mesmo na Côte  d'Azur? Não seria mais nada, um homem desenraizado,  como Karl
Vorberg... Sequer teria Neel a seu lado quando dormisse. Não teria mais nada. 
- Neel - chamou. 
128 
Estava grave, emocionado. Ela sentiu isso ao primeiro olhar. Ela o viu instalar-se no seu lugar habitual,  em face da costeleta que esfriara. 
- Sente-se junto a mim, por favor. Faça o que lhe  peço, Neel. Vamos jantar os dois, amavelmente. E não  me olhe assim. 
- Tenho uma panela no fogo...  Voltou logo, sentou-se.  - Não vê? Não estamos bem, assim, os dois? O que  podem nos fazer? Diga! Nada! Que ladrem, se isso lhes 
dá prazer. Eu tenho dinheiro. Posso muito bem passar  sem clientes. 
- O senhor não come?  - Sim, vou comer. Estou calmo agora. Você é que  não come. 
- Não tenho fome.  - É preciso comer, assim mesmo. Senão ficarei  zangado. Mas você não tem medo de mim, não é? 
- Não.  - Então, não me deixará. Viveremos aqui, os dois.  Você fará tudo o que quiser. Só exijo uma promessa.  Neel: jure que não me abandonará. Jure pela cabeça
de  sua mãe! 
Ela olhou para o outro lado, constrangida.  - Não quer jurar? Não quer ficar comigo?  Ela teve medo. Ele mudara de voz. Talvez tivesse se  lembrado do antigo projeto,
concebido um dia sem muita convicção, como um desafio a si mesmo, de matar  Neel se ela o deixasse. Em todo caso, olhava-a com olhos  estranhos, como que vazios
de qualquer pensamento. 
- O senhor sabe que fico.  -  Então, jure!  Ele insistia. Havia que obter o juramento.  - Eu juro.  - Pela cabeça de sua mãe.  E ele tremia à espera.  - Pela...
pela cabeça de minha mãe. 
129 
O rosto de Kuperus se iluminou e ele manifestou  uma alegria quase infantil. 
- Vê?  -  O quê?  - Que tudo se arranja! Bem sabia que tudo acabaria por se arranjar! Ficaremos aqui, os dois, em nossa casa. Jantamos juntos, dormimos juntos. Quero
que você  beba vinho também. 
- Não gosto de vinho.  - Não importa. É preciso que beba...  E encheu um grande copo, que ela não pôde recusar  quando Kuperus o ofereceu. 
- Tomaremos uma garrafa por dia. De noite, você  virá fazer crochê ou tricô enquanto leio o jornal. 
- Sim - disse ela, mecanicamente. Não podia engolir o bocado que mastigava há algum tempo. 
Ele se levantou, foi buscar o novelo de lã azulceleste. 
- Você vai terminar este trabalho. É meu desejo.  Hoje mesmo, você bota mãos à obra... 
Ela não ousava dizer mais nada. Tinha a respiração  entrecortada e o ronco da estufa era audível. 
- Você compreende, Neel? Só que eles não deixarão que Mia venha mais aqui em casa. Mas podemos  ouvi-la assim mesmo. Nós lhe mandaremos chocolate.  Deve haver ainda
algum no  aparador,  daquele que  fazíamos vir especialmente para ela. Sabe onde sua patroa costumava comprá-lo? 
Ela fez que sim com a cabeça.  - Neel!  Ele evitava ver-se ao espelho, voltava para o seu lugar na mesa, servia-se maquinalmente um cálice de vinho. 
- Quero um charuto...  Ela teve de passar por detrás dele para apanhar uma  das caixas, dispostas no canto da prateleira da lareira.  Quando se voltou, percebeu
o dorso curvado, a cabeça 
130 
de Kuperus enfiada nos braços cruzados em cima da mesa. 
E os ombros se levantavam, aos repelões, enquanto  rebentavam os soluços que deviam dilacerar sua garganta. 
- Senhor! - exclamou a moça, aterrada. - Senhor! Acalme-se! 
Mas ele continuava a chorar, sem poder recobrar o  fôlego, sem poder parar. 
- Senhor, suplico!  Ela não sabia o que fazer. Rodava em torno dele como uma barata tonta. Aquela dor lhe dava medo, parecia  que nada seria capaz de represá-la.
- Eu lhe suplico!  Agora ela chorava também, sem razão. Era a primeira vez que via chorar um homem e tinha vergonha. 
Aproximou-se dele e teve de fazer um esforço para  não fugir quando, sem descobrir o rosto, ele mexeu com  a mão para pegar na sua, sem que os soluços diminuíssem.
Ela ouviu bater a caixa do correio. Percebeu o som  de uma carta que caía dentro. 
Era de um meninozinho, que escrevera num postal  uma única palavra: Assassino. 
Kuperus, com o rosto sempre escondido, tateava à  procura do lenço no bolso. 
131
Capítulo 9
ATENÇÃO! Aí vem o assassino...
E logo os moleques se dispersavam, abandonando a  calçada, afastando-se do vulto de Kuperus que passava,  sempre pausadamente, sempre na mesma direção, cumprindo
todo o dia o mesmo périplo.
Ao lado da porta da sua casa, liam-se ainda, numa  placa de cobre, as palavras:
Doutor Hans Kuperus  Consultas todos os dias, das 7 às 11 horas
Mas ninguém vinha mais. Agora, para passar o tempo, ele andava pelas ruas, de mãos nos bolsos. Estabelecera, pouco a pouco, um itinerário de tal modo invariável
que as pessoas, à sua passagem, diziam por vezes:
- Devem ser dez horas. O doutor acaba de passar.  Seguia primeiro pelo canal abandonado, atravessando a terceira ponte de pedra e chegando ao grande canal,  onde
aportam de todas as direções os barcos carregados  de mercadorias.
Não era longe a casa dos Van Malderen, e ele não  deixava nunca de levantar os olhos para a sacada onde  sempre estava Jane, debruçada sobre algum trabalho de  agulha.
Às onze horas, do lado da catedral, era raro que não  encontrasse um casamento ou um enterro, e às onze e  meia cruzava com bandos de meninos que saíam das escolas.
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Via tudo e tudo observava. Poderia dizer em que dia  fora pintado tal lampião de gás ou que caixa de correio  recebera uma nova camada de vermelhão. Cruzava com
carteiros e leiteiros na sua faina diária. Nos dias de feira,  contava as vacas e ouvia os fazendeiros discutirem os  preços. 
Estava perto da Prefeitura quando um pintor caiu  do andaime. Precipitou-se com os outros transeuntes.  Depois, timidamente, insinuou-se até a primeira fila e  debruçou-se
sobre a vítima. 
De garganta apertada, palpou os membros, o crânio  do ferido. Ouviu que batiam à porta de um confrade. 
Este viera e, com um gesto, afastara-o.  Estava tão habituado àquilo! Já não lhe fazia mal.  Em julho, quando as janelas das casas ficavam abertas, a pequena Mia
dissera, vendo-o passar: 
- Tio Kuperus vem lá!  E Kuperus ouvira distintamente quando o pai advertira: 
- Eu proíbo você de dizer tio Kuperus. Aliás, ele  não é seu tio. 
E assim passavam os dias. Às cinco horas, invariavelmente, empurrava a porta do Onder de Linden. Ninguém o cumprimentava. Há muito seu nome fora riscado  do quadro
dos membros do conselho. Os outros fingiam  não perceber sua presença. 
Jef se aproximava do balcão, punha um copo de cerveja e um pequeno copo de genebra numa bandeja;  servia-os ao médico, sem uma palavra, sem um olhar.  Kuperus punha
o dinheiro em cima da mesa e o garçom  só pegava depois que ele saía. 
Tanto pior! Ficava assim mesmo, vendo jogarem bilhar, contemplando seus antigos amigos, ouvindo as conversas. Tinha seu lugar, sempre o mesmo. E demorava-se  invariavelmente
até a mesma hora. 
O que pensava só a ele próprio dizia respeito. Ninguém podia sabê-lo, nem mesmo Neel, que, no entanto,  uma noite, vira-o chorar. 
133 
Ela escrevera a Karl, que continuava em Amsterdam: 
"Creio que ele está ficando louco. Em todo caso,  não deve viver muito tempo mais. Na semana passada,  chamou um tabelião e fez testamento. Sou herdeira universal.
Ele me contou que tinha ainda trinta mil florins  no banco, sem contar a casa, que lhe pertence." 
Às sete em ponto, a chave era posta na fechadura.  Kuperus reentrava na atmosfera da casa, mais calma que  a água do velho canal. Agora a passagem de um ser humano
jamais perturbava aquele ar. As portas rangiam ao  abrir-se como se houvessem permanecido fechadas por  longos meses. 
Ele pendurava seu chapéu no cabide, não se esquecendo nunca de lançar um olhar ao espelho. Parecia satisfeito com seu rosto rígido, onde não se podia ler nenhum
sentimento. 
A mesa estava posta. Neel trazia as travessas e  sentava-se em frente do patrão. 
- Van Malderen fez uma série de cento e quarenta e  dois pontos - anunciava Kuperus, como se tivesse jogado com ele. - Vai passar oito dias em Ostende com a  mulher.
Ela lhe respondia com prudência. Sabia que por  qualquer coisa se encolerizava. Porque o que ele queria  era impossível de explicar. 
Quando ficavam assim, os dois, à noite, na sala de  jantar, Neel não devia ser mais Neel. Ele mandara reformar, nas medidas dela, os vestidos de sua mulher, e Neel
os usava. Pouco a pouco Kuperus conseguira até mudar  o penteado dela. 
Em alguns minutos, ela devia tirar a mesa, voltar,  sentar-se debaixo da lâmpada, retomar o trabalho de  agulha. 
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Terminara assim o casaquinho de tricô azul-celeste e  no dia em que se recusara a vesti-lo, ele fizera tal escarcéu que os vizinhos todos ouviram os ecos. 
Kuperus lia o jornal, de charuto na boca, e com os  pés metidos em chinelos de lã. De tempos em tempos,  sem virar a cabeça, murmurava: 
- Um tufão fez quinhentos mortos nas Filipinas...  Ou:  - Trinta e oito mineiros ficaram soterrados nos Estados Unidos... 
O que era preciso evitar, ela não saberia dizer exatamente. Variava conforme o dia: por vezes, uma palavra;  por vezes, uma atitude e, mesmo, um silêncio. 
Então, e de chofre, os traços de Kuperus endureciam. Ele deixava cair o jornal, fixava um ponto qualquer do espaço como um homem capaz de ver coisas que  escapam
ao comum dos mortais. 
- Meio florim! - resmungava.  Ela tinha de ficar, pois aquilo precipitava a crise.  Não devia protestar mas esperar em silêncio, de cabeça  baixa. 
Kuperus se levantava e vinha encará-la de perto. Começava brincando, mas a brincadeira logo se tornava  ameaçadora. 
- Hein, Neel? Meio florim! Porque tudo começou  por aí, não é verdade? Se não tivesse havido esse erro de  meio florim nas suas contas, minha mulher não teria ralhado
com você. E se não tivesse ralhado com você, você  não teria de se vingar, enviando-me uma carta anônima... 
Caminhava para lá e para cá. As mesmas palavras  eram repetidas, com pequenas variantes, mais duras nos  dias em que ele bebia uma garrafa inteira de borgonha. 
- E ela estaria aqui, em seu lugar. E você, você estaria no seu verdadeiro lugar, que é na cozinha. 
Cada vez mais os olhos dele pareciam inumanos.  Não era de crer que enxergassem o mesmo que os outros. 
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Olhava as coisas, como se, para ele, fossem transparentes ou dotadas de vida.
A fotografia da mulher estava sempre no lugar. Kuperus não passava uma noite sem contemplá-la.
- Compreende, agora? Tudo isso por alguns centavos! Um erro de meio florim nas contas das compras!
Não precisava de respostas para aguçar a cólera. Ela  vinha por si mesma num crescendo. Talvez se alimentasse do grande número de lembranças que lhe enchiam a  mente.
- Não posso mais ver você! Vá embora! Vá dormir! - gritava, por fim, a Neel, que se levantava docilmente.
Ia para a sua mansarda. Deixava a porta aberta e  podia ouvir que ele andava ainda por algum tempo, falando sozinho. Ela se despia, mas conservava o casaco à  mão,
pois sabia o que viria a seguir.
Kuperus ia para o quarto, deitava-se. Eram dez minutos de insônia. Ele então abria a porta e chamava:
- Neel!
Não podia dormir sozinho. Quando ela chegava, ele  fingia haver esquecido a cólera de momentos atrás.
- Deite... Mas me dê primeiro um copo d'água e  meu remédio.
Pois agora tomava um remédio para dormir. Durante um bom quarto de hora ainda, ela o ouvia gemer, remoendo coisas, de olhos abertos, no escuro.
Neel fazia as compras, em outro bairro, nos confins  da   cidade,  porque  os  comerciantes  começavam  a  responsabilizá-la também pelas culpas do doutor. Alguns
diziam que eram amantes há anos e que tinham aproveitado a oportunidade para se livrarem da Sra. Kuperus.
Lendas de toda espécie criavam-se em torno dele,  variando segundo o meio. Para as crianças, Kuperus era  um ser tão sobrenatural como o Lobisomem ou Satanás,  e
sentiam um frio na espinha quando ele passava.
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Em que pensaria a menina do piano quando ouvia,  durante o estudo, o antigo tio Kuperus andando de um  lado para o outro atrás da parede?
- Sobretudo não fale com ele!  - Que poderia fazer comigo?  - Ele mataria você.  Kuperus sabia disso, sentia-o. Ia assim mesmo pela  rua, com seu passo igual. Acontecia-lhe
ver no Onder de  Linden  jogadores, principalmente jovens, se perturbarem com o seu olhar e errarem uma tacada.
Quando pequeno, costumava ver sempre, ao acordar, uma flor do papel de parede, que lhe parecia - e só  a ele, sem dúvida - a cabeça de Vercingetórix. Mas não  era
apenas uma cabeça inerte. Conforme o dia, ela sorria  ou se fazia ameaçadora. Por fim, descobrira o truque.  Aquilo dependia, com efeito, do ângulo sob o qual a
olhasse, de modo que conseguira, dali por diante, e a seu  bel-prazer, ver Vercingetórix furioso ou de bom humor.
Pois bem! Esse mundo era um pouco como aquilo.  As pessoas o viam passar. Para eles, era um homem  roído por um segredo ou por um remorso mais amargo  ainda.
Ora, isso não era verdade! A cidade, tal como os outros a conheciam, deixara de existir para ele! Recriara  Sneek, como a cabeça de Vercingetórix, na qual sua mãe
não via senão uma flor pintada, em tudo igual às demais.
Ele tinha sua própria geografia, todo um mundo de  que era o único senhor. Como a rua da escola. Habitava  em frente, quando criança. Tinha um arco de madeira leve
e flechas. Desenhara um alvo na parede da escola. Para apagá-lo, o porteiro quebrara o canto de um tijolo, e o  buraco ainda podia ser visto.
E uma vez que o tempo não tinha importância, na  esquina daquela mesma rua ele saltava trinta anos: um  dia, recém-casados, foram visitar ali uma amiga que vinha
de dar à luz, e voltaram para casa cheios de esperança.
Mais adiante...
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Mas não precisava ir mais longe: seu universo o seguia por toda parte, com seu lancinante mistério que, à  noite, acabava sempre por encolerizá-lo.
O mistério dos cinqüenta centavos, do meio florim  de Neel! Como teria sido diferente a vida sem aquele  meio florim! Estaria, ainda, a receber pacientes, a visitar
seus doentes em casa, a levantar no meio da noite para  fazer partos.
- O que é? - gritaria da janela, antes de se decidir  a descer.
Se a coisa não lhe parecia grave ou urgente, resmungava:
- Vou amanhã cedo...  Ou então:  - Ponham compressas mornas até que eu a veja!  Meio florim! Mas havia outra coisa também, e ele o  sabia. Sabia o que toda aquela
gente que via na rua, os  Van Malderen, o Juiz, o Dr. De Greef, e o resto nem  pressentiam.
Via-os ir e vir e não podia impedir uma certa ironia  no olhar. Pois se reconhecia nos outros, reconhecia neles  o homem que fora antes dos acontecimentos.
- Vou a Paris amanhã - anunciava, por exemplo,  Pijpekamp aos seus amigos do Onder de Linden.
Então os olhos de Kuperus faiscavam. Porque Pijpekamp ia a Paris todos se perturbavam, ficavam desgostosos da própria vida, da sua cidade, do seu bilhar cotidiano!
Quando assistiam a um filme de amor, no cinema do  lado, ficavam fartos da mulher que tinham, sonhavam  com  uma estrela...
Todos, por muitos que fossem, todos sem exceção, o  vendedor de bicicletas, o marinheiro, a mulher da mercearia, sonhavam sempre com outra coisa e queriam escapar
à realidade.
Como ele mesmo, antes! Como ele que, à força de  querer escapar, matara, e matara, até, duas pessoas.
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Tudo começara com um meio florim. A história do  meio florim misturava-se à do rancor de uma empregada  doméstica. O rancor da empregada misturava-se à tempestade
interior de um homem de meia-idade, farto do  ramerrão da vida.
Era isso. E ninguém sabia. Ele era o único a conhecer esse círculo e a saber por que, todo dia, no mesmo minuto, passava pelo mesmo lugar.
Era porque ele se evadira! E voltara, o mais depressa possível, aterrorizado pelo vazio. Apegara-se de novo  às paredes, às casas, aos hábitos antigos, às caixas
de  charutos na prateleira da lareira, à garrafa de borgonha  que amornava perto da estufa, à poltrona forrada em tapeçaria, à feira em data fixa, e até ao ruído
familiar das  bolas no bilhar do Onder de Linden.
Movia-se em círculo, sem cansaço, sem náusea.  Voltava para casa. Era a mesma fechadura, a mesma chave, há muitos anos, o mesmo estalido, a mesma  lufada de limpeza
que recebia no rosto.
A mesa estava posta. Neel trazia a comida...  Já não tinha desejo dela!  Não a tocava mais.  Guardava-a ao seu lado como uma garantia.
- Recebi uma carta de Karl. Ele perdeu nas corridas e pede algum dinheiro.
Que importância tinha isso? Mandaria o dinheiro.  Não sabia - porque, afinal de contas, havia coisas que  ele não sabia! - que Neel escrevera, depois do almoço,
do fundo da sua cozinha:
"Lancei na latrina seu pequeno pacotinho de veneno  em pó, porque me fez medo. Quero crer que farejariam a  verdade imediatamente. Aliás, é provável que isso não
dure muito tempo mais. Ele fica de hora para hora mais  estranho. Há noites em que pede que segure a mão dele  até que durma..."
Neel usava o vestido rosa de Alice Kuperus, que tivera de ser reformado. Havia costeletas de vitela para o  jantar.
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Kuperus perguntou:  - Trouxe o borgonha da adega?  - Sim. Restam apenas quinze garrafas.  Ele bebia. Haveria, então, cena essa noite, cena violenta, com toda aquela
história do meio florim, de ponta  a ponta.
Ela ainda tinha tempo de comer em paz, de costurar  por um quarto de hora. Talvez mais. Tivera o cuidado de  deixar um outro trabalho de agulha no quarto, para se ocupar enquanto esperava.
- Jane Van Malderen pegou uma gripe - anunciou  ele.
Ouvira-o há pouco do próprio Van Malderen, no  Onder de Linden.
Como prelúdio à cena, convinha lançar frases assim, sem importância, entrecortadas de pausas, do farfalhar do jornal, da leitura dos acidentes com os quais Kuperus
se comprazia:
- Um avião caiu no Mar do Norte, com sete passageiros...  Neel suspirava e esperava, paciente.

 

 

                                                                  Georges Simenon

 

 

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