Artur Azevedo
Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro São Pedro de Alcântara, no dia 15 de outubro de 1898, por iniciativa do Centro Artístico pelo Corpo Cênico do Elite-Club.
PERSONAGENS: JOÃO RAMOS LUCAS BENJAMIN FERRAZ CÉSAR SANTOS UM COZINHEIRO UM COPEIRO AMBROSINA DONA ANGÉLICA
A cena passa-se no Rio de Janeiro. Atualidade.
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ATO I Sala de visitas, bem mobiliada, em casa de João Ramos. Três portas ao fundo, dando para o jardim. Uma porta à direita comunicando com a sala de jantar e outra à esquerda, dando para os dormitórios. À esquerda uma mesa com álbuns, porta-cartões, etc. À direita um sofá. Consolo ao fundo. Piano. Cadeiras.
CENA I João Ramos (só).
RAMOS O almoço com certeza vai custar-me Uns duzentos mil réis, afora os vinhos; Mas se caso a Ambrosina, ainda é barato, Porque muito me custa a senhorita. Das minhas rendas a metade vai-se Em vestidos, chapéus, leques e luvas, Espetáculos, bailes e concertos; Ela casada, cessam tais despesas; É preciso, porém, que o noivo seja Um rapaz sério e não nenhum pelintra Que deseje viver à minha custa: Pior seria a emenda que o soneto. Mas não são as despesas que me ralam; Não sou unhas-de-fome, Deus louvado; Rala-me a ideia de bater a bota, E deixar a pequena sem marido, Exposta sabe Deus a que perigos! Dirão que meto minha filha à cara Dos pretendentes; ora adeus! que o digam! A Ambrosina já fez vinte e dois anos: É tempo de arranjar-lhe casamento.
CENA II João Ramos, Dona Angélica, o cozinheiro.
ANGÉLICA Ora aqui tens o nosso cozinheiro. Desejavas ouvi-lo: aqui to trago. Entra, Fabrício. (O cozinheiro entra) Quer saber teu amo. O que arranjaste para o almoço. Fala.
O COZINHEIRO Não pode ser melhor o meu cardápio.
RAMOS Cardápio? Não conheço essa palavra!
O COZINHEIRO Foi arranjada pelo Castro Lopes. Eu não digo menu, que é francesismo.
RAMOS Temos um cozinheiro literato!
O COZINHEIRO Literato não sou, mas sou purista; Embirro com palavras estrangeiras. Hoje, que tudo se nacionaliza, Nacionalize-se a cozinha!
RAMOS Bravo!
O COZINHEIRO Eu, diante do fogão, diante do forno, Sou até jacobino!
RAMOS Jacobino? Lá como cozinheiro pode sê-lo, Mas tão somente como cozinheiro, Pois, conquanto eu viesse com dez anos Para o Brasil, sou português, entende? Jacobinos dispenso em minha casa!
O COZINHEIRO Sou jacobino apenas cozinhando.
RAMOS Pois cozinhando não devia sê-lo: Você é um artista!
O COZINHEIRO Eu, um artista?
RAMOS Sim, um artista da arte culinária, E a arte não tem pátria! Porém, vamos... Diga lá o que temos para o almoço.
O COZINHEIRO Em primeiro lugar os acepipes. Hors-d’oeuvres não direi nem que me rachem! Temos uma salada de lagostas.
RAMOS Muito boa lembrança. Que mais temos?
O COZINHEIRO Sardinhas, azeitonas, rabanetes, Manteiga fresca... RAMOS E além dos acepipes?
O COZINHEIRO Um enorme badejo.
ANGÉLICA Que badejo! Tão grande nunca vi!
RAMOS E está bem fresco?
ANGÉLICA Vivo à casa chegou.
O COZINHEIRO Soltou, coitado, Nas minhas mãos o derradeiro alento! De camarões uma fritada temos, Um primor culinário! Três galinhas De cabidela. Espargos em manteiga. E, para terminar, um bom churrasco. Sorvetes de caju, frutas à ufa, Queijo do reino, requeijão de Minas, Baba de moça e doce de laranja. Se não satisfizer este cardápio, Que a espada de Vatel me arranque a vida À exceção dos espargos e do queijo, O meu almoço é todo brasileiro!
RAMOS Mas a vinhaça é toda portuguesa: Bucelas para acompanhar o peixe, Depois Colares da viúva Gomes, Vinho do Porto para a sobremesa E duas garrafinhas de Champanha Da marca Assis Brasil.
O COZINHEIRO Estou contente, Pois vejo que o Brasil também figura Muito embora num rótulo.
ANGÉLICA E os licores?
RAMOS Deve ter vindo do armazém do Castro Uma garrafa de Beneditinos. (Ao cozinheiro)
Bom. Pode retirar-se, e se o almoço Ao meu gosto estiver, conte comigo.
O COZINHEIRO Nenhuma recompensa mais desejo Que salvar os meus créditos de artista...
RAMOS Da arte culinária. Vá s’embora. (O cozinheiro vai se retirando) É verdade. Ouça cá. Diga ao copeiro Que se apresente, pra servir a mesa, Encasacado e de gravata branca. (O cozinheiro sai)
CENA III João Ramos, Dona Angélica.
ANGÉLICA Espero agora que afinal me contes A história deste almoço.
RAMOS É muito simples. Lembras-te que no baile do Cassino, O César Santos, moço encaminhado, Com porcentagem numa casa forte, Namorou nossa filha à rédea solta?
ANGÉLICA E depois desse baile, muito embora Nós moremos tão longe da cidade, Muitas vezes nos passa pela porta, E até parado fica ali na esquina.
RAMOS Muito bem. Dize mais: não te recordas Que, quando fomos ao Teatro Lírico,
Ao benefício da Maragliano, O Benjamin Ferraz, que é moço rico, Estava na plateia e não tirava Do nosso camarote os olhos lânguidos? E acabado o espetáculo, correndo Postou-se à porta pela qual saímos, E suspirou quando passou por ele Ambrosina?
ANGÉLICA Um suspiro escandaloso, De olhos voltados e de mão no peito!
RAMOS E ele não passa pela nossa porta?
ANGÉLICA Todas as tardes passa, embora chova. O outro passa de bonde e este a cavalo.
RAMOS Pois eu, sabendo dessas passeatas, Embora tu não me dissesses nada, Como os achei à mão, ambos, anteontem, Por mero acaso, na confeitaria, Fi-los sentar-se à mesa em que eu me achava, Paguei-lhes o vermute, apresentei-os Um ao outro, mostrei-me muito amável, E lembrei-me afinal de convidá-los Para almoçar conosco hoje, domingo.
ANGÉLICA Porém com que intenções os convidaste?
RAMOS Minha amiga, bem sabes que os bons noivos Dificilmente conquistar-se podem
Vendo-os passar no bonde ou no cavalo; É preciso atraí-los; casamentos, É de portas a dentro que se arranjam. Se teu pai não me houvesse convidado Para jantar na casa dele um dia, Por sinal que era o dia dos teus anos, Talvez não nos casássemos tão cedo; Mas convidou-me e, por cautela, à mesa, Ao lado teu me fez ficar sentado. Quando veio o peru, éramos noivos; Tratavas-me por tu à sobremesa; Um mês depois estávamos casados, E dez meses depois éramos três!
ANGÉLICA Mas meu pai convidou-te a ti somente. E tu a dois convidas...
RAMOS O que abunda Não prejudica, diz o velho adágio. Teu pai não era tolo, minha amiga, Apesar de ter sido sapateiro, E se não estava outro mancebo à mesa, É que não tinhas outro namorado...
ANGÉLICA (rindo) Sabes tu lá se o tinha ou se o não tinha!
RAMOS Com este almoço dois coelhos mato De uma só cacheirada!
ANGÉLICA És econômico! Para dois namorados, dois almoços!
RAMOS Se fossem vinte, vinte almoços? Boas! Colocada a Ambrosina entre os dois jovens, Escolher poderá muito à vontade.
ANGÉLICA Mas é preciso preveni-la disso.
RAMOS Justamente ela aí vem. Vamos falar-lhe.
CENA IV Ramos, Dona Angélica, Ambrosina.
AMBROSINA A bênção, papai? Bom dia!
RAMOS Deus te abençoe, minha filha. Mas como tu vens casquilha! Há muito que não te via Tão enfeitada e catita!
AMBROSINA Oh! Admira-se? Entretanto, Ontem papai pediu tanto Que me fizesse bonita! Vê como estou imponente? Que tal acha o meu vestido?
RAMOS Muito espantado.
AMBROSINA Duvido Que papai diga o que sente.
RAMOS De modas eu não entendo; Sou ferragista, e asseguro Que tenho juízo seguro Sobre o que compro e o que vendo. Quando alguém conhecer queira A qualidade de um prego, As minhas luzes não nego, Posso falar de cadeira; Mas quanto a farandulagens, Fitinhas, laços, teteias, Sou muito curto de ideias! Cá comigo é só ferragens! Mas, minha filha, acredita, Quando o contrário suponhas: Com qualquer trapo que ponhas, Acho-te sempre bonita. (Dá-lhe um beijo) Bom. Temos que conversar Sobre outro assunto, faceira. Senta-te nesta cadeira; Entre nós dois vais ficar.
(Coloca três cadeiras no proscênio; a do centro para Ambrosina, a da direita para Angélica, e da esquerda para si. Sentam-se todos três. Pausa)
Fala, Angélica!
ANGÉLICA Ora essa! Fala tu!
RAMOS Tu!
ANGÉLICA Tu!
RAMOS Mulher, Olha que eu não sei sequer Por onde é que é que se começa!
AMBROSINA É coisa grave?
RAMOS Oh! bem grave!
ANGÉLICA Anda! é o princípio que custa!
AMBROSINA Tanta hesitação me assusta!
RAMOS Não é nada que te agrave: Trata-se de casamento.
AMBROSINA De casamento?
RAMOS É verdade! (Embaraçado e muito comovido) Menina, chegaste à idade... Chegaste ao feliz momento... A felicidade tua É o nosso constante fito, E nós... (Passando os dedos nos olhos) Lágrimas?... Bonito!... (A Angélica) Agora tu continua.
ANGÉLICA Valha-te Deus! que maricas! Por qualquer coisa tu choras!
Vamos! basta de demoras!
RAMOS Eu... tu... eu...
ANGÉLICA Vê em que ficas! (Arremedando-o) Eu... tu... eu...
RAMOS Então que queres? Nem eu ouso, nem tu ousas! Fala tu: para estas coisas Têm mais talento as mulheres!
ANGÉLICA Minha filhinha, teu pai Convidou para um almoço Aquele moço...
AMBROSINA Que moço?
RAMOS Dize-lhe o nome.
ANGÉLICA Lá vai: O César Santos?... Aquele Que toda a tarde passeia No bonde das cinco e meia?...
AMBROSINA Sei quem é.
RAMOS Tu gostas dele?
AMBROSINA Eu não gosto nem desgosto...
ANGÉLICA E foi também convidado Aquele outro namorado?... Quem é já sabes, aposto!
RAMOS Dize o nome!
ANGÉLICA Espera lá! Ou falas tu ou eu falo!
RAMOS Bom.
ANGÉLICA Aquele do cavalo?
RAMOS (fingindo que está montado a cavalo) Hein? Patati, patatá!
AMBROSINA O Benjamin?
ANGÉLICA Justamente: O Benjamin.
RAMOS Desse gostas, Ou não gostas nem desgostas?
AMBROSINA Sim... não... É-me indiferente!... Ambos à casa hoje vêm, Pra que eu escolha?...
RAMOS Decerto. Examina-os bem de perto; Vê qual dos dois te convém.
AMBROSINA Oh! nenhum deles me traz À vida novos encantos...
RAMOS Sim?
AMBROSINA Nem o tal César Santos, Nem o Benjamin Ferraz.
ANGÉLICA Mas tu gostas de outro?
AMBROSINA Não. Não acho quem me cative; Até hoje nunca tive Cuidados no coração. Quando o César Santos passa, E eu estou acaso à janela, Não fujo... não saio dela... Ele sorri... Acho graça... Faz mal que eu também sorria?... Namoro?... talvez que o seja; Mas nisso amor ninguém veja... Quando muito é simpatia.
ANGÉLICA Filha, lá disse o poeta: “Simpatia é quase amor”...
RAMOS Pois seja o poeta quem for, Disse uma asneira completa! Não foi Camões com certeza!
ANGÉLICA Foi Casimiro de Abreu
RAMOS Uma tolice escreveu; Digo-o com toda a franqueza!
AMBROSINA Quando passa o Benjamin, Montado no seu cavalo, E, sem tenção de esperá-lo, Vejo-o sorrir para mim, Eu lhe sorrio também... Mas... que exprime este sorriso? Que com ele simpatizo... E papai diz muito bem: Não é este sentimento Um quase amor. Que esperança! Minhalma livre descansa, Descansa o meu pensamento! Não me persegue o desejo De os ver passar pela porta. E quando os vejo, que importa? Que importa quando os não vejo? Se papai julga que devo Desde já mudar de estado, Antes que tenha falado Meu coração, não me atrevo
A contrariá-lo, oh! não!... Mas entre os dois pretendentes, Ambos pessoas decentes, Não faço a menor questão.
RAMOS (erguendo-se) Bravo!
(Ambrosina e Angélica também se erguem)
AMBROSINA Papai, se quiser, Estude, examine, escolha; Mas permita que eu me encolha...
RAMOS Qualquer te serve?
AMBROSINA Qualquer. (Lucas entra como um raio. Surpresa geral. Alegria)
CENA V João Ramos, Dona Angélica, Ambrosina, Lucas.
LUCAS Que Deus esteja nesta casa!
TODOS (contentes) O Lucas!
LUCAS O Lucas, sim, que, sem mandar aviso, Abalou de São Paulo ontem cedinho, Passou parte da noite num teatro, Dormiu no Grande Hotel, onde espichado
Na cama, refletiu: de manhã cedo Tomo o meu banho, faço a minha barba E ao palacete vou do velho Ramos Causar uma surpresa àquela gente. Como é domingo, encontro o velho em casa E chego a tempo de papar-lhe o almoço.
RAMOS Fizeste bem, rapaz, mas que diabo! Devias começar por abraçar-nos... (Abraçando Lucas) Assim! Aperta-me estes velhos ossos!
LUCAS As saudades são tantas, que receio Esmagá-lo!
RAMOS Esmagar-me? Então tu julgas Que assim se esmague um português valente?
ANGÉLICA (abrindo os braços) Eu também quero o meu abraço!
LUCAS É justo.
ANGÉLICA Mas vê lá: não me esmagues! LUCAS Oh!descanse! Muito bem sei como se abraçam damas! (Abraça-a)
ANGÉLICA Agora, abraça a tua irmã de leite. LUCAS Ambrosina! Meus Deus! nestes três anos
Que diferença fez!
RAMOS Desenvolveu-se... Deitou corpo... cresceu...
LUCAS Que diferença! Deixo um fedelho e encontro uma senhora, E mais linda que um anjo! Isto é possível...
ANGÉLICA Bem sabes que ela tem a tua idade!
RAMOS Abraça-a, vamos!
LUCAS Não! eu não me atrevo! Na minha idade já se não abraçam Moças da minha idade...
ANGÉLICA Ora que tolo!
LUCAS Só num jogo de prendas, por sentença!
AMBROSINA Sou tua irmã.
LUCAS És minha irmã de leite. Essa irmandade não me impediria De casar-me contigo... (Comicamente cerimonioso) Enfim, senhora, Como de vossa excelência os pais ordenam,
Venha esse abraço!
AMBROSINA (lançando-se nos braços dele) E esmaga-me, se queres! Como está mamãezinha?
LUCAS Boa e fera; São seu único mal saudades tuas. Mandou-te umas lembranças de São Paulo.
ANGÉLICA É sempre a mesma tua mãe!
LUCAS Coitada! Não quis que eu viesse ao Rio de Janeiro, Sem coisinhas trazer para Ambrosina; E durante a viagem vim comprando Tudo quanto se encontra no caminho: Queijos de Itatiaia e Campo Belo, E beijus de Belém. Essas lembranças Lá estão no Grande Hotel.
RAMOS Por que motivo Não vieste hospedar-te em nossa casa? Pois não sabes que é teu tudo que é nosso?
LUCAS Bem sei, mas receava incomodá-los.
TODOS Oh!
LUCAS Demais, moram longe da cidade,
E eu a negócio vim, não a passeio.
RAMOS E a casa como vai!
LUCAS De vento em popa! Se a coisa prosseguir como tem ido, Eu serei, num futuro não remoto, Quase tão rico como o velho Ramos! (Dá uma pequena pancada no ventre de Ramos)
RAMOS (rindo) O velho Ramos não é rico.
LUCAS É rico; Mas tem o sestro de dizer que é pobre, Porque receia que lhe peçam chelpa.
RAMOS Que grande malcriado me saíste!
LUCAS Mas que me importa a mim o velho Ramos? Bem se me dá que seja rico ou pobre! (Tomando ambas as mãos de Ambrosina) Quem me interessa és tu, és tu somente, Minha querida irmã, que t anto prezo! (Com certa hesitação na voz) Então? quando se faz este casório? Já deves ter um noivo, ou, pelo menos, Um namorado, ou dois... Com esses olhos, E essa boca de fada, e esta elegância, E este pai, apesar de não ser rico, Deves ter pretendentes aos cardumes!
AMBROSINA Tenho dois namorados.
LUCAS (com um sorriso forçado) Dois apenas?
AMBROSINA Pode ser que outros haja, mas ignoro.
RAMOS Não podias chegar mais a propósito: Hoje vêm ambos almoçar conosco.
AMBROSINA Convidou-os papai, para que eu possa, Depois de examiná-los bem de perto, Escolher o que deva ser meu noivo; Mas eu já disse que nem de um nem de outro Faço questão, e escolha qualquer deles.
LUCAS Que singular filosofia a tua! Mas quem são esses dois rivais famosos?
RAMOS O Benjamin Ferraz e o César Santos.
LUCAS Não conheço.
RAMOS Vais vê-los dentro em pouco. São dois tipos um do outro bem diversos. O César Santos, guarda-livros hábil, Interessado está numa das casas Mais importantes desta praça; é moço Ajuizado, refletido e sério;
Tem feito economias, e de parte Já pôs alguns vinténs; possui dois prédios. O Benjamin Ferraz é muito rico: Herdou dos pais e ainda há de herdar dos tios, Que fazendeiros são. Monta a cavalo, Veste-se muito bem, e desconfio, Pela sua maneira de exprimir-se, Que literato ele é nas horas vagas.
LUCAS E nas que não são vagas esse moço Em que se ocupa?
RAMOS Ora essa é boa! ocupa-se Em ter muito dinheiro. Eu não conheço Melhor ocupação.
LUCAS Prefiro o outro. (Mudando de tom) E por amor do guarda-livros hábil E do janota que tão bem se exprime, Temos então almoço ajantarado?
RAMOS Lagostas... um badejo... uma fritada... Galinhas... um churrasco... espargos, frutas, Sorvetes, queijos, doces e mais doces, E Bucelas, Colares e Champanha!
LUCAS Não há que ver: tirei a sorte grande! Eu vim ao cheiro de uns modestos bifes, E caio em plenas bodas de Camacho! Não esperava tanto!
RAMOS Vai, Angélica, Dar uma vista de olhos à cozinha, E manda pôr mais um talher à mesa, E vê lá se o copeiro pôs casaca.
ANGÉLICA E tu, anda buscar na adega os vinhos. (Sai)
RAMOS Tens razão. Já lá vou. Cá tenho a chave. (A Lucas) Quando há comes e bebes nesta casa, Ela trata dos comes e eu dos bebes. Bom. Até logo. Ó minha filha, fica Fazendo companhia ao nosso Lucas. (Sai)
CENA VI Ambrosina, lucas.
LUCAS Com que então, vais casar?
AMBROSINA Mas vê como estou fria... Oh! pelo gosto meu mais tempo esperaria; Porém papai não pensa infelizmente assim, E, pelos modos, quer ficar livre de mim.
LUCAS Não creias que teu pai de ti livrar-te queira: Tem medo de morrer deixando-te solteira, É o que é. A intenção é boa; apenas, eu Me parece que o pior processo ele escolheu. O tal César e o tal Benjamin vão pensar Que o João Ramos a filha à força quer casar; Mais prudente seria esperar que viesse O noivo e não chamá-lo à casa, me parece.
AMBROSINA Tens razão.
LUCAS Não se mete à cara de ninguém Noiva que, como tu, tanto atrativo tem.
AMBROSINA Isso é bondade tua.
LUCAS E se ao velho não falo Deste modo, é porque não quero apoquentá-lo. Tu bem sabes de quanto eu lhe sou devedor: Ele foi para mim um grande protetor, Tão amigo, tão bom, tão desinteressado, Que um altar tem cá dentro e é para mim agrado. Nas tristes condições em que eu ao mundo vim, Se não fosse teu pai, que seria de mim? Quando nasci, o meu já estava morto há meses; Minha mãe a miséria, a fome algumas vezes Sofreu, mas resistiu. Tu nasceras também; Adoeceu tua mãe; era preciso alguém Que as vezes lhe fizesse, e a minha então, coitada, Que era pobre, tão pobre, e pobre envergonhada, Sozinha neste mundo, ao deus-dará, sem pão, Precisava de alguém que lhe estendesse a mão... E foi, como faria uma africana escrava, Contigo dividir o leite que eu mamava.
AMBROSINA Pobre da mamãezinha!
LUCAS Eu fui muito feliz, E ela também: teu pai, meu pai fazer-se quis. Nem eu nem minha mãe saímos desta casa
Que nos cobriu a nós como de um anjo a asa. Quando cresci, o velho à escola me enviou E depois no comércio emprego me arranjou. Para São Paulo fui. Sou quase independente. E a quem o devo? A ele... a ele unicamente.
AMBROSINA De nada valeria o muito que te fez, Se tu não fosse bom.
LUCAS Não seria, talvez, Tão bom, se ele não fosse a bondade em pessoa. Isso é o que me fez bom, e isso é o que te fez boa. Mas falemos dos dois namorados. Teu pai Quer que escolhas; pois bem: examiná-los vai Minuciosamente, e um dos dois com certeza Preferirás ao outro ao sairmos da mesa. Está dito?
AMBROSINA Pois sim.
LUCAS Por meu lado, eu também Verei dos dois qual seja o que mais te convém.
CENA VII Ambrosina, Lucas, João Ramos, Dona Angélica.
RAMOS Pronto! podem chegar os convidados! No aparador alinham-se as garrafas, E o diabo do copeiro, de casaca, Parece até um cidadão conspícuo!
ANGÉLICA Que bonito badejo é o rei da festa!...
RAMOS Custou-nos vinte e cinco bagarotes No mercado; não pode ser, portanto, Um peixinho de pouco mais ou menos. (Esfregando as mãos) Não tardam por aí os dois rapazes.
LUCAS Eles que venham, porque estou com fome!
(Toque de campainha elétrica)
RAMOS Falai no mau... (Indo ao fundo e falando para fora) Ó senhor César, entre!
(Entra César Santos cerimoniosamente)
CENA VIII Ambrosina, Lucas, João Ramos, Dona Angélica, César Santos.
CÉSAR Minhas senhoras... Senhor Ramos... Creio Que esperar não me fiz por muito tempo.
RAMOS Pontualíssimo foi, foi cavalheiro. (Apresentando) Minha mulher.
CÉSAR Minha senhora, folgo De conhecê-la.
ANGÉLICA E eu igualmente folgo. Faça favor.
(Toma-lhe o chapéu e a bengala, que vai colocar sobre um móvel, ao fundo)
RAMOS (mostrando Ambrosina) É minha filha. O amigo Há muito que a conhece. Já com ela Dançou num baile do Cassino.
CÉSAR É exato. Foi uma honra que esquecer não pude, Pois me deixou recordações bem doces.
AMBROSINA (cumprimentando) Agradecida.
RAMOS O meu amigo Lucas. Quase meu filho... Um filho malcriado, Que ao pai não tem o mínimo respeito, E lhe dá piparotes na barriga! Mas é um herói! tem só vinte e dois anos E é já negociante conceituado Na praça de São Paulo!...
CÉSAR Cavalheiro. Consinta que lhe aperte a mão.
LUCAS Não creia No que lhe está dizendo o senhor Ramos. Como lhe devo a posição que ocupo, É muito exagerado a meu respeito, Para dar mais valor ao seu trabalho.
CÉSAR As coisas como vão lá por São Paulo?
LUCAS Que coisas?
CÉSAR Os negócios. Interessa-me O comércio, e de nada mais cogito.
LUCAS Os negócios vão bem.
CÉSAR Não me parece; A baixa do café tem sido o diabo, E esperança não há de que tão cedo Ele suba, (a Angélica) não acha vossa excelência?
ANGÉLICA Senhor eu não entendo dessas coisas; Só sei que tudo está bem caro agora, E que um badejo, que custava dantes Dez mil réis, quando muito, agora custa Vinte e cinco mil réis!
CÉSAR A carestia Faz com que o povo sofra e sofra muito; Mas o comércio sofre mais que o povo. Na nossa praça a crise está medonha; Muitas casas estão arrebentadas; O câmbio esteve a cinco, é bem verdade, E subiu depois disso a sete e meio, Mas de novo tem ido para baixo, E não há confiança nos efeitos
Do plano financeiro do governo. Não acho que endireite a nossa praça, Enquanto a taxa não subir a doze, Pelo menos. (A Ambrosina) Não acha vossa excelência?
AMBROSINA Eu nunca pude perceber o câmbio.
CÉSAR Pois eu lhe explico: o câmbio representa...
RAMOS E eu que não lhe ofereço uma cadeira? Faz favor de sentar-se? Então? Sentemo-nos! Tanto se paga em pé como sentado! (Sentam-se todos) Mas sobre outros assuntos conversemos, E deixemos tranquilos os negócios. Estes belos domingos foram feitos Pra que a gente se esqueça da semana.
CÉSAR Pois assunto não há que mais me agrade Do que câmbio, café, preços-correntes...
RAMOS Qual! isso é bom lá para baixo. Em casa Gosto de ouvir falar de frioleiras.
LUCAS (baixo a Ambrosina) Desconfio que o noivo não te serve.
RAMOS Eu sou negociante de ferragens, E por meu gosto, não teria em casa Nem trincos, nem martelos, nem argolas, Nem pontas de Paris, nem dobradiças,
Nem nada que lembrasse o meu comércio. Quando aos domingos eu me sento à mesa, Desgostam-me os talheres, acredite, Porque os tenho na loja; na cozinha Não entro, só para não ver panelas! Causam-me horror grelhas e caçarolas!
ANGÉLICA E a história do canário?
RAMOS Ah! é verdade! Lembras-te ainda? Estávamos casados Havia um mês, se tanto. O pai da Angélica Um canário mandou-lhe de presente. Ela estimava-o. Muito bem. Pedi-lhe Um belo dia que o mandasse embora!
CÉSAR O canário não era ferramenta!
RAMOS Não, mas era preciso dar-lhe alpiste, E o alpiste naquele tempo sabe? Vendia-se nas lojas de ferragens.
(Novo toque de campainha elétrica)
ANGÉLICA Tocaram.
RAMOS (erguendo-se) Bom! é ele com certeza! É o Benjamin Ferraz! (Vai ao fundo e fala para fora) A casa é sua.
(Erguem-se todos. Entra Benjamin Ferraz)
CENA IX Ambrosina, Lucas, João Ramos, Dona Angélica, César Santos, Benjamin Ferraz, depois um copeiro.
BENJAMIN Minhas senhoras... cavalheiros... peço Mil perdões por chegar um pouco tarde. Foi do meu alfaiate a culpa inteira. Uma porção de tempo estive à espera De uma sobrecasaca que não veio.
LUCAS (à parte) Começa mal...
BENJAMIN Esta já tem três meses, E já não está na moda; os figurinos Sobrecasacas apresentam hoje Fechadas mais em cima, e mais compridas, Dando pelo joelho. Quando eu entro Pela primeira vez em qualquer casa, Com toda a correção quero ser visto, Todas as regras sei do savoir-vivre. (A Angélica) Depois deste cavaco indispensável, Permita, Excelentíssima Senhora, Que lhe ofereça a rosa mais bonita Que esta manhã no meu jardim banhavam As lágrimas do orvalho matutino. A rainha das flores simboliza A rainha do lar, a esposa honesta, A carinhosa mãe!
RAMOS (à parte) Parece um brinde.
ANGÉLICA Muito obrigada pelo seu presente.
BENJAMIN Não há de quê minha gentil senhora. (Angélica põe a rosa ao peito. Benjamin volta-se para Ambrosina) Para vossa excelência eu trouxe e espero Que seja recebido com bondade Este raminho de violetas brancas, Também do meu jardim. Flores modestas, Que o seu perfume docemente escondem. Simbolizam a cândida inocência Da bela virgem recatada e pura.
AMBROSINA Agradecida.
RAMOS À vista dos discursos. Desobrigado estou de apresentar-lhe Mulher e filha.
ANGÉLICA (tomando o chapéu e a bengala de Benjamin) Com licença.
BENJAMIN Graças.
RAMOS (indicando César) Este já foi por mim apresentado.
BENJAMIN Folgo de vê-lo.
RAMOS O meu amigo Lucas. É quase um filho.
LUCAS Temos um fonógrafo?
RAMOS Não tem ao pai o mínimo respeito...
LUCAS E lhe dou piparotes na barriga; Falta-me o savoir-vivre...
BENJAMIN Oh, não! não creio!
LUCAS Vim almoçar de jaquetão coçado!
BENJAMIN Se é quase um filho, está no seu direito.
RAMOS Mas é um herói! Tem só vinte e dois anos...
LUCAS Vinte e dois anos e três meses justos.
RAMOS E é já negociante acreditado Na praça de São Paulo!
BENJAMIN Então? já houve Com essa idade marechais em França! (Apertando a mão a Lucas) Eu tenho muita honra em conhecê-lo.
LUCAS A honra é toda minha, cavalheiro.
(Angélica, que tem saído, volta e diz baixinho a Ramos)
ANGÉLICA O almoço está servido.
RAMOS (muito alto) Meus senhores...
ANGÉLICA (tapando-lhe a boca) Espera que o copeiro dizer venha.
RAMOS (baixo) É verdade, o copeiro de casaca... (Entra o copeiro) Ei-lo! Faz um vistão! Gosto daquilo!
O COPEIRO O almoço está na mesa. (Sai)
RAMOS Meus amigos, Vamos ao nosso almoço, prontamente, Que já temos o estômago a dar horas.
(Benjamin e César oferecem ambos o braço a Ambrosina)
BENJAMIN O meu braço aqui tem, minha senhora.
CÉSAR Minha senhora, ofr’eço-lhe o meu braço.
AMBROSINA E agora? Aceito o que chegou primeiro.
(Dá o braço a Benjamin. César dá o braço a Angélica. Saem todos)
RAMOS (saindo, a Lucas) Cada qual no seu gênero, não achas?
LUCAS Acho.
RAMOS A Ambrosina escolhe... escolhe um deles! (Sai)
LUCAS (só) Escolhe um deles? Pois sim! Meu velho, pelo que vejo, Perdes o tempo e o latim, Pra não dizer o badejo.
ATO II A mesma sala.
CENA I
AMBROSINA (entrando) Valha-me a Virgem Maria! Que grande aborrecimento! Vim descansar um momento! De tanta sensaboria Horrorizada fugi! Que só de negócios trate O tal Senhor César Santos! Cacete conheço uns quantos, Porém daquele quilate Confesso que nunca os vi! E o Benjamin? Que fofice! Que tipo insignificante! Não abre a boca o pedante, Que não diga uma tolice,
Ou que não fale de si, Das visitas que recebe, Ou do extrato que o perfuma, Ou dos charutos que fuma, Ou dos licores que bebe! Quantas asneiras ouvi!
CENA II Ambrosina, Lucas.
LUCAS Vamos! Então? Que me dizes De um e de outro namorado?
AMBROSINA Cada qual mais enjoado!
LUCAS Pobres moços!... infelizes!... Pois nenhum deles te agrada?
AMBROSINA Não.
LUCAS És muito rigorosa!
AMBROSINA Seria bem desditosa Com quaisquer deles casada.
LUCAS Também vais logo aos extremos! Pelas impressões primeiras Incompletas e ligeiras, Jamais levar nos deixemos...
Gente nova, estranha gente Não há, que nos apareça, E aos nossos olhos pareça Aquilo que é realmente; Pois nesta coisa medonha, Que se chama sociedade, Ninguém sai da intimidade Sem que uma máscara ponha. Não julguemos à ligeira; Toda a gente se mascara: Uns cobrem parte da cara E os outros a cara inteira. Quem se revela maluco Tem muitas vezes juízo, E nos parece ter siso Um velho crânio sem suco. Finge de franco o sovina, Faz-se virtude a mazela... Julgas Penélope aquela? Repara que é Messalina!
AMBROSINA Naquele maldito almoço Muito a custo me contive... Se o mundo enganado vive, Não vivo eu!
LUCAS Ouve...
AMBROSINA Não ouço! Defendê-los tu! Que ideia! És cacete por teu turno! Toma hoje mesmo o noturno E volta pra a Pauliceia!
LUCAS Não vive o mundo enganado, Não toma a nuvem por Juno: Diz que o gatuno é gatuno, Diz que é malvado o malvado, E, sem que o disfarce o iluda, Quando o seu chapéu lhes tira, Cumprimenta uma mentira, Uma máscara saúda; Mas não se trata do mundo E sim do juízo que fazes Sobre dois pobres rapazes Que não conheces a fundo. Durante esse almoço triste, Que te não deixou saudades, Não lhes viste as qualidades, Mais que os achaques não viste... Quem sabe se os namorados Produzirão outro efeito Quando, com arte e com jeito, Os vejas desmascarados?
AMBROSINA Com ou sem máscara, dize, Aquele Manel de Soisa Me falará noutra coisa Que não seja o câmbio e a crise?
LUCAS Vejam que grande desgraça! Mas esse assunto varia, Porque, enfim, lá vem um dia Sobe o câmbio e a crise passa!
AMBROSINA E o outro?... aquele janota, De trinta milhões herdeiro,
Vidrinho de água de cheiro, Fátuo, ridículo, idiota? De uma penhora estou livre, Se com tal tipo me caso!
LUCAS Menina, não faças caso: Tudo aquilo é savoir-vivre.
AMBROSINA Muito agradecida, Lucas: Falo-te de coisas sérias, E com insulsas pilhérias A quanto eu digo retrucas! Vou no meu quarto fechar-me! E que ninguém me apareça! Estou com dor de cabeça: Escusam de ir lá chamar-me! (Sai arrebatadamente)
CENA III Lucas (só).
LUCAS Tem razão, coitadinha! Eu, no seu caso, Também arranjaria uma enxaqueca... Qualquer dos dois galãs é o mais ridículo. César Santos é todo positivo: Outro assunto não tem para a palestra Senão coisas da praça. As raparigas Antipatizam necessariamente Com tais assuntos, e falar-lhes nisso É o mesmo que se a gente as obrigasse A ler nas folhas tão somente a parte Comercial. E o Benjamin? Que parvo! Um fenômeno quase! O próprio Édson, A matutar, duvido que inventasse
Tão engenhosa máquina de asneiras! Entretanto quem sabe? os dois rapazes São talvez excelentes criaturas... É o que preciso averiguar quanto antes; Mas para isso necessário fora Que eu conseguisse conversar com ambos, Cada um de per si... (Vendo entrar César Santos) Oh, que pechincha!... O César Santos!... Vou puxar por ele... Também eu ponho agora a minha máscara.
CENA IV Lucas, César Santos.
CÉSAR Onde é que se meteu dona Ambrosina? Vim procurá-la.
LUCAS Foi para o seu quarto, Queixando-se de dores de cabeça.
CÉSAR Está naturalmente aborrecida Por ter ouvido tantas baboseiras Do Benjamin Ferraz. Que grande tipo! Lá o deixei a falar do seu cavalo Que, a dar-lhe ouvidos, é o melhor do mundo!
LUCAS Não; ela não se queixa das toleimas Do Benjamin Ferraz; pelo contrário... Acha-lhe certa originalidade. Queixa-se do senhor.
CÉSAR De mim?
LUCAS Por certo, Pois o senhor não vê que a moça é fútil, E só gosta de ouvir futilidades? Falta de educação... Oh! eu conheço-a Desde pequena, e sei dos seus defeitos. O senhor só conversa em coisas sérias...
CÉSAR Não há nada mais sério que o comércio.
LUCAS Pois sim! Vão lá dizer-lho! Não crê nisso!
CÉSAR Falta-lhe então critério?
LUCAS Do comércio Ela só toma a sério os armarinhos Da Rua do Ouvidor.
CÉSAR No entanto, julgo Que o velho Ramos, ferragista honrado, Foi no comércio que ajuntou dinheiro, E do comércio vive, e vive a filha...
LUCAS Ela quer lá saber dessas bobagens!
CÉSAR Bobagens?
LUCAS Esse é o termo que ela emprega. Falem-lhe em bailes, falem-lhe em teatros! Bem se lhe dá que o câmbio esteja frouxo, Ou que encontre na praça tomadores, Ou que pela manhã subindo a sete, Baixe de tarde a seis e sete oitavos!
CÉSAR Tenho pena, confesso: gosto dela, E dói-me vê-la assim tão leviana.
LUCAS Gosta dela?
CÉSAR Decerto; e pretendia Pedi-la em casamento ao pai.
LUCAS Deveras? Que me diz? Nesse caso fiz asneira! Se de tais intenções eu suspeitasse, Não me exprimira assim a seu respeito! Pobre Ambrosina! E ela, com certeza, Gosta igualmente do senhor!... Que diabo!... Hei de sempre mostrar-me um criançola! Tem graça agora se, por minha causa, Perde Ambrosina um casamento destes! Senhor, não faça caso do que eu disse! Ela não gosta do comércio? Embora! Peça a menina, case-se com ela! O comércio virá depois... Que bruto E que indiscreto fui!
CÉSAR Sossegue, Lucas: Se ela não me aceitar para marido,
Eu não me atiro ao mar por causa disso.
LUCAS Ah! bom! já vejo que não gosta dela...
CÉSAR Gosto... gosto... é bonita... é bem bonita... Veste-se muito bem... toca piano...
LUCAS E bandolim também, que é moda agora.
CÉSAR Se é fútil, não faz mal; bem sei que as moças São, pouco mais ou menos, todas fúteis! Sim... depois de casada... em vindo os filhos. Há de neles pensar, no seu futuro, E todo o dia, quando eu volte à casa, Perguntará decerto pelo câmbio.
LUCAS Sabe que mais? Aqui ninguém nos ouve. Confesse que se casa co’Ambrosina Como se casaria... ande, confesse!... Com qualquer outra moça tão bonita, Que fosse filha de outro velho Ramos. (César sorri) Este sorriso não me engana: é certo! (Contendo a indignação) Faz você muito bem! (Consinta, amigo, Que o trate por você...) Todas as moças São parecidas umas com as outras Quando se vestem bem, tocam piano E bandolim. É próprio de pascácios Preferir esta àquela, desde que haja Beleza... e dote. Nós, os do comércio, Mesmo tratando de formar família, Não nos devemos esquecer que somos Antes de tudo negociantes...
CÉSAR Toca! Tu és da minha escola! Tu consentes Que eu te trate por tu?
LUCAS Pois não!! consinto!
CÉSAR O casamento é uma sociedade; Toda a mulher é sócia do marido: Usa e assina o seu nome, e tem metade De quanto lhe pertence. Isso é conforme.
LUCAS De direito é conforme, mas de fato Tudo o que é dele é dela, e vice-versa. Logo, é justo não é? que a nossa noiva Nos traga um capital igual ao nosso.
CÉSAR Tu tens vinte e dois anos?
LUCAS E três meses.
CÉSAR Falas que nem um velho! Não conheço Quem tão bem raciocine nessa idade! Se assim pensassem todos, não veríamos Tantas desgraças que provêm pudera! Da pobreza dos cônjuges!
LUCAS Em França Rapariga não há, bonita embora,
Que sem ter dote casamento arranje. Aquilo é que é país!
CÉSAR E no comércio A francesa é caixeira do marido.
LUCAS Tinha eu então razão quando dizia Que a ti tanto te faz uma como outra...
CÉSAR Tinhas toda a razão. A ti, to digo, Pois vejo que não és nenhum poeta, Nem nenhum visionário impertinente, Que viva numa nuvem cor de rosa. És de Dona Ambrosina irmão colaço: Peço-te, pois, que essa impressão destruas Que nela produzi; dize-lhe Lucas, Que tenho aspirações, que tenho sonhos, Eu sou muito capaz de fazer versos. Numa página até do livro-caixa!
LUCAS Vai tranquilo. (À parte) Caiu como um patinho, E por um triz não lhe esmurrei as ventas!
CENA V Lucas, César Santos, João Ramos, Benjamin Ferraz, Dona Angélica.
RAMOS Então? Que é isso? Desertaram ambos?
ANGÉLICA Ambrosina onde está, que não a vejo?
LUCAS Para o seu quarto foi co’ uma enxaqueca.
ANGÉLICA Qual! minha filha nunca teve disso!
LUCAS Nesse caso, fez hoje a sua estreia.
ANGÉLICA Valha-me o bom Jesus! vou ter com ela!
LUCAS Um vidro tenho aqui de sais ingleses...
(Angélica sai sem lhe dar ouvidos)
RAMOS Deixe. Não será nada. A senhorita Bebeu Bucelas e bebeu Colares: Não estando acostumada a tais misturas, Sentiu-se incomodada.
CÉSAR Não; não creia: Muito pouco bebeu durante o almoço. (Senta-se a examinar um álbum de fotografias)
BENJAMIN Diz muito bem. Nos cálices apenas Os lábios virginais umedecia.
RAMOS Gosta de ver retratos, senhor César?
CÉSAR É divertido.
(Ramos senta-se ao lado de César, e vai lhe mostrando os retratos)
RAMOS Aqui me tem, no tempo Em que eu tinha, talvez, a sua idade.
(Lucas aproxima-se de Benjamin, que está sentado no sofá)
LUCAS (à parte) Vou penetrar nesta alma de ocioso. (Alto, sentando-se ao lado dele) Quer saber o motivo da enxaqueca? Qual mistura de vinhos; qual histórias!
RAMOS Esta é minha mulher. Foi bem bonita.
CÉSAR Ainda se parece.
BENJAMIN Eu desconfio Que indisposta ficou dona Ambrosina Por tanto ouvir falar ao César Santos Em transações da praça.
LUCAS Pois engana-se.
RAMOS Este é o meu sogro. Já lá está, coitado!
LUCAS Foi o senhor a causa da enxaqueca.
BENJAMIN Eu? Ora essa! Não compreendo, Explique-se!
RAMOS A Ambrosina, quando era mais mocinha.
LUCAS Ela, aqui para nós, é muito tola; Não gosta de o ouvir falar; diz ela Que o meu amigo só de si se ocupa.
BENJAMIN Não costumo falar da vida alheia.
RAMOS O falecido meu compadre Lopes, Padrinho da pequena.
CÉSAR Eu conheci-o. Teve uma loja de calçado.
RAMOS É isso. Na Rua da Quitanda. Era bom homem.
LUCAS Ela não aprecia o seu estilo... É tão mal preparada! Só lhe agradam Palavras corriqueiras... É bonita, Elegante, não nego, mas que pena! Falta-lhe o savoir-vivre. Uma burguesa!
RAMOS Este é o Freitas Simões, que foi meu sócio. Hoje é o senhor visconde d’Alcochete!
BENJAMIN Pois tenho pena que ela me deteste: Tencionava pedi-la em casamento.
LUCAS Pedi-la em casamento? Oh, desastrado! Meu Deus, fi-la bonita! Meu amigo, Não faça caso do que eu disse! Pílulas! Por minha causa perde a rapariga Um casamento destes! Não! não! casem-se! Virá depois o savoir-vivre! Diabo!... Hei de ser sempre uma criança estúpida!...
RAMOS O Gouveia da Rua do Mercado.
BENJAMIN Não; eu não desanimo por tão pouco, E lhe agradeço até, meu caro jovem, Ter-me instruído sobre os gostos dela...
RAMOS Conhece? É o Nazaré da Rua Sete, Mas no tempo em que usava a barba toda.
BENJAMIN Eu tratarei de transformar-me, creia; Mas se inda assim nas suas boas graças Não cair, paciência... Outra donzela Talvez encontre menos exigente. O que me agrada nela é a formosura Com que a dotou a natureza pródiga; Outra coisa não é, porque sou rico, E ainda espero em Deus herdar bastante,
LUCAS Em Deus? Sim, tem razão; é Deus quem mata...
RAMOS Este é o doutor Galvão, que é nosso médico.
BENJAMIN De bom grado eu seria o seu marido, Por ser senhora muito apresentável, Que faria figura no grand monde E enfeitaria bem um camarote Do Lírico; entretanto, um sacrifício Não quero que ela faça, está bem visto.
CÉSAR Este conheço eu muito: é o João Moreira.
BENJAMIN Modéstia à parte, a um homem desta estofa, Que é moço, e não é feio, e tem saúde, E é milionário ou quase milionário, E viajou por toda a culta Europa, E anda trajado no rigor da moda, E faz figura em cima de um cavalo, E fuma disto... (Mostra o charuto que fuma, e faz menção de tirar outro da algibeira) Quer provar?
LUCAS Não fumo.
BENJAMIN A um homem desta estofa nunca faltam Mulheres que o pretendam, que o disputem, Que se agatanhem para conquistá-lo!
(Aproxima-se de Ramos e César, que têm acabado de percorrer o álbum)
LUCAS (à parte) O outro é tolo e malandro; este é só tolo... É muito fácil vê-lo pelas costas.
CENA VI Lucas, João Ramos, César Santos, Benjamin Ferraz, Dona Angélica.
RAMOS (a Angélica que entra) Então? Que é?...
ANGÉLICA Não é nada. Aquilo passa.
RAMOS Não quero que os amigos se retirem Sem ver a nossa chácara. Proponho Um pequeno passeio.
CÉSAR É bem lembrado.
BENJAMIN É conveniente um pouco de exercício Depois do lauto almoço que tivemos, E ao nosso anfitrião faz tanta honra.
RAMOS Bondade sua, meu amigo. Angélica, Vai buscar os chapéus destes senhores.
BENJAMIN (indo buscar o seu chapéu) Então? Não se incomode, Excelentíssima!
CÉSAR (idem) Oh! pelo amor de Deus, minha senhora!
RAMOS Vamos! Não vens, Angélica?
ANGÉLICA Não. Fico
Fazendo companhia à nossa filha.
LUCAS E eu faço companhia a dona Angélica.
RAMOS Vamos então nós três. Eu vou mostrar-lhes Uma nascente de água ali no morro...
(Saem César, Benjamin e Ramos, que continua a falar indistintamente, até que a voz se perca ao longe)
CENA VII Lucas, Dona Angélica, depois Ambrosina.
ANGÉLICA Qual enxaqueca! qual nada! Ambrosina, meu rapaz...
LUCAS Santos não quer ser chamada, Nem ser madame Ferraz.
ANGÉLICA Sabias?
LUCAS E uma enxaqueca Astutamente arranjou, Para livrar-se da seca Que o papai lhe reservou. O Ferraz alambicado Debalde se encareceu, E o César pobre coitado! Chegou, viu, mas não venceu.
ANGÉLICA Vês que menina exigente?
LUCAS No seu direito ela está! É bonita, inteligente, E tem um dote... oh, lá lá! Deixe! O que não se faz hoje Fazer-se pode amanhã... Sossegue, que não lhe foge O seu príncipe Charmant.
ANGÉLICA A galope os desenganos À casa podem chegar... Ela tem vinte e dois anos: Não deve mais esperar.
LUCAS Momento melhor aguarde; Não é preciso correr. Espere, que nunca é tarde Para uma asneira fazer. Gosto a senhora teria Se Ambrosina de qualquer Daqueles tipos um dia Franqueza! fosse mulher?
ANGÉLICA Tu não dizes o que sentes: Dois tipos eles não são.
LUCAS Deixe-se de panos quentes! É cada qual mais tipão!
ANGÉLICA (depois de certa hesitação)
Ah! se o meu genro escolhido Fosse por mim, só por mim, De minha filha o marido Serias tu.
LUCAS Eu?
ANGÉLICA Tu, sim! (Ambrosina aparece à porta e escuta o diálogo) Que outro genro achar podemos Melhor do que tu?
LUCAS Perdão. Sobre outra coisa falemos.
ANGÉLICA Não te agrada o assunto?
LUCAS Não. E mais na carta não deite...
ANGÉLICA Ambrosina...
LUCAS Tá tá tá! Ela é minha irmã de leite...
ANGÉLICA Impedimento não há.
LUCAS Há, e um grande impedimento: O impedimento moral:
Semelhante casamento Seria tão desigual...
ANGÉLICA Desigual por que motivo?
LUCAS Não é preciso dizer.
ANGÉLICA És quase um filho adotivo: Deves ser franco!
LUCAS Vou ser. De uma... alugada era filho Quando nesta casa entrei, E seria um maltrapilho Sem a proteção que achei.
ANGÉLICA És tolo.
LUCAS Se seu marido Não me desse proteção, Eu me teria perdido...
ANGÉLICA Quem sabe? Talvez que não.
LUCAS Não! Essa ideia me humilha! Eu não pago tanto amor Pretendendo a mão da filha Do meu santo protetor!
ANGÉLICA Adeus, minhas encomendas! Não me entendeste, rapaz! Eu não digo que pretendas, Pois pretendido serás.
LUCAS Se eu me casasse com ela, Que diriam por aí? O mundo é tão tagarela!
ANGÉLICA Ora! que diriam?
LUCAS Xi! “O Lucas, aquele intruso Noiva e dote abiscoitou! De confiança um abuso Friamente praticou! Parecia não ter vícios, Mas vede o pago que deu A todos os benefícios Que do velho recebeu!” Já vê que esse casamento De modo algum me convém, E que todo o fundamento Os meus escrúpulos têm.
ANGÉLICA São tolos esses assomos De dignidade.
LUCAS Talvez.
ANGÉLICA Nós aqui em casa não somos
Nenhuns fidalgos, bem vês. Meu marido foi caixeiro E hoje apenas é patrão, E meu pai foi sapateiro, Depois de ser remendão. Somos, sim, família honesta E temos alguns vinténs; Mas, se a fidalguia é esta, Filho, também tu a tens. A razão por que não queres Ser meu genro essa não é; Mas anda lá! tu preferes Mentir...
LUCAS Mentir! eu?
ANGÉLICA Olé! Apesar de não ser fina, Claramente vendo estou Que não gostas de Ambrosina, Já cá não está quem falou. (Vai retirar-se, mas Lucas toma-lhe a passagem)
LUCAS Não gosto de Ambrosina? Engana-se! Ambrosina É a flor que me perfuma, o Sol que me ilumina! Supunha o meu afeto apenas fraternal, Mas hoje, quando entrei, alegre e jovial, E uma senhora achei na tímida criança Que do passado meu era a melhor lembrança, Deslumbrei-me, e senti que uma transformação. Meu Deus! se me operava aqui no coração!
Não pode calcular como os dois namorados Tão senhores de si, risonhos, confiados, Me encheram de ciúme, e como revivi Quando por serem tão ridículos, os vi Perder terreno... Oh, não! não diga, por piedade. Que eu não gosto daquela esplêndida beldade! Eu amo-a loucamente, eu amo-a com fervor! Amor não pode haver maior que o meu amor! Mas peço-lhe por Deus que guarde este segredo Que murmuro a tremer e balbucio a medo. Não me devo casar com sua filha, pois Que um abismo fatal existe entre nós dois! Se o meu segredo for por mais alguém sabido, Juro-lhe que disparo um revólver no ouvido!
AMBROSINA (mostrando-se) Vamos! Dispara! O teu revólver onde está? Eu quero ver morrer um homem! Vamos lá!
LUCAS Ambrosina!
AMBROSINA Acho bom, porém, que, antes do tiro Com que te vai matar, demos ambos um giro Até a pretoria e até a igreja.
ANGÉLICA (a Lucas) Aí tens: És noivo; aceita os meus sinceros parabéns.
AMBROSINA Mau! Feio! Escutei tudo ali daquela porta. Se não dissesses “Amo”, eu cairia morta! O que te sucedeu me sucedeu a mim:
Se tão cedo não vens, talvez que o Benjamin, Ou o César um dos dois fosse o meu noivo agora. Mas tu chegaste a tempo. Ao ver-te, sem demora Me pareceu que Deus te conduzia aqui Para arrancar-me ao outro e oferecer-me a ti.
ANGÉLICA (a Lucas) Então? Que dizes tu?
LUCAS Digo... Não digo nada! Foi de tal modo pelo acaso combinada Esta cena de amor que ninguém... sim, ninguém Me poderá dizer: “Tu não andaste bem”. Estes castelos no ar é bom que os não façamos, Todavia, sem ter ouvido o velho Ramos. Não podemos saber como ele acolherá Esta conspiração...
ANGÉLICA Eu vou falar-lhe já.
LUCAS Já? Isso não!
ANGÉLICA Por quê?
LUCAS Convém primeiramente Desiludi-lo de um e de outro pretendente. Eu disso me encarrego. E só depois que os tais Saírem... sairão, e cá não voltam mais,
Prometo-lhes!...
ANGÉLICA Bem bom! bem bom!
AMBROSINA Isso me alegra.
LUCAS Só depois eu farei o meu pedido em regra.
AMBROSINA E o tiro? Pum!
LUCAS Dá-lo-ei, se à tua decisão O velho opõe um veto...
AMBROSINA Há de lhe dar sanção.
(Ouvem-se vozes)
ANGÉLICA Eles de volta aí vêm.
AMBROSINA (beijando a mãe) Mamãe, muito obrigada.
ANGÉLICA Se soubessem os dois que a praça foi tomada...
CENA VIII Lucas, Dona Angélica, Ambrosina, João Ramos, César Santos, Benjamin Ferraz.
RAMOS Que estopada lhes dei! Confessem ambos!
CÉSAR Não diga tal! Foi um passeio esplêndido!
BENJAMIN Tem uma bela chácara. Algum dia Hei de mostrar-lhe a minha: um paraíso!
CÉSAR Já ficou boa da enxaqueca?
AMBROSINA O Lucas Um remédio me deu de efeito pronto.
LUCAS (à parte) Só me faltava ser antipirina...
CÉSAR (com esforço) Numa linda cabeça como a sua, Onde brilham dois olhos tão formosos, A enxaqueca devia ser vedada.
AMBROSINA (indo-se) Que bela frase!
CÉSAR (à parte) Decididamente Falta-me o jeito para as coisas fúteis!
BENJAMIN A enxaqueca, senhora, é mal terrível, Porque desvia do trabalho o cérebro, E o trabalho é a alavanca do progresso, É o comércio, a lavoura, a indústria, é tudo!
AMBROSINA (rindo-se) Falou bonito!
BENJAMIN (à parte) Decididamente Não tenho queda para as coisas sérias!
RAMOS Mas que remédio milagroso é esse? Durante o almoço estavas macambúzia Nem provaste do célebre badejo! E agora tão risonha achar-te venho! Verias tu, durante a nossa ausência, Um passarinho verde?
AMBROSINA Não vi nada; Mas o fato é que estou muito contente.
RAMOS Bom. Nesse caso, vais tocar um pouco De bandolim. Desejo que os amigos Antes de nos deixar te batam palmas.
AMBROSINA Com mil vontades. Senhor César Santos? Senhor Forjaz?...
BENJAMIN Ferraz, Excelentíssima.
AMBROSINA Peço toda a indulgência.
CÉSAR Oh!
BENJAMIN Ora essa!
ANGÉLICA Na sala de jantar corre mais fresco E o bandolim lá está.
RAMOS Para lá vamos! Entrem, senhores meus!
CÉSAR (oferecendo o braço a Ambrosina) Minha senhora?
BENJAMIN (idem) Minha senhora?
AMBROSINA (entre os dois) Dois? Pois bem! não quero Que nenhum se desgoste por tão pouco, E aceito o braço que ambos me oferecem. (Sai pelo braço de ambos)
ANGÉLICA Malcriados! Esquecem-se da velha!
RAMOS (oferecendo-lhe o braço) Aqui tens, minha amiga.
ANGÉLICA É pão com rosca.
RAMOS (a Lucas, passando com Angélica pelo braço) Não vens?
LUCAS Por ora não. Logo que possa
Safar-se, venha ter aqui comigo. Preciso dar-lhe duas palavrinhas.
RAMOS Quantas quiseres, Lucas. Até logo. (Sai com Angélica)
LUCAS (só) Que dirás, minha mãe, quando souberes?
ATO III A mesma sala.
CENA I Lucas (só).
(Lucas está olhando para o lado da sala de jantar, de onde chegam os sons de um bandolim)
LUCAS Não há que ver: João Ramos não se lembra De que o espero aqui há meia hora. Ele está preso ao bandolim da filha, O olhar interessado, o ouvido atento, A boca aberta, as mãos sobre os joelhos. Oh, que velho tão bom! que pai ditoso! Neste instante ninguém capaz seria De arrancá-lo daquele doce enlevo! Ouvindo aqueles sons melodiosos, Ele talvez na mente rememore O tempo em que Ambrosina era assinzinha, E no seu colo adormecia às vezes. (O bandolim cala-se. Aplausos) Ela acabou. O velho levantou-se. Para este lado olhou. Viu-me. (Faz um sinal para dentro) Ora graças
Ele aí vem finalmente. Ei-lo comigo. Queira Deus que lhe agrade a minha ideia. Do contrário não temos nada feito.
CENA II Lucas, João Ramos.
RAMOS Lucas, meu filho, desculpa, E não me acuses a mim, Pois quem teve toda a culpa Foi aquele bandolim. Quando a pequena dedilha As duas cordas, sei lá! Deixa de ser minha filha: É um anjinho que aí está! Minh’alma sinto levada Para outro mundo melhor; Não vejo nem ouço nada Do que se passa em redor! Se o copeiro me dissesse: “Há fogo em casa, patrão!” Talvez por isso não desse, Nem lhe prestasse atenção! Não me queiras mal, portanto, Se mais depressa não vim; Quem te fez esperar tanto Foi aquele bandolim.
LUCAS Mas vamos ao que se trata.
RAMOS Estou sempre ao teu dispor. Alguma negociata Tu me desejas propor?
Queres que eu seja teu sócio?
LUCAS Não senhor; para tratar Aqui de qualquer negócio, Havia de procurar Ocasião mais propícia, Sem César nem Benjamin, E não iria à delícia Roubá-lo do bandolim.
RAMOS Oh, meu rapaz! tu me assustas! Onde queres tu chegar?
LUCAS Sossegue; as almas robustas Não têm de que se assustar. Uma inverossimilhança, Que poderá fazer rir, É não acha? uma criança A um velho os olhos abrir; No entanto, o fato é patente!
RAMOS Mas não me dirás, enfim?...
LUCAS Trata-se precisamente Da dona do bandolim. Dos dois moços namorados, Que hoje almoçaram aqui, Já foram bem estudados Pelo senhor?
RAMOS E por ti?
LUCAS Por mim o foram, e juro Que nenhum deles convém!
RAMOS Ó Lucas, eu te asseguro Que são dois homens de bem!
LUCAS É César Santos matreiro Um caça-dotes ruim, Que faz questão de dinheiro E não faz de bandolim!
RAMOS Semelhante impertinência Me espanta nos lábios teus!
LUCAS Proponho uma experiência E o aconselho...
RAMOS Ora adeus! Dás-me um conselho? Ao que vejo, Inverteram-se os papéis!
LUCAS Mal empregado badejo De vinte e cinco mil réis!
(Ouve-se o bandolim)
RAMOS Deus te dê o que te falta! Ouves?
LUCAS Ouço.
RAMOS Plim, plim, plim! Sabes que mais, meu peralta? Não resisto ao bandolim (Quer retirar-se. Lucas toma-lhe a passagem) Venha cá! Falo sério! Não se ria! César Santos não gosta de Ambrosina, Ou antes, gosta, como gostaria De outra qualquer menina Que fosse linda e que tivesse dote... Ele quer dar-lhe um bote!
RAMOS Mas como sabes disso?
LUCAS Ele em pessoa Me declarou que assim pensava.
RAMOS É boa!
LUCAS Fingi-me um patifão da sua laia; Captei-lhe a confiança prontamente, E dei-lhe um vomitório de poaia.
RAMOS E vomitou?
LUCAS Duvida!... O Lucas mente?...
RAMOS Não vês que isso foi pala? Quis brincar, está visto!
LUCAS Pois bem, eu pela experiência insisto!
RAMOS Lá vem de novo a experiência! Fala! Como é que me aconselhas que manobre?
LUCAS Chame-o de parte e diga-lhe que é pobre, Que sua filha não tem dote... Invente!... E se ele, ouvindo essa tremenda história, Não se puser ao fresco incontinenti, As mãos entregarei à palmatória.
RAMOS Em todo o caso, é boa essa armadilha, Porque me custaria ver casada, Por ter um dote apenas, minha filha, Quando com tantos outros é dotada...
LUCAS Eu vou lá para dentro e aqui lho mando. Mas não tenha vergonha: Invente uma catástrofe medonha. Suspire, se puder de vez em quando... Coisas dirá incríveis, conjecturo; Não se importe: ele é homem Desses que todas as araras comem E que o reino do céu tem já seguro Diga que o jogo e os seus fatais caprichos Levaram-lhe a maquia; Que cem contos de réis perdeu nos bichos, Cem na roleta, cem na loteria, E cem na Bolsa!
RAMOS Xi! que jogatina! E o Benjamin Ferraz?
LUCAS Ora! Ambrosina Já tem um bandolim: outro dispensa.
RAMOS Achas então que o moço?...
LUCAS É mesmo um bandolim... de carne e osso. Esse em dote não pensa.
RAMOS Eu creio mesmo que não pensa em nada.
LUCAS Mas fica essa figura reservada para depois. Eu vou mandar-lhe o tipo. Meus parabéns sinceros lhe antecipo. (Sai)
CENA III João Ramos (só).
RAMOS É levado da breca este meu Lucas! Mas não é que ele teve uma lembrança Que não acudiria a toda a gente? Eu vou mentir... mas, ora adeus! se o faço, É para o bem da minha filha amada, E a mentira que vou pregar só pode Prejudicar o próprio mentiroso, Pois se a pílula engole o César Santos,
Vai dizer por aí que estou quebrado; Mas como a ninguém devo, que me importa? Ele aí vem. Temos cena de comédia! Coragem! vou pregar uma mentira Pela primeira vez na minha vida...
CENA IV João Ramos, César Santos.
CÉSAR Desejava falar-me, senhor Ramos?
RAMOS Desejava falar-lhe, senhor César. (Dando-lhe uma cadeira) Tenha a bondade, sente-se.
CÉSAR Obrigado. (Senta-se. Ramos senta-se também) Estou às suas ordens.
RAMOS Meu amigo, O senhor, uma noite, no Cassino, Minha filha encontrou, dançou com ela, E no dia seguinte pela porta Começou a passar de nossa casa Todas as tardes, mesmo se chovia. Se à janela a pequena me bispava, Tirava-lhe o chapéu amavelmente, E lhe sorria assim de certo modo... Achando no senhor um bom partido, Por saber, de pessoas fidedignas, Que está perfeitamente encaminhado, Para almoçar comigo convidei-o, E preparei um suculento almoço Com algum sacrifício...
CÉSAR (à parte) Sacrifício?
RAMOS Para não parecer que eu convidava Um namorado, e lhe impingia a filha, O Benjamin Ferraz, aparecendo, Foi também convidado. (À parte) Esta mentira Não estava no programa. (Alto) O que eu queria, Trazendo-o para junto de Ambrosina, Era fazer com que se aproximassem E se entendessem de uma vez por todas. Ficam-lhe abertas desta casa as portas.
CÉSAR (erguendo-se) Muito obrigado, senhor Ramos.
RAMOS Sente-se. (César senta-se) Antes, porém, que as coisas vão mais longe, Uma revelação fazer-lhe quero Imposta pela minha lealdade. (À parte) Lá vai! (Alto) Sou pobre.
CÉSAR (erguendo-se como tocado por uma mola) É pobre!
RAMOS Muito pobre. Infelizmente perdi tudo. Sente-se.
CÉSAR (seco) Estou perfeitamente.
RAMOS (erguendo-se) Nesse caso, Levanto-me eu também, meu caro amigo.
CÉSAR Mas como foi?...
RAMOS Cavalarias altas! Joguei na baixa.
CÉSAR E perdeu tudo?
RAMOS Tudo, A começar pelo juízo... Apenas Desse naufrágio me escapou a honra.
CÉSAR (naturalmente) Mas de que vale a honra sem dinheiro?
RAMOS (depois de estremecer como se o esbofeteassem) Basta! não é preciso ouvir mais nada! Lucas, vem cá!
CÉSAR Que significa isto?
RAMOS A experiência fica em meio apenas.
CENA V João Ramos, César Santos, Lucas.
RAMOS (a Lucas que entra)
Imaginavas que este sujeitinho, Ouvindo-me dizer que eu era pobre, Ao fresco se pusesse incontinenti; Pois bem: sou eu, vais ver, que o ponho fora Da minha casa honrada, e, se o não ponho A pontapés, é porque nesta idade Não há mais pontapés que deixem marca!
CÉSAR Senhor!
RAMOS (a Lucas) Quando eu lhe disse que era pobre, Mas que era honrado, respondeu-me, filho, Que a honra nada vale sem dinheiro!
LUCAS O dinheiro sem honra há quem prefira. (Vai buscar a bengala e o chapéu de César Santos)
RAMOS Saia já desta casa! (Movimento de César. Com mais força) Saia!
LUCAS Saia... E nada lhe responda: é o mais prudente.
(César encolhe os ombros, toma o chapéu e sai com arrogância. João Ramos fica muito agitado, a percorrer a cena)
CENA VI João Ramos, Lucas.
RAMOS Que cinismo! que despejo!... Quatro murros merecia!...
LUCAS Então? eu não lhe dizia? Mal empregado badejo! Vamos lá! Não se apoquente, Que está salva a sua filha... Mas olhe que se ele a pilha!...
RAMOS Não a pilhou felizmente!
LUCAS Temos o outro namorado E uma nova experiência...
RAMOS Mas esse tem paciência É moço muito educado, Incapaz de dar-me um couce Como aquele sevandija! (Falando para a porta por onde César saiu) Há de haver quem te corrija, Meu descarado!
LUCAS Acabou-se. Não se trata desse agora, Mas do bandolim Ferraz...
RAMOS Que também me deixe em paz! Que também se vá embora! Se um bruto casa com ela, Um dia prego-lhe um tiro!
LUCAS Esteja calmo.
RAMOS Prefiro Que vá de palma e capela Quando morrer! (Pausa, durante a qual o velho procura serenar-se) Mas que dizes Do tal namorado piegas? Já agora acredito às cegas Em tudo de que me avises!
LUCAS Não creio que ele pratique Uma ação indecorosa: Mas é muito tolo... é prosa... Presta-se muito ao debique, E de ridículo a dose Que traz em si, permanente, Refletirá fatalmente Sobre a mulher que ele espose. Há de ser um desconsolo, Meu caro, que a filha sua, Sempre que sair à rua Vá pelo braço de um tolo. Ele tem muitas patacas, E ainda há de herdar de uns matutos, Para comprar mais charutos E novas sobrecasacas; Mas todo esse cobre junto, Toda essa bela milhança, Entrando em conta a esperança Dos sapatos de defunto, Que vale nas mãos de um homem Desses e é grande a cambada! Que, não produzindo nada,
Enormemente consomem? Quem vive dessa maneira, E do seu fausto se gaba, Por via de regra acaba Por não ter eira nem beira. Ambrosina coisa horrível! Nas mãos desse desfrutável, Tem a pobreza provável, Tem a miséria possível!
RAMOS (erguendo-se) Qual há de ser o espantalho?
LUCAS À puridade lhe diga: “Quer casar coa rapariga? Pois bem: procure trabalho!” Se o senhor assim o avisa, Faço todas as apostas Em como, voltando as costas, Ele aqui nunca mais pisa.
RAMOS Pois manda-o cá!
LUCAS Vou mandá-lo. Verá como a coisa pega! Fale-lhe teso!
RAMOS Sossega: Teso, bem teso lhe falo! (Lucas sai)
CENA VII João Ramos (só).
JOÃO RAMOS Oh! venturoso o pai que lhe entregar a filha! Vinte e dois anos só! Quando este bigorrilha Contar os que já conto, há de ser um portento! Aquilo sim, senhor, aquilo é que é talento! É ele a boca abrir, são flores e mais flores! Até me faz lembrar Jesus entre os doutores! Devia tê-lo feito entrar na Academia... Que brilhante orador, que bacharel daria!...
CENA VIII João Ramos, Benjamin Ferraz.
RAMOS Venha, meu caro amigo, e me desculpe Se o privei de mais doce companhia; Mas é preciso que nos entendamos Sobre assunto que muito me interessa.
BENJAMIN Antes de prosseguir, Senhor João Ramos, Cumprimentá-lo quero entusiasmado: Tem uma filha verdadeiramente Artista; o bandolim, nas delicadas Mãos de dona Ambrosina, diviniza-se! Ouvi três peças cada qual mais bela! Que brio! que expressão! que sentimento!...
RAMOS Gosta muito de música?
BENJAMIN Muitíssimo.
RAMOS E que instrumento é o seu?
BENJAMIN Nenhum.
RAMOS É pena.
BENJAMIN Mas tive um primo que tocava flauta.
RAMOS Queira sentar-se aqui nesta cadeira, E prestar-me atenção.
BENJAMIN (sentando-se) Sou todo ouvidos.
RAMOS (depois de sentar-se também) Há quinze dias, no Teatro Lírico, Num camarote eu estava coa família E o senhor na plateia.
BENJAMIN A companhia Cantava o Mefistófeles, de Boito.
RAMOS Mas o senhor pouca atenção prestava À Margarida, ao Fausto e ao Mefistófeles, E do meu camarote não tirava Os olhos, com binóculo ou sem ele. Bom. Nós éramos três no camarote...
BENJAMIN O senhor, a senhora dona Angélica E a nossa genial bandolinista.
RAMOS Ora, não creio que os olhares fossem Dirigidos a mim, que sou marmanjo, Nem a minha mulher, que é mulher velha; Não é preciso, pois, ser muito esperto Para ver que o seu alvo era Ambrosina. (Benjamin sorri) Acabado o espetáculo, na porta O senhor esperou por nós... por ela, Quero dizer, e suspirou tão alto, Que a atenção provocou de toda a gente!
BENJAMIN (suspirando) Ai! não sei suspirar de outra maneira!
RAMOS (à parte) Vá suspirar pro diabo que o carregue! (Alto) Já na manhã seguinte o seu cavalo Passava com o senhor em cima dele, E nas outras manhãs esse passeio Reproduzido foi às mesmas horas. E se à janela minha filha estava, O senhor lhe fazia um cumprimento, Caracolando com mais graça, e ela Correspondia ao cumprimento.
BENJAMIN Vejo Que tudo sabe.
RAMOS Eu sou bom pai.
BENJAMIN Decerto.
RAMOS Achando no senhor um bom partido,
Para almoçar comigo convidei-o, E, pra não parecer que convidava Um namorado e lhe impingia a filha, O César Santos...
BENJAMIN Onde está?
RAMOS Muscou-se. (Continuando) O César Santos, que conosco estava, Foi também convidado. O que eu queria, Trazendo-o para junto de Ambrosina, Era fazer com que se aproximassem E se entendessem de uma vez por todas.
BENJAMIN (erguendo-se) Senhor João Ramos, eu não sei quais sejam Os sentimentos dela a meu respeito, Porque, se bem que nos aproximássemos, Inda não conversamos um com o outro; Se ela quiser ser minha esposa amada E da minha riqueza ter metade, O mais feliz serei dos namorados; Se não quiser, o mais inconsolável. Inda há poucos momentos eu gostava De sua filha pela formosura Com que a dotou a natureza apenas; Mas depois que a ouvi, arrebatado, Naquele doce bandolim, que as pedras, Como a lira de Orfeu, mover podia, Sinto aqui dentro uma impressão mais forte! Isto é amor, não é namoro; isto É mais que amor, talvez; paixão, quem sabe?
RAMOS (erguendo-se) Paixão? Não exagere meu amigo!
BENJAMIN (idem) As paixões, meu senhor, assim começam. O que é preciso para transformar-nos? Um simples bandolim!
RAMOS Antes que as coisas Vão mais longe, meu caro, é indispensável Que sobre um grave assunto conversemos, Muito mais positivo e mais...
BENJAMIN Permita Que o interrompa. Eu sei de que se trata. Sou rico, sou riquíssimo: não quero Coisa nenhuma. Ela tem dote? Guarde-o! Nada tenho com isso. O meu dinheiro De nós ambos será. Divido tudo; Só não divido o coração, que é dela!
RAMOS (à parte) O Lucas enganou-se.
BENJAMIN Ela que faça Do dote o que quiser. O meu desejo Era esposar uma donzela pobre... Dona Ambrosina tem um patrimônio No nome de seu pai: isso me basta, Porque dote melhor não há que a honra.
RAMOS (entusiasmado) Sim, senhor! Isto é que é falar! Amigo, Quero apertá-lo nos meus braços! Viva! (Depois do abraço) Mas não é disso que eu tratar queria...
BENJAMIN Então fale, senhor! Ordene! Imponha As condições que desejar, contanto Que não me negue a mão de sua filha, Porque eu não posso mais passar sem ela! A tudo estou disposto!
RAMOS A tudo?
BENJAMIN A tudo!
RAMOS A trabalhar também?
BENJAMIN Eu não percebo.
RAMOS Vai perceber. Exijo que o meu genro, Embora seja rico, muito rico, Tenha um meio de vida; que trabalhe; Que em qualquer coisa ocupe a inteligência, E que produza, não consuma apenas.
BENJAMIN Aceito a condição. Não tenho jeito Para coisa nenhuma nesta vida, Mas estou pronto a trabalhar!
RAMOS Deveras?
BENJAMIN Faço-me industrial: monto uma fábrica, Ou lavrador e compro uma fazenda,
Ou negociante e abro uma casa.
RAMOS Bravo!
BENJAMIN Se o senhor consentir, serei seu sócio Na loja de ferragens.
RAMOS Bela ideia!
BENJAMIN Ou serei simplesmente seu caixeiro, E a vida levarei a contar pregos! Finalmente, disponho-me ao trabalho!
RAMOS Trabalhará?
BENJAMIN Trabalharei, contanto Que não me negue a mão de sua filha, Porque eu não posso mais passar sem ela!
RAMOS Dê-me algum tempo. Vou pensar no caso. (À parte) Pois já não me parece tão ridículo!
BENJAMIN Oh! temos muito tempo: este pedido Não é ainda o oficial; se o fosse, Eu seria incorreto. Ao vir pedir-lhe Oficialmente a mão de sua filha, Vestirei a casaca e trarei luvas. (Vai sentar-se a examinar o álbum)
RAMOS (à parte) Voltou a ser ridículo, coitado!
CENA IX João Ramos, Benjamin Ferraz, Lucas, depois Ambrosina, depois Dona Angélica.
(Lucas entra e, admirado de encontrar Benjamin, dirige-se a João Ramos)
LUCAS Então ele ficou?
RAMOS Meu filho, o resultado Da experiência foi o mais inesperado!
LUCAS Que me diz o senhor?
RAMOS O pobre Benjamin, Depois que minha filha ouviu ao bandolim, Deitou paixão violenta, e ao trabalho se arroja! Até diz que quer ser caixeiro lá na loja!
(Afasta-se e vai para junto de Benjamin)
LUCAS (à parte) Maldito bandolim! desperta uma paixão Que vai dificultar a minha situação!
(Ambrosina entra e, admirada de encontrar Benjamin, dirige-se a Lucas)
AMBROSINA Então ele ficou?
LUCAS Menina, o resultado Da experiência foi o mais inesperado!
AMBROSINA Lucas, que estás dizendo?
LUCAS O nosso Benjamin...
AMBROSINA Acaba! Ele que fez?
LUCAS Graças ao bandolim, Deitou paixão por ti, e ao trabalho se arroja! Até diz que quer ser caixeiro lá na loja! (Afasta-se)
AMBROSINA (à parte) Maldito bandolim! Se adivinhasse tal, Ou eu não tocaria ou tocaria mal!
(Entra dona Angélica e, admirada de encontrar Benjamim, dirige-se a Ambrosina)
ANGÉLICA Então ele ficou?
ANGÉLICA Mamãe, o resultado, Da experiência foi o mais inesperado!
AMBROSINA Que estás dizendo, filha?
AMBROSINA O senhor Benjamin,
Quando me ouviu tocar, deitou paixão por mim!
ANGÉLICA Paixão?
AMBROSINA Paixão violenta! E ao trabalho se arroja! Até diz que quer ser caixeiro lá na loja!
ANGÉLICA E que intentas fazer?
AMBROSINA Com ele conversar. Livres do apaixonado havemos de ficar. Leve papai pra dentro e tudo lhe revele... Diga que o Lucas me ama e que eu sou noiva dele.
LUCAS (descendo entre as duas senhoras) Que estão a cochichar? Vai lá pra dentro, vai! Lá irá ter mamãe, lá irá ter papai.
LUCAS Com ele ficas só? Vê lá o que vais fazer!
AMBROSINA Nesta combinação não tens que te meter. (Lucas encolhe os ombros e sai) Chame papai.
ANGÉLICA Ó João, vem cá; de ti preciso Na sala de jantar.
RAMOS (erguendo-se, à parte) Oh, que mulher de juízo!
Já tudo compreendeu... e quer deixá-los sós. (Angélica sai. A Ambrosina) Um maridão! (Sai)
AMBROSINA Pois sim! (Olhando para Benjamin) Agora nós!...
CENA X Benjamin Ferraz, Ambrosina.
(Benjamin está tão entretido com o álbum, que Ambrosina se aproxima dele sem ser pressentida)
AMBROSINA Senhor Ferraz? (Benjamin estremece, levanta-se e deixa o álbum)
BENJAMIN Minha senhora? Ninguém aqui?... Ninguém!... Só nós!... (Quer retirar-se)
AMBROSINA Oh! venha cá..... não vá-se embora... Meto-lhe medo?
BENJAMIN Estamos sós...
AMBROSINA Não é razão para fugir-me.
BENJAMIN Mas eu não devo aqui ficar. Do savoir-vivre às leis sou firme! Vou para a sala de jantar.
AMBROSINA Espere... Peço-lhe que fique...
BENJAMIN Devo, portanto, obedecer.
AMBROSINA É necessário que eu lhe explique... Tenho uma coisa que dizer.
BENJAMIN Tremendo estou! De que se trata?
AMBROSINA Dessa... paixão que tem por mim.
BENJAMIN Paixão terrível, insensata, Que devo àquele bandolim!
AMBROSINA Pois bem, senhor: de mim se esqueça... Não alimente essa paixão... Busque outra moça que o mereça E tenha livre o coração!
BENJAMIN Porém seu pai, minha senhora...
AMBROSINA Só do que é seu pode dispor: Não quererá impor-me agora Um casamento sem amor!
BENJAMIN Essas palavras, proferidas Pelos seus lábios virginais,
São cruéis armas homicidas! Não são palavras: são punhais!
AMBROSINA Esta satisfação aceite...
BENJAMIN Quem é, senhora, o meu rival?
AMBROSINA Lucas, o meu irmão de leite.
BENJAMIN Ele?! No entanto... (À parte) Então? que tal? (Alto) Amam-se?
AMBROSINA Oh! desde pequenos!
BENJAMIN (levando a mão ao peito) Data, senhora, esta afeição De menos tempo...
AMBROSINA Muito menos.
BENJAMIN Mas não tem menos intenção!
AMBROSINA Senhor não vá ficar magoado, O savoir-vivre assim o quer... Quem o lugar achar tomado, Outro procure se quiser.
BENJAMIN Diz muito bem. (Vai buscar o chapéu e a bengala) Oh! fados cegos! Mágoa cruel comigo vai! E eu estava pronto a contar pregos! A ser caixeiro de seu pai! (Limpa uma lágrima)
AMBROSINA Outra o compreenda! outra o console!
BENJAMIN Vou viajar, pois só assim Do peito meu talvez se evole O último som do bandolim! Adeus, ó sonho meu perdido!
AMBROSINA Não se despede de meus pais?
BENJAMIN Bastantemente despedido Já estou aqui. Para que mais? Que Deus a faça venturosa Hei de a rezar pedir a Deus! Adeus, quimera cor de rosa! Sonho... ilusão... visão, adeus! (Sai)
AMBROSINA (só) Pobre rapaz!
CENA XI Ambrosina, João Ramos, Lucas, Dona Angélica, depois o copeiro.
RAMOS Ambrosina! Vem cá, filhinha, vem cá!
ANGÉLICA Não assustes a menina!
RAMOS O Benjamin onde está?
AMBROSINA Deixou-lhe muitas lembranças.
LUCAS Foi-se?
AMBROSINA Foi... rezar por mim
RAMOS Oh, senhor, estas crianças! Coitado do Benjamin!
ANGÉLICA Mas tu... tu nada nos dizes?
RAMOS Mulher, que posso eu dizer? Felizes, muito felizes Conto que ambos hão de ser. (Entre Lucas e Ambrosina) Mas como nem um momento Eu me lembrei, filhos meus, De que era este casamento Aconselhado por Deus? Como visse os dois maganos Crescerem nas minhas mãos, Durante vinte e dois anos Considerei-os irmãos! Não me entrou na fantasia, Nem um minuto sequer,
Que dois irmãos algum dia Fossem marido e mulher! E eu, tonto, andava à procura De um genro na multidão, Sem reparar que a ventura Tinha ao alcance da mão! (Deixando-os) A culpa tiveste-a, Lucas! Não foste franco, por quê? E vocês, suas malucas, Tiveram medo, de quê?
LUCAS Temiam que o casamento Não lhe agradasse talvez...
RAMOS Se não há impedimento! Valha-me Deus, que vocês!... Que todo o mundo respeite A suspirada união! Beberam do mesmo leite? Pois comam do mesmo pão!
O COPEIRO (entrando) O jantar está na mesa.
RAMOS Sim, senhor. Pode sair, Mas vá, com toda a presteza, Essa casaca despir! (O copeiro sai) As etiquetas dispenso! Eu para luxos não dou!
ANGÉLICA Do badejo que era imenso, Um bom pedaço ficou.
RAMOS Do tal almoço é sobejo! Manda-o da mesa tirar! (Dona Angélica sai)
LUCAS Mal empregado badejo!
RAMOS Meus filhos, vamos jantar.
Artur Azevedo
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