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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AUTO DA COMPADECIDA / Ariano Suassuna
O AUTO DA COMPADECIDA / Ariano Suassuna

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O AUTO DA COMPADECIDA

 

Palhaço, grande voz: Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão, um padre, e um bispo, para o exercício da moralidade.

Palhaço: A intervenção de Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da misericórdia. Auto da Compadecida.

Palhaço :Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais é uma velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ouso faze-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimidades

Palhaço :Auto da compadecida uma história altamente moral e um apelo à misericórdia.

João Grilo :Ele diz misericórdia, porque sabe se fossemos julgados pela justiça toda a nação seria condenada.

Palhaço: O auto da compadecida! (cantado). Tombei tombei,mandei tombar!

Atores, respondendo ao canto.

               Perna fina no meio do mar.

Palhaço: Oi, eu vou ali e volto já

Atores, saindo. Oi cabeça de bode não tem que chupar.

Palhaço: O destino público imagine à sua direita uma igreja, da qual o centro do palco será o pátio. A saída para a rua é à sua esquerda. (Essa fala dará idéia da cena, se adotar uma encenação mais simplificada e pode ser conservada mesmo que se monte um cenário mais rico) O resto é com os atores.

Tocar música alegre e o palhaço sai dançando. Uma pequena pausa e entram Chicó e João Grilo

João Grilo: E ele vem mesmo? Estou desconfiado, Chicó. Você é tão sem desconfiança!

Chicó: Eu sem desconfiança? Que é isso, João, está me desconhecendo? Juro como ele vem. Quer benzer o cachorro da mulher para ver se o bicho não morre. A dificuldade não é ele vir é o padre benzer. O bispo está aí e tenho certeza de que o Padre João não vai querer benzer o cachorro.

João Grilo: Não vai benzer? Por que? Que é que um cachorro tem de mais?

Chicó: Bom, eu digo assim porque sei como esse povo é cheio de coisas, mas não é nada de mais. Eu mesmo já tive um cavalo bento.

João Grilo: Que é isso, Chicó (passa o dedo na garganta). Já estou ficando por aqui com suas histórias. É sempre uma coisa toda esquisita. Quando se pede uma explicação vem sempre com “não sei só sei que foi assim”.

Chicó: Mas se eu tivesse mesmo o cavalo, meu filho, o que é que eu vou fazer? Vou mentir, dizer que não tive?

João Grilo: Você vem com uma história dessas e depois queixa que o povo diz que você é sem confiança.

Chicó: Eu, sem confiança? Antônio Moraes está ai para dar as provas do eu digo.

João Grilo: Antônio Moraes? Faz 3 anos que ele morreu.

Chicó: Mas era vivo quando tive o bicho.

João Grilo: Quando você teve o bicho? E foi você quem pariu o cavalo.

Chicó: Eu não. Mas do jeito que as coisas vão, não me admiro do jeito que as coisas vão, não me admiro mais de nada, no mês passado uma mulher teve na serra do Araripe, para os lados do Ceará.

João Grilo: Isso é coisa de seca. Acaba nisso, essa fome: ninguém pode Ter menino e haja cavalo no mundo. A comida é mais barata e é coisa que se pode vender. Mas seu cavalo como foi?

Chicó: foi uma velha que me vendeu barato e me recomendou cuidado que ele era bento. E só podia, por que cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto. Uma vez corremos atrás de uma garrota, das 6 da manhã ás 6 da tarde, sem parar nem um momento, eu a cavalo, ele a pé. fui Derrubar a novilha já de noitinha, mas quando acabei o serviço e enchocalhei a rês ao redor, e não redor, e não conhecia o lugar que estávamos, parei um cabra e perguntei onde eu estava ele me respondeu que estava no Sergipe.

João Grilo: Sergipe Chicó ? E o rio São Francisco?

Chicó.: Não sei só sei que foi assim.

João Grilo: Ele não vem!

Chicó: Só pode vir. É o único jeito que ele tem a dar. A mulher disse que o larga se o cachorro morrer. O doutor diz que não sabe o que é que o bicho tem, o jeito agora é apelar ao padre. Hora de se chamar padre é a hora da morte, de modo que ele tem de vir. Padre João! Padre João!

Padre aparece na porta da igreja.

Que há que gritaria é essa?

Fala afetadamente com aquela pronúncia e aquele estilo Leon Bloy chamava “sacerdotais”.

Chicó: Mandaram avisar para o senhor não sair porque vem um pessoa aqui trazer um cachorro que está se ultimando para o senhor benzer.

Padre.: Para eu benzer?

Chicó: Sim.

Padre, com desprezo. Um cachorro?

Chicó: Sim

Padre: Que maluquice! Que besteira!

João Grilo: Cansei de dizer a ele que o senhor não benzia. Benze porque benze, vim com ele

Padre: Não benzo de jeito nenhum.

Chicó: Mas padre não vejo mal nenhum em benzer o bichinho.

João Grilo: No dia em que chegou a máquina do Major Antônio Morais o senhor não benzeu?

Padre: Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro eu nunca ouvi falar.

Chicó: Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que o motor.

Padre.: É, mas quem vai ficar engaçado sou eu, benzendo cachorro. Benzer motor é fácil, todo mundo faz, mas benzer cachorro?

João Grilo.: É, o padre tem razão. Quem vai ficar engraçado é ele e um coisa é benzer o motor do major Antônio Morais a outra é benzer o cachorro do major Antônio Morais.

Padre, mão em concha nos ouvidos.

       Como?

João Grilo: Eu disse que um coisa é benzer o motor do major Antônio Morais a outra é benzer o cachorro do major Antônio Morais.

Padre: E o dono do cachorro de que vocês estão falando é Antônio Morais?

João Grilo: É. Eu não queria vir, com medo que o senhor se zangasse, mas o major é rico e poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo de perder o meu emprego fui forçado a obedecer, mas disse a Chicó: o padre vai se zangar.

Padre, desfazendo-se em sorrisos

       Zangar nada João! Quem é um ministro de Deus para Ter direito de se zangar? Falei por falar, mas também vocês não tinham dito quem era o cachorro!

Padre: Então diga ao major que venha. Eu estou esperando.

Chicó: Que invenção é essa de dizer que o cachorro era do major.

João Grilo: Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major que se pela. Não viu a diferença? Antes era “que maluquice, que besteira”, agora “não vejo mal nenhum em abençoar criaturas de Deus!”.

Chicó: E qual o ponto fraco do patrão?

João Grilo: Chicó, deixe de ser hipócrita, que você sabe.

Chicó: Juro que não sei, João.

João Grilo: É a mulher, Chicó, e você sabe muito bem disso. Você mesmo sabe que a mulher dele...

Chicó: João, fale baixo, que o padre pode ouvir. Essas coisas num instantes se espalham.

João Grilo: Deixe de besteira, Chicó, todo mundo já sabe que a mulher do padeiro engana o marido

Chicó: João, danado, ou você fala baixo ou o esgano já, já.

João Grilo: Mas todo mundo não sabe mesmo?

Chicó: Sabe, mas n«ao sabe que foi comigo,entendeu? E mesmo, ela já me deixou por outro. Uma vez, João, e não posso me esquecer dela. Mas não que mais nada comigo.

João Grilo: Nem pode querer, Chicó. Você é um miserável que não tem nada e a fraqueza dela é dinheiro e bicho.

Chicó: Permita então que eu lhe dê meus parabéns , João, porque você acaba de se meter numa danada.

João Grilo: Eu? Que há?

Chicó: O major Antônio Morais vem subindo a ladeira. Certamente vem procurar o padre.

João Grilo: Ave Maria! Que é que se faz, Chicó?

Chicó: Não sei, não tenho nada a ver com isso. Você que inventou a historia e que gosta de embrulhada que resolva.

João Grilo: Cale a boca, besta. Não diga uma palavra e deixe tudo por minha conta. ( Vendo o major no liminar, esquerda. ) ora viva seu major, como vai Vossa Senhoria? Veio falar com o padre?(Antônio Morais, silencioso e terrível, encaminha-se para frente da igreja mas João toma-lhe à frente ) Se vossa senhoria que eu vou chamá-lo(Antônio Morais afasta João do caminho com a bengala, aflito, dá a volta, tomando-lhe a frente fala, como último recurso.)   É que eu queria avisar para Vossa Senhoria não ficar espantado: o padre está meio doido.  

Antônio Morais, parando     Está doido? O padre

João Grilo animando-se         Sim o padre está dum jeito que não respeita mais ninguém e com mania de benzer tudo. Vim dar um recado a ele, mandando por meu patrão e ele me recebeu muito mal apesar de meu patrão ser quem é.

Antônio Morais :Quem é seu patrão

João Grilo: O padeiro. Pois ele chamou o patrão de cachorro e disse que apesar disso ia benzê-lo.

Antônio Morais : Que loucura é essa?

João Grilo: Não sei, é mania dele agora. Benzer tudo e chama gente de cachorro.

Antônio Morais :Isso foi porque era com seu patrão comigo é diferente.

João Grilo:Vossa Senhoria me desculpe, mais eu penso que não.

Antônio Morais : Você pensa que não?

João Grilo: Penso, sim. E digo isso porque ouvi o padre dizer:” Aquele cachorro, só porque é amigo de Antônio Morais, pensa que é alguma coisa.”

Antônio Morais :Que história é essa? Você tem certeza?

João Grilo: Certeza plena. Está doidinho, o pobre do padre.

Antônio Morais :Pois vamos esclarecer a história, porque alguém vai pagar essa brincadeira. Quanto.à mania de benzer, não faz mal, ela me será útil. Meu filho mais moço está doente e vai para Recife, tratar-se. Tem uma verdadeira mania de igreja e não quer ir sem a benção do padre. Mas fique certo de uma ciosa: hei de esclarecer tudo e se você está com brincadeiras para o meu lado, há se arrependerá. Padre João, Padre João!

Sai pela direita. No mesmo instante, Chicó tenta fugir, mas João agarra-o pelo pescoço.

João Grilo: Não, você fica comigo. Vim encomendara bênção do cachorro por sua causa e você tem de ficar. E mesmo, Chicó, você já está acostumado com essas coisas, já teve até um cavalo bento!

Chicó: É, mas acontece que o major pode Ter alguma coisa de cavalo, de bento que ele não tem nada.

João Grilo: Deixe de der frouxo e fique aqui

Antônio Morais, voltando - Ah, padre, estava aí? Procurei-o por toda parte.

Padre, da igreja - Ora quanta honra! Uma pessoa como Antônio Morais na igreja! Há quanto tempo esses pés não cruzam os umbrais da casa de Deus

Antônio Moraes : Ah, é? Sabe que eu nem percebia a sua falta padre.

Os donos de terras é que perderam hoje me dia o senso de sua autoridade. Vêem-se senhores trabalhando em suas terras como qualquer foreiro. Mas comigo as coisas são como antigamente, a velha ociosidade senhorial.

Padre: É o que eu vivo dizendo, do jeito que as coisas vão, é o fim do mundo. Mas que coisa o trouxe aqui? Já sei, não diga, o bichinho está doente não é?

Antônio Morais: É, já sabia?

Padre: Já, aqui tudo se espalha num instante. Já está fedendo?

Antônio Morais: Fedendo? Quem?

Padre: O bichinho?

Antônio Morais: Não. Que

Padre: Nada, desculpe, é um modo de dizer.

Antônio Morais: Pois o senhor anda com uns modos de falar muito esquisitos.

Padre: Peço que desculpe um pobre padre sem muita instrução. Qual é a doença? Rabugem?

Antônio Morais: Rabugem?

Padre: Sim já vi um morrer disso em poucos dias. Começou pelo rabo e espalhou-se pelo resto do corpo.

Antônio Morais: Pelo rabo?

Padre: Desculpe, desculpe, eu devia Ter dito “pela cauda”. Deve-se respeito aos enfermos, mesmo que sejam os de mais baixa qualidade

Antônio Morais: Baixa qualidade? Padre João, veja com quem está falando. A igreja é uma coisa respeitável, como garantia da sociedade, mas tudo tem um limite.

Padre: Mas o que foi que eu disse?

Antônio Morais: Baixa qualidade! Meu nome todo é Antônio Noronha de Brito Morais e esse Noronha de Brito veio do Conde Arcos, ouviu? Gente que veio nas caravelas, ouviu?

Padre: Ah bem e na certa os antepassados do bichinho vieram nas galeras, não é isso?

Antônio Morais: Claro! Se meus antepassados vieram é claro que os dele vieram também. Que é que o senhor quer insinuar? Quer dizer por acaso que a mão dele...

Padre: Mas, uma cachorra!...

Antônio Morais: O que?

Padre: Uma cachorra.

Antônio Morais: Repita

Padre: Não vejo nada de mal em repetir, não é uma cachorra mesmo?

Antônio Morais: Padre, não o mato agora mesmo porque o senhor é padre e está louco, mas vou me queixar ao bispo. (A João Grilo) Você tinha razão. Apareça nos Angicos, que não se arrependerá.

Padre aflitíssimo: Mas me digam pelo amor de Deus o que é que eu disse.

João Grilo: Nada, nada padre. Esse homem só pode estar louco com essa mania de ser grande. Até ao cachorro ele quer das carta de nobreza.

Padre: Faço tudo para agradá-lo e vai se queixar ao bispo. Ah se fosse no tempo do outro! Aquele, sim era um santo, a coisa mais fácil do mundo era setisfazê-lo. Esse d’agora é uma águia, um verdadeiro administrador. Será que vai me suspender?

João Grilo; Que nada, padre, antes disso eu vou aos Angicos e arranjo tudo.

Padre: Pois arranje as coisas, João que você não se arrende.

João Grilo: Chama-se já que está arranjado. Agora, eu queria um favorzinho do senhor padre.

Padre: Diga então o que é!

João Grilo: O cachorro do meu patrão está muito mal e eu queria que o senhor benzesse o bichinho.

Padre : E de quem é que está falando?

João Grilo: Do padeiro.

Padre: Mas seu patrão não é Antônio Morais?

João Grilo: Quem disse isso foi Chicó .Chicó dá um grande salto de surpresa

Padre : E o cachorro dele também esta doente?

João Grilo: Está.

Padre : Também, oh terra de cachorro doente é essa!

João Grilo: E a mania agora é benzer, benzer tudo quanto é de bicho.

            Ouvem-se fora grandes gritos de mulher.                                                        

João Grilo: é a velha, com o cachorro. Como é, o senhor benze ou não benze?

Padre: Pensando bem, acho melhor não benzer. O bispo esta ai e eu só benzo se ele der licença. (à esquerda aparece a mulher do padeiro e o padre corre pra ela.) Pare! Pare! ( aparece o padeiro) Parem! Parem! Um momento. Entre o senhor e entre a senhora:o cachorro fica lá!

Mulher: Ai, padre, pelo amor de Deus, meu cachorro está morrendo. É o filho que eu conheço neste mundo padre. Não deixe o cachorrinho morrer, padre.

Padre: (comovido) Pobre mulher! Pobre cachorro!

João Grilo estende-lhe um lenço e ele se assoa cuidadosamente.

Padeiro: O senhor benze o cachorro, Padre João?

João Grilo: Não pode ser. O bispo esta ai e o padre só benzia se fosse o cachorro do major Antonio Morais, gente mais importante, porque se não o homem pode reclamar.

Padeiro: Que historia é essa? Então vossa senhoria pode benzer o cachorro do major Antonio Morais e o meu não?

Padre: (apaziguador) Que é isso, que é isso?

Padeiro: Eu é que pergunto: que é isso? Afinal de contas eu sou o presidente da Irmandade das Almas, e isso é alguma coisa.

João Grilo: é o padre, o homem aí é coisa muita. Presidente da Irmandade das Almas! Para mim isso é um caso claro de cachorro bento. Benza logo o cachorro e tudo fica em paz.

Padre; Não benzo não e acabou-se! Não estou pronto para fazer essas coisas assim de repente. Sem pensar não.

Mulher: (furiosa) Quer dizer, quando era o cachorro do major já estava tudo pensado, para benzer o meu é essa complicação! Olhe que meu marido é presidente e sócio benfeitor da Irmandade das Almas! Vou pedir a demissão dele!

Padeiro: Vai pedir minha demissão!

Mulher: de hoje em diante não me sai de lá de casa nem um pão para a Irmandade!

Padeiro: Nem um pão!

Mulher: E olhe que os Paes que vem aqui são de graça!

Padeiro: São de graça!

Mulher: E olhe que as obras da igreja é ele quem está custeando!

Padeiro: Sou eu que estou custeando!

Padre; (apaziguador) Que é isso, que é isso!

Mulher: O que é isso? É a voz da verdade, padre João. O senhor agora vai ver quem é a mulher do padeiro!

João Grilo: Ai, ai, ai, e a senhora, o que é que é do padeiro?

Mulher: A vaca...

Chicó: A vaca ?!...

Mulher: a vaca que eu mandei pra cá pra fornecer leite ao vigário, tem que ser devolvida hoje mesmo.

Padeiro: Hoje mesmo!

Padre: Mas até a vaca? Sacristão, sacristão!

João Grilo: A vaca também é demais! (arremedando o padre) Sacristão, sacristão.

O sacristão aparece a porta. é um sujeito magro, pedante, pernóstico, de óculos azuis que ele ajeita com as duas mãos de vez em quando, com todo cuidado. Para no limiar da cena, vindo da igreja, e examina todo pátio.

João Grilo: Sacristão, a vaca da mulher do padeiro tem que sair!

Sacristão: um momento, um momento. Em primeiro lugar, o cuidado da casa de Deus e de seus arredores. Que é isso? Que é isso?

Ele domina toda a cena, inclusive o Padre, que tem uma confiança enorme na empáfia, segurança e hipocrisia do secretário.

Mulher e Padeiro, ao mesmo tempo, em resposta à pergunta do Sacristão

         É o padre. . .

Sacristão, afastando os dois com a mão e olhando para a direita

         Que é aquilo? Que é aquilo?

Sua afetação de espanto é tão grande, que todos se

voltam para a direção em que ele olha.

Sacristão: Mas um cachorro morto no pátio da casa de Deus?

Padeiro: Morto?

Mulher, mais alto: Morto?

Sacristão: Morto, sim. Vou reclamar à prefeitura.

Padeiro correndo e voltando-se do limiar: É verdade, morreu.

Mulher: Ai, meu Deus, meu cachorrinho morreu.

Correm todos para a direita, menos João Grilo e Chicó. Este vai para a esquerda, olha a cena que se desenrola lá fora, e fala com grande gravidade na voz.

Chicó: É verdade, o cachorro morreu!

Mulher, entrando: Ai, ai, ai, ai, ai! Ai, ai, ai, ai!

João Grilo, mesmo tom: Ai, ai, ai , ai! Ai, ai, ai, ai!

Dá uma cotovelada em Chicó.

Chicó, obediente: Ai, ai, ai, ai! Ai, ai, ai, ai!

Essa lamentação deve ser mal representada de propósito,

ritmada como choro de palhaço de circo.

Sacristão, entrando, com o padre e o padeiro: Que é isso, que é isso? Que barulho é esse na porta da casa de Deus?

Padre: Todos devem se resignar.

Mulher: Se o senhor tivesse benzido o bichinho a essas horas ele ainda estava vivo.

Padre: Qual, qual, quem sou eu!

Mulher: Mas tem uma coisa, agora o senhor enterra o cachorro.

Padre: Enterro o cachorro?

Mulher: Enterra e tem que ser em latim. De outro jeito não serve, não é?

Padeiro: É, em latim não serve.

Mulher: Em latim é que serve!

Padeiro: É, em latim é que serve!

Padre: Vocês estão loucos! Não enterro de jeito nenhum.

Mulher: Está cortado o rendimento da irmandade.

Padre: Não enterro.

Padeiro: Está cortado o rendimento da irmandade!

Padre: Não enterro.

Mulher: Meu marido considera-se demitido da presidência.

Padre: Não enterro.

Padeiro: Considero-me demitido da presidência!

Padre: Não enterro.

Mulher: A vaquinha vai sair daqui imediatamente.

Padre: Oh mulher sem coração!

Mulher: Sem coração, porque não quero ver meu cachorrinho comido pelos urubus? O senhor enterra!

Padre: Ai meu dias de seminário, minha juventude heróica e firme!

Mulher: Pão para a casa do vigário só vem agora dormido e com o dinheiro na frente. Enterra ou não enterra?

Padre: Oh! mulher cruel!

Mulher: Decida-se, Padre João.

Padre: Não me decido coisa nenhuma, não tenho mais idade para isso. Vou é me trancar na igreja e de lá ninguém me tira.

Entra na igreja, correndo.

João Grilo, chamando o patrão à parte: Se me dessem carta branca, eu enterrava o cachorro.

Padeiro: Tem a carta.

João Grilo: Posso gastar o que quiser?

Padeiro: Pode.

Mulher: Que é que vocês estão combinando aí?

João Grilo: Estou dizendo que, se é desse jeito, vai ser difícil cumprir o testamento do cachorro, na parte do dinheiro que ele deixou para o padre e para o sacristão.

Sacristão: Que é isso? Que é isso? Cachorro com testamento?

João Grilo: Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, com a minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoado pelo padre e morrer como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse que vinha encomendar a benção e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testemunho dele dez contos de réis para o padre e três para o sacristão.

Sacristão, enxugando uma lágrima: Que animal inteligente! Que sentimento nobre! (Calculista) E o testamento? Onde está?

João Grilo: Foi passado em cartório, é coisa garantida. Isto é, era coisa garantida, porque agora o padre vai deixar os urubus comerem o cachorrinho e se o testamento for cumprido nessas condições, nem meu patrão nem minha patroa estão livres de serem perseguidos pela alma?

Chicó, escandalizado: Pela alma?

João Grilo: Alma não digo, porque acho que não existe alma de cachorro, mas assombração de cachorro existe e é uma das mais perigosas. E ninguém quer se arriscar assim a desrespeitar a vontade do morto.

Mulher, duas vezes: Ai, ai, ai, ai!

João Grilo e Chicó, mesma cena.

Sacristão, cortante: Que é isso, que isso? Não há motivo para essas lamentações. Deixem tudo comigo.

Entra apressadamente na igreja.

Padeiro: Assombração de cachorro? Que história é essa?

João Grilo: Que história é essa? Que história é essa é que o cachorro vai se enterrar e é em latim.

Padeiro: Pode ser que se enterre, mas em assombração eu nunca ouvi falar.

Chicó: Mas existe. Eu mesmo já encontrei uma.

Padeiro, temeroso: Quando? Onde?

Chicó: Na passagem do riacho de Cosme Pinto.

Padeiro: Tinham me dito que o lugar era assombrado, mas nunca pensei que se tratasse de assombração de cachorro.

Chicó: Se o lugar é assombrado, não sei. O que eu sei é que em ia atravessando o sangrador do açude e me caiu do bolso n’água uma prata de dez tostões. Eu ia com meu cachorro e já estava dando a prata por perdida, quando vi que ele estava assim como quem está cochilando com outro. De repente o cachorro mergulhou, e trouxe o dinheiro, mas quando fui verificar só encontrei dois cruzados.

Padeiro: Oi! E essas almas de lá tem dinheiro trocado?

Chicó: Não sei, só sei que foi assim.

O Sacristão e o Padre saem da igreja.

Sacristão: Mas eu não já disse que fica tudo por minha conta?

Padre: Por sua conta como, se o vigário sou eu?

Sacristão: O vigário é o senhor, mas quem sabe quanto vale o testamento sou eu.

Padre: Hein? O testamento?

Sacristão: Sim, o testamento.

Padre: Mas que testamento é esse?

Sacristão: O testamento do cachorro.

Padre: E ele deixou testamento?

Padeiro: Só para o vigário deixou dez contos.

Padre: Que cachorro inteligente! Que sentimento nobre!

João Grilo : E um cachorro desse ser comido pelos urubus! É a maior das injustiças.

Padre: Comido, ele? De jeito nenhum. Um cachorro desse não pode ser comido pelos urubus.

Todos aplaudem, batendo palmas ritmadas e discretas e o

Padre agradece, fazendo mesuras. Mas de repente lembra-se do Bispo.

Padre, aflito: Mas que jeito pode-se dar nisso? Estou com tanto medo do bispo! E tenho medo de cometer um sacrilégio!

Sacristão: Que é isso, que é isso? Não se trata de nenhum sacrilégio. Vamos enterrar uma pessoa altamente estimável, nobre e generosa, satisfazendo, ao mesmo tempo, duas outras pessoas altamente estimáveis (aqui o padeiro e a mulher fazem uma curvatura a que o sacristão responde com outra igual), nobres (nova curvatura) e, sobretudo, generosas (novas curvaturas). Não vejo mal nenhum nisso.

Padre: É, você não vê mal nenhum, mas quem me garante que o bispo também não vê?

Sacristão: O bispo?

Padre: Sim, o bispo. É um grande administrador, uma águia a quem nada escapa.

João Grilo: Ah, é um grande administrador? Então pode deixar tudo por minha conta, que eu garanto.

Padre: Você garante?

Sacristão: E mesmo, não será preciso que Vossa Reverendíssima intervenha. Eu faço tudo.

Padre: Você faz tudo?

Sacristão: Faço.

Mulher: Em latim?

Sacristão: Em latim.

Padeiro: E o acompanhamento?

João Grilo: Vamos eu e Chicó. Com o senhor e sua mulher, acho que já dá um bom enterro.

Padeiro: Você acha que está bem assim?

Mulher: Acho.

Padeiro: Então eu também acho.

Sacristão: Se é assim, vamos ao enterro. (João Grilo estende a mão a Chicó que a aperta calorosamente). Como se chamava o cachorro?

Mulher, chorosa: Xaréu.

Sacristão, enquanto se encaminha para a direita, em tom de canto gregoriano: Absolve, Domine, animas omnium fidelium defunctorum ab omni vinculi delictorum.

Todos: Amém.

Saem todos em procissão, atrás do sacristão, com exceção do padre, que fica um momento silencioso, levando depois a mão à boca, em atitude angustiada, e sai correndo para a igreja.

Aqui o espetáculo pode ser interrompido, a critério do ensaia dor, marcando-se o fim do primeiro ato. E pode-se continuá-lo, com a entrada do Palhaço.

Palhaço: Muito bem, muito bem, muito bem. Assim se conseguem as coisas neste mundo. E agora, enquanto Xaréu se enterra “em latim”, imaginemos o que se passa na cidade. Antônio Morais saiu furioso com o padre e acaba de ter uma longa conferência com o bispo a esse respeito. Este, que está inspecionando sua diocese, tem que atender a inúmeras conveniências. Em primeiro lugar, não pode desprestigiar a Igreja, que o padre, afinal de contas, representa na paróquia. Mas tem também que pensar em certas conjunturas e transigências, pois Antônio Morais é dono de todas as minas da região e é um homem poderoso, tendo enriquecido fortemente o patrimônio que herdou, e que já era grande, durante a guerra, em que o comércio de minérios esteve no auge. De modo que lá vem o bispo. Peço todo o silêncio e respeito do auditório, porque a grande figura que se aproxima é, além de bispo, um grande administrador e político. Sou o primeiro a me curvar diante deste grande príncipe da Igreja, prestando-lhe minhas mais carinhosas homenagens.

Curva-se profundamente e o Bispo entra pela direita, acompanhado pelo Frade. O Bispo é um personagem medíocre, profundamente enfatuado, enquanto o Frade, a quem todos tratam com desprezo mal disfarçado, é a alegria e bondade em pessoa. Ante a curvatura do Palhaço, o Bispo faz um gesto soberano, mandando-o erguer-se. O Frade aponta o Palhaço e dispara na risada, tapando a boca com a mão, mas o Bispo olha-o severamente e o Frade baixa a cabeça, intimidado. Nova curvatura do Palhaço, novo gesto do Bispo.

Palhaço, animado pelo acolhimento: Muito bem, olá, como está Vossa Reverendíssima, como vai essa prosápia, essa bizarria. . .

Enquanto fala, vai fazendo as graças ingênuas de palhaço, pendurando o chapéu e o paletó, que caem ao chão, num cabide imaginário. Já em mangas de camisa, dirige-se ao Bispo com os braços largamente abertos, como quem vai abraçá-lo, mas o Bispo ergue a mão num gesto de desprezo e o Palhaço ri amarelo, parando à espera.

Bispo: Retro. Onde está o padre?

Palhaço: Deve estar na igreja.

O Bispo volta-se para o Frade, fazendo-lhe um aceno majestoso e descuidado. O Frade corre para a igreja.

Bispo: É horrível Ter de viver com um débilmental às costas, mas meu antecessor gostava dele e não quis desprestigiá-lo, porque afinal de contas ele era meu colega, de modo que conservei essa lesma no lugar em que a encontrei.

O Palhaço concorda, fazendo uma grande curvatura, e vem falar ao público.

Palhaço: E agora afasto-me prudentemente, porque a vizinhança desses grandes administradores é sempre uma coisa perigosa e a própria Igreja ensina que o melhor é evitar as ocasiões. (Ao Bispo) Peço licença a Vossa Excelência Reverendíssima, mas tenho que me retirar.

Curvaturas do Palhaço e do Bispo. O Palhaço sai e, no mesmo instante, o Frade volta com o Padre.

Padre, nervoso: Não esperava Vossa Reverendíssima aqui agora, de modo que. . .

Bispo: Deixemos isso, passons, como dizem os franceses. Mas há coisas que não posso deixar de lado, com essa facilidade.

Padre: Não estou entendendo.

Bispo, severo: Pois entenderá já. Quando eu lhe diser que Antônio Morais falou comigo. . .

Padre, sorridente: Antônio Morais falou com o senhor!

Bispo: Falou sim, e foi para reclamar de seu procedimento para com ele.

Padre: Não entendo o que Vossa Reverendíssima quer dizer.

Bispo: Não vejo dificuldade nenhuma em se entender isso, Padre João. Antônio Morais veio a mim se queixar de sua brutalidade para com ele.

Padre: Como é?

Bispo: Vamos deixar de brincadeiras. O senhor sabe perfeitamente a que estou me referindo. Por que chamou a mulher dele de cachorra?

Padre: Eu?

Bispo: Sim, o senhor. Quer me levar ao ridículo, é, Padre João?

Padre: Não, nunca, Deus me livre. Mas juro que não chamei a mulher dele de cachorra.

Bispo: Chamou, Padre João.

Padre: Não chamei

Bispo: Chamou,

Padre: Não chamei

Bispo, elevando a voz: Chamou, Padre João.

Padre, resignado: Chamei, senhor bispo.

Bispo: Afinal, chamou ou não chamou?

Padre: Não chamei, mas se Vossa Reverendíssima diz que eu chamei é porque sabe mais do que eu.

Bispo: Então não é verdade que ele veio pedir que o senhor lhe abençoasse o filho e que você chamou a mulher dele de cachorra?

Padre: O filho?

Bispo: Sim, o filho dele que está doente!

Padre: E é o filho dele que está doente?

Bispo: Claro que é, não é o que estou dizendo?

Padre: O Grilo tinha me dito que era o cachorro!

Bispo: O grilo? Padre João, você quer brincar comigo? Que história de grilo e cachorro é essa?

Padre: Vossa Reverendíssima perdoe, agora eu entendo tudo.

Bispo: Mas acontece que agora quem começa a não entender sou eu.

Padre: A culpa é do Grilo?

Bispo: Do grilo?

Padre: De João Grilo.

Bispo: Quem é João Grilo?

Padre: Um canalhinha amarelo que mora aqui e trabalha na padaria. Chegou dizendo que o cachorro de Antônio Morais estava doente e que ele queria que eu o benzesse. Quando o homem chegou, a confusão foi a maior do mundo. Agora eu entendo tudo. Mas ele me paga.

 

João Grilo, cantando longe: Lampião e Maria Bonita.

                                           Pensava que nunca morria:

                                          Morreu à boca da noite,

                                           Maria Bonita ao romper do dia.

Chegam perto João Grilo e Chicó.

João Grilo: Padre João, querido Padre João, está tudo pronto e nós muito satisfeitos com o senhor.

Padre: João Grilo, querido João Grilo, nós também estamos satisfeitíssimos com o senhor.

João Grilo: Qual, quem sou eu, um pobre Grilo que não vale nada. . . É bondade de Vossa Reverendíssima.

Padre: É mesmo, é bondade minha, porque você não passa de um amarelo muito safado!

João Grilo: Está ouvindo, Chicó? Eita, eu se fosse você, reagia.

Chicó: Eu?

João Grilo: Sim, eu, se fosse você, reagia. Não admito ninguém diga isso de um amigo meu na minha frente.

Chicó: Mas o amigo é você!

João Grilo: E então? Reaja, Chicó, seja homem!

Chicó: Eu, não. Reaja você!

João Grilo: Você não é homem não, Chicó?

Chicó: Eu sou homem mas sou frouxo.

João Grilo: muito bem, se é assim, eu falo. Por que Vossa Reverendíssima me chamou de safado?

Padre: Porque você é um amarelo muito safado.

João Grilo: Pois se esqueceram de botar isso na minha certidão de idade!

O Padre tenta agredir João mas o Freira o impede.

Padre: Como é que você veio me dizer que o cachorro de Antônio Morais estava doente, fazendo-me chamar a mulher dele de cachorra?

João Grilo: Ah, e a safadeza é essa? Isso é nada, Padre João! Muito pior é enterrar cachorro em latim, como se ele fosse cristão, e nem por isso eu vou chamá-lo de safado.

Padre, enorme grito: Ai!

Bispo: Que é isso?

Padre: Uma dor que me deu de repente. Ai!

João Grilo: Coitado, não tem que ver o grito que minha patroa dava enquanto se fazia o enterro do cachorro.

Padre: Ai, João Grilo, meu querido, me acuda que eu estou morrendo.

João Grilo: Eu? Quem sou eu para socorrer padre, eu, um amarelo muito safado!

Padre: Eu retiro o que disse, João.

João Grilo: Retirando ou não retirando, o fato é que o cachorro enterrou-se em latim.

Bispo: Um cachorro? Enterrado em latim?

Padre: Enterrado latindo, senhor bispo. Au, au, au, não sabe?

Bispo: Não sei não senhor, nunca vi cachorro morto latir. . . Que história é essa?

Padre: Ai! Ai! Ai!

Sacristão, entrando: Que é isso? Que é isso?

João Grilo: É o bispo que quer saber que história é essa.

Sacristão, fazendo mesuras: Senhor bispo, excelente e reverendíssimo senhor Bispo. . . Qual história?

João Grilo: Essa de padre e sacristão se juntarem para enterrar um cachorro em latim.

Sacristão: Ai!

João Grilo: Que aperreio é esse? A desgraça agora foi que comuçou!

Bispo: Então houve isso? Um cachorro enterrado em latim?

João Grilo: E então? É proibido?

Bispo: Se é proibido? Deve ser, porque é engraçado demais para não ser. É proibido! É mais do que proibido! Código Canônico, artigo 1627, parágrafo único, letra k. Padre, o senhor vai ser suspenso.

Padre: Ai!

João Grilo: Vossa Excelência Reverendíssima vai suspender o padre?

Bispo: Vou, por que não? Acha pouco o que ele fez? Uma vergonha! Uma desmoralização!

Padre: Ai!

Bispo: E o sacristão também vai pular fora de seu emprego!

Sacristão: Ai!

Bispo: Quanto ao senhor, senhor João Grilo, vai ver agora o que é administrar. O senhor vai se arrepender de suas brincadeiras, jogando a Igreja contra Antônio Morais. Uma vergonha, uma desmoralização!

João Grilo: É mesmo, é uma vergonha. Um cachorro safado daquele se atrever a deixar três contos para o sacristão, quatro para o padre e seis para o bispo, é demais.

Bispo, mão em concha no ouvido: Como?

João Grilo: Ah! E o senhor não sabe da história do testamento ainda não?

Bispo: Do testamento? Que testamento?

Chicó: O testamento do cachorro.

Bispo: Testamento do cachorro?

Padre, animando-se: Sim, o cachorro tinha um testamento. Maluquice de sua dona. Deixou três contos de réis para o sacristão, quatro para a paróquia e seis para a diocese.

Bispo: É por isso que eu vivo dizendo que os animais também são criaturas de Deus. Que animal interessante! Que sentimento nobre!

Padre, arriscando: Para atender à vontade da dona, deixei que o sacristão acompanhasse o Bispo, sorridente: O enterro!

Padre, sorridente: Sim, o enterro.

Bispo: Em latim?

Sacristão: Nada, eu disse aí umas quatro ou cinco coisas que sabia, coisa pouca.

João Grilo, gregoriano: Não sei que, não sei que, defunctorum.

Chicó, mesmo tom: Amém.

Bispo: É preciso deliberar. É assunto para se discutir com muito cuidado. Vamos reunir o concílio.

Encaminha-se para a igreja. O sacristão quer ir logo depois dele, mas o Padre o impede e toma para si o lugar de honra. O Frade os segue.

Sacristão, do limiar, antes de entrar na igreja: Na verdade, vê-se logo que é um grande administrador.  

Chicó: Você ainda se desgraça numa embrulhada dessas. Eles viram a bexiga?

João Grilo, exibindo-a: Que nada, está aqui.

Chicó: Se a mulher do padeiro descobrir que você tirou a bexiga do cachorro antes do enterro. . .

João Grilo: Que é que tem isso? Eu estava precisando dela para um negócio que estou planejando e a necessidade desculpa tudo. O cachorro já estava morto, não precisava mais dela, eu tirei porque estava precisando! Ela não tem nada a reclamar.

Chicó: É, o cachorro já estava morto, mas você sabe como esse povo rico é cheio de agonia com os mortos. Eu, às vezes, chego a pensar que só quem morre completamente é pobre, porque com os ricos a agonia continua por tanto tempo depois da morte, que chega a parecer que ou eles não morrem direito ou a morte deles é outra.  

João Grilo: Você ainda não viu nada! Eu ter tirado a bexiga do cachorro não quer dizer coisa nenhuma. Danado é o gato que arranjei para tomar o lugar do morto.

Chicó: Do morto? Que morto?

João Grilo: O cachorro, companheiro. Você vai ver uma coisa.

Chicó: Não estou entendendo nada.

João Grilo: pois vai entender daqui a pouco. Vou entrar também no testamento do cachorro.

Chicó: Como, João?

João Grilo: Eu não lhe disse que a fraqueza da mulher do patrão era bicho e dinheiro?

Chicó: Disse.

João Grilo: Pois vou vender a ela, para tomar o lugar do cachorro, um gato maravilhoso, que descome dinheiro.

Chicó: Descome, João?

João Grilo: Sim, descome, Chicó. Come, ao contrário.

Chicó: Está doido, João! Não existe essa qualidade de gato.

João Grilo: Para uma pessoa cuja fraqueza é dinheiro e bicho, não vejo nada melhor do que um bicho que descome dinheiro.

Chicó: João, não é duvidando não, mas como é que esse gato descome dinheiro?

João Grilo: É isso que é preciso combinar com você. A mulher vem já para cá, cumprir o testamento. Eu deixei o gato amarrado ali fora. Você vá lá e enfie essas pratas de dez tostões no desgraçado do gato, entendeu?

Chicó: Entendi demais. (Vai sair mas volta.) O’ João!

João Grilo: Hein!

Chicó: E cabe?

João Grilo: sei lá! Se não couber, bote de cinco tostões, entendeu?

Chicó: Entendi

João Grilo: Quando eu gritar por você, venha, me entregue o gato e deixe o resto por minha conta.

Chicó, vai sair mas volta: E o que é que eu ganho nisso tudo?

João Grilo: Uma parte no testamento do cachorro.

Chicó, idem: E se o negócio der errado?

João Grilo: Lá vem você com suas latomias! Quer ou não quer? Se não quer diga logo, que eu arranjo outro sócio.

Chicó: Quero.

João Grilo: Então vá.

Chicó, idem: E a bexiga do cachorro?

João Grilo: Homem, vá-se embora pelo amor de Deus que a mulher vem por aí! Espere. A bexiga é quem vai nos garantir se o negócio der errado. Leve-a, encha-a de sangue e bote no peito dentro da camisa. Vá, vá.

Chicó faz uma saudação à mulher, que vem entrando, com dois pacotinhos de dinheiro, e sai.

João Grilo: Como vai a senhora? Já está mais consolada?

Mulher: Consolada? Como, se além de perder meu cachorro ainda tive de gastar treze contos para ele se enterrar?

João Grilo: Está aí o dinheiro?

Mulher: Está. Entregue ao padre e ao sacristão.

João Grilo: Um momento. O que é que tem escrito aqui?

Mulher: Sacristão.

João Grilo: E aqui?

Mulher: Padre.

João Grilo: Pois por favor escreva aqui “bispo e padre”.

Mulher: Bispo e padre? Por que?

João Grilo: Porque houve aqui um pequeno arranjo e o bispo também teve que entrar no testamento.

Mulher, escrevendo: Que complicação! E se ao menos eu lucrasse alguma coisa. . . Mas perdi foi meu cachorro.

João Grilo: Quem não tem cão caça com gato.

Mulher: Hein?

João Grilo: Quem não tem cão caça com gato e eu arranjei um gato que é uma beleza para a senhora.

Mulher: Um gato?

João Grilo: Um gato.

Mulher: E é bonito?

João Grilo: Uma beleza.

Mulher: Ai, João, traga para eu ver! Chega a me dar uma agonia. Traga, João, já estou gostando do bichinho. Gente, não, é povo que não tolero, mas bicho dá gosto.

João Grilo: Pois então vou buscá-lo.

Mulher: espere. Sabe do que mais, João? Não vá buscar o gato que isso só me traz aborrecimento e despesa. Não viu o que aconteceu com o cachorro? Terminei tendo que fazer testamento.

João Grilo: Ah, mas aquilo é porque foi o cachorro Com meu gato é diferente.

Mulher: Diferente por quê?

João Grilo: Por que ao invés de dar prejuízo ele dá lucro

Mulher: Como lucro?

João Grilo: Descome dinheiro .

Mulher: Descome dinheiro?

João Grilo: Descome sim.

Mulher: Essa eu só acredito vendo

João Grilo: pois vai ver! Chicó

Mulher: Ah, e é história do Chicó ? logo vi.

Chicó entrando com o gato: Tome seu gato

João Grilo: Ai está o gato.

Mulher: E daí?

João Grilo: É só tirar o dinheiro.

Mulher: Pois tire

João Grilo: vira pra Chicó com o rabo levantado: Tira ai Chicó.

Chicó: Tire você

Chicó tira a moeda e mostra para a mulher

Mulher: Nossa senhora é mesmo João me arranje esse gato pelo amor de Deus!

João Grilo: Só tem um porém! Eu quero entrar no testamento do cachorro.

Mulher: Pois você entra! Qual é a sua parte no testamento?

João Grilo: Um conto está bom.

Mulher: É muito caro!

João Grilo: Mas por um gato que descome dinheiro! .

Mulher: mas ele vai demorar dois mil dias para só tirar o preço

João Grilo: Mas ele descome dinheiro mais de uma vez por dia.

Mulher: Mas ele pode morrer. Só dou 500 e se não aceitar eu te demito da padaria

João Grilo: está certo, fica por 500.

Mulher: Tome lá e me passe o gato.(sai contentíssima).

Chicó: João, adeus. Eu vou me embora.

João Grilo: nada disso toma a metade do dinheiro e deixe de ser mole! .

Chicó: Homem eu não tenho coragem de continuar sempre, é melhor fugir logo antes enquanto está tudo em paz

João Grilo: não adiante Chicó, você já entrou na história e agora é tarde a mulher descobre já. Quantas pratas você conseguiu meter?

Chicó: três

João Grilo: Então ela descobre já.

Chicó: meu Deus se eu sair dessa eu subo a serra de joelho

João Grilo: Encheu a bexiga se sangue?

Chicó apontando a barriga: Está aqui

João Grilo: Então está tudo garantido.

Entram o padre, bispo, freira, Sacristão.

Bispo: Não resta nenhuma dúvida foi tudo legal permitido. Código Canônico artigo 369, parágrafo 3º letra “R”.

João Grilo: O testamento do cachorro está aqui. Entrega-lhe o pacote de dinheiro.

Padre: Você sabe ler Chicó!

João Grilo: Senti pelo peso

Padre divide o pacote com o bispo: Aqui está!

João Grilo: E fica mais uma vez tudo em paz.

Padeiro Gritando ””da porta da padaria””: Ladrão! ladrão

João Grilo:   Ladrão é Você.

Padeiro : O que é assim que você me trata agora? Olha que eu lhe boto fora da padaria.

João Grilo: Nunca me despediu porque eu trabalho bem e barato. Está ai o Padre que o diga: qual era o melhor pão da rua.

Padre: O pão de João grilo

Bispo: Afinal que barulhada é essa.

Padeiro: ele vendeu um gato para a minha mulher dizendo que botava dinheiro.

Freira: Ra, ra! Essa foi boa!

Padeiro: Boa? E é uma freira que vem dizer isso? É o fim do mundo!

Bispo: Não de incomode, trata-se de uma debilóide.

João Grilo: Agora eu vou me embora daqui. E sabem do que mais ? Vão se danar todos, sacristão padre bispo, porque estou cheio.(todos olham espantados para ele) É isso mesmo e façam o favor de não me irritar.

Fora ouvem gritos de socorro.

Padre: que será sido isso Meu Deus?

Bispo: é barulho de tiro.

Mulher entrando assombrada e grita: é Severino de Aracaju .

Padeiro: ai meu Deus!

Severino: Um momento se tentar fugir morre.

Bispo: Ai (e desmaia).

Severino: dando-lhe um pontapé: Levante e deixe de Chilique Bispo levanta de vagar.

Bispo: Quem é Você?

Severino: Sou Severino de Aracaju . Vamos todos mostrem os bolsos (Todos mostram os bolsos e Severino pega o dinheiro, o ultimo deverá ser o Bispo) Ser padre e bispo da um dinheiro lascado seis contos no bolso de cada um!

Sacristão: Só tenho que lamentar a minha pobreza que não posso ajudar meus irmãos.

Severino: mais pobre que você é Severino de Aracaju que não tem ninguém por ele.

MULHER (sedutora): Então venha trabalhar comigo na padaria. Garanto que não se arrependeria.

SEVERINO (severo): Mostre a mão esquerda.

MULHER (cariciosa): Pois não, com muito gosto.

SEVERINO: É uma aliança?

MULHER: É, sou casada com essa desgraça aí, mas estou tão arrependida! Só gosto de homens valentes e esse é sem vergonha.

SEVERINO: Vergonha é uma mulher casada na igreja se oferecer desse jeito. Aliás já tinha ouvido falar que a senhora enganava seu marido com todo mundo.

PADEIRO: O quê? É possível?

JOÃO GRILO: Está aí Chicó que o diga.

CHICÓ: Eu?

SEVERINO: A coisa que eu tenho mais raiva é de mulher assim. Sabe o que eu faço com as que encontro com esse costume?

MULHER: Não.

SEVERINO: Ferro na tábua do queixo.

MULHER: Ai!

PADEIRO: Não ligue ao que ela diz, mas o senhor podia vir mesmo trabalhar comigo na padaria. Não se ganha muito, mas dá para viver.

SEVERINO: Então ganha-se pouco na padaria?

PADEIRO: Muito pouco, eu mesmo não tenho nada aqui, veja.

SEVERINO: Não precisa, eu acredito. O que você tinha, deixou no cofre e eu tirei tudo, de passagem por lá.

PADEIRO: Ai!

JOÃO GRILO: Dou toda a razão a você, Severino, mas está ficando tarde e eu tenho o que fazer. Vamos embora, Chicó. Vocês, até logo e muito boa viagem para todos.

SEVERINO: Um momento, amarelinho, quero fala com você (A Chicó). Você também não se apresse.

JOÃO GRILO: E deixe eu ir-me embora. Dê os seus também, Chicó, e vamos sair daqui que o calor está aumentando.

SEVERINO: Você agora fica e vai morrer com os outros. Está-me chamando de ladrão? Severino do Aracaju pode ser assassino, mas não mata ninguém sem motivo. Até hoje só matei para roubar. É assim que garanto meu sustento. Mas você me chamou de ladrão e vai se arrepender.

BISPO: Quer dizer que o senhor vai nos matar a todos?

SEVERINO: Vou, por que não?

BISPO: Mas você não disse que só mata para garantir seu sustento?

SEVERINO: E não é o que estou fazendo?

BISPO: É um louco. Socorro! Socorro!

SEVERINO: Pode gritar à vontade, garanto que não vem ninguém. Mas somente por causa desse grito, Vossa Excelência vai ser o primeiro. Tenha a bondade de passar para ali, porque Severino do Aracaju não mata ninguém defronte da Igreja.

SEVERINO: Senhor bispo... Não adianta olhar para os lados, porque, se não sair, morre aqui mesmo. Seja homem, dê um exemplo a se4us dois secretários que estão em tempo de se acabar de medo. Vamos logo, vá!

O Padre e o Sacristão começam a rezar. O Bispo ergue a cabeça e quer sair com dignidade, mas as pernas não lhe tremem de tal modo que ele vai tropeçando.

O Bispo sai pela esquerda. Severino faz um aceno para o Cangaceiro. Este daí, atrás do Bispo. Um tiro. Severino baixa a cabeça afirmativamente, sorrindo com eficiência da execução. O Cangaceiro reaparece, fazendo um gesto horizontal e cortante com a mão.

SEVERINO: Senhor Padre, pela ordem, é a sua vez.

            PADRE, descobrindo o rosto.

            Com a raiva, Padre João se esquece do medo e sai rapidamente, mas o Sacristão fica.

SEVERINO: (ao Sacristão) Vai atrás do seu patrão.

                        O Sacristão sai. Dois tiros, mesma cena entre Severino e o Cangaceiro.

FREIRA: Agora, eu?

SEVERINO: Não, não gosto de matar Freira que dá azar. Vá embora. (a Freira sai). E chega ,agora a vez do excelentíssimo senhor padeiro desta cidade de Taperoá, que terá a súbita satisfação da morrer ao lado de sua excelentíssima mulher safada.

PADEIRO: Antes de morrer, tenho um pedido a fazer.

SEVERINO: Ai, ai, ai! O que é?

PADEIRO: Quero que ela morra primeiro para eu ver.

SEVERINO: Concedido. Mate a mulher primeiro.

MULHER: A desgraçado.

PADEIRO: Desgraçada é você que me desgraçava a testa sem saber. E se ao menos fosse com uma pessoa de respeito! Mas até Chicó!

CHICÓ: Até Chicó, o que? Eu fui que corri o perigo de ficar falado, andando com essa mulher de cima para baixo.

PADEIRO: (à Mulher): Eu não digo! Você me desgraçou. Caminhe na frente! Faço questão de ver essa desgraça morrer!

MULHER: E então? Pensa que vou fazer cara feia? Está muito enganado, tenho mais coragem do que muito homem safado. Você, sim, está aí em tempo de se acabar. Pensa que não vi as pernas de sua calça tremendo, desde que ele entrou? Está pronto?

CANGACEIRO: Estou.

MULHER: Pois vamos. (Sai firmemente , acompanhada pelo marido, que cambaleia.)Eu não disse? Segure aqui, que eu ajudo.

            O padeiro se apoia na mulher e eles saem abraçados.

JOÃO GRILO: E é assim que serão dois numa só carne. Um só tiro. Ficam todos em expectativa e o cangaceiro volta.

SEVERINO: Que foi isso? Só matou um?

CANGACEIRO: Não, os dois.

SEVERINO: Só ouvi um tiro.

CANGACEIRO: Ia matar a mulher primeiro, como o senhor mandou, mas no momento em que ia puxar o gatilho, o homem correu, abraçou-se com a mulher e morreram juntos.

SEVERINO: Muito bem. Como é o nome de Vossa Senhoria?

JOÃO GRILO: Minha Senhoria não tem nome nenhum, porque não existe. Pobre tem l as senhoria, só tem desgraça.

SEVERINO: Diga então o nome de Vossa Desgracência.

JOÃO GRILO: João Grilo.

SEVERINO: Chega então agora a vez de Sua Desgracência, o Senhor João Grilo, o amarelo mais amarelo que já tive a honra de matar. Pode ir, a casa é sua.

JOÃO GRILO: Um momento. Antes de morrer, quero lhe fazer um grande favor.

SEVERINO: Qual é?

JOÃO GRILO: Dar-lhe esta gaita de presente.

SEVERINO: Uma gaita? Para que eu quero uma gaita?

JOÃO GRILO: Para nunca mais morrer dos ferimentos.

SEVERINO: Que conversa é essa? Já ouvi falar de chocalho bento que cura mordida de cobra, mas gaita que cura ferimento de rifle, é a primeira vez.

JOÃO GRILO: Mas cura. Essa gaita foi benzida por padre Cícero, pouco antes de morrer.

SEVERINO: Eu só acredito vendo.

JOÃO GRILO: Pois não. Queira Vossa Excelência me conceder o seu punhal.

SEVERINO: Olhe lá.

JOÃO GRILO: Não tenha cuidado. Pode apontar o rifle e se eu tentar alguma coisa para seu lado queime.

SEVERINO(ao Cangaceiro): Aponte o rifle para esse amarelo, que é desse povo que eu tenho medo. (Entrega o punhal a João sob a mira do Cangaceiro.) E agora?

JOÃO GRILO: Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chicó.

CHICÓ: Na minha , não.

JOÃO GRILO: Deixe de moleza, Chicó. Depois eu toco na gaita e você fica vivo de novo! (Murmurando a Chicó) A bexiga, a bexiga!

            Acena para Chicó, mostrando a barriga e lembrando a bexiga, mas Chicó não entende.

CHICÓ: Muito obrigado, mas eu não quero não, João.

JOÃO GRILO (novos acenos): Mas eu não já disse que toco na gaita?

CHICÓ: Então vamos fazer o seguinte: você leva a punhalada e quem toca a gaita sou eu.

JOÃO GRILO: Homem, sabe do que mais? Vamos deixar de conversa. Tome lá! Morra, desgraçado!

            Dá uma punhalada na bexiga. Com a sugestão, Chicó cai no solo, apalpa-se, vê a bexiga e só então entende. Ele fecha os olhos e finge que morreu.

JOÃO GRILO: Está vendo sangue?

SEVERINO: estou. Vi você dar a facada, disso nunca duvidei. Agora, quero ver é você curar o homem.

JOÃO GRILO: É já.

            Começa a tocar a gaita e Chicó começa se mover no ritmo da música, primeiro uma mão, depois as duas, os braços, até que se levanta como se estivesse com dança de São Guido.

SEVERINO: Nossa Senhora! Só tenho sido abençoado por Meu Padrinho Padre Cícero. Você não está sentindo nada?

CHICÓ: Nadinha.

SEVERINO: E antes?

CHICÓ: Antes como?

SEVERINO: Antes de João tocar na gaita.

CHICÓ: Ah, eu estava morto.

SEVERINO: Morto?

CHICÓ: Completamente morto. Vi Nossa Senhora e Padre Cícero no céu.

SEVERINO: Mas em tão pouco tempo? Como foi isso?

CHICÓ: Não sei, só sei que foi assim.

SEVERINO: E que foi que Padre Cícero lhe disse?

CHICÓ: Disse: “Essa é a gaitinha que eu abençoei antes de morrer. Vocês devem dá-la a Severino, que precisa dela mais do que vocês.

SEVERINO: Ah meu Deus, só podia ser Meu Padrinho Padre Cícero mesmo. João, me dê essa gaitinha.

JOÃO GRILO: Ah então me solte e solte Chicó.

SEVERINO: Não pode ser, João. Eu matei o bispo, o padre, o sacristão, o padeiro e a mulher e eles morreram esperando por você. Se eu não matar, vêm-me perseguir de noite, porque será uma injustiça com eles.

JOÃO GRILO: Mas mesmo eu lhe dando essa gaita? Você repare que eu podia Ter morrido sem nada lhe dizer e você nunca saberia de nada, porque ninguém ia dar importância a uma gaita.

SEVERINO: É verdade.

JOÃO GRILO: Eu lhe dei uma oportunidade de conhecer Meu Padrinho Padre Cícero e você me paga desse modo!

SEVERINO: De conhecer Meu Padrinho? Nunca tive essa sorte.

JOÃO GRILO: Mas pode conhecê-lo agora.

SEVERINO: Como?

JOÃO GRILO: Seu cabra lhe dá um tiro de rifle, você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e você volta.

SEVERINO: Sua idéia é boa, mas por segurança entregue a gaita a meu cabra. (João entrega a gaita) Agora eu levo um tiro e vejo Meu Padrinho?

JOÃO GRILO: Vê, não vê, Chicó?

CHICÓ: Vê demais. Está lá, vestido de azul, com uma porção de anjinhos em redor. Ele até estava dizendo: “Diga a Severino que eu quero vê-lo.”

SEVERINO: Ai, eu vou. Atire, atire!

CANGACEIRO: Capitão!

SEVERINO: Atira, cabra frouxo, eu não estou mandando?

CANGACEIRO: Capitão!

SEVERINO: Atire!

JOÃO GRILO: Homem, atire logo pelo amor de Deus!

            O Cangaceiro ergue o rifle.

SEVERINO: Espere. (João extremamente nervoso, ergue os braços para o céu.) Não se esqueça de tocar na gaita.

CANGACEIRO: Não tenha cuidado, Capitão.

SEVERINO: Então atire.

            O Cangaceiro ergue o rifle de novo e atira. Severino cai e o cangaceiro pega a gaita.

JOÃO GRILO (Impedindo-o): Não, deixe para tocar depois! Deixe pobre de Severino conversar mais um pedaço com o Padre Cícero! Essas ocasiões são poucas, é preciso aproveitar.

CANGACEIRO: Não, já deu tempo de ele ver o padre. (toca na gaia e nada) Capitão! Capitão! (empurra Severino com o pé) Está morto!

JOÃO GRILO: Toque na gaita!

Cangaceiro: Depois de tocar. Capitão! Ah, Grilo amaldiçoado, você matou o capitão.

JOÃO GRILO: Em cima dele, Chicó.

       Atacam o Cangaceiro. Sem que ninguém veja a facada, João Grilo dá uns meneios e saltos de gato na frente do Cangaceiro, que puxa um revólver: Chicó imobiliza os braços do Cangaceiro segurando-o por trás. Com uma das mãos força-o a apontar o revólver para o chão

JOÃO GRILO: Solte o homem, Chicó!

CHICÓ: Mas, João, Soltar o homem com um revólver na mão?

JOÃO GRILO: Solte o homem, Chicó!

CHICÓ: João meu filho, você é grande ! Vamos embora!

JOÃO GRILO: Nada disso, só saio daqui com o testamento do cachorro

       Vai ao lugar onde está o corpo de Severino e tira o dinheiro.

CHICÓ: João, de tudo isso eu só não entendo uma coisa.

JOÃO GRILO: O que é?

CHICÓ: Como foi que você adivinhou que Severino vinha e preparou a história da bexiga?

JOÃO GRILO: Eu não adivinhei coisa nenhuma, a bexiga estava preparada para a mulher do padeiro, quando ela viesse reclamar o preço do gato. Eu ia ver se convencia o marido dela a dar-lhe uma facada, para experimentar a gaita e me vingar do que ela me fez. Severino meteu-se no meio porque quis e de enxerido que era.

CHICÓ: Vamos embora João!

JOÃO GRILO: Mais Chicó, tenha vergonha, você ainda está com medo?

CHICÓ: Estou João com um pressentimento ruim danado!

JOÃO GRILO: Então vamos embora, mais deixe de agouro

            Chicó sai para a cidade, mas João para no limiar erguendo teatralmente os braços.

JOÃO GRILO: E agora a vida boa e a independência para João Grilo e para Chicó, graças a minha altíssima sabedoria e ao testamento do cachorro.

CHICÓ (de fora): João, venha embora pelo amor de Deus!

JOÃO GRILO: Já vou, Chicó, João Grilo já vai.

            O cangaceiro reergue dificilmente a cabeça, pega o rifle, atira em João e morre. João entra em cena segurando o espinhaço e senta-se no chão. Chicó volta correndo.

CHICÓ: Que foi isso, João?

JOÃO GRILO: O cabra estava vivo ainda e atirou em mim.

CHICÓ: Ai, minha Nossa Senhora, será que você vai morrer, João?

JOÃO GRILO: Acho que vou, Chicó estou ficando com a vista escura.

CHICÓ: Ai, meu Deus, pobre de João Grilo vai morrer!

JOÃO GRILO: Deixe de latomia, Chicó, parece que nunca viu um homem morrer! Nisso tudo eu só lamento é perder o testamento do cachorro.

       Morre.

CHICÓ: João! João! Morreu! Ai meu deus, morreu pobre de João Grilo! Tão amarelo, tão safado e morrer assim! Que é que eu faço no mundo sem João? João! João! Não tem mais jeito, João Grilo morreu. Porque tudo o que é vivo morre. Que posso fazer agora? Somente seu enterro e rezar por sua alma.

            Entra na Igreja, limpando as lágrimas e aqui pode-se novamente interromper o espetáculo. Se montar a peça com dois cenários, organiza-se a cena para o julgamento que se segue. Mas pode-se continuá-lo com o mesmo cenário, usando-se somente pequenas modificações, já sugeridas no início e que o próprio texto a seguir esclarece.

PALHAÇO: Espero que todos os presentes aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenha certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos e pacientes. E basta, se bem que seja pouco. Música

         Música de circo. O palhaço sai dançando. Se montar a peça em três atos ou houver mudança de cenário, começará aqui a cena do julgamento, com o pano abrindo e os mortos despertando.

JOÃO GRILO (para o Cangaceiro): Mas me diga uma coisa, havia necessidade de você me matar?

CANGACEIRO: E você não me matou?

JOÃO GRILO: Pois é por isso mesmo que eu reclamei. Você já estava desgraçado, podia Ter-me deixado em paz.

SEVERINO: Eu, por mim, agora que já morri, estou achando até bom.

BISPO: Eu também! Estou até me dando bem!

JOÃO GRILO: É, então todos muito calmos porque ainda não repararam naquele freguês que está ali, na sombra, esperando que nós acordemos.

Padre: Quem é?

João Grilo: Você ainda pergunta? Desde que cheguei que comecei a sentir um cheiro ruim danado. Essa peste deve ser um diabo.

Demônio (saindo da sombra, severo):Calem-se todos. Chegou a hora da verdade.

Severino: Da verdade?

Bispo: Da verdade?

Padre: Da verdade?

Demônio: Da verdade, sim. Vocês vão pagar tudo o que fizeram.

Padre: Mas o que eu ...

Demônio: Silêncio!

       Desde que ele começou a falar, soam ritmadamente duas pancadas, fortes e secas, de tambor e uma de prato, com uma pausa mais ou menos longa entre elas, ruído que deve repetir até a aparição do Demônio. Este é o diabo, que, segundo uma crença do sertão do Nordeste, é um homem muito moreno, que se veste como um vaqueiro. Esta cena deve se revestir de um caráter meio grotesco, pois a ordem que o Demônio dá, mandando que os personagens se deitem, já insinua o fato de que o maior desejo do diabo é imitar Deus, resultado de seu orgulho grotesco. E tanto é assim, que ele tenta conseguir aí pela intimidação o tributo que Jesus terá depois, espontaneamente, quando de sua entrada. O bispo é o único a esboçar um movimento de obediência, mas, antes que ele se deite, o Demônio entra, dando pancadas de rebenque na perna e ajustando suas luvas de couro. Os mortos começam a tremer exageradamente e o Demônio ocorre para junto dele, servil e pressuroso.

Demônio: Que vergonha! Todos tremendo! Tão corajosos antes, tão covardes agora! O Senhor bispo, tão cheio de dignidade, o padre, o valente Severino ... E você, o Grilo que enganava todo o mundo, tremendo como qualquer safado!

João Grilo: Que é que posso fazer? Já disse mais de cem vezes a mim que não tremesse tremo. Desde que ouvi aquelas pancadas que comecei a sentir um calafrio danado.

Demônio: Em tem razão, porque o que vai lhe acontecer é coisa muito vai lhe acontecer é coisa muito séria (sorrindo). É engraçado como vocês empregam às vezes a palavra exata, sem terem consciência perfeita do fato. O que você sentiu foi exatamente um arrepio de danado.

Severino: Ai meu Deus, vou pagar minhas mortes no inferno!

Bispo: Senhor demônio, tenha compaixão de um pobre bispo!

Demônio: Ah, compaixão,... com pilhéria é boa ! vamos, todos para dentro. Para dentro, já disse. Todos para o fogo eterno, para padecer comigo.

( O Demônio começa a perseguir os mortos e o alarido deles é terrível. Ele vai agarrando um por um e os mortos vão se desvencilhando, aos gritos)

Bispo: Ai! Leve o padre!

Padre: Ai leve o sacristão!

Sacristão: Leve o Severino

Severino: Leve o cabra

João Grilo: Parem, parem! Acabem com essa molecagem!

                        Seu grito é tão grande que todos param e o silêncio se faz

João Grilo: Acabem com essa molecagem. Diabo dum barulho danado! É assim, é? É assim é?

Diabo: Assim como

João Grilo: é assim de vez? É só dizer “pra dentro” e vai tudo? Que diabo de tribunal é esse que não tem apelação?

Diabo: é assim mesmo e não tem para quem fugir!

João Grilo: Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tende a ser ouvida!

Severino: é isso mesmo e eu vou apelar para Nosso Senhor Jesus cristo, que é quem pode saber.

Diabo: Besteira, maluquice!

Padre: Besteira ou maluquice eu também apelo Senhor Jesus Cristo, certo ou errado, eu sou um padre e tenho meus direitos. Quero ser julgado antes de ser entregue.

Aqui começam a soar pancadas de sino no mesmo ritmo das de tambor anteriores. O Diabo começa a ficar agitado.

João Grilo: Ah! Pancadinhas benditas! Oi, está tremendo? Que vergonha, tão corajoso antes, tão covarde agora! Que agitação é essa?

Diabo: Quem está agitado? É somente uma questão de inimizade. Tenho direito de me sentir mal com aquilo que me desagrada.

João Grilo: Eu pelo contrário, estou me sentindo muito bem sinto como se minha alma quisesse cantar.

Bispo: estranhamente emocionado: eu também. É estranho, nunca tinha experimentado um sentimento como esse. mas é uma vontade esquisita, pois não sei bem se ela é de cantar ou é de chorar.

Esconde o rosto entre as mãos. As pancadas do sino continuam a tocar uma música de aleluia. Derrepente, João se ajoelha como se levado por uma força irresistível e fica com os olhos fixos fora. Todos vão-se ajoelhando vagarosamente. O Diabo volta rapidamente as costas, para não ver cristo que vem entrando. É um preto retindo, com uma bondade simples e signa nos gestos e nos modos. A cena ganha uma intensidade suavizada de iluminura. Todos estão de joelhos, com o rosto entre as mãos.

Diabo:(de costas, grande grito com o braço ocultando os olhos) Quem é Manuel?

Manuel: Sim sou eu. Levantem-se todos porque serão julgados.

João Grilo: Apesar de ser um sertanejo pobre amarelo, sinto perfeitamente que estou diante de uma grande figura. Não quero faltar com o respeito, mas se não me engano o cabra ali(aponta para o Diabo) lhe chamou de Manuel.

Manuel: Foi isso mesmo João esse é um de meus nomes. Ele gosta de me chamar de Emanuel, porque pensa que assim pode se persuadir de que sou somente homem. Mas você, se quiser pode me chamar de Jesus.

João Grilo: Jesus?

Manuel: Sim

João Grilo: Mas espere, o senhor é que é jesus?

Manuel: Sou.

João Grilo: Aquele Jesus a quem chamava de Cristo?

Jesus: A quem chamava de Cristo. Sou eu por que?

João Grilo: Porque... não é lhe faltando com o respeito não, mas pensava que o senhor era muito menos queimado.

Bispo: Cale-se atrevido.

Manuel: Cale-se você. Com que autoridade está repreendendo os outros? Você foi um bispo indigno de minha igreja, mundano autoritário, soberbo. Seu tempo já passou. Muita oportunidade teve de exercer sua autoridade, santificando-se através dela. Sua obrigação era ser humilde, porque quanto mais alta é a função mais generosidade e virtude requerer. Que direito você tem de repreender João falou comigo com certa intimidade? João foi um pobre em vida provou sua sinceridade exibindo seu pensamento. Você estava mais espantado do que ele e escondeu essa admiração por prudência mundana. O tempo da mentira já passou.

João Grilo: muito bem falou pouco mas falou bonito a cor não pode ser das melhores mas o senhor fala bem que faz gosto

Manuel: Muito obrigado, João, mas agora é sua vez. Você é cheio de preconceito de raça. Vim hoje assim porque sabia que isso iria despertar comentários. Que vergonha ! Eu Jesus nasci branco e quis nasce judeu, como podia Ter nascido preto. Você pensa que sou americano para Ter preconceito de raça.

Padre: Eu por mim nunca soube o que era preconceito de raça.

Diabo: sempre de costas para Emanuel: é mentira. Só batizava os meninos pretos depois dos brancos.

Manuel: mas deixemos isso, sua vez há de chegar. Pela ordem, cabe a vez ao bispo. (ao diabo) Deixe de preconceito e fique de frente.

Diabo: Sombrio: Estou bem assim.

Manuel: como queira. Faça a acusação do bispo(o Demônio traz um grande livro que o Diabo vai lendo.)

Diabo: Simonia: negociou com o cargo, aproveitando o enterro de um cachorro em latim, porque o dono lhe deu 6 contos.

Bispo: é proibido.

Diabo: Homem se é proibido não sei só sei que em um momento era em outro não era. E o trecho que foi cantado no enterro é uma oração da missa de defuntos.

Bispo: Isso é aí com meu amigo sacristão quem escolheu o pedaço foi ele.

Diabo: falso testemunho: citou levianamente o Código Canônico para condenar os atos do padre e contentar o ricaço Antônio Morais, depois para justificar o enterro. Velhacaria: esse bispo tinha fama de grande administrador, mas não passava de um político, apodrecido de sabedoria mundana. Arrogância e falta de humildade no desempenho de suas funções: esse bispo, falando com os pequenos tinha um soberba só comparável à subserviência que usava para tratar os mais pobres. Não estou satisfeito.

Manuel: Então acuse o padre.

Padre: de mim ele não tem nada que dizer.

Diabo: é o que se pensa. Minha safra hoje está garantida. Tudo o que eu disse do bispo pode se aplicar ao padre. Simonia no enterro do cachorro , velhacaria, política mundana, arrogância com os pequenos, subserviência com os grandes.

Padre: mais não citei o Código canônico em falso.

Diabo: Ele tinha ainda outro defeito que o bispo nunca teve

Padre: qual era?

Diabo: A preguiça. Deixava tudo nas costas do sacristão e a paróquia ficava completamente entregue a esse patife, por sua culpa.  

Sacristão: patife é você.

Manuel: Deixe a acusação para o colega dele.

Sacristão: Colega?

Manuel: Brincadeira minha mas notei que o diabo tem mesmo um assim de sacristão.

Diabo: Protesto contra essas brincadeuras. Isso que é um lugar sério.

Manuel: Calma rapaz você não está no inferno. Lá sim é um lugar sério. Aqui pode-se brincar. Faça a acusação do sacristão.

Diabo: Esse sujeito fio quem tramou a história do enterro. Foi ele quem saiu cantado o trecho da missa atrás do cachorro, com olho nos três contos. Em latim, na língua que você escolheu. Hipocrisia e auto-suficiência chagaram e aí ficaram. E, além de tudo, roubava a igreja.

Padre: Ah patife!

Manuel: Ah patife não, padre João, o senhor devia dizer “Ah patifes”, porque faz tempo que eu não vejo tanta coisa ruim junta. E o padeiro?

Diabo: Ele e a mulher foram os piores patrões que Taperoá já viu.

Mulher: é Mentira

João Grilo: é verdade. Três dias passei...

Manuel: Em cima de uma cama com febre, e nem um copo de agua me mandaram. Já sei João todo mundo já sabe dessa história, de tanto ouvir você falar. Acuse Severino e o cabra dele.

Diabo: e precisa? São os dois cangaceiros mais conhecidos. Mataram mais de trinta.

Manuel: é verdade?

Severino: Matei não vou negar.

Diabo: Acho que basta. Inferno nele.

João Grilo: Tenho visto poucos sujeitos levar carão e ficar com a cara lisa como esse.

Diabo: é, você é muito engraçado agora, mas Manuel é Justo e quando ele me entregar vocês, há de ver com que o diabo não se brinca.

João Grilo: E quem disse que vai nos entregar?

Diabo: Você acha pouco? Eu não estou vendo os olhos dele poruqe estou de costas, mas pressinto que as coisas estão pretas para vocês.

                        Começa a rir e todos começam a tremer.

Mulher: é verdade, Senhor?

Manuel: é verdade, a situação não está muito boa para vocês.

Diabo: O que me diverte é ver esse amarelo tremendo de medo. Coragem, joão Grilo, uma pessoa como você tremendo?

João Grilo: Não sou eu, é meu corpo, mas a cabeça está trabalhando.

Manuel: Está mesmo, João?

João Grilo: Está, nosso senhor, e se a tremedeira parasse eu era capaz de me defender.

Manuel: pois pode parar.

João Grilo ,parando e respirando: Que alívio, já estava cansado. O que é isso?

Manuel: é besteira do Demônio. Esse sujeito é meio espírita e tem mania de fazer mágica.

João Grilo: eu logo vi que isso só podia ser confusão do catinbozeiro.

Manuel: Acuse João Grilo!

Diabo: Agora você ma paga amarelo. O sacristão o padre e o bispo fizeram o enterro do cachorro, mas a história foi você quem tramoutoda a história. E vendeu o gato para a mulher do padeiro dizendo que ele botava dinheiro. Depois ele matou severino e o cabra dele com a história da gaita, do Padre Cicero e nãosei mais.

João Grilo: Legitima Defesa, Nosso Senhor!

Encourado: Mentira Manuel!

Manuel: verdade, demônio!

Encourado: Bom, de modo que o caso dele é sem jeito. É o primeito que vou levar. Essa é boa João Grilo, o amarelo, que enganava todo mundo vai levar na cabeça!

João Grilo: Ah e você pensa que eu me entreguei? Pode ser que eu vá mas não assim!

Bispo: Mas é caso sem jeito. Ai meu Deus!

João Grilo para Manuel: Olhe a besteira deles: Deus aqui e eles gritando por Deus.

Manuel: E por quem eles iriam gritar?

João Grilo: por alguém que está mais perto de nós por gente que é gente mesmo.

João Grilo:O senhor sabe de uma coisa vou lhe ser franco: o senhor é gente, mas não é muito não. É gente e ao mesmo tempo é Deus, é muito misturada muito grande. Meu negócio é com outro.

Diabo: Homem, dê-se a respeito!

Manuel: mas o que foi que João disse demais? Tudo isso é verdade, porque eu sou homem e sou Deus.

Diabo: A confusão está armada. Apelo para a justiça.

João Grilo: eu para a misericóridia.

Padre: Você mesmo ouviu Nosso Senhor Dizer que a situação era dificil.

João Grilo: E difícil quer dizer sem jeito? Sem jeito! Sem jeito porque ? Quer ver eu dar um jeito nisso, Padre João?

Padre: Quero Joca.

João Grilo: agora é Joca, hem? E você, senhor Bispo?

Bispo: Eu também, João.

João Grilo: Padeiro?

Padeiro: Veja o que pode fazer, João.

João Grilo: Severino? Mulher e cabra?

Mulher: Nossa esperança é você.

João Grilo: Tudo precisando de João Grilo! Pois Vou dar um jeito.

Diabo: É isso que eu quero ver!

Manuel: Com quem você vai se apegar, João? Com algum santo?

João Grilo: O senhor não repare não, mas de besta eu só tenho a cara. Meu trunfo é maior do que de qualquer santo.

Manuel: Quem é?

João Grilo: A mãe da justiça.

Diabo: rindo: Ah a mãe da justiça! Quem é essa?

Manuel: Não ria porque ela existe.

João Grilo: Ah isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem ver? (resitando)

Valha-me Nossa Senhora,

Mãe de Deus de Nazaré!

A vaca mansa dá leite

A braba dá quando quer.

A mansa da sosegada

A braba levanta o pé

Já fui barco, fui navio.

Mas hoje sou escaler.

Já fui menino, fui homem,

Só me falta ser mulher.

Diabo: com raiva surda: Lá vem a compadecida! mulher em tudo se mete!

João Grilo: falta de respeito foi isso agora, viu? A senhora se zangou com o verso que eu recitei?

A Compadecida: Não, João, por que eu iria me zangar?

Aquele versinho que Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço. Não deixa de ser uma oração, uma invocação. Tem umas graças, mas isso até a torna alegre e coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o Diabo.

João Grilo: É porque esse camarada aí, tudo o que se diz ele enrasca a gente, dizendo que é falta de respeito.

A Compadecida: é mascara dele, João . Como todo fariseu, o diabo é muito apegado às formas exteriores. É um fariseu acostumado.

Diabo: Protesto

Manuel: Eu já seique você protesta, mas não posso fazer nada, meu velho. Discordar de minha mãe é que eu não vou.

Diabo: Grande coisa esse chamego que ela faz para salvar todo mundo! Termina desmoralizando tudo.

Severino: Você fala assim porque nunca teve mãe.

A Compadecida: para que você mecha, ou João?

João Grilo: É que esse filho de chocadeira que levar a gente para o inferno. Eu só podia me pegar com a senhora mesmo.

Diabo: As acusações são graves. Seu filho mesmo disse que há tempo que não tanta coisa ruim junta.

A Compadecida: ouvi as acusações

Diabo: E então?

João Grilo: E então? Você ainda pergunta? Maria vai-nos defender. Padre João, puxe ai uma Ave-Maria!

Padre; Ajoelhando-se: Ave-Maria, cheia de graça...

Todos: Santa Maria mãe de Deus,...

A Compadecida: Está bem eu vejo o que eu posso fazer.

João Grilo: ao diabo: Está vendo? Isso ai é gente boa, não é filha de chocadeira não! Gente como eu, pobre, filha de Joaquim e de Ana, casada com um carpinteiro, tudo gente boa.

A Compadecida: Intercedo por esses pobres que não tem ninguém por eles, meu filho. Não os condene.

Manuel: Que é que posso fazer? Esse aí era um bispo avarento, simoníaco, político...

A compadecida: Mas isso aí é a única coisa que se pode dizer contra ele. E era trabalhador, cumpria suas obrigações nessa parte. Era de nosso lado e quem não é contra nós é por nós.

Manuel: O padre e o sacristão ...

Gesto de desânimo

A compadecida: É verdade que não eram dos melhores. Mas você precisa levar em conta a língua do mundo e o modo de acusar do diabo. O bispo trabalhava e por isso era chamado de político e de mero administrador. Quase tudo que eles faziam eram por medo. Eu conheço isso porque convivi com os homens: começam com medo, e terminam a fazer o que não presta, quase sem querer. É medo.

Diabo: Medo? Medo do que?

Bispo: Ah, senhor, de muitas coisas. Medo da morte...

Padre: Medo do Sofrimento ...

Sacristão: medo da fome...

Padeiro: Da Solidão. Perdoei a minha mulher na hora da morte, porque a amava e porque sempre tive um medo terrível da solidão.

Manuel: E é a mim que eles vêm dizer isso, a mim que morri abandonado até por meu pai!

A Compadecida: Éra preciso e eu estava a seu lado. Mas não se esqueça da noite do jardim, do medo porque você teve que passar, pobre homem, feito d4e carne e de sangue, como qualquer outro e, como qualquer outro também, abandonado diante da morte e do sofrimento.

João Grilo: Ouvi dizer que até suar sangue o senhor suou.

Manuel: É verdade, João.

A Compadecida: Seja então compassivo com que é fraco.

Manuel: Mas esses dois? Você mesma via daqui e comentava o que eles faziam com João Grilo e os outros empregados na padaria!

João Grilo: Se é por mim, não há dificuldade, porque eu sou tão sem-vergonha, que já esqueci de tudinho.

Manuel: Devia Ter esquecido lá, João. Pode alegar alguma coisa em favor deles?

A Compadecida: o perdão que o marido deu à mulher na hora da morte, abraçando-se com ela para morrerem juntos.

Manuel: Isso pode se dizer em favor dele. Mas não ela?

Diabo: Enganava o marido com todo mundo

Mulher: Porque era maltratada por ele. Logo no começo do nosso casamento.

A Compadecida: Eu entendo tudo isso mais do que você pensa. Sei o que s mulheres passam no mundo. Se bem que eu não tenha o que me queixar, porque meu marido era o que se pode chamarde santo.

João Grilo: Grande novidade

A Compadecida: O que João?

João Grilo: Falei não

Diabo: Falou Sim. Ele disse “grande novidade”.

A Compadecida: Na verdade, João tem toda a razão. Falei assim opor falar, mas São José era um santo, não é nenhuma novidade.

Diabo: A senhora fala muito e vê-se perfeitamente sua proteção com esses nojentos, mas nada pode dizer ainda em mulher do padeiro.

A Compadecida: Já aleguei sua condição de mulher, escravizada pelo marido e sem grande possibilidade de se libertar. Que posso alegar ainda em seu favor?

Manuel: Está recebida a alegação.

A Compadecida: Quanto a Severino e ao cabra dele...

Manuel: Quanto a esses, deixe comigo. Estão salvos.

Diabo: É um absurdo conta o qual...

Manuel: Contra o qual já sei que você protesta, mas não recebo seu protesto. Você não entende nada dos planos divinos. Severino e seu cangaceiro foram meros instrumentos de sua cólera. Enlouqueceram ambos depois que a polícia matou a sua família. Podem ir para o céu.

Severino e o cangaceiro abraçam os companheiros E saem para o céu

Bispo: e nós?

Diabo: Andemos não posso ficar aqui eternamente. Qual é a sentença?

A compadecida: um momento, meu filho. Antes de dizer qualquer coisa não se esqueça de que as freiras absolveram a todos condicionalmente e rezou por eles.

Manuel: pois Não. Vou então proferir a sentença.

João Grilo: Um momento, senhor. Posso dar uma palavra?

Manoel: Fale João.

João Grilo: Os últimos 5 lugares do purgatório estão desocupados?

Manoel: Estão!

João Grilo: Pegue esses 5 e coloque lá.

A Compadecida: É uma boa solução.

João Grilo: e tem a vantagem de descontentar aquele camarada ali que e pior que carne de cobra. Não está vendo ele ali de costas?

Manuel: Estou.

João Grilo: Isso é ruim.

Manuel: E a minha mãe oque acha?

A Compadecida: Eu ficaria muito satisfeita.

Manuel: então está concedido. Podem ir os 5.

Os 5 se despedem comovidamente de João Grilo.

Manuel: e agora, nós, João grilo. Po que segeriu o negócio para os outros e ficou de fora?

João Grilo: Porque modéstia parte o meu caso é salvação direta.

Diabo: Era o que faltava! E a história que estava preparada para a mulher do padeiro?

Manuel: É João aquilo foi grave.

João Grilo: E osenhor vai dar uam satisfação a esse sujeito, me desgraçando para o resto da vida? Valha-me Nossa Senhora, mãe de Deus de Nazaré, já fui menino já fui homem...

A Compadecida sorrindo: Só lhe falta ser mulher, João, já sei vou ver o que eu posso fazer. (a Manuel).Dê-lhe então outra oportunidade.

Manuel: Como?

A Compadecida: Deixe João voltar

Manuel: Você se da por satisfeito?

João Grilo: Demais. Para Mim é até melhor porque da próxima vez eu nem passo por aqui para dar gosto o cão vou direto para o céu.

A Compadecida: Então fica satisfeito?

João Grilo: Eu fico quem deve estar danado é o filho de chocadeira.

O Diabo, furioso dá um grito e corre para o inferno

Manuel: Pode ir, vá com Deus.

João Grilo: Com Deus e nossa senhor, que foi quem me valeu.(ajoelhando-se diante de Nossa Senhora e beijando-lhe a mão) Até à vista grande advogada. Não me deixe na mão não estou decidido a tomar jeito, mas a senhora sabe a carne é fraca.

A Compadecida: Até a vista João.

João Grilo: Muito obrigado, senhor. Até a vista.

Manuel: Até a vista, João.

João bota o chapéu de palha velho e esburacado na cabeça e vai saindo.

Manuel: Se a senhora continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai terminar como repartição pública, que existe mas não funciona.

Chicó: Valha-me Nossa Senhora! João pelo amor de Deus lembre-se que fui seu amigo!

João Grilo: Saltando para fora da rede: Estou aqui, Chicó

Chicó: Ai!

Desmaia; depois João dá tapinhas em sua cara e ele acorda e se ajoelha

João Grilo: Cruzando os braços: tenha vergonha Chicó ! Um homem desse tamanho com medo de alma! Nem coragem para correr teve!

Chicó: Ai meu Deus! João, dizei-me o uqe quereis e se estais no céu, no inferno ou no purgatório!

João Grilo: Tenha vergonha Chicó tenha vergonha eu estou vivo !

Chicó: Mais é possível  

João Grilo: tanto é possível que estou aqui.

Chicó: Eu só acredito vendo.  

João Grilo: se aproximando: então veja

Chicó: Ai!

João Grilo: Que é isso homem? Você não disse que acreditava vendo?

Chicó: Disse, mas nã olhe pedi que me mostrasse  

João Grilo: E como é que vai ser agora Chicó

Chicó: Assim mesmo, eu sem acreditar e você sem me mostrar

João Grilo: E a nossa sociedade?

Chicó: Já estão acabadas. É contra os meus princípios fazer sociedade com defunto

João Grilo: Mas eu estou vivo rapaz. Veja pegue aqui no meu braço.

Chicó: Ai

João Grilo: Tenha coragem homem, pegue!

Com a maior cautela Chicó toca-lhe o braço e enfim se convence.

Chicó: Meu Deus, é mesmo! João!(Abraça-o) Como foi isso João?

João Grilo: Sei não Chicó mas acho que a bala pegou de raspão. Mas tenho uma notícia terrível para você?

Chicó: Que há

João Grilo: Perdi o dinheiro.

Chicó: Que dinheiro, rapaz?

João Grilo: Do testamento do cachorro. Quando acordei, meti a mão no bolso e não achei nada.

Chicó: Pode ficar descansado Chicó o dinheiro da sociedade está aqui.

João Grilo: Ah cabra safado, com pena de mim, mas não se esqueceu do dinheiro, hem!

Chicó: Ai meu Deus ai minha nossa Senhora!

João Grilo: O que há rapaz?

Chicó: Coitado de mim, coitado de pobre de João! Era rico nesse instante e agora é pobre de novp!

João Grilo: não me diga que perdeu o dinheiro!

Chicó: Perdi nada, está aqui! Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora!

João Grilo: E porque essa gritaria homem de Deus?

Chicó: Eu pensei que você tinha morrido, João!

João Grilo: E o que tem isso, homem?

Chicó: tem que eu, pensando que não tinha mais jeito, fiz uma promessa a Nossa Senhora para dar todo o dinheiro a ela, se você escapasse!

João Grilo: mas Chicó, como é que se faz um promessa dessas?

Chicó: Eu não sabia lá que você ia escapar, desgraça? Oh homem duro de morrer, meu Deus!

João Grilo: Ah promessa desgraçada, Ah promessa sem jeito, Chicó!

Chicó: Agora é tarde para dizer isso

João Grilo: Não terá sido metade que você prometeu?

Chicó: Não Foi tudo

João Grilo: Ah promessa desgraçada, Ah promessa sem jeito, Chicó!

Ah promessa desgraçada, Ah promessa sem jeito, Chicó!

Chicó: É, sé reclama de mim! E você porque achou de escapar?

João Grilo: Acho que foi de tanta vontade que eu estava de enriquecer? Ah promessa desgraçada, Ah promessa sem jeito, Chicó!

Chicó: Mas já foi feita e o jeito é pagar.

João Grilo: Pagar

Chicó: sim .

João Grilo: tudo?

Chicó: Tudo

João Grilo: Ah promessa desgraçada, Ah promessa sem jeito,

Chicó: Está certo homem, estou tão desgostoso quanto você! Diabo de uma reclamação em cima da gente de minuto em minuto! E melhor deixar de conversar: vamos pagar o que se deve!.

João Grilo: Vamos, não; vá você! Eu não prometi nada e metade do dinheiro é meu!

Chicó: é, mas acontece que quando eu prometi ele era todo meu, porque me considerava su herdeiro.

João Grilo: Eu não tenho nada com isso não prometi nada

Chicó: Então fique com sua parte e assuma a sua responsabilidade. Eu vou entregar a minha.

João Grilo: Chicó

Chicó: Que é?

João Grilo: Espere por mim eu vou ~.

Chicó: vai?

João Grilo: Vou.

Chicó: Pois estava convencido de que estava certo

João Grilo: É, mas faltou quem me convencesse. Se fosse outro santo, ainda ai ver se dava um jeito mas você achou de prometer logo a Nossa Senhora! Quem sabe se eu não escapei por causa disso? O dinheiro fica como se fossem os homorários da advogada. Nunca pensei que essa também aceitasse pagamento!

Chicó: João, Veja como fala!

João Grilo: Que é isso, Chicó, está se a mascarando? Com Deus, não, mas com Nossa Senhora eu tenho coragem de tirar brincadeira!

Chicó: Quer dizer que entrega?

João Grilo: Entrego.

Chicó: é mesmo?

João Grilo: pois vamos de outra vez, veja o que promete infeliz.

Palhaço: A História da Compadecida termina aqui. Para encerra-la, nada melhor que o verso com que acaba um dos romances populares em que ela se baseou:

                        “Meu verso acabou-se agora

                        Minha história é verdadeira

                        Toda vez que eu canto ele,

                        Vem dez mil-réis pra algibeira.

                        Hoje estou dando por cinco

                        Talvez não ache quem queira.”

E se não há quem queira pagar, peço pelo menos uma recompensa que não custa nada e é sempre eficiente: Seu aplauso.

 

                                                                                            Ariano Suassuna  

 

                      

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