Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ASSOBIO DA MORTE / Heinz G. Konsalik
O ASSOBIO DA MORTE / Heinz G. Konsalik

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ASSOBIO DA MORTE

 

A pequena cidade de Leeuwarden, na costa holandesa, está coberta pela camada da bruma que vem do mar e atravessa diques, cobre caminhos, casas, jardins e campos. As luzes das ruas já estão acesas, mas produzem apenas pequenos pontos luminosos que pouco a pouco são engolidos pela neblina.

Uma noite deprimente e um cenário perfeito para que um monstro sanguinário, que se oculta sob uma aparência simpática e sedutora, entre em ação conduzindo jovens belas e frágeis através do nevoeiro, atraídas pelo inebriante assobio de uma canção de amor, ignorando a verdadeira intenção escondida por trás daquela sinistra melodia.

O mestre da aventura e ação, Heinz G. Konsalik, leva a seus leitores mais uma vez uma dramática e surpreendente história de um assassino que desafiou e confundiu a polícia holandesa.

 

         Nevoeiro... nevoeiro... nevoeiro...

         Na cerração, a terra rosa da costa holandesa é uma imensa mancha leitosa que se perde no infinito. As árvores úmidas parecem dissolver-se nela. As grossas camadas da bruma que vem do mar atravessam os diques e cobrem ruas, casas, caminhos, jardins, canais e campos.

         Mesmo sobre os diques, não se pode ver o mar. Terndard, Holwerd, Ferwerd, St. Jakobi e Sexbierum, as pequenas aldeias de pescadores da costa da Frísia Ocidental, encontram-se ocultas pelos véus ondulantes da umidade.

         Gotas preguiçosas caem das poucas árvores. As luzes já estão acesas nos subúrbios da cidade de Leeuwarden. Seu brilho produz apenas um pequeno ponto claro, que a neblina torna a engolir em pouco tempo. O chão está úmido e escorregadio, como que coberto de cera.

         É uma noite deprimente.

         Ruth Kappel encosta-se num dos postes e olha para seu pequeno relógio redondo de pulso. Em seguida olha para a massa formada pela névoa e encolhe os ombros com frio.

         Um casaco de lã cinza-claro envolve seu corpo alto e delgado. Compridos cabelos louros escapam em ondas por baixo da boina basca cinzenta.

         Ele não virá, pensa desapontada. E foi tão simpático comigo... há quatro dias, no Astoria, um dos cinemas de Leeuwarden. Estava sentado ao seu lado e ofereceu-lhe chocolate.

         Depois da sessão ainda conversou um pouco com ela e, com timidez quase de adolescente, pediu para encontrá-la novamente.

         Agora lá está ela, encostada no poste, no lugar onde iriam encontrar-se. E a névoa destrói sua esperança de ter uma noite linda e feliz.

         Ruth Kappel anda um pouco de um lado para outro. Os saltos altos estalam na calçada. Mas é como se os ruídos se chocassem contra um muro de algodão: são devorados pela massa acinzentada.

         Talvez esteja no poste errado, pensa Ruth Kappel. Seus olhos procuram. Aqui... e ali... e mais adiante... São pontos claros... Outros postes... Muitos postes, para iluminar essa região tranquila à beira da cidade.

         Ruth está parada e um pouco curvada para a frente. Seus olhos perderam a expressão de desejo tranquilo que havia neles quando correu para o encontro... Saiu rápido do escritório. Não havia mais tempo e não queria deixar aquele homem simpático esperando.

         - Ei! - ela grita para a cerração. - Ei! Onde está você?

         Procura com certa ansiedade e de repente sente como se alguém a puxasse por uma das mãos... Um assobio distante penetra a névoa. É uma sedutora música de amor. Ruth recorda-se. "Se houver neblina, eu assobiarei", o jovem avisara. "Uma musiquinha de amor. Você conhece?" E assobiou para ela algumas notas. Ruth achou-a de uma ingenuidade comovente, mas muito íntima.

         Ruth Kappel espreita a neblina. Está no poste errado, ela sabe disso. E seguirá o assobio quando descobrir de que direção ele vem, atravessando o nevoeiro.

         Aí está ele outra vez... E não está longe. Sim, é a música de amor... Ele a procura...

         - Ei! - ela volta a gritar. - Ei, estou indo, estou aqui!

         Ela penetra no nevoeiro, na direção do assobio.

         Mas que estranho! Quanto mais caminha, mais se distancia a canção de amor. É como se o homem estivesse se afastando dela, como se a atraísse cada vez mais para dentro da cerração, em direção à costa.

         Ruth Kappel detém-se, já com um pouco de medo.

         - Onde está você? - grita em direção à névoa. Olha em volta... Solidão, noite, árvores gotejantes. Atrás dela, à distância, o brilho fraco de um único poste. Ela quer voltar para a luz, mas o assobio continua a atrai-la. - Ei! grita mais uma vez. E tudo volta a ficar em silêncio. O assobio desaparece. Ruth Kappel leva as mãos à boca. Há uma ponta de medo nesse movimento... até mesmo de terror.

         Vou voltar, ela pensa num dado momento. Quero ir para casa. Para que esse assobio estúpido?

         Vira-se e dá alguns passos no caminho de volta. Então, de repente, solta um grito abafado. Surgindo por trás, uma mão forte segura seu pescoço, os dedos pressionam sua garganta num movimento rápido, e com incrível força. Ela quer soltar outro grito, debate-se, chuta para trás... Um riso contido penetra em seus ouvidos. Seus olhos expressam terror. Terror e medo da morte. Um objeto duro choca-se contra sua cabeça e a neblina à sua volta torna-se escura.

         Ruth sucumbe e perde a consciência.

         Em Leeuwarden, as pessoas saem apressadas de seus locais de trabalho e se dirigem para casa. Os cinemas começam a abrir as bilheterias. Nas casas, o jantar é preparado nos fogões. Nos subúrbios, ocultas pela névoa, outras casas também se enchem de vida. O guarda do dique percorre seu trajeto e avança até o mar para inspeccionar o muro erguido contra as ondas. Tem olhos apenas para os estragos nas paredes de pedra de seu dique. Vê somente os buracos e as cavidades, as feridas provocadas pelo mar em sua eterna luta pela existência.

         A cinquenta metros de distância há um homem que aguarda o momento de se movimentar. Ele espreita os passos do vigia, que se afasta lentamente. Então curva-se e apanha alguma coisa no chão.

         A névoa envolve-o quando ele desce em direção ao mar, que, infatigável, bate na praia rasa de areia...

 

         - Segure firme! - o pescador Peer van Hoest grita para seu ajudante, enquanto se curva sobre o costado do pequeno barco de pesca, as pernas apoiadas no cordame. Com as duas mãos agarra com força a rede de arrastão. - Segure firme! - grita mais uma vez, e acrescenta: - Levante devagar!

         O ajudante ofega. O suor desce pela testa e pela face, caindo na gola da roupa impermeável. As mãos agarram e apertam a borda da rede. O barco balança na fraca ressaca. O motor trabalha em marcha lenta sob o casco. Sente-se a vibração das tábuas do convés sob a sola dos sapatos.

         Estiveram pescando por três dias em mar aberto... no meio da "sopa grossa", como Peer van Hoest chama a cerração. Tiveram sorte: retornavam com carga completa e o mercado de Leeuwarden esperava por eles. Mas o que tinham agora na rede superava tudo o que haviam conseguido até então. Devia ser uma presa formidável, pois seguravam a rede com força, os dedos doendo de tanto puxar.

         - Com mais força! Com mais força! - grita van Hoest. - Não podemos perder essa rede!

         Puxam e prendem a borda da rede no costado. Uma pequena roldana fisga o cabo do reboque e range, enquanto van Hoest gira a manivela. A corda quase grita a cada giro... A rede sobe... devagar, pesada.

         - Pare! - o ajudante grita de repente. Está no costado e olha para a água com olhos arregalados. Seus lábios tremem. - Pare, Peer! - torna a gritar quando o pescador gira de novo a manivela da roldana. - Pare, por favor! Tem alguma coisa na rede... Meu Deus!

         Peer van Hoest prende a manivela para que ela não possa girar ao contrário e a rede não deslize de volta ao mar.

         Aproxima-se do ajudante.

         Fica mudo e pálido com o que vê.

         Há um corpo entre os peixes presos na malha fina. Um corpo humano desnudo. Um corpo de mulher.

         Um tronco sem cabeça...

         Peer van Hoest olha rápido para o lado. O ajudante tem os dentes cravados no lábio inferior. Seu rosto está meio esverdeado.

         - Deus do céu! - balbucia Peer.

         - Estou passando mal - diz o ajudante, com um grunhido.

         Peer, o pescador, desvia o olhar do cadáver e volta à roldana.

         - Recolhe - diz ele, fatigado. - Vamos voltar agora mesmo para Ferwerd.

         Gira a manivela. A rede sobe balançando, devagar. A água bate no convés, estalando.

         - Maldito azar! - murmura Peer van Hoest. - Vou ficar na mão com essa pescaria! Quem vai comprar peixe que teve contato com um cadáver?

 

         Em Leeuwarden, o comissário de polícia Paul Leerdam morde a ponta do lápis. Seu gabinete, um cómodo enorme e sóbrio, está quentíssimo e saturado de fumaça de cigarro.

         Wilm Schouwen senta-se diante do comissário na mesa redonda, folheando uma pilha de papéis datilografados em espaço um. Os dois homens trocam olhares meio casuais.

         Leerdam encolhe os ombros e não pára de morder o lápis.

         - Fora o corte da cabeça, o corpo da moça não apresenta nenhum vestígio de violência - diz Wilm Schouwen, ajudante de Leerdam, num estilo oficial a que acrescenta uma ponta de sarcasmo.

         - Verdade - diz Paul Leerdam, com uma careta. - Fora a separação da cabeça do tronco...

         - O resultado dos exames revela que, além do assassinato, foi cometida violência sexual. Alguns sinais indicam que...

         - Depois ou antes do assassinato? - interrompe o comissário.

         - Claro que antes. Como falta a cabeça, só podemos supor que o assassino dopou a moça, abusou dela e depois a matou, arrancando-lhe a cabeça.

         - Tudo bem. A coisa não é tão bonita assim para ficar falando nisso sem parar. - Leerdam, homem alto e forte, com o rosto de boxeador, levanta-se e vai até um mapa da Frísia Ocidental, pendurado na parede do gabinete. O cadáver foi retirado das águas do mar, perto de Ferwerd, pelo pescador Peer van Hoest. Que tipo de homem ele é?

         - Um pescador como milhares de outros. Sem antecedentes criminais, honesto, trabalhador, casado, três filhos. Tem 55 anos.

         - Nenhum elemento de suspeita?

         - Absolutamente nenhum.

         Paul Leerdam coça a cabeça.

         - Houve queixa do desaparecimento de alguém no perímetro de Leeuwarden?

         - Até agora não. - Schouwen, o assistente, homem alto e magro, 32 anos, volta a folhear os papéis. - A autópsia indicou que a morta foi lançada ao mar há cerca de três dias. Isso também esclarece o momento aproximado do assassinato. O que acha de uma aviso público de busca?

         - Não - Leerdam afasta-se do mapa e anda de um lado para outro no enorme gabinete abafado. - Vamos deixar a população fora do jogo por enquanto. Até agora ninguém sabe nada do assassinato e a imprensa também está por fora. Portanto, o criminoso se julga em segurança. Não suspeita que já temos sua vítima no departamento de anatomia. Isso pode ser vantajoso para nós. Mas também é importante saber rapidamente quem é a morta. - Ergue os ombros e abre um sorriso furioso. - Talvez a gente possa pegar esse assassino em poucos dias.

         Wilm Schouwen abstrai-se da pasta e olha para o teto.

         - Pelo menos já sabemos que não se trata de um homem que tem conhecimento de anatomia. A cabeça foi simplesmente decepada com violência. É provável que tenha sido com um machado.

         Leerdam contrai a boca.

         - Você quer dizer que os cirurgiões e até mesmo os açougueiros estão fora de suspeita. Eu também incluiria os veterinários. Quantos cirurgiões, açougueiros e veterinários existem na Holanda? Milhares, eu espero. Eu digo "espero" porque o que sobra não é um número tão grande assim. Com isso, nossa busca fica facilitada.

         A ironia de Leerdam fez efeito. Wilm Schouwen sente-se atingido. Levanta-se. Olha para o relógio, que marca oito horas da noite.

         - Devo comunicar o caso para que o comissário do distrito de Groningen tome conta dele?

         Paul Leerdam gira nos calcanhares.

         - Ficou maluco? Dar prova de incompetência logo no começo? Se você não se acha capaz de esclarecer o caso, eu me acho. Schouwen, vamos mandar revistar a costa inteira. Desde Ferwerd até Oostinahorn. A cabeça deve ter sido levada pela corrente e vai aparecer em terra em algum lugar por lá. Então teremos mais alguma coisa para ver.

         Naquela noite as lanchas costeiras recebem as instruções necessárias. Os guardas dos diques são informados. Policiais revistam a costa, deslizam através da neblina como fantasmas e rastejam pela areia. A revista é feita metro a metro. Contudo, todo esforço é inútil. Durante três dias não se encontra coisa alguma.

         Mas no quinto dia após o assassinato, um homem leva uma cabeça a Paul Leerdam. Uma cabeça ensanguentada de moça, com cachos louros.

         Está em cima da mesa do comissário, coberta com o saco em que chegou até ali. O homem que a encontrou nas areias da costa, nas proximidades de Ferwerd, chama-se Dan Paldoorn.

 

         Do protocolo do comissário Paul Leerdam, chefe da polícia criminal de Leeuwarden/Frísia Ocidental, Holanda:

 

         Leeuwarden, 17 de setembro.

         Hoje apareceu o negociante de trapos e ferro-velho Dan Paldoorn, 31 anos de idade, sem antecedentes criminais, domiciliado em Leeuwarden, Gracht van Willem 17, e informou que, ao procurar feno-velho na costa, deparou com uma cabeça humana que o mar lançou em terra. A cabeça estava na praia, semicoberta por conchas e areia úmida. Mijnher? Paldoorn colocou a cabeça em um saco e levou-a de imediato à delegacia de polícia. Ele não tem mais nada a dizer.

         Observação: Dan Paldoorn é um cidadão de nossa cidade, sem antecedentes criminais e com certo prestígio. É solteiro e muito abastado. Pode-se ter total confiança em seu depoimento.

         Paul Leerdam, comissário.

 

         O vendedor de sucata Dan Paldoorn assina a primeira parte do relatório. É um homem de estatura mediana, magro e simpático, com voz suave e quase terna, e de movimentos um tanto femininos. Possui uma natureza que no conjunto desperta confiança. Não é, em absoluto, o tipo do negociante de trapos. Parece mais um homem de negócios moderno e elegante, além de sagaz, pois sabe fazer bons negócios com o que os outros jogam fora. Paldoorn assinou o protocolo e depois olhou espantado para a horripilante forma do saco que continha a cabeça decepada.

         - Posso ir embora agora? - perguntou.

         - Pode. E agradecemos do fundo do peito. O senhor nos prestou um grande favor.

         Paul Leerdam acompanhou Paldoorn até o corredor e depois foi ao banheiro. Ao voltar minutos depois ao gabinete, disse para Wilm Schouwen:

         - Precisamos informar logo ao departamento de anatomia e ao serviço de reconhecimento.

         - Já foi feito. O professor Vanmoelen deve aparecer a qualquer momento. E uma comissão de Groningen também já deve estar a caminho. Vanmoelen exigiu a comissão por acreditar que esse assassinato é muito incomum e sensacional na Holanda. Acha que toda a polícia da Frísia Ocidental devia se ocupar dele.

         Leerdam reprimiu uma praga, depois disse:

         - Por mim, tudo bem. Depois que Vanmoelen examinar a cabeça, ela deve ser fotografada e a foto enviada a todos os jornais, com um texto. "Quem conhece esta moça? Ela está desaparecida." A cabeça deve ser arrumada e enfeitada, de modo que pareça estar dormindo.

         Wihn Schouwen anotou as ordens e fez menção de sair da sala, quando o telefone tocou na mesa do comissário.

         Leerdam tirou o fone do gancho. Seu rosto ficou alegre, ele murmurou alguma coisa e colocou o fone de volta no gancho.

         - Uma patrulha achou o local do assassinato, Wilm - disse, contente. - É um trecho de gramado nas imediações de Leeuwarden. O lugar ainda apresenta vestígios de sangue coagulado, apesar da neblina e da umidade dos últimos dias. Também descobriram pedaços de uma meia de seda. - Leerdam esfregou as mãos, o rosto vibrante de alegria. - O assassino anda por aqui em Leeuwarden, Schouwen - disse. - E se vive aqui e continua cometendo seus crimes, vai acabar caindo numa armadilha. O cenário de Leeuwarden pode ser abrangido com a vista. Acredito que vamos ter um trabalho fácil com ele.

         O que foi um lamentável engano do comissário Leerdam.

         Como não havia nenhum outro ponto de referência, não se pôde prescindir de um exame minucioso do local do assassinato e do ponto da praia em que a cabeça da moça fora encontrada. Mas logo depois Leerdam viu se esgotarem todos os seus recursos. O local do crime era uma faixa de gramado fora de Leeuwarden, onde acabavam os últimos postes que mal iluminavam os subúrbios da cidade. A cabeça, porém, aparecera na areia, nas proximidades da aldeia de pescadores de Ferwerd. Portanto, a uma distância de vinte quilómetros do local do crime.

         Sentindo frio, apesar do grosso casaco com a gola levantada e do chapéu enfiado até a metade da testa, Paul Leerdam andava com dificuldade na areia úmida da praia, que aderia aos sapatos como cola. Tinha os olhos voltados para o mar enevoado e pálido.

         - O assassino transportou a cabeça da vítima por vinte quilómetros, para se livrar dela aqui. - Leerdam olhou para Schouwen, que caminhava a seu lado e marcava pontos exatos no mapa que levava numa prancheta. - Imagine só, Wilm! Um homem andando pela cerração com a cabeça da moça que ele matou. É uma bestialidade de dimensão inimaginável. E logo aqui, em Leeuwarden. - Sentou-se num barco ancorado na praia e ergueu as pernas, afastando-as da areia úmida. Seu rosto taurino estava avermelhado pelo vento marinho. - Vamos fazer um resumo - disse com cara de poucos amigos. - Uma desconhecida morta. Crime sexual. Decapitada. Retirada do mar por um pescador. No local do crime não há mais nenhuma pegada porque a umidade alterou o solo. Na areia da praia também não há pegadas, pelo mesmo motivo. Além disso, era maré cheia. Portanto, a cabeça que Dan Paldoorn achou naquele trecho da praia ficou dois dias dentro d'água.

         Schouwen!

         - Sim? - perguntou o assistente.

         - Mas que merda!

         Wilm Schouwen não soube o que replicar.

         Quando voltaram para Leeuwarden, a foto da cabeça da desconhecida estava em muitos cartazes colados em colunas e muros de casas. Os jornais a mostravam na primeira página. "Está desaparecida." Era a foto de uma moça bonita. Cachos longos e louros emolduravam um rosto pálido e estreito. As pálpebras cobriam os olhos. Era a foto de uma pessoa que dormia despreocupadamente. Leerdam balançou a cabeça, desalentado.

         - Um bom trabalho do cabeleireiro da prisão - disse em voz baixa, parado diante de um cartaz.

         Wilm Schouwen também balançou a cabeça, concordando, e disse:

         - Se ela for de Leeuwarden, vamos saber quem é dentro de muito pouco tempo. Uma moça tão bonita assim tem muitos conhecidos.

         - Vamos esperar que assim seja, Wilm. Porque se não a coisa vai ficar complicada.

         Quando retornaram ao gabinete, em cima da escrivaninha de Leerdam havia um recado sobre o primeiro telefonema. O policial de serviço recebera o telefonema meia hora antes, pouco depois da chegada dos jornais matutinos.

         Um empregado de escritório de nome Jan Sehlke apresentou-se para informar, agitado, que a moça da foto era sua colega de trabalho Ruth Kappel. Disse que ela estava desaparecida e que há quatro dias não comparecia ao trabalho. E ninguém tinha explicado essa ausência.

         Ele e Ruth Kappel eram empregados da firma Termath Peixes em Conserva S.A.

         Satisfeito, Leerdam apanhou a xícara de café que o policial de plantão ofereceu. Esse café era sempre preparado para o chefe, que era solteiro, num fogão elétrico do posto da guarda. Schouwen já folheava o catálogo telefónico à procura do número da Termath S.A.

         - O passo decisivo já foi dado - disse Leerdam com satisfação. - Temos o nome, caso ele esteja certo, e já temos um círculo de conhecidos que podemos investigar de maneira sistemática. Vamos ter um monte de depoimentos.

         A partir deles podemos fazer a filtragem e saber em que lugar Ruth Kappel esteve há quatro dias, quais eram as intenções dela, o que disse, o que confidenciou às amigas.

         Creio que sua morte foi provocada por alguma experiência amorosa. - Leerdam esvaziou a xícara de café, bebendo em longos goles, e colocou-a em cima da mesa. Acho que já estamos quase agarrando o sujeito pelo colarinho, Schouwen. O que vier daqui em diante é puro trabalho de rotina.

         O comissário Paul Leerdam continuava insistindo em seu engano - o que em pouco tempo ficaria claro para ele.

         Mais precisamente à noite, quando se encontrava exausto em seu gabinete, relendo os protocolos, desanimado, deprimido, desapontado.

         Dez horas antes, quando comparecera à administração da Termath Peixes em Conserva, acompanhado de Wilm Schouwen e dois taquígrafos, já estavam à sua espera o diretor e Jan Sehlke, assim como três secretárias com quem Ruth Kappel trabalhara numa seção.

         As pessoas estavam no maior alvoroço. Vários funcionários haviam descoberto a foto da bela colega Ruth Kappel nos jornais da manhã e todos já sabiam que ela desaparecera. Por isso, Ewald Termath, o chefe da empresa, mandou que telefonassem de imediato para a polícia criminal.

         Paul Leerdam realizou as averiguações de acordo com o modelo tradicional. Mandou que as testemunhas, em especial as mulheres, entrassem uma a uma no escritório do diretor, do qual tinha banido o chefe da firma - com sua concordância, claro. E sentou-se atrás da enorme escrivaninha, flanqueado pelos dois taquígrafos, o que criou uma atmosfera bem oficial e causou boa impressão nas secretárias que entravam na sala. Wilm Schouwen recostou-se na janela e ficou observando, calado, cada uma das testemunhas, de vez em quando fazendo anotações em sua agenda.

         Jan Sehlke não tinha muito o que dizer. Conhecia Ruth Kappel há dois anos. Na verdade, desde o dia em que ela entrara para a empresa.

         - A Srta. Kappel era muito bonita - disse Leerdam, contemplando a foto do jornal que estava à sua frente sobre a mesa. - Com certeza tinha amigos, admiradores.

         - Isso eu não sei. Nunca conversamos sobre isso. Jan Sehlke encolheu os ombros num gesto de pesar. - Ruth era uma moça tranquila, amigável e companheira, mas sempre mantinha certa distância de nós, os homens da firma - acrescentou com um sorriso tímido.

         Leerdam ergueu as sobrancelhas.

         - O senhor tinha algum interesse pela Srta. Kappel?

         - E que homem não teria? Ela era realmente muito bonita e irradiava uma energia que atraía os outros.

         - Uma energia erótica?

         - Bem, se o senhor quer mesmo saber, sim. - Jan Sehlke encarou o comissário com expressão de desafio. Mas quem tivesse a intenção de conseguir alguma coisa com ela, acabava desapontado. Ruth era muito reservada, eu diria até que srisca.

         Leerdam observou o olhar de Sehlke com o rosto imóvel.

         - O senhor dá a impressão de ter conhecido com exatidão o caráter da Srta. Kappel. Posso supor que também tentou uma aproximação e foi rechaçado?

         Jan Sehlke hesitou, depois concordou com um movimento firme de cabeça.

         - Sim, o senhor pode supor. Mas levei um fora bem firme. Depois cheguei a pensar em trocar de emprego.

         - O senhor tem um bom cargo aqui?

         - Tenho. Parte do departamento de exportação está subordinada a mim.

         Paul Leerdam ficou contemplando a brincadeira das próprias mãos com o lápis, que rolava entre seus dedos. Voltou a falar depois de algum tempo, em tom tranquilo:

         - Está bem. Por favor, mande entrar a secretária que você considera a amiga mais íntima da Srta. Kappel.

         Jan Sehlke saiu rápido da sala. Estava aliviado por tudo ter ocorrido com tanta rapidez. Ao chegar à sala de espera, fez um aceno para uma das moças que aguardavam, indicando que era a vez dela. A moça amassou o cigarro fumado pela metade, levantou-se e atravessou a porta da sala do chefe.

         Paul Leerdam fitou a secretária em silêncio durante breve espaço de tempo, antes de dirigir-lhe a palavra. E fez uma dessas perguntas que só deixam uma possibilidade de resposta.

         - A Srta. Kappel, ao conversar com a senhora, disse por acaso que tinha conhecido um homem?

         Como já se esperava, a secretária assentiu e respondeu:

         - Disse.

         Paul Leerdam trocou um rápido olhar com Wilm Schouwen, que parecia preparado para fazer importantes anotações em sua agenda.

         - Mas que ótimo - Leerdam disse em tom muito jovial, acenando amigavelmente para a moça. - Conte tudo o que a Srta. Kappel disse em relação a esse homem.

         - Não foi muita coisa - disse a secretária, encolhendo os ombros. - Só falou que tinha conhecido um homem no cinema e que iria se encontrar com ele.

         - Isso foi há quatro dias?

         - Foi. Ela saiu do escritório direto para o local do encontro. E ainda disse: "Agora não tenho tempo para comer nada. Espero que ele vá comigo a um restaurante."

         - Qual foi o local do encontro?

         - Ela não disse. Mas talvez uma outra coisa seja importante para o senhor. Ela contou que os dois tinham combinado um sinal para o caso de ter muita neblina. O homem iria assobiar uma musiquinha.

         - Assobiar uma musiquinha?

         - É. Uma canção de amor. Algo mais ou menos assim... - A secretária fez um bico com os lábios e tentou assobiar a melodia. Mas seus olhos se encheram de lágrimas e ela não conseguiu se conter. Chorou pela amiga. Na verdade, o destino da outra ainda lhe era desconhecido, mas ela suspeitava de algo terrível. Como não havia mais nada a ser feito com ela, o comissário Leerdam foi obrigado a interromper a conversa.

         - Está bem, senhorita, pode sair.

         Depois que a moça deixou a sala, Leerdam acendeu um charuto e, furioso, lançou algumas baforadas em direção ao teto.

         - Mulher terrível! - vociferou ele.

         - Se fosse eu, teria dado mais tempo a ela - opinou Wilm Schouwen.

         Elevou-se na sala uma nuvem de fumaça ainda mais grossa.

         - Tenho certeza de que você faria isso. As pernas dela são bem gostosas, não? E os quadris também não são de jogar fora, não acha? Sem essa, Wilm.

         - Por acaso não se pode unir o útil ao agradável? Até os oficiais de polícia deviam ter permissão para isso.

         - Wilm, estamos investigando um assassinato monstruoso.

         - Certo, chefe. - Schouwen deu um olhar no caderno de anotações. - Já tenho até um título para o monstro.

         - E leu: - "O assassino assobiador."

         Leerdam levantou-se, foi à janela e lançou um olhar para o pátio da fábrica. Então começou a falar em voz baixa, como para si mesmo:

         - O que foi que descobrimos aqui, afinal? A bela Ruth Kappel era uma moça decente, não era do tipo que colecionava homens. Não era fácil de ser cantada - e, no fundo, fico espantado em saber que isso ainda existe hoje em dia.

         Portanto, o sujeito de quem ela foi vítima devia ter qualidades. Ele a cantou no cinema. Foi lá que jogou a isca para ela. E a Srta. Kappel mordeu na hora. Não foi o que ela fez no caso de Jan Sehlke. Chamo sua atenção em especial para esse fato, Wilm. Esse Sehlke é muito, mas muito mais boa-pinta do que você, meu caro. E o que foi que ele conseguiu? Estou fazendo essa pergunta para que você reflita sobre si próprio em certos aspectos. Não, fique calado. Está dispensado de me responder agora. Não temos tempo para isso. A solução do assassinato tem pressa. E já se pode dizer que o canalha deve ser do tipo que arrebata corações.

         Leerdam fez uma pequena pausa, esforçando-se para não cuspir de raiva, e o charuto foi meia ajuda para evitar tal coisa. Depois prosseguiu:

         - Ou do tipo derrubador de mulheres, como se diz hoje em dia. De qualquer maneira, devemos procurar um jovem simpático.

         - Por que jovem? - Wilm Schouwen interrompeu-o para se vingar um pouco.

         - Certo - Leerdam concordou, irritado. - Nós não sabemos. Também pode ser um homem mais velho. De um modo ou de outro, trata-se de uma pessoa simpática, isso é certo. No entanto, eu me arriscaria a dizer que esse assassino é um jovem, já que Ruth Kappel era uma pessoa de gosto mediano. Assim, o círculo fica menor.

         - Ou maior - Schouwen grunhiu. - Em Leeuwarden e arredores deve haver dezenas de milhares de jovens simpáticos, ou mais. Os monstros são mais raros.

         Leerdam suspirou, dando-se por vencido pela segunda vez.

         - Também fica proibido mexer demais com o círculo de conhecidos da moça assassinada.

         - Correto. Ela só conheceu o sujeito no cinema. Ele era totalmente desconhecido para ela. Entrou em sua vida, matou-a e tornou a desaparecer.

         - É a chamada agulha no palheiro - Leerdam tornou a suspirar.

         - E nem sabemos qual o tamanho desse palheiro, chefe. Do tamanho de Leeuwarden? Ou da Holanda inteira?

         O comissário Leerdam ficou um pouco sem ação.

         - É isso mesmo - Schouwen insistiu. - Quem nos garante que a Holanda inteira não é o palheiro, chefe?

         Leerdam pareceu considerar a questão.

         - Sabe de uma coisa, Wilm? - disse o comissário Leerdam. - Estou pensando se devo pedir para Amsterdam interceder. Afinal de contas, o caso está ficando com plicado.

         Mesmo sem muita esperança, deu prosseguimento ao interrogatório das secretárias. E, de fato, não surgiu nenhuma novidade. Ruth Kappel tinha sido uma colega querida - frase que foi repetida muitas vezes -, mas no que dizia respeito à sua vida privada tinha erguido um muro em torno de si. Como nem de longe era tão comunicativa como as outras jovens, Ruth Kappel mantinha em segredo quase tudo que fosse "privado". Por não ter nenhum relaciona mento conhecido com homens e ser bem diferente das outras moças da empresa, frequentemente se tornava alvo das brincadeiras das colegas.

         Paul Leerdam acabou por colocar um ponto final nos interrogatórios improdutivos. Wilm Schouwen também fechou seu bloco de anotações e os dois saíram da fábrica Termath. Foram para a casa onde Ruth Kappel morava, ou melhor, onde havia morado.

         Entraram numa rua pequena e estreita da Cidade Velha, flanqueada por casas altas de fachada estreita, com cumeeiras pontiagudas e belas portas de madeira trabalhada.

         Nessas casas morava uma multidão de sublocatários formada por pequenos empregados, moças que tinham mudado do campo ou da costa para a cidade, jovens que não achavam trabalho em suas aldeias e acreditavam que fariam for tuna em Leeuwarden.

         Era pequeno o número de parentes de Ruth Kappel.

         Os pais tinham morrido durante um bombardeio na Segunda Guerra Mundial. Uma velha tia morava em DenHaag, um tio trabalhava como mestre numa fábrica de tijolos, em Haarlem. Não havia nenhum outro parente.

         A locadora do quarto, uma mulher velha e gorda, de rosto rabugento, recebeu os dois policiais falando pelos cotovelos e querendo saber, antes de mais nada, quem seria responsável pelo pagamento do aluguel e pelo prejuízo que teria, caso "a Kappel" continuasse fora por mais tempo.

         - Por acaso vocês sabem onde ela está? - perguntou.

         O comissário manteve-se calado por dois ou três segundos, depois respondeu:

         - Sim.

         - Então diga para que eu possa entrar em contato com ela. Caso contrário darei o quarto como vago. Moças interessadas é que não faltam.

         Os dois policiais trocaram um olhar.

         - Pode dar o quarto como vago - disse Leerdam, olhando para a velha rabugenta.

         - Como assim? Ela disse que não quer mais?

         - A senhora pode dar o quarto como vago - repetiu Leerdam.

         - E as coisas dela? O que faço com elas?

         - Serão retiradas.

         - Por quem?

         - Pelos parentes dela.

         - Por que não tira ela mesma? - a velha perguntou, desconfiada, já começando a ter uma terrível suspeita.

         - Porque ela não está em condições - replicou Leerdam.

         - Ela está morta?

         - Mostre o quarto para nós.

         - Mas...

         - Queremos ver o quarto dela. Onde fica?

         Indignada, a proprietária caminhou na frente, subiu quatro andares e abriu a porta de um cómodo que causou surpresa a Leerdam e Schouwen.

 

         Era um quarto bonito, claro, amigável, que dava para um jardim cheio de árvores. Não combinava nem um pouco com a rabugenta dona da casa - mas claro que seria um absurdo se os dois oficiais de polícia fizessem tal relação. O quarto parecia levar a assinatura da inquilina. Tinha móveis modernos e baixos, um tapete de lã, lindas gravuras antigas nas paredes e vários vasos de flores espalhados por todos os lados. Uma escrivaninha cara estava aberta como se tivesse sido abandonada recentemente. Tudo formava um lar bem-cuidado e aconchegante, onde uma pessoa podia se recolher para ficar à vontade no silêncio.

         Percebia-se também que as flores, meio murchas, precisavam ser regadas. Do contrário, morreriam.

         A revista policial estendeu-se a todas as prateleiras e gavetas dos armários e mesas, à escrivaninha, às pastas, às cartas e bilhetes, a tudo que os policiais conseguiam encontrar.

         Nada, absolutamente nada. O produto da busca foi igual a zero.

         Quatro horas depois, quando Leerdam e Schouwen voltaram ao gabinete do primeiro, que estava com um charuto na mão, como era de hábito, sabiam que esse assassinato não lhes daria nenhuma possibilidade de fama.

         Leerdam fumava com grandes baforadas, Schouwen folheava seu bloco de anotações como se esperasse que a inspiração brotasse de suas folhas.

         - Já tomei a decisão - disse o comissário. - Vou contatar Amsterdam. Não vamos conseguir avançar sozinhos, Wilm.

         E Wilm Schouwen, que funcionava sempre com rapidez - um assistente que parecia uma verdadeira máquina -, já estava discando o telefone para fazer a ligação com a central de policia. Em seguida, passou o fone para o chefe.

 

         Duas semanas e meia depois aconteceu algo que de repente empurrou Leeuwarden para o centro de interesse de um enorme público. Claro que todo mundo já conhecia o caso da desaparecida Ruth Kappel. Mas agora, nas primeiras luzes da manhã, outro cadáver de mulher nua apareceu na praia, bem perto da aldeia de pescadores de i olwerd, em frente à ilha de Ameland.

         Um cadáver sem cabeça.

         Wilm Schouwen, que fizera um plantão noturno, foi correndo à casa do chefe e o tirou da cama, gritando a triste notícia já da porta.

         Leerdam soltou uma praga e seu rosto de boxeador ficou subitamente avermelhado.

         - É o mesmo criminoso? - perguntou.

         Schouwen fez um gesto afirmativo.

         - Sim, tudo indica que foi o mesmo. Crime sexual.

         Outra vez com um machado. É, só pode ser coisa de louco.

         Tem que ser um maluco para, no êxtase do amor, ficar dominado por uma ânsia tão bestial de sangue. Também já sabemos o nome da vítima.

         - Tão rápido assim? - apressou-se Leerdam. - A cabeça já foi encontrada?

         - Não. Mas o criminoso não reparou num pequeno detalhe.

         - Qual?

         - A moça tinha um anel com um nome gravado: Lissa Tenboldt.

         - De onde ela é?

         - De Leeuwarden.

         - E os outros dados?

         - Vinte e quatro anos de idade, sem família, empregada na casa do industrial Fried Eemslor.

         O comissário vestiu-se com pressa febril durante a conversa. O banho matinal foi reduzido ao mínimo. A barba não foi feita. Quando dava o nó na gravata, Leerdam vociferou e soltou algumas pragas:

         - Diante dos nossos olhos! O sacana está zombando de nós! Ainda estávamos andando sem enxergar nada no primeiro caso e ele vem de novo e pratica o segundo crime.

         Outro assassinato do mesmo tipo. Outra vez com uma moça. De novo na neblina.

         Interrompeu-se.

         - Ou não houve neblina ontem à noite, Wilm?

         - Houve, e das mais grossas que se possa imaginar.

         - Muito bem. E mais uma vez ele atirou o cadáver no mar. Como foi descoberto o corpo? De novo numa rede de pesca?

         - Dessa vez não. Apareceu na praia de maneira normal.

         - Espero que possamos encontrar o local do assassinato.

         - É o que também espero.

         Leerdam encarou Wilm Schouwen enquanto se enfiava no casaco grosso e colocava o chapéu na cabeça.

         - Dá para ficar maluco, não é, Wilm?

         - Bem, pelo menos ele esqueceu o anel. Talvez tenha sido seu primeiro erro.

         - Vamos agora mesmo para o lugar onde o cadáver foi encontrado.

         - O carro já está lá fora, chefe. Bem na porta.

         Durante os trinta quilómetros da viagem a toda velocidade pela estrada que levava à costa de Holwerd, os dois receberam pelo rádio da polícia os últimos resultados das investigações da comissão que já estava trabalhando no assassinato, em Leeuwarden. Segundo o comunicado, Lissa Tenboldt não tinha sido dada como desaparecida, pois safra normalmente de casa na noite anterior. Sua ausência não causara nenhuma estranheza: ela disse que passaria a noite fora. Portanto, tratava-se de um assassinato bem fresco, por assim dizer, e que devia ter sido cometido durante a madrugada anterior. O cadáver também não podia ter percorrido um trecho muito grande do mar durante poucas horas.

         Logo, podia-se constatar que o assassino jogara o corpo no mar, não de Leeuwarden, mas de Holwerd. E era possível que o criminoso ainda se encontrasse no caminho de volta naquele momento, ou que tivesse acabado de chegar em casa, se por acaso vivia em Leeuwarden. De qualquer forma, o crime só podia ter sido cometido poucas horas antes. Talvez o assassino estivesse atrás de algum arbusto à beira da estrada, observando divertido o carro da polícia que rodava em direção à costa. Talvez fosse um dos cidadãos inofensivos que andavam apressados para o trabalho no meio da neblina. Talvez... talvez...

         - Talvez ele esteja tomando café da manhã com um tremendo apetite - Leerdam disse para Schouwen.

         - Contemplando a cabeça da vítima, que ele colocou em cima da mesa - completou Schouwen, delineando um quadro sinistro.

         - Ele é bem capaz disso - Leerdam disse entre dentes.

         O rádio da polícia estava mudo.

         - Quanto tempo ainda falta, Wilm?

         - Vamos chegar daqui a pouco, chefe.

         Ao descerem do carro, viram algumas figuras paradas, à luz dos faróis, no ponto da costa onde a vítima fora encontrada. Ao se aproximarem, avistaram três policiais uniformizados e alguns pescadores agrupados em torno do cadáver. Tinham colocado uma lona sobre a vitima, mas o corpo delineava-se com perfeição horrenda sob o tecido.

         Dava para perceber que terminava nos ombros. Faltava a cabeça.

         Leerdam fez uma pergunta aos três policiais, em conjunto.

         - Encontraram alguma pista, senhores?

         A procura de pistas tinha sido um fracasso, descontando-se apenas um único fato: o anel. Mas fora isso, nada de útil tinha sido encontrado.

         Leerdam lançou um olhar para baixo da lona erguida por Schouwen. Bastou para ambos. Abriram mão de um segundo olhar.

         - Para onde o cadáver deve ser levado? - perguntou um dos policiais uniformizados.

         - Para o instituto de medicina legal - respondeu Leerdam. - O instituto já foi informado?

         - Não por nós.

         - Então tratem de informá-lo.

         Leerdam e Schouwen afastaram-se alguns passos para o lado.

         - Você tem o endereço da casa do industrial em que ela... - Leerdam fez um aceno de cabeça para o cadáver - ..vivia?

         - Tenho.

         - Então vamos lá.

         Foram para o carro.

         - Ou você tem alguma outra idéia? - perguntou Leerdam.

         - Não, chefe.

         Quando o carro voltava para Leeuwarden e chegava às primeiras casas e postes, com luzes ainda acesas, Leerdam e Schouwen não viram um homem de roupa escura que se ocultou atrás de um muro de jardim e esperou que o carro passasse, voltando depois à rua. O homem levava uma pasta. Uma bela pasta nova, feita de couro claro. Parecia um dos muitos empregados que se dirigiam a seus escritórios na manhã fria e úmida.

         O desconhecido com sua pasta nova desapareceu na multidão.

 

         A mansão do industrial ficava um pouco afastada das outras casas, num imenso parque muito bem-cuidado, mantido em ordem por um jardineiro. Larga escadaria de pedra conduzia do acesso de carros à entrada. Os dois oficiais da polícia contemplaram o salão de entrada da mansão, um átrio com janelas que chegavam ao chão. Apesar da hora, o industrial estava à espera do comissário e seu assistente.

         Leerdam informara sobre sua visita pelo telefone do carro.

         A Sra. Eemslor encontrava-se no quarto, abatida por leve choque nervoso. Estavam à espera de um médico.

         Fried Eemslor levou os policiais para a biblioteca e a primeira coisa que fez foi oferecer um trago aquecedor, que Leerdam recusou - para desgosto de Schouwen. Leerdam era fiel à regra de validade internacional "bebida é bebida, trabalho é trabalho", ou vice-versa.

         O industrial tomou uma dose de aguardente. Era a quarta ou quinta desde que recebera a primeira e terrível comunicação da polícia, menos de uma hora atrás. Apesar disso, ainda estava em condições de dar respostas precisas às perguntas de Leerdam.

         - Há quanto tempo Lissa Tenboldt frequentava sua casa?

         - Um ano.

         - Com que finalidade?

         - Ela queria ter um treinamento para se tornar empregada doméstica.

         Leerdam achou a coisa um pouco pretensiosa e perguntou:

         - E para isso é preciso alguma inteligência especial?

         - O senhor quer saber se Lissa era burra ou inteligente? - lançou o industrial.

         - Sim. Veja, muitas vezes as vitimas de assassinato facilitam de uma maneira inacreditável a ação dos seus assassinos. Elas caem em sua lábia da maneira mais ingénua possível, para não dizer estúpida. Mas quando a vítima é inteligente, chegamos à conclusão de que o criminoso tem qualidades correspondentes. Quer dizer, somos obrigados a atribuir a ele um grau de inteligência acima da média. O trabalho de investigação a ser realizado pode ser influenciado de maneira decisiva por essa idéia.

         - Nesse caso o senhor pode partir do princípio de que o sujeito que procuram vai criar muitas dificuldades.

         - Como assim?

         - Porque Lissa era uma moça muito inteligente e com boa formação cultural. Chegou aqui em casa com o segundo grau e três semestres da faculdade de filosofia.

         A surpresa de Leerdam foi visível.

         - E queria ser empregada doméstica? - perguntou.

         - Queria.

         Então estava faltando alguma explicação, coisa que o industrial também percebeu, pois acrescentou sem ser perguntado:

         - Nossa intenção era ficar com ela depois que terminasse os estudos. Lissa era uma moça de um encanto fora do comum.

         Ah!, pensou o comissário.

         - Suponho que os senhores não tenham filhos - ele disse.

         - Infelizmente, não.

         - Talvez o senhor não goste da próxima pergunta, mas ela é de importância decisiva: como era a postura de Lissa com relação aos homens?

         - Entendo o que o senhor quer dizer... Não, Lissa era uma moça decente.

         - O senhor sabe se ainda era virgem?

         - Não, com certeza não era mais virgem. Mas também não era uma moça que mudasse de homem a cada semana.

         - Ela permitiu que o senhor se informasse sobre sua vida particular, inclusive com relação a isto?

         - Permitiu. Na prática, nós já havíamos substituído os pais dela.

         - Muitas vezes os pais são os últimos a saber.

         - Acredito que Lissa nos contava tudo.

         - O quê, por exemplo?

         - Ultimamente ela andava apaixonada por um jovem.

         - Quem era ele?

         - Um pintor.

         Leerdam trocou com Schouwen um olhar que parecia dizer: como se pode ver, não é cirurgião, nem açougueiro, nem veterinário: é um pintor.

         - A propósito, eu e minha mulher tentamos mudar a opinião dela sobre o rapaz desde o começo - prosseguiu o industrial.

         - É mesmo?

         O brilho de caçador febril nos olhos de Leerdam também contagiou Schouwen.

         - Ao que parece nossos esforços foram coroados de êxito - disse Eemslor. - Talvez tenha sido um erro.

         - Por que o senhor suspeitou desse pintor?

         - Suspeitar não é a expressão certa, senhor comissário. Éramos contra ele por causa de sua profissão.

         - O senhor quer dizer - Leerdam pigarreou - que ele não ganhava dinheiro?

         - Exatamente. E até parecia talentoso. Mas na verdade não tinha sucesso nenhum e isso foi decisivo para nós.

         Afinal, existem homens de sobra pintando telas. Esse rapaz nunca tinha um centavo no bolso. Era terrível.

         Isso foi dito por um cidadão de um país que presenteara o mundo com um pintor que talvez tenha sido o maior de todos os tempos: Rembrandt. E não apenas ele. Bastava pensar também em Van Gogh, que nunca teve um centavo no bolso.

         - O senhor não percebeu - continuou Leerdam, já sem o tal brilho de caçador no olhar - outros sinais que tornassem o pintor duvidoso?

         "Duvidoso" significava, no caso, nada mais nada me nos que "suspeito", mas dessa vez o industrial não fez nenhuma objeção. Não parecia ser uma pessoa com conhecimentos etimológicos. Contentou-se em dizer:

         - O cabelo dele é um capitulo à parte.

         - O senhor se esforçou para fazer com que Lissa o abandonasse?

         - Sim.

         - Com sucesso, pelo que disse.

         - Infelizmente, sim.

         - Por que infelizmente?

         Eemslor tomou outra dose de aguardente e depois ex plicou:

         - Porque talvez tenha sido esse o motivo que a levou a conhecer o outro homem.

         - Outro homem?

         - É.

         - Quando?

         - Há bem pouco tempo.

         - Quem?

         Eemslor levantou as mãos num gesto de desamparo.

         - Aí está... Não podemos dizer... Minha mulher não pode dizer, eu não posso dizer.

         - Pensei que a moça sempre lhe contava seus segredos.

         - Sempre contava, mas não todas as vezes logo que as coisas aconteciam. Sempre dependia do momento para se conversar sobre algum assunto, dependendo de sua natureza.

         - E dessa vez não houve tal ocasião?

         - Parece que não. Viajei durante alguns dias, a negócios. Minha mulher teve outras obrigações. Lissa e ela quase não se encontraram. As duas conversaram muito pouco. Mesmo assim podemos ter certeza que de repente o interesse de Lissa foi despertado por outro homem. Com toda certeza o sujeito devia ser um terrível arrebatador de corações, caso contrário isto não teria sido possível.

         - Um arrebatador de corações?

         - É. Ou um derrubador de mulheres, como se diz hoje em dia.

         Mais uma vez o comissário e seu assistente trocaram um olhar - e o segundo traiu sua posição de subalterno ao fazer uma careta.

         Ouviram quando o médico entrou na casa. Uma empregada levou-o até o quarto da mulher de Eemslor.

         - Gostaria de estar ao lado dela - disse o industrial para Leerdam. - O senhor já acabou o interrogatório?

         O comissário suspirou antes de replicar:

         - Sim, já que infelizmente o senhor não pode nos dizer coisa alguma sobre essa última relação de Lissa.

         - Realmente não tenho nada a dizer. - Eemslor levantou-se, e com ele os dois policiais. - Apesar disso, espero que os senhores ponham as mãos no criminoso em pouco tempo. De nossa parte - acrescentou com aquela falta de cerimónia que com frequência demole os funcionários públicos -, estamos interessados em saber onde vão parar os impostos que pagamos.

         - Mais um - Leerdam disse para Schouwen, quando chegou ao carro lá fora - que acha que pode atirar em nossa cara as declarações que faz ao imposto de renda. Eu gostaria muito de ver todas elas. Na maioria dos casos são declarações com um saldo devedor ridículo, mas que sempre iludem os fiscais.

         Os pensamentos de Schouwen estavam em outra parte.

         - Chefe, você já excluiu o pintor de suas suspeitas?

         - E você?

         - Claro. Pelos meus instintos, acho que não foi ele.

         Ninguém abate uma galinha - Lissa, no caso que um dia pode botar ovos de ouro: quero dizer, na condição de esposa. Mas não há dúvida de que ela deve ter distribuído muitos beijos e copos de cerveja para ele.

         Mas...

         - Mas o quê?

         - Não temos a menor pista de nenhum outro homem.

         O comissário interrompeu o assistente com o tom rabugento a que Wilm já estava acostumado:

         - Quer dizer que, por causa disso, você gostaria que o pintor fosse parar na cadeia. Só porque não temos a menor pista sobre nenhum outro. Você sabe o que está dizendo, meu caro?

         - Sei.

         - E não tem vergonha?

         - Não.

         - Schouwen!

         Sempre que o comissário Leerdam ficava muito indignado com seu assistente, usava o sobrenome do auxiliar.

         - Chefe, eu pensei que com a prisão de um inocente...

         - Schouwen!

         - ...o verdadeiro criminoso se sentiria em segurança.

         - Schouwen - agora o nome soou mais suave.

         - Pode ser que, por causa disso, ele venha a cometer algum erro, chefe.

         Leerdam fez um aceno com a mão.

         - E onde é que posso encontrar um juiz que me dê tal ordem de prisão? Por acaso você sabe?

         - Não. - O assistente suspirou.

         - Então não adianta, não é, Wilm?

 

         Nos dias posteriores foi feito o que era possível para lançar alguma luz sobre os misteriosos assassinatos.

         Foi oferecido um prêmio de cinco mil florins - que na ocasião representava uma importância considerável para a captura do assassino (ou por pistas que levassem à sua captura). O industrial Fried Eemslor dobrou essa quantia com dinheiro do próprio bolso. O aparato policial passou a funcionar a todo vapor. Os jornais davam a impressão de que não tinham outro assunto - e não apenas na Holanda. Em toda a Europa e, claro, também nos Estados Unidos, onde o crime e o sexo ocupam largos espaços nos meios de comunicação de massa, as redações passaram a publicar manchetes sobre o "assassino assobiador".

         A central de polícia criminal de Amsterdam enviou a Leeuwarden mais três especialistas que passaram a analisar as pistas até então encontradas. Pistas que eram bem frágeis. Mais uma vez foram ouvidas todas as pessoas que já haviam sido interrogadas. O Instituto Hidrográfico tornou o medir as correntes marinhas. Outra vez foi esquadrinhada a vida das moças assassinadas. Na verdade, tudo isso podia ter sido dispensado, pois não se avançou nenhum passo na direção do assassino.

         Paul Leerdam não conseguia mais dormir em paz. Um relatório provisório da comissão especial tirava seu sono.

         O último parágrafo, sobretudo, era motivo para dor de cabeça. Estava escrito:

 

         "Pela situação e maneira como os assassinatos foram cometidos, deve-se supor que ambos os casos, Kappel e Tenboldt, são apenas o início de uma série de mortes, posto que se trata de um assassino sexual que se excita de maneira incomum e cuja excitação chega às raias da loucura; assassino este que, por causa de suas inclinações, irá procurar e encontrar novas vítimas. Por conseguinte, as primeiras medidas urgentes e necessárias incluem a maior das cautelas, assim como a necessidade de fazer constantes advertências à população feminina. O que significa que não podemos prescindir da imprensa falada e escrita para esse propósito."

 

         O início de uma série de mortes era o que estava roubando o sono de Leerdam. Aquilo que ele havia pensado o tempo todo, aquilo que receava, e sobre o qual conversara várias e várias vezes com seu assistente, expressava-se agora com frieza e formalismo no relatório da Comissão Especial Leeuwarden, como ela se chamava. Relatório que, na verdade, não dizia nada de novo ao comissário. Mesmo assim, as terríveis palavras pesavam em sua alma. E o pior era que não havia um ponto de partida. Tudo o que os grandes especialistas de Amsterdam podiam fazer era encolher os ombros quando alguém lhes perguntava alguma coisa.

         Inclusive quando as perguntas foram feitas pelo ministro do Interior.

         Fora isso, os cavalheiros da polícia estavam determinados a se manter em segundo plano, enquanto pudessem. A missão de fornecer explicações ao público - ou seja, dar respostas à imprensa - fora entregue com prazer ao pobre comissário Paul Leerdam, da "infantaria" .

         Na época não existia televisão. As emissoras de rádio e os jornais é que se encarregavam de prevenir todas as jovens e mulheres em geral para que não se deixassem levar pela conversa de desconhecidos muito sedutores, nem mar cassem encontros com eles em lugares ermos, sobretudo em noites de névoa. Toda mulher que recebesse alguma pro posta galante de um desconhecido, assim estava escrito, de veria se dirigir à delegacia policial mais próxima.

         Toda costa da Frísia Ocidental, de Meppel a Groningen, estava em estado de alerta. Os enterros das duas vítimas tiveram enorme participação da população. O comerciante de ferro-velho Dan Paldoorn, que achara a primeira cabeça, era um homem de negócios de múltiplas facetas. Lucrava não apenas com a venda de ferro-velho e farrapos que mandava recolher em grande escala, mas também com três carros funerários de sua propriedade. Coube a ele a tarefa de transportar as vítimas para o cemitério de Leeuwarden. E Paldoorn teve razão para ficar preocupado, pois seus carros quase desmontaram sob o peso das coroas de flores.

         Seguindo uma velha experiência, agentes da polícia civil ficaram de olho no cemitério durante os enterros. Todos os que compareceram foram rigorosamente observados.

         Os assassinos retornam com frequência às suas vítimas para ver como são enterradas. O impulso para fazer isso deve ser maior do que o de retornar ao local do crime.

         Mas Leerdam também foi obrigado a abandonar todas as esperanças que mantinha a esse respeito. Aos funerais só compareceram pessoas respeitáveis de Leeuwarden.

         O próprio prefeito estava presente. E não se fez de rogado:

         pronunciou o discurso fúnebre de cada um dos enterros.

         No segundo discurso, Leerdam ouviu a crítica de que a polícia não estava à altura das expectativas da população. Enfurecido, girou nos calcanhares e saiu batendo os pés pelo caminho úmido em direção à saída do cemitério, onde Schouwen se posicionara para observar as pessoas que entravam e saíam.

         - E então? Houve alguma coisa, Wilm?

         - Não. E com você?

         - Também não. Só fiquei perturbado com o papo furado do prefeito.

         - Ele conversou com você?

         - Comigo não. Conversou com todo mundo. Fez um discurso dizendo que nós, os policiais, somos incompetentes. Você não escutou? - Leerdam apontou com o polegar na direção da sepultura aberta, na extremidade oposta do cemitério. - Ainda continua dizendo besteiras.

         - Ontem meu cunhado também veio com essa chatice, chefe. Mas eu mandei que engolisse a opinião dele.

         - Então faça com que o prefeito também engula a dele.

 

         Quatro dias depois a Holanda inteira ficou com a respiração suspensa pelo terror. Houve um terceiro assassinato em que novamente entrou em cena uma machadinha. E seguiram-se outros dois, com o intervalo de um dia.

         A enlouquecida velocidade do assassino desafiava a Holanda inteira. A crónica policial de todos os países não conhecia nada parecido.

         Os troncos das vítimas foram encontrados em Ferwerd, Sexbierum e St. Jacobi. E mais uma vez o pescador Peer van Hoest achou um tronco em Ferwerd.

         A esperada série de assassinatos se tornara realidade.

         O comissário Paul Leerdam estava à beira de um colapso nervoso. A ligação telefónica com Amsterdam quase pegava fogo. O ministro do Interior queria falar com o comissário quase todos os dias. Agora só falta a própria rainha, pensou Leerdam.

         Repórteres oriundos de toda a Europa caíram sobre Leeuwarden. Eram divulgadas suposições, suspeitas...

         Adivinhos abasteciam o mundo com suas descobertas.

         Loucos e desajustados apresentavam-se à polícia como sendo o criminoso procurado. Cada auto-incriminação era exaustivamente investigada até ser considerada inconsistente, o que aumentava de maneira considerável o trabalho da polícia. O comissário Leerdam controlava-se para não dar pontapés no traseiro daqueles falsos assassinos, no momento da suspensão da prisão preventiva de cada um deles.

 

         Os cadáveres das mulheres assassinadas, levados para Leeuwarden, foram reunidos, por assim dizer, na geladeira do hospital municipal.

         Maria Steufels, modista, 24 anos de idade;

         Erna Schagen, professora, 19 anos;

         Grit Vonmeeren, empregada doméstica, 30 anos.

         Paul Leerdam colocou-se diante dos três esquifes e contemplou as figuras estendidas sob as mortalhas. Wilm Schouwen estava a seu lado. Reinava um terrível silêncio na sala muito fria. Leerdam fez um movimento para acender um charuto.

         - Aqui não, chefe - Schouwen advertiu com uma voz que soou um tanto esganiçada.

         Leerdam conteve-se e deixou que o charuto deslizasse para dentro do bolso.

         - De onde são as três mulheres? - perguntou a Schouwen.

         O assistente tirou do bolso o indispensável bloco de anotações para consultá-lo.

         - Maria Steufels - começou - é de Medemblick, que fica na saída do mar Ijssel. Grit Vonmeeren veio de Kennum, na ilha de Terschelling. Erna Schagen era professora do ginásio de Zwolle. Ao que parece, todas vieram para Leeuwarden no dia de sua morte. Foram assassinadas aqui e jogadas no mar.

         - Precisamos tirar uma conclusão disso tudo, Wilm.

         Em virtude de vários acontecimentos e das advertências que foram feitas às mulheres de Leeuwarden, ficou impossível para o assassino aproximar-se de suas vítimas em nossa cidade. Por isso, ele sai viajando pelo país à procura de mulheres jovens em outras cidades e aldeias. Terschelling... Medemblick... Zwolle... Esses lugares formam um semicírculo em torno de Leeuwarden. Portanto, só nos resta uma coisa: estender nossas advertências à Holanda inteira, principalmente às mulheres. Nenhuma delas deve aceitar convites de um desconhecido para vir a Leeuwarden.

         - Nossa cidade vai ficar com uma fama invejável.

         - Não se pode fazer nada contra isso.

         - E vai chover denúncias falsas, auto-incriminações, essas coisas todas, no país inteiro.

         - O que também não pode ser evitado.

         - Estou pensando no tremendo trabalho que vamos ter, chefe.

         - Estou pensando mais do que você, Wilm. - Leerdam suspirou, fez um gesto com a mão e prosseguiu: - O que você acha do pescador Peer van Hoest? Foi ele que também achou o cadáver de Maria Steufels, perto de Ferwerd.

         - Chefe, eu já estava esperando que você falasse sobre isso.

         - É estranho, não? O mesmo sujeito acha dois cadáveres. E as duas mulheres assassinadas são parecidas: altas, magras, louras, bonitas. Ruth Kappel tinha 22 anos e Maria Steufels, 24. Além disso, Maria Steufels veio de Medemblick. Van Hoest poderia ter levado o corpo para Ferwerd, no barco de pesca. Seria fácil.

         Leerdam girou e saiu da sala fria, onde as três figuras silenciosas permaneceriam até que os enterros fossem autorizados pela promotoria pública. O comissário deteve-se no corredor do hospital para colocar um charuto na boca, o que esperava há muito tempo com ansiedade.

         - Pelo que me recordo, ele é casado - disse depois.

         - Quem? - perguntou Schouwen.

         - O pescador.

         - Sim, ele é casado.

         - E tem olhos?

         - Dois.

         Leerdam tirou a charuto da boca e apontou-o para o peito de Schouwen.

         - Isso não significa nada. Já houve assassinos com cinco e seis filhos. Sabe de uma coisa, Wilm?

         - Sim, eu sei, chefe.

         - Sabe o quê?

         Essa brincadeira de pergunta e resposta, um tanto imbecil, ocorria de vez em quando entre os dois.

         - Vamos sair agora mesmo atrás desse pescador disse Schouwen. - Você precisa dar uma boa olhada nele, chefe.

         - Certíssimo, Wilm.

         Durante a viagem até Ferwerd, Leerdam tornou a mergulhar nos documentos referentes aos assassinatos. Schouwen dirigia o carro. Os últimos dados podiam ser brevemente resumidos da seguinte maneira:

         1 - Maria Steufels foi encontrada por Peer van Hoest.

         Seu corpo já estava na areia da praia. Não teve que ser retirado da água, como no caso de Ruth Kappel.

         O assassino não a decapitou, como fez com as outras vítimas, mas a matou com um golpe de machado na coluna cervical. Maria era modista de um salão de chapéus, em Hoorn. Não seria fácil investigar o enorme círculo de seus amigos homens para que a polícia pudesse tirar alguma conclusão. Dez agentes estão trabalhando no caso para levantar a vida pregressa da moça.

         2 - Erna Schagen era professora de bom padrão, em Zwolle. Não tinha amigos homens. Alguns namoros inofensivos com estudantes do ginásio. Um dia ela disse a uma amiga que no domingo iria visitar uma conhecida, em Leeuwarden. Mas comunicou a uma outra que iria se encontrar com um homem que conhecera num cinema de Zwolle. Ele combinara com ela que o sinal de reconhecimento seria uma determinada canção, que ele assobiaria na neblina, se houvesse neblina, o que quase sempre acontece no litoral da Holanda.

         3 - Grit Vonmeeren morava em Kennum, na ilha de Terschelling. Era empregada doméstica e saía muito pouco, pois tomava conta de uma velha senhora que ficara paralisada do lado esquerdo em consequência de um derrame. Quase não tinha amigos de sexo masculino. Apenas alguns pescadores e camponeses de Kennum e Oosterende, onde uma de suas amigas morava. Só era conhecido o fato de que ela aproveitou um domingo de folga para fazer uma viagem a terra firme. Depois seu cadáver foi encontrado em St.

         Jacobi.

         Paul Leerdam fechou a pasta e atirou-a no assento traseiro.

         - De novo o "assassino assobiador". Será que Zwolle não tem nenhum jornal, droga? Será que essa Schagen não leu que hoje em dia não se pode sair à rua para correr atrás de um sujeito que assobia uma musiquinha de amor?

         Não podia ser analfabeta, pois afinal de contas era professora de ginásio.

         - Para mim também é um mistério - Schouwen aprovou.

         - Sabe de uma coisa, Wilm?

         - Eu sei, chefe.

         - Sabe o quê?

         - Que os professores deviam divulgar as advertências da polícia nas escolas femininas.

         - Certíssimo, Wilm.

         Leerdam olhou para o trecho da costa que se aproximava com rapidez. O mar estava cinzento e agitado.

         Um vento forte passava pelos diques e chegava a terra.

         - Meu Deus! - suspirou o comissário. - Se a gente não prender logo esse monstro, é melhor tirar o chapéu para esse assassino e ir plantar batatas na horta.

         - Eu não tenho, chefe.

         - O que é que você não tem?

         - Uma horta.

         - Eu também não tenho.

         - Também não tenho chapéu, chefe.

         - Pode ficar com o meu.

         - E você?

         - Passo a aguardar que o ministro do Interior me envie um chapéu para que eu tome as devidas providências.

         A frase foi típica do humor negro do comissário.

         Schouwen tentou transmitir um pouco de otimismo.

         - Eu só espero que o criminoso cometa um erro a qualquer momento.

         - Que as suas palavras cheguem aos ouvidos de Deus, Wilm.

         Os dois saltaram do carro em silêncio diante da casa do pescador Peer van Hoest. Através de um pequeno corredor, entraram numa enorme sala que cheirava a batata e óleo de fígado de bacalhau.

         Peer fumava um cachimbo perto da lareira quando os dois oficiais de polícia chegaram à soleira da porta.

         Levantou-se e caminhou na direção deles. Sua mulher, que se encontrava na cozinha, apareceu na sala durante um momento para retirar de lá duas crianças que, curiosas, queriam ver o que estava acontecendo. Afinal, visita de estranho era sempre um acontecimento interessante.

         - Sr. van Hoest - disse Leerdam após os cumprimentos de praxe -, os motivos que nos trazem aqui não são nada agradáveis. Primeiro foi o assassinato de Kappel. E agora o da Steufels. Parece que ultimamente o senhor está com uma irresistível tendência para achar cadáveres.

         O pescador respondeu sem nenhuma malícia:

         - O que devo fazer quando quase tropeço neles? Pode acreditar que eu preferia não ter nada a ver com isso.

         Não consigo mais vender meus peixes. As pessoas relacionam o produto com os cadáveres e dizem "não, obrigado" .

         Quase fiquei com a carga de quatro pescarias nas mãos. Ainda bem que uma fábrica de peixes comprou todos eles.

         - Que fábrica?

         - Termath e Cia.

         - O senhor tinha contatos comerciais com eles antes disso?

         - Não.

         - E por que teve agora de repente?

         O pescador encolheu os ombros.

         - Não sei. Um certo Sr. Sehlke fez o contato, da parte da fábrica. Acho que o senhor pode imaginar como fiquei agradecido.

         - Jan Sehlke?

         - Sim, acho que ele se chama Jan. Mas não posso afirmar com certeza.

         - Quer dizer que o senhor não pode dizer com certeza. Isso significa que só conheceu o Sr. Sehlke agora, não?

         - Sim, claro.

         - Não o conhecia antes?

         - Sem dúvida que não.

         O pescador ficava cada vez mais espantado, estado que se agravou quando Leerdam prosseguiu:

         - Por acaso o senhor não conhecia a Srta. Ruth Kappel, que também era amiga do Sr. Sehlke?

         - A Kappel que foi assassinada?

         - Sim.

         O honesto pescador ficou sem saber o que aquilo significava. Se de fato tinha motivos para ter a consciência pesada, soube ocultar sua perturbação de maneira brilhante.

         - Alguém afirmou isso? - ele perguntou.

         - Isso o quê, Sr. van Hoest?

         - Que eu conhecia a Kappel.

         - O Sr. Sehlke a conhecia muito bem - respondeu Leerdam, evasivo.

         - Mas que droga, eu não conhecia! - o pescador vociferou. Parecia ter captado alguma luz sobre o que estava acontecendo ali. - Eu nunca vi essa moça em toda a minha vida.

         - Nunca? - respondeu o comissário, cheio de dúvidas.

         - Nunca.

         - Mas foi o senhor que a tirou da água. Também não a viu na hora?

         - Mas não o rosto dela. Não a cabeça, é o que quero dizer. Até hoje ainda não vi aquele rosto, compreende?

         A indignação expressava-se de maneira intensa no rosto do pescador. Seria apenas teatro? Ou não? O certo é que ele sabia se defender muito bem, não havia dúvidas. Mas Leerdam não queria jogar a toalha com tanta rapidez.

         - Onde o senhor se encontrava nas noites anteriores ao aparecimento dos corpos? - prosseguiu o interrogatório.

         O cachimbo de Peer já se apagara há muito tempo.

         - No mar, é claro. Há três semanas que saio todas as noites.

         - Há três semanas? E sempre com o mesmo ajudante?

         - Nem sempre. Isso depende.

         - Depende de quê?

         - Quando vou pescar camarão, como nos últimos dias, por exemplo. Aí não preciso de nenhuma ajuda. Só preciso para as grandes pescas. O sujeito precisa ser pago e eu não ganho tão bem. Meu barco é pequeno. Não posso ficar jogando dinheiro pela janela.

         - Quer dizer que o senhor estava sozinho quando Maria Steufels foi assassinada?

         Peer van Hoest controlou-se para não gritar. E replicou com uma tranquilidade forçada:

         - Eu estava no mar. Tenho meu diário de pesca.

         Está tudo escrito lá.

         - E como foi na noite do assassinato de Ruth Kappel? O senhor também estava sozinho?

         - Claro que o senhor já sabe como eu estava.

         - É mesmo? E como é que eu posso saber?

         - Pelo seu dossier. O senhor já conhece a história toda.

         O comissário percebeu que cometera um terrível equívoco em sua ânsia de caçar o criminoso. Claro, agora ele se recordava que Peer van Hoest havia retirado das águas o tronco de Ruth Kappel, junto com seu ajudante. O engano deixou o comissário mortificado. Mas sentiu-se mais desconfortável diante de Schouwen do que do pescador.

         Fez mais duas ou três perguntas, totalmente insignificantes, e interrompeu o interrogatório. Quando andou para ir embora, acompanhado de Schouwen, sua saída parecia mais uma fuga.

         - Eu juro uma coisa! - o pescador gritou para ele. - Nunca mais o senhor receberá um cadáver entregue por mim!

         Esse foi o resultado nada agradável do empreendimento.

         Do lado de fora, Schouwen não pôde se conter.

         - Foi um fracasso, chefe.

         - Pode ser que esse cara esteja com as mãos limpas - admitiu Leerdam com certa relutância. - Mas talvez tenhamos topado com algo muito importante.

         - O quê?

         - Jan Sehlke.

         Schouwen concordou:

         - Eu também fiquei surpreso com o que ouvimos sobre ele.

         - Sehlke só trabalha com as exportações da empresa. Não tem nada a ver com o departamento de compras. Como é que se encarregou, então, de fazer com que Hoest se livrasse dos peixes encalhados?

         Schouwen desenvolveu uma teoria que, sem dúvida, era arriscada. Mas os casos criminalísticos, especialmente os difíceis, sempre estimulam teorias arriscadas.

         - Talvez ele se sentisse na obrigação de fazer isso disse o assistente.

         - Na obrigação? Por quê?

         - Se ele assassinou Ruth Kappel, que desprezou seu amor, isso não significa que não fosse capaz de se preocupar com as dificuldades de Peer van Hoest. As pessoas não queriam mais comprar o peixe de van Hoest.

         - Porque um cadáver foi encontrado na rede.

         - E ainda por cima sem cabeça, o que na verdade não altera em nada a qualidade do peixe. Mas as pessoas ficaram horrorizadas e de repente van Hoest ficou sem nenhum freguês.

         - E você acha que por causa disso Sehlke se sentiu na obrigação de entrar em cena. Eu pergunto mais uma vez:

         por quê?

         - Porque ele não queria que o pescador tivesse prejuízo por sua causa.

         Leerdam fez uma careta.

         - Ah! - fez ele. - Um assassino com bons sentimentos!

         - Por que não, chefe? O sujeito que procuramos é um desajustado. Seus crimes têm grande relação com a sexualidade e, portanto, com as mulheres, com as mulheres jovens. Ele pode encarar as outras pessoas com sentimentos normais. Um pescador humilde como Peer van Hoest está em luta constante pela existência. E esse matador de mulheres não gostou de ter criado mais dificuldades para ele.

         Você acha que essa possibilidade está totalmente excluída?

         Leerdam balançou a cabeça.

         - Wilm, se Sehlke for a pessoa que procuramos, ele cometeu o erro que há tanto tempo esperávamos.

         - Isso mesmo, chefe.

         - Erro de uma burrice imperdoável.

         - Isso sempre acontece com os criminosos mais inteligentes. Você mesmo não se cansa de me dizer isso.

         O comissário voltou a falar, pensativo, como se tivesse diante dos olhos a pessoa sobre quem falava.

         - Sehlke é boa-pinta e jovem. É capaz de virar a ca beça de uma moça. São características que combinam com o assassino desconhecido.

         - Sem esquecer da característica principal, chefe.

         - Qual?

         - Ele sabe assobiar.

         - E ele sabe?

         - Quem não sabe?

         - Mas isso vamos ter que provar na próxima vez que o encontrarmos.

         - Vamos vê-lo mais uma vez, chefe?

         - É o que estou pensando. Por que você acha que comecei a conversar sobre ele? É que estou suspeitando desse homem.

         Leerdam abotoou o casaco e entrou no carro do lado do carona. Schouwen sentou-se de novo ao volante. Conversaram pouco enquanto retornavam a toda velocidade para Leeuwarden.

         Outro choque estava à espera de ambos no gabinete do comissário. Uma mulher conhecida nos círculos de pescadores como "Vera Vermelha", moradora em Harlingen, uma aldeia de pescadores ao sul de Leewarden, e proprietária de uma taberna no promontório de Harlinger, havia telefonado para o comissário. A taberna era ponto de passagem para muitos caixeiros-viajantes que acampavam à noite num enorme celeiro e pagavam uma pequena quantia pela utilização de um saco de palha.

         "Vera Vermelha", mulher gorda e resoluta, com mais de cinquenta anos, telefonara para comunicar que dois dias antes um caixeiro-viajante, ou talvez apenas um vagabundo desconhecido - estranho na região, pois jamais ninguém o vira por ali -, pernoitara em seu celeiro, pagando a estada na manhã seguinte e depois seguindo viagem. Até aí, nada demais. O que chamou sua atenção foi o fato de que havia manchas de sangue na manga esquerda do paletó do negociante desconhecido. Esse paletó, que ela entregara à polícia, dava a impressão de que seu dono havia tentado lavá-lo sem sucesso.

         Depois de ler o recado, Leerdam passou-o para Schouwen.

         - O que acha disso? - perguntou Leerdam.

         - O dia coincide com as mortes de Maria Steufels e Grit Vonmeeren.

         - Nesse caso, as manchas de sangue deviam ser relativamente frescas.

         - Talvez "Vera Vermelha" possa confirmar isso.

         - Possibilidade excluída, já que ela nos contou que a manga do paletó foi lavada.

         - Ela disse que parecia ter sido lavada. Portanto, não há certeza quanto a isso, chefe.

         Leerdam tomou uma decisão.

         - Vamos nos separar, Wilm. Você vai falar com "Vera Vermelha" e eu vou até a empresa Termath para conversar mais uma vez com Sehlke. Não gostaria de perder isso, apesar desse caixeiro-viajante suspeito.

         - Está bem, chefe.

         - Não importa quem seja o assassino. Só gostaria que houvesse uma pausa para descanso. Não dá nem para imaginar se aparecer outra vítima hoje à noite.

         - Está esperando por isso?

         - Para ser honesto, estou. O sujeito encontra-se num estado de êxtase de sangue que me parece único na história mundial da criminalística. Se não for logo detido, vai acabar chegando ao ponto de, numa só noite, decepar várias cabeças.

         - Não diga isso, chefe.

         - Peça um carro de patrulha para mim.

 

         Infelizmente Leerdam não estava enganado em sua expectativa.

         O assassino sentia-se tão seguro, mas tão seguro, que se encontrava na rua e cumprimentou Leerdam e Schouwen com uma expressão amigável, quando os dois saíram da delegacia e entraram em carros separados. Seguiu-os com a vista, assobiando uma musiquinha, depois caminhou rua acima em direção a sua casa, que ficava a menos de 200 metros da delegacia. Trocou algumas palavras com um vizinho com quem se encontrou, abriu a porta, dirigiu-se à pequena cozinha e preparou um chá forte, ao qual adicionou uma boa dose de aguardente de arroz. Satisfeito com o aroma da deliciosa bebida, levou a chaleira, a xícara e um pote de frutas cristalizadas para a sala de estar ricamente mobiliada. Colocou tudo sobre uma mesinha de fumar, ao lado da janela ampla, sentou-se, pegou o jornal e sorveu o chá, satisfeito, enquanto lia as notícias. De vez em quando olhava para a rua movimentada, lá fora, observando a passagem das pessoas. Depois de um tempo acendeu um cigarro e, no mal, deu alguns telefonemas para importantes sócios comerciais, pois era dono de um negócio que ia muito bem e rendia bom dinheiro.

         Em seguida dormiu um par de horas. Precisava de algum sono durante o dia, pois à noite ficava muito ocupado. Quando acordou, havia escurecido. Puxou um abajur de pé para perto do sofá e o acendeu. Foi banhado pela luz quente... Era um homem alto e de boa aparência, bem tratado, elegante, de sorriso simpático e com olhos azuis que irradiavam um brilho de confiança.

         A lareira de azulejos, ao canto, aquecia o ambiente. c O homem levantou-se, regulou o calor no registro e depois examinou mais uma vez os anúncios dos cinemas de Leeuwarden, Zwolle e Meppel. Certamente se decidiu por um filme em Meppel, pois seu dedo incerto acabou por se deter num anúncio daquele lugar.

         Um belo e antigo relógio de pêndulo bateu as horas no canto escuro que a luz do abajur não atingia. Isso fez com que o assassino olhasse seu relógio de pulso e tomasse uma decisão. Se quisesse ir a Meppel, era hora de partir.

         Foi até a enorme escrivaninha e retirou da gaveta esquerda uma pasta de couro nova. Ao abri-la, brilhou em seu interior, por um breve momento, a lâmina de um machado pequeno mas afiado. O instrumento da morte. Ele o mantinha rigorosamente limpo. A coisa que mais desprezava eram as pessoas sujas.

         Depois de fechar a tranca da pasta, o assassino certificou-se, com pequenas sacudidelas, de que estava de fato fechada. Saiu do quarto, postou-se no vestíbulo diante de valioso espelho de vidro trabalhado, vestiu um longo casaco de lã cinzenta, retirou luvas novas de couro de porco de uma gaveta do guarda-roupa - mas não as colocou antes de passar o pente nos grossos cabelos negros -, pôs ` o chapéu e submeteu-se, diante do espelho, a um último exame completo, com evidente sensação de bem-estar.

         Era uma visão atraente e que tinha efeito certo sobre as mulheres. Os olhos irradiavam um pouco de sentimentalismo, coisa que as moças gostam, como todos sabem.

         Ele chegou a rir e a acenar para seu reflexo no espelho.

         Depois saiu de casa e, lá fora, entrou em seu belo carro.

         Quando entrou, os vizinhos acenaram para ele. O assassino respondeu aos cumprimentos, fechou a porta do carro e, com pontaria segura, jogou a pasta com o machado no assento traseiro.

         Ligou o motor com o melhor dos humores e rodou seguro pela rua. Atravessou a movimentada Leeuwarden e chegou à auto-estrada que levava a Meppel.

         Havia uma moça parada na beira da estrada em Heerenveen. Ela sentia frio. Apertava o casaco contra o corpo e andava de um lado para outro no úmido ar noturno.

         Quando viu a luz dos faróis aumentarem de intensidade, a distância, deteve-se e encarou-os, tensa.

         O carro freou com um movimento suave. A moça aproximou-se e sorriu, contente.

         - Que bom! - ela disse para o homem, que saltou do carro e deu a volta pela frente. Era cortês.

         Queria ajudar a moça a entrar.

         - Estava esperando há muito tempo? - perguntou.

         - Quinze minutos.

         - Mas nosso encontro era exatamente agora - ele disse, com pesar.

         - Eu não aguentei esperar mais - ela sorriu apaixonada. - Saí de casa mais cedo.

         - Você disse a alguém aonde ia?

         - Não.

         - Disse com quem ia sair?

         - Não. Você me pediu para guardar esse segredo por enquanto, não foi? Só para nós dois.

         E vai continuar sendo só de nós dois, ele pensou. Não apenas por enquanto, mas para sempre.

         - Aonde vamos? - perguntou ela, quando o homem acelerou.

         - Eu tinha pensado que podíamos ir ao cinema em Meppel, Hendrilcje. Está passando um filme de amor espetacular. O filme certo para nós. Depois da sessão a gente resolve outra coisa.

         - Um filme de amor? - Ela ficou contente.

         - Sim - ele repetiu. - O filme certo para nós.

         A moça sorriu, cheia de felicidade. Ele nem precisava perguntar o que ela achava, mas no entanto perguntou.

         - Hendrikje, você também não acha que é o filme certo para nós?

         - Sem dúvida! - ela gritou, feliz, inclinando-se para beijá-lo na face.

         Hendrikje Balder, 23 anos de idade, garçonete de profissão num restaurante de Joure, foi encontrada na manhã seguinte.

         Estava caída perto de Ternaard, na areia. O mar banhava seu corpo. E também a cabeça, quase totalmente separada do tronco por um golpe de machado na nuca.

 

         O ministro estava sentado diante do chefe de polícia do país, no Ministério do Interior em Den Haag, capital da Holanda.

         Os dois cavalheiros fumavam, mas sem nenhum prazer, pois o objeto de sua conversa não tinha nada de agradável.

         Havia uma pasta grossa diante do ministro, que não precisou olhar seu conteúdo para conhecer melhor o assunto da conversa. O chefe de polícia evitava o olhar do ministro. Observava os desenhos do tapete por desespero, começou a contá-los.

         - Seis assassinatos - disse o ministro, a voz fria cometidos pela mesma pessoa. Primeiro com um intervalo de dias e agora com um intervalo quase que de horas. E sempre que telefono para seu homem em Leeuwarden, esse tal de Leerdam, praticamente escuto a mesma coisa: "Estamos fazendo tudo o que está ao nosso alcance." Isso não pode continuar assim, meu caro.

         O chefe de polícia respondeu com voz empostada, quase sem levantar o olhar do tapete:

         - Já transferi para Leeuwarden os melhores homens que temos em todo o país. Mas até agora eles também se deram mal.

         - Se deram mal?

         Ficou evidente que o ministro do Interior não gostou da expressão negligente. O chefe de polícia, que a usara, realmente se mostrava um tanto confuso. Mas procurou se corrigir, rápido:

         - Até o momento eles também não conseguiram pôr as mãos no assassino.

         O ministro retorceu a boca com desprezo.

         - Pôr as mãos no assassino! - escarneceu. - Eu ficaria contente e agradecido se eles tivessem algumas pistas sobre o homem, de modo que o assassino ficasse com medo e fosse forçado a dar uma parada mais longa. O senhor compreende o que quero dizer? O país inteiro está histérico. Estamos lidando com um problema de Estado. A polícia está caindo no ridículo. Onde é que nós vamos parar?

         - Para mim está claro que, de certa forma, as pessoas podem voltar a se tranquilizar um pouco.

         - Como assim? Explique-se. Eu gostaria de ouvir.

         - Como eu disse, os melhores agentes da polícia criminal já estão atuando em Leeuwarden. A região inteira se encontra em estado de emergência. As patrulhas policiais estão vasculhando toda a área. O mesmo também está acontecendo em Groningen, Assen, Meppel, Zwolle, na costa inteira. Agentes da polícia partiram de carro de Ylst, Franeker e Bolsward. Todo casalzinho que encontram é revistado com o maior rigor. Pelo rádio...

         - Se compreendi direito - o ministro interrompeu o suarento chefe de polícia -, todas essas medidas são apenas defensivas. Entendi direito a coisa? - perguntou, implacável, já que o chefe de polícia se mantinha calado.

         - Entendeu, senhor ministro.

         - E onde fica a ofensiva?

         - Neste momento, todos os conhecidos da última vítima, a garçonete Hendrikje Balder, estão sendo interrogados sem parar. Estamos querendo saber se ela disse a alguém com quem iria se encontrar.

         - Pelo visto ela não disse a ninguém - foi a céptica opinião do ministro, lançando um olhar para a pasta em que havia obtido a informação.

         - Também estamos procurando um caixeiro-viajante, ou vagabundo, que passou a noite em Harlingen e tinha manchas de sangue na manga do paletó.

         - ...e cuja descrição pessoal é completamente vaga nos autos - acrescentou o ministro.

         - Mesmo assim temos alguns pontos de partida. Mas o importante é que o número de pessoas que devemos procurar é limitado. Não existem milhões de caixeiros-viajantes na Holanda. Vamos peneirar um por um, até o último.

         - Quanto tempo isso pode levar?

         - No máximo uma semana.

         O ministro deu a entender que queria encerrar a audiência do relatório que levara até ali o chefe de polícia.

         E para terminar, desfechou outro tiro certeiro no traseiro do pobre-diabo.

         - Se tudo der errado, nós temos mais uma possibilidade. O senhor sabe qual é?

         - Não... não - o chefe de polícia respondeu hesitante, esperando alguma maldade. Sua expectativa foi superada ao O ministro disse:

         - A possibilidade de pedir à Scotland Yard que envie alguns especialistas, o que seria uma humilhação espantosa para a polícia holandesa.

         Perturbado, o chefe de polícia saiu do gabinete do ministro e, ao chegar ao corredor, enxugou o suor da testa.

         No andar inferior, permitiu-se as primeiras imprecações em voz baixa - imprecações que se tornaram mais altas à medida que aumentava a distância que o separava do ministério. Quando chegou a seu gabinete, as imprecações já atingiam intensidade igual à das trombetas da velha cidade de Jericó, que, por sinal, tiveram péssimas consequências.

         O berreiro logo atingiu a costa, inquietou todas as delegacias policiais subordinadas e também arrancou da cama o pobre Paul Leerdam, que se deitara para dormir algumas horas depois de três noites de plantão. Ele dormia com o peso do chumbo ao ser acordado por sacolejões de Wilm Schouwen.

         - Está havendo a maior confusão, chefe. Soltaram os cachorros em Den Haag. O ministro do Interior nos ameaçou. Disse que vai pedir a ajuda da Scotland Yard.

         - É mesmo? - Leerdam grunhiu. - E você sabe como eu vou ameaçar o ministro do Interior?

         - Sim, eu sei.

         - Não sabe coisa nenhuma.

         - Claro que sei. Vai ameaçar dizendo que ele pode crucificá-lo.

         - Certíssimo, Wilm.

         Leerdam virou-se de lado e no mesmo instante voltou a dormir.

         Schouwen comunicou mais uma notícia:

         - O prêmio foi aumentado para trinta mil florins.

         Mas o comissário não chegou a ouvir a frase.

 

         No terceiro dia, depois da estúpida audiência em torno do relatório, em Den Haag, uma patrulha da policia de Leeuwarden prendeu em Veenwouden um caixeiro-viajante que correspondia aproximadamente à vaga descrição de "Vera Vermelha" O detalhe mais importante era a existência de uma mancha de sangue coagulado na manga esquerda de seu paletó.

         A princípio, Leerdam não enviou nenhuma comunicação a seus superiores, preocupado com a possibilidade de ter cometido outro erro. Mandou que levassem o vagabundo à sua presença na mesma hora e sua primeira providência foi enviar o paletó ao laboratório da policia. Depois, ao interrogar o homem, procurou criar uma atmosfera liberal, ao perguntar se ele estava com fome.

         - E que fome! - foi a resposta.

         - Sede?

         - Também. Mas não de aguardente, se é isso que o senhor quis dizer.

         Portanto, para começar, o caixeiro-viajante foi bem alimentado. E depois da refeição ainda recebeu um charuto financiado pelo bolso de Leerdam. Mas no final entrou o chamado lado sério da vida.

         - Qual é o seu nome? - perguntou o comissário.

         O vagabundo arreganhou um sorriso.

         - Pelo que me lembre, Wilhelm Heyst.

         - Sim, é o que está escrito em seus documentos. Mas é mesmo seu verdadeiro nome?

         - Se está nos documentos, claro que é.

         - Não foi isso o que eu disse. Quantas vezes você já os perdeu?

         - Meus documentos?

         - Sim. Eu sei que eles já foram renovados.

         - Algumas vezes. Não sei dizer ao certo.

         - Está vendo? Eu sei como vocês fazem a coisa. Quando perdem os documentos, entram satisfeitos no registro civil mais próximo e pedem segunda via. De graça, é claro.

         E muitas vezes o registro civil não tem outra opção a não ser confiar nos dados que vocês fornecem. Uma vez eu lidei com um cara que trocou de nome nove vezes no decorrer de poucos anos. E você? Já trocou de nome alguma vez?

         - Sou e sempre fui Wilhelm Heyst, senhor comissário. A vida que levo não tem nenhum segredo.

         - Vamos investigar isso, meu caro, pode ter certeza.

         - Mas afinal de contas o que está acontecendo?

         Por que todo esse interesse numa pessoa tão insignificante como eu?

         - Não consegue imaginar?

         - De modo nenhum.

         - Nós pegamos seu paletó.

         - Sim, eu sei, mas não compreendo por quê.

         - Havia sangue nele.

         - Sangue?

         - Sangue.

         Se o comissário pensou que o vagabundo perderia a calma, enganou-se completamente. O sujeito não demonstrou o menor nervosismo.

         - O senhor se refere à mancha na manga esquerda? - perguntou.

         - Sim, eu me refiro a ela.

         - Neste caso eu não me enganei.

         - Por que não?

         - Porque pensei que podia ser sangue.

         - De quem?

         A pergunta saiu da boca de Leerdam como uma chicotada. O chamado lado sério da vida estava em pleno andamento. Contudo, como antes, não foi obtido nenhum efeito positivo.

         - E como vou saber? - replicou com um encolher de ombros o homem que se dizia chamar Wilhelm Heyst e que provava ser tal pessoa.

         - Será que sua resposta será a mesma - continuou Leerdam - quando souber que se trata de sangue humano?

         - Sangue humano? Não acredito.

         - Posso perguntar o que você acha que seja? acrescentou o comissário, com uma amabilidade revestida de ironia.

         - Acredito mais que seja sangue de galinha.

         - Por que justamente sangue de galinha?

         - Porque acho que uma galinha roubada foi abatida sem os conhecimentos técnicos necessários.

         O rosto de Leerdam ficou tão impregnado de incerteza que Heyst sentiu-se obrigado a completar:

         - Senhor comissário, as galinhas são coisas que as pessoas mais gostam de roubar em nossas aldeias.

         Apareciam, no linguajar do vagabundo, certas expressões e formulações indicativas de que ele conhecera dias melhores. O comissário foi invadido por súbita suspeita. Estaria falando com um académico arruinado ou algo parecido?

         Se a resposta fosse positiva, não seria o primeiro caso no mundo dos vagabundos e andarilhos.

         - O que é que você fazia antes, Heyst?

         - Antes quando?

         - Antes de você se decidir pela atual... - Leerdam pigarreou - ...existência.

         - Era bibliotecário, senhor comissário.

         - O que foi que o levou a sair dos trilhos?

         - Uma mulher... Mas não gostaria de falar sobre o assunto.

         Um choque elétrico sacudiu o corpo de Leerdam.

         - Uma mulher? Nesse caso, eu seria capaz de imaginar que você odeia todas as mulheres.

         - Tem razão, eu odeio - Heyst disse, em tom de voz tranquilo.

         Foi justamente essa resposta que o salvou da suspeita de Leerdam, que já começava a se tornar sólida em sua mente. Como homem inteligente que era, se fosse o procurado assassino de mulheres jamais admitiria ter alguma coisa contra o sexo frágil.

         - Voltemos à mancha de sangue na manga do paletó, que você diz ser sangue de galinha - insistiu Leerdam.

         - Por que tentou lavá-la com tanta força?

         - Se tentaram lavar com tanta força, então não fui eu que tentei, senhor comissário.

         - Então quem foi que tentou?

         - Meu antecessor.

         - Que antecessor? O que significa isso?

         - O meu antecessor na propriedade do paletó.

         - Quer dizer que o paletó nem sempre foi seu?

         - Exato.

         - Desde quando ele pertence a você?

         - Não faz muito tempo.

         - E como chegou a suas mãos?

         - Foi uma troca. Eu encontrei um colega... por favor, não ria, senhor comissário... um colega que era dono do paletó. Eu estava com três garrafas de aguardente que não estavam servindo para coisa alguma, o que é raro em nossas aldeias. Em nosso meio, a aguardente e o fumo valem tanto como moedas de ouro. O tal colega ficou doido com minhas bebidas e eu fiquei vidrado no paletó que ele usava. Eu tinha necessidade urgente daquele paletó, já que meu velho casaco estava se desfazendo. O resultado foi que chegamos a um rápido acordo. Acho que poderia ter ficado com o paletó em troca de apenas duas garrafas.

         - Como se chamava o sujeito?

         - Meu parceiro comercial?

         - É.

         Não sei.

         A voz de Leerdam veio marcada por um tom de severidade.

         - Escute aqui, Heyst. Estamos falando de suspeita de assassinato.

         - De quê? - interrompeu o andarilho, boquiaberto.

         - De suspeita de assassinato. Portanto, não me venha com essa brincadeira de esconde-esconde no interesse de outra pessoa. Isso só pode prejudicá-lo.

         - Mas eu não sei o nome dele. Aliás, o tal sujeito também não sabe o meu. Não conversamos direito. Esse tipo de coisa é comum entre pessoas como nós.

         - Onde ocorreu a troca?

         - Atrás de Harlingen, perto de Zurig.

         - Quando foi que vocês se separaram?

         - Logo depois. Eu fui para a taberna de "Vera Vermelha".

         - E o outro?

         - Ele disse que ia percorrer a costa na direção do mar de Ijssel para tapear as pessoas com suas tralhas.

         - O que é que ele levava?

         - O senhor se refere ao que ele oferecia?

         - Claro.

         - Não tenho a menor idéia. A mochila dele estava fechada quando nos encontramos. Eu não perguntei o que havia lá dentro.

         O telefone tocou na escrivaninha de Leerdam. O comissário tirou o fone do gancho, identificou-se e ficou escutando. Era o laboratório transmitindo o resultado da análise do sangue. Seus olhos brilharam.

         - Muito obrigado - disse. E desligou.

         Voltou a encarar Wilhelm Heyst.

         - Sabe quem era?

         - Não.

         - O nosso laboratório. Sabe o que eles acabam de me comunicar?

         - Não - repetiu Heyst.

         - Que você está equivocado com sua teoria sobre o sangue de galinha.

         - E qual é a teoria certa?

         - A minha - disse Leerdam, sem nenhum vestígio de emoção.

         Wilhelm Heyst, bibliotecário inativo, caixeiro-viajante e andarilho em atividade, manteve-se calado. Tinha perdido a fala.

         - Eu só espero - prosseguiu o comissário, depois de uma pausa paralisadora - que seja verdadeira essa história sobre o "grande desconhecido", que você contou aí na minha frente.

         - É verdade! - protestou Heyst, os lábios ressecados. - Eu juro!

         - E continua não sabendo o nome dele?

         - Já disse que não.

         - Pode fazer uma descrição do homem?

         - Claro, isso eu posso.

         Wilhelm Heyst fez um retrato falado que podia ser considerado esplêndido. Provou ter olhos aguçados e boa memória. Ambas as qualidades o deixaram em condições de fornecer ao comissário alguns dados que tornaram fácil a expedição de um mandado de captura.

         Apesar disso, tudo acabou sendo um tiro sem direção.

         E por quê?

         Porque o tal desconhecido não pôde ser encontrado durante longo tempo.

 

         Os principais pontos da análise laboratorial - sem os enfeites científicos - foram os seguintes:

         1 - O resultado do exame da mancha de sangue no paletó indicou que se tratava de sangue humano coagulado, que haviam tentado lavar com sabonete.

         2 - O sangue era do grupo AB.

         3 - As manchas eram de duas ou três semanas atrás.

         4 - Análises comparatórias indicaram que o sangue era do mesmo grupo sanguíneo das vítimas Ruth Kappel e Erna Schagen.

         Toda a comissão especial reuniu-se rapidamente para examinar o relatório do laboratório. Mais uma vez, para não perdermos tempo, não se descobriu muita coisa.

         - É provável que os senhores queiram saber - disse Paul Leerdam para os cavalheiros de Amsterdam e Den Haag - se estou acreditando no homem que foi apanhado com o paletó, quando ele diz que o conseguiu de um desconhecido.

         Todo o círculo de pessoas esperou pela conclusão.

         - Pois acredito - afirmou Leerdam.

         Ergueu-se um murmúrio de desaprovação.

         - Mas isso não significa - prosseguiu o comissário - que vou deixar de investigá-lo com todo rigor. Ele está preso, embora eu tenha receio de que o juiz que concedeu a prisão preventiva não a mantenha por muito tempo. Portanto, devemos ter pressa.

         - Qual o grupo sanguíneo dele? - alguém interrompeu.

         - Grupo O.

         - Será que não pode ser o próprio sangue dele, derramado em consequência de algum ferimento?

         - Em nenhum momento ele procurou afirmar tal coisa.

         - Como ele conseguiu as três garrafas de aguardente? - perguntou outro.

         - Não sei - Leerdam admitiu.

         - Você não pediu que ele explicasse?

         - Não.

         - Por que não?

         - Porque achei que, no caso, não tinha nenhuma importância.

         Mais uma vez ouviu-se um murmúrio de protesto em parte da platéia. Um dos cavalheiros, que todos conheciam por sua vida pública, disse:

         - Suponho, colega Leerdam, que os últimos acontecimentos justificam que se faça uma análise do sangue dos suspeitos Peer van Hoest e Jan Sehlke.

         - Por quê? - perguntou Leerdam, espantado.

         - Para se ter esse material à mão em caso de necessidade.

         - E como conseguirei o sangue deles, já que nenhum dos dois está preso?

         O grande teórico de Amsterdam também ficou sem saber. Mas um participante bem-humorado sugeriu que os dois suspeitos fossem atraídos a uma bacanal, na qual se embriagassem, e depois colocados ao volante de seus carros.

         Em seguida, uma patrulha de trânsito, que já estaria à espera, deteria os dois e os submeteria ao teste do bafómetro.

         - Aí você teria o sangue dos dois, colega Leerdam disse o gozador.

         Todos caíram na gargalhada, o que comprovava uma vez mais uma velha experiência de vida: que nenhuma reunião pode ser muito séria ou dramática. Se for, será interrompida por alguma intervenção hilariante.

         A reunião foi encerrada.

         - Venha comigo - disse Leerdam para Schouwen.

         - Vamos percorrer outra vez os locais onde os corpos foram encontrados.

         Schouwen perguntou a si mesmo qual seria o motivo dessa decisão, mas se manteve calado. Leerdam também não seria capaz de explicá-lo. O que ele achava é que alguma coisa precisava ser feita, mesmo a mais absurda, para impedir que enlouquecessem.

         Quando entraram no carro, o assassino, de sua janela, observou-os até o veículo desaparecer numa curva da rua. Depois sentou-se em sua poltrona predileta, esticou as pernas, sorveu um gole de boa e velha genebra e divertiu-se com os ataques que os jornais desfechavam contra a policia.

         À tardinha, bocejou com toda a força dos pulmões.

         Nesse dia, a programação dos cinemas não oferecia nada de especial para ele. Comeu alguma coisa com apetite, mas moderadamente, para não encher demais a barriga. Sabia que tinha bom aspecto e queria manter o corpo da maneira que estava. A aparência era uma de suas armas mais fortes. Antes de ir descansar, tomou um banho de chuveiro.

         Depois foi se deitar em sua enorme cama, onde fechou os olhos rapidamente. Dormiu sorrindo. A julgar por seu sono, sua consciência seria o travesseiro mais macio que se pode imaginar.

         Enquanto isso, Paul Leerdam arrastava seu assistente morto de frio pelas areias do litoral, embora nenhum dos dois pudesse distinguir coisa alguma, pois já era noite.

 

         Durante quatorze dias não aconteceu mais nada em Leeuwarden e arredores.

         Teria acabado a tormenta?

         Era o que parecia.

         De repente o assassino suspendera suas atividades.

         Por quê? Por estar a policia em seus calcanhares? Pelo fato de que Jan Sehlke e Peer van Hoest estavam sob vigilância? Ou porque um ex-bibliotecário se encontrava sob prisão preventiva?

         A imprensa voltara sua atenção para novas sensações.

         Mas o aparato policial continuava com suas engrenagens em movimento.

         Os interrogatórios de Peer van Hoest e Jan Sehlke não produziram nenhuma consequência incriminatória. O negócio entre o pescador e a empresa Termath ocorrera de maneira muito natural. Numa tarde de folga, Jan Sehlke visitara o trecho da costa em que haviam pescado o corpo de sua platónica amada Ruth Kappel. Durante o passeio, deparou com Peer van Hoest, que remendava uma rede de pesca diante de sua casinha. Hoest contou-lhe que ninguém queria comprar seus peixes. Sehlke quis ajudá-lo e se ofereceu para conversar com seu patrão. Assim surgiu a transação comercial pela qual Peer sentiu-se muito agradecido.

         isso já era do conhecimento da polícia há um bom tempo. E havia outro dado decisivo: Jan Sehlke tinha um álibi. No momento do assassinato de Ruth Kappel, estava jogando cartas num restaurante. Seis homens poderiam testemunhar o fato, sem contar o proprietário da casa e os empregados.

         Quanto ao pescador, em pouco tempo foi negada toda e qualquer suspeita sobre ele. Em sua defesa apresentaram-se duas lindas jovens que um ano antes teriam morrido afogadas se Peer van Hoest não as tivesse socorrido, colocando a própria vida em risco. E o mais impressionante foi que ele proibira as duas de falar uma só palavra sobre o assunto, explicando que não queria saber de estardalhaço.

         - Uma pessoa que mata moças - Leerdam disse para Schouwen - não pode ter a disposição de sacrificar a própria vida por duas delas. Não faz sentido. Vou pedir desculpas a ele. E sabe de uma coisa?

         - O quê?

         - Você também.

         - Eu também? Por que eu também?

         - Porque você suspeitava dele tanto quanto eu.

         - Isso não é verdade, chefe - Schouwen replicou em tom enérgico.

         - Schouwen!

         - Sim?

         - Está querendo dizer que eu minto?

         - Não, chefe.

         - Então está querendo dizer o quê?

         - Que você não consegue se recordar direito.

         - Schouwen!

         - Sim?

         - Você está querendo dizer que estou esclerosado?

         - Chefe, você...

         - É isso o que você quer dizer?

         - Não, chefe.

         - Puxa, eu fico admirado com sua maneira absurda ?

         de se expressar.

         - Eu peço desculpas, chefe.

         - Não é necessário, Wilm. Como eu disse, basta que você peça desculpas ao pescador van Hoest.

 

         O comissário Leerdam acabou desistindo de se aborrecer com os fracassos. Seu consolo era que os especialistas de Amsterdam e Den Haag também não avançavam um passo. Tinham aparecido em Leeuwarden com uma atitude de pura arrogância. Aos poucos, no entanto, passaram a se comportar com modéstia crescente. O que conseguiam descobrir era quase sempre algo que Leerdam e Schouwen haviam registrado nos laudos depois dos primeiros três dias.

         Eles procuravam tornar preciso o perfil do assassino, embora não fossem além das aparências. Conheciam seu modo de operar, sabiam da canção que ele assobiava na neblina, atraindo suas vítimas para a morte, e tinham certeza de que só podia se tratar de um psicopata, de um doente mental, que matava só por matar e que se extasiava com seus crimes, à semelhança do genocida alemão Pleil, que escreveu suas memórias atrás das grades, dando-lhes o título de Minha Luta, de Rudolf Pleil, matador aposentado.

         Continuavam infrutíferas as grandes batidas em hospedarias, estalagens e celeiros de todos os recantos da Holanda, em busca do desconhecido que trocara o paletó manchado de sangue pelas garrafas de aguardente do mas cate e andarilho Wilhehn Heyst. Seria apenas um fantasma, uma invenção de Heyst? Ou existia de fato?

         Teria desaparecido sem deixar vestígios? Teria sido devorado pela névoa? Quando essas perguntas seriam respondidas?

 

         Um período de paz começou a se esboçar. Tornavam-se mais fracos os gritos de horror que haviam atravessado toda a Holanda. Mas justamente por perceber essa relativa tranquilidade é que o comissário Leerdam sentia a presença de uma ameaça.

         O assassino dava um tempo, o que não tinha sido seu estilo até então. Ao que parece, tinha algum motivo para proceder de tal forma. Era provável que aguardasse o fim da agitação que tomara conta do país e esperasse que as moças voltassem a ficar desatentas e crédulas para sucumbir à sua sedução.

         O comissário Leerdam tinha a firme convicção de que haveria mais crimes. Por isso, estremecia todas as vezes que o telefone tocava. Receava que fosse o primeiro de uma série de comunicados assustadores.

         Havia participado, com o rosto inflexível, do enterro das três vitimas que foram sepultadas no cemitério de Leeuwarden, depois que a promotoria pública liberou os corpos. Naquele dia, Dan Paldoorn, vendedor de feno-velho e empresário do ramo de transportes, teve muito o que fazer. Empilhou as montanhas de coroas no cemitério e ainda foi obrigado a pedir emprestado um carro fúnebre para levar os três caixões, com toda a pompa, até seu último repouso.

         Durante o ritual do enterro, vários agentes da polícia criminal, sob o comando de Paul Leerdam não perderam de vista as pessoas que estavam no cemitério. Discursos foram feitos, tocaram músicas fúnebres, a multidão era gigantesca.

         Paldoorn, o empresário, estava ao lado de Leerdam.

         - É horroroso! - exclamou.

         O comissário sabia com quem estava lidando e respondeu de maneira mordaz:

         - Apesar de tudo, seu negócio está prosperando.

         - Eu abriria mão disso com o maior prazer.

         - É mesmo?

         - O mais terrível é que a maioria das pessoas vem aqui por pura curiosidade, pelo prazer do sensacionalismo.

         - É verdade. Mas também é certo que uma delas não veio por isso.

         - Quem?

         - O assassino.

         Paldoorn estremeceu.

         - O senhor acredita que ele esteja aqui?

         - Acredito.

         - Por que razão? Afinal, seria muito perigoso para ele. Posso imaginar muito bem que o senhor não é o único policial presente, aqui no cemitério.

         Leerdam ficou calado.

         - Não acho provável que ele seja tão atrevido assim - Paldoorn prosseguiu, balançando a cabeça.

         O comissário continuou sem dizer nada.

         - Ou então ele se sente tão seguro - disse o empresário - que acha que pode ficar andando de um lado para outro na cara da polícia.

         Leerdam não conseguiu mais ficar calado e disse:

         - Quanto mais seguro ele se sentir, mais certeza eu tenho de que vamos agarrá-lo.

         Palavras vazias, Leerdam pensou enquanto falava.

         - Quer dizer que o senhor continua convencido de que vai pegá-lo? - indagou Paldoorn.

         - Para dizer a verdade, mais depressa do que imaginam - insistiu Leerdam.

         Ele satisfazia uma necessidade do público, mesmo que esse "público" fosse composto de uma única pessoa. O papa-defunto trataria de espalhar a notícia, fosse na mesa de um bar, fosse em qualquer outro lugar.

         Sem dúvida o prefeito não parecia convencido de que o assassino pudesse ser preso em pouco tempo. Fez outro discurso em que desfechou ataques contra a polícia.

         O povo parecia sentir que ele falava do fundo do peito.

         Paul Leerdam deixou o cemitério.

         Uma hora depois a multidão havia se dispersado, e ficaram abandonadas as sepulturas abertas, com os caixões no fundo. Restou apenas uma única figura, examinando as faixas das coroas e contemplando demoradamente as flores. Era um homem de boa aparência.

         Caminhou de cova em cova e fez uma saudação formal aos dois coveiros, que saíram da capela próxima carregando pás. Iam fechar as sepulturas para sempre.

         O homem de boa aparência saiu do cemitério. Esboçava um leve sorriso que era inadequado à seriedade daquele local.

         Era o assassino.

         Algum tempo depois do grande sepultamento, tornaram-se mais nítidas as pistas dos assassinatos de Maria Steufels e Grit Vonmeeren. Agentes da comissão especial fizeram um levantamento sistemático das últimas semanas das moças, antes de seu terrível fim. Recomeçaram duas, três vezes, desde o início, e no final acabaram deparando com um fato comum aos dois casos: havia, por assim dizer, um "roteiro cinematográfico" da vida das moças, que ia até o momento em que elas conheceram o homem que iria matá-las.

         A partir daí tanto Maria como Grit passaram a manter um "silêncio" incomum. Não falaram quase nada sobre o tal homem com as amigas e os parentes, o que parecia indicar que o próprio homem as forçara a isso, de algum modo.

         Ele sabia que seria caçado pela policia, depois de cada assassinato, e procurava evitar que as futuras vítimas fizessem comentários a seu respeito. Contudo, era surpreendente que as jovens se curvassem à sua influência de maneira tão dócil. Devia haver um forte componente erótico na raiz do fenómeno. O assassino, certamente, teria adquirido um grande poder sobre suas vítimas nesse aspecto.

         Mas o que de concreto e definitivo a polícia tinha em seu poder? Como já foi dito, não muito. A partir do pouco que haviam dito as vítimas formava-se um quadro impreciso que aumentava mais ainda a confusão reinante.

         No caso de Maria Steufels, de Medemblick, ao norte de Hoorn, o novo detalhe era sobre um senhor elegante, com voz suave e delicada, mãos bonitas e bem-cuidadas.

         Foi assim que um dia Maria o descreveu, de maneira fragmentada, a uma vizinha. Ela o conhecera durante um baile dominical e os dois tinham ido a Hoorn várias vezes, juntos.

         No caso de Grit Vonmeeren, de Kennum, na ilha de Terschelling, a coisa foi bem diferente e proporcionou à polícia um novo elemento perturbador.

         Grit encontrou-se com um homem de meia-idade, de têmporas grisalhas e bonitos óculos de tartaruga com lentes grossas (como a quase simplória Grit contou a uma amiga da aldeia). Era um pouco gago e parecia ser funcionário público de escalão mediano. Vestia um terno simples e camisas com colarinhos que nem sempre estavam limpos. Foi o que mais chamou a atenção da empregada doméstica Grit.

         Ela disse ao homem que, quando ele tivesse uma mulher, tudo aquilo seria diferente. Ao que ele respondeu que teria que ser uma mulher com o nome de Grit.

         Grit conhecera o sujeito na praia de Kennum, onde ele catava conchas. Disse que era para uma aula, mas, ao ser perguntado se era professor, ficou calado.

 

         Paul Leerdam e os colegas da comissão especial refletiram durante longo tempo sobre essas declarações contraditórias.

         - Isso me leva a pensar que se trata de um ator experiente - disse Paul Leerdam.

         - Talvez um académico que também tem formação de ator e interrompeu seus estudos - Schouwen atreveu-se a dizer.

         Foi uma impertinência da parte dele. A reação veio logo em seguida.

         - Schouwen!

         - Sim, chefe?

         - Como devo entender o que você disse?

         - Que não está errado de maneira nenhuma, chefe.

         - Acho que, por falta de adequação à polícia criminal, você precisava ser transferido para a polícia de trânsito.

         - De maneira nenhuma, chefe.

         - Então é melhor parar de pensar que cometi algum erro no caso do bibliotecário. Eu fui a primeira pessoa a suspeitar dele, não fui?

         - Foi, chefe.

         - E quem foi que ficou mais perturbado quando o juiz o liberou da prisão preventiva?

         - Eu, chefe.

         - Muito bem. Vamos esquecer disso. - Leerdam deu uma batidinha com o dedo indicador no tampo da escrivaninha, - ora eu quero que você me diga o que acha dessa surpreendente fantasia do assassino... Têmporas grisalhas, óculos de tartaruga, roupas desleixadas... Ele se torna mais velho e sem brilho. O que compõe um quadro bem diferente do que pudemos formar até agora.

         - Ele ficou mais cauteloso.

         Leerdam concordou.

         - É o que também acho. Ele começou a se meter em diferentes disfarces para evitar o perigo de um dia aparecer um retrato falado parecido com ele em todos os jornais, feito com os dados que conseguimos juntar.

         Schouwen balançou a cabeça, concordando, e tentou acrescentar outra coisa.

         - Também pode ser...

         - O quê? - perguntou Leerdam, quando Schouwen hesitou em concluir a frase.

         - Pode ser que esse sujeito use essa fantasia, como você disse, por puro prazer de brincar.

         - Brincar?

         - Quero dizer que talvez seja do tipo que exagera em tudo que faz.

         - É bem possível - grunhiu Leerdam. - Mas estou vendo aí uma outra possibilidade. Sabe qual é?

         O iluminado Wilm Schouwen não pôde adivinhar.

         . - Não - admitiu, desolado.

         - As têmporas grisalhas - disse Leerdam. - Ele pintou algumas mechas de cabelo quando foi ao encontro de Grit Vonmeeren. Mas ao voltar para casa teve que lavá-las.

         Caso contrário, no dia seguinte os cabelos pintados chamariam a atenção dos seus conhecidos. Isso deve ter acontecido algumas vezes. Portanto, quais as constatações que podemos fazer, Wilm?

         A luz também brilhou no cérebro de Schouwen, que respondeu solícito:

         - Que existe uma tintura de cabelo que pode ser aplicada e retirada de acordo com as necessidades.

         - Certo - afirmou o comissário. - E a segunda?

         - Saber quais os cabeleireiros e farmácias que vendem essa tintura em Leeuwarden e arredores.

         - E a terceira?

         - Descobrir quem a comprou e onde, nos últimos tempos.

         - Exato.

         Foi assim que surgiu uma nova missão. Os agentes da polícia saíram correndo aos bandos e...

         retornaram de mãos vazias.

         Registrava-se, portanto, outro fracasso.

         A tintura para cabelos não tinha sido comprada em nenhum cabeleireiro ou farmácia. O comissário Leerdam reconheceu que estava metido no velho beco sem saída.

         Um acaso veio ajudar.

         Com muita frequência são os acasos que põem em andamento coisas que pareciam não ter perspectiva. Acasos tão incríveis que nos perguntamos se não foi uma espécie de justiça suprema que pôs a mão no jogo para embaralhar novamente as cartas e deixar um curinga na parte de cima.

         O acaso chamava-se Heiner e apareceu certa manhã em Workun.

         Workun é um pequeno porto na saída do lago Ijssel.

         Em Workun atracam os pequenos cargueiros que atravessam o mar dos Wadden, navegando ao longo da costa holandesa. Tratava-se de um porto insignificante que de repente o manobreiro de guindaste Heiner conduziu ao campo de visão do público durante alguns dias.

         Heiner encontrou um terno nas águas salobras do pequeno porto de Workun. Um terno cinzento, de pura lã, e caro. Não se tratava de um terno de confecção. Toda a parte da frente estava besuntada de sangue.

         Leerdam e mais dois colegas da comissão especial par tiram de imediato para o litoral. Wilm Schouwen estava de folga naquela manhã e dormia em sua casa.

         - Você agiu muito bem - disse Leerdam para o manobreiro Heiner. - Foi certo informar à polícia assim que achou o terno.

         Heiner arreganhou um sorriso e falou sobre o prémio, dizendo que não devia ser esquecido no caso do seu achado contribuir para a captura do assassino de mulheres.

         O terno foi relacionado, é claro, com a besta que há semanas vinha decepando a cabeça das moças. Naqueles dias, para a Holanda inteira, não podia haver nenhuma outra relação.

         Foi comprovado que o terno era resultado do trabalho eficiente de um alfaiate. As casas dos botões e o reverso tinham sido costurados a mão. Uma entretela de primeira qualidade fora empregada para fazer o forro. É verdade que o dono do terno havia arrancado a etiqueta do alfaiate, mas mesmo assim Leerdam exultou. Um terno sob medida... Sua origem devia estar localizada em Leeuwarden.

         Todo alfaiate apresenta particularidades em seu trabalho e cada terno leva uma espécie de assinatura pessoal. Logo, bastava que o alfaiate fosse encontrado para que o cliente caísse nas mãos da policia. E esse cliente... Não, não necessariamente... Mas podia ser o assassino. Aliás, era bem provável.

         Os três agentes da polícia sorriram entre si. Enfim uma luz no fim do túnel. Luz que, aliás, brilhava bastante.

         - Meus senhores - disse Leerdam para os outros dois -, Workun fica ao norte de Stavoren. A correnteza parte do mar de Ijssel em direção ao norte. Mas Stavoren é a estação final de uma balsa de transporte que sai de Enkhuizen e passa pelo mar de Ijssel. Ao norte de Enkhuizen, a uma distância de poucos quilómetros, está situada Medemblick, o domicílio da vítima número três, Maria Steufels.

         O rosto de Leerdam ficou sombrio quando prosseguiu com sua explicação.

         - Um de vocês vem de Amsterdam, o outro de Den Haag. Portanto, não conhecem esta região como eu. Afirmo que o assassino matou Maria Steufels já nos arredores de Medemblick e depois a levou de balsa de um modo que ainda não conhecemos. Desembarcou em Stavoren e jogou 'no mar o terno manchado de sangue, que havia trocado antes de entrar na balsa. Esperava que a correnteza levasse o terno de Ijssel para o alto-mar. Em vez disso, o terno foi parar em Workun, enquanto o assassino - imaginem só os nervos desse animal - arrastava o cadáver até Ferwerd para deixá-lo no ponto do litoral onde o pescador van Hoest o encontrou. Para mim é um mistério a maneira como ele realizou esse transporte. Mas nós vamos perguntar a ele.

         Em todo caso, ele queria encobrir seu trajeto e nos fazer acreditar que tinha assassinado Maria Steufels no litoral. Perto de Ferwerd, como no caso da Kappel. Era o que supúnhamos até hoje... E teríamos continuado a supor, caso Heiner não tivesse pescado o terno para nós.

         Leerdam respirou fundo e chegou à conclusão:

         - Agora vejo com mais clareza. O assassino matou Ruth Kappel em Leeuwarden. Todos os outros crimes foram praticados a uma grande distância dessa cidade. Só os cadáveres ele jogava no mar ou na praia, quase na nossa porta, por assim dizer. Agora devemos tentar a balsa de transporte. Vale a pena convocar todos os viajantes daquele dia para que se apresentem. Qualquer observação deve ser encarada como importante. Perguntas a serem feitas: quem notou alguma embalagem fora dos padrões, uma mala de dimensões despropositadas ou mesmo um saco? A quem pertencia? Talvez assim possamos cercar o assassino.

         É isso o que espero, aliás, do fundo do coração. E já estou vendo a luz no meio dessa maldita neblina que envolve os assassinatos e também o nosso trabalho.

         Assim, foi acionada uma outra grande operação de busca.

         Depois de uma semana Leerdam tinha à sua frente um enorme lista com os nomes de parte dos passageiros que haviam viajado de balsa no dia em questão. Diante dele estava sentado um alto funcionário do Ministério do Interior de Den Haag, enviado pelo próprio ministro. Ele queria explicações.

         Leerdam falou, o dedo indicador em cima da lista:

         - Conheço quase todos eles pessoalmente.

         - Como assim? - perguntou o enviado do ministro.

         - São todos habitantes de Leeuwarden. É como se nesse dia metade da cidade tivesse viajado de Enkhuizen para Stavoren.

         - A lista está completa?

         - De maneira nenhuma. Os nomes que temos representam apenas um terço da capacidade das balsas.

         - E por que faltam os outros dois terços? - perguntou irado o alto funcionário.

         - Porque as pessoas não atenderam nossa convocação - Leerdam respondeu, calmo e sereno.

         - Não podemos ameaçá-las com uma punição?

         - Não.

         - Por que não?

         - Porque não existem mecanismos jurídicos para isso.

         Mais uma vez teoria e prática não se encaixavam. O encarregado do ministro era um craque em seu campo, que era bem diferente do campo do comissário Leerdam. Por isso, o alto funcionário só conseguiu expor-se ao ridículo.

         - Pelo menos - perguntou -, o senhor já começou a apertar esses seus habitantes de Leeuwarden?

         Leerdam suspirou.

         - Não é tão fácil.

         - Por quê?

         - Porque todos são, sem exceção, cidadãos respeitáveis, que conheço pessoalmente.

         - Mesmo assim todos devem ser investigados com grande rigor.

         - Entre eles encontram-se até dois de meus policiais.

         - Devem ser os primeiros a ser investigados para que o senhor escape da suspeita de favorecimento. Faça de tudo. Não deixe de fazer coisa alguma se não quiser que amanhã ou depois apareça por aqui o próprio ministro do Interior.

 

         Portanto, a coisa estava em andamento.

         Até o assassino notou. E, com muita calma, fez suas malas, acomodou-as no carro e ainda teve o atrevimento de telefonar para o comissário Leerdam, antes da partida, para perguntar se a polícia tinha alguma coisa contra ele viajar durante duas semanas.

         - Você quer viajar? - Leerdam indagou.

         - Quero. Mas só, como já disse, se você estiver de acordo.

         - É claro que estou de acordo. Mas me diga uma coisa: o que o levou a me perguntar isso?

         - Porque já ficou evidente em quem vocês concentram suas suspeitas.

         - Em quem?

         - Em nós, os habitantes de Leeuwarden. Nós, que naquele dia utilizamos a balsa de Enkhuizen para Stavoren.

         - É mesmo? Isso já ficou evidente?

         - Há muito tempo.

         Querendo ou não, Leerdam foi obrigado a rir.

         - Eu lhe desejo uma boa viagem - ele disse.

         - Obrigado. Posso entender, portanto, que não existe nenhuma suspeita contra mim?

         - Pode. Quando é que você volta?

         - Eu já disse. Dentro de duas semanas.

         - Certo, em duas semanas.

         - Eu aviso quando voltar.

         - Não é necessário. Até a vista.

         - Até a vista, senhor comissário.

 

         O assassino viajou para Aachen e passou ótimos dias por lá. Caminhou por ruas muito iluminadas, foi ao teatro e deu risadas com uma comédia de Shakespeare, viu um filme, visitou o amplo espaço da catedral e contemplou admirado a sede do trono de Carlos o Grande. Também dirigiu a palavra a algumas jovens e passou horas agradáveis com elas, sem ser possuído por sua sede de sangue. Sempre que sentia a cabeça esquentar, o corpo ferver, despedia-se bruscamente da jovem com quem se encontrava e voltava apressado para o hotel, onde tomava um banho frio e deitava na cama, respirando com dificuldade até entrar num sono intranquilo, os dedos cravados no travesseiro como se apertasse o pescoço de uma mulher.

         Lia com enorme interesse os jornais holandeses e os artigos venenosos que se ocupavam das investigações policiais. Aliás, essas publicações tornavam-se cada vez mais raras. Divertia-se muitíssimo com as teorias dos articulistas que embaralhavam ainda mais as poucas pistas existentes.

         O assassino permaneceu em Aachen não apenas duas, mas três semanas, aproveitando bastante suas férias. Só então retornou a Leeuwarden e reassumiu seus negócios. Era um homem respeitável e abastado, de quem as pessoas gostavam muito.

         Apesar do comissário Leerdam ter dito que não era necessário comunicar sua volta, ele se apresentou. Era, de fato, uma dessas pessoas "que exageram em tudo". A suposição de Schouwen era correta.

         - Sou eu de novo - ele disse ao telefone.

         - Fez boa viagem? - Leerdam indagou.

         - Magnífica. Sabe, são raras as vezes em que a gente tem a idéia de passar uns dias relaxando. É o que eu digo. Aliás, você me dá a impressão de que precisa de umas férias com urgência, depois de seu estresse das últimas semanas.

         - Foi dar uma olhada no trono do imperador?

         O assassino ficou tão espantado, que durante alguns segundos não conseguiu dizer coisa alguma.

         - Onde? - perguntou depois.

         - Em Aachen.

         - Como é que você sa... sabe - gaguejou - que eu estava... em Aachen?

         O jovem está muito espantado, pensou Leerdam.

         Por quê? Será que teve casos com mulheres em Aachen?

         Mas ele tem esse direito. Afinal, não é casado.

         - Como é que sei disso, meu caro? Muito simples. Encontrei seu contador na rua. Ele me contou.

         - Ah, então foi isso! - a resposta foi dada com evidente alívio. - Eu já estava pensando que você tinha mandado me vigiar.

         Leerdam deu uma risada.

         - Não tenho tantos agentes assim.

         - Em que pé estão as investigações?

         - Estão avançando.

         - Durante o tempo em que viajei não houve nenhum outro assassinato?

         - Você teria lido.

         - Eu teria que ter jornais holandeses à minha disposição. Como você sabe, eu estava no exterior.

         Você estava em Aachen, pensou Leerdam. E conseguir um jornal holandês em Aachen é tão fácil quanto comprar uma linguiça branca em Munique. Os jornais holandeses chegam aos montes em Aachen.

         Por que esse sujeitinho está mentindo?, Leerdam refletiu.

         - Olha, vou ter que desligar - disse ele. Foi simático você comunicar sua volta. Mas realmente não era necessário.

         Quando desligou, ficou pensativo durante algum tempo.

 

         Um homem que contrabandeava mercadorias foi preso por funcionários da alfândega na fronteira entre a Alemanha e a Holanda, em Kessel, ao sul de Venlo. Tentara atravessar a fronteira com café (cinco quilos) e conhaque francês (dez garrafas).

         À primeira vista tratava-se de um contrabandista inofensivo.

         À segunda vista... era um homem que deixou toda a Holanda agitada.

         Ou seja: ele se adaptava perfeitamente à descrição do mascate que seria o dono do paletó com as manchas de sangue na manga esquerda.

         Finalmente!

         A neblina, ou - como quiserem - a terra que o havia devorado, agora o libertara.

         Mas a identidade ainda não fora revelada.

         No posto de fronteira, que - como todos os postos policiais da Holanda, inclusive os de fronteira - possuía seu retrato falado, ele foi apresentado ao chefe local e ao próprio retrato.

         - É você?

         O contrabandista contemplou o retrato, procurando ganhar tempo.

         - Talvez seja - ele respondeu, divertido.

         Daqui a pouco você vai engolir essa risadinha, pensou o agente, que prosseguiu:

         - Conhece Haringen?

         - A aldeia no litoral?

         - É.

         - Claro. Minha profissão tem a ver com ela.

         - Qual é sua profissão? Contrabandista?

         - Não. Eu só estava fazendo uma pequena tentativa. Hoje foi a primeira vez, eu juro.

         - Foi mesmo? E qual é sua verdadeira profissão?

         - Mascate.

         O agente alfandegário esfregou as mãos, em pensamento.

         - Já pernoitou alguma vez em Haringen? - prosseguiu.

         - Sem dúvida. Qual o lugar onde ainda não passei a noite? !

         - Quando você passa a noite em Haringen, tem preferência por algum lugar especial?

         - Tenho. Um celeiro.

         - Por acaso é o de "Vera Vermelha"?

         - Sim, sempre. Mas por que tudo isso lhe interessa?

         O agente alfandegário estava quase tendo vertigens. Só faltava uma pergunta para fazer.

         - Qual foi a última vez que passou por lá?

         - A última vez? - o homem refletiu. - Não me lembro mais a data. Mas acho que não faz muito tempo.

         Isso bastava.

         Que o sujeito seja mandado para Leeuwarden.

         Lá, precisava-se com urgência de um êxito, pois tinham sido infrutíferas as investigações sobre o tal alfaiate que fizera o terno. Em Leeuwarden não existia nenhum, e a bus ca não poderia ser realizada na Holanda inteira.

 

         O comissário Leerdam já estava à espera do contrabandista. Tinha sido avisado sobre o mascate pelo telefone. Wilm Schouwen também estava preparado. A demora foi longa para os dois, até a chegada do carro da aduana com o suspeito. O preso, que àquela altura era o mais importante da Holanda, foi entregue à polícia por dois agentes alfandegários fortemente armados.

         Era um homem na casa dos quarenta anos, castigado e curtido pelos ventos e pelo clima, com rosto de rato e mo dos de vagabundo. Não poderia ser outra pessoa.

         Quando notou a agitação que sua chegada provocava - gente como ele não deixa de notar esse tipo de coisa -, perguntou com a maior espontaneidade:

         - Afinal, do que se trata?

         - Ainda não lhe disseram? - Leerdam provocou.

         - Não. Só ficaram falando de Haringen. Essa história deve ter alguma coisa a ver com Haringen.

         - Certíssimo. Tenho algumas perguntas a fazer com relação a isso.

         - De minha parte, tudo bem - o preso concordou, impassível.

         Leerdam dirigiu o olhar para o paletó do homem e apontou o dedo para ele.

         - Onde conseguiu?

         - O paletó?

         - É.

         O suspeito o havia roubado de uma lavanderia e por isso ficou mais cauteloso.

         - Não me lembro mais. Ou comprei ou ganhei de presente. Tudo é possível. O certo é que não me lembro mais.

         - Como é que não se lembra mais? Afinal de contas , tem pouco tempo que você está usando esse paletó, não é?

         - Pouco tempo?

         - É. Desde a sua última parada em Haringen.

         O vagabundo tomou a decisão de fazer uma confissão.

         O que poderia acontecer por causa de um ridículo paletó usado?

         - Pois bem - ele disse. - Eu roubei esse paletó. Só não compreendo todo esse alvoroço por nada... Retrato falado, transporte especial com escolta reforçada até aqui, entrega formal de preso, tudo isso. Vocês não têm mais o que fazer?

         - Claro que temos.

         Leerdam piscou o olho para Schouwen. A cena havia sido preparada. O assistente foi ao gabinete contíguo e retornou com um objeto que era o motivo de todo o interrogatório: o paletó com os restos de sangue na manga esquerda.

         - Você o reconhece? - Leerdam perguntou ao vagabundo, já esperando uma negativa.

         Mas, para sua surpresa, o homem replicou após um rápido exame:

         - Reconheço. É meu antigo paletó.

         - Quer dizer então que você admite isso?

         - E por que não haveria de admitir?

         Leerdam deu início ao ataque geral.

         - Por isso aqui - ele disse num tom de voz cortante, colocando a manga do paletó debaixo do nariz do sujeito.

         Mas o vagabundo nem sequer empalideceu. Seu olhar ia da manga do paletó para Leerdam, como se não entendesse nada. Depois perguntou:

         - Onde o senhor quer chegar?

         - Pode me dizer que manchas são essas?

         Leerdam esperava por uma resposta bem diferente da que recebeu.

         - São manchas de sangue.

         - Manchas de sangue de galinha?

         - Não, manchas de sangue humano.

         O comissário engoliu em seco.

         - E você diz isso com essa tranquilidade?

         - Por que não?

         - Qual é o seu grupo sanguíneo? Você sabe?

         - Por acaso eu sei, dos tempos do Exército. Meu grupo sanguíneo é B.

         - Então o sangue na manga do paletó não pode ser seu.

         - Claro que não.

         - Como é que você vai se arranjar para explicar essa história do sangue? Quem é que consegue reconhecer essas manchas assim, sem mais nem menos?

         O vagabundo arreganhou um sorriso de superioridade.

         - Posso explicar. É por duas razões. Primeiro porque tentei lavar o paletó para tirar as manchas. Mas não consegui. O sangue é teimoso. Pude ver isso quando lavei.

         - E segundo?

         - Segundo porque a pessoa que me deu o paletó disse que era sangue do nariz dele.

         Leerdam quase teve um acesso de soluços.

         - Como? Uma pessoa deu a você esse paletó?

         - Deu.

         - Está querendo dizer que não foi o primeiro dono desse paletó?

         - Exatamente.

         - E que já havia sangue na manga quando você ficou com ele?

         - Certo. Isso pode ser confirmado pela pessoa que me deu o paletó.

         Leerdam respirou fundo e fez a pergunta que - mais uma vez achava - seria decisiva. Mas quantas vezes já não caíra nessa nas últimas semanas?

         - Quem é a pessoa?

         - Não sei o nome. Vocês é que terão que procurar - o vagabundo respondeu com muita descontração, fazendo com que o comissário perdesse o controle dos nervos e gritasse de repente:

         - Cara, fique sabendo de uma coisa! Se não nos entregar esse sujeito, vamos ficar em cima de você o tempo todo! Só entregando o homem é que poderá provar que não mentiu!

         - Vocês terão que procurá-lo - o vagabundo respondeu sem se impressionar com os berros. - E com certeza vão encontrá-lo. Como me encontraram sem saber meu nome.

         O comissário Leerdam estava farto. Eu me equivoquei, pensou. E sentiu que não tinha mais condições para dar prosseguimento ao interrogatório dentro dos moldes prescritos por lei.

         - Continue você - disse para Schouwen, e saiu do gabinete para andar de um lado para outro no corredor durante algum tempo, até recuperar a calma.

         Enquanto isso, Wilm Schouwen conseguia arrancar o seguinte do vagabundo:

         - Havia um pouco de sol, o que é uma coisa rara.

         Eu estava atrás de um arbusto, me esquentando, e peguei no sono. Quando acordei, morrendo de frio, já era noite.

         Apareceu um sujeito bem perto de mim, querendo jogar o paletó no mar. Ele não tinha me visto. "Não faça isso", eu gritei. "Deixe esse paletó para mim. Veja só como está o meu." Ele resistiu, apontou para a sujeira da manga, para o sangue. Disse que era do nariz dele. Quando vi que não iria conseguir o paletó de outra maneira, arranquei-o da mão dele e saí correndo. Ele me perseguiu durante algum tempo, depois desistiu. Como eu disse, já estava bem escuro. Mas poucos dias depois eu fiquei de novo sem o paletó. Troquei-o por três garrafas de aguardente com um sujeito que era um verdadeiro imbecil. Eu teria aceitado a troca até por duas garrafas. Pode perguntar ao cara. Aliás, nem sei o nome dele, coisa que já não tem nada de estranho. Vocês é que devem procurar esse homem. E já devem até conhecê-lo.

         O vagabundo apontou para o paletó e concluiu:

         - Se não conhecem, como é que estão com esse paletó?

         Para se afirmar, Schouwen procurou apressar o interrogatório antes que o comissário voltasse ao gabinete. Falou com rapidez:

         - Descreva o sujeito que queria jogar o paletó no mar.

         O vagabundo olhou para o teto e fechou os olhos para pensar. Logo depois tornou a abri-los e respondeu com uma pergunta:

         - Mas afinal de contas qual é o problema com essa maldita porcaria? Por que essa confusão toda?

         Schouwen teve a sensação de estar diante de um inocente. Pelo menos em relação ao ponto que estava em questão naquele momento. Claro que não podia ter certeza absoluta, mas, na dúvida, apostou tudo numa só carta ao a dizer:

         - Nós achamos que o primeiro dono do paletó é o homem mais procurado pela polícia da Holanda.

         O vagabundo ficou de queixo caído.

         - O... assassino de mulheres?

         - Sim. Por isso é muito importante a descrição dele.

         Repetiu-se a cena anterior: o vagabundo tornou a olhar para o teto e fechou os olhos com força para se lembrar de tudo.

         Depois começou a se explicar, com interrupções:

         - Já estava escuro... Eu fiquei olhando mais para o paletó na mão dele do que para ele mesmo... Não era baixo nem gordo. Era magro... E tinha dinheiro, isso se podia sentir.

         - Estava de óculos?

         - Não.

         - Que tipo de cabelo? Grisalho?

         - Não sei. Não pude ver.

         - Alguma característica especial chamou sua atenção?

         - Não... Espere. Ele tinha um dente de ouro no lado esquerdo da parte de cima.

         - Tem certeza? - Schouwen proferiu, agitado.

         - Tenho. O dente brilhava no escuro.

         Wilm Schouwen saiu correndo para o corredor e foi chamar o chefe. Pouco depois era concedido ao vagabundo o prazer de lançar enormes nuvens de fumaça em direção ao teto com um dos grossos charutos oriundos do estoque privado do comissário Leerdam.

         - Quer dizer que vocês acreditam em mim? - perguntou ele aos dois agentes da polícia. Fizera essa dedução a partir da amabilidade com que de repente passara a ser tratado.

         - Acreditamos - disse Leerdam. - Mas se por acaso estivermos errados, não faz mal. Vamos conseguir botar as mãos em cima de você mais uma vez.

         - Isso significa que estou sendo liberado?

         - Está.

         - Sem queixa?

         - Sem queixa. Só precisa nos dizer para onde vai. Pode ser que seja preciso convocá-lo com urgência, caso haja uma acareação.

         - Uma acareação com o... assassino?

         - Exato. Para onde você vai?

         O vagabundo pensou durante alguns momentos e depois arreganhou um sorriso.

         - Bem, eu perdi minha mercadoria contrabandeada - disse. - Portanto, nos próximos dias vou ter que viver de empréstimos até conseguir alguns trocados. Só posso conseguir isso com "Vera Vermelha". Ela é gente fina, tem um grande coração. Assim vocês ficam sabendo onde estou.

         - Diga à sua benfeitora - Schouwen intrometeu-se, pois o sucesso transbordava em seu coração, fazendo com que ficasse de língua frouxa - que ela pode ficar tranquila e que também pode dilatar o prazo de seu crédito.

         Talvez você acabe recebendo um prémio.

         - Um prémio?

         - Pela captura do assassino.

         - De quanto?

         - Trinta mil florins.

         - Trinta... - o vagabundo respirou com dificuldade - ...mil florins?

         Nem conseguiu imaginar a quantia. Quando saiu do prédio da polícia e chegou à rua, ainda estava tonto.

         Então aconteceu algo catastrófico.

         O assassino, que morava nas proximidades da delegacia de polícia, olhou por acaso pela janela e viu quando o vagabundo deixava o prédio.

         Ficou petrificado. Soaram em seu cérebro todas as campainhas de alarme. Agiu em seguida com a velocidade do raio.

         A sorte vinha em sua ajuda. Antes havia passado uma hora esforçando-se para se meter de novo na fantasia de homem de bem com cabelos grisalhos, já que à noite iria encontrar uma cozinheira cuja vida estaria correndo sério perigo. Mas agora o programa teria que ser mudado da maneira mais rápida possível. O vagabundo jamais tinha visto o homem de cabelos grisalhos, nem de dia nem durante a escuridão da noite. Por isso o assassino tinha condições de seguir o vagabundo sem que ele o descobrisse. Foi o que fez. Seguiu-o até a região de Haringen, utilizando o mesmo meio de transporte público. Levava consigo a pasta nova com o conteúdo mortal.

         O vagabundo foi encontrado morto, decapitado, no meio de uma poça de sangue, num declive do dique perto do celeiro de "Vera Vermelha". No momento em que foi encontrado, o assassino já estava em casa pensando em tomar um bom drinque, como era seu hábito após a realização de um trabalho. Mas naquele dia não conseguiu. A intranquilidade fez com que ficasse perambulando pela casa. Andou sem parar de cómodo em cómodo. Será que sentia fechar-se cada vez mais, em torno de si, a armadilha que até agora só lhe provocara ironia e escárnio?

 

         Paul Leerdam estava parado diante do cadáver do vagabundo, ou seja, do contrabandista, ou ainda, do andarilho. O corpo estava coberto com uma colcha. "Vera Vermelha" chorava em segundo plano, no meio de alguns clientes, insistindo em repetir muitas vezes que não sabia quem poderia ter feito aquilo.

         Leerdam estava cabisbaixo. Havia uma pergunta que o devorava por dentro: como o assassino soube que era hora de cometer aquele assassinato? Como podia saber?

         A chorosa dona da taberna continuava repetindo que não podia imaginar quem pudesse ter feito aquilo.

         - Desapareça! - Leerdam gritou num dado momento, por sentir-se perturbado. - Sumam todos daqui!

         Como é que ele pôde saber disso?, Leerdam não parava de se perguntar. Martelava a própria cabeça.

         Com o correr do tempo, um pensamento que o constrangera desde o início foi assumindo formas cada vez mais nítidas. Leerdam opunha-se a ele, mas não podia mais reprimi-lo.

         Ficou claro qual era o pensamento, quando Leerdam chamou o assistente que procurava pegadas nas proximidades.

         - Wilm - o comissário começou, a voz reprimida.

         - Diga-me uma coisa. Você conhece em nossa vizinhança algum policial que tenha um dente de ouro na arcada superior, à esquerda?

         - Chefe - disse Schouwen. - Agora mesmo eu também estava pensando a mesma coisa.

         - E então?

         O assistente encolheu os ombros.

         - Não conheço nenhum.

         - Mas como é que o assassino pôde obter com tanta rapidez a informação que o levou a cometer esse crime?

         - Talvez seja cúmplice de algum policial.

         - Então teria que ser algum policial bem próximo a nós.

         - Com certeza.

         Leerdam soltou uma praga e acrescentou:

         - Isso me deixa liquidado, pode ter certeza...

         Schouwen levava na mão um saquinho com gesso.

         - Achou alguma coisa? - perguntou Leerdam.

         - Achei. É apenas uma impressão de sapato na metade do caminho para o celeiro, lá embaixo, ao lado de uma poça d'água. Um lugar onde a terra é bem macia. Já constatei que a impressão não foi feita pelo sapato do morto.

         - Até que enfim! - Leerdam disse com satisfação.

         - Até que enfim uma impressão, sabe por que a conseguimos? Porque tivemos bom tempo ontem e hoje. Não houve cerração, nem chuva, nem umidade para apagar a impressão. Deus seja louvado!

         Afora a impressão, que era muito valiosa, não foi encontrado mais nada nas proximidades do cadáver.

 

         Uwe Hellmond era um agente da polícia dentro do figurino: correto, solícito, corajoso, prestativo. Estava com 45 anos de idade e sabia que dentro de dez anos poderia se aposentar. Aos 23 casou com Wilma, a linda filha do dono de uma mercearia. Os dois tinham uma filha, agora com vinte anos. Seu nome era Antje. Após frequentar a escola comercial, Antje começou a trabalhar na polícia de Leeuwarden como secretária. O pai a aconselhara muito a fazer essa opção profissional. Não havia nada mais seguro contra as crises económicas do que um cargo na polícia, era a opinião dele. A mãe, Wilma, teria preferido ver a filha em outra profissão, uma qualquer em que não ficasse cercada por criminosos o dia inteiro. Mas naquela família Wilma não era a pessoa que detinha o poder de voz e de voto. Isso era privilégio do seu enérgico marido, o que não significava que a esposa levasse uma vida de escrava. Ah, não, fazia parte de sua natureza não se sentir mal por ser "conduzida".

         Os Hellmond moravam numa casa funcional nas proximidades da central de polícia, no centro da cidade de Leeuwarden. Mamãe Wilma, que engordara um pouco no correr dos anos, cuidava da casa de três quartos com um zelo que parecia ter vindo do berço. Quando pai e filha voltavam para casa, cansados e famintos, encontravam o calor de um verdadeiro lar. O que fazia um enorme bem aos dois depois de uma atividade em geral bem frenética na central de polícia.

 

         Antje tinha cabelos louros e longos, olhos azuis, era magra e alegre e nutria uma grande paixão: o cinema.

         Muitas moças de sua idade deliravam com os heróis da tela, mas no caso de Antje esse delírio atingia o ponto máximo. Aqui, devemos lembrar que na época ainda não existia televisão, que hoje em dia derrubou muito o prestígio do cinema. As paredes do quarto de Antje viviam abarrotadas de fotos de astros do cinema daqueles anos. Os que mais se destacavam eram Stewart Granger e Rudolf Prack. Antje não per dia um filme no Film Palast, o maior cinema de Leeuwarden, que até se dava ao luxo de ter cadeiras numeradas.

         Na maio ria das vezes era acompanhada por duas amigas. No caso dos filmes muito bonitos - quer dizer, tristes -, a mãe também acompanhava o grupo. Depois de ver um filme, Antje tinha assunto para conversar durante dias e dias, contando para as vizinhas como o mundo podia ser mau como forme mostrava o cinema.

         Também acontecia de Antje ir sozinha ao Film Palast.

         Aliás, já tinha feito isso duas vezes para encontrar-se com um jovem que lhe causara boa impressão. Mas depois de duas sessões de cinema, ele tentou se exceder nas investidas amorosas e teve como despedida uma boa bofetada. Os pais, a quem Antje contou a história, elogiaram a atitude da filha. O pai, Uwe, creditou o comportamento dela em sua conta corrente. Disse para a mulher, orgulhoso:

         - Viu só, Wilma? A minha educação!

         E minha não?, pensou Wilma. Mas disse:

         - Isso mesmo, Uwe.

         Naquele dia o Film Palast exibia um novo filme alemão. Papai Precisa de uma Mulher, era o título. Antje ficou ansiosa para vê-lo, pois achava que devia ser divertido. Pelo mesmo motivo Wilma não demonstrou o menor interesse pelo filme, já que preferia ir ao cinema para chorar. As duas amigas, que em geral faziam companhia a Antje, não podiam acompanhá-la. Uma porque sairia com um admirador que entrara em cena pouco antes. A outra porque não conseguiu se safar da festa de aniversário da avó. Assim, como que abandonada por todos, Antje foi forçada a cometer a audácia de ir sozinha ao Film Palast.

         E não é exagero caracterizar a coisa como audácia. Sem que Antje suspeitasse, acabou caindo nos braços do assassino de mulheres mais temido de toda a Holanda.

         Papai Uwe, o agente da polícia, estava de serviço e iria chegar em casa tarde da noite. Antje comprou uma entrada antecipada e foi passear um pouco, pois a sessão só começaria meia hora depois.

         Quando saiu da bilheteria e forçou a passagem no meio da multidão que também aguardava a sessão, foi seguida por dois olhos febris. Um homem de boa aparência, trajando um terno feito sob medida que revelava a mão de excelente alfaiate, aproximou-se da bilheteria logo depois de Antje e comprou um ingresso.

         - Tem que ser bem ao lado daquela moça - ele disse em voz baixa, e deu uma piscada de olho divertida para uma bilheteira acostumada a lidar com aquele tipo de espectador galante.

         O homem pagou, agradeceu com muita educação e depois caminhou apressado para a saída com o objetivo de fazer contato com Antje. Mas ela já havia desaparecido na multidão.

         A bilheteira, também jovem e bonita, ainda dedicou a ele alguns pensamentos.

         Um homem simpático, foi o que ela pensou. Do tipo que me deixa mole rapidinho. Por que não tenho a sorte de sentar ao lado dele? Parece que veio direto do trabalho.

         Fez essa suposição porque o homem carregava uma pasta. E dava para perceber que a pasta era pesada.

 

         A bilheteira nem sequer poderia imaginar o horrendo risco que uma jovem correria ao sentar-se ao lado daquele homem, caso ele se interessasse pela súbita companhia.

         Ele estava agora na rua, olhando em torno à procura da jovem. Mas foi em vão. Antje já havia desaparecido.

         Não faz mal, eu vou acabar sentado ao lado dela, ele disse para si mesmo, colocando o ingresso do cinema no bolso da capa de chuva. Depois foi até um bar, pediu um café e apoiou a pasta na perna da mesa.

         Não gostou tanto assim do café, do tipo moca. A culpa não foi tanto do café, mas dele mesmo. Era sempre as; sim: só depois de realizado o trabalho - nunca antes é que podia beber e comer com grande apetite. À exceção do café, sua mente estava ocupada com pensamentos agradáveis. Pensava em cabeças femininas separadas de seus corpos. Agora seria de novo a vez de uma loura. Ele preferia decapitar cabeças louras. Afinal, começara com uma loura. Como era mesmo o nome daquela moça? Ruth... Ruth o quê? Ruth Kappel, era isso. Quase não se lembrou do nome.

         Fazia parte do passado e era coisa liquidada. Ele também olhava para o futuro em seus negócios.

         Fora-se a intranquilidade que o possuíra depois do assassinato do andarilho, aquele homem que quase havia colocado sua sorte em perigo. Esse tipo de morte não se adequava à sua concepção, pois sua preferência eram os assassinatos de mulheres. Matara o andarilho porque a lei da necessidade o forçara. Mas estava pronto para retornar a seu ofício.

         Agora havia também o encanto singular de não conhecer a moça que seria a sua próxima vítima, pois, se surgisse a possibilidade de matá-la naquela mesma noite, ele o faria. O homem estava decidido. O assassinato do andarilho não lhe trouxera nenhum prazer. Em compensação, o assassinato de uma mulher estava relacionado com sensações de extrema luxúria. O homem ansiava por esse prazer. Mas se não surgisse naquela noite a desejada oportunidade, nada lhe restaria a não ser paciência. Afinal, sabia que a vida não joga tudo nos braços das pessoas.

         Quando olhou para o relógio de ouro, viu que era hora de pagar. Chamou a garçonete, alegrou-a com uma boa gorjeta, pegou a pasta e saiu do café, fazendo um cumprimento amigável.

         Ao chegar à rua, olhou em torno para ver se não descobria a moça cujos dias, ou talvez horas, já estavam contados. Mas não avistou nenhuma cabeça loura diante do cinema. Encolheu os ombros, apalpou o ingresso no bolso da capa e preparou-se para atravessar a rua.

         Havia um policial no cruzamento das duas ruas principais, observando o intenso tráfego noturno e preparado para intervir em caso de necessidade. Não reparou no transeunte de comportamento disciplinado que, atravessando a rua pela faixa branca, passou por ele.

         A multidão se aglomerava diante do cinema. O assassino misturou-se às pessoas, deixando-se empurrar na direção da entrada. Depois de mostrar o bilhete à mulher que trabalhava como lanterninha, foi acompanhado até a fileira de poltronas. Enfiou-se entre elas, pedindo desculpas educadamente às pessoas que já estavam sentadas, e chegou ao seu lugar. Sentou-se.

         A poltrona à sua esquerda, que pertencia a Antje, estava vazia. A moça ainda não chegara. Estava diante de uma loja de roupas femininas, sonhando com um vestido de veludo azul-claro, exposto numa das vitrines. Quando finalmente libertou-se de sua contemplação, apressou o passo para chegar ao cinema antes do primeiro toque da campainha. Enquanto caminhava, retirou o ingresso da bolsa.

         Era um lugar de primeira: assento número 189.

         Ao perceber a chegada de Antje, o assassino desviou o olhar dela e ficou examinando o outro lado do enorme salão. Quando ela sentou-se a seu lado, ele desabotoou o casaco, abriu o programa e começou a examiná-lo à luz difusa que incidia indiretamente sobre o salão a partir de fontes laterais. Não olhava para a moça. Parecia ter enorme interesse na cortina vermelha que fechava o palco.

         As luzes começaram a se apagar. As cortinas foram abertas.

         Na tela, apareceram os pequenos filmes de propaganda. Uma música delicada saía dos alto-falantes.

         Antje recostou-se na poltrona e cruzou as pernas.

         Deu uma rápida olhada para o lado, ao sentir que estava sendo observada, e viu o homem bem de perto.

         Quando seus olhares se encontraram, o assassino sorriu.

         Por julgar-se apanhada em flagrante, Antje rapidamente desviou o olhar para a frente.

         - Estou ansioso para ver esse filme - disse o homem.

         Sua voz era cálida, insinuante e irradiava uma simpatia incomum.

         Antje balançou a cabeça, mas não olhou mais para ele.

         Então as luzes se apagaram por completo.

 

         Naquela noite, Paul Leerdam voltou a meditar sobre os assassinatos. Sabia que o monstro assassino o faria perder a cabeça, caso fracassasse na tentativa de neutralizá-lo. Se isso acontecesse, estava decidido a cavar a própria sepultura, ou seja, solicitar sua aposentadoria antes do tempo.

         Mas então não servirei para mais nada, ponderou. Claro que a idéia era um disparate. Se todos pensassem assim, inúmeros agentes de polícia teriam que pendurar as chuteiras e os casos não solucionados de crimes de grosso calibre formariam montanhas pelo mundo afora. Contudo, Paul Leerdam não poderia agir de outra maneira. Apesar das objeções de seus colegas - sobretudo da parte de Schouwen -, aos quais dera um prazo de três meses para o sucesso ou fracasso definitivo das investigações, o comissário tomara a decisão férrea de ir para o desvio, caso o assassino ainda estivesse em liberdade no fim desse tempo.

         O fato de que a comissão especial também estava entregando os pontos, aos poucos, era apenas um consolo fugaz para ele. Aqueles cavalheiros das grandes cidades tinham ido a Leeuwardea com a idéia de mostrar a um provinciano com quantos paus se fazia uma canoa. Agora estavam cuspindo palavras bem mais modestas. O número de membros da comissão já fora até reduzido. Afinal - esta era a opinião do Ministério do Interior -, não fazia o menor sentido manter em Leeuwarden um monte de especialistas que apenas se agitavam por lá, quando poderiam ser mais bem empregados em algum outro lugar. E o ministro do Interior também não cumprira a ameaça de aparecer em Leeuwarden como raposa em galinheiro.

         Para quê? Não serviria para coisa alguma, como o homem disse a si mesmo.

         O comissário Leerdam e Wilm Schouwen haviam esquadrinhado cada um dos casos de assassinato, examinando seus mínimos detalhes. Leerdam investigara em especial, muitas e muitas vezes, o meio social em que vivera Ruth Kappel. E tudo começara com Ruth.

         Leerdam também visitara todos os conhecidos e parentes de Maria Steufels, Hendrikje Balder, Grit Vonmeeren Lissa Tenboldt e Erna Schagen. Não foi apenas uma vez que se reuniu com todos eles.

         E o que foi obrigado a reconhecer várias e várias vezes? Que estava de mãos vazias, claro. Na verdade, houve uma ou outra descoberta que despertou súbita esperança - talvez o dente de ouro, ou a impressão do sapato -, mas logo depois tudo escapou por entre os dedos. O assassino, que não agia com cautela especial ou de maneira refinada, tinha uma sorte danada. Sobretudo porque as vítimas seguiam suas instruções e pedidos ao pé da letra, e não cometiam indiscrições a seu respeito.

 

         Certa noite, Paul Leerdam fez uma nova descoberta.

         Seria mais uma que se dissolveria em fumaça?

         O espólio de Maria Steufels, a pequena modista da aldeia de Medemblick, continha uma carta que a princípio ninguém notara, mas cujo estranho estilo chamou a atenção do comissário.

         O texto era o seguinte:

 

         "Querida Maria.

         A tia que chega amanhã só tem prazo de nove dias para buscar o relógio. Mas também gostaria de mandar para ela uma ponte daquele tal dentista Stavoren.

         Saudações, Henri."

 

         A carta era aparentemente inofensiva. Por que Maria não poderia ter uma tia que fosse buscar um relógio consertado? E por que um homem de nome Henri não poderia enviar para ela uma prótese dentária do dentista Stavoren?

         Ou será que se tratava de uma tia desse tal Henri? O texto não esclarecia esse ponto.

         A carta, escrita à máquina, fora incorporada ao dossier do assassinato sem que ninguém lhe desse a devida atenção, como já foi dito. Mas agora o comissário Leerdam examinava-a com especial atenção.

         Contemplou durante longo tempo a folha de papel junto com o envelope.

         O carimbo postal era de Leeuwarden.

         Mas em toda Leeuwarden não existia nenhum dentista com o nome de Stavoren. Este era o nome da estação final das balsas que partiam de Enkhuizen, uma das quais desempenhara um papel macabro no assassinato de Steufels.

         Após essa reflexão, o comissário Leerdam começou a analisar a carta e a separar e recombinar suas palavras como se lidasse com uma charada. Depois de algum tempo, espantado, deparou com uma possibilidade que o deixou intrigado. Descobriu que certas palavras, quando destacadas do texto, adquiriam um novo sentido quando eram ligadas de outras maneiras. Sublinhou algumas com um lápis, procurando descobrir uma espécie de código. A carta ficou assim:

         A tia que chega "amanhã" só tem prazo de "nove" dias para buscar o "relógio". Mas também gostaria de mandar "para" ela uma "ponte" daquele tal dentista "Stavoren".

         Leerdam recostou-se na cadeira, assobiando por entre os dentes, e concluiu que aquilo não significava nada. Perdera seu tempo à toa. Acendeu um charuto e em seguida telefonou para seu assistente, que estava em casa e se preparava para pegar a segunda garrafa de cerveja na geladeira.

         - Wilm - começou o comissário. - Sabe de uma coisa?

         - Sei - disse Schouwen. - Devo ir para aí agora mesmo.

         - Certo. Mas sabe o motivo?

         - Não, chefe.

         - Descobri uma carta.

         - Uma carta?

         - Uma carta do assassino.

         - O quê? - Schouwen gritou.

         - É isso mesmo, imagine só. E não consigo entender .por que essa notícia não deixa você de cabelo em pé.

         - Mas é claro que me deixa de cabelo em pé, chefe.

         Já estou indo para ai.

         - Era o que eu queria dizer. Não consigo entender como numa situação como essa você fica em casa, bebendo a quinta garrafa de cerveja e querendo esquecer a jornada de trabalho de oito horas.

         - Eu estava me preparando para abrir a segunda garrafa.

         - Podemos comprar algumas no automático daqui.

         Quatorze minutos depois Schouwen apareceu no gabinete de Leerdam com a pergunta:

         - Que carta é essa?

         O chefe apontou-a e disse:

         - Ela estava aqui esse tempo todo. É difícil de acreditar.

         - Que coisa estupenda! - exclamou Schouwen, balançando a cabeça.

         Segurou a folha, virou-a de um lado para o outro e contemplou-a de todos os ângulos.

         A segunda providência de Leerdam foi passar o envelope para Schouwen.

         De repente Schouwen deixou cair as duas coisas, folha de papel e envelope, em cima da escrivaninha, como se fossem objetos incandescentes.

         - Impressões digitais! - exclamou.

         Leerdam fez um aceno negativo.

         - Primeiro, acho que o assassino é esperto demais para isso. Em segundo lugar, várias pessoas já estiveram com essa carta nas mãos. De modo que é inútil alimentar qualquer esperança com relação a impressões digitais.

         Wilm Schouwen reconheceu que era verdade.

         - Vamos nos concentrar no texto - prosseguiu Leerdam. - Ele confirma a nossa teoria sobre como ocorreu o assassinato de Maria Steufels.

         - Também acho, chefe.

         Schouwen tornou a pegar o envelope em cima da mesa e olhou para o carimbo postal.

         - Leeuwarden - pronunciou. - A data também coincide. Ela se ajusta ao assassinato. A carta foi postada aqui.

         - Depois que ele a escreveu à máquina - Leerdam completou.

         - Cherchez... não la femme, mas sim a máquina de escrever - disse Wilm Schouwen, usando uma variação do famoso ditado. - Vamos tratar de procurar e encontrar essa máquina. Depois o assassino estará em nossas mãos.

         Em primeiro lugar, era preciso averiguar o tipo da máquina em que a carta fora escrita. Para isso era necessário que se fizesse um exame. O comissário fez pressão sobre os técnicos e já na tarde seguinte tinha o seguinte laudo em sua mesa:

         "Uma velha Remington de origem americana, marca que não foi muito difundida na Holanda, sobretudo esse modelo, que é do ano de 1939. Por isso, a máquina, que foi importada do exterior há muito tempo, deve ser propriedade do assassino ou de sua família - isso se for uma peça herdada. Mas também pode-se supor que tenha mudado de proprietário várias vezes."

         O comissário Leerdam preferiu não pensar na última possibilidade.

         - Por onde você começaria? - perguntou a Schouwen, que não precisou pensar muito tempo para responder:

         - Pela única loja de aluguel de máquinas de escrever.

         - Pois trate de ir até lá agora mesmo para saber se eles têm uma máquina como essa.

         Não tinham. Meia hora depois Schouwen já estava de volta para comunicar a descoberta ao chefe.

         - Qual seria o próximo passo, Wilm?

         - Eu diria que é a firma Termath.

         - Você é um rapaz esperto, Wilm. Vou propor que seja meu sucessor, caso eu pule fora daqui a três meses.

         - Você não vai pular fora, chefe. Depois dessa obra prima da máquina, não vai pular fora.

         - Nada poderia ser melhor para você.

         - Corta essa, chefe! - Wilm Schouwen disse do fundo do coração. - Não quero trabalhar mais de oito horas por dia, como você. Corta essa!

         - Schouwen!

         - Sim?

         - Que concepção de trabalho é essa?

         - A da atual geração. A mais nova, chefe.

         - Entendo, Schouwen. Mas vou desmoralizá-la nem que isso leve dez anos, eu lhe garanto.

         O assistente arreganhou um sorriso.

         - Você não poderá conseguir isso em três meses.

         - Vá correndo até a firma Termath.

         - Não vem junto, chefe?

         Leerdam pensou durante um momento, depois disse:

         - Eu também vou. Não é certo ficar sentado aqui à sua espera.

         Experimentaram um verdadeiro choque quando chegaram ao escritório da empresa de peixe em conserva.

         Ha via lá uma velha Remington.

         Paul Leerdam ficou eletrizado. O mesmo ocorreu com Wilm Schouwen.

         Uma jovem datilógrafa estava sentada diante da máquina.

         - É aqui que você trabalha sempre? - Leerdam perguntou a ela.

         - Sim - ela respondeu, com o olhar mudando do velho cavalheiro de aparência austera para o jovem que era mais bonito. Preferiu o último e demonstrou isso. Seus olhares foram mais para ele do que para o velho comissário.

         - Fora você, quem mais escreve nessa máquina? prosseguiu Leerdam.

         - Ninguém.

         - Tem certeza absoluta? Por acaso você tranca a máquina depois do expediente?

         - Não, não tranco - a moça respondeu, admirada.

         O comissário pegou a folha de papel em branco mais próxima, entregou-a à moça e disse:

         - Faça o favor de colocá-la na máquina e escreva o seguinte...

         A datilógrafa fez o que ele ordenou.

         - A tia que chega amanhã - Leerdam passou a ditar para ela - só tem prazo de nove dias para buscar o relógio. Mas também gostaria de mandar para ela uma ponte daquele tal dentista Stavoren. Saudações, Henri.

         Em seguida, pediu a folha de papel de volta, passou os olhos por ela rapidamente, dobrou-a com cuidado, colocou-a na pasta, esqueceu de agradecer e, junto com Schouwen, saiu da sala da datilógrafa, que parecia não ter entendido nada.

         Os próximos passos o levaram a Jan Sehlke.

         - Há quanto tempo você conhecia Maria Steufels? Leerdam começou a conversa como se desfechasse um ataque de artilharia.

         - Que Maria Steufels?

         - A Maria Steufels que foi assassinada.

         Jan Sehlke ficou vermelho.

         - Quer dizer então que eu devo tê-la conhecido?

         - Sim.

         - E por acaso há muito tempo?

         - Exato.

         - E eu também nutria um amor platónico por ela?

         O comissário não respondeu com uma afirmação, mas balançou a cabeça com enérgico movimento afirmativo.

         - Mas meu amor foi rechaçado por ela, não foi?

         Sehlke prosseguiu.

         - Mais um aceno de cabeça de Leerdam.

         - Tudo igual ao caso de Ruth Kappel, não é?

         - Por que não? - replicou o comissário.

         Jan Sehlke explodiu de repente, dando um soco em cima da escrivaninha, coisa que teria feito mesmo que estivesse diante do próprio ministro do Interior.

         - Parece que o senhor esqueceu o álibi que eu tenho nesse caso - gritou. - Quando é que finalmente vão me deixar em paz?

         - Muitos álibis desabam quando menos se espera.

         - Mas não o meu. Toda uma mesa de baralho afirmou sob juramento que vocês apostaram na carta errada.

         - Os jogadores podem ter errado a data.

         A raiva de Sehlke dissipou-se com a mesma velocidade com que começara. No íntimo sentia-se derrotado.

         - Está bem - disse, cansado. - Faça o que deve fazer. Prenda-me. Coloque as algemas em meus pulsos - e esticou os punhos em direção a Leerdam. - Daqui a pouco você vai ver que prendeu a pessoa errada mais uma vez.

         O comissário sabia que o juiz que determinava as prisões preventivas não estaria disposto a assinar um mandado de prisão com tanta facilidade, depois do fracasso com o ex-bibliotecário.

         - Sehlke, você conhecia ou não Maria Steufels?

         perguntou Leerdam.

         - Não!

         - Vamos averiguar isso, pode ter certeza absoluta.

         - Eu já disse: pode me prender até o fim da investigação.

         - Você não vai escapar. Posso não prendê-lo agora, mas depois você não escapa.

         E foi assim que Paul Leerdam despediu-se de um homem que na verdade era tão inocente quanto um cordeirinho recém-nascido. Mas assim é a vida. O que aconteceu com Jan Sehlke, a quem apenas faltou sorte, continua a acontecer com muita gente em nosso mundo complicado.

         Na verdade, ele até que poderia se considerar muito feliz.

         No passado, pessoas como ele eram colocadas na mesa de tortura, acabavam fazendo as mais belas confissões e os juízes ordenavam que fossem esquartejadas sem sentir o menor peso na consciência.

         Mais tarde, na central de polícia, foi constatado, com base no texto que Leerdam arrancara da datilógrafa, que a carta do criminoso fora escrita em outra Remington.

         - Vou acabar enlouquecendo - Leerdam balbuciou antes de chamar a secretária para ditar algumas observações.

         Ela não apareceu. Quando Leerdam se levantou e abriu a porta que comunicava com a ante-sala, a fim de procurá-la, não viu ninguém. Já ia recuar quando seus olhos descobriram uma máquina de escrever... O comissário ficou petrificado.

         Uma Remington! Uma Remington antiga!

         Paul Leerdam não conseguia fazer um movimento.

         A secretária logo retornou. Saíra para ir ao banheiro.

         - Há quanto tempo essa máquina está aí? - Leerdam perguntou num tom de voz que fez com que a funcionária perdesse um pouco de sua segurança habitual.

         - Ela sempre esteve aí - respondeu ela, sentindo renascer a esperança de que uma nova fosse comprada.

         Aliás, há muito tempo que devia ter sido aposentada.

         - Quem mais escreve nela sem ser a senhora?

         - Ninguém.

         - A senhora costuma trancá-la depois do expediente?

         A secretária balançou a cabeça sem nada dizer. O próprio comissário percebeu que a pergunta tinha sido estúpida, pois muitas vezes ele ficava à noite no gabinete, examinando laudos nas proximidades da velha máquina.

         Leerdam desapareceu no gabinete, resmungando. Lá dentro apanhou a ata de transmissão de cargo que assinara junto com seu antecessor, o comissário Veendenbosch, quinze anos atrás, quando ele se tornara chefe da comissão de homicídios. O inventário anotara peça por peça e entre elas estava: "1 (uma) máquina de escrever, marca Remington, modelo 1939."

         - E ainda dizem que a gente não pode enlouquecer! - Paul Leerdam disse para si mesmo.

 

         Mas voltemos a Antje Hellmond, que estava no cinema ao lado do homem que planejava assassiná-la. Ele se comportou de maneira muito tranquila durante o filme inteiro, abstraindo-se o fato de que sempre riu nas passagens divertidas, como aliás o resto da platéia. Mas não tentou conversar com Antje. Apenas pareceu se concentrar no filme, mantendo no colo a pasta nova em que guardava o machado - o mesmo machado que já matara sete pessoas.

         Quando acenderam as luzes laterais do teto abobadado e a platéia levantou-se, ele fez um aceno de cabeça para Antje e disse com um brilho divertido nos olhos:

         - Foi bom, não foi?

         - Foi. - Antje abotoou o casaco sem conseguir parar de rir, ainda sob o efeito da última situação do filme.

         - Ele só tem um erro - disse o homem.

         - Qual?

         - O título está errado. Não é apenas "papai" que precisa de uma esposa. Todo homem precisa de uma.

         Antje Hellmond não respondeu coisa alguma, mas ficou um pouco corada e guardou o programa no bolso do casaco. Era um hábito dela. Antje colecionava coisas que se tornavam souvenirs para ela.

         Os dois foram empurrados em direção à saída, no meio da corrente de espectadores, e foi natural que o simpático homem permanecesse ao lado da moça. Chegou a abrir caminho para ela no meio da multidão que aguardava lá fora o início da última sessão. Na rua, tremeu de frio e levantou a gola da capa de chuva.

         - Está frio. Não consigo me acostumar com essas noites de neblina que vocês têm por aqui. Posso propor alguma coisa quente naquele café do outro lado? Eu gostaria de convidá-la. Nós podíamos conversar um pouco mais sobre o filme.

         Antje hesitou.

         - Por favor. Será uma alegria para mim - ele disse com uma voz suave e muito, muito simpática.

         Antje ainda não estava preparada.

         - Estou sendo esperada em casa - explicou. - Minha mãe só vai dormir quando eu chegar.

         - Só uma xícara de café, ou de chá. O que a senhorita quiser. Não gostaria de perdê-la de vista com tanta rapidez. Fiquei muito impressionado com sua maneira de ser. É fora do comum.

         Antje sentiu que tinha ficado muito corada e irritou-se com isso. O que ele vai pensar de mim?, disse para si mesma. Que sou uma pateta, com certeza.

         Recordou-se dos relatos das colegas, que falavam de suas experiências com risinhos maliciosos. Lembrou-se das pequenas aventuras inocentes que tivera com alguns jovens.

         Na verdade, nem tinham chegado a ser aventuras. Por isso mesmo ela gostaria de poder contar na segunda-feira:

         "Vocês sabiam que um homem bonito me abordou quando fui ao cinema? Depois nós fomos a um café e tomamos chá. Notei que ele preferia café. Mas eu não. Então ele pediu chá para dois, só para me agradar. Não é formidável?

         Não sei se vou vê-lo outra vez, ainda estou pensando. Ele é muito simpático. Mas também tenho que bancar a durona, não é?"

         Ela ainda imaginou que poderia deixar sem resposta a pergunta sobre se tinha ou não havido um beijo na hora da despedida. Só para bancar a experiente.

         Antje Hellmond era uma moça honesta e de incrível ingenuidade para os padrões atuais. Nunca tinha sido tocada. E a morte já estava de olho nesse anjo terreno.

         A voz delicada do homem arrancou-a de seus pensamentos.

         - Só quinze minutinhos. Por favor.

         - Eu já disse que...

         - Sua casa fica longe daqui? - ele interrompeu.

         - Fica a vinte minutos.

         - Então eu chamo um táxi e a gente recupera o tempo que você me dedicar no café.

         Ele não era mesmo encantador?

         Antje concordou.

         - Está bem - disse com decisão. - Mas só o tempo para tomar uma xícara. Minha mãe - acrescentou com o dedo indicador levantado num gesto brincalhão - precisa dormir.

         Ele achou a frase tão divertida que se sacudiu de tanto rir.

         Ao entrar no café, seus olhos procuraram rapidamente a garçonete que o servira antes do cinema. Não conseguiu vê-la. O mais provável é que já tivesse ido embora.

         Ficou aliviado, pois era importante que não chamasse a atenção de ninguém.

         Avançou para uma mesa ao fundo e, com gesto cortês, puxou a cadeira para Antje. Antes de sentar, inclinou-se levemente para a frente e se apresentou:

         - Permita que eu me apresente: Johan Neeskens.

         - Antje Hellmond - ela disse com um inclinar de cabeça.

         - O que deseja beber, Srta. Hellmond? Ou posso dizer Antje?

         O ritmo estava rápido demais para ela, pois Antje não era de avançar muito depressa. Contudo, deixou que as coisas ficassem como estavam. Claro que não chegou a dizer "sim". Mas também não criou objeções. De modo que a coisa ficou clara para ele.

         - Obrigado, Antje. O que vai querer?

         - Chá, Sr. Neeskens.

         - Johan, por favor.

         Antje procurou ficar à vontade.

         - Está bem, Johan... Chá.

         - Não quer café?

         - Não.

         O garçom aproximou-se da mesa. Dava para ver o cansaço estampado em seus olhos, apesar de só ter começado a trabalhar duas horas antes.

         - Chá para a senhorita - pediu Johan Neeskens.

         - E para o senhor? - perguntou o garçom.

         - Café.

         Antje ficou um pouco desapontada, mas logo depois perguntou a si mesma: estou ficando maluca?

         Os dois tinham deixado os casacos no vestiário. Mas o mesmo não aconteceu com a pasta, que de novo estava recostada numa das pernas da mesa.

         Neeskens era uma companhia deslumbrante. Num piscar de olhos conseguiu tirar Antje dos trilhos. Conversou com ela com uma despreocupação fascinante. Contou sobre suas viagens, que já o tinham levado por boa parte da Alemanha. Parecia conhecer Aachen muito bem. Já estivera inclusive na Inglaterra. Falou sobre a torre e também sobre o cepo em que Ana Bolena fora executada com um machado.

         - Que terrível! - Antje exclamou.

         - O que é terrível?

         - Eu não conseguiria ficar diante de um cepo como esse e pensar no que aconteceu no passado.

         - E não foi só Ana Bolena que teve a cabeça cortada nele.

         - Por favor, não diga "cortada" - Antje cortou-lhe a palavra, horrorizada.

         - Por que não?

         - Soa de um modo tão terrível!

         - Está bem... Então digamos "decepada". Satisfeita?

         Antje aceitou. Que outra coisa poderia fazer?

         Neeskens não pôde deixar de completar a frase. Não apenas Ana Bolena havia sido decapitada naquele cepo, ele recomeçou, mas também muitas outras pessoas. Na época, o Estado dava preferência a esse tipo de execução oficial.

         - Só mais tarde foi que a Inglaterra passou a usar a forca, Antje.

         - Pare com isso, por favor!

         Num gesto de defesa, Antje avançou não apenas os braços, mas as pernas também. Assim, seu pé esquerdo chocou-se contra a pasta e a derrubou sem produzir nenhum ruído, já que o piso do café era acarpetado. Antje reclinou-se para a frente, com a intenção de recostar novamente na perna da mesa a pasta que tombara por sua culpa. Neeskens procurou fazer a mesma coisa mas chegou tarde demais.

         Antje já havia segurado e levantado a pasta. O incidente durou alguns segundos e depois acabou. Mas Neeskens sentiu que fora sacudido por intenso pavor, sem que houvesse motivo para tal reação. A ingénua moça estava olhando de novo para a xícara de chá. Ela disse:

         - Só mais um gole e vamos embora, Johan.

         - Não gostaria de tomar outra xícara?

         - Não. Eu já disse que preciso ir para casa. Mas você pode ficar, se quiser.

         - O que é que você pensa de mim, Antje? Eu levo você em casa. - Ele jogou em cima da mesa uma cédula de valor. - Vem, vamos andar um pouco.

         - De carro - Antje disse com nítida decisão.

         - De carro, é claro - confirmou Neeskens. - De táxi, como prometi. Peço que me desculpe. É que gosto muito de andar a pé.

         Acabaram telefonando para uma empresa de táxis e, quando se encontravam do lado de fora à espera do carro, Neeskens disse:

         - Espero que possamos nos encontrar outra vez, Antje.

         - Não sei, Johan.

         Neeskens olhou fundo nos olhos dela.

         - Como não sabe?

         - Meus pais são muito rigorosos.

         - Mas você já é adulta.

         - Mesmo assim... A não ser que você fosse conversar com eles pessoalmente.

         - Eu?

         A perspectiva lhe pareceu assustadora.

         - É.

         - Não, não, Antje. Não tão depressa assim. Primeiro você precisa me conhecer melhor. Depois sim. Por enquanto eu gostaria de pedir que não falasse nada a meu respeito com seus pais. Aliás, com ninguém. Sabe por quê?

         - Não.

         - Porque isso só serviria para distrair sua atenção, compreende? Iria perturbar sua concentração em nossa relação. Só você, apenas você, deve me conhecer até o fundo da alma, sem ser influenciada por ninguém. Você vai compreender que esse é o melhor caminho. Poucas moças fazem isso. Um famoso professor de psicologia dos Estados Unidos ensina esse método há muitos anos. Ele diz que os resultados são incríveis. Você me promete isso?

         - O quê?

         - Que por enquanto não vai falar sobre mim com ninguém, nem com seus pais?

         - Prometo.

         - Óptimo, Antje. E se você se apaixonar por mim, como já estou por você, serei a primeira pessoa a pedir que me leve a seus pais.

         Johan Neeskens abriu um sorriso simpático.

         Mais uma vez tinha absoluta segurança com relação a seu método. E por que não haveria de ter? Por mais estúpido que fosse o seu argumento, e embora não existisse o "famoso" professor de psicologia, seu sucesso tinha sido o mais completo até então, sem exceção. Seis moças tinham caído nessa armadilha e a sétima apresentava todos os indícios de que também seguiria o mesmo caminho.

         Surgiram os faróis de um carro. O táxi.

         - Que tal no próximo sábado à noite, às oito?

         Neeskens perguntou rápido. - Aqui em frente do cinema, está bem?

         - Está bem - Antje sussurrou.

         No táxi, nenhum cavalheiro da velha escola poderia ter apresentado melhor comportamento. Johan Neeskens não fez a mínima tentativa de beijar ou bolinar Antje. Tampouco fez menção de agarrar sua não para apertá-la.

         Ofereceu um cigarro de sua cigarreira de ouro e, como ela recusou com um agradecimento, ele também abriu mão de acender um.

         Saltou do carro junto com Antje, defronte ao prédio em que moravam os Hellmond, e disse para o motorista:

         - Espere aqui - e acompanhou a moça até a porta da casa.

         Antes de despedir-se, quis saber mais uma coisa.

         - Posso perguntar o que você faz, Antje? Ainda frequenta a escola? Afinal, você ainda é muito nova.

         - Não. Eu trabalho.

         - Onde?

         - Na polícia.

         - Em que lugar? - ele balbuciou.

         - Como secretária.

         - E você gosta?

         - Gosto. Talvez esteja no meu sangue.

         - Como assim?

         - Meu pai também é agente da polícia.

         - O quê? - ele tornou a balbuciar. Mas logo controlou-se e perguntou rindo: - E sua mãe?

         - É dona-de-casa. É a que dá mais duro de nós três.

         - Durma bem, Antje. E obrigado pela noite simpática. Estaremos juntos novamente dentro de oito dias.

         - Até a vista, Johan.

         Antje entrou no prédio e ele voltou ao táxi.

         Maldita canalha policial!, pensou. Tinha que topar justamente com essa garota da polícia!

         Na verdade, o mais recomendável é que ele tomasse logo suas precauções. Mas não adiantava. O sujeito era prisioneiro de sua bestialidade e não conseguia se refrear. Passou a esperar ansioso pelo momento de assassinar Antje.

         Chegava a sentir o cheiro do seu sangue, por antecipação.

         Ao chegar a casa, a primeira coisa que fez foi se livrar de uma peruca de perfeição extraordinária, com cabelos bem diferentes dos seus cabelos naturais, o que contribuia muito para transformá-lo por completo.

         Quando Antje apareceu, a Sra. Hellmond estava tricotando sob o abajur de pé, na sala de estar. Uma orquestra de dança tocava baixinho, no rádio. A Sra. Hellmond lançou um olhar ostensivo para o relógio na parede e disse com um leve tom de recriminação:

         - Está chegando tarde, minha filha.

         - Quase meia hora, mamãe, eu sei - Antje respondeu, irónica.

         - Encontrou conhecidos?

         - Não.

         A Sra. Hellmond ficou à espera de uma explicação para o atraso, mas não ouviu nenhuma.

         - Como foi o filme? - perguntou ela depois de algum tempo.

         - Divertido. Mas não é do seu tipo, como nós já sabíamos.

         As agulhas de tricô, que na época não eram de plástico, fizeram um ruído metálico. No rádio, uma valsa substituiu o tango que tocava no momento em que Antje chegou.

         - Música gostosa - disse Wilma Hellmond. - Não é essa coisa moderna.

         - A que horas papai chega hoje, mãe?

         A Sra. Hellmond suspirou.

         - Na verdade já devia ter chegado. Mas telefonou para avisar que precisava fazer alguma coisa mais tarde. Você sabe. O de sempre.

         Antje bocejou.

         - Bom, eu já vou para a cama. Estou cansada.

         - Eu também. Boa noite, minha filha.

         Antje já estava com a mão na maçaneta quando foi chamada mais uma vez:

         - Antje!

         - Sim?

         - Algum problema?

         - Não, por quê?

         - Estou achando você diferente. Não está como costuma ser.

         - É imaginação sua, mãe.

         - E também não me contou o filme.

         - Estou cansada demais, mãe. Boa noite.

         Dez ou quinze minutos depois todas as luzes da casa estavam apagadas. A Sra. Hellmond guardara suas coisas do tricô e agora também estava na cama.

         Na manhã seguinte, mãe e filha se encontraram na mesa do café.

         - Papai ainda está dormindo? - perguntou Antje.

         Wilma Hellmond assentiu.

         - Ele chegou muito tarde. Não vi direito a hora que ele chegou.

         - A que horas ele pega hoje no serviço?

         - Não conversamos sobre isso. Mas acho que só à tarde, de novo.

         Antje contorceu a boca.

         - Só Deus sabe quando vou vê-lo outra vez.

         - Gostaria de falar com ele?

         - Toda filha gosta de falar com o pai de vez em quando.

         - Você fala como se os dois nunca conversassem.

         - É bem raro a gente se falar.

         - A culpa é do trabalho que ele tem, você sabe.

         Antje calou-se, tomou o café e comeu dois pãezinhos.

         Só com um pouco de geléia, manteiga não. Muitas jovens holandesas faziam e continuam a fazer isso. Elas amam a sua rainha, mas têm sempre a silhueta dela diante dos olhos como uma espécie de advertência.

 

         Passaram-se dois dias até que Antje pôde ver o pai novamente em casa. O encontro foi no quarto de Antje. Uwe Hellmond entrou e foi logo falando.

         - Aqui estou eu, menina. Sua mãe disse que você estava com saudades de mim.

         Antje, que tinha vinte anos, continuava sendo "menina" para o pai.

         - Senta aí, papai - disse ela. - Gostaria de ter uma conversa com você.

         - Sobre o quê? - perguntou ele ao sentar-se.

         - Onde está mamãe?

         - Na cozinha. Quer que ela participe?

         - Não, pelo contrário. Ela ficaria horrorizada.

         - Horrorizada?

         - Sim... É que... Eu conheci um homem.

         - É mesmo?

         - No cinema.

         Uwe Hellmond ergueu o dedo indicador com severidade fingida.

         - E foi por isso que chegou em casa uma hora depois?

         - Foi isso que mamãe disse?

         Uwe Hellmond baixou o dedo e sorriu.

         - Foi - disse ele. - Mas eu sei que ela exagera.

         - Foi menos de meia hora.

         - Ora, ora, isso não é motivo para preocupação.

         Mas por que ela ficaria horrorizada hoje? O que você fez com ele? Ou ele com você?

         - Papai!

         - Desculpe - ele cortou depressa. - Eu só estava perguntando. Muitas coisas podem acontecer em meia hora.

         - Papai, nós tomamos uma xícara de chá no café... Quer dizer, eu tomei. Ele preferiu café.

         - Bravo, minha filha! Você sabe que nós confiamos muito em você, embora um dia...

         Ele interrompeu-se com um encolher de ombros.

         - Você agora está com vinte anos. Já está se aproximando o perigo de que um dia passe a noite inteira fora de casa. Tenho perfeita compreensão disso. Claro que você sabe que não fico entusiasmado com essa perspectiva. E sua mãe também não.

         - Papai! - Antje suspirou. - Não era sobre isso que eu queria falar. Era sobre esse homem.

         - E as duas coisas não se relacionam?

         Antje refletiu durante um momento, depois disse:

         - Está querendo perguntar se isso poderia dar em alguma coisa mais séria?

         - E pode dar? - ele respondeu com outra pergunta.

         Antje voltou a refletir, olhando para a frente.

         - Ele é muito bonito, papai - disse depois de algum tempo. - É muito simpático e também se comportou de um modo perfeito.

         - Vão se encontrar outra vez?

         - Vamos. Ele marcou um encontro.

         - Qual a profissão dele?

         - Não sei. Não conversamos sobre isso. Mas me parece que ele está bem de vida, se é o que você quer saber.

         - Claro que quero - disse Uwe Hellmond, esboçando um sorriso irónico. - Qualquer pai quer ver a filha cuidada de maneira adequada.

         Ficou evidente, porém, que Antje não achou divertido, pois respondeu um pouco irritada:

         - A coisa ainda não chegou a esse ponto. Ainda nem tenho certeza se vou encontrá-lo outra vez.

         - Por que não? Ele não agradou?

         - Externamente, sim - Antje respondeu hesitante. - Mas...

         - Mas o quê?

         - Ele não quer que eu converse sobre ele com vocês.

         - É mesmo?

         - Não quer que eu diga nada a respeito dele.

         - E que razão ele deu para isso?

         - Ele contou uma tremenda besteira sobre um professor americano e a teoria dele.

         - Ele é um sujeito burro, por acaso?

         - Tenho a certeza que não. Mas acha que eu sou.

         - Ora vejam só! - A indignação fez com que o rosto do pai ficasse vermelho. - Se é assim, dou logo o seguinte conselho: fique longe dele! Não seja boba! Mande esse cara plantar batatas!

         - Está falando sério, papai?

         - É claro que estou! Você não merece um tipinho como esse!

         Antje concordou, pensativa, fez uma breve pausa e disse:

         - Eu só gostaria de saber o que ele faz.

         - A profissão dele?

         - Exato.

         - Isso não faz diferença.

         - Parece que ele tem alguma atividade em que lida com documentos.

         - Como assim?

         - Estava andando com uma dessas pastas para documentos, bem pesada. Eu segurei e senti o peso.

         - É natural. Documentos são pesados.

         - Ele não tirava os olhos da pasta.

         - Documentos não podem ser deixados de lado, minha filha. Mas qual é o interesse disso? Mande esse cara passear.

         - E se ele não tivesse documentos na pasta, papai?

         - O que você acha que tinha lá dentro?

         - Um machado.

 

         Foi como se tivesse caído um relâmpago. Mas um relâmpago sem trovão. Fez-se o silêncio mais absoluto no quarto.

         Só depois de uma pequena eternidade foi que Uwe Hellmond perguntou:

         - De onde você tirou essa idéia extravagante?

         - Papai - disse Antje, sentindo medo da própria coragem -, se eu cometer uma injustiça com ele, jamais vou me perdoar pelo resto da vida. E também seria uma punição para mim. Pois se ele fosse inocente, seria o tipo de homem por quem eu poderia me apaixonar para sempre. Eu disse a você que...

         - Como foi que você chegou a ter essa suspeita sobre o machado? - Hellmond interrompeu a filha com um tom de voz mais duro. Tudo aquilo parecia um absurdo que ele se recusava a considerar.

         Antje pigarreou e começou a contar, usando o dedo indicador da mão esquerda nos dedos da mão direita.

         - Primeiro: ele se dirigiu a mim. Segundo: a aparência dele, o tipo. Fiquei sabendo na polícia que o assassino deve ser assim. Terceiro: ele me contou sobre uma viagem à Inglaterra em que o mais importante para ele foi o cepo de execução onde Ana Bolena foi decapitada. "Ela foi decapitada com um machado", ele disse. Você devia ver os olhos dele quando disse isso. Quarto: ele queria vir andando comigo pela neblina, de noite, e não como havia prometido, de táxi. E quinto: a pasta dele, eu acho, não tinha documento nenhum.

         Uwe Hellmond olhou para a filha de modo penetrante. Claro que agora despertava o policial que havia nele.

         E despertava por completo. Ainda não havia nenhuma constatação, ele sabia, mas a enumeração de Antje não deixou de provocar grande efeito em seu espírito, como seria de esperar. Sem falar que Antje esquecera de enumerar o ponto mais importante: o sujeito havia insistido para que ela não falasse a seu respeito.

         De repente um calafrio percorreu a espinha de Uwe Hellmond, embora não tivesse certeza de coisa alguma.

         Ele pensou no que poderia ter acontecido se a filha tivesse concordado com o sujeito e os dois não tomassem o táxi.

         Levantou-se com um movimento espontâneo, ergueu a filha da poltrona e abraçou-a com toda força.

         - Antje!... Antje!... - Era só o que dizia, acariciando as costas da filha.

         Em seguida, afastou-se dela cerca de um metro, encarou-a com as mãos pousadas em seus ombros e perguntou, orgulhoso:

         - Sabe o que você é?

         - Acha que sou um gênio, pai? - Antje procurava dar uma virada irónica na situação, pois não estava acostumada a tanto sentimentalismo paterno.

         - Isso você também é - ele disse com profunda convicção. - Mas afinal de contas você é minha filha acrescentou satisfeito. - O sangue policial corre em suas veias.

         De repente ocorreu a pergunta inevitável:

         - Qual é o nome dele?

         - Johan Neeskens.

         - Bolas! Caras com esse nome existem por aí aos montes! Quando é que ele pretende se encontrar com você outra vez?

         - Sábado que vem, à noite.

         - Vem. Ponha o casaco. Temos que sair agora mesmo, você sabe para onde.

         - Para a central de polícia, certamente.

         - Exato. Vamos ver o comissário Leerdam.

         - Quer dizer que você acha que minha suspeita faz sentido?

         - Isso agora não tem a menor importância. Mas a coisa deve ser investigada. Aliás, você já devia ter me contado essa história há mais tempo.

         - É difícil encontrar você, pai. E eu não queria ter essa conversa com mamãe.

 

         Paul Leerdam estava comendo uma maçã quando a secretária anunciou que o agente da polícia Hellmond e sua filha queriam falar com ele.

         - Pode mandar entrar - ele ordenou sem parar de comer. - Incomodam-se? - perguntou quando os dois atravessaram o vão da porta. - Meus dentes estão bambos, preciso de vitaminas - acrescentou com um sorriso irônico.

         Ele já não tinha mais nenhum dente natural, só artificiais. Dizia aquilo como piada.

         E ao pedir que Hellmond e a filha se sentassem, só tinha mesmo duas cadeiras a oferecer.

         - De que se trata? - perguntou.

         Uwe Hellmond, que nada tinha a ver com o departamento de homicídios, respondeu:

         - Como andam as investigações sobre o assassinato de mulheres?

         Dissipou-se rápido a expressão serena com que Paul Leerdam recebera seus visitantes.

         - Péssimas - grunhiu. - Até agora estamos errando o alvo sem parar.

         Não quis mencionar concretamente os últimos fracassos com as velhas máquinas Remington, pois naquele momento já tinha sido provado que a carta do criminoso não fora escrita na máquina da secretária, na ante-sala. Apesar disso, permanecia a suspeita de que existia algo de errado na central de polícia. Por isso, Leerdam estava disposto a manter reserva sobre o assunto e a tomar cuidado com qualquer pessoa, o que também incluía Uwe Hellmond.

         Mas isso logo mudaria.

         - Talvez agora se abram as cortinas - disse Uwe Hellmond.

         - Que cortinas? - perguntou Leerdam.

         - As que estão entre você e o assassino.

         - Por quê?

         Hellmond encarou a filha e disse para Antje, fazendo um aceno de cabeça em direção ao comissário:

         - Conte tudo a ele.

         Logo de saída Antje atingiu o centro do alvo.

         - Conheci um homem que me proibiu de falar sobre ele com qualquer pessoa.

         - O quê? - Leerdam gritou, dando um salto da cadeira.

         Antje repetiu o que havia dito.

         - Como você conheceu ele? - Leerdam perguntou.

         - Ele se dirigiu a mim.

         - Onde?

         - No cinema.

         - Você saiu com ele?

         - Saí, fui...

         "...a um café", Antje quis dizer. Mas o comissário, que já estava possuído pela febre de caçador, cortou sua palavra:

         - E ainda está viva?

         A pergunta foi terrível. Contudo, era compreensível.

         - Minha filha se comportou de maneira fantástica - Uwe Hellmond intrometeu-se, orgulhoso. - Aliás, ela faz parte do corpo policial. Mas ouça o resto da história.

         Leerdam tornou a sentar-se, mas logo levantou-se e ficou andando de um lado para outro no gabinete, que na verdade era pequeno demais para isso. Não conseguia ficar sentado.

         De vez em quando parava na frente de Antje e ficava olhando fixamente para sua boca, enquanto ela relatava o que já contara ao pai. Não foi mais interrompida pelo comissário. Quando acabou, ele fez a pergunta:

         - Você o observou com bastante atenção?

         - Sim.

         - Nesse caso deve ter reparado na coisa mais importante.

         - O quê?

         Leerdam parou diante de Antje.

         - O sujeito tinha um dente de ouro na arcada superior à esquerda?

         - Tinha - Antje respondeu, tranquila.

         Leerdam ficou calado e ninguém mais falou. Baixou o silêncio total no gabinete. Leerdam caminhou devagar até sua cadeira atrás da escrivaninha e sentou-se. Só então falou. Mas não em tom normal. Sussurrou:

         - É ele.

         Depois de novo, mais baixo:

         - Eu peguei o homem.

         E tornou a repetir, num murmúrio:

         - Eu peguei o homem.

         Seu olhar se fixou em Antje quando corrigiu sua afirmação com um sorriso de desculpa:

         - Nós o pegamos, garota. Você vai ficar famosa pelo resto da vida.

         Uwe Hellmond voltou a falar com sua voz baixo-soprano, sem se preocupar em manter a atmosfera solene que o comissário criara.

         - Eu já disse. Ela faz parte do corpo policial da ativa.

         Os três riram, mas a seriedade logo voltou quando Leerdam explicou:

         - Claro que Neeskens é um nome fictício. Johan também. Portanto, não faz o menor sentido sair à procura desse fantasma. Vamos agarrá-lo no próximo sábado à noite, quando você voltar a se encontrar com ele, Srta. Hellmond.

         - Quando voltar a me encontrar com ele? - Antje repetiu, com voz que expressava medo.

         - Sim, na porta do cinema - Leerdam insistiu, encarando o encontro como um fato positivo.

         Antje olhou para o pai.

         - O que é que você acha? - perguntou.

         Duas almas lutavam no peito de Uwe Hellmond: a do pai e a do policial.

         Ele dirigiu o olhar para Leerdam.

         - Não pode acontecer coisa alguma - o comissário disse. - Vou levar dez homens para o local. Inclusive você, Hellmond. Quanto a Antje, ela já demonstrou que não teve nenhum medo quando encontrou o sujeito.

         - Na primeira vez - Antje atreveu-se a fazer uma réplica insignificante - eu não sabia quem era ele.

         - Mas a partir de determinado momento você passou a suspeitar. Caso contrário não estaria aqui.

         O que também era verdade.

         A decisão foi tomada quando Leerdam falou:

         - Vamos agarrá-lo antes que ele possa falar cinco palavras com você. Basta cumprimentá-lo com um aceno de cabeça. Será o sinal de que se trata dele. E então vamos pegá-lo. Só espero que ele esteja com a pasta.

         Leerdam quase pôs tudo a perder mais uma vez ao pronunciar a última frase, que percorreu todo o corpo de Antje como um calafrio. Mas logo depois a moça entregou-se a seu destino e suspirou:

         - Está bem.

         Ainda faltavam quatro dias para o sábado.

         A contagem regressiva da polícia já podia começar.

 

         Mas a coisa não foi tão simples assim.

         Tudo esteve para fracassar por duas vezes.

         A primeira, quando, vinte quatro horas depois, Antje recebeu uma carta do assassino, o que gerou novas perspectivas.

         A segunda foi por causa de um incidente que resultou de uma omissão de Uwe Hellmond e sua filha com relação ao comissário Leerdam.

         O assassino havia escrito:

 

         "Prezada senhorita.

         Estou desolado. Por causa de inesperadas atividades comerciais sou forçado a adiar para outro dia o nosso encontro, que eu esperava com tanta ansiedade. Pode me perdoar por isso?

         Peço-lhe do fundo do coração que nosso encontro seja dentro de quatorze dias. Será num sábado outra vez.

         Estarei à sua espera na entrada do parque Meppel, junto ao poste situado na rua Oploo. Se por acaso houver neblina, não precisa ficar com medo. Chegarei lá às oito horas. Por favor, apareça. Estou muito triste por não vê-la no próximo sábado, como havíamos combinado.

         E prometo que será uma noite muito, mas muito agradável, e maravilhosa.

         Seu Johan Neeskens."

 

         Quando Uwe e Antje Hellmond apareceram no gabinete do comissário Leerdam com a carta - muito pálido e com plena consciência do terror -, Leerdam não conseguiu deixar de soltar uma série de imprecações.

         Fechou os punhos à altura do peito e sacudiu-os.

         - Esse canalha! - disse ofegante. - Esse canalha maldito, sujo, repugnante! Esse...

         Nada mais lhe ocorreu.

         - Schouwen!

         Será que ele vai pôr a culpa em mim?, o assistente pensou, no gabinete contíguo.

         - Sim, chefe?

         - Preciso de um mapa do parque Meppel. Para ontem.

         Até o mapa chegar à mesa de Leerdam, Uwe Hellmond aproveitou a pausa para dizer:

         - A situação agora é bem diferente.

         - Sem dúvida - Leerdam concordou furioso.

         Hellmond prosseguiu, contrariado, lembrando-se de seu dever de pai:

         - Acho que Antje não ficará mais à sua disposição.

         Leerdam agarrou-se com unhas e dentes à palavra "acho", que para ele significava uma esperança.

         - Não tem confiança nas medidas que vou tomar? perguntou.

         - Tenho sim, mas...

         Era difícil para o subordinado dizer alguma coisa de convincente.

         - Acha que sua filha está com muito medo? - Leerdam continuou.

         - Está.

         - Mas na condição de agente da polícia, você não acha que ela tem que superar esse medo?

         Esse cara vai me liquidar, Hellmond pensou.

         - Caso contrário, Hellmond, esse sujeito vai continuar com essa série de crimes. Vai acabar matando mais meia dúzia ou até uma dúzia de mulheres.

         - Talvez eu...

         - Você tem alguma dúvida quanto a isso, Hellmond? Consegue duvidar disso?

         Leerdam virou-se num movimento abrupto para Antje, que escutava em silêncio.

         - Faço a mesma pergunta a você, Antje.

         - Pode me usar como isca - Uwe Hellmond fez a proposta desesperada.

         - Como? Com peruca, meias de seda, saia rodada e duas bolas de futebol debaixo da blusa? Disfarçado de tia velha?

         Sem a menor piedade, Leerdam fez um gesto de negação. Tinha visto com clareza o ponto fraco dos dois Hellmond. Já o percebera antes, mas voltou a atacá-lo, dizendo:

         - Essa besta humana vai continuar matando e matando cada vez mais, enquanto estiver em liberdade. E as vítimas serão cada vez mais jovens. Aposto que dentro de pouco tempo ele vai atrair colegiais inocentes para decepar a cabeça de todas elas.

         - Não! - gritou Antje.

         - Claro que sim, minha amiga. Essa é uma velha experiência que tenho.

         - Não. Estarei à sua disposição.

         Wilm Schouwen entrou rápido no gabinete.

         - Está aqui, chefe. O mapa do parque Meppel.

         - Obrigado, Wilm.

         Leerdam sorriu satisfeito não apenas para seu assistente, mas também para todos.

 

         Não foi apenas uma vez que quase tudo foi por água abaixo - e na primeira por causa da carta. Houve também uma segunda vez, quando ocorreu um incidente que Uwe Hellmond e sua filha podiam ter evitado.

         A coisa começou quando o comissário Leerdam telefonou para a residência de Hellmond e só encontrou a Sra. Hellmond, que atendeu o telefone.

         - Posso falar com seu marido?

         - No momento não, Sr. Leerdam.

         - Ou com a sua filha?

         - Também não. Os dois estão no porão examinando as bicicletas. Se no domingo fizer bom tempo, vamos passear no campo. Quer que meu marido telefone para o senhor?

         - Não é necessário. Diga apenas a eles que Antje não precisa sentir medo. Eu tive a idéia de usar cães para ajudá-la. Antje levará o cão mais feroz pela coleira. Só é preciso que ela e o cachorro se acostumem um com o outro nos próximos dias. Chama-se Alba. Se for preciso, ele arranca as tripas do sujeito antes que possa levantar um dedo contra Antje.

         - Como disse? - Wilma Hellmond balbuciou.

         - É claro que a senhora já deve saber... Dentro de duas semanas...

         - O que vai acontecer dentro de duas semanas?

         - Ah, então a senhora não sabe? Bem, então... - Eles deviam ter contado para mim, Leerdam pensou, irritado, e prosseguiu: - Bem, nesse caso não precisa se preocupar, Sra. Hellmond. Está tudo bem. Não vai acontecer nada.

         Bem, eu preciso desligar agora. Vão trazer um preso para interrogatório. Divirta-se no passeio de bicicleta, Sra. Hellmond. Até a próxima.

         - Sr. Leerdam, ouça, eu quero que... - mas a ligação já tinha sido interrompida. Wilma Hellmond desligou, totalmente perturbada.

         Mas logo recuperou-se e desceu ao porão. Já na escada pôde ouvir o barulho que vinha de baixo.

         - Que foi, mamãe? - Antje perguntou ao avistá-la. - O que está fazendo aqui? Eu não disse que ia olhar sua bicicleta? Não precisava... - ela interrompeu-se. - Você está com uma cara esquisita... Está passando mal?

         Wilma Hellmond exibia uma palidez mortal.

         - O que é que você tem? - o marido perguntou.

         - Estou passando mal - Wilma Hellmond disse com voz frágil.

         Como se obedecessem a uma voz de comando, pai e filha correram até ela. Cada um a segurou por um braço.

         - Por que veio aqui em vez de se deitar? - Antje perguntou preocupada.

         - Vem, vamos voltar lá para cima - completou o marido.

         A escada estreita não tinha espaço para os três ao mesmo tempo. Antje foi obrigada a soltar o braço da mãe e ficar para trás.

         Ao chegarem em cima, a mulher foi levada para o sofá da sala de estar. Continuava pálida como uma vela.

         - Você comeu alguma coisa estragada? - perguntou Antje.

         - Não. O comissário Leerdam telefonou.

         - O quê? - Antje admirou-se. - E você passou mal por causa disso?

         - Foi.

         Pai e filha reagiram na mesma hora.

         - Mas que droga! - Uwe Hellmond gritou.

         - Deus do céu! - Antje acompanhou-o.

         Mamãe Wilma empertigou-se. As lágrimas encheram seus olhos quando ela disse:

         - Estão muito enganados se pensam que vou permitir tal coisa.

         - O que é que você não vai permitir? - perguntou o marido, procurando sondar o terreno para descobrir o quanto Wilma sabia.

         Mas Wilma o ignorou. Encarou Antje e disse:

         - Se seu pai já esqueceu que você é filha dele, não espere que eu faça o mesmo.

         - A decisão foi exclusivamente minha, mamãe - Antje respondeu rápido, antecipando-se ao pai.

         - E ele concordou com isso?

         - Mamãe, ele é um agente da polícia.

         - mesmo? - Wilma Hellmond lançou as pernas para fora do sofá. Parecia surgir uma outra pessoa. Não ficara mais nada da mãezinha dócil e obediente. As lágrimas secaram. Uma tigresa lutava por sua cria. - Então fique sabendo que sua mãe não é agente da polícia. Paul Leerdam só vai fazer o que ele quer passando por cima do meu cadáver.

         - Mamãe, por favor, deite-se de novo. Fique calma. Vou trazer um chá de erva-cidreira.

         - Não preciso de nenhum chá de erva-cidreira. Só preciso da sua promessa de que daqui a duas semanas você vai comigo à casa de sua avó em Rotterdam. Lá nós estaremos em boas mãos.

         - Mamãe, daqui a duas semanas eu não estarei de férias.

         Uwe Hellmond também externou sua opinião:

         - É, realmente não dá para fazer essa viagem sem férias.

         - Vai ser possível viajar sim - disse Wilma Hellmond, para quem seu marido parecia não existir. - Eu vou conversar pessoalmente com o diretor-geral da polícia. Eu consigo chegar até ele.

         - Mamãe...

         - Os cachorros da central de polícia não vão me impedir de fazer isso.

         - Que cachorros?

         - Nem o mais feroz, o tal que arranca as tripas das pessoas. O que ia sair com você para fazer não sei o quê.

         - Mas... Eu não estou entendendo.

         - Não se faça de boba comigo, eu não admito! Devia sentir vergonha de fazer isso com sua mãe.

         Antje e o pai trocaram um olhar. Será que a mamãe Wilma estava ficando louca? Uwe Hellmond pensou no que devia fazer. Depois decidiu ir ao seu pequeno bar e tomar uma dose de aguardente.

         Antje sentou-se no sofá ao lado da mãe e colocou o braço no ombro dela. Puxou-a para si e disse:

         - Mamãe, a gente realmente não sabe do que você está falando. Que cachorro é esse que deve sair comigo?

         Wilma ficou comovida com a filha, o que fez com que seus olhos se enchessem de lágrimas novamente. Respondeu aos soluços:

         - Suponho que é um desses cães da polícia. O pior que eles têm.

         - O que foi que Leerdam disse?

         - Que você não precisa ficar com medo porque ele vai usar cachorros, inclusive o tal que arranca as tripas. Disse que você teria que se habituar com ele. Ou ele com você, o que talvez seja mais provável.

         Antje custou a digerir a coisa. Uwe Hellmond encontrou novo motivo para tomar uma segunda dose de aguardente.

         - Eu sempre disse que você devia procurar outro emprego, não disse? - mamãe Wilma soluçou.

         Depois de um momento de reflexão, Antje tentou argumentar.

         - Na verdade, eu não acho que seja má essa idéia dos cachorros.

         - Antje! - Wilma gritou.

         Uwe, que sempre se sentia estimulado quando tomava uma dose dupla no momento certo, apoiou a filha.

         - Também não acho.

         - Fique calado! E largue essa garrafa! - Wilma encarou-o de frente, deixando-o meio perplexo.

         - Wilma - tentou tranquilizá-la -, eu também vou participar da ação. Garanto que nada vai acontecer a Antje.

         - Que ação é essa? Contra quem?

         - Contra o assassino de mulheres.

         - Contra quem? - Wihna ficou horrorizada.

         - Contra o assassino de mulheres. Claro que o comissário Leerdam também disse isso a você, não disse?

         - Não, ele não disse - Wilma balbuciou, livrou-se de Antje, levantou-se e voltou-se para ela: - Mas é nessa história que você vai se envolver?

         Virou para o marido e gritou:

         - Será que vocês todos ficaram malucos?

         - Mamãe - Antje disse, tranquila -, escute aqui...

         - Não quero escutar mais nada.

         - Vai ter que escutar.

         - Não!

         - Essa besta humana precisa ser presa.

         - Sim, claro que sim. Mas não por você.

         - Claro que eu tenho que participar, mamãe. Sou a única pessoa que conhece esse homem.

         Mamãe Wilma respirou com dificuldade.

         - O que foi que você disse? Você conhece esse homem?

         - Conheço.

         - De onde?

         - Eu estava sentada ao lado dele no cinema. Depois da sessão fomos a um café.

         - Meu Deus do céu! - Mamãe Wilma deixou-se cair no sofá, os joelhos trémulos. - Isso aconteceu no sábado passado?

         - Foi.

         - Mas meu Deus! - mamãe Wilma balbuciou outra vez, cobrindo o rosto com as mãos.

         Antje procurou repetir palavra por palavra o que o comissário Paul Leerdam dissera:

         - Essa besta humana vai continuar matando e matando cada vez mais enquanto estiver em liberdade. E as vítimas serão cada vez mais jovens. Dentro de pouco tempo ele vai atacar colegiais inocentes para decepar a cabeça delas. Sabemos disso por velhas experiências.

         Wilma Hellmond não tirou as mãos do rosto para olhar a filha. Continuou chorando baixinho.

         - Mamãe, você gostaria que eu fosse a culpada disso? - Antje perguntou.

         Demorou um dia inteiro e metade de uma noite para Wilma Hellmond permitir que Antje participasse do que chamou "crime contra a filha".

 

         Enquanto isso, o assassino preparava seu crime com indescritível alegria.

         Foi de carro até a região do parque Meppel e examinou o caminho que precisaria percorrer a partir do poste que escolhera na rua Oploo. Planejava atrair sua vítima para aquele local isolado, onde poderia cometer o crime sem ser perturbado por ninguém - e com todo o prazer. Escolheu um lugarzinho do outro lado da sebe que cercava o parque.

         Um lugar rodeado por arbustos altos e situado ao lado da entrada. Só um pequeno atalho levava até ele. As crianças deviam brincar por ali nos dias de verão, pois ainda se via o resto do cercado de areia que a administração do parque mandara tirar por causa do tempo úmido daqueles dias. Ali ele poderia ter seu prazer, despachando Antje Hellmond para o além. Aquela jovem de 20 anos, que florescia na vida, poderia ser abatida com facilidade. O carro ficaria à espera do outro lado da sebe para transportar o cadáver até o litoral, de madrugada. Seria mais um trabalhão para a polícia.

         E a cabeça, onde iria parar. Ainda não tomara nenhuma decisão a respeito, mas refletir sobre o problema era algo maravilhoso para ele. Sentia uma profunda satisfação com esses pensamentos, esperava febril pela chegada da hora, contava os segundos, aguardava o momento em que uma moça moribunda voltaria a presenteá-lo com seus últimos estertores.

         Na quinta-feira, dois dias antes do novo crime que planejara, ele fez algo que até então nunca fizera. Telefonou de uma cabine pública para a central de meteorologia de Leeuwarden, situada na costa.

         O funcionário não suspeitou de nada terrível quando o telefone tocou e ele atendeu:

         - Alô, aqui é do posto meteorológico de Harlingen.

         - Eu gostaria de obter uma informação - disse o assassino.

         - Quem está falando? - perguntou o funcionário.

         - Por quê? - replicou o assassino.

         - Porque não podemos dar informações a particulares. Nossa tarefa é transmitir pelo rádio o boletim meteorológico que orienta as viagens marítimas. O posto de Groningen é que é responsável pelo boletim de terra. Estou falando com um particular?

         - Vou explicar uma coisa - disse o assassino com a voz agradável que despertava simpatia. - Sou proprietário de um barco pequeno e gostaria de saber como estará o tempo depois de amanhã. Principalmente à noite. Preciso receber uma carga importante e só posso assumir a responsabilidade pelo transporte se souber com antecedência se o tempo estará bom. Não posso correr riscos excessivos.

         Este é o motivo do meu telefonema para o senhor. Peço por favor que faça um exceção e me dê a informação necessária. O senhor sabe que posso ler a previsão do tempo nos jornais de amanhã. Só que o negócio tem que ser fechado hoje, de qualquer maneira. Portanto, o transporte está dependendo da sua boa vontade.

         Após hesitar durante breve momento, o funcionário respondeu:

         - Está bem. Pelas nossas previsões o tempo será frio e úmido no sábado, aliás como sempre nesta época do ano.

         Com pancadas leves de chuva. À noite, a umidade aumenta e vai ter neblina de média a forte intensidade, que virá do mar para a terra. Ventos de intensidade entre 8 e 15 metros por segundo. Maré cheia normal ou um pouco acima do normal. O senhor compreendeu?

         - Sim.

         - Então deve esperar pelo alarme de neblina no mar.

         O assassino arreganhou um sorriso satânico.

         - Quer dizer que se deve contar com o alarme de neblina?

         - Sim - o funcionário confirmou e acrescentou: - Sinto muito, mas as perspectivas não são nada boas para o seu negócio.

         É o que você acha, seu filho da puta, pensou o assassino. Mas agradeceu com educação e desligou.

         Ficou contente, muitíssimo contente. Neblina! Uma neblina bem forte, tempo totalmente encoberto, quase sem tráfego marítimo! Ah, meu coração, o que mais você queria?, rejubilou-se o louco em seu íntimo. Saiu da cabine telefónica e entrou no carro em frente à agência dos Correios.

         Cumprimentou um conhecido com amabilidade, ligou o motor, deu passagem a um automóvel que queria sair do pequeno estacionamento e rodou em direção a casa, mantendo a velocidade permitida por lei.

 

         O comissário Paul Leerdam tinha a sua frente o mapa do parque Meppel e seus arredores, que examinava pela milésima vez.

         Era um parque nos subúrbios da cidade, solitário e tranquilo durante a noite. Diante dele, a rua Oploo com seus poucos postes de iluminação que quase nada iluminavam.

         Era uma rua larga e comprida, com uma atmosfera tranquila e sonhadora. A rua ideal de um subúrbio de aldeia.

         Entre os prédios que compunham o quarteirão havia longos jardins ou terrenos baldios à espera de compradores.

         Era, portanto, um local adequado não apenas para habitantes em busca de tranquilidade, mas também para um assassinato que se pretendesse perfeito. Sobretudo porque o poste onde o assassino iria se encontrar com Antje Hellmond ficava num ponto ideal. O louco só precisaria de poucos passos para chegar atrás da sebe, que, com seu emaranhado de arbustos, formava o local exato para o crime perfeito.

         Leerdam se debruçava sobre um mapa coberto de marcações com tinta vermelha. Duas dúzias de pequenas cruzes assinalavam as posições reservadas aos policiais mais jovens e rápidos. Alguns estariam segurando cães pela coleira em pontos estratégicos, providência tomada a partir da previsão de forte nevoeiro. Caso o assassino percebesse alguma coisa e tentasse fugir, poderia escapar dos homens, mas não dos cães.

         De resto, os policiais tinham ordens para fazer uso de suas armas de fogo em caso de necessidade - e de maneira implacável. Leerdam advertiu a equipe reunida em sua sala:

         - O sujeito que for o responsável pela fuga dessa besta humana pode dar um tiro na cabeça na mesma hora.

         O cão policial mais feroz da Holanda seria entregue a Antje Hellmond, que ficaria ao seu lado, no poste, aguardando o criminoso. O animal já estava há alguns dias no quarto de Antje, que fora liberada do serviço normal pelo diretor-geral. E a cada hora que passava, aprofundava-se a amizade entre a moça e Alba, como era chamado o pastor alemão, um exemplar magnifico que já recebera muitos prémios. Mas sempre que mamãe Wilma entrava no quarto de Antje e olhava para o cão, sentia tanto medo que passava mal.

         - Você deve ficar com Alba dentro de casa. Não vá para a rua com ele - dissera Lerdan a Antje.

         - Por que não?

         - O assassino mora aqui por perto. Se ele a vê com esse animal, pode suspeitar e preparar uma fuga.

         Portanto, tudo estava preparado.

         Tudo?

         O comissário Paul Leerdam reclinou-se sobre o mapa, o rosto marcado por um sentimento de severa disciplina.

 

         Sábado.

         Um dia sombrio, úmido. A cerração pesa sobre o mar.

         O céu não está claro. As pessoas mal vislumbram qualquer coisa através da névoa que flutua nas ruas ao cair da noite, forçando todos a permanecer em casa, no aconchego dos lares.

         Nem todas as pessoas.

         Não um assassino feroz, nem sua vítima, e tampouco uma dúzia de agentes da polícia.

         A noite chega. As ruas estão vazias. Só uns poucos carros rodam pela noite úmida. Os escritórios mandaram seus funcionários para casa. As fábricas liberaram os operários.

         Retardatários caminham apressados em direção aos bondes e ónibus, felizes por poderem escapar do mau tempo.

         Na casa da família Hellmond, mamãe Wilma revolta-se pela última vez contra algo que não pode mais ser evitado.

         - Não faça isso! - diz para Antje.

         - Vou fazer sim, mãe, eu preciso.

         - Você não tem medo, minha filha?

         - Não - Antje mente. - Tem gente demais tomando conta de mim. A começar por Alba.

         O cão está a sua frente, olhando-a fixamente, e parece compreendê-la. Balança o rabo com força.

         Na realidade, tudo se condensa no íntimo de Antje, em especial o medo e o terror. Não se pode mais voltar atrás, ela sabe. O criminoso mais procurado da Holanda, uma besta com forma humana, precisa ser neutralizado. O instrumento que pode ajudar a polícia a atingir esse objetivo é única e exclusivamente Antje Hellmond, de Leeuwarden.

         - Eu vou junto - Wilma Hellmond diz de repente, em tom de voz decidido.

         Não é a primeira vez que o marido e a filha escutam a frase.

         - Você vai ficar aqui! - Uwe Hellmond diz com a mesma decisão.

         - Você é o culpado disso tudo! - grita a mulher.

         - Não, mamãe - a filha intervém, e não é a primeira vez que pronuncia a frase: - A decisão foi só minha.

         Um silêncio constrangedor permanece por algum tempo.

         - Vem, Antje - diz Uwe. - Precisamos ir embora. Leerdam está esperando.

         Em seu íntimo, porém, ele sente algo bem diferente do que demonstra na aparência.

         - Vem, Alba.

         Uwe, Antje e Alba - três seres que se relacionam na vida e na morte - dirigem-se para a porta.

         - Antje! - grita Wilma Hellmond.

         - Mamãe, se você me ama, vá para a cama e durma um pouco. Assim que a gente voltar, você levanta e prepara um chá quente, está bem?

         - Antje, você ficou maluca? Como é que eu posso...

         A porta se fecha. Wilma Hellmond está sozinha. Deixa-se cair no sofá, aos soluços.

 

         Nesse momento, o assassino está diante do espelho, em sua casa. O espelho colabora para que ele se coloque na pele do criminoso. O espelho prova que ele possui a verdadeira grandeza, a grandeza de um assassino que a Holanda nunca viu antes. Um importante elemento da fantasia que ele agora escolhe é a peruca feita com maestria, a mesma que usava quando conheceu Antje Hellmond. Junto com outros expedientes, a peruca contribui, em caso de necessidade, para que possa andar até mesmo em Leeuwarden, sua cidade natal, sem ser reconhecido. Seu rosto está pálido diante do espelho. Os olhos brilham de dentro para fora, em órbitas fundas. O êxtase começa a se condensar. A besta humana surge de seu íntimo dividido. De repente sua boca rasga-se numa risada larga e silenciosa. O dente de ouro brilha à luz da lâmpada acima do espelho. Um dente que está sendo procurado por toda a polícia da Europa.

         O assassino olha para o relógio, vai até a janela, observa a rua.

         Está vazia diante dele. Formaram-se poças d'água junto ao meio-fio. A neblina é soprada do norte.

         O assassino sente-se satisfeito.

         Vai até o quarto. Quando reaparece, tem uma pasta debaixo do braço. A sua pasta. Se houvesse testemunhas por ali, poderiam notar que é pesada.

         O assassino atravessa o vestíbulo de sua elegante casa e apaga a luz antes de abrir a porta da frente. Abre-a e fica à espreita durante um momento. Nada ouve. Desliza para fora da casa, atravessa um corredor comprido e desaparece atrás de uma porta que leva a uma segunda escadaria.

         Esta faz a ligação com o depósito da empresa do assassino.

         Fica à espreita outra vez, antes de deslizar pelo depósito escuro e deter-se diante de um pequeno portão. Atravessa-o e sai num pátio que conduz a uma rua secundária.

         Do lado de fora, recosta-se na parede de um armazém, a respiração pesada. Em seguida, põe-se em movimento e percorre as ruas que o levarão ao parque Meppel.

         O assassino aproxima-se de sua vítima, caminhando a partir da orla do mar. Vem de uma direção bem diferente da que Paul Leerdam viu como a mais provável e que escolheu para o posicionamento de seus homens. O assassino não entra logo no perímetro do parque, nem aparece junto ao poste de iluminação. Fica esperando na escuridão de um jardim, oculto na neblina, até o momento em que os distantes sinos da Igreja de St. Jakobus batem as oito horas.

         Só então um tremor percorre seu corpo. Há em seus olhos um brilho febril. Uma das mãos segura a pasta, a outra desliza para seu interior e verifica se o conteúdo está lá.

         Claro que está.

         O assassino fareja a neblina como um cachorro procura um cheiro no ar.

         Não suspeita que seu mundo mudou. Seis outros cães - verdadeiros -, dos quais se aproxima a cada passo, também farejam.

         A morte entra em cena.

         Só falta decidir quem ela vai levar.

 

         Antje está à espera no poste de iluminação.

         Os policiais estão à espreita nos arbustos, apertados contra troncos de árvore, ocultos na penumbra. Um bêbado cambaleia na neblina da rua Oploo. Um vendedor de linguiças fecha sua "loja" e empurra seu "negócio" ambulante em direção a casa. Um viajante que vem da estação ferroviária e de vez em quando precisa descansar a pesada mala para readquirir novas forças ganha terreno com muito vagar. Ninguém consegue notar que agentes da policia, metidos em diversos disfarces, procuram o maior criminoso que já apareceu em suas vidas.

         Paul Leerdam encontra-se no meio de arbustos próximos ao poste, assim como Uwe Hellmond, que leva na mão uma pistola destravada. Leerdam consulta o mostrador fosforescente do seu relógio. Cinco para as oito. Wilm Schouwen luta com alguns galhos úmidos que lhe roubam a visão.

         Seis cães estão espalhados pela erva molhada. Suas orelhas aguçadas giram, eles fazem poucos movimentos, comportam-se como foram ensinados, não agridem o silêncio. A respiração sai dos focinhos e forma pequenas nuvens.

         A cerração, densa e quase pegajosa de tanta umidade, é penetrada apenas pelo brilho fraco da lâmpada do poste.

         O brilho é devorado, reduzindo-se a uma mancha clara numa confusão de luzes e sombras.

 

         Encostada no poste, Antje não passa de um espectro ameaçado de se dissolver por completo no branco leitoso.

         Está dominada por um pavoroso e indescritível medo.

         Gostaria de fugir, de partir em desabalada carreira, mas está presa ao chão. Por quem, por quê? Pelo sentimento de um dever? Ora bolas, isso não existe mais! Ela só sente o medo, mas sabe que ali por perto há policiais de vigília, como seu próprio pai, e que, se fugir para qualquer lugar, não terá mais por perto alguém que a proteja. Assim, Antje permanece arrependida até o âmago por não ter ouvido a mãe.

         Olha fixo para a neblina trémula. A umidade pinga das árvores. Um cão uiva em algum ponto, à distância. Alba escuta, mas não faz o menor ruído. Antje traz a coleira nas mãos, mas a segura com dedos frágeis.

         Tenta penetrar a névoa com o olhar, mas a névoa é densa demais. Não consegue ver nem arbustos nem árvores. O brilho do lampião ilumina a seus pés apenas um pequeno círculo do calçamento úmido da rua.

         Mas meu pai e os policiais estão à minha volta, ela pensa. Atentos a mim. E Alba está aqui.

         Nada poderá acontecer comigo... Estou segura... Totalmente segura...

         - Não é verdade, Alba? - ela sussurra, baixando o olhar para o animal a seus pés.

         E durante dois ou três segundos, Antje se sente realmente tão protegida quanto no útero materno.

         No entanto, no momento seguinte acontece algo que revela como estão as coisas à sua volta. Um pássaro invisível, empoleirado nos galhos escuros de uma árvore próxima, bate as asas. O barulho inesperado provoca em Antje um pavor tão terrível, que ela cai ao chão e perde os sentidos. A coleira de Alba escapa de suas mãos.

         O assassino está a menos de cinquenta metros de distância, já com o machado reluzente na mão. Desnorteada com a perda da pessoa que lhe confiaram, Alba sente que não há mais nada que lhe sirva de orientação. O cão rosna baixinho e os pêlos de sua espinha se eriçam. Torna-se um perigo mortal para qualquer inimigo que se oponha a ele.

         Agora o rosnar de Alba é mais que um grunhido e estimula a ferocidade de seus "colegas". Os policiais nada podem fazer contra isso. Nem o melhor adestrador do mundo poderia reprimir agora o instinto dos animais. De repente o tranquilo parque está cheio de ruídos malignos. O assassino sente as orelhas frias, arrepia-se, vira-se na neblina e procura fugir. O comissário Leerdam não vê esse movimento, mas consegue imaginar o que possa estar acontecendo. Lança mão de seu apito. Para todos, isso significa alarme máximo.

         Os homens que conduzem os cães sabem que agora tudo depende dos animais. Eles não podem fazer muito na noite escura de névoa diabólica. E só mesmo por acaso o assassino passará correndo perto deles.

         Mas logo os cães se mostram da confiança dos policiais, sobretudo Alba. Em movimentos muito rápidos, cercam o assassino que comete, então, o erro mortal de se defender com o machado. Golpeia a cabeça de Alba, o primeiro cão a se lançar contra ele, mas logo em seguida é violentamente atacado pelos outros animais que, possuídos por grande fúria, dilaceram seu corpo em poucos segundos. Um único e terrível grito de morte escapa de sua boca e atravessa a noite. E tudo termina antes que o primeiro policial chegue ao local do medonho acontecimento. É preciso um enorme esforço para que os animais se tranquilizem.

         Paul Leerdam vê o machado do criminoso caído no chão, e respira aliviado.

         - Acabou descontrolando tudo - ele diz para Wilm Schouwen. - Imagine se isso tivesse acontecido com um cidadão inofensivo que estivesse a caminho de casa depois do trabalho. Podia ter acontecido... ou não? Deus do céu! Nem posso pensar nisso, Wilm!

         - Eu também não, chefe - acrescenta o assistente.

         - Já dá para saber quem é o homem?

         Reclinam-se sobre o assassino morto. A boca está aberta, como que preparada para um segundo grito. O dente de ouro brilha na arcada superior, à esquerda - mais uma prova de que os cães não atacaram a pessoa errada.

         Os policiais observam o corpo ensanguentado e a carne dilacerada. O rosto pode ser reconhecido, pois não foi tão ferido quanto o resto do corpo. A peruca soltou-se da cabeça e está a dois metros de distância.

         - Puxa! - Schouwen balbucia cheio de consternação. - Eu já estava pensando que fosse Dan Paldoorn.

         - ...nosso vendedor de ferro-velho e empresário do ramo de enterros - Paul Leerdam lembra, consternado.

         - Mas isso é impossível, chefe. Ele não tem nenhum dente de ouro na boca.

         - Exato. Foi por isso que tive que abandonar uma leve suspeita quando ele se comportou de maneira estranha numa viagem que fez a Aachen. Mas...

         Leerdam calou-se.

         - Mas... - Schouwen prosseguiu, apontando o morto. - Então este indivíduo caído aqui deve ser gémeo univitelino dele. Você conhecia esse parentesco, chefe?

         - Não. Mas que ele existe, existe, não há dúvida. Estou tendo uma idéia, Wilm. Dan Paldoorn mora bem perto da central de polícia. Vem daí o conhecimento inexplicável que o assassino tinha sobre certos acontecimentos na polícia. Dan poderia ter transmitido essas informações, não consigo ver de outra maneira. Vem, vamos rápido até a casa dele. Não vamos deixá-lo escapar com facilidade. Ele vai ser obrigado a ouvir centenas de perguntas. Aliás, não apenas sobre o irmão dele, mas também sobre ele próprio.

 

         Mas os dois não precisam ter tanta pressa. Dan Paldoorn não está em casa. Está caído no parque Meppel, destroçado pelos cães.

         A solução do mistério está no Instituto de Medicina Legal.

         Dan Paldoorn não tinha mais nenhum dente natural na arcada superior. Usava uma prótese completa. Das duas dentaduras que possuía, uma tinha um dente de ouro que funcionava como pista falsa. Sempre que saía para cometer um assassinato, o criminoso exibia a prótese que tinha o dente de ouro. Este era o truque genial de Dan Paldoorn, que, por sinal, carecia de genialidade em outros aspectos de sua alma criminosa. Seus crimes baseavam-se mais na sorte do que em refinado planejamento. Mas só com aquele dente de ouro ele manteve à distância os melhores agentes da polícia da Holanda - e durante longo tempo. Depois de cada assassinato, sempre que Paldoorn se metia de novo na pele de cidadão honesto, trocando de prótese e apresentando-se sem nenhum dente de ouro, conseguia anular os fundamentos de qualquer suspeita contra ele. Nenhuma suspeita poderia jamais ser despertada, pois a polícia sabia com absoluta certeza da existência, na boca do assassino, de "um dente de ouro na arcada superior, à esquerda".

         Só os cães o teriam matado da maneira como o mataram, com prótese ou sem prótese.

 

                                                                                Heinz G. Konsalik  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Voltar à Página do Autor