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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BADEJO / Artur Azevedo
O BADEJO / Artur Azevedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Artur Azevedo

 

 

 

 

Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro, no Teatro São Pedro de Alcântara, no dia 15 de outubro de 1898, por iniciativa do Centro Artístico pelo Corpo Cênico do Elite-Club.
PERSONAGENS: JOÃO RAMOS LUCAS BENJAMIN FERRAZ CÉSAR SANTOS UM COZINHEIRO UM COPEIRO  AMBROSINA  DONA ANGÉLICA
A cena passa-se no Rio de Janeiro. Atualidade.

 


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ATO I Sala de visitas, bem mobiliada, em casa de João Ramos. Três portas ao fundo, dando para o jardim. Uma porta à direita comunicando com a sala de jantar e outra à esquerda, dando para os dormitórios. À esquerda uma mesa com álbuns, porta-cartões, etc. À direita um sofá. Consolo ao fundo. Piano. Cadeiras.
 
CENA I João Ramos (só).
 
RAMOS O almoço com certeza vai custar-me Uns duzentos mil réis, afora os vinhos; Mas se caso a Ambrosina, ainda é barato, Porque muito me custa a senhorita. Das minhas rendas a metade vai-se Em vestidos, chapéus, leques e luvas, Espetáculos, bailes e concertos; Ela casada, cessam tais despesas; É preciso, porém, que o noivo seja Um rapaz sério e não nenhum pelintra Que deseje viver à minha custa: Pior seria a emenda que o soneto. Mas não são as despesas que me ralam; Não sou unhas-de-fome, Deus louvado; Rala-me a ideia de bater a bota, E deixar a pequena sem marido, Exposta sabe Deus a que perigos! Dirão que meto minha filha à cara Dos pretendentes; ora adeus! que o digam! A Ambrosina já fez vinte e dois anos: É tempo de arranjar-lhe casamento.
 
CENA II João Ramos, Dona Angélica, o cozinheiro.
 
ANGÉLICA Ora aqui tens o nosso cozinheiro. Desejavas ouvi-lo: aqui to trago. Entra, Fabrício. (O cozinheiro entra) Quer saber teu amo. O que arranjaste para o almoço. Fala.
 
O COZINHEIRO Não pode ser melhor o meu cardápio.
 
RAMOS Cardápio? Não conheço essa palavra!
 
O COZINHEIRO Foi arranjada pelo Castro Lopes. Eu não digo menu, que é francesismo.
 
RAMOS Temos um cozinheiro literato!
 
O COZINHEIRO  Literato não sou, mas sou purista; Embirro com palavras estrangeiras. Hoje, que tudo se nacionaliza, Nacionalize-se a cozinha!
 
RAMOS Bravo!
 
O COZINHEIRO Eu, diante do fogão, diante do forno,  Sou até jacobino!
 
RAMOS  Jacobino? Lá como cozinheiro pode sê-lo, Mas tão somente como cozinheiro, Pois, conquanto eu viesse com dez anos Para o Brasil, sou português, entende?  Jacobinos dispenso em minha casa!
 
O COZINHEIRO  Sou jacobino apenas cozinhando.
 
RAMOS Pois cozinhando não devia sê-lo: Você é um artista!
 
O COZINHEIRO  Eu, um artista?
 
RAMOS  Sim, um artista da arte culinária,  E a arte não tem pátria! Porém, vamos... Diga lá o que temos para o almoço.
 
O COZINHEIRO  Em primeiro lugar os acepipes. Hors-d’oeuvres não direi nem que me rachem! Temos uma salada de lagostas.
 
RAMOS  Muito boa lembrança. Que mais temos?
 
O COZINHEIRO  Sardinhas, azeitonas, rabanetes,  Manteiga fresca...   RAMOS  E além dos acepipes?
 
O COZINHEIRO  Um enorme badejo.
 
ANGÉLICA  Que badejo!  Tão grande nunca vi!
 
RAMOS  E está bem fresco?
 
ANGÉLICA  Vivo à casa chegou.
 
O COZINHEIRO  Soltou, coitado, Nas minhas mãos o derradeiro alento! De camarões uma fritada temos, Um primor culinário! Três galinhas De cabidela. Espargos em manteiga. E, para terminar, um bom churrasco. Sorvetes de caju, frutas à ufa, Queijo do reino, requeijão de Minas, Baba de moça e doce de laranja. Se não satisfizer este cardápio, Que a espada de Vatel me arranque a vida À exceção dos espargos e do queijo,  O meu almoço é todo brasileiro!
 
RAMOS  Mas a vinhaça é toda portuguesa: Bucelas para acompanhar o peixe, Depois Colares da viúva Gomes, Vinho do Porto para a sobremesa E duas garrafinhas de Champanha Da marca Assis Brasil.
 
O COZINHEIRO  Estou contente, Pois vejo que o Brasil também figura  Muito embora num rótulo.
 
ANGÉLICA  E os licores?
 
RAMOS  Deve ter vindo do armazém do Castro  Uma garrafa de Beneditinos. (Ao cozinheiro)
 
Bom. Pode retirar-se, e se o almoço  Ao meu gosto estiver, conte comigo.
 
O COZINHEIRO Nenhuma recompensa mais desejo Que salvar os meus créditos de artista...
 
RAMOS  Da arte culinária. Vá s’embora. (O cozinheiro vai se retirando) É verdade. Ouça cá. Diga ao copeiro Que se apresente, pra servir a mesa, Encasacado e de gravata branca.  (O cozinheiro sai)
 
 
CENA III João Ramos, Dona Angélica.
 
ANGÉLICA  Espero agora que afinal me contes A história deste almoço.
 
RAMOS  É muito simples. Lembras-te que no baile do Cassino, O César Santos, moço encaminhado, Com porcentagem numa casa forte, Namorou nossa filha à rédea solta?
 
ANGÉLICA  E depois desse baile, muito embora Nós moremos tão longe da cidade, Muitas vezes nos passa pela porta, E até parado fica ali na esquina.
 
RAMOS  Muito bem. Dize mais: não te recordas  Que, quando fomos ao Teatro Lírico,
 
Ao benefício da Maragliano, O Benjamin Ferraz, que é moço rico, Estava na plateia e não tirava Do nosso camarote os olhos lânguidos? E acabado o espetáculo, correndo Postou-se à porta pela qual saímos, E suspirou quando passou por ele Ambrosina?
 
ANGÉLICA  Um suspiro escandaloso, De olhos voltados e de mão no peito!
 
RAMOS  E ele não passa pela nossa porta?
 
ANGÉLICA  Todas as tardes passa, embora chova. O outro passa de bonde e este a cavalo.
 
RAMOS  Pois eu, sabendo dessas passeatas, Embora tu não me dissesses nada, Como os achei à mão, ambos, anteontem, Por mero acaso, na confeitaria, Fi-los sentar-se à mesa em que eu me achava, Paguei-lhes o vermute, apresentei-os Um ao outro, mostrei-me muito amável, E lembrei-me afinal de convidá-los Para almoçar conosco hoje, domingo.
 
ANGÉLICA Porém com que intenções os convidaste?
 
RAMOS  Minha amiga, bem sabes que os bons noivos Dificilmente conquistar-se podem
 
Vendo-os passar no bonde ou no cavalo; É preciso atraí-los; casamentos, É de portas a dentro que se arranjam. Se teu pai não me houvesse convidado Para jantar na casa dele um dia, Por sinal que era o dia dos teus anos, Talvez não nos casássemos tão cedo; Mas convidou-me e, por cautela, à mesa, Ao lado teu me fez ficar sentado. Quando veio o peru, éramos noivos; Tratavas-me por tu à sobremesa; Um mês depois estávamos casados, E dez meses depois éramos três! 
 
ANGÉLICA  Mas meu pai convidou-te a ti somente. E tu a dois convidas...
 
RAMOS  O que abunda Não prejudica, diz o velho adágio. Teu pai não era tolo, minha amiga, Apesar de ter sido sapateiro, E se não estava outro mancebo à mesa, É que não tinhas outro namorado...
 
ANGÉLICA (rindo) Sabes tu lá se o tinha ou se o não tinha!
 
RAMOS  Com este almoço dois coelhos mato De uma só cacheirada!
 
ANGÉLICA És econômico! Para dois namorados, dois almoços!
 
RAMOS  Se fossem vinte, vinte almoços? Boas!  Colocada a Ambrosina entre os dois jovens, Escolher poderá muito à vontade.
 
ANGÉLICA  Mas é preciso preveni-la disso.
 
RAMOS  Justamente ela aí vem. Vamos falar-lhe.
 
 
CENA IV Ramos, Dona Angélica, Ambrosina.
 
AMBROSINA  A bênção, papai? Bom dia!
 
RAMOS  Deus te abençoe, minha filha.  Mas como tu vens casquilha! Há muito que não te via  Tão enfeitada e catita!
 
AMBROSINA  Oh! Admira-se? Entretanto,  Ontem papai pediu tanto Que me fizesse bonita! Vê como estou imponente?  Que tal acha o meu vestido?
 
RAMOS  Muito espantado.
 
AMBROSINA Duvido Que papai diga o que sente.
 
RAMOS  De modas eu não entendo;  Sou ferragista, e asseguro Que tenho juízo seguro Sobre o que compro e o que vendo. Quando alguém conhecer queira A qualidade de um prego, As minhas luzes não nego, Posso falar de cadeira; Mas quanto a farandulagens, Fitinhas, laços, teteias, Sou muito curto de ideias! Cá comigo é só ferragens! Mas, minha filha, acredita, Quando o contrário suponhas: Com qualquer trapo que ponhas, Acho-te sempre bonita. (Dá-lhe um beijo) Bom. Temos que conversar Sobre outro assunto, faceira. Senta-te nesta cadeira; Entre nós dois vais ficar.
 
(Coloca três cadeiras no proscênio; a do centro para Ambrosina, a da direita para Angélica, e da esquerda para si. Sentam-se todos três. Pausa)
 
Fala, Angélica!
 
ANGÉLICA  Ora essa! Fala tu!
 
RAMOS  Tu!
 
ANGÉLICA  Tu!
 
RAMOS  Mulher, Olha que eu não sei sequer Por onde é que é que se começa!
 
AMBROSINA  É coisa grave?
 
RAMOS  Oh! bem grave!
 
ANGÉLICA  Anda! é o princípio que custa!
 
AMBROSINA  Tanta hesitação me assusta!
 
RAMOS  Não é nada que te agrave: Trata-se de casamento.
 
AMBROSINA  De casamento?
 
RAMOS  É verdade!  (Embaraçado e muito comovido) Menina, chegaste à idade... Chegaste ao feliz momento... A felicidade tua É o nosso constante fito, E nós... (Passando os dedos nos olhos) Lágrimas?... Bonito!... (A Angélica)  Agora tu continua.
 
ANGÉLICA  Valha-te Deus! que maricas! Por qualquer coisa tu choras!
 
Vamos! basta de demoras!
 
RAMOS Eu... tu... eu...
 
ANGÉLICA  Vê em que ficas!  (Arremedando-o) Eu... tu... eu...
 
RAMOS  Então que queres? Nem eu ouso, nem tu ousas! Fala tu: para estas coisas Têm mais talento as mulheres!
 
ANGÉLICA  Minha filhinha, teu pai Convidou para um almoço  Aquele moço...
 
AMBROSINA  Que moço?
 
RAMOS  Dize-lhe o nome.
 
ANGÉLICA  Lá vai: O César Santos?... Aquele Que toda a tarde passeia No bonde das cinco e meia?...
 
AMBROSINA  Sei quem é.
 
RAMOS  Tu gostas dele?
 
AMBROSINA  Eu não gosto nem desgosto...
 
ANGÉLICA  E foi também convidado  Aquele outro namorado?...  Quem é já sabes, aposto!
 
RAMOS  Dize o nome!
 
ANGÉLICA  Espera lá! Ou falas tu ou eu falo!
 
RAMOS  Bom.
 
ANGÉLICA  Aquele do cavalo?
 
RAMOS (fingindo que está montado a cavalo) Hein? Patati, patatá!
 
AMBROSINA  O Benjamin?
 
ANGÉLICA  Justamente: O Benjamin.
 
RAMOS  Desse gostas, Ou não gostas nem desgostas?
 
AMBROSINA  Sim... não... É-me indiferente!...  Ambos à casa hoje vêm, Pra que eu escolha?...
 
RAMOS  Decerto. Examina-os bem de perto;  Vê qual dos dois te convém.
 
AMBROSINA  Oh! nenhum deles me traz  À vida novos encantos...
 
RAMOS Sim?
 
AMBROSINA  Nem o tal César Santos,  Nem o Benjamin Ferraz.
 
ANGÉLICA  Mas tu gostas de outro?
 
AMBROSINA  Não. Não acho quem me cative; Até hoje nunca tive Cuidados no coração. Quando o César Santos passa, E eu estou acaso à janela, Não fujo... não saio dela... Ele sorri... Acho graça... Faz mal que eu também sorria?... Namoro?... talvez que o seja; Mas nisso amor ninguém veja... Quando muito é simpatia.
 
ANGÉLICA  Filha, lá disse o poeta: “Simpatia é quase amor”...
 
RAMOS Pois seja o poeta quem for,  Disse uma asneira completa!  Não foi Camões com certeza!
 
ANGÉLICA Foi Casimiro de Abreu
 
RAMOS  Uma tolice escreveu;  Digo-o com toda a franqueza!
 
AMBROSINA  Quando passa o Benjamin, Montado no seu cavalo, E, sem tenção de esperá-lo, Vejo-o sorrir para mim, Eu lhe sorrio também... Mas... que exprime este sorriso? Que com ele simpatizo... E papai diz muito bem: Não é este sentimento Um quase amor. Que esperança! Minhalma livre descansa, Descansa o meu pensamento! Não me persegue o desejo De os ver passar pela porta. E quando os vejo, que importa? Que importa quando os não vejo? Se papai julga que devo Desde já mudar de estado, Antes que tenha falado Meu coração, não me atrevo
 
A contrariá-lo, oh! não!... Mas entre os dois pretendentes,  Ambos pessoas decentes,  Não faço a menor questão.
 
RAMOS (erguendo-se) Bravo!
 
(Ambrosina e Angélica também se erguem)
 
AMBROSINA  Papai, se quiser, Estude, examine, escolha; Mas permita que eu me encolha...
 
RAMOS  Qualquer te serve?
 
AMBROSINA  Qualquer. (Lucas entra como um raio. Surpresa geral. Alegria)
 
 
CENA V João Ramos, Dona Angélica, Ambrosina, Lucas.
 
LUCAS  Que Deus esteja nesta casa!
 
TODOS (contentes) O Lucas!
 
LUCAS  O Lucas, sim, que, sem mandar aviso, Abalou de São Paulo ontem cedinho, Passou parte da noite num teatro, Dormiu no Grande Hotel, onde espichado
 
Na cama, refletiu: de manhã cedo Tomo o meu banho, faço a minha barba E ao palacete vou do velho Ramos Causar uma surpresa àquela gente. Como é domingo, encontro o velho em casa E chego a tempo de papar-lhe o almoço.
 
RAMOS  Fizeste bem, rapaz, mas que diabo! Devias começar por abraçar-nos...  (Abraçando Lucas) Assim! Aperta-me estes velhos ossos!
 
LUCAS  As saudades são tantas, que receio Esmagá-lo!
 
RAMOS  Esmagar-me? Então tu julgas  Que assim se esmague um português valente?
 
ANGÉLICA (abrindo os braços) Eu também quero o meu abraço!
 
LUCAS  É justo.
 
ANGÉLICA Mas vê lá: não me esmagues! LUCAS  Oh!descanse! Muito bem sei como se abraçam damas! (Abraça-a)
 
ANGÉLICA  Agora, abraça a tua irmã de leite.   LUCAS  Ambrosina! Meus Deus! nestes três anos
 
Que diferença fez!
 
RAMOS  Desenvolveu-se... Deitou corpo... cresceu...
 
LUCAS  Que diferença! Deixo um fedelho e encontro uma senhora, E mais linda que um anjo! Isto é possível...
 
ANGÉLICA  Bem sabes que ela tem a tua idade!
 
RAMOS  Abraça-a, vamos!
 
LUCAS  Não! eu não me atrevo! Na minha idade já se não abraçam Moças da minha idade...
 
ANGÉLICA  Ora que tolo!
 
LUCAS  Só num jogo de prendas, por sentença!
 
AMBROSINA  Sou tua irmã.
 
LUCAS  És minha irmã de leite.  Essa irmandade não me impediria De casar-me contigo... (Comicamente cerimonioso)  Enfim, senhora, Como de vossa excelência os pais ordenam,
 
Venha esse abraço!
 
AMBROSINA (lançando-se nos braços dele) E esmaga-me, se queres! Como está mamãezinha?
 
LUCAS  Boa e fera; São seu único mal saudades tuas. Mandou-te umas lembranças de São Paulo.
 
ANGÉLICA  É sempre a mesma tua mãe!
 
LUCAS  Coitada! Não quis que eu viesse ao Rio de Janeiro, Sem coisinhas trazer para Ambrosina; E durante a viagem vim comprando Tudo quanto se encontra no caminho: Queijos de Itatiaia e Campo Belo, E beijus de Belém. Essas lembranças Lá estão no Grande Hotel.
 
RAMOS  Por que motivo Não vieste hospedar-te em nossa casa? Pois não sabes que é teu tudo que é nosso?
 
LUCAS  Bem sei, mas receava incomodá-los.
 
TODOS  Oh!
 
LUCAS  Demais, moram longe da cidade,
 
E eu a negócio vim, não a passeio.
 
RAMOS  E a casa como vai!
 
LUCAS  De vento em popa! Se a coisa prosseguir como tem ido, Eu serei, num futuro não remoto, Quase tão rico como o velho Ramos! (Dá uma pequena pancada no ventre de Ramos)
 
RAMOS (rindo) O velho Ramos não é rico.
 
LUCAS  É rico; Mas tem o sestro de dizer que é pobre, Porque receia que lhe peçam chelpa.
 
RAMOS  Que grande malcriado me saíste!
 
LUCAS Mas que me importa a mim o velho Ramos? Bem se me dá que seja rico ou pobre! (Tomando ambas as mãos de Ambrosina) Quem me interessa és tu, és tu somente, Minha querida irmã, que t anto prezo! (Com certa hesitação na voz) Então? quando se faz este casório? Já deves ter um noivo, ou, pelo menos, Um namorado, ou dois... Com esses olhos, E essa boca de fada, e esta elegância, E este pai, apesar de não ser rico, Deves ter pretendentes aos cardumes!
 
AMBROSINA  Tenho dois namorados.
 
LUCAS (com um sorriso forçado)  Dois apenas?
 
AMBROSINA Pode ser que outros haja, mas ignoro.
 
RAMOS  Não podias chegar mais a propósito: Hoje vêm ambos almoçar conosco.
 
AMBROSINA Convidou-os papai, para que eu possa, Depois de examiná-los bem de perto, Escolher o que deva ser meu noivo; Mas eu já disse que nem de um nem de outro Faço questão, e escolha qualquer deles.
 
LUCAS  Que singular filosofia a tua!  Mas quem são esses dois rivais famosos?
 
RAMOS  O Benjamin Ferraz e o César Santos.
 
LUCAS  Não conheço.
 
RAMOS  Vais vê-los dentro em pouco. São dois tipos um do outro bem diversos. O César Santos, guarda-livros hábil, Interessado está numa das casas Mais importantes desta praça; é moço Ajuizado, refletido e sério;
 
Tem feito economias, e de parte Já pôs alguns vinténs; possui dois prédios. O Benjamin Ferraz é muito rico: Herdou dos pais e ainda há de herdar dos tios, Que fazendeiros são. Monta a cavalo, Veste-se muito bem, e desconfio, Pela sua maneira de exprimir-se, Que literato ele é nas horas vagas.
 
LUCAS  E nas que não são vagas esse moço Em que se ocupa?
 
RAMOS  Ora essa é boa! ocupa-se Em ter muito dinheiro. Eu não conheço Melhor ocupação.
 
LUCAS  Prefiro o outro. (Mudando de tom) E por amor do guarda-livros hábil E do janota que tão bem se exprime, Temos então almoço ajantarado?
 
RAMOS  Lagostas... um badejo... uma fritada... Galinhas... um churrasco... espargos, frutas, Sorvetes, queijos, doces e mais doces, E Bucelas, Colares e Champanha!
 
LUCAS  Não há que ver: tirei a sorte grande! Eu vim ao cheiro de uns modestos bifes, E caio em plenas bodas de Camacho! Não esperava tanto!
 
RAMOS Vai, Angélica, Dar uma vista de olhos à cozinha, E manda pôr mais um talher à mesa, E vê lá se o copeiro pôs casaca.
 
ANGÉLICA  E tu, anda buscar na adega os vinhos. (Sai)
 
RAMOS  Tens razão. Já lá vou. Cá tenho a chave. (A Lucas)  Quando há comes e bebes nesta casa, Ela trata dos comes e eu dos bebes. Bom. Até logo. Ó minha filha, fica Fazendo companhia ao nosso Lucas. (Sai)
 
 
CENA VI Ambrosina, lucas.
 
LUCAS  Com que então, vais casar?
 
AMBROSINA  Mas vê como estou fria...  Oh! pelo gosto meu mais tempo esperaria; Porém papai não pensa infelizmente assim,  E, pelos modos, quer ficar livre de mim.
 
LUCAS  Não creias que teu pai de ti livrar-te queira: Tem medo de morrer deixando-te solteira, É o que é. A intenção é boa; apenas, eu Me parece que o pior processo ele escolheu. O tal César e o tal Benjamin vão pensar Que o João Ramos a filha à força quer casar; Mais prudente seria esperar que viesse O noivo e não chamá-lo à casa, me parece.
 
AMBROSINA  Tens razão.
 
LUCAS  Não se mete à cara de ninguém  Noiva que, como tu, tanto atrativo tem.
 
AMBROSINA  Isso é bondade tua.
 
LUCAS E se ao velho não falo Deste modo, é porque não quero apoquentá-lo. Tu bem sabes de quanto eu lhe sou devedor: Ele foi para mim um grande protetor, Tão amigo, tão bom, tão desinteressado, Que um altar tem cá dentro e é para mim agrado. Nas tristes condições em que eu ao mundo vim, Se não fosse teu pai, que seria de mim? Quando nasci, o meu já estava morto há meses; Minha mãe a miséria, a fome algumas vezes Sofreu, mas resistiu. Tu nasceras também; Adoeceu tua mãe; era preciso alguém Que as vezes lhe fizesse, e a minha então, coitada, Que era pobre, tão pobre, e pobre envergonhada, Sozinha neste mundo, ao deus-dará, sem pão,  Precisava de alguém que lhe estendesse a mão... E foi, como faria uma africana escrava,  Contigo dividir o leite que eu mamava. 
 
AMBROSINA  Pobre da mamãezinha!
 
LUCAS  Eu fui muito feliz, E ela também: teu pai, meu pai fazer-se quis. Nem eu nem minha mãe saímos desta casa
 
Que nos cobriu a nós como de um anjo a asa. Quando cresci, o velho à escola me enviou E depois no comércio emprego me arranjou. Para São Paulo fui. Sou quase independente. E a quem o devo? A ele... a ele unicamente.
 
AMBROSINA  De nada valeria o muito que te fez, Se tu não fosse bom.
 
LUCAS  Não seria, talvez,  Tão bom, se ele não fosse a bondade em pessoa. Isso é o que me fez bom, e isso é o que te fez boa. Mas falemos dos dois namorados. Teu pai Quer que escolhas; pois bem: examiná-los vai Minuciosamente, e um dos dois com certeza Preferirás ao outro ao sairmos da mesa. Está dito?
 
AMBROSINA  Pois sim.
 
LUCAS  Por meu lado, eu também  Verei dos dois qual seja o que mais te convém.
 
 
CENA VII Ambrosina, Lucas, João Ramos, Dona Angélica.
 
RAMOS  Pronto! podem chegar os convidados!  No aparador alinham-se as garrafas, E o diabo do copeiro, de casaca, Parece até um cidadão conspícuo!
 
ANGÉLICA  Que bonito badejo é o rei da festa!...
 
RAMOS  Custou-nos vinte e cinco bagarotes No mercado; não pode ser, portanto, Um peixinho de pouco mais ou menos. (Esfregando as mãos) Não tardam por aí os dois rapazes.
 
LUCAS  Eles que venham, porque estou com fome!
 
(Toque de campainha elétrica)
 
RAMOS  Falai no mau... (Indo ao fundo e falando para fora) Ó senhor César, entre! 
 
(Entra César Santos cerimoniosamente)
 
 
 
CENA VIII Ambrosina, Lucas, João Ramos, Dona Angélica, César Santos.
 
CÉSAR  Minhas senhoras... Senhor Ramos... Creio Que esperar não me fiz por muito tempo.
 
RAMOS  Pontualíssimo foi, foi cavalheiro. (Apresentando) Minha mulher.
 
CÉSAR  Minha senhora, folgo De conhecê-la.
 
ANGÉLICA E eu igualmente folgo. Faça favor.
 
(Toma-lhe o chapéu e a bengala, que vai colocar sobre um móvel, ao fundo)
 
RAMOS (mostrando Ambrosina) É minha filha. O amigo Há muito que a conhece. Já com ela Dançou num baile do Cassino.
 
CÉSAR  É exato. Foi uma honra que esquecer não pude, Pois me deixou recordações bem doces.
 
AMBROSINA (cumprimentando) Agradecida.
 
RAMOS  O meu amigo Lucas. Quase meu filho... Um filho malcriado, Que ao pai não tem o mínimo respeito, E lhe dá piparotes na barriga! Mas é um herói! tem só vinte e dois anos E é já negociante conceituado Na praça de São Paulo!...
 
CÉSAR  Cavalheiro.  Consinta que lhe aperte a mão.
 
LUCAS  Não creia No que lhe está dizendo o senhor Ramos. Como lhe devo a posição que ocupo, É muito exagerado a meu respeito, Para dar mais valor ao seu trabalho.
 
CÉSAR  As coisas como vão lá por São Paulo?
 
LUCAS  Que coisas?
 
CÉSAR  Os negócios. Interessa-me  O comércio, e de nada mais cogito.
 
LUCAS  Os negócios vão bem.
 
CÉSAR  Não me parece; A baixa do café tem sido o diabo, E esperança não há de que tão cedo Ele suba, (a Angélica)  não acha vossa excelência?
 
ANGÉLICA  Senhor eu não entendo dessas coisas;  Só sei que tudo está bem caro agora, E que um badejo, que custava dantes Dez mil réis, quando muito, agora custa Vinte e cinco mil réis!
 
CÉSAR  A carestia Faz com que o povo sofra e sofra muito; Mas o comércio sofre mais que o povo. Na nossa praça a crise está medonha; Muitas casas estão arrebentadas; O câmbio esteve a cinco, é bem verdade, E subiu depois disso a sete e meio, Mas de novo tem ido para baixo, E não há confiança nos efeitos
 
Do plano financeiro do governo. Não acho que endireite a nossa praça,  Enquanto a taxa não subir a doze,  Pelo menos. (A Ambrosina)  Não acha vossa excelência?
 
AMBROSINA  Eu nunca pude perceber o câmbio.
 
CÉSAR  Pois eu lhe explico: o câmbio representa...
 
RAMOS  E eu que não lhe ofereço uma cadeira? Faz favor de sentar-se? Então? Sentemo-nos! Tanto se paga em pé como sentado! (Sentam-se todos) Mas sobre outros assuntos conversemos, E deixemos tranquilos os negócios. Estes belos domingos foram feitos Pra que a gente se esqueça da semana.
 
CÉSAR  Pois assunto não há que mais me agrade Do que câmbio, café, preços-correntes...
 
RAMOS  Qual! isso é bom lá para baixo. Em casa Gosto de ouvir falar de frioleiras.
 
LUCAS (baixo a Ambrosina) Desconfio que o noivo não te serve.
 
RAMOS  Eu sou negociante de ferragens, E por meu gosto, não teria em casa Nem trincos, nem martelos, nem argolas, Nem pontas de Paris, nem dobradiças,
 
Nem nada que lembrasse o meu comércio. Quando aos domingos eu me sento à mesa, Desgostam-me os talheres, acredite, Porque os tenho na loja; na cozinha Não entro, só para não ver panelas! Causam-me horror grelhas e caçarolas!
 
ANGÉLICA  E a história do canário?
 
RAMOS  Ah! é verdade! Lembras-te ainda? Estávamos casados Havia um mês, se tanto. O pai da Angélica Um canário mandou-lhe de presente. Ela estimava-o. Muito bem. Pedi-lhe Um belo dia que o mandasse embora!
 
CÉSAR O canário não era ferramenta!
 
RAMOS  Não, mas era preciso dar-lhe alpiste, E o alpiste naquele tempo sabe?  Vendia-se nas lojas de ferragens.
 
(Novo toque de campainha elétrica)
 
ANGÉLICA  Tocaram.
 
RAMOS (erguendo-se) Bom! é ele com certeza! É o Benjamin Ferraz! (Vai ao fundo e fala para fora)  A casa é sua.
 
(Erguem-se todos. Entra Benjamin Ferraz)
 
CENA IX Ambrosina, Lucas, João Ramos, Dona Angélica, César Santos, Benjamin Ferraz, depois um copeiro.
 
BENJAMIN  Minhas senhoras... cavalheiros... peço Mil perdões por chegar um pouco tarde. Foi do meu alfaiate a culpa inteira. Uma porção de tempo estive à espera De uma sobrecasaca que não veio.
 
LUCAS (à parte) Começa mal...
 
BENJAMIN  Esta já tem três meses, E já não está na moda; os figurinos Sobrecasacas apresentam hoje Fechadas mais em cima, e mais compridas, Dando pelo joelho. Quando eu entro Pela primeira vez em qualquer casa, Com toda a correção quero ser visto, Todas as regras sei do savoir-vivre. (A Angélica) Depois deste cavaco indispensável, Permita, Excelentíssima Senhora, Que lhe ofereça a rosa mais bonita Que esta manhã no meu jardim banhavam As lágrimas do orvalho matutino. A rainha das flores simboliza A rainha do lar, a esposa honesta, A carinhosa mãe!
 
RAMOS (à parte) Parece um brinde.
 
ANGÉLICA  Muito obrigada pelo seu presente.
 
BENJAMIN  Não há de quê minha gentil senhora. (Angélica põe a rosa ao peito. Benjamin volta-se para Ambrosina) Para vossa excelência eu trouxe e espero Que seja recebido com bondade  Este raminho de violetas brancas, Também do meu jardim. Flores modestas, Que o seu perfume docemente escondem. Simbolizam a cândida inocência Da bela virgem recatada e pura.
 
AMBROSINA  Agradecida.
 
RAMOS  À vista dos discursos.  Desobrigado estou de apresentar-lhe  Mulher e filha.
 
ANGÉLICA (tomando o chapéu e a bengala de Benjamin) Com licença.
 
BENJAMIN  Graças.
 
RAMOS (indicando César) Este já foi por mim apresentado.
 
BENJAMIN  Folgo de vê-lo.
 
RAMOS  O meu amigo Lucas. É quase um filho.
 
LUCAS  Temos um fonógrafo?
 
RAMOS  Não tem ao pai o mínimo respeito...
 
LUCAS  E lhe dou piparotes na barriga;  Falta-me o savoir-vivre...
 
BENJAMIN  Oh, não! não creio!
 
LUCAS  Vim almoçar de jaquetão coçado!
 
BENJAMIN  Se é quase um filho, está no seu direito.
 
RAMOS  Mas é um herói! Tem só vinte e dois anos...
 
LUCAS  Vinte e dois anos e três meses justos.
 
RAMOS  E é já negociante acreditado  Na praça de São Paulo!
 
BENJAMIN  Então? já houve Com essa idade marechais em França!  (Apertando a mão a Lucas) Eu tenho muita honra em conhecê-lo.
 
LUCAS  A honra é toda minha, cavalheiro.
 
(Angélica, que tem saído, volta e diz baixinho a Ramos)
 
ANGÉLICA  O almoço está servido.
 
RAMOS (muito alto)  Meus senhores...
 
ANGÉLICA (tapando-lhe a boca) Espera que o copeiro dizer venha.
 
RAMOS (baixo) É verdade, o copeiro de casaca... (Entra o copeiro) Ei-lo! Faz um vistão! Gosto daquilo!
 
O COPEIRO  O almoço está na mesa. (Sai)
 
RAMOS  Meus amigos, Vamos ao nosso almoço, prontamente, Que já temos o estômago a dar horas.
 
(Benjamin e César oferecem ambos o braço a Ambrosina)
 
BENJAMIN  O meu braço aqui tem, minha senhora.
 
CÉSAR  Minha senhora, ofr’eço-lhe o meu braço.
 
AMBROSINA  E agora? Aceito o que chegou primeiro.
 
(Dá o braço a Benjamin. César dá o braço a Angélica. Saem todos)
 
RAMOS (saindo, a Lucas) Cada qual no seu gênero, não achas?
 
LUCAS  Acho.
 
RAMOS  A Ambrosina escolhe... escolhe um deles! (Sai)
 
LUCAS (só)  Escolhe um deles? Pois sim! Meu velho, pelo que vejo, Perdes o tempo e o latim, Pra não dizer o badejo.
 
 
 
ATO II A mesma sala.
 
CENA I
 
AMBROSINA (entrando) Valha-me a Virgem Maria! Que grande aborrecimento! Vim descansar um momento! De tanta sensaboria Horrorizada fugi! Que só de negócios trate O tal Senhor César Santos! Cacete conheço uns quantos, Porém daquele quilate Confesso que nunca os vi! E o Benjamin? Que fofice! Que tipo insignificante! Não abre a boca o pedante, Que não diga uma tolice,
 
Ou que não fale de si, Das visitas que recebe, Ou do extrato que o perfuma, Ou dos charutos que fuma, Ou dos licores que bebe! Quantas asneiras ouvi!
 
 
CENA II Ambrosina, Lucas.
 
LUCAS  Vamos! Então? Que me dizes  De um e de outro namorado?
 
AMBROSINA  Cada qual mais enjoado!
 
LUCAS  Pobres moços!... infelizes!...  Pois nenhum deles te agrada?
 
AMBROSINA  Não.
 
LUCAS  És muito rigorosa!
 
AMBROSINA  Seria bem desditosa  Com quaisquer deles casada.
 
LUCAS  Também vais logo aos extremos!  Pelas impressões primeiras Incompletas e ligeiras, Jamais levar nos deixemos...
 
Gente nova, estranha gente Não há, que nos apareça, E aos nossos olhos pareça Aquilo que é realmente; Pois nesta coisa medonha, Que se chama sociedade, Ninguém sai da intimidade Sem que uma máscara ponha. Não julguemos à ligeira; Toda a gente se mascara: Uns cobrem parte da cara E os outros a cara inteira. Quem se revela maluco Tem muitas vezes juízo, E nos parece ter siso Um velho crânio sem suco. Finge de franco o sovina, Faz-se virtude a mazela... Julgas Penélope aquela? Repara que é Messalina!
 
AMBROSINA  Naquele maldito almoço Muito a custo me contive... Se o mundo enganado vive, Não vivo eu!
 
LUCAS  Ouve...
 
AMBROSINA  Não ouço! Defendê-los tu! Que ideia! És cacete por teu turno! Toma hoje mesmo o noturno  E volta pra a Pauliceia!
 
LUCAS  Não vive o mundo enganado,  Não toma a nuvem por Juno: Diz que o gatuno é gatuno, Diz que é malvado o malvado, E, sem que o disfarce o iluda, Quando o seu chapéu lhes tira, Cumprimenta uma mentira, Uma máscara saúda; Mas não se trata do mundo E sim do juízo que fazes Sobre dois pobres rapazes Que não conheces a fundo. Durante esse almoço triste, Que te não deixou saudades, Não lhes viste as qualidades, Mais que os achaques não viste... Quem sabe se os namorados Produzirão outro efeito Quando, com arte e com jeito,  Os vejas desmascarados?
 
AMBROSINA  Com ou sem máscara, dize,  Aquele Manel de Soisa Me falará noutra coisa  Que não seja o câmbio e a crise?
 
LUCAS  Vejam que grande desgraça!  Mas esse assunto varia, Porque, enfim, lá vem um dia  Sobe o câmbio e a crise passa!
 
AMBROSINA  E o outro?... aquele janota,  De trinta milhões herdeiro,
 
Vidrinho de água de cheiro,  Fátuo, ridículo, idiota?  De uma penhora estou livre, Se com tal tipo me caso!
 
LUCAS  Menina, não faças caso: Tudo aquilo é savoir-vivre.
 
AMBROSINA  Muito agradecida, Lucas: Falo-te de coisas sérias, E com insulsas pilhérias A quanto eu digo retrucas! Vou no meu quarto fechar-me! E que ninguém me apareça! Estou com dor de cabeça: Escusam de ir lá chamar-me! (Sai arrebatadamente)
 
 
CENA III Lucas (só).
 
LUCAS  Tem razão, coitadinha! Eu, no seu caso, Também arranjaria uma enxaqueca... Qualquer dos dois galãs é o mais ridículo. César Santos é todo positivo: Outro assunto não tem para a palestra Senão coisas da praça. As raparigas Antipatizam necessariamente Com tais assuntos, e falar-lhes nisso É o mesmo que se a gente as obrigasse A ler nas folhas tão somente a parte Comercial. E o Benjamin? Que parvo! Um fenômeno quase! O próprio Édson, A matutar, duvido que inventasse
 
Tão engenhosa máquina de asneiras! Entretanto quem sabe? os dois rapazes São talvez excelentes criaturas... É o que preciso averiguar quanto antes; Mas para isso necessário fora Que eu conseguisse conversar com ambos, Cada um de per si... (Vendo entrar César Santos) Oh, que pechincha!... O César Santos!... Vou puxar por ele... Também eu ponho agora a minha máscara.
 
 
CENA IV Lucas, César Santos.
 
CÉSAR  Onde é que se meteu dona Ambrosina?  Vim procurá-la.
 
LUCAS  Foi para o seu quarto,  Queixando-se de dores de cabeça.
 
CÉSAR  Está naturalmente aborrecida Por ter ouvido tantas baboseiras Do Benjamin Ferraz. Que grande tipo! Lá o deixei a falar do seu cavalo Que, a dar-lhe ouvidos, é o melhor do mundo!
 
LUCAS  Não; ela não se queixa das toleimas Do Benjamin Ferraz; pelo contrário... Acha-lhe certa originalidade. Queixa-se do senhor.
 
CÉSAR  De mim?
 
LUCAS  Por certo, Pois o senhor não vê que a moça é fútil, E só gosta de ouvir futilidades? Falta de educação... Oh! eu conheço-a Desde pequena, e sei dos seus defeitos. O senhor só conversa em coisas sérias...
 
CÉSAR  Não há nada mais sério que o comércio.
 
LUCAS  Pois sim! Vão lá dizer-lho! Não crê nisso!
 
CÉSAR  Falta-lhe então critério?
 
LUCAS  Do comércio Ela só toma a sério os armarinhos Da Rua do Ouvidor.
 
CÉSAR  No entanto, julgo Que o velho Ramos, ferragista honrado, Foi no comércio que ajuntou dinheiro, E do comércio vive, e vive a filha...
 
LUCAS  Ela quer lá saber dessas bobagens!
 
CÉSAR  Bobagens?
 
LUCAS Esse é o termo que ela emprega. Falem-lhe em bailes, falem-lhe em teatros! Bem se lhe dá que o câmbio esteja frouxo, Ou que encontre na praça tomadores, Ou que pela manhã subindo a sete, Baixe de tarde a seis e sete oitavos!
 
CÉSAR  Tenho pena, confesso: gosto dela, E dói-me vê-la assim tão leviana.
 
LUCAS  Gosta dela?
 
CÉSAR  Decerto; e pretendia Pedi-la em casamento ao pai.
 
LUCAS  Deveras? Que me diz? Nesse caso fiz asneira! Se de tais intenções eu suspeitasse, Não me exprimira assim a seu respeito! Pobre Ambrosina! E ela, com certeza, Gosta igualmente do senhor!... Que diabo!... Hei de sempre mostrar-me um criançola! Tem graça agora se, por minha causa, Perde Ambrosina um casamento destes! Senhor, não faça caso do que eu disse! Ela não gosta do comércio? Embora! Peça a menina, case-se com ela! O comércio virá depois... Que bruto E que indiscreto fui!
 
CÉSAR  Sossegue, Lucas: Se ela não me aceitar para marido, 
 
Eu não me atiro ao mar por causa disso.
 
LUCAS  Ah! bom! já vejo que não gosta dela...
 
CÉSAR  Gosto... gosto... é bonita... é bem bonita...  Veste-se muito bem... toca piano...
 
LUCAS  E bandolim também, que é moda agora.
 
CÉSAR  Se é fútil, não faz mal; bem sei que as moças  São, pouco mais ou menos, todas fúteis! Sim... depois de casada... em vindo os filhos.  Há de neles pensar, no seu futuro,  E todo o dia, quando eu volte à casa, Perguntará decerto pelo câmbio.
 
LUCAS  Sabe que mais? Aqui ninguém nos ouve.  Confesse que se casa co’Ambrosina Como se casaria... ande, confesse!... Com qualquer outra moça tão bonita, Que fosse filha de outro velho Ramos. (César sorri) Este sorriso não me engana: é certo!  (Contendo a indignação) Faz você muito bem! (Consinta, amigo, Que o trate por você...) Todas as moças São parecidas umas com as outras Quando se vestem bem, tocam piano E bandolim. É próprio de pascácios Preferir esta àquela, desde que haja Beleza... e dote. Nós, os do comércio, Mesmo tratando de formar família, Não nos devemos esquecer que somos Antes de tudo negociantes...
 
CÉSAR  Toca! Tu és da minha escola! Tu consentes Que eu te trate por tu?
 
LUCAS  Pois não!! consinto!
 
CÉSAR  O casamento é uma sociedade; Toda a mulher é sócia do marido: Usa e assina o seu nome, e tem metade  De quanto lhe pertence. Isso é conforme.
 
LUCAS  De direito é conforme, mas de fato  Tudo o que é dele é dela, e vice-versa. Logo, é justo não é? que a nossa noiva  Nos traga um capital igual ao nosso.
 
CÉSAR  Tu tens vinte e dois anos?
 
LUCAS  E três meses.
 
CÉSAR  Falas que nem um velho! Não conheço  Quem tão bem raciocine nessa idade! Se assim pensassem todos, não veríamos  Tantas desgraças que provêm pudera!  Da pobreza dos cônjuges!
 
LUCAS  Em França Rapariga não há, bonita embora, 
 
Que sem ter dote casamento arranje. Aquilo é que é país!
 
CÉSAR  E no comércio A francesa é caixeira do marido. 
 
LUCAS  Tinha eu então razão quando dizia Que a ti tanto te faz uma como outra... 
 
CÉSAR  Tinhas toda a razão. A ti, to digo, Pois vejo que não és nenhum poeta, Nem nenhum visionário impertinente, Que viva numa nuvem cor de rosa. És de Dona Ambrosina irmão colaço: Peço-te, pois, que essa impressão destruas Que nela produzi; dize-lhe Lucas, Que tenho aspirações, que tenho sonhos, Eu sou muito capaz de fazer versos. Numa página até do livro-caixa!
 
LUCAS  Vai tranquilo. (À parte)  Caiu como um patinho, E por um triz não lhe esmurrei as ventas!
 
 
CENA V Lucas, César Santos, João Ramos, Benjamin Ferraz, Dona Angélica.
 
RAMOS  Então? Que é isso? Desertaram ambos?
 
ANGÉLICA  Ambrosina onde está, que não a vejo?
 
LUCAS  Para o seu quarto foi co’ uma enxaqueca.
 
ANGÉLICA  Qual! minha filha nunca teve disso!
 
LUCAS  Nesse caso, fez hoje a sua estreia.
 
ANGÉLICA  Valha-me o bom Jesus! vou ter com ela!
 
LUCAS  Um vidro tenho aqui de sais ingleses...
 
(Angélica sai sem lhe dar ouvidos)
 
RAMOS  Deixe. Não será nada. A senhorita Bebeu Bucelas e bebeu Colares: Não estando acostumada a tais misturas, Sentiu-se incomodada.
 
CÉSAR  Não; não creia: Muito pouco bebeu durante o almoço.  (Senta-se a examinar um álbum de fotografias)
 
BENJAMIN  Diz muito bem. Nos cálices apenas Os lábios virginais umedecia.
 
RAMOS  Gosta de ver retratos, senhor César?
 
CÉSAR  É divertido.
 
(Ramos senta-se ao lado de César, e vai lhe mostrando os retratos)
 
RAMOS  Aqui me tem, no tempo Em que eu tinha, talvez, a sua idade.
 
(Lucas aproxima-se de Benjamin, que está sentado no sofá)
 
LUCAS (à parte) Vou penetrar nesta alma de ocioso. (Alto, sentando-se ao lado dele) Quer saber o motivo da enxaqueca? Qual mistura de vinhos; qual histórias!
 
RAMOS  Esta é minha mulher. Foi bem bonita.
 
CÉSAR Ainda se parece.
 
BENJAMIN  Eu desconfio Que indisposta ficou dona Ambrosina Por tanto ouvir falar ao César Santos Em transações da praça.
 
LUCAS  Pois engana-se.
 
RAMOS  Este é o meu sogro. Já lá está, coitado!
 
LUCAS  Foi o senhor a causa da enxaqueca.
 
BENJAMIN  Eu? Ora essa! Não compreendo, Explique-se!
 
RAMOS  A Ambrosina, quando era mais mocinha.
 
LUCAS  Ela, aqui para nós, é muito tola; Não gosta de o ouvir falar; diz ela Que o meu amigo só de si se ocupa.
 
BENJAMIN  Não costumo falar da vida alheia.
 
RAMOS  O falecido meu compadre Lopes, Padrinho da pequena.
 
CÉSAR  Eu conheci-o. Teve uma loja de calçado.
 
RAMOS  É isso. Na Rua da Quitanda. Era bom homem.
 
LUCAS  Ela não aprecia o seu estilo... É tão mal preparada! Só lhe agradam Palavras corriqueiras... É bonita, Elegante, não nego, mas que pena!  Falta-lhe o savoir-vivre. Uma burguesa!
 
RAMOS  Este é o Freitas Simões, que foi meu sócio. Hoje é o senhor visconde d’Alcochete!
 
BENJAMIN  Pois tenho pena que ela me deteste: Tencionava pedi-la em casamento.
 
LUCAS  Pedi-la em casamento? Oh, desastrado! Meu Deus, fi-la bonita! Meu amigo, Não faça caso do que eu disse! Pílulas! Por minha causa perde a rapariga Um casamento destes! Não! não! casem-se! Virá depois o savoir-vivre! Diabo!... Hei de ser sempre uma criança estúpida!...
 
RAMOS  O Gouveia da Rua do Mercado.
 
BENJAMIN  Não; eu não desanimo por tão pouco,  E lhe agradeço até, meu caro jovem, Ter-me instruído sobre os gostos dela...
 
RAMOS  Conhece? É o Nazaré da Rua Sete,  Mas no tempo em que usava a barba toda.
 
BENJAMIN  Eu tratarei de transformar-me, creia; Mas se inda assim nas suas boas graças Não cair, paciência... Outra donzela Talvez encontre menos exigente. O que me agrada nela é a formosura Com que a dotou a natureza pródiga; Outra coisa não é, porque sou rico, E ainda espero em Deus herdar bastante,
 
LUCAS  Em Deus? Sim, tem razão; é Deus quem mata...
 
RAMOS  Este é o doutor Galvão, que é nosso médico.
 
BENJAMIN  De bom grado eu seria o seu marido, Por ser senhora muito apresentável, Que faria figura no grand monde E enfeitaria bem um camarote Do Lírico; entretanto, um sacrifício Não quero que ela faça, está bem visto.
 
CÉSAR  Este conheço eu muito: é o João Moreira.
 
BENJAMIN  Modéstia à parte, a um homem desta estofa, Que é moço, e não é feio, e tem saúde, E é milionário ou quase milionário, E viajou por toda a culta Europa, E anda trajado no rigor da moda, E faz figura em cima de um cavalo, E fuma disto...  (Mostra o charuto que fuma, e faz menção de tirar outro da algibeira) Quer provar?
 
LUCAS  Não fumo.
 
BENJAMIN  A um homem desta estofa nunca faltam  Mulheres que o pretendam, que o disputem, Que se agatanhem para conquistá-lo!
 
(Aproxima-se de Ramos e César, que têm acabado de percorrer o álbum)
 
LUCAS (à parte) O outro é tolo e malandro; este é só tolo...  É muito fácil vê-lo pelas costas.
 
 
CENA VI Lucas, João Ramos, César Santos, Benjamin Ferraz, Dona Angélica.
 
RAMOS (a Angélica que entra) Então? Que é?...
 
ANGÉLICA Não é nada. Aquilo passa.
 
RAMOS  Não quero que os amigos se retirem Sem ver a nossa chácara. Proponho Um pequeno passeio.
 
CÉSAR  É bem lembrado.
 
BENJAMIN  É conveniente um pouco de exercício Depois do lauto almoço que tivemos, E ao nosso anfitrião faz tanta honra.
 
RAMOS  Bondade sua, meu amigo. Angélica, Vai buscar os chapéus destes senhores.
 
BENJAMIN (indo buscar o seu chapéu) Então? Não se incomode, Excelentíssima!
 
CÉSAR (idem) Oh! pelo amor de Deus, minha senhora!
 
RAMOS  Vamos! Não vens, Angélica?
 
ANGÉLICA   Não. Fico
 
Fazendo companhia à nossa filha.
 
LUCAS  E eu faço companhia a dona Angélica.
 
RAMOS  Vamos então nós três. Eu vou mostrar-lhes Uma nascente de água ali no morro...
 
(Saem César, Benjamin e Ramos, que continua a falar indistintamente, até que a voz se perca ao longe)
 
 
CENA VII Lucas, Dona Angélica, depois Ambrosina.
 
ANGÉLICA  Qual enxaqueca! qual nada! Ambrosina, meu rapaz...
 
LUCAS  Santos não quer ser chamada, Nem ser madame Ferraz.
 
ANGÉLICA  Sabias?
 
LUCAS  E uma enxaqueca Astutamente arranjou, Para livrar-se da seca Que o papai lhe reservou. O Ferraz alambicado Debalde se encareceu, E o César pobre coitado!  Chegou, viu, mas não venceu.
 
ANGÉLICA  Vês que menina exigente?
 
LUCAS  No seu direito ela está! É bonita, inteligente, E tem um dote... oh, lá lá! Deixe! O que não se faz hoje Fazer-se pode amanhã... Sossegue, que não lhe foge O seu príncipe Charmant. 
 
ANGÉLICA  A galope os desenganos À casa podem chegar... Ela tem vinte e dois anos: Não deve mais esperar.
 
LUCAS  Momento melhor aguarde; Não é preciso correr. Espere, que nunca é tarde Para uma asneira fazer. Gosto a senhora teria Se Ambrosina de qualquer Daqueles tipos um dia Franqueza! fosse mulher?
 
ANGÉLICA  Tu não dizes o que sentes: Dois tipos eles não são.
 
LUCAS  Deixe-se de panos quentes! É cada qual mais tipão!
 
ANGÉLICA (depois de certa hesitação)
 
Ah! se o meu genro escolhido Fosse por mim, só por mim, De minha filha o marido Serias tu.
 
LUCAS  Eu?
 
ANGÉLICA  Tu, sim! (Ambrosina aparece à porta e escuta o diálogo) Que outro genro achar podemos Melhor do que tu?
 
LUCAS  Perdão. Sobre outra coisa falemos.
 
ANGÉLICA  Não te agrada o assunto?
 
LUCAS  Não. E mais na carta não deite...
 
ANGÉLICA  Ambrosina...
 
LUCAS  Tá tá tá! Ela é minha irmã de leite...
 
ANGÉLICA Impedimento não há.
 
LUCAS  Há, e um grande impedimento: O impedimento moral:
 
Semelhante casamento Seria tão desigual...
 
ANGÉLICA  Desigual por que motivo?
 
LUCAS  Não é preciso dizer.
 
ANGÉLICA  És quase um filho adotivo: Deves ser franco!
 
LUCAS  Vou ser. De uma... alugada era filho Quando nesta casa entrei, E seria um maltrapilho Sem a proteção que achei.
 
ANGÉLICA  És tolo.
 
LUCAS  Se seu marido Não me desse proteção, Eu me teria perdido...
 
ANGÉLICA  Quem sabe? Talvez que não.
 
LUCAS  Não! Essa ideia me humilha! Eu não pago tanto amor Pretendendo a mão da filha Do meu santo protetor!
 
ANGÉLICA  Adeus, minhas encomendas! Não me entendeste, rapaz! Eu não digo que pretendas, Pois pretendido serás.
 
LUCAS  Se eu me casasse com ela, Que diriam por aí? O mundo é tão tagarela!
 
ANGÉLICA  Ora! que diriam?
 
LUCAS Xi! “O Lucas, aquele intruso Noiva e dote abiscoitou! De confiança um abuso Friamente praticou! Parecia não ter vícios, Mas vede o pago que deu A todos os benefícios Que do velho recebeu!” Já vê que esse casamento De modo algum me convém, E que todo o fundamento Os meus escrúpulos têm.
 
ANGÉLICA  São tolos esses assomos  De dignidade.
 
LUCAS  Talvez.
 
ANGÉLICA  Nós aqui em casa não somos
 
Nenhuns fidalgos, bem vês. Meu marido foi caixeiro E hoje apenas é patrão, E meu pai foi sapateiro, Depois de ser remendão. Somos, sim, família honesta E temos alguns vinténs; Mas, se a fidalguia é esta, Filho, também tu a tens. A razão por que não queres Ser meu genro essa não é; Mas anda lá! tu preferes Mentir...
 
LUCAS  Mentir! eu?
 
ANGÉLICA  Olé! Apesar de não ser fina, Claramente vendo estou Que não gostas de Ambrosina, Já cá não está quem falou.  (Vai retirar-se, mas Lucas toma-lhe a passagem)
 
LUCAS  Não gosto de Ambrosina? Engana-se! Ambrosina É a flor que me perfuma, o Sol que me ilumina! Supunha o meu afeto apenas fraternal,  Mas hoje, quando entrei, alegre e jovial,  E uma senhora achei na tímida criança Que do passado meu era a melhor lembrança, Deslumbrei-me, e senti que uma transformação. Meu Deus! se me operava aqui no coração!
 
Não pode calcular como os dois namorados Tão senhores de si, risonhos, confiados, Me encheram de ciúme, e como revivi Quando por serem tão ridículos, os vi Perder terreno... Oh, não! não diga, por piedade. Que eu não gosto daquela esplêndida beldade! Eu amo-a loucamente, eu amo-a com fervor! Amor não pode haver maior que o meu amor! Mas peço-lhe por Deus que guarde este segredo Que murmuro a tremer e balbucio a medo. Não me devo casar com sua filha, pois Que um abismo fatal existe entre nós dois! Se o meu segredo for por mais alguém sabido, Juro-lhe que disparo um revólver no ouvido! 
 
AMBROSINA (mostrando-se) Vamos! Dispara! O teu revólver onde está?  Eu quero ver morrer um homem! Vamos lá!
 
LUCAS  Ambrosina!
 
AMBROSINA  Acho bom, porém, que, antes do tiro  Com que te vai matar, demos ambos um giro  Até a pretoria e até a igreja.
 
ANGÉLICA (a Lucas)  Aí tens: És noivo; aceita os meus sinceros parabéns.
 
AMBROSINA  Mau! Feio! Escutei tudo ali daquela porta. Se não dissesses “Amo”, eu cairia morta! O que te sucedeu me sucedeu a mim:
 
Se tão cedo não vens, talvez que o Benjamin, Ou o César um dos dois fosse o meu noivo agora. Mas tu chegaste a tempo. Ao ver-te, sem demora Me pareceu que Deus te conduzia aqui  Para arrancar-me ao outro e oferecer-me a ti.
 
ANGÉLICA (a Lucas) Então? Que dizes tu?
 
LUCAS  Digo... Não digo nada! Foi de tal modo pelo acaso combinada Esta cena de amor que ninguém... sim, ninguém Me poderá dizer: “Tu não andaste bem”.  Estes castelos no ar é bom que os não façamos, Todavia, sem ter ouvido o velho Ramos. Não podemos saber como ele acolherá Esta conspiração...
 
ANGÉLICA  Eu vou falar-lhe já.
 
LUCAS  Já? Isso não!
 
ANGÉLICA  Por quê?
 
LUCAS Convém primeiramente Desiludi-lo de um e de outro pretendente. Eu disso me encarrego. E só depois que os tais Saírem... sairão, e cá não voltam mais,
 
Prometo-lhes!... 
 
ANGÉLICA  Bem bom! bem bom!
 
AMBROSINA Isso me alegra.
 
LUCAS  Só depois eu farei o meu pedido em regra.
 
AMBROSINA  E o tiro? Pum!
 
LUCAS  Dá-lo-ei, se à tua decisão  O velho opõe um veto...
 
AMBROSINA  Há de lhe dar sanção. 
 
(Ouvem-se vozes)
 
ANGÉLICA  Eles de volta aí vêm.
 
AMBROSINA (beijando a mãe) Mamãe, muito obrigada.
 
ANGÉLICA  Se soubessem os dois que a praça foi tomada...
 
 
CENA VIII Lucas, Dona Angélica, Ambrosina, João Ramos, César Santos, Benjamin Ferraz.
 
RAMOS  Que estopada lhes dei! Confessem ambos!
 
CÉSAR  Não diga tal! Foi um passeio esplêndido!
 
BENJAMIN  Tem uma bela chácara. Algum dia  Hei de mostrar-lhe a minha: um paraíso!
 
CÉSAR  Já ficou boa da enxaqueca?
 
AMBROSINA  O Lucas Um remédio me deu de efeito pronto.
 
LUCAS (à parte) Só me faltava ser antipirina...
 
CÉSAR (com esforço) Numa linda cabeça como a sua,  Onde brilham dois olhos tão formosos,  A enxaqueca devia ser vedada.
 
AMBROSINA (indo-se) Que bela frase!
 
CÉSAR (à parte) Decididamente Falta-me o jeito para as coisas fúteis!
 
BENJAMIN  A enxaqueca, senhora, é mal terrível,  Porque desvia do trabalho o cérebro, E o trabalho é a alavanca do progresso, É o comércio, a lavoura, a indústria, é tudo!
 
AMBROSINA (rindo-se) Falou bonito!
 
BENJAMIN (à parte) Decididamente Não tenho queda para as coisas sérias!
 
RAMOS  Mas que remédio milagroso é esse? Durante o almoço estavas macambúzia Nem provaste do célebre badejo! E agora tão risonha achar-te venho! Verias tu, durante a nossa ausência, Um passarinho verde?
 
AMBROSINA  Não vi nada; Mas o fato é que estou muito contente.
 
RAMOS  Bom. Nesse caso, vais tocar um pouco  De bandolim. Desejo que os amigos Antes de nos deixar te batam palmas.
 
AMBROSINA  Com mil vontades. Senhor César Santos? Senhor Forjaz?...
 
BENJAMIN  Ferraz, Excelentíssima.
 
AMBROSINA  Peço toda a indulgência.
 
CÉSAR  Oh!
 
BENJAMIN  Ora essa!
 
ANGÉLICA  Na sala de jantar corre mais fresco  E o bandolim lá está.
 
RAMOS  Para lá vamos!  Entrem, senhores meus!
 
CÉSAR (oferecendo o braço a Ambrosina) Minha senhora?
 
BENJAMIN (idem) Minha senhora?
 
AMBROSINA (entre os dois) Dois? Pois bem! não quero Que nenhum se desgoste por tão pouco, E aceito o braço que ambos me oferecem.  (Sai pelo braço de ambos)
 
ANGÉLICA  Malcriados! Esquecem-se da velha!
 
RAMOS (oferecendo-lhe o braço) Aqui tens, minha amiga.
 
ANGÉLICA É pão com rosca.
 
RAMOS (a Lucas, passando com Angélica pelo braço) Não vens?
 
LUCAS  Por ora não. Logo que possa 
 
Safar-se, venha ter aqui comigo. Preciso dar-lhe duas palavrinhas.
 
RAMOS  Quantas quiseres, Lucas. Até logo.  (Sai com Angélica)
 
LUCAS (só)  Que dirás, minha mãe, quando souberes?
 
 
ATO III A mesma sala.
 
CENA I Lucas (só).
 
(Lucas está olhando para o lado da sala de jantar, de onde chegam os sons de um bandolim)
 
LUCAS Não há que ver: João Ramos não se lembra De que o espero aqui há meia hora. Ele está preso ao bandolim da filha, O olhar interessado, o ouvido atento, A boca aberta, as mãos sobre os joelhos. Oh, que velho tão bom! que pai ditoso! Neste instante ninguém capaz seria De arrancá-lo daquele doce enlevo! Ouvindo aqueles sons melodiosos, Ele talvez na mente rememore O tempo em que Ambrosina era assinzinha, E no seu colo adormecia às vezes. (O bandolim cala-se. Aplausos) Ela acabou. O velho levantou-se. Para este lado olhou. Viu-me. (Faz um sinal para dentro) Ora graças
 
Ele aí vem finalmente. Ei-lo comigo. Queira Deus que lhe agrade a minha ideia. Do contrário não temos nada feito.
 
 
CENA II Lucas, João Ramos.
 
RAMOS  Lucas, meu filho, desculpa, E não me acuses a mim, Pois quem teve toda a culpa Foi aquele bandolim. Quando a pequena dedilha As duas cordas, sei lá! Deixa de ser minha filha: É um anjinho que aí está! Minh’alma sinto levada Para outro mundo melhor; Não vejo nem ouço nada Do que se passa em redor! Se o copeiro me dissesse: “Há fogo em casa, patrão!” Talvez por isso não desse, Nem lhe prestasse atenção! Não me queiras mal, portanto, Se mais depressa não vim; Quem te fez esperar tanto Foi aquele bandolim.
 
LUCAS  Mas vamos ao que se trata.
 
RAMOS  Estou sempre ao teu dispor. Alguma negociata Tu me desejas propor?
 
Queres que eu seja teu sócio?
 
LUCAS  Não senhor; para tratar Aqui de qualquer negócio, Havia de procurar Ocasião mais propícia, Sem César nem Benjamin, E não iria à delícia Roubá-lo do bandolim.
 
RAMOS  Oh, meu rapaz! tu me assustas! Onde queres tu chegar?
 
LUCAS  Sossegue; as almas robustas Não têm de que se assustar. Uma inverossimilhança, Que poderá fazer rir, É não acha? uma criança A um velho os olhos abrir; No entanto, o fato é patente!
 
RAMOS  Mas não me dirás, enfim?...
 
LUCAS  Trata-se precisamente Da dona do bandolim. Dos dois moços namorados, Que hoje almoçaram aqui, Já foram bem estudados Pelo senhor?
 
RAMOS  E por ti?
 
LUCAS  Por mim o foram, e juro Que nenhum deles convém!
 
RAMOS  Ó Lucas, eu te asseguro Que são dois homens de bem!
 
LUCAS  É César Santos matreiro Um caça-dotes ruim, Que faz questão de dinheiro E não faz de bandolim!
 
RAMOS  Semelhante impertinência Me espanta nos lábios teus!
 
LUCAS  Proponho uma experiência E o aconselho...
 
RAMOS  Ora adeus! Dás-me um conselho? Ao que vejo, Inverteram-se os papéis!
 
LUCAS  Mal empregado badejo De vinte e cinco mil réis!
 
(Ouve-se o bandolim)
 
RAMOS  Deus te dê o que te falta! Ouves?
 
LUCAS  Ouço.
 
RAMOS  Plim, plim, plim! Sabes que mais, meu peralta? Não resisto ao bandolim (Quer retirar-se. Lucas toma-lhe a passagem) Venha cá! Falo sério! Não se ria!  César Santos não gosta de Ambrosina, Ou antes, gosta, como gostaria De outra qualquer menina Que fosse linda e que tivesse dote... Ele quer dar-lhe um bote!
 
RAMOS  Mas como sabes disso?
 
LUCAS  Ele em pessoa Me declarou que assim pensava.
 
RAMOS  É boa!
 
LUCAS  Fingi-me um patifão da sua laia; Captei-lhe a confiança prontamente, E dei-lhe um vomitório de poaia.
 
RAMOS  E vomitou?
 
LUCAS  Duvida!... O Lucas mente?...
 
RAMOS  Não vês que isso foi pala? Quis brincar, está visto!
 
LUCAS  Pois bem, eu pela experiência insisto!
 
RAMOS  Lá vem de novo a experiência! Fala! Como é que me aconselhas que manobre?
 
LUCAS  Chame-o de parte e diga-lhe que é pobre, Que sua filha não tem dote... Invente!... E se ele, ouvindo essa tremenda história, Não se puser ao fresco incontinenti, As mãos entregarei à palmatória.
 
RAMOS  Em todo o caso, é boa essa armadilha, Porque me custaria ver casada, Por ter um dote apenas, minha filha, Quando com tantos outros é dotada...
 
LUCAS  Eu vou lá para dentro e aqui lho mando. Mas não tenha vergonha: Invente uma catástrofe medonha. Suspire, se puder de vez em quando... Coisas dirá incríveis, conjecturo; Não se importe: ele é homem Desses que todas as araras comem E que o reino do céu tem já seguro Diga que o jogo e os seus fatais caprichos Levaram-lhe a maquia; Que cem contos de réis perdeu nos bichos, Cem na roleta, cem na loteria, E cem na Bolsa!
 
 
RAMOS  Xi! que jogatina! E o Benjamin Ferraz?
 
LUCAS  Ora! Ambrosina Já tem um bandolim: outro dispensa.
 
RAMOS  Achas então que o moço?...
 
LUCAS  É mesmo um bandolim... de carne e osso. Esse em dote não pensa.
 
RAMOS  Eu creio mesmo que não pensa em nada.
 
LUCAS  Mas fica essa figura reservada para depois.  Eu vou mandar-lhe o tipo. Meus parabéns sinceros lhe antecipo. (Sai) 
 
 
CENA III João Ramos (só).
 
RAMOS  É levado da breca este meu Lucas! Mas não é que ele teve uma lembrança Que não acudiria a toda a gente? Eu vou mentir... mas, ora adeus! se o faço, É para o bem da minha filha amada, E a mentira que vou pregar só pode Prejudicar o próprio mentiroso, Pois se a pílula engole o César Santos,
 
Vai dizer por aí que estou quebrado; Mas como a ninguém devo, que me importa? Ele aí vem. Temos cena de comédia! Coragem! vou pregar uma mentira Pela primeira vez na minha vida...
 
 
CENA IV João Ramos, César Santos.
 
CÉSAR  Desejava falar-me, senhor Ramos?
 
RAMOS  Desejava falar-lhe, senhor César.  (Dando-lhe uma cadeira) Tenha a bondade, sente-se.
 
CÉSAR  Obrigado.  (Senta-se. Ramos senta-se também)  Estou às suas ordens.
 
RAMOS  Meu amigo, O senhor, uma noite, no Cassino, Minha filha encontrou, dançou com ela, E no dia seguinte pela porta Começou a passar de nossa casa Todas as tardes, mesmo se chovia. Se à janela a pequena me bispava, Tirava-lhe o chapéu amavelmente, E lhe sorria assim de certo modo... Achando no senhor um bom partido, Por saber, de pessoas fidedignas, Que está perfeitamente encaminhado, Para almoçar comigo convidei-o, E preparei um suculento almoço Com algum sacrifício...
 
CÉSAR (à parte) Sacrifício?
 
RAMOS  Para não parecer que eu convidava  Um namorado, e lhe impingia a filha,  O Benjamin Ferraz, aparecendo,  Foi também convidado. (À parte)  Esta mentira Não estava no programa. (Alto) O que eu queria, Trazendo-o para junto de Ambrosina, Era fazer com que se aproximassem E se entendessem de uma vez por todas. Ficam-lhe abertas desta casa as portas. 
 
CÉSAR (erguendo-se) Muito obrigado, senhor Ramos.
 
RAMOS  Sente-se. (César senta-se) Antes, porém, que as coisas vão mais longe, Uma revelação fazer-lhe quero Imposta pela minha lealdade. (À parte)  Lá vai! (Alto)  Sou pobre.
 
CÉSAR (erguendo-se como tocado por uma mola) É pobre!
 
RAMOS  Muito pobre. Infelizmente perdi tudo. Sente-se.
 
CÉSAR (seco) Estou perfeitamente.
 
RAMOS (erguendo-se) Nesse caso, Levanto-me eu também, meu caro amigo.
 
CÉSAR  Mas como foi?...
 
RAMOS  Cavalarias altas! Joguei na baixa.
 
CÉSAR  E perdeu tudo?
 
RAMOS  Tudo, A começar pelo juízo... Apenas Desse naufrágio me escapou a honra.
 
CÉSAR (naturalmente) Mas de que vale a honra sem dinheiro?
 
RAMOS (depois de estremecer como se o esbofeteassem) Basta! não é preciso ouvir mais nada!  Lucas, vem cá!
 
CÉSAR  Que significa isto?
 
RAMOS  A experiência fica em meio apenas.
 
 
CENA V João Ramos, César Santos, Lucas.
 
RAMOS (a Lucas que entra)
 
Imaginavas que este sujeitinho, Ouvindo-me dizer que eu era pobre, Ao fresco se pusesse incontinenti; Pois bem: sou eu, vais ver, que o ponho fora Da minha casa honrada, e, se o não ponho A pontapés, é porque nesta idade Não há mais pontapés que deixem marca!
 
CÉSAR  Senhor!
 
RAMOS (a Lucas) Quando eu lhe disse que era pobre, Mas que era honrado, respondeu-me, filho, Que a honra nada vale sem dinheiro!
 
LUCAS  O dinheiro sem honra há quem prefira. (Vai buscar a bengala e o chapéu de César Santos)
 
RAMOS  Saia já desta casa!  (Movimento de César. Com mais força) Saia!
 
LUCAS  Saia... E nada lhe responda: é o mais prudente.
 
(César encolhe os ombros, toma o chapéu e sai com arrogância. João Ramos fica muito agitado, a percorrer a cena)
 
 
CENA VI João Ramos, Lucas.
 
RAMOS Que cinismo! que despejo!... Quatro murros merecia!...
 
LUCAS  Então? eu não lhe dizia? Mal empregado badejo! Vamos lá! Não se apoquente, Que está salva a sua filha... Mas olhe que se ele a pilha!...
 
RAMOS  Não a pilhou felizmente!
 
LUCAS  Temos o outro namorado E uma nova experiência...
 
RAMOS  Mas esse tem paciência  É moço muito educado, Incapaz de dar-me um couce Como aquele sevandija! (Falando para a porta por onde César saiu) Há de haver quem te corrija, Meu descarado!
 
LUCAS  Acabou-se. Não se trata desse agora, Mas do bandolim Ferraz...
 
RAMOS  Que também me deixe em paz! Que também se vá embora! Se um bruto casa com ela, Um dia prego-lhe um tiro!
 
LUCAS  Esteja calmo.
 
RAMOS  Prefiro Que vá de palma e capela Quando morrer!  (Pausa, durante a qual o velho procura serenar-se) Mas que dizes Do tal namorado piegas? Já agora acredito às cegas Em tudo de que me avises! 
 
LUCAS  Não creio que ele pratique Uma ação indecorosa: Mas é muito tolo... é prosa... Presta-se muito ao debique, E de ridículo a dose Que traz em si, permanente, Refletirá fatalmente Sobre a mulher que ele espose. Há de ser um desconsolo, Meu caro, que a filha sua, Sempre que sair à rua Vá pelo braço de um tolo. Ele tem muitas patacas, E ainda há de herdar de uns matutos, Para comprar mais charutos E novas sobrecasacas; Mas todo esse cobre junto, Toda essa bela milhança, Entrando em conta a esperança Dos sapatos de defunto, Que vale nas mãos de um homem Desses e é grande a cambada!  Que, não produzindo nada,
 
Enormemente consomem? Quem vive dessa maneira, E do seu fausto se gaba, Por via de regra acaba Por não ter eira nem beira. Ambrosina coisa horrível!  Nas mãos desse desfrutável, Tem a pobreza provável, Tem a miséria possível!
 
RAMOS (erguendo-se) Qual há de ser o espantalho?
 
LUCAS  À puridade lhe diga: “Quer casar coa rapariga? Pois bem: procure trabalho!” Se o senhor assim o avisa, Faço todas as apostas Em como, voltando as costas,  Ele aqui nunca mais pisa.
 
RAMOS  Pois manda-o cá!
 
LUCAS  Vou mandá-lo. Verá como a coisa pega! Fale-lhe teso!
 
RAMOS  Sossega: Teso, bem teso lhe falo! (Lucas sai)
 
 
CENA VII João Ramos (só).
 
JOÃO RAMOS Oh! venturoso o pai que lhe entregar a filha! Vinte e dois anos só! Quando este bigorrilha Contar os que já conto, há de ser um portento! Aquilo sim, senhor, aquilo é que é talento! É ele a boca abrir, são flores e mais flores! Até me faz lembrar Jesus entre os doutores! Devia tê-lo feito entrar na Academia... Que brilhante orador, que bacharel daria!...
 
 
CENA VIII João Ramos, Benjamin Ferraz.
 
RAMOS  Venha, meu caro amigo, e me desculpe Se o privei de mais doce companhia; Mas é preciso que nos entendamos Sobre assunto que muito me interessa.
 
BENJAMIN  Antes de prosseguir, Senhor João Ramos, Cumprimentá-lo quero entusiasmado: Tem uma filha verdadeiramente Artista; o bandolim, nas delicadas Mãos de dona Ambrosina, diviniza-se! Ouvi três peças cada qual mais bela! Que brio! que expressão! que sentimento!...
 
RAMOS  Gosta muito de música?
 
BENJAMIN  Muitíssimo.
 
RAMOS  E que instrumento é o seu?
 
BENJAMIN  Nenhum.
 
RAMOS  É pena.
 
BENJAMIN  Mas tive um primo que tocava flauta.
 
RAMOS  Queira sentar-se aqui nesta cadeira,  E prestar-me atenção.
 
BENJAMIN (sentando-se) Sou todo ouvidos.
 
RAMOS (depois de sentar-se também) Há quinze dias, no Teatro Lírico, Num camarote eu estava coa família E o senhor na plateia.
 
BENJAMIN  A companhia Cantava o Mefistófeles, de Boito.
 
RAMOS  Mas o senhor pouca atenção prestava À Margarida, ao Fausto e ao Mefistófeles, E do meu camarote não tirava Os olhos, com binóculo ou sem ele. Bom. Nós éramos três no camarote...
 
BENJAMIN  O senhor, a senhora dona Angélica E a nossa genial bandolinista.
 
RAMOS  Ora, não creio que os olhares fossem Dirigidos a mim, que sou marmanjo, Nem a minha mulher, que é mulher velha; Não é preciso, pois, ser muito esperto Para ver que o seu alvo era Ambrosina. (Benjamin sorri) Acabado o espetáculo, na porta O senhor esperou por nós... por ela, Quero dizer, e suspirou tão alto, Que a atenção provocou de toda a gente!
 
BENJAMIN (suspirando) Ai! não sei suspirar de outra maneira! 
 
RAMOS (à parte) Vá suspirar pro diabo que o carregue! (Alto)  Já na manhã seguinte o seu cavalo Passava com o senhor em cima dele, E nas outras manhãs esse passeio Reproduzido foi às mesmas horas. E se à janela minha filha estava, O senhor lhe fazia um cumprimento, Caracolando com mais graça, e ela Correspondia ao cumprimento.
 
BENJAMIN  Vejo Que tudo sabe.
 
RAMOS  Eu sou bom pai.
 
BENJAMIN  Decerto.
 
RAMOS  Achando no senhor um bom partido,
 
Para almoçar comigo convidei-o, E, pra não parecer que convidava Um namorado e lhe impingia a filha, O César Santos...
 
BENJAMIN  Onde está?
 
RAMOS  Muscou-se. (Continuando) O César Santos, que conosco estava, Foi também convidado. O que eu queria, Trazendo-o para junto de Ambrosina, Era fazer com que se aproximassem E se entendessem de uma vez por todas.
 
BENJAMIN (erguendo-se) Senhor João Ramos, eu não sei quais sejam Os sentimentos dela a meu respeito, Porque, se bem que nos aproximássemos, Inda não conversamos um com o outro; Se ela quiser ser minha esposa amada E da minha riqueza ter metade, O mais feliz serei dos namorados; Se não quiser, o mais inconsolável. Inda há poucos momentos eu gostava De sua filha pela formosura Com que a dotou a natureza apenas; Mas depois que a ouvi, arrebatado, Naquele doce bandolim, que as pedras, Como a lira de Orfeu, mover podia, Sinto aqui dentro uma impressão mais forte! Isto é amor, não é namoro; isto É mais que amor, talvez; paixão, quem sabe? 
 
RAMOS (erguendo-se) Paixão? Não exagere meu amigo! 
 
BENJAMIN (idem) As paixões, meu senhor, assim começam. O que é preciso para transformar-nos?  Um simples bandolim!
 
RAMOS Antes que as coisas  Vão mais longe, meu caro, é indispensável  Que sobre um grave assunto conversemos,  Muito mais positivo e mais...
 
BENJAMIN  Permita Que o interrompa. Eu sei de que se trata. Sou rico, sou riquíssimo: não quero Coisa nenhuma. Ela tem dote? Guarde-o! Nada tenho com isso. O meu dinheiro De nós ambos será. Divido tudo; Só não divido o coração, que é dela!
 
RAMOS (à parte) O Lucas enganou-se.
 
BENJAMIN  Ela que faça Do dote o que quiser. O meu desejo Era esposar uma donzela pobre... Dona Ambrosina tem um patrimônio No nome de seu pai: isso me basta, Porque dote melhor não há que a honra.
 
RAMOS (entusiasmado) Sim, senhor! Isto é que é falar! Amigo, Quero apertá-lo nos meus braços! Viva! (Depois do abraço) Mas não é disso que eu tratar queria...
 
BENJAMIN  Então fale, senhor! Ordene! Imponha As condições que desejar, contanto Que não me negue a mão de sua filha, Porque eu não posso mais passar sem ela! A tudo estou disposto!
 
RAMOS  A tudo?
 
BENJAMIN  A tudo!
 
RAMOS  A trabalhar também?
 
BENJAMIN  Eu não percebo.
 
RAMOS  Vai perceber. Exijo que o meu genro,  Embora seja rico, muito rico, Tenha um meio de vida; que trabalhe;  Que em qualquer coisa ocupe a inteligência,  E que produza, não consuma apenas.
 
BENJAMIN  Aceito a condição. Não tenho jeito Para coisa nenhuma nesta vida, Mas estou pronto a trabalhar!
 
RAMOS  Deveras?
 
BENJAMIN  Faço-me industrial: monto uma fábrica,  Ou lavrador e compro uma fazenda,
 
Ou negociante e abro uma casa.
 
RAMOS  Bravo!
 
BENJAMIN  Se o senhor consentir, serei seu sócio  Na loja de ferragens.
 
RAMOS  Bela ideia!
 
BENJAMIN  Ou serei simplesmente seu caixeiro,  E a vida levarei a contar pregos! Finalmente, disponho-me ao trabalho!
 
RAMOS  Trabalhará?
 
BENJAMIN  Trabalharei, contanto Que não me negue a mão de sua filha, Porque eu não posso mais passar sem ela!
 
RAMOS  Dê-me algum tempo. Vou pensar no caso. (À parte)  Pois já não me parece tão ridículo!
 
BENJAMIN  Oh! temos muito tempo: este pedido Não é ainda o oficial; se o fosse, Eu seria incorreto. Ao vir pedir-lhe Oficialmente a mão de sua filha, Vestirei a casaca e trarei luvas. (Vai sentar-se a examinar o álbum)
 
RAMOS (à parte) Voltou a ser ridículo, coitado!
 
 
CENA IX João Ramos, Benjamin Ferraz, Lucas, depois Ambrosina, depois Dona Angélica.
 
(Lucas entra e, admirado de encontrar Benjamin, dirige-se a João Ramos)
 
LUCAS  Então ele ficou?
 
RAMOS  Meu filho, o resultado Da experiência foi o mais inesperado!
 
LUCAS  Que me diz o senhor?
 
RAMOS  O pobre Benjamin, Depois que minha filha ouviu ao bandolim, Deitou paixão violenta, e ao trabalho se arroja! Até diz que quer ser caixeiro lá na loja!
 
(Afasta-se e vai para junto de Benjamin)
 
LUCAS (à parte) Maldito bandolim! desperta uma paixão  Que vai dificultar a minha situação!
 
(Ambrosina entra e, admirada de encontrar Benjamin, dirige-se a Lucas)
 
AMBROSINA  Então ele ficou?
 
LUCAS  Menina, o resultado  Da experiência foi o mais inesperado!
 
AMBROSINA  Lucas, que estás dizendo?
 
LUCAS  O nosso Benjamin...
 
AMBROSINA  Acaba! Ele que fez?
 
LUCAS  Graças ao bandolim, Deitou paixão por ti, e ao trabalho se arroja!  Até diz que quer ser caixeiro lá na loja! (Afasta-se)
 
AMBROSINA (à parte) Maldito bandolim! Se adivinhasse tal,  Ou eu não tocaria ou tocaria mal!
 
(Entra dona Angélica e, admirada de encontrar Benjamim, dirige-se a Ambrosina)
 
ANGÉLICA  Então ele ficou?
 
ANGÉLICA  Mamãe, o resultado, Da experiência foi o mais inesperado!
 
AMBROSINA  Que estás dizendo, filha?
 
AMBROSINA  O senhor Benjamin,
 
Quando me ouviu tocar, deitou paixão por mim!
 
ANGÉLICA  Paixão?
 
AMBROSINA  Paixão violenta! E ao trabalho se arroja!  Até diz que quer ser caixeiro lá na loja!
 
ANGÉLICA  E que intentas fazer?
 
AMBROSINA  Com ele conversar. Livres do apaixonado havemos de ficar. Leve papai pra dentro e tudo lhe revele... Diga que o Lucas me ama e que eu sou noiva dele.
 
LUCAS (descendo entre as duas senhoras) Que estão a cochichar? Vai lá pra dentro, vai! Lá irá ter mamãe, lá irá ter papai.
 
LUCAS  Com ele ficas só? Vê lá o que vais fazer!
 
AMBROSINA  Nesta combinação não tens que te meter. (Lucas encolhe os ombros e sai) Chame papai.
 
ANGÉLICA  Ó João, vem cá; de ti preciso Na sala de jantar.
 
RAMOS (erguendo-se, à parte) Oh, que mulher de juízo!
 
Já tudo compreendeu... e quer deixá-los sós. (Angélica sai. A Ambrosina) Um maridão! (Sai)
 
AMBROSINA  Pois sim! (Olhando para Benjamin) Agora nós!...
 
 
CENA X Benjamin Ferraz, Ambrosina.
 
(Benjamin está tão entretido com o álbum, que Ambrosina se aproxima dele sem ser pressentida)
 
AMBROSINA  Senhor Ferraz? (Benjamin estremece, levanta-se e deixa o álbum)
 
BENJAMIN  Minha senhora? Ninguém aqui?... Ninguém!... Só nós!...  (Quer retirar-se)
 
AMBROSINA  Oh! venha cá..... não vá-se embora... Meto-lhe medo?
 
BENJAMIN  Estamos sós...
 
AMBROSINA  Não é razão para fugir-me.
 
BENJAMIN  Mas eu não devo aqui ficar.  Do savoir-vivre às leis sou firme! Vou para a sala de jantar.
 
AMBROSINA  Espere... Peço-lhe que fique...
 
BENJAMIN  Devo, portanto, obedecer.
 
AMBROSINA  É necessário que eu lhe explique...  Tenho uma coisa que dizer.
 
BENJAMIN  Tremendo estou! De que se trata?
 
AMBROSINA  Dessa... paixão que tem por mim.
 
BENJAMIN  Paixão terrível, insensata,  Que devo àquele bandolim!
 
AMBROSINA  Pois bem, senhor: de mim se esqueça... Não alimente essa paixão... Busque outra moça que o mereça E tenha livre o coração!
 
BENJAMIN  Porém seu pai, minha senhora...
 
AMBROSINA  Só do que é seu pode dispor: Não quererá impor-me agora  Um casamento sem amor!
 
BENJAMIN  Essas palavras, proferidas  Pelos seus lábios virginais, 
 
São cruéis armas homicidas!  Não são palavras: são punhais!
 
AMBROSINA  Esta satisfação aceite...
 
BENJAMIN  Quem é, senhora, o meu rival?
 
AMBROSINA  Lucas, o meu irmão de leite.
 
BENJAMIN  Ele?! No entanto... (À parte)  Então? que tal? (Alto)  Amam-se?
 
AMBROSINA  Oh! desde pequenos!
 
BENJAMIN (levando a mão ao peito) Data, senhora, esta afeição  De menos tempo...
 
AMBROSINA  Muito menos.
 
BENJAMIN  Mas não tem menos intenção!
 
AMBROSINA  Senhor não vá ficar magoado,  O savoir-vivre assim o quer...  Quem o lugar achar tomado,  Outro procure se quiser.
 
BENJAMIN Diz muito bem. (Vai buscar o chapéu e a bengala) Oh! fados cegos! Mágoa cruel comigo vai! E eu estava pronto a contar pregos! A ser caixeiro de seu pai! (Limpa uma lágrima)
 
AMBROSINA  Outra o compreenda! outra o console!
 
BENJAMIN  Vou viajar, pois só assim Do peito meu talvez se evole O último som do bandolim! Adeus, ó sonho meu perdido!
 
AMBROSINA  Não se despede de meus pais?
 
BENJAMIN  Bastantemente despedido Já estou aqui. Para que mais? Que Deus a faça venturosa Hei de a rezar pedir a Deus! Adeus, quimera cor de rosa! Sonho... ilusão... visão, adeus! (Sai)
 
AMBROSINA (só) Pobre rapaz!
 
 
CENA XI Ambrosina, João Ramos, Lucas, Dona Angélica, depois o copeiro.
 
RAMOS  Ambrosina! Vem cá, filhinha, vem cá!
 
ANGÉLICA  Não assustes a menina!
 
RAMOS  O Benjamin onde está?
 
AMBROSINA  Deixou-lhe muitas lembranças.
 
LUCAS  Foi-se?
 
AMBROSINA  Foi... rezar por mim
 
RAMOS  Oh, senhor, estas crianças! Coitado do Benjamin!
 
ANGÉLICA  Mas tu... tu nada nos dizes?
 
RAMOS  Mulher, que posso eu dizer? Felizes, muito felizes Conto que ambos hão de ser. (Entre Lucas e Ambrosina) Mas como nem um momento Eu me lembrei, filhos meus, De que era este casamento Aconselhado por Deus? Como visse os dois maganos Crescerem nas minhas mãos, Durante vinte e dois anos Considerei-os irmãos! Não me entrou na fantasia, Nem um minuto sequer,
 
Que dois irmãos algum dia Fossem marido e mulher! E eu, tonto, andava à procura De um genro na multidão, Sem reparar que a ventura Tinha ao alcance da mão! (Deixando-os) A culpa tiveste-a, Lucas! Não foste franco, por quê? E vocês, suas malucas,  Tiveram medo, de quê?
 
LUCAS  Temiam que o casamento  Não lhe agradasse talvez...
 
RAMOS  Se não há impedimento!  Valha-me Deus, que vocês!... Que todo o mundo respeite A suspirada união! Beberam do mesmo leite?  Pois comam do mesmo pão!
 
O COPEIRO (entrando)  O jantar está na mesa.
 
RAMOS  Sim, senhor. Pode sair,  Mas vá, com toda a presteza, Essa casaca despir! (O copeiro sai) As etiquetas dispenso! Eu para luxos não dou!
 
ANGÉLICA  Do badejo que era imenso, Um bom pedaço ficou.
 
RAMOS  Do tal almoço é sobejo! Manda-o da mesa tirar! (Dona Angélica sai)
 
LUCAS  Mal empregado badejo!
 
RAMOS  Meus filhos, vamos jantar.

 

 

                                                                  Artur Azevedo

 

 

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