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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O AVIADOR / Ernest K. Gann
O AVIADOR / Ernest K. Gann

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Dezembro de 1928. Um biplano Stearman transporta o correio de Elko, no Nevada, para Pasco, no estado de Washington.

O tempo está incerto, o terreno lá em baixo está cheio de perigos, mas para o piloto veterano é uma alegria voar. Aqui, a cerca de dois mil e quatrocentos metros de altura, ninguém lhe vê o rosto tragicamente coberto de cicatrizes, que torna a sua vida em terra uma solidão atormentada. Ninguém, isto é, excepto a sua passageira de onze anos, que, surpreendentemente, parece não reparar.

Depois, inesperadamente, o avião começa com problemas. E ficam os dois isolados numa encosta montanhosa coberta de neve. Quase sem alimentos e com poucas esperanças de serem salvos, a situação deles é de facto desesperada. As únicas motivações do piloto são a confiança da pequenita... e a mensagem estranhamente tocante de uma carta do saco do correio.

 

 

 

 

                     PREFÁCIO

Como 1914, 1928 foi um último ano de inocência para grande parte do Mundo. Poucos previram a catástrofe financeira que teve início na América e no ano seguinte afectou todos os países.

Depois disso, a inocência morreu de novo, como já acontecera em 1918, quando os canhões se calaram.

Em 1928, a esmagadora maioria dos jovens americanos acreditava fervorosamente em Deus, na honra, no dever e no país. Tinham orgulho em si próprios e geralmente na sua vida de trabalho.

Isto era particularmente verdade no caso dos aviadores, muitos dos quais se haviam iniciado na aventura de voar durante a Grande Guerra, que terminou em 1918. Eram, muitas vezes, homens impetuosos e com uma atracção pelo perigo. Eram instintivamente levados a perseverar numa profissão que abria novas fronteiras quase diariamente. A sua actividade ainda era uma arte. Eram modestamente pagos em dinheiro, mas prodigamente em ossos partidos e mortes. Muitos deles morreram em serviço enquanto transportavam o correio.

Os pilotos do correio aéreo não eram considerados cidadãos normais, mas sim um grande risco para as seguradoras. A maioria deles não se preocupava porque eram uns amantes do ar. Dedicavam‑se‑lhe tal como um homem por vezes se entrega totalmente a uma mulher encantadora.

Os veículos que transportavam estes homens a baixas altitudes eram criações frágeis de linhas elementares. Os motores eram temperamentais e muitas vezes traiam quem neles confiava. A assistência à navegação era inexistente ao longo de muitas das rotas do correio aéreo, e os aviadores abriam caminho, no bom e no mau tempo, empregando uma combinação de experiência, ousadia e astúcia. Encontraram em si próprios um sexto sentido de oportunidade e orientação porque tinham de o ter e, em consequência disso, muitos desenvolviam a independência selvagem característica dos velhos marinheiros e dos Tuaregues do deserto.

A lealdade e confiança em si próprios era um facto entre os aviadores de todos os países, embora os Europeus, tecnicamente mais avançados, beneficiassem de uma primitiva comunicação via rádio com terra. Excepto no Leste dos Estados Unidos, os pilotos americanos não tinham esse privilégio e, por isso, uma vez lançados no céu, desapareciam simplesmente. Algum tempo depois, voltavam a aparecer ‑ sem cerimónia e sem que ninguém em terra soubesse por onde tinham andado.

Por vezes, não voltavam a aparecer...

 

                      CAPÍTULO UM

O Piloto olhou de novo para baixo e voltou a ter o mesmo pressentimento. Nesta região, quando o tempo não estava muito bom, era sempre assim. O planalto era elevado e desprovido de vestígios humanos. A superfície do terreno parecia feita de ferro fundido tosco. As escarpas nuas e estéreis eram marcos de referência para os pilotos neste oceano ondulado de rochas e deserto. Era uma região selvagem e havia alturas em que o piloto se perguntava se seria possível ter‑se medo da própria terra.

Olhou para baixo, para as nuvens cinzentas tocadas pelo vento, que iam, sem dúvida, formar uma forte tempestade. Aqui e além, por entre a névoa, ainda se avistavam os picos das rochas e as árvores pretas raquíticas. Nuvens em fiapos apareciam suspensas dos picos que se avistavam ao longe, mas essas não o afligiam de momento. Preocupava‑se agora em observar as nuvens densas por cima dele. Poderiam mesmo esmagá‑lo.

Antes de ter descolado de Elko, no Nevada, em direcção ao norte, o piloto suspeitara que o tempo podia piorar. Presumira que não ia ser o melhor dos dias. Mas a sua missão era transportar o correio e não era suposto acocorar‑se no chão, como um canário amedrontado, sempre que havia uma nuvem no céu. Um piloto que desse sinais de apenas gostar de voar nas melhores condições depressa se encontraria no desemprego. Este era o seu modo de vida, e ele sempre voara, mesmo quando os outros encontravam desculpas para não descolar.

Concentrou‑se um pouco no trabalhar forte do motor Wright Whirlwind que fazia mover o seu avião. Achava‑o um belo motor e dava graças por não estar a pilotar um Liberty ‑ um desses restos da guerra que duraram o tempo de ele aprender a voar e se qualificar como instrutor. Sorriu. Agora, ainda por cortesia do mesmo governo generoso dos Estados Unidos, ele continuava a voar. Passara a maior parte dos últimos dez anos nos céus, de tal modo que a voar se sentia quase em casa. Sabia que para se sentir completamente à vontade no ar um homem tinha que deixar de ser mortal.

"Mesmo assim", pensou, "aqui é o único lugar onde me sinto contente."

Embora a rota estivesse traçada, todos os voos eram diferentes. O tempo mudava com as estações do ano e de forma contrastante nesta região do continente norte‑americano. Os voos também mudavam consoante a hora do dia e o vento. Com ventos fortes, manter o biplano Stearman direito e nivelado assemelhava‑se a um torneio de luta greco‑romana. O Stearman era um bom avião, feito com a melhor madeira, o melhor metal e de construção muito sólida. Embora mais pequeno que os velhos De Navilland e Pitcairn, que faziam a distribuição do correio nos estados do Leste, era mais forte, mais facilmente manobrável e menos dado a avarias.

O piloto achava que não havia motor de avião mais seguro no Mundo que o nove cilindros Wright Whirlwind. Sabia que o seu barulho forte devia estar a ecoar lá em baixo sobre o planalto e sentia‑se tranquilo ao confiar‑lhe a vida. "Até agora, a minha única vida", pensou. Claro que muitos homens terminaram a sua única vida neste trabalho, abruptamente. Aqueles que se supunham imortais muitas vezes provavam que a sua crença era infundada. Era assim o mundo nas alturas.

Este voo distinguia‑se da maior parte porque ele levava um passageiro. Uma pequenita loura, que ele calculava que tivesse uns onze ou doze anos, mas era pouco entendido nesses assuntos. Os pais haviam‑na trazido à Base Aérea de Elko e tinham dito que se chamava Heather.

O piloto comentara que era um bonito nome e a resposta da criança, fora pronta:

‑ É uma planta de flores rosadas e, às vezes, na Escócia serve para fazer vassouras.

Os olhos dela faiscavam como se o estivessem a desafiar e ele achou o seu sorriso desconcertante.

Quando perguntara aos pais porque a mandavam de avião para Pasco e não de comboio, Heather nem os deixara responder.

‑ O meu avô, desde que tem aquela doença, não consegue ver muito bem. Por isso, os meus pais acharam que eu teria mais para lhe contar se visse as coisas como os pássaros.

‑ Já alguma vez voaste? ‑ perguntara à rapariga.

‑ Não. Mas às vezes eu finjo... como se fosse um pássaro a sério.

‑ Ainda bem. Se te portares bem durante o voo desta manhã, talvez te ensine a ver como um pássaro a sério.

A partida estava mais que uma hora atrasada porque Probosky, o mecânico, dissera que era melhor mudar várias velas no motor Whirlwind. Por fim, quando o trabalho estava feito e o piloto passava os sacos do correio a Probosky, que os arrumava no receptáculo, a rapariga bateu‑lhe no braço e perguntou:

‑ Quando é que me dão o meu pára‑quedas?

‑ Não te dão. ‑ arrependeu‑se do tom de aborrecimento com que lhe respondeu.

‑ E porque não? Você não tem um?

‑ Tenho. Vou sentado em cima dele. O meu assento foi feito de propósito para o ter em cima e ele servir de almofada. Tu vais aqui por cima dos sacos do correio, por isso já tens muitas almofadas.

‑ Bem, eu quero um pára‑quedas. E se eu tiver de saltar?

‑ Consegues sempre tudo o que queres?

Desta vez admirou‑se por se sentir levado a implicar com ela. Mesmo que ela fosse uma menina mimada, não era sua obrigação reeducar meninas às onze horas da manhã. Será que aos trinta e um anos se estava a tornar extravagante?

‑ Na escola, Miss Atcheson, a minha professora de Inglês, disse‑me que eu levaria um pára‑quedas, por isso eu sei que devo levar um.

‑ Miss Atcheson está enganada. Não fornecemos pára‑quedas aos passageiros, porque saltar de um avião é muito perigoso e tem que se saber muito bem como se faz. Eu nunca saltei de um avião e não é hoje que o vou fazer.

‑ É melhor que não.

A rapariga estava amuada e ele achou que ela precisava era de umas boas palmadas. E contudo... e contudo havia algo de muito especial nela.

Era quase meio‑dia, o Sol apareceu momentaneamente por entre as nuvens e ele pensou no número de vezes em que já presenciara o mesmo espectáculo. No seu zénite, o Sol seria visto através da parte menos densa das nuvens cerradas. Visto obliquamente a outras horas do dia, parecia muito fraco ou desaparecido por completo. Ou seria por timidez, pensou ele quando a sua passageira se voltou para o olhar.

Gostaria de partilhar esta interrogação com a rapariguinha, mas dito em voz alta por um homem da sua idade podia parecer pateta. E Heather não tinha nada o aspecto de ser pateta.

Para a proteger do frio, que ele sabia que iam encontrar, pedira emprestado para ela um fato de voo como o seu, um grande "urso", como era conhecido na profissão. Os pais de Heather e toda a gente à volta tinham rido a bom rir ao tentarem vestir‑lho.

‑ São precisos mais seis como tu para o encher ‑ dissera o piloto.

Por fim, levara‑a para o Stearman, porque ela não conseguia andar com o "urso" vestido. Talvez tivesse sido o modo como ela pusera os braços à volta do seu pescoço e o modo como os seus olhos azul‑esverdeados o tinham olhado que o fizeram sentir a magia dela. Talvez o fascínio que agora sentia por ela tivesse mais significado do que ele supunha. Há quanto tempo ansiava pelo contacto de outro ser humano?

Agora, ao recordar‑se do prazer de segurar aquela criaturinha amorosa, suspirou. Tais recordações eram perigosas, avisou‑se a si próprio. Podiam levar à autocompaixão, que há muito conseguia evitar. Podiam levá‑lo a outras recordações.

Esticou o braço no meio da deslocação de ar provocada pela hélice e bateu suavemente no capacete de cabedal que emprestara à rapariga. Como era habitual, quando transportava ocasionalmente um passageiro, tinha sido removida a cobertura de metal do receptáculo do correio. Ela fez‑lhe lembrar um pequeno pardal empoleirado nos sacos.

A criança voltou‑se repentinamente e o piloto esperou não a ter assustado. Levantou a sua mão enluvada num gesto que perguntava: OK?

Ela sorriu e acenou a cabeça com força. O capacete era largo demais para ela e ele reparou que a deslocação de ar lho levantava da testa e incomodava uma madeixa do seu cabelo louro. Achava que a faixa de sardas junto ao nariz lhe realçava a beleza e sentia‑se contente por lhe ler uma grande excitação nos olhos.

Desenhou com os lábios as palavras "Tens frio?" e tremeu para ilustrar a pergunta. Ela abanou a cabeça e riu‑se, embora não conseguisse ouvi‑la com o rugido do vento. A mais de cento e sessenta quilómetros por hora era como tentar manter uma conversa no meio de um furacão.

Estava frio. No mês de Dezembro, estava sempre frio nestas montanhas, e na sua opinião, a esta altitude, a temperatura era inferior aos sete graus negativos marcados no pequeno novo mostrador do seu painel de instrumentos. Porque é que não confiava nele? Por ser novo?

Confiava nos outros instrumentos dispostos à sua frente. Havia um velocímetro e a agulha oscilava como que em alerta. O altímetro mostrava que o avião estabilizara a dois mil e quatrocentos metros. Havia um instrumento para medir a velocidade na vertical, com a agulha oscilando ligeiramente abaixo da horizontal, indicação de descida. O instrumento mentia, provocado pelo seu hábito de pilotar o Stearman ligeiramente de nariz para baixo, o que permitia aumentar a velocidade de cruzeiro.

Havia um indicador de volta constituído por uma bola que deslizava livremente, como a bolha num nível de bolha, e um ponteiro conhecido como "o pau". Uma bússola magnética, logo abaixo do pára‑brisas, indicava a direcção e havia também um relógio que neste Stearman não funcionava. Havia ainda instrumentos que lhe indicavam o estado do motor, mostrando a pressão do óleo, a temperatura e as rotações por minuto.

Eram estes os instrumentos simples do seu avião, que juntamente com os comandos ‑ uma barra situada entre os seus joelhos (o manche) para manobrar os eixos vertical e horizontal e dois pedais de direcção para comandar os eixos laterais ‑ lhe permitiam levar o aparelho a qualquer destino, desde que tivesse combustível. Como qualquer técnico experimentado, ele confiava nos seus instrumentos, mas acima de tudo em si próprio.

A rapariga olhou de novo para ele. Viu os seus olhos inquiridores e os lábios formando as palavras "Onde estamos?".

Desacelerou momentaneamente o motor e gritou:

‑ Ainda estamos sobre o Nevada. Daqui a uma hora estaremos sobre o Idaho.

Ela sorriu e olhou para baixo. Depois, olhou de novo para ele, que lhe viu o sorriso desvanecer‑se. Os olhos dela continuavam interrogadores, mas os lábios não se mexeram e pouco depois virou a cabeça. Irritado, empurrou o manche com toda a força e alguma da sua desolação foi abafada pelo roncar do motor. Porque é que tinha apostado tanto em convencer‑se a si próprio que, por qualquer razão, ela era diferente? Porque levara ela tanto tempo a ver o que todos viam logo?

Instintivamente, tocou com a luva no lado da face que sabia que nunca mudaria. O lado direito mantinha os traços do jovem bem‑parecido que fora há oito anos, mas o lado esquerdo? A começar logo por baixo da linha do crânio, havia uma massa horrível de cicatrizes tortuosas, aos altos e baixos, acentuada pela imobilidade do canto da boca. Fora o melhor que os médicos tinham conseguido fazer a um rosto que fora esmagado até ficar uma massa ensanguentada e depois queimado pela explosão de gasolina. Por milagre, o olho esquerdo ficara ileso, mas não houve milagre de cirurgia que conseguisse substituir o que se perdera no acidente naquela terrível manhã, há muito tempo atrás.

Logo depois de lhe tirarem as ligaduras, aprendera a apresentar ao mundo o lado direito da sua face. O lado esquerdo fazia arrepiar as pessoas, e era ainda pior quando eram excessivamente educadas. Quando isso lhe acontecia, o piloto pensava em Moravia ‑ porque Moravia compreendia. Fora aviador durante a Grande Guerra e também ele tinha sido atingido. No entanto, o caso de Moravia era mais facilmente aceite. Ele apenas coxeava com uma perna artificial. Não era como esta desgraça gerada num inferno.

Contudo, fora devido à compreensão de Moravia que o piloto tinha sido contratado. Para Moravia, um rosto bonito e uma educação formal não eram requisitos necessários para transportar correio aéreo. Ele queria era homens responsáveis.

Moravia era o responsável pela linha. Os Correios eram muito exigentes com as companhias com que estabeleciam os contratos de transporte postal, e Moravia sabia que a sua linha de correio ‑ entre Pasco, no estado de Washington, e Elko, no Nevada ‑ era a mais difícil de todas. Manter os oito pilotos da linha activos e razoavelmente felizes era a missão de Moravia. No ar, era da responsabilidade deles manterem‑se vivos, mas sabia que detinha o poder de vida ou morte sobre eles. Contratara os oito e estava consciente de que, para eles, voar era uma necessidade vital e privá‑los disso significaria a sua decadência e por fim a morte interior. Moravia tinha relutância em usar o seu poder, mas, quando um piloto errava, não hesitava.

‑ Primeiro ponto. Vocês trabalham para esta companhia e não devem meter‑se em sarilhos, nem no ar nem em terra. Segundo ponto. Seguem sempre para o vosso destino, a menos que as condições atmosféricas o tornem absolutamente impossível. De outro modo, serão despedidos.

Moravia era exigente, mas não era antipático. Preocupava‑se quando um piloto estava doente, comportando‑se como uma mãe galinha com os sintomas e advertindo‑o para não voar se sentisse o mais pequeno arrepio.

‑ Voar já é suficientemente desconfortável ‑ dizia muitas vezes. ‑ Mas se ainda por cima estiver a tremer com febre, como é que vai saber quando é que se deve assustar?

Moravia gostava dos seus pilotos e dos aviões em que voavam. Contudo, era extremamente cuidadoso para não deixar transparecer os seus sentimentos. Devido à sua deficiência, engordara. Fotografias do tempo em que pilotava os Nieuports em França mostravam um jovem elegante, ainda que não muito alto e de olhar arguto, mas agora... Agora, tinha uma barriga considerável. Usava óculos que, como detestava, estava constantemente a pôr e a tirar e fumava caporals uns atrás dos outros. Cigarros de tabaco preto, que mandava vir de França com grandes dificuldades e despesas consideráveis. Apenas a sua voz profunda e vibrante deixava perceber que ainda era um homem novo.

Moravia nunca se referia aos pilotos em serviço pelos nomes; utilizava os números da companhia pintados na cauda do Stearman em que voavam. Na sua cabeça, não havia uma separação nítida entre o homem e o avião.

‑ O Sete muda para o Nove quando aterrar. A sua pressão do óleo está a subir.

Quando por fim o Sete aterrava, o espírito organizado de Moravia providenciava para que o Sete se transformasse automaticamente no Nove.

Naquele momento, Moravia estudava o grande mapa de parede que representava o território agreste e desolado sobre o qual voavam os seus pilotos. Havia grandes vales por onde era relativamente fácil voar, mas a maior parte do percurso era sobre montanhas e planaltos desérticos, ambos implacáveis. No Verão, o deserto era um forno e os pequenos aviões eram sacudidos como cardos dançando no vento. No Inverno, ventos cruéis acompanhados de nevascas saíam das ravinas ocidentais e açoitavam‑nos durante todo o percurso.

Moravia sentia‑se um pouco insatisfeito com as poucas informações que acabara de receber e tentou acalmar as suas suspeitas coxeando até à janela do seu escritório e olhando lá para fora. Além era o aeroporto, ou "aeródromo", como ainda às vezes lhe chamava. Havia uma manga de ar no topo do hangar adjacente à pequena construção que albergava o seu escritório e uma sala de espera apertada para visitantes que tivessem negócios com a companhia de aviação. Esta sala também servia para guardar o correio e de vestiário onde os pilotos se contorciam para vestir os seus fatos de voo quando iam voar ou para os despir quando aterravam.

Moravia compreendia que, quando um piloto acabava de chegar, passava por um período de readaptação, um reatar necessário, e por vezes infeliz, da sua relação com a vida em terra. Dependendo do homem, em geral levava cerca de meia hora para se libertar da habitual euforia do voo e substituir as preocupações com o vento e as nuvens pelas preocupações com a mulher, o dinheiro e a comida. Para mitigar os contrastes, comprara uma máquina de café eléctrica e do seu próprio bolso comprava doces para complementar o retemperamento. Não se preocupava muito se os pilotos apreciavam ou não o seu gesto. Considerava ser parte do seu dever olhar pelo bem‑estar deles quando cumpriam a sua missão. Enquanto soprava fumo para a janela, Moravia olhou para o outro lado do campo, para a torre de metal do farol rotativo, que fora recentemente instalado pelo Governo. Assinalava a localização do aeroporto com uma luz intermitente verde, seguida de outra branca, durante a noite ou quando a visibilidade era má. Nada mais se avistava, excepto a extensa e plana pradaria, agora oficialmente designada por Aeroporto de Pasco, e um tecto cinzento de nuvens. Moravia concentrou a sua atenção no céu e na passagem rápida das nuvens, que poderiam influenciar os procedimentos de voo. E lamentou dispor de tão poucas informações.

Há uma hora recebera um telegrama avisando que o Catorze descolara de Elko com cem quilos de correio e um passageiro. Do sexo feminino. O tempo estava bom, com algumas nuvens altas. Um sol pálido brilhava nos intervalos. Não havia problema. Quatro graus negativos. Demasiado frio para nevar. Nada mau, pensou. Mas que tais seriam as condições atmosféricas ao longo da rota?

Havia sempre um vazio entre Elko e Pasco. Boise, no Idaho, era o marco de meio‑de‑caminho, e aí os aviões de Moravia eram reabastecidos e o correio seleccionado e, por vezes, mudavam‑se os pilotos com destino ao Norte ou ao Sul. O tempo em Boise não se podia considerar significativo de todo o percurso. Moravia telefonara para os Aeroportos de Boise e de Twin Falls há duas horas para obter um relatório das condições atmosféricas. O tecto de nuvens estava alto e a visibilidade diminuía em direcção a oeste. Viam‑se rajadas de neve no horizonte e o vento estava variável. Não era de molde a ficar descansado.

Seria melhor consultar um rancheiro em Rome, a oeste de Boise, que tinha uma boa panorâmica das montanhas em redor e, mais importante ainda, telefone. Era solícito a fornecer informações meteorológicas locais e em sinal de agradecimento Moravia enviava‑lhe, de vez em quando, uma garrafa de whiskey de contrabando do Canadá. Mas esta manhã, apesar da sua insistência, ninguém atendera o telefone.

"Basta de pensar no tempo", cogitou Moravia. Depois, recordou que o Catorze era um bom piloto e sensato. Não havia razões para se preocupar.

Ainda a fumar o seu cigarro, Moravia pensou que decididamente as coisas não lhe cheiravam bem esta manhã. Não devia ter de mandar os seus pilotos para o desconhecido. Assim, o fardo transferia‑se deles para si próprio.

O piloto aliviou um pouco o seu peso do assento do pára‑quedas e rodou o coldre um pouco mais para a frente no cinto. Achava a pistola um incómodo, resquícios dos dias da mala‑posta, quando os bandidos supostamente perseguiam sempre o correio. Era uma 380 automática que ele nunca disparara. Mas eram obrigados a usá‑la, segundo o regulamento dos Correios, e Moravia zelava para que não houvesse infracções. Não dava ouvidos a quem dizia que, em caso de aterragem forçada, a pistola seria quase inútil; em terreno selvagem, um homem precisava era de uma espingarda.

‑ Vocês usam pistola porque os Correios assim o determinam. Não quero que os inspectores, quando andarem por aí a rondar, descubram que vocês não os levam a sério.

Aparentemente, todos os transportadores de correio na América agiam do mesmo modo, já que por todo o lado a pistola omnipresente se tornara o distintivo dos pilotos do correio aéreo. A maioria achava que era ridículo andar com uma arma nos tempos que corriam.

Os pilotos de Moravia também tinham sentimentos contraditórios relativamente aos outros extras que ele insistia em incluir no equipamento. Para além de uma faca, ordenava que levassem um alicate, uma chave inglesa e uma chave de parafusos.

‑ E se eu fosse a vocês ‑ dizia num tom que não deixava alternativa ‑, levava também comprimidos para as dores. Houve uma vez que eu teria dado a vida para ter apenas um.

Naquele momento, por qualquer razão, a pistola virara‑se e espetava‑se nas costelas do piloto. Pensou que bem gostaria de a arremessar fora. "Será que vou ser assaltado? Aqui em cima?"

Quando já estava de novo acomodado, tirou uma das luvas e meteu a mão no bolso inferior do seu urso. Encontrou a faca e a tablete de chocolate que levava sempre para o caso de necessitar de energias renovadas. Depois, lembrou‑se de que não era naquele bolso. A pastilha elástica estava no do outro lado, juntamente com as coisas que, no seu entender, poderiam ser úteis numa aterragem forçada: uma caixa de fósforos, que, embora não fumasse, trazia sempre; um pequeno fraco de iodo; um rolo de gaze; adesivo e um frasco de analgésicos.

Cada aviador tinha a sua opinião sobre o que seria útil em caso de aterragem forçada. Alguns levavam uma garrafa de whiskey, mas este piloto preferia reduzir ao mínimo o seu equipamento de emergência. Utilizava o espaço livre no bolso para meter um pequeno bloco‑notas de cabedal, que actualizava cuidadosamente. Continha diagramas dos campos e pastagens mais prováveis para aterragens de emergência ao longo da rota e anotações meticulosas da altitude, extensão e características do terreno.

Também anotara os acidentes circundantes: grupos de árvores, cabos eléctricos, depósitos de água. Tinha ainda algures no bloco uma lista dos poucos aeroportos alcançáveis dentro dos limites da rota do Stearman, com setas indicando as melhores aproximações em condições de mau tempo. Voar ao longo do canyon até sobrevoar o lago que tem uma represa de castores. Continuar durante um minuto e dez segundos. Voltar completamente à esquerda e regressar à entrada do canyon. Voltar à direita e continuar a noventa graus durante oitenta segundos. Bom prado para aterragem. Uns dezasseis quilómetros a pé até a um telefone em Brogan.

O bloco‑notas continha muitas outras indicações e esta compilação granjeara‑lhe bastante respeito entre os colegas. Sabiam o trabalho que representava e desculpavam‑se dizendo que tinham todas aquelas informações na cabeça. Alguns tinham começado a anotar informações, mas, de uma maneira geral, eram incompletas, e o piloto julgava saber porquê. Os outros ou eram casados ou tinham muitos amigos de ambos os sexos. Não compreendiam a necessidade de alguém, que raramente tinha companhia, de manter as noites ocupadas.

Tirou o pacote de pastilha elástica do bolso e esticou‑se outra vez no meio da deslocação de ar. Bateu no capacete da sua passageira. Ela virou‑se e sorriu quando viu a pastilha elástica. Tirou uma e agradeceu com os lábios, e o piloto admirou‑se com o prazer que sentiu num acto tão simples. Meteu uma pastilha na boca e, enquanto mastigava, pensou que a sua vida a bordo era muito boa. Aqui, nas alturas, tinha uma sensação de bem‑estar que não experimentava em mais nenhum lugar.

Depois do acidente e das terríveis chamas, era perseguido por uma sensação pérfida de fracasso. O estudante morrera no acidente e não havia perdão. Desde cedo que o estudante revelara pouco talento natural para voar. Deveria ter sido eliminado, e não encorajado por ser um jovem simpático e ambicioso. Serviu de lição ao instrutor. Em pilotagem, a simpatia pode ser fatal.

Ainda hoje a dúvida dominava o piloto. Quantas vezes recordara todos os pormenores do acidente e voltava sempre à mesma terrível resposta? Ele deveria ter de algum modo evitado a tragédia. A sua culpa não desaparecia só porque um comité de homens, que não testemunharam a calamidade, o declarou posteriormente isento de culpa. O vento soprava forte e o comandante da base talvez devesse ter cancelado todos os treinos, mas quem é que de facto era responsável pelo único avião que caíra?

O avião fora apanhado por uma rajada de vento precisamente na altura em que o estudante se preparava para a quinta aterragem do dia. A extremidade de uma asa bateu no solo, o avião capotou e desfez‑se em pedaços. Depois, só restaram as chamas, pó na sua boca e a visão confusa de uniformes castanhos a correr.

O piloto foi afectado de uma forma tão singular que, passados quase oito anos, ainda se sentia à vontade no ar, mas uma vez em terra parecia um falhado nato.

Esta manhã decidiu desviar‑se da habitual rota norte para Boise, seguindo um pouco mais a oeste. Havia estradas que serviam de referências de navegação ao longo do percurso, tanto a leste como a oeste. A leste, as montanhas eram mais altas. Logo que passou sobre a mina de Tuscarora, o piloto viu todo o horizonte coberto de nuvens densas e percebeu que as possibilidades de as atravessar eram poucas. As montanhas de Santa Rosa, situadas a oeste do planalto, apareciam de vez em quando por entre as nuvens; talvez ele conseguisse passar pelo desfiladeiro a norte de Winnemucca.

Mesmo à sua frente, por cima de um planalto bastante elevado que cobria a ligação das fronteiras de Oregon‑Idaho‑Nevada, o céu estava relativamente limpo e a distância entre a terra e as nuvens era bastante razoável. O piloto estava certo de conseguir evitar as rajadas de neve dispersas apenas com pequenos desvios. Por isso, prosseguiu sobrevoando dois ranchos, que reconheceu. Mais longe, distinguiu uma fenda escura no planalto que sabia ter sido aberta pelo rio Owyhee. Se se mantivesse nesta rota, ia passar sobre o Little Owyhee e depois podia iniciar a descida junto a Rome, no Oregon. Logo que passasse Rome, podia seguir uma estrada em direcção a norte e por fim ir dar perto de Boise. O resto seria fácil.

Balanceou suavemente as asas do Stearman. Heather olhou para ele com os seus olhos azul‑esverdeados, perguntando se algo se passava. Ele apontou com a mão direita para uma clareira lá em baixo. Ela espreitou pelo lado do cockpit e viu a manada de antílopes que ele lhe apontara. O seu olhar deliciado compensou‑o infinitamente. "Porque é que me sinto tão ansioso por lhe agradar?", pensou. "Se eu pudesse estalar os dedos e chamar uma manada de elefantes, fá‑lo‑ia. Faria qualquer coisa para ver de novo o calor daquele rosto."

De repente, viu‑se reflectido no vidro que cobria o altímetro. Desviou de imediato o olhar e ficou imóvel durante alguns minutos, escutando o barulho regular do motor. Em breve, o dever interrompeu‑lhe a meditação. Já passara uma hora desde que levantara voo e agora o terreno encontrava‑se coberto por uma espuma de nuvens baixas. Ele vira‑as aglomerarem‑se gradualmente, formando um manto de nuvens imbricado em farrapos de neve.

Várias alternativas se punham ao piloto. Desviar‑se das rajadas de neve em direcção a noroeste, uns cinco quilómetros, depois regressar para nordeste, pelo lado de trás, por igual período de tempo. A seguir, voltar de novo à sua rota. Aquele grande turbilhão, antecedente das tempestades de neve, poderia ser evitado por um outro desvio para oeste, conquanto se mantivesse isolado. Seria preocupante se ele se juntasse a muitos dos seus vizinhos que agora se multiplicavam no horizonte. Se se transformassem numa parede espessa de nuvens, teria de pensar em regressar a Elko.

Moravia não ia gostar. O piloto pensou, para sua própria surpresa, que a opinião do seu superior não era de importância crucial. A sua passageira ficaria decepcionada com o regresso? Então! Desde quando é que uma miúda influía na rota de um avião?

Observava as rajadas que espalhavam um manto branco de neve sobre o planalto quando começou a sentir o odor intenso de óleo sobreaquecido. Inalou o ar. Seria imaginação sua? Tentou sorrir, lembrando‑se de que os motores têm o hábito de entrar em "turbulência automática" sob condições hostis. Pensou que esta devia ser a primeira anedota da aeronáutica. Contudo... procurou vestígios de óleo na fuselagem e na capota do motor. Nada. Olhou para o indicador da pressão de óleo. Estava só um bocadinho abaixo do normal. Talvez o sistema de arrefecimento do óleo estivesse bloqueado.

Esperou, inquieto. Olhou para trás, por cima da cauda do Stearman. Havia algumas nevascas bastante dispersas e até com uns raios de sol a penetrarem no céu nublado. Seria fácil voltar a Elko. Probosky verificaria de novo o motor. Talvez uma válvula tivesse colado, ou o carburador necessitasse de algum ajuste, ou fosse água no combustível ou... qualquer coisa.

E se Probosky não encontrasse nada de errado? Daria logo a sua opinião, como só ele sabia fazer.

‑ Estiveste a sonhar lá em cima? Este motor está a trabalhar como uma máquina de costura.

Olhou para o acelerador. Tirou a luva direita para sentir melhor qualquer vibração anormal. Sim, notava‑se alguma, mas não fora sempre assim? Então, porque é que estava tão convencido que havia mais vibração do que o normal? Moravia queria no cockpit pessoas que pensassem objectivamente e não que fantasiassem.

Observou o painel de instrumentos. A pressão do óleo parecia a mesma, mas o vidro que cobria o painel oscilava tanto que multiplicava os reflexos do seu capacete. Pôs os óculos de protecção para cima e estudou os instrumentos um por um. Esticou‑se e fez pressão com a mão, tentando estabilizar o painel. Não havia dúvida. O ruído do motor mantinha‑se estável, mas a vibração aumentava. Sentiu um novelo no estômago. Todo o seu corpo ficou hirto. Logo aqui! Um dos piores sítios.

Olhou para baixo e começou a dar uma volta. Reduziu ligeiramente o acelerador. Talvez com o motor em menor rotação conseguisse regressar a Elko ou a qualquer outro sítio, porque lá em baixo só se via um imenso deserto.

A rapariga, surpreendida com a pronunciada inclinação do Stearman, voltou‑se para ele.

‑ Não te preocupes ‑ gritou, mas a sua voz foi abafada pelo ruído da corrente de ar e do motor.

De repente, o Stearman estremeceu fortemente como se estivesse a lutar pela vida. O piloto viu o painel de instrumentos desfazer‑se e uma nuvem de fumo preto envolveu a fuselagem.

Cortou de imediato o combustível e desligou os magnetos. Pisou a fundo no pedal esquerdo, inclinou a asa esquerda e apontou o nariz para baixo. O barulho da deslocação de ar abrandou rapidamente até ficar apenas o zumbido baixo dos pendurais das asas. A seguir esta rota sobre o planalto. De nada serviria queixar‑se ao chefe principal dos Correios, nem mesmo a um homem chamado Moravia. Desviou os olhos dela, numa última tentativa de encontrar um outro caminho para descer.

De súbito, gritou:

‑ Baixa‑te o máximo que puderes entre os sacos do correio!

Sorriu como se entendesse exactamente o que se passava e de repente já só se lhe via o topo do seu capacete.

‑ Cuida dela, meu Deus! ‑ murmurou, enquanto o Stearman mergulhava nas nuvens.

Quando entrou na abertura e começou a descida final, todo o avião tremia no estranho ângulo em que era obrigado a voar. Lembrou‑se de repente da objecção habitual dos pilotos de correio em levarem passageiros. Sozinho e em situação problemática, um piloto tem apenas que soltar o pára‑quedas e deixar‑se descer suavemente até terra. Ficou satisfeito por se ter esquecido de que trazia um pára‑quedas.

Passados dois minutos, via‑se claramente a encosta da montanha. A vibração dos pendurais das asas parecia aumentar à medida que as rochas, árvores e arbustos se aproximavam. Havia uma clareira. Não tinha comprimento suficiente para uma aterragem normal, mas era de tentar. Havia dois pinheiros no caminho. Teria de se esgueirar por entre eles. Bater‑lhes com as asas talvez abrandasse o Stearman o suficiente para a fuselagem conseguir sobreviver.

Aguentou a derrapagem até ver as cascatas de xisto argiloso que cobriam as rochas. Nessa altura, elevou o nariz do Stearman, pisou a fundo o pedal da direita para sair da derrapagem e esperou. Puxou o manche o mais para trás possível e apoiou uma das mãos na fuselagem superior da carlinga. Os cabos das asas deram um último silvo e depois ouviu‑se apenas o som dissonante do metal contra a pedra e o som agudo de madeira a partir. O piloto fechou os olhos e teve de imediato uma sensação de queda.

 

                         CAPÍTULO DOIS

Moravia puxava umas grandes fumaças do seu caporal enquanto revia o relatório de voos do mês anterior. O mês de Novembro apresentava invariavelmente problemas com o tempo, mas o relatório não era mau. Iria agradar aos Correios e à sua companhia, bem como aos accionistas, que ficariam satisfeitos. Claro que os lucros não eram grandes. Ninguém que fosse realista esperava grande lucro do negócio do transporte aéreo. "Pelo menos", pensou Moravia, "de momento não temos prejuízos." Não havia muitas companhias do sector que pudessem dizer o mesmo.

"Um negócio precário", era assim que Moravia avisava os investidores que o abordavam com o sonho de arrancar com mais uma indústria, que em breve transportaria enormes quantidades de carga. Na opinião de alguns, os transportadores aéreos em breve começariam mesmo a transportar produtos como carvão e minério de ferro.

"Belo", pensava Moravia. "O nosso problema actual é conseguir uma carga de correio suficiente para compensar os custos."

Moravia, tal como outros operadores de correio aéreo por contrato, via‑se na necessidade de transportar algumas listas telefónicas de um lado para o outro. Os Correios pagavam ao peso. Havia que considerar o pagamento dos pilotos e dos mecânicos e não esquecer o seu modesto salário.

O espírito de Moravia começou a derivar para assuntos mais pessoais. Qual era a sua posição, depois de dez anos no ramo da aeronáutica. Tinha só uma perna, claro, mas nunca lhe faltara uma refeição. Sempre tivera o conforto de um tecto e da sua divina Marsha. à parte algumas preocupações inevitáveis, não era mau de todo.

Deu por si a pensar no Catorze, que era, em alguns aspectos, um homem de invejar, embora o próprio discordasse disso se lhe perguntassem. Vivia sozinho, aparentemente era um homem sem preocupações. Quando acabava o trabalho, podia fazer o que lhe apetecesse ‑ ir ao cinema, a um bar ou simplesmente voltar para o seu quarto e ler.

Moravia resmungou. Trocaria de lugar com ele? A resposta era sim e não. Está certo, o Catorze era livre; deitava o trabalho para trás das costas quando ia para casa. Mas que é que o esperava quando entrava naquele quarto, nas traseiras de um armazém de material informático? Moravia fora lá uma vez, quando o Catorze tivera um grande ataque de bronquite. Levara‑lhe os jornais e um exemplar da revista de aeronáutica que trazia um artigo sobre o novo plurimotor de três motores Ford.

‑ Um dia ‑ dissera ao Catorze ‑, vamos tê‑los na companhia, e pensei que gostaria de ter a oportunidade de aprender qualquer coisa sobre eles.

Mas o Catorze voltara a cabeça para a parede, mantendo o lado bom da cara voltado para Moravia, e dissera que esperava que ainda viesse longe o tempo em que o transporte de passageiros fosse regular. Moravia teve a certeza de que ele estava a pensar no seu rosto e em como lhe seria penoso exibi‑lo perante qualquer grupo de pessoas. Recordou que, aqui se aceitava o aspecto do Catorze, mas que era um problema quando enfrentava estranhos. Os contactos mais amigáveis eram desencorajados à vista do lado acidentado da sua boca, que aparecia permanentemente arrepanhada.

Moravia verificou que o homem vivia quase completamente isolado. O seu quarto era tão nu que poderia ter sido a cela de um monge. A cama fazia lembrar a tarimba que Moravia tivera em França. Havia uma secretária de madeira e um fato castanho‑pardo pendia de um varão que ia do lavatório até à porta. Havia também um par de calças largas e o habitual blusão de cabedal coçado que quase todos os pilotos usavam como uma segunda pele. Um telefone em cima da secretária e nada mais. O telefone era imposição da companhia, e Moravia interrogou‑se se alguma vez tocaria sem ser com as suas próprias chamadas.

Uma das poucas pistas para Moravia descobrir a personalidade dele fora‑lhe dada pela bibliotecária do bairro.

‑ Trata os livros como se fossem seres vivos ‑ relatara ela. ‑ Lê de tudo, desde Henry James a Maugham.

Agora, olhando para o céu pesado pela janela do seu escritório, sabia que não trocaria o seu lugar com o Catorze. Não podia haver grande prazer em ser‑se livre quando se limita a própria liberdade ‑ ou os acontecimentos destruíram todas as esperanças de amor de uma mulher. De facto, nada mais restava ao Catorze senão voltar o rosto, colocando‑se de modo que o mundo nunca encarasse a sua infelicidade. Um homem pode bem passar sem uma perna, aliás o seu casamento era prova disso. Mas até a sua mulher, Marsha, inexcedível em tolerância e simpatia, tinha dificuldade em não se desviar quando encontrava o Catorze.

Moravia desviou o pensamento do piloto e dirigiu‑se ao telefone. Esperava encontrar o rancheiro que lhe daria as últimas notícias sobre o tempo a oeste de Boise. O telefone tocou durante muito tempo, mas ninguém atendeu.

O Piloto lambeu os lábios e sentiu sabor a óleo. Abriu os olhos e viu o contorno familiar do cockpit, mas com um aspecto completamente diferente. O pára‑brisas estava opaco em vez de transparente e por instantes analisou o desenho em forma de teia de aranha das fendas do vidro. Então, percebeu o que se passava. Encontrava‑se deitado com o rosto assente num monte de xisto. Toda a fuselagem estava de lado e ele ainda estava amarrado ao lugar.

Os seus pensamentos eram inconstantes. As faixas do pára‑quedas picavam‑lhe as pernas, mas a dor era insignificante comparada com a constatação que o lado mau do seu rosto, aquele que era a sua maldição há muito tempo, estava de novo esmagado contra o planeta Terra. Sorriu mentalmente. "Que aterragem, velho desportista. Porque não tentas o outro lado da próxima vez?" Então, repentinamente, lembrou‑se de que não estava sozinho.

Ficou paralisado com o arrepio que lhe percorreu o corpo. Abriu rapidamente o cinto de segurança. Com os dedos, encontrou o fecho do pára‑quedas. Esgueirou‑se para fora do cockpit e ficou de joelhos. Esperou uns momentos, tentando convencer‑se de que o que via não era real. As asas amassadas do Stearman estavam abraçadas a duas árvores a mais de cinquenta metros de distância. No meio, encontravam‑se uma roda e um pneu, um bocado do hélice e dois sacos de correio. Um dos sacos rompera‑se e o seu conteúdo formava uma linha até à cauda do Stearman, que, à excepção do leme amassado e do estabilizador horizontal de um dos lados, estava intacta. A fuselagem entre o cockpit e a cauda estava dobrada e enrugada, mas sem grandes estragos.

O piloto susteve a respiração quando olhou para o receptáculo do correio, que normalmente estava protegido por baixo da asa superior. Mal conseguia reconhecer o que via. O bojo estava vergado para trás e jazia quase espalmado contra alguns sacos de correio. Reparou que alguns dos sacos estavam manchados de óleo e pensou que os Correios não iam gostar. Ele dir‑lhes‑ia: "Bem, que é que se pode esperar com um motor de quase quinhentos quilos em cimadeles?"

O motor encontrava‑se desmontado, virado de lado num ângulo incrível. Fora isso, pensou, tinha bom aspecto. Bastava limpar um pouco de óleo e poderia ser vendido quase como novo ‑ se não fosse a má folha de serviço.

Um som que o deixou confuso perfurou‑lhe os seus devaneios. A rapariga! Pelo gemido fraco, percebeu que ela se encontrava perto dele, soterrada debaixo do bojo, algures por baixo dos sacos e do motor.

Levantou‑se, cambaleou um pouco e depois baixou‑se junto ao motor. Ouviu a sua própria voz como se fosse um ventríloquo chamando de muito longe.

‑ Meu Deus, faz com que ela não esteja ferida! Dou a minha vida por isso. ‑ Depois, dirigiu‑se à sua passageira: ‑ Não te preocupes, rapariga. Vou tirar‑te daí num abrir e fechar de olhos. É só preciso teres paciência. ‑ Ficou furioso por não conseguir lembrar‑se do nome dela.

Como resposta, obteve apenas um grito sumido, tão baixo e débil que parecia um pássaro ferido.

Puxando um saco do correio com toda a força, não conseguiu tirá‑lo de baixo do motor. Viu o pé dela por baixo de outro saco e pensou: "Meu Deus, por favor."

‑ Ouve, rapariga. ‑ Como é que ela se chamava? ‑ Tenho de levantar o motor. É muito pesado e tenho de encontrar qualquer coisa para fazer de alavanca. Por favor, espera um bocadinho, sim?

Afastou‑se dos destroços aos tropeções e escorregando no xisto a tentar lembrar‑se do nome da garota. Seguiu por uma trincheira direita e pouco funda que verificou ter sido cavada pela fuselagem ao cair. Decididamente, fizera um bom trabalho ao bater nas árvores de tal modo que as asas foram arrancadas ao mesmo tempo. Evitara uma derrapagem, que àquela velocidade poderia ter morto os dois. Teriam embatido de lado na montanha. Assim, apenas tinham raspado. A trincheira mais parecia ter sido feita com uma régua. O Stearman desacelerara relativamente devagar, e naquela terrível confusão qualquer aterragem a que se pudesse sobreviver era preferível a um embate descontrolado. Assim se dizia. E bem. A rapariga chamava‑se Heather.

Encontrou um ramo partido pendente de uma das árvores e puxou‑o até se soltar. Os flocos suaves de neve que o acompanharam bateram‑lhe no rosto e refrescaram‑no. Ao arrastar o ramo pelo xisto, evitou olhar para os destroços. A bem da verdade, pensou, infeliz, ele não procedera correctamente. Se se tivesse mantido na rota habitual, em vez de se afastar para oeste, teria terreno muito melhor para uma aterragem de emergência. Os outros pilotos de Moravia teriam decerto mantido a rota regular, ou então voltariam para trás, aterravam e explicavam a situação. Talvez até o motor tivesse dado para regressar a Elko. Agora, Moravia tinha menos um avião.

Quando chegou perto da fuselagem, parou, tentando recuperar de uma tontura. Congratulou‑se por ter feito bem uma coisa. Ter dito à rapariga para se meter por baixo dos sacos do correio, o que provavelmente lhe tinha salvo a vida. Provavelmente. Ele havia de lhe sublinhar isso, porque, para conseguir explicar àqueles olhos tudo o que se passara, iria precisar de muito crédito. Deus Todo‑Poderoso, os pais dela não saberiam que voar não é muito seguro e que uma coisa destas podia acontecer? "Meu Deus, faz com que ela não esteja ferida!"

Combateu as vertigens e entalou a extremidade do ramo entre o xisto e o cilindro inferior do motor. Aplicou toda a sua força e depois descansou tentando pôr os pensamentos em ordem. Era obviamente impossível. Quatro homens podiam conseguir arredar o motor, mas não um piloto cansado com a ajuda de um ramo de pinheiro. "Quem é que julgas que és? Sansão?"

Fez força de novo sobre o ramo e viu o motor mover‑se ligeiramente. Ou era só imaginação? Deu a volta até à parte da frente da fuselagem, onde o motor estaria em condições normais, e disse a si próprio para usar o cérebro, e não a força.

Ajoelhou‑se e começou a escavar o xisto. Se trabalhasse bem, talvez conseguisse escavar o suficiente por baixo dos destroços para retirar os sacos do correio. à medida que escavava, o xisto fazia um barulho estridente ao deslizar pela encosta. "Aqui estou eu", pensou, "esgravatando na montanha como um animal. Devia dizer‑se às pessoas que afirmam que gostam de voar que um dia, se forem estúpidas e tiverem talento para cometer um erro na altura certa, acabam a tentar escavar um buraco na encosta de uma montanha."

Removeu apenas alguns centímetros de xisto e parou. Chegara à rocha dura. Quando o barulho arrepiante do xisto parou algures lá ao fundo, só se ouvia o seu respirar ofegante.

‑ Heather? ‑ chamou suavemente. ‑ Ouves‑me?

O silêncio impressionou‑o. Não, não. Ela estava bem. Tinha que estar. Pôs‑se em pé e dirigiu‑se de mansinho até ao ramo de árvore, atento ao mínimo som vindo do receptáculo do correio. Ocorreu‑lhe um pensamento louco. Talvez ela própria conseguisse escavar para sair, empurrar os sacos do correio. Deveria dizer‑lhe, como se acreditasse nessa possibilidade: "Ouve, Heather. Preciso da tua colaboração para te tirar daí, porque temos muito a fazer antes de escurecer. Temos de construir qualquer coisa que sirva de abrigo para esperarmos que o tempo melhore. Depois, podemos descer a montanha".

Ficou a olhar para o motor como se ele estivesse vivo e demorou um certo tempo a perceber que o leve tamborilar que ouvira eram os flocos de neve a baterem na fuselagem. Tirou o cinto com a archa. Tinha‑se tomado incrivelmente pesada e esteve quase a arremessá‑la fora, mas pensou que talvez lhe viesse a ser útil. Se nevasse bastante e tivessem que ficar aqui um dia ou dois, talvez conseguisse matar algum animal. Heather teria fome, como acontece com todos os miúdos.

Ao colocar a arma em cima da fuselagem, ouviu um gemido fraco. Era quase um som inumano e pensou que, se o ouvisse só mais uma vez que fosse, ficaria louco.

Contudo, detestava aquele silêncio absoluto e esperava impacientemente que ele terminasse. E quando ouviu outro gemido, vindo da fuselagem, esqueceu de imediato o ramo e o seu próprio equilíbrio instável sobre o xisto. Tomado de fúria, atirou‑se ao motor. Segurou‑o pelos dois cilindros e, comprimindo o ombro contra o cárter, empurrou e abanou até sentir as pulsações nas têmporas e a sua vista ficar nublada.

Não fazia ideia de há quanto tempo é que se debatia com aquela massa de metal monstruosa, quando de repente percebeu que ela mudara de posição. Lutou ainda com mais força, puxando para cima e empunhando, respirando penosamente o ar carregado de óleo. Estava empenhado na acção com todos os músculos e fibras do seu corpo. Por fim, ouviu um som metálico e percebeu que alguma coisa cedera. Empurrou com toda a força que lhe restava e o motor saiu de cima dos sacos de correio. Caiu sobre ele, ainda incrédulo na sua vitória, ansioso por apanhar ar.

Momentos depois, levantou os sacos do correio e viu a sua passageira. Estava deitada de costas, estranhamente torcida, mas tinha os olhos abertos. Ajoelhou‑se junto dela e limpou‑lhe os flocos de neve da testa.

‑ Agora já estás bem?

Esperou que ela começasse a chorar, mas não. Em vez disso, fixou nele os seus olhos inseguros e disse:

‑ Não me parece.

‑ Consegues levantar‑te com a minha ajuda?

‑ Não sei. Se calhar... As minhas costas.

Enfiou‑lhe uma das mãos por detrás do pescoço e a outra por baixo das pernas. Se ela se conseguisse pôr em pé. Mal lhe levantara as pernas, quando ela gritou de dor.

Imediatamente a sul do deserto de Black Rock, perto do lago de Winnemucca, no Nevada, o centro de baixas pressões adensava‑se. Movia‑se lentamente para nordeste, atravessando as montanhas nuas e vales desérticos, onde muito poucos rancheiros conseguiam viver. O mau tempo fazia‑se anunciar por rajadas de neve que caíam em colunas branco‑acinzentadas.

Depois das rajadas de neve, vinham os ventos e os nevões muito fortes, que em breve envolviam os picos das montanhas e transformavam os vales e os campos numa paisagem quase irreconhecível. As ravinas eram as primeiras a desaparecer, seguidas dos afloramentos e finalmente dos pequenos rios. Pouco depois, apenas se via uma vastidão branca que cobria a natureza adormecida.

Moravia encontrava‑se a uns seiscentos quilómetros a norte, em Pasco, e a especulação inquietava o seu espírito organizado. Detestava desconhecer o que achava que devia saber. Chocava‑o que nos tempos que corriam, em Dezembro de 1928, nos Estados Unidos da América, país supostamente civilizado, ele estivesse limitado por tanta ignorância. Os dias da expedição de Lewis e Clark pertenciam ao passado, e os poucos índios que habitavam as terras sobrevoadas pelos seus aviões eram pacíficos. Havia auto‑estradas e linhas de caminho de ferro, contudo ele sentia‑se como um major de cavalaria preso a um forte de madeira. Os seus companheiros de armas podiam estar mais bem instruídos com algumas tropas a galope para lhe trazerem informações.

Há uma hora que Moravia telefonava repetidamente para o seu rancheiro favorito sem sucesso. Era um toque desencorajante, repetitivo e monótono, que parecia escarnecer da sua ansiedade crescente. O Catorze só devia aterrar em Boise daí a uma hora, por aí não havia preocupações, mas o número Oito, com o correio para sul, devia levantar dentro de vinte minutos. O Oito estava à espera da chegada do camião com o correio e já vestira o seu urso.

A questão era: o Oito devia levantar? Se tivesse que voltar para trás com a carga, o chefe dos Correios ficaria muito aborrecido. Se se verificassem muitos atrasos durante o ano, havia fortes possibilidades de cancelamento do contrato, e isso seria o fIm de Moravia e de toda a linha. A alternativa era enviar o correio pelo comboio, o que era uma confissão de incompetência embaraçante que deixava os caminhos de ferro a rir e os burocratas a achar que era melhor confiarem no cavalo de ferro.

Com bom tempo, o avião da manhã partia com o correio às 11 horas e não havia que enganar. O problema era que o comboio, quando andava a horas, partia às 11 e 40. Com o tempo incerto, se Moravia demorava a decidir, o correio podia perder o comboio. O resultado seria uma gritaria imediata com acusações sobre todos os voos. O Chefe dos Correios ficaria furioso com o atraso de um dia e descarregaria a sua raiva primeiro contra Moravia e depois contra os caminhos de ferro. As pessoas dos caminhos de ferro manteriam a sua atitude habitual de distanciamento relativamente a tudo o que tivesse a ver com os transportes aéreos, enquanto simultaneamente censuravam os Correios por a carga chegar tão em cima da hora de partida do seu precioso xu‑xu. "Um problema enorme", pensou Moravia, acendendo outro caporal.

O fumo do tabaco áspero provocou‑lhe um ataque de tosse, que no entanto o incomodava menos que o seu actual dilema agora muito recorrente. As condições climatéricas entre Pasco e Elko eram as verdadeiras culpadas. O rancheiro que costumava dar notícias do tempo na sua zona devia ter ido para a Florida, mas ele necessitava mesmo de saber o estado do tempo ao longo de todo o percurso. Quando o Catorze regressasse, faria um relatório completo, mas nessa altura as suas informações já teriam passado à história. Podia ter estado bom para ele no Sul, mas na altura em que o Oito alcançasse as mesmas regiões podia estar péssimo. A solução, obviamente, era o contacto directo terra‑ar. Moravia soubera que havia algumas instalações experimentais no Leste, mas era tão raro conseguir‑se uma comunicação nos dois sentidos que não valia os custos. Talvez um dia.

Talvez um dia as portas do paraíso se abrissem e aparecesse um carola que desse mais importância ao desenvolvimento das condições de voo que ao lucro imediato. O mesmo carola, inteligente e imaginativo, teria estado na Europa, onde por todo o lado os aviões transportavam o correio, e entre Londres, Paris, Berlim e Moscovo transportavam cerca de catorze passageiros a quem serviam um almoço em toalhas brancas de linho, com vinho e todos os requintes. Ainda estava para aparecer uma companhia americana que pensasse nisso a sério.

Moravia viu, pela janela do seu escritório, o camião do correio chegar. Eram precisamente 10 e 40. A hora de decisão chegara e o facto de o camião trazer uma carga excepcionalmente pesada não facilitava a decisão. "Dinheiro!", pensou Moravia. Uma carga que dava bom dinheiro era sempre a mais difícil de desviar.

Moravia já esperava que lhe batessem à porta. Era o número Oito, oriundo da Carolina, gentil e bem‑falante, de nome Manigault; parecia perdido no meio do seu enorme urso. Era um perfeito cavalheiro, atributo que Moravia apreciava. Gostaria de saber que decisão tomara Moravia, embora ambos soubessem que a decisão não era só dele. Se Manigault não quisesse descolar e tivesse boas razões, a sua palavra era a última. Era um código implícito, sabendo‑se que não havia penalidades nem recriminações contra o piloto relutante. Este código não se aplicava a quem arranjasse repetidas vezes razões para não voar. Moravia sabia bem que havia alguns capazes de evocar o tempo como pretexto para poderem ir para a cama com a última conquista. Estava convicto de nunca ter sido levado por nenhum desses velhacos.

Manigault perguntou:

‑ Pego no trabalho hoje?

‑ É consigo. Em Elko, o tempo está bom, uns duzentos quilómetros com rajadas de neve. Em Boise, está céu limpo e há visibilidade entre os nevões, mas não posso saber como estará pelo caminho.

Manigault inclinou‑se um pouco para olhar melhor pela janela. Então, como se conseguisse ver para além do horizonte, disse:

‑ Parece‑me bom. Desviar‑me‑ei um pouco se for necessário.

‑ Veja se vê o Catorze. Deve cruzar‑se com ele.

Manigault enfiou o capacete e os óculos de protecção. Enquanto abotoava o urso, disse:

‑ às vezes, gostava de estar de novo na Carolina. Lá, de manhã, sabe‑se perfeitamente como vai estar o resto do dia. Mas nesta região...

Manigault não chegou a acabar a frase e Moravia sabia porquê. Manigault e todos os outros sabiam que Moravia não suportava lamentações. Para os homens da raça dos seus pilotos, voar era quase tão necessário como respirar. Eles não sabiam o que significava perder esse privilégio, como acontecera a Moravia, mas se resmungavam com qualquer coisa, sabiam que os esperava uma séria repreensão. Lembrava‑lhes que voar não é para bebés. Também lhes recordava que mais de quarenta pilotos tinham morrido a transportar correio e vinte e três haviam ficado seriamente feridos desde que o serviço começara. Mas se preferiam ser talhantes, padeiros ou fabricantes de velas, tinha muito prazer em lhes mostrar a porta e lhes oferecer como recordação um cabide para pendurarem o capacete e os óculos de protecção. Instava os seus homens a conhecerem os cursos de água, montanhas e clareiras ao longo dos seus percursos, em vez de desperdiçarem energia com queixumes. Esses conhecimentos poderiam vir a revelar‑se úteis quando os mapas que usavam se revelavam deficientes em informação.

Este era o primeiro ano em que operadores privados estavam no transporte aéreo de correio, e agora que o trabalho já não estava na esfera do Governo, Moravia tencionava provar que se podia melhorar o índice de segurança.

‑ Se me der as suas pernas, então dou ouvidos às suas queixas ‑ gostava ele de dizer. ‑ Mas se se matar por negligência, dificilmente terá a minha consideração. Pode estar certo de que a minha carta para os seus familiares será verdadeira e não elogiosa. Não me obrigue a dizer que estava tão preocupado em encontrar defeitos em tudo que não conseguiu aperceber‑se dos seus próprios defeitos. Por isso, o burro embateu numa nuvem cercada de rochas.

 

                       CAPÍTULO TRÊS

Era quase noite e o piloto ainda não acabara tudo o que achava que tinha de fazer. Nos seus ouvidos, ainda ecoava o som terrível dos gritos de Heather, e resolvera não a tirar dos destroços até chegarem socorros. Desde que se mantivesse quieta, parecia suficientemente confortável, mas passava‑se algo de muito grave com as suas costas, e o mais leve movimento era uma tortura óbvia.

Decidira construir o abrigo à volta de Heather e dispusera os sacos de correio em jeito de fundação. Embora cheirassem a óleo e a gasolina, serviam de barreira contra as cortantes rajadas de neve. Durante toda a tarde, a neve aumentara e nesta altura já lhe dava pelos joelhos.

Arrancara grandes bocados das asas partidas do Stearman, fixara‑lhes as pontas com xisto e pedras e estendera‑as sobre a fuselagem retorcida. Abrira o pára‑quedas e cobrira com ele a cauda e o motor. Daí resultou uma tenda que até podia ser considerada confortável noutras circunstâncias. Era quase noite quando analisou o seu trabalho. Por momentos, quando olhou para aquela estrutura tão frágil, quase desanimou. Qualquer vento moderado levaria pelos ares aquela coisa louca e admirava‑se de ter conseguido tão pouco ao fim de tanto trabalho.

Convencera‑se a si próprio de que a altitude era decerto a causa do seu cansaço. Mas agora pensava ter descoberto a verdade. A exaustão, aquela vontade de se deitar e dormir, era fruto dos seus medos. Agora que acabara o trabalho físico, encarou a verdadeira situação. E o que se lhe deparou era desanimador.

Estava de pé no meio da neve, que se amontoava rapidamente. Uma montanha do estado do Nevada completamente coberta de neve, ou seria que não estava no Nevada? Talvez tivessem voado até mais longe do que pensava e atravessado a fronteira do estado. Sabia que se encontrava aproximadamente a uma hora de Elko, uma informação que agora não lhe servia de muito.

Era um estranho perdido numa terra hostil. Como companhia, tinha uma garota indefesa, cujos olhos lhe diziam que punha o seu futuro nas mãos dele. Não havia maneira de fugir àqueles olhos, que diziam: "Sei que estamos em grandes dificuldades, mas hás‑de encontrar uma solução."

Pelo menos, pensou, a esta hora Moravia devia ter a certeza de que ele desaparecera e já teria organizado uma busca. Mas quem havia de vir procurar aqui, fora da rota habitual?

Olhou para as árvores que cobriam a encosta da montanha e apercebeu‑se de que elas o tornariam quase invisível do céu, a menos que o piloto voasse exactamente sobre o lugar e olhasse para baixo no momento certo. Até os bocados do avião seriam difíceis de ver, espalhados sobre a neve como estavam.

O piloto fez uma pausa para avaliar os seus recursos. Havia uma tablete de chocolate, que ele daria a Heather aos bocados. No escuro, ela não ia perceber que ele não comia. Apaziguaria o seu apetite com uma pastilha elástica e ainda restavam quatro no pacote. Havia uma caixa de fósforos cheia, mas ainda não apanhara lenha. Esperava fazer explorações no dia seguinte.

Dera a Heather um dos comprimidos para as dores e ainda restavam nove. Gastara metade do frasco de iodo nos golpes do rosto da pequenita e no seu braço esquerdo, que tinha um corte medonho. Durante o impacte, a manga do seu urso tinha subido e o xisto cortara‑lhe a carne. A ferida já não sangrava e estava envolvida em gaze.

Ajoelhou‑se e esgueirou‑se para dentro do abrigo. Os últimos raios do dia passavam através do tecido do pára‑quedas e viu que Heather tinha os olhos abertos.

‑ Pensava que estavas a dormir.

Ela não respondeu, e o piloto pensou que, se ela deixasse cair uma lágrima, teria de arranjar uma desculpa para ir até lá fora um bocado.

‑ Já te deste conta de que deves ser a única rapariga no Mundo a possuir uma tenda de seda?

Ela olhou‑o fixamente. Havia acusação naqueles olhos? Ou a ausência de expressão devia‑se ao comprimido?

‑ Tens dores?

Ela abanou a cabeça muito ligeiramente.

‑ Posso fazer alguma coisa para te sentires melhor?

‑ Tenho frio.

Despiu o seu urso e aconchegou‑o à volta dela. Heather protestou, dizendo que não queria que ele passasse frio.

‑ Estou cheio de calor ‑ disse ele. ‑ Tenho estado a organizar as nossas coisas.

‑ Se vamos ficar acampados toda a noite, não é possível fazer uma fogueira?

Toda a noite? Já teriam muita sorte se recebessem auxílio dentro de uma semana.

Ele explicou‑lhe que não acendia uma fogueira na tenda porque o depósito de combustível do avião ainda se encontrava no sítio e estava a pingar lentamente. Talvez de manhã arranjasse uma maneira de separar o depósito da secção central.

‑ Amanhã faço uma fogueira lá fora para derreter a neve e termos água. E agora o menu. Para entrada, temos um pudim de chocolate especial, que podemos acompanhar com champanhe de neve. A sobremesa, se te portares bem, pode ser uma pastilha elástica.

Fez‑se silêncio entre os dois. O piloto escutava o cair da neve por cima da sua cabeça e pensou que ia ser uma noite comprida. Estava escuro no abrigo. Tirou as luvas e procurou no bolso do seu urso a tablete de chocolate. Partiu um pedaço e colocou‑o na mão de Heather.

‑ Aqui está o jantar. Mastiga devagar para durar mais. E no fim não te esqueças de dobrar o guardanapo.

Ouviu‑a mastigar; depois de acabar, comentou:

‑ Você é um bom cozinheiro.

‑ Não estará tão bom como a tua mãe faria, mas por agora tem de servir.

‑ A minha mãe deve estar preocupada. Virá alguém procurar‑nos?

‑ Vem.

‑ Esta noite? Não conseguem encontrar‑nos de noite, pois não?

‑ Não. Amanhã, logo que nascer o dia, começam a procurar.

O piloto já os estava a ver ‑ seis aviões da companhia e alguns da Guarda Nacional. Contudo, dirigiam‑se para leste, seguindo a rota habitual. Não procurariam na zona certa.

‑ Possivelmente ‑ disse ele, admirando‑se por mentir tão facilmente ‑, possivelmente encontram‑nos amanhã.

‑ E depois?

É verdade. E depois?

‑ Alguém vem buscar‑nos.

‑ Se eu me conseguisse mexer, podíamos descer a montanha. Eu estou bem se ficar completamente imóvel, mas quando me mexo mesmo só um bocadinho... bem...

‑ Amanhã vais estar muito melhor.

‑ Espero que sim. Posso dizer‑lhe uma coisa? Tipo confidencial?

‑ Eu sou o teu melhor e único ouvinte. E os meus lábios estão selados.

‑ Tenho de... Percebe... de ir...

‑ Oh! Só um momento. Devia ter pensado...

Tacteou à procura das luvas, encontrou‑as e rastejou lá para fora. Lembrava‑se de que, algures nos destroços, havia uma parte da carlinga. Encontrava‑se normalmente entre a fuselagem e o motor, mas tinha sido separada e ficara bastante torcida com o impacte. Caminhou com dificuldade pela neve em direcção às asas retorcidas e a meio do caminho bateu com a bota numa coisa dura. Baixou‑se e apanhou o bocado da carlinga. Completamente às escuras, colocou um joelho sobre o bocado de metal e, apoiando nele todo o seu peso, torceu‑o até formar um recipiente grosseiro. Levou‑o para o abrigo e entrou a rastejar.

‑ Sou eu. A enfermeira de serviço. Agora faz das tripas coração e deixa‑me colocar isto debaixo de ti.

Tacteando no escuro, ouviu‑a ofegar várias vezes, mas por fim ficou em silêncio e ele perguntou se podia retirar o recipiente.

‑ Pode ‑ murmurou ela. ‑ Estou tão envergonhada.

‑ Não estejas. Eu sou teu amigo.

Quando rastejava para a saída, ouviu‑a dizer baixinho:

‑ Obrigada. Você é uma pessoa muito bonita.

Ainda bem que estava tão escuro, pensou ele.

Mais tarde, deitou‑se ao lado dela, sentindo a sua proximidade e tentando não pensar na situação de ambos. Talvez amanhã não lhe doesse a cabeça. Iria concentrar‑se em sair da montanha.

Não conseguia dormir. Vinham‑lhe à cabeça pensamentos em catadupa. Porque dedicara tanto da sua vida a voar? Poucos homens de negócios morrem às secretárias e poucos agricultores são atropelados pelos seus tractores. Voar era bem pago, mas ele não conhecia nenhum piloto que voasse apenas pelo dinheiro. Conhecia alguns pilotos com modos um pouco estranhos, mas não eram temerários, e se alguns deles pensavam na possibilidade de virem a morrer num avião, nunca o referiam. Apenas Moravia mencionava essa possibilidade de vez em quando, mas fazia parte da sua função.

Deixou de se ouvir o barulho da neve a cair, e o piloto percebeu que a fuselagem devia estar densamente coberta. O silêncio era quase sufocante. No entanto, era saudável. Não queria imaginar o que seria estar na montanha se se levantasse muito vento. Encontrava‑se deitado num pedaço de tecido, tendo como almofada um saco de correio. Mudou ligeiramente de posição, só para ouvir o ranger familiar do seu blusão de cabedal. Ao menos era um barulho. Daí a pouco, ouviu a voz abafada de Heather:

‑ Está acordado?

‑ Sim. Estás bem quente?

Não se atreveu a perguntar‑lhe se tinha dores.

‑ Estou, estou. Tenho estado a pensar. Como é que se chama?

‑ Jerry.

‑ Mister Jerry? A minha mãe diz que eu devo tratar as pessoas mais velhas por senhor ou senhora.

‑ Trata‑me apenas por Jerry.

‑ Penso que não faz mal nenhum fingir que sou adulta.

‑ Porque havia de fazer? Eu começo a achar que és mesmo.

Ficaram em silêncio durante bastante tempo, e ele esperava que ela tivesse adormecido quando ouviu de novo a sua voz, soando ainda mais fraca. "Meu Deus, ela não pode estar a morrer", pensou. "São só as costas."

‑ Eu tenho a roupa toda ‑ disse ela. ‑ Você deve ter frio.

‑ Não. Já dormi centenas de vezes com este casaco.

‑ Como se chama a sua mulher?

‑ Não tenho mulher.

Seguiu‑se outro silêncio, depois ela perguntou:

‑ Já morreu?

‑ Não. Nunca fui casado.

‑ Porquê?

Esta, decidiu ele, era uma pergunta a que não se sentia obrigado a responder. Como é que conseguiria dizer: "Ouve, pequenina. Talvez não tenhas olhado bem para mim. Como é que suportarias olhar para uma cara destas durante um dia inteiro? E para se encontrar mulheres, primeiro tem que se conhecer raparigas e não é no céu que se encontram. É nas igrejas ou nos bares, dependendo do tipo, ou em qualquer outro lugar onde as pessoas se reúnem porque se sentem melhor acompanhadas. Bem, eu tentei algumas vezes depois do acidente e vi o que aconteceu. As pessoas apertavam‑me a mão e até tentavam fazer conversa. Passavam o tempo todo a olhar para todos os lados menos para mim e arranjavam outra companhia logo que podiam. E eu não as censurava. Assim, no interesse do bem‑estar público, decidi incomodá‑las o mínimo possível."

Aclarou a voz, como se estivesse a meditar a sério na pergunta de Heather, e disse:

‑ Não sei porque nunca me casei. Acho que foi por estar demasiado apaixonado pela minha profissão.

‑ Pelo menos é bom estar apaixonado por alguma coisa.

‑ És muito sensata para a tua idade.

‑ Mas já alguma vez esteve mesmo, mesmo apaixonado por uma rapariga?

Isso era outra coisa que ele não estava interessado em discutir com um estranho, e nos últimos oito anos, depois do acidente, parecia que toda a gente pertencia à classe dos estranhos. Não estava disposto a pensar em Sally, e muito menos a falar sobre ela. Contudo, só porque uma garota fizera uma pergunta que pensava ser inocente, aqui estava Sally impondo‑se mais uma vez nos seus pensamentos.

De nada valia negar que estivera profundamente apaixonado por Sally e, independentemente do desfecho, não deixaria que nada estragasse a recordação dos tempos felizes que tinham passado juntos. Lembrou‑se de um fim‑de‑semana em San António em que Sally dissera quase exactamente as mesmas palavras que ouvira ainda há pouco: "És um homem muito bonito."

Mas agora sentia que elas tinham outro significado, porque Sally estava mesmo a olhar para o seu rosto. Nesse fim‑de‑semana tinham decidido casar‑se "durante o mês de Outubro". Sally ainda andava a escolher a data quando se deu o acidente.

Já estava há um mês no hospital quando lhe disseram o pior sobre as lesões do seu corpo e a devastação da sua cara. Era um homem feito de ferros e parafusos, e quando se obrigou a olhar para o espelho, não reconheceu o homem artificial que viu.

Sally não fugira da calamidade. Sugeriu que se casassem mesmo no hospital. Mas os seus olhos eram explícitos: "Vou para a frente com isto porque é a única coisa decente a fazer." Sally merecia um homem completo. Olhou‑se de novo demoradamente ao espelho e decidiu‑se com relativa facilidade. Uma mudança súbita de ideias, explicara.

‑ Desculpa, Sally. Pensei bem e concluí que não iria resultar agora.

Para Sally, abandonar alguém em desgraça era impensável. Dera‑lhe algum trabalho desencorajá‑la. Durante uns tempos, foi ao hospital regularmente, mas ao fim de dois meses desistiu e simplesmente desapareceu. Soube por um companheiro que ela fora para Chicago e se casara com um repórter.

Voltou‑se no escuro e disse:

‑ Heather, como é que uma rapariga da tua idade faz essas perguntas? Que idade tens, afinal de contas?

‑ Onze, quase doze. Pensa que eu ainda brinco com bonecas?

‑ Bem, eu não sou muito conhecedor dos hábitos das jovens senhoras, porque a minha vida tem sido um pouco diferente da da maioria das pessoas.

‑ Gostava que me falasse da sua vida.

‑ Porquê, meu Deus?

‑ Se eu o estiver a ouvir falar de qualquer coisa, talvez as minhas costas não me doam tanto, porque o meu cérebro não será capaz de se preocupar com duas coisas ao mesmo tempo. É o que a minha professora passa o tempo a dizer. Não sejam estouvadas. Não tentem pensar em muitas coisas ao mesmo tempo. Ela diz que devemos aprender a concentrar‑nos, e se eu conseguir concentrar‑me em si, então não penso nas minhas costas. Não sei se me fiz entender.

‑ Gostava de poder ser mais útil ‑ disse ele. ‑ Será que era melhor se eu te voltasse de lado? Terei muita cautela.

Ela hesitou.

‑ Acho que é melhor tentar, porque me parece que estou a piorar.

Movendo‑se com cuidado para, no meio da escuridão, não lhe bater, esticou os braços até encontrar a anca dela.

‑ Vamos lá com cuidado.

Enfiou‑lhe uma das mãos devagar por trás do pescoço e disse‑lhe que respirasse fundo. Depois, virou‑a com muito cuidado para si. Por instantes, pensou que tudo iria ficar bem. Sentiu a respiração dela no seu rosto e deu‑se conta, com súbito prazer, de que nesse momento estava próximo de Heather como nunca estivera de outro ser humano nos últimos oito anos. Ela recomeçou a respirar e deixou escapar um pequeno grito.

‑ Oh, não... não! Por favor, largue‑me.

Pousou suavemente as costas dela na posição original e esperou que os soluços diminuíssem.

‑ Deixa‑te estar assim. Tenta descansar esta noite. Amanhã de manhã pensamos numa solução.

‑ Dói tanto, mesmo quando me mexo só um milímetro.

Tocou‑lhe no rosto e sentiu‑lhe as lágrimas. Limpou‑lhas e continuou a acariciar‑lhe o rosto.

‑ Não quero dar‑te outro comprimido se conseguires passar sem ele.

‑ Porquê?

Ao ouvir a sua respiração entrecortada de gemidos, pensou como é que se atreveria a dizer‑lhe que amanhã podia precisar ainda mais dos comprimidos. Se não chegassem socorros e por algum esforço milagroso conseguisse levá‑la até onde pudessem ter ajuda, talvez para isso os comprimidos fossem indispensáveis.

‑ Muitos comprimidos fazem‑te mal.

‑ Quem me dera conseguir adormecer.

‑ Vais conseguir. Dói se eu te massajar a parte de trás do pescoço?

‑ Acho que não.

A voz dela era tão fraca que mesmo com aquele silêncio mal a ouvia.

Com os dedos, fez‑lhe pequenas massagens em círculos no pescoço.

‑ É bom, Heather?

‑ É... É...

Enquanto os seus dedos se moviam e ela se ia acalmando, começou a falar com uma voz baixa e suave. Algum tempo depois, percebeu que ela estava a ficar menos tensa e que a sua respiração era regular.

Há tanto tempo que não falava longamente com alguém que agora lhe parecia estranho. Havia tanta coisa que gostaria departilhar e os seus pensamentos pareciam seguir‑se em turbilhão.

‑ Parece‑me que não há muito a dizer sobre a minha vida, Heather. Nasci, cresci e fui fazendo amigos. Ainda vou sabendo notícias de alguns deles, mas as pessoas mudam, cada um segue o seu caminho, e desde que ando a voar parece que as pessoas com quem andei na escola não falam a mesma língua. Agora tenho um amigo muito especial, embora suponha que ele não me considera como amigo. Chama‑se Moravia, é o meu chefe e é muito difícil de explicar o que sinto por ele. O facto de ele só ter uma perna deve ter contribuído para me contratar. No dia em que ele me disse que eu ficava com o emprego... bem, nem consigo dizer‑te o que isso significou para mim. Já tinha corrido tudo o que era companhia de aviação neste país e todos eles olhavam para mim como se eu fosse um fantasma e me diziam que tinha muita sorte em estar vivo. Ofereciam‑me trabalho em terra, mas não queriam que voasse. Moravia não ficou assombrado com o meu aspecto, e quando se encontram pessoas assim, apetece ficar com elas e fazer o melhor por elas. Moravia é um homem estranho. Quanto mais o conheço, menos o conheço.

O piloto não fazia ideia de há quanto tempo estava a falar. Entrou numa espécie de transe ao falar dos seus primeiros tempos de voo. Contou‑lhe quando os seus pais o levaram a uma feira no Nebraska, onde vira um pequeno avião amarelo a voar. Olhando para cima, boquiaberto de espanto, ele viu a luz do Sol através das asas e pintado sobre elas, de modo que toda a gente pudesse ver, o nome do piloto ‑ Seechy. Achou a pequena máquina voadora a coisa mais bonita que jamais vira e ali mesmo jurara que havia de voar um dia. Mais tarde, um homem chamado Sloniger ensinou‑o a voar num Jenny, que comprara logo a seguir à guerra. Sloniger transportava o correio com Lindbergh, antes de este se tornar tão famoso, e ainda hoje voava algures no Leste.

‑ Por todo o país havia as habituais digressões, para norte com o sol no Verão e para sul com os pássaros no Inverno... Uma vida de ciganos, Heather, sem grande interesse. Depois, o Exército precisou de instrutores para os treinos de iniciação de voo. Era um trabalho seguro e bem pago e eles empregavam civis quando os achavam de confiança e estavam sóbrios durante o dia.

O piloto compreendeu por fim que estava a falar sozinho, porque a respiração da rapariga se tornara regular e ela estava calada há muito tempo. Retirou suavemente a mão do pescoço dela e murmurou:

‑ Obrigado, garota.

Inclinou‑se até a sua boca retorcida quase tocar na face dela, e toda a necessidade de afecto que sentira durante oito longos anos ajudou os seus lábios a formarem um beijo suave.

Afastou‑se de imediato, como se tivesse feito uma coisa muito errada.

 

                       CAPÍTULO QUATRO

Moravia estava admirado consigo próprio por ter decidido dormir no escritório. Que gesto sentimental, imperdoável! Durante a noite, não podia fazer nada e os contactos disponíveis tinham sido feitos antes de escurecer.

Todas as informações haviam sido desencorajantes. Elko: o Catorze levantara com uma hora de atraso. Não voltara para trás, nem Elko conseguira obter qualquer informação da parte das poucas pessoas com quem tinha conseguido contactar ao longo do percurso. Com Boise passou‑se o mesmo. O Catorze não aparecera lá e por isso devia presumir‑se que aterrara algures entre Elko e Boise. E o rancheiro que Moravia conhecia perto de Rome, que acabara por atender o telefone, dissera que, se o Catorze tivesse aterrado na sua pastagem das traseiras, não o conseguiria ver. Tal era a neve que caía.

Tinha alertado todos os xerifes e rancheiros ao longo do percurso sobre a possível queda de um avião e não largara os serviços meteorológicos de Salt Lake City e são Francisco, tentando obter uma previsão do tempo definitiva. O seu descontentamento foi aumentando à medida que ouvia uma série de pigarreares de embaraço, "ses" e evasivas experientes.

Agora, bebendo café requentado na sala de espera, Moravia suspirou e arrependeu‑se de ter passado a noite no sofá. Se tivesse ido para casa, Marsha tê‑lo‑ia acarinhado e talvez tivesse tido uma boa noite de sono, em vez de se atormentar inutilmente com o destino do Catorze.

O Catorze podia ter encontrado gelo e não ter conseguido escapar‑lhe de imediato. Não deve ter seguido o velho ditado da aviação segundo o qual a manobra mais segura é uma volta de cento e oitenta graus. Bastavam dois minutos no gelo para o avião poder ficar incontrolável.

O Catorze podia ter decidido subir acima da tempestade, em vez de andar a esquadrinhar os vales, mas depois de estar por cima das nuvens ter descoberto, tarde demais, que as abertas que esperava encontrar não estavam lá. Sobre uma extensa área completamente branca, sem nada para o orientar além da sua bússola pouco segura, podia ter‑se perdido. Quando se acabou a reserva de gasolina, com certeza que teve de descer pelo meio das nuvens para o desconhecido. Apesar do frio, o Catorze teria suado, porque sabia que no meio daquela camada de nuvens podia haver granito. Moravia conseguia imaginar este tipo de situação facilmente. Ele tinha aridado por lá.

Pensou na possibilidade de o motor ter falhado, mas pô‑la de parte. Os motores falhavam por vezes com a pressão da descolagem, mas problemas durante o voo eram muito raros.

Bastante depois do crepúsculo, já noite avançada, Moravia convenceu‑se a si próprio de que em breve o telefone ia tocar e seria o Catorze a comunicar que tinha aterrado num campo qualquer. O Catorze era um tipo lacónico e nada mais diria, excepto que o correio estava seguro e que, logo que as condições de tempo melhorassem, partiria. Contudo, à medida que o tempo passava, Moravia perdeu a fé nesta hipótese.

O Catorze não era um tonto irresponsável. Era um homem extremamente sensível e sabia que as pessoas iam ficar preocupadas com ele. Era o único piloto que Moravia conhecia que possuía três livros de poesia naquilo que lhe servia de casa, e em Outubro passado pedira um dia de folga extra para ir a um espectáculo de uma orquestra sinfónica em Salt Lake. O Catorze não era homem para aterrar numa quinta qualquer, aceitar umas bebidas de congratulações e esquecer‑se de telefonar.

Quando chegou à meia‑noite sem qualquer notícia, Moravia teve a certeza de que o Catorze devia estar numa situação difícil ‑ se ainda estivesse vivo. O facto de levar uma passageira tornava a situação mais vexatória e complicada.

Moravia era perseguido pela cara dos avós da rapariga. Tinham chegado bastante antes da hora do avião. Depois, à medida que a tarde passava e não se via nada no céu, dissera‑lhes que já não era provável que viessem. Tinham‑se enterrado no sofá do seu escritório e só se decidiram a partir muito depois de escurecer.

Mais difícil ainda foi a chamada obrigatória para os pais da rapariga, que viviam perto de Elko. Pelo menos, pensou, não teve que ver a cara deles quando lhes disse que havia fortes possibilidades de o piloto dar notícias em breve. Os pais ficaram calmos, embora dissessem que esperavam que ele não estivesse a mentir.

‑ Eu não sou cruel ‑ respondera, aborrecido na sua ansiedade. ‑ E sou um optimista.

Por fim, pensou em telefonar à família do Catorze. Mas quem? Depois de procurar um pouco, encontrou a ficha original de candidatura do Catorze. Indicava que os pais tinham morrido. Havia um quadrado no fundo da página que dizia: "Contactar em caso de acidente. Familiar mais próximo ou amigo." Não estava preenchido.

Vazio como a vida dele, pensou Moravia.

Agora, já madrugada, havia muito a fazer. Podia parar de coçar a sua barba crescida e ir para o telefone. Por volta das 10 horas, haveria três aviões procedendo a buscas na parte norte da rota, onde o tempo ainda estava razoável. A Guarda Nacional prometera todos os aviões disponíveis, mas só chegariam de Spokane à tarde. E às 11, quer quisesse, quer não, havia o correio para partir para o Sul. Moravia estava contente por ainda haver muito a fazer. Isso atenuava a diminuição da sua confiança em encontrar o Catorze em breve.

Primeiro, o piloto pensou que era o vento que fazia aquele assobio intermitente algures, num dos lados do abrigo. Depois, completamente acordado, percebeu que o lamento sumido partia da rapariga. Era um queixume agudo que acompanhava a cadência da sua respiração. O piloto pensou quanto tempo aguentaria ouvir aquilo.

‑ Estás acordada? ‑ perguntou por fim.

‑ Estou.

Tinha esperança que ela voltasse a adormecer, mas o barulho continuou. Esperou o mais que conseguiu e depois perguntou:

‑ Como vai isso?

Certamente não o tinha ouvido, pois não deu resposta.

‑ Hoje, vai ser um dia longo ‑ disse ele. ‑ Vamos arranjar maneira de sair daqui. Que é que queres para o pequeno‑almoço? A gerência lamenta, mas já não há bacon nem ovos e a cozinheira deixou queimar a última torrada. Que tal um belo pedaço de chocolate?

‑ Está bem.

A voz dela era muito fraca.

‑ Como é que o queres? Do lado que apanhou sol ou do outro? Se quiseres esperar um bocadinho, vou fazer uma fogueira lá fora e faço chá de agulhas de pinheiro. Dizem que cura todos os males.

‑ Doem‑me as costas. Posso tomar um comprimido agora?

‑ Claro.

Tirou um do frasco e rastejou até à entrada. Estendeu a mão lá para fora, fez uma bola de neve em miniatura e meteu o comprimido lá dentro.

‑ Aqui está. Faz de conta que é um gelado. ‑ Continuando de joelhos, observou‑a enquanto ela engolia. Viu que tentava sorrir, mas a sua expressão era bem diferente da que já lhe vira antes. ‑ Já alguém te disse que és uma rapariguinha muito bonita? ‑ perguntou.

Viu‑lhe uma estranha preocupação nos olhos. De repente, percebeu que, devido ao tecto baixo do abrigo, estava curvado sobre ela, com a sua cara a pouco mais de um palmo da dela. E agora a luz já entrava através da seda do pára‑quedas. Afastou‑se instantaneamente, recuando como um caranguejo, horrorizado pelo choque que a visão da sua cara lhe teria causado.

‑ Vou fazer a fogueira. Teremos um bom chá quente para nos animar.

Rastejou imediatamente para fora do abrigo e levantou‑se. Um vento agreste bateu‑lhe no rosto; era o mesmo vento que levantava pequenos farrapos de neve e os levava em remoinho pela montanha abaixo. Olhou para as nuvens e viu que se moviam rapidamente. "Temos sorte de estarmos do lado de sotavento", pensou. "Vai fazer sol hoje."

O balanço do que via deprimiu‑o. A neve, com uma altura até aos joelhos, tinha tapado a vala cavada pela fuselagem, e era óbvio que encontrar lenha ia levar muito tempo. Aterrara num extenso planalto que estava repleto de enormes pedregulhos na sua parte mais alta. A parte de baixo era igualmente agreste. Caía quase a pique num vale gelado lá bem no fundo. Escapar por aí parecia impossível.

Pôs‑se a contar as coisas boas. O planalto era abrigado do vento, e as árvores ofereciam protecção contra uma possível avalancha. Podia caminhar em qualquer direcção dentro do alcance da vista e desde que se mantivesse aproximadamente ao mesmo nível do abrigo. Caminhou penosamente à procura de lenha.

O Sol já nascera quando acabou de apanhar um braçado de ramos partidos na área onde as asas do Stearman tinham atingido as árvores. A madeira estava verde e cheia de seiva e sabia que assim era difícil acender um bom lume. Fez uma cova na neve a alguma distância do abrigo, com receio de que algumas faúlhas errantes lhe pegassem fogo. Depois, lembrando os seus tempos de escuteiro, cortou os galhos dos ramos e acamou‑os cuidadosamente no buraco. Após gastar quatro dos seus preciosos fósforos, conseguiu finalmente acender um lume que prometia durar. Decidiu que, mal acabasse de dar o chá a Heather, tentaria construir uma espécie de recipiente, escoaria o óleo do motor e mergulharia aí os ramos. Talvez então conseguisse fazer uma fogueira a sério.

Sentia‑se orgulhoso dos seus dois instrumentos de cozinha. Eram os reflectores cónicos que continham os faróis de aterragem do Stearman. Um deles estava bastante amolgado, mas utilizou‑o para derreter neve e obter água. Espantava‑se com a quantidade de neve que tinha de colocar no seu balde improvisado para obter umas gotas de água.

Abençoou o estojo de ferramentas, que lhe permitiu remover as duas coberturas (balancim) do motor. Iriam servir de chávenas rasas, depois de as ter esfregado cuidadosamente com neve para retirar os sedimentos de óleo. E quem sabe? Talvez que o aroma de óleo remanescente complementasse bem as agulhas de pinheiro. Talvez o motor, que se tinha revelado tão falso, viesse a ser a salvação deles.

Achava o crepitar do fogo tranquilizador, mas colocar tanta neve para obter tão pouca água era desencorajante. O vento caprichoso ia mudando com frequência, ora envolvendo‑o em fumo, ora transportando os sons inquietantes vindos do abrigo. Perguntou‑se quanto tempo conseguiria suportar os gemidos de Heather.

Olhou para o Sol, que aparecia e desaparecia por trás das nuvens, como se reflectisse a sua disposição. Disse ao fumo, à montanha e às nuvens que não era religioso e não ia pedir ajuda para si, mas Deus, se estivesse acordado, poderia, por favor, ajudar uma criança boazinha.

‑ Deve haver qualquer coisa que a faça parar de gemer ‑ murmurou em voz alta. ‑ Já não aguento muito mais tempo e ela também não. Ela tem de ser distraída.

Depois, pensou que, se já estava a falar sozinho e ainda não estava há um dia na montanha, então as coisas iriam ficar muito piores. Obrigou‑se a pensar no que tinha de fazer. Primeiro, manter o lume. Tirar óleo do motor para um receptáculo qualquer. Mantê‑lo à mão para fazer fumo negro, caso ouvisse algum avião. Depois, tratar da comida. Daí a uma ou duas horas iam saber o que era ter fome a sério.

Onde é que pusera a sua pistola, aquele bacamarte com o coldre muito brilhante de roçar na sua anca? Duvidava de que alguém que apenas disparara uma vez na vida conseguisse acertar em alguma coisa que estivesse a mais de um metro de distância. "Mas onde é que puseste a arma, meu pateta?" A diferença entre sobreviver ou não podia residir nela. Sentia a cabeça às voltas. "Não consegues fazer nada certo? Aterraste com uma pistola em bom estado e a primeira coisa que fazes é perdê‑la. Precisas mais de uma enfermeira que a garota! "

Mas, de repente, julgou saber onde se encontrava. Abandonou a fogueira e correu para o abrigo. Passou a mão suavemente pela neve que cobria a parte superior da fuselagem, procurando com cuidado para não enterrar mais a pistola na neve e não a voltar a encontrar. "Está aqui, algures", pensou. O seu mundo parecia centrar‑se nesse objecto que desprezara durante tanto tempo. A neve amontoava‑se‑lhe no cotovelo e afastava‑se à medida que a sua mão ia destapando a estrutura cinzento‑pálido do Stearman. Como a fuselagem se encontrava tombada sobre o lado esquerdo, as suas escavações destapavam uma parte das letras US. Brevemente apareceria a palavra USAF. Tinha a certeza absoluta de que pusera a pistola algures por ali. Ou quase absoluta.

Parou ao encontrar algo sólido. Susteve a respiração até os seus dedos envolverem o objecto. Então, de súbito, agarrou‑o com toda a força, puxou a mão, espalhando a neve, e disse alto:

‑ Aqui está ela.

Levou a arma aos lábios e beijou‑a, pensando: "Estou a ficar louco. A beijar armas!"

Ouviu‑a chamar pelo seu nome, lá debaixo do abrigo.

‑ Jerry?

Ainda com a arma na mão, baixou‑se e rastejou lá para dentro. Apesar de a boca de Heather se encontrar tensa, pareceu‑lhe que os seus olhos já tinham de novo algum brilho.

‑ Ouvi‑o falar com alguém. Já nos vieram buscar? ‑ perguntou.

‑ Não. Estava a falar sozinho. Espero que não se torne um hábito.

‑ Eu própria falo muitas vezes sozinha. Todos os meus amigos o fazem.

Ela viu‑o colocar a pistola debaixo do saco de correio que lhe servira de almofada.

‑ Que é que vai fazer com essa arma?

‑ Provavelmente, nada. Ocorreu‑me que poderá ser útil no caso de eu querer abater alguma coisa.

‑ Porque é que há‑de querer abater alguma coisa? Você é uma pessoa tão boa que não consigo imaginar que haja algum animal que não goste de si.

‑ Bem, eu também gosto de animais, mas...

‑ Se está a pensar em matar animais para comer, eu não tenho fome ‑ disse ela.

Detectou um tom de rabugice na voz dela. Ouvira algures, talvez a sua mãe lhe tivesse dito quando ele estava doente em criança, que as pessoas ficam geralmente rabugentas quando estão em convalescença. Conteve‑se sem lhe dizer que talvez não faltasse muito para ela ter mesmo fome.

‑ Como te sentes das costas? ‑ perguntou‑lhe.

‑ Ainda me doem. Posso tomar outro comprimido?

‑ Não. Ainda é muito cedo.

‑ Mas tenho tantas dores. Quando é que acha que eles chegam?

"Se lhe começo a mentir agora", pensou ele, "nunca mais vou parar. E quando as coisas se tornarem realmente graves, ela não acreditará em nada que eu lhe disser."

‑ Não sei ao certo quando virão ‑ disse ele, ajustando o urso à volta das pernas dela. Tentando evitar embaraços, disse‑lhe que o chá estava quase pronto. Depois, rastejou para fora do abrigo e ficou de pé a observar o vapor da sua respiração ser levado pelo vento. Quando recomeçaram os queixumes, afastou‑se para junto da fogueira, onde já não os ouvia.

 

                       CAPÍTULO CINCO

Nessa manhã, Stiller, um dos pilotos mais velhos da linha, não se sentia nada satisfeito ao ver as nuvens cerradas baixas correrem pela paisagem monótona do Nevada a uma velocidade que revelava a existência de ventos fortes nas alturas. Ia ter de certeza uma viagem muito agitada transportando o correio para o Norte, a partir de Elko, e provavelmente iria ter uma luta sem tréguas com o seu avião sobre as regiões mais montanhosas. Ou, pior ainda, teria de voar imediatamente por baixo das nuvens densas, o que limitaria a sua altitude e campo de visão. Tinham‑lhe dito para olhar com muita atenção o terreno no percurso para norte. Um dos pilotos ‑ Jerry, aquele tipo que ninguém conhecia muito bem ‑ devia estar em terra algures ao longo do percurso. Stiller não se admirava de nem sequer se lembrar do último nome de Jerry.

Não fazia diferença. Era um tipo estranho, certamente um solitário, mas tinha‑se oferecido duas vezes para substituir Stiller quando este quisera passar um dia de folga extra com a família. Quando se tem cinco filhos, apreciam‑se gestos como este.

Probosky, o mecânico, segurava as correias do pára‑quedas, enquanto Stiller se enfiava nele. Alguns pilotos preferiam pô‑lo no avião para não terem de se deslocar com o pára‑quedas a bater‑lhes nas ancas, mas Stiller preferia ver bem como é que ficava posto do que dar só uma olhadela. Com cinco crianças pensa‑se assim.

Depois de apertar as correias aos ombros e de puxar as das pernas, ajustou e apertou a tira do capacete por baixo do pescoço. E jurou pela centésima vez que, quando chegasse a Pasco, havia de passar pelo hangar de reparações, arranjar um furador de cabedal e fazer um novo furo na correia do capacete. Os furos estavam no sítio errado, já lá ia um ano, e ele esquecia‑se sistematicamente de fazer a alteração. No primeiro furo, o capacete ficava largo; se usasse o segundo, ficava de tal modo apertado que quase o sufocava. Fazer um furo com uma faca podia estragar completamente o capacete, e os capacetes eram caros.

Quando se é chefe de família, contam‑se bem os tostões. Prudência era a palavra de ordem. Prudência a voar faz a vida durar. Stiller estava convencido de que esta sua filosofia prudente era responsável por doze anos de voo sem nunca ter feito uma beliscadura num avião nem em si próprio.

Moravia achava que tinha sido um dos dias mais longos da sua vida. Encontrava‑se enterrado na sua cadeira de couro, por trás da secretária, e esfregava os olhos doridos. Estava aborrecido. A luz de fim de tarde iluminava Stiller, sentado à sua frente. Tinha o urso desabotoado e o cachecol branco pendia‑lhe do pescoço. Moravia viu‑o a brincar com a tira do capacete e pensou que era imperdoável que o homem tivesse um ar tão calmo, atendendo às circunstâncias.

Moravia olhou‑o fixamente.

‑ Você é capaz de estar aí sentado a dizer‑me que de facto viu uma asa e o que pareciam ser bocados da fuselagem e não desceu para confirmar?

‑ Você não percebe que eu apenas espreitei por uma aberta. E não era uma aberta muito grande.

‑ Bem, e porque diabo não desceu por essa aberta para ver melhor?

‑ O vento fustigava que nem um chicote. Podiam deparar‑se‑me ventos cruzados perto da montanha e não ser capaz de voltar a subir. Assim, você passaria a ter dois aviões para procurar.

‑ Isso era um risco que talvez não me importasse de correr em troca de obter confirmação ‑ murmurou Moravia.

"Porquê", perguntou a si próprio, "tinha logo que ser este filho da mãe cobardolas a ver qualquer coisa?" Todos os pilotos que tinham voado nesse dia, e que teriam descido por qualquer aberta que houvesse, não tinham avistado nada com o mínimo de interesse. Olhou Stiller com atenção e pensou que, decididamente, nunca gostara do seu ar de santinho.

‑ Deixe ver se eu percebo ‑ recomeçou Moravia o mais calmamente que conseguiu. ‑ Você descolou de Elko e encontrou mais vento do que esperava. Desviou‑se uns trinta a cinquenta quilómetros para oeste, por cima de nuvens densas dispersas. Não sabia exactamente onde se encontrava quando reparou que o terreno que sobrevoava era bastante mais montanhoso do que deveria. É assim, não é?

‑ Sim, basicamente.

‑ Muito bem. Depois, calhou olhar para baixo quando viu uma aberta e lá no fundo o que parecia ser uma asa e uma fuselagem...

‑ Penso que foi isso que vi.

‑ Bem, era um avião ou não?

‑ Daquela altitude era muito difícil ter a certeza. E toda a encosta da montanha encontrava‑se densamente coberta de neve, o mesmo acontecendo com o que quer que seja que eu vi; não pode imaginar como era pequeno.

‑ Imagino. ‑ Moravia não conseguia esconder o sarcasmo. ‑ Suponho que nem lhe ocorreu descer?

‑ Ocorreu, sim. Cheguei mesmo a dar a volta e a sobrevoar de novo a área, mas a aberta já desaparecera. Andei cinco minutos às voltas sobre as nuvens densas antes de desistir.

‑ Cinco minutos ‑ disse Moravia com indiferença.

‑ Tive que pensar no combustível, com o vento a soprar daquela maneira. Se o vento virasse para norte, talvez nem conseguisse chegar a Boise.

"E assim", pensou Moravia, "podes ter deixado um colega morrer mesmo por baixo de ti. Se tivesses esperado um pouco mais, podia aparecer outra aberta e podias ter descido para ver melhor e ainda restaria combustível suficiente para fazer uma aterragem de emergência num terreno plano adequado."

Moravia, porém, guardou as recriminações para si e pousou a mão sobre o mapa colocado por baixo do vidro da sua secretária.

‑ Você estava algures sobre a cordilheira de Santa Rosa, no Nevada?

Stiller inclinou‑se para ver melhor o mapa.

‑ Tenho a certeza de que era mais para nordeste. Quase de certeza que vi o pico do Capitol através das nuvens densas.

Moravia não fez qualquer tentativa para esconder o seu azedume.

‑ A ser assim, o que você pensa ter visto está algures por aqui neste despovoado, o que reduz a nossa área de busca a uns poucos milhares de quilómetros quadrados.

‑ Se já não tem mais nada a dizer‑me ‑ disse Stiller com ansiedade ‑, gostava de ir para casa. ‑ Tentou sorir. ‑ A minha mulher tem uma série de coisas para eu fazer.

Moravia acendeu um caporal.

‑ Claro ‑ disse ele. ‑ Mantenha‑se só perto do telefone. Posso vir a precisar de si.

Quando Stiller arrastou as suas botas pesadas para fora do gabinete, Moravia reparou na sua postura inclinada. Não conseguiu perceber se Stiller era apenas um homem curvado pela sua vida familiar ou um homem que sabia ter cometido uma traição não só contra um companheiro, mas contra si próprio.

O piloto nem queria acreditar que o Sol já estivesse tão baixo. Passara todo o dia a recordar a si próprio que, se perdesse o seu sentido de humor, então perderia decerto o desafio, que se tornava cada vez mais inevitável. E pensou que podia morrer de tudo ali na montanha, menos de aborrecimento, porque nunca tivera tanto que fazer.

A fogueira apagara‑se por duas vezes. Reacendê‑la e mantê‑la tomara‑lhe pelo menos umas três horas. Tinha passado algum óleo do motor para os tampões das rodas. Experimentara deitar um pouco na fogueira para produzir fumo negro.

Por duas vezes durante a manhã, convenceu‑se de que ouvira um avião, mas o vento soprava tão forte que facilmente se confundiam os sons. Talvez tivesse sido apenas o seu desejo de que fosse verdade.

Cortara bocados das asas e da fuselagem. Dispusera‑os sobre a neve em forma de um X gigante e fixara as pontas com pedaços de xisto. O X seria facilmente visível se não continuasse a nevar, embora ele gostasse que os Stearman fossem pintados de outra cor que não cinzento‑pardo.

Depois de acabar os seus afazeres e de passar o máximo de tempo que conseguiu aguentar com Heather, já a tarde ia a meio. "Não é fácil", disse a si próprio, "manter o sentido de humor quando uma garota está a sofrer." Considerou‑se cobarde por lhe ter dado outro comprimido e se ter escapado com o pretexto de ir caçar.

Salve o poderoso caçador! Tinha vagueado pela neve durante duas horas extenuantes, esfolara um joelho numa rocha ao cair numa fenda invisível e assustara‑se imenso ao escorregar e quase cair de um penhasco alto.

Quando saiu das proximidades da fuselagem, deu por si apontando a pistola, como se algum coelho, veado ou antílope estivesse disposto a saltar à sua frente e a cometer suicídio. Mas não viu uma única criatura viva durante toda a tarde e, pior ainda, nem sequer viu pegadas.

Quando regressou ao abrigo, a sua sombra era muito comprida. Partiu aos bocados o que restava da tablete de chocolate e deu um a Heather. Ele tomou apenas chá de agulhas de pinheiro. Depois de acabar o chocolate, ela começou de novo a gemer e ele pensou que teria de começar a pensar nela simplesmente como "a rapariga". O nome Heather era demasiado pessoal e bonito. Identificava‑a como uma pessoa que podia significar muito para ele. Quando passara aquele tempo todo deitado no hospital, com tantos traumatismos em todo o corpo que as enfermeiras pensavam que nunca recuperaria, elas nunca se lhe referiam pelo nome. Falavam do "aviador", evitando assim qualquer envolvimento pessoal com o seu futuro incerto. Agora, pensou, "a rapariga" devia ser desligada da sua objectividade. Devia transformar‑se numa garota qualquer e desse modo o sofrimento dela não o perturbaria tanto.

"Se quero manter a minha sanidade mental", pensou, "não posso pensar nela como a querida amiga em que se está a tornar. Tenho que a forçar a manter as distâncias, senão vamos os dois por água abaixo. Não consigo agir com eficiência se estiver a sofrer com ela."

As coisas tinham que mudar. De outro modo, a sua tolerância não ia aguentar. Apetecia‑lhe gritar: "Importas‑te de parar de gemer?" Mas tinha que dominar a impaciência.

Ela voltou a gemer e ele desejou ser capaz de manter a sua promessa.

‑ Posso fazer alguma coisa para te sentires melhor?

Não se notava na sua voz a solicitude que ele teria gostado de ouvir. Lembrou‑se da voz de Sally durante as visitas ao Hospital de San Antonio. Houve alturas em que, independentemente do que ela dizia, soava como se lhe estivesse a implorar que abandonasse a imobilidade e se começasse a mexer.

Reparou que Heather não lhe respondera.

‑ Fiz‑te uma pergunta. Perdeste a língua?

Continuou sem dizer nada. Ele esperou, escutando o quase inaudível som do vento nas copas das árvores.

‑ Daqui a pouco é noite, e se há alguma coisa que eu possa fazer por ti, seria muito mais fácil fazê‑lo agora.

Por fim, ouviu‑a sussurrar.

‑ Dói‑me tanto.

Estava a culpá‑lo pela sua dor? Quantas vezes é que precisava de dizer que lhe doía? "Ouve, minha patetinha, não fui eu que fiz o raio do motor."

‑ Se te dou outro comprimido, podem vir a faltar precisamente quando mais precisarmos deles.

‑ Eu preciso de um comprimido agora.

‑ Valha‑me Deus... ‑ disse, contendo‑se depois. ‑ Vou dizer‑te uma coisa. Vamos fazer uma experiência. Já esvaziei o combustível do depósito, por isso faço a fogueira aqui dentro para animar. Que tal?

‑ Seria bom.

Ele rastejou até lá fora. Havia dois bons tições na fogueira e trouxe‑os para o abrigo. Perto da entrada, cavou um buraco raso. Cortou umas aparas do melhor pedaço de madeira que tinha e juntou‑as com cuidado aos tições. Conseguiu fazer uma boa fogueira, mas com muito fumo.

‑ O fumo vem‑me para os olhos ‑ disse Heather.

‑ Bem, eu não posso parar o fumo. ‑ "Quando é que ela vai deixar de reclamar?" ‑ Queres que eu faça a fogueira outra vez lá fora?

"Isso é que era bom", pensou; mesmo se ela lhe pedisse, não o faria. É verdade que havia fumo no abrigo, mas não era o fogo o primeiro e o melhor amigo do homem?

‑ Sabias? ‑ perguntou‑lhe.

‑ Sabia o quê?

Porque é que havia de estar preso numa montanha com uma miúda estúpida que nem conseguia ter uma conversa inteligente? Bom, fazia parte da história da sua vida. "Fazemos coisas pelos outros e eles nem se preocupam em agradecer."

‑ Perguntei se sabias que o fogo é o primeiro e o melhor amigo do homem?

‑ Nunca me perguntou isso.

‑ Não? Bem, também não vamos transformar isto num caso judicial.

‑ Caso judicial? De que é que está a falar?

‑ É apenas uma força de expressão que as pessoas costumam usar quando querem pôr fim a um desacordo. Quer dizer, não transformemos a questão num caso de tribunal.

‑ Por favor, peço‑lhe que não fale assim alto comigo, Jerry. Por favor.

Caramba! Que é que estava a acontecer?

‑ Está bem, está bem ‑ ouviu‑se a si próprio a dizer. "Não consigo por nada deste mundo disfarçar o aborrecimento na voz."

‑ Peço desculpa.

‑ Não tem nada que pedir desculpa, Jerry.

‑ Tenho, tenho. Mas voltemos ao princípio da conversa. Posso fazer alguma coisa por ti antes de ser noite?

‑ Podia contar‑me mais coisas da sua vida para me esquecer das dores nas costas.

‑ Não há mais nada a contar. ‑ Havia bastante mais, pensou, mas que sentido faria para uma miúda pateta?

De súbito, teve uma inspiração. A ideia surgiu‑lhe sem mais nem menos. Porque não? Pelo menos era uma coisa que podia servir de distracção.

Agarrou no saco do correio que lhe servira de almofada, abriu os cordões e tirou uma mão‑cheia de cartas. Dispondo cinco na mão, como se fossem cartas de jogar, estendeu‑as a Heather.

‑ Tira uma qualquer. Vamos ver o que é que o autor tem a dizer.

Ela hesitou.

‑ Não será indiscrição?

‑ Nesta situação, eu diria que é aceitável. ‑ "E bastante necessário", pensou. ‑ Vá lá. Tira uma ‑ instou ele.

Heather fechou os olhos, como que para ter a certeza de que a escolha era ditada pela sorte, e tirou‑lhe uma carta da mão. Ele pegou na faca e abriu‑a.

‑ Quer que eu lha leia? ‑ perguntou ela.

Ele fez que sim com a cabeça e esperou que ela começasse. Não estava interessado no conteúdo da carta, a não ser para manter Heather ‑ não, a rapariga ‑ distraída das dores nas costas e não o deixar pensar nos problemas de ambos. Ela continuou em silêncio e na penumbra conseguiu ver que estava a ler a carta, mas parecia relutante em partilhá‑la com ele.

‑ Então, não começas? ‑ perguntou com impaciência.

‑ É uma carta engraçada; não é engraçada como os livros de banda desenhada ou coisa parecida. Até é mesmo triste e eu não sei se percebo bem o que a pessoa quis dizer.

‑ Daqui a cinco minutos está escuro aqui e não consegues ler nada. Portanto, é melhor despachares‑te.

Ele colocou um galho no lume e tentou esquecer a dor da fome no seu estômago. Talvez conseguisse fazer uma armadilha com uns bocados dos destroços do avião, deixava‑a lá fora e de manhã o pequeno‑almoço estaria à sua espera.

‑ Esta carta é de um advogado e diz o seguinte: "Caro senhor Antonivich. Temos o prazer de o informar que fizemos finalmente um acordo extrajudicial com a Empresa Mineira do Nevada relativamente aos ferimentos que Vossa Exa. sofreu em Março de 1926. Foi acordada a importância de mil dólares e o cheque foi passado em nosso nome, de acordo com a nossa combinação prévia..." ‑ Fez uma pausa e disse: ‑ Há aqui uma palavra que eu não compreendo. Co-in-ci-dên-cia?

‑ Talvez seja coincidência?

Satisfeita, prosseguiu a leitura:

‑ "Cativámos este montante na nossa conta, visto que, por coincidência, perfaz o valor dos nossos honorários de advogados pelos serviços neste caso. Aproveitamos para lhe desejar a continuação das melhoras. Atenciosamente." Está assinada por um Mr. J. K. Monroe.

Estendeu a carta ao piloto e franziu o nariz.

‑ Acho que não gosto de Mr. Monroe.

Ele pôs a carta no envelope e voltou a guardá‑la no saco. Apeteceu‑lhe dizer que gostara de Mr. Monroe por ter feito com que ela deixasse de pensar nas dores. Abriu outra carta.

‑ Agora esta.

‑ É difícil de ler, mas vou tentar. A letra é igual à que aprendemos na escola. Diz assim: "Querida mãe, suponho que já não tens notícias minhas desde a morte do pai, ou talvez antes disso. Portanto, digo‑te que vou gastar o dinheiro extra e enviar‑te uma carta pelo correio aéreo. Lamento que o pai tenha morrido, apesar de nunca me ter mandado uns dinheiros. Agora já pensei se ele não terá mudado de ideias deixando‑me um dinheirito no testamento. Embora nunca nos tenhamos dado muito bem, o sangue é sempre o sangue. Ah! Ah! Portanto, se há algum dinheiro, manda‑o para o endereço abaixo indicado. Se tu e a minha irmã se abotoaram com a massa toda, só espero que vos apodreça nos bolsos, porque não é justo. Suponho que tudo vai bem convosco, senão eu já tinha sabido. Teu filho, Carl."

O piloto tentou sorrir. "E é por este género de coisas", pensou, "que eu por vezes arrisco a única vida que tenho."

Heather pediu‑lhe que lhe explicasse as cartas, mas ele não conseguia achar uma maneira lógica de lhe explicar a astúcia e ainda menos a ganância. Depois de ter tentado explicar, o abrigo estava apenas iluminado pelo brilho pálido da fogueira.

‑ É melhor fazermos por dormir ‑ disse ele em tom aborrecido pela sua incapacidade para explicar os impulsos básicos do comportamento humano. ‑ Queres ir primeiro à casa de banho?

Não houve resposta e em breve suspeitou ter dito qualquer coisa que não devia, porque a rapariga estava outra vez a chorar. Será que ia ter que tomar atenção a cada palavra que dizia?

‑ Pára, Heather ‑ deixou ele escapar. Depois, para seu próprio espanto, acrescentou: ‑ Por favor, pára com a choradeira, está bem?

"Se eu morder a língua", pensou, "o nosso pequeno mundo poderá girar mais lentamente. Mas, por todos os santos, como é que uma pessoa se consegue manter civilizada quando está fechada num buraco com dois metros de comprimento por um de largura e um de altura?" Aqui mesmo estava a sepultura de uma criança chorona e de um aviador destroçado que não conseguiu achar maneira de salvar a sua pequena passageira, já para não falar de si próprio. Que herói!

‑ Desculpa, Heather ‑ disse ele. ‑ Acho que estou cansádo. Chora o que te apetecer. Não me importo.

Rastejou lá para fora, pôs‑se em pé e olhou para o céu. Alguns flocos de neve bateram‑lhe na cara e pensou: "Tenho que arranjar uma maneira de sairmos daqui." Olhou fixamente para o vazio escuro, como se a noite o pudesse consolar. Só se ouvia a brisa bater suavemente na seda do pára‑quedas. Considerou as poucas hipóteses que tinha, mas com a fome não se conseguia concentrar e era‑lhe difícil separar o desejo da realidade.

Podia esperar que alguém viesse, mas isso talvez levasse uma eternidade. Podia deixar aqui a rapariga e tentar ele descer a montanha à procura de socorros. Era o que faria se estivesse sozinho, mas até isso era uma violação da velha regra de não abandonar o avião acidentado. Lá do alto viam‑se mais facilmente destroços do que um ser humano.

Abandonou de imediato a ideia. Nem sequer podia admitir deixar a rapariga sozinha mais do que umas horas. Deu voltas à cabeça à procura de outras saídas e só encontrou uma familiar. Tinham que descer a montanha juntos.

Olhou de novo para a escuridão e tentou imaginar quantos dias levaria a descida. No princípio do dia, tinha consultado o mapa de estradas, de que se serviam todos os pilotos do correio. Com os dedos, medira a distância aproximada de trinta quilómetros desde onde pensava estar até à pequena cidade de McDermitt, no Nevada. A maior parte do caminho era a descer pela montanha. Os últimos dezasseis quilómetros por um vale relativamente plano seriam mais fáceis. Porém, a neve podia ter aí mais altura.

O tempo escoava‑se juntamente com as suas energias. Se conseguisse descobrir um modo de transportar Heather, como é que iria encontrar forças para aguentar mais de trinta quilómetros pela neve? Ela era pequena, mas ao fim de algumas horas tornar‑se‑ia muito pesada.

Outra incógnita. Quais eram as hipóteses que tinham ao deixarem a protecção de um abrigo que os podia manter vivos por mais uma semana e arriscando‑se em plena montanha? Se o tempo piorasse oú ele caísse, seria decerto a morte para os dois.

De súbito, ouviu um grito que se transformou num choro histérico. Correu para o abrigo e encontrou Heather a tremer e a falar de modo incoerente.

‑ Por favor... por favor..., Jerry, ajude‑me!

Quando a tomou nos braços, ouviu‑a dizer qualquer coisa sobre uma pistola e uma série de balbuciares ininteligíveis. Por fim, disse muito claramente:

‑ Por favor, Jerry, mate‑me, não aguento mais!

Ele tapou‑lhe a boca e tentou acalmar‑lhe o esbracejar. Depois, tirou o frasco do bolso, pegou num comprimido e colocou‑lho na língua juntamente com alguma neve lá de fora.

Não fazia ideia do tempo que ela levou a sossegar, porque tentou desesperadamente manter os seus pensamentos longe do abrigo. Esperando acalmá‑la, manteve um monólogo contínuo, falando‑lhe da sua juventude no Nebraska, nos seus voos e até de Sally. Disse‑lhe que sabia o que era sofrer e que o pior dos sofrimentos era a solidão. Acariciou‑lhe o rosto e, sem se aperceber, disse‑lhe como sentia a falta de qualquer tipo de amor.

‑ A vida nesta terra é curta e não sei se isso é bom ou mau. Mas digo‑te que uma pessoa quando não é amada é como se estivesse morta.

Quando por fim ela começou a respirar regularmente, ele inclinou‑se e beijou‑lhe a testa. A garota estava a dormir.

 

                     CAPITULO SEIS

Moravia foi mais cedo para casa nessa noite, porque a sua frustração se tornara opressiva e achava que um homem obcecado não pensa claramente. Precisava de um banho, de se barbear e de pôr os óculos sobresselentes. E do carinho da sua mulher, Marsha, embora ele não soubesse como é que lhe ia dizer que o seu marido, que ela reputava de imbatível, se tinha descontrolado de tal maneira que arrancara bruscamente os óculos e os atirara à secretária. O resultado da fúria fora uma lente partida ‑ juntamente com a libertação de alguma energia perigosa.

O deixar‑se render à emoção fora o culminar de pequenas derrotas que começaram com o medricas do Stiller, que estaria melhor a vender gravatas, e a posterior conclusão de que Stiller fora o último piloto com hipóteses de localizar o Catorze. Depois, as condições atmosféricas nessa área tinham‑se tornado um inferno, como se a chegada de Stiller tivesse despoletado na Natureza intuitos maléficos.

Recebera relatórios de toda a parte dentro da área concebível de alcance do avião do Catorze.

‑ Quero um quadro completo ‑ exigiu Moravia. ‑ Todos os relatórios num perímetro de seiscentos e cinquenta quilómetros.

Agora, pensava com amargura que podia ter pedido um único relatório, pois todos se assemelhavam. Neve. Nuvens baixas. Má visibilidade. Nenhum avião aterrara. A oeste das Rochosas estava tudo isolado pela neve. Moravia detestava o silêncio que o envolvia. Cheirava demasiado a morte.

Ao fim da tarde, conseguira congregar o que deveria ter sido uma equipa de buscas eficiente. A Pacific Air Transport pusera dois aviões Ryan M‑I à disposição e todos os seus pilotos se tinham oferecido para as buscas. Prontos a partir estavam ainda dois aviões particulares baseados em Boise, um Waco Taperwing e um Curtiss Oriole. No hangar, estavam três dos Stearman de Moravia, com os respectivos pilotos ansiosos por partir. Os DH‑4 da Guarda Nacional Aérea de Spokane tinham sido forçados a regressar por causa do mau tempo. Moravia considerava‑os como uma última reserva.

No entanto, tudo fora inútil. Nenhuma hélice chegou a girar e com o aproximar da noite tornou‑se evidente que nada podia ser feito naquela altura. Se as previsões meteorológicas estivessem certas, apenas se poderia fazer um esforço limitado na manhã seguinte.

No calor do lar, Moravia tirou a perna artificial e deixou‑a cair no chão da casa de banho numa atitude de desafio satisfeito. Enfiou‑se calmamente no banho que Marsha lhe preparara e pensou que de todos os aviadores que conhecera durante e depois da guerra o Catorze era o mais interessante. Seria pelo facto de ambos serem deficientes? Partilha de uma infelicidade perpétua? Moravia achava que não. As deficiências físicas são demasiado pessoais para serem partilhadas. Ou se aprende a suportá‑las ou é o fim.

Flutuando confortavelmente no banho quente, Moravia olhou para o seu coto e pensou como era mais fácil as pessoas aceitarem um homem com uma só perna do que outro com os lados do rosto diferentes. Só os muito corajosos ousavam imaginar um acontecimento de tal modo trágico que os deixasse com um rosto como o do Catorze. O rosto é o espelho da própria pessoa perante o mundo, e a máscara que o Catorze era obrigado a usar só reflectia ruína. E contudo, pensou Moravia, embora as ruínas sejam sempre tristes, são habitualmente rodeadas de mistério. Normalmente, deseja‑se saber sobre uma ruína mais do que está à vista.

Moravia lamentou saber tão pouco sobre o Catorze e decidiu que, se ele sobrevivesse, tentaria conhecê‑lo melhor. Tinha dúvidas se ia continuar a identificá‑lo simplesmente por um número. De futuro, se houvesse futuro para aquele homem, ia esforçar‑se por pensar nele como o Jerry. Convidava‑o para um dos jantares especiais de Marsha, mas não ia ser sentimentalista acerca do seu infortúnio recente, pois isso não fazia parte da maneira de ser dos aviadores. Diria: "Jerry, eu não pensei em si um único momento. Enquanto você congelava a carcaça, eu saboreava os prazeres de um banho quente."

O piloto passou a noite a adormecer e a acordar. Uma vez ouviu um grito, mas, quando se voltou, verificou que a rapariga estava a dormir. Percebeu que estivera a sonhar e depois disso ficou quase com medo de tentar adormecer. "Não consigo suportar nem mais um grito, real ou imaginado. Tenho de dizer à rapariga para não voltar a gritar enquanto estivermos juntos. Tenho de lhe explicar que qualquer grito me deita abaixo, porque foi o último som produzido pelo meu aluno depois de cairmos."

Deitado na escuridão, voltou a cabeça e sentiu uma coisa dura debaixo do saco do correio e percebeu que era a pistola. Resolveu que ia tentar caçar outra vez. Talvez houvesse alguma coisa lá fora com que se pudesse fazer uma refeição. Depois, pensou nos comprimidos e lembrou‑se de que restavam seis. Devia ser à justa para mais um dia e uma noite. E depois? Ela voltaria a gritar?

Obrigou‑se a contar os seus haveres. Apesar das dificuldades em acender as fogueiras, a caixa de fósforos ainda estava meia. Havia três pedaços de chocolate. Pequenos. Havia uma quantidade ilimitada de agulhas de pinheiro para fazer chá, mas com o gosto amargo e a ranço que tinha pensou se não seria melhor beberem água pura da neve. Se havia bagas ou nozes nas vizinhanças, ele não vira nenhumas. "É inacreditável", pensou, "que nos tempos que correm duas pessoas decentes possam morrer à fome numa montanha da América." Mas era justamente o que estava a acontecer.

A única solução era tão óbvia como assustadora. Numa das vezes em que tentou fugir aos gemidos de Heather, fez um passeio pelo planalto até ao lado em declive da montanha. Tinha descido aos tropeções pela neve durante uns dez minutos para testar a sua resistência e constatou que estava em baixo. Enquanto esperava que o ritmo do seu coração regularizasse, quase se convenceu de que seria impossível descer a montanha transportando uma rapariga que não suportava movimentos.

Quando regressou ao abrigo, sentia‑se exausto. Disse para si próprio: "Ouve, caminhar pela neve é duro, mesmo que seja a descer. Tens de organizar os pensamentos e ser realista. E entretanto", pensou, "devias pedir desculpa à rapariga. Que homem és tu para nem lhe responderes quando ela perguntou o que aconteceria se ninguém aparecesse hoje? E depois rematar dizendo que naquela altura a mãe dela devia estar muito preocupada."

‑ Quem manda a filha de avião deve contar com algumas preocupações. Podias perfeitamente ter ido de comboio. Agora cala‑te ‑ dissera ele.

Que espécie de homem era ele para dizer coisas daquelas a uma garota em sofrimento? "Se a mãe dela", pensou, "devia ser censurada por alguma coisa, era por ter mandado a sua querida filha num avião pilotado por um cabeçudo incompetente."

O piloto rastejou para fora do abrigo logo que os primeiros sinais de luz atravessaram a seda do pára‑quedas e viu que podia ser um bom dia. A oeste ainda se podia ver Vénus e outras estrelas e o céu estava limpo. Não havia vento no sítio onde se encontrava, mas do cimo da montanha caíam farrapos de neve. O vento norte habitualmente traz bom tempo. "Se alguém aparecer", pensou, "será hoje", mas decidiu não partilhar essa esperança com a rapariga. Se não viesse ninguém, ela não recuperaria da decepção.

Na tarde anterior, retirara a bússola magnética do Stearman. Naquele momento, deitou um pouco do seu álcool sobre os gravetos e em breve o fogo crepitava. O conforto de acender o lume animou‑o. Estava a começar a conseguir. Apesar da bela fogueira, levou quase uma hora a obter da neve água suficiente para o chá. E enquanto esperava interminavelmente que a água fervesse, recordou‑se da altitude a que estavam. Se alguém viesse à procura deles hoje, tinha uma grande subida pela frente. O altímetro do Stearman marcava mil trezentos e setenta metros, mas não confiava nele. O impacte da aterragem podia tê‑lo avariado.

Espalhou umas agulhas de pinheiro na água e com um pau calcou‑as no fundo dos reflectores dos faróis de aterragem. Rastejou para dentro do abrigo e levou o chá quente com um pedaço de chocolate à rapariga. Tirou um bocado para si; desde que tinham saído de Elko, era a primeira coisa que comia. Duvidava conseguir explicar a Heather que, se não comesse qualquer coisa, as suas forças não duravam até ao fim desse dia. Decidiu não o fazer. "Devo ser o seu cavaleiro montado num cavalo branco", pensou ele, "apesar de o meu cavalo estar morto."

‑ Importas‑te que tome o pequeno‑almoço contigo? ‑ perguntou, sorrindo.

Percebeu que ela tentava retribuir o sorriso e as suas esperanças foram renovadas. Desde a noite passada que não pronunciava um som. Afinal, talvez tudo melhorasse. Ajudou‑a a levantar a cabeça para poder mais facilmente beber o chá e o desinteresse dela quase o enervou.

‑ Qual é o problema? Perdeste outra vez a língua? O mínimo que podias fazer era elogiar os meus cozinhados. Lembra‑te de que todos os grandes chefes de cozinha são sensíveis e facilmente ficam magoados.

Ela deu um gole no chá e uma trinca no chocolate, que ele segurava na mão. Por fim, disse:

‑ Não acha que seria melhor deixar‑me aqui e ir procurar ajuda?

‑ Não posso fazer isso. Nem sequer posso pensar nessa possibilidade. ‑ Pelo menos a sua resposta foi tão rápida como tinham sido algumas das suas observações maldosas.

‑ Porque não? Eu provavelmente ficava bem.

‑ É do provavelmente que eu não gosto. Ainda é longe até à cidade mais próxima. Devia levar uns dois ou três dias só para lá chegar.

‑ Podia levar‑me consigo.

‑ Já pensei nisso, mas não vejo como.

Ela ficou em silêncio durante um bocado, e enquanto bebia o chá olhava‑o fixamente sem desviar o olhar. E ele achou que os seus olhos pareciam muito mais velhos do que eram. Trincou um bocado de chocolate, apreciando o sabor, mas pouco depois ficou pouco à vontade quando se apercebeu de que ela estava a observar todos os seus movimentos. Por fim, perguntou‑lhe:

‑ Porque me olhas dessa maneira? Se tens alguma coisa a dizer, diz.

Lá estava ele a ser mordaz outra vez. Parvo. Porque não dizer‑lhe antes que parecia que o dia ia estar bom?

‑ Estou a olhar para o seu rosto. Você é um homem muito bonito.

Percebeu que por instinto mantivera a face sinistrada virada para o outro lado. No aeroporto, o capacete cobrira parte da sua desgraça e desde então, quando a dor e a luz ténue no abrigo lhe permitiam ver alguma coisa, ela só devia ter conseguido ver alguns lampejos do seu infortúnio.

Voltou deliberadamente o rosto todo para ela. O chocolate dera‑lhe um enorme rasgo de força. Por instantes pensou que podia conquistar o mundo.

‑ Olha para mim, agora. ‑ Nem podia acreditar na sua ousadia. ‑ Ainda achas o mesmo?

Observou os olhos dela procurando a mudança repentina, que tinha a certeza que iria encontrar, mas apenas encontrou o mesmo olhar fixo, determinado e singularmente velho.

‑ Acho, sim, Jerry. Você é bonito, porque é. Sei tudo o que fez por mim. Queria pedir‑lhe que me faça mais uma coisa.

‑ Claro, o que quer que seja eu faço.

‑ Não me deixe morrer aqui sozinha.

Ele susteve a respiração. Devia estar com alucinações.

‑ Que diabo estás para aí a dizer, rapariga? Se for como eu penso, não vais morrer nos próximos oitenta, noventa ou mais anos. Hás‑de vir a ser uma velhinha com cem bisnetos. Além disso, eles devem dar connosco hoje, ou talvez amanhã. Só temos que ficar aqui e esperar.

‑ E morrer lentamente à fome, Jerry? Você não comeu nada desde que estamos aqui.

‑ Acabei de comer um grande bocado de chocolate. Sinto‑me que nem um tigre.

‑ Deu duas dentadas. Isso não é, nem por sombras, suficiente para um adulto.

‑ Como é que sabes tão bem? És nutricionista ou quê? Como é que na Grande Guerra alguns prisioneiros estavam sem comer durante uma semana? Desde que consigamos obter água da neve, estaremos bem.

‑ Foi aviador na Grande Guerra?

‑ Não. Isto é, não estive além‑mar onde decorria o tiroteio. Estive em treinos no Texas, e quando acabei, a guerra também acabou.

‑ Portanto, nunca matou ninguém?

‑ Não. ‑ "Se eu fosse totalmente honesto", pensou, "teria de dizer que sim." Havia, e para sempre, aquele estudante que ele não conseguira salvar.

‑ Se não vierem hoje, quero que vá sozinho.

‑ Pensei que tinhas dito para eu não te deixar.

‑ Eu não fico aqui. ‑ Fez uma pausa, mas os seus olhos mantiveram‑se fixos nos dele. ‑ Você tem aquela pistola ‑ disse baixinho.

Ele segurou‑lhe o rosto entre as mãos e olhou para ela longamente sem dizer nada. Por fim, beliscou‑lhe as faces com carinho e disse:

‑ Ouve, minha amiguinha. Eu não sei que contos de fadas é que te contaram, mas não tens sequer o direito de pensar isso. Se não te doessem as costas, acredita que te daria uma sova que nunca mais esquecerias. Nunca mais quero ouvir uma palavra sobre esse assunto. Estamos juntos nisto. Fui bem claro?

Que espécie de mundo era este em que uma rapariguinha que ainda não tinha doze anos pedia a um tipo que pusesse cobro ao seu sofrimento com uma pistola? Viu que ela estava a chorar e com a manga do urso limpou‑lhe as lágrimas.

‑ E não chores!

Procurou desvairadamente no abrigo qualquer coisa que a distraísse.

‑ Ouve, Heather! ‑ Rastejou até ao saco do correio. ‑ Vamos ler mais umas cartas. Ouviremos falar dos problemas dos outros e assim os nossos parecerão pouco importantes. Vamos pensar que estamos em férias.

Tirou uma mão‑cheia de cartas e estendeu‑lhas. Ela hesitou, contudo ele percebeu que fazia um esforço para se recompor. Escolheu uma e ele abriu‑a sem desviar os olhos dela. Distracção... qualquer coisa para pôr de novo as coisas a rodar. Ela tinha que ser forçada a entender que o mundo continuava a existir. "E eu também", pensou. "Este abrigo é apenas um longo pesadelo. Se for preciso, mantenho‑a a ler cartas durante todo o dia. Talvez as costas dela melhorem e o espírito não descarrile. Talvez consigamos aguentar isto."

Ela estudou a carta por momentos.

‑ Jesus, que letra bonita e nem sequer é o tipo de grandes letras desenhadas que aprendemos na escola.

Estendeu‑lhe uma página para ele ver. Depois, encostou‑a ao nariz e cheirou‑a.

‑ Cheira bem. É o que eu vou ter um dia, Jerry. Um papel bem‑cheiroso.

"Óptimo, óptimo", pensou o piloto. "Ela está a fazer planos. Agora já tem qualquer coisa a que se agarrar." Quem lhe dera poder sentir o mesmo.

‑ Cá vai ‑ disse Heather com novo entusiasmo. ‑ Começa assim: "Cara Mrs. Tracy. Esta é a carta mais difícil que escrevi nos meus vinte e cinco anos de vida, contudo senti que era imperioso partilharmos a nossa dor mútua. Suponho que não havia grandes diferenças entre o seu Jim e o meu Jim, excepto na capacidade de amar, mas nunca terei a certeza. Sem dúvida que ele era um homem muito extraordinário. Perdoe‑me a necessidade que tenho de lhe escrever, agora que ele partiu. Por favor, seja tolerante com esta estranha que provavelmente despreza por ter sido durante tão pouco tempo uma outra Mrs. Tracy.

Parece‑me que ninguém pode ensinar outra pessoa a amar. Desde muito cedo que tomamos contacto com o amor, mas onde e como aprendemos a dar amor? Devo confessar que me sinto confusa agora que fui capaz de agarrar o meu amor por Jim, segurá‑lo ternamente na mão e olhar para ele. Não sei porque é que Jim morreu e eu sobrevivi. Tenho tentado pensar na razão e só fico mais confusa. Com o tempo, o Jim físico talvez se apague da minha memória, e se calhar encontro outro homem com quem quero partilhar esta vida preciosa. Contudo, mesmo que isso aconteça, Jim estará sempre comigo através da dádiva de amor que me deixou e ficar‑lhe‑ei eternamente grata por esse legado.

Não é verdade que cada pessoa cria a sua própria versão do amor? Alguns deixam‑no murchar, outros alimentam‑no com todas as forças. E geralmente constroem uma fortaleza indestrutível. Agora compreendo que o amor está disponível para quem abra os braços para o receber. Jim ensinou‑me isso, mesmo sendo eu uma aprendiz tímida e cautelosa."

Heather respirou fundo e murmurou que nessa página havia algumas palavras que nunca vira ‑ nem na aula de inglês, meu Deus. Ele instou‑a a continuar.

‑ Está bem, então lá vai... "Depois dos dois anos que passei com Jim, acho que o amor entre um homem e uma mulher é como um daqueles ca‑lei‑dos‑có‑pios antigos... Daqueles tubos de cartão para que se olha por uma ponta, se vai fazendo rodar e percebemos que podemos criar padres diferentes. Alguns até nos fazem dar gritos de satisfação, sem nunca sequer nos ocorrer que são todos feitos com os mesmos cristais. O nosso amor era assim ‑ suponho que o vosso também ‑ umas vezes alegre, encarnado e amarelo, outras mais suave e calmo, cor de malva e verde‑azulado. Dependia da maneira como virávamos os cristais nesse dia, hora ou minuto específicos.

Precisamente na véspera daquela noite horrível, Jim perguntou‑me se eu me importava de ir viver para a Irlanda se o trabalho dele assim o exigisse e eu respondi: 'Bem, eu não me interessa o sítio onde vivemos... seja ele na Lua ou em Manitoba. Desde que fôssemos uma unidade, a minha felicidade não teria limites. Nessa altura, eu não podia imaginar viver sem o Jim e decerto nunca pensei que isso me pudesse vir a acontecer. Depois, de repente já não havia escolha.

Não se preocupe, Mrs. Tracy. Eu não vou aparecer à sua porta para chorarmos juntas. Pelo que Jim me contou, imagino que deve ser uma pessoa muito reservada e é muito difícil partilhar a dor com estranhos. Além disso, nesta altura, não precisa das minhas lágrimas, que teimam em não secar. Mas eu hei‑de parar de chorar, juro. Penso que as pessoas que sabem amar são capazes de conquistar tudo o que desejam.

Mrs. Tracy, eu nem sequer penso que a senhora precise de um sermão sobre amor, um amor recentemente descoberto por uma pessoa de vinte e cinco anos que tarde desabrochou. Quis apenas com esta pequena epístola chegar à mulher, que nunca conheci, mas que partilhou Jim. Sinceramente, Janet."

 

                     CAPÍTULO SETE

Moravia estava bem disposto.

Esta manhã, aquele tipo de manhã que reforça a fé de um homem numa qualquer espécie de administrador supremo, provava que os tipos do Serviço Meteorológico são piores do que os economistas a fazer previsões. Maravilhoso, pensou, enquanto observava o céu azul‑pálido sem nuvens através da janela do seu escritório. Meu Deus, agora podia procurar‑se devidamente o número Catorze. Ao longo de todo o percurso para Elko, as informações eram de céu limpo e Moravia, vendo o barómetro a subir, sabia que iria ficar assim durante uns dias.

‑ Muito bem, meus amigos, vamos à obra ‑ murmurou ele.

Observava as lâminas luminosas das hélices dos dois Stearman que aqueciam na rampa em frente ao hangar.

Os pilotos já se encontravam nos cockpits, protegidos até aos olhos contra o frio. Eram bons homens e não ficavam bloqueados com dúvidas aeronáuticas como o Stiller. Moravia sabia que nada os impediria de proceder a investigações se vissem algo de significativo na área onde Stiller pensava ter visto "qualquer coisa".

Dois outros Stearman iriam procurar a sul, leste e oeste de Elko para a hipótese de o Catorze, por razões desconhecidas, ter resolvido voar numa dessas direcções. Os restantes dois Stearman assegurariam o correio.

Agora que o tempo estava limpo previa‑se a chegada a Pasco de quatro De Havilland da Guarda Nacional por volta do meio‑dia. Moravia tencionava enviá‑los para sul de Pasco. Um rancheiro que vivia a leste de Pendleton, Oregon, tinha telefonado a informar que vira uma coisa a brilhar num dos cumes. Seria uma rocha reflectindo o desgaste glaciário de há cinquenta mil anos? Um pássaro com uma asa branca? Sabia‑se lá. Até o mais improvável tinha de ser investigado.

Tinham todos que se apressar, pensou. Nesta latitude, os dias eram muito curtos e o céu limpo acarretava a sua própria maldição. Hoje à noite viriam as estrelas e, com elas, um frio terrível para os sem tecto.

Depois de Heather acabar de ler a carta, o piloto ficou em silêncio durante um grande bocado. Era como se estivesse à espera que ela respondesse a todas as perguntas que agora lhe confundiam o pensamento. Olhou para o relógio. Como é que já podiam ser 10 horas? Outro dia passado e ele sem ter conseguido nada.

Agora, onde estavam todos os seus grandes projectos? Onde estavam os bens necessários para os manter vivos e, acima de tudo, onde estava a sua coragem para não deixar transformar esta situação complicada em calamidade?

Heather também ficou em silêncio, revirando a carta.

‑ Que achas da carta? ‑ perguntou ele por fim. Queria ouvi‑la dizer que era a carta mais intrigante que já ouvira, porque decerto fora escrita por uma mulher que ele desejava conhecer melhor.

‑ Acho que ela deve ser o seu oposto ‑ disse Heather. ‑ Não se aborrece de falar de coisas como o amor. Abre‑se e deixa sair. Eu gosto disso.

‑ Diz lá outra vez qual era o nome dela.

‑ Janet. O que eu quero saber é quem é a outra Mrs. Tracy.

‑ Deduzo que seja a sogra.

Heather estudou a carta por momentos e depois disse:

‑ Não... Talvez não, porque ela diz que é muito difícil partilhar a dor com estranhos.

‑ Ela chama‑lhe Mrs. Tracy, não chama?

‑ Pois, mas diz logo no início que nunca se conheceram. Ora, uma mulher não tem de conhecer a mãe do marido?

‑ Não, necessariamente.

‑ Bem, que maneira engraçada de se estar casado. Quando eu me casar, quero conhecer a mãe do meu marido. Não vá ela ser uma bruxa.

‑ E eu digo que tens esperteza demais para a tua idade. Quando é que me contas a história da tua vida?

‑ Toda? Dos onze anos e oito meses? Quer que eu lhe conte como é que tive um cinco em geografia sem sequer saber onde fica a Bolívia?

A luz do Sol penetrava a seda do pára‑quedas e o piloto interpretou isso como um sinal de melhoria geral. O tempo estava a clarear e, mais importante, a rapariga começava a pensar no futuro. Se ela se pudesse envolver com esta carta, ou com qualquer coisa tangível, então aquela sensação mesquinha de que ela lhe dizia o que pensava, que ele gostava de ouvir, desapareceria.

‑ Acha ‑ perguntou Heather ‑ que Mr. Tracy podia ter tido duas mulheres?

‑ Duvido. Ela não diz que iam viver para a Irlanda? Não diria uma coisa dessas à outra mulher e, além disso, o marido não parece ter sido bígamo.

‑ Que é um bígamo?

‑ Pode dizer‑se que é um homem ou uma mulher que não sabem contar.

‑ Ouça isto, Jerry. Ela diz que quer apenas chegar à mulher, que nunca conheceu, mas que partilhou Jim. ‑ Olhou para ele por cima da carta e perguntou‑lhe o que pensava daquilo.

‑ Talvez fosse uma ex‑mulher ‑ disse ele.

‑ Quer dizer que o marido se divorciou da primeira Mrs. Tracy?

‑ Pode ser.

Começava a aborrecer‑se com a curiosidade de Heather e a sua única preocupação com uma das revelações da carta. Tentou recordar o que a mulher dizia sobre o amor.

‑ Já percebi ‑ disse Heather em voz alta triunfante. ‑ Diz aqui. "Por favor, seja tolerante com esta estranha que foi durante tão pouco tempo outra Mrs. Tracy." Tem que ser a segunda mulher a escrever à primeira. ‑ Heather pegou no envelope. ‑ O nome dela é Mrs. James Tracy e vive em Portland. ‑ Voltou a pôr a carta no envelope e disse: ‑ Não está a tomar atenção. Não tem piada nenhuma se não liga ao que diz a carta.

Era verdade. Não tinha estado a ouvir. Os seus ouvidos estavam sintonizados para um som que pensou ser uma partida do vento. Com o suave sussurrar dos ramos dos pinheiros, era quase imperceptível. Ficou sentado com a cabeça erguida, o corpo tenso, os olhos de um lado para o outro, como se estivesse a examinar todas as costuras do pára‑quedas.

‑ Para que é que está a olhar? ‑ perguntou Heather.

‑ Para nada. Estás a ouvir o mesmo que eu?

‑ Não ouço nada.

Começou a rastejar lentamente até à entrada, parando muitas vezes, à escuta, com a cabeça inclinada.

‑ Onde é que vai? ‑ gritou‑lhe Heather.

‑ Cala‑te! ‑ respondeu ele bruscamente. ‑ Não faças barulho nenhum.

Continuando em direcção à entrada, ouviu atrás de si um gemido abafado. Ignorou‑o, tinha de o fazer, porque outro som o absorvera totalmente.

‑ Parece‑me ‑ murmurou ele ‑, é muito ao longe, mas parece‑me estar a ouvir um avião.

Moravia estava a falar para Elko e ficou relativamente satisfeito com o que ouviu.

‑ Tivemos problemas com o arranque de um Stearman. Foi um magneto. Por isso, arrancámos com um velho Swallow. Eram oito horas quando ficou tudo pronto.

‑ Neste momento, estão todos no ar? ‑ perguntou Moravia.

‑ Estão. Mas Montgomery, que vai no Swallow, nunca tinha voado num.

‑ Ele está nervoso? ‑ Moravia estava preocupado com os motores Curtiss K‑6 dos Swallow. Tinham um registo de segurança desanimador.

‑ Ele diz que até voaria numa pá de estrume para encontrar Jerry.

‑ Óptimo. Há quanto tempo descolaram os aviões?

‑ Há cerca de uma hora. Devem vir reabastecer‑se por volta do meio‑dia. Eu telefono se tiverem visto alguma coisa.

‑ Fale‑me de qualquer das maneiras. Ponha‑os de novo no ar mal se reabasteçam.

‑ Vão precisar de descansar um pouco. Devem estar com frio.

‑ Não tanto como Jerry.

Moravia ficou satisfeito por só ter hesitado ligeiramente em tratar o piloto por Jerry e não por Catorze. No seu espírito, formava‑se progressivamente uma nova imagem. Apagava‑se o simples número e começava a ver o homem a quem acabara de chamar Jerry como um ser humano que também sabia o que era sofrer uma derrota pessoal.

‑ Continuem a procurar até ser escuro ‑ disse Moravia.

Quando saiu do abrigo, o piloto percebeu que o som que ouvira não fora imaginação. O seu instinto levou‑o a concentrar‑se num som que seria inaudível se não estivesse à espera de o ouvir. Passara duas noites e quase dois dias literalmente a sonhar com este momento.

O som desvaneceu‑se e só se ouvia novamente o barulho dos pinheiros. O vento devia estar a perturbar as ondas de som e a destruir os ecos normais, pensou. A doce melodia afastou‑se dos seus ouvidos. Correu um pouco pela neve. Para quê? A música era mais clara aqui ‑ a dez passos do abrigo? Parou para escutar de novo, desejando intensamente ouvir o barulho ritmado do motor de um avião. Em pensamento ouvia‑o, sentia as reverberações preguiçosas do hélice batendo no ar, porém sabia que na realidade não estava a ouvir senão o ranger do seu blusão de cabedal quando movia lentamente a cabeça de um lado para o outro.

A rapariga ia ficar perturbada, porque tinha de lhe dizer que fora um falso alarme. E começaria decerto a gemer mais que nunca, e ele iria começar a pensar mais seriamente em deixar a montanha já antes de dar em doido.

O sinal de fumo estava preparado, mas só podia ser feito uma única vez. Levaria mais que meio‑dia a apanhar boa lenha para uma segunda vez. Empilhara a melhor lenha que tinha numa pirâmide abaixo do sítio do abrigo. O óleo para deitar por cima encontrava‑se dentro de um recipiente grosseiro que fizera de um pedaço do tubo de escape. Estava a postos junto à pirâmide e produziria um belo fumo negro que até um cego veria a quilómetros. Isto é, se o óleo não estivesse demasiado congelado para arder e se a gasolina que ele salvara desse para acender a lenha verde. Eram muitos os ses.

Sim! Ali... acolá! Era mesmo. De certeza. E o som estava a aproximar‑se. Não havia dúvida.

Procurou no bolso a caixa de fósforos e lembrou‑se de que os deixara no abrigo. Dentro da sua luva. Para os manter secos. Agora que os fósforos deviam estar à mão.

Sempre que se encontrava assim sozinha, a ideia voltava. Miss Phipps, a professora de História Universal, havia de compreender. Uma vez falara na aula de Joana d'Arc e de como ela preferira ser queimada na fogueira a continuar a lutar.

Heather tentou lembrar‑se contra quem é que Joana combatia, mas não conseguiu. Sabia que esta dor devia ser a mesma que sentiam as pessoas que eram queimadas na fogueira. Heather d'Arc. Ninguém no Mundo inteiro havia de dizer alguma vez que ela era piegas.

De cada vez que a ideia voltava era mais forte. Heather olhou para o sítio onde Jerry dormira. O tecido ainda estava amachucado da pressão do seu corpo. O saco do correio que usara como almofada estava num canto distante e por baixo dele emergia ligeiramente um pedaço de cabedal.

Ninguém no Mundo, por mais forte que quisesse ser, suportaria esta dor. Como Joana d'Arc, algumas pessoas ficam melhor quando morrem. Esticou‑se e puxou o tecido para si. Deslizou facilmente sobre a neve compacta e com ele moveu‑se o saco do correio com o bocado de cabedal por baixo. Quando lhe conseguiu chegar, os seus dedos fecharam‑se sobre o coldre. Levantou‑o devagar e olhou‑o.

Tirou a pistola do coldre e teve um arrepio ao tocar‑lhe, de tão fria que estava.

Pensou em Jerry. Nunca ninguém iria acreditar que ele era um homem tão extra‑especial. Como o príncipe de Gales ou um dos grandes homens de que falara Miss Phipps. Ele tinha que descer a montanha enquanto era tempo. De todas as pessoas no Mundo inteiro, ele merecia mais que ninguém saber que alguém o amava. Como um daqueles caleidoscópios? Tudo dependia da forma como caíam os cristais. As pessoas que sabem amar conseguem realizar qualquer coisa ‑ como Mrs. Janet Tracy dizia na carta.

Experimentou encostar o cano da pistola ao coração. Depois, à testa e desviou‑se por causa da frieza da arma. Um tipo de dor diferente.

Agora o barulho do motor era inconfundível e aproximava‑se rapidamente. Com a pressa, o piloto caiu duas vezes ao querer subir para chegar ao abrigo. Sabia que não tinha mais que um minuto ou dois para ir buscar os fósforos. Depois, podia ser demasiado tarde. O seu espírito ansioso percebeu de repente que estava a ouvir um otor de um avião militar. Parecia um Curtiss K‑6, o que significava que era um Swallow. Que diferença é que isso fazia quando os segundos passavam? Vai buscar os fósforos e esquece tudo o resto!

Entrou de rompante no abrigo. Uma vez lá dentro, levantou a cabeça e viu o cano da sua pistola.

‑ Vá‑se embora ‑ disse Heather calmamente. ‑ Volte lá para fora, Jerry.

Ele hesitou, incrédulo. O seu corpo permaneceu imóvel.

‑ Que é que pensas que estás a fazer?

‑ Vá‑se embora, disse eu. Estou a falar a sério, Jerry.

Ele olhou‑a nos olhos e percebeu que falava a sério.

‑ Heather. Isso é perigoso. Larga‑a. ‑ Tentou alcançar a pistola, mas viu que ela tinha o dedo no gatilho. ‑ Heather. Vem aí um avião. Tenho de fazer já uma fogueira. Pode ser a nossa única hipótese. ‑ Tentou manter a voz indiferente, mas percebeu que revelava medo.

‑ Eu gosto muito de si, Jerry. Quero que você viva. Vá‑se embora, por favor...

Então percebeu exactamente o que tinha a fazer e forçou um sorriso.

‑ Muito bem. Se assim o queres. ‑ Moveu‑se como que para sair do abrigo, depois parou. ‑ Posso ir buscar os fósforos?

Ela fez um ligeiro aceno de cabeça. Ele alcançou a luva e tirou a caixa de fósforos. Por momentos, voltou‑se de costas para Heather. Depois, virou‑se de repente, bateu com a luva com força e arrancou‑lhe a pistola da mão. Agarrou‑a rapidamente, enfiou‑a no cinto e dirigiu‑se para a entrada. Ofegante de esforço, olhou de relance para trás. Ia a dizer "És uma menina muito má", mas viu que ela estava a chorar.

Saiu apressadamente do abrigo e correu colina abaixo até à pirâmide de lenha. Tentou pensar só na fogueira, mas era assaltado por outros pensamentos. Haveria qualquer outra coisa no abrigo com que ela se pudesse ferir?

O barulho do motor intensificava‑se. Enquanto tirava um fósforo da caixa, deu uma olhadela ao céu. Limpo, azul. Ainda havia tempo para fazer um bom fogo.

Riscou o fósforo. Faiscou, mas não se acendeu. Repetiu o gesto e ficou surpreendido ao ver o mesmo resultado. Mas que espécie de fósforos se fabricam hoje? Viu que a mão lhe tremia. "Acalma‑te e pára de ofegar. Ainda há tempo." Esforçou‑se por respirar devagar, enquanto acendia um terceiro fósforo e colocava as mãos em concha à volta da chama fraca. Muito bem, lá estava ela. Cá estava o primeiro e melhor amigo do homem, pronto para acender uma fogueira que faria sinal a um verdadeiro amigo lá nas alturas. Tinha que ser completamente cego se não visse o fogo preto que ia formar‑se.

O som do motor ecoava na encosta da montanha e parecia encher toda a área com a sua ressonância, contudo ele não ousava desviar os olhos do seu trabalho. Concentrou toda a atenção no fósforo e segurou‑o com cuidado até pegar fogo a alguns gravetos. Agarrou no recipiente do óleo, resolvido a não o despejar cedo demais. Isso seria a coisa mais estúpida de todos os tempos, disse a si próprio, fazer uma boa fogueira e depois apagá‑la na altura errada.

Olhou o céu de relance. Era um Swallow. Vinha mesmo na sua direcção. Não podia falhar. Aleluia!

Deitou o óleo no fogo e atirou o recipiente para o lado. Pôs‑se em pé e começou aos pulos, acenando os braços e gritando como se o piloto do Swallow o pudesse ouvir.

O avião passou pela frente do Sol e ele ficou momentaneamente cego. Depois, viu‑o de novo, tão perto que conseguia ver as manchas de óleo no bojo da fuselagem. Gritou até se sentir tonto, batendo com as mãos e elevando‑as acima da cabeça em saudação de vitória. Por fim, esperou impaciente os primeiros sinais de descida do avião, mas o Swallow continuou em linha recta em direcção ao cume da montanha.

O piloto olhou para a fogueira. Havia uma boa coluna de fumo castanho elevando‑se da pirâmide, embora as chamas fossem poucas. Olhou para cima, com as mãos ainda sobre a cabeça. O Swallow agora vai dar a volta, pensou. Está apenas a verificar a possível existência de ventos descendentes antes de iniciar a descida. Imaginou o Swallow a inclinar‑se e depois a descer graciosamente e quem quer que estivesse a pilotar teria um voo rápido e rasteiro inesquecível. Depois, regressava a Elko e dava a posição do Stearman na montanha e uma equipa de salvamento punha‑se a caminho. Seria tão simples como isso.

Deu por si a conter a respiração. O Swallow inclinou uma asa para a esquerda e ele pensou que era o início da descida. Mas depois a asa direita inclinou‑se e voltou à posição inicial. Pensou que devia haver qualquer turbulência lá em cima. "OK, amigo. Eu tenho muito tempo."

‑ Ei, espere aí! ‑ O piloto começou a acenar freneticamente. Porque o Swallow continuou em linha recta para norte. ‑ Vá lá...!

A boca do piloto abriu‑se e saiu um estranho grito quando viu que o avião continuou o seu caminho em direcção ao cume, brilhou por instantes com o sol e depois desapareceu.

De repente, deixou de se ouvir qualquer barulho de motor. De repente, só restava o céu imaculado, o sol e a montanha. Ficou a olhar para o cume à espera que o Swallow reaparecesse, embora soubesse que isso não ia acontecer. Como é que alguém podia não ver um homem em pé no meio da neve numa encosta deserta de uma montanha? Como é que alguém podia não ver aquela grande espiral de fumo castanho?

Deixou cair as mãos e inclinou a cabeça. "Devo ser muito, muito pequeno aqui em baixo", pensou, "...um pigmeu invisível." Olhou para o fumo e percebeu que tinha acendido o fogo demasiado tarde. Por dois ou três preciosos minutos. Olhou de novo para o cume e depois para baixo, para o vale. E começou a rir, baixo a princípio e depois mais violentamente. Os seus olhos encheram‑se de lágrimas enquanto brandia o punho ao céu. E gritou com todas as forças que lhe restavam:

‑ Certo! Eu sei! Eu não sou ninguém, sou um raio de uma nulidade.

Continuou a rir enquanto se arrastava em direcção ao abrigo. E reparou que o seu riso soava quase exactamente como os gemidos de Heather.

 

                     CAPÍTULO OITO

Estava deitado de costas, com o saco do correio a servir‑lhe de almofada. De olhos abertos, fixos na luz que se desvanecia sobre a seda do pára‑quedas por cima de si, esforçava‑se por visualizar o que o piloto do Swallow estaria a fazer naquele momento. Se calhar, estava a tomar café em Elko ou Boise ou até em Pasco e a explicar a Moravia ou a outra pessoa qualquer que não tinha visto nada de especial.

Quem poderia adivinhar que o atraso de dois ou três minutos a acender uma fogueira podia ser tão crucial? Quem é que iria imaginar que uma garota podia sequer pensar em suicidar‑se? E como é que um piloto poderia não ver tanto fumo contra um fundo de neve? Fácil. Os pilotos não têm olhos na parte de trás da cabeça. E o Swallow talvez nem pertencesse à companhia. Talvez fosse um avião particular ou alguém dos Serviços Florestais. E o seu piloto provavelmente não sabia que alguém se perdera. Porque se havia de incomodar a olhar para baixo?

Se o Swallow tivesse sido enviado por Moravia, talvez o piloto estivesse agora a dizer: "Estive naquela área e não vi nada. Estava um dia completamente limpo, de modo que eu conseguia ver à distância um bom par de quilómetros para cada lado."

Será que Moravia lhe perguntaria se ele tinha conseguido ver directamente para baixo? Devido à localização da asa inferior do Swallow e ao ângulo de visão para a frente, a partir do cockpit, a visibilidade directamente para baixo era bastante má. Moravia nunca pilotara um Swallow. Na verdade, quando apareceram, já ele não voava. Teria perguntado se o piloto andara em ziguezagues para não falhar nada ou simplesmente assumiria que ele não voara em linha recta? Será que um tipo dos novos, como, por exemplo, Montgomery, que nunca pilotara um Swallow, ficava tão preocupado que só se apercebia do que podia não ter visto lá em baixo quando já era demasiado tarde?

Depois do relatório do piloto do Swallow, era lógico que Moravia abandonasse esta área e passasse para outra. Pressionado pelo tempo, pelos homens e aviões, diria: "Pois bem, continuemos com a busca, pois temos ainda uma grande área a cobrir."

O piloto murmurou para si próprio:

‑ Culpar uma rapariguinha não te vai tirar desta embrulhada.

Nessa altura, Heather gritou‑lhe:

‑ Que é que disse, Jerry?

‑ Eu não disse nada.

‑ Jerry, eu quero aquele cavalo.

‑ Queres o quê?

Ela murmurava e gemia e pensou que com certeza não a tinha entendido bem.

‑ Quero aquele cavalo preto. Eu sempre quis ter um cavalo preto.

Ele arrastou‑se para junto dela e olhou‑a nos olhos. Tinham uma expressão vazia.

‑ Que é que vem a ser isso do cavalo? ‑ perguntou.

Heather apontou e gritou:

‑ Aquele que vem na nossa direcção! Vai passar‑nos por cima. Pare o cavalo, Jerry. Pare‑o antes...

Voltou a gritar e ele tapou‑lhe a boca com a mão. Mordeu‑lhe o dedo. E ele afastou a mão de repente.

‑ O cavalo, o grande cavalo negro ‑ repetia sem cessar, enquanto ele chupava o seu dedo ensanguentado.

‑ Tens os dentes bem afiados ‑ comentou. Estava tão chocado com o comportamento dela que mal sentia a dor na mão. Como é que se faz voltar à realidade as pessoas em delírio? Depressa, doutor.

A voz dela fez‑se ouvir num outro grito. Instintivamente, ele tapou os ouvidos com as mãos.

‑ Importas‑te de parar de gritar? ‑ perguntou tão calmamente quanto lhe era possível.

Heather abanou a cabeça violentamente e emitiu um som de asfixia. Ele estendeu o braço para lhe levantar a cabeça, mas ela empurrou‑o. Depois, começou a esgatanhar a cara e a murmurar repetidamente:

‑ Não deixe o meu cavalo fazer‑me mal.

Quando lhe afastou as mãos do rosto, ela tentou bater‑lhe, mas só conseguiu atingir o blusão de cabedal. Lutaram em silêncio e ficou espantado com a força que ela tinha. Quando por fim se acalmou, ele tirou o cinto e atou‑lhe os braços ao corpo. Quando se apercebeu de que estava presa, começou a soluçar violentamente e por muito tempo pareceu não ouvir as suas tentativas para a acalmar.

Por fim, ela descansou aninhada nos seus braços e ele pensou que o seu discurso para a acalmar mais parecia o resmungar de um doido.

‑ Se não te acalmas, os vizinhos vão queixar‑se. Claro que estamos em apuros, mas não ouviste falar de pessoas que naufragaram e ficaram a cantar até serem salvas? Canta, não chores. Vamos fazer disto o nosso lema.

Pensou se lhe havia de dar outro comprimido. Mas talvez lhe tivessem provocado o delírio. Viu que tinha a testa húmida e percebeu que, se ela tinha tido febre, já passara. Acariciou‑lhe o cabelo e mal podia acreditar na sua própria voz quando lhe disse:

‑ Heather, preciso de ti. Mais do que tu alguma vez pudeste imaginar.

Por fim, acalmou‑se e voltou de novo a ser ele. Retirou‑lhe o cinto dos braços e ela sorriu.

‑ Mostra‑me as tuas covinhas, mas não ponhas esse ar tão ajuizado ‑ disse‑lhe ele.

‑ Desculpe eu causar tantos problemas. ‑ Estava a ficar ligeiramente mais animada. ‑ Estive a pensar em Mrs. Tracy e acho que a segunda Mrs. Tracy escreveu aquela carta à primeira Mrs. Tracy porque ambas amavam o mesmo homem. Tentava partilhar a dor com ela porque devia necessitar de um amigo.

‑ És psiquiatra ou bruxa?

‑ Mrs. Gooch diz que eu sou muito directa. A minha mãe disse‑lhe que eu tenho poder de dedução porque já é de família.

‑ Quem é Mrs. Gooch?

‑ A minha professora de Matemática. Posso ver a carta outra vez?

Ele sabia exactamente onde se encontrava a carta porque a colocara no bolso do seu blusão. Pensara lê‑la de novo. Considerou que era estranho esta ter passado a ser a carta, enquanto todas as outras tinham pouco interesse. Entregou‑lhe a carta, e depois de a estudar por momentos, ela disse:

‑ A parte que eu gosto mais é esta quando ela fala de como vai parar de chorar. Aqui ela diz que as pessoas que sabem amar são capazes de conquistar tudo o que desejam.

‑ Talvez ela tenha razão.

‑ Bom. E que tal se eu fingir que estou apaixonada por si, talvez deixe de ser uma chata.

‑ Tu não és uma chata. Que é que eu faria sem ti?

‑ Se Mrs. Tracy consegue deixar de chorar, eu também consigo. E assim talvez consigamos descer a montanha juntos.

‑ É demasiado arriscado por várias razões.

Ela estendeu‑lhe a carta.

‑ Leia‑a outra vez, Jerry. Aposto que na escola Mrs. Tracy teve a observação muito directa na caderneta.

Umas horas depois, ele avaliou a sua condição física e achou‑se em má forma. Tomou consciência de que lhe restava no máximo mais um dia antes de ficar demasiado fraco para fazer qualquer coisa que não fosse esperar. E esperar, pensou, era morrer.

Levantou‑se lentamente da sua cama de tecido e os sinais da sua letargia rodearam‑no por todos os lados. Quando a fogueira lá fora se extinguira, não a reacendera. A madeira disponível parecia estar demasiado longe. A fogueira dentro do abrigo apagara‑se por duas vezes, e de cada vez levara muito tempo a reavivá‑la. Em breve, encontraria desculpas para não sair do abrigo.

Rastejou até lá fora, levando a carta consigo. O Sol já desaparecera e à medida que caminhava a neve rangia debaixo das suas botas. Sentia o ar muito frio, ou seria a fome que diminuía tanto a sua resistência? Desejava tanto estar sozinho por uns momentos, sozinho com a carta que se tinha tornado como que a voz de uma terceira pessoa na montanha. "Instale‑se, Mrs. Tracy", pensou. "Quererá a segunda Mrs. Tracy ter a amabilidade de jantar connosco? Temos um chá de agulhas de pinheiro soberbo e posso dividir o meu pedaço de chocolate consigo?"

Parou no meio do crepúsculo e ficou a olhar para o vale distante lá em baixo. Não havia vento e a avaliar pelo aspecto do céu havia poucas probabilidades de vento na manhã seguinte. Contudo, devia ter presente que a neve tinha uma crosta dura, e se ele partisse essa crosta carregando o seu fardo, podia ser a calamidade final. Cerca de trinta quilómetros até McDermitta, digamos, oitenta metros por hora... serão cerca de quarenta horas. Eram quase dois dias inteiros a sulcar a neve espessa, se tivessem sorte.

Tirou a carta do bolso do blusão e começou a ler. Agora, estava certo de poder visualizar Janet Tracy. Devia ser pequena, impetuosa e de cabelo escuro. As suas palavras revelavam um entusiasmo por todas as coisas. Devia conhecer a humildade porque obviamente tinha a coragem de se censurar por autocompaixão.

‑ São estas coisas ‑ comentou ‑ que eu compreendo. ‑ Concluiu que Mrs. Tracy também devia saber o que era ter escapado à morte por um triz, e ele considerava que as pessoas que têm essa experiência nunca mais voltam a ser as mesmas. Depois de reler a carta umas dez vezes, achou que lhe agradava particularmente a parte em que ela falava em segurar o amor do marido na mão.

Dobrou a carta com todo o cuidado, colocou‑a de novo no envelope e meteu‑a no bolso. De súbito, soube o que tinha a fazer. Havia uma maneira de descer a montanha com Heather ‑ talvez. Continuava a ser bastante arriscado, mas pelo menos não morriam sem tentar.

Dirigiu‑se à fuselagem o mais depressa que pôde. Iria utilizar a última luminosidade do crepúsculo para ver todas as coisas de que ia precisar na manhã seguinte.

Belvet a oeste da montanha, para lá do rio Quinn e do Desert Valley, uma cunha de ar quente e húmido separara‑se de uma faixa de baixas pressões que se estendia para leste sobre as serras. A cunha desenvolveu‑se numa pequena frente e trouxe chuva às regiões, que até aí tinham sido cobertas por grandes neves.

O ar quente espalhou‑se durante a noite, envolvendo primeiro os pontos mais altos e depois estendendo‑se pelos vales. Os antílopes e os outros animais selvagens gostavam da chuva porque reduzia a superfície de gelo e facilitava os movimentos na procura de alimentos. De madrugada, estes animais, que estavam esfomeados e alerta a todas as oportunidades de comida, ficaram preocupados. Escutavam sons familiares, o sibilar de pequenas avalanchas de neve escorregando dos picos altos e o ribombar ocasional das grandes avalanchas como trovões montanha abaixo. Os animais deslocavam‑se com cuidado, atentos ao mínimo sinal de alarme, porque a experiência os avisava de novos perigos. Os seus instintos bem desenvolvidos levaram‑nos a evitar o lado sul da montanha.

O piloto acordou muito antes de os primeiros raios de luz entrarem pela seda do pára‑quedas. Deu graças por a garota estar a dormir. Ainda restavam três comprimidos, o suficiente, esperava, para descer a montanha. Pôs‑se de joelhos e tremia incontrolavelmente. Seria possível só estarem na montanha há três noites e dois dias? Parecia que não voava há meses.

Rastejou até à fogueira e quando viu que as cinzas estavam frias pensou se havia ou não de acendê‑la de novo. Levava tanto tempo e nesse dia todos os minutos eram preciosos.

Olhou para o relógio e decidiu que não tinha alternativa. Iam precisar de água e poderiam começar por um chá quente. Eram 6 horas. Agora não haveria mais esperas e "se o que estou prestes a fazer é um erro", pensou, "será o meu último erro. Mas sinto‑me forte esta manhã, mais forte que nunca desde que aterrámos. Estou com uma fome de leão, mas mesmo assim sinto‑me forte".

Acendeu uma pequena fogueira com uma mão‑cheia de gravetos que guardara da tarde anterior. Fez muito fumo, pensou que a rapariga se iria queixar, mas não ouviu nenhum som.

Rastejou até junto dela, escutou por momentos a sua respiração e beijou‑a suavemente no rosto. Depois, rastejou até lá fora e ficou desapontado com a madrugada. O céu estava completamente coberto de nuvens escuras. Porém, estava calor, de tal modo que os farrapos de neve que lhe batiam no rosto se derretiam instantaneamente. Ficou de novo satisfeito. Podia trabalhar sem luvas e por isso muito mais depressa.

Regressou para junto da fogueira com o reflector do farol de aterragem cheio de neve. Empilhou barras partidas das asas do Stearman para fazer uma boa labareda. Já não havia necessidade de as guardar para uma emergência. Depois, acordou a rapariga. Perguntou‑lhe se ela ia ficar todo o dia na cama e chamou‑lhe preguiçosa.

‑ Dói‑te muito se te sentares?

‑ Dói.

‑ Mas tens que ir sentada quando eu te levar montanha abaixo.

Ela hesitou e, passados uns instantes, pressionou‑lhe a mão com os dedos.

‑ Então, sento‑me.

‑ Estás pronta para um voo experimental?

Sorriu e fez que sim com a cabeça, mas ele viu o medo nos seus olhos e pensou: "Se ela gritar, nem que seja só uma vez, não vamos conseguir."

‑ Queres primeiro tomar um comprimido?

Abanou a cabeça em sinal de recusa. Viu os lábios dela comprimidos, o seu pequeno maxilar chegado para a frente e as mãos fechadas em punhos.

‑ Muito bem, vamos fazer tudo com muita calma ‑ disse ele, passando‑lhe a mão por baixo dos ombros. ‑ Se não aguentares, pensaremos noutra coisa. ‑ "Em quê?", interrogou‑se. Mal havia tempo e energia para o que planeara com tanto cuidado.

Enquanto a levantava pelos ombros muito lentamente, observava o seu rosto. Quando o urso caiu de cima dela, recordou‑se de como era pequenina.

‑ Tudo bem até aqui? ‑ perguntou ele.

Ela acenou afirmativamente, mas os lábios tremiam‑lhe e ele percebeu que lhe devia de estar a doer.

‑ Não falta muito ‑ disse, encantado por, numa altura como esta, ter instintivamente mantido o lado bom do rosto virado para ela. Fez uma pausa. ‑ Está quase ‑ continuou. ‑ Queres experimentar o resto?

‑ Quero. Eu estou bem ‑ respondeu ela com uma voz tão fraca que mal se ouvia.

Moveu‑a devagar mais um centímetro para a frente.

‑ Aguentas? Esta é mais ou menos a posição em que irás. Se não conseguires, é preciso sabermos já.

Ela engoliu em seco e o piloto afastou o olhar da angústia estampada nos seus olhos. Endireitou‑a de novo mais um bocadinho e esperou um pouco.

‑ Então?

‑ Eu consigo. Hei‑de conseguir.

‑ Parabéns. ‑ Voltou a colocá‑la numa posição inclinada. ‑ Vamos tomar um bom pequeno‑almoço e depois tenho trabalho para cerca de uma hora. Em breve, minha amiga, iremos montanha abaixo.

Os olhos dela encheram‑se de lágrimas e ele sentiu um grande desejo de lhas limpar. Mas pensou: "Não devo dar sinais de fraqueza nas horas que se avizinham. Não conseguiremos vencer se chorarmos os dois."

Fez um pouco de chá de agulhas de pinheiro depois de a água estar quente. A seguir, rastejou para junto de Heather e pediu‑lhe para segurar no recipiente do chá, enquanto ele servia o prato principal. Partiu ao meio o que restava do chocolate e aconselhou‑a a mastigar devagar, uma vez que a porção era tão pequena. Foram bebendo o chá aos goles alternadamente, passando o recipiente de um para o outro com uma formalidade solene. Não disseram nada um ao outro senão com os olhos e isso era o suficiente, pensou ele. Porque sabia que as pessoas prestes a arriscar a vida geralmente eram pouco dadas a conversas.

Quando acabaram, ele disse‑lhe para ter paciência e começou a arrastar‑se para a entrada. Acabara de se voltar de costas quando parou. Ficou a ouvir um ruído estrondoso fora do abrigo. Aumentou de volume e depois parou abruptamente.

‑ Que foi aquilo? ‑ perguntou Heather.

‑ Não sei.

‑ Parecia um comboio a passar. Todos os dias, às três horas, o Union Pacific passa em Elko e o som parece tal qual este.

‑ Julgo que não foi isso o que ouvimos.

Prosseguiu em direcção à entrada. Nunca ouvira tal barulho e não lhe agradava nada. Ficou animado quando saiu para a luz do dia. Que calor! E ao fim e ao cabo não parecia ser um mau dia para a expedição. O pico da montanha estava tapado com nuvens, mas a visibilidade nas vertentes mais baixas era bastante boa. Viu lá em baixo um monte de granito que estivera totalmente coberto de neve e os contornos escuros dos cursos de água distinguiam‑se agora claramente.

Fez figas com os dedos quando se aproximou do cockpit de trás do Stearman. "Agora", pensou, "vou precisar de um montão de pura sorte para levar a cabo a primeira fase do meu plano." Limpou a neve do banco e das correias que o prendiam à fuselagem. E cogitou: "Meu Deus, porque é que constroem o avião e todas as suas peças com tanta solidez?" Depois, quando manuseava as porcas e os seis parafusos que seguravam o assento à estrutura, repreendeu‑se por estar a ser irracional e ingrato. "Não, decididamente, não defenderia um avião menos sólido, mesmo que nunca me passasse pela cabeça vir a cair com um avião na vertente de uma montanha."

Graças à previdência de Moravia, ele não estava sem recursos. Contudo, ia ser difícil retirar o assento quando as únicas ferramentas disponíveis eram uma chave de parafusos, um alicate e uma chave inglesa. Destinara uma hora para esta tarefa. Quase duas horas mais tarde, com os nós dos dedos ensanguentados, retirou a última porca, desatarraxou o último parafuso e tirou o assento para fora do cockpit. Pousou‑o na neve e sentou‑se nele. Lambeu as mãos e lembrou‑se de que não incluíra nos seus planos o peso do banco. Meu Deus, como era pesado.

A sua ideia era fixar as faixas do pára‑quedas ao banco e depois enfiar nelas os braços da maneira normal. As costas do banco ficariam encostadas às suas e o assento virado para o lado oposto. Heather ficaria pelo menos razoavelmente confortável e o seu peso seria distribuído proporcionalmente. Quando sentisse a necessidade de aliviar o peso das costas, havia de encontrar alguma coisa de altura semelhante à do banco para o apoiar. Se Heather quisesse deitar‑se, ele podia tirar as correias dos ombros. Mas o peso do banco, mesmo sem Heather, era impressionante.

Sentou‑se na neve, tentando achar um processo de transportar a rapariga sem o assento, mas tudo em que pensava era ainda menos prático. Decidiu dispensar o cinto de segurança, o que poupava algum peso. Se a caminhada se tornasse turbulenta, Heather teria de se segurar. Fixar as faixas do pára‑quedas foi mais fácil do que esperava, mas já a manhã ia a meio quando levou a sua obra para o abrigo. Do lado de fora, fez um monte de neve que lhe dava pela cintura e colocou‑lhe o banco em cima.

Cansado do esforço, prometeu a si próprio descansar uns bons cinco minutos antes de trazer Heather para fora do abrigo. Dera por si a cambalear de vez em quando e tivera algumas vertigens, o que o enfurecia. Se pudesse deitar‑se e fechar os olhos por uns momentos, talvez a tontura passasse.

De súbito, mudou de ideias quanto ao descanso. Porque no lado oposto do planalto, onde sobressaía da montanha um bloco gigantesco de granito, viu uma massa enorme de neve e pedra caindo da cobertura nublada sobre a encosta. Descia rapidamente, como uma grande vaga de oceano encimada por espuma, e espraiou‑se no vale lá em baixo. Momentos depois, ouviu o estrondo assustador da sua passagem.

Foi logo buscar Heather.

 

                   CAPÍTULO NOVE

Moravia estava de novo à janela a meditar na decepção da busca do avião número Catorze e no homem desafortunado que fora o seu piloto.

Fora? Talvez tivesse morrido instantaneamente, o tipo de morte que qualquer piloto preferia, caso fosse inevitável, e então não fora assim tão infeliz. Desde que Moravia voara pela primeira vez, o seu credo tinha sido: "Se tem de acontecer, que não seja com fogo nem com o avião a desfazer‑se aos bocados, comigo a ver. Que seja contra uma montanha ou coisa parecida, de modo que num minuto eu deixe de existir." Não era uma oração, reflectia Moravia, mas um eco da filosofia de todos os pilotos que conhecera desde os seus dias em França até àquela manhã agoirenta.

Havia, claro, o rosto do número Catorze, que não era propriamente decorativo para a casa. Lá fora estava o mecânico Rohrbach, a quem faltava uma das mãos, graças ao hélice de um Jenny. Há muito tempo, um estudante tolo que se encontrava sentado no cockpit ficara confuso, embora alegasse depois não ter entendido a ordem de Rohrbach para se certificar de que o magneto estava desligado. Em vez disso, deixara‑o ligado, enquanto Rohrbach dava ao hélice e o maldito motor OX‑5 começava a trabalhar. O hélice decepou a mão esquerda de Rohrbach e teve muita sorte por não lhe ter acontecido o mesmo à cabeça.

Moravia viu aparecer Carson, conhecido por Kit. Trazia vestido o seu urso e ia fazer o transporte regular do correio da manhã, esperançosamente, até Elko. Carson era um veterano. Tinha voado no México com os Pershing, quando o Exército ainda não sabia bem o que fazer com os aviões e muito menos como formar aviadores. Quando acabaram os seus biscates a sul da fronteira, fora para o Norte, para o Canadá. Alistara‑se na Royal Canadian Air Force e tinha voado nos ataques contra os Alemães com pilotos de craveira. Tinha sido atingido, caíra entre as linhas e passara a noite numa cratera aberta por uma bomba. A certa altura durante a noite, recebera uma lufada de gás de mostarda sem ter máscara de protecção e, devido à longa espera até ser hospitalizado, acabara por perder um pulmão.

Pelo menos, pensou Moravia, o problema anatómico de Carson não se notava exteriormente e as pessoas que vinham à companhia, incluindo os inspectores dos Correios, que metiam o nariz em tudo, não ficariam mais convencidas de que voar não era coisa que se fizesse.

Moravia voltou à sua secretária e olhou para o mapa que a cobria. Havia grandes áreas que riscava com o lápis. Eram as zonas que os seus pilotos tinham sobrevoado e supostamente perscrutado minuciosamente. Mas não tinham relatado nada de interesse. Ainda havia áreas consideráveis onde o número Catorze podia ter caído, nas montanhas Strawberry, a sudoeste de Baker, no Oregon, por exemplo, embora não fosse muito provável que ele se tivesse afastado tanto da rota.

Naquele momento, os De Havilland da Guarda Nacional estavam a passar revista à região em redor de Pendleton, no Oregon, e iriam continuar para sul durante o dia.

Dois dos Stearman da base já se encontravam sobre as Montanhas Azuis e estariam de volta em breve para reabastecimento e para receberem mais instruções ‑ a menos, claro, que avistassem o Catorze.

Moravia ouviu baterem discretamente à porta. Voltou‑se e viu Stiller à porta com o seu urso dobrado no braço, o capacete e as luvas na mão.

‑ Bom dia ‑ disse Stiller no seu tom reservado, e Moravia pensou que este homem, que não apresentava uma arranhadela da profissão, era possivelmente o mais seriamente atingido.

‑ Não sabia que você estava escalado para voar hoje ‑ disse Moravia.

‑ Não estou, mas vou, se for preciso.

Stiller entrou na sala cautelosamente, como era seu hábito em tudo, recordou Moravia.

‑ Tenho estado a pensar ‑ disse Stiller ‑ e falei com a minha mulher, que sugeriu que eu falasse consigo se realmente pensava assim.

"Assim como?", interrogou‑se Moravia. "Agora, no meio do que pode ser uma tragédia, a minha vida vai ser iluminada pelo que a mulher de Stiller acha que deve ser feito." Era notável que ela tivesse aberto as correntes de seda, deixando o seu precioso companheiro vir ao aeroporto no dia de folga.

‑ Qual é a ideia? ‑ perguntou Moravia.

‑ Bem, não tenho dormido nas últimas noites a pensar. Contei à minha mulher aquele voo em que penso que talvez tenha visto um bocado de um avião a norte do pico Capitol. Bem, quanto mais discutia isso com ela, mais certo ficava de ter visto alguma coisa. A noite passada, com as luzes apagadas, pareceu‑me visualizar melhor as coisas e estou seguro a noventa por cento de ter visto algo através daquela aberta.

Moravia conseguiu permanecer em silêncio durante um bom bocado. Resistiu heroicamente à tentação de descrever em pormenor o que pensava do carácter de Stiller numa série de frases coloridas. Em vez disso, inclinou‑se sobre o mapa e insitou Stiller a juntar‑se‑lhe.

‑ Mostre‑me outra vez onde pensa que estava.

Stiller desenhou um círculo no mapa com o dedo.

‑ Algures por aqui. Tenho a certeza.

‑ Muito bem. Vou mandar o correio da manhã de comboio. Pegue no último avião que aqui temos e volte lá. Durante a tarde, vai ter mais companhia porque, à medida que ficarem disponíveis, enviarei todos os aviões ter consigo.

"E na eventualidade de voltar a ter medo de ver bem, desta vez", pensou Moravia, "ponho‑lhe um cão com asas atrás da cauda. Para desempenhar essa tarefa, mando Carson porque ele já fez uso da maior parte das vidas que lhe cabem e não apaparica as que lhe restam."

O piloto parou por momentos perto da extremidade do planalto e olhou para trás, para o abrigo que construíra. Mesmo a esta curta distância, não era uma estrutura tão imponente quanto ele supusera. Agora, parecia apenas um pequeno arranhão na encosta coberta de neve. Ele via as dobras do pára‑quedas sobre a fuselagem e uma parte da cauda do Stearman espetada, mas as asas estavam de tal modo tapadas pelas árvores que ele teve de olhar bem para se certificar se não eram apenas duas irregularidades na neve.

‑ Bem, diz adeus ao teu querido lar ‑ disse ele por cima do ombro.

‑ Aloha ‑ disse Heather.

‑ Onde é que foste aprender isso?

‑ O meu tio que vive no Havai veio visitar‑nos no Verão passado e passava o tempo a dizer isso. Significa adeus no Havai.

‑ Alguma vez esqueces o que te dizem?

‑ Não. Especialmente quando gosto.

‑ Que tal estás aí atrás?

‑ Ainda cá estou. Sou muito pesada?

‑ Ainda bem que estiveste a fazer dieta.

Mantiveram uma conversa ligeira durante a primeira hora e depois os silêncios entre os dois tornaram‑se mais longos. Ele sabia que com o tempo o efeito do comprimido que dera à rapariga quando a colocara às costas estava a passar. Fora sempre assim, primeiro o silêncio, depois os pequenos gemidos e finalmente os gritos angustiantes. Só restava um comprimido.

Enquanto o Sul esteve no zénite, a descida foi espantosamente fácil. O piloto encontrou uma vala que saía do planalto e a marcha foi boa até ela se tomar íngreme e se juntar ao leito de um rio. Aí havia inúmeras pedras enormes e calhaus misturados com arbustos e bocados de árvores. Apercebeu‑se com nervosismo crescente de que os escombros deviam ter sido deixados por uma avalancha, havia pouco tempo.

Olhou para trás, para a enorme montanha. Parecia mais sinistra do que nunca. Virando‑se de novo para a frente, viu que a confusão de rochas e vegetação que agora tinha que transpor se espalhava ao longo da parte terminal de uma ravina natural. Desde que deixara o planalto que não descansara, mas isto não era lugar para demoras. Atravessar a ladeira parecia, à distância, ser fácil. A menos de duzentos metros havia um declive sem árvores com uma inclinação suave. Agora, o sol da tarde fazia brilhar a neve virgem do declive e parecia serem apenas alguns minutos de marcha penosa para contornar a confusão de obstáculos. Uma vez lá chegados, poderia descansar.

Passaram duas horas e eles ainda se encontravam na ravina. Parecia que sempre que encontrava uma passagem aparecia à sua frente qualquer obstáculo intransponível que o obrigava a recuar. O principal vilão era o rio que corria na ravina. Receava atravessá‑lo nos sítios onde era profundo, e nos baixios corria tão rapidamente que o poderia deitar ao chão. Duvidava que se conseguisse levantar de novo com o peso de Heather e da cadeira.

Olhou para o relógio. Eram 2 horas. Estavam três horas atrasados em relação ao horário que esperava e calculou que teriam avançado menos de quatro quilómetros. Ouviu o barulho de outra avalancha; já tantas tinham quebrado o silêncio que quase deixara de as ouvir. Percebia que estava a perder as forças rapidamente, mas agora estava empenhado em continuar, e se não o fizesse, esta medonha ravina podia transformar‑se no túmulo de ambos.

‑ Heather ‑ disse calmamente ‑, não estamos a avançar muito.

‑ Está muito cansado? ‑ perguntou ela.

‑ Não. Estou bem. ‑ Não ganhava nada em dizer‑lhe a verdade.

‑ Tenho estado a pensar na carta ‑ disse ela. ‑ Gosto especialmente daquela parte onde diz que cada pessoa cria a sua própria versão de amor. Quando penso nisso, esqueço‑me completamente das costas porque... bem, se uma pessoa usar um pouco de imaginação, e Miss Livingstone diz que eu tenho muita, pode ajustar‑se a nós dois.

‑ Miss Livingstone deve ser uma das tuas professoras.

‑ Não. É a nossa vizinha do lado e não me parece que ela perceba muito de amor porque é solteirona.

‑ Não estás a ser um pouco dura com Miss Livingstone?

‑ Pois estou. Sei que não devia ser porque ela é uma pessoa muito simpática, ainda que o amor não seja a sua especialidade.

Baloiçou o banco fortemente ao tentar abrir caminho junto à saliência de uma rocha que prometia possibilitar uma nova saída da ravina. Ouviu‑a gritar e depois abafar o som.

Esperando distraí‑la, perguntou:

‑ Miss Livingstone discutia a sua vida pessoal contigo?

Ela não respondeu e ele pensou: "Tenho de ignorar o que se passa lá atrás. A única coisa que importa é sair desta ravina antes que escureça."

Daí a pouco ouviu a voz dela.

‑ Jerry, há pessoas especialistas em amor?

‑ Tu pareces uma caixinha de perguntas. Não sei o que responder. ‑ "E mesmo que soubesse, não tenho forças para isso", pensou ele.

‑ Eu não quero ser como Miss Livingstone.

‑ Não há hipótese. Nunca serás.

‑ De acordo com a carta da segunda Mrs. Tracy, julgo que há diferentes tipos de amor e podemos escolher.

‑ Tenho que pensar um bocado no assunto. ‑ Sabia que não ia pensar. Não se podia permitir pensar noutra coisa que não fosse descer aquela maldita montanha.

à medida que abria cuidadosamente caminho de rocha para rocha e contornava as árvores devastadas, sentiu que já não era completamente o mesmo. Embora dominasse o corpo, o seu espírito vagueava sem controle; não conseguia avaliar com realismo a distância que tinham de percorrer.

Movia‑se automaticamente. As dores causadas pelas faixas do pára‑quedas, que se lhe enterravam nos ombros, tornavam‑se quase intoleráveis. "Não posso continuar assim", pensou. Por fim, conseguiu encontrar maneira de atravessar o rio e Heather pediu para beber água. Por isso, ele encostou‑se ao tronco caído de uma árvore de modo que este suportasse o peso do banco. Soltou as faixas dos ombros e contornou a árvore até conseguir ver o rosto dela. Por momentos, sentiu‑se enfeitiçado pelos seus olhos azul‑esverdeados.

‑ Está tão cansado. Tenho tanta pena de si... ‑ disse ela.

Ele baixou‑se e num impulso segurou‑lhe as mãos, e embora percebesse que devia estar alucinado, não pôde conter‑se e levou‑as aos lábios.

‑ És uma bela mulher ‑ ouviu‑se a si próprio dizer. ‑ E eu amo‑te muito.

Apercebeu‑se da tentativa dela para sorrir e ouviu‑a dizer:

‑ Eu amo‑o, Jerry, e espero que fiquemos juntos para sempre.

Dirigiu‑se rapidamente para o rio e apanhou alguma água com as mãos em concha. Trouxe‑a para junto dela e inclinou as mãos suavemente enquanto ela bebia.

Voltou ao rio para saciar a sede e, quando se inclinou, viu o seu rosto reflectido na água. Recuou bruscamente. Esquecera‑se da sua cara. Pensara que era igual aos outros homens, momentaneamente.

Fechou os olhos, inclinou a cabeça para beber e levantou‑se. Voltou para junto de Heather e achou‑a transformada. Agora era apenas uma rapariguinha com ar infeliz embrulhada num fato de voo ultragrande.

‑ Estás pronta para mais uma caminhada? ‑ perguntou com indiferença. Não gostava do seu tom de irritação, mas ele lá estava.

‑ Posso tomar outro comprimido?

‑ Não. Estás a tornar‑te numa drogada.

Agachou‑se para conseguir enfiar as faixas nos ombros. Ergueu‑se devagar até sentir o peso dela, depois ficou de pé.

‑ Que é um drogado? ‑ ouviu‑a perguntar.

Ainda irritado, respondeu asperamente:

‑ Não é da tua conta.

Começou a descer pela encosta o mais rapidamente possível. Entre o ranger do seu blusão de cabedal e a sua respiração ofegante, parecia‑lhe ouvir a rapariga chorar. Continuou a descer sem parar, com a sua sombra alongando‑se na neve.

"Nunca mais", pensou, "nunca mais me permitirei tais devaneios."

 

                     CAPÍTULO DEZ

Carson foi o último piloto a sair do escritório de Moravia. Os outros tinham dado as suas informações ou telefonado depois de aterrarem e o resultado era quase idêntico. Todos eles tinham visto os destroços, mas foi Carson quem melhor descreveu o que vira.

De pé em frente da secretária de Moravia, massajando o nariz frio e arroxeado, ainda de urso e botas, relatou:

‑ Dei umas vinte voltas aos destroços e voei tão baixo e tão próximo que teria acordado qualquer morto... perdão, qualquer pessoa do Mundo. Passei a cerca de quinze metros de altura e tenho a certeza absoluta de que se alguém lá estivesse me ouviria. Vi as asas. Estavam partidas entre duas árvores. Depois, havia a fuselagem com o pára‑qupdas posto por cima, que também estava destruída. Só por milagre alguém sairia vivo dali.

‑ Mas não havia pegadas na neve?

‑ Havia muito pouca luz quando lá cheguei, por isso é um pouco difícil de dizer. Mas vi um sítio onde parecia ter estado uma fogueira. E uma coisa é certa: agora, não há qualquer sinal de vida nas redondezas.

‑ Parece‑me que, se ele teve força para envolver a fuselagem com o pára‑quedas, é porque se mexia.

‑ Talvez, mas o pára‑quedas pode ter‑se solto com o impacte e ter‑se aberto sozinho. Quase que bati com a extremidade de uma asa ao tentar conseguir um ângulo de onde pudesse verificar se ele ainda lá se encontrava, mas foi inútil porque a fuselagem estava deitada de lado.

‑ Mas parecia que ele tinha feito lume?

‑ É verdade, mas estava tudo tão coberto de neve que, mesmo quando reduzi a velocidade para uns cem quilómetros/hora, não consegui confirmar nada, excepto que era o avião de Jerry. Vi o número Catorze na cauda. Sem dúvida.

Moravia acendeu um caporal, deu uma passa e tossiu ligeiramente. Agora, teria o triste dever de falar aos avós da passageira e aos pais em Elko para dizer que o avião fora encontrado. Que mais? Que os dois ocupantes estavam seguramente mortos? Teria sido uma morte sem sofrimento, claro. Sempre que Moravia tinha uma comunicação a fazer aos parentes mais próximos, nunca lhes dizia a verdade sobre o modo como os seus entes queridos tinham morrido. Neste caso, iria fazer o mesmo. O piloto e a passageira tinham morrido instantaneamente, sem dor.

Quanto a Jerry, o homem sem lar, nem sequer era preciso isso. Moravia pensou que o melhor seria passar pelo quarto dele para ver se encontrava algumas pistas de pessoas que pudessem ter algum interesse em saber que Jerry, cujo último nome Moravia se envergonhava de ter esquecido ‑ era Amity, um nome nada adequado a um homem tão pouco em harmonia com o resto da Humanidade ‑, o homem que pilotava o avião número Catorze, como gostariam de saber, falecera sem sofrimento. Não estava completamente bem. Sem grande sofrimento.

‑ Há alturas ‑ disse Moravia, deitando o fumo pelas narinas ‑ em que detesto este trabalho.

‑ Compreendo ‑ disse Carson, e Moravia sabia que era verdade.

Carson partira depois, dizendo que ia até ao Fred's Place, o bar local, para beber um whisky.

Moravia ficou sentado em silêncio, sozinho no seu escritório, até à noite. Por fim, suspirou e acendeu a luz da secretária, pois sabia que em breve iria ter que responder a certas perguntas e queria estar preparado. Fez uma série de telefonemas e por fim localizou um tal Maxwell Foster em sua casa, no Reno, Nevada, e falou‑lhe nos destroços.

‑ Visto que o senhor é o responsável pelos Serviços Florestais, gostaria de saber quando é que pode retirar os corpos... assumindo que eles existam.

‑ Espere um momento. Não tenho sequer a certeza de que isso seja na minha zona.

‑ E se não for, está a querer dizer‑me que ignora a situação?

‑ Não precisa de ser tão ríspido. Eu não enviaria ninguém a essa região antes da próxima Primavera.

‑ Porque não?

‑ É demasiado perigoso. A começar pelas avalanchas.

‑ Os Serviços Florestais são pagos pelos contribuintes e isso inclui o seu salário, Mr. Foster. Não podemos deixar aquelas pessoas na montanha até ser conveniente e cómodo trazê‑las para baixo. Têm família... ‑ "Pelo menos um deles", pensou Moravia com amargura.

‑ Terei de obter autorização de Washington e isso leva umas duas semanas, talvez um mês.

Moravia abanou o cigarro com tanta violência entre os lábios que a cinza se espalhou sobre o seu casaco. Há‑de chegar o dia em que o Mundo será povoado exclusivamente por burocratas, pois as pessoas normais suicidam‑se com a frustração.

‑ Muito bem, Mr. Foster ‑ disse lentamente ‑, vamos utilizar os nossos próprios meios para chegar aos destroços. E fica avisado que qualquer ajuda que lhe ocorra prestar será considerada um obstáculo.

Moravia desligou o telefone e sentiu‑se muito melhor.

"Agora", pensou, "não fará mal nenhum adiar. É mais fácil receber más notícias de manhã que à noite. Além disso, o portador da má notícia deve manter a compostura para que o seu desgosto pessoal não aumente o daqueles que a ele têm direito. Perderam uma filha e eu perdi um filho, e isso é uma mistura explosiva. Vou esperar, pelo menos até amanhã."

Apagou a luz, mas não se mexeu da cadeira. Ficou sentado na escuridão, limpando os olhos frequentemente e interrogando‑se porque é que depois de tantos anos ainda sentia a perna que lhe faltava como se a tivesse e porque é que ela lhe doía quando a raiva e a tristeza se apoderavam dele.

Embora ainda houvesse luz do crepúsculo, o piloto percebeu que estava perdido. Parou na entrada de um desfiladeiro estreito, pois deu‑se conta de que para continuar tinha que subir. Como é que podia ser? Agora, era evidente que tinha estado a subir nos últimos minutos...

De longe, parecia que o desfiladeiro tinha um declive suave e possibilitava um acesso fácil aos vales lá em baixo. Obviamente que fora uma ilusão. O desfiladeiro não tinha saída e terminava numa vertente rochosa que se elevava a uns trezentos metros. Nem uma cabra de montanha, pensou ele, conseguiria encontrar uma saída daquele sítio.

‑ Qual é o problema, Jerry? ‑ perguntou Heather.

Teve uma sensação que já há muito tempo não experimentava. Todos os aviadores a têm pelo menos um par de vezes nas suas carreiras. E quando se encontram novamente em terra firme, têm tendência a sorrir estupidamente, admitindo que estiveram "rodeados de desorientação".

‑ Estamos num grande sarilho. ‑ Pensou que sussurrara, mas em vez disso ouviu a sua voz ressoar pela neve.

‑ Porquê? Qual é o problema?

Ainda bem que não lhe conseguia ver o rosto. Era mais fácil pensar nela apenas como um peso nas costas, algo de que não se podia livrar.

‑ Diz‑me tu que tal vão as coisas aí no atrelado ‑ disse ele, esperando distraí‑la o tempo suficiente para tentar compreender como é que tinham acabado por ficar rodeados por obstáculos impossíveis de transpor. Se fosse para a direita e evitasse o desfiladeiro, encontrava a beira da vertente e uma queda abrupta de uns trezentos metros. Se fosse para a esquerda, iria embrenhar‑se directamente na montanha.

‑ Cá atrás as coisas vão bem, mas está a ficar escuro.

‑ Isso também eu vejo. ‑ Não sabia como lhe havia de dizer, que não tinham outra alternativa senão voltar para trás e voltar a fazer o caminho, o que significava uma longa subida encosta acima. Mas para onde? Onde é que tinha errado? Mesmo se o descobrisse, não podia subir tudo até ao abrigo e recomeçar.

Voltou‑se lentamente e olhou para o trilho deixado na neve pela sua longa descida. E viu que não andara de modo nenhum de forma normal; o trilho tinha curvas e contracurvas, serpenteando graciosamente montanha acima e desaparecendo por fim numa elevação. "Um bêbado conseguia andar mais a direito", pensou.

Estava atordoado com a perspectiva de voltar a subir a montanha. Ninguém conseguiria fazê‑lo, com ou sem as pernas a tremer. Talvez o melhor fosse sentar‑se e reflectir.

Mudou de ideias. Lera algures qualquer coisa sobre homens que se deitaram na neve e nunca mais voltaram a levantar‑se.

‑ Jerry? Que é que se passa? Porque é que não descansa um bocado?

‑ Tenho medo de adormecermos e não voltarmos a acordar.

Enquanto o vapor da sua respiração formava nuvens à sua frente, pensou que tinha dito uma coisa que não devia. Mas, que diabo, precisava de partilhar as preocupações com alguém próximo e este seu mundo só era habitado por duas pessoas.

‑ Ainda tem a carta? ‑ ouviu‑a perguntar. ‑ Podíamos lê‑la um ao outro e isso manter‑nos‑ia acordados... especialmente se lêssemos a parte sobre a ideia que cada pessoa tem do amor, uma espécie de...

‑ Minha amiga ‑ disse ele, mantendo o tom de voz o mais natural possível ‑, eu não estou apenas ensonado, estou perdido. Parece‑me que temos de voltar ao rio e encontrar um outro caminho para descer.

Ela pareceu não o ter ouvido.

‑ Quando você andava na escola, alguma vez fez aquele jogo de eliminar as letras do nome de uma pessoa que são comuns ao nosso nome... e depois tentar imaginar se a outra pessoa é a pessoa indicada para nós? Há bocado fiz isso mentalmente com o seu nome e saiu lindamente, por isso eu acho que há uma pessoa aqui no atrelado que o ama.

"Não posso deixar‑me cair noutra terra de sonhos", pensou ele, "ou nunca mais de lá saio."

‑ Ouviste o que eu disse sobre termos que voltar ao sítio da partida?

‑ Ouvi. Talvez ajude se pensar na carta.

Levou a mão ao bolso instintivamente, depois deixou‑a cair. Por qualquer razão, era suficiente saber que a carta estava lá.

Virou‑se para a montanha e deu um passo para a frente, depois outro e mais outro, inclinando‑se bem para a frente para aliviar a pressão nos ombros. O seu coração batia de modo alarmante, respirava com muita dificuldade e tinha enxames de luzes minúsculas a dançarem‑lhe à frente dos olhos. A noite caiu enquanto ele subia a custo, e agradeceu às estrelas a luz, ainda que pouca, que proporcionavam.

Chegaram a uma floresta, como previra, e continuando a subir ficou atentamente à espera de ouvir o borbulhar do rio onde dera de beber a Heather. Não se ouvia senão a sua respiração ofegante e, valha‑me Deus, lá estavam de novo os gemidos abafados lá atrás. "Se ela recomeçar a gritar", pensou, "só me resta bater nos meus ouvidos até ficar surdo."

No interior da floresta quase não havia luz e por pouco não colidia com as árvores mesmo à sua frente. Ouviu‑a dizer:

‑ Jerry? Acho que vai mal. Devíamos ir mais para aquele lado.

‑ Que lado? Eu disse‑te que temos de voltar ao rio e recomeçar daí.

‑ É por isso. O rio é para aquele lado.

Ele parou. "Os santos me ajudem, o que me faltava agora era conselhos de um piolho."

‑ Ei, tu aí no atrelado. Porque é que não dormes e deixas de fazer confusões?

‑ A neve aqui é mais espessa e não tem nevado. E além disso vi o antigo trilho desviar‑se por ali há bocado e até pensei que você sabia um caminho melhor para chegar onde quer. Não é preciso ser coruja comigo, Jerry.

‑ Não sou coruja. Estou simplesmente cansado. E peço desculpa.

Concentrou‑se na neve à sua frente e constatou, chocado, que não via trilho nenhum. Tinha‑se desviado.

‑ Muito bem, minha amiga ‑ disse lentamente. ‑ Ganhaste. Em que direcção apontaste?

‑ Se virar para trás e voltar a descer, não é muito longe... eu sei, o sítio onde deixou o trilho é onde há um grande monte de qualquer coisa por baixo da neve. O rio fica à sua direita.

Quando encontrou o trilho original, resolveu seguir o rio sem se importar com o seu instinto.

‑ Vou dar‑te uma medalha. Tu és um docinho muito esperto.

‑ Lembre‑se de que a minha mãe dizia que eu tenho um espírito muito lógico.

Escorregando e tropeçando na escuridão, ele abria caminho por entre calhaus e pelo meio de afluentes gelados que alimentavam o rio. Sempre que escorregava, ouvia Heather gritar de dor, e quando lhe pedia desculpa e dizia que não podia evitar a sua falta de jeito, Heather respondia que por vezes não conseguia deixar de gemer porque as costas lhe doíam imenso.

‑ Mas prometo, juro, que quando sairmos disto nunca mais volto a gemer.

Por fim, saíram da floresta e continuaram a descer por uma vertente mais aberta. Chegaram a uma área plana onde a neve era mais espessa e ele pensou que talvez fosse uma estrada. Nessa altura, com o espírito entorpecido, ouviu Heather a chamá‑lo como se fosse de muito longe.

‑ Jerry. Estou a ver uma coisa. Lá atrás de onde acabámos de sair. Parece do tamanho de um elefante ou coisa do género.

Ele voltou‑se e viu uma forma escura recortada na neve. Deu alguns passos e viu que era um camião, um camião de madeira, pensou, e por instantes deixou o seu moral levantar‑se.

‑ Se é um camião, devemos estar numa estrada. E a estrada deve ir dar a um sitio qualquer ‑ disse Heather.

‑ Pois é, pois é... ‑ Enquanto se dirigia penosamente para o camião, descobriu que tinha uma tendência para reter a respiração. Suponhamos que tocava a buzina e o dono aparecia a saber o que se passava? Suponhamos que ele vivia numa cabana seca e quente e eles seriam levados para lá e que esta terrível noite interminável chegaria ao fim?

As suas esperanças esvaíram‑se quando, ao aproximar‑se do camião, viu que a janela do lado do condutor estava partida e a cabina cheia de neve. Contudo, ainda com esperança, enfiou o braço pela janela e carregou na buzina. Ouviu‑se apenas um murmúrio de vento através da cabina.

Quando se encostou à porta, ouviu Heather dizer:

‑ Bem, não me importo que esteja velha e a cair aos pedaços. Se ele subiu até aqui... nós podemos descer. É lógico.

 

                     CAPÍTULO ONZE

O piloto sabia que estavam no vale há muito tempo, um mês, um ano, possivelmente desde sempre. Ao cair da noite, o terreno apresentou‑se menos inclinado e o facto de poder caminhar mais facilmente renovou‑lhe as forças. Porém, não via a linha do horizonte e tinha ainda mais dificuldade em manter o equilíbrio quando deixava de ver as estrelas. Estas só apareciam de vez em quando nos intervalos das nuvens escuras, e pensou que, se as conhecesse melhor, estaria mais seguro da direcção que seguia. Tentou manter o cinturão de Oríon por cima do ombro esquerdo, posição que o conduziria para oeste, mas passadas algumas horas ele estava mesmo por cima da sua cabeça e parecia praticamente igual visto de qualquer ângulo. Dava‑se por satisfeito por as poucas estrelas e planetas que apareciam por entre as nuvens providenciarem luz suficiente para distinguir as irregularidades do terreno coberto de neve. Sempre que se desequilibrava, quase caía de joelhos, e de cada vez tinha menos vontade de se levantar.

‑ Como vai isso aí atrás? ‑ perguntou a Heather.

‑ Ainda cá estou. Estamos perdidos?

‑ Não. Parece‑me que não temos que andar muito mais. Porque não tentas dormir?

‑ Tenho muitas dores.

‑ Queres um comprimido? Ainda havia um.

‑ Não. Não quero ser uma drogada.

Quando Heather crescer, pensou ele, oxalá que o marido nunca lhe diga uma coisa que queira que ela esqueça.

Com a fadiga, ia quase dobrado em dois sob a sua carga. Havia alturas em que se convencia de que tinha adormecido e depois acordado, encontrando‑se ainda a arrastar‑se pela neve. Para se manter acordado, tentou vários exercícios mentais, como, por exemplo, rezar o padre‑nosso. Calculou a distância que tinham percorrido e a que ainda faltava para a cidade de McDermitt, mas os números baseavam‑se no seu conhecimento inexacto do local do acidente e acabavam por ser mais desencorajantes que úteis.

Quando parecia não haver fim imaginável para o seu esforço, conseguiu distrair‑se tentando recordar partes da carta. Lembrava‑se de certas linhas, certos verbos e elas pareciam estimular a sua quase completa exaustão. Porém, começou gradualmente a aperceber‑se de que os seus pensamentos sobre a carta se tornavam cada vez mais confusos. O rosto que visualizava frequentes vezes na neve não era o rosto da autora da carta que imaginara inicialmente. Ela agora transformara‑se numa mulher que ele conhecia bem. Falava‑lhe, em frases aparentemente marcadas por um metrónomo e a sua voz era melodiosa e familiar. Mais tarde, descobriu que a cadência dos seus passos se tornara escrava da voz dela.

Houve uma altura a meio da noite em que ele não conseguiu forçar as suas pernas a avançar um passo sequer. Permaneceu vacilante à luz fraca das estrelas, lamentando a sua fraqueza, tanto mais que tinham chegado a uma cerca de arame farpado que devia levar a algum lado. Agora, havia algo para seguir, mas ele já não conseguia seguir coisa nenhuma. Sabia que tinha de se livrar imediatamente do peso senão caía de cara no chão, e isso seria o fim de tudo.

Por fim, caiu de joelhos e inclinou‑se para um lado até aliviar o peso do banco. Tirou as correias dos ombros e disse a Heather que iam descansar até de manhã.

‑ Porque é que está a sussurrar, Jerry?

‑ Não sei. Não consigo falar...

Ainda de joelhos, fez uma cova na neve e depois tirou Heather do banco e colocou‑a na concavidade tão suavemente quanto conseguiu.

Ela tocou‑lhe no rosto e disse:

‑ Deve estar muito cansado, Jerry.

Apercebeu‑se de súbito que ela acariciara o lado desfigurado da sua face, a parte deteriorada onde a pele torturada estava esticada como um tambor sobre os ossos e parecia um meio‑crânio; de tal modo que ele nunca ousara supor que alguém lhe tocasse. Começou a falar:

‑ Eu... ‑ Mas foi tudo o que conseguiu dizer. Uma nova paz apoderou‑se dele; sentia‑se mais sereno do que nunca, mas não conseguiu encontrar palavras para dizer a Heather a magia que ela produzira. "Já não posso com as pernas", pensou, "mas não me importo. Pelo menos isto é o fim da solidão. Esta é a verdadeira vida e tudo o mais foi um pesadelo..."

Aconchegou o urso protectoramente à volta de Heather, deixando de fora apenas o nariz e os olhos. à luz das estrelas viu que os seus olhos sorriam. Por fim, deitou‑se ao lado dela, puxou‑a para si para se aquecerem e pensou: "Amamo‑nos um ao outro. Não vamos morrer aqui. "

Moravia fixara o meio‑dia como hora limite em que abandonaria todas as esperanças relativamente aos ocupantes do número Catorze. Depois do meio‑dia, obrigar‑se‑ia à triste tarefa de telefonar aos familiares de Heather. Já ensaiara as frases de abertura... "Lamento imenso ter de informar... se houver alguma coisa que a companhia possa fazer para ajudar... etc."

Mas que fazer relativamente a Jerry, o homem sem lar nem família? Escrever uma carta para a Distribuição Geral, Todo o Lado, EUA?

A ficha de candidatura do piloto estava em cima da secretária em frente a Moravia e agora ele tinha dificuldade em perdoar o número de espaços em branco que observava. Claro que no momento da contratação ninguém prestava atenção aos formulários. A experiência do candidato era analisada oralmente, medida de maior fiabilidade que as horas de voo registadas no papel. Se um piloto sabia voar, sabia; se não sabia, não devia ser autorizado a matar‑se a si próprio ou aos outros.

No entanto, Moravia constatou que em alturas como esta o papel fazia falta. De qualquer das maneiras, maldito negócio da aviação. A guerra já acabara há muito tempo. As pessoas não deviam morrer a tentar ganhar a vida.

Moravia olhou para o relógio de parede. Depois, verificou o seu relógio de pulso e viu que os dois coincidiam, eram 11 e 33. Faltavam vinte e sete minutos para a hora da tristeza. Raios! Tinha sido uma longa manhã e estava a tornar‑se interminável.

Algures ao longe, o piloto ouviu a voz de Heather. A princípio, parecia quase imperceptível, depois aumentou de volume e ele pensou: "Está de novo a delirar e eu não sei o que fazer." Tinha voltado à mesma conversa sobre o cavalo.

‑ Um cavalo, Jerry! Um cavalo mesmo ali! Olhe!

Emergiu lentamente das profundezas do seu sono e abriu os olhos para a manhã cinzenta. Sentia‑se confuso, até que levantou a cabeça e percebeu que Heather o abanava.

‑ O cavalo. Chame por ele, Jerry! ‑ continuava ela a gritar.

Tentou tapar‑lhe a boca, interrogando o seu espírito entorpecido se desta vez teria que lhe agarrar a língua para ela não sufocar. Tinha lido algures que havia pessoas que sufocavam no meio do delírio.

Depois, por acaso, olhou para trás dela e convenceu‑se por momentos de que ainda estava a dormir. Porque viu um cavalo a andar numa elevação próxima com um homem montado nele.

O piloto pôs‑se rapidamente em pé e agitou os braços, gritando incoerentemente. O cavalo parou e o piloto viu o homem voltar a cabeça. Passado um momento, o cavaleiro tirou o chapéu de abas largas e acenou com ele. Pareceu hesitar bastante tempo antes de virar o cavalo.

O piloto continuou a acenar e a gritar até o cavalo começar a levantar montes de neve com os cascos ao dirigir‑se para eles a grande velocidade.

Ao meio‑dia, Moravia decidira adiar mais uma hora. Estava a comer uma sanduíche de manteiga de cacau e reparou que a sua digestão já duvidosa não era melhorada vendo os ponteiros do relógio. Lembravam‑lhe implacavelmente que faltavam dezasseis minutos para a 1 hora.

Quando o telefone tocou, levantou o auscultador e disse o seu nome. Ainda a mastigar, escutou; depois, deixou de mastigar quando ouviu um rancheiro, que se identificou como "Moose" Taylor, explicar que estava a telefonar a pedido de um dos pilotos de Moravia que se encontrava nesse momento "a dormir na minha cama. Está muito esgotado. Deitei a menina no sofá no quarto da frente e o médico já vem a caminho. As costas dela não estão bem, mas o nosso médico é bom".

Depois de Moravia entender a localização exacta do rancho de Taylor e perguntar o que é que podia fazer de imediato, obteve a resposta:

‑ Para já, não pode fazer nada, suponho eu, excepto dar a este camarada uns dias de folga. Ele disse‑me que lhe dissesse que apreciaria isso, porque há uma carta que ele quer que seja entregue ao remetente e gostava de o fazer pessoalmente. Não sei o que ele quer dizer com isto, mas disse‑me que era muito importante.

‑ Também não sei o que quer dizer ‑ retorquiu Moravia. ‑ E não me interessa. Diga‑lhe apenas... Bem‑vindo a casa. 

 

                                                                                Ernest K. Gann 

 

 

                                         

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