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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AVATAR II Poul Anderson
O AVATAR II Poul Anderson

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O AVATAR II

 

      

Naquele dia, Ira Quick decidiu fugir ao Inverno torontino, pas­sando no écran gigante um documentário sobre a catedral de Iorque. As imagens não eram estáticas, mas a máquina deslocava-se lenta­mente, mostrando as delicadas fachadas, as majestosas e intrincadas abóbadas, os resplandecentes vitrais daquela jóia por excelência entre as igrejas medievais. Reduzido a um tênue fio de música, sem, no en­tanto, nada perder da sua imponência, ouvia-se como fundo sonoro um trecho de canto gregoriano. O espectáculo parecia lembrar aquilo que o homem, apegado à Terra e sozinho com ela, havia alcançado com o seu esforço: a herança agora ameaçada por forças inumanas. Pedra e mú­sica fortificavam Ira Quick na sua determinação.

Ali, em frente da secretária, estava sentado Simeon Ilyitch Makarov, primeiro-ministro da Grande Rússia. Tinha chegado incógnito, a pedido de Quick, que insistira na sua presença com urgência.

O senhor é a personalidade com mais poder dentro do nosso grupo — dissera-lhe o norte-americano. — E nós os dois somos os mais decididos. Encontramo-nos no fulcro de uma crise, receio-o bem. Temos de conferenciar e decidir. Eu não podia ser mais explícito ao te­lefone, com misturador de som' ou sem ele. Impossível também ser eu a fazer a viagem. Neste momento, todas as minhas linhas de comunica­ção se concentram neste gabinete.

Uma vez chegado, Makarov acendeu um horrível cigarro, puxou o fumo com força e pediu num espanhol muito carregado:

Bem, conte-me então o que se passa.

Makarov era baixote, pesado, bigode a descair pelos cantos da boca e cabelo já a encanecer. Trazia um fato fora de moda e amarrotado. Sobrevivente das guerras civis que haviam dilacerado o seu país, depois disso consagrara todas as suas forças à tarefa da reunificação final.

Nada que o senhor não conheça já. Sabe tão bem como eu que a Chinook se está a aproximar da máquina T e que deve ali chegar dentro de três horas, pouco mais ou menos. Essa a razão por que não posso sair daqui. Alguém tem de dar novas ordens no caso de surgir qualquer imprevisto.

Quick bateu na mesa com a palma da mão e observou:

Santo Deus! Um tempo de transmissão que vai além de vinte mi­nutos!

Tem razão. O nosso grupo concordou que o senhor está em me­lhor situação do que ninguém para assumir a responsabilidade pelo que há a fazer. Mas — não compreendo — porque é que subitamente quer que eu compartilhe dessa responsabilidade?

Em qualquer caso, já compartilha, Sr. Makarov — salientou Quick, franzindo as sobrancelhas. — Surgiu, porém, agora um elemento novo, que espero não seja de grande importância. Tive conhecimento dele quando o senhor já vinha a caminho. Tenho estado pessoalmente informado sobre o que se passa na Roda de San Jerônimo. O facto de ali se andar a levar a cabo — como aleguei — um delicado trabalho de investigação que me é querido, justifica amplamente o meu in­teresse. Troxell não nos manda naturalmente quaisquer pormenores por laser, mas deve emitir de tanto em tanto tempo um sinal de «tudo bem». Ora esse sinal deixou de ser recebido.

E isso pode ser mau!

Ou pode ser puro descuido. Troxell, aos poucos, deixou de ser , pontual. O isolamento, a tensão, pesam sobre ele e sobre os seus ho­mens. Não me parece que deva mandar ver imediatamente o que se passa... Isso ia-me dar um aspecto de muito preocupado, na altura precisa em que a Chinook exige toda a minha atenção.

Quick fez uma pausa antes de acrescentar com gravidade:

E, no entanto, a análise dos dados fornecidos pelo radar indica que a nave fez um consumo de combustível perfeitamente estranho e nada econômico para o trajecto que lhe marcamos. Manteve-se efecti­vamente na sombra de radar da Roda — dada aquela distância astro­nômica mais a proteção eletromagnética — durante horas.

Makarov rosnou como se de repente lhe surgisse uma idéia:

Porque não nos disse algo logo?

Quick suspirou e respondeu:

Porque só há pouco o descobri. Peço-lhe que compreenda, Sr. Makarov: nós... eu tenho de agir com extrema cautela. Neste momento está muita gente envolvida nisto. Se eu pedir informações exigindo prioridade absoluta, hão de perguntar porquê. Se eu su­blinhar determinado aspecto, ainda especularão mais.

Hum! Quanto a mim, tenho as coisas mais bem organizadas na Grande Rússia.

Outro motivo ainda para o seu auxílio ser tão precioso, tão deci­sivo, para o nosso esforço comum. Seu bárbaro tirano!

Diga-me concretamente que espécie de informações transpira­ram e até que ponto, e para onde.

Quick abriu as mãos e esclareceu:

A verdade é que não me é possível responder a isso com preci­são. Como lhe disse, não estou a lidar com um punhado de homens dis­ciplinados como os seus, cujo silêncio é seguro. Fiz tudo quanto pude para o manter sempre ao corrente, Sr. Makarov, dando-lhe conheci­mento do que ia sabendo, à medida que se desenrolavam os aconteci­mentos.

Sim. Tenho, no entanto, muitos assuntos, e de vária ordem, com que me ocupar. Peço-lhe, pois, que me resuma em que pé estão as coi­sas, quer já me tenha dado conhecimento ou não de todos os pontos concretos.

Estará ele a brincar comigo? Ou, por baixo da ronha de camponês, será visceralmente obtuso? Não é isso o que eu necessito hoje dele... Porque eu preciso dele. Tenho de ser amável. Talvez daqui a alguns anos... Quick alinhavou os factos na cabeça e começou:

O nosso grupo inicial conhece toda a história, é claro. Isso inclui os subordinados que agregamos a nós.

Entre eles contava-se toda a tripulação da nave de vigilância Lomonosov, a maior parte dela recentemente recrutada, que tinha avançado para esperar pela Chinook na máquina T febiana. Tratava-se quer de veteranos de Makarov, idos para o serviço espacial depois das guerras, mas perfeitamente dedicados ao seu velho dirigente, quer de agentes se­cretos deste, com bastante experiência técnica. Quick não pudera dei­xar de admirar a pronta maneira como o primeiro-ministro havia reunido aquela tripulação quando lhe chegou um apelo para isso. O Conselho de Controlo Astronáutico ficara muito reconhecido por haverem sido tomadas as disposições necessárias para o auxiliar, tanto mais que o pedido fora feito quase sobre a hora. Agora a Bohr não precisava de sair da sua zona para escoltar a nave daqueles homens procurados pela justiça e que iam ficar sob detenção.

Tomei medidas para que a tripulação da Dyson fosse entrevis­tada por uma equipa de psicólogos. O pretexto, que os próprios psicó­logos encontraram, foi que estavam a tentar descobrir como reagiam os astronautas perante certos acontecimentos típicos. Pelo menos à pri­meira vista, ninguém suspeitou da verdade, embora aquela gente tenha ficado um tanto perplexa com o caso. Nada de grave, diria eu.

A Dyson era a nave de vigilância à entrada do Sistema Solar quando a Emissário regressou ao Sistema Febiano. Quick quase de­sejou ter um Deus a quem agradecer por Tom Archer, o comandante da Faraday (aparelho de guarda no outro lado da passagem), ser ho­mem expedito e de confiança. Tinha mandado um mecanismo-piloto à frente, a pedir à Dyson que lhe fosse prestar auxílio de emergência. A seguir encaminhou o Emissário na direcção oposta. Não encontrando ninguém na saída do Sistema Solar, como esperava, conduziu de ime­diato os seus cativos até uma boa distância e pôs-se em contato com Quick. Na altura em que a Dyson voltou ao seu posto, tinha o ministro uma mensagem preparada para o comandante, que estava bastante in­trigado... Desculpas, e coisas do gênero, mas tinha-se tornado subitamente necessário transferir certa carga em segredo, pois eram coisas que os elementos extremistas na Terra ou em Deméter não deviam conhecer.

Com a Faraday é muito mais difícil, mas não preciso de repetir isso, pois não?

Archer e o seu imediato eram pessoas dedicadas à causa, mas não fora possível escolher a dedo o resto da tripulação. Aquela gente ale­grou-se, como não podia deixar de ser, quando viu reaparecer a Emis­sário, e não escondeu o seu desapontamento ao interná-la de quaren­tena, não como precaução sanitária de interesse público, mas como se se tratasse de inimigos. Depois de consultar os seus chefes, o coman­dante disse aos homens, com efeito:

Pode acontecer que a nave tenha realmente trazido qualquer coisa de perigoso; não se sabe. Ou talvez não. O governo, porém, quer investigar tudo com muito cuidado e, entretanto, não tem o mínimo de­sejo de desencadear a histeria pública. Assim, para estar absolutamente certo de manter o segredo, manda-nos agora para Hades numa missão técnica e científica.

Rápidas, e preparadas para todas as tarefas, as naves de vigilância serviam, na verdade, de meios de exploração. E o mundo mais afastado no Sistema Febiano reunia também curiosas características a respeito das quais os planetologistas gostariam de conhecer novos pormenores.

Compreendo, isto vos manterá afastados ainda das famílias e dos amigos, que vocês esperavam ver em breve. Mas ordens são ordens. Tanto as famílias como os amigos receberão notícias a animá-los. E vão-nos dar a todos um bom suplemento de vencimento pelo trabalho extra. Não esqueçam isto.

A Faraday não ficaria ali, para sempre, tão longe.

Troxell e os seus agentes podem ser um perigo ainda maior — pros­seguiu Quick. — Por muito cuidado que tenhamos posto na sua esco­lha, eles ficaram expostos durante semanas e semanas a alguns desses argumentos pró-estelares, diabolicamente insinuantes. Se um ou dois daqueles homens se tivessem convertido... seriam a nossa ruína no dia em que pusessem de novo os pés na Terra.

- É com esses que nos temos verdadeiramente de preocupar. Não esqueçamos uma quantidade de outros, menos perigosos. Constituem toda uma cadeia, que vai do meu assistente Chauveau ou de Zoe Pala - mas, por exemplo, a quem insinuei pressentimentos sobre uma vaga re­belião que estaria a crescer em Deméter, até aos técnicos em estações espaciais a quem se pediu que localizassem a Chinook e lhe transmitis­sem a ordem de voltar para trás.

»A situação é delicada, como vê, e está a piorar. Cada vez me sinto menos capaz de a dominar com os meios de que disponho. Preciso de uma ajuda forte. De todo o nosso grupo, é o senhor que melhor ma pode dar.

Makarov amassou o cigarro com violência antes de o abandonar no cinzeiro e de tirar outro.

E que quer o senhor que eu faça, precisamente neste momento? — rosnou ele.

Quick lançou um suspiro e respondeu:

Se eu soubesse ao certo, provavelmente não teria de recorrer a si. A verdade, porém, é que me é impossível predizer aquilo que se vai passar agora. Se as coisas forem mal, talvez não seja capaz de manter o segredo só por mim. Nem eu estava habituado a fazer isso até este ponto. O seu conselho, as suas ligações, a sua intervenção... Está a ver?

»Suponhamos que tudo se vai passar como esperamos. A Chinook segue para a máquina T, obedientemente, mantendo em silêncio as suas comunicações com o exterior. A nave de vigilância normal é a Copernicus, a nave especial que para ali foi mandada à pressa é a Alhazen. Foram prevenidas as tripulações de ambas que aquela gente, a bordo da Chinook, é procurada em Deméter para responder por um crime e que deve ser considerada como perigosa. Além disso, Broussard, da Confe­deração Europeia, assegurou-se de que o comandante e o atirador da Alhazen, embora não ao corrente de todos os factos, são homens com quem se pode contar e que obedecerão à sua ordem de atirar no caso de se levantar alguma dúvida. O seu governo nacional os protegerá depois perante a comissão de inquérito... Suponhamos, contudo, que a Chi­nook passe para Febo sem incidentes. Aí, aguarda-a a Lomonosov para a levar. Afastada que esteja da Bohr, a Lomonosov manda um grupo de abordagem que prende os demeterianos, os interroga, pondo-se de­pois em comunicação com a governadora Hancok, e fica à espera de novas instruções.

- Não sabemos ainda ao certo o que fez o bando de Brodersen ou o que pode fazer. Não é de excluir uma desagradável surpresa. Por exem­plo, eles podem ter divulgado o que se passa na Roda. Melhor será prepararmo-nos para responder com rapidez e sem hesitações.

- Por agora, vejamos: o que se vai passar se houver complicação nas próximas horas, numa das milhentas maneiras imprevisíveis? Que resulta daí? Repito-lhe, Sr. Makarov, os acontecimentos estão a desenrolar-se demasiado depressa para nós. Tivemos de improvisar, estamos a ultrapassar as nossas forças, e as histórias que inventamos estão re­cheadas de pontos coxos. Demasiada gente... De Hades até à Roda e vice-versa , irão surgir muito em breve perguntas embaraçosas. Que fazer?

Makarov atirou uma baforada para o ar. Fumo que tresandava.

Isso dependerá do que for a realidade — disse ele. — O senhor tem razão: melhor será que eu esteja de atalaia consigo.

Passado um momento acrescentou:

A realidade absoluta é sempre a morte.

Quick empertigou-se na cadeira. Em parte eu já receava aquilo. Será que esse receio corresponde também a um desejo?

Não compreendo muito bem — redarguiu ele em voz hesitante.

Não conhece aquele provérbio inglês: «Homem morto não conta histórias»?

Se conheço! E quantas, quantas sepulturas, não encheram os seus carrascos, Makarov!

A boca de Quick estava a tornar-se pastosa. Ele sentia frio, embora o gabinete estivesse bem aquecido.

Nós... o nosso grupo... debateu de fato a possibilidade de me­didas extremas. Mas estritamente para o caso de imperiosa necessidade.

E o senhor não me tem estado a dizer que a necessidade se tor­nou imperiosa?... Esse, pelo menos, o sentido das suas palavras.

Quick agarrou-se aos braços da cadeira. Ataque!

Gostaria que fosse mais claro.

Makarov desenhou uma curva no ar com o cigarro.

Pois bem — e o seu tom permanecia neutro. — Pensei no as­sunto, como deve imaginar, e sondei outros do nosso grupo. Se não o sondei a si, isso não significa menos apreço pela sua opinião. Os seus actos, sim, e as suas qualidades de liderança, demonstram que o senhor é fundamentalmente realista.

- Podemos fazer que a Chinook e a sua tripulação sejam destruídas. Podemos mandar um destacamento de inteira confiança desfazer-se do pessoal que se encontra na Roda, incluindo Troxell.

- Quanto à Faraday, não estou ainda seguro. Podemos fazer que a Lomonosov a destrua em Hades. Podemos a seguir explicar estas per­das por uma lamentável série de acidentes que, por coincidência, ocor­reram uns após outros. Mas não há pressa no que respeita à Faraday. Se possível, preferia poupá-la, pois aquela tripulação está bem ames­trada, com a ideia de monstros que podem vir das estrelas.

- O ideal será nós prepararmos a cena na Roda de modo a darmos a aparência de que os monstros, depois de haverem reduzido à escrava­tura a tripulação da Emissário, se apoderaram também do local da qua­rentena. Sim, e que quando Brodersen chegou para a sua investigação privada, eles o atraíram, o capturaram e aos seus homens, partindo depois na Chinook para o seu planeta. Felizmente, denunciaram-se a si mesmos à Lomonosov, que estava alerta e que deu cabo deles.

Apesar de haver alimentado soluções semelhantes — como fanta­sias... como fantasias —, Quick achou que lhe ficava bem indagar:

E pensa a sério que pode fazer engolir a toda a raça humana uma enormidade dessas?

A grande parte dela, pelo menos — remascou Makarov. — Nada do que um governo afirme é demasiado absurdo para a maioria dos cidadãos.

- Veja bem: não digo que essa estratégia seja realizável. É uma questão a considerar. Por exemplo, estará Stedman disposto a colabo­rar numa aventura destas? Pode-lhe fraquejar a coragem quando se imaginar na presença do seu Deus. Se a dado momento ele ou alguém mais deixarem de oferecer segurança, que lhes devemos fazer? Em qualquer caso, como vamos explicar e justificar o fato de tanta gente no Conselho, nos mais altos escalões, não haver sido informada nem consultada imediatamente? Que provas podemos nós fabricar? Que pormenores podem homens astutos inventar para nós?

- A vantagem de inventarmos invasores vindos das estrelas é que podemos facilmente atingir então o nosso objectivo: uma guarda em ambas as máquinas T para destruir qualquer nave estranha no próprio instante em que ela apareça. A opinião pública apoiará isso. Sim, e exi­gi-lo-á, assim como o fim da exploração através das estrelas. Porém, arriscamo-nos a falhar e a sermos descobertos.

- Talvez a medida mais segura seja destruir a Faraday com tudo o resto e dar o aspecto de acidental ao que se passou. Ou então podemos lançar a culpa de tudo para cima dos terroristas. Nesse caso, precisa­mos de encontrar outra solução política, mais lenta, para o nosso ob­jetivo.

- Toda a questão está, Sr. Quick, em não hesitarmos em ir para a frente, uma vez desencadeado o que temos em mente. Precisamos de coragem para aceitar grandes riscos. Creia-me: o perigo que resulta das hesitações é enormemente maior.

- Reconheço que devo permanecer a seu lado nas próximas horas — concluiu Makarov.

O senhor está a dizer coisas terríveis — protestou Quick. — Vejamos: alguns daqueles que o senhor iria matar têm-nos estado a ajudar de alma e coração.

Ouvi em tempos outro provérbio inglês — volveu Makarov.

“Não se pode fazer omolete sem partir ovos”. Grande verdade!

- Na minha vida vi-me forçado a assinar sentenças de morte contra camaradas que haviam prestado magníficos serviços. Achei que come­çavam a seguir-me de maneira muito independente. Ou então estavam ligados a gente duvidosa. Ou... Bem, eu tinha um país a reconstituir a partir do caos. E como poderia investigar cada caso de per si?

- Pelas razões que temos, embora diferentes, parece-nos vital, Sr. Quick, que a raça humana permaneça onde está. Que leve a cabo as suas tarefas naturais. E evite tudo quanto nos possa vir de fora... Pelo menos até estar adequadamente organizada para fazer face à nova si­tuação que se iria então criar. Vital. Hoje em dia, antes da terapia da célula, qual a mulher que hesitaria em deixar cortar um seio canceroso? Isso iria prejudicar-lhe a beleza? Sem dúvida, mas não encontraria al­ternativa, se quisesse salvar a vida. Não é assim?

- Mas há mais, Sr. Quick — e Makarov inclinou-se para a frente.

Há mais. O senhor já está comprometido. Toda a nossa pequena organização o está. Visávamos um ideal, enfrentamos muita dificul­dade quando o pretendíamos atingir. Demos passos em falso, como toda a gente dá. E chegamos hoje à beira da ruína. Apesar disso, porém, não será legítimo o nosso ideal? Seria possível porventura continuarmos a servir bem a humanidade de dentro das grades de uma prisão?

- E para lá iremos, se alguma vez vier à público qualquer forte indí­cio dos fatos. O conhecimento desse indício levaria a investigações. Os nossos subordinados procurariam salvar a pele, lançando as culpas para cima de nós. A Chinook está a forçar-nos a tomar um caminho que nos leva a ultrapassar quaisquer considerações de legalidade. Es­tamos, e de maneira perfeitamente evidente, a violar os direitos das tri­pulações, direitos esses garantidos pela Convenção. Já os violamos, fazendo que fosse deliberadamente emitido um mandato para capturai daquela gente, sem justificação para isso. Daí resultarão inumeráveis outras acusações de arbitrariedade no desempenho das nossas funções, seremos aferrolhados durante muito, muito tempo... A menos que des­firamos imediatamente o golpe, neste momento, e sem olhar para trás.

Quick lembrava-se de um ensaio que lera anos antes sobre a ma­neira como os intelectuais são cronicamente fascinados pela violência como instrumento do poder... Atraídos, repelidos, atraídos de novo, tal como o seriam pela idéia de relações sexuais com uma miudita ainda mal saída da infância ou com um não humano sensível. Trata-se de uma espécie de xenofobia, e quando se desencadeia um conflito que eles aprovam (e eles aprovam muitos), tomam a dianteira nos aplausos às ogivas nucleares e exigem mais soldados para alimentar a fornalha. Nessa altura havia ele achado aquilo um absurdo nitidamente reacionário. Mais tarde, cultivando a sua largueza de vistas, teve de reconhe­cer que talvez houvesse certa dose de verdade naquela tese. Este pulha tem razão, no presente contexto. Não se pode fazer omeleta sem partir ovos. Logo, impossível manter uma ordeira sociedade no dia-a-dia sem nos desfazermos de quando em quando de uma cabeça ou outra.

E, Deus Todo-Poderoso!, ele, na verdade, tem de continuar no mesmo trilho. De contrário... Prisão, acusação, julgamento? Uma ver­dadeira sentença de prisão? Um psiquiatra de recuperação (atarracado, bem gordinho, bochechudo, de narigão lustroso) a sondar a psique de Ira Quick, que a sua suja descendência nunca haveria de compreender no decorrer de toda uma época geológica? Libertado depois de velho e revelho, que monotonia não iria ser a sua no ruir de uma carreira e de uma vida social? Os seus filhos, a sua mulher, os seus amigos, as suas amantes, toda a gente lhe chamaria raptor e assassino. A ele, que por nada mais havia lutado a não ser pelo bem da humanidade!

Sou bastante conhecido como rápido nas minhas decisões.

Quick passou a língua pelos lábios e disse:

Não concordo necessariamente com nenhuma das suas propostas.

Como falava pausadamente, apesar do forte martelar que lhe res­soava na alma! E acrescentou:

No entanto, quando é um estadista da sua envergadura a expri­mir-se assim eu escuto. Importa-se de explicar em pormenor?

Sentiu o seu próprio sorriso de malícia, e rematou ainda: Enfim, temos de passar o tempo enquanto esperamos. O coro em torno das imagens da catedral estava crescendo para o seu fecho triunfante.

 

A Chinook estava a mais de um milhão de quilómetros do seu ob­jetivo, já a reduzir a velocidade, quando lhe chegou a primeira comu­nicação. Foi Brodersen a recebê-la no seu gabinete.

No écran surgiu-lhe uma cara angular, a falar inglês britânico:

Vincent Lawes, a comandar a nave de vigilância Alhazen em missão especial. Estou a falar com a Chinook de Deméter, não é assim?

Não se podia dizer que fosse propriamente uma pergunta. E ter­minou:

Ligue-me ao comandante.

É o comandante que fala respondeu Brodersen. Em que lhe posso ser útil?

Os segundos escoavam-se enquanto os fluxos luminosos iam e vi­nham. Caitlín, sentada ao lado de Brodersen, segurava-lhe o braço, que estava nu. Brodersen sentia o calor daquela mão, o contacto na pele, assim como a respiração apressada daquele corpo, os ternos odores femininos, muito discretos.

Então ouça bem, capitão Brodersen disse Lawes. O seu tom era severo e notava-se-lhe um tique ao canto do olho direito. Você e os seus homens estão a ser procurados por delito grave. A vossa nave está armada. Tenho ordens para fazer que passem para o Sistema Febiano, a fim de ali vos acompanharem. Sou forçado a considerar-vos como perigosos e a tomar todas as medidas de segurança. Todas. Com­preende bem?

E que devemos nós fazer?

Devem proceder às manobras habituais, mas seguindo à risca as nossas instruções, e não as da Copernicus. Não podem ter contato de espécie nenhuma com a Copernicus. Transmitirão todas as mensagens para aqui, para nós, e em inglês. A Copernicus foi mandada para fora da sua órbita normal. Conservar-se-á do lado de lá da máquina T en­quanto a vossa nave transpõe a passagem. Para a contactarem, vocês teriam de emitir pela rádio e em espanhol, pois ninguém ali a bordo sabe inglês. Nós detectaremos isso. Qualquer ação da vossa parte que se desvie do que vos indicamos pode-nos levar a atirar. Pergunto de no­vo: compreendeu? Veja bem se compreendeu, capitão Brodersen.

Essa agora! Não querem lá ver! e o demeteriano fez estalar a língua. Você tem um belo descaramento, não lhe parece? Mas afinal o que se passa? Vê inconveniente em conversarmos um pouco?

Pausa. Caitlín cantava, em surdina... Uma imprecação em gaélico, pensou Brodersen.

Recebi as minhas ordens respondeu Lawes, compassando as palavras. Entre outras coisas, você é acusado de procurar dissemi­nar informações técnicas que iriam trazer sérias ameaças à segurança pública. Sem pôr em dúvida o sentido do dever do pessoal da Coperni­cus, tenho instruções para impedir que comuniquem com ela ou com mais alguém. Desnecessário dizer, a Copernicus não vos deve sintoni­zar. Se formos forçados a atirar sobre a vossa nave, a Copernicus juntar-se-á a nós.

Compreendo. E quanto a si, capitão Lawes? O nosso lado da história é muito interessante. Não quer ouvi-la? Temos um aspecto que lhe podemos mostrar, também.

Pausa. A única surpresa, se surpresa se lhe podia chamar, era a vee­mente renitência de Lawes.

Não. Não quero saber absolutamente nada. Ao primeiro sinal de uma tentativa dessas, desligo. Se você persistir na sua lengalenga quando eu voltar a ligar, já sabe: tenho plenos poderes para atacar.

Pois bem! E que mais?

Pausa. Brodersen murmurou a Caitlín:

Não há dúvida de que eles o têm na mão, não te parece? Prova­velmente por outros meios que não simples apelo à sua lealdade. Trata-se de um oficial da União, no fim de contas, e não da Europa. Corrup­ção, chantagem...

O trajeto que estão a seguir e os vectores não são adequados para o rumo que vos marcamos observou Lawes. Explique.

Tem razão, e eu já me havia apercebido disso. Estamos com o sistema principal de controlo avariado. Atingimos uma posição errada e temos de a rectificar. Em vez de nos dirigirmos directamente para a nossa próxima base, estamos a aplicar parâmetros que nos levam à ve­locidade relativa zero próximo da Baliza Bravo. Daí dirigir-nos-emos para o local indicado, para uma aproximação normal. Tenho aqui os números comigo, se quiser que lhos passe.

A conversa prosseguiu sobre pormenores técnicos durante alguns minutos. Por fim, com relutância, Lawes disse:

Muito bem. Vamos continuar a segui-los a par e passo, não es­queça. Mantenha-se atento, para possíveis novas instruções. Se não surgir nada de suspeito, restabeleço comunicação directa às dezanove e trinta. Entendido?

Depois de receber o «entendido», desligou sem uma palavra de des­pedida.

Brodersen reclinou-se na cadeira.

Bonito, hem! desabafou ele. Por momentos, perguntava a mim mesmo se o homem ia atirar. O dedo crispava-se-lhe no gatilho. Mas, é evidente, a uma distância daquelas Frieda pode interceptar tudo o que pudesse vir, suponho eu.

Os nossos inimigos estão é em desespero, ao que parece — observou Caitlín.

Não há dúvida. E quanto mais em desespero alguém está, mais perigoso é. Incluindo nós.

Brodersen voltou-se para Caitlín, com um sorriso. Aquele rosto amado aproximou-se ainda mais dele. E Brodersen continuou:

Ora bem, temos ainda três a quatro horas antes de a situação se tornar mais aguda. Melhor será descansares, macushla, se puderes.

Caitlín passou-lhe as mãos pela cara.

Hum! Tenho uma ideia mais interessante, meu amor.

Ah, sim? Mas repara: preciso de fazer as rondas, animar as tro­pas, velar por que tudo esteja em ordem...

Se os responsáveis não têm neste momento os seus serviços em devida forma, será demasiado tarde — volveu ela com firmeza. — Mas têm, podes crer. Pude certificar-me disso como o Pa­trão não pode. O moral da maior parte é excelente; os restantes estão pelo menos dispostos a baterem-se. Sim, podíamos fazer uma reunião, para alguns entoarem canções pela revolução e pela liberdade. Mas será preferível fazer isso o mais tarde possível, antes de mergulharmos.

Caitlín sorriu e prosseguiu:

Assim, temos livre mais de uma hora, Daniel Brodersen, e estou segura de que hás de querer passá-la com primor.

Hum! Mas olha, com franqueza, sinto-me tão cheio de preo­cupações! Duvido...

Caitlín fez calar aqueles lábios com os dela. As suas mãos percorre­ram-lhe o corpo. Depois pôs-se a rir.

Vês? Vês que essa tua preocupação não tinha razão de existir?

Levantando-se vivamente, pegando-lhe no pulso, chamou por ele:

Vem, vem comigo, meu amigo. Inútil resistir. Não me escapas.

As estrelas cintilavam em todos os écrans no centro de comando. A imagem enublada do Sol pairava como uma lua resplandecente, com a Terra escondida por trás. Mais afastado, um globo brilhava com um dourado-pálido — o sinal a que a nave tinha parado. Em outra direc­ção girava o cilindro que era a máquina T, com a sua massa e a sua potência a dominarem uma pequena distância — cerca de cinquenta megâmetros, ligeiramente mais do que a circunferência de um planeta terrestróide —, reduzido a um pedacito de diamante perdido no céu.

Brodersen flutuava sozinho, todo equipado, e ouvia o sangue a pal­pitar-lhe nas veias. Aqueles momentos difíceis passaram-se melhor do que ele havia esperado. Não tomaria um tranquilizante em caso ne­nhum, pois precisava de cada milissegundo de que pudesse dispor no seu tempo de reação, mas compreendia que ia ficar com os nervos ten­sos. Pegeen é um soberbo calmante para me refrescar a alma, pen­sou ele.

Se ao menos ela ali pudesse estar! Não o distrairia... intencional­mente. Não estava seguro, no entanto, de que com ela ao lado pudesse continuar a ser o perfeito robot que tinha de ser. Era imensamente difí­cil refrear a idéia de que em breve Caitlín podia morrer.

E Stef debruçava-se sobre as mesas dos detectores e dos comunica­dores, no cubículo da eletrônica. Joelle, como holoteta, e Su, como linker, eram como peças da nave, os seus pilotos através de baixios e de recifes que pudessem surgir. Phil e Martti ocupavam-se da sala das má­quinas, embora com toda a probabilidade estivessem condenados a nada mais fazer a não ser suor. Frieda tinha a seu cargo o centro do 'armamento, com Carlos — que havia aprendido já alguma coisa na­quele campo, para prestar ajuda no que pudesse. Isto deixava Caitlín para reconfortar Fidélio. Sintonizando por um momento para onde ela estava, Brodersen tinha-a ouvido no seu intercâmbio de música com o betano.

Um clarão e um zunido chamou-lhe a atenção para o comunicador do exterior. Surgiu no écran o rosto macilento de Lawes:

Nave de vigilância... Aí os temos. Estão preparados?

Mais ou menos — respondeu Brodersen. — Surgiram-nos ainda uns problemas. Oxalá o aparelho não vá ficar à deriva, de um momento para o outro. Isso podia mandar-nos desta para melhor, você sabe.

O intervalo de espera era agora imperceptível. Dozsa havia assina­lado que a Alhazen se encontrava a escassos milhares de quilómetros. A imagem amplificada podia tornar visível aquela configuração esguia, mas Brodersen não via motivo para se incomodar.

Espero... o mesmo... para vosso bem — respondeu Lawes. — Avance em conformidade com o plano de vôo já traçado. Vou con­tinuar em contato... Avance!

Sim.

Brodersen falou então pelo intercomunicador:

Do comandante à tripulação. Vocês ouviram o homem. Mãos à obra!

Viu Lawes ficar vermelho e cerrar os dentes, como se convencido, mais do que nunca, que se tratava de uma corja de piratas.

A ausência de peso produzia um pequeno arrastar oblíquo, variá­vel, e uma sensação estranha causada pelo efeito Coriolis, à medida que a Chinook rodava, deixando de ser estabilizada pelos seus giroscópios. Aquilo cessou. Por um momento a nave ficou em órbita. Arrancou de­pois a toda a velocidade e lançou-se para a frente. A aceleração colou Brodersen à cadeira.

Passou-se um minuto antes de os instrumentos e os computadores de Lawes assinalarem o que se estava a passar e de o informarem.

Parem! — gritou ele. — Vão em direcção errada!

Diabo, eu sei! rosnou Brodersen, imitando o melhor que po­dia uma pessoa a debater-se com o medo. Já lhe disse que estamos em dificuldade. Desligue, e não me mace!

Mas que estão vocês a fazer?

Pensa porventura que nos queremos meter por uma passagem ao acaso e desaparecer para todo o sempre? Deixe-me em paz. Tenho de ver como havemos de parar.

Vou-lhe dar uma pequena oportunidade, comandante e Lawes quedou-se com a boca aberta. Brodersen e os seus homens troca­ram palavras que haviam combinado.

Foi cortado o fluxo de iões, como se a Chinook tivesse de percorrer o trajeto que Joelle havia calculado para ela. Descaindo para o ponto de inflexão mais próximo, a nave voltou de novo a proa. Um radar po­dia assinalar o movimento, se fosse regulado para tal, mas Brodersen contava que isso não ocorresse a Lawes durante algum tempo.

A navegação estima que podemos permanecer nesta trajetó­ria durante seis horas sem nos aproximarmos demasiado do campo disse ele. E era verdade. Os mecânicos esperam poderem reparar a avaria antes disso.

As pálpebras de Lawes, ligeiramente arqueadas, fecharam-se.

Quero saber mais a esse respeito. Porque não chamou mais cedo?

Não nos tinha dito para seguirmos viagem em silêncio? Nós não somos criminosos, comandante. Somos cidadãos respeitadores da lei. Cidadãos desejosos de voltar para casa e de lavar os nossos nomes. Sempre gostaríamos de saber de que nos acusam... Muito bem, se qui­ser, transmito-lhe extratos do nosso diário de bordo e das notas dos nossos técnicos.

Tratava-se de obras de arte, pensou Brodersen. No entanto, sentia certa relutância em apresentá-las. A sua tarefa como comandante con­sistia em falar, e nada mais. Em prolongar a conversa o mais possível. Em conservar o adversário entretido, enquanto Joelle e Su e as leis da Física levavam a nave para a frente.

Brodersen tinha diante de si uns escassos vinte minutos, pouco mais ou menos, até chegar o novo momento de aceleração. Os seus pilotos iriam então a uma velocidade máxima, sem falar em qualquer margem de segurança, uma vez que todas as margens em torno deles estavam cercadas...

Nova chamada:

Pare com isso, Chinook! Perderam o juízo?

Foi o sistema de controlo que perdeu o juízo, e é tudo.

Impossível acreditar nisso por mais tempo.

Pergunte ao seu técnico. Ele que estude os elementos que lhe mandamos. Que os estude a fundo.

Brodersen ganhou mais uma vez a discussão.

A aceleração tinha cessado e Brodersen ficou em suspenso, como no fundo de um sonho. Gotinhas de suor rorejavam-lhe a cara. Pegeen podia da mesma maneira ficar a reluzir de suor, entre as estrelas. A roupa interior de Brodersen absorvia-lhe a transpiração, mas deixava-o gelado, com mal-estar. E o tempo ia passando.

Lawes reapareceu no écran:

Diz o meu mecânico que o vosso material não faz sentido. — recalcitrou ele. — Tudo parece indicar, à primeira vista, que é ma­terial forjado. Vocês estão, mas é a tentar escapar-se.

E escaparmo-nos para onde?

Não interessa. Brodersen, volte para trás, e já, ou atiramos.

O bicho está a reagir como programado, não há dúvida, pensou

Brodersen.

Aguarde, capitão Lawes. Aguarde um momento. O senhor está em vias de comprometer a sua missão, em vias de prejudicar a sua car­reira. Tenha atenção, que não seja depois demasiado tarde.

Que está você para aí a divagar?

Não, não estou a divagar. Queria que compreendesse que estou a falar muito a sério. (Tão lenta e prolixamente quanto for possível, hei de fazer-lhe engolir a pílula, repensou Brodersen.) Domine as suas próprias emoções e escute. Pode dispor de alguns minutos para evitar uma asneira da sua parte e talvez dos seus superiores, não pode?

Bem — remascou Lawes. — Fale. Diga concretamente o que tem a dizer.

Pois vou fazê-lo. Quer saber? Mentimos-lhe. Conseguimos as­sim tempo para chegar aqui. Era-nos necessário. A verdade é que há muito mais por detrás dessa história da nossa prisão do que um erro de justiça. Quer ouvir?

Não, não quero. Tenho as minhas ordens!

Talvez não fosse conveniente que você soubesse, não é? Olhe, do nosso ponto de vista, nada temos a perder. Se formos para Febo, pelo caminho que as coisas estão a tomar, será a nossa morte. Lançando-nos pela galáxia fora, temos uma remota probabilidade — muito remota — de encontrar auxílio em qualquer lado. Não contamos com isso, é claro. Mas sempre ficaremos com mais alguns anos de vida, enquanto durarem os mantimentos. Penso que isso não irá apoquentar muito os seus chefes. No fim de contas, eles ficarão radiantes por se ve­rem livres de nós com tanta facilidade.

As minhas ordens são para os levar para Febo ou para dar cabo de vocês. Se não voltar para trás imediatamente, não viverá sequer uma hora de todos esses anos de que está para aí a falar.

Andamos armados também, comandante. Podemos bloquear os seus mísseis por algum tempo. Entretanto podemos lançar um aviso — em espanhol, visual, com toda a intensidade. Está seguro de que não o receberão a bordo da Copernicus? Ou que não haverá uma probabilidade de ser captado por outra nave? Dispomos de potência suficiente para que as nossas palavras cheguem a dez milhões de quiló­metros daqui. É uma história que haverá de fazer cair gente altamente colocada. E em casos como estes, a arraia-miúda vai também na rede... Eu desejava que me deixasse falar consigo, Lawes.

Não.

Tormento.

Tem mais alguma coisa a dizer antes de começarmos a disparar? perguntou Lawes.

Na verdade, tenho. É uma sugestão. Brodersen valeu-se de todos os seus dotes de persuasão. Chame a Terra e pergunte o que deve fazer. Nós continuaremos a ziguezaguear, é um facto, mas você sabe de quanto tempo precisamos para transpor uma passagem, e pre­feríamos desembocar num sistema planetário, numa máquina T, em vez de ficarmos a pairar no espaço interestelar. Na melhor das hi­póteses, isto significa que temos de transitar de baliza para baliza quantas mais melhor e seguir depois para a frente a partir da última. Você tem tempo de fazer a chamada. Entretanto, a menos que atire, ficamos calados.

— Lembre-se: não tem direito a negociar!

Mas acha que isto é negociar? Escute-me. O que eu desejo que você faça é dirigir a sua mensagem, não para o serviço que lhe foi indi­cado, mas para o seu alto-comando. Exponha-lhe o caso. Verá que o alto-comando vai ficar banzado com o que se está a passar.

Estamos a actuar em segredo.

Brodersen suspirou. Era o que esperava ouvir.

Pois faça lá o que entender vincou ele. E mais alto: Mas chame para lá.

Depois de insistir mais um pouco, ganhou o ponto. O écran ficou branco, e Brodersen deixou-se cair na cadeira, a respirar fundo. Seriam necessários três quartos de hora para uma intercomunicação, via satélite-relé, entre a nave e a Terra. Por essa altura, na sua marcha vertigi­nosa, já a Chinook estaria muito para dentro do campo de transporte.

As estrelas pareciam cantar vitória. Brodersen levantou-se e disse pelo intercomunicador:

Ouviram isto, meus meninos e minhas meninas? Escapámos desta. Alegrem-se!

Responderam-lhe alguns pequenos gritos de aplauso. Caitlín fez vi­brar uma corda do sonador e proclamou: Foste tu que nos salvaste.

Não, fomos todos nós replicou ele. Olha, Pegeen, amo-te.

Espera só até eu te sentir outra vez bem junto de mim disse ela.

Joelle está a ouvir... Por acordo tácito, a conversa esmaeceu. Se­guiram-se algumas palavras banais, muitas delas de serviço. Os gostos em música variavam bastante, para um concerto que agradasse a todos.

Cada qual permanecia isolado no seu posto. Brodersen reviveu as mais recentes vezes, nos amores com Caitlín. A primeira tinha atingido o doze, na escala de Beaufort; a segunda tinha sido tão suave como aque­la união final, já ao romper de alva, na gruta, no sopé do monte Lorn... Ele mesmo dormitou durante uns minutos. A nave desper­tou-o, a mudar de direção, a queimar auxiliares químicos, assim como a consumir energia nuclear, a fim de avançar rápida no seu rumo.

Brodersen estava bem alerta antes de chegar a resposta da Terra.

Foi a voz de Dozsa que a transmitiu:

Mísseis!

A decisão era «abater», compreendeu Brodersen. Quick, ou quem quer que esteja do lado de lá, receia que tenhamos um plano.

Só lhe restava sentar-se, com as mãos vazias. A sobrevivência dei­xara de depender de si.

A altas acelerações, transpondo a distância em escassos minutos, embora mudasse de vetores a intervalos variáveis para confundir os atiradores, a Chinook estava a ser alvejada. Ninguém a bordo andava vestido para se manter isolado no espaço. Se uma ogiva nuclear explodisse perto da fuselagem, seria o fim de tudo.

Brodersen vigiava as saídas do escape, prateadas e estreitas. Nos tubos estavam instalados sensores. Um computador ia extrapolando. Zarubayev tinha deixado o sistema afinadíssimo. No escuro estendia-se um rasto de fogo, à medida que os raios laser, repletos de energia, encontravam os seus objetivos. Um «tudo livre» vinha criar o júbilo, dizendo aos humanos que eles não iriam morrer nos segundos mais próximos.

A nave oscilava. Também Von Moltke havia lançado os seus mís­seis. Era essa a sua verdadeira tarefa: pôr fora de combate um oponente vivo.

A Chinook não era apenas muito maior que a Alhazen: transpor­tava uma carga desproporcionada. As naves de vigilância não eram, na verdade, destinadas a travar batalha. As suas armas não passavam, em parte, de relíquias das Perturbações, em parte de uma concessão a vagos temores. Temores que a facção de Quick se esforçava por consolidar...

A nave oscilou em torno de Brodersen, e avançou para a estação se­guinte no seu caminho.

Cintilações no céu...

Da atiradora para o comandante — anunciava Von; Moltke. — Eles detiveram a nossa barragem.

Era de esperar, desta primeira vez — lembrou-lhe ele. — Uma; lição. Stef, conseguiu contato?... Muito bem, ligue para mim.

A sua intenção era repetir a ameaça inicial, negociar a fuga do seu; comando. Ele não queria, repetia, não queria matar mais homens que estavam a fazer aquilo que lhes haviam assegurado ser o seu dever.

As estrelas começavam visivelmente a deslizar nos écrans. Não tar­daria que Brodersen se encontrasse num espaço-tempo de tal maneira flectido que projéctil nenhum tinha possibilidade de o atingir. Claro, qualquer sinal que ele transmitisse dali sairia truncado. Bem, toda a gente ficaria satisfeita, aqueles filhos...

— Mísseis! — gritou Dozsa. Ao mesmo tempo soltou um palavrão e indicou rapidamente o trajeto, o ângulo, os vectores aproximados. Tinham de ser da Copernicus.

Diabos, diabos! Era o que eu mais receava. Que a influência de Quick fosse a ponto de forçar a honesta tripulação de Janigian... — Mísseis!

Estes agora vinham da Alhazen. Um, outro, outro, outro. À cadên­cia máxima a que o tubo os podia lançar.

Comandante — disse de repente Von Moltke —, não me pa­rece que possamos aguentar com tantos ao mesmo tempo.

Um gemido de Granville:

Não. O meu cômputo diz-me que não podemos. Mon père...

Joelle, como aço a malhar em aço:

Podemos atingir a próxima baliza e acelerar em linha recta, an­tes de eles chegarem.

Brodersen ergueu-se com esforço, libertando-se das suas correias, enquanto o peso voltava.

Não! — gritou ele. — Vamos acabar sabe-se lá onde...

Depois reconsiderou:

Continuem!

A nave avançou. Brodersen quase imaginou ver a máquina T a crescer diante de si, a girar, a girar.

Via, de fato, os poucos traços de fogo, enquanto Frieda evitava os projéteis. A seguir o Sistema Solar desapareceu dos seus écrans. As es­trelas eram agora outras, completamente diferentes. O sol não era branco, nem amarelo, nem laranja-vivo como em Centrum, mas ver­melho, de um vermelho-intenso, e mais pequeno. Fulvo, por baixo de faixas coloridas, três vezes o diâmetro da Lua vista da Terra, encontra­va-se um planeta. Assustadoramente perto, girava um enorme cilindro iridescente.

Brodersen deixou-se mergulhar por um momento numa noite que rugia.

O Inverno descia, frio, em torno da torre em Toronto.

Bom — disse Quick, por fim. — Lá se foram!

Tem a certeza? — perguntou Makarov no meio de uma sufo­cante nuvem de fumo. Faltava-lhe preparação científica para seguir to­dos os pormenores daquilo que acabava de se passar.

Tenho — assegurou-lhe Quick. — Fosse qual fosse o plano que eles tinham, se é que tinham algum... Suspeito de que estavam de facto a seguir ao acaso, apenas com a intenção de... De elevarem ao máximo as probabilidades de... Oh, como podemos nós avaliá-lo?... Pouco importa. Forçados a entrar pela primeira passagem que se lhes ofereceu... Lá se foram, Makarov! Desculpe-me. Lá se foram, primeiro-ministro Makarov. Como as milhares de sondas que a nossa espécie despendeu, à procura de novas rotas. Podemos esquecer agora o que se passou com eles.

Makarov curvou o seu pesado corpanzil e perguntou:

Tem a certeza disso?

Absoluta.

Quick baixou a cabeça e tapou os olhos. O cansaço apoderava-se dele.

Ah! suspirou Makarov. Excelente. Isso simplifica tudo.

Quick olhou para ele.

Como?

Makarov sorriu. Coisa que raras vezes fazia.

Um factor menos na equação, e talvez o fator menos conhe­cido. Está a ver?

Vejo, sim senhor, que de Matemática não percebe patavina, foi o pensamento de Quick.

Reuniu todas as suas forças. É preferível que um homem civilizado se ponha nestes casos ao nível de um bárbaro chefe guerreiro.

Tem razão. Vamos interrogar, é evidente, as tripulações da Alhazen e da Copernicus, mas, ao que parece, elas não sabem nada que não convenha. Isso nos deixa a Lomonosov para quaisquer missões es­peciais que decidamos empreender... Mais um excelente intervalo para respirarmos, diria eu.

Não nos podemos deixar ficar por muito tempo de braços cruzados avisou Makarov. A luz bem clara da nova situação, va­mos agir. Primeiro, depois de avisarmos os nossos principais colabora­dores, penso que devemos mandar a Lomonosov para a Roda. Se não virem nada de extremamente complicado, desembaraçam-se daqueles que lá estão, incluindo o grupo de Troxell. Depois disso, ficamos com as mãos livres para tomarmos outras medidas completas. Concorda?

Vivi horas infernais por causa de tudo isto, pensava Quick. Chegou finalmente a altura de o homem civilizado atacar juntamente com o seu aliado de conveniência, sob pena de ser ultrapassado, sem poder fazer ouvir a sua voz na conferência de paz.

Deixe amadurecer a questão e falamos depois sobre ela, mas de momento estou inclinado a pensar que em princípio o senhor tem ra­zão.

 

Caitlín flutuava na sala comum. Segurou-se ao rebordo da mesa para evitar que o cabelo solto lhe tapasse a cara. Tinha apagado as luzes, para melhor ver nos écrans que davam para o exterior. Como am­plas janelas, eles rasgavam diante dos seus olhos o universo à sua volta.

De uma maneira geral, as estrelas apinhavam-se como antes, for­mando verdadeiras gemas a recamar um diadema de cristal. Tantas que ela não podia ver como o céu estava modificado. Também já não se es­palhava o prateado da Via Láctea, naquelas esteiras tão diferentes das que se estendiam por cima da Terra ou de Deméter. Numa determinada direcção via-se a máquina T, mas esbatida, como agulha perdida na vastidão. A Chinook tinha-se afastado bastante dela, depois de se fixar numa órbita estável em tomo do planeta.

A singular novidade estava à direita e à esquerda de Caitlín. À di­reita pairava o disco do sol, com um sexto da largura daquele que bri­lhava no seu país natal. De um vermelho-escuro, não exigia qualquer protecção para a vista. Caitlín podia olhar directamente para ele, sem nada sentir a não ser depois a persistência da imagem que se lhe fixava na retina. Podia distinguir uma tênue coroa ocreosa. Não encontrou luz zodiacal, o que tornava a imagem duplamente estranha.

A esquerda deparou-se-lhe o mundo gigante. Aconteceu que a nave emergiu no lado de dia, e à distância a que se encontrava iria necessitar de um bom par de anos terrestres para dar a volta completa. O globo encontrava-se quase na fase cheia, largo e brilhante, reluzindo para além do próprio écran que o revelava. A vista desarmada distinguia-se como a rotação tinha achatado o disco. Tons de âmbar matizavam-se suavemente uns com os outros, com faixas de nuvens por baixo, que eram cor de laranja, intensa ou pálida, raiadas de verde-azul e casta­nho. A sombra de uma lua era como a pupila de um olho. Quando a noite recortava um crescente, não fazia inteiramente escuro, mas ficava a pairar uma suave claridade.

Confusas luminescências transformavam a sala numa caverna de luzes ternas e sombras repousantes, num lugar de mistério e silêncio.

A quietude não foi quebrada no momento em que Martti Leino en­trou. Ele susteve o voo à porta, enquanto observava Caitlín, e deteve-se um momento a contemplar aquela silhueta esbelta, ali imóvel. Só de­pois a saudou, numa voz quase agreste:

-Olá!

Os cabelos de Caitlín caíam-lhe radiosos, e depois em mancha es­cura, enquanto ela se voltava apoiando-se num braço. Com a mão livre afastou uma madeixa, para poder ver.

Oh! Que a manhã lhe seja radiosa! — cumprimentou ela à ma­neira irlandesa, embora numa voz sumida.

Manhã?... Bom, seja. Os nossos relógios marcam as oito... Se serão da manhã, nunca o saberemos — observou ele, desajeitada­mente. E prosseguiu: — Andava à sua procura.

Ah, sim? E porquê?

Leino entrou, dirigiu-se para a mesa, segurou-se a ela e deixou de­pois o corpo pairar também no vazio. Assim juntos, o rosto de Caitlín ficava mais nítido à claridade vinda de fora, ao mesmo tempo que as sombras lhe davam um contorno de escultura.

A voz de Leino era hesitante, quando disse:

Reparei como estava perturbada ao pequeno-almoço...

Ah, reparou? Esta ausência de peso é impressionante, e é uma trabalheira antes de conseguirmos limpar as coisas e arrumá-las. E depois andamos para aqui a rodopiar numa polca louca.

Embora nos mantimentos estivesse incluída uma boa quantidade de enlatados e outros artigos para estas ocasiões, tornava-se complicado preparar as refeições de nove humanos e de um não humano, mesmo quando a contramestre era experiente.

A verdade é que os meus antepassados viviam em piores condições desabafou ela. Basta pensar que eu podia ter sido criada de servir numa família protestante, no tempo da rainha Vitória. Hei-de acostumar-me.

Não devia fazer isso sozinha, agora que a Su vai estar muito ocupada. Eu... Eu posso ajudá-la, Caitlín.           

Ajudar-me como? E não tem também o seu trabalho, que lhe leva o tempo todo?

Tenho as minhas ocupações, é evidente, mas... Olhe, na realida­de, qualquer astronauta está preparado para ajudar em trabalhos de investigação, e quando não temos os necessários cientistas... Bom, os estudos que a nossa gente mais qualificada pode levar a cabo não preci­sam de muita ajuda da minha parte. Phil Weisenberg pode, de uma ma­neira geral, ocupar-se das máquinas e coisas semelhantes. Falei com ele e concorda que eu posso provavelmente ser mais útil, a maior parte do tempo, a ajudá-la a si... se você quiser.

Leino acabou as suas palavras, baixando os olhos.

Vejamos, isso é muito amável da sua parte, e agradeço-lhe disse ela.

Caitlín aproximou-se e, pousando-lhe a mão no ombro, continuou:

Possam as vias que você toma serem sempre suaves debaixo dos seus pés.

Nós, nós temos de nos ajudar uns aos outros... Temos de ser amáveis uns para os outros... quanto pudermos murmurou ele. Não lhe parece? Enquanto estamos na vida. Agora já não há mais vias realmente para nós, vias sobre que possamos caminhar. Nunca mais.

Caitlín sorriu.

Mas você não está a perder a coragem, não é verdade, Martti, meu amigo? Quando acabamos justamente de recuperar as nossas vidas e de ganhar a liberdade!

Liberdade?

Martti olhou em torno, desconcertado. Segurou o rebordo da mesa com força mais do que necessária, até que as unhas lhe ficaram brancas.

Liberdade, para aqui fechados numa caixa de metal, sem rumo através do espaço, até que os alimentos se esgotem? Se não endoidecer­mos primeiro...

Leino procurou dominar-se.

Caitlín afagou-lhe a cabeça e deixou sair uns sons reconfortantes do fundo da garganta. Por fim, ele pôde dizer com perfeito desespero: — Já sabe, não sabe, que estamos perdidos? Fidélio confirmou que os seus nunca estiveram aqui. Nós vamos agora andar às apalpadelas, de máquina T para máquina T... Em mil anos, lançando bilhões de son­das, os Betanos descobriram como viajar entre umas tantas estrelas, bem determinadas... E não temos Outros, não temos ninguém para nos ajudar... Caitlín, para nós acabou-se tudo!

Caitlín abanou a cabeça, ainda a sorrir por baixo do cabelo que lhe escondia as estrelas, e respondeu mansamente, quase com jovialidade:

Acreditarei nisso quando me cerrarem os olhos para sempre, e talvez nem mesmo então. Mas suponhamos que você tem razão, que nos espera o pior, Martti, meu caro.

Leino reagiu com violência.

Oh! — suspirou Caitlín. — Você está com os nervos arrasados, lá isso está. Se me quiser ajudar, deixe que eu o ajude primeiro a si. Não se mexa.

Numa hábil manobra largou a mesa, estendeu-se ao longo dele, a li­geira distância, pegou-lhe no braço esquerdo com a mão direita e fixou-lhe as pernas entre os seus joelhos. Leino não escondia o espanto.

— É fácil, meu amigo, muito fácil — disse ela. — Tenho de me firmar bem se lhe quiser dar a boa massagem de que você precisa.

Caitlín passou-lhe a mão direita pelo corpo. E continuou:

Sim, uma ninhada de ratos a dar força ao cavalo, como diria meu pai se fosse menos digno e mais irlandês. Tire a roupa até à cintura.

Leino sentia-se tremer enquanto obedecia.

Distenda os músculos — ordenou ela. — Não faça resistência. Vamos ficar a boiar no vazio, mas não tarda a apoiarmo-nos contra uma parede... uma divisória. E, entretanto, posso-lhe ir esfregando essas costas.

Friccionando ao de leve, Cailtín observou a sorrir:

Tudo isto de minha invenção. O sexo no vazio deu-me a ideia das massagens no espaço, sobretudo quando alguém está tenso, como tantas vezes acontece... É fácil, já lhe disse. Muito fácil.

Olhando em torno enquanto trabalhava, prosseguiu:

— Suponha que ficamos, na verdade, para aqui perdidos durante anos, até se esgotar tudo quanto temos para comer. E suponha que cada um de nós tem de escolher a maneira como quer morrer. Não acei­to que seja esse o caso, note bem, mas suponhamos apenas. Que estu­pendo seria!

Como?! — exclamou ele. — Não está a falar a sério, pois não?

Muito a sério. Será difícil renunciar a montanhas e mares, ao brilhar do sol por entre a chuva, a uma lareira pela noite dentro. Mas olhe, Martti, meu amigo. Aqui, o que hã de fulgurante! E nós estamo-nos a preparar para o conhecer... Depois mais sóis, mais mundos, mais belezas e maravilhas. E talvez, ao cabo de tudo, um novo Deméter para nos acolher. Ou então, vejamos, ao cabo dos nossos breves anos aqui no universo, terão esses anos encerrado mais em si do que muitos séculos que os homens viveram antes de nós.

O movimento de massagem crescia, e a mão de Caitlín premia com mais carícia. Ela rematou:

Que a vida lhe traga muitas felicidades!

Equipada para o desconhecido, a Chinook levava um soberbo con­junto de instrumentos científicos. Mas, salvo as duas operadoras, não vinha a bordo nenhum especialista para os utilizar. Aquela gente dispu­nha, porém, de suficientes conhecimentos técnicos, incluindo a noção de como encarar as novidades, e, em larga parte, sob a orientação de Weisenberg podia encontrar meios de saber qualquer coisa sobre a zo­na a que a nave tinha ido parar. No entanto, podia ser desconsoladoramente pouco.

Foi então que Joelle anunciou ao comandante e ao mecânico: Fidé­lio possuía experiência destas situações. A sua raça havia explorado muitos sistemas planetários, todos eles diferentes. Os astronautas pro­fissionais dos Betanos incluíam sempre um técnico especializado em le­var a cabo e interpretar uma enorme série de observações, para o dia em que chegasse nova sonda automática com a notícia de haver sido descoberto outro trajeto com regresso assegurado. Fidélio era um des­ses técnicos, assim como oficial xenológico, que falava em nome da sua nave quando ela visitava outros planetas habitados. Esse conjunto de conhecimentos fizera que fosse ele o escolhido para o Emissário.

A sua técnica compreende a holotese, como seria de esperar — acrescentou ela. — Temos de modificar uma unidade do nosso equipamento para que Fidélio a possa utilizar. O sistema foi aperfeiçoado em Beta, e entre nós lembramo-nos muito bem em que consiste ele. Mas, como compreendem, é essencial uma certa quantidade de experiências prévias. Além disso, o nosso equipamento é tosco para os seus níveis.

E não lhe poderíamos preparar um equipamento mais conve­niente? — perguntou Weisenberg.

Vejamos. Imagine que você voltava de um momento para o ou­tro à época de Galileu. Poder-lhe-ia construir um refletor de cem me­tros em órbita? — troçou ela. — Suponho que será possível, isso sim, introduzirmos pequenos aperfeiçoamentos aqui e ali, na devida altura, e especialmente no software. De momento, porém, temos de nos servir dos elementos de que dispomos. Temos de ir às coisas evidentes. De de­terminar massas, traçar espectogramas, et caetera. Indispensável fazer

isto, de qualquer maneira. Depois de a linkage para Fidélio estar pronta, já ele pode dizer quais os outros elementos de que ele e eu preci­samos, em especial os dados que nos devem ser fornecidos directamen­te, continuamente.

»Deixem-nos consultar um ao outro. Vão tratando dos vossos as­suntos. Eu vos direi depois o que é preciso fazer, e quando.

Brodersen alçou a sobrancelha, sem uma palavra. Joelle reconhe­ceu a sua expressão de antigamente: «Esta agora! Lá está ela a dar-se ares de importante!» Nunca a tinha utilizado a meu respeito! Foi a ideia que lhe passou no íntimo e a deixou gelada. Teve sempre muito respeito pela minha inteligência. Qualquer coisa se modificou nele. O quê? Será da tensão criada nesta viagem? Ou estará aqui o dedo dessa aventureira da Caitlín?

Aquelas perguntas não lhe saíam da cabeça nos dias que se segui­ram. Não que estivesse obcecada: só o estava pelo trabalho, como toda a gente. No entanto aquela ideia perseguia-a sempre e sempre, e tornava-se mais viva ainda quando tentava dormir.

Sim, dormir era com frequência difícil. Joelle nunca se adaptara naturalmente à ausência de peso. Para ela, o prazer de flutuar e de voar era diminuto, comparado com o tédio de longas horas diárias nas má­quinas de exercícios físicos, com receio de que o sangue se lhe degene­rasse nas veias e que os próprios ossos emperrassem. (Os outros conver­savam ou cantavam ou viam programas ou entretinham-se com coisas assim. A ela nada daquilo interessava. Teoricamente, podia-se ter refu­giado na sua cabeça, onde estavam instaladas Matemáticas e a memória do Número, e era o que fazia com frequência nas horas de ócio. Po­rém, os enfadonhos e esgotantes esforços tornavam-se por vezes ener­vantes. Pior: quando estava precisamente à beira dos sonhos, cada vez com mais frequência acordava em sobressalto, com a sensação de cair num poço sem fundo. Tinha então de flutuar no escuro, ligada aos seus cabos e tentando acalmar-se. Nessas ocasiões era dominada por pensa­mentos que não desejava.

Porque me hei de eu preocupar pelo facto de Dan já não se interes­sar por mim? Aos meus olhos, nunca passou de um animal. Mais atraente e mais forte, é certo, do que a maior parte dos animais. Exce­lente na cama, e, no entanto, apenas uma companhia para preenchermos juntos algumas horas durante as quais eu também não passava de um animal. Se o meu corpo precisa de uso, Dan deu a entender que me fa­ria o favor... Provavelmente não já, pois está demasiado ocupado neste momento e pouco seguro. Mas mais tarde. Ora posso voltar-me para... Para Rueda, suponho eu. Um homem experiente Como ele veria muito para além do meu cabelo grisalho do pós-menopausa, e sem dúvida que seria um perfeito artista. Não interessa o decoro. O sexo é uma necessidade meramente corporal, como o defecar.

Será? Eric, Eric!

Pára lá com isso. Vê bem. Nem mesmo é uma necessidade. Passei quase nove anos sem o prazer do sexo e pouco suspirei por ele.

Não será antes o receio da morte a fazer-me sentir a solidão?

Estamos em vias de morrer para aqui isolados. As probabilidades de encontrarmos o caminho de regresso são... Não, não são incalculá­veis... mas ridículas... Porém, com razoável atenção e um pouco de sorte, podemos ainda ter, digamos, dez anos diante de nós antes de aca­bar a nossa comida. Sem geriatra a bordo, poderei morrer de esgota­mento físico antes disso.

Por outro lado, aprendi desde há muito a não recear a morte. De­pois de ter olhado de frente a Realidade... Não existe nenhum «eu» por cuja perda me possa lastimar. O que existe é uma associação temporá­ria de mitocôndria, células eucarióticas, flora intestinal, e coisas assim, diluindo-se toda a simbiose no mundo que a rodeia, que a gerou, e sem servir para nada mais que não seja a perpetuação dos seus genes. Se me fosse oferecida a imortalidade da minha «pessoa», eu não a queria. Muito insignificante, no meio dos átomos, dos ions e das galáxias.

No fundo, eu devia abençoar esta possibilidade sem igual de explo­rar, experimentar, aprender. Lamentável que não possa dar conta das minhas descobertas aos meus colegas. No entanto, do meu ponto de vista, trata-se da perda de uma satisfação muito trivial em comparação com o que me espera na próxima década.

Então porque quero eu que alguém me console? Porque é o tempo tão longo até ao quarto da alba e ao retomar do meu trabalho?

O trabalho era absorvente apesar da exasperação resultante da gra­vidade zeto e da lei da Murphy. O objectivo consistia em adaptar o sis­tema holotético da Chinook para ser utilizado por Fidélio. Primeiro veio a parte mecânica, um capacete que lhe assentasse bem na cabeça, e ligações para o resto do corpo. Isto foi fácil. A seguir, a parte eletrônica, circuitos preparados e ajustados para vibrarem com um tecido nervoso que era o resultado de alguns bilhões de anos de evolução em separado. Isto teria implicado um árduo trabalho de investigação se já não houvesse sido feito outro também em Beta. Assim, já se conhecia a maior parte do que ia ser necessário. Apesar disso, Su Granville e a pró­pria Joelle tinham de passar horas e horas a elaborar programas, e de­pois em linkage, sempre que Weisenberg fornecesse um novo lote de dados provenientes dos seus instrumentos. Leino ajudava no que po­dia, e os outros incumbiam-se também de certos trabalhos periféricos quando eram precisos. Além disso, dedicavam-se a tarefas de Astrono­mia e de Física Espacial. Uma vez que todos precisavam de comida e de roupa lavada, Caitlín pôs de parte a sua fogosidade e incumbiu-se des­sas tarefas pela causa da sobrevivência. Com frequência, à mesa ou du­rante os períodos de exercício, cantava para eles. Era essa quase a única distracção que aquela gente tinha.

Preparada a aparelhagem, surgiu a verdadeira dificuldade: estabe­lecer o programa básico para Fidélio se poder integrar no computador.

Mesmo entre os humanos, cada holoteta era caso único. Ora Fidélio era não humano. Além disso, a tecnologia betana em matéria de com­putadores apresentava consideráveis diferenças em relação à terrestre. (No entanto, por muito singular que isso pareça e na medida em que eram possíveis comparações, dir-se-ia que os holotetas de cada uma das espécies não tinham mais profundo e mais vasto poder de penetra­ção do que os da outra. As máquinas betanas possuíam numerosas ca­racterísticas superiores mas, ligada a elas, Joelle havia funcionado mais ou menos da mesma maneira do que com as suas. Teriam os cérebros iguais limitações? Ou seria o próprio Ultimato?)

De novo, e em grau ainda mais elevado, a tarefa teria sido sem esperanças se já não tivesse sido realizada em Beta quando fora consi­derada desejável a linkage mútua de membros das duas raças. Joelle e Fidélio estavam apenas a tentar reproduzir qualquer coisa da Emissá­rio, de que se lembravam muito bem... Mas nada daquilo era simples. Pelo contrário, surgia toda uma linguagem de computadores prati­camente uma nova semântica —, mais um intrincado problema de tra­dução para uma linguagem que a máquina da Chinook pudesse tratar, mais um programa para a retraduzir, mais um conjunto aberto, termi­nal, de instruções especiais. Joelle e Fidélio tinham na cabeça as bases fundamentais daquilo tudo e sabiam, de um modo geral, como recons­truir os pormenores, por uma lógica de extremo rigor, por cálculo e experimentação.

Sem se poder falar em analogia, mas antes como metáfora, o pro­blema era como o que teria de enfrentar um peruano chamado a servir de intérprete entre um chinês e um árabe, sendo o peruano um leigo nas duas línguas, o chinês acentuadamente gago e o árabe surdo-mudo.

Sem linkage, o problema seria insolúvel. Susanne participaria nas operações conferindo programas de ensaio para descobrir falhas e más interpretações, quando não fosse necessária para a investigação corren­te em outros campos. Joelle e Fidélio analisariam então os elementos obtidos. Isso seria árduo para Joelle. Ela aperceber-se-ia de uma Reali­dade distorcida, descolorida, sentir-se-ia febril, e depois disso teria pe­sadelos, nos quais via quase sempre o cadáver de Eric em putrefacção. Acordar-se-ia e diria a si mesma que Fidélio, esse, não se estava a quei­xar, embora tudo aquilo devesse ser pior ainda para ele. E voltaria ao trabalho. Era sempre reconfortante entrar de novo no puro Númeno.

A Chinook ficou durante umas semanas em órbita em torno do pla­neta, a que os humanos não tinham dado nome.

Parece que está tudo pronto, fêmea de intelecto disse Fidé­lio, depois de examinar cuidadosamente as ligações. Falava a lingua­gem gutural e sibilante de que a sua raça se servia no ar. Era mais fácil para ele do que o espanhol. Vamos fazer um ensaio e, se virmos que estamos em maré viva, vamos então para a frente para sentir a totalida­de deste volume-onde-nadamos.

Joelle esboçou um sorriso perante aquela maneira de se exprimir. O sorriso diluiu-se quando olhou para Fidélio. Criatura meio marinha era belo a flutuar na ausência de gravidade. Esguio e castanho-carregado, o seu corpo ondulava desde o focinho saliente e os olhos lápis-lazúli até à extremidade da forte cauda, que ele dominava com toda a precisão. Cada dedo dos seus seis membros sabia o que fazia, e o seu movimento era suave no ar. O odor que desprendia, como a iodo, inundava-a de mil recordações de praias na Terra, de ressaca e vento, de luz do Sol e asas de gaivotas. Que pena estar para ali metido naquela estreiteza, en­tre dois computadores! Que pena alinharem-se diante dele tantos instrumentos de medição e tantos botões, em vez de colear entre algasj vivas, debaixo do mar! Que o seu campo visual fosse limitado por me­tal pintado, em vez de se estender, amplo, pelas profundidades verdes sempre a renovarem-se, com o sol a jorrar lá por cima no seu radiante esplendor e a multiplicar-se em centelhas douradas!

Joelle desviou a atenção e, firmando-se bem, carregou no botão do intercomunicador.

Su chamou ela. Fala Joelle. Chegue aqui.

Seriam necessários talvez alguns minutos para que a linker deixasse o que estava a fazer.

Descer às profundidades para além das profundidades será como voltar à costa após anos numa ilha balbuciou Fidélio.

Sei isso observou Joelle. A mesma ânsia crescia nela. A holo- tese partilhada com um betano tinha dimensões que nenhum operador humano podia oferecer. Entre elas, o conhecimento de que as dissemelhanças entre Joelle e Fidélio não lhe davam a ele um forte distancia­mento. Juntos, haviam especulado sobre se os Outros não podiam ser, afinal, várias raças distintas formando grupos que estivessem permanentemente ligados.

Tem sido árido... E a voz de Fidélio arrastava-se. Não era capaz, realmente, de comiseração para consigo próprio.

A dor por ele crescia. A mão livre de Joelle procurou o braço mais próximo do betano, o braço direito de cima. As unhas podiam-na ter dilacerado, mas Joelle sentiu apenas uma suave quentura, um doce contacto.

Oh, Fidélio! suspirou ela.

Os seus mantimentos dão para menos de um ano. E ele vai morrer no meio de bípedes de quatro membros, sem pêlos a cobrir-lhes o corpo, sem cauda, incapazes de nadar um só dia sem auxílio. Nenhuma fêmea o consolará, nenhuma fêmea a quem ele possa sugar pela última vez quando chegar a derradeira hora. Nem mesmo sabemos a maneira de o chorar e de o amortalhar!

O olhar dele, um olhar que não era da Terra, encontrou-se com o de Joelle.

— Eu queria-lhe pedir isto, Joelle — disse ele calmamente.

Ela esperava que Fidélio desviasse de imediato o olhar, pois um betano apenas fitava com insistência alguém que o tivesse enfurecido ou alguém que ele amasse e lhe estivesse também a oferecer confiança. Fi­délio continuava de olhos postos nela. O sangue martelava com força nas orelhas de Joelle.

Repare bem: não é uma ondulação; é uma vaga — observou ele.

Sim, se eu for capaz.

Agora que me posso unir a este equipamento, deixe-me ser o holoteta, sempre que precisarmos apenas de um, enquanto eu aqui conti­nuar.

É porque não lhe resta mais nada para além disso, não é verda­de, Fidélio? — E largou a outra mão para lhe apertar o braço ainda com mais força.

— S-sim.

Você pode fazer as suas investigações quando eu flutuar em des­canso. Daqui a pouco, o sistema será todo seu, de novo.

Os olhos de Joelle doíam-lhe. Santo Deus, não estaria à beira das lágrimas? Joelle sacudiu a cabeça. As gotas de suor cintilavam-lhe no rosto.

— Não é aceitável? — perguntou Fidélio. E não lhe parecia resig­nado? Como poderia ela saber? E Fidélio concluiu: —G'ng-ng, quero dizer, fêmea de intelecto. O meu pedido decai.

Não, não!

O vigor da sua própria reação aterrava-a. Esgotada, com falta de sono, a parte frontal do seu cérebro permanecia apta a funcionar, mas o resto continuava a declinar. Se eu não tiver cuidado, não tardo a cair na histeria.

Você... compreendeu mal. Eu não exprimi uma negativa. Claro que tem prioridade. Sempre que queira, sempre que queira.

Você deixou a água correr, Joelle. Está sofrendo? Ferida? Sem ali­mento das suas funções vitais? atirada de encontro a um recife cortan­te? Fui eu quem provocou isso?

Não. Você... não. Fidélio, podemo-nos ligar um ao outro!

Com frequência, espero eu, e a começar hoje. Cheiro um es­plendor diante de nós. Mas Joelle, querida companheira mental, as mais das vezes...

Ele estava a hesitar, pensou Joelle, e viu-lhe os nervos a encresparem-se-lhe nas garras. Mas Fidélio prosseguiu:

Sozinho no Todo, posso dele fazer surgir Beta. Posso fazer rea­parecer esposa, co-maridos, filhos, netos, amigos, tanto os vivos como os mortos. Não apenas meras recordações, mas autênticas realidades no espaço-tempo. Posso sentir que existem. Será quase tão bom como abraçá-los.

Deteve-se. Embora o estivesse a ver confusamente, Joelle sentia-lhe o espanto.

Não sabia isto, Joelle? Você nunca fez o mesmo também? Pala­vras nenhumas servem para explicar. Mas penso que lhe posso mostrar, que lhe posso ensinar, antes de eu acabar. Devo por certo experimentar. É muito belo que lhe possa oferecer uma prenda.

Joelle lançou o seu corpo contra o dele, apertou-o contra si, e chorou.

Susanne abriu a porta e entrou.

Aqui me tem — disse ela. — Oh! Pardonnez-moi! Vous me pardonnerez!

Lançada a flutuar, tentou deter-se. Joelle, virando a cabeça (com a cara a roçar a pele do seu companheiro mental, que, entretanto havia passado suavemente os dois braços inferiores em torno dela enquanto com os dedos do braço esquerdo superior lhe acariciava o cabelo), viu depois a linker a voar para a porta como uma enorme aranha preta. Se Fidélio, com quem ela gerava novas compreensões, tinha de morrer em breve, antes de morrer podia-a conduzir à Unidade com Eric e Chris e consigo mesmo e...

Saia! — gritou ela. — Vá-se embora, sua cabra danada!

Susanne saiu a chorar.

Que foi que se estragou? — perguntou o betano com ansiedade.

Ninguém, mas ninguém, me deve ver assim... A não seres tu. Tu que não és humano, mas o meu companheiro holoteta... Estou a ser ir­racional. Fui grosseira para com aquela linker. Tenho de lhe pedir des­culpa. Não. Como lhe posso eu explicar? Cólera. E porque haveria eu de lhe explicar? Por que razão devo eu, e só eu, ser sempre racional? Pasmo. Porque tenho eu andado a lembrar-me tanto de Eric, nestas úl­timas semanas? Ele não passa também de um linker. Menos do que isso, pelas últimas notícias que tenho... Arrumado, há muito casado, tornou-se administrador, não muito importante, em Calgary.

Joelle sorveu o ar.

N-n-nada, Fidélio. Estou cansada e... Aperte-me bem contra si, deixe-me descansar um pouco. A seguir, vou tomar um comprimido para dormir, um comprimido daquela oficial médica, a tal Mulryan. Bom, ela pode fazer o favor de não procurar simpatizar comigo... E... depois disso ficarei em melhor forma para... Oh, Fidélio!

Susanne dirigiu-se à sua cabina sem uma palavra a ninguém a não ser a Caitlín, a quem explicou que não ia jantar.

Na manhã seguinte, entrou no centro dos computadores com uma cara perfeitamente inexpressiva.

Desculpe-me por a ter tratado assim — pediu-lhe Joelle por mera formalidade, em inglês. — Eu estava confrangida por causa de Fidélio. É um velho amigo.

Compreendo, madame — respondeu a linker com solicitude. E deram início aos trabalhos.

Na prática, Susanne pouco mais tinha que fazer além do controlo, assegurando que os contactos de Joelle, de Fidélio, dos computadores e dos instrumentos se mantivessem todos eles a funcionar como deviam. Ora não era isso o que estava a acontecer: Susanne e Fidélio operavam unidos agora fora do sistema. Os dois holotetas juntavam directamente as suas capacidades, tal como dois amantes que sabem muito bem unir os corpos, e haviam-se tornado mais do que a soma deles próprios, dei­xando o universo fluir através deles.

Muito sabiam já por observações e deduções feitas pelos seus cama­radas de bordo. O exame das galáxias mais próximas mostrava que a re­gião onde se encontravam devia ficar cerca de quinhentos anos-luz do sol, na direcção geral de Hércules. Este conhecimento tornou identifi­cável, várias estrelas muito brilhantes, como Deneb, e manchas como a Nebulosa Orion, o que por sua vez definiu com mais rigor a posição da nave. (Como se isso tivesse alguma importância. Um simples ano-luz é um abismo em que a nossa imaginação se perde.) O sol era uma anã vermelha do tipo M, com massa de 0,02 do Sol, luminosidade de 0,004 do Sol. Tinha cinquenta planetas, nenhum deles em nada parecido com a Terra, todos eles aparentemente desprovidos de vida — salvo, talvez, este maior à volta do qual a máquina T e a Chinook andavam em órbita a uma distância de uns vinte e quatro milhões de quilômetros.

Aquele mundo era gigantesco, com 92% da massa de Júpiter, e à volta dele giravam doze luas. A distância média do seu primário era de 1,64 unidades astronómicas, um pouco maior do que a de Marte em re­lação ao Sol. Tal como Júpiter, tinha uma vasta atmosfera, constituída, sobretudo por hidrogénio e depois por hélio. Entre outros componen­tes encontrava-se amônia, metano e compostos orgânicos mais compli­cados. Também como Júpiter, desprendia calor da contração. A camada superior da atmosfera era tênue e fria, mas a mais baixa era espessa e quente, a ponto de a água tomar a forma de vapor e de sobrevirem tempestades que se podiam assemelhar às dos planetas menores. A maior parte da sua massa era líquida, embora a fraca pressão, apesar da temperatura, deixasse sólido um núcleo metálico igual a cerca de cinco Terras.

Dando uma volta completa sobre si mesmo em dez horas e trinta e cinco minutos, criava um imenso campo magnético que captava partí­culas carregadas provenientes do sol. Contudo, este sol era de uma ra­diação tão fraca que as cinturas de Van Allen se apresentavam quase com a intensidade das de Júpiter. Nenhum ser humano podia permane­cer nelas durante muito tempo. Mas, dadas as defesas electrostáticas de que a Chinook dispunha, podia esta nave mergulhar através dessas cin­turas e voltar a subir sem perigo de a tripulação ficar exposta a doses preocupantes.

E a Chinook teria uma razão forte para aí mergulhar.

Joelle e Fidélio ter-se-iam perdido no sol, luas, ambiente exaltante e sas, enfim em toda a unicidade. Dificilmente, no entanto, se concentrariam no maravilhoso caleidoscópio quando qualquer coisa surgisse na orla das suas consciências. Afastavam-na um pouco, explo­ravam um vórtice, descobriam por que razão um globo mais interior gi­rava em sentido contrário, verificavam que todo aquele sistema é mais velho do que o Sistema Solar. Mas não ficavam por aí. Quase com impaciência, levavam a sua dupla mente a um exame mais profundo da emissão hertziana do mundo que eles estavam a cercar, sim, segura­mente, e que mais seria de esperar?

O fato era saliente.

Os relâmpagos, os efeitos de sincrotrão, uma centena de fontes paradas, estavam a originar energia de rádio ao longe. Cada um tiniu as suas características próprias, que os holotetas compreendiam da mesma maneira que uma bailarina compreende como outra bailarina está a executar um pas seul. Mas um pequeno nada podia ser comparado a uma flauta, provocante e variável, por entre o rugir de um temporal no mar...

Talvez ao cabo de uma década de esforço concentrado os humanos, sem ajuda, tivessem feito a descoberta. Os holotetas, esses, compreen­deram logo que estavam em presença de qualquer coisa que a natureza sem vida nunca poderia produzir. Portanto, que estavam a captar o discurso de seres vivos e inteligentes.

A flutuar na sala comum diante da sua tripulação, com o resplan­decente planeta pelas costas, Brodersen falava em voz calma:

A minha opinião é que devíamos ir ver.

São demasiados os riscos — objetou Joelle. — Em órbita, es­tamos em segurança. E podemos continuar a emitir sinais.

Até começarmos a morrer de fome? — repontou Dozsa. Tinha sido ele a levantar a questão. — Podíamos lá ir, e vocês sabem.

Realmente? — perguntou Caitlín. — E porquê? Não tem esta­do você a emitir no mesmo comprimento de onda deles, a mandar-lhes um sinal matemático que eles não podem confundir?

Dozsa sorriu, apesar do cansaço que se lia nas suas feições, e res­pondeu:

Você tem andado muito ocupada para ouvir o que se passa, não, minha amiga? Bom, quer saber? O problema fundamental é conhecer­mos o verdadeiro tamanho daquele mundo. E, sim, o fundo natural na­quelas frequências, o nível de ruído. Sem a holotética, nunca podíamos ter filtrado a fracção que transportava aquelas informações. Trata-se de mero subproduto de emissões. Os habitantes, quaisquer que sejam, não têm motivo nenhum para estarem à escuta de mensagens do exte­rior, estou certo disso. Devemos servir-nos de uma emissão bem forte, para chegarmos a uma intensidade que eles não possam deixar de apa­nhar e de identificar. Mas, nesse caso, atingimos apenas uma área muito circunscrita.

Fez um gesto para aquele globo fulvo.

No seu todo, é enorme. E as fontes de emissão não são fixas. Parecem estar continuamente a mudar de um lado para o outro.

— Muito gostava de saber como se faz isso — observou Brodersen. — Ou como é possível a eletrônica ali.

Em todo o caso, tenho andado a fazer uma tentativa... — prosseguiu Dozsa. — Tentativa com resultados duvidosos, dirão vocês, não é? Embora sobretudo para passar o tempo, enquanto outros recolhiam novos elementos planetológicos. A probabilidade de atingir­mos um ouvinte que esteja a sintonizar precisamente nessa banda é...

Dozsa soltou por um momento o apoio em que segurava a mão, pa­ra dar mais ênfase às palavras:

— ... quase a mesma probabilidade de descobrirmos o caminho em torno da máquina T que nos leve de novo ao Sistema Solar.

— Além disso — assinalou Rueda desnecessariamente —, estamos limitados pelo tempo. Não será o exercício físico que nos manterá a saúde indefinidamente, na ausência de gravidade. Precisamos de ter peso, e quanto antes. A nossa massa de reacção é também limitada e, se ficarmos em rotação, a sua perda é irreversível. Giraremos em órbita para todo o sempre.

Por conseguinte, ou saímos daqui e metemos por uma passagem ao acaso, ou fazemos um esforço para comunicar com os habitantes deste planeta — resumiu Brodersen. — Eu voto por explorarmos o lu­gar onde estamos, e só devemos desistir quando chegarmos à conclusão de que nada de útil nos pode advir daí.

Brodersen podia dar ordens táticas para ser obedecido imediata­mente, mas, numa solidão como aquela, um comandante que não ou­visse os desejos estratégicos dos seus companheiros não permaneceria por muito tempo no seu posto.

Há aqui seres que pensam — continuou Brodersen. — E uma existência tecnologicamente avançada. Talvez uma forma de vida que se possa comparar à dos Outros, pois eles não puseram neste caso a má­quina T numa posição Lagrange, mas numa órbita de satélite directa­mente diante de Deus e de todos. — Fez uma pausa e concluiu: — E se os que habitam aqui fossem mesmo os Outros?

Fez-se silêncio, até que Caitlín suspirou:

Maravilhas sobre maravilhas, meu querido, se assim fosse!

Nos seus olhos refletia-se a luz dourada do planeta.

Mas as condições ali? Quais serão elas? — protestou Joelle.

A Williwaw tem possibilidade de as enfrentar — respondeu Brodersen. — Fizeram-se ensaios com ela em Zeus, levando robots, é claro, por causa da radiação, mas a verdade é que a nave pode suportar tudo quanto a atinja.

O principal satélite de Febo era, na realidade, maior do que Júpi­ter, excedendo-o na massa de algumas Terras ou Deméteres.

Creio que uma tripulação pode ficar algumas horas numa fendi Claro, será um risco, mas já vi pior e hei de encontrar outros riscos semelhantes pela frente — rematou Brodersen.

Foram escassas as objeções.

Assente isto, Brodersen passou ao ponto seguinte:

Quem vai comigo?

Caitlín levantou a cabeça, mas foi Rueda quem barafustou:

Consigo? Mas que está você a dizer?

Uma vez que será arriscado, terá de ir o mínimo de gente possível — atalhou Brodersen. — Piloto, co-piloto a fazer ao mesmo tempo de oficial de comunicações e... Como vão ficar os dois muito ocupados, parece-me conveniente um terceiro elemento, para permanecer de vigilância e para o mais que for preciso.

Eu! — gritaram praticamente ao mesmo tempo Leino e Frieda,

Weisenberg pigarreou e disse mais alto do que desejava:

Esperem, esperem todos. Vamos ser razoáveis. E é isso o que você não está a ser, comandante, se pretende ir também.

Como? — rosnou Brodersen. — Tenho preparação para co-piloto, pelo menos. Pensa porventura que eu ia mandar homens para o perigo deixando-me ficar aqui tranquilamente à espera?

Dan, o que você está a dizer é um grandessíssimo disparate.

Na boca de Weisenberg, a expressão assumia, sobretudo um efeito de choque. E Weisenberg explicou o seu pensamento:

O comandante não faz coisas dessas. Não tem direito a fazê-las.

É verdade — reforçou Rueda. — Você é demasiado importante para a nossa sobrevivência.

Um momento, se fazem favor! — pediu Brodersen.

Não, você vai deixar-se dessa tolice — redarguiu Weisenberg. — Claro, eu sei, se lhe acontecesse alguma coisa, elegeríamos novo che­fe e continuaríamos. Mas não continuaríamos tão bem, não é verdade? Você não é nenhum super-homem, Dan. Mas tem talento para coorde­nar os esforços das pessoas, não há dúvida. Além disso, reúne em si grande porção de conhecimentos sobre as suas responsabilidades, aqueles conhecimentos que não se encontram escritos em parte nenhuma.

Estas palavras foram apoiadas por um murmúrio de aprovação. Weisenberg virou a sua cara de Ramsés em direcção àquele murmúrio e considerou:

Conseguimos ser razoáveis, conservar o sangue-frio a este respeito — disse ele com vivacidade. — Aqueles que forem devem ser competentes para isso, mas, ao mesmo tempo, devem ser gente que, se nos faltasse, não nos deixasse ficar numa situação sem saída. Além de Dan, temos três elementos que podem pilotar a nave a mandar, e ape­nas precisamos de dois. Stef, Carlos e Frieda, não é isso? Quais os dois a escolher?

A mão de Weisenberg cortou-lhes a palavra:

Calem-se. Pensem bem. Carlos podia facilmente substituir Stef como imediato. Mas também o podia você, Frieda, com um pouco de esforço, e é a única atiradora que trazemos. Uma verdadeira especiali­dade, a sua. Não quero dizer com isto que vamos travar batalha por es­tas paragens. Com toda a probabilidade não vamos, a não ser contra as forças da natureza. Mas isso podia-nos obrigar a lançar um raio ou a colocar um explosivo justamente no ponto que desejássemos. Não é as­sim? Se é! Pois bem, Stef e Carlos pilotam. Podem decidir entre ambos quem fica à cabeça.

Passeou o olhar pelos circunstantes e continuou:

Quem será o terceiro? Por certo nenhum dos nossos holotetas. Nem Martti ou eu... Cale-se, já lhe disse Martti! Sou eu o técnico-chefe, e ele é meu assistente e apoio. Sem adequada manutenção e sem reparações em caso de necessidade, esta nave não pode funcionar. Quem resta ainda? Su e Caitlín. Su tem muito melhor preparação técni­ca. Mas a gravidade naquele planeta é de cerca de duas vezes e meia a normal na Terra. Você não tem condições físicas para a suportar, Su.

Weisenberg esticou por um momento o lábio inferior, acentuando:

— Tenaz tem você a reputação de ser. Muitíssimo tenaz. Mas pouco robusta de músculos e também sem reflexos muito rápidos. Caitlín...

— Espere um momento — rugiu Brodersen.

Não! — vociferou Leino.

— Quer dizer que sou eu então a indicada? — acudiu de pronto Caitlín. Largou o apoio, lançou-se para a frente, dirigiu-se a Weisen­berg e passou os braços em volta dele. O impacte deixou-o ficar em sus­penso e eles deslizaram juntos, girando, enquanto Caitlín lhe dava beijo sobre beijo e o espanto crescia à volta deles.

 

Guiada pelos seus holotetas, a Chinook descaiu facilmente para uma órbita síncrona que a mantinha acima da região que a sua outra nave iria explorar. Isso a colocou abaixo das cinturas de radiação. Na verdade, o campo repelia a maior parte do fluxo de partículas que a nave encontrava no espaço livre.

O tapete rolante e os guindastes puxaram para fora a nave mais pe­quena, a Williwaw, e esta nave auxiliar ficou pronta a largar.

— O-o-oh! — sussurrava Caitlín, como numa prece. Ela tinha es­tado a acompanhar a manobra nos écrans com certa apreensão e via-se agora em presença de um indescritível esplendor.

Os sistemas ópticos na cabina de comando abriam-se sobre todo um hemisfério e mais para além sobre largas zonas do céu. O planeta enchia quase metade. Quando Caitlín olhou em direcção a ele, já não se distinguia nada mais. Âmbar e ouro, a luz que inundava o interior sobrepunha-se ao brilho de todas as estrelas, que deixavam de se ver. Para a direita, a imensa distância, faixas vermelhas em volta dos contornos daquele mundo iam-se tornando em púrpura, para depois tomarem a negrura cósmica. O Sol mantinha-se lá ao fundo, como uma brasa no escuro. Para a esquerda estendia-se a sombra da noite, som­bra que depois se adensava em treva mais espessa, cortada por clarões difusos, por relâmpagos ao longe, e por recortes laranja, que eram altas nuvens a reflectir o fulgor da aurora. Pelo meio estendia-se a face alu­miada pelo dia, zonas reluzentes, bandas de tonalidades mais ricas, num milhar de sombras a moverem-se, elas próprias a mudarem de for­ma de momento a momento, a deslizarem, a ondularem, criando turbi­lhões, marés, rios, numa dança constante, majestosa e álacre.

A nave lançou como que um murmúrio e palpitou. O jato de vapor a condensar-se traçou à retaguarda uma esteira de cor viva, es­treita à vista, a dissipar-se com a mesma rapidez com que se formava, mas que não tardou depois a ocultar o globo da Chinook. O peso man­tinha os tripulantes seguros nos seus assentos. Embora a menos de um gê, a aceleração era considerável, a fim de os exploradores chegarem logo depois do amanhecer local. A troca de informações de Rueda com a nave principal era uma árida obrigação que soava a quimérica.

Rueda acabou com ela com alívio. Até ali tudo corria bem. Por um momento deixou-se ficar tranquilo, sentado como os seus companhei­ros. A radiação desenhava uma auréola em torno da sua calvície. Por fim, exclamou em voz baixa:

Virgem Santíssima, um homem podia morrer candidamente fe­liz, depois disto!

Dozsa esboçou um sorriso, não muito satisfeito. O seu acento adensou-se:

Se você quiser morrer! Quanto a mim, tenho mulher e filhos em casa. Esta é uma experiência pela qual eu gostava de já haver passado.

Rueda olhou-o, surpreendido, e comentou:

E apesar disso você veio!

E que podia eu fazer? Concordei em que devíamos vir investi­gar, e estou em melhores condições para isso.

Dozsa seguia a pilotar porque, além da prática que tinha, era um entusiasta das artes marciais, treinado em resistência e rapidez.

Não interprete mal as minhas palavras, Carlos. Eu não estou com medo. De facto, aceito com satisfação o perigo. Mas hei de apreciá-lo muito mais quando ele já pertencer ao passado. — Dozsa ben­zeu-se. — Ou no outro mundo, se Deus não quiser que não sejamos bem sucedidos. A nossa morte deve ser limpa e rápida.

Tem razão! — interveio Caitlín, numa voz que mal se ouvia. Uma estrela cadente num céu como este... Claro, e há muitos destinos mais duros, não tenhamos dúvida.

— Sentimo-nos perto de Deus nesta missão, não sentimos? perguntou Rueda, quase tão baixo como ela. Mas não é o Pai mise­ricordioso de que me falavam as irmãzinhas na escola, nem o Deus de justiça que o prior da minha freguesia invocava no púlpito... B É tudo isso e mais ainda volveu Dozsa. Caitlín, até você, que é pagã, deve ter ouvido também a voz de Deus na sua infância.

Caitlín abanou a cabeça. O cabelo às tranças formava um claro-escuro a emoldurar-lhe as feições.

Não, nunca ouvi. Talvez na Irlanda fossem demasiado católicos para mim, com parte deles a procurarem reconstituir-se depois das Per­turbações e conservar a fé depois dos Outros... E eu era rebelde nata. Já não conheço a mesma rebeldia hoje em mim, é verdade.

Dozsa, sorrindo, conciliou:

Bem, não vamos discutir. Não temos energias a perder. Se não se importa, Caitlín, vou incluí-la nas minhas orações. Muito provavel­mente terei de pensar em algumas.

Rueda olhou para trás dele, para onde Caitlín estava sentada, e indagou:

Em que acredita você, se é que posso perguntar?

Acredito na vida respondeu Caitlín.

Quedaram-se depois em silêncio, a observar o planeta cada vez mais próximo, com a noite a retirar-se e a claridade do alvorecer a es­palhar-se. Não tardou a surgir uma nova série de pedidos de leitura e confirmações de pormenores relacionados com o plano de voo. Depois de responder, Rueda acrescentou:

Era desnecessário isto, meus amigos.

A voz de Brodersen substituiu a de Joelle. Era quase irreconhecível:

Culpa minha. Eu insisti. Estão realmente bem?

Como nunca, meu querido fez Caitlín questão de responder. É pena somente não te termos aqui conosco. E esta cabina é um tanto apertada para o desporto, de qualquer modo. Faz a nossa cama antes de eu voltar. Precisa disso, como deves estar lem­brado...

Pegeen, por favor...

Desculpa! E avançou para o altifalante como se avançasse para Brodersen. Estás com receio por minha causa. Mas não estaria eu com receio pelo que te pudesse acontecer, se te encontrasses numa situação destas? Não sejas egoísta. Tens de sentir-te orgulhoso por eu participar numa grande aventura como aquela que vivemos.

Procuro... Procuro sentir-me...

Não, mais do que uma aventura. Magia como nunca sonharam em Tirna n’Óg. Lembras-te? Eu andava a pensar que precisamos de um nome para o nosso planeta, se chegarmos à fala com o seu povo. Vai-nos ser difícil pronunciar o deles, qualquer que seja.

Brodersen, hesitante, inquiriu:

E daí?

Pensei em Danu, a deusa-mãe do Tuata de Danaan, no que de­pois se tornou a grande Side.

Combinado, com os diabos! — concordou ele.

A Williwaw entrou na atmosfera perceptível mais abruptamente do que entraria por cima de Deméter, pois o ar era agora fortemente com­primido pela gravidade. O trajeto da nave e os seus vetores haviam sido calculados tendo isso em mente. A Williwaw estava a ser guiada a todo o instante por Joelle, holoteticamente ligada a instrumentos que haviam sido programados por Fidélio. Se tal não acontecesse, a missão seria suicida.

Tal como as coisas se apresentavam, na primeira hora Dozsa can­sou-se para além dos limites que sabia serem os seus. Rueda estava quase tão ocupado, assegurando as comunicações, e ajudando com fre­quência a dirigir a nave. Não tardou que a cabina cheirasse a suor. Estava cheia de monstruosos rugidos, guinchos, roncos e assobios. O próprio peso dos corpos oprimia os humanos: duas vezes e meia aquilo que a sua espécie estava preparada para suportar. Cada dedo se tornava mais pesado, um braço era um fardo, os pescoços empertigavam-se para manterem as cabeças direitas, os intestinos descaíam, os corações aceleravam-se, as costelas doíam com a respiração, as bocas ficavam ressequidas e as gargantas contraídas.

Aquilo não teria acontecido numa instalação de ensaio ou a bordo de uma nave de observação à velocidade normal, pois uma pessoa po­dia-se então sentar ou estender à vontade. Danu enfurecia-se. O im­pacte estratosférico fez estremecer a nave, balouçar-se e empinar-se de­pois como um cavalo selvagem. Mais para baixo, a pouca velocidade relativa, encontrou ventos que a fizeram revolutear. Se a nave não fosse dominada com mestria, ter-se-iam despedaçado as asas. Concebida para mundos semelhantes ao da Terra, era fraca do ponto de vista aero­dinâmico naquele mundo que agora enfrentava. E não bastava a perí­cia, quando todo aquele céu era estranho. Mais de uma vez a própria Joelle se sentiu surpreendida quando surgia qualquer violência a respei­to da qual não tinha elementos para uma previsão exata. Por muito pronta que fosse a sua reacção, essa reação tinha de ser transmitida por palavras, o que levava segundos. A bordo de uma nave-mãe betana, podia ela ter pilotado directamente, podia virtualmente agir como se fosse a própria nave. Dozsa e Rueda, no entanto, tinham de fazer face à situação até onde as circunstâncias o permitissem, antes de rece­berem indicações que os ajudassem.

Por duas vezes a Williwaw atravessou tempestades. As trevas aden- savam-se sobre ela até os relâmpagos tornarem em sarças ardentes os farrapos de nuvens que boiavam no céu. Seguiam-se os trovões. Era como se aquela gente estivesse dentro de um canhão. O vento uivava e lançava-se em furiosas rajadas contra a nave. Cada descida, naquela turbulência acabava na fúria de um choque que parecia abalar os ossos. O movimento de vaivém, a trepidação e as guinadas faziam oscilar os corpos, bem amarrados nos seus cintos. Uma vez era a saraiva grossa a metralhar a blindagem, outra uma chuva diluviana a envolvê-la.

A todo o momento Caitlín vigiava. Era tudo quanto podia fazer, o que a levava de vez em quando a bater no ombro dos seus companhei­ros e a apontar para qualquer coisa que lhe parecia sinistra, a distância: uma nuvem a crescer como uma montanha, um gigantesco remoinho, faíscas a serpentear, ou aspectos estranhos para os quais os humanos não tinham palavras. Fora isso, procurava não incomodar os homens. Observava, concentrava toda a sua atenção no que estava a fazer, e ria na ânsia de ser feliz.

Assim ia a Williwaw vencendo as dificuldades. Uma vez ou outra parecia duvidoso que se saísse bem, apesar de os cálculos dos computa­dores lhe darem boas probabilidades, mas lá conseguia avançar. Ao atingir mais ou menos a altitude donde vinham as emissões, deparou com uma grande paz. O ar era aí espesso e tépido, apenas com uma tênue brisa. Provinham de baixo correntes térmicas que ajudavam a manter o equilíbrio da nave. O auto-piloto podia agora assegurar a mar­cha. A nave ficou a vogar num vasto círculo e começou ela própria a emitir. Lançou sinais nos vários comprimentos de onda danuanos. Uma mensagem levava para cima a voz lenta de Rueda: «Estamos bem. Repito, estamos bem. Dêem-nos alguns minutos para descansar e de­pois transmitiremos mais informações.»

Como Dozsa, distendeu-se Rueda, deixando que o queixo descaísse sobre o tórax. Caitlín inclinou-se para tocar em ambos.

— Estão cansados!...

Deteve-se, pois apercebeu-se do que se encontrava agora em torno dela.

Sem uma ligeira ampliação, nada teria distinguido. Feita a amplia­ção, viu sem possibilidade de engano. O espanto foi tamanho que pre­cisou de alguns momentos antes de o seu cérebro poder realmente regis­trar aquilo. Mas logo a seguir surgiu uma onda de beleza.

Por cima, o céu era de anil no horizonte, esmaecendo para violeta no zênite. Erravam por ali nuvens dispersas, de recortes caprichosos, com as tonalidades deslumbrantes do crepúsculo à beira-mar. Mas o sol pairava alto, num arco-íris. Por baixo, estendia-se uma cortina de nuvens como a formar um oceano como os homens jamais haviam cru­zado. Alongava-se a perder de vista. Tinha picos, canhões, planícies fumegantes, imensas cataratas a descaírem lentamente das alturas, infi­nitamente complicadas e nunca iguais umas às outras.

O céu dourado estava entremeado de vermelhos, com tiras azuis e verdes e castanhas, sombreadas aqui e ali, onde o infinito parecia mergulhar em mistério.

Um bando desaparecia ao longe. Animais alados? Ou de barba­tanas? Haviam passado demasiado rápido para se distinguir. Mas cin­tilavam ainda.

De fora, da brisa calmante a soprar, chegou como que um cântico embalador.

Caitlín reclinou a cadeira e deixou que as dores começassem a dissipar-se. O peso sobre ela era agora apenas como uma forte mão, mas impregnada de meiguice.

Passado algum tempo, os humanos recuperaram energias para falar com a nave-mãe, fazer leituras, filmar aspectos e conversar um- pouco. A seguir chegaram alguns danuanos.

Foi Caitlín a primeira a vê-los. Os seus companheiros estavam mais uma vez ocupados, não tão intensamente como na descida, mas, sobretudo bastante inquietos. A comunicação com o espaço havia sido cortada. O microfone não produzia senão estalidos, zumbidos, caos, por muito que Rueda experimentasse. Em qualquer lado, por cima de­les, naquele céu aparentemente sereno, uma descarga elétrica tinha de qualquer modo tornado a camada exterior da atmosfera impenetrável a todas as frequências de que ele dispunha. Isto não era uma possibili­dade, ou sequer uma probabilidade que os holotetas pudessem prever. Eles não eram deuses. Para os seus cálculos dispunham de menos infor­mações do que uma expedição betana teria reunido, e, além disso, cada um dos mundos existentes no universo é único em si. Dozsa receava que aquela perturbação trouxesse consigo uma alteração igualmente súbita no ar. Denso como este era, com a pressão a aproximar-se do limite que o casco podia suportar, não correriam o risco de serem sub­metidos a poderosas correntes de gases cujos efeitos fossem nocivos, mesmo fatais? Sem demasiadas esperanças, Dozsa procurou que os instrumentos e o comportamento da nave lhe fornecessem algumas indicações.

Assim, seria fácil que lhes passassem despercebidos aqueles seres que acabavam de chegar e de partir, se Caitlin não estivesse atenta. Ela gritou —- cantou — e bateu-lhes nas costas, enquanto apontava, regu­lava os écrans para eles ampliarem as imagens e apontava de novo. Rueda assobiou, exclamando:

Maravilhoso! — disse ele. — Avance para eles, Stefan.

Dozsa franziu as sobrancelhas.

Não estou seguro — observou ele. — Nas presentes condições, quebrarmos a nossa maneira habitual de proceder...

Vamos, meu caro! — gritou Caitlín. — Aposto que são eles os que viemos aqui procurar.

Como pode você saber? — perguntou o imediato.

Quer porventura dizer que não?

Bem... Bem... Vamos. Não há dúvida de que, se não investigar­mos, teremos passado por todas estas dificuldades para nada.

Caitlín soltou o cabelo colado pelo suor e concordou:

Você está agora a falar da mesma maneira que Dan falaria.

Entre a flutuação e as oscilações, a capacidade de frenagem da

Wiliwaw era pequena. Forçando-a a descer, Dozsa abrandou-lhe a marcha tanto quanto lhe parecia possível, ou talvez um pouco mais. O campo de visão diante dela estendia-se bastante claro e deslumbrante.

Pela conta de Caitlín, tinham surgido das nuvens lá por baixo deza­nove formas, duas a duas, três a três, para se juntarem à frente da nave, um quilómetro abaixo, mas precisamente no caminho que ela devia se­guir. Eram do tamanho de cachalotes e tinham a mesma configuração básica em forma de torpedo, as mesmas cabeças truncadas onde as bocas (?) estavam dispostas na parte dianteira, circulares, fecháveis por esfincteres e caudas na parte traseira, embora estas fossem quadriformes (tanto verticais como horizontais) e parecessem ser superfícies flexíveis de controlo mais do que meios de propulsão. Uma espécie de pequenas gavinhas e longas antenas cercavam-lhes o focinho. Estavam ligadas sem dúvida a órgãos dos sentidos, se não fossem elas próprias esses órgãos. Do meio do corpo ressaltava-lhes um par de intrincadas estruturas musculares, das quais se destacavam umas asas brandas e es­treitas, que excediam o corpo em comprimento. À frente encontravam-se dois braços (ou tentáculos, pois pareciam não terem ossos), termi­nando naquilo que os humanos podiam chamar mãos.

A coloração era delicada: azul-puro nas costás, um sombreado por baixo, ao passo que as asas eram acinzentadas, como jóias facetadas, com cada movimento a lançar uma profusão de tonalidades cromáti­cas. O esplendor atingiu o auge quando as criaturas começaram a dan­çar para a nave. Desciam rapidamente, elevavam-se depois no ar, pla­navam, desenhavam curvas, deslizavam a poucos centímetros umas das outras, lançavam-se através de quilômetros, numa grande roda, a entrecruzarem-se por distâncias que deslumbravam a imaginação, a criar mil delícias, tal como só a arte ou o amor podem fazer.

Eles têm música para isto pressentiu Caitlín. Carlos, não lhes seria possível captar aquela música?

Rueda arrancou-se ao seu êxtase e pôs-se a manobrar o receptor de sons. Já conseguira eliminar o ruído do movimento da nave, reduzira o tênue sibilar do vento, e apanhou por fim a canção. De baixos tão pro­fundos como os abismos do mar, a sopranos majestosos como os picos cobertos de neve, e abaixo e acima dos tons que os humanos podem ou­vir, a música encheu a cabina. Eram notas que não se encontravam em escala nenhuma dos filhos da Terra. Se produziram nos homens qual­quer impressão bem nítida, foi de um poder desmedido, mas Caitlín, essa, exclamou enquanto as lágrimas lhe brotavam dos olhos:

Oh, que alegria a deles! Alegria! Não ouvem? Reparem agora como se divertem.

Melhor será que eu me concentre para nos mantermos a altitude observou Dozsa. Apesar de o seu olhar se perder na contemplação da grandiosa e suave harmonia de movimentos à sua volta,? fez descrever à Williwaw uma curva apertada.

Eles estão a dar-nos as boas-vindas — disse Caitlín. — Se são na verdade os Outros, eu já sabia desde sempre que deviam ser uma raça feliz.

Eh! Espere, minha amiga — preveniu Rueda. — É um soberbo espectáculo, mas estamos a tirar conclusões apressadas. Pode tratar-se simplesmente de animais cheios de curiosidade e que gostam de brincar, como os delfins a fazer cabriolas à volta de um navio.

Com mãos? Eles servem-se das mãos melhor do que as dançari­nas havaianas.

Onde estão as roupas, os ornamentos, as ferramentas, sinais de artefactos?

Não necessitam deles por agora. Calma! Creio que podemos es­tar em vias de começar a perceber aquela música.

Melhor seria que se apressasse — volveu Dozsa. — Não pode­mos continuar com muita segurança esta manobra. Tenho de tomar um raio maior, e não tarda muito. A dificuldade está em que o nosso mí­nimo de sustentação parece exceder o máximo que eles podem atingir.

Como seria de esperar — observou Rueda. — A natureza for­mou-os para... Danu. O homem não concebeu esta nave para isso. Por outro lado, ela é movida a, energia nuclear, enquanto eles se deslocam por processos químicos... Desculpe, Caitlín, você queria silêncio.

Não, continue, se tem uma ideia — disse ela. — Eu apenas que­ria ouvir, e não discutir. Reservo um ouvido para si. Também a ciência é um conjunto de artes.

Rueda sorriu discretamente e acrescentou:

Não sou cientista. Um curioso de domingo, quando muito ... Estamos a gravar esta cena, não estamos?

Claro que sim.

Bom — disse Dozsa com ar reservado. — Vida como esta num mundo como este! Dar-nos-á muito que falar nos anos que hão de vir.

O espectáculo prosseguiu. Os humanos falavam entre as melodias, acompanhado o desenrolar delas, enquanto aqueles seres deslizavam entre uma anã vermelha e um mar de nuvens.

Creio que eles devem ser naves vivas, mais leves do que o ar — aventurou-se Rueda a dizer. — Aqueles corpos gigantes são, sobretudo sacos de gás, dilatados pelo seu próprio calor. As aberturas ajudam-nos a subir ou a descer, as asas captam os ventos, e provavel­mente disporão também de um mecanismo de jacto, utilizando o sis­tema de fole ou... não sei. Mas a atmosfera é suficientemente densa a este nível para tornar isso viável. Eles respiram hidrogênio em vez de oxigênio, naturalmente, mas suspeito de que, fora isso, não sejam assim muito diferentes de nós. Devem também ser formados por pro­teínas em solução de água.

Donde virão? queria Dozsa saber. O que os fez evoluir? Como surgiu aqui a vida pela primeira vez? Onde começa a cadeia alimentar?

Quantos anos e quantos organismos de investigação me dá para responder a essas perguntas, meu amigo? Se quer a minha opinião, eu dir-lhe-ei que o «oceano primordial» está abaixo das nuvens onde o ar se torna realmente denso e os elementos químicos se podem concentrar inicialmente em colóides? Lembre-se: este planeta é como Júpiter ou Zeus ou Épsilon. Irradia mais do que recebe. Isso sig­nifica que existe um desnível térmico para escoar os produtos bioquí­micos, sobretudo quando o sol está fraco. A energia provém mais de baixo do que de cima. Eu diria que a nossa altitude aqui é marginal para a vida, tal como a Antárctida ou o fundo dos mares o são na Terra.

Dozsa, alçando as sobrancelhas para os dançarinos, comentou:

A inteligência a desenvolver-se quando todo o conjunto ecoló­gico flutua? Como pode ser? Sem pedras para fazerem ferramentas, sem fogo...

Rueda apoiou com a cabeça. Depois afirmou:

É por isso que tenho as minhas dúvidas quanto a estes animais, que aliás são um encanto para os olhos.

Caitlín, pondo-se muito direita nas suas correias, contestou:

Ora essa! Onde deixaram vocês os dois a vossa imaginação? Não podem conceber mais do que isso? Crescimentos apropriados, como os das algas marinhas ou das espinhas? Se querem ter uma coisa que res­ponda ao fogo, que me dizem das enzimas que catalisam a redução de compostos orgânicos? E sabemos nós porventura o que fez os macacos evoluírem para homens na Terra, sem contar que estamos a dogmatizar sobre a matéria num planeta que nos é estranho?

Rueda afagou o bigode e ponderou:

É verdade. No entanto, recuso-me a acreditar na possibilidade de se chegar à electrónica sem materiais sólidos, sem minérios. Sim, é de supor que os Outros conheçam soluções com puros campos de for­ça. Mas como se passa daqui para ali? Não num simples salto! A sensi­bilidade dos Danuanos podia desenvolver-se, podia tornar-se tão nobre e artística e intelectual como vos agrade, mas por si própria não tem meios de construir uma civilização científico-tecnológica. O seu riso esbateu-se. E púr si muove. Detectamos transmissores.

Rueda curvou-se. O cansaço debilitava-lhe a voz ao acrescentar:

Não importa! Receio que esta gravidade esteja a entranhar- -se-me no corpo. Já não consigo raciocinar muito bem. Espero ver qualquer coisa mais, em breve.

Dozsa fez sinal que sim com a cabeça. Não tinha motivo para repe­tir o que eles sabiam. A estada ali era fortemente limitada no tempo. Os músculos podiam-se adaptar a maior peso, mas o sistema cardiovas­cular, toda a distribuição de fluido pelo corpo humano não podia. O sangue estava a concentrar-se nas extremidades inferiores. O coração, a bater com mais esforço, tornava-se cada vez menos capaz de irrigar o cérebro. Infiltrações nos tecidos iriam provocar edemas. Por fim, os danos seriam irreversíveis.

Entretanto o casco não era impermeável. Àquela pressão, as molé­culas de hidrogénio estavam a infiltrar-se pelo metal. A mistura daí re­sultante iria por fim tornar-se explosiva.

Bem, nós planejamos ficar até ao próximo pôr do sol suspirou Dozsa. Fomos talvez demasiado optimistas. Devem ser grandes as distâncias, por toda a parte, em Danu. Os seus habi­tantes, se forem inteligentes, devem ser os que nós vimos. Os outros... Os Outros...

Os verdadeiros Outros já teriam chegado, não é isso o que você quer dizer. Stefan? perguntou Caitlín.

De novo ele fez que sim com a cabeça.

E tem razão, receio eu.

Caitlín, olhando de novo para baixo, exclamou:

Mas como são belos, cheios de encantos!

Dozsa repôs a Williwaw na sua anterior altura e no curso que tinha antes. A dança continuava. Os visitantes observavam e registavam tudo aquilo o melhor que podiam.

O sol incandescente passou o apogeu. Chegaram mais danuanos.

Já não restavam dúvidas quanto à sua sapiência. A dança desfez-se, e vieram a seguir os que haviam trazido equipamento. Alguns tinham curiosos objectos sobre as suas titânicas pessoas, outros guiavam veí­culos de vários feitios (plataformas? aves? nàutilos com cavidades sepa­radas?), dos quais se projectavam uns apêndices (telescópios? antenas? anéis interligados?). Não tentaram aproximar-se da nave espacial, mas vieram postar-se mesmo por baixo dela e ajustaram os seus aparelhos.

O receptor de rádio captou sons cadenciados, no mesmo compri­mento de onda das toadas anteriores, mas agora em linguagem corrente.

Dêem-me cinco minutos pediu Rueda, e pôs-se a manejar um espectrómetro de reflexão que havia sido previamente regulado para ele a bordo da Chinook. Dozsa manteve a nave a velocidade constante, embora se estivesse a levantar um vento da tarde à volta da sua fusela­gem e a penetrar através dela. Dores, cansaço, ausência de gravidade, tudo isso foi esquecido.

Como corresponder? perguntou Caitlín, em alvoroço. Sim, pelo menos uma indicação, se não tiverem melhor.

Venha você ao microfone disse Dozsa. Qual a sua ideia?

Um sinal expressivo, para lhes mostrarmos que desejamos co­municar. Porque haveremos de começar pela Matemática? Eles sabem perfeitamente que nós conhecemos o valor de pi. Mas se podemos reco­nhecer a sua música por aquilo que ela é e apreciá-la com os diabos! também eles podem apreciar a nossa. Caitlín curvou-se para a correia ao lado da sua cadeira. — Ainda bem que eu trouxe o meu sonador!

Inseriu um programa e carregou na última tecla. Ouviu-se Eine Kleine Nachtmusik.

Eles ofereceram-nos alegria — explicou ela. — Ofereçamos-lhes também nós alegria.

Um écran com forte ampliação mostrou os danuanos a reagirem. Pelo menos juntaram-se... Para conferenciar?

Ah! — exclamou Rueda. — Era o que eu esperava.

Bateu ao de leve no espectrômetro e explicou:

Aqueles veículos, assim como a maior parte daqueles objectos, são metálicos. Nenhuma liga que eu possa identificar, mas inegavel­mente metais. Diga-me lá onde os foram eles arrancar num planeta com uma superfície de hidrogénio líquido, quente.

Mas não foi aqui — declarou Dozsa. — Vieram do exterior.

Vistos contra o céu de púrpura e um castelo de nuvens, dois veí­culos danuanos ligaram-se um ao outro. Um dos pilotos retirou com asas de nácar, o outro ficou. De súbito, ele (?!) e os aparelhos ficaram escondidos atrás de grandes folhas e cortinas de luz. Lançavam de si re­flexos multicores, numa aurora criada. Essa aurora ondeou durante um pouco, como se incerta. A seguir...

Jesus, Maria, José! — exclamou Caitlín. — Eles estão a responder a Mozart.

Caitlín tinha de mostrar aos homens como aquilo era verdade, como as diferentes tonalidade correspondiam às notas (de maneira nada simples, mas ainda mais intensamente, como se o artista invisível reforçasse a sua intenção para ser compreendido por um habitante da Terra morto desde há séculos), até que o espectro e a escala se fundiram numa exaltação única. A compreensão que Caitlín tinha do facto não era estritamente científica, demonstrável por qualquer processo analí­tico. Era um género de intuição de um Newton ou de um Einstein.

Posteriores emissões e transformações o confirmaram. As tenta­tivas de comunicação por televisão falharam. Naturalmente, a electró­nica deles era muito diferente. Apenas a música e as radiações podiam dizer de uns para os outros: «Olá! Somos amigos!»

O curto dia aproximava-se do fim. Caitlín permanecia em êxtase, enquanto os seus companheiros começavam a ficar preocupados.

Por fim, foi Dozsa a falar:

Temos de ir embora. Não nos resta outra alternativa.

Mas haveremos de voltar — dizia por sua vez Caitlín, como num sonho.

Não, penso bem que não — observou-lhe Rueda com pesar. — Não foi o que combinamos? A morte não tardará se nos demorar­mos aqui em baixo ou em órbita. Pode ser que estejamos enganados a este respeito, mas que podemos fazer senão prosseguir na nossa investi­gação?... E não foi isso o que combinamos?

Caitlín inclinou a cabeça. O crepúsculo descia. Um crepúsculo dou­rado. Os danuanos aguardavam lá em baixo nova mensagem.

Rueda voltou-se no seu assento para apertar a mâo que Caitlín lhe estendia.

Estes não são os Outros — lembrou-lhe ele. Não podem ser. Suponho que sejam uma... uma raça favorecida. Uma raça da qual os Outros se aproximaram abertamente, talvez porque são mais felizes, mais amáveis, de espírito mais criador do que a maior parte dos que ha­bitam o universo. Neste caso, os Outros devem-lhes ter dado coisas me­tálicas, para eles afirmarem o melhor das suas qualidades artistas natos que são, e quem sabe o quê mais? Mas cientistas, não. Engenheiros, não. Não nos podem ajudar. E, quanto a nós, não podemos sobre­viver durante muito tempo por estas paragens, a não ser que ponhamos a Chinook a girar sobre si mesma, sem nunca mais poder sair daqui. E com que frequência visitarão os Outros estes seus filhos adoptivos? Talvez apareçam a semana que vem, ou talvez aqui não venham du­rante um milhar de anos. Como podemos nós saber?

Não há dúvida! E Caitlín alçou os ombros para suportar o peso que sentia sobre ela. O melhor é andarmos para a frente.

Soltou uma curta risada e acrescentou:

Já vimos muito do que contém o universo. Devagar para o outro mundo!

Dozsa mordeu o lábio.

Se possível! acrescentou ele. Continuamos ainda sem contacto com a Chinook. Temos de abrir sozinhos o nosso caminho, sem ninguém a guiar-nos, até atingirmos o espaço livre.

Caitlín lançou para longe de si toda a tristeza e incitou:

Vamos, amigo, vamos! Você há de conseguir. Haveremos ainda de ver maravilhas mais sublimes do que estas.

 

Eu era chimpanzé, nascido onde a floresta se encontra com a sa­vana. As minhas primeiras recordações são de minha mãe me estreitar contra si. O calor e o cheiro do seu corpo misturavam-se com as pene­trantes fragrâncias do seu cabelo e com os mil odores do húmus e da ve­getação a despontar por toda a parte em torno de nós. As folhas res­plandeciam verdes e cor de mel, com os raios de sol a declinarem entre elas para colorirem o solo sobre o qual nos sentávamos. Os meus lábios procuravam ao longo dos pêlos o mamilo que me deleitava e me recon­fortava o ventre.

Mais tarde corri livre e barulhenta no bando, contendo-me apenas quando um ancião arreganhava os dentes. Então curvávamo-nos respeitosamente. O Ancião, esse, era como o céu por cima de todos nós, o céu que mandava a chuva, que nos lançava a luz do Sol e que por vezes rugia e faiscava até sentirmos gritos de pavor. Porque Ele nos conduzia a árvores seguras e a frutos deliciosos. Conduzia-nos lá fazendo care­tas, uivando em danças de ameaças que levavam o leopardo a esca­pulir-se.

Aprendi onde encontrar bananas e ninhos de pássaros, insectos e larvas. Mais tarde aprendi como umedecer um pau e metê-lo pelos formigueiros dentro, formigueiros que se abriam pela terra sob o calor forte da savana. Comecei a participar na atalaia, quando bebíamos no rio. Crescendo mais ainda, era a única fêmea que tomava parte nas nos­sas caçadas ocasionais, quando perseguíamos um pequeno animal, o esquartejávamos, nos deleitávamos com a sua carne e com o seu sangue palpitante e com os seus ossos que nós triturávamos. Uma loucura mais pura estava ainda para surgir, balouçando, saltando de ramo em ramo, sentindo-me veloz no ar, abraçando-me a um tronco e largando-o como a um amante.

O primeiro que montou em mim foi Ele. Submeteu-me com a força de um pitão, grunhiu e penetrou em mim. O cheiro do seu corpo exci­tou-me. Mais tarde, porém, quando o cio me atormentava, eu preferia outro de entre os machos, o mais gentil deles. Ele cuidaria de mim, acariciar-me-ia longamente, sem pressas, com ternura, ou sentar-nos-ía-mos os dois de mãos dadas no ramo de uma árvore, a olhar para a pla­nície inundada de luar.

Tudo nos maravilhava. Maravilhava-nos o sol, o tempo, uma bor­boleta, os elefantes, o rugir do leão, o aroma das flores, as criaturas que chegavam, vestidas de cores estranhas, e avançavam sobre duas longas pernas. Maravilhava-nos a estranha cintilação das fogueiras que essas criaturas acendiam quando descia a noite... Nós espreitávamos, tateávamos, cheirávamos, mordiscávamos, escutávamos, guincháva­mos de alegria ou rangíamos os dentes de raiva ou maravilhavamo-nos em silêncio.

A maior de todas as maravilhas era quando um peso, docemente a crescer, saía de mim na dor e deixava a meu lado um filho de braços es­tendidos para os meus. Ele iria crescer e deixar-me por fim, ou ia cres­cer ainda mais e eu o levaria comigo, ferido, confundido, até se tornar num estranho. Mas vinham sempre depois novos filhos, novo amor.

Uma vez o macho de que eu mais gostava quis-me quando Ele tam­bém me quis, e desafiou-o. Mas não tardou a ser batido e, rojando-se por terra, deu-se por vencido. Foi um diferente macho que por fim O venceu e se tornou Ele. Certa manhã, mais tarde, quando acordamos, encontramos estendido na orla de uma clareira o corpo daquele que por tanto tempo nos havia dominado. Uma leve brisa acariciava-lhe a pele cinzenta. As formigas afadigavam-se já em torno dele. Não tardaram os abutres. Fomo-nos embora, pois o medo havia-se insinuado em nós.

Depois de um jacaré ter apanhado o meu companheiro dilecto, procurei abrigo em outro bando. Passo a passo, subi até ser a primeira entre as fêmeas. Ordenavamo-nos de maneira menos clara e menos consciente do que os machos, mas sabíamos quem fazia ali a lei e sobre quem. Na verdade, agora na maturidade, eu já não tinha medo deles, a partir de Ele até baixo. Chegavam e partiam, nas suas loucas idas e vindas. Nós suportávamos. E o bando era realmente nosso era meu. Tomei a melhor comida e os melhores lugares de repouso entre as fê­meas, mas com frequência também velava pelos filhos, e não apenas pelos meus, e levava-os para lugar seguro quando surgia o perigo.

A pouco e pouco tornou-se mais raro o cio em mim. Cada vez me­nos apreciava andar de um lado para o outro, e escolhi ficar de vigia a distância do bando, nas trevas ou à chuva, em campo aberto, erguendo à noite os meus olhos para as estrelas, afagada pelo sentimento de que existiam no além mais maravilhas do que nós havíamos pressentido.

Eis que de súbito, da escuridão, surgiu o Arauto. Fui levada para longe e tornei-me Uma, como havia acontecido com a alvorada e com os relâmpagos. A árvore entre cujas pernadas eu saltava era a que sus­tenta os mundos. Eu iria reverter aos meus dias de chimpanzé, são e salva, mas seria sempre perseguida pela alegria que não podia real­mente lembrar. Eu era Mamífero.

 

Minguando da sua meia fase, com o sol vermelho cada vez mais perto do seu crescente iluminado. Danu continuava sublime aos olhos. Do lado oposto, um par de luas avançava entre os esplendores que en­chiam o firmamento.

Martti Leino não podia deixar de observar. Sozinho na sua cabina, flutuava com dificuldade porque as suas mãos estavam apertadas uma à outra, com os nós dos dedos todos brancos, salvo quando batia con­tra o tabique e ressaltava com as pernas a revolutear no vácuo, se é que não se arrastavam desamparados. Em torno da sua cabeça reluziam lá­grimas.

Não, santo Deus, não! balbuciava ele. Por favor. Não sa­beis o que estais a fazer se a deixardes morrer...

Horrorizado, exclamou:

Perdoai, Senhor! Eu estava a delirar. Mas salvai-a. Tendes o poder para isso. Ireis salvá-la, não? Por favor...

Sorveu ar uma vez e outra, até que a cabeça lhe começou a andar à volta, as pernas a formigarem. Mas pôde por fim dizer a meia voz em finlandês:

Martti, meu rapaz, estás a caminhar para uma forma clássica de histeria. Não sabes? Pois acaba com isso. Não é dessa maneira que vais ajudar Caitlín, em nada. Faz uma prece em ordem, se quiseres, mas não tenhas a pretensão de ensinar a Deus o que Ele deve fazer, e cum­pre tu com o teu dever.

Oh! — gemeu ele e contorceu-se.

Estava a recuperar o domínio de si mesmo quando tocaram à porta.

O que é? — perguntou, estupidamente.

Tocaram de novo.

Entre! — resmungou.

Voltaram ainda a tocar. Lembrou-se então que tinha fechado a porta por dentro, para que ninguém o incomodasse, quando começou a tremer. Bom... Desprendendo-se, dirigiu-se para a entrada, calculou mal e foi dar contra uma mesa. Passou ainda por uma série de tenta­tivas desajeitadas antes de conseguir correr o trinco.

Entrou Frieda von Moltke. Esta preparou o seu voo na ombreira, olhou para Leino e fechou a porta atrás de si. Uma vez que ele se limi­tou a ficar de boca aberta, foi Freida que tomou a iniciativa:

Que diabo, homem, você ainda está em pior estado do que eu esperava.

Leino cerrou os maxilares.

Que quer você? — conseguiu ele perguntar.

Frieda pegou-lhe pelos braços. Flutuaram os dois e uma ligeira ro­tação dos seus corpos fez o compartimento dançar ao de leve em torno deles.

Notei que você estava a perder a cabeça — disse ela. — Veio-se embora. Bem, disse eu, talvez uma bebida, um sedativo, ou dormir um pouco. Ele acalma-se quando ninguém o observar. Mas foi demasiado longe.

Leino voltou a cabeça e contestou:

Eles é que foram demasiado longe.

Sim, temos as comunicações interrompidas há várias horas, e devem estar agora a sair do planeta, sem nada para os guiar. Se ainda forem vivos. Para nós seria uma tragédia perdermos aquela nave.

Deus meu! Pensa então que é isso o que tem importância?

Frieda apertou-o com mais força.

Martti, meu querido, ouça. A minha família é uma família de guerreiros, desde há tantos séculos quantos rezam as crónicas. Eles sa­biam o que era perder um amigo. Ich hat' einen Kameraden ...ja. Uma pessoa lamenta-se. Mas não deixa de continuar a sua vida.

Leino cerrou os punhos.

Pensa você... simplesmente um amigo...

Frieda meneou a cabeça. Dominou o voo enquanto passavam por uma cadeira. Prendeu um tornozelo nessa cadeira para se deter. Segu­rou Leino com a mão esquerda e serviu-se da direita para lhe apoiar o queixo.

Assim você não é útil a ninguém, sabe? disse ela em voz mansa.

Sim? E os outros? Toda a tripulação está agora à espera, só à espera. Que podemos nós fazer mais?

Podemos ganhar ânimo, para estarmos preparados para amanhã disse ela. Podemo-nos reconfortar uns aos outros. Foi para isso que vim para junto de si. Chore, se quiser. Isso não lhe dará ares de criança. Vi meu pai chorar mais de uma vez, quando íamos ao cemitério levar flores às campas dos seus velhos camaradas de guerrilha.

Frieda, Frieda! E Leino agarrava-se a ela, enterrava a cara no seu seio e tremia. Ela afagava-o.

- Atenção! chamou o intercomunicador. Atenção, todos! Escutem!

Ambas as cabeças se voltaram para ali.

Escutem!

A voz de Brodersen chegava-lhes fria, aos sacões, como se ele esti­vesse a soluçar.

Mensagem da Williwaw. Eles... Eles estão bem. Vêm a cami­nho. Devem chegar dentro de duas, três horas. Não encontraram nada que nos pudesse ajudar, mas... estão vivos! Estão a regressar!

Ainda bem! exclamou Frieda, e arrebatou todo o corpo de Leino contra si. Ele flutuava como um boneco de trapo, com a boca a abrir e a fechar. Entre sons que Frieda não conhecia, ouviu:

Senhor, dou-vos graças... Cristo, estou-te grato...

Momentos depois, Brodersen transmitia uma informação mais

calma: Joelle podia encaminhar a nave para ali, e ele pessoalmente se iria ocupar dos trabalhos de abordagem. Todos os outros podiam des­cansar. Os três da Williwaw haveriam também de precisar de dormir. Daí a cerca de doze horas, ou quando fosse possível, haveria a chamada para o pequeno-almoço, seguido de uma troca de impressões entre todos. Era provável que a Chinook se dirigisse então para a máquina T, para outra viagem. Isso levaria mais de um dia terrestre. Entretanto podiam celebrar o acontecimento. E a terminar:

Boa noite. Uma boa noite a todos. E muito feliz.

(A Chinook entrou no cone de sombra de Danu, e metade do céu ficou às escuras.)

Vamos celebrar o acontecimento imediatamente! exclamou Frieda a rir, e beijou Leino.

Este desprendeu-se dela e perguntou:

Que quer você dizer?

Frieda abriu muito os olhos, de um azul-porcelana.

Vejamos, que supõe, meu amor? Estamos os dois muito con­tentes...

Leino afastou-se dela. Flutuando, levantava as palmas da mão, a recusar:

Não. Agora não. Quero agradecer ao Senhor.

Ah, sim? Será depois...

Saia, saia daqui! — gritou ele. — Saia daqui, sua desavergonhada!

Depois lutou consigo mesmo:

Não. Desculpe. Eu não a queria ofender. Mas... bem... Vá, por favor, Frieda. Tem razão, mas peço-lhe que vá.

Frieda olhou para ele durante alguns segundos e depois saiu.

Brodersen estava com pressa de que tudo aquilo acabasse. (Pegeen, Pegeen.) Habitualmente naquelas alturas ele fazia exercício, mas isso seria agora intolerável. Portanto, deu uma volta de inspeção. Tudo es­tava em ordem, e ele sabia que sim, mas aquela atividade ajudava-o, dava-lhe uma sensação de estar a fazer o que podia por aquele pequeno mundo que muito provavelmente iria ser o seu e o de Claitlín até morrerem. Não que fosse ele o Deus desse mundo... Com mil demónios, não! (A justaposição trouxe-lhe um pequeno sorriso.) Ele apenas ne­cessitava de dar aquilo de que era capaz.

Adeus, Lis, pensou ele, enquanto ia passando por aqueles corredo­res desertos. Adeus, Mikey, meu rapaz. Deves fazer muito bem a tua vida, e talvez depois nem mesmo te lembres de mim. Adeus, Bárbara, minha querida. Tu podes... Porque me preocupo contigo, minha fi­lha? Vais crescer, vais ser como a tua mãe, mulher independente nas suas opiniões, capaz de pôr o mundo às avessas se ele ousar ameaçar-te.

Vou ter saudades vossas, meus filhos. Eu queria realmente não vos fazer muita falta, mas será reconfortante pensar que me hão de recor­dar com ternura.

Virou ao fundo do corredor, segurando-se ao metal para dar um impulso ao corpo. Lis... Raios para tudo isto! Lis, eu amo-te!

Amo-te também a ti, Pegeen, e como diabo posso eu medir entre as duas e porque o haveria de fazer? Lis fica desamparada; mas pode ter outro homem se quiser, ou outros homens, e viver uma vida longa e fe­liz. Pegeen está aqui; mas as probabilidades são que morra jovem no espaço, juntamente com todos nós, e eu não mereço isso.

Brodersen franziu o nariz. Não me sinto culpado. Eu estava numa guerra, e foi assim que as coisas se passaram. E, se cometi erros, os meus adversários também os cometeram. Foi uma pura vergonha o que se passou, mas tanto Lis como Pegeen ficariam surpreendidas se eu co­meçasse a lamentar-me. Elas me diriam precisamente para continuar nas minhas tentativas.

Com ar de triunfo, recordou: Pegeen está viva. Vou vê-la de novo daqui a poucas horas.

Chegou à porta da sala comum. Não tinha razão nenhuma para ali ir inspeccionar, mas avançou. Ao entrar, ouviu alguém que soluçava.

Foi bater de encontro a uma mesa onde habitualmente se jogavam vários jogos. Sentiu uma contracção a passar-lhe pelos músculos, e ficou seguro pelos dedos. Os écrans mostravam um eclipse total. Danu — nome que Caitlín havia dado ao planeta — apresentava-se monstruoso, não completamente escuro, mas misteriosamente sombrio e cercado de carmesim, enquanto mais a distância cintilavam as estrelas e um par visível de luas em foice seguia o seu caminho. Os ventiladores a sussurrar pareciam acentuar a quietude. A temperatura normal, revi­gorante, e os ciclos de ionização, tinham arrefecido o ar, dando-lhe um odor à noite.

A figura apagada de Susanne Granville mal se distinguia a um can­to. Estava apoiada às costas de uma cadeira e com a mão livre escondia a cara. O brilho do céu deixava agora distinguir as suas feições.

Brodersen dirigiu-se para ali, através do frio.

Então, Su, que se passa?

Oh! Monsieur le capitaine...

Ela respirou fundo, enquanto Brodersen se detinha junto da cadeira.

Desculpe. Qualquer coisa que me aflige — gemeu ela.

Então, coragem!

Brodersen apercebeu-se de novo de como ela era meiga, de quanto gostava dela e, sim, de quanto a respeitava. Quase timidamente, passou-lhe o braço pelos ombros.

Você tem os seus problemas, Su.

Mas. Eu... Desculpe-me... Eu devia ter ido para a cabina...

Mas?

Brodersen estreitou-a um pouco mais contra si.

É vazio aqui. Temos a galáxia para ver — e recostou a cabeça ao peito dele.

Daí a pouco, ela ergueu o rosto (Brodersen distinguia a ingénua ex­pressão dela à luz das estrelas) e confessou:

Eu, eu peço que me desculpe, Daniel, meu bom amigo. E as­neira estar para aqui a chorar quando eles já vêm de regresso, sãos e salvos, não é? Mas...

Os olhos dela, os seus olhos realmente belos, prenderam os dele. E Susanne continuou:

Uma coisa: você não precisa de se preocupar com isto. Tem as­suntos mais urgentes. Mas... — Respirava com dificuldade. — Estamos perdidos na eternidade. Diga-me, por favor, quando tiver tempo... Que posso eu fazer?

Ah! — murmurou ele, sentindo que Susanne também era mu­lher (sem desejo, quando Caitlín ia chegar daí a pouco, mas com uma súbita afeição extra). — Você ficou fora de linkuge, não é assim?

Não ma proibiram. No entanto, Fidélio e a Dr.a Ky fazem tudo.

Brodersen sentiu-a tensa nos seus braços; viu, no reflexo da Via Láctea, como ela continha os lábios.

— Que fica para mim, Daniel? Em que o posso ajudar?

Brodersen falou-lhe com doçura e por fim acompanhou-a até à ca­bina, onde lhe deu um sedativo e um beijo de irmão antes de sair. En­quanto a porta se fechava atrás dele, perguntava a si próprio que diabo podia fazer por aquela moça.

 

Conduzida pelo auto-piloto, que pelos exames feitos se verificou es­tar em boas condições de funcionamento, a Chinook acelerou para a máquina T. No caminho, a tripulação fez uma festa. Brodersen reco­mendou que se divertissem bem, sem se privarem de bebidas ou outras coisas assim. Primeiro Caitlín, ajudada por Susanne, encheu a mesa de doces, e Weisenberg preparou na sua oficina alguns novos ornamentos coloridos de metal e plástico.

Senhoras e senhores — começou o comandante, depois de reu­nida toda a gente — temos agora diante de nós a primordial tarefa de nos embebedarmos e por completo, elevando-nos acima dos aconteci­mentos como papagaios de papel e fechando os olhos às contrariedades como um mocho. Tomo como pontos de referência, é de ver, o papa­gaio standard definido pela Normalização Internacional, a pairar num campo gravitacional em condições normais de ar, de temperatura e de pressão, e o mocho standard também definido pela Normalização In­ternacional, cujo estado fisiológico é determinado pelo encefalograma após haver consumido um litro de uísque escocês cem por cento puro.

Não, de uísque irlandês — propôs Caitlín, e ergueu o copo para o dele. — Slainte go fail leat.

Sorriram um para o outro. Embora Caitlín houvesse sofrido com o acréscimo de peso e com o voo sem gravidade, raras vezes tinha dado a Brodersen momentos tão deliciosos como quando se acordou depois da chegada, a menos porventura que ele os comparasse com as vezes sub­seqüentes.

Bebo às nossas nobres pessoas! — E Brodersen ergueu o copo para os presentes.

A maior parte das respostas foram nominais. Brodersen meditou sobre elas. Os écrans, por sua vez, reflectiam o esplendor, a parte de dia de Danu a retirar-se no céu, mas ainda grande, com o sol como um rubi, estrelas e o rio galáctico e mais estrelas. Ninguém acompanhava as imagens. Não que o fizessem expressamente, mas dir-se-ia que esta­vam todos a voltar as costas ao cosmo.

Carlos Rueda parecia alegre. Frieda von Moltke tinha-lhe reser­vado um magnífico acolhimento. No entanto, naquela noite exibia-se ela mais para Stef Dozsa, embora este estivesse pouco comunicativo. Phil Weisenberg mostrava um sorriso calmo, polido. Su Granville ha­via reconquistado um pouco de ânimo ajudando Caitlín; no entanto, por baixo das suas feições, Brodersen lia-lhe a tristeza que lhe ia na al­ma. Joelle Ky tinha-se posto de lado com uma cadeira e dedicava toda a atenção a Fidélio — quase ostensivamente, o que não condizia com a sua maneira de ser. Martti Leino, via-se bem, não havia dormido o su­ficiente e, por muito que tentasse, não conseguia desviar os olhos de Caitlín.

Está apaixonado por ela, pensou Brodersen. Compreensível. Tal­vez ela o esteja também... Ou talvez não. Nem sei. Isto poderia levan­tar mais dificuldades do que ele imagina. Sempre me saiu uma boa ro­lha... E que devo fazer a respeito de Joelle? Tem também qualquer coisa que a atormenta. Não sei ao certo o quê. Passou um braço à volta da moça que estava ao lado dele, sentiu-lhe o corpo macio e esbelto, aspirou-lhe a fragrância da juventude. Detesto desperdiçar o tempo que podia passar com Pegeen.

Riu.

De que te ris, amor?

De nada — tornou Brodersen apressadamente. Ah! Estava eu a tomar como ponto assente que sou uma dádiva celeste para as po­bres mulheres sofredoras! Que uma noite comigo daria alma nova a Joelle! Joelle! Depois sugeriu: — E que me dizes a um pouco de mú­sica? Música tua, é claro. Agora que voltaste para junto de nós.

Brodersen passou a ponta dos lábios pela doce frescura daquela face. E sentiu nitidamente o olhar de Leino a cravar-se nele. E sem dú­vida que Leino não era o único. Melhor será deixar de me pavonear com o que tenho e eles não. Mas como posso eu fazê-lo?

Bem, se todos estiverem de acordo — consentiu Caitlín. — Mas, em vez de um recital, que diriam a uma dança? Podem crer, nada melhor para nos livrarmos de tristezas.

Temos poucas mulheres — observou Weisenberg. — Quatro. Bem, Fidélio e eu faremos sala.

Três — atalhou Joelle. — A mim deixem-me de fora.

Ah, não! — insistiu Brodersen. — E porque havias de ficar de fora?

Quando Joelle se obstinou na recusa, Brodersen encaminhou-se para ela e murmurou-lhe quase ao ouvido:

Sempre gostaste de dançar, não? Sempre, quando íamos a al­gum lado. Que se passa agora?

O olhar que ela lhe lançou parecia mais melancólico do que nunca. E Brodersen insistiu:

Temos necessidade de ti. O desapontamento que sofremos em Danu foi um rude golpe. Se não nos divertirmos um pouco, não conse­guiremos ganhar ânimo. Por favor, Joelle.

E Fidélio, quem se ocupa dele? — inquiriu ela no mesmo inglês. — Ninguém se preocupa com o que ele sente.

Como se tivesse ouvido, Caitlín lembrou:

Mas não precisamos de dançar cada um com o seu par. Uma dança de roda, uma jiga... E Fidélio também dança. Porque não? Os Betanos devem saltar, e muito bem, quando estão alegres. — Caitlín sorriu. — Pois será uma dança muito especial. A primeira dança inter-espécies na história da humanidade.

Brodersen perguntou em espanhol ao betano a sua opinião a este respeito. Ficou surpreendido com a vivacidade da sua resposta. Que sim, que dançava.

Então está decidido — disse Caitlín. — Vamos ver agora a me­lhor maneira de pôr o nosso baile a funcionar. Dêem-me uns minutos para preparar as coisas.

Pegando no seu sonador, programou-o para músicas como as de acordeão e ia tocando enquanto saltava pela sala. O seu vestido ama­relo esvoaçava deixando-lhe ver as pernas esguias em rápido movi­mento. O cabelo bronzeado descaía-lhe sobre os ombros.

De uma maneira ou outra, ao ritmo que se criava quebrou-se o es­tado de espírito que pesava sobre eles. Quando a dança começou, e com música do banco de dados, aquela gente já ria, primeiro pela sua própria falta de jeito, como quando Rueda tropeçou na cauda de Fidé­lio, depois com as piadas e partidas, embora a maior parte delas sem nexo. O sangue animava-se-lhes de novo nas veias, e um leve suor fez despontar neles o odor do corpo humano. Batendo compasso com os pés, dando-se as mãos num movimento cadenciado, isso fê-los sentir que estavam vivos.

Ao cabo de algumas danças, começaram um a um a sair da roda para beber e falar e para outros divertimentos. Iniciou-se um jogo de ténis de mesa. Caitlín cantou a sua Canção de Pleno Verão para Weisenberg, Rueda, Susanne e Frieda. A seguir formaram-se pares para danças mais suaves. (Brodersen e Susanne mantinham o decoro, Dozsa e Frieda nada disso, outras combinações variavam. Leino tornou-se jovial com o álcool quando Caitlín estava nos seus braços, e Joelle apertava-se bem contra Brodersen.) Enfim, tornou-se tudo numa festa animada.

Por volta do meio dela, Caitlín viu-se a dizer aos outros:

Não há dúvida, sentimo-nos felizes, lá isso sentimos. Vocês vi­ram as gravações que trouxemos de Danu. Se não tivessem arrepios, podíamos também lançar-vos pela escotilha fora, pois vocês estão real­mente mortos. E eles, sim, são a mais viva realidade. Eu vivi a experiên­cia, mas não quero ser egoísta. Dou-vos a vez para a próxima maravi­lha, e para a que se lhe seguir, e para a outra ainda que vier depois. Se nunca mais regressarmos a nossas casas, os deuses ter-nos-ão proporcionado, mesmo assim, mais aventuras do que aquelas que a nossa es­pécie encontrou até aqui.

Caitlín fez soar uma corda do seu instrumento e prosseguiu:

E quem diz que não haveremos de voltar para nossas casas?

Quem? O universo é nosso, e não vejo limites de espécie nenhuma diante de nós.

Não andaste a compor uma balada sobre esse tema? — perguntou Brodersen, um tanto turvo pela bebida. — Parece-me que te apanhei uma vez a fazê-la, nos momentos livres, depois de voltares.

Ele não tinha ido então mais longe no assunto, pois Caitlín não gostava de falar de trabalhos artísticos em preparação. Isso fazia-lhe perder a inspiração, dizia ela. Além disso, tinha-lhe logo desviado a atenção para outra coisa.

Caitlín sacudiu a cabeça afirmativamente:

Andei.

E está acabada? — inquiriu Leino. — Peço-lhe por tudo, Caitlín: cante-a.

Se assim o querem — aquiesceu ela.

Uma chuva de aplausos foi a resposta.

Bem, desta vez não é a nosso respeito, vocês compreendem, mas a respeito do futuro, quando todos os humanos puderem viajar livre­mente como nós estamos hoje a viajar. Porque eles hão de lá chegar, não tenham dúvidas.

Caitlín saltou para uma mesa, pôs-se a balouçar os pés nus, e fez do sonador uma forte guitarra. No écran, a Via Láctea coroava-lhe a cabeça.

Sopra um vento estridente.

É tempo de me pôr a caminho

Das nuvens estivais

Em céus suaves

Onde a luz vem a despontar

De noites de luar e orvalho.

Por muito longe que eu vagueie,

Minha canção se espalhará até lá,

Uma nota, uma toada,

Uma doce melodia

À tua memória.

As estrelas continuam a brilhar tão doces

Sobre os nosso queridos campos.

Mas eu tenho de partir, tenho de voar,

E espero que me compreendas.

Onde sóis desconhecidos estão a arder,

Existem mundos vivos a rodar.

Uma dança desde a alvorada

Ao escurecer do dia

No cume das montanhas e do mar

Por toda a eternidade.

Embora ignorantes, vagueamos,

De modo que a morte nos possa arrastar,

Uma nota, uma toada,

Uma doce melodia

Até então ressoarão em mim.

Que milagres subsistem ali,

Que sensata e estranha mente,

Que aventuras pode o homem enfrentar,

Haveremos nós de descobrir.

No entanto ainda, em toda a maravilha,

O ressoar do trovão

Que faz vibrar

Esses espaços virgens

Quando pela primeira vez chegarem nossas naves,

E uma ânsia que fende como um chicote.

Cantarei enquanto em nações a cimentarem-se

Entre as constelações

Uma nota, uma toada,

Uma doce melodia

Lembrarem teus lábios.

E quando por fim o teu fugitivo

Regressar do abismo

Da escuridão cortada de estrelas para a luz do dia,

Perdoa-me com um beijo.

Algumas horas mais tarde, Weisenberg explicava que estava já ve­lho e encaminhou-se, de maneira não muito firme, para a cama. Fidélio não tardou a segui-lo. (Precisavam todas as raças sensíveis de se retirar periodicamente para os sonhos?) Frieda saiu com Dozsa. Brodersen le­vou Joelle para um canto, onde se sentaram e falaram tranquilamente e com seriedade. Leino travou conversa com Caitlín. Depois de ter feito questão de ignorar Rueda e Susanne por algum tempo, embora Caitlín lhes continuasse a falar, o peruano deixou transparecer um sorriso for­çado e sugeriu à linker que bebesse mais um pouco, após o que lhe cha­mou a atenção, pondo-lhe a mão no cotovelo, para o écran onde Danu reluzia, e puxaram por cadeiras, que instalaram lado a lado. Ficaram na meia-luz. A claridade vinha, sobretudo de fora, suave e matizada. Uma coluna de som espalhava pela sala, baixinho, os Concertos de Brandeburgo, de Bach.

— Escutem, está bem? — E o cachimbo de Brodersen desenhava um arco. Uma nuvem de fumo ficou a esvoaçar para trás. — Vocês têm estado a tratar a pobre da Su de maneira mesquinha. E ela ressen­te-se disso. Não nos podemos permitir uma coisa destas, com nenhum de nós.          

E que querias tu que eu fizesse? — replicou Joelle. — Reconheço que me irritei com ela uma vez, sem que me tivesse feito nada de mal. Pedi-lhe desculpa depois, não é verdade? Que mais obri­gações tenho eu?

Bem, pára com isso de a afastares do teu trabalho. Ajudante de contramestre não basta. Caitlín disse-me (mas olha que isto é estrita­mente confidencial!), Caitlín disse-me que teve de fingir que não conse­gue dar conta de certo número de tarefas, para demonstrar a Su que ela é necessária. Procedimento penoso para Caitlín. Também ela tem o seu orgulho. De qualquer modo, há limites muito precisos para aquilo que é admissível neste campo.

Estás a pedir-me para eu proceder da mesma maneira? Dan, não posso. Ela descobriria imediatamente o artifício e ficaria duplamente ressentida, não te parece? Além disso, não posso abandonar Fidélio. Muito mal foi quando eu me ocupei de guiar a Williwaw por o seu espa­nhol ser de sotaque muitíssimo acentuado.

Joelle pegou no pulso de Brodersen e continuou:

Prometi a Fidélio que ele se podia ocupar de todas as compu­tações que estivessem dentro das suas possibilidades, de linkage ele­mentar para cima. Não tem mais nada com que se ocupar, Dan. E em breve vai morrer.

Brodersen olhava para ela em silêncio, observando-lhe as feições macilentas e as formas esculturais por baixo, que não haviam mudado.

Tu sabes — disse ele por fim — que não és, no fundo, o inte­lecto couraçado de aço que proclamas ser?

Proclamei-o porventura alguma vez? Não foi de propósito, juro-te.

N-não, suponho que não. — Brodersen reflectiu. — Subitamente depois de todos estes anos desde que te conheço... Joelle, co­meço a pensar que és a pessoa mais ingénua que até hoje encontrei.

Joelle encostou-se a ele, não com a suavidade cálida de Caitlín ou a confiança tranquila de Lis, mas com a impetuosidade de que Brodersen se lembrava. Joelle nunca aprendera nuanças.

E... tu... não estás, no íntimo, muito duro... por tua vez, não te parece? — balbuciou ela.

Rueda e Susanne conversavam das suas recordações da Europa. Ti­nham muitas catedrais, muitos museus de que falar. O autêntico prazer chegou quando souberam que numerosas pequenas estalagens e cafés eram conhecidos dos dois. À medida que o iam descobrindo, Susanne tornava-se mais animada. Tinha também visitado o Peru, mas só vira os locais habitualmente procurados pelos turistas. Rueda saboreou a delícia de lhe falar de outros.

Se regressarmos (e podemos regressar, você sabe, podemos re­gressar), hei de levá-la a ver o meu país — prometeu ele.

Muito amável — disse ela.

Rueda abriu as mãos e afirmou:

Seria um encanto para mim. Para lhe ser inteiramente franco, até esta noite você parecia-me, bem, parecia-me um tanto apagada. Foi uma agradável surpresa descobrir quanto estava enganado.

Susanne corou e baixou os olhos.

Vendo que ela estava perturbada, Rueda tomou um ar mais grave; essa maneira era também mais fácil para ele. Comentou:

Estamos no mesmo bote, não estamos? Ambos, no fim de con­tas, desnecessários na engrenagem. Quando muito, meros sobressalentes.

Susanne, voltando-se para Danu, contrapôs:

Desnecessários não. Você foi até ao planeta.

Precisamente porque não sou indispensável. Não é ponto as­sente, de modo nenhum, que precisem de mim de novo para qualquer coisa do gênero. Mas, se precisarem, temos ainda dias, semanas a preencher antes que isso aconteça... Nós os dois... Não?

Como? E Susanne retraiu-se, numa ligeira crispação.

Você deve calcular.

Rueda fez estalar os dedos. Surgiu-lhe nova ideia:

Olhe, Susanne, o que esta nave não traz consigo são cientistas com experiência. Do tipo de laboratório, de trabalho prático. Aquilo que ela possui é um banco de dados onde se encontra a maior parte dos conhecimentos humanos. Sem falar de Fidélio, que, sem dúvida, gos­tará de transmitir também os seus conhecimentos. Porque não nos havemos de dedicar, nós os dois, até nos transformarmos em espe­cialistas?

Susanne levantou os olhos e exclamou:

Nom de Dieu!

Teremos de pensar bastante continuou ele e de estudar, e fazer experiências e... Você em Química, talvez, e eu Planetologia... ou outros talentos que venhamos a encontrar em nós e sejam úteis... Su sublinhou ele — , temos imenso trabalho à nossa frente!

Leino ganhara coragem para se meter com Caitlín, ali onde esta­vam sentados:

A propósito da sua última canção... disse ele. Julgava que você fosse contra qualquer noção ou papéis específicos de determi­nado sexo. Mas os seus versos falam-nos do «homem» a viajar pelo espaço. Uma vergonha para si.

Caitlín, franzindo o nariz, ripostou:

Para seu conhecimento, meu rapaz, o «homem» nesse contexto não significa «pessoa adulta do sexo masculino», mas «humanidade». Por que razão não podem aquelas linhas ser a respeito de uma mulher a partir e de o homem a ficar onde está?

Caitlín simulou meditar e acrescentou:

Voltarei a esta questão, Martti Leino, pode contar. Aguarde apenas pela minha próxima canção.

Desculpe! — exclamou ele e as suas feições vincaram-se num rito de contrariedade. — Não a queria ofender.

Caítlin pegou-lhe na mão, reteve-a entre as suas, dizendo-lhe com­placente:

Não me ofendeu. Sinceramente. Não seja assim tão suscetível, amor.

Leino curvou o pescoço e murmurou:

Sou-o, por si.

Caitlín pousou a mão direita na cabeça dele, passou-lhe ao longo das fontes e do rosto e dos queixos e da orelha e mais para trás. As pon­tas dos dedos acariciaram-lhe o cabelo.

Você é um belo moço.

Leino tornou-se incoerente. O seu punho livre martelava na coxa.

Caitlín, eu... Eu fiquei ressentido consigo... Sou cunhado de Dan, você sabe, e Lis... Mas você não é o que eu pensava. É encan­tadora, generosa. Adorável! — Respirou fundo, e acrescentou: — Desculpe-me. Era o uísque a falar.

E não era então você a falar? — perguntou ela, com ternura.

E para que serviria?

Caitlín aproximou-se para o abraçar. Por cima do ombro de Leino espiava Brodersen, com o braço em torno de Joelle. Trocaram um olhar e, ao cabo de um instante, sinais que mais ninguém viu.

Susanne e Rueda foram os últimos a partir. Tinham estado a con­versar demasiado animadamente para pararem, até que por fim come­çaram a abrir a boca, de sono. Susanne retirou-se para a sua cabina e Rueda acompanhou-a pelo corredor fora até à porta.

Boa noite, Carlos — disse ela. — Ou antes, bom dia, que a ma­drugada já lá vem.

Rueda apercebeu-se do nervosismo na sua voz, inclinou-se e beijou-lhe a mão.

Boa noite, Susanne. — E foi-se embora.

Em conformidade com o programa, o auto-piloto da Chinook colo­cou-a em órbita a distância da máquina T. A transição de novo para ausência de gravidade acordou alguns dos que estavam a recompor-se da festa. Os mais experimentados fizeram apenas uma pausa nos sonhos.

Brodersen estava no seu gabinete, a ocupar-se de cálculos (a Williwaw tinha gastado um ror de massa de reação naquela viagem, e ele queria ter uma estimativa de quanto ainda lhe restava, quando Caitlín entrou.

Então, como te sentes? perguntou Brodersen com ar prazen­teiro. Como vão as coisas?

Brodersen notou-lhe a perturbação na alma, desprendeu-se da ca­deira e catapultou-se para se abraçar a Caitlín, que o abraçou também.

Então, minha jóia, que se passa?

Oh, nem sei! disse ela, apoiada ao seu ombro. Flutuaram juntos. — Diz-me primeiro, vamos lá, como decorreram as coisas entre ti e Joelle.

Muito bem, podes crer. Dois ou três assaltos. Nem de longe tão bom como contigo, macushla, mas enfim agradável. Espero que não se repita muitas vezes. Com franqueza nenhuma contestação dela —, com franqueza, espero que não. Prefiro ter-te a ti.

E eu a ti suspirou ela.

Mas, olha lá, não me vais dizer que o Martti se atreveu a impor­tunar-te...

Não, não, não. Ele estava era a cair de bêbedo, mas comportou- -se para comigo como se eu fosse uma princesa de cristal. Em qualquer caso, o pobre não podia ir mais longe do que isso também, Dan. Não podia. Pouco importa o que eu fizesse. E a hora passou, depois de ter­mos dormido e de o álcool se lhe haver dissipado quase todo. Vê bem: Martti chorava. Tu não lhe vais dizer que te contei isto, não é verdade?

Claro que não.

Pensas que devo continuar? Ele disse-me que não. Mas só uma mulher desalmada pode deixar o seu apaixonado sem o ajudar a vencer...

Caitlín sentia que Brodersen estava a ficar tenso. E rematou:

No fim de contas, melhor será talvez eu deixá-lo na sua dor por algum tempo.

Também me parece. Diz-me que eu não estou apenas a ser mes­quinho.

Não, não estás, meu mais do que querido. Não estás!

Broderson riu, estreitando-a nos braços, e observou:

Bem, Pegeen, eu sou o comandante deste Holandês Voador e posso ditar os horários de trabalho. Pois vamos a um pouco de des­canso antes de pegarmos no serviço... M-m-m-m.

 

À medida que a nave se metia cada vez mais pelo campo onde se en­contravam as passagens por entre as estrelas e que Danu se ia extin­guindo com a distância, Brodersen interrogava-se sobre se Caitlín esta­ria a dizer um saudoso adeus ao mundo que a havia encantado, e que com toda a certeza nunca mais voltaria a ver. Ou estaria ela demasiado absorvida no ardor da exploração? Como desejava ter ali Caitlín ao la­do dele no centro de comando, onde agora se encontrava sem nada que fazer! Haveria porventura uma boa justificação para ela ali não estar? Bem, no fundo, dadas as suas funções de oficial médica, devia perma­necer no posto de socorros, onde se encontrava, dada a hipótese de ser necessária. Qualquer caso que surgisse podia ser imediatamente mortal para uma pessoa.

A baixa força gravitacional começou a sentir-se num murmúrio de reatores químicos, durante alguns minutos. A Chinook avançava para a baliza final. Era uma baliza cor de prata. Fidélio havia sugerido que se passasse por todas as bases antes de dar o salto. Todas aquelas balizas, no seu conjunto, deviam ter uma finalidade, deviam levar a outras máquinas T, embora fosse possível mesmo muito pro­vável que os construtores não tivessem encontrado motivo nem tempo para instalarem uma construção no termo de cada trajeto dos mais curtos. Muitos deles deviam dar para o espaço interestelar vazio, tal como aconteceria, quase por certo, se a nave seguisse uma rota intei­ramente ao acaso em torno do cilindro. Na realidade, a ordem pela qual se seguia através dos pontos de sinalização constituía toda a dife­rença. Os nove total à volta deste engenho de transporte iam conduzir a mais de trezentos e cinquenta mil destinos diferentes. Te­riam os Outros visitado eles também cada um desses destinos?

A Chinook tomou o trajecto mais simples e mais óbvio, a partir da baliza mais exterior e seguindo em ziguezagues que implicassem o me­nor dispêndio total de energia. Aquele trajecto devia levar a algum lado, se os Outros apreciavam a elegância de concepções na enge­nharia, se eles não haviam sido forçados por fatores externos...

Bem, se não houvesse nada para além daquela passagem, os náu­fragos teriam simplesmente de se adaptar à vida no vazio. O zero de gravidade só com imenso esforço podia ser tolerado durante muito tempo, pois o peso tornava-se essencial para a saúde. A girar em movi­mento contínuo, a massa de reacção não tardaria a acabar. Assim, seria necessário dar um movimento de rotação à nave, com um raio bastante amplo, a fim de reduzir ao mínimo as variações centrífugas e o efeito Coriolis.

Prevendo que tal poderia ser necessário, os construtores da nave ti­nham previsto disposições a esse respeito quando efectuaram as modifi­cações na classe Reina. O casco podia ser dividido a meio, com a parte dianteira separada da traseira. Isso implicava uma boa quantidade de trabalho, e só parte dele podia ser feito por afastamento de peças, mas, enfim, existia essa possibilidade. Um cabo (de filamentos de contacto, por causa da tensão de tracção) ligaria ainda as duas partes. Sob o im­pulso dos jactos laterais, os semicascos deslocar-se-iam um par de qui­lómetros um do outro, e os mesmos motores os manteriam a rodar. Conservar-se-ia depois a bordo uma pseudogravidade com valores muito próximos daqueles que eram sentidos na Terra. O cabo transportaria energia do reactor para os alojamentos. E pelo espaço fora ficaria a rodar outra Roda: outra prisão.

Brodersen fez uma careta, e não pela primeira vez, perante a pers­pectiva de empreender uma tarefa daquelas com a tripulação inade­quada de que dispunha. Era tudo muito mais complicado do que pa­recia. Mesmo apenas equilibrar as massas nos hemisférios, para não falar da necessidade de sair da nave e de andar pelo espaço em fatos de cosmonauta...

Fá-lo-emos, no entanto, se for estritamente indispensável, decidiu ele. E acabemos com essa tola palavra de «prisão». Não é melhor? Pegeen estará aqui!

Para morrer por fim.

Brodersen fez o gesto de pôr de lado a ideia e concentrou a atenção no que se passava lá fora. O cilindro brilhava próximo. Perguntou a si mesmo como o veriam Joelle e Fidélio, ao examiná-lo directamente através dos seus instrumentos, enquanto pilotavam a nave através de forças que negavam o espaço-tempo. Nunca o saberia. Aquela experiência situava-se para além das palavras. Era uma experiência mística, talvez transmística. Melhor seria ele manter-se no campo das coisas práticas. Ambos os holotetas estavam em linkage porque eles próprios não tinham a mínima idéia daquilo onde iam imergir, daquilo que te­riam de um momento para o outro de compreender e de fazer.

E aí está agora a baliza, dir-se-ia mesmo a rasar a proa, a bombordo.

A sereia lançou um aviso. O casco oscilou e mergulhou. A Chinook passou.

Primeiro, Brodersen olhou, pasmado, à sua volta para uma má­quina T. O coração galopava-lhe no peito. Viu a máquina T ao longe, como um esteio assente nas trevas e não pôde conter um grito.

Em seguida, apercebeu-se melhor de quanto as trevas eram densas. Nenhuma estrela brilhava para lá daquela haste. Por toda a parte para que olhasse não descortinava mais nada que não fosse a noite. Só de um ponto qualquer vinha uma ténue claridade, azul e branca, no meio de um nevoeiro opalino que se espalhava para cada lado como asas a crescerem. Em outra direcção, muito a distância, distinguiu em seguida débeis pontos luminosos e débeis clarões imersos em névoa. Motores desligados, a nave deslizava silenciosa através do escuro.

Meu Deus! — murmurou Broderson. — Onde estamos nós?

O sentido da acção despertou de novo nele. Pegou no intercomuni­cador:

Do comandante à tripulação. Respondam por postos.

Chegaram-lhe vozes agitadas, que ninguém havia sofrido nada.

Joelle foi a última a falar, como num sonho:

Fidélio e eu pensamos que já sabemos o que aconteceu. É deve­ras estranho... — Abruptamente, como uma máquina: — Precisamos de mais dados. Acelerem a cerca de quarenta e cinco graus do nosso atual vector de raio, à volta desse sol que estamos a ver, para dentro. Comecem os programas de observação e estejam preparados para novas n instruções.

— Sim, sim! — disse Brodersen. Um fragmento da sua consciência perguntava a si mesmo por que razão a sua obediência era tão automática. A Joelle de que ele se lembrava, que gostava dele e que se comprazia na sua companhia — mesmo com aquele pouco que ele podia compreender —, mas que no fundo permanecia sempre distante, essa Joelle já não existia. O que ele tinha abraçado uma destas últimas noites era uma mulher envelhecida. Sim, em primeiro lugar uma soltei­rona, pateticamente sedenta dele. Depois, uma Joelle muito compene­trada no seu estilo rígido, e com aspecto insignificante depois de cair no sono. A seguir, ela tinha-se atarefado a discutir eventualidades com aqueles que se haviam ocupado dos instrumentos, passava na cabina a maior parte do tempo livre e era de secura extrema nas conversas à mesa — embaraçada, imaginava ele, embora não conseguisse fazer uma ideia daquilo que a preocupava.

No entanto, o cérebro dela está ainda em boas condições, e mesmo agora ele se realçou para além da minha pobre imaginação.

O peso voltou. Brodersen conhecia pelo menos três razões para au­mentar a velocidade: medições Doppler; melhores amostragens de con­dições ambiente, tais como vento solar; aparelhos de filmar que detec­tavam planetas a traçar sulcos num fundo de estrelas. Mas onde estão as estrelas? Este sistema nada nos diz a nós.

Até se assegurar de que tudo estava em ordem, Brodersen devia fi­car bem atento no centro de comando. Contudo, a menos que surgisse um caso de emergência, era agora uma unidade a mais. Apenas regu­lava os aparelhos de controlo e olhava para os indicadores, procurando descobrir tudo o que podia.

O foco azul-branco a que Joelle tinha chamado um sol era real­mente brilhante. As condições ópticas enfraqueciam-lhe a radiação no trajecto. Estava a dar à Chinook iluminação comparável á que o Sol dá à Terra. Porém, mesmo com forte ampliação, o disco parecia minús­culo, dando a impressão de se encontrar imensamente distante. Por sucessivos exames e ampliações, Brodersen conseguiu encontrar uma estrela mais pequena, amarela, quase perdida naquele esplendor.

Manchas como de felpo espalhavam-se pelo céu, que, agora, con­tinha pontos de luz entremeados de névoa luminosa e de intrincados fi­lamentos. Deviam ser nebulosas do tipo Orion, muito próximas, onde de poeira e de gás se estavam a formar novos sóis enquanto ele observa­va. A maior parte das vezes, aquilo que parecia serem estrelas isoladas eram de facto grupos de estrelas, separados por enormes distâncias.

Começaram a chegar indicações dos instrumentos de medição. Para além do campo e dos écrans ordinários, mas dentro do alcance do equipamento do observatório, estendiam-se mais nebulosas. Numa vasta direcção prolongava-se uma vasta zona, invisível a olho nu, irra­diando com violência nos comprimentos de onda infravermelhos e de rádio. Por todo o céu, nenhum sinal das galáxias externas conhecidas, embora ele revelasse fontes da radiação semelhante.

À medida que as horas se escoavam, cada vez mais se obtinham destes resultados, sob a direção de Fidélio. Ele indicava aos humanos o que deviam procurar, e estes encontravam-no. Fidélio devia ter uma ideia de que zona era aquela por onde a Chinook se havia metido.

Brodersen fumava o seu cachimbo. Pensava que podia adivinhar a resposta ele próprio. Essa resposta ressoava dentro dele como o repicar de um sino.

Agregada Su para fazer trabalho de pesquisa com os investigado­res, estava Caitlín sozinha a preparar o jantar. Até aí, ninguém tivera mais do que uma sanduíche, comida à pressa cada qual no seu posto. Mas Caitlín havia levado o comandante a decretar que era necessária uma refeição decente, tomada com paz de espírito.

No ambiente monótono da cozinha, Caitlín cantava enquanto tra­balhava. Eram canções alegres de modestos recantos da Terra. Quando começou a pôr a mesa, a sua música descaiu. O pequeno refeitório dava para a sala comum. As portas entre os dois compartimentos esta­vam abertas. Do grande écran lá do fundo saltava uma claridade inten­sa que a cegava, com a estrela azul em chamas no centro.

Magnífica luz a tua! murmurou Caitlín. Vi a mesma em fendas por entre os glaciares e uma vez numa fornalha nuclear. Mas so­bre que brilha ela?

Caitlín deteve-se na sua contemplação. Joelle havia entrado na sala comum. Hesitou por um momento e fez em seguida uma leve saudação com a cabeça. Caitlín dirigiu-se para a holoteta.

Como vai? Porque não está em linkage? perguntou a mulher mais jovem. A comida só fica pronta daqui a uma hora, pelo me­nos, e pensava eu que nessa altura iria ser preciso um rebocador para que você, Joelle, arrancasse dali.

Joelle tornou-se ainda mais tensa, nas feições e no corpo, ao res­ponder:

Já não sou precisa.

Ah, sim, compreendo. Fidélio quer ficar sozinho.

Caitlín estendeu a mão, pousou-a no ombro de Joelle e, apertando-a com amizade contra si, concluiu:

E deixou-a ainda mais só!

Joelle libertou-se com um movimento seco e deu meia volta. Caitlín tocou-lhe no braço.

Desculpe, acha que a ofendi? Não foi essa a minha intenção. Você veio à sala ver as imagens onde elas são melhores, não é assim? Ora eu não quero por nada pô-la fora daqui.

Joelle deteve-se e informou:

Não, não é culpa sua.

Receio que sim, tão desajeitada sou. Eu simplesmente sentia tristeza... Mas por que razão haveria de sentir pena de si, que eu admi­ro tanto?

Apressadamente acrescentou:

Dr.a Ky, se é por causa de Dan que está preocupada, deixe lá isso. Tenho mais defeitos do que estrelas há no céu, mas ciúme, isso é que não.

Aquelas palavras, assim despretensiosas, embaraçavam-nas a am­bas, levavam ambas a olharem lá para fora, para a noite. No silêncio que se seguiu, um leve cheiro a caril parecia duplamente perdido.

Joelle disse por fim, com aspereza, mergulhando ainda os olhos no céu:

Obrigada. Você compreendeu que tivemos uma ligação no pas­sado, não é assim? Pois muito bem, eu não desejava continuar a con­versa.

Olhe, veja que insignificantes nós somos, nós e os nossos pro­blemas, na vastidão de todo este universo...

Joelle quase chegou ao escárnio:

Estava desejosa de saber mais, não é verdade? Bem Miz Mulryan, que pensa sobre este novo mundo aonde viemos parar?

Como lhe posso eu dar uma resposta razoável, quando não sei? Você no-lo dirá na devida altura, e será excelente eu saber.

A expressão de Joelle suavizou-se um pouco ao explicar:

Não é segredo nenhum. Sem dúvida que vários dos nossos já compreenderam, ao passo que você tem andado demasiado ocupada para os ouvir falar. Não imagine que vamos ficar aqui muito tempo. Em breve o comandante há de insistir para conhecer a situação. Depois vai-nos mandar de novo para a máquina T, para mais um salto. Fidélio e eu estamos entretanto a fazer-nos andar para a frente, em parte com a tenuíssima esperança de virmos a encontrar algum indício de qualquer coisa que possa ser útil, mas principalmente... por causa dele. De Fidé­lio. É fascinante.

Caitlín estendeu o braço de novo para a holoteta:

E você retrai-se.

Não se atreveu a completar o gesto, mas baixou o braço.

Vou fazer passar os dados mais tarde, por mim.

Não é o mesmo, não é assim?

O olhar de Joelle perdeu-se na estrela azul.

Nada nos diz em que ponto do espaço estamos nós — sussurrou ela. — Além disso, essa é, na verdade, uma frase sem sentido... nas a­tuais circunstâncias. Chamemos-lhe um lugar qualquer na galáxia em­brião, e datemo-la de dez a vinte biliões de anos antes de termos nascido.

Caitlín deixou passar um ligeiro assobio por entre os dentes e de­pois disse:

Viajamos então pelo tempo fora?

E porque não? A Emissário fez o mesmo. As naves entre Sol e Febo fazem-no em menor escala, variável. Por tudo quanto sabemos, o Danu que a Chinook encontrou pode estar milénios no passado ou no futuro em relação à Roda que a Chinook atacou... Embora, do ponto de vista da relatividade, eu esteja a ser muito imprecisa na minha lin­guagem.

- Todas as teorias que nós conhecemos nos dizem que um campo de transporte não nos pode levar para trás mais para além do momento em que ele próprio foi gerado. Mas custa-me a crer que Danu ainda exista. Portanto, ou a máquina T à volta dele é... era... será extremamente ve­lha, ou então aquele campo ensancha de qualquer modo no campo desta máquina aqui. A segunda hipótese parece a mais provável. E, em qualquer caso, os Outros devem ter a sua origem ainda antes disso.

Joelle sorriu sem disposição e acrescentou:

Estamos ainda muito cedo, contudo, não estamos?

Se estamos! — murmurou Caitlín. — Se as estrelas ainda nem sequer foram feitas!

Poucas ainda. Não muitos átomos mais complexos do que o hi­drogênio e o hélio. As nuvens de gás estão ainda a implodir, para for­mar as galáxias. Os sóis ir-se-ão depois condensar delas...

...Como gotas de orvalho na neblina da madrugada — acres­centou Caitlín, com emoção.

...e mais complexos núcleos se formarão dentro desses...

...ar para nós respirarmos, ferro para o nosso sangue, ouro para uma aliança de casamento.

... mas o processo mal começou ainda. O que você está a ver ali ao longe é uma estrela jovem. Tão grande que podia tomar forma como uma simples companheira fora de um glóbulo Bok, em vez de fa­zer parte de um grupo dentro de uma nebulosa — um tipo de supergigante O, cinquenta mil vezes mais luminosa do que o Sol. Se estivésse­mos muito mais perto, a sua radiação nos destruiria. A sua vida não é longa na sequência principal: alguns milhões de anos, quando muito, até que, por erupção, se transforma numa supernova. Durante um curto espaço de tempo será tão brilhante como era a galáxia inteira... como ela é... nos nossos dias... antes de os seus remanescentes se abate­rem num globo de neutrons ou num buraco negro. Os elementos pe­sados criados nessa explosão serão projectados pelo espaço. Ficarão a fazer parte das últimas gerações de sóis e planetas.

- A estrela tem uma companheira mais pequena. Viu-a? Ela será afetada. Aquilo a que chegaremos, se os Humanos e os Betanos conhecerem qualquer Astrofísica, é a uma nova recorrente, nada como a supernova, mas a lançar elementos no universo também.

- É muito provável que uma situação semelhante já haja ocorrido noutro lado, nos primórdios da história cósmica. Talvez no interior de uma nebulosa. Daí resultou uma vastíssima concentração local de carbono, azoto, oxigênio, todos os materiais necessários para que se pudessem formar planetas onde surgisse a vida, mesmo então, antes de existirem estes primeiros indícios de uma galáxia a formar-se. Talvez uma ou mais dessas formas de vida haja evoluído e daí se hajam forma­do os Outros.

- Possivelmente — concluiu Joelle —, uma pequena parte daquilo que a forma a si e a mim esteja a constituir-se aqui, nestas estrelas, neste momento preciso.

Caitlín esfregou as mãos uma na outra e disse:

Não seria para admirar que os Outros fizessem uma passagem para virem ver!

Sem dúvida! — suspirou Joelle. — Eu esperava mesmo que eles tivessem instalado aqui uma estação científica. É por isso que continua­mos a avançar de maneira tão lenta para a máquina T, e rodeando-a de certa maneira, em vez de tomarmos o caminho mais curto. Mas agora já não creio que eles tenham aqui a estação. Ela haveria de estar nesta zona, se existisse. Não lhe parece? No fim de contas, tudo, incluindo materiais para a própria máquina T, teria de ser para aqui mandado no passado. Trata-se de uma obra descomunal para quem quer que seja, para semideuses ou não. Não há dúvida de que eles levaram a cabo ou­tros empreendimentos de vulto. E quando a estrela gigante explodir, irá destruir tudo o que esteja em órbita em tomo dela, a menos, talvez, que a própria máquina T possa escapar. Não, eu diria que os Outros apenas vêm aqui de longe em longe, em naves ou naquilo que utilizam, para fa­zerem as suas observações. O intervalo poderia ser de milhares de anos.

Ao cabo de um minuto acrescentou:

Se, apesar do que eu suponho, eles têm de facto por aqui uma instalação, ela está noutro lado. Não vejo possibilidade de a encontrar­mos, num sistema que se estende por uma escala tão vasta. Não, nós vamos ficar por cá um dia ou dois a sondar, a observar, a emitir — uma esperança desesperada, se é que há uma esperança — e depois disso procuramos ir para outro lado.

Por causa da maneira como ela olhava para a estrela, Caitlín per­guntou-lhe:

Você havia de sentir-se feliz aqui, a aprender, não é assim?

Não é praticável — respondeu Joelle com um sorriso forçado. — Acabaria por se esgotar a massa e teríamos de ficar em ro­tação, o que iria prejudicar terrivelmente os nossos estudos. Pior, per­guntaríamos sempre a nós mesmos que novas oportunidades havíamos perdido. Temos de continuar para a frente.

De novo Joelle hesitou, e depois comentou:

E assustador.

Como para se libertar das palavras antes de ceder a estrangulá-las, prosseguiu:

Anime-nos você, Caitlín, sim?

A contra-mestre corou, as suas correias agitaram-se, a sua voz per­deu a firmeza. Nunca a holoteta a tinha visto tão confusa.

E posso eu animar-vos? Eu, que não passo de uma espécie de bardo? Você é uma pessoa activa, Dr.a Ky... uma pessoa que com­preende, uma druida. De si dependem as nossas vidas.

Não de mim. De Fidélio, tais como as coisas estão... neste mo­mento. E você compreende que eu não posso... Desculpe-me. — Joelle voltou-se: — Lembro-me agora que tenho qualquer coisa a fazer.

Saiu a passos apressados. Vista de costas, os ombros tremiam-lhe.

 

Salto.

De novo o céu se estendia repleto de estrelas. Por um brevíssimo instante, Brodersen não viu nenhuma máquina T entre elas. Depois de a ter procurado bem, adelgaçada como estava pela distância, conseguiu descortinar qualquer coisa em torno de si e ficou surpreendido.

Encontrava-se ali um disco solar. Quase do mesmo tamanho da­quele que a Terra via, era nitidamente esverdeado — e Brodersen não conteve uma exclamação de espanto — e com muitas manchas. Pelos cálculos feitos, a luminosidade por área unitária excedia a do Sol em cerca de 30%. A coroa que o rodeava era imensa e rubra. Sem amplia­ção, viu chamas e protuberâncias como geiseres de fogo. Não aparecia, porém, qualquer luz zodiacal, embora Brodersen passasse o brilho a diafragma e ampliasse as fontes fracas até ao máximo dos seus écrans.

Recolhidos os elementos necessários, Brodersen ordenou à Chinook que acelerasse no plano orbital do engenho de transporte e que começasse o trabalho de pesquisa. Depois coçou a cabeça e dirigiu-se, perplexo, ao intercomunicador:

Que se passa? Eu não sabia que a sequência principal incluía es­trelas verdes.

Os holotetas não responderam. Estavam demasiado concentrados. Ao cabo de um minuto, chegou-lhe a voz tímida de Su Granville:

Penso que sei o que seja. O verde não é uma cor de excluir, mas os valores de temperatura superficial para ele são tão restritos que raras vezes o temos observado.

É por isso que os Outros estão interessados nesta estrela?

Não. Suspeito que ela está simplesmente a sair da sequência principal e acontece que atravessa agora uma breve fase verde.

Hidrogênio libertado no centro, com as reacções nucleares a produ­zirem-se para fora...

Espere. E não vai tornar-se numa gigante vermelha?

Sim, na altura devida. Mas primeiro contrai-se e torna-se muito mais quente. Isso encurta o máximo comprimento de onda. A expan­são começou agora, mas necessita ainda do seu tempo para a superfície arrefecer, para a luz se tornar vermelha, enquanto a energia total au­menta mais ainda...

Su Granville como que reconsiderou:

Oh, mas você conhece Astronomia elementar! Desculpe!

Não pense nisso, Su. Eu já devia também ter calculado.

Uma vez seguro de que ninguém havia detectado nada de perigoso, Brodersen saiu do centro de comando. Não podia resistir a ir até ao pé dos vários investigadores e fazer perguntas, mas desviou-se para não se tornar aborrecido e procurou Caitlín. Estava na sala comum, no meio das imagens que se lhe ofereciam, a deliciar-se com elas. Quando Brodersen entrou, Caitlín foi ao encontro dele, lançou-lhe os braços ao pescoço e beijou-o com a fúria de um ciclone.

Brodersen correspondeu. Quando interromperam para sorver um pouco de ar, Caitlín não se conteve:

Oh, Dan, Dan! Repara no que estamos a ver! Tudo o que vamos aprender, tudo o que vamos fazer!

Asseguro-te que muito gostava de fazer alguma coisa murmurou ele. — Isto de nos sentirmos inúteis dá-me cabo dos nervos.

Caitlín levantou a cabeça. O seu débil sorriso tornou-se malicioso, ao dizer:

Bem, comandante, o senhor podia ser justo para com uma po­bre contramestre privada de tudo. Esse olhar distante faz-me sentir a necessidade de reconforto.

Meu Deus! E outro olhar não fará sentir a mesma necessidade?

Caitlín libertou-se e, pegando-lhe pelo braço, rematou:

Depois podes-me ajudar na cozinha.

Os elementos recolhidos iam-se avolumando com o andar das horas.

A nave encontrava-se a milhares de anos-luz da Terra, a avaliar pe­los novos contornos da Via Láctea e pelo aspecto das galáxias próxi­mas. Os objectos astronômicos identificáveis não tinham mudado apre­ciavelmente, incluindo o monstruoso S. Doradus. Daí a data, calculada a partir do hipotético princípio do universo, ser a mesma que no nosso mundo, acrescentando ou tirando alguns milhões de anos. A Chinook tinha regressado do passado longínquo.

As leituras Doppler na máquina T, combinadas com as sondagens por radar feitas a contar do sol, deram a este último uma massa supe­rior ao nosso Sol. Nesta base, a teoria atribuiu-lhe uma idade da ordem de dez bilhões de anos. Seriam necessárias medições mais rigorosas para calcular o número exato. Tornava-se claro, no entanto, que aquele sol devia pertencer a uma geração anterior. Isso foi confirmado pela escas­sez de poeira à sua volta e pelas fracas linhas metálicas no seu espectro. Contudo, continha mais elementos pesados do que se podia esperar. Talvez se tivesse formado nas proximidades de uma recente supernova que houvesse explodido. (Podia ter sido a detonação da gigante azul que os humanos tinham observado há pouco. Eles especulavam bastante e em vão.)

Aquele sol tinha planetas. Um deles girava mais ou menos à mesma distância da máquina T, um pouco acima de uma unidade astronó­mica, ligeiramente menos de noventa graus à sua frente. O globo era do tamanho da Terra e continha oxigénio na sua atmosfera.

Ninguém poderia dizer onde haviam os Outros colocado inicial­mente o seu dispositivo, salvo que provavelmente não fora uma posição de sessenta graus. Talvez ele tivesse outrora estado justamente do lado oposto ao do mundo vivo, como os que se encontram em Sol e Centum e nas outras estrelas conhecidas dos Betanos. Se assim fosse, devia ter esgotado por fim a sua capacidade de se manter no local. Descrevia uma órbita tão sujeita a perturbações como qualquer corpo celeste na­tural.

Brodersen sacudiu a cabeça e deu um estalido com a língua. Tudo o que pudesse exprimir era inadequado, de qualquer maneira.

Bem disse ele —, presumo que qualquer interesse que os Ou­tros tivessem aqui no passado já cessou há muito. A menos que seja sua intenção observarem o próprio sistema a extinguir-se.

Não tardou que os receptores de Dozsa lançassem uma forte dú­vida sobre esta conclusão. De uma fonte no planeta terrestróide estava a ser emitido um sinal de rádio que, embora simples e sempre o mesmo, devia ter origem artificial. Um indicativo? Uma mensagem? Para a Chinook, essencialmente um chamamento.

Seguiu-se um vôo de três dias.

Aqueles que se podiam entregar à Astronomia foram mantidos sempre ocupados, a fornecerem a Fidélio dados que ele integrava num quadro cada vez mais completo. Esses dados chegavam-lhe, porém, de­masiado lentos para o seu ritmo. Fidélio passava, assim, a maior parte do tempo em holotese, a sondar o seu ambiente estelar por meio de instrumentos de observação directa, medindo-lhe o significado, ou, talvez com mais frequência, contemplando o Ultimato de uma maneira que lhe dava o sentimento de que aqueles a quem amava eram seres situados num espaço-tempo que o mantinha unido a eles.

Entretanto os mecânicos inspeccionavam a Williwaw, após os es­forços a que fora submetida com a viagem a Danu. Passavam-lhe uma revisão geral, afinavam-na o melhor que podiam para determinadas condições de voo e atestavam os seus tanques de massa com as reservas que ainda existiam na nave. Brodersen prestava ajuda sempre que lhe era possível. Não tinham espaço para muita gente a trabalhar ao mesmo tempo.

Rueda e Su foram deixados com mais horas livres do que deseja­riam. Joelle ficou quase sem nada que fazer.

Acordando muito cedo no segundo quarto da manhã, incapaz de voltar a pegar no sono, sem encontrar alívio nos livros ou na música, Joelle levantou-se, enfiou o fato-macaco e deixou a solidão da sua ca­bina. Iria até à cozinha buscar um pouco de chá, pois se havia esque­cido de o tirar para a sua reserva, e depois disso, enquanto o betano descansava, iria entrar em linkage. Não era muito agradável fazer isto sozinha, mas não queria por nada pedir auxílio. Isso seria perfeita­mente humilhante, uma vez que ela não estava apta a realizar qualquer coisa que valesse a pena e apenas tencionava submergir o seu ser por al­gum tempo no coração dos átomos e das estrelas — naquilo que era bem conhecido sobre eles, e nada mais. Nem mesmo era como se aquele estado fosse um capricho que tivesse de ser satisfeito. No fim de contas, tinha-o sentido plenamente ainda há pouco.

Plenamente... E tudo se tinha tornado vazio.

O corredor acentuou ainda mais o seu sentimento de solidão, quando ali chegou. Dir-se-ia um túnel de metal a estender-se para cada lado, e ao longo do qual se alinhavam portas fechadas, com o sistema de arrefecimento de ar a ronronar. Quando uma das portas, a de Frieda von Moltke, se abriu, Joelle ficou estupefata, quase assustada.

Saiu dali Martti Leino, fez um sinal com a mão antes de fechar a porta, e ao voltar-se deu de caras com a holoteta. Igualmente surpreen­dido, cumprimentou-a:

Bom dia, Dr.a Ky. Como está?

Trazia o cabelo despenteado, a roupa desalinhada.

Não consigo dormir — disse Joelle, porque isso lhe parecia claro. — E você?

Leino, com um ar de galito satisfeito consigo próprio, respondeu:

Bem, também não dormi lá muito. Ia agora à procura de uma chávena de café na cozinha, pois acabou-se o meu. Quer ir comigo?

Joelle mudou de ideias quanto ao chá. E porque haveria de sentir a cara assim a arder-lhe?

Não, obrigada. Eu queria é andar um pouco.

Deixou-o ali.

Não estará Frieda a abrir as pernas a todos os homens a bordo? Pensou ela. E, nesse caso, porque me hei de eu ralar? Que tenho eu com isso? Pelo menos, parece que acabou com aquele ar tristonho de cachorro batido com que Leino andava nestes últimos tempos.

E porque andava ele assim? Tive a impressão de que se entendia com a Mulryan. Naquela noite a seguir à festa... Mas não, parece que a tem evitado depois disso. Pensaria ele que era terreno conquistado e, em vez disso, recebeu uma recusa? Ou teria havido desavença?... Mas Caitlín tem falado com ele com toda a cordialidade durante as refei­ções, embora este moço só raras vezes lhe responda com mais do que monossílabos.

Não sei. Ninguém me conta nada. Talvez porque eu também nunca pergunto nada. Não sei como deva fazer. Não entendo lá muito da­quilo que se relaciona com as pessoas.

Eric tornou-me visceralmente humana por curto tempo. Sim, tor­nou-me visceralmente humana... Mas então eu distanciei-me imenso dele, numa Realidade demasiado absorvente. Tornei-me cartesiana. Al­guns amantes posteriores que eram holotetas tinham os corpos ligados às suas mentes, mas meramente ligados, no que me diz respeito. Os res­tantes pouco mais eram do que corpos, oportunidades que se me ofere­ciam, passatempos quando muito.

Ter-me-ia isso deixado vulnerável a Chris, à bela e querida Chris? Amar é ser vulnerável, suponho eu. Diacho! Nada de bom podia ter saído dali. Verdade?

Quanto a Dan...

Os seus passos levaram-na até às escadas que davam para o piso dos trabalhos científicos, onde se encontrava a sala dos computadores. Por toda a parte, metal a envolvê-la. Chegou-lhe ao espírito uma frase da sua mocidade no Tenessi. Embora ela pudesse participar no Projeto Ítaca, nas fronteiras do conhecimento humano, os seus pais tinham-na mandado para uma escola dominical. Aí o capelão protestante do campo militar costumava ler um trecho do seu Livro de Orações, assim como da Bíblia. Toda a cena lhe veio à lembrança, com aquelas paredes caiadas de branco, uma pintura banal de Jesus a abençoar as crianças. As janelas abertas deixavam entrar um cheiro a trevo e o zumbido das abelhas. Com a aula toda sentada, corpos muito direitos em carteiras de madeira, ouviam o pastor com a sua voz de baixo a fazer ressoar a prédica... «... acorrentados à miséria e às grilhetas...»

Não há dúvida, ele parecia-se bastante com Dan, e as suas palavras também. Impressionava-me tremendamente, miudita que eu era. Ape­sar do seu porte piedoso, eu perguntava a mim mesma se ele seria tão bom na cama.

Pára com isso.

Joelle sorriu, contrafeita. E porquê parar? Seria aquilo uma blasfêmia? Eu não quero ficar obcecada por Dan, como receio que esteja a acontecer. Isso seria outra vez Chris, do princípio ao fim. Ele é da Mulryan. Oh! Ela mo cederá uma vez ou outra, se eu desejar. E ele não se poupará a desvelos para comigo. Mas sei que não dará de boamente o tempo que pode passar com ela, após todos estes anos desde que nos separamos. E isso fará que me sinta tão só, tão só!

Não ouso admitir que Descartes (como criador de símbolos que hoje não tem mais significação científica do que o Julgamento Final) se tenha enganado.

Chegada à passagem que ela procurava, Joelle meteu-se por um corredor que a levava ao gabinete de astronomia. Abriu a porta e mer­gulhou os olhos no interior escurecido. Ouviu falar. Outra vez sur­preendida, parou.

Carlos Rueda Suárez: — Sim, asseguro-lhe que o governo de Deméter necessita de profunda reforma, e provavelmente o planeta no seu todo precisa de ser ouvido com mais frequência nas questões que lhe di­zem respeito. Mas autonomia? Independência? Vejamos, não é o germe de uma nação.

Não teci eu vários sonhos sobre este homem? Joelle deixou-se ficar onde estava.

Susanne Granville: — E que entende você por «nação»? Será o Peru homogéneo? A Confederação Andina? Por que motivo não po­dem as nossas várias colónias constituir elas próprias uma pequena União Mundial?

Quase sem acento em espanhol, Susanne não falava timidamente, mas com veemência e, ao que parecia, com certo prazer.

Rueda: — Dir-se-ia Daniel Brodersen a discorrer.

Susanne: — Eu escutei-o e aprendi com ele.

Rueda: — E pensou por si também como estou a ver.

Esboçou um sorriso triste e continuou:

Para que haveremos nós de estar a discutir uma coisas destas? Que nos interessa a política? Andamos perdidos no espaço-tempo. Muito provavelmente, nem a Terra, nem Deméter, nem o conjunto da raça humana, existem já nesta altura, se isto não é uma frase desprovi­da de sentido. Não podemos saber.

Susanne: — E talvez possamos. — Em inglês: — Não estamos ainda arrumados, meu amigo.

Rueda: — Outra vez Daniel. Estou a ouvi-lo. Bem, Su, falamos a respeito de muitos assuntos nestas últimas horas, não falamos? Da vi­da, do destino, de Deus, e de pequenos nadas que nos são caros. Por­que não haveremos de falar de Deméter? Mas quando estivermos me­nos cansados.

Susanne, com doçura: — Tem razão, Carlos. E a vista é deliciosa de mais para ficarmos para aqui a pairar. Olhe!

Dan dava-me uma bela sarabanda se me apanhasse a escutar as conversas dos outros, lembrou-se Joelle. Eu podia retirar-me na direc­ção oposta, mas Dan quereria que eu os avisasse de que tinha dado pela sua presença. Esforçou-se por fazer mais barulho com os pés, deteve-se à entrada e chamou a atenção deles:

Dão licença?

A sala estava mergulhada na sombra. A luz escassa que vinha do hall recortava as silhuetas de Rueda e Susanne. Joelle viu-os sentados ao pé do tabique mais afastado, um em face do outro, a uma distância a que os joelhos se podiam tocar. Um único écran por detrás deles fazia sobressair da imensa escuridão estrelas, a Via Láctea, o planeta com um brilho amarelo-esverdeado e perto dele um ponto dourado que era a sua lua. Caitlín havia proposto que a esse planeta se chamasse Pandora, pois ninguém sabia o que ele lhes iria trazer: tormentos ou espe­ranças? Ou ambos?

Rueda levantou-se para uma saudação cortês:

Ah, a Dr.a Ky! Que a traz por cá?

Nem ele nem a linker pareciam perturbados, embora Joelle suspei­tasse de que a interrupção não lhes agradasse.

É que... gostava de verificar uns elementos — disse a holoteta. Porque diabo haverei eu de me sentir embaraçada? — E vocês? — Espera, eu não precisava de lhes disparar uma pergunta destas.

Nada de especial. Pensei que toda a gente soubesse. Su e eu tornamo-nos aqui como a quinta roda da carruagem. Quando muito, fa­zemos trabalhos auxiliares, trabalhos marginais. Decidimos, por isso, aprender especialidades de que a nave precisa, mas começamos apenas agora a analisar aquilo em que podemos ser melhores. Assim, viemos até aqui para nos familiarizar com a aparelhagem quando não está a ser utilizada.

E caíram numa conversa que se prolongou noite dentro. Como as vossas vozes soavam ternas! Joelle sentiu um leve frémito, no frio da madrugada.

Compreendo. E felicidades!

Afastou-se deles à passos decididos e dirigiu-se para os compu­tadores.

Girando em órbita em torno de Pandora, a vinte e cinco mil quilômetros dela, os ocupantes da Chinook viram-na em grande num écran na sala comum. Com um resto de sol a descair, vindo do lado oposto, os oceanos na vazante estendiam-se em verde-escuro e os continentes avançavam por eles dentro em manchas castanhas, bem definidas. Algumas nuvens de água pareciam tingidas de um verde-azeitonado. Mais impressionantes eram as tempestades de poeira a avançar, de um amarelo-claro. Em lado nenhum se descortinavam sinais de gelo ou neve, mas vastos lençóis de sal lançavam um brilho pálido, com uma cor de chumbo. Por detrás de um limbo estava a lua, recortada no crescente, com metade do tamanho aparente da Lua vista da Terra agora perdida, ou de Perséfone vista de Deméter, também agora perdido. Em torno cintilava o universo.

Flutuando em frente da tripulação, Brodersen rosnou:

- Raios para isto! Ou conseguimos mandar um grupo ali a baixo ou temos de reconhecer que não nos esforçamos por encontrar meios de voltar para casa. Talvez o planeta não nos pareça convidativo, mas como podemos dizê-lo? Também Beta não teria aspecto muito atraente, se não o conhecêssemos melhor. Não tenho razão, Fidélio?

O betano emitiu um ruído de aprovação. Nos seus olhos brilhava o reflexo de um mundo tão desconhecido para ele como o era para os hu­manos.

Outrora Pandora tivera a massa adequada, à distância adequada da adequada estrela, para criar vida. As plantas libertavam oxigênio no seu ar, conquistavam o solo, atraíam uma rica diversidade de animais. O fermento da evolução levedara através de centenas de milhões de anos, apurara-se, até que existiu por fim uma criatura que pensava e trabalhava.

Agora, porém, o globo estava marcado pela idade. Desgastado pe­las marés, rodava em torno do seu eixo quase num mês. A sua lua mais próxima tinha-se afastado. Outra, um pequeno corpo a seguir o seu próprio curso, parecia ter sido arrancada da órbita primitiva. Há muito esgotados, os materiais radiativos no núcleo já não produziam mais calor para romperem a placa da crusta e fazer surgir novas montanhas. A erosão tinha desgastado as últimas cordilheiras, transformando-as em colinas. No entanto, apresentavam-se vastos desnivelamentos, com as plataformas continentais a descaírem até ao fundo de mares mortos ou formando desertos enrugados e pântanos salitrosos.

Avançando para a extinção, o sol já tinha lançado muita da atmos­fera para o espaço pelo calor e pelo vento solar, contra o qual Pandora já não tinha um forte campo magnético a servir-lhe de resguardo. De­pois seguira-se a água. Os oceanos a secar libertaram dióxido de car­bono dissolvido, e o efeito de estufa fez que as temperaturas subissem.

Embora pudessem ainda ocorrer violentas chuvadas numa ou nou­tra região, em especial em volta do pôr do sol e do alvorecer, muito do solo estava ressequido e os ventos semeavam a areia. Os trópicos fica­ram calcinados, numa desolação mortal. Pelo menos, os investigadores não encontraram neles sinais de vida. Uma vegetação esparsa sobrevi­via ainda naquilo que havia sido as zonas temperadas e polares. Aí, in­vernos tão longos como os da Terra e noites vinte e cinco vezes maiores estavam a tornar-se severamente mais frios. O dia, esse parecia um bra­seiro.

E isto iria piorar durante uns dois bilhões de anos, até que por fim a gigante vermelha enchesse o céu e devorasse o seu filho, antes de mer­gulhar no olvido de anã preta.

Identificamos aquilo que podem ser ruínas de cidades continuou Brodersen. Localizámos de maneira inequívoca o que podia ser uma grande base no solo, a emitir sinais regulares, e inspec­cionámos o satélite que os transmite, destinado provavelmente a simpli­ficar a navegação aos visitantes depois de eles terem aqui chegado, uma vez transposta a passagem.

Brodersen e Weisenberg tinham saído em fatos de cosmonauta para examinar este satélite. Tratava-se de uma esfera metálica aproximada­mente com o diâmetro da Chinook, sem interesse a não ser pelas mar­cas aí deixadas por micrometeoróides. (Isso dava uma ideia de como era antiga, naquele sistema onde restavam poucos corpos de pequenas dimensões.) Os homens tinham calculado que transdutores na liga transformavam a energia solar num código de radiofreqüências. Embora isto desse resultado, não se ajustava à noção que Brodersen tinha sobre o que os Outros haviam feito. Mais desapontadora era ainda a ausência de quaisquer seres que viessem dar as boas-vindas aos recém-chegados ou respondessem aos seus repetidos sinais.

Brodersen estendeu o queixo.

Bem, vocês sabem isto — disse ele. — A questão que se nos põe é saber o que fazer a tal respeito. Quanto a mim, entendo que devíamos mandar a Williwaw dar uma vista de olhos. Alguém deve vir aqui uma vez ou outra, ou alguém deve estar por aí à espreita para ver como so­mos nós. Concordam?

Concordaram.

Brodersen usou da sua maneira mais cordial:

Excelente, excelente! Vamos agora decidir quem deve ir. Pri­meiro, eu... Esperem! Escutem!

- Desta vez não é uma situação como em Danu. Aí, a nave tinha principalmente de enfrentar uma atmosfera e uma gravidade hostis. E uma natureza que se lhe opunha. Aqui a tripulação terá de desembar­car, ou não é esse o objectivo de toda a manobra? Podemos necessitar de um soldado, de um diplomata, de um caçador das florestas, de tudo. Com a devida modéstia, que é sem dúvida pequena, lembro-lhes que já tenho no meu activo bastantes tarefas deste género.

- Cale-se, Phil! Talvez você tivesse razão da primeira vez, de que o comandante era indispensável. Mas todo o pessoal se habituou às vá­rias tarefas de bordo depois disso. Posso mencionar três ou quatro que estão aptos a desempenhar o meu lugar e a dar andamento daqui a pouco às coisas tão bem como eu. Além disso, se eu não puder dar livre curso ao meu machismo por uma vez que seja, vou ficar para aqui a enferrujar.

- Tenho dito. Vejamos agora quem mais devemos mandar.

A questão ficou decidida mais rapidamente do que Brodersen espe­rava. Dozsa de novo para piloto; Rueda de novo para co-piloto e assis­tente principal (Su Granville parecia ainda mais angustiada do que quando o comandante se havia destacado a si próprio); Fidélio, pela sua experiência como xenosofonte (o betano concordou, com gravida­de); Caitlín, desta vez para prestar assistência médica no caso de neces­sidade (Leino permaneceu mergulhado em silêncio).

Pegeen... oh, não, não! Realmente levei as coisas um pouco longe de mais, não levei? Ela pôs-se a cantar alegremente. Pegeen, e que será de nós se as coisas forem mal naquela bola infernal?

A Chinook descaiu para uma órbita mais baixa, inclinou-se de ma­neira a facilitar à Williwaw o vôo para alcançar o seu objetivo.

Esta últimá nave avançou por sua vez, deixou atrás de si um rasto de vapor e dirigiu-se para o planeta. A sua fuselagem escura cresceu até encher a vista. Já não estava agora à frente, mas abaixo.

Bem preso por correias por trás de Dozsa e Rueda, sem nada mais poder fazer, Brodersen estendeu o braço para Caitlín ao lado dele e pe­gou-lhe na mão. Ela apertou-lhe a mão também, com força. Os minu­tos que se iriam seguir seriam os mais árduos e talvez decisivos. Embora a atmosfera tivesse sido minuciosamente estudada do espaço, não dei­xava de ser estranha. Podiam surgir certos factores que pusessem uma nave em chamas. Não dispunham de qualquer controlo no solo para lhes facilitar a descida. A nave-mãe não os podia ajudar a não ser por breves e muitos espaçados momentos, antes de haverem atingido uma posição síncrona. Ela tivera de descer para o lançamento da Williwaw por causa da radiação ardente que vinha do sol, contra a qual esta nave não tinha qualquer proteção eletrostática.

A palma da mão de Brodersen estava tão suada que ele não podia dizer se a Caitlín estava seca ou não. Caitlín dirigiu-lhe um sorriso e fez-lhe sinal com o polegar de que tudo ia bem. De repente voltou-se para passar a mão livre por Fidélio, que se acocorava atrás, seguro por correias especialmente adaptadas para ele. O betano pôs-lhe as garras na cabeça por um momento, muito suavemente: a agradecer-lhe?

Abriram caminho através do céu. Um leve assobio cresceu lenta­mente até se transformar em bramido, enquanto os impactos faziam vi­brar o casco, obrigando-o a oscilar com frequência. Passado algum tempo, no entanto, Dozsa olhou para trás e exclamou:

Pronto, conseguimos!

Brodersen deixou transparecer a sua alegria. Diabo!,pensou ele, com ingratidão. Porque temos nós de ficar para aqui enrodilhados de maneira que nem posso chegar ao pé de Pegeen e dar-lhe um beijo? Bem, espera quando aterrarmos, minha linda. Espera um pouco!

Numa longa descida, a libertar-se do calor, a Williwaw deslizou em direção àquele mundo. Brodersen olhava fascinado, remotamente consciente de que não tardaria a pôr pé nele. (Que teria realmente sentido Armstrong? Era um homem tão isolado!) A noite, noite densa, estendia-se por baixo da pequena lua. Uma língua estranha de terrenos salinos acabava numa escarpa poucos quilômetros além. Por trás fi­cava o planalto que havia sido um continente. O sol-nascente mostrou que se tratava de solo nu, ocráceo, calcinado como tijolo, cheio de fen­das e enrugado. Levantou-se uma tempestade de poeira que os cegou por momentos. Ao longo de um canhão ressequido levantavam-se es­guias protuberâncias de cores brilhantes, por cima de montes de casca­lho. Teria sido ali uma cidade?

Dozsa pôs a funcionar os motores de reacção. Rueda tomou a seu cargo a navegação, orientando-se em primeiro lugar pelo sol, de har­monia com os cálculos que haviam sido feitos, e por fim pelas transmis­sões vindas do seu destino.

Enquanto prosseguiam rumo a nordeste, o relevo elevou-se. A esta­ção também ajudava, pois se estava no Outono no hemisfério norte. As temperaturas desciam, e cada vez se começava a descobrir mais vida. Arbustos espalhados por aqui e por ali, parecidos com couro brilhante, e grandes plantas isoladas, sugerindo vagamente, na sua forma gro­tesca, sagueiros ou juás, cresciam ao lado uns dos outros. Regatos cor­riam para os lagos. Uma relva avermelhada crescia em tufos, cobrindo o terreno. Extensões de dendriformes tornaram-se em floresta, com frondes de um fulgurante violeta-acastanhado a ondular ao vento. Por cima, céu sem nuvens, mais roxo do que azul, com uma tira de verde do sol, que se erguia quase imóvel por detrás da nave.

Fidélio pôs-se a falar. Brodersen teve de se concentrar para seguir o seu espanhol rouco, como de asmático.

— Parece-me que as estações são mais extremas aqui do que em qualquer dos nossos planetas, tanto no aspecto biológico como no cli­mático. Nada cresce nas longas noites, nem no Inverno que se está a aproximar, nem, suponho eu, no mais forte do Verão. Os animais têm de se adaptar a isto. Chegámos provavelmente na altura das colheitas e de pôr tudo febrilmente em ordem.

Brodersen ia dizer que estas conjecturas ultrapassavam de longe os fatos que se apresentavam, mas decidiu calar-se. Os Betanos tinham experiência de uma larga variedade de mundos. Nada como Pandora, é claro, mas alguns havia que tinham certas semelhanças. Além disso, naquele momento o seu próprio interesse pela ecologia local era mera­mente fortuito...

Aí estamos nós!

Caitlín lançou um grito. Brodersen e Dozsa deixaram escapar excla­mações de espanto. Rueda benzia-se. Fidélio agitava-se, e acentuava-se o seu cheiro a iodo. As fotografias tiradas do espaço davam uma pálida imagem da realidade que agora se lhes estendia diante dos olhos.

Existira ali certamente uma cidade, há muito, muito tempo. Ainda se encontravam de pé pedaços de parede em alguns sítios, por entre o arvoredo selvagem que se amontoava. As suas cores primitivas ainda resistiam, com as suas suaves tonalidades. Onde se abriam clareiras, viam-se grandes troncos inclinados, apenas semienterrados.

A norte das ruínas erguia-se um complexo de vários edifícios, à pri­meira vista intactos. Dozsa parou os motores e ficou em suspenso para que os companheiros pudessem observar. De princípio, as estruturas eram difíceis de ver e apenas se distinguiam amontoados de cantaria. Depois, os olhos começavam a seguir o desenho e acabavam por descobrir uma beleza solene. Hexaedros a sustentar colunatas ligavam-se harmoniosamente uns aos outros, em torno de uma torre central for­mada por arcos e espirais, coroada por uma figura dourada a representar o sol, a três dimensões. Estendia-se uma ponte entre os edifícios extremos, a nascente e a poente, descrevendo um arco perfeito com a elegância da asa de uma ave.

Dois quilômetros mais para norte acabava a zona selvagem, impedida de se estender e que ia rodear aquilo que devia ser uma base de na­ves cósmicas (e de quê mais?). Impressionante, e apesar de ser o que ha­via atraído a nave para ali, aquilo oferecia muito menos atractivos para os olhos. Os exploradores viram, sobretudo uma área pavimentada, verde-azulada, com cerca de quatro quilómetros quadrados. À beira alinhavam-se semi-cilindros (armazéns, quartéis?) com a mesma cor, com as suas curvas condicionadas por aquilo que podiam ser entradas ou postos de observação. Quase no extremo do campo encontrava-se uma grande cúpula cinzento-pomba. À volta dela apinhavam-se outras mais pequenas. Surgia depois uma complexa coluna de metal a furar o céu. Fazia parte, sem dúvida, do transmissor de rádio e possivelmente de outro equipamento. Olhando com atenção para a superfície plana, des­cobriram vastos círculos traçados nela. Tratar-se-ia de rodeiras que le­vavam a hangares onde as naves podiam ficar guardadas em segurança?

Este subtil pormenor mal se podia distinguir, pois que uma ligeira ondulação rodeava todo o conjunto, como se fosse um radiador hemis­férico.

Correram lágrimas, mansamente, pela face de Caitlín.

Glória à Criação! — balbuciou ela. — Outra raça no universo. Outra raça que conhece, pensa... e não está morta.

Como? — perguntou Rueda, distraído. Ele estava ocupado, procurando descortinar a Chinook, que devia estar agora sincronizada. — Que quer você dizer?

Não é claro, homem? Os campos encontram-se abandonados, as cidades em ruínas, salvo aqui, onde vemos uns vestígios de restaura­ção... no estilo antigo. Olhe, aquele portal ali diante de nós não é da mesma arquitetura, de modo nenhum. Quem, a não serem os próprios Pandoranos poderia voltar aqui e construir um monumento destes, de­pois de terem demandado um mundo mais jovem?

Caitlín tinha falado em inglês. Brodersen pôs a questão em espa­nhol a Fidélio, que deu o seu parecer:

Parece razoável, camarada nadador, embora uma unha conti­nue presa àquela carne. Haveriam eles de arrostar com tantos trabalhos por mero ang'gh k'hai? (divertimento? sentimentalismo?). Sim, por mero sentimentalismo? Os arquivos de dados podem armazenar toda a memória do planeta-mãe, para ser recriada hologramicamente quando se quiser, melhor do que umas tantas casas fora de uso neste recife em escombros.

Dozsa arrancou a nave à sua situação de suspensa no ar e começou a descrever círculos com ela.

A resposta a isto — sugeriu ele, entretanto — é que as casas não estão sem uso. Recebem visitantes.

Como? — perguntou Rueda. — Que visitantes? Turistas, não? Seria difícil, quando nada mais resta aqui a não serem estas constru­ções. Fidélio tem razão: a eletrônica pode dar-nos muito mais indica­ções sobre a Antiga Pandora. Cientistas, porventura, a acompanharem o que está a acontecer? Eles não precisariam de instalações tão vastas e complicadas, estou certo disso, especialmente com a tecnologia astro­náutica que devem ter, igual ou superior à de Beta.

Em primeiro lugar, eu propus algumas reflexões sobre os ciclos de vida aqui — disse Fidélio, quase em surdina. — Eram razoáveis. No entanto, podem andar a flutuar sem raízes na verdade. Dogmatizar sobre sofontes que nunca encontramos é rematado disparate. Se algu­ma vez conseguirmos descobrir como são eles, a única certeza é que fi­caremos todos muito surpreendidos.

Que é viver senão deparar com novas surpresas? — perguntou Caitlín. — E que maravilhoso que isso é!

Pouco importa agora — interrompeu Brodersen. — Vejamos, em primeiro lugar, se podemos estabelecer contato... Com mil demônios, Carlos! Estarão os nossos amigos a dormir em órbita?

Como em resultado daquelas palavras, surgiram no écran as feições chupadas de Weisenberg, agora a substituir o comandante. Perdera a calma habitual.

Como estão? — quase gritou. — Estão bem?

Sentiu-se um pouco aliviado quando ouviu o que tinham para lhe dizer e quando viu as imagens, tanto diretas como em diferido.

Joelle, embrenhada em holotese, recebeu tudo aquilo logo no cére­bro. O resto da tripulação observava nos seus postos.

Não há vestígios de ninguém — terminou Brodersen, com um suspiro. — Bem, vamos explorar, e talvez possamos obter uma indica­ção de quando deve chegar a próxima nave, ou imaginar maneira de deixarmos uma nota, ou... nem sei!

Weisenberg torceu o nariz e avisou:

Alguém está a guardar o armazém. Ou qualquer coisa é. De con­trário, aquele campo estaria coberto de poeira levada pelo vento e de capim, para não falar de caganitas de animais. Tenham cuidado, ao aproximarem-se.

Hum! Tem razão. Realmente, melhor será nós mantermo-nos prontos a largar. Fique à escuta do que se vai seguir.

Após deliberação a bordo, a Williwaw avançou e aproximou-se da base por cima. Apontou uma metralhadora em cada asa. Dozsa atirou uma rajada. Ninguém estava à vista, que pudesse ser ferido ou atemori­zado, e aquilo era simples ensaio, para tirar a prova. Rueda seguiu a pista. Brodersen regulou uma máquina de filmar para depois passar as imagens em repetição lenta, com ampliação.

As balas atingiram a abóbada diáfana. As tracejantes foram de en­contro a ela e desviaram-se. Dozsa encaminhou para ali a nave num movimento rápido, por entre o rugido dos reactores, e a seguir tomou o rumo do céu.

Ninguém falou antes de examinarem as imagens recolhidas por Brodersen. Nenhum projétil havia penetrado mais de escassos centí­metros antes de ressaltar, achatado pelo impacte.

Bonito! murmurou ele. E se tívessemos ido pousar con­fiadamente em cima daquilo?... Fidélio, tem você qualquer ideia de que pode ser aquela abóbada?

O betano fez um gesto indescritível e respondeu:

Talvez ondas hipersónicas de amplitude ultra-alta, heteródinas, a formarem uma protecção quase sólida. Talvez um tipo de campo mais subtil e eficiente, desconhecido do meu povo. As naves de Pan­dora, ao descerem, devem transmitir um sinal que desligue aquilo para elas, mas não creio que o sinal seja dos que possamos descobrir por meras tentativas.

Nem eu. Muito bem, e que se segue?

A pergunta de Brodersen era desnecessária. Desde início, tinham resolvido sair da nave e andar a pé. Estavam decididos a isso. Dozsa fez descer o trem de aterragem cada vez mais, lentamente. A meio caminho entre a base e o elegante complexo, uma abertura na floresta parecia oferecer local adequado para uma aterragem na vertical e para depois descolar. Dozsa iniciou a descida com o máximo de precauções, reacto­res a funcionarem com grande ruído. Um exame mais de perto mostrou que o solo não cederia sob aquela pressão, a não ser a pequena camada vermelha por cima dele. No entanto, manteve as rodas retraídas e dis­pôs patins de aterragem, patins esses que podia largar se ficassem enter­rados ou presos em qualquer parte.

A Williwaw acabou por parar em solo firme e plano. Os motores gemeram, num gemido que retinia nos ouvidos. Seguiu-se um estalido seco e um silvo, pois a nave deixara passar o ar para ficar à mesma pres­são, mais baixa, de Pandora. Todos desafivelaram os cintos. Caitlín bateu Brodersen em rapidez, adiantando-se no beijo que ele lhe tinha prometido.

Bom disse Brodersen depois de estender a mão à sua volta —, vamos começar. Tenham as armas prontas a disparar.

Pegando numa espingarda automática, meteu-se por trás dos as­sentos na cabina, desceu uma escada até ao ventre da nave e pôs a fun­cionar o fole de saída. Através dele pedalou como se em atmosfera empestada... o que podia corresponder à realidade, não obstante as in­dicações dos espectroscópios. Não o esperava. Chichao Yuan tinha morrido em Beta de uma dose fatal de gás natural que ali se produziu, mas tratava-se de um caso raríssimo, sem precedentes na memória dos próprios Betanos. Ainda menos plausível seria contraírem uma doença que existisse naquele planeta: uma doença produzida por fungos, por micróbios, vírus, enfim por qualquer agente, quando as duas mais semelhantes biologias conhecidas de Fidélio nem mesmo baseavam as suas hereditariedades nos mesmos nucleótidos. Ordinariamente a expe­dição teria, no entanto, feito o seu trabalho com mais precauções do que estas, mandando máquinas controladas a distância recolher amos­tras para análise numa câmara isolada antes de o primeiro tripulante se aventurar a sair, e deixando-o depois talvez algum tempo de quaren­tena. A Chinook, porém, não dispunha de pessoal treinado para isso. Portanto, o comandante reclamou para si o honroso privilégio de ser ele a cobaia.

Desvencilhou-se até chegar ao chão e, uma vez ali, fico extasiado como num sonho. Eu, o velho Dan Brodersen, cheguei a um mundo novo. O primeiro homem a pôr o pé nele. Sentiu-se quase atordoado, inclinou-se para tocar no solo, pegou num punhado daquela terra, passou-a entre os dedos. Estava tépida, seca, e cheirava a... Seria a carvão de lenha?

O calor atormentava-o, impiedoso, como no deserto do Sara. Es­caldante, o ar sorvia-lhe a humidade das fossas nasais até elas lhe pica­rem, os lábios até gretarem. Embora a rarefação dificultasse um tanto os sons, o vento uivava forte, fazendo gemer os ramos e vergar as copas. Brodersen sentia-se como na boca de um forno. Envolviam-no odores de alcatrão.

Olhou à sua volta. Agora que estava ao ar livre, a luminosidade verde modificava as cores mais do que ele havia imaginado: sobre uma relva a crescer, de um encarnado-desbotado, troncos e pernadas es­curas a levantarem-se à altura de três ou quatro homens; recortes den­tados de cores vivas que despontavam do arvoredo; sombrias extensões mais além, onde as moitas refletiam revérberos do sol em cintilações que pareciam de mica; a pele na costa da mão. O céu carregava-se de púrpura. Sulcava o ar uma dúzia de criaturas aladas, de um brilho bronzeado, a baterem as asas. Bichitos parecidos com joaninhas e que não podiam ser insectos, andavam agora a zumbir em volta da nave, após o ruído da aterragem.

Dan, meu amor, como te sentes? — perguntou Caitlín, apreen­siva do seu walkie-talkie.

Excelente! — respondeu ele. — Podes crer. Acalma-te. Senta-te. Lembra-te dos nossos princípios de precaução. Aguarda até eu es­tar seguro de que não há perigo.

Eu não posso estar seguro, é claro, pensou ele. Não é possível. Tal­vez esteja, isso sim, a inalar a morte neste momento. Descobriu que a ideia não o preocupava, arrebatado perante aquele mundo. Então por­que detesto eu a idéia de deixar Pegeen sair?

Não posso prolongar isso por muito mais tempo.

Dando uns passos em frente, notou pela primeira vez que pesava um pouco mais. A gravidade em Pandora excedia a da Terra em al­guma percentagem. Sobre um cepo, no meio da floresta, espiou um animal do tamanho de um gato, e sentiu-se gelar enquanto olhava para ele. Era um quadrúpede sem cauda com pele brilhante, de um azul-pálido, macia, um bico, três olhos o terceiro atrás da cabeça e uma barbatana dorsal em forma de leque. Ao aperceber-se da presença de Brodersen, o bicho dobrou a barbatana e saltou.

Demasiado rápido para um réptil ou para uma criatura mais baixa na escala disse Brodersen quando fez a descrição pela rádio. Equivalente a um mamífero da Terra? Não sei, mas creio que nunca o teria visto se ele não tivesse ficado intrigado pela minha forma e pelo meu cheiro. A minha opinião é, portanto, que se trata da forma animal básica aqui: quatro patas, três olhos, com bico. A barbatana pode ser um apêndice para arrefecimento do corpo. Talvez inclua em si um órgão sensitivo também, o que não é para excluir.

O milagre daquele pequeno animal impressionou-o. Toda uma evo­lução, uma face completamente nova da própria vida. E Ira Quick que­ria manter o gênero humano para todo o sempre encaixado nos seus curros sociológicos!

Brodersen prosseguiu. Ainda a caminho da clareira, parou de novo. Desta vez o que viu foi um carreiro.

A vegetação era escassa e não representava qualquer obstáculo real. No entanto, abria-se ali uma faixa de um metro de largura, de terra ba­tida e muito pisada, a dar para a floresta. Tanto quanto Brodersen pôde verificar, levava directamente aos edifícios que eram o seu próxi­mo objetivo. Quedou-se pensativo, ao vento que soprava, antes de continuar a marcha. Na orla oposta, encontrou o mesmo carreiro, igualmente linear, a estender-se diante de si, pelo arvoredo dentro.

Nem na Terra nem em Deméter os animais faziam carreiros daque­les. Quando perguntou a Fidélio, disse este que também não em Beta. Bem, Pandora podia ser diferente.

Brodersen meteu-se pelo carreiro, seguido em fila indiana por Caitlín, Dozsa e Fidélio. O grupo levava armas, walkie-talkies, cantis dos quais bebiam com frequência, leves mochilas com artigos variados. Rueda ficou na nave. Tinha levantado fortes objecções, mas era essen­cial que alguém ali ficasse, e ele era a pessoa mais indicada. Salvo o murmúrio do vento e um ou outro piar ou trinar, nada se ouvia na flo­resta. «Árvores» mais se pareciam com suculentos gigantes de vá­rias espécies e «canaviais» cresciam a distância uns dos outros, pro­vavelmente por falta de água, mas a sua folhagem, que se espalhava por toda a parte, formava abóbada, de modo que as sombras produzi­das por raios de sol verde tornavam as cercanias um pouco mais frescas do que as áreas sem vegetação. Aqui e ali uma criatura zumbia ou agitava-se ou punha-se em fuga precipitada. De uma vez, o grupo descortinou a distância um animal do tamanho de um pônei, também com barbatana dorsal. Mas no seu conjunto aquilo era terreno árido, estéril.

A vida nada contra a corrente, até que é submersa e se afunda — tinha filosofado Fidélio. — Quando o sol de Pandora co­meçou a atraiçoá-la, as espécies superiores devem ter morrido, a menos que os sapientes levassem alguns com eles quando saíram daqui. Fi­caram as espécies mais novas ou mais simples. E a evolução começou outra vez. O sol não se modificou muito rápido para elas nos poucos milhões de anos que se seguiram.

Fidélio tinha curvado as barbas, sinal de pesar ou de dor. E conti­nuou:

Será isso. Outra extinção em massa; outra recuperação; outra e outra, embora eu pense que cada uma delas seja mais fraca do que a anterior, e sempre a debilitarem-se até ao fim. Quando será que Pan­dora ficará reduzida à morte, para sempre? Talvez dentro de um bilião de anos.

Um bilião de anos, repetia Brodersen enquanto caminhava. Contar até um bilião, à média usual de quatro números por segundo, levaria (e fizera a conta numa pequena calculadora), levaria quase oito anos. Um bilião de anos, de verdadeiros anos no tempo, isso seria uma extrema­mente longa ação de retaguarda para lutar contra as Nornas.

Na verdade, será que qualquer raça de seres luta alguma vez contra outra coisa?

A caminhada foi curta, no decorrer de uma tarde que se iria pro­longar durante dias da Terra. Saíram sob um céu de bronze e viram as casas dos desconhecidos.

À volta delas, apenas crescia relva, mato, e despontavam rebentos de maiores plantas. Paredes escarpadas, talhadas em arco, levantavam-se, ligeiras, até se tornarem em recessos intrincados, com colunatas, em traves interligadas. Nenhuma parte ou janela quebrava a uniformi­dade. Só um portal dava para um pátio. Brodersen levou os seus com­panheiros para ali. Também naquele pátio a natureza lutava para re­gressar. As raízes não tinham (ainda) rachado o pavimento ou o cami­nho, mas a vegetação rasteira cobria os cantos onde a poeira se tinha juntado, e já subiam trepadeiras pelas pilastras. De uma galeria voou uma criatura. Teria ninho ali?

Os recém-chegados prestaram pouca atenção àquilo. No meio do pátio estava um par de estátuas.

Os pedestais eram de pedra, a escultura do mesmo (?) material per­durável que as fachadas. Cores muito vivas davam a impressão de que se tratava de retratos. As figuras representadas tinham o dobro da al­tura de um homem, o que podia ser mero efeito artístico mas que Bro­dersen suspeitou correspondesse antes à realidade. Estavam nuas, e viam-se que eram bissexuadas. (Provavelmente, disse Fidélio; e Brodersen lembrou-se de ter lido uma placa sobre as primeiras coisas que o homem tinha mandado para fora do Sistema Solar.) Figuras corpulen­tas, curtas de pernas, braços compridos, bípedes de tronco sólido, tinham três olhos, mas rostos achatados, sem bico. Cobria-as um azul que não era cabelo, nem escamas, nem penas... A descrição das suas características podia continuar.

Em mãos de quatro dedos, uma tinha levantado um martelo e um inconfundível machado de madeira, outra uma tira de couro ou de te­cido, que continha pictogramas (ou hieróglifos ou...). Por muito estra­nhas que fossem aquelas formas, da sua atitude desprendia-se uma sua­ve tranquilidade.

Foi Caitlín a quebrar o longo silêncio:

Boa sorte para ti, povo de Pandora!

Ou serão eles os Outros? perguntou Dozsa a meia voz.

Brodersen sacudiu a cabeça:

Improvável. Os Outros constroem máquinas com o peso da Lua. Constroem-nas de matéria proveniente das estrelas, para cruza­rem o universo, tanto no espaço como no tempo. Não se preocupariam com coisas deste gênero.

Estariam então os Pandoranos a imitar os Outros? inquiriu Caitlín.

Dozsa tomou um tom pragmático:

E serão estes pandoranos? Como podemos nós dizer?

Penso que devem ser respondeu Fidélio. Têm quatro membros, anatomia trióptica. Características como a barbatana dorsal e bico em vez de mandíbulas remontam sem dúvida a animais primiti­vos, a partir dos quais se desenvolveram as formas mais aperfeiçoadas da época actual.

Como se os mamíferos placentários se extinguissem, ou saíssem da Terra, e surgissem milhares de anos depois novas espécies cujos ante­passados fossem ornitorrincos, pensou Brodersen. Ou lagartos. Ou vermes.

Bem, vamos ver o que há por aqui disse ele.

Devia existir um caminho para os edifícios, mas os estrangeiros não conseguiam encontrar nenhum.

Eles voltam de longe em longe e capinam esta área sugeriu Brodersen. De outro modo, estaria tudo coberto de plantas agrestes.

E com que frequência voltam eles? quis saber Dozsa.

Para a calcularmos observou Fidélio —, teríamos de conhe­cer os ritmos de crescimento. Precisaríamos de um ano ou dois para isso. E ao fim e ao cabo teríamos meramente uma conjectura. Dez anos? Vinte? Vocês podiam-se fixar aqui. A gravidade quadra-se com as necessidades dos vossos corpos. Imagino, porém, que não conse­guiam viver do que produz o solo.

Caitlín estremeceu e abraçou-o. Fidélio tinha à sua frente um ano de vida. Ele correspondeu num gesto rápido, antes que o tremor das suas barbas, num movimento de curiosidadde, se apoderasse dele de novo.

Hum! murmurou Brodersen, vagarosamente. Não parece prático. Penso que devemos deixar uma mensagem, talvez gravada em aço inoxidável, junto destas figuras. Símbolos que digam... vejamos: «Andamos perdidos. Temos a intenção de experimentar passagem após passagem, de harmonia com tal e tal modelo, mas pedimos que venham em nosso auxílio.»

E prestarão eles atenção a isso? perguntou Dozsa.

Se fosse você não prestava? retorquiu Caitlín.

Ele fez que sim com a cabeça.

Mas como havemos de fazer para que eles compreendam? perguntou Caitlín a Fidélio.

Não consigo ter a mais leve ideia reconheceu ele. Em oito anos de íntimo contato com a vossa expedição, chegámos um pouco a compreender-nos. E parece-me que as nossas raças são mais semelhan­tes do que a maioria.

Sentou-se por um momento sobre os pés e a cauda, como uma gra­ciosa figura de mogno entre paredes "de cores intensas, quentes como um forno. As garras e as membranas à volta delas, numa das mãos su­periores, fecharam-se sobre o focinho. OS dedos de ambas as mãos in­feriores estavam entrecruzados.

Não disse ele, por fim, crocitando e aflautando o espanhol, que talvez lhe arranhasse a garganta. Não tenho a menor ideia. Lembrem-se, se vocês prosseguirem com isto, correm o risco de irem parar ao vazio. Os Pandoranos não são os Outros. A menos que eles conheçam os Outros (e por que razão os deverão conhecer, mais do que o vosso povo ou o meu?). Mesmo se conseguirem traduzir o vosso apelo, mandam uma tripulação no vosso encalço ao acaso também. Caitlín, fêmea de amor, você daria instruções para uma coisa destas?

Caitlín não disse palavra.

Passado outro momento, Fidélio acrescentou:

Por minha parte, estou inteiramente disposto a seguir com o rancho. Talvez vocês escolham ficar, na esperança de auxílio antes de os vossos mantimentos se esgotarem. O meu conselho, que pode não ser bom, é que procurem mais. Mas dicidam vocês mesmos, caros amigos.

Não! irrompeu Caitlín em inglês. Um ser como ele, para aqui a morrer neste mundo mumificado? Se não puder voltar para o seu mar, deixemo-lo pelo menos ficar entre as estrelas!

Brodersen sorriu com tristeza e passou a mão pelo ombro de Caitlín.

Depressa excedes as marcas, minha linda — censurou-a ele. Eu queria dizer-te isto.

Não podiam fazer mais do que estavam a fazer, e sentiam o calor a miná-los. As queimaduras do sol também os atingiriam, mais rápido e de forma mais cruel do que na Terra, se não tivessem cuidado.

Desistimos por agora — anunciou Brodersen a Rueda pela rá­dio. Descanse umas horas na nave. Mantenha o ar condicionado a fun­cionar, está a ouvir? E veja se descobre o que se há de fazer. Talvez de­vêssemos esquadrinhar em torno do campo de aterragem. Para ver se conseguimos descobrir alguma coisa. Talvez devêssemos montar esca­das para atingir o alto daquelas arcadas. Ou talvez devêssemos ir em­bora daqui, e já, embora pessoalmente eu não seja dessa opinião. De qualquer maneira, não demoramos.

Vou preparar comida para vocês — anunciou Rueda.

O grupo saiu o portal sem qualquer alinhamento especial e avançou através do terreno mais ou menos despido de vegetação que o separava do sítio virgem. O sol verde tostava com violência. O vento uivava.

Foi então que Fidélio deu um grito espantoso. Era a primeira vez que os humanos ouviam o espanto e a angústia numa voz de betano.

Brodersen viu setas a voarem da floresta. Setas curtas, espessas, com minúsculas pás propulsoras atrás e pontas tripartidas de metal.

Deitem-se! — gritou ele, e estendeu-se logo no terreno coberto de sujidade. A sua espingarda crepitou, varrendo a floresta, num ma­traquear que subitamente cortava aquele pesadelo. Brodersen atirava por entre as setas.

Respondeu-lhe um arrepiante coro de uivos. Ao longe, do matagal, saíram dois seres. Mais tarde Brodersen soube que Caitlin havia apro­veitado a ocasião para lhes apontar o aparelho de filmar. Para si era desnecessário. Tinha visto com perfeita clareza e nos dias da sua vida nunca mais haveria de esquecer aquilo.

Eram bípedes. Bípedes esbeltos, de peito feito para ele. As cabeças tinham três olhos, as mãos três dedos com igual espaçamento. Os pés ti­nham a forma de cascos de cavalo. Das costas saíam-lhes barbartanas, e eram de cor castanha. Usavam calças curtas e do cinto pendia-lhes uma faca e uma espécie de machado de guerra, como o dos índios. Um deles empunhava uma espécie de besta. O outro estava ferido. De um braço corria-lhe sangue. Um sangue escuro.

Não atacaram, porém, mas afastaram-se a saltar para a direita e para a esquerda, enquanto guinchavam. Brodersen disparou sobre o mais próximo.

Não atires! — gritou Caitlin. — Estão a fugir, assustados... Dan, eles têm entendimento!

Brodersen deixou-os partir, mas disparou nova rajada para o bos­que. Dozsa fez o mesmo. Eram mais de dois os selvagens que tinham estado no ataque. Não veio retaliação. Dispersos, todos eles, e em pâ­nico, calculou Brodersen. Os dois que surgiram apanharam um grande susto. Talvez eu tenha atingido algum. Assim o espero.

Deixou o gatilho. Seguiu-se depois um silêncio profundo, ainda mais acentuado pelo vento. Brodersen subiu a uma pequena elevação e olhou em redor. Não lhe chegou qualquer sinal de novo perigo.

Continue de vigilância, Stefan — ordenou ele. — Se vir um movimento, qualquer espécie de movimento, atire.

Dirigiu-se para Fidélio. O betano estava estendido numa poça de sangue, vermelho-escuro. Mais sangue esguichava da ferida que a luta havia aberto no seu corpo entre os braços superiores e os inferiores. O sangue já quase tinha ensopado Caitlín, que por sua vez ajoelhara ten­tando estancá-lo.

Caitlín fitou os olhos em Brodersen, quando este se aproximou.

Nada feito! — disse-lhe ela, em desespero. — Nem tenho equi­pamento, nem conhecimentos, nem tempo. Uma artéria principal, um órgão vital ...

O sangue ia diminuindo de intensidade. A respiração de Fidélio, cada vez mais penosa, estava também a diminuir, e ele abrandava a luta contra a morte.

Caitlín avançou para lhe apoiar a cabeça no regaço. Aqueles olhos azuis procuravam os dela.

Fidélio — disse Caitlín em espanhol —, está a ouvir-me?

— gemeu ele.

Fidélio, haveremos de regressar. E ajudaremos o seu povo à sa­ber o que pretende sobre as nossas maneiras no amor. Embora eu pense que os Betanos têm muito a ensinar-nos nesse capítulo.

Gracias ... — foi a sua resposta, que Brodersen mal pôde ouvir.

Caitlín passou as mãos ao longo da pele de Fidélio e cantou bai­xinho:

 

Dorme, menino, dorme, que a abelha zumbe ao crepúsculo

E já o lusco-fusco vem envolver o mundo em cinzento.

 

Tinha cantado o mesmo para os filhos de Brodersen, a antiga «Gartan Mother's Lullabye». A melodia era bela:

 

Ai, meu menino, minha alegria, amor do meu coração,

Cantam por ti os grilos à lareira, antes de o fogo morrer.

 

Brodersen deixou-os sozinhos e, tomando todas as precauções de defesa possíveis, foi fazer o reconhecimento da mata. Não encontrou nenhum morto, nenhum ferido, embora aqui e ali salpicos pretos lhe dissessem que tinha acertado mais de uma vez. Provavelmente o bando havia levado os feridos para longe, como fazia a tropa. Brodersen reu­niu algumas armas caídas, para as examinar mais tarde, e regressou. Nessa altura já Fidélio estava morto.

Depois de dar a notícia a Rueda, que ficou consternado, Brodersen ordenou:

Não, deixe-se ficar onde está. O espaço aqui é demasiado pe­queno para aterragem segura, e demais a mais você teria de guiar a nave sozinho. Convinha que reforçasse a vigilância. Se tiver dúvidas, afaste-se. A Williwaw é fundamental para a sobrevivência de todos, e não po­demos deixá-la perder por nossa causa.

Depois de um protesto, continuou:

Cale-se, mister, e obedeça às ordens!

Voltou-se para Caitlín e Dozsa:

Pois vamos a isto! Tu no meio, Pegeen. Com os olhos bem aber­tos. Fogo à primeira suspeita. Vamos aguentar a pé firme na nave até que a Chinook esteja preparada para nos receber.

Caitlín apontou, sem uma palavra, para aquele vulto ali a seus pés. Brodersen meneou a cabeça:

Não, não o podemos levar, pois arriscávamo-nos a cair numa ci­lada. Não quero também organizar uma operação para o recuperarmos depois. Gostaria que isso fosse possível, mas... Querem que os vossos amigos ponham em risco a vida pelo cadáver? Creio que não seria ra­zoável.

- Vamos!

 

A nave espacial lançou-se a toda a velocidade, do planeta em direc­ção de novo à máquina T, para um novo salto. No primeiro quarto da noite, após o jantar, a sala comum ficou vazia. Ninguém queria olhar para Pandora e para o seu sol verde, nem confessar o seu desalento su­gerindo que fossem apagados os écrans. Aos pares ou sozinhos, os membros da tripulação encaminharam-se para os seus alojamentos.

Brodersen e Caitlín baixaram a cama, porque só assim podiam ficar sentados um ao pé do outro, encostados a almofadas e ao tabique. Ti­nham vestido pijamas, o que só raras vezes acontecia, e servido uísques secos. Davam a mão um ao outro.

Brodersen começou logo a esvaziar o copo. Lançou uma baforada de fumo, e outra, e pressentiu que as suas forças estavam a flectir.

Deus nosso, Pegeen! gemeu ele. Perdi mais um tripulante. Responsabilidade minha.

Não havia nada a fazer, meu amor respondeu ela. Ninguém te censura por isso.

Mas censuro-me eu!

Caitlín deixou-o olhar para o vazio e sorveu ar por um momento, antes de pôr o copo numa estante ao lado. Pegou-lhe depois no queixo e fez-lhe voltar a cara para ficarem ambos de frente.

Por agora basta, Daniel Brodersen — advertiu ela. — Estás a lamentar-te a ti próprio, o que é a mais desconsoladora emoção que existe.

Brodersen fitou os olhos nela, severa nas suas feições emolduradas de cabelo de bronze a cair-lhe sobre os ombros. Conteve-se com dificul­dade e depois sacudindo a cabeça, disse:

— Tens razão; desculpa-me. Foi um golpe doloroso, mas eu devia tê-lo suportado como um homem.

Caitlín, passando-lhe a mão pelo pescoço, confortou-o:

Não, meu querido, não te sintas culpado também por isso. Su­portaste um fardo de que te podes desfazer agora... Um fardo que de­ves deixar.

Ela beijou-o longamente, mais com ternura do que propriamente ardor.

Quando se sentiram mais à vontade, Caitlín suspirou:

Para te dizer a verdade, não me inquieto muito por ti. Phil Weisenberg, esse, sim, receio que esteja com o moral demasiado em baixo.

Ah, sim? É verdade que não jantou, mas um golpe destes pode destruir o apetite a qualquer pessoa.

Caitlín mordeu o lábio, pesarosa, e depois disse:

Não o ouviste quando me chamou para me dizer que estaria au­sente. Nem o viste quando embarcamos, ou depois quando nos apron­távamos para nos pormos em marcha... Oh, sim, viste-o, mas não de­ves ter reparado. Tinhas muitas preocupações na cabeça. Ele está a agir como um robot: tranquilo, eficiente, cortês.

Brodersen franziu a testa.

Notícia desagradável para mim, essa, não há dúvida — disse ele, com tristeza.

Caitlín, apertando-lhe a mão, procurou consolá-lo:

Não te preocupes também com isto, meu amor. Deixa-me ver o que posso fazer. Vocês são velhos amigos, sei-o bem, mas tenho o pres­sentimento de que ele não se abriria contigo, simplesmente com receio de te aumentar as apreensões. Pode ser que prefira confiar-se a mim.

Hum!... Bem, tens um dom... Seja!

Brodersen bebeu mais um pouco. Depois, abruptamente, observou numa voz rouca:

— Talvez possas descobrir por que razão aqueles diabos nos ata­caram.

Caitlín reuniu as palavras.

Eles não são diabos, Dan — disse ela então. O seu tom era sua­ve. — São seres inteligentes, como tu e eu... Caçadores ainda, cujos poucos abrigos dispersos na solidão não conseguimos, ver de cima... Mas os nossos antepassados também assim eram, e não há muitos séculos. Sinto-me feliz, podes crer porque me parece que não matamos nenhum.

Depois do que nos fizeram?

Pensa. Que são eles? Uma raça que evoluiu de animais inferiores nos últimos milhões de anos, depois de o sol se ter modificado.

Sim, é evidente.

Pensa mais ainda, Dan. A raça mais antiga partiu. Ela pode vol­tar ali uma vez ou outra, em homenagem ao passado ou por dolorosa curiosidade. Mas porque haveriam de estabelecer aquela base, de man­ter uma frota de naves e levantar aqueles edifícios no estilo antigo e dei­xar estátuas deles próprios? Porquê, senão para ajudarem os seus sucessores? para abolirem os piores horrores de tal ambiente. Para darem aos novos seres o que lhes será útil como, por exemplo, o ferro para forjar armas de caça... Mas talvez uma peça de tecnologia de cada vez, uma em cada século, a fim de que aprendam a usar delas, e não abusar...

Caitlín pôs a palma da mão diante da boca de Brodersen.

Chuta, macushla. Deixa-me acabar. Suponho que os mais ve­lhos guiam toda a cultura dos mais novos, no seu desenvolvimento, ou aquilo que existe de diferentes culturas na pobre Pandora. Suponho também que esta orientação seja ainda mais lenta e cuidadosa, não para debilitar o espírito e o gênio da própria raça, mas para o deixar florescer. Isso explicaria não é assim? as estátuas... Lembranças dos mestres que regressam após gerações e reabrem as suas escolas ... Mestres que, penso eu, fazem tudo quanto podem para não se torna­rem deuses.

- No fim de contas, embora muito antes de o planeta ficar ainda mais calcinado, devia ter havido ali uma civilização apetrechada e com meios para demandar o caminho das estrelas.

Caitlín sorriu, bebericou, passou os lábios pela face de Brodersen.

Não te parece razoável tudo isto, meu amor? perguntou ela.

Bem ... Apenas podemos ficar no campo das conjecturas...

Brodersen bateu com o copo na estante e prosseguiu:

E porque raio atiraram eles sobre nós?

Como podiam eles saber quem nós éramos? Nenhum de nós se parecia com os mestres. Podíamos ser demónios a invadir o seu santuá­rio mais venerado. Ou podíamos ser duas novas espécies de bichos, a matar como precaução ou matar para ter caça. Fidélio disse que pensa­va ser esta a estação de recolher aos abrigos, antes de um tormentoso Inverno. Recolhem os casais, os filhos, enfim todos de quem eles têm de cuidar. Fidélio podia ter morrido na Roda, por malvadez. Aqui houve apenas um erro, e causado por amor.

Não previmos. O universo colheu-nos de surpresa.

E será sempre assim, Dan. Tu sabê-lo muito bem.

Brodersen fez que sim com a cabeça, num movimento irregular.

Acabou depois o uísque, pousou o copo e voltou-se para ela:

Pegeen, tu fazes que as coisas tomem de novo aspecto aceitável...

Abraçaram-se um ao outro, nada mais. Quando Caitlín sentiu que a tensão estava a baixar em Brodersen levou-o com os braços para ele se deitar. Brodersen cerrou os olhos. Caitlín beijou-lhe os lábios. Ele sor­riu. Caitlín estendeu-se ao seu lado. Não tardou que Brodersen ador­mecesse.

Caitlín havia tomado apenas uma gota de uísque. Levantou-se e pôs-se a andar por ali descalça, com os dedos enclavinhados uns nos outros, com uma crescente dor a transparecer-lhe no rosto. Por fim, depois de olhar para o homem para ter a certeza de que ele estava a dor­mir profundamente, dirigiu-se à linha privada do intercomunicador e formou um número.

Arrastou-se no aparelho a voz de Weisenberg:

Sim?

Espero que não o tenha acordado — disse Caitlín.

Oh, não! Ainda não é tarde.

Dir-se-ia uma máquina a falar. E Weisenberg perguntou:

Que se passa, Caitlín?

Gostava de ir falar consigo, se possível.

Weisenberg hesitou:

E pressa? Sabe, estou cansado. Só lhe posso oferecer uma com­panhia muito tristonha.

E que tem isso? As suas funções não incluem a obrigação de me divertir. Eu gostava era de estar um pouco consigo, para conversarmos. Ponha-me fora depois, quando quiser.

Bem, se insiste.

Obrigada, Phil, meu caro. Vou já.

Caitlín apenas se demorou num sorriso a Brodersen.

Ao dar a volta ao fundo do corredor, encontrou Leino. Ainda ves­tido, mas despenteado, rondava com um cigarro de haxixe a amarelecer-lhe os dedos. Pararam os dois e assim ficaram alguns segundos.

Boa noite! — adiantou-se ela.

O olhar de Leino percorria-a de alto a baixo e parecia atravessar-lhe o corpo. O pijama de Caitlín era fino.

Onde vai você? — perguntou Leino.

Fazer um trabalho que não pode esperar, Martti. E peço que me desculpe, mas vou andando.

Caitlín dispunha-se a prosseguir o seu caminho. Leino levantou a mão, como para à deter, mas baixou-a. Caitlín dirigiu-se então para a porta de Weisenberg e entrou. Leino viu.

Ainda a segurar o trinco, Caitlín deteve-se por um momento. Uma única lâmpada fluorescente iluminava o compartimento, com a luz re­gulada no mínimo, quase apagada. O écran de dados, que podia ofere­cer o que de melhor havia no património da humanidade, estava fe­chado. Weisenberg estava sentado, na semiobscuridade. Os pulsos descaíam-lhe dos braços da cadeira, o queixo quase pousava no peito.

Levantou a cabeça pouco a pouco.

Olá! suspirou ele. Toma alguma coisa?

Mas nada de álcool. Deixe-se estar onde está, Phil. E Caitlin desapertou uma cadeira, puxou-a e sentou-se em frente dele.

Weisenberg pousou nela o olhar.

Desculpe-me. Como lhe disse, estou muito cansado.

Se fosse por cansaço saudável já estaria a ressonar.

Caitlin inclinou-se para a frente, para segurar ambas as mãos de Weisenberg entre as dela, um calor tépido naquela friúra. Perguntou:

Que se passa consigo?

Ele vincou cada sílaba que lhe saía:

Não lamenta a sorte de Fidélio?

«Lamentar» é uma palavra inexpressiva para o que sintò.

Bem, então considere-me... de luto. De luto pelo segundo ca­marada que perdemos.

Weisenberg tremeu ligeiramente e acrescentou:

Não quero fazer disto um drama. É apenas porque não tenho o seu talento para...

Calou-se.

Para quê? perguntou ela com suavidade, mas sem hesitação.

Weisenberg sentiu apertar-se-lhe a garganta, mas prosseguiu:

Por favor... Não faça mau juízo... Não a quero ofender, Caitlín. Nenhuma idéia que você... não sinta... Tão profundamente... talvez mais... Mas tem o seu... o seu talento... compõe uma canção e... liberta-se... das piores dores... Tal como por Sergei ... Não é assim?

Weisenberg fez uma pausa para respirar. Depois continuou:

Gostava de ouvir, depois, a sua canção. Será uín alívio para mim.

Não, Phil respondeu ela. Não vou fazer qualquer lamen­tação por Fidélio.

Espantado, Weisenberg levantou os olhos, fixando-os nela.

Não seria razoável, você compreende explicou Caitlin. Eu não conheci Fidélio de muito perto. Nenhum de nós o conheceu, a não ser os que vieram da Emissário. Joelle Ky melhor, suponho, mas até que ponto? Quanto a mim, que posso eu dizer dele? Tenho um pálida ideia do que aconteceu. Nada propriamente dele. Não lhe vou dedicar uma canção que para mim fosse puramente mecânica. Merece mais do que isso.

Confesso-lhe que não compreendo muito bem.

Os lábios de Caitlin contraíram-se ao explicar:

É verdade, você não é bardo. Nós somos uma espécie rara.

Caitlín retirou as mãos das dele, mas não o olhar. Sentou-se e disse:

Pense a este respeito. Você não ficou com o coração despeda­çado quando Sergei morreu, embora tivesse sido seu companheiro de viagem repetidas e repetidas vezes, e não obstante os dois partilharem da mesma condição humana, com todas as afinidades e a camaradagem que isso representa. Curvemo-nos com afecto à memória de Fidélio. Mas não nos sentíamos íntimos dele. Não era possível. Nem ele de nós. Podemos lamentá-lo, como você diz, Phil. No entanto, você quer dizer-nos «desolarmo-nos», o que não é o caso.

No rosto de Weisenberg lia-se uma expressão de dor e ele contraiu a boca.

Calma, meu amigo, calma! — prosseguiu Caitlín. — Que te­mos nós a recear? Porquê atormentarmo-nos assim? Qualquer coisa mais o dilacerou hoje, e penso que sei o que foi.

Uma ponta de azedume perpassou por ele ao dizer:

Escute! Você fala muito bem, mas eu não tenho paciência para uma sessão de psicanálise. Se mo permite, preferia ir deitar-me.

Caitlín levantou a palma da mão e sorriu.

Estou-lhe grata por usar correctamente a terminologia da minha profissão, Philip Weisenberg. Mas não tenho a mínima intenção de o psicanalisar, asseguro-lhe. Aquilo que eu disse foi que me parece evi­dente a causa da sua inquietação, o que o honra.

Weisenberg entreabriu a boca num bocejo, conteve-se, tentou uma réplica. Caitlín prosseguiu antes de ele poder falar, enquanto de novo lhe pegava nas mãos:

Quando também Pandora nos deixou desiludidos, e de maneira tão confrangedora, quando tivemos de empreender aquela horrível ca­çada, e outras coisas mais, de súbito você já não conseguia suportar mais. Até aí havia sido a torre da fortaleza, sempre calmo, sempre firme, mais firme ainda do que Dan. Não exaltamos a sua perseveran­ça, embora não fosse surpresa para mim se os fizéssemos, mas a sua presença infundia coragem, espelhava bom senso. Presença que, simplesmente por estar ali, nos animava mais do que podíamos exprimir. Você nunca pedia nada de nós. Na sua maneira tranquila, sempre se dava a si mesmo.

- Bem, por seu turno, quem se deu a si?

- Agora, quando de novo se afastou do seu íntimo a esperança de voltar para junto da família que lhe é querida...

Caitlín levantou-se para se inclinar sobre ele e apertou-o nos bra­ços. Weisenberg endireitou-se e tentou libertar-se. As madeixas de Cai­tlín caíram-lhe sobre o cabelo à escovinha. Logo Weisenberg se agarrou a ela. Escondeu a cara na macieza do seu seio e começou a chorar. Sarah! Sarah! Caitlín sentou-se-lhe nos joelhos e abraçou-o mais estreita­mente, sem hesitar quando ele a apertou mais forte.

Estava Weisenberg naquele ardor havia uns minutos quando pro­curou dominar-se:

Desculpe, Caitlín. Eu não quis... , — Chuta!

Caitlín manteve-se colada contra ele.

Não fica mal a um homem chorar. Aquiles chorou. Cuchulain chorou.

Eu... Eu sei... Mas... presentes cir-cir-circunstâncias... mau para o moral...

Vejamos, amigo. Estamos só nós os dois aqui, Philip, e eu não vou contar nada a ninguém. Esta noite partilhamos a desventura. Parti­lhamos, sim.

Caitlín ouviu-o falar até ao fim a respeito da sua mulher, dos fi­lhos, dos netos. Quando, no decorrer disso, as pernas de Weisenberg começaram a entorpecer-se, Caitlin baixou a cama para que pudessem sentar-se os dois, um ao lado do outro. Mais tarde, quando a cabeça de Weisenberg descaiu, sugeriu-lhe que se despisse e se deitasse. Ele não escondeu o seu embaraço. Caitlin riu e tapou os olhos com o ângulo do cotovelo.

Não estou a olhar — assegurou-lhe ela. — Diga-me quando posso abrir os olhos. Quero vê-lo adormecido.

Weisenberg atendeu ao desejo da sua amiga. Esta dobrou o cober­tor à volta dele, sentou-se à beira da cama e deixou-o falar mais ainda. No decorrer disso, deu-lhe conta do que supunha ser a verdade a res­peito dos Pandoranos. Weisenberg respondeu-lhe que era uma ideia re­confortante.

No entanto, ele não conseguia adormecer. Começava a fechar os olhos, mas despertava logo com ansiedade.

Eu passava-lhe uma garrafa ou um cigarro de haxixe ou um comprimido — disse-lhe ela por fim. — Para si, porém, neste mo­mento, tudo isso é nocivo. Não serve.

Caitlin deixou-se escorregar ao lado dele, metendo-se por baixo da roupa.

Eh! — exclamou Weisenberg, enquanto o braço de Caitlin se lhe estendia por cima do peito. — Espere! Que está a fazer?

Você necessita de carinho, Phil, e que o beijem. Será que a sua Sarah se importaria realmente?

Hum! ... Não, mas... — e fez uma careta. — É que eu estou velho. E terrivelmente cansado.

E eu pedi-lhe porventura alguma coisa mais, a não ser que você saiba que não está só?

Caitlin estendeu a mão para o interruptor e mergulhou o quarto nas trevas. A seguir acariciou Weisenberg, murmurou-lhe palavras doces, como uma mãe faria ao seu filho, e isso durante largo tempo.

Finalmente, ele ficou a respirar com alívio. Caitlin iniciou uma cui­dadosa descontração. Weisenberg ficou abraçado a ela, e Caitlin aconchegou-se contra o seu corpo.

Caitlin! — murmurou Weisenberg meio a sonhar, meio na reali­dade.

Caitlin fez amor com ele, lenta, suavemente. Depois disso, e de al­gumas meiguices, Weisenberg caiu por completo no sono.

Caitlín fechou a porta atrás de si e voltou para a cabina do coman­dante. Leino aproximava-se vindo do hall. Naquele silêncio frio, os seus passos ressoavam bem nítidos, um tudo-nada irregulares. Parou quando a viu, assentou a mão esquerda no quadril, levou a mão direita à boca para uma baforada do seu haxixe.

Bem disse ele. Boa noite, pela segunda vez. A sua noite, aliás está a ser excelente, pelos vistos. Não é assim, Miz Mulryan?

Sim e não respondeu ela num tom neutro. Phil e eu tínha­mos um assunto importante a tratar.

Leino alçou as sobrancelhas. Os seus olhos sondaram aquele corpo esbelto, um tanto em desordem. No ponto onde as coxas se uniam, o pijama estava molhado.

Tratar... — disse ele. Sim, é evidente. E que assunto?

Martti, meu querido, você sabe muito bem que não deve per­guntar coisas dessas. A nossa intimidade não é assim tanta, pois não? Ou teria sido a erva que falou? Quantos desses cigarros fumou já você? E há quantas horas anda por aqui a rondar?

Martti levantou a cabeça e redarguiu:

Não me chame seu querido!

Quer então que lhe chame meu inimigo?

Caitlín deu um passo para junto dele. Leino fez como que se reti­rasse para defender o seu espaço pessoal, mas deixou-se ficar. Caitlín estendeu-lhe a mão e passou-lhe por detrás do pescoço. Os seus olhos verdes mergulharam nos dele.

Também você anda perdido. Também você não consegue reen­contrar o seu equilíbrio, não é verdade? O caminho que tomou é errado, veja bem. Apenas o pode levar a afundar-se ainda mais.

Leino mostrou os dentes.

E qual é o seu caminho? inquiriu ele.

Caitlín examinou-o por um momento, antes de deixar transparecer um sorriso.

Vejamos respondeu ela, no mais fundo da garganta. É um caminho que o reconforta.

Leino cravou os olhos nela. Os quadris de Caitlín ondulavam en­quanto levava a mão à cinta de Leino.

Temos um negócio a fechar, nós também, Martti — disse-lhe Caitlín.

Ele procurou desprender-se. Caitlín segurou-o.

Você estava a morrer de cansaço da última vez tornou ela. Talvez não tenha idéia nenhuma de como é frequente que isso aconteça. Não me deixou qualquer possibilidade de eu o ajudar. Real­mente nenhuma, por muito que eu quisesse. E desde princípio que eu tenho querido cada vez mais.

Pretende você... dizer...

Não pôde continuar.

Caitlín arrancou-lhe o cigarro dos dedos e esmagou-o no chão. A alcatifa não sofria muito com isso, e a limpeza habitual recolheria a ponta e as cinzas.

Já lhe disse que esse caminho é errado, Martti, meu amor.

Leino apertou-a contra si.

... Pouco depois, na sua cabina, Leino estendia-se sobre a almofada, a olhar deleitado e confundido. Caitlín aninhava-se ao seu lado.

E aí está! Não tinha razão? perguntou ela.

Não há dúvida que sim murmurou ele. obrigado, Caitlín!

Com um pequeno esforço, enquanto a contemplava com os olhos meio fechados à cabeceira:

Obrigado! Desculpa de ter sido tão rápido. Não queres passar o resto da noite aqui comigo?

Eu passava, desavergonhada e insaciável atrevida que sou.

Caitlín beijou-o. Ele correspondeu-lhe vigorosamente.

... Tinham dormitado um pouco e gozado de prazer pela terceira vez e estavam a descansar contra o tabique, como ela e Brodersen ha­viam feito horas antes. Na cabina pairava um ar tépido, com odores animais. Aproximava-se a madrugada.

Queres então voltar cá esta noite? perguntou ele. Hum! Sem me intrometer com Dan ou com mais nada, mas se pudesse seria maravilhoso.

Até que ponto me queres tu? respondeu ela. Estou certa de que Frieda podia...

Sorriu e concluiu:

... podia estender-se aqui na cama contigo.

Leino abraçou-a com força. A sua voz retomou o sotaque das Ter­ras Altas:

Não me interessa, não, Caitlín, andar atrás de Frieda. És de longe mais apetecível. E mais alegre.

Ah, bem, apetecível... alegre... Se é tudo, estou servida!

Como? E voltou a cabeça para olhar Caitlín de frente.

Caitlín olhou também para ele e afirmou:

Pois eu receava que estivesses apaixonado por mim. Isso podia reservar-te um lugar à parte.

Chocado, ele protestou:

Mas estou apaixonado, Caitlín!

Não disseste uma palavra a esse respeito esta noite ... Espera aí, por favor. Deixa-me acabar. Eu não me sinto de modo nenhum ma­goada nem ofendida. Pensa como seria desastroso se cada homem que está vivo me desejasse a mim. Eu acredito que te tornaste meu amigo, Martti, e sinto imenso prazer nisso.

Caitlín abraçou-o e beijou-o.

Leino agora mal reagia. Quando ela o largou, olhou-a com uma es­pécie de horror.

Caitlín, minha querida, amo-te! — despejou ele em cata- dupla. Para mim és a mais encatadora que até hoje encontrei.

Caitlín empertigou-se. O seu tom tinha a dureza de um açoite:

Então porque não ousaste nunca aproximar-te de mim? Nunca, enquanto não me viste como uma garça?

Leino não conseguia articular palavra. Foi Caitlín que continuou, assentando-lhe um dedo no peito:

Escuta-me, Martti. Mete na tua rica cabeça que eu não me preo­cuparia assim por ti se não me interessasses. Seria mais fácil dar-te o teu prazer e deixar-te mergulhado nos teus ares de pessoa importante. Mais fácil para ambos, sem dúvida, enquanto durar esta viagem. Mas talvez ela não dure até ao dia do juízo. Talvez encontremos o caminho de re­gresso. Nesse caso, e em devido tempo, vais querer casar-te... Espera. Vais dizer que queres casar comigo. Previno-te de que é impossível, mas isso em nada modifica as coisas. Com certeza que hás de querer uma mulher a quem respeites, uma mulher de quem te possas orgulhar.

- Martti, como vais tu ser um marido para a mulher a quem respeites?

... Depois disso, quando a conversa esmoreceu e a dor cessou, fica­ram os dois numa doce quietude. Caitlín sussurrou pelo espaço aberto entre o pescoço e o ombro de Leino:

Olha, desculpa-me. Eu entendi que se devia fazer isto a ti... por ti... em qualquer altura. E quem melhor do que uma camarada de bordo? Demais a mais, quando eu sei muito bem que os velhos hábitos de pensar não podem mudar de um dia para o outro, e temos aqui dian­te de nós semanas inteiras, meses, talvez anos... Não receies, não vou intrometer-me naquilo que sentiste a respeito da tua mãe ou de tua irmã, em especial de Lis.

Leino vacilou.

Não, meu querido Martti, não vou. Não é necessário, nem de­cente, creio eu. Já tens o conhecimento disso no teu cérebro. Precisas apenas de o consolidar bem nos teus ossos. Que nós, mulheres, não so­mos vasos de santidade, irremediavelmente profanados se nos deixar­mos cair na mesma espécie de franca sensualidade que tu conheces. Não somos muito diferentes de ti neste aspecto, nem tu de nós na tua fragilidade.

Caitlín!

A mulher que te couber pode muito bem escolher ser apenas tua, como Lis escolheu ser até agora apenas de Dan. Nada de censurá­vel nisso, se for o que vocês os dois realmente desejarem. Mas ela tem o mesmo direito à liberdade do que tu, a todo o género de liberdade, e se a reclamar não se tornará menos digna. Antes pelo contrário. Sim, a li­berdade pode ser solitária, pode ser assustadora, e por esse motivo muita gente há que a recusa, para si própria ou o que é realmente um perigo para os outros. No entanto, penso muitas vezes que é assim a natureza humana. Tudo o mais, um animal ou uma máquina podem fazer. Escolher a liberdade, só nós.

Nós... Nós abusamos dela...

De facto. No fundo somos macacos em quem o cérebro se desenvolveu bastante em relação ao resto do corpo. Se alguma vez en­contrarmos os Outros, podemos começar a aprender o que é realmente a liberdade. Entretanto, deixa-nos ser tão dignos dela quanto puder­mos.

Caitlín pôs-se rir, num riso fininho.

Ouviste o meu sermão! Martti, daqui a nada tenho de ir fazer o pequeno-almoço. Mas primeiro, se não estiveres estoirado (o que pode muito bem acontecer, e podes crer que muitos como tu o estariam), se não estiveres estoirado, gostava de demonstrar-te ainda uma vez o que eu quero dizer.

Daí a instantes, no meio de mais riso de ambos, suspirou Caitlín:

Ah! Que haverá de mal se este almoço ficar atrasado de uma hora ou duas? Não te parece?

No resto da nave, por toda a parte a tripulação dormia. Frieda e Dozsa juntos. Os restantes cada um em sua cama: Brodersen e Weisenberg numa paz doce; Joelle num sono pesado, sob sedativos; Rueda às voltas em cima do colchão; Susanne com um sorriso que aparecia e de­saparecia, para voltar de novo. Sob o comando do robot, a Chinook avançava para o engenho de transporte.

 

Eu era um filho do Povo. O meu pai um homem da Sociedade do Milho. Homem respeitável que nunca, em circunstância nenhuma, pro­curou alcandorar-se acima dos outros. No entanto, no décimo mês an­tes de eu nascer, numa noite em que ele e os seus companheiros estavam na kiva[1] a recordar os seus mortos, a minha mãe fez um estranho so­nho. Era como se as kachinas[2] chegassem e a levassem mansamente para o seu delicioso mundo por baixo do mundo. Assim, enquanto ela se ajoelhava numa esteira, apoiada pelas suas irmãs, e me dava à luz, os homens da Sociedade do meu pai — depois de purificados — dança­ram ao som de certas músicas, fumaram o fumo sagrado dos seus ca­chimbos, e oraram.

Não receberam sinal, nem bom nem mau, e assim tomaram-me pelo que eu era, outro rapaz, e apresentaram-me ao Sol. Mais tarde chorei e gemi e agitei as pernas no ar e dormitei. Fui embalado nos bra­ços dos meus pais e da minha família, suguei a vida nos seios de minha mãe. Trazia-me às costas, enfeixado num cestito de verga, enquanto trabalhava nos feijoais, nas plantações de abóboras e nos algodoais. Nessas ocasiões, a minha cabeça andava bem apertada contra a verga, para moldar o meu crânio e me tornar elegante. Não tardou, porém, que eu gatinhasse à procura de crianças mais velhas. Nós, miuditos, jo­gávamos muitos jogos, com frequência interrompidos por gritos e lá­grimas. As minhas primeiras recordações são, contudo, de um corvo a voar. Estava eu próximo de um penhasco. Do outro lado cavava-se abrupto o desfiladeiro, no fundo do qual crescia o salgueiral, rodeado de zimbros e cactos, para se estender depois nu de vegetação. No meio dos verdes, intensos ou esbatidos, a rocha morena, sombreada de azul, o calor e a luz e a quietude e os odores a resina, tudo sob um céu onde o olhar se perdia no infinito. E por ali andava aquele vulto negro, so­berbo, luzidio, a voar!

O nosso pueblo situava-se a meio caminho, na vertente do desfila­deiro numa espécie de socalco. As alturas, lá por cima, davam-nos sombra quando as tardes de Verão crestavam a terra. Não éramos nem a maior nem a menor comunidade daqueles vales onde o povo habi­tava. As paredes de adobe eram espessas e fortes, de uma aspereza agradável ao tato. Os quartos lá dentro eram bastante escuros, mas confortáveis em todas as estações. De piso a piso estendiam-se escadas, e nós andávamos sempre escada acima escada abaixo, para irmos ao trabalho ou fazer visitas. Embora cultivássemos as boas maneiras, lem­bro-me que nos divertíamos imenso.

Possuindo uma nascente próxima, tomávamos, no entanto o car­reiro até ao rio para pescar ou para nos lavarmos ou para apanhar erva — ou, na estação quente, para nos refrescarmos. Os jovens brin­cavam então na areia, enquanto os mais velhos se sentavam com grave serenidade. Outros carreiros levavam lá a cima, onde os nossos campos reverdejavam e onde cortávamos madeira (depois de explicarmos às ár­vores as nossas necessidades). Caçávamos também, íamos a diferentes pueblos, procurávamos a unidade com os espíritos no sonho ou na me­ditação. Aí, numa noite clara, como claras eram quase todas elas, um homem viu as estrelas sem conta, mais estrelas do que escuridão, a apinharem-se em torno da Espinha Dorsal do Mundo. A lua cheia ate­nuava todo aquele esplendor, mas dava à terra uma palidez misteriosa.

Sim, a Criação estava repleta de luz. Até mesmo as mais fortes chu­vadas, as trombas de água, resplandeciam, fulgurantes, enquanto o trovão ressoava com estrondo. Mesmo os nossos mortos — por quem nós quebrávamos as mais finas peças de olaria para as sepultar com eles mesmo os nossos mortos assistiam ao resplendor, no mundo debaixo do mundo ou quando voltavam para junto de nós sem que os víssemos.

Cresci, com os meus deveres após deveres. Para começar, ajudei a guardar os bebês. Depois, a cultivar o milho, sendo já isso um direito dos machos. Depois, ainda, transportei cargas e peguei em ferramentas demasiado pesadas para as mulheres. Guiado pelos mais velhos, fui ca­çar, derrubar árvores, viajar. Participei em cerimónias próprias da mi­nha idade. Dessa maneira aprendi aquilo que um homem deve saber.

À parte algumas tarefas que eram excessivamente duras ou monó­tonas, gostávamos de tudo quanto fazíamos. Quanto àquelas de que ninguém gostava, além da consolação de sabermos que eram necessá­rias para mantermos o pueblo com vida, levavamo-las a cabo com a melhor disposição que podíamos. Assim, para mencionar apenas uma, quando as mulheres pilavam o grão que os homens haviam trazido (depois de termos limpado as nossas casas para que o grão se sentisse satis­feito por ali entrar), fizeram uma festa, conversando sobre os metates , enquanto um homem ficava à porta a tocar flauta para elas.

À medida que as minhas pernas cresciam, toda a gente notou como eu me parecia com minha mãe nas feições, mas sem nada do meu pai na minha maneira de ser. Isso levou a certa murmuração entre os espíritos mais intriguistas. O falatório acabou por se extinguir, porque o Povo considerava o que se passa entre homem e mulher como coisa normal, e não como sagrada. (No entanto, tudo quanto é bom é sagrado.) O meu pai concordou simplesmente que aquilo era sinal de que eu não devia ingressar na sua Sociedade quando chegasse à puberdade, mas na do meu tio. Teria sido a saída usual, de qualquer modo, uma vez que nós tomamos a descendência e a herança pela linha materna.

Como não interessa o que se passou depois disso, não posso e não quero falar dos meus ritos de iniciação, a não ser para dizer que eles ter­minaram na kiva quando os espíritos se levantaram do sipapu para nos abençoarem. Foi aí que ingressei na Sociedade das Ervas. Isso me levou a passar anos a aprender quais as plantas que podem curar, quais as que podem fazer mal, quais as que podem adormecer a dor, quais as que dão bom paladar, quais as que provocam sonhos estranhos e de­vem ser evitadas, e como falar a cada espécie de planta com respeito e amor.

Entretanto casei-me. Fundei um lar, assumi as obrigações de ma­rido. Minha mulher era uma aldeã desempenada e sã, que rapidamente se tornou mais encantadora para mim do que o nascer da Lua ou do que a flor da iúca. E quando me deu o meu primeiro filho, para eu o le­var nos braços e o mostrar ao Sol!...

Conhecemos mais do que alegrias, naturalmente. Alguns de nós fi­caram estropiados, sobre outros caiu a doença e não os pudemos curar. Muitos morreram novos, outros iam envelhecendo. Os dentes desgastavam-se até aos cepos, a carne ia ficando flácida, com a cegueira e a sur­dez a rondar-nos o corpo, a envolver-nos, até já não prestarmos para nada. Por mais que, com todo o desvelo, filhos e netos cuidassem dos velhos, lembrando-lhes como eles haviam olhado pelos recém-nascidos, talvez fosse isto o que nos feria mais ainda.

Cada vez sofríamos mais das incursões dos nómadas, vindos da planície. Esses saqueadores dos matos, irmãos do coiote, têm arcos e flechas mais fortes do que os nossos, e viviam para a guerra. No meu tempo caíram sobre um pueblo, torturaram até à morte todos os ho­mens que não haviam matado, violentaram as mulheres depois de as ar­rancarem de casa, e deixaram as crianças morrerem à míngua. Isso nos fez lembrar antigos meios de defesa que havíamos negligenciado. De­pois de uma dura prova como aquela, aprendemos a suportar um cerco até a fome obrigar os bandos selvagens a saírem do terreno. No en­tanto, ficaram na minha memória também batalhas espantosas.

Não foram só as suas almas cruéis que os levaram a cair sobre nós: foi também a necessidade. Sabíamos de dois anos seguidos sem uma pontinha de chuva, e as lendas dizem que esses anos haviam sido extre­mamente maus. Mas agora contávamos três, quatro, cinco... As nossas colheitas eram cada vez mais escassas, as sementes jaziam estéreis no solo ressequido, a menos que puxássemos constantemente a água... Seis, sete, oito... O nosso sol torturava-nos, num céu que, agora, se ia tornando pálido. A terra rechinava na canícula do Verão. Os invernos eram secos, eram calmos, e dolorosamente frios... Nove, dez, onze... Repartíamos parcimoniosamente os alimentos que ainda conseguíamos descobrir. Os velhos e os mais novinhos começaram a morrer. Quatro dos meus filhos lá se foram assim, dois enquanto eu vigiava, dois en­quanto eu andava por fora a participar nas preces...

Foi então que o Arauto veio até mim. Eu tinha nascido para o mundo que não estava por baixo do mundo, nem por cima, nem por trás, mas que é todo o mundo.

Para aquilo que se seguiu, não há palavras. Tal como para uma noite com uma mulher muito querida, ou para uma noite na kiva, ou para uma noite quando a nossa mãe nos morre nos braços, também não há palavras. Eu era todos os deuses que até aí tinham existido, e compreendia tudo quanto se tinha passado antes. É belo e terrível, para além de qualquer sonho. Mais não me posso lembrar neste corpo.

Por fim, Ele disse aquilo que eu apenas pude distinguir como: «Vais reverter á tua vida. Se desejares, podes esquecer o que aconteceu Aqui. Pensa bem.»

A flutuar numa intensa paz, pensei, até que por fim disse: «Não, não tires de mim mais do que aquilo que tem de ser tirado.» Lembro-me então de um riso manso, que pode ter sido também soluço de pranto.

Voltei ao Povo. Ele não se tinha apercebido de que eu havia par­tido. Não tinha meio de lho dizer. Era ainda um homem que se alegra­va na sua mulher e nos seus filhos vivos e nos seus amigos. Um homem que se lamentava pelos seus feridos e pelos seus mortos. O Povo achou-me estranho e admirava-se pelo longo tempo que eu agora passava longe dele, sob as estrelas.

Doze anos, treze... Apegamo-nos às casas ancestrais, às sepulturas ancestrais, como o musgo se apega à rocha. Mas não somos musgo, e eu lembrei-me disso. Somos o Povo. E o nosso mundo não é um mundo para todo o sempre fixo numa harmonia estática: é um mundo que só a magia negra pode mudar. Fazemos mal em nos suspendermos pelos polegares, em bruxarias, homens e mulheres que são apenas igna­ros. Aprendi que o mundo está eternamente a mudar, e que é mais vas­to e mais variado do que nós conseguimos imaginar. Isso pode ser bom, pode ser mau, mas é assim.

Se nos deixarmos ficar onde estamos, morremos. Temos de pro­curar país melhor.

Eu falei, profetizei, encolerizei-me, ergui-me acima dos outros, e fui escarnecido por isso. Parti sozinho e sozinho recolhi conhecimentos de terras para onde podíamos ir. Com todos esses elementos eu podia argumentar entre o Povo. Tornei-me também um grande curandeiro, o que mostrou que eu tinha a protecção das kachinas.

Finalmente, levei o Povo comigo.

Agora estamos a prosperar. Cada ano que passa construímos qual­quer coisa mais no nosso pueblo, numa planície onde o Verão é verde e por onde corre um rio de águas límpidas, por entre os choupos. Retraí-me às honras que o meu Povo me queria prestar, mas reclamo o direito de andar, solitário, por onde eu quiser, o que acontece com frequência, e liberto a minha alma em companhia das estrelas. Aí reside a Unidade. Irá o Arauto chamar-me de novo para si antes de eu morrer? Ou entra­rei na terra? A minha robustez foi-se, e meus olhos estão a perder o bri­lho. Em breve já não serei o que sou, mas qualquer coisa de outro, nem sei o quê. Deixem-me render graças à vida por tudo quanto a vida me deu. Eu era Homem.

 

Salto.

Um raio de luz fendeu as trevas. E ali estava nova máquina T, e um prodigioso par de luas, num fundo de estrelas. Nenhum sol à vista.

Lentamente — levou longos segundos —, Joelle recuperou a cons­ciência, uma vez saída da transcendência, de uma encruzilhada espaço-tempo sob holotese. Não precisava de concentrar os olhos no espectá­culo que se desenrolava no écran: podia compreender directa­mente o que se passava por meio de qualquer das sondas a bordo. Aos seus ouvidos ecoou o espanto de Brodersen, vindo do intercomu­nicador:

Deus meu, que é isto?

Afora isso, a sala dos computadores estava silenciosa. Sem peso, nas suas correias, Joelle quase podia ficar separada da cadeira. No en­tanto, nenhum dos restantes membros da tripulação podia conceber que ela estivesse integrada no universo. Os dados inundavam-na: um fóton de raios gama ou um campo magnético eram tão reais, tão ime­diatos, como qualquer percepção do olhar ou do tato. Como uma pes­soa que subitamente fosse colocada numa posição desconhecida, Joelle voltava-se para muitos lados ao mesmo tempo e ampliava o intelecto no que a rodeava e que ela procurava compreender.

Joelle — interveio Brodersen —, tens alguma idéia de onde es­tamos?

Tenho — respondeu uma diminuta fracção dela. — Num pul­sar. Vou precisar de muito mais informações, é claro. Não iniciem a aceleração linear. Pode ser perigoso sair da proximidade da máquina. Ponham-nos em órbita em torno dela e aguardem novas ordens.

Está bem. Ouviram todos? Fiquem nos seus postos. Preparem-se para manobrar.

O comandante falava com a emoção a embargar-lhe a voz.

Não precisavam agora de Joelle para aquela simples tarefa. Basta­vam os instrumentos de bordo e um computador no centro de comando, operado por Susanne. Joelle entregou-se de novo ao cosmo.

O conhecimento chegou-lhe paulatinamente, ao longo de horas, naquele meio estranho. Joelle caiu em repetidos erros, análogos aos cometidos por seres humanos normais numa sala concebida para criar ilusões de óptica. Forças, energias, átomos livres e ions e partículas sub-nucleares, eram desconcertantemente diferentes em configuração e comportamento de tudo aquilo a que estava habituada. O próprio feixe de radiação, estreito, a sulcar a noite no meio das estrelas numa fracção de segundo, era hipnótico. Tudo isso tornava o seu labor triplamente fascinante.

Nos programas, nos bancos de dados, nas suas próprias recorda­ções, subsistia uma herança de Fidélio. Melhor seria tê-lo ali em linkage com ela. Mas, à medida que Joelle começou a aprender como deviam ser utilizados os elementos que Fidélio lhe havia deixado, começou a sentir que se iria tornar igual à associação em que ambos haviam fun­cionado. De certo modo, Fidélio ainda estava ali a bordo, um espírito dentro da máquina e dentro da própria Joelle. Isso dava-lhe força e paz como nada nem ninguém mais lha podiam dar.

Concepção após concepção, Joelle construiu uma imagem daquilo que rodeava a nave.

A Chinook tinha avançado muito pelo interior da galáxia, pelo mesmo braço da espiral, mas milhares de anos-luz mais perto do seu núcleo central, velado pelas nuvens. Tinha viajado em direção ao futuro também alguns milhões de anos. Onde havia sido S. Doradus, na vastíssima Nuvem de Magalhães, estendia-se uma nebulosa resplandecente. O corpo aqui tinha explodido, ele próprio uma supernova, mas muito antes de Joelle empreender a viagem — na época remota em que os dinossauros andavam pela Terra, se esta afirmação tivesse qualquer significado físico.

O que tinha acontecido é que havia explodido um gigantesco sol, espalhando a maior parte da sua substância no espaço, para alimentar novos sóis e novos mundos que iriam nascer mais tarde. A estrela de neutrons era um remanescente, com dois terços da massa do Sol. A gra­vidade tinha-a comprimido até o diâmetro ficar reduzido a escassos 20 km. Poucos átomos existiam dentro dela. Em vez disso, encontrava-se ali um oceano de partículas elementares, tão juntas umas das outras quanto a mecânica dos quanta o permitia, com características constan­temente a mudarem, mudando também de natureza, a densidades que os homens podiam medir, mas não conceber.

Um pouco do material da estrela, apanhado no monstruoso campo magnético que a sua rotação gerava, foi expelido através de um par de espirais, até que a sua velocidade se aproximou da velocidade da luz. Em consequência disso, esta matéria desprendeu radiação sincrotônica, em finos raios com pequena dispersão, cuja intensidade igualava a de todo um sol. A maior parte era a frequência de ondas de rádio. A luz visível era uma pequeníssima fracção dela. Os astrónomos com recep­tores bem sintonizados e muito sensíveis, em planetas distantes que se pudessem encontrar na trajetória do raio, assinalariam os sinais inter­mitentes de um pulsar.

Os Outros tinham construído o seu engenho para ficar em órbita num plano normal àquelas torrentes de energia, a uma distância de cerca de setenta e cinco milhões de quilômetros. Mais perto, as condi­ções teriam sido fatais, pois o gás que caía do espaço e a violência enca­deada da própria estrela criavam um turbilhão de forte radiação. Joelle perguntava a si mesma por que razão o vector do raio não era maior, muito maior. Naquela posição, no decorrer do seu «ano» de 157 dias, a construção necessitava de ser excitada, repetidas vezes com uma violên­cia que poderia ser prejudicial, e que iria sem dúvida reduzir a vapor qualquer nave que porventura surgisse naquele momento preciso.

Não. Qualquer coisa de grande, de redondo, estava ali a cercá-la. Joelle calculou que o período era tal que o objecto se encontrava sem­pre entre a máquina T e a estrela durante a passagem. Não era uma si­tuação estável; mas sem dúvida que o engenho tinha motores robóticos que lhe reajustavam o giro quando necessário. Aquilo era um anteparo.

Uma ou outra coisa mais volumosa fazia de satélite à máquina de um modo que, efectuada uma compensação ocasional, a punha tam­bém por detrás do anteparo quando precisasse de protecção.

— E que diabo pode ser aquilo? — perguntou Brodersen aos céus.

Brodersen, Dozsa, Weisenberg e Granville retiraram a Williwaw para uma exploração. Por telemetria e transmissão audiovisual, Joelle ia-os acompanhando. Os dados que lhe poderiam ser transmitidos se­riam sempre exasperadamente lentos e incompletos, se uma holoteta não estivesse acima da impaciência. (Entre as chegadas de dados ela ti­nha tudo o resto para examinar, para ajustar.) No entanto, Joelle es­tava com eles infinitamente mais do que Rueda, Leino, Von Moltke ou Mulryan podiam imaginar, todos a forçarem bem os olhos e os ouvi­dos. Compreendendo melhor do que os próprios investigadores aquilo com que eles iam deparando, Joelle estava agora a dizer-lhes o que de­viam procurar, e como, e o que significavam as suas descobertas.

O anteparo era uma armação curva. A sua densidade média era aproximadamente a mesma do cilindro. Sem dúvida que o mesmo gê­nero de força lhe assegurava a coesão. Tinha cerca de 5 km de lado a lado, com possibilidade de interceptar um raio de fogo de um quinto daquela largura, com dureza suficiente para reflectir aquela energia sem que isso o danificasse. A sua forma permitia a máxima difusão da imagem, reduzindo assim ao mínimo o impacte sobre a estrela. Os apêndices em torno da circunferência, alguns deles bastante pesados, alguns deles reduzidos apenas a uma estrutura, geravam provavelmente campos para desviarem as partículas carregadas que podiam de outro modo provocar distúrbios ao passarem ali e infiltrarem-se lá dentro. Um aparelho diferente no centro do lado côncavo era com certeza o motor que corrigia a órbita. Joelle podia ver todas aquelas particulari­dades de um modo que mais ninguém conseguia ver — pois elas não eram facilmente descritíveis em nenhuma linguagem humana — e po­dia avaliar a perfeição da obra.

O que Brodersen e os que o acompanhavam viam era na verdade impressionante, com a cobertura branca a cintilar num céu escuro, a li­nha pontilhada de brilho a rodar por trás. Na ausência de gravidade em que avançavam, pareciam sentir enormes forças a exercerem-se. Por muito silencioso que fosse o espaço entre eles, o silvo e os estalidos dos receptores de rádio traziam-lhes os ruídos de um cosmos em actividade.

Joelle tinha apenas uma ideia muitíssimo vaga de como aquilo fun­cionava. Os Outros conheciam leis da Natureza que o Homem ou o Betano não haviam descoberto. Não era para admirar. Se alguma vez os encontrasse, estava confiante, ela, a holoteta, que não tardaria a apren­der... a conversar com eles... e talvez mesmo a entrar para aquela socie­dade!

Brodersen dirigiu a Williwaw para o satélite que estava à sua frente.

Por favor — disse Caitlín, quase timidamente. — Coma esta sanduíche, beba esta gota de leite. O que você tem é fome.

Debaixo do seu capacete, Joelle pestanejou. Não sentia apetite. Mas quando tinha ela comido pela última vez? Os circuitos deviam incluir reguladores fisiológicos, perpassou através dela. Sim, seria um in­teressante aperfeiçoamento, embora de aspecto secundário. Joelle compreendeu que melhor seria seguir o conselho de Caitlín, e foi bus­car comida e uma garrafa de sumo.

Você devia também dormir — ousou acrescentar Caitlín. — Dir-se-ia que a foram desenterrar. Lembre-se de que estamos a levar a nave muito vagarosamente, com todo o cuidado. Só daqui a muitas ho­ras vamos atingir o objetivo.

Sem a poder demover, continuou:

Com franqueza, penso que é um disparate trazerem-lhe tudo aqui, para você comer e beber. Precisa sair desta gaiola várias vezes ao dia pelo menos.

Sem gravidade, sem exercício, o meu coração encolhe-se, o meu sangue estagna, os meus ossos atrofiam-se. Parte nenhuma daquela ad­moestação parecia real. Não era certamente importante, salvo como simbolizando uma espécie de apoteose. Os Outros não sofrem estes tor­mentos. Não têm de meter comida pelas goelas abaixo e de defecar os excrementos.

Quando acabar — insistiu Caitlín —, deixe que a leve para a sua cabina, que lhe preste um pouco de assistência física, que a ponha a dormir. Você não será útil para ninguém se se for abaixo. O seu cérebro não pode funcionar como deve se a sua circulação for má.

Tem razão, raios para ela!

Muito bem!

... Com as correias soltas no ar, Joelle sentiu umas pernas a aperta­rem-se contra as suas mãos a passarem-lhe pelas costas ou a dobrarem-lhe os membros, deslizando por cima de toda a sua pele nua. Caitlín era afetuosa e hábil. Estava com o mênstruo, o que lhe dava um cheiro mais intenso. Uma das suas madeixas soltas ondulava pela face de Joelle, fazia-lhe cócegas, e trazia um odor diferente, de frescura e vida.

Tenho de reconhecer que o seu tratamento sabe bem — disse Joelle. — Não me tinha apercebido até que ponto estava tensa.

Está em melhor forma do que merece, para a sua idade — respondeu Caitlín, mais ousada agora. — Isso, porém, não vai durar, a menos que você cuide de si regularmente.

Era o que eu fazia, como deve estar lembrada, até chegarmos aqui. Mas agora não tenho tempo. — Pensou: Não me posso alhear das maravilhas que me rodeiam. Como me sinto débil neste momento!

Mas devia. Não temos lá muita pressa. Recomendo-lhe os ho­mens, também.

Joelle contraiu-se.

Desculpe! disse Caitlín. Eu não desejo meter-me na sua vida. No entanto, você e Dan... Os dois compreendem-se profunda­mente, não é verdade? Não, não tenho ciúmes a tal respeito.

Como podia você atrever-se a ser ciumenta, da maneira como pro­cede? Joelle pensou em acabar com aquilo. Concluiu que melhor era não o tentar. O resultado seria sumamente trivial. Além disso, disse­ram-lhe os seus nervos e as suas glândulas, uma vez que estou fora do circuito, gostava que ele fizesse amor comigo... Não, que viesse apenas como fornicário, nada mais. A gozar do meu corpo, pois por mim sou passiva. As palmas e os dedos ao longo das costas davam-lhe calor. Ou esta criatura, neste quarto, comigo? Ela não está equipada, é claro, e sem dúvida também não está interessada, mas... Não! Christine, Chris­tine! Não!

Caitlín deteve-se e perguntou, assustada:

Que foi?

Nada murmurou Joelle.

Com os diabos! Você contraiu-se e pôs-se a tremer como se ti­vessem descarregado em cima de si uma corrente de mil volts.

Caitlín deu a volta. Ficou face a face com Joelle, à distância do braço, levemente em contato com aquela mulher mais velha do que ela. A tristeza transparecia das suas feições ao sugerir:

Se quiser falar a este respeito, eu guardo segredo, e conheci uma grande diversidade de gente. Hoje partilhamos as duas a apreensão pelo que possa acontecer a Dan. Gostaria de partilhar mais do que isso?

Joelle sacudiu a cabeça até ficar com vertigens. Depois respondeu:

Não. Não é nada, como lhe disse. Mas pare com a massagem. Dê-me um comprimido para eu dormir quatro horas. Tenho de estar bem atenta quando a nave atingir o ponto de encontro.

Como Caitlín hesitasse, Joelle gritou:

É uma ordem, sua vadia!

Nada de Christines. Nada de Erics. Posso passar sem eles. Ferem demasiado. Porquê procurar novos tormentos? É o mais simples epifenômeno, de qualquer modo, como o seu irmão fantasma, o desejo, donde tudo isto provém. No Númeno reina a paz. E nunca nos atrai­çoa. Deixemos que seja ele o meu amante, a vida da minha vida, en­quanto permaneço separada dos Outros.

O segundo satélite era um elipsóide prateado, aproximadamente de 9 km por 5 km, com o eixo maior no plano da sua própria órbita e da máquina T. Girava não muito longe da baliza mais afastada, bem den­tro do trajeto do anteparo. A semelhança de um objecto no seu ex­tremo «posterior» com o objeto dentro do anteparo confirmava a opi­nião de Joelle de que se tratava de motores para contrabalançarem os efeitos de perturbações. As saliências nos quatro pontos eram menos identificáveis, mas constituíam sem dúvida peças de instrumentos e, talvez, equipamento de telecomunicação. A maior parte delas formava uma espécie de rede metálica, aqui e ali com uma fosforescência ou um serpentear de cores, semelhante a uma aurora, com um aspecto geral muito belo, num fundo de estrelas.

Uma bordadura à volta de um segmento do satélite apresentava curiosos recortes, assim como mecanismos enigmáticos.

Vocês sabem — disse Brodersen —, eu ia apostar que é a doca, construída para receber naves espaciais de vários tamanhos e formatos.

Brodersen vestiu o fato de cosmonauta e voou da sua nave num pe­queno jato, para dar uma vista de olhos àquilo de perto. Como o me­tal era não ferroso, as solas magnéticas não o ajudavam, mas ele tinha deslizado sobre um par de galochas de prospectar de asteróides, cober­tas com uma camada viscosa. Por meio de um aparelho de filmar que Brodersen levava no pulso, Joelle viu a vasta curva para a sua es­querda, as constelações desconhecidas para a direita, por cima do molhe.

A emoção transparecia na voz de Brodersen:

Pena é não encontrarmos ninguém aqui neste momento, mas eles estiveram cá e hão de voltar. Vê-se que este lugar tem sido uti­lizado.

Aquilo não se adaptava nada à Williwaw. No entanto, Brodersen encontrou um recanto onde podia anichar a nave. Provavelmente uma das máquinas que ali estavam a seguraria, se Brodersen soubesse como ela funcionava. Tomou disposições para deixar Dozsa de vigia e levou os restantes a pé e por foguetão individual.

Uma abertura cavernosa na «proa» era a entrada para um túnel que se estendia por três quartos do comprimento da estação (pois aquilo devia ser uma estação de qualquer espécie). Viam-se depois pequenas passagens, com ramificações e re-ramificações. Todas as pa­redes brilhavam, com uma luz suave que os espectrômetros indicavam como entre o ultravioleta e o infravermelho... Para uma variedade de olhos? Corrimões permitiam avançar. À intervalos regulares encontra­vam-se estruturas que podiam ser patamares para descanso ou pontos de observação ou... O quê? Portas de vários formatos estavam tão sua­vemente montadas que eram quase invisíveis, e parecia não haver ma­neira de as abrir. «Cada ocupante tem a sua chave», conjecturou Brodersen.

Ele disse aquilo porque todas as portas eram de uma brancura de prata. Por quaisquer razões, um certo número delas eram transpa­rentes. Algumas nem mesmo pareciam materiais, embora se fossem campos de força resistissem mais do que o aço. Olhando, fotografan­do, tomando espectros, os humanos passaram rapidamente por uma dezena de ambientes diferentes. De um vermelho-escuro ou azul-vivo, ou pálido entre eles, as iluminações revelavam cela austera, neblina turbilhonante, protecção contra o ruído, com vegetação de vários tons cruzada por insetos a brilhar como jóias, cena hologrâmica de um campo pedregoso onde a poeira amarela se estendia sob um céu cor de laranja, mecanismos a moverem-se, a imagens menos susceptíveis de ser descritas do que estas. As indicações eram de atmosferas carrega­das, médias, tênues, que continham oxigénio livre ou hidrogênio livre ou nem um nem outro, a temperaturas situadas entre o ponto de ebuli­ção do azoto e o ponto de fusão do chumbo. Em cada caso, aquilo que os humanos viam era obviamente a antecâmara de um rico complexo de apartamentos residenciais, de laboratórios, e sabe Deus do quê mais. (Os utilizadores sabiam, os Outros sabiam.) Brodersen disse que tinha a certeza de que existia ali sempre uma sala centrífuga, a menos que se dispusesse de qualquer coisa de mais elegante, a fim de que os visitantes pudessem beneficiar de condições de gravidade quando quisessem.

Visitantes! Passou por Joelle. Uma confraternidade galáctica de in­teligências, culturas, raças, que os Outros acharam dignas e para as quais prepararam aquela mansão. Não estamos incluídos.

A dor que sentiu ao compreender aquilo excedia a dor de ser fêmea humana. Lançou-a para fora do seu espírito e imergiu a sua consciên­cia, batizou-a, no mais que estava agora a descobrir.

Porque realmente os apartamentos eram quase acidentais para os exploradores, e haviam sido encontrados pouco a pouco enquanto avançavam pelo labirinto. O que contava, o que espantava, era o que se encontrava no coração daquilo tudo.

Aí o corredor principal ampliava-se para formar um espaço esfé­rico de 1 km de diâmetro. Uma teia tridimensional de arame permitia fácil acesso à superfície interior. Sobre esta superfície estavam assentes dispositivos em cornija, através dos quais reluziam revérberos e arcos-íris. Viam-se também aspectos do espaço exterior, não enquadrados em quaisquer écrans tangíveis. E painéis.

Painéis... Não eram quadros, nem dioramas, mas imagens sólidas, a moverem-se, feitas de luz que não estava confinada ao campo visual humano. Não mostravam nada em particular, mas eram perfeitamente abstratos: formas, cores, movimentos. Uma linha, por exemplo, animar-se-ia para apontar um número, que por sua vez era indicado por um alinhamento de centelhas. O mais perto que qualquer painel che­gava ao realismo era na representação esquemática do pulsar.

Ou assim supunha Joelle. A maior parte do que ela estava a ver era incompreensível, nada mais do que riscos, cortinas, remoinhos, tiras, cataratas. Provavelmente eram destinados a raças cujas convenções vi­suais, talvez cujas concepções globais do mundo, eram totalmente dife­rentes das suas. Concentrou-se naquilo que fazia mais sentido. Não tar­dou a fazer um enorme sentido. Não que estivesse ali à espera de seres humanos em particular. Mas o espaço-tempo deve conter uma larga va­riedade de criaturas, além dos Betanos, que perceberam e que reflecti­ram sobre aquilo, de modo não descompassadamente diferente dela, Joelle.

Teriam os Outros disposto isto em benefício de quaisquer estranhos que aqui chegassem por acaso? Sim, penso que foi essa a intenção.

Representações de átomos, a tabela periódica, estados quânticos e suas modificações... O núcleo de hidrogênio-1 era uma unidade dê massa, a sua linha de emissão neutra no espaço uma unidade de com­primento, a frequência uma unidade inversa do tempo. Entre o zero absoluto, como indicado pelo comportamento de moléculas, e a fusão que formava exactamente deutério, a escala de temperatura era divi­dida em graus: doze à duodécima potência. As variações e as repetições tornavam as apresentações iniciais claras a um holoteta.

Elas desenvolviam-se. Em devido tempo surgiu uma demonstração de como manobrar um determinado dispositivo. Retirava-se uma haste de um suporte e tocava-se com ela certos pontos luminosos, em deter­minada sequência...

Continua! disse Joelle a Brodersen.

Ele obedeceu.

As informações inundavam-na.

Começaram como dígitos binários transmitidos. Prosseguiram ra­pidamente até formarem modelos que ela podia reconhecer. (Um número suficiente de pontos sim-ou-não num espaço coordenado des­creverão por completo uma imagem, uma tonalidade, uma função matemática...) Dentro de minutos ela aprendeu que devia responder e fê-lo por meio do disco da nave. Minutos depois, o autômato tinha adaptado o seu ritmo de emissão, todo o seu campo, aos limites do equipamento de Joelle e às características do seu sistema nervoso.

Só por si no crânio, podia aquele cérebro ter necessitado de anos para toscamente começar a compreender. Holoteta, podia concluir uma centena de interpretações hipotéticas num segundo, compará-las com aquilo que já era conhecido. E assim, eliminando as ramificações estéreis, se fazia que as mais vigorosas despontassem e manifestassem a sua força ou fraqueza, abrissem caminho numa árvore lógica, cada vez mais perto da haste que era a verdadeira. Ninguém na nave, salvo Fidé­lio, podia na verdade haver compreendido aquilo que ela abarcava. E foi o espírito dele que a guiou naquele esforço.

No entanto, Joelle necessitava de horas para chegar ao facto cen­tral. Necessitava de dias para o ver na plenitude, por inacreditável que ele fosse. Sobre o pulsar existia vida, vida inteligente.

A Chinook girava agora à volta da máquina T, como a sua terceira lua. A Williwaw tinha regressado a bordo. Estando a estação a ser in­vestigada tanto quanto possível, o que não era muito, e iniciada a co­municação com ela, o que era talvez uma tarefa interminável, Broder­sen e o seu grupo pouco mais podiam fazer ali. Joelle verificou então de passagem que, enquanto ela investigava e chamava, os seus colegas de­viam estar ocupados em... operações de rotina, jogos, intrigas, sonhos, desesperos... como paramécias numa gota de água estagnada.

O robot da estação guiava Joelle para o contacto com o Oráculo, que era uma criação dos Outros mas não um autómato.

Quase sólida, sujeita a vibrações, a movimentos de desintegração, a superfície da estrela de neutrões estendia-se sob uma atmosfera de 6 mm de espessura. Aí, sob um peso de triliões de gravidades da Terra, a densidades que eram ainda múltiplos maiores da densidade da Terra, núcleos brutos actuavam entre si de maneiras que seriam inconcebíveis em outro lado. Protons, neutrons, eletrons, neutrinos, as suas antipartículas fugitivos elementos superiores —, mesões de toda a espécie bariões, leptões, bosões; fermiões —, encanto, rotação, cor, características estranhas fundindo-se, dividindo-se, convertendo-se uns nos outros e retomando a forma primitiva, em suma, deslocando-se em órbita, formando uniões que podiam durar ao todo microssegundos —, a matéria da estrela era tão variada, tão inconstante como o gás e a água e o pó de que somos formados.

A vida não é uma coisa: é uma maneira de existir. É uma série de acontecimentos, é a evolução de modelos que transmitem informações, é o crescimento e a decadência e o recrescimento. Onde quer que exista esta possibilidade, existe vida.

Quando Caitlín ouviu, disse:

— Isto não é Química: é Alquimia.

Na verdade, as estruturas, que se reproduziam iguais a si mesmas a nível subatômico mais do que molecular, ultrapassavam os domínios da Física conhecida dos Humanos e dos Betanos. Uma vez, porém, en­contrado o Oráculo, Joelle encaminhou-se mais rapidamente para a compreensão. No êxtase místico desta entrada mais profunda no Ulti­mato, perdeu a amargura, assim como se perdeu a si mesma.

Joelle não podia entrar em comunicação directa com os habitantes do pulsar. A vida deles era demasiado curta. Escassos segundos, escas­sas rotações do firmamento, e tais seres, mais pequenos do que micros­cópicos, haviam terminado a sua existência. Mas tão velozes, tão furio­samente intensos eram os processos dentro dessa existência, que esses segundos abrangiam mais percepção e experiência, mais intensidade de vida do que um século humano. Para eles, Joelle era tão inerte como uma pedra o era para Joelle.

O Oráculo deu-lhe uma visão, a imagem diferida de certas vidas. Joelle podia seguir meras passagens isoladas, fragmentos ao acaso, das histórias. Os heróis eram demasiado estranhos para ela. Veio a desco­brir que haviam sido heróis.

Explorando através de um bilião de gerações, descobriram as Fon­tes de Fogo, que se lançam com magnificência para cima, sempre mais para cima, para além do que era possível sondar. Na neblina da radia­ção que enchia o mundo que eles conheciam, não tinham qualquer ideia de um céu. Agora...

Estendiam-se montanhas, muitas das quais permaneciam ali du­rante anos inteiros, calculados pelo calendário da Terra, as maiores das quais se erguiam a 12 mm e 13 mm de altura. Os investigadores de conhecimento instalaram-se para seguirem o curso das Fontes de Fogo escalando-as.

Formaram-se dinastias arrojadas: pai, filho, neto, bisneto, que la­butaram, sofreram, enfrentaram riscos e por fim pereceram na grande aventura. Surgiram civilizações. Floresceram e decaíram enquanto os escaladores abriam caminho, legando uma geração à outra uma base cada vez mais elevada para prosseguirem. Muitos de entre eles soçobra­ram e outros mais desesperaram quando atingiram os limites do ar. Mas resistiu um conjunto de intrépidos, e estes começaram a abrir uma saída para o alto, através de uma montanha escolhida.

Um milhão de vidas mais tarde, através de uma cúpula transpa­rente, uma colônia no pico observou para onde corriam as Fontes de Fogo. Observou as estrelas.

Seria isto pura indomabilidade?, perguntou Joelle a si mesma.Ou seria que o Oráculo lhes havia dado... coração... para continuarem a luta através do equivalente humano a uma era geológica?

A Joelle faltava a linguagem para enunciar a pergunta, e duvidava, em todo o caso, que o Oráculo a quisesse elucidar. Ele tinha o seu orgulho.

Havia sido formado pelos Outros para habitar no pulsar. Gigante ao lado dos nativos, virtualmente imortal, conservava o seu lugar, que se tornou santuário para eles. Consciente de si próprio, de uma inteli­gência a condizer com a de Joelle quando ela entrava em holotese, não sentia qualquer solidão, qualquer entorpecimento, nunca. Porque ele compartilhava das ações, dos pensamentos, das próprias almas da­queles entes. (Joelle especulava sobre a quase telepatia, através da mo­dulação das poderosas forças nucleares, mas o vocabulário que tinha em comum com ele era demasiado primitivo — uma espécie de lingua­gem por sinais — para que pudesse formular a pergunta.) Ele os acon­selharia quando desejassem, embora Joelle tivesse a impressão de que as declarações que o Oráculo fazia eram deliberadamente tão ambíguas como as que se ouviam outrora em Delfos, com receio de que se criasse neles uma pseudomorfose que fosse impedir a maturação dos seus po­deres inatos. O Oráculo tinha registrado e transmitia para eles, quando o desejassem, histórias inteiras dos seus, de nações desaparecidas, de feitos olvidados.

Primeiramente, o Oráculo servia de medianeiro entre eles e os que chegassem. As mensagens passavam do Oráculo para a estação e vice-versa, por um meio que as podia transportar (raios quark?). A estação servia-se de relés por vários outros meios, incluindo rádio. O Oráculo atrasava ou apressava as transmissões consoante quem as estivesse a receber.

Assim, através dele, aos habitantes da estrela e aos visitantes que viajassem por ali para saberem mais a respeito da estrela era-lhes dada a possibilidade de conhecer qualquer coisa uns dos outros. Talvez fosse esta a ligação mais próxima a que estes seres podiam chegar para parti­lharem em confraternidade o que os Outros haviam criado. Ou talvez não.

Brodersen segurou-se com a mão ao rebordo de uma mesa e ficou de frente para a sua tripulação, na sala comum. Atrás de si, um écran mostrava os raios a revolverem-se — lâminas de espada, ponteiros de relógio —, mais próximos, mais brilhantes. Em breve o anteparo iria desviar aquela arremetida furiosa.

Não podemos ficar aqui por muito tempo — disse-lhes ele. — Vocês sabem isso. Mesmo antes de a ausência de gravidade pro­vocar em nós modificações irreversíveis, teremos excedido a dose de ra­diação tolerável. O preço a pagar é, com os diabos!, demasiado alto, e as nossas proteções são inadequadas.

- Podemos retirar para uma distância razoável e aguardar, na espe­rança de chegar alguém que nos possa ajudar, antes de morrermos de fome. Claro, isso implica a necessidade de transformarmos a nave, pondo-a em rotação sobre si mesma. Ela nunca mais poderia arrancar de novo. Contudo, talvez valesse à pena. Talvez conseguíssemos que al­guém nos levasse depois para o nosso planeta.

- Joelle, tens falado tremendamente pouco com todos nós, nestas últimas semanas. Procuramos ser muito compreensivos para contigo, tendo em conta que o teu trabalho deve ser árduo. Aprender uma lín­gua betana de a ouvir arranhar deve ser uma brincadeira em comparação com isso, estou convencido. Mas hoje vemo-nos na necessidade de obter um parecer teu. Já te pedi que no-lo desses a todos, porque a todos interessa.

- Pois bem, agradeço-te o favor de falares.

Flutuando ao lado dele, diante de todos os outros, Joelle pensou com ar fatigado que estava a ver a emoção espelhar-se naqueles rostos. Eu tenho um ar impressionante. O espelho havia-lhe mostrado o cabelo a tornar-se grisalho, os olhos a cavarem-se-lhe, com manchas arroxea­das em redor e injetados de sangue, numa cara que já quase não passava de pele macilenta a cobrir os ossos, num corpo magricela e amarelento, mãos donde pareciam grelar unhas descuidadas, e conti­nuamente a tremer. Maldita carne, que não me deixa tranquila em co­municação com o Oráculo!

Joelle dominou a sua secura e falou:

Devo sublinhar que as minhas relações aqui foram rudimenta­res. Apesar do apoio dos computadores, apesar da inexcedível cooperação do meu interlocutor, não me restam os anos suficientes para domi­nar toda aquela linguagem. Um intervalo de minutos na transmissão não basta, de qualquer maneira. Talvez eu tenha interpretado inteira­mente mal as coisas, incluindo o que é crucial para nós.

Já não estaríamos em parte nenhuma se não fosse você — disse Susanne Granville, de braço dado com Carlos Rueda.

Joelle respirou fundo e continuou:

Bom, então, se vocês tiverem presentes estas reservas... Os Ou­tros construíram a estação porque sabiam que certas espécies, a viaja­rem no espaço, haveriam de querer estudar este mundo único no seu gênero. Suponho apenas que eles esperam que por meio desse estudo tanto os habitantes das estrelas como os seres que vierem de fora se de­senvolverão um pouco, se tornarão um pouco mais próximos daquilo que eles próprios são. Não consegui descobrir se se manifestam directa­mente a algumas das raças em causa, mas tenho a impressão que não. Provavelmente estas raças chegam pelos seus próprios meios a perceber os dados, as biografias que o Oráculo preparou para elas.

Compartilham, então — volveu Caitlín. — O desejo dos Ou­tros é conhecer as vidas que há em todos os mundos. O melhor que há para amar?

Por certo que nos conheciam bem antes de programarem aquele robot na máquina T do Sistema Solar — disse Frieda. — Que Oráculo instalaram eles na Terra?

Nada de semelhante a isto, naturalmente — disse Brodersen. — Prossegue, Joelle.

Um certo número de sociedades avançadas conseguiram chegar até aqui, provavelmente por uma série de tentativas — continuou a holoteta. — Mandam expedições científicas de tempos a tempos. Não existe programa fixo, e ninguém vem aqui com frequência. Lembrem-se de a quantos outros aspectos uma raça tem de dedicar a sua atenção e os seus esforços, uma vez descobertas as rotas por várias passagens. Muito possivelmente uma ou duas dessas raças podem visitar isto den­tro da próxima década. Mas não sabem como chegar a Sol, nem a Febo, nem a Centrum. Como podiam saber? O próprio Oráculo não sabe.

Cortando daí a pouco o silêncio que se seguiu, disse apressa­damente:

Fiz progressos. Se pudéssemos ficar aqui onde estamos, em co­municação, avançaria mais ainda. O Oráculo parece desejoso de me di­zer qualquer coisa. Mas não podemos. Por isso me concentrei em lhe fazer perguntas sobre as próprias passagens pelas estrelas. Consegui uma leve indicação.

- Não posso calcular aonde nem a que época nos conduzirá deter­minada rota. Contudo, em vista do que aprendi aqui, posso fazer o cál­culo das probabilidades da magnitude e direcção de um trajeto. O que é mais importante, posso fazer uma estimativa razoavelmente segura de quais as possibilidades de se encontrar uma outra máquina T do outro lado de uma passagem.

- Os Outros continuam a construí-las, vocês compreendem.

O riso ressoou da sua laringe. E Joelle explicou:

Essa palavra «continuam» é um exemplo clássico de um vocábu­lo sem sentido, não é? Desculpem-me. Perdi o hábito de estar limitada ao meu cérebro natural.

- O fato é que os Outros não agem ao acaso. Eles conhecem o pleno melhor do que isso. Estão sempre a expandir as suas fronteiras — para aumentar o conhecimento apenas, estou certa disso, e não para conquista... (Por amor, murmurou Caitlín, e Joelle viu.)

- E vão até lugares onde é mais provável que encontrem qualquer coisa além do vazio. Lembrem-se: têm de mandar para ali os materiais, talvez também as ferramentas, para construírem nova máquina T antes de uma expedição poder regressar. Uma tarefa que não é fácil, mesmo para eles.

- Penso que se voássemos de máquina em máquina de harmonia com um plano que eu pudesse delinear à medida que fôssemos andando e recolhendo mais elementos... Se continuássemos a tentar saltos para irmos tão longe quanto possível numa direção plausível... Penso que isso nos levaria por fim até uma das fronteiras onde eles estão. Eles próprios, os Outros.

Joelle sentia-se abatida. Sentia a cabeça cheia de areia. Cada célula do seu corpo lhe parecia doer. Deixou-se pairar na ausência de gravi­dade e distendeu-se para dormir.

Como em surdina, ouviu Brodersen:

Percebem todos que temos andado ao acaso? Esta senhora não nos garante que encontremos maneira de seguir mais para a frente numa determinada direção. Talvez a sorte nos favoreça. Mas de cada vez que repetimos a operação diminuímos as probabilidades de êxito.

Podíamos ficar aqui, em rotação e numa órbita ampla - sugeriu Weisenberg. — À primeira vista, temos uma probabilidade bastante razoável de vermos chegar uma nave antes de morrermos de fome. Presumo que a civilização de quem vier nessa nave há de saber preparar alimentos por síntese e espero,que não levantem objeções a fazê-lo. É de supor que a tripulação não nos possa guiar para voltarmos ao nosso planeta, mas sem dúvida que poderíamos viver uma existência perfeitamente interessante no seu planeta de origem.

Estás a falar a sério, Phil? — quis saber Caitlín.

Não. Eu tenho família. Penso que um de nós havia de manifes­tar a hipótese de ficarmos.

E deixar o género humano aos caprichos de Ira Quick? - rosnou Dozsa.

Calma, calma! — interveio Brodersen. — Temos tempo de pensar nisso. Entretanto... Joelle, deixa-nos tratar de ti. Comecemos com umas vinte e quatro horas de sono.

Joelle mal deu pelos braços dele à sua volta, enquanto a levava pelo corredor para a cabina. Não se preocupou muito em saber como Cai­tlín lhe limpava o suor, nem como eles os dois a ligavam à cama e espe­raram até ela adormecer. À medida que ia mergulhando nas trevas, os seus pensamentos eram inteiramente os do Oráculo e daqueles que o haviam concebido.

 

Salto.

As estrelas visíveis eram agora menos numerosas, como numa noitt enevoada na Terra. As mais brilhantes eram principalmente vermelh o que indicava que estavam próximas. Algumas gigantes cintilavam com um azul-aço.

Entre elas via-se um grande sol. O seu brilho, de um laranja-avermelhado um pouco baço, não exigia qualquer proteção para os olhos O círculo zodiacal eram imenso, embora de intensidade atenuada, mas o disco apresentava-se sem traços bem definidos sem manchas, nem chamas, nem protuberâncias, nem coroa e não tinha nenhuma orla fotosférica acentuada, esbatendo-se ao contrário no espaço.

Mais perto, mais vasto ainda para o olhar, encontrava-se o planeta à volta do qual girava evidentemente a máquina T, numa posição a for­mar triângulo equilátero com ela e com uma grande lua. Ambos aqueles corpos brilhavam também, incandescentes. Ampliando a imagem, Brodersen viu o globo primário em fusão por baixo de uma espessa at­mosfera, coberta de nuvens sedosas. Enquanto olhava com atenção, surgiu um asteróide a cortar o campo visual. Era escuro, esburacado, a descair de um extremo sobre o outro.

Joelle explicou:

E um novo sistema a aglutinar-se. A energia do sol provém da contracção. Ainda não está suficientemente comprimido no núcleo para desencadear reações termonucleares. O espaço continua carrega­do de poeiras, cheio de rochas de todos os tamanhos. Ao caírem em planetas a nascer, aquecem-nos até à incandescência, ao mesmo tempo que lhes aumentam a massa. Penso que este que aqui temos diante dos olhos virá a parecer-se muito com a Terra.

Ou poderia ele ser a Terra? Foi uma ideia que passou por Broder­sen. Não seria hipótese de excluir. Não faz diferença prática, de qual­quer forma. Não quero acreditar nisso. Não quero.

Quanto tempo levará isto? perguntou ele em voz alta, como por simples curiosidade.

Talvez cinco milhões de anos até que o sol se fixe na sequência principal. No planeta, a formação de uma crusta sólida pode ser mais lenta. Preciso de mais elementos para dar uma estimativa adequada.

Desculpa. Não vale a pena perdermos tempo. Nada para nós, aqui concluiu Brodersen. Depois pensou:

Exceto, Deus meu!, dar uma vista de olhos à extensão em que os Outros se movem, em que os Outros vivem. Observar um sistema de mundos a nascer — e depois, com certeza, observá-los a evoluir, a flo­rescer, e finalmente a morrer... Para isso abriram eles esta passagem.

Salto.

- O-o-oh! E a voz de Caitlín ressoou no intercomunicador. Oh, que maravilha, que maravilha!

A voz deteve-se num soluço.

O espaço chamejava. Apinhavam-se estrelas e estrelas, de encontro umas às outras, até quase não se distinguir a Via Láctea e quase não ha­ver uma réstia de escuro entre elas. O brilho de muitas era como o de Vénus ou Júpiter vistos no seu maior esplendor, acima da Terra. Mui­tas eram de um vermelho-vivo, mas outras iam do laranja-carregado ao dourado-intenso.

Com uma auréola branca, via-se o sol a que a Chinook tinha che­gado, ocupando metade de um grau de arco, e desolador como Febo.

Onde estamos nós, Joelle? inquiriu Brodersen em tom desa­brido.

A resposta de Joelle trazia consigo uma reticência e ao mesmo tempo um sabor a deleite e.... Seria a humildade? Humildade que de há muito lhe faltava.

Que beleza!... Estamos por certo num verdadeiro concentrado lobular, Dan. Antigo. Sem quase nenhuma poeira e nenhum gás livre. Os membros maiores, de vida mais curta, de há muito extintos, dei­xando principalmente anãs, embora as de tipo G, semelhantes ao Sol, também sobrevivam... Deixemo-nos ficar por aqui um pouco, seja o que isto for.

Todos concordaram. Além disso (quem sabe?) podiam os Outros habitar em tão régio encanto. Deu-se início aos programas normais de investigação. Daí a pouco, a nave estava a acelerar. O peso parecia bom.

Os estudos terminaram em algumas horas. Joelle havia obtido di­rectamente a maior parte dos elementos e havia-os interpretado. O sol amarelo tinha pelo menos sete planetas. Um, distante dele, a ligeira­mente mais de uma unidade astronômica, parecia terrestróide e devia conter oxigênio no seu ar. A máquina T girava na mesma órbita dele, sessenta graus adiante. Não se notavam quaisquer sinais de se estar a efetuar qualquer comunicação.

No entanto, Brodersen decidiu:

Vamos dar uma vista de olhos. É uma viagem de cerca de três dias. Que mais não seja, precisamos de sair de zero por algum tempo.

E talvez andar a pé num mundo como o nosso desejou Susanne ardentemente.

Turno da noite.

Na sua cama, Leino desprendeu-se de Caitlín e deixou-se ficar ao lado dela.

Ah! — disse Leino. — Excelente! A flutuar também é bom, mas não há dúvida, os nossos corpos estão constituídos para um campo de gravitação. Não é assim?

Caitlín sentou-se, estendeu os braços a unir os joelhos levantados, e olhou para a sua frente. O cabelo, em madeixas lustrosas, caía-lhe pelo rosto até aos ombros. O suor brilhava um pouco sobre a pele branca. Leino respirava uma mistura de odores femininos, cheirava a sol e a al­míscar, ao mesmo tempo que uma sensação de tepidez se irradiava dele, Foram-lhe necessários alguns minutos para recuperar suficiente energia e notar a perturbação que transparecia das feições de Caitlín.

Ergueu-se e, apoiando-se sobre um cotovelo, perguntou:

Que se passa contigo, querida?

Caitlín continuava a olhar para o tabique, e não para Leino.

Nada — disse ela, em voz baixa. — E, de certo modo, tudo. Não por culpa tua, Martti. Culpa minha.

Leino acariciou-lhe a coxa, macia como seda.

E não me queres dizer?

Por vontade minha, preferia não te magoar.

Leino contraiu os músculos.

Diz lá. Tu... falas sempre de coração aberto, Caitlín, e estás ha­bitualmente tão alegre! Começo agora a compreender, aos poucos, como és independente e, sim, muito especial.

Silêncio. Depois Leino insistiu:

Por favor. E talvez eu te possa ajudar. Sabes que sou capaz de vender a alma ao Diabo por causa de ti.

Leino viu que ela estava a reunir forças para tomar uma decisão.

E isso o que é mau, Martti.

Como?

Também ele se sentou na cama.

Pois escuta: tinha de chegar o momento — disse Caitlín, e fixou os olhos nos de Leino. — Disseste a verdade, o peso é uma bênção para nós de novo, também para gozarmos o amor. Esta primeira vez devia ter sido com Dan.

Leino corou e informou-a:

Mas, se não estou em erro, Dan levou Frieda para a cama esta noite. Pelo menos, desapareceram juntos.

Caitlín fez que sim com a cabeça e disse:

E verdade. E não os censuro por isso. Posso dizer-te que me senti feliz por causa dela quando conseguiu, aqui há umas semanas... Depois de eu andar a passar tanto tempo contigo. Frieda é uma alma bondosa que merece o seu quinhão de prazer.

Leino fez um trejeito. Caitlín viu, passou um braço pelas costas dele e falou pausadamente:

Tenho um feitio predisposto para ser compreensiva, e tu sabes. Gosto de toda a gente a bordo. Cada um de vocês é muito especial. Mas a Dan eu amo-o, e ele também me ama.

Após um momento:

Eu não teria andado a negligenciá-lo com tanta frequência se não precisasses de ajuda. Aí está a minha posição em relação a ti, Martti Leino. Chegou agora o momento de voltarmos ao normal.

Mas não queres dizer que me vais deixar cair? Não, não vais. Eu amo-te!

Caitlín deu-lhe um leve beijo.

Oh, não! Enquanto durar esta viagem, haveremos de deliciar-nos uma vez ou outra com os nossos jogos de amor, tu e eu. E assegu­ro-te que não é um favor que te faço, ou mera condescendência. Sinto eu também nisso imenso prazer.

Afastando-se um pouco para o lado, continuou:

Mas tu és muito emotivo a meu respeito. Com franqueza, tornas-te demasiado possessivo. Esta noite quase me arrastavas na sala, quando eu ainda precisava de falar com Phil. E tinha encontro suben­tendido com Dan. Achei preferível não provocar uma cena... Não, não fiques ressentido, meu menino. Foi uma bela hora que passamos jun­tos. Mas a verdade é que isto tem de parar, e quem tem de parar és tu.

Leino bateu com o punho na palma da mão.

E como posso eu deixar de te amar, Caitlín?

Olha, se não tivesse havido antes esse terrível rancor, nunca real­mente nos haveríamos apaixonado, nós, humanos. Sabes isso? Mas as velhas cinzas aquecem mais suavemente que o lume novo acabado de atear. Se estivéssemos no nosso planeta, não tardarias a fazer a corte, todo satisfeito, a uma bela moça inteiramente diferente de mim. Supo­nho que te provei que eia pode ser ao mesmo tempo uma moça cheia de vida e decente, e será isto o que haverás de recordar de mim com mais ternura.

- Mas, Martti — desabafou ela, numa carícia verbal —, uma mu­lher fiel é o que tu queres para o resto da vida. Uma companheira, um esteio para a tua casa, para que te dê repouso, segurança. Como Lis. Como a tua mãe. Tenho a certeza disso. Preciso de te ajudar para dei­xares de te fixar em mim. Isso acabaria por acontecer, fixares-te em mim, se a nossa procura um do outro durasse muitos meses. Precisa­mos, por isso, de tomar cuidado e precaução. Então estarias arruinado. Seria um desastre para o homem de família para que a tua natureza te destina. Para ti, eu não hei de passar de uma amiga. De uma amiga que por acaso é do outro sexo. Tenho alma de vagabunda.

Mas venci muito bem o meu ciúme a teu respeito, penso eu...

Caitlín sorriu.

Isso para mim não é o principal, meu amor. Os meus pés não podem criar raízes em parte nenhuma. Nem Dan me pode segurar em Eópolis. Tu hás de querer uma esposa, e não uma mulher errante.

Caitlín balouçou as pernas, sentada à beira da cama, e continuou:

Martti, sei muitíssimo bem que não podíamos solucionar todos os nossos problemas, para sempre, mesmo se ficássemos para aqui uma hora a falar. Precisas agora de paciência, de reflexão, de lucidez. Caitlín levantou-se e prosseguiu:

Em primeiro lugar, e antes de mais nada, temos de ficar bons amigos. Descontrai-te. Devemos estancar qualquer melodrama que possa ocorrer entre nós, e estimular qualquer ponta de comédia que possa surgir, pois somos animais cômicos, os seres humanos, não te pa­rece? Agora, resta-nos quase uma garrafa de uísque para esvaziar, se bem me lembro...

Quando se estenderam de novo, um tanto bêbedos, mais ainda com o espírito voltado para a folia, Caitlín arranhou no seu sonador e ob­servou:

Vê bem, eu não te ponho pela porta fora enquanto andarmos de viagem, não tenhas medo. Isso seria desperdiçar de maneira ignomi­niosa um magnífico talento. Deves unicamente compreender que sou uma vagabunda nata... Lembras-te que «entraste» comigo a respeito da minha Canção de Viagem? Dizias que ela era posta na boca de um homem, o que não é verdade. E eu prometi que terias a resposta na pró­xima canção. Pois eu compus essa canção, exactamente para ti.

As recordações da noite a que Caitlín se referia já não eram penosas para Leino.

Vamos a isso! — incitou ele. Caitlín sorriu e começou:

Parti espaço fora, em perseguição sem fim. Nenhum dos mundos me pode prender. Enquanto abro caminho, cantarei uma canção Do belo moço que deixei partir.

O moço mais leal, o moço mais vigoroso,

O moço que eu deixei ao partir.

Ai, ele foi uma bênção, e os céus estrelados

Hão de lembrar-me para todo o sempre.

Sim, era belo aos olhos, e raro é

Depararmos com alma tão alegre,

Embora não fosse dócil, não, mas beijasse como chama,

E eu não o pudesse jamais vergar.

Quando me sentia desalentada, procurava o meu querido

Para com ele perder a cabeça.

Eu ia ronronar e apertá-lo contra o meu corpo

E seus braços lançavam-se sobre mim.

Dissemos adeus num dia em que eu,

Confesso um pouco a chorar

E não obstante é melhor reconhecê-lo,

Tive dificuldade em adormecer.

E assim, meu caro senhor, pode bem inferir

Que alimente esperanças de encontrar,

Apenas um ou dois, incluindo a si,

Como o belo moço que deixei ao partir.

Turno de noite.

Estás triste, Dan — disse Frieda.

Como? Não, não. Porque haveria eu de estar triste, depois dos momentos que gozamos?

Brodersen avançou o braço para ela. Frieda arqueou-se para trás e Brodersen enlaçou-a pela cintura.

O meu espírito andava apenas a vaguear. Desculpa — disse ele.

Vagueou até longe, e por lugar que não era agradável. A ma­neira como a tua boca descaía, e esse vinco delgado entre as tuas so­brancelhas...

Frieda passou-lhe a ponta dos dedos pelas rugas. O azul dos olhos de Frieda, esses, era sombreado pela inquietação.

Broderson tentou um sorriso enquanto dizia:

Bem, eu sou o Patrão, sabes isso. As preocupações com a nave são uma doença característica da profissão. Ajuda-me a livrar-me um pouco dela.

A cabeça loira fez um movimento. Frieda afirmou:

Não, não é isso o que te preocupa. És resistente, espírito prá­tico. Não está no teu feitio ruminar ideias. Portanto, quando entras num estado como esse sentes-te perdido.

Oh, não te preocupes! Que me dizes a uma bebida, a um cigarro, ou a ambos?

Frieda forçou o corpo para manter o braço de Brodersen por baixo dela.

Ainda não, Dan, por favor. Caitlín podia ajudar-te. E posso eu tentar?

Brodersen olhou para os pés com ar apreensivo. Estava na cabina de Frieda, lugar em que pouco havia para onde se pudesse olhar. Ne­nhum daqueles nadas, cheios de vida, com que a irlandesa havia enfei­tado a cabina deles. Como usual, Frieda tinha a música a tocar: uma fuga de Bach, baixinho, mas sem nada se perder de toda a sua ma­jestade.

Deixa-me ver — disse Frieda e enrolou-se para o seu lado. Aninhou-se-lhe contra o peito, para lhe evitar o olhar. — Sentes-te cul­pado pelo que aconteceu a Zarubayev e a Fidélio, e pelo que se está a passar conosco, perdidos no espaço-tempo por causa daquilo que su­pões ser culpa tua. Dan, meu amor, sabes que viemos de livre vontade e com toda a satisfação. Nós, a quem salvaste da Roda. Fidélio também. Sim, Fidélio em primeiro lugar, creio eu. E, seja o que for que nos ve­nha a acontecer, enquanto vivermos estamos-te gratos. Erros, reveses, qual o comandante que não os conhece? És um comandante demasiado senhor de ti para permitir que eles te ensombrem a vida. Não, tu vais aprender com eles e depois continuar o teu caminho, para bem dos que estão aqui contigo. E se no fim, o que eu suponho seja mais provável se no fim não tivermos êxito, se nunca mais voltarmos para casa, veja­mos... Que aventura espantosa não foi a nossa!

Sem dúvida! suspirou ele.

Caitlin fez-te sentir isso no teu sangue. Pena é que não esteja contigo esta noite.

Frieda fez uma pausa. Depois prosseguiu:

Ou talvez seja melhor assim. Talvez ela te faça demasiado feliz para tu poderes ver mais fundo, até às raízes do teu sofrimento. Dan, tu estavas a pensar na família.

Brodersen respirou fundo, com sofreguidão.

A pensar na tua mulher, nos filhos continuou Freida. Imaginas que os abandonaste. Quando Caitlin não está contigo, eles vêm-te à lembrança demasiadas vezes. A partir daí começas a punir-te a ti mesmo de todas as maneiras que podes encontrar.

A boca de Brodersen contraiu-se, as suas pálpebras franziram-se ao dizer:

Escuta, mudemos de assunto. Não és... psicanalista... E eu, com os diabos!, não sou paciente.

Ja, ja, eu sei. Sou apenas a Frieda, tua companheira de bordo.! Apesar disso, permites-me que fale? Podes-me contar alguma coisa sobre a Lis? Gostava de ouvir.

... Bastante tempo depois, Brodersen estava estendido numa espé­cie de paz, sonolento.

Mulher maravilhosa que és! dizia ele por baixo da música em surdina. Não fazia idéia de como eras deliciosa... E amiga, e com­preensiva...

Por Frieda passou uma ponta de amargura, que Brodersen não viu.

É verdade, tinha a minha reputação, de áspera e velha guerreira. Mas não esqueças: os dois granadeiros da canção, até esses choraram quando, ao regressar, viram que o seu imperador havia sido feito pri­sioneiro.

Frieda esboçou um sorriso e continuou:

Agora, se me quiseres fazer um favor, Dan, vais-te pôr a dor­mir. Acordas depois com alma nova, antes do pequeno-almoço. Uma hora antes do pequeno-almoço.

A mão de Brodersen apertou-se ao de leve em torno de Frieda.

Tens razão. Boa idéia!

Um movimento impulsivo perpassou por ela enquanto dizia:

Dan, melhor seria que encontrássemos em breve o caminho para o nosso planeta. De contrário, vou apaixonar-me profundamente por ti.

Visto de longe, o planeta era de um azul mais carregado do que a Terra ou Deméter, e semeado de nuvens com as mais suaves tonalida­des de âmbar na sua brancura. Os continentes formavam manchas amareladas naquela claridade, salvo nos pontos onde a neve refulgia em picos e planaltos. Os seus contornos eram imprecisos. As cores do nascer e do pôr do sol, quando a Chinook entrou numa órbita mais próxima, eram fantasticamente brilhantes. Não se viam calotas pola­res. Em torno, três luas.

Maciço, denso, com uma gravidade à superfície igual a um quinto da gravidade terrestre, este mundo apresentava uma atmosfera espessa. Os humanos não podiam ter respirado sem equipamento próprio, ao nível do mar. Os seus pulmões aceitariam o composto oxiazótico, mas não a concentração. E o efeito de estufa mantinha tórridas as terras baixas nas altas latitudes, e insuportáveis as zonas mais perto do equa­dor. Só nos mais elevados planaltos podia o homem sobreviver.

No entanto, a vida invadia o globo. Uma vida não muito diferente daquela que se encontrava na Terra, dentro das diferenças que se depa­ram no cosmos.

Diacho! Isto podia ser o espectro da reflexão de clorofila na vegetação murmurou Dozsa. Escondida por qualquer coisa mais, é claro, mas...

As probabilidades de não nos podermos alimentar aqui, sem se­mentes nem agentes de síntese, são absurdamente altas interrompeu Weisenberg.

Podíamos investigar propôs Leino.

Brodersen sacudiu a cabeça.

Não, Eu gostava de investigar, mas os riscos são demasiado grandes, e pouco temos a ganhar se não encontrarmos qualquer sinal de civilização, de qualquer inteligência.

Além disso observou Caitlín —, os Outros estão a conservar este mundo para uma raça que possa realmente desenvolver-se nele, da mesma maneira como conservaram Deméter para nós.

Turno de noite.

A Chinook retrocedeu em direcção à passagem. Caitlín ficou acor­dada depois de Brodersen ter caído no sono. A seguir levantou-se, en­fiou o pijama e saiu do apartamento. Ao entrar na sala comum, fechou a porta atrás de si, apagou as luzes e aquele écran que mostrava o sol; e sentou-se no escuro, em silêncio, para ficar apenas a olhar as estrelas.

Havia-se passado meia hora quando a porta se abriu de novo. En­trou alguém, que fechou o trinco atrás de si. O céu, mais radioso que numa lua cheia, permitiu ver quem era: Susanne Granville. Pela sua face rolavam lágrimas.

Estacou quando viu Caitlín.

Oh! balbuciou ela. Desculpe.

Voltou-se para sair. A contra-mestre levantou-se e apressou-se em sua direcção.

Espere, Su. Que lhe aconteceu?

Rien... Não é nada. Não sabia que você estava aqui. Vou até à minha cabina.

Essa agora!?

Caitlín aproximou-se e, passando-lhe o braço pelas costas, afir­mou:

Se alguém tem de sair, sou eu. Você veio à procura de alívio, ra­pariga!

Caitlín olhou com atenção para aquele rosto desolado, para aquela cabeça a pender, com a respiração desigual, para aqueles dedos a finca­rem-se desesperadamente uns contra os outros. E perguntou:

Ou de coragem?

Susanne cedeu. Caitlín amparou-a, acariciou-a e murmurou-lhe pa­lavras de conforto, até passar a tempestade de soluços. A seguir levou-a para uma das mesitas de jogo, fê-la sentar, sentou-se-lhe em frente e es­tendeu a mão para segurar a dela. Os céus refulgiam como um diade­ma, em torno de ambas.

Su estremeceu.

Está frio — disse ela em voz ténue.

Sim, nesta altura do ciclo de temperatura — respondeu Caitlín. — Mas você está com frio, com o fato-macaco, enquanto eu só tenho em cima de mim este fino pijama. O verdadeiro frio vem de si, minha querida. Precisa é de receber um pouco de calor.

Su fixou os olhos no exterior, sem ver.

Eu não quero ser indiscreta — reatou Caitlín. — Porém, sou a médica desta nave, e em Deméter ouvi coisas piores, como você nunca poderá imaginar. Sempre ajudei no que pude, e sempre guardei segre­do... Qualquer coisa relacionada com Carlos, não é verdade?

Su fez que sim, convulsivamente, com a cabeça.

Claro, toda a gente notou que vocês os dois estavam a ficar muito íntimos, e todos sentimos sincera satisfação nisso, por causa de si — prosseguiu Caitlín. — Escute: se me disser que me ocupe eu do que me diz respeito, peço-lhe desculpa e não a maço mais. Contudo, você possui um coração fogoso por baixo de toda essa mansidão. Uma luta com ele podia torná-la infeliz, mas não a amarguraria a tal ponto. Que lhe aconteceu então, Su?

A linker levantou o punho e desabafou num jato, a ponto de quase não poder ser seguida:

Pediu-me para eu me casar com ele!

Como? Vejamos, isso é maravilhoso! Duas excelentes pessoas... Mas você recusou?

Recusei. Tinha de ser. Impossível casarmo-nos.

E porquê?

Su não deu resposta imediata, e ficou-se por um soluço ou dois. Por fim Caitlín tornou no seu tom mais suave:

Sem dúvida que primeiro ele lhe fez a sua declaração, e você re­cusou. Esta noite ele propôs-lhe casamento, não foi? Isso demonstra que a ama, minha querida. Bem podia ele ter amplos prazeres sexuais com outra. Com Frieda. E confesso que também eu já teria satisfeito a minha curiosidade, se ele não houvesse começado a incendiar-lhe a alma, a si. Na verdade, uma cerimónia celebrada por Dan não teria o mínimo efeito legal, nem canónico. Mas, enfim, seria um casamento válido aos nossos olhos, e estou certa de que Dan se encarregaria mais tarde das formalidades, se viéssemos a encontrar meio de voltar para casa. Dan, que o conhece de há muito, disse-me que quando Carlos se dedica a alguém a sua dedicação é segura.

Su meneou a cabeça.

E porque não se haveria você, muito simplesmente, de juntar com ele? — inquiriu Caitlín. — Os seus pais são religiosos, eu sei, mas a mim confessou-se você uma perfeita ateia.

Sim, por causa de meus pais — respondeu Su num murmúrio doloroso. — Já lhes causei bastantes contrariedades, e se os voltar a ver não quero que seja como mulher amigada.

Nos seus olhos lia-se uma lufada de vitalidade. E Su acrescentou:

E eu não o hei de ser em caso nenhum.

Mas aceitaria uma cerimônia a bordo, não? Você ama-o, não é assim? Então que foi essa idéia de lhe dizer que não?

É que sou... une vierge.

Virgem? — E Caitlín suspirou. — Bem, pouco vulgar na sua idade, mas não é vergonha nenhuma. Apenas uma contrariedade, quanto a mim.

Vendo-lhe ainda a dor estampada no rosto com a mesma intensi­dade, Caitlín prosseguiu discretamente:

Você receia as relações conjugais, é isso? Não propriamente a dor, talvez, mas a falta de jeito? Eu posso ajudá-la um pouco a vencer a dificuldade, e Carlos muito mais. Vejamos... Sei perfeitamente que ele é bondoso... Ou será que você receia ficar dependente, abafada? Ele tem, na verdade, um certo cunho de machismo. No entanto, aposto que você vai encontrar em si coragem para enfrentar a situação e para conduzir as coisas ao seu próprio ritmo. Lembre-se de Lis Leino.

— Mas você não está a compreender. Nunca fui inoculada.

Como? — exclamou Caitlín, verdadeiramente escandalizada.

Os meus pais... Eu não lhes tenho qualquer animosidade. São adoráveis. Mas, vivendo em casa deles, se soubessem que eu saboreava o prazer antes de casar, considerariam isso como uma afronta. Quero dizer, como prova de me estar a fazer fácil, como a maior parte das ra­parigas.

Caitlín torceu o nariz.

Essa é a atitude deles.

Não a condeno a si — volveu Susanne precipitadamente. — É justamente porque fui educada para trilhar caminho diferente. Na Terra também, se eu fosse a um médico para isto, haveria de parecer... bizarro.

Um sorriso triste, e Susanne prosseguiu:

Mas agora já não é preciso. O problema nem se pôs.

E você regressou, e colou-se pacientemente a Dan, apaixonada por ele... Oh, eu vi! Eu vi! Até que Carlos e você... Aquilo que receia é ficar grávida.

Sim, é o meu receio. O aborto não passa de um homicídio. Quando não é necessário para salvar a vida ou a saúde da mãe, conside­ro-o um assassínio.

Concordo. Além disso, não temos aqui condições para o prati­car com segurança. Infanticídio, não! Preferia então atirar-me por uma vigia fora.

Por outro lado, não podemos dar à luz uma criança... nesta nave perdida... com falta de alimentos. Iríamos encurtar os poucos anos que os nossos colegas de bordo ainda têm provavelmente diante deles...

Su empertigou-se na cadeira. Caitlín escutava com compreensão.

Eu disse-lhe que não. Ele queria continuar a conversa, mas eu vim embora. Talvez agora possa falar com ele de novo. Obrigada! Sabe que Dan foi amoroso para mim, aqui nesta mesma sala?

Escute um pouco.

Caitlín puxou pelo queixo e franziu as sobrancelhas, a contemplar o universo.

Deixe-me pensar. Com os diabos!, muitos dos mais críticos dile­mas humanos vieram a ter aquilo a que o nosso comandante chama uma solução técnica... Eu não tenho nem equipamento nem competên­cia para esterilizar qualquer um de vocês. Mas existiam antigamente contraceptivos mecânicos. Talvez Phil e eu possamos reinventar entre nós qualquer coisa que não seja inteiramente desagradável.

Caitlín sentiu resistência, a acrescentou:

Não seja pudica. Não está disposta porventura a sacrificar um grão daquilo que considera a sua dignidade pela sua própria felicidade e pela felicidade do seu homem?

Susanne teve de lutar consigo mesma antes de poder dizer:

Estou, sim.

E talvez nem seja necessário.

À medida que as ideias iam chegando a Caitlín, surgia nela o entusiasmo, que se reflectia em alegria:

Vou consultar o banco de dados. Ele deve saber os processos que se usavam... Sim, a vasectomia deve ser uma operação bastante simples, se eu conseguir descobrir como ela se faz, e reversível por en­xerto se alguma vez voltarmos para casa... Ou parece que me lembro de ter lido algures qualquer coisa sobre dispositivos intra-uterinos... ou cremes. Bem, os pormenores podemos examiná-los mais tarde. A ques­tão é que você, pobre inocente, anda para aí desamparada. Vamos! Case-se com ele e sejam felizes!

A linker parecia estonteada:

Não. E que seria de mim se falhássemos e ficasse grávida?

Vejamos, minha amiga respondeu Caitlín com um tom que poderia ser de uma trombeta. Vejamos, não se pode chamar a isso falhar. De modo nenhum. Seria mas é um triunfo. Significaria que não nos submetemos à morte. Nem mesmo que ela nos ofereça deixar-nos caminhar ao seu encontro com todas as honras militares. Havemos de combater, de viver, de procurar uma saída... Com o seu filho a nosso lado!

Lenta, lentamente começou a despontar em Susanne uma claridade que se podia igualar à das estrelas.

 

Salto.

A legião de estrelas não era agora tão vasta nem tão brilhante como antes, embora mais densa do que em torno de Sol ou de Febo, salvo que numa direcção se adensavam vastas nuvens negras de breu, suavi­zadas apenas por uma esparsa claridade no primeiro plano. Não se via nenhum sol. A máquina T tinha por satélite um grande elipsóide muito semelhante ao do pulsar. Girava em órbita em torno de qualquer coisa que à vista desarmada parecia uma centelha azul e branca a tremeluzir, e que a Joelle e aos instrumentos se apresentava como uma fonte infer­nal de forte radiação.

O juízo de Joelle chegou-lhes como se do próprio Deus fora:

Aproximamo-nos do núcleo da galáxia. Aquilo que ali vêem são as nuvens de poeira que sempre no-lo esconderam. Está ali um buraco negro.

O derradeiro colapsar, uma supernova que restava, tão densa que a sua força gravitacional sobre si própria a comprimia até à pequenez, uma intensidade de campo»tal que a luz já não se podia escapar... As leis conhecidas da Física foram ultrapassadas, e a matéria comprimia-se cada vez mais, tendendo para o ponto geométrico, uma singularidade na qual não podiam subsistir leis de qualquer natureza que fossem. Mas nada disto podiam os investigadores observar. Só uma fuga ondulatório-mecânica podia fazer reverter aquele abismo potencial que tudo de­vora. O material interestelar assim sugado libertava energia, como um último grito de desespero antes de se desvanecer. (Para a eternidade?)

Suspeito que a eternidade seja uma superstição humana, e os Ou­tros devem saber isso melhor, pensou Brodersen, E em voz alta:

Deve ali existir um observatório semelhante àquele que já en­contrámos, apenas com um certo número de diferenças muito peculia­res. Vamos investigar. A sua extensão não é tão grande que não possa­mos por ali ficar um pouco.

Não. E a voz de Joelle tornou-se veemente. Não vamos para ali. Continua. Continua para a frente.

—- E porquê?

Não te posso dizer. Um pressentimento... Nós, holotetas, tra­balhamos sobre pressentimentos, Dan, as mais das vezes. E aqui... Forças, energias, a própria configuração do espaço, tudo parece tão es­tranho! Receio que não possamos depois desenvencilhar-nos.

Sem mais conhecimentos, disse o amor-próprio de Joelle. Os Ou­tros podem ensinar-me como regressar e eu posso aprender quando os encontrar, se é que alguma vez os vou encontrar.

 

Salto.

De novo o céu repleto de estrelas, quase tão numerosas como no penúltimo salto. Quase todas elas de cor vermelha, que ia do vermelho-sangue ao vermelho-rosado, mas de uma luminosidade cristalina. A maior parte brilhavam menos do que as do enxame e mais do que as do braço interior da espiral, aspecto que denotava as suas distâncias e espaçamentos. Não se viam quaisquer sinais de nebulosas, de galáxias ex­teriores nem da Via Láctea. Numa direção a densidade estelar acen­tuava-se cada vez mais, até que os olhos viam apenas uma massa fundida num globo rubro, como um imenso sol talismânico.

A máquina T estava sozinha, a meses-luz do corpo astronómico mais próximo e numa obscuridade meramente passageira. Fosse qual fosse o trajecto que seguisse, ele era traçado para ela pelo conjunto to­tal. O cilindro tinha o dobro do tamanho de qualquer daqueles que a tripulação havia visto até aí. Contava à sua volta vinte e três balizas, espalhadas por 100.000 km.

Estamos perto do centro da galáxia, no interior das nuvens anunciou Joelle num tom de voz que havia reconquistado segurança, espelhando tranquilidade como num sonho. Encontram-se ali muito mais estrelas do que ela possui noutros lados, e as sobrevi­ventes que vemos são as mais antigas, formadas quase no princípio da própria galáxia. Deve haver por ali um buraco negro de tamanho des­comunal, que já absorveu milhões delas e as está ainda a absorver. Se assim for, então a proporção de estrelas é agora muito baixa, pois o fundo de radiação é apenas moderado, e devemos ter chegado muito longe no nosso próprio futuro, quando só as anãs de mais longa dura­ção permanecem ainda a brilhar.

Na ausência de gravidade no seu assento de comando, em silêncio e maravilhado, Brodersen ouviu-se a si mesmo perguntar: «Porque não leva a passagem que tomámos a nenhuma delas?» Pegeen podia encon­trar palavras para aquilo que eu sinto neste momento, mas o meu cére­bro emperrado apenas pode encontrar idéias sem pés nem cabeça — e é, aliás, tudo o que conseguiria fazer, mesmo se não estivesse aturdido.

- As máquinas T não podem ter um campo de ação ilimitado. De­vem ser necessários relés, dispostos nos locais mais convenientes no espaço-tempo para o fim que se tem em vista. Esta aqui pode servir mais lugares, por ordens de grandeza, do que a galáxia tem de membros. Isso, e as suas dimensões, e o que já observei e calculei enquanto viajávamos, leva-me a crer que os trajetos mais longos que ela implica vão extremamente longe.

Um entroncamento... Esperem! gritou Brodersen. Uma re­velação explodiu nele. O seu pulso batia como um tambor de guerra. Escutem! Escutem! Uma civilização, todo um conjunto de civilizações, ou mais provavelmente qualquer coisa para que não temos palavras, de que não temos idéia... E os Outros, eles mesmos... Aquele povo que deve passar por aqui. Se ficarmos, vamos encontrá-lo!

Um clamor de alegria e uma confusão de vozes chegaram-lhe atra­vés do intercomunicador, de todos os pontos da nave. Weisenberg dei­xou que tudo acalmasse antes de manifestar a sua reserva:

Espere! Com que frequência chega aqui alguém? Provavelmente a maior parte das viagens são feitas directamente, até porque a máquina intermédia nos pode levar a mais mundos do que aqueles a que seria possível chegarmos mesmo que a nossa vida fosse de um mi­lhão de anos. Talvez isto seja usado uma vez em cada século, ou à volta disso. Na escala do tempo que os Outros conhecem valeria ainda a pena a sua construção.

Não podemos dizer antes de havermos experimentado volveu ; Brodersen, mais calmo.

Mas não podemos permanecer na ausência de gravidade todo o tempo preveniu Caitlín. Como sabem, a nossa última arrancada foi demasiado curta para nos manter em boas condições físicas.

Brodersen refletiu:

Assim é disse ele. Depois em franca exuberância: —Conseguiste mais uma vez pôr em evidência esse teu detestável hábito, Pegeen, de teres sempre razão.

Após uma pausa Brodersen prosseguiu:

Muito bem precisamos realmente de peso e não haveremos de querer por aqui ficar inutilmente a rodar sobre nós mesmos, mas preci­samos de manter as nossas opções em aberto o mais tempo que nos for possível. Assim, vamos andar de um lado para o outro aqui nas proxi­midades. Digamos hum! quatro horas a avançar, damos a volta, e quatro horas para trás, a desacelerar. Desta maneira, nunca estare­mos a mais de um milhão de quilômetros de distância, nem teremos uma velocidade relativa demasiado elevada. Não deve haver qualquer problema para detectar uma nave espacial que apareça e para lhe lançar um sinal.

E porque haveriam eles de utilizar ondas electromagnéticas para as comunicações? objetou Dozsa. — Disseram-me que os Betanos não se serviam delas.

Os Betanos têm a possibilidade de as receber, em caso de necessidade explicou Rueda. Além disso, a nossa radiação de jato deve ficar registada nos instrumentos.

E podíamos instalar uma grande luz, bem forte, a piscar, no nosso casco acrescentou Leino, excitado.

Vejamos volveu Brodersen —, que me dizem a isto?

A Chinook partiu. Lá foi a três quartos de gê, menos do que o seu comandante tinha previsto. Caitlín havia assinalado que aquela veloci­dade era suficiente e que faria durar por mais tempo a massa de reac­ção. A tripulação seguia despreocupada.

Entrando na cabina de Joelle, a paramédica deparou com a holoteta mergulhada na solidão. Todos os outros a bordo faziam passar ha­bitualmente qualquer coisa no sistema fornecedor de dados, fosse uma simples música ou uma obra de arte plástica. Ali o écran estava branco e mudo. A menos que se tivesse em conta a cama impecavelmente feita, o quarto não revelava o mínimo traço de personalidade.

Num cafetâ azul-solto que Caitlín lhe tinha feito, Joelle parecia-se com a escultura de um Boddhisatva. A sua aparência desleixada tinha desaparecido. Havia-se lavado e preparado, e estava agora com ar re­pousado. Mas via-se que se desprendera também das coisas do mundo. Com grandes olhos, uma madeixa de cabelo grisalho, a sua cara era pá­lida, da palidez do marfim, quase descarnada, sem sexo, inumanamente serena. A mão que Joelle levantou e o sorriso que esboçou ao re­ceber Caitlín pareciam traçar curvas abstractas. A voz era melodiosa uma vez mais, mas de uma melodia não para ouvidos mortais.

Você foi muito amável em vir até aqui disse ela. Pura fórmula.

Tenho prazer nisso respondeu Caitlín. Precisamos que você se restabeleça fisicamente. E, se preferir, deve começar em pri­vado, vejamos, os primeiros exercícios que lhe vou prescrever. Não ne­cessita de qualquer equipamento especial de ginástica.

Caitlín pousou o seu kit médico e abriu a pasta.

Para começar, vamos a um exame geral.

Joelle puxou as roupas por cima da cabeça e pousou-as numa cadeira. Caitlín estudou aquele corpo magricela, andou à roda dele, fez correr os dedos por cima da pele, a sondá-la. Joelle deixou-se ficar tranquila, e limitava-se a mover os braços da maneira que lhe era indicada.

Sem perigo em condições razoáveis de redução de peso - observou Caitlín. — Não seria mal que o meu traseiro fosse menos acentuado. O seu, pode crer, é impecável de linhas.

Como a deixa para a conversa não pegou, Caitlín tomou ar decidido:

Temos de recompor estes tecidos musculares atrofiados. Isto significa que precisa de mais proteínas. E uma ligeira camada de gor­dura é normal numa mulher. Diga-me: quais os seus pratos preferidos? Posso tentar cozinhar qualquer coisa que lhe abra o apetite.

Não se preocupe — volveu Joelle. — Diga-me apenas quanto devo consumir e do quê, e eu me encarrego disso.

Duas rugas se cavaram na testa de Caitlín, mas ela não respondeu de imediato. Prosseguindo com o exame, encontrou uma boa saúde bá­sica. Isso incluía sinais neurológicos. As tensões, tiques e crispações ti­nham acabado, os reflexos eram excelentes. Um ritmo cardíaco lento, uniforme, assegurava a pressão artificial que uma pessoa vinte anos mais nova podia ambicionar.

Acabou o exame de rotina — anunciou Caitlín por fim.

Pode vestir-se. Vamos agora às análises usuais a células e sangue, mas estou convencida de que encontraremos tudo fino.

Joelle enfiou o cafetã e disse:

Depois posso também começar o seu tal programa, se mo quiser explicar.

Hum! Ainda não estou preparada. Sente-se um pouco. Quero falar consigo.

Quando se sentaram, Joelle esperou passivamente que Caitlín fa­lasse. E esta falou:

Posso dar-lhe qualquer coisa para o corpo, mas de pouco lhe servirá se não souber nada do que lhe vai na alma. Por exemplo, até que ponto está disposta a seguir as minhas instruções?

Inteiramente disposta.

A promessa não era categórica no tom, nem relutante. E Joelle avisou:

Parto do princípio de que elas não vão interferir demasiado no meu trabalho, e compreendo que têm por objetivo impedir que surja uma crise grave em mim.

A boca de Caitlín contraiu-se.

É isso o que me preocupa mais. Quanta holotese pode você su­portar antes que lhe aconteça qualquer coisa? E o que pode ser? Qual­quer coisa de irreversível? E já teria começado? Joelle, nenhum dos seus companheiros da Emissário assegura que a conhece intimamente, mas todos concordam que você se tornou bastante estranha. Nunca ouvi falar de ninguém que passasse em linkage todas as horas em que não está a dormir. Repare: no nosso planeta o horário de trabalho é li­mitado por normas, e eu pergunto a mim mesma com insistência se Dan não a devia obrigar a cumpri-las.

Receia então perturbações graves? — perguntou a outra mulher imperturbável.

Se receio! Pode resultar daí a esquizofrenia, ou um estado que se lhe assemelhe, ou... Quem pode dizer? Pouco mais sou do que enfermeira, com escassa preparação complementar. As referências mé­dicas a bordo inundam-me de termos técnicos sobre esta matéria, ao passo que não dão quaisquer sintomas para o diagnóstico nem prog­nósticos, pois a situação é sem precedentes. No entanto, não há dúvida, você está a comportar-se cada vez mais como... autista.

Caitlín inclinou-se para a frente e prosseguiu:

Seja honesta. Seremos nós, o resto da tripulação, alguma coisa mais para si do que peças de uma engrenagem?

Claro! — respondeu Joelle, sempre plácida. O sorriso desprendia-se dela como um tênue raio de luar por entre as nuvens. — Eu gosto de todos vós, a todos desejo o bem. E minha intenção fazer tudo quanto esteja nas minhas forças para vos levar de novo para casa. Para esse fim, melhor seria que eu desenvolvesse ao máximo as minhas facul­dades. Asseguro-lhe: muito ao contrário de estar a ficar apalermada, cada dia que passa me sinto mais lúcida do que qualquer outra pessoa da nossa espécie, em toda a história da humanidade.

Bonito! Arrojada afirmação da sua parte!

Tem razão. Soa a grandiloqüente quando figura naquela aravia de macacos a que o homem chama linguagem. Desejava que você ti­vesse experiência disto. É poetisa, uma poetisa capaz de transmitir nuanças de sentimento, se não da realidade. Eu não possuo dotes literá­rios e tive menos prática do que a média no decorrer da minha vida em exprimir os meus sentimentos às pessoas no dia-a-dia. Além disso, quando não estou em linkage sinto-me, digamos, menos do que semi­viva.

Joelle fez uma pausa, à procura das palavras. Depois prosseguiu:

Suponho que a Susanne Granville lhe tentou explicar o que é a linkage para ela. Ora aquilo é uma palidíssima imagem do que é para mim. E você não pensa que ela esteja mentalmente desarranjada, pois não? Também quando você está a compor, quando está a fazer amor (e você por certo mais profundamente do que a maior parte das pessoas) vive experiências transcendentais, não vive? Procura-as uma vez e ou­tra, em todas as oportunidades que se lhe oferecem. E elas não lhe per­turbam o raciocínio, pois não? Pelo contrário, não se sente depois ainda mais forte, mais estável?

Mas são processos naturais — argumentou Caitlín. — Evoluíram em nós a partir das formas mais primitivas da vida que se desenvolveram na Terra. E você renunciou por completo a elas. Isso não pode ser saudável. Ah, sim! Padres e freiras e místicos em odor de [santidade, cientistas e artistas devotados por inteiro ao seu trabalho, [conservaram por vezes um equilíbrio. Talvez o ascetismo se ajuste me­lhor aos seus temperamentos do que os prazeres da carne. No entanto, eles conservaram-se dentro do mundo humano, em demanda de objetivos humanos, rodeados de coisas a que os sentidos humanos podiam reagir — e não passavam a vida, ligados a uma máquina. Eu não lhe quero proibir, de maneira nenhuma, a sua holotese, Joelle. Penso, isso sim, que devia também deixar desabrochar o resto da sua personalidade.

Pela primeira vez se lia a dor naquele rosto ali diante dela, e essa dor percebia-se, embora ao de leve, na voz que respondeu.

Experimentei. Mais difícil do que pensa. Ano após ano, a satis­fação que tirei do convívio com os outros minguou, e os tormentos acentuaram-se. Até que fiquei para aqui uma velhota sem jeito para na­da, amalucada e sem saber o que fazer quando não estou em linkage.

A calma voltou-lhe depois à voz. Continuou:

Entretanto, neste voo, comecei realmente a usar, realmente a dominar, o que aprendi em Beta. E Fidélio ensinou-me ainda mais. E vieram as incríveis novidades, o conjunto do cosmo a abrir-se para mim, facetas do Número com que nem os Betanos nem os Humanos ti­nham sonhado. A procura de noções profundas, tenho andado a des­cobrir novas técnicas — maneiras de discernir, de pensar, de com­preender... Filosofias... E elas dão-me uma visão ainda mais profunda, que me impele cada vez mais para a frente...

f A paz de Joelle cresceu até a um suave ardor.

Caitlín, pode crer nas minhas palavras: nunca me senti assim tão feliz. E, muito para além daquilo a que você chama condição humana, tornei-me cada vez mais ditosa e mais sã de espírito. Não, não sou me­lhor do que você, mas diferente. E que sentiria você, Caitlín, se lhe ar­rebatassem o seu talento de fazer canções ou de fazer amor? Eu... eu poderei em breve vencer uma coisa em mim que sei ser errada: ter pena de si. Minha doce e bela amiga, você que cultiva a graça animal, tenho pena de si. Mas penso que os Outros não a censurariam, e eu também não a devo censurar.

- Os Outros... Talvez nunca os encontremos. Podemos vir a mor­rer no espaço, ou num mundo qualquer que meramente tenha uma tecnologia superior à nossa. Posso suportar essas coisas, se acontecerem. Mas estou convencida de que todas as raças, quando elas se tornam aptas para isso, vão à procura dos Outros, como nós cometemos o erro de o fazer. Que objetivo maior poderão elas ter? - E... se os encontrássemos, se... Eu estaria preparada para falar com eles.

- ... Apenas mais tarde, havendo prometido a si mesma não impor limitações a Joelle desde que não aparecessem sinais de perigo, pensou Caitlín na última frase, aquela que não havia sido pronunciada: Estarei pronta para me juntar a eles.

A Chinook continuava a sua viagem.

A sala comum estava engalanada de ornamentações acabadas de fazer. Um reprodutor de dados derramava música de órgão e no seu écran hologrâmico passavam lentamente imagens da Terra e de Deméter — um jardim florido, o pôr do Sol sobre o oceano, o pico de uma montanha, uma árvore num prado. Ao longe cintilavam as estre­las e o coração da galáxia. Vestidos com o melhor que tinham, Dozsa, Weisenberg, Leino, Frieda e Caitlin, estavam reunidos em torno de uma mesa por detrás da qual se encontrava Brodersen. À frente dele, Rueda e Susanne, de mãos dadas. No fundo da sala aguardava um banquete que levara dias a preparar.

Só Joelle estava ausente, mas a par do que se ia passando. Tinha le­vado até àquela festa os seus desajeitados votos. Precisava, porém, de se manter em vigilância contínua, não fosse dar-se o caso de surgir de um momento para o outro qualquer nave desconhecida. Seria então imprescindível pôr em acção tudo o que havia sido programado, e era por isso que Joelle ficava ali em lugar dos dois tripulantes habitualmen­te de guarda.

Brodersen pegou nos papéis de que precisava. Como nem era padre nem magistrado, e como o casal não seguia a mesma religião, parecia ilógico ler uma prece, celebrar uma cerimónia tradicional. Caitlin tinha escrito um texto e havia-o traçado numa floreada caligrafia como lem­brança extra para os seus amigos.

Devia ser ela também a presidir, pensou Brodersen. Caitlin daria cunho de mais beleza a uma cerimónia destas. Estou eu para aqui a fa­zer de clérigo canhestro. Pobre de mim! Os olhos picam-me e parecem embaciados. Não vou desatar a chorar, pois não? Lis, Lis, aqueles raios de sol através dos vitrais quando nós...

— Meus muito queridos — começou ele. — Neste dia do nosso exílio reunimo-nos aqui em júbilo para assistirmos à fundação de um novo lar. Perdidos, mas perdidos entre esplendores. Expostos aos peri­gos, mas inundados de esperanças. Pedimos para este casal a bênção de Deus, ou pedimos a bênção da vida. Para os dois, Carlos e Susanne. Estamos-lhes reconhecidos pela coragem que reanimaram em nós, pelo espírito que demonstraram. Queridos companheiros, que a felicidade seja sempre convosco! Deixem agora que sejamos testemunhas dos vos­sos juramentos, enquanto vos unimos sob uma forma nova, um ao outro...

Ouviu-se nesse momento uma sereia.

A Chinook não estava longe da máquina T, no trajeto em direcção a ela, mas contava com quatro horas livres para a cerimônia e para a festa que se lhe seguia, antes de mudarem de rumo. A velocidade eletrônica, Joelle ligou o écran apropriado, à ampliação máxima. O cilin­dro rotativo e um par das suas balizas pareciam enfiar pela sala dentro.

Mas ninguém vislumbrou mais do que uma leve mancha, mancha que lhes passou diante dos olhos e desapareceu.

Ao cabo de um momento, durante o qual a música parecia desajus­tada a rasgar o silêncio, chegou a voz de Joelle, num tom neutro:

Uma nave. Completou o trajecto em trinta e sete segundos.

Nombre de Dios! — exclamou Rueda, e puxou a noiva para si.

Antes de ela poder derramar uma lágrima, já Caitlín estava a sustê-los a ambos. Por cima do ombro dos dois, agitados, chamou Brodersen:

Dan, temos assunto mais importante para terminar, vejamos! E para festejar. Antes de pensarmos em contrariedades. Queres reco­meçar?

O comandante estava sentado sozinho no seu gabinete. A sua linha privada permanecia ligada para a holoteta. Os queixos cerravam-se-lhe com força a segurar um cachimbo que enchera de fumo o ar em torno de si e lhe estava a ressequir a língua. Em cima da mesa via-se uma gar­rafa de uísque, ao lado de provas de fotografias tiradas a alta veloci­dade.

Essas fotografias mostravam um gradeamento tridimensional, com a dimensão maior talvez de 1 km, de configuração que estava longe de ser simples, embora elegante e de aspecto frágil. Dir-se-ia uma teia de aranha ao romper do dia, ela também a cintilar com luz que parecia se­meada de orvalho. Uma luminescência de pérola envolvia o todo. Isso, e a distância, não deixavam ver com nitidez mais pormenores. Não fora possível também determinar o rumo exato que tomara.

Joelle disse:

Suspeito de que a nave seja quase sem massa, quase por inteiro constituída por campos de força. Estes podiam proteger passageiros e carga contra as fantásticas acelerações que a levam pela sua rota. Se carga há e se passageiros há. Pode também ser robótica... Não, sem dúvida uma concepção demasiado grosseira... E pode ser que não transporte senão modelos, vazados sobre algumas moléculas, e que constituam informações. Por que razão mandar o nosso corpo a qual­quer lado? Porque não antes uma gravação da nossa personalidade, uma gravação que possa ser ativada quando ali chegar? Um corpo idêntico, fabricado... Ou outro corpo feito expressamente para esse fim. Ele pode fazer e experimentar tudo quanto nós quisermos. A se­guir pode regressar como um modelo e ser... transcrito... em nós... Vejamos, cada um de nós podia viver assim um milhar de vidas diferen­tes, num milhar de mundos diferentes, e depois reunir tudo aquilo.

E sabes se isso é verdade? — inquiriu Brodersen com ar sombrio.

Claro que não. Mas sei que é possível. Apercebi-me de certos pormenores que me indicam como pode ser feito. Se tivesses aquela mesma possibilidade, não te aproveitarias dela?

Ah, suponho que sim! E então eles nunca nos detectarão?

-Eu não disse isso. Talvez passem por esta zona veículos materiais, mais primitivos. Nem todas as raças neste conjunto devem estar! Ao mesmo nível tecnológico, por um determinado número de razões, ou talvez os Outros que aqui venham de vez em quando. Em minha opinião, aqueles não são os Outros, Dan. Não lhes teria passado despercebida, a eles, a nossa presença.

Brodersen bebeu uma golada e inquiriu:

Quais as tuas estimativas de se concretizarem essa hipóteses, em qualquer dos casos? Passar alguém que não seja demasiado avançado e dê por nós, da mesma maneira como nós notaríamos a presença de um nosso semelhante numa floresta? Ou então alguém que esteja bastante longe, com o olhar à espreita.

A mim, as probabilidades parecem-me diminutas.

A mim também. Talvez estejamos redondamente enganados, Joelle. Redondamente enganados. Mas em que nos podemos basear a não ser nas nossas melhores conjecturas? Tu com o teu cérebro, e eu por mero instinto? Se ficarmos aqui mais alguns meses ainda, de um lado para o outro para adquirirmos um pouco de gravidade, vamos gastar toda a nossa massa de reacção e não temos outra saída que não seja pormo-nos em rotação e aí ficarmos. Parece-me preferível conservarmos toda a liberdade de acção de que possamos dispor. Vou defen­der que levantemos ferro, quando discutirmos e votarmos o assunto.

O cachimbo tinha-se apagado. Brodersen acendeu-o de novo. Não vamos debater a questão por estas semanas mais próximas, no entanto — decidiu ele. — Pode surgir, entretanto qualquer coisa inesperada. Não é hipótese a desprezar. E Su e Carlos merecem uma lua-de-mel tranquila.

Nada mais apareceu.

 

Salto.

Na treva mais densa, estava em chamas, uma colossal roda catarina, a encher um quarto do céu. Do ponto onde a Chinook se encontrava aquela roda parecia inclinada. A imagem mostrou um raio, de­pois o núcleo onde ela se curvava, e a seguir um raio por detrás dele. Brilhava, brilhava: o centro vermelho-dourado, as espirais azuis-brancas, ramificações dispersas como faíscas. Noutros pontos realçavam-se algumas formas nebulosas que rodeavam aquela majestade, e a muita distância distinguia-se a luz das suas semelhantes.

Espaço intergaláctico — murmurou Brodersen.

A uma distância de cerca de cinquenta mil anos-luz. Maior do que aquela onde estávamos — disse Joelle. O tom da sua voz denotava exaltação. — A julgar pelas cores, pela luminosidade relativa das porções interiores e exteriores, há menos estrelas gigantes do que os nossos astrônomos imaginavam, e menos poeira e gás para daí se for­marem outras. Devemos estar ainda no nosso futuro, talvez muito longe. Um bilhão de anos? Detenhamo-nos um pouco, para que eu pos­sa saber!

Brodersen olhou para o cilindro e para as suas balizas a cintilarem. Depois disse:

Outra máquina T isolada, e tão grande como a última. Ponto de passagem para um conjunto de outras galáxias... e idades... Quando calculaste a rota que nos levaria mais longe, calculaste bem.

Mas continuamos sem quaisquer sinais de nada que nos possa ajudar — observou Leino, com a sua voz cansada. — Por quanto tempo podemos andar para aqui a rodopiar? E para onde nos levará tudo isto?

Brodersen fez urna careta.

Tem razão — respondeu ele. — Também começo a perguntar isso a mim mesmo. Talvez não seja prudente irmos ainda mais para diante. Talvez fosse melhor que Joelle nos levasse agora para trás, se puder descobrir como isso se faz.

Suponho que posso, de um modo geral — disse-lhes a holoteta. — Mas isso exige mais elementos. Elementos esses que tenho de recolher em qualquer caso, para melhorar os meus cálculos, seja qual for depois a nossa decisão.

Pois bem — decidiu Brodersen —, vamos ficar por aqui às vol­tas um pouco mais. É preferível também.

Brodersen esfregou os olhos e continuou:

Uma oportunidade para refletirmos. Talvez até para descansar­mos um pouco, depois desta última tirada.

Caitlín perguntou com meiguice:

Nenhum de vós está a ver como isto é belo?

Ela flutuava sozinha na saia comum e olhava maravilhada. Os reló­gios marcavam vinte e duas horas e trinta do dia que a tripulação levava a bordo, e qualquer reunião que ali tivesse havido já tinha acabado.

Entrou Dozsa, avançou para Caitlín, dominou o andamento segurando-se a uma cadeira ao pé dela. A única iluminação vinha de fora, prata e rosa, ténue como o luar. Caitlín destacava-se contra os recortes de sombras, na penumbra que enchia a peça.

Já sabia que a vinha encontrar aqui — disse Dozsa. — Vejamos, como se sente você?

Excelente. E alegre — respondeu ela, sem tirar os olhos do céu.

Sim vista maravilhosa. Pena é que mais ninguém pareça dis­posto a apreciá-la. Salvo Joelle, creio eu, na sua maneira fria... É um espectáculo para namorados.

Não há dúvida, Stefan.

O imediato sorriu e passou-lhe o braço pela cinta. Caitlín não reagiu de forma perceptível, nem a consentir nem a opor-se. Dozsa aproximou-se-lhe da cara e aspirou-lhe a frescura da carne, o perfume do ca­belo solto.

Mas você é ainda mais deliciosa para os olhos, Caitlín — murmurou ele.

Caitlín riu de mansinho.

Muito obrigada, prezado senhor, pelo seu exagero.

A seguir o tom de ironia diluiu-se:

E agora, se fizer o favor, e isso sem qualquer ofensa, quero ape­nas mergulhar naquilo que temos diante de nós, enquanto aqui estiver­mos.

Dozsa abeirou-se ainda mais dela:

Caitlín, meu amor.

Caitlín endireitou-se e voltou a cabeça para o olhar de frente:

Stefan, temos sido excelentes camaradas. Você não vai estragar tudo, pois não?

Dozsa beijou-a na boca. Caitlín recuou, ficando ainda mais presa pelas mãos, mas com o corpo a meio metro dele.

Largue-me — pediu Caitlín.

Dozsa puxou-a com violência.

Deixe-me ir embora — disse ela, destacando bem as palavras. — Ou, se os deuses me ajudarem, mando-o daqui para a en­fermaria.

Dozsa largou-a. A sua excitação deparou com a fúria de Caitlín. Esta respirava forte.

Se duvida de mim — preveniu ela —, se conta servir-se do seu karate, fique sabendo: vou derrear-lhe um olho pelo menos, e perde também a bazófia da família. Sei como pôr uma pessoa no seu lugar, tal como sei ser amiga dela.

A raiva acabou por ser dominada.

Ah! Recuperei a calma — disse ela com esforço. — Você não tinha a intenção de me ofender, estou certa disso. Vamos esquecer o que se passou.

Mas a cólera de Dozsa cresceu.

Você não é apenas mulher de Dan Brodersen, pura e simplesmente — lançou-lhe ele à cara. — É de Martti Leino, também. E de quem mais?

Caitlín levantou a cabeça de novo:

Assunto meu, e ninguém tem nada com isso.

Você vai para a cama com quem lhe agrada. E eu não sou bom para si, não é?

Caitlín tentou suavizar a conversa:

Stef, meu caro, devo dizer-lhe que Martti necessitava de am­paro. Não lhe posso explicar porquê, mas precisava. Já não precisa agora, a maior parte das vezes. Neste momento é Dan o único que anda com o coração a sangrar. Forçado a tomar decisão após decisão, e terrí­veis, sem nunca saber se a que vem a seguir nos condenará a todos. Eu reconforto-o um pouco da sua tristeza. E é a pessoa que sinto mais per­to de mim, o homem a quem amo e que me ama.

Curioso! Esta noite está ele com Frieda. Não julgue que os não vi, a vocês os três, a falarem baixinho, e depois eles os dois a saírem juntos.

Caitlín fez que sim com a cabeça.

Tem razão. Também ela anda necessitada, e eu sei isso. Você nunca procurou perceber mais do que à primeira vista revela aquele corpo tão grande e forte? Pois Frieda sentia-se tão deprimida que eu decidi... Bem, isso não interessa.

E à meu respeito? Já alguma vez lhe passou pela cabeça que também eu estivesse a sofrer?

Oh, Stefan, acabemos com a comédia! — suspirou ela. — Você gozou de Frieda muitas vezes, e vai gozá-la de novo. Viu agora em mim meramente uma oportunidade.

Caitlín fez um gesto de defesa e prosseguiu:

Sei muito bem que lhe fazem falta as beldades que deixou na sua terra e receia nunca mais as voltar a ver. Mas o seu espírito é forte, como o meu. Você não tem sobre os seus ombros a responsabilidade fi­nal, como Dan. Nem... Olhe, a conclusão é que, para além do apoio a um companheiro de bordo para o ajudar a sobreviver, nada mais temos a oferecer um ao outro senão um pouco de divertimento.

E não iria encontrar divertimento em mim? — rematou ele com azedume.

Caitlín riu.

Vejamos, camarada! Eu andei a olhar para si com muito inte­resse durante semanas. Aconteceu apenas que as circunstâncias não fo­ram propícias.

Dozsa animou-se:

E então?

Ela sacudiu a cabeça:

Mais tarde talvez. Já lhe disse, Dan precisa de mim. Ele está a ser muito amável esta noite e, no entanto, eu tive de o animar. Não há mal nenhum numa escapadela uma vez por outra, mas não posso arris­car outra ligação tão absorvente como com o Martti.

Dozsa parecia agora mais satisfeito.

Asseguro-lhe, Caitlín, uma escapadela. é tudo quanto eu tenho em mente.

Mas você partiu do princípio de que tinha direito a ela. — E em tom compadecido: — Desculpe, Stef. Não lhe posso permitir isso.

O imediato engoliu a saliva, fixou os olhos nas mãos enquanto elas seguravam a cadeira, e por fim pediu desculpa.

Eu tinha a certeza de que você acabaria por compreender — disse Caitlín, acariciando-lhe a cara. — Agora vamos esquecer, de verdade. Vamos ser dois bons amigos que se encontraram para admirar uma enorme beleza.

 

Salto.

Trevas, nada. Negrura e absoluto. Aquela gente lamentava-se numa espécie de terror.

As balizas em torno da máquina T não eram candeias vermelha, violeta, esmeralda, âmbar acesas na maldita escuridão. Brilhavam perdidas e débeis, como se de um momento para o outro se pudessem apagar. Depois ao longe, no meio de luzes mais frouxas que ma! se viam, os olhos descobriam um simples ponto de luz.

— Acalma-te — ordenava uma parte de Joelle que ela destacava de si mesmo para isso. Não corremos perigo imediato. Vou investigar.

Reunificou a sua mente. Com os órgãos da nave e com os seus pró­prios sentidos começou a desbravar o desconhecido.

O radar trouxe-lhe a imagem daquele cilindro a girar. Era o maior que até ai haviam encontrado. Na ausência de gravidade, Joelle sentia, apesar de tudo, aquela massa e a energia que ela continha. Os meios óticos e a rádio, vastamente ampliados, mostravam-lhe estrelas espa­lhadas em pequeno número e por largas distâncias, como brasas já a cobrirem-se de cinzas, a caminharem para a extinção. Em torno do casco era quase o vácuo total. Toda a radiação e todas as partículas ma­teriais que ela conhecia tinham desaparecido quase por completo, dei­xando uma cavidade a que não fazia sentido chamar vazia ou fria. Joelle procurou e encontrou galáxias próximas, tão calcinadas como es­ta. As suas formas eram caóticas. Joelle tentou encontrar agrupamen­tos completos delas, e teria possibilidade de vislumbrar algumas das mais próximas, tais como as do grupo da Virgo, pelos derradeiros fótons que houvessem irradiado; mas não conseguiu. Haviam desaparecido demasiado rapidamente.

A atenção de Joelle voltou-se de novo para o que mais próximo a rodeava. Os instrumentos haviam acumulado dados suficientes para ela deduzir que a máquina girava em órbita em torno de um sol completa­mente extinto. Semelhante ao Sistema Solar, ele nunca tinha explo­dido, por ser demasiado pequeno, mas passou pelas fases de gigante vermelho e por outras fases variáveis, contraiu-se até ficar um globo do tamanho de um planeta de densidade máxima, onde os átomos podiam ainda continuar a ser átomos, e arrefecer lentamente, de calor branco para uma massa de escórias. Ficaram alguns verdadeiros planetas, ro­chas nuas ou cobertos pelas suas próprias atmosferas geladas. Salvo um...

Joelle lembrou-se de que tinha de descer das alturas para dizer à sua gente aquilo que havia sido revelado dentro dela.

Estamos no futuro remoto... Espacialmente, de novo no inte­rior da galáxia, mas no tempo qualquer coisa entre setenta e cem bilhões de anos depois de termos nascido. Não restam mais estrelas vivas a não ser as mais pálidas (bem-aventurados os simples porque deles é o reino dos céus) e estão agora a morrer, enquanto a própria galáxia se está a desintegrar. O universo expandiu-se e atingiu quatro ou cinco vezes as dimensões que tinha nos nossos dias. Se avançarmos muito ainda, julgo que saberemos se ele realmente se continuará a expandir para todo o sempre ou se, no fim de contas, é verdadeira a velha ideia de que aca­bará por implodir, retraindo-se para o interior de si mesmo e transfor­mando-se em nova bola de fogo e em novo cosmo.

Nós, avançarmos ainda? — gritou uma voz da tripulação. Joelle não identificou aquela voz, distorcida, nem isso lhe interessava.

E a voz prosseguiu:

Oh, não, não, não!

Apareceu Brodersen, prudentemente pragmático:

Que ponto é aquele de luz amarela que estamos a ver? Deve es­tar próximo.

E está. A anã preta à volta da qual seguimos neste momento tem planetas à sua volta, e aquela fonte luminosa é um satélite de um deles. Não tenho uma ideia muito clara de que espécie é. Devíamos dar uma vista de olhos. A máquina T está a formar triângulo equilátero também com o primário, e a distância é de cerca de uma unidade astronômica e meia. Não chega a quatro dias médios, a um gê.

Sim, suponho que devíamos — concordou Brodersen.

Em Joelle a maravilha de tudo aquilo estava a ressoar dentro do seu «eu» de holoteta. E ela lembrou ponderadamente:

É sem dúvida obra dos Outros, vocês sabem.

A Chinook avançou.

Os écrans na sala comum estavam apagados e ninguém sabia ao certo quem havia proposto fechá-los. Não se levantara a mais leve ob­jeção. Em sua vez, os aparelhos de reprodução de dados passavam imagens, desoladoramente acariciantes, dos feitos humanos. Péricles, Shah Jehan, Hokusai, Monet, Fídias, Rodin e outros, em múltiplas se­quências. Tudo com um fio de música. Mas poucos prestavam atenção.

Uma vez que a nave levava menos tripulação do que a usual, tinha-se estabelecido o costume de, após as refeições, cada qual que não esti­vesse de serviço ajudar a contramestre e a sua ajudante a arrumar a co­zinha. Assim, Philip Weisenberg encontrou-se, vindo do lava-louça, ao lado de Caitlín.

— Estás bastante abatida hoje, não te parece? — perguntou ele. — Que se passa? Alguma coisa em que te possa ajudar?

Muito obrigada, mas não é nada respondeu Caitlín, esbo­çando um sorriso. Mera indisposição. Vai passar.

Tem atenção a isso, minha querida. Isolados como estamos... apesar da imensidade que nos rodeia, ficamos cada vez mais sem defesa contra nós próprios.

Weisenberg aproximou os lábios do ouvido de Caitlín:

Foste ver-me uma noite em que não me sentia bem. Não esqueci. Volta de novo quando quiseres.

Sim ...

Abruptamente, Caitlín pegou-lhe no braço e perguntou:

Podemos conversar um pouco?

Dirigiram-se à cabina de Weisenberg. Ele pôs a tocar o Lago dos Cisnes, uma gravação feita na Lua talvez há cem milhões de milénios, mas simplesmente para dar um pouco de vida àquele compartimento. Não havia ali álcool nem haxixe, e Caitlín declinou o oferecimento para fazerem um pouco de chá. Instalando-se calmamente numa cadeira, Weisenberg deixou-a girar pela cabina.

Na verdade tens razão no que disseste observou ela. A respeito de andarmos para aqui tão isolados que a nossa pequenez st apodera de nós até nos sentirmos como macacos na jaula. Eu não me apercebera antes, pois as maravilhas que encontramos eram sempre deslumbrantes. Mas neste túmulo da Criação apercebo-me finalmente disso, de tudo quanto aconteceu. E somos realmente de censurar se co­meçarmos a perder a cabeça? No nosso planeta, quando as contrarie­dades nos batiam à porta, tínhamos o pôr do Sol, o nascer do Sol. Tínhamos as florestas, e as leiras, e os lagos, e as cotovias. Ou então uma simples cidade, um mundo recheado de vidas humanas, onde podíamos flanar. Aqui, enlatados numa caixa de metal, que mais nos resta senão olharmos, pasmados, enquanto perseguimos um fogo-fátuo que nos conduz talvez para onde não encontraremos saída? Não, pior ainda do que isso, porque um fogo-fátuo nos atrairia pelo menos para o meio de um autêntico pântano, coberto de água e lodo, com juncos a sussurrar, rãs a coaxar. E, no final, quando nos afogássemos, teríamos uma ca­mada de turfa para repousar os ossos e para nos albergar de tal maneira que um dia os nossos descendentes nos haveriam de encontrar e fica­riam maravilhados com a descoberta de um fóssil, daí a milhares de anos!

Também tu então? volveu ele. Também tu queres voltar para trás? Ninguém já tem esperança de que consigamos encontrar o caminho de regresso, mas... Uma Nova Terra? Caitlín, perfeitamente impossível!

Eu bem o sei. No entanto, teríamos estrelas para ver. Ou... A Terra e Deméter não são os únicos mundos vivos. Eu podia morrer se­renamente em Danu, entre aqueles seres a cantar e a dançar.

Também não podemos voltar para lá. O regresso a um ponto não consiste aqui numa simples inversão de marcha, e Joelle não tem os elementos necessários, afora os conhecimentos básicos, para traçar uma rota com exactidão.

Sei isso igualmente. Mas podíamos ir para quando a galáxia ain­da estivesse viva, não podíamos?

Caitlín continuou a andar de cá para lá, de lá para cá, durante al­gum tempo. Parecia-lhe ver saltar fantasmas enquanto a música fluía. Por fim Caitlín deteve-se, ficou parada diante de Weisenberg e per­guntou:

Que queres então que se faça, Phil?

Que vamos para a frente disse ele. Até onde for necessá­rio, até onde pudermos.

Na ténue esperança de encontrarmos, nem sabemos como, pilo­to para o Sistema Solar?

Sim.

Da sua magreza circunspecta, ele observou a ardente plenitude de Caitlín e disse:

Caitlín, penso que por baixo dos teus anseios, estás de acordo. Na verdade, é mais fácil para mim por uma série de razões. Não fui nado e criado ao ar livre, nem vivi a contemplar os céus. Sou engenhei­ro. Uma máquina é tão natural para mim como uma árvore ou como um aguaceiro. O espaço foi sempre a minha atracção. As estrelas, a idéia dos Outros... Depois de Sarah e dos filhos, é claro. Mas, com os diabos!, explorar mais ainda é a única maneira, talvez, de chegarmos até junto deles. E, entretanto, quer ganhemos quer percamos... Oh, Deus meu! Estou a tornar-me sentimental.

Caitlín ficara de pé e olhava para ele.

Weisenberg animou-se, passou os olhos pelo compartimento e disse com ar contrafeito:

Caitlín, não estarias assim tão transtornada se não procurasses carregar com o fardo de Dan, em vez dele. Não achas?

Mas ele carrega o fardo de toda a tripulação respondeu Caitlín.

E continua sem se aperceber de todo o peso que está a recair so­bre ti?

Exageras, Phil. Mas, tanto quanto posso, procuro reconfortá-lo, a ele que é a minha vida. Sim, é nisso que estou empenhada.

Quase consternado, Weisenberg perguntou:

E achas sensato uma pessoa tão independente como tu dizer isso?

Porque não? Porventura não faria Dan o mesmo por mim, se eu precisasse?

Weisenberg ficou em silêncio, os olhos no chão; depois fixou-os de novo nela e disse:

Muito bem. Não é muito diferente do que se passa do que se passava —, do que se passa entre Sarah e mim. Mas, Caitlín, se quise­res deixar de te inquietar por algum tempo, se quiseres largar as tuas preocupações, lembrar-te da Irlanda em voz alta, ou de qualquer cofca mais, olha, eu estou aqui também.

... Bastante tempo depois, Caitlín desejou-lhe boa noite. Tinham ficado nos braços um do outro, e tinham falado, apenas falado, 4le tanto como ela, embora de vez em quando as palavras de Caitlín vies­sem entrecortadas de lágrimas.

Dorme tranquilo, Phil disse ela. E obrigada! Obrigada!

Se é que me deves qualquer agradecimento respondeu ele. Sou eu que te estou grato.

Cercado de ar, com nuvens que resplandeciam brancas, banhado de oceanos com matizes de safira e lápis-lazúli, com os seus continentes verdejantes de vegetação, o planeta brilhava. A sua lua, muito pró­xima, refulgia com o brilho do sol.

A Chinook deslizou em torno do mundo e voltou a deslizar, en­quanto os instrumentos procediam a análises.

Semelhante à Terra murmurou Susanne.

Receio que não muito — observou-lhe Rueda. Obtivemos espectros. Aquilo não é clorofila, o que tu vês, e as nossas indicações são que a bioquímica difere da nossa em outros aspectos ainda, mais fundamentais. Não se encontra ali nada de que nos possamos alimen­tar. Mas existe vida.

Joelle anunciou pelo intercomunicador:

O satélite é um gigantesco reactor nuclear, a alimentar-se da sua própria massa, aparentemente com uma conversão quase total em ener­gia. Isso contraria as leis da Física que nós formulámos, mas não há dúvida de que aquelas leis exprimem um caso muito especial. Suspeito que assistimos aqui a uma interação forçada, diretamente entre quarks. Provavelmente o aparelho que provoca isto encontra-se num espaço vazio, no centro, protegido pelos próprios campos que co­mandam o processo. Sem dúvida que este sol artificial foi de início uma lua natural, com as qualidades que lhe são próprias (deve ficar em ati­vidade uns cinco ou seis bilhões de anos.) É essa a razão por que os Ou­tros escolheram este planeta para o ressuscitar.

Os Outros? perguntou Frieda, emocionada.

E quem mais podia ser? inquiriu Brodersen. Gostaria de saber: trouxeram eles para aqui a vida, ou deixaram agir a evolução química?

De qualquer maneira disse Caitlín em tom radiante —, te­mos aqui vida nova. Talvez (não vimos sinais, mas podem estar ainda pelas florestas), talvez seres que pensem. Mesmo que nunca vejam es­trelas, que poderão eles vir a ser, e a fazer, e a amar?

Após um momento, com mais suavidade:

Teriam os Outros feito isto porque esperavam que fosse dada resposta a esta pergunta uma vez mais?

A nave lançou-se de regresso ao engenho de transporte.

Reunida na sala comum, a tripulação ouviu Brodersen declarar:

Tivemos de decidir. Joelle não nos pode conduzir a qualquer ponto exacto prefixado no espaço-tempo, embora nos possa dar uma orientação geral. Mais cedo ou mais tarde, se continuarmos a viajar, tomaremos por uma passagem sem máquina T no destino. Será então o nosso fim, sem remissão. Podia pelo menos ser no nosso próprio tem­po, tirando ou acrescentando alguns megaanos, enquanto o universo é brilhante e um tanto familiar. Claro, isso significa abandonarmos todas as esperanças de encontrarmos os Outros, e provavelmente de sobrevi­vermos depois de se esgotarem os nossos mantimentos. Contudo, o pla­no que estamos a seguir trouxe-nos a paragens cada vez mais estranhas. A próxima podia matar-nos...

Brodersen deu um estalido com os dedos e rematou:

Podia matar-nos assim, num ápice. Ou devagarinho.

Encheu de tabaco o cachimbo, acendeu-o e saboreou o fumo.

Muito bem — observou ele —, vamos ouvir a vossa opinião.

Sentada perto dele, pálida e sem expressão, Joelle disse:

Quanto a mim, prefiro continuar. Mas, para ser sincera, é por­que ainda podemos, na verdade, encontrar os Outros. A ideia de voltar para casa, em si mesma, deixa-me indiferente. Qualquer que seja o ca­minho que tomemos, uma vez que fiquemos onde eu possa mergulhar na Realidade.

Leino: — Voltar para trás. Que haverá no futuro a não ser um uni­verso completamente calcinado? Se o processo for cíclico, o colapso vai destruir tudo. Se não for, nada mais nos oferecerá senão trevas, por toda a eternidade. Porque haveriam os Outros de querer ficar ali?

Weisenberg: — Não, não podemos desistir.

Rueda: — E será necessariamente desistir? Temos uma probabili­dade, exígua, sim, mas que existe. Uma probabilidade de conseguirmos auxílio na galáxia jovem.

Susanne: — Se tentássemos mais duas ou três viagens para a frente antes de voltarmos para trás...

Dozsa: — Não. É demasiado grande a probabilidade de ficarmos para aqui engaiolados neste caixão voador. Quero morrer num esforço ativo, a explorar um planeta, a fazer qualquer coisa. Em atividade!

Frieda: — Eu quase ia votar para prosseguirmos, mas aquilo que tu dizes, Stef, faz-me pensar duas vezes, Caitlín deu um passo em frente:

Então nenhum de vocês compreende? — exclamou ela. — A certo momento também eu perdi a coragem, mas Phil animou-me numa longa conversa que tivemos, e então quando eu vi aquele mundo... Não compreendem? Os Outros vivem para a vida. São os grandes adversários da morte. Onde mais podemos nós estar seguros de encontrarmos um posto avançado deles a não ser nas próprias passa­gens que eles deixaram, no próprio dia do juízo? E de que outra maneira ousaremos nós pedir o seu auxílio a não ser no mesmo elevado espírito que é o deles?

Turno de noite.

Através dos seus sentidos electrónicos, integrados pelo seu cérebro eletrônico extra e pelas suas recordações (Fidélio, Fidélio) num todo cada vez mais cheio de significado e mais magnificente, o Número entrou em Joelle e fez dela um todo consigo próprio. O espaço-tempo curvou-se fortemente, subtilmente, misteriosamente, dimensão sobre dimensão. As energias fluíam, a matéria era como uma onda que ia e vinha, ao sabor das marés. A Lei, imanente e omnipotente, não era uma equação imutável, mas sim música que Joelle tinha começado sua­vemente a ouvir.

Obrigada, Caitlín, pobre bichinha, exprimiu uma leve porção dela. Eu nunca podia ter feito nascer emoção tão viva nos meus companhei­ros e transformado essa emoção em vontade de agir, como você fez numa só hora fogosa. Agora à minha frente está uma dissolução que eu não posso recear, eu que sei na minha célula mais íntima que o Ultimato que é aquilo que é. Ou que à minha frente [existência emocionante] estão os outros.

Turno de noite.

A luz na cabina era suave, com um tom dourado. O reprodutor de dados formava uma ilusão de rosas. Caitlín tinha regulado o termóstato para calor tépido e lançava à sua volta extractos de amêndoa e cravo-da-índia da sua cozinha, para perfumar o ar. O áudio tocava Sheepl May Safely Graze, a sua melodia preferida.

Caitlín tirou a roupa e ficou de pé diante de Brodersen, de mãos estendidas para ele.

Meu Deus! — exclamou Brodersen, do fundo do coração, desejando ter um pouco de eloquência. — Meu Deus! És tão bela, Pegeen que dás vertigens!

Caitlín sorriu.

Também tu és belo para mim, Dan, meu querido.

Não, espera...

O riso de Caitlín fê-lo vibrar.

Olha, talvez sejas feio ao lado do Apolo de Belveder, e eu também não sou nenhuma odalisca. Mas és magnífico porque és tu. Pareces-te contigo mesmo, com o homem por quem estou apaixonada. E o mesmo se passa comigo em relação a ti, não é verdade, meu bem?

Logo a seguir, Caitlín tomou um ar sério, mas vulnerável e atirou-seI a ele.

Oh, Dan, Dan! Andamos nós para aqui a singrar no desconhecido. Nem sequer podemos prever o que nos vai acontecer. Mas temos esta noite para nós os dois. Aperta-me nos teus braços, Dan, e gozemos do amor perfeito. Vivamos uma noite plena de amor.

 

Salto.

Luz. Por toda a parte, luz. Era como se o espaço se houvesse tor­nado numa gota de orvalho ao alvorecer, com eles no centro. Suaves reflexos, numa profusão de cores como criatura nenhuma havia sequer imaginado. Cores a serpentear, a misturarem-se, a separarem-se. Fluíam, alagavam os céus, aqui e ali num breve tropel de centelhas como estrelas em fontes, em cachos. A dançarem aos pares, e às três, ou sozinhas, descrevendo vastas curvas graciosas antes de se extingui­rem para se reacenderem mais além. As imagens tomavam de assalto a consciência e levavam o espectador a partilhar das suas prodigiosas harmonias.

A tripulação da Chinook não tinha maneira de dizer de que tama­nho era o globo de luminosidade que a envolvia. Por certo que seria vasto. A máquina T parecia mais pequena, dada a distância a que a nave tinha emergido. Também ao longe, e de dimensões quase as mes­mas, estavam duas outras coisas. A primeira dir-se-ia uma esfera aque­cida até ao branco, embora forças e torrentes fizessem que ela parecesse tremular. À volta moviam-se, levemente veladas, menores figuras, num voltear intrincado. A segunda era um elipsóide ligeiramente recurvo, que mais parecia imaterial, mas quase sólido e de enorme robustez em comparação com a nave que havia cortado o espaço galáctico idades atrás. Saía dele uma espécie de entrançado, não parecido com aqueles que os astrónomos atribuem às estrelas de neutrons e ao buraco negro, mas com a mesma elaborada delicadeza.

Aqui estão os Outros! — ressoou em Joelle. — Só os Outros po­diam construir uma coisa destas.

Joelle lançou as suas sondas, abriu os seus múltiplos sentidos, con­centrou-se na compreensão do Número. Não vou perceber tudo o que se está a passar aqui, mas alcançarei o conhecimento suficiente para po­der fazer as perguntas adequadas quando chegarem os Outros, pergun­tas essas que me mostrem digna de entrar em comunhão com eles.

A seguir ficou cega, ficou surda, ficou entorpecida, ficou imobili­zada. Os instrumentos nada mais podiam registrar a não ser aquilo para que haviam sido concebidos. De nada valia a teoria num meio que se desviava dos princípios, inteiramente alheio a eles. Mais fácil seria a um verme imaginar e explicar o voo das aves do que a Joelle fazer daquele local uma porção da sua Realidade.

Atordoada, Joelle mal se apercebeu do súbito aparecimento de um asteróide muito próximo da Chinook. Aquela massa escura, recortada,

tinha por companheira uma pequena forma prismática, de brilho dourado, que se dirigiu imediatamente para o globo incandescente. Seguia-a o asteróide. Ganhando rapidamente velocidade, não tardara os dois a perderem-se de vista.

O chamamento de Brodersen chegou a Joelle como se houvesse! atravessado a parede de uma fortaleza:

Joelle, como te sentes? Que nos podes dizer?

Nada — ouviu-se ela própria lastimar.

Não é de surpreender.

Após aquelas palavras secas, ressoava de novo o tom do comandante:

Ouçam, amigos. Seja o que for o que acabamos de encontrar, ei eu creio que é aquilo de que andávamos à procura, apenas nos restai aguardar que estes... estes construtores... entrem em contacto conosco. Suponho que eles o vão fazer, pois já devem ter dado pela nossal presença. Deixem os vossos postos. Vamo-nos reunir na sala. Melhor estarmos juntos.

Joelle avisou:

Vou continuar em holotese, eu.

Bom. Obrigado. Já esperava que ficasses.

Você estará connosco da mesma maneira gritou Caitlín.

Não, realmente não, estou certa disso. O orgulho e a confiança em si despertaram de novo em Joelle. Eu não devia ter ficado perturbada ao descobrir todo um reino, inteiramente novo, da Lei. Deixem-me an­tes preparar para o conhecer, para o receber em mim mesma. Deixem- -me esperar que os Outros me ensinem.

No mais fundo dos céus aurorais, destacou-se então um ponto de luz. Cresceu rapidamente até tomar a forma de seta nacarada, a dirigir-se directamente para a Chinook a partir da direção do elipsóide, que devia estar onde os criadores habitavam. Aí vêm, aí vêm! E sou eu quem vai conversar com eles. Eu que estou à altura disso. Eu, a única entre os Humanos, que ultrapassou o humano.

A tripulação flutuava, à espera. Os écrans espalhavam um brilho intenso e suave. Tonalidades de arco-íris perpassavam por eles, dando novas feições à sala onde estavam e àquela gente. Apertavam-se uns de encontro aos outros. Rueda e Susanne, Frieda entre Leino e Dozsa, Caitlín entre Brodersen e Weisenberg. Sentiam a respiração uns dos ou­tros, e o suor, e o cheiro dos corpos, e o calor tépido. Por vezes sabo­reavam um beijo.

A nave estranha, se nave era, aproximou-se. Não era maior do que a Williwaw. Formada de maneira fluida, sem configuração precisa na sua iridescência. Por meios invisíveis deteve-se ao lado da Chinook, a cem metros dela. E o silêncio pairou nos céus à volta de meia hora.

Não podes chamá-los, Joelle? perguntou o comandante, com voz rouca.

Não — foi a resposta. — Nem por laser nem por rádio. Nem detecto nada vindo deles.

Mas ia jurar que nos estão a observar — disse Brodersen. — Hão de estar a observar-nos de qualquer maneira que desconhece­mos, que não podemos sentir.

Caitlín estremeceu nos braços do seu homem.

E tu não podes? — murmurou ela.

Como?

Brodersen inclinou a cara para ver os olhos de Caitlín. A claridade fazia refulgir aquele cabelo de um vermelho-escuro. Os olhos verdes perdiam-se a contemplar o que se passava no exterior. Os seios arfavam-lhe contra o fato-macaco à medida que respirava.

E tu? Podes? — perguntou Brodersen.

Não sei — respondeu ela numa voz de sonâmbula. — Como posso eu saber? Mas sinto — e não há palavras que o possam exprimir —, sinto uma agitação que é fulgor... Surgem diante de mim recordações do passado, como toninhas a saltar do oceano... Será que nenhum de vocês sente isso?

O medo apoderou-se de Brodersen. Passou um olhar perscrutador a todo o corpo, nervos, cérebro... Havia sido ela a escolhida, ou seria mais sensível?... Súbito, lembrou-se da história de Elf Hill, contada a Caitlín pela mãe.

Oh, Pegeen! — E apertou-a com força contra si, e sentiu o braço de Weisenberg a apertá-la também.

Nada receiem por mim, queridos — disse Caitlín, sem em momento nenhum desviar os olhos do universo. — É delicioso. Como podem os Outros não serem bons?

Um minuto ou dois mais tarde — com muitas pulsações no peito de Brodersen, a estalar de ansiedade —, ela tremia, olhava confusa à sua volta e dizia em voz tênue:

Passou. Já me deixou.

Passou para mais alguém? — inquiriu Weisenberg. Recebeu respostas negativas por entre os dentes. — Suponho então que eles acabaram — opinou ele. — E agora?

A seta continuava ali parada.

Devem ter mandado uma mensagem pelas máquinas T — disse Joelle. — A nossa chegada deve ser um acontecimento fora do usual, mesmo para eles. Muito possivelmente um acontecimento sem prece­dentes. Hão de querer consultar registros, talvez ouvir um especialista. Mas suponho que não vamos esperar muito.

Não, não nos vão atormentar — disse Caitlín. Brodersen podia virtualmente compartilhar da maneira como ela se acalmava, momento a momento, regressando a ela própria, de um sonho vivido.

Mas que vão eles fazer? — perguntou Susanne, com a voz vacilante. O olhar que lançou a Rueda dava a entender que era por ele que receava. — Entramos num lugar reservado aos deuses...

É verdade, e os mitos dizem que os mortais que tal ousaram nunca mais tornaram a ser os mesmos — observou Caitlín. — No en­tanto, penso que ficaremos melhores do que éramos, e não pibres.

Voltando-se para Brodersen, num suspiro:

Enquanto eu puder continuar o meu amor por ti...

A meia hora passou, lenta. Surgiu então um segundo casco estreito, avançando rapidamente da direcção da máquina T para a Chinook.

Ficou no lado oposto da Chinook em relação ao primeiro. O res­plendor rodeava todos os três e o que se via para além deles.

Em todos os comprimentos de onda de que dispunha, Joelle irra­diou a sua saudação. Eis-me aqui, clamava ela nas línguas humanas suas conhecidas, e nas betarias, e no que havia aprendido do oracular. Eis-me aqui, aquela com quem vós podeis falar, aquela que tem espe­rado por vós como a noiva espera peto prometido.

Uma resposta brotou nela, e que era uma saudação:

Salve, Joelle Ky. Regozija-te. Tranqüiliza-te. [A percepção dela cresceu.] Ó pobre espírito carregado de aflições, que a paz seja final­mente contigo.

Quem sois vós? Que sois vós?

Não receies.

De vós?

Sim, tu nadas receias de mau, Joelle Ky, e nisso tens razão. Aqui, no termo da vossa expedição, encontrarás abrigo. Mas um pavor mais profundo reside em ti, de que não queiramos ou não possamos sa­tisfazer o teu mais veemente desejo. Uma promessa não resolverá isso, pois o que tu pensas pode vir a ser verdade. Podes conter o pavor e aguardar calmamente o que venha a acontecer?

Aquilo irrompeu através dela:

E quando ireis decidir?

Ao cabo de algum tempo, receamos nós. Não somos seres sobre­naturais, oniscientes e infalíveis. Viemos aqui para vos conhecer, para saber donde vindes e porquê, o que pretendeis fazer, como uma vitória vossa poderia modificar o curso do tempo, talvez para muitos mundos diferentes... Queremos saber todas estas coisas de maneira a podermos então fazer um juízo.

Se os braços de Joelle não estivessem presos em linkage, se ela não estivesse a flutuar no firmamento, tê-los-ia erguido numa prece.

Compreendo. Eis-me aqui, então. Tomai-me, examinai-me, fazei-me perguntas, servi-vos de mim da maneira que entenderdes.

O suave pensamento (e ela podia sentir a suavidade, como manso calor do sol dentro de si) disse:

Não és necessária. Isto porque não representas verdadeiramente a tua raça. Vês o cosmo de maneira diferente dos teus camaradas de bordo. Tão mal quanto te mortificaste. Nós teríamos olhado para eles o melhor que pudéssemos. Mas, por felicidade, também não necessita­mos deles, imperfeito como seria depois o nosso conhecimento. Tendes a bordo um avatar dos nossos?

Como? Não compreendo...

Temos de te deixar agora e de procurar a ela. Seria cruel man­ter os teus à espera por mais tempo do que o necessário para nós saber­mos. Deixa a coragem trazer-te a calma, Joelle Ky. Não prossigas na tua holotese. [Não uma ordem, mas um pedido:] Vai para junto dos teus companheiros e uma entre eles. Adeus!

A presença desvaneceu-se. Joelle permaneceu nas suas correias, sem se dar conta daquilo que o intercomunicador lhe trazia. Ainda ten­tou chorar, mas não conseguiu. Depois disso, com azedume, deixou-se ficar onde estava.

Pelo intercomunicador chegou uma voz sonante, uma voz femi­nina, em inglês, com um acento melodioso que fez vibrar o coração de Caitlín:

Possa o melhor que existe na vida estar sempre convosco. Gos­taríamos de entrar. Pedimos-vos licença. Se vós quiserdes, entraríamos pela abertura número três. Será um prazer encontrarmo-nos convosco.

Se nós quisermos!... — murmurou Brodersen. No entanto, o hábito de soldado levou-o a dirigir-se aos seus camaradas.

— Conservem-se nos vossos postos. Eu vou lá e trago-os.

Para mais, isto é lugar bem mesquinho para recebermos os senho­res do universo, foi a idéia que passou por ele, com a mesma naturali­dade como se tivesse a sensação de boca seca e de pulsação acelerada. A agitar as pernas e a nadar com as mãos, lançou-se por corredores e es­cadas para o quadro de controlo que pretendia. Chegado lá, teve de aguardar um minuto para os seus movimentos cessarem, antes de poder manobrar o mecanismo. .

A porta interior deslizou. Surgiram duas pessoas. Envolvia-as como que um orvalho de prata, que as devia proteger no espaço, supôs Brodersen com o espírito ainda agitado, pois se dissipou sem tardar.

Diante dele encontrava-se um homem e uma mulher.

Devo ajoelhar? Não, não se pode ajoelhar no vácuo!

Sejam bem-vindos! Estamos... ao vosso serviço.

Eram altos os dois, bem constituídos, esbeltos, formosos e de olhos azuis. Cabelo comprido, louro, caía em torno das faces, fortes e sere­nas, a respirarem juventude, e impregnadas de maturidade que vinha do fundo dos séculos. O homem, com barba, usava uma túnica que po­dia ser de linho, um quilto que podia ser de lã, sapatos que podiam ser de couro, uma larga capa. A mulher, com as tranças a caírem-lhe quase até aos pés mais ligeiramente calçados, usava um vestido solto e uma capa. As roupas eram bordadas e multicores. Os dois traziam jóias de ouro e prata e cristal: fios, colares, braceletes, broches, anéis de vários modelos. As facas que lhes pendiam do cinto colorido davam a impres­são de serem ferramentas, e não armas. O homem trazia uma vara com raiado de bronze. O remate da vara era um rebento donde cresciam fo­lhas. Pousadas aí e nos seus ombros, ou a esvoaçar em torno dele, viam-se aves a cantar, cotovias, tordos, pintarroxos, piscos. A mulher segu­rava uma pequena harpa debaixo do braço.

Ambos sorriram.

Não, somos nós que vos devemos desejar as boas-vindas, bravo peregrino dos céus — disse o homem. O seu tom de barítono ressoava. — Quer levar-nos até junto dos seus companheiros?

Claro, senhor, claro!

Brodersen avançou, demasiado perturbado para pensar. O par não precisava de corrimões, nem de apoios para as mãos, nem de prote­ções para andar. Seguiram os dois a direito.

Pelas escadas, até ao átrio, em direção à porta da sala comum...

Brodersen afastou-se para deixar os visitantes entrar primeiro. As­sim, não viu Caitlín quando esta lançou um grito. O-o-o-oh!... Nada em todo o dia a havia levado a gritar daquela maneira. Alarmado, Bro­dersen deslizou pela ombreira. Caitlín flutuava segura por Weisenberg, braços erguidos, lábios entreabertos, as lágrimas a correrem-lhe pela cara, a dançar e a cintilar. Brodersen esqueceu as precauções e a discri­ção, lançou-se contra ela com tal ímpeto que quase repeliu o mecânico.

Pegeen, que tens tu?

Nada — disse ela em voz estrangulada. — Eles... Aengus mac Óg, deus do amor. Brigit, sua irmã, deusa dos bardos... Não pode ser. Estarei eu a sonhar?

O homem sacudiu a cabeça.

Não — disse ele pausadamente. — Aqueles a quem vós cha­mais os Outros não são deuses. Para vós, no entanto, para vosso alívio e como homenagem, esforçamo-nos por ser uma sombra deles.

A mulher dirigiu-se para Caitlín. Os dois homens ao lado dela dei­xaram-na ir, para que ela pudesse receber sem impedimento aquele toque.

Querida és tu — murmurou aquela que era Brigit — e de há muito desejávamos conhecer-te em plenitude e manifestar-te o nosso reconhecimento pelo que nos tens dado.

Como? Eu... — balbuciou Caitlín. — Eu, errante, louca, faze­dora de pobres versos sem tom nem som? Que vos poderei eu ter oferecido?

O modo de vida que levaste.

Brigit soltou a harpa e estreitou Caitlín contra si.

Com um apoio por centro, Brodersen voltou-se para ver bem Aen­gus. Por entre o cantar dos seus pássaros, o filho de Dadga disse:

— Não receiem por ela. Não é nossa intenção causar-lhe sofri­mento, nem por vontade nossa mais emoções do que as necessárias. Toda a vida é para nos amarmos. Oh, também nós matamos! Também nós deixamos morrer. Porque não somos deuses, e muito menos ainda somos Deus. Somos também com frequência marcados por uma sina. No entanto, tanto quanto nos é possível, estimulamos a vida. E prote­gemos e respeitamos a liberdade tanto quanto podemos, pois é a mais elevada expressão de vida que nós conhecemos. Não devemos então honrar os direitos dos nossos avatares?

Avatar... Encarnação... — E de súbito Weisenberg parecia en­velhecido. — Quer isto dizer que ela é uma coisa que vós fizestes?

Não — respondeu Aengus, enquanto Brigit estreitava Caitlín contra si. — Como podia obra nossa viver em plenitude uma vida que não é a nossa? Caitlín é tão humana como vós. As diferenças nela são menores do que as que existem na estrutura das células, na substância do sangue— entre dois quaisquer de vós. Se nunca tivesse sido Escolhida, haveria acabado os seus dias sem saber o poder que existia nela.

E que poder é esse? — indagou Leino.

Brigit levantou os olhos pousados em Caitlín.

O de se tornar una conosco — respondeu ela.

Aengus: — Se fôssemos na verdade deuses, podíamos ler direta­mente nas vossas almas. Mas somos apenas os Outros e pelos nossos próprios meios apenas podemos atingir a parte exterior, a mais tênue, das mentes. Não podemos sentir de maneira nenhuma o que se passa no íntimo de cada um.

Brodersen, com veemência: — Bem, então quem diabo sois vós? Puros intelectos, perdidos no espaço e no tempo? Ou o quê?

Brigit, sorrindo ao de leve, falando mais a Caitlín do que a ele: — Na realidade, não. Que coisa mais, senão um corpo, pode produzir e comportar uma mente? E, mesmo que fosse possível, não seria digno de dó um espírito que existisse só por si, isolado, privado de sentidos e de tendões, sem poder partilhar da imensa alegria que há no cosmo? Nós, os vossos Outros, somos tão corpóreos como vós. Em nós a matéria nasceu das estrelas, como a vossa. As velhas necessidades animais existem em nós também. Somos da mesma família.

Brodersen: — Vejamos: como sois vós realmente por baixo dessas máscaras?

Aengus: — E serão máscaras?

Brigit: — Antes umas ligeiras transformações, não muito acentua­das, e apenas em intenção ao nosso avatar. Fosse Caitlín um ser humano diferente, como na maioria dos casos, e teríamos achado prefe­rível aparecer com a pele preta ou de olhos tortos ou de fronte escaveirada ou qualquer outra coisa do género. Mas por baixo... Não viemos da Terra, directamente, em resposta a um chamamento, Daniel, meramente porque aconteceu estarmos ali.

Aengus: — Não devemos continuar com isto. Não, antes de saber­mos de Caitlín toda a vossa história, para além de qualquer narração que meras palavras ou meros pensamentos possam dar.

Aengus tinha tomado um ar profundamente grave. O seu olhai mortificava Brodersen.

Deve compreender, comandante, que nós ainda não vos com­preendemos. Acreditamos que sejam gente de boa fé. No entanto, re­gressando, podem levar a ruína, talvez em parte por causa do conheci­mento do que não deve ser divulgado entre o vosso povo num dia de pe­rigo. Se não vos pudermos indicar o caminho de regresso, podereis levar uma existência perfeita num lugar agradável que vos iremos pre­parar. Mas penso que é preferível que volteis para vossas casas.

Brodersen e a maior parte da tripulação: — Sim, claro que é.

Aengus: — Preferimos não falar mais a este respeito antes de ter­mos a certeza do que podemos dizer. Caitlín é para nós o cálice dessa descoberta.

Brigit: — Se ela desejar.

E, voltando-se para a moça, a quem ainda continuava a abraçar:

Querida, não vais sofrer nenhum mal, nenhuma dor, a não ser o que escolheres por ti própria depois disto. Lembrar tem o seu preço. Mas, se quiseres, ficarás liberta de todas as recordações.

Brigit beijou-a na testa e continuou:

Previno-te: creio que não o desejas. Pensa bem, minha filha. Pensa com tempo. Em caso nenhum te forçaremos ou te apressaremos. Não estamos completamente seguros de qual a unidade conosco que te convirá mais. Pensa. Faz-nos as tuas perguntas. Indaga junto dos teus camaradas. Damos-te para isso todo o tempo que quiseres, e não receies dizer não.

Caitlín levantou os olhos para aquela face que era a de uma deusa e respondeu, banhada em lágrimas:

Se eu não for, não podemos voltar para casa, não é assim?

Caitlín riu. A alegria parecia perfeita.

Por outro lado — prosseguiu ela —, está aqui o verdadeiro deus do Amor.

O Outro transformou num sorriso o seu olhar de preocupação e respondeu em voz baixa:

Todos nós te amamos.

Já falamos demasiado. — disse Brigit. — Vamos agora a uma canção.

Pegou na harpa suspensa no ar ao lado dela.

Depois disso ninguém pode dizer ao certo o que se tinha passado, salvo que, no fim, seguiram Aengus, Brigit e Caitlín para a saída e ao som de música lhes disseram adeus. Entretanto a moça estava toda ex­tasiada. Beijou os seus homens a despedir-se, como os teria beijado num sonho.

Ambas as naves refulgentes se afastaram da Chinook.

Eu era avatar, com um destino mais estranho do que havia sido previsto pelos que me deram a vida. Tivesse eu ficado onde nasci e, provavelmente em qualquer altura, no decorrer da minha vida, aqueles que velavam pelo homem ter-me-iam chamado. Teriam então partilha­do muita alegria, umas tantas preocupações, muitas aspirações ardentes e surpresas, anseios, apelos, feitos, triunfos, desastres, receios, maravi­lhas, desejos, obrigações, desprendimentos, talvez um lento e leve crescimento de experiência: os anos, enfim, de um ser humano comum. Mas o acaso e o desejo levaram-me para eles, nos confins mais remotos deste nosso universo.

Aquilo que aconteceu depois não posso agora sabê-lo. O meu corpo pouquíssimo se lembra disso e esse pouquíssimo é um espectro da verdade, embora para ele eu não disponha de palavras. As belezas e esplendores... Acaso podemos nós cantar uma pintura, esculpir uma melodia? E esta era a essência da realidade.

Compreendeis, os Outros e eu não estávamos meramente unidos: éramos um todo. A sua consciência, o seu intelecto, os seus sentidos, as suas recordações, a sua maneira de ver, os seus sentimentos, as suas al­mas, tudo isso era meu, da mesma maneira que deles era a minha alma. Eles eram eu, eu era eles, eu era Outro.

Com o que se parecia isto não tenho possibilidade de imaginar, muito menos de descrever. A idade em que nasci legou-me as ideias que estou a usar ao tentar — e não consigo — falar daquilo que conservei em mim, fora aquilo que aprendi. Não sei se essas idéias são mais ade­quadas para isto ou menos do que as de alguém de há trinta mil anos, que foi o primeiro avatar da minha raça, ou do que os instintos de um animal ou o germinar de uma planta.

Os primeiros Outros surgiam no mundo que se formou antes da coalescência da galáxia. Talvez uma escassez de materiais pesados os te­nha levado a aperfeiçoar muito lentamente as suas técnicas e uma alta ciência, de modo que evoluíram em harmonia com cada nova fase que se ia deparando, antes de prosseguirem mais além. Ou talvez se tenham adaptado eles próprios, tanto na psique como no soma, a uma marcha mais rápida. Em qualquer dos casos, por fim partiram para as estrelas, que, entretanto, haviam também nascido. E partiram em naves que se aproximavam da velocidade da luz. Encontrando meios estranhos e comparando técnicas com eles, isso deu-lhes tão poderoso ímpeto que alcançaram o poder de construir os grandes engenhos de transporte. Por essa altura já não eram uma simples raça isolada. E, à medida que los seus exploradores se aventuravam através do espaço-tempo, encontraram mais seres a quem podiam ajudar e que se podiam juntar a eles, se quisessem.

A maior parte das espécies não estavam preparadas para isso. Pou­cas mesmas estariam. Os Outros não insistem nem procuram secretamente guiar. Apenas em raros casos revelam que existem. Não acreditam que o destino próprio de quem quer que seja consista em tornar-se como eles: não acreditam no destino. Todas as espécies de vida são igualmente preciosas, com o mesmo direito a seguirem o seu próprio caminho. Além disso, em tal diversidade se encontra o alimento como qual pode crescer o seu próprio espírito.

Não significa isto chamá-los indiferentes. Não. Com conhecimento, inteligência e sensibilidade como os deles, partilhando de vidas distintas em muitos planetas no decorrer de toda a história do universo, desde o seu escaldante nascimento até à sua morte em cinzas, os Outros conhecem a tragédia até profundidades e alturas que felizmente não posso lembrar. Esta mente, só por si, não sobreviria. Onde eles podem, e quando consideram a ação sem perigo para a integridade de um povo, prestam o seu auxílio. Mas as mais das vezes resta-lhes apenas observar e deplorar.

No entanto, não são desmedidamente solenes. A sua jovialidade, o seu bom humor, a sua excelente disposição, a sua exultação, ultrapas­sam o que o meu espírito abrange. O mesmo se passa com o seu poder criador. Eles olham as suas próprias vidas como autênticas obras de arte a tomarem forma para delícia do artista e dos que o rodeiam.

Esta atitude pode ter resultado do facto de neles a mente, a cons­ciência, ser proteana. A fusão, parcial ou total, de personalidades con­forme lhes agradar, posso eu chamar telepatia, com a ressalva de que esta é uma palavra bastante inadequada. Aquilo que se passa nada tem de mágico. Requer uma onda transportadora, que obedece às leis da Fí­sica. Pode por vezes ocorrer em nós um rudimento de tal fenômeno. Os Outros levaram-no à perfeição.

Isso inclui a capacidade de traçar um modelo correspondente a uma personalidade num corpo diferente, seja esse corpo natural ou artifi­cial, orgânico ou mecânico ou... Bem, houve o Oráculo, por exemplo. O mapa é incompleto e distorcido, é claro. A mente não é um objecto isolável. Aquilo que lhe dá existência e a mantém em actividade deve di­rigi-la, ao mesmo tempo que é dirigido por ela.

Mais: um Outro pode viver existências separadas, para finalmente as levar a unirem-se no ser original. Um Outro pode, em certo sentido, ser imortal, transpondo um verdadeiro passado de um corpo a extin­guir-se para outro corpo que pode ter sido criado para esse efeito, ou para mais de um corpo. A fusão das mentes já terá feito parte desta integral de personalidades com muitas entidades diferentes. As recorda­ções, gravadas também, revividas numa ulterior consciência quando necessário, levam a uma espécie de ressurreição.

Assim, os Outros não são mónadas em qualquer grau. Nem tãopouco se encontram fundidos numa enorme supermente. Isto seria ab­surdo, mesmo se fosse possível. A individualidade, fluida na forma, é por essa mesma receptividade mais real do que pode ser entre nós. Desta raiz pode advir o seu apaixonado devotamento à liberdade.

Eles não são deuses. Na nossa simples galáxia, a qualquer momento, há mais do que eles podem saber ou prever. Por mais largamen­te que se estendam e por mais vastas que sejam as suas construções, distinguem muito melhor do que nós podemos discernir quão mais su­blime do que eles é o conjunto da realidade, e como é eternamente mis­terioso. Embora os símbolos em nada se pareçam com o crescer e o minguar de uma lua, mas antes com o nascimento e a morte de estrelas, também eles necessitam de criar mitos, também eles têm de mergulhar no mistério.

Na verdade, para eles a sua tecnologia, ciclópica ou subatômica, tornou-se acidental, um conjunto de meios para um conjunto de fins. A muitos puseram-nos de parte, como já desnecessários. Os resultados que eles procuram são mais subtis — demasiado subtis para a nossa compreensão. (Se cinzelarmos uma estátua, o nosso cão vê apenas que um bloco de pedra mudou um pouco de aspecto.) Mas eu tenho de tentar transmitir uma ideia, um fragmento de verdade.

Deixem-me dizer, portanto, que os Outros estão interessados em explorar, em compreender, em exaltar a existência.

Uma maneira de o fazerem, entre muitas, é por meio dos seus ava­tares.

Embora sejam cuidadosos e parcimoniosos neste capítulo, não con­sideram uma violação lançarem ao mundo um avatar. Um organismo destes não é, de modo nenhum, anormal. Quando muito, veio à exis­tência em vez de um bião semelhante que houvesse feito o mesmo. Con­tém certas estruturas profundamente no seu interior, incrivelmente fi­nas, na fronteira entre o molecular e o atómico. Estas não afetam o seu funcionamento e não se transmitem por hereditariedade. Tudo quanto fazem é tornar possível a Unidade.

Pode estar em causa ligeiramente mais do que isso. Por exemplo, no caso da maior parte dos vertebrados terrestres é mais simples fertili­zar um ovo por partenogénese enquanto se adiciona aquele micro-órgão para a célula se reproduzir. Se for necessário um macho, são indispen­sáveis também algumas pequenas modificações nos cromossomas. Qualquer que seja o processo para determinada espécie de organismo, ele é muito suave. Conserva, mais do que destrói.

Um avatar, portanto, vive durante o seu tempo como um membro perfeitamente igual aos da sua espécie. Pode nunca ser Chamado. Os Outros não rondam constantemente por cima de qualquer planeta: o cosmos é demasiado vasto. Quando um da sua espécie é conduzido à comunhão, isso é um acto de amor. Nenhum dano ocorre, nenhum rompimento. Salvo para aqueles que estão a morrer, para os quais o es­quecimento pode ser uma graça, o avatar é levado ao lugar donde veio, para continuar como era. Houve simplesmente a divisão. Deste modo procuram os Outros participar em toda a vida, por toda a parte.

Na realidade, se o avatar é sensível, podem mesmo disso esvoaça sombras de memória no seu ser...

Não posso ficar? — pedi eu.

Não, minha querida — cantou aquela parte de mim que estava no coração de Brigit. — Isso seria uma condenação para ti.

De um outro ponto dentro de mim falou Aengus:

Nem tu desejarias ficar passiva, como um parasita. Muito gratoi estamos nós por aquilo que nos deste...

Mas, agora que vós vivestes a minha vida, não tenho mais nada para vos oferecer.

Se assim fosse!... Não, isso não é assim! O que é preciso é que sejas aquilo que és. Nós não chamamos nenhum avatar duas vezes.

Porque tens consciência e, portanto, dispões de livre arbítrio, podemos fazer-te presente de Lethe. Se aceitares, esquecerás tudo 0 que estava Aqui. Será para ti como uma noite sem sonhos.

Pensa bem, minha querida. Sabes que, se te lembrares, será sempre atormentada.

Mas atormentada por que maravilhoso fantasma! — respondi eu.

Fantasma com muitas faces, e algumas delas terríveis.

Longamente meditei na Unidade. Evoquei no espírito os vossos melhores momentos, de amor, de finura intelectual, de criação, de be­leza, de vitória, quando por breves instantes vos ultrapassava a vós mesmos. É mais do que isto ser-se Outro. E, no entanto, é isto a planí­cie no sopé daqueles picos.

Não — decidi eu. — Àquilo que possa conservar de vós não re­nunciarei por nada do mundo. Duro será saber que a minha alma já percorreu tanto da realidade que eu podia mesmo sentir um pouco do imenso que me resta ainda descobrir, para aí me desenvolver e para nisso me alegrar. Mas não vou perder inteiramente o conhecimento do que é o vosso amor.

Aproximamo-nos mais, no nosso adeus. Para isto eles usavam ainda das aparências com que se tinham apresentado da primeira vez, porque eu gostava delas. Não que houvesse qualquer coisa de muito es­tranho no verdadeiro aspecto deles, ou qualquer coisa mais de estranho no que se passou entre Aengus mac Óg e mim. Não distam muitos sé­culos da época em que em que os Humanos hão de começar, um a um, a tornarem-se Outros. Nem por isso deixarão de ser humanos.

 

Menos de uma hora se tinha passado quando ouviram a voz de Bri­git pelo intercomunicador da Chinoook.

Caitlín vai de novo para junto de vós. Vai entrar pela mesma porta.

Sozinho no seu gabinete, Brodersen mordia a ponta do cachimbo bem seguro nos maxilares. O resto do cachimbo, esse, perdia-se numa nuvem de fumo azul. Brodersen parara de fumar e o fogo extinguia-se agora lentamente. O comandante apalpou as correias do seu assento, desapertou aquelas malditas fivelas, ergueu-se da cadeira. Por trás dele estava esquecida uma garrafa de uísque.

A mensagem que Caitlín leva há-de vos alegrar continuou a voz. Por Caitlín soubemos que o vosso objectivo é nobre. Não é ab­solutamente justo. Nunca acrediteis nisso, de nenhum objectivo que te­nhais em vista. Mas o vosso êxito seria preferível ao vosso fracasso. Embora não vos ajudemos nos vossos esforços, indicar-vos-emos o caminho. E, embora não digamos que havereis de conseguir o que preten­deis, desejamo-vos muito sinceramente que o consigais.

- Mas preparai-vos para partir em breve. As forças que fizeram este lugar e que o mantêm, aqui no extremo e no princípio do universo, es­tão equilibradas como sobre a ponta de uma lança a rodar sobre si mesma. Por muito tênue que seja a massa da vossa nave, ela exerce uma pressão suficiente para trazer o desequilíbrio. Por isso, enquanto vós aqui estiverdes o trabalho ficará parado. Nem tendes mais nada a fazer entre nós. Conseguistes chegar aqui tão longe, e por isso mereceis voltar para casa... Ou mereceis o direito de partir e lutar pelo vosso re­gresso. Mais não vos podemos prometer. No início do vosso próximo turno chamar-vos-emos para partirdes.

- Entretanto, acolhei Caitlín com carinho. Sede bons para com ela.

Deus meu! bradou Brodersen, a flutuar. Como podia eu não ser bom para Caitlín?

Alguns dos tripulantes tinham-se dirigido para a entrada antes dele. Brodersen abriu caminho e quis ser o primeiro a acolher Caitlín. En­trou uma névoa de prata, elevou-se, e aí estava a sua amada. Brodersen estreitou Caitlín nos braços e flutuaram os dois, comicamente a roda­rem um sobre o outro. O odor e o doce calor e a flexibilidade dela subjugaram-no. Deus meu! — pensou ele. Estou positivamente a chorar!

Sentes-te bem? Pegeen, meu amor, macushla, que aconteceu? Tão depressa...

Foi longo, penso eu disse ela, como se falasse num sonho. O seu sorriso era do Nirvana. Eles fizeram-me andar para trás no tempo. Olha!

De um bolso no fato-macaco tirou a caderneta que os cosmonautas geralmente traziam.

Estão aqui escritos os trajetos que vamos seguir, com todo o caminho que fizemos, até chegarmos a Danu, donde iremos para o Sis­tema Betano. Vamos chegar dentro de um mês, a contar do dia em que a Emissário de lá saiu.

Mas tu, Pegeen, tu?

Oh, eu estou bem. Dás-me um momento para... descer...

Abruptamente agarrou-se a ele. Brodersen sentiu-a tremer.

Dan, segura-me, por favor. Eu não devia chorar depois do que se passou comigo, não devia!

Do abismo onde mergulhara, Joelle irradiou:

Não quereis pelo menos dizer adeus?

Sim, e mais — foi a resposta. — Soubemos pelo avatar quão intensa é a tua necessidade.

Então levai-me até vós!

Não Rode ser. Olha, Joelle, como é possível a uma árvore voar ou a uma ave aprisionar a luz do Sol? Tu és o que és, e és aquilo em que te podes tornar, se quiseres. Contenta-te com isso.

Em alguns tristes anos que me restam, reconhecendo que nunca saberei o que vós sabeis, compreendo que o meu Número não passa de uma sombra?

Se quiseres, podemos fazer que te esqueças.

Não!

E que mais?

Se não sou merecedora da vossa companhia [Não há qualquer mérito especial nisso], então abri-me a Realidade. Quer ela me venha a matar, quer ela me venha a enlouquecer, mostrai-me o Ultimato.

Não temos Ultimato.

Mas então que tendes vós?

Quaisquer que sejam os fragmentos que possuamos, eles não te farão mal em si mesmos. Poderia uma conferência sobre a relatividade fazer mal a um macaco? O avatar podia dizer-te... Mas tu tens mais talento e mais bases. Portanto, escuta, se desejares.

Matemática e fragmentos do que podia ser percepção direta ou podia não ser, e o nosso contínuo espaço-tempo não é a Criação total. É uma gota de água num oceano hiperdimensional que produz outras mais da sua espécie, indefinidamente, quase como os antigos oceanos na Terra, em Deméter ou em Beta renovam a vida sempre e sempre, porque isso está na sua natureza. Os universos morrem, como as estrelas e as flores. Mas a sua matéria segue também o seu caminho, transformada em qualquer coisa que nunca existiu antes.

Aqui e agora, o nosso cosmos a consumir-se, a expandir-se, a fugir de si mesmo, intersectou outro. Desta união, quando estiver com­pleta, resultará um mundo de mundos inteiramente novo. (Bendita seja a sorte de o outro pleno ser velho também, de que vida nenhuma — imploramos nós— venha a perecer na gênese!) Como será o próxi­mo ciclo? Não podemos prever.

Já as próprias leis e constantes da Física estão a mudar. Nem vós nem nós podemos existir por um momento fora desta fortaleza de for­ças. Aquilo que vai acontecer será inteiramente estranho. Contudo, procuraremos tornar-nos numa parte do futuro, para o compreender e amar. Estamos a construir uma máquina...

- ...que é apenas um meio para atingir um fim, Joelle. Um fim que nunca terá fim.

Após um silêncio:

Gostavas ainda de dar uma vista de olhos?

Gostava!

Percebe...

Ela gritou. Não foi de dor nem de medo: foi de desespero.

Adeus! E que tudo se passe bem!

Caitlín agitou-se:

Tenho de ir para junto dela.

Como? Que queres tu dizer? — perguntou Brodersen.

É uma obrigação minha ajudar Joelle — disse-lhe Caitlín. — Eles sabiam o que ela iria sofrer. Não a podem consolar. Talvez não haja remédio nenhum. Mas eu tenho de experimentar, Dan.

E eu?... Não te quero importunar, não preciso de ser consolado precisamente neste momento, mas... Tu mudaste, Pegeen!

Sim, mudei. — Apertou-o com força contra si. — Afastada de ti. Vou abrir o meu caminho de retorno, vou. Agora, porém... és mais forte do que ela.

Chegou a hora de partirem - disseram as vozes dos Outros. — Que a nossa bênção vos acompanhe.

 

Vasto, com tons de ouro-vermelho num céu azul-arroxeado, o sol de Beta erguia-se ao fim da manhã. Havia justamente acabado uma das chuvadas que costumavam cair no decorrer daquela parte do longo dia. Viam-se nuvens dispersas aqui e ali, levemente avermelhadas, e no hori­zonte, para ocidente, desenhava-se um arco-íris. O solo cintilava, hú­mido, como se a relva, os arbustos, a copa das árvores, com os seus ma­tizes, tivessem sido semeados de diamantes. Soprava um vento fresco, que trazia odores de especiarias. Para oriente cintilavam um estuário e levantavam-se as silhuetas de edifícios, mas no primeiro plano pouco havia a mostrar que se encontrava ali a capital de um civilização na rota das estrelas. Uma torre antiga levantava para o céu a sua massa de pe­dra cinzenta, coberta de trepadeiras.

Era a estação em que as plantas cresciam, entre a noite gelada e a tarde escaldante. Por toda a parte estava a despontar a vida vegetal, e a criar seiva, a um ritmo que quase se podia ver. Asas cortavam o céu, e ressoavam gorjeios pelos bosques e pelos prados.

Joelle e Caitlín aproximaram-se da torre, a pé. Uma gravidade me­nor do que a da Terra dava-lhes elasticidade aos passos. No entanto," caminhavam as duas sem sorrir, a mulher mais jovem com ar grave, a mais velha com ar sombrio.

E porque não pode você esquecer a sua mágoa? perguntou Caitlín. Compreendo que tenha sofrido um choque ao ver aquilo que sabe não passa afinal de uma gota de orvalho que, de um momento para o outro, irá cair no oceano e perder-se. Porém, será isso no fundo uma verdadeira surpresa? E será menos pungente amanhã quando voei fizer uma descoberta?

Joelle meneou a cabeça.

Pior disse ela na sua tristeza. Cheguei à conclusão de que não sou apenas ignorante: sou estúpida. Não, nem mesmo isso. Implicaria ainda qualquer coisa em comum com os Outros. Não obstante os nossos artifícios holotéticos, continuamos a ser animais inferiores. Somos como macacos a procurar escrever Shakespeare por tentativas ao acaso na tábua de um escriba e incapazes de nos concentrar cinco minutos de uma assentada. Ou somos como toupeiras a procurar ver donde vem a luz.

Por um segundo, Caitlín cerrou os punhos e ficou com os olhos presos no vento. Quando conseguiu dominar a sua expressão, res­pondeu:

Eles não nos vêem com desprezo. Quantas vezes é preciso que eu lhe diga isto? Para eles, todas as formas de vida são nobres. Cumpre-nos a nós ser o que somos, e sentir orgulho nisso.

Bastante fácil de dizer...

Caitlín reprimiu uma resposta.

Você é exteriorizada. Sobressai em si o físico, o sanguíneo, tudo o que não encontro em mim prosseguiu Joelle. E aquilo que eu pensava ser surge-me agora como pura ilusão. Portanto, o que sou é nada.

Caitlín corou, franziu a testa, e cortou-lhe a palavra:

Não devia você ter saído já há muito desse atoleiro em que se anda a atormentar?

Oh, não tenha receio! Pode estar certa de que eu cumprirei os meus deveres com competência.

Enternecida, Caitlín tocou a cara de Joelle, ao mesmo tempo que dizia:

Aprenda a ser humana de novo. O cérebro é uma simples faceta da existência, mas nem a mais importante nem a mais brilhante. Eu ajudo-a em tudo o que possa. E todos os seus colegas de bordo farão o mesmo.

Surgiu o despeito, com sabor ácido:

E, para começar, vai-me recomendar bastante sexo. A sua pana­ceia preferida, não é verdade? Não há dúvida de que você pode persua­dir os seus machos a fazerem um jeitinho à velhota com regularidade. Mas não quero, muito obrigada! Não aceito.

Fiz eu porventura uma sugestão dessas? perguntou Caitlín, calmamente. Nem pensar nisso! Seria tão indecente para mim como para si. Ou mais indecente talvez. Suponho que você já não queira mais nenhum homem como homem. O que não é vergonha. Trata-se apenas do seu gosto, da sua escolha. Mas é doloroso, isso sim, vê-la enregelada na sua solidão. Deixe que a ajudemos a libertar-se. Podemos lá chegar, se você for compreensiva para connosco, se se interessar pelos outros.

Ainda sou holoteta. Os restantes de vocês continuam a ser ani­mais para mim. Bem-intencionados, mas animais. E nunca me interes­sei muito por bichos. Quanto aos meus colegas na Terra, como posso gostar deles se já não os respeito? Se nem me respeito a mim mesma? Um sentimentalismo viscoso não vai modificar nada disto... Eis as nossas posições.

Um carro voador estava arrumado no exterior do edifício cuja porta havia sido aberta. As mulheres entraram na fria obscuridade e os seus passos ressoaram enquanto tomavam uma rampa em espiral para o segundo piso. Era aí que se encontravam aquelas unidades de linkage que os betanos e os cientistas da Emissário haviam concebido para uso em conjunto. As recordações de Fidélio invadiram Joelle. Nós teríamos partilhado a mesma perda, ter-nos-íamos consolado um ao outro na nossa dor. Mas ele morreu.

Três betanos aguardavam: uma silhueta feminina entre os vultos mais pequenos de dois machos. Os raios de sol dardejavam através de uma janela e faziam reluzir as suas peles cor de mogno. O cheiro deles, um cheiro forte a iodo, metia-se pelas narinas dentro como maresia. Com as garras superiores e as mãos inferiores, fizeram gestos de sauda­ção. As humanas responderam a esses gestos o melhor que puderam.

Joelle tomou o seu lugar. Caitlín ajudou-a a ligar-se, e depois ficou ali. Começou a holotese. Joelle afastou qualquer ideia de examinar o Número, essa triste ficção. Queria apenas dominar em pleno a língua local. No entanto, viu que o estado de holotese a possuía, sentiu o po­der desse estado através do seu «eu». Sim, era à holotese que ela per­tencia.

Através da ligação vocalizadora, começou a falar a língua betana, com sotaque acentuado, por vezes um tanto aflautado:

Bom tempo seja o seu, matriarca, e dos seus fiéis machos.

Possa a maré elevá-la, fêmea de intelecto responderam os be­tanos, como num ritual.

Lamentamos chegar atrasados explicou Joelle. A chuva demorou-nos no acampamento. Os nossos companheiros estavam a utilizar os veículos que nos foram emprestados, em várias voltas para nos fixarmos, e eu receava a possibilidade de uma tempestade perigosa­mente forte.

Nós não morríamos de sede — disse a fêmea.

Passamos o tempo a acalmar as procelosas vagas interiores para aquilo que vamos ouvir — acrescentou o maior dos maridos.

É muito amável em vir ter conosco, com tanto trabalho que deve ter — disse o companheiro.

É o menos que posso trazer à esposa e aos irmãos de família da­quele que foi meu amigo — disse-lhes Joelle.

Subitamente, sem saber como, compreendeu que estava a dizer aquilo. Havia aceitado a entrevista como um gesto calculado. A tripu­lação da Chinook tinha necessidade de muita boa vontade se quiseste persuadir todo um mundo a tornar-se seu aliado. Mas agora que estava ali, com aqueles a quem Fidélio tinha amado... Os seus olhos doíam-lhe e picavam-lhe e toldaram-se. Esfregou os nós dos dedos contra eles, ir­ritada, e prosseguiu, contente por a sua voz artificial se poder manto ao mesmo nível:

Ao lado de mim está uma fêmea do nosso bando, chamada Caitlín. Ele morreu-lhe nos braços. Antes disso, gostava da sua compa­nhia, logo a seguir à minha, porque apreciava a música que ela toca, e em troca cantava-lhe as suas cantigas. Vou servir de intérprete entre vós e ela. Juntas vamos procurar contar para vós a história de como ele por lá andou. Perguntem tudo quanto quiserem.

Caitlín avançou até junto da viúva, que se curvou. Ofereceu-lhe uma caixa que trazia.

- Aceito isto, minha senhora — disse Caitlín em voz baixa. — Enquanto estava ainda na nossa nave, reproduzi tudo quanto ali ha­via sobre ele e ampliei as melhores fotografias para si.

Enquanto Joelle ia traduzindo, os betanos viram o que aquilo era. Durante algum tempo quedaram-se a examinar a semelhança, em silên­cio. Depois a fêmea passou as garras muito docemente pela cabeça de Caitlín, afagou-a com grandes mãos vacilantes e deixou escapar um ruído surdo, sibilado. Sons do mar...

Que a si nunca lhe falte límpida água salgada. Possa cada rajada de vento novo reavivar a sua felicidade. Isto em nome e na presença de Deus.

Sim, era uma pequena coisa, mas muito penosa, que tínhamos a fazer. Sentimo-nos tão pesarosos!

Talvez a senhora não perceba a consolação que nos traz parti­lhando conosco as recordações que tem dele. Ressuscita assim esses dias que para nós permanecem submersos.

O encontro foi longo, de horas, porque os betanos desejavam co­nhecer tudo, todos os momentos que as humanas pudessem recordar. As perguntas sucediam-se como gotículas de espuma levantadas pelo vendaval à beira-mar. Um aparelho de projetar acompanhava a cena, mas Joelle suspeitava de que eles não tinham verdadeiramente necessi­dade daquilo. O que estavam a fazer era a evocar Fidélio dentro deles próprios. Caitlín tirou o sonador do ombro e tocou-lhes as canções e as melodias que havia cantado para ele. Ao fim, pôs de lado o sonador e entoou também a canção de embalar preferida de Fidélio.

Quando acabou, pairou o silêncio por um momento na torre. A se­guir a viúva agitou-se, levantou um braço superior como para uma bên­ção, e disse:

Que a graça seja sempre consigo, que é misericordiosa. Vou pleitear a vossa causa perante o Soberano Conselho, e estou conven­cida de que ele decidirá ajudar-vos.

Como? — exclamou Joelle, surpreendida. — Vai pleitear?

Não colheu porventura a totalidade da verdade a meu respeito? É bom presságio que tenham vindo as duas aqui, apenas por gentileza. Saibam: para honrar o outrora existente que viajou convosco, a Liga dos Viajantes do Espaço nomeou-me há pouco sua delegada. Uma vez que os seus membros acatarão provavelmente a minha direção, tudo o que eu disser no Conselho deve ter grande peso.

Boa sorte! Eu não lhe quero causar uma desilusão quanto aos meus motivos... Ou antes, aos motivos que eu sirvo, pois não esperava que mais nada tivesse já importância para mim. Além disso, a implicação aqui é alarmante. Se Caitlín compreendeu... Joelle lançou um olhar à mulher mais jovem e viu-a de olhos presos para lá da janela, com ex­pressão tão distante das emoções do dia-a-dia como uma máscara de morte. Em suma, a comiseração tinha trazido Caitlín daquelas regiões por onde a sua alma havia vagueado desde que deixara os Outros. Mas agora tinha regressado lá.

Joelle voltou a cabeça para os betanos.

Há assim tanta dúvida em que o vosso povo nos possa ajudar? — perguntou ela.

Tem havido — respondeu a fêmea, francamente. — O que acaba de nos contar é terrível. Nós esperávamos saber de vocês como nos podemos tornar aquilo em que nos devemos tornar. Hoje muitos perguntam se, sem vez disso, nós — os nossos descendentes, toda a nossa raça — não podemos aprender a perfídia, a opressão, a violên­cia, tais como você no-las descreve sem parecer dar a sensação de que são coisas muito fora do usual. Alguns de entre nós pôr-vos-iam de quarentena.

E a vossa espécie é perfeita? — retorquiu Joelle, mais no inte­resse de saber do que com qualquer intuito de desculpa.

Claro que não. Você sabe que moléstia reina em nós e que se­cura ela nos trouxe. O enigma é este: irão as águas que vocês oferecem ser para nós uma cura ou um veneno?

Temos mais para oferecer do que apenas nós próprios.

Sim, o mapa com os trajectos que haveis seguido até chegardes aqui. Esses apóiam a vossa causa. No entanto...

A viúva estendeu ambas as mãos, num gesto como um abraço, e disse:

Bem, hoje vocês mostraram-nos a nós os três como há muita de­cência na vossa espécie. Não devemos nós, os deste mundo, ajudar a florescê-la o melhor que pudermos? É por isso que vou falar ao Conselho.

Joelle estava espantada pelo reconforto que lhe ia agora na alma.

Alguns minutos depois, a família despediu-se com amabilidade e partiu. Teria levado também os terrestres, mas estes preferiram ir a pé.

Quando deixou a holotese, Joelle não sentiu nenhum sinal da de­pressão que habitualmente se lhe seguia. Não podia pensar só com uma fracção de si, mas também não tinha necessidade disso. A razão ampli­ficada tinha estado a conter aquilo que começava a correr dentro dela.

...O sol tinha avançado muito pouco. Os cúmulos-nimbos carrega­dos de trovoada eram de um escuro-esverdeado e os relâmpagos reful­giam para ocidente enquanto outras nuvens boiavam céu fora, arrasta­das por vento a uivar, veloz, com nova tempestade ainda a avançar. Não chegaria, no entanto, antes de as duas mulheres atingirem o acam­pamento, e nesse meio tempo podiam saborear um pouco de frescura. A paisagem ondulava em vagas diante da tormenta.

Caitlín pegou no braço de Joelle. De novo as feições da moça, to­das as suas maneiras, traziam vincadas uma preocupação mortal, ape­nas com um indício de que a maior parte dela estava noutro lado.

Vá, chore! — disse Caitlín.

Como?

Eu tenho-a visto fazer um esforço para não chorar uma vez e outra. A sua máquina restituiu-lhe o vigor. Mas porque não ceder? Você sabe que também eu verti algumas lágrimas.

Você é diferente.

Até que ponto, no fundo?

Nem sei, pensou Joelle.

Não a vejo a lamentar-se por causa das suas próprias dores — prosseguiu Caitlín. — No entanto, é um bom sinal para mim hoje, a mostrar que você ainda pode amar.

Bem, eu...

Joelle deteve-se. Depois observou:

Aqueles eram parentes de Fidélio. Não humanos.

E que tem isso? São seres com consciência. Anseiam pela sua amizade. Dê-lhes amizade, receba-a em troca e volte de novo para a vida.

Não, com mil demónios, não quero choramingar. Eu...

As nossas raças irão ficar em contato cada vez mais estreito — disse Caitlín pensativamente. — A Terra vai necessitar de uma espécie de embaixador neste planeta, que melhor possa ser o chefe de uma missão científica permanente. Não há dúvida, ninguém tem qualificações que se igualem às suas.

Se os Betanos nos aceitarem.

Aceitam, sim. Pode ter a certeza disso — assegurou Caitlín. (Em que conhecimento sem palavras se apoiava ela para afirmar aqui­lo?) — Não apenas porque sentem a necessidade de nos estudarem nas nossas vidas. Na realidade, embora isso só por si já fosse importante, não seria ainda o remédio simples e único por que eles esperam no seu entusiasmo. Remédios desses não existem, não é verdade?

- Mas entre nós e as novas raças podemos conduzi-los a... vejamos, a mundos que estão abertos! Os Outros não nos teriam mostrado como regressar através de cada passagem que tomamos na nossa viagem se não sentissem que somos bastante merecedores de confiança — toda a humanidade e Beta. Devemos deixá-los no seu posto avançado, sim, mas por outro lado...

A voz de Caitlín arrastava-se. A moça abrandou o passo largo. Por um momento ficou rígida, olhos suspensos no céu, boca franzida, de­dos enclavinhados, como para conter o vento. Joelle quase podia ler na sua mente: Devemos deixá-los tranquilos. Nunca mais os podemos co­nhecer.

Com um gesto seco, como se para dominar a dor, Caitlín recome­çou a andar e a falar. O seu tom mostrava mesmo algum entusiasmo:

Os dançarinos de Danu. Os Mestres de Pandora. O Oráculo do pulsar, e aqueles do exterior que chegaram ali. Os tripulantes daquela nave que vimos a passar no centro da galáxia. E mais, e mais! Joelle, eu podia invejá-la, a si. Tais aventuras da sua mente e do seu espírito po­dem ser suas... serão suas. Juro-lhe: os Outros também vivem os me­lhores momentos quando estão a investigar. Que mais pode você ambi­cionar? E... aqueles dois a quem encontramos — filhos do gênero humano... De maneira mais profunda que pelo sangue, eles descen­dem de si.

Talvez seja assim. Talvez ela tenha razão. Aqui, em Beta, constân­cia, afeição, paz interior.

E de Fidélio — concluiu Caitlín.

Então Joelle chorou.

 

Os olhos nada viam de modificado. O Sol brilhava, radioso, por entre a escuridão onde as estrelas sem conta nunca tremulavam a lançar o seu fulgor. A Via Láctea estendia-se como esteira de prata. As nebu­losas e as galáxias irmãs bruxuleavam a distância. E o gigantesco cilin­dro da máquina T continuava a girar rodeado das suas balizas, no mes­mo circuito da Terra, mas para sempre escondida dela. Qualquer sensa­ção de que houvesse ocorrido um fato extraordinário apenas podia ser mera loucura criada pela incerteza e pela fadiga emocional. Algumas horas antes, uma nave tripulada por criminosos em fuga havia tentado escapar-se, enfiara por uma passagem ao acaso e perdera-se para além dela, até à consumação dos tempos. Era tudo. Nada de importância havia acontecido. Nada.

Salvo as vidas à deriva, espaço fora. Salvo murmúrios entre a tripu­lação... Qualquer coisa está a ser mantida em segredo e não nos é revelada. Mas o quê? E porquê? Salvo uma consciência demasiado pertur­bada para me deixar dormir.

A flutuar, sozinho, no centro de controlo, em silêncio, Aram Janigian, a comandar a nave de observação Copernicus, pôs-se a observar através dos écrans o que se passava fá fora. Estará Lawes acordado à bordo da Alhazen? Perguntará ele a si mesmo se fizemos bem? Desco­briu que aquilo que nos disseram não é fácil de acreditar, e pensou consigo mesmo por não ter tido a coragem de arriscar a sua carreira dando conhecimento público do incidente, esforçando-se por que se fi­zesse um inquérito? Ou saberá ele a verdade e está tranquilo, sem pro­blemas, na esperança de, no decorrer do turno da manhã, receber or­dem de regressar?

Ter-lhe-ia ocorrido esta verdade que haviam acontecido importan­tes coisas, estavam a acontecer, iriam continuar a acontecer até onde houvesse um futuro? Sucedia meramente que a escala de tempo deles era cósmica. As estrelas evoluíam sem cessar. Ao cabo de milhões de anos, a maior parte daquelas que brilhavam com mais intensidade te­riam empalidecido e morrido. Entretanto, a nebulosa Orion e a sua pa­rente terão originado novos sóis, novos planetas. Daqui a cinco milhões de anos ou à volta disso, iria começar a lenta morte do Sol. Entretanto, desde há muito haveriam desaparecido longínquas constelações, depois de haverem oscilado no céu (com que frequência? cerca de vinte e cinco vezes?), numa galáxia que estava ela própria constantemente a mudar. Depois disso...

Diante de Janigian surgiu uma nave.

Os alarmes automáticos soaram. Os homens que estavam de serviço puseram-se a bradar pelo intercomunicador. Nenhum dispositivo-piloto os havia prevenido. Nem nenhum os podia prevenir. Aquele gran­de cilindro rombo, com saliências crípticas e uma neblina azul à volta dele, não era de construção humana. Nas bibliotecas, porém, e nos bancos de dados, na Terra e em Deméter, existiam numerosas gravuras de veículos daquela espécie. Uma nave muito parecida já havia passado pelo Sistema Febiano.

Todos a postos! — gritou Janigian. — Atenção! Nem um mo­vimento da nossa parte antes de receberem ordens. Mas estejam aten­tos. Liguem-me para a Alhazen.

A nave desconhecida desacelerou suavemente. Apareceu uma outra nave e afastou-se. Chegou uma terceira.

Lawes, ê você? Lawes, não atire, está a ouvir?

Pensa que sou doido? Não, não vou atirar. Vou pôr-me em liga­ção com os meus superiores. Tente você, se puder, identificar aquelas criaturas. Avise-me imediatamente e ligue para mim se conseguir saber quem são.

Uma quarta nave, uma quinta, uma sexta... Uma pausa, e os des­conhecidos puseram-se a manobrar para uma formação que podia ser defensiva, mas...

A sétima nave era diferente, mais pequena, esférica, sem as linhas elegantes das outras. Avançava à velocidade uniforme de um gê... Uma Reina!

Lawes, é a Emissário a regressar. Santa Maria, Mãe de Deus, foi ela que encaminhou as outras para nós!

Contra tudo o que está estabelecido...

Não. Espere, espere. Não é a Emissário. Amplie a sua imagem. Olhe bem. É a Chinook! A Chinook que regressa da morte!

Ou será um sonho? Não, tudo demasiado sólido, estas correias que me prendem, os ponteiros que não fundem, a inércia habitual no meu corpo, embora o universo possa a estar a explodir no exterior.

Os desconhecidos tinham cercado a Chinook, protegendo-a como para a defesa de um burgo.

Chamada habitual! ordenou Janigian. Ligue qualquer resposta diretamente para mim.

Não tardou um minuto que no écran das comunicações surgisse a cara de Daniel Brodersen. Os dias que se haviam passado depois de ele ter atravessado o Sistema Solar haviam-lhe cavado rugas, espalhado mais cãs pelo cabelo preto e áspero, e dado às suas feições qualquer coisa mais, indefinível, como que um aspecto de distanciamento... Como era possível aquilo?

Brodersen sorriu e começou no seu espanhol, lento como dantes:

Bom dia, comandante. Ou boa noite, se é isso que os seus reló­gios dizem. Escute, por favor. Não somos inocentes acima de qualquer suspeita e que você possa fazer em frangalhos no espaço antes de eles se poderem aperceber disso. Mas vimos num espírito de absoluta paz. Se você atirar, não atiramos. Não temos necessidade disso. Espero que não queira desperdiçar sobre nós as munições dos contribuintes. Va­mos a caminho da Terra. Porém, como temos uma história para contar a todo o género humano, gostávamos de começar por contá-la à Copernicus e à Alhazen. Espero que nos ouçam e mandem uma mensagem às entidades oficiais a dizer o que se passa. Querem fazê-lo?

Aquilo ressoou em Janigian.

De acordo! disse ele.

Lawes pegou no aparelho auxiliar.

Não! rosnou ele. São insurrectos. Digo-lhe eu: insurrec­tos, que recrutaram uma frota de monstros.

Quem lhe disse isso? barafustou Brodersen.

Lawes — interveio Janigian —, cale-se. E deixe os seus homens observar.

Brodersen começou. Tinha gravações para transmitir, e cenas di­rectas do interior das naves betanas. À medida que prosseguia, o es­panto de Janigian tornou-se em irritação, e depois subiu para fúria. La­wes, de princípio sem querer acreditar, não pode daí a pouco conter também a sua cólera. Até que teve de deixar o posto, para evitar um motim.

O telefone na mesa-de-cabeceira arrancou Ira Quick a um pesa­delo. Uma casa em ruínas, uma pequenita morta a acusar o céu, ainda a segurar o seu urso de pelúcia, sangue intensamente escarlate...

Sentia no corpo um suor frio. Enquanto se levantava e se apoiava num cotovelo e acendia a luz, viu como a neve fustigava a noite, e desli­zava pela janela. Ao lado dele, num conforto tépido, agitava-se sua mulher, a debater-se para se acordar.

Ira Quick ligou. No painel entrou uma face. Uma voz começou a debitar as notícias recebidas. Segundos depois, Quick interrompeu:

Atenção. Pare. Quero receber isto por outra linha. Grave tudo o que chegar até eu restabelecer o contato, e verifique se o circuito fun­ciona bem em segredo.

Pôs os pés no chão. Alice sentou-se na cama.

Que se passa? — inquiriu ela.

Confidencial — respondeu Quick. — Aguarda aqui.

Levantou-se.

Estranho! Pensou uma fracção do seu «eu». Estranho como não se sentem as catástrofes imediatamente! Como a perna que eu parti ao es­quiar, ou a tentativa de chantagem, ou o pedido de Bergdahl para re­contagem de votos e inquérito. Enfrentei tais situações muito bem. Uma pessoa transforma-se temporariamente num autômato eficiente. A angústia vem depois. Olhou para Alice, contemplou a sua beleza, sentiu a amargura de talvez a ir perder, àquela companheira querida. Desejou vagamente ter sido mais gentil para com ela.

Deve tratar-se de qualquer coisa de terrível, meu amor — murmurou Alice. — Deixa-me ir contigo. Por favor.

Não. Espera aqui, já te disse.      

No seu estúdio, ouviu tudo o que tinham para lhe transmitir. Aquilo era confuso, incompleto, mas não deixava lugar a dúvidas. Fez as perguntas adequadas, deixou o aparelho na posição para chamada especial, subiu as escadas e bateu à porta do seu hóspede incógnito.

Simeon Ilyitch Makarov veio abrir. Aquele homem miúdo de esta­tura, atarracado, vestia um pijama pitorescamente garrido.

E então, que se passa? — perguntou o primeiro-ministro da Grande Rússia.

Quick puxou-o para dentro, fechou a porta atrás deles, e disse:

Más notícias. As piores que lhe posso dar.

Makarov mordeu o bigode e preparou-se para receber o golpe.

Parece que Brodersen regressou. Trazendo consigo uma frota betana articulou Quick. A Alhazen procurou contato comigo, mas eles intervieram muito rápido. A comunicação veio da Copernicus para o Conselho de Controle Astronáutico. Foi Palamas que me telefo­nou. Está siderada. Não sabe o que pensar, mas acha que eu merecia uma oportunidade. Que lhe podia eu dizer? Essencialmente:

- Menti­ras. Fraude. Guarde segredo até sabermos mais do que isto.

Mas não se trata de uma fraude observou Makarov, em voz pausada.

Não é essa a minha opinião. De uma maneira ou de outra, esse diabo...

A garganta de Quick contraiu-se. Este procurou dominar os nervos e entrou em pormenores.

Bem dizia Makarov. Bem.

Mas os nervos cediam, e Quick tremia.

E que vamos nós agora fazer?

Quanto a mim, vou para o meu país, é claro.

Makarov deu uma volta sobre si mesmo, aproximou-se do guarda-fatos, abriu-o e tirou uma maleta.

Arranje-me um carro para o aeroporto.

Mas o senhor... — E Quick lutou consigo mesmo. Temos de planear, de coordenar as nossas medidas, de alertar a organização.

Sim, temos. Mas entretanto negue. Mantenha-se firme. Keep tough, não é assim que dizem os Norte-Americanos? Temos ainda diante de nós alguns dias até que o inimigo consiga chegar à Terra.

E quando chegar ...

Temos de estar prontos.

Makarov vacilou. Por um momento olhou com apreensão para tudo aquilo e confessou:

Politicamente estou arrumado, como você. E as minhas espe­ranças lá se vão!

Avançou, pôs a maleta em cima da cama e começou a arrumar as roupas. Rematou:

Vou procurar ficar em situação de defender a minha sobrevivên­cia pessoal. Ou então tratar de desaparecer. Aconselho-o a fazer o mesmo.

Não, não estou disposto a isso. Não sou desse tipo. O meu país é di­ferente, e não tenho no exterior as ligações que seriam precisas. O meu tempo aqui acabou. Quick fitou os olhos na tempestade de neve. A opi­nião pública vai voltar-se contra mim. Só me resta a escolher entre a prisão e um tiro nos miolos.

Malditos, malditos! bradou ele. Os ingratos! Que vão to­dos para as profundas do inferno!

Poucos candeeiros havia nas ruas à volta da Igreja de St. Michel, e nenhum deles à vista da casa de Brodersen. Quando Elisabet Leino abriu a porta, viu o relvado, os canteiros de flores, o topo das árvores, tudo coberto de luar. Perséfone e Erion lá estavam no firmamento. Duplas sombras estendiam-se no orvalho. O ar que entrava era frio e manso.

Elisabet conteve uma exclamação de surpresa e aguardou que fa­lasse a pessoa que havia tocado. A luz do interior foi menos tema para Aurélia Hancock do que o luar devia ter sido. A governadora-geral de Deméter ficou parada um pouco, olhos cravados no chão, a dobrar os dedos. Por fim levantou a cabeça e perguntou:

Posso entrar?

Pode respondeu Lis, e desviou-se para o lado.

Aurélia Hancock passou.

Por favor, quer fechar a porta? Vim aqui em segredo.

Lis fechou a porta e voltou-se para a visitante. A sala de estar com o seu tapete de lã e o chão de tacos, as paredes revestidas de madeira, a ampla janela a abrir sobre a paisagem, a lareira que Dan havia cons­truído, nada daquilo parecia agora repousante. Dir-se-ia tudo na expectativa, em alvoroço. Até mesmo o gato se estirou no sofá e passou pela intrusa um olhar de poucos amigos.

Não se quer sentar? convidou Lis, num gesto automático.

Nem sei se deva disse a outra mulher, mergulhada em idéias sombrias. Procurou na carteira um cigarro.

Qualquer coisa para beber, então?

Aurélia Hancock dirigiu a Lis um olhar assustado ao perguntar:

E a senhora bebia comigo?

Ofereci-lhe a si qualquer coisa para beber.

Compreendo... Não, obrigada.

Lis avançou para a chaminé e apoiou o cotovelo no rebordo. Ali se encontravam algumas recordações o castiçal de família vindo dos seus pais, uma colecção de cachimbos, um troféu de patinagem artística que ela e Dan haviam ganhado juntos, enfim, os pequenos bibelôs que se encontravam numa casa. Firmada ao lado deles, Lis quis saber:

Que a trouxe aqui?

Hancock, começando a tremer, respondeu:

Vim pedir o seu auxílio, pedir o seu perdão, e...

Lis alçou as sobrancelhas e afirmou:

Que pensa a senhora que eu possa fazer? A notícia está espa­lhada. O governador interino não tarda a atravessar a passagem e está aí dentro de um dia ou dois. E a comissão de inquérito também não deve tardar. Ora eu não tenho quaisquer funções oficiais.

Mas é a esposa de Dan Brodersen!

O homem que a senhora fez tudo quanto podia para aniquilar.

Lis bateu com o punho de encontro à pedra. E continuou:

Não. Eu não devia ter dito isto. Acreditarei antes naquilo que a senhora me contou ao telefone. Que não tivera tal intenção. Que os acontecimentos se lhe escaparam das mãos. Mesmo assim. Aurie, a se­nhora assumiu uma responsabilidade e terá de aceitar as consequências.

Cabeça inclinada, Aurélia Hancock puxou pelo cigarro que havia iitirado da carteira. Em vez, porém, de o acender, cortou-o aos pedaci­nhos, com os dedos a tremer.

A senhora não compreende — murmurou ela. — Não lhe ve­lho pedir nada para mim. Venho pedir-lhe que tenha pena de Ira Quick.

Lis ficou estupefacta:

Como?!

De novo Hancock levantou a cabeça.

A senhora olha para ele como um monstro, o homem que ten­tou de fato desfazer-se do seu marido e... destruir tudo aquilo em que a senhora e Dan haviam posto as esperanças.

A voz de Hancock parecia reunir forças:

Mas Ira não é um monstro. Cometeu alguns erros, sem dúvida que cometeu... Embora nunca possamos saber o que iria acontecer se ele tivesse ganhado, não é assim? Passaria à história como eminente ho­mem de Estado, como herói... Pouco importa. Perdeu, e é tudo. Mas — pode a senhora realmente avaliar? — ele não fez aquilo por ser nau. Ambicioso, sim. Presunçoso, sim. Mas é humano. Pensava, com toda a honestidade, que estava a proceder como devia.

Não estou muito convencida disso — observou Lis.

Pouco importa — repetiu Hancock. E desatou a chorar.

Pergunte a si mesma de que lhe iria servir a vingança. Não seria melhor para todos, não seria uma bela abertura para a nova idade que se está a rasgar diante de nós, se a senhora perdoasse?

Lis quedou-se em silêncio alguns segundos, e depois disse:

Perguntei-lhe o que pensa a senhora que eu poderia fazer, su­pondo que eu concorde.

Tudo! — exclamou a visitante. E depois mais baixo:

Reconhecer que eu, eu sei de política. Dan, quanto a ele, é o homem da atualidade, o homem do século, mas tem ainda acusações que pesam sobre o seu futuro. Acusações de que precisa de se desenven­cilhar. Actos ilegais que levaram a homicídio e... Se Dan lançasse um apelo público para uma amnistia geral, quem a poderia recusar?

Aurélia Hancock esfregou os olhos e insistiu:

A senhora pode levar o seu marido a fazer isso. Dan não é ho­mem para vinganças e... Como lhe disse, não seria um gesto carregado de esperanças? Quanto a mim, pouco importa. Aceitarei o que me vier a acontecer. De qualquer maneira, fui um peão em tudo isto, e o peão está agora fora de jogo. Pouco importa também os restantes conspira­dores. Mas Ira...

Hancock caiu no chão. Levantou-se um pouco, com o peso assentei nos braços, e pediu:

Ira, por favor, Ira!

Lis deixou-se ficar por algum tempo na sua própria determinação altiva. Liam-se-lhe no rosto dúvidas e certezas. Por fim murmurou, so­bretudo para si:

Acabou-se a vida pública, para eles. Atrever-se-ão porventuraa apresentarem-se à luz da opinião mais alguma vez na Terra? Mas eu Deméter ainda se encontram continentes inteiros para qualquer pessoa iniciar vida nova.

Lis não iria tocar naquele vulto que ali estava curvado diante dela, mas disse:

Sim, Aurie, vou interceder no sentido que a senhora pretende. A seu favor também.

Quando ficou sozinha em casa, apenas com as crianças a dormir, Lis voltou para o seu estúdio. Era uma peça bastante ampla, bem con­cebida, com todo o moderno equipamento de um escritório. Mas por cima da mesa estendia-se um holograma do monte Lorn e das suas ne­ves eternas. Lis deteve-se, franzindo as sobrancelhas diante de um aparelho de comunicação. A seguir carregou no botão de playback. Uma vez mais lhe passou diante dos olhos a última mensagem que rece­bera de Brodersen, vinda de Lima. Tanto o aspecto do marido como a voz denotavam cansaço emaranhado nesta profusão diabólica de contra-sensos em que nos estamos a debater. Não se lhe vê ainda o fim, minha querida. Tu encararias melhor a situação do que eu. E não seria magnífico ter-te aqui? Continuo a dizer a mim mesmo que não é realmente prático. Depois procuro mil maneiras de demonstrar a mim mesmo que estou errado...

Daí a pouco, contudo, Brodersen falava de Caitlín. De princípio, Lis saltou essa parte. Depois mordeu o lábio e passou-a, por duas ve­zes. A seguir sentou-se a refletir. Por fim, deu uma olhadela à resposta que estava a preparar quando Aurélia Hancock a interrompeu. Tinha agora muito que contar. Novidades, e grandes. Antes, porém, faltava ainda qualquer coisa que poderia ser muito mais importante.

O seu Doppelgänger electrónico olhou do écran e observou:

As tuas notícias são quase desanimadoras. Deixa-me falar agora com Caitlín. Os próximos minutos são para ela.

Um leve pigarrear e a mudança de posição, seguidos por:

Caitlín, minha querida, como está? Salud! Aquilo que Dan me diz a seu respeito não me parece reconfortante. Não que ele diga muito, penso eu, porque não tem muito para dizer. Ao que parece, você passa a sua vida de maneira mais ou menos normal. Mas, olhe, Dan não men­cionou qualquer piada entre vocês os dois, e habitualmente comparti­lha-as comigo. Ou...

O gravador registrou uma campainha de porta a tocar e parou. Lis olhou para aquilo, pôs de novo o aparelho a funcionar e falou para os anos-luz para além dele.

Dan, isto é para Caitlín. Só para ela. Desliga e deixa-a ouvir o resto. Tenho mais coisas para te dizer, mas vou gravá-las na pró­xima fita.

Lis sabia que ele acederia ao pedido.

Caitlín, penso que será preferível não mostrar isto a Dan. Diga-lhe que é conversa de mulheres. Sabe Deus quantas preocupações ele não tem! Você, a sua dor, é a mais pesada delas.

- Por favor — disse Lis, de súbito, procurando respirar fundo —, compreenda que não quero que se sinta culpada, nem nada disso. Aquilo por que você passou não o poderei eu nunca imaginar. Nem aquilo por que você anseia... Isso é que é a maior das preocupa­ções, não lhe parece? Você está mergulhada num sonho, num sonho do que viveu e ele sente o que se passa consigo e...

Lis pôs em ordem as ideias:

Você tem de voltar para aqui. Por causa de si mesma, e dele. E de mim, também. Eu podia reservar passagem para a Terra, Caitlín, uma vez que Dan por aí vai ficar durante meses ainda. Eu iria, mas vejo que você está a necessitar de todas as atenções que ele lhe possa dar. Dan não a deve deixar na semi-vida em que você se encontra agora. E eu não devo também. Descobri quanto você representa para mim.

Lis suspirou:

Ah, sim! Eu invejei-a, a si, e sem dúvida que a invejarei uma vez ou outra no futuro. Mas ciumenta, não. Nunca mais. Amamo-lo as duas, e ele ama-nos também. Não devemos então olhar com carinho uma pela outra?

Um leve sorriso. Depois Lis continuou:

Pode ser que chegue o dia em que ele me deseje um pouco... ou sinta a sua pontinha de ciúme. O que não lhe faria mal!

- Caitlín, volte para aqui.

- Eu não estive onde você esteve, mas sou mais velha e vi aspectos da vida que talvez você não tenha visto. Deixe-me sugerir-lhe, deixe-me fazer-lhe um apelo...

Quando acabou, Lis levantou-se e distendeu-se, músculo após mús­culo. Iria examinar o seu discurso no dia seguinte, talvez editá-lo, que mais não fosse para tudo ficar bem claro. Ela sabia como era o Conse­lho e esperava que aquilo a ajudasse. Entretanto, se tomasse um grogue, ouvisse um pouco de Sibelius e se metesse na cama? Precisava de todas as suas energias na manhã seguinte.

Para o diabo ser paciente como Griselda e Penélope! Tinha traba­lho a fazer.

 

Na Irlanda, a Primavera chegou cedo nesse ano. Certa manhã, Brodersen e Caitlín prepararam-se para um passeio de um dia inteiri­nho.

Foi isto em County Clare. Cinco vezes secular, largo tempo aban­donada, restaurada depois nos últimos anos para alugar aos turistas, a casa de campo onde se haviam instalado a lembrança de gerações que haviam nascido dentro daquelas paredes e aí crescido, amado, pro­criado e educado os filhos, e também lidado, sofrido, rido, cantado, sonhado, envelhecido, morrido, e onde depois haviam sido choradas. Baixa e caiada de branco sob um telhado de colmo, erguia-se isolada numa colina frente ao mar. Aqueles que por ali habitavam nas redon­dezas cuidavam, sobretudo, das ovelhas. A alguns quilômetros de distân­cia, uma aldeia numa angra albergava pescadores. Conservavam ainda os antigos costumes e não se apressaram por isso a dar a conhecer a toda a gente quem estava ali agora entre eles, mas respeitaram o princí­pio de não se intrometerem na vida privada, tal como lhes incutira o seu pároco. Quando encontravam o famoso par na rua ou nas lojas, quan­do o levavam de barco ou bebiam com ele no pub, as pessoas da aldeia sentiam prazer naquela amizade.

— Belo dia! — disse Brodersen. Pôs às costas o saco onde levava o almoço e olhou em volta.

Para ocidente estendiam-se urzes e fetos até à costa, que terminava em rocha alcantilada. Ao longe a água brilhava, fulva, esmeralda, com reflexos de prata, num suave quebrar de pequenas ondas. Mais perto, as vagas despedaçavam-se na rebentação, todas brancas, de encontro à penedia. Lá no alto, chegava-lhes o marouço. Para sul o terreno era acidentado, e mais ainda para norte. Para leste estendia-se o plaino cheio de verdura, até à massa azul de uma montanha que os dois iam subir até ao cume. Sebes de pilriteiros estendiam-se com as suas flores brancas ao longo de veredas a serpentear. Mais perto viam-se os taludes cobertos de erva de um rath, recinto circular fortificado que havia ser­vido de protecção a todas aquelas terras em redor, antes de São Patrí­cio calcorrear a Irlanda. Abandonado por fim, ficara conhecido como lugar frequentado pelas Sides[3] a respeito das quais se contavam já as primeiras lendas antes de Cristo andar pela Galiléia.

Um vento brando e fresco trazia um cheiro a maresia, a húmus e a vegetação. Por ali perto, uma cotovia cantava.

- Repara — disse Caitlín. — É como se estas terras nos dissessem adeus, com ternura.

Brodersen fixou os olhos nos dela. Camisa pesada, calças de ganga e sandálias grossas, nada disso lhe conseguia esconder as formas esbel­tas nem diminuir a graciosidade natural. O cabelo bronzeado caía-lhe seguro por uma fita. Uma madeixa solta agitava-se ao de leve. Naquele rosto com ligeiras sardas e queimado pelo sol, os olhos de Caitlín pare­ciam mais verdes do que os campos a reverdecer, e daquele sorriso desprendia-se uma alegria que Brodersen não lhe vira desde que ela tinha saído da nave para ir com os Outros até chegarem os dois àquela re­gião.

E ela me deu o melhor que me podia dar, perdido que eu andava em Deméter — murmurou Brodersen. — Deu-me a ti.

Caitlín riu.

Então, Dan, estarás a ficar um bardo?

Não. Não me vejo a versejar. Mas, diacho!, sempre tive ânsias de dizer o que me vai na alma a teu respeito, e nunca o consegui.

- Para isso tens melhor do que palavras, e podíamos ir a uma de­monstração depois de descansarmos um pouco lá em cima, no pico. Mas primeiro precisamos de lá chegar. Vamos!

Caitlín levou-o pela mão ao longo de um carreiro até a uma estradita estreita, coberta de poeira, que se estendia entre sebes floridas. Coleava agora para a direita, depois para a esquerda, mais ou menos na direção que eles queriam seguir.

Adquirida marcha firme — flexibilidade de músculos, balouçar do corpo, ágil bater dos sapatos, pulmões cheios, sangue a escaldar —, Brodersen desabafou:

Outra coisa que nem sei como te dizer, Pegeen, é quanto me sinto contente por te ver de novo como tu eras. Contente? Mais do que isso! Daria a minha vida para que tal acontecesse.

Sobre o rosto de Caitlín desceu como que uma névoa:

Mas eu andava assim então com ar tão lúgubre?

Oh, não. Alguém que não te conhecesse antes, nada notaria de estranho em ti.

- Assim o espero.

No seu tom sentia-se uma sombra de melancolia. O único segredo que a gente da Chinook guardava era o dos avatares.

Imponho-vos a obrigação de nada revelarem a tal res­peito — tinha ela dito aos seus colegas de bordo. — Por causa de mim, e por causa dos Outros, e provavelmente de muitos mais.

Brodersen tinha apoiado estas palavras, salientando à quantos dis­parates, intrujices e falatório sem nexo aquilo poderia dar azo, sem proveito para ninguém. Não havia dúvida de que a confiança que depo­sitava na tripulação, a certeza de que ela estaria de acordo e cumpriria

depois a palavra, haviam sido factores determinantes na decisão de a deixar voltar para casa. De contrário, bastava dizer que haviam sido os Outros, depois de estudo, que haviam tomado a decisão.

Caminhando ao lado de Caitlin, Brodersen continuou:

- Tu não andaste a ruminar o passado, nem a fazer de importante, nem a entregar-te a qualquer infantilidade do gênero. De facto, a criança em ti parece ter morrido. Não tens andado a rir nem a brincar com as pessoas, nem a saltar pelos corredores, nem, vejamos, tens repe­tido o milhão de coisas que costumavas fazer. Nunca mais cantaste a não ser que te pedíssemos, e nunca foram canções alegres, e não com­puseste outras. Na cama comigo, bem... Não há dúvida de que tiveste a tua parte de prazer nisso, de certo modo, mas já não foi tão divertido. E uma vez ou outra apanhei-te a chorar, como naquela noite em que pensavas que eu estava a dormir, ou então vi sinais disso depois. Mas escusaste-te a dizer-me porquê, até que eu entendi que melhor seria fingir que não dava por nada.

Caitlin pegou-lhe no braço, com força.

Dan, meu querido, porque não me disseste quanto eu te estava assim a dilacerar a alma?

Se to dissesse, poderia ainda agravar as tuas mágoas.

Ochone! Andava dominada pelo sonho dos Outros e nada mais podia fazer senão tentar viver, dia após dia, ao mesmo tempo que procurava desprender-me dele. No entanto, se eu tivesse a ideia de olhar daquilo que se tinha passado para aquilo que me rodeava, e quem...

Então minha jóia, tudo decorria bem. Não è verdade? Entretanto, sentíamo-nos ambos felizes por continuarmos tão ocupados como estávamos, em Beta e na Terra.

Bem, na Terra não estou certo. Brodersen franziu as sobrancelhas e cuspiu. O perdão oficial para o que fizemos, uma formalidade, mas a arrastar-se e embaraçosa. Multidões, discursos, cerimónias, con­ferências, banquetes, recepções, Causas Justas, correio às toneladas, telefonemas aos milhares, e constantemente os jornalistas, ávidos de pormenores. Nem um minuto de nosso sem alguém a observar-nos, até que por fim Pegeen e eu conseguimos escapar-nos para aqui. Todo este desassossego pode ter retardado o seu restabelecimento... O seu «res­tabelecimento»... Será esta a palavra correta? Nem ouso perguntar.

Mudemos de assunto.

E em breve, olha, aí voltamos para Demèter disse ele.

A tarefa de ambos estava terminada. No meio de toda aquela triste insensatez, ali estavam as canseiras daqueles meses, as obrigações a que não se podiam decentemente esquivar: ajudar e aconselhar os Betanos, tomar parte nos planos e nas medidas que estavam em curso para esta­belecer relações regulares entre as duas raças, transmitir aos cientistas o tesouro de informações a bordo da Chinook e na cabeça dos tripulan­tes... E ele teve de reconhecer que algumas das causas eram autentica­mente estimáveis. O herói aos olhos de bilhões de pessoas podia recolher fundos para a conservação dos oceanos, podia dar à política um im­pulso no sentido de sensatez e liberdade, animar uma hora consagrada a uma porção de crianças hospitalizadas.

Mas finalmente, salvo para Joelle, a Chinook estava prestes a levar para suas casas aqueles viajantes. (Carlos e Susanne queriam ir ver a fa­mília. Frieda e o marido que ela tinha encontrado na Terra queriam emigrar.) Os Betanos ainda não tinham reunido suficientes elementos para calcularem como se servirem de dispositivos cronocinéticos na­quela passagem. Provavelmente nenhum humano o podia fazer, pelo menos enquanto não se dispusesse de mais conhecimentos. A ausência de Brodersen de Febo seria, portanto, aproximadamente tão longa como a sua presença no Sistema Solar.

Teriam Bárbara e Mike mudado muito? Segundo cartas e gravações de Lis que concordara com ele que devia ficar onde estava, tomar conta dos filhos e dos negócios, não se ir meter nas canseiras por que ele estava a passar —, os dois pequenos haviam sobretudo aprendido algumas habilidades. Estavam ansiosos por mostrá-las ao Papá. Con­tudo, nas suas idades, o tempo entre o fim do Inverno e o começo da Primavera podia ser tão longo como o tempo necessário para ir até aos confins do universo e voltar.

Brodersen notou que Caitlín não havia respondido. Perturbado, olhou para ela e viu-a com o mesmo ar ausente, olhos no horizonte, mergulhados no azul profundo. Não! Por favor!

Desculpa! tornou ele. Disse-te alguma coisa desagradá­vel? Eu não te queria entristecer de novo, por nada no mundo. Mas pa­rece que te entristeci.

Realmente, não, querido e acariciou-lhe o ombro. Apenas me trouxeste recordações.

Perfeito idiota que sou! Estava apenas a lembrar como eras dan­tes, a tentar explicar como és... como eras... o teu feitio de então. Não queria ressuscitar sombras do passado. Desculpas-me?

Nada a desculpar. Excedi as minhas aspirações, na tentativa de­sesperada de recuperar. Na verdade assim foi.

Os dedos de Caitlín fecharam-se em torno dos de Brodersen. Deti- veram-se os dois no meio da estrada e voltaram-se um para o outro. A sombra de uma nuvem deslizou por eles, e a seguir a luz do Sol ganhou de novo toda a sua intensidade.

Sinceramente, Dan, meu amor. As recordações que nos restam permanecem no fundo de nós, e serenas, para além de toda a dor, para além de toda a alegria. Sou eu que tenho de te pedir perdão pela minha cegueira. Não via como necessitavas de falar disto.

Bem, reconheço que não sou lá muito habilidoso em exteriorizar o que me vai na alma, Pegeen, macushla.

... Depois do beijo, mais uma vez a caminho, Caitlín desabafou: Disseste uma coisa que me atormenta. Que darias a vida para que eu fosse de novo o que era.

Sim, foi o que eu disse.

E farias o que disseste? Não o devias fazer. E Lis, e as crianças?

Brodersen estremeceu.

Sim, é claro, tens razão. Eu não estava a pensar como devia. Quando alguém ama uma pessoa como eu te amo...

Não pôde continuar.

Dan — volveu Caitlin. — Já to disse antes. Conheço uma razão por que te poderia deixar: se me intrometesse entre ti e Lis. Isso torna­ria em qualquer coisa de diabólico e doloroso aquilo que era terno e doce. E como poderia eu olhar depois para mim mesma?

Não receies — prometeu ele. — Podes ter necessidade de me lembrar uma vez ou outra, mas... bem, eu sei as minhas obrigações. E, além disso, amo-a também.

Caitlin sorriu, num sorriso aberto.

Ah, agora sim, é o meu comandante a falar! — E a seguir: — Mas, vejamos, desta vez és tu que estás perturbado. Porquê?

Tal como ela havia feito antes, Brodersen mergulhou agora os olhos na distância:

Compreendo muito bem — e não pela primeira vez — quão in­justo isto é para ti.

Injusto porquê?

Eu tenho lar e família, que são todo um mundo para mim. Tu merecias o mesmo. Estarei eu a privar-te dessa felicidade? Receio bem que sim.

Caitlin riu com uma pequena risada sonora, e a tal ponto aquilo o surpreendeu que Brodersen meteu o pé numa rodeira e quase ia caindo. Quando se endireitou, Caitlin disse-lhe:

Dan, podes realmente imaginar-me a definhar numa situação que eu não haja escolhido livremente, que não haja propositadamente provocado? Foi essa característica que levou os Outros a fazerem o que fizeram, e então não era permanente.

Mas, vejamos, uma escolha livre pode não ser a melhor.

Sei sempre o que quero, por muito que isso possa mudar. Talvez seja a seu tempo um marido, se ele for o tipo de homem que eu deseje, o que inclui uma grande compreensão por eu não renunciar a ti. Ou pode ser que isso nunca aconteça. Nesse caso, será assim tão trágico? Penso que por fim gostaria de um filho ou dois, que muito bem podiam ser teus. Deixa ver o que se vai passar. Temos todo um cosmos diante de nós.

Ao cabo de um minuto, durante o qual as cotovias não pararam de cantar, Caitlin prosseguiu:

Já tenho em mente algumas modificações... Vou para a escola médica, para depois seguir em algumas das expedições que hão de par­tir para as estrelas.

O quê? — E Brodersen estacou.

Não te preocupes, amor.

Catlín fez que continuassem a marcha.

Regressarei para ti, como te prometi naquela minha cantiga. Ou pode acontecer que partamos juntos para o espaço. Não em todas as viagens. Não tens direito a isso, nem, espero, nenhum desejo de te au­sentares demasiado de Deméter. Mas tens o direito, isso sim, e creio eu que também o desejo, de viver uma vida plena até ao dia da tua morte.

Brodersen olhou para ela e perguntou:

Será isto apenas em ti uma ânsia de partir, depois da experiência que tiveste?

Caitlin respondeu francamente:

Não. Isso podia ser verdade se eu fosse o que era. Tu despertaste a criança que receavas estar morta em mim. Pois bem, ela estava ape­nas adormecida, mas o sono foi longo e a criança acordou mais cresci­da. Sinto necessidade de descobrir e de aprender, para fazer render os meus talentos ao máximo. E, sim, ser útil. Porque aquilo que os nossos exploradores estão a fazer irá mudar a vida de todos, para além do que se possa imaginar. Não devemos porventura fazer que as mudanças se­jam sem perigo, ou mesmo benfazejas? Antes de tudo o mais, não ha­verá a defender a liberdade de todos os espíritos sensíveis? Quero estar onde possa ser útil, por pequeno e desajeitado que possa ser o meu au­xílio, e tendo em mente estes objetivos.

Compreendo.

Brodersen fez uma pausa e observou:

Sei por experiência que a tua ajuda não será pequena, nem muito desajeitada.

Obrigada, amor — murmurou ela.

Caminharam os dois. O dia avançava, mais radioso, mais quente, mais verde, mais carregado de perfumes. Por detrás de uma colina sur­giu um falcão, que ficou a pairar no ar, com o sol a dar-lhe uma tonali­dade dourada às asas. Brodersen e Caitlin podiam sentir como a terra se tinha elevado até às alturas.

De súbito, Caitlin exclamou:

Oh! Que estamos nós a fazer, em vez de sermos felizes?

Tirou o sonador que trazia a tiracolo. Estava programado para gui­tarra. Caitlin desferiu as primeiras notas. Daí a pouco estava a cantar, enquanto com os pés marcava alegremente o compasso.

Contentes vamos a subir, contentes a descer,

A dança a voar, a voar como riso, Dos campos em flor ao cume das montanhas. Regozijemo-nos na alegria que vem depois.

 

1] Recinto, Com frequência subterrâneo, numa aldeia índia, utilizado, sobretudo, para cerimônias religiosas. (N. do T.)

[2] Espíritos dos antepassados, deificados pelos índios Hopis e personificados por dança­rinos em rituais religiosos. (N. do T.)

[3] Fadas, no folclore da Irlanda. (N. do T.)

 

                                                                          Poul Anderson  

 

                      

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