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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BARÃO / Sveva Casati Modignani
O BARÃO / Sveva Casati Modignani

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Bruno Brian di Monreale, o Barão, como é conhecido, é o último descendente de uma antiga e nobre família siciliana. Bruno cresce na Califórnia, com um pai severo e distante e uma mãe dividida entre um casamento precipitado, onde não existe amor, e uma paixão deixada na sua Sicília longínqua.
No entanto, são as raízes sicilianas que levam Bruno a regressar à sua ilha natal, ao seu avô, um velho aristocrata, e a Calò, o padrinho sempre presente. Serão estas duas figuras que lhe irão transmitir o saber ancestral das velhas famílias aristocráticas, da sua ética e código de justiça.
Bruno di Monreale envolve-se nos negócios do petróleo e das grandes multinacionais, tornando-se num homem poderoso e fascinante. Os amores inconsequentes e os casos fortuitos sucedem-se na sua vida glamorosa mas dominada pela insatisfação, até que se cruza com Karin, uma mulher reservada e misteriosa. Karin revelar-se-á o desafio por que Bruno ansiava e que lhe irá trazer o equilíbrio há tanto desejado.

 

 

 


 

 

 


PRÓLOGO

A bordo do Trifoglio

Naquela quente sexta-feira de agosto, Karin Venier estava perturbada com três problemas: uma tremenda constipação estival, a perspetiva de um longo fim de semana
de trabalho e o insistente piar dos pombos que havia já alguns anos, juntamente com os mosquitos, as motorizadas e os rádios dos carros, eram os verdadeiros donos
de Milão. A pesada decoração notarial daquele escritório de advogados no corso Venezia contribuía para aumentar a sensação de angústia que se apoderava dela. Verificou
minuciosamente os papéis e os documentos que ia levar consigo, inutilizou o Ultimo Kleenex com uma fungadela enérgica, atirou-o para um cesto meio cheio de lenços
de papel e chamou um táxi.
- Três minutos - comunicou a telefonista da central. A rapidez das deslocações era um dos aspetos positivos da cidade em agosto. Os pombos insistiam nos seus chamamentos
monótonos, que penetravam nos escritórios apesar da proteção acústica dos vidros duplos. Karin transpôs a porta do edifício no momento em que o taxi amarelo parava
junto ao passeio.
- Finalmente em férias - disse o porteiro ao cumprimentá-la, ao mesmo tempo que fazia uma vénia desajeitada. Era um sujeito alto e seco com um grande nariz adunco
e dois olhos maliciosos que traíam um sorriso doce de beato.
- Pois é - respondeu a jovem, enquanto o homem se apressava a abrir-lhe a porta do carro -, finalmente em férias. Estava muito calor e o sol não conseguia penetrar
a pesada capa abafada que cobria a cidade.
- Via Pasco li, 2 - disse ao motorista, enquanto se deixava cair no

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assento horrivelmente morno, embebido do cheiro de toda a humanidade que já tinha acolhido. Tentou, sem conseguir, reprimir um espirro sonoro.
- Constipada, hein? - perguntou o taxista num tom solidário.
- Exatamente - respondeu ela sem entusiasmo, enquanto pegava num novo pacote de Kleenex.
No corso Buenos Aires o taxista já lhe tinha contado a história da primeira intervenção cirúrgica ao abdómen, realizada no hospital de Pietra Ligure, para estancar
uma hemorragia interna. A convalescença terminou na via Plinio e a recaída começou no viàle Abruzzi. A crónica foi interrompida bruscamente com o fim da viagem.
- A minha vida é mesmo um romance - queixou-se o pobre homem, ao mesmo tempo que recebia as três mil liras indicadas pelo taxímetro.
- Desejo-lhe muitas felicidades - rematou Karin, enquanto se dirigia à porta de entrada de um condomínio moderno que ostentava evidentes pretensões de elegância.
Atravessou o átrio deserto e avançou rapidamente, seguindo a passadeira que cobria o corredor da esquerda, em direção à porta do elevador que se abria numa parede
inteiramente coberta por um espelho. A imagem refletida de uma espantosa mulher de cabelos ruivos deu-lhe segurança: o desânimo profundo que a dominava ainda não
era visível. Era bom sinal. O primeiro daquele dia negativo. Ia tomar um banho morno antes de se vestir. Depois, dirigir-se-ia a Linate para apanhar o avião direto
para Nice, onde a esperava o automóvel que a levaria imediatamente a Saint-Tropez. A perspetiva da viagem aérea deu-lhe uma sensação de alívio. Mas a ideia de ter
de se encontrar com Bruno Brian anulou aquela sensação radiosa, deixando-a ainda mais inquieta.

Karin respirou o perfume azul que pairava no ar e que sabia a sol, a mar, a pinheiros e a flores silvestres. Subitamente, sentiu-se serena, finalmente livre daquela
constipação incomodativa, longe do calor abafado da cidade, momentaneamente distraída da ideia daquele encontro.
O Mercedes branco parou no molhe de Saint-Tropez junto ao Trifoglio, um iate de trinta metros que a Karin pareceu uma gaivota branca de aço, estreito mas potente.
Estava majestosamente alinhado no meio dos outros barcos atracados, suscitando a admiração de quem passava e a inveja de quem estava a bordo dos outros iates.

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O céu limpo, de um azul suavíssimo, escurecia num presságio da noite que se adivinhava no horizonte, onde as velas deslizavam ligeiras sobre o mar tranquilo. Um
repórter fotográfico, disfarçado no meio das pessoas que passavam, pronto para a caça, deu um salto para chegar até ao carro, mas dois marinheiros do Trifoglio surgindo
de repente barraram-lhe o caminho. Não houve palavras nem gestos autoritários. O mais alto e robusto dos dois fez o paparazzo desistir com um sorriso radioso.
- É melhor parar - murmurou. Tinha um evidente sotaque siciliano.
- Não há nada interessante para fotografar - acrescentou.
- Com certeza - concordou o fotógrafo. Era um jovem moreno e magro, de olhos tristes, carregado com uma série de Leicas munidas de teleobjetivas. Recuou com dignidade,
retribuindo o sorriso e fazendo gestos largos como quem se despede. Era preferível uma retirada honrosa do que uma tareia da qual sairia seguramente maltratado.
Abrigou-se numa loja ali perto a tentar identificar a mulher sentada no Mercedes branco. Era, aliás, demasiado fácil relacionar uma presença feminina com a chegada
do Trifoglio, que, mais uma vez, no início de agosto, tinha atracado naquele célebre porto da Côte d'Azur. Mas quem seria aquela mulher?
O paparazzo roeu as unhas com raiva quando viu o motorista abrir a porta e descortinou uma rapariga com uma longa cabeleira flamejante a sair do carro.
Com um ligeiro gesto de cabeça, a mulher despediu o motorista.
Naquele momento o fotógrafo teve a certeza de que tinha perdido um grande furo e estava capaz de entregar a alma ao diabo para poder fotografar aquela bela desconhecida
que em poucos instantes iria desaparecer no ventre do Trifoglio, o iate do Barão. A figura quase lendária do Barão, cujo nome estava associado a grandes negócios
internacionais, era uma das presas mais almejadas pelos paparazzi. Personagem indecifrável de quem se sabia apenas aquilo que ele queria que se soubesse, Bruno Brian
Sajeva di Monreale, de 37 anos, ítalo-americano, de origens nobres pelo lado materno, muitas vezes fotografado ao lado de mulheres belas e famosas, suscitava a curiosidade
quase mórbida das pessoas já habituadas a saber tudo sobre as figuras da alta sociedade. Sabia-se que era dono de uma imensa fortuna e dizia-se que a bordo do Trifoglio
havia quadros de incalculável

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valor. O seu Boeing 747 é um castelo voador", murmuravam as mulheres que tinham feito, e se vangloriavam disso, uma viagem naquele gigante dos céus. Bruno Brian
Sajeva, barão di Monreale, nunca desmentira as notícias que lhe atribuíam património em todos os continentes.
O sol do crepúsculo criava um quadro de extraordinária beleza enquanto aquela jovem esbelta de olhos azul-violeta avançava com um passo seguro e desenvolto em direção
à prancha de acesso ao Trifoglio. A silhueta moderna, esguia, de adolescente, era revelada por um vestido simples de linho branco debruado a dourado, no mesmo tom
das sandálias de tiras finas que sublinhavam a graça dos pés minúsculos, realçando as pernas compridas. Levava a tiracolo uma pasta de cânhamo natural.
O fotógrafo observou aquela mulher fantástica e imaginou o encontro com o homem soberbo que fazia sonhar as mulheres e fascinava os homens, incutindo-lhes um profundo
respeito.
Outros olhos curiosos, no molhe e nos barcos ancorados, esperavam capturar uma imagem do encontro do Barão com a misteriosa desconhecida. A presença do Barão e do
seu palácio flutuante e secreto constituía sempre uma nota excitante em Saint-Tropez.
Karin não apresentava qualquer traço de maquilhagem e o seu corpo não exibia qualquer sinal de bronzeado. O alabastro da sua pele era perfeito. Tinha a soberba graça
de um cisne branco naquele recanto do paraíso onde o bronzeado era ostentado como uma medalha de mérito.
Uma lufada de vento vindo do mar despenteou-lhe os cabelos, fazendo-os ondear. Do convés veio ao seu encontro um empregado obsequioso.
- Bem-vinda a bordo, menina Venier. - Também ele tinha um notório sotaque siciliano.
- Obrigada, Gaetano. - Karin sorriu-lhe de um modo afável. Sentia uma grande simpatia por aquele empregado fiel, orgulhoso da sua própria fidelidade e feliz com
a sua condição. Desempenhava uma profissão de que gostava e que não trocaria por nenhuma outra.
- Vou à sua frente, menina Venier - desculpou-se Gaetano, ao mesmo tempo que começava a descer a escada que dava acesso ao gabinete de Bruno Brian. Ela seguiu atrás
dele.
- A menina fez boa viagem? - perguntou, enquanto se colocava de lado para a deixar entrar no aposento. Tinha os cabelos negros e ralos, apesar de ser ainda jovem,
e uns olhos escuros e cordiais.

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Karin movia-se com gestos precisos e seguros, como se estivesse na sua própria casa. A constipação tinha passado milagrosamente.
- Muito boa, Gaetano - respondeu, ao mesmo tempo que se instalava numa poltrona com almofadas revestidas de linho fresco. - Uma viagem realmente fantástica - acrescentou
ainda.
O empregado fez uma vénia antes de se retirar e ela recostou-se na poltrona, respirando profundamente. Experimentava uma sensação de serenidade naquele pequeno aposento
que conhecia de cor e gostava do cheiro da madeira antiga, dos latões e das pratas reluzentes. Karin tinha necessidade de proteção, de segurança, e aquele ambiente,
de uma forma inexplicável, dava-lhe tanto uma como a outra.
O escritório de mister Brian era o espaço que mais gostava no Trifoglio, talvez porque o mobiliário austero de madeira maciça lhe fazia lembrar estranhamente o interior
de certas Stube do seu amado Tirol, com a diferença de que ali, em vez dos tradicionais chifres de veado e do crucifixo, havia um precioso Canaletto. Estava colocado
na parede em frente à secretária e representava uma regata no Grande Canal com a ponte do Rialto ao fundo. De um aposento ao lado chegava o tiquetaque dos faxes
que registavam as notícias provenientes de todo o mundo. Um secretário eficiente recolhia, filtrava e submetia à atenção de mister Brian o material selecionado.
Gaetano apareceu novamente no escritório.
- A menina deseja um champanhe gelado? - perguntou, aproximando-se.
- Se não for problema, preferia um café frio - gracejou Karin.
- Nenhum problema - respondeu solícito, sorrindo.
- Não se importa de avisar mister Brian? - disse Karin.
- Até há pouco, sua Excelência estava a dormir - informou o empregado, com ar de quem se desculpa. - Vou ver se já está acordado - acrescentou.
Do outro lado do grosso vidro antibala, as luzes de Saint-Tropez começavam a brilhar na noite. Não havia nada de estranho no facto de àquela hora insólita Bruno
Brian estar a dormir e por isso não a surpreendeu. O ritmo e os hábitos de vida do Barão não obedeciam a nenhuma regra. Karin começou a tirar da pasta de cânhamo,
que tinha pousado em cima de uma ampla mesa de madeira escura, papéis e documentos. Começou a examinar os papéis e em algumas folhas sublinhou certas frases com
um marcador amarelo.

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O empregado entrou novamente, com circunspeção, para não distrair a hóspede do seu trabalho, mas também porque aquela presença insólita o intimidava: era uma jovem
encantadora como tinha visto poucas entre as muitas que se sucediam no iate do Barão, mas também era uma mulher misteriosa. Havia nela algo de mágico e sobretudo
de doloroso, por vezes, na expressão dos seus esplêndidos olhos azul-violeta.
Colocou na mesa em frente de Karin um pesado tabuleiro no qual estavam pousados dois copos e um jarro de cristal, com uma tampa de prata, meio cheio de café no qual
flutuavam cubos de gelo. O vidro estava embaciado e Karin sentiu um desejo infantil de lhe tocar com os dedos.
- Eu faço isso - apressou-se a dizer, detendo o empregado que queria servi-la.
- Sua Excelência chegará dentro de momentos - anunciou Gaetano.
Karin serviu o café num copo largo e baixo de cristal. Bebeu um gole. Era bom, mas não tinha o sabor esperado. Despontavam os primeiros espinhos e a sensação de
serenidade começava a dissolver-se rapidamente para dar lugar a um novo estado de espírito.
O anúncio de Gaetano tinha-lhe acelerado o batimento cardíaco. "Sua Excelência chegará dentro de momentos." Poucas palavras, mas tinham feito desaparecer o equilíbrio.
Era sempre assim quando estava prestes a encontrar-se com Bruno: a mesma angústia extenuante, que lhe provocava uma aflição que não conseguia dominar. Inevitavelmente,
quando ele estava prestes a aparecer, desencadeava-se nela um mecanismo incontrolável, um emaranhado de medo e de desejo, de amor e de ódio, um prazer dolente que
lhe atormentava o estômago. De todas as vezes tentava dominar-se, mas Bruno Brian deixava-a inquieta, nos limites do pânico.
Bebeu um longo trago de café e sentiu um certo alívio. O calor tinha-se tornado insuportável: o ar condicionado não podia nada contra aquela tensão.
Antes de o conhecer, a aura de lenda que circundava o personagem tinha-a fascinado e durante muito tempo acalentara a esperança de poder vir a conhecê-lo. Depois,
um dia ouviu a sua voz ao telefone: era uma voz quente, profunda, decidida, uma voz que parecia feita expressamente para pronunciar palavras de amor. Naquele dia
Karin estava a arrumar a secretária no escritório do

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advogado Paolo Brancati quando tocou o telefone da linha direta do patrono: o telefone vermelho cujo número poucos clientes importantes conheciam.
- Escritório do Dr. Brancati - respondeu.
- Quem está ao telefone? - Havia irritação e contrariedade na voz do outro lado do fio.
- Sou a secretária do Dr. Brancati... senhor... posso saber o seu nome? - Era uma colaboradora exemplar, sabia o que tinha a fazer e contava com um sólido profissionalismo.
Isso dava-lhe uma sensação de segurança que fazia dela um elemento insubstituível.
- Sou Bruno Brian. - A voz era clara e forte como uma nota de órgão. Ela deixou escapar um involuntário "oh" de espanto. Mas recuperou imediatamente e acrescentou:
- Sinto muito, mister Brian. O Dr. Brancati ficou retido em Roma devido à greve da companhia aérea. Não sei dizer-lhe quando regressará a Milão.
- Peça-lhe para me ligar logo que chegue.
- Eu posso contactá-lo telefonicamente. Se achar...
- Não é preciso. - Palavras comuns mas que exerceram sobre ela o efeito de um chamamento irresistível.
- Como desejar, mister Brian.
- Como se chama?
- Karin, mister Brian. Chamo-me Karin Venier.
- Adeus, Karin. - E desligou.
Ficou com o auscultador na mão e fitava-o em êxtase, da mesma maneira que uma menina pobre olha para a montra de uma loja de bonecas. Tinha 22 anos e trabalhava
naquele escritório há poucos meses. O ilustre especialista em Direito Civil tinha-a literalmente roubado a um colega quando se apercebeu, ao encontrá-la no tribunal,
da sua extraordinária eficiência. Aquela jovem encantadora, com o seu meticuloso profissionalismo, conseguia até fazer passar para segundo plano o seu encanto de
mulher. Quando Karin, muitos meses depois do telefonema, encontrou Bruno Brian pela primeira vez, uma girândola de sensações começou a rodopiar-lhe entre o coração
e o cérebro. Naquele momento caíram todas as suas certezas, exceto uma: estava convencida de que nunca vira um homem tão belo, um homem tão viril. No momento em
que Brian lhe apertou a mão, fitando-a com os seus singulares olhos cinzentos, quase se sentiu desfalecer.

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Desde esse dia, sempre que tinha de se encontrar com ele sentia-se irremediavelmente estúpida, vazia, prisioneira de um feitiço. Karin tinha consciência do seu próprio
fascínio e sabia que bastaria muito menos do que um gesto para ir parar aos braços daquele homem apregoadamente muito sensível à beleza feminina, mas não era aquilo
que ela queria. Uma noite de amor com Bruno Brian, para recordar durante toda a vida, podia ser a aspiração de muitas mulheres; mas ela, Karin, era diferente, algo
de tremendo que não conseguia esquecer impedia-a de se comportar como uma mulher normal.
A aventura de uma noite iria sobrecarregar com mais uma vergonha a mancha negra do seu passado: era uma liberdade que não podia conceder a si mesma, um risco que
não podia correr, um luxo a que não se podia permitir. Provavelmente, comportava-se de um modo irracional e pouco razoável, mas a mortificação do corpo, o voto a
uma castidade total, a ideia de que nenhum homem a poderia profanar, dava-lhe um certo alívio, quase um subtil prazer. Só a negação total do sexo mitigava a lembrança
das atrocidades a que tinha assistido, do ultraje que tinha sofrido.
A figura de Bruno encheu o vão da porta como uma aparição. Karin, que o esperava, sentiu ainda assim um leve sobressalto e o seu coração iniciou um descontrolado
galope.
- Bem-vinda a bordo do Trifoglio. - O homem sorriu e apertou a mão que ela lhe estendia. Tinha uns dentes branquíssimos, fortes.
- Muito gosto em vê-lo, mister Brian - disse ela, conseguindo parecer calma.
- Sinto muito por a ter feito esperar - desculpou-se, enquanto lançava um olhar rápido ao Patek-Philippe lunar que trazia no pulso e que Karin sempre lhe tinha visto.
- Provavelmente, fui eu que cheguei demasiado cedo - disse ela, esforçando-se por manter uma imagem estritamente profissional. Bruno sentou-se na poltrona em frente
a Karin. Vestia umas calças de sarja verde-azeitona e uma camisa da mesma cor de manga curta, aberta no peito.
- Então? - perguntou, adaptando-se ao esquema imposto pela sua hóspede. - Estou a ver que já expôs a sua mercadoria - gracejou, referindo-se aos papéis ordenados
em cima da mesa.
- Trouxe os documentos de que precisa - disse.

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Bruno anuiu, ao mesmo tempo que se inclinava sobre a jovem e a observava de cima a baixo com os seus estranhos olhos cinzentos.
- Se quiser, podemos examiná-los juntos - prosseguiu Karin.
Apercebeu-se de um aperto no estômago e sentiu que as pernas lhe tremiam. Eram os olhos dele que a deixavam pouco a vontade, olhos cinzentos de mil e um matizes
que em função dos estados de alma passavam da doçura da madrepérola à dureza do aço. Também os lábios, suaves e bem desenhados, o nariz forte e bem proporcionado,
o físico magro e a elegância inata tinham tido o seu papel, mas Karin, desde o primeiro momento, fora iluminada por aquele olhar imenso que sabia exprimir todas
as gradações das sensações humanas: da inocência infantil a crueldade meditada.
- Vamos vê-los juntos - aprovou Bruno. Parecia ter renunciado a esclarecer o complicado enigma que tinha à frente.
- Mister Hachette gostaria de se encontrar consigo amanhã - comunicou-lhe.
- Amanhã? - replicou, num tom pensativo. - A que horas?
Gaetano serviu silenciosamente a Bruno uma forte dose de bourbon com gelo.
- Às horas que preferir, mister Brian. O hábito do autocontrolo projetava a imagem irrepreensível da secretária perfeita. Karin falava com aparente desenvoltura
e esforçava-se por se concentrar nos papéis para não encontrar os olhos cinzentos de Bruno, para não ver aqueles fartos cabelos castanho-escuros, macios, ligeiramente
ondulados, que lhe ensombreciam a testa, conferindo-lhe um ar quase descontraído, fazendo-o parecer muito mais jovem do que os seus 37 anos. No peito via-se um pequeno
trevo de ouro pendurado num fio. Era o único adorno que Bruno usava.
Bruno deixou-se cair contra as costas da poltrona, cruzou as pernas, enquanto observava aquela mulher maravilhosa sem a ver.
- Portanto, mister Hachette quer falar comigo - disse, ao mesmo tempo que no seu olhar passava, rápida, uma sombra de contrariedade.
- É essa a mensagem, mister Brian - confirmou Karin, enquanto compunha os papéis que estavam perfeitamente em ordem.
- Percebo. - Apoiou o cotovelo no braço da poltrona, segurou a ponta do queixo entre o polegar e o indicador e, na galeria das recordações,

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identificou a figura do porta-voz da poderosa empresa financeira americana IBB com a qual mantinha relações de negócios há cinco anos.
- Disse amanhã? - perguntou.
- Amanhã - confirmou a jovem.
- Portanto, têm pressa. - Toda aquela premência não deixava augurar nada de bom.
Karin tinha intuído isso, apesar de a ela, naquele preciso momento, não lhe importarem rigorosamente nada os negócios de Bruno Brian com a IBB.
- Eu também acho que estão com pressa - observou sem entusiasmo.
Havia uma preocupação bem mais incomodativa que lhe roía a mente, uma ideia obsessiva que não a abandonava desde que partira do aeroporto de Milão para se encontrar
com Bruno. Quem seria a mulher que o tinha acompanhado naquela última viagem no Trifoglio? Enquanto desenvolvia mecanicamente o discurso de trabalho, surgia de uma
forma cada vez mais insistente na sua fantasia a imagem perturbadora da mulher que provavelmente Bruno tinha deixado na cama para ir ali ao escritório ter com ela.
Porque devia haver uma mulher. E aquela certeza fazia-a enlouquecer de ciúmes.
- Era assim tão difícil avisar-me com alguma antecedência? - perguntou Bruno.
- O Dr. Brancati tentou entrar em contacto consigo - disse com uma voz calma e impessoal. - Tentou durante vários dias. Não conseguiu.
- E onde está ele agora? - Bruno bebeu um trago de bourbon.
- Partiu ontem para os Estados-Unidos. - Aquele calmo olhar azul-violeta não traía nenhum mal-estar.
- Mas a Karin veio, sem hesitar. - Os olhos cinzentos de Bruno sorriram de satisfação.
- Foi mais ou menos isso, mister Brian. - Os seus lábios macios encresparam-se de ironia. Sentia-se orgulhosa por ter escolhido mais uma vez a solução correta.
- Há mais alguma coisa para além dos documentos? - perguntou, com aparente desinteresse.
- O Dr. Brancati encarregou-me de lhe dizer que em Washington pretende esclarecer o mistério da África do Sul. Há dois meses que não são autorizados os fornecimentos
ao Burhwana. Toma ainda a liberdade de

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lhe sugerir que tente ganhar algum tempo com mister Hachette. Em qualquer caso, vai ligar-lhe esta noite. O mais tardar amanhã.
- Muito bem - anuiu a sorrir.
Se Bruno estava preocupado não o deu a entender, nem sentiu a necessidade de comunicar a Karin onde estava nos dias em que o responsável de um dos seus três escritórios
de advogados - os outros dois eram na Cidade do Cabo e em Paris - o procurara desesperadamente.
- E estes documentos? - Karin indicou os papéis ordenados em cima da mesa.
- Vou ter muito tempo para olhar para eles mais tarde.
- Como preferir, mister Brian.
Karin pensou que Bruno, naquele momento, devia ter outras coisas na cabeça. Não precisava da sua sensibilidade nem da sua imaginação para perceber que quando andava
toda a gente atrás dele e ele não aparecia é porque estava escondido em qualquer sítio com uma nova mulher. Talvez a mesma que naquele momento se encontrava no quarto
do Trifoglio. Ou talvez uma outra. Ninguém a impedia de pensar que muitas mulheres se sucediam naquele barco. Mas haveria realmente uma mulher a bordo? Karin tinha
uma enorme vontade de descobrir. O desejo e o medo de saber alternavam-se tumultuosamente no seu espírito.
- Não me resta senão agradecer-lhe, Karin - disse Bruno. A conversa tinha terminado.
- Muito bem. - Resignou-se a ter de o deixar. Tratava-a como um terminal eletrónico, como uma calculadora. Mas não era isso que ela queria, no fundo? Amaldiçoou
aquelas estúpidas contradições. - Então já posso ir - concluiu.
- Vou precisar de si durante uns dias. - Bruno tinha o talento do golpe de teatro e aquele súbito volte-face provocou uma nova perturbação em Karin. As pernas tremeram-lhe.
- Durante uns dias? - perguntou.
- Espero poder contar consigo - disse, dando como certa a sua disponibilidade.
- Sim, pode contar comigo - ofereceu-se, sustendo por um instante a respiração.
- Prefere instalar-se aqui ou quer mudar-se para o pavilhão da Cannebiers?

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Bruno possuía, na baía de Cannebiers, no interior de um parque que descia em direção ao mar, uma esplêndida casa-jardim desenhada para ele pelo arquiteto inglês
Bob Wilson e decorada pelo italiano Edoardo Conti Cremaghi, de Milão. Era uma construção de um só piso, com grandes janelas envidraçadas que davam para uma piscina
de mármore branco de Carrara, rodeada por uma estupenda mata mediterrânica. No interior, as paredes de um castanho quente e o pavimento de tijolo faziam sobressair
o mobiliário: divãs amplos de uma candura monástica, mesas baixas imensas e algumas esculturas em terracota inglesa do século XIX. Os dois quartos eram minúsculos,
assim como as casas de banho, mas eram autênticas jóias na sua elegante simplicidade.
Karin, numa fração de segundo, tomou a sua decisão.
- Fico muito grata pela sua hospitalidade, mister Brian - disse. - No entanto, se me é permitido escolher, preferia dormir a bordo.
- O fascínio irresistível do mar? - Havia uma intenção irónica na sua voz, quase como se intuísse os pensamentos secretos da sua hóspede.
- A fantasia infantil de dormir num barco - mentiu Karin.
Na realidade, era a forma mais simples e direta para poder ver finalmente com os seus próprios olhos uma das mulheres sensuais que animavam o ócio de um dos homens
mais fascinantes do mundo.
- O Gaetano vai levá-la aos seus aposentos - disse, como um perfeito anfitrião.
Um leve rubor aflorou sobre o belo tom de alabastro de Karin. - Há o problema do motorista - disse, preocupada.
- Deixemos o Gaetano resolver isso. - O empregado surgiu misteriosamente. Já tinha sido informado de tudo. - Avisa o motorista da menina Venier - disse o Barão.
Gaetano fez uma vénia e sorriu.
- Com certeza, Excelência. - Andava de um lado para o outro como uma sombra.
- Eu pensava regressar a Milão esta noite - continuou Karin, quando ficaram novamente sós.
- Era assim tão importante? - Parecia uma conversa entre um homem e uma mulher que acabam de se encontrar e que estão com vontade de se conhecerem melhor.

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- Não - desdramatizou ela. - A questão é que não trouxe nem uma escova de dentes.
Bruno olhou para ela com ironia e acrescentou: - As boutiques de Saint-Tropez estão à sua disposição. - Parecia uma frase decalcada de um guião cinematográfico capaz
de enlouquecer qualquer mulher. Também em Karin, habituada às extravagâncias de certos meios, teve o seu efeito.
- Não estão fechadas a esta hora? - perguntou Karin, que não frequentava habitualmente os locais da moda.
- Creio que não. Nesse caso, eu ensino-lhe a palavra mágica que tem o poder de fazer abrir as portas fechadas.
- Todas? - perguntou ela, num tom vagamente provocatório.
- Muitas - disse.
- Agradeço-lhe - repetiu, não sem algum embaraço.
- Escolha tudo aquilo de que não tem rigorosamente necessidade aconselhou-a, divertido. - Não há nada mais necessário do que as coisas inúteis. Parecem mesmo ser
aquelas sem as quais não podemos absolutamente passar. - Levantou-se e tocou-lhe as costas da mão com os lábios, provocando-lhe um arrepio.
- Está bem - concordou Karin. - Até logo, então. - Sabia que não precisava de se preocupar com a conta e que se quisesse podia comprar um guarda-roupa inteiro nas
lojas viradas para o porto. Mas Karin não se ia aproveitar da generosidade de Bruno Brian, apesar de gostar loucamente de coisas inúteis, como toda a gente, de resto.
O seu salário de secretária com funções diretivas, apesar de ser comparável ao de um bom diretor de empresa, permitia-lhe uma vida desafogada, mas não lhe dava a
possibilidade de comprar vestidos assinados por Dior ou Givenchy. A tentação era forte, mas limitar-se-ia ao indispensável: um vestido para mudar, uma camisa de
noite, um fato de banho e algumas peças de roupa interior. Os acessórios de toilette, desde a escova de dentes ao roupão e A água de colónia, iria encontrá-los nos
aposentos dos hóspedes. Nunca tinha usado maquilhagem, como se receasse sublinhara sua beleza que, porém, fosse qual fosse o castigo que lhe impusesse, era sempre
notável.

Estava uma noite esplêndida e sentiu-se acariciada por uma brisa agradável. Respirou com voluptuosidade o aroma do mar, das flores e dos pinheiros e sentiu-se mais
tranquila, novamente serena. A perspetiva de

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alguns dias em Saint-Tropez na companhia de Bruno Brian era sempre, em qualquer caso, um delicioso imprevisto. Dirigia-se ao convés quando se apercebeu de que estava
a ser seguida.
- Boa-noite, menina Karin - cumprimentou uma voz profunda atrás de si.
Karin voltou-se e reconheceu imediatamente don Calogero Costa, Calò para os amigos, um gigante loiro, maciço e resoluto como um antigo guerreiro normando. Tinha
uma cabeleira branca imaculada com reflexos metálicos e era a sombra do Barão. Só pouquíssimas pessoas no mundo estavam ao corrente dos efetivos interesses de Bruno
Brian, habilmente mascarados com a lenda de playboy internacional, mas havia uma única pessoa que sabia tudo sobre ele. Essa pessoa era Calò Costa.
- Boa-noite, Calò - Karin sorriu-lhe.
- O senhor Barão pediu-me para a acompanhar - continuou, com o seu inconfundível sotaque siciliano. Eram todos sicilianos a bordo do Trifoglio, mas o gigante loiro
de cabelos de prata era o mais siciliano de todos. Era o personagem mais singular na vida de Bruno Brian Sajeva. Onde estivesse Bruno estava Calò. Cabe era tudo:
criado, irmão mais velho, motorista, segurança, guarda-costas, anjo da guarda, conselheiro, amigo, pai.
- Não vale a pena incomodar-se - disse Karin. - Posso ir sozinha.
- Sinto muito, menina Karin - rebateu Calò. - O senhor Barão pediu-me para a acompanhar - repetiu.
Karin tinha percebido e sorriu-lhe. Se Calò tinha decidido assim, não havia nada a fazer. Dirigiu-se a prancha e Calò foi atrás dela.
- Não vamos demorar muito - garantiu Karin.
- O tempo não tem importância nenhuma - respondeu ele num tom filosófico, com o seu vozeirão de baixo.
Calogero Costa incutia uma indefinível sensação de embaraço, não só pelo seu volume ciclópico, pelas mãos que pareciam tenazes, pela força imensa que libertava de
todo o seu ser, mas também por alguma coisa de aterrador que brilhava nos seus gélidos olhos azuis. Eram olhos que evocavam imagens de vinganças impiedosas e de
morte. Eram olhos indómitos e cruéis que causavam arrepios. E, no entanto, Calò Costa sabia ser de uma doçura quase maternal. Por Karin nutria um sentimento de grande
ternura e ela, quando Calò lhe dirigia o olhar, sentia-se envolvida por uma confortável capa protetora.

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Provavelmente, nem mesmo o homem saberia explicar a si mesmo as motivações profundas do seu comportamento em relação àquela jovem ou talvez tivesse lido no seu olhar
o sofrimento de um passado que não conseguia esquecer. Sentia-a irmã e filha na dor e no ultraje, apesar de ele vir da sua Sicília de furiosos contrastes, acariciada
pelo mar, queimada pelo sol, estrangulada pela avidez humana e pelo siroco, enquanto ela vinha do verde Tirol, dos grandes bosques e dos campos de urze, da neve
macia e branca como a das fábulas. Karin Venier e don Calogero Costa, duas pessoas fisiológica, familiar, geográfica e culturalmente diferentes, provenientes de
mundos diametralmente opostos, quando se olhavam nos olhos reconheciam-se mutuamente e sentiam alguma afinidade.

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Carmen Ross

Rosalia Paglia, de nome artístico Carmen Ross, não conseguiu conter um grito lancinante: o homem estava a provocar-lhe uma dor atroz. Não queria ter gritado, de
maneira nenhuma, porque o seu desespero dava prazer ao bruto que a sodomizava impiedosamente. Não queria ter gritado porque, no fundo, aquela aventura horrível,
nojenta, em certo sentido tinha sido ela a procurá-la. Por isso, a ideia era resistir, pagando com um silêncio digno o preço da sua vaidade, da sua necessidade de
sucesso, do seu desejo de ganhar dinheiro muito e depressa. O pacto, é certo, não era aquele, mas quando se aceita infinitamente mais do que aquilo que era razoável
esperar, não se pode pôr condições.
Também por isso não queria gritar, para não lhe dar nenhuma satisfação e para colocar um adesivo sobre uma vergonha que nunca mais esqueceria. A tortura que o homem
estava a infligir ao seu corpo era intolerável. Rosalia Paglia, de nome artístico Carmen Ross, tinha já sofrido em silêncio outras dores, mas o brado desumano e
selvagem que irrompeu da sua garganta não era o de um animal ferido, era o grito lancinante de uma pessoa cruelmente humilhada.
- Anda, grita, sua puta! - resmungou o homem, continuando a mover-se e a abanar-se com o inexorável ritmo de um êmbolo mecânico.
- Eu gosto de te ouvir berrar, puta. - Apoiava-se com todo o peso dos seus cento e dez quilos sobre os glúteos da rapariga que parecia ainda mais pequena, frágil
e vulnerável, enterrando daquela forma antinatural naquele corpo sem defesa o seu membro tremendo, um falo monstruoso que as profissionais mais experientes aceitavam
em troca de prémios especiais com mil e uma cautelas, exigindo garantias precisas, recusando

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em qualquer caso aquele tipo de relação a que o homem sujeitava cruelmente Rosalia Paglia, de nome artístico Carmen Ross.
O homem mexeu-se dentro dela até ao último espasmo e depois deixou-se escorregar para o lado da rapariga. A dor acalmou, mas a vergonha encheu-lhe os olhos de lágrimas.
Chorava devagar, baixinho, sem arranjar coragem nem força para sair daquela posição obscena a que o bruto a obrigara e com a qual ela tinha concordado por ingenuidade
e por avidez. Continuava com os olhos fechados contra o antebraço. Não queria ver a sua própria imagem, junto com a imagem nojenta da besta que a tinha tratado com
brutalidade, refletida nos espelhos que cobriam as paredes do quarto.
- A choraminguice irrita-me. - A voz do homem era parecida com ele. Era uma voz gorda, grosseira, rouca e entaramelada. Estava cheio de comida, de álcool e de droga.
- Levanta esse rabo - ordenou - e vai à enfermaria para te medicarem. Já sabes onde é. - Na grande cama azul havia manchas de sangue.
Rosalia Paglia sabia perfeitamente onde era a enfermaria. Tinha visitado quase todo o enorme barco, com oitenta metros de comprimento e catorze de largura, que ele,
Omar Achmal, o nababo árabe, lhe tinha mostrado na noite anterior quando a festa estava a começar. E tinha até perguntado a si mesma para que seria preciso um médico,
dois enfermeiros e um bloco operatório, a que o dono chamava enfermaria, a bordo daquele barco estupendo onde toda a gente parecia gozar de ótima saúde.
Rosalia Paglia, de nome artístico Carmen Ross, era uma pobretana no verdadeiro sentido da palavra. Tinha 20 anos e até aos 14 vivera numa cave húmida e infeta no
bairro de Montecalvario, em Nápoles, com mais sete irmãos, o pai desempregado e a mãe destruída pelas gravidezes e pelo reumatismo.
Tinha crescido naquelas vielas indescritíveis, fissuras malcheirosas que se abriam nas paredes das casas, entre fumos de escapes e riachos fétidos, vivendo diretamente
na rua, no meio de mulheres de todos os tipos e jogadores empenhados em intermináveis partidas de cartas em cima de tabuleiros sujos instalados às portas das casas.
As crianças disputavam o espaço aos automóveis, às motorizadas, aos sacos de lixo e ao lixo sem sacos, sorriam aos Saylor Police dos porta-aviões americanos, idênticos
àqueles que atiravam aos pais chocolate e cigarros nos tempos

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da Libertação. De vez em quando passavam potentes Kawasaky, mas o rugido dos motores não conseguia perfurar o fragor dos rádios e dos gravadores com o volume no
máximo. Quando Rosalia tinha 13 anos, um "mago egípcio" que morava no segundo andar de um edifício degradado da Pignasecca tinha-lhe puxado as cuecas para baixo
em troca de um pastel folhado e metera-lhe na mão o seu membro flácido. Rosalia, que sabia distinguir um bom pai de família de um porcalhão, escapou como uma lebre
por entre as bancas da piazza Carità a devorar o pastel folhado e a rir, ao mesmo tempo que fazia uma gincana por entre fétidos caixotes de peixe pouco fresco e
pilhas de fruta.
Depois, Rosalia juntou-se à banda dos rapazes de Ted Cacace e partiu para ir ao encontro do sucesso. Passou por mil e uma vicissitudes, mas nunca sentiu saudades
daquela espécie de casbah com varandas de ferro cheias de antenas de televisão, nem da casa da piazza Montesanto com terraços inclinados de que até gostava. Longe
de Nápoles sentia-se, em qualquer caso, bastante melhor.
Ted era um bonito rapaz e tinha um certo talento que usava no palco e no quarto. Entretinha-se com a guitarra e com as cuecas de Rosalia, mas não se importava assim
muito se a rapariga estendesse os seus favores aos outros dois rapazes da banda. Executavam velhos e novos temas napolitanos em registo de soft-rock, um rock suave
que favorecia os encontros e despertava o romantismo escondido nos jovens. O dinheiro não era muito, mas comia-se com abundância. Rosalia podia tomar banho todos
os dias e comprar roupa nova. Tinha conseguido mandar alguma coisa para casa, mas não sabia se essas ajudas tinham chegado ao seu destino. De vez em quando vinha-lhe
à ideia o rosto atormentado e triste da mãe. Depois era a música outra vez.
Rosalia tinha uma voz moderna e agressiva, com uma veia melódica que conseguia inserir-se com autoridade nos esquemas musicais da banda. Os rapazes gozavam à vez
dos seus favores, dependendo da vontade, com gentileza e com recíproca satisfação, apesar de ela continuar oficialmente a ser a namorada de Ted, que, com o aumento
do sucesso, se exibia também no quarto de algumas das suas admiradoras.
A banda tinha participado em dois festivais e tinha-se portado bem: tinham conseguido bons contratos e o nome dos Soft-Music figurava já no cartaz de um estabelecimento
noturno de Cannes com casino anexo:

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L'arc-en-ciel. O melhor da zona. Eles exibiam-se antes do espetáculo propriamente dito, mas era já um passo em frente. Tinham imitado os Dire Straits e a operação
fora em parte bem conseguida, apesar de Ted não ser Pick Withers nem John Illsey ou Mark Knopfler. Mas como tinha um ouvido extraordinário, bastara-lhe observá-los
no festival de Sanremo para perceber como poderiam seduzir o público com um isco musical.
Enquanto estava sentada à mesa, antes do espetáculo, Rosalia foi abordada pelo maître.
- Está ali um senhor - disse-lhe com um ar cúmplice - que deseja conhecê-la.
- Que senhor? - perguntou a rapariga, a quem a experiência tinha ensinado a inutilidade do espanto.
- Aquele ali ao fundo indicou com o olhar. - O senhor da mesa do canto.
Era um homem de grandes olhos lânguidos e perversos ornados de longas pestanas, uma pele cor de azeitona que destilava gordura, um sorriso lento e insidioso como
o dos animais ferozes. Empinava com arrogância um ventre enorme apertado dentro de um smoking de shantung de grande qualidade.
- Aquele que está a sorrir para mim? - Rosalia estava divertida com o jogo.
- Aquele que está a sorrir para si. - O empregado já tinha metido ao bolso a sua parte e esforçava-se por merecê-la.
- Quer conhecer-me? - hesitava, fazia-se cara.
- Pergunta se gostaria de ser sua convidada a bordo do Soraya.
- Oh, minha mãe do céu! - deixou escapar, num tom incrédulo. - Convidada a bordo do Soraya. - Arregalou os grandes olhos negros que exibiam ainda uma inocência infantil.
- O Soraya é aquela espécie de transatlântico ao largo de Cannes?
- É o maior iate do mundo.
- Maior do que o do Onassis?
- Muito maior.
- Então o senhor - exclamou - é aquele árabe de quem eu nunca me lembro do nome.
- Mas ele lembra-se perfeitamente do seu, menina - disse, para a convencer. - E aprecia muito a sua arte.

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Não precisava de empurrões para agarrar aquela maravilhosa oportunidade, mas a referência à arte caiu-lhe bem. Através das revistas semanais que lia avidamente,
esperando um dia ali encontrar também o seu próprio nome e a sua própria história, sabia todas as coisas boas, mas infelizmente não todas as coisas más, sobre Omar
Achmal, milionário árabe, anfitrião generoso, desejado por atrizes famosas e princesas, disputado por todas as cortesãs das altas esferas.
- Diz-lhe que está bem - decidiu.
- Esta noite? - O empregado inclinara-se ainda mais sobre ela, assumindo a pose de um abutre.
- Esta noite.
- Vai ter com ele? - Era um profissional meticuloso e preciso.
- Veremos, depois do espetáculo.
- O senhor gostaria de ter a certeza... Rosalia interrompeu-o com um gesto, levantou a cabeça e afagou o pescoço fino.
- Diz-lhe - declarou, fazendo uma boquinha estreita - que me mande buscar a Saint Yves. - Era uma pequena pensão muito agradável e limpa, rodeada de árvores e de
um jardim florido, onde estava hospedada com Ted e os outros rapazes.
O empregado foi transmitir o recado.
"Querem ver que lá em cima há alguém que também gosta de mim?", disse a rapariga para os seus botões, levantando os olhos ao céu.
Comunicou a notícia aos colegas.
- Não te esqueças de nós! - recomendaram-lhe.
- Todos juntos como os mosqueteiros - prometeu solenemente.
- Imaginem os empresários que ele deve conhecer - comentou Ted.
- Basta ele fazer um sinal para nós ficarmos numa situação confortável. Ele diz uma palavra e acendem-se os holofotes para nós.
- Porque é que acham que eu aceitei? Quero singrar, eu. Quero que me apresente a alguém do cinema. Quero tOmar-me uma diva. - Estava fora de si com a excitação e
já simulava na sua fantasia o sucesso de Liza Minnelli num novo Cabaret concebido para ela pelo melhor realizador e pela mais importante casa cinematográfica. -
Meninos, se ele morder, eu nunca mais o largo.
- Quando voltas? - perguntou um deles.

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- Sei lá... Talvez daqui a um dia, talvez daqui a um mês.
- É melhor acalmares - disse Dante, um dos rapazes da banda, enquanto a abraçava com enlevo.
Ciro, o terceiro do grupo, avisou-a. Amava-a mais do que os outros e estava seriamente preocupado com a sua segurança. - Rosalia, tem cuidado. São ricos, não querem
saber das pessoas. Os ricos são gente especial. Precisam de muito pouco para armar confusão. Rosalia fez uns chifres com os dedos e encolheu os ombros. Enfiou o
vestido mais sexy que tinha, um vestido de chiffon vermelho-escarlate com um profundo decote em bico que lhe chegava até ao umbigo e que, dizia ela, a tornava mais
apetecível do que a Raquel Welch. Uma hora mais tarde, pela primeira vez na sua vida, sorria de felicidade dentro de um Rolls conduzido por um motorista de libré.
O interior do automóvel era acolchoado como uma sala de gravações e tudo denotava uma elegância requintada. O cheiro do mogno e da pele, misturado com um perfume
subtil que se desprendia daquela maravilha, produzia-lhe um ligeiro aturdimento. No porto de Cannes, atracada ao paredão oriental, estava uma lancha preparada para
atravessar velozmente meia milha de mar e se encostar à escada de portaló do Soraya: Rosalia Paglia, de nome artístico Carmen Ross, avançava disparada como um míssil
em direção ao sucesso.
Subiu a escada de portaló do iate e chegou à primeira das três cobertas onde o árabe gordo de barriga enorme lhe beijou a mão e a convidou a beber alguma coisa numa
sala como Rosalia nunca tinha visto igual, nem sequer nos filmes americanos. Parecia-lhe que estava dentro de um palácio principesco ou a viajar nas páginas de Mil
e uma noites. Enquanto bebia um champanhe, que detestava, mas que fingia apreciar para não parecer simplória e não desagradar ao anfitrião, ele acariciou-lhe um
joelho. Pareceu-lhe mais melado do que atrevido.
- A menina tem muita sorte - disse-lhe, com um estranho acento gutural.
- E porquê? - Tinha assumido a pose de uma senhora com classe, mas o resultado era pouco convincente.
- Porque Omar Achmal pode fazer a sorte de qualquer pessoa.
- E o que é que uma pessoa deve fazer para ter a sorte de Achmal?
- Deve fazer as coisas que Achmal gosta. - Nos olhos lânguidos e

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perversos do homem, escurecidos por umas longas pestanas, passou rapidíssimo um lampejo diabólico. - Gostaria de visitar o meu barco, menina? - Havia naquele "menina"
uma carga de violência que iria explodir em breve.
Rosalia estava ainda demasiado excitada para ficar inquieta. - Com certeza - disse -, mas o senhor nem sequer sabe o meu nome.
- O nome dos outros é uma convenção, menina. A mim não me interessa saber o nome das pessoas. A mim interessa-me que as pessoas saibam o meu nome.
Rosalia tentou ainda sorrir, mas acabava de experimentar uma sensação de desconforto.
- Então quer ver o barco? - E mais uma vez o árabe ostentou o seu sorriso feroz.
- Certamente. - Rosalia fez um gesto afirmativo, inclinando-se ligeiramente com uma grotesca falta de jeito. Achava que estava preparada para tudo e ainda não sabia
que o mal nunca tem fim.
O árabe avançou à frente dela através de salas e salões, para cima e para baixo pelos três andares do barco, utilizando um elevador forrado de veludo. Por todo o
lado havia alcatifas imaculadas, tapetes preciosos, sedas, brocados, e no ar pairava um subtil perfume adocicado. De vez em quando cruzavam-se com um marinheiro
ou um empregado. Era um barco cheio de gente.
Finalmente, levou-a para uma sala onde estava preparada uma mesa para o jantar de duas pessoas. Um mordomo silencioso e eficiente afastou a cadeira para que ela
se pudesse instalar sem executar mais nenhum movimento além do de se sentar. Havia pratos de porcelana sobre uma toalha da Flandres bordada, copos de puríssimo cristal
e talheres de ouro maciço. No prato colocado à frente de Rosalia havia um pequeno embrulho.
- É para mim?
- É para ti, menina.
Rosalia abriu-o e quando levantou a tampa da elegante concha de camurça negra surgiu um anel com um considerável rubi oval rodeado de diamantes que emanavam fulgores
vivíssimos. Estava no auge da alegria e Pensou: "Afinal será assim tão fácil realizar os sonhos?"
- É uma brincadeira? - O realismo cru da menina crescida nas vielas do bairro de Montecalvario tinha recuperado a dianteira.

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- Não. É tudo verdade. - O rosto sensual do árabe estava imóvel, oleoso e sombrio como o mar antes de uma tempestade. - Queres saber quanto custa? - perguntou com
uma voz indolente.
- Não, porque se souber dá-me um ataque. - Tinham acontecido demasiadas coisas insólitas num tempo muito curto.
O homem aproximou-se dela, inclinou-se para lhe beijar a mão e a rapariga viu um grande crânio devastado pela calvície no qual estavam colados alguns cabelos negros.
Pela primeira vez, sentiu náusea e teve medo.
- Não custa nada, menina. - O papel de milionário desinteressado não se adaptava minimamente a ele, estava a jogar ao gato e ao rato. Estava a preparar a armadilha
na qual Rosalia acabaria por cair.
- Nada? - A rapariga tinha decidido não impor limites à sua degradação e entretanto comia e bebia tudo aquilo que o silencioso empregado lhe servia. O champanhe
dava-lhe euforia, era o anestésico que adormecia o que restava dos seus princípios morais.
- Podes passar a noite comigo? - Finalmente, assumia o que pretendia. Parecia um ator principiante no papel do jovem galanteador.
- Consigo? Mas onde? - Também Rosalia tinha um papel naquela comédia e desempenhava-o com uma coqueteria de tom popular, julgando intuir o final.
- Na minha cama. Se tiveres vontade, menina. - O gordo sorriso revelara finalmente as intenções do homem. Tinham desaparecido todas as cautelas. - Mas não és obrigada,
de maneira nenhuma - quis esclarecer.
"Como, não sou obrigada?", interrogou-se Rosalia. "Depois de um presente destes, o que é que uma rapariga honesta deve fazer?" Tinha estado com desconhecidos dentro
de um saco-cama por uma latinha de atum ou por uma Coca-Cola e ia agora fazer-se esquisita com aquela espécie de Ali Babá que a recebia num transatlântico e lhe
punha aos pés um verdadeiro tesouro?
- Chéri - sussurrou-lhe de forma teatral, oferecendo-lhe a sua disponibilidade dar-te-ei uma noite de amor inesquecível.
- Também tu, menina, te vais lembrar de mim. Pela primeira vez na voz indolente e entaramelada do homem vibrava uma nota de absoluta sinceridade. Mais tarde, quando
Rosalia já tinha acabado de engolir tudo, desde o champanhe aos crêpes suzette, o árabe

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levou-a para um quarto cheio de espelhos onde havia um enorme leito azul.
Achmal observou-a enquanto tirava, um após outro, aqueles trapos que já não tinham nada de sensual e viu com avidez emergir aquele corpo flexível e indefeso de que
tinham já desaparecido os sinais de uma longa adolescência, mas não os da subnutrição. Por baixo dos seios pequenos e duros distinguia-se a forma das costelas, os
olhos pareciam maiores e mais negros e os cabelos castanhos e soltos que lhe emolduravam o rosto faziam-na parecer uma menina. Abaixo da cintura estreita de criança
nasciam curvas insuspeitáveis, nádegas redondas, grandes, macias, nas quais o olhar concupiscente do homem mergulhou.
- Lindo - sussurrou o árabe. - Maravilhoso - acrescentou. Depois tirou do bolso um maço de dólares, escolheu uma nota de cem e deixou-a cair no tapete.
- O que é que isso quer dizer? - perguntou Rosalia, baralhada. Apesar do champanhe, começava a sentir-se inquieta com a evolução daquele jogo que, porém, disso já
não tinha nada.
- É teu. É dinheiro teu. Pega nele. - O sorriso cauteloso do homem tinha-se transformado num esgar.
- Posso pegar nele?
- Claro.
- Oh, obrigada. - Cem dólares eram mais do que cem mil liras. Já que a vergonha ia permanecer de qualquer maneira, mais valia medicar a ferida com o lenitivo dos
cem dólares. E baixou-se para apanhar a nota.
- Não, assim não! - Era uma ordem.
- É como, então?
- Com o rabo, menina! Com o rabo! - A voz do árabe tinha-se tornado autoritária e cortante.
- Como?
Rosalia empalideceu.
- Com o rabo! Cem dólares para apanhar com o rabo. Uma pesca milagrosa. As nádegas a pescarem os dólares.
- Com certeza - respondeu descaradamente, movida já pelo medo. - Eu VOU tentar - continuou, esforçando-se por pensar que cem dólares sempre eram uma bela maquia.
Pensava que tinha encontrado uma justificação na

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fome de dinheiro, enquanto na realidade um impulso de autodestruição a empurrava para o fundo.
- Isso, muito bem - disse o árabe, satisfeito.
Havia algo de degradante na contorção daquele corpo de menina, que era uma mulher da cintura para baixo, enquanto tentava pescar com os glúteos uma nota de cem dólares
fazendo-a pegar-se à pele como um selo. Para apanhar a nota era obrigada a assumir posições obscenas que punham Achmal em êxtase.
- Muito bem, menina. Mesmo muito bem - exultou, no momento em que Rosalia se apoderou da nota. O homem repetiu o número mais cinco vezes e cinco vezes a rapariga
executou aquela indecorosa manobra.
As notas foram parar à bolsa de strass juntamente com o rubi rodeado de diamantes. O resultado da pesca era considerável e Rosalia sentia prevalecer o desejo de
acabar com a brincadeira. Mas não era ela quem conduzia o jogo, ela era apenas uma marioneta. A partir do momento em que tinha posto os pés no Soraya, ficara prisioneira
de um mecanismo perverso que só o árabe podia travar.
O homem pegou numa nota de mil dólares.
- Também queres esta?
- O que é que eu tenho de fazer? - Desta vez estava em jogo mais de um milhão de liras.
- Tens de me desapertar os cordões dos sapatos.
- Só isso? - Já tinha ouvido falar muito de perversões, mas não conseguia entender que prazer poderia sentir um homem em pagar mil dólares para lhe desapertarem
os sapatos.
- Também vais ter de os descalçar - esclareceu.
- Tudo bem. - Rosalia inclinou-se com paciência e começou a mexer nos cordões dos sapatos.
- Assim não.
- Então como? - perguntou, imediatamente alarmada.
- Com os dentes - ordenou.
- Mas não é possível.
- Por mil dólares é possível. De gatas. Como uma cadela.
Rosalia olhou para ele com um olhar aflito. Ela nua, aninhada aos pés dele, ele vestido e imponente na sua brutalidade. Sentiu um nó apertar-lhe a garganta.

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- Com os dentes?
- E de gatas. Como uma cadela.
O que aconteceria se naquele momento, nua como uma alforreca, agachada como uma cadela, indefesa como uma criança, começasse a declamar a cena do orgulho ferido,
depois de ter aceitado a hospitalidade, o anel com o rubi e os brilhantes, depois da obscena pesca dos dólares? Mais valia continuar. Pôs-se de gatas e aproximou
a face dos sapatos do árabe. Naquele momento os espasmos foram violentos e incoercíveis e a rapariga vomitou, atirando-se instintivamente para um canto da alcatifa
imaculada. Pareceu-lhe ser aquele o momento esperado pelo homem. Agarrou-a pelos cabelos, levantou-lhe a cara e meteu-lhe debaixo do nariz um pó branco.
- Cheira isto, puta!
- Não - arregalou os olhos, desesperada -, droga não!
- É cocaína puríssima, imbecil. Manteve-a agarrada pelos cabelos e obrigou-a a inalar o pó. Rosalia sentiu-se sufocar, teve a sensação de que morria. Parecia-lhe
que tinha ficado sem nariz, sem boca, sem cabeça. Depois o quarto começou a girar vertiginosamente numa obscena sarabanda de imagens refletidas nos espelhos. Já
não distinguia nada, mas sentiu o peso do macho que a esmagava, o seu falo desmesurado que a penetrava daquela forma antinatural, a voz entaramelada e ultrajante
que acentuava a sua humilhação e agigantava o prazer do homem. Depois, aquele grito lancinante.

- Levanta esse rabo - ordenou o árabe pela segunda vez, mas com a firme intenção de ser obedecido. - Já sabes onde é a enfermaria. - Estava plenamente satisfeito,
tinha sono, estava agradavelmente cansado e não tinha remorsos. Tinha pago pelo seu prazer perverso mais dinheiro do que aquela putazinha podia ganhar em cinco anos
de cançonetas insípidas. E então?
Rosalia já não sentia nada. Com dificuldade, conseguiu, nua como estava, arrastar-se até à porta do quarto sem se preocupar em tapar-se com O vestido abandonado
sobre a alcatifa, um farrapo vermelho como o sangue que lhe escorria quente e viscoso por entre as coxas.

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Alguma coisa a atingiu violentamente nas costas: era a bolsa com o anel e os dólares.
- Isso é teu, pode sempre dar-te algum jeito.
Baixou-se para a apanhar.
- Cobre-te que me metes nojo - ordenou o homem.
Rosalia abriu a porta e encontrou à frente um marinheiro que lhe estendia um grande lençol de banho para ela se embrulhar.
- Venha comigo - disse-lhe, enquanto a ajudava a cobrir-se.
Lágrimas silenciosas e ardentes começaram a correr no seu belo e inocente rosto de menina traída. Pela primeira vez sentiu saudades das vielas de Montecalvario e
recordou o rosto cansado e resignado da mãe. Deixou-se levar silenciosamente pelo homem em direção ao elevador que conduzia a enfermaria. A sua última recordação
foi a bolsinha vermelha de strass, que mantinha desesperadamente apertada. Depois desmaiou.
Acordou numa maca, em posição ginecológica, com as pernas pousadas nuns apoios de metal cromado revestidos de espuma de borracha e cobertos de plástico.
Um médico loiro, muito jovem e de aspeto agradável, assistido por um enfermeiro de bata verde, estava a fazer-lhe qualquer coisa. Talvez estivessem a cozer as feridas
e deviam tê-la anestesiado porque não sentia nenhuma dor. Intuía tudo isto pelo tilintar dos ferros, pela atenção profissional que o cirurgião e o seu assistente
punham naquele trabalho.
- Acho que agora está tudo direito - disse o médico, com uma ponta de satisfação profissional.
Rosalia fechou os olhos. Como podia um homem jovem, bonito, com aquela expressão honesta e elegante fazer um trabalho tão aviltante? Ela vinha dos esgotos de Montecalvario,
mas ele tinha estudado, tinha andado na universidade, tinha tirado um curso. Porquê obedecer As ordens daquele árabe desumano?
Ouviu uma voz que dava instruções em francês sem perceber de onde provinha: - Vistam-na. Metam-na numa lancha e levem-na para terra. Não para Cannes. Para uma praia
qualquer. Tenham cuidado para que não perca o seu pequeno tesouro. Vai precisar dele.
Mais uma vez, Rosalia perdeu os sentidos.

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*

Calò Costa estava sentado no areal a gozar a calma respiração do mar, que vinha de solidões antigas como o vento e a chuva. O lamento prateado das estrelas sulcava
o céu naquela mágica noite de agosto e o homem forte reencontrava as infantis comoções da criança que tinha sido quando, na praia do Vale dos Templos, em Agrigento,
procurava na perfumada respiração do mar uma carícia que o consolasse. Fugia do casebre vergonhoso onde um patrão o tinha instalado, roubando horas preciosas ao
sono, para se deixar afagar pelo vento tépido que soprava em direção ao vale, onde se encontravam aqueles vestígios de civilizações longínquas.
Calò em criança tinha aprendido a sorrir ao mar e às estrelas, oferecia ao infinito o seu rosto queimado pelo sol e parecia-lhe que uma mãe, a mãe que nunca conhecera,
lhe pegava ao colo e o apertava contra o peito, entornando sobre a sua cabeça doces e consoladoras palavras de amor. Calò era agora um homem mais próximo da velhice
do que da juventude, tinha passado os 50 anos há algum tempo, mas os horrores que os seus olhos tinham presenciado e o que ele mesmo tinha praticado tinham-no marcado
profundamente. Parecia-lhe no entanto, mesmo na sua existência tumultuosa, que nunca tinha perdido o respeito por si e pelos amigos. Por isso continuava a viver
e a amar a calma respiração da noite, apesar de saber que não era o melhor dos homens.
Quando regressou a bordo do Trifoglio, depois de ter acompanhado Karin às compras, eclipsou-se prudentemente. As pessoas que vinham a bordo prestar homenagem ao
Barão pertenciam a uma classe com a qual não tinha nada a ver. Por outro lado, Bruno, naquela noite, não precisava dele. E Karin tinha resolvido rapidamente os seus
problemas.
Comeu peixe frito no Gorille, um sítio razoavelmente aceitável, que regou com uma garrafa de Borgonha que não valia um excelente Chianti de Bad ia a Coltibuono,
um dos poucos vinhos em que o Barão confiava.
Os franceses sabiam fazer muito bem as coisas no que toca a etiquetas e publicidade, mas quanto à qualidade não valiam tanto como isso. Tinha jantado de cabeça baixa,
esticando as orelhas de vez em quando como um velho lobo solitário. Depois dirigiu-se ao bar do Tahiti Beach.
O pretexto era beber uma gota de conhaque velho, mas na realidade esperava encontrar uma mulher que conhecera e com quem tivera uma

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relação no ano anterior. Trabalhava como esteticista na imensa tenda-salão de beleza da praia. Chamava-se Linda, tinha cerca de 40 anos e sabia fazer um homem feliz.
Conhecera-a às voltas com um granizado num canto do bar e tinham simpatizado um com outro imediatamente. Linda, tal como ele, era de origem siciliana, apesar de
ter nascido em França. No ano anterior, durante alguns dias, tinham-se divertido bastante e, se ele bem entendera a situação, estava convencido de que se se voltassem
a encontrar ela não o rejeitaria.
Linda não estava lá. Um jovem de sorriso lânguido, olhar cintilante e brinco de ouro explicou-lhe que a mulher trabalhava no Byblos. Calò agradeceu com um grunhido,
voltou a entrar no Rover e partiu em direção à baía de Cannebiers. Já que não podia estar com Linda e que uma mulher qualquer não lhe ia dizer nada de especial,
decidiu satisfazer o seu desejo de mar, de vento e de solidão.
O pavilhão que Bruno possuía em Cannebiers, rodeado por uma mata de pinheiros que descia até ao mar, era o sítio ideal. Ali ninguém o incomodaria. Circundou aquela
fantástica casa sem sequer entrar, apesar de ter as chaves.
Sentou-se no areal, naquela noite mágica, cintilante de estrelas. Estava preocupado com Bruno. As notícias trazidas por Karin a propósito de mister Hachette e da
IBB não auguravam nada de bom. Era mais do que uma sensação, mais do que uma suspeita: o facto de terem suspendido as encomendas ao Burhwana era o sinal inequívoco
de que os americanos da IBB queriam despachar Bruno Brian.
Um ruído incomodativo, quase impercetível, chegou do mar, quebrando aquela voz antiga. Num primeiro momento, Calò pensou que fosse impressão sua, mas depois o zumbido
concretizou-se no ruído de um motor. Os seus olhos, habituados a ver no escuro, identificaram rapidamente na claridade das estrelas a sombra de uma lancha. Instintivamente,
recuou em direção à mata para observar sem ser visto.
A embarcação não tinha luzes nem sinalização e a poucos metros da praia desligou também os motores. Da sua posição, Calò apenas via sombras que se moviam. Percebeu
que havia pessoas que tinham entrado na água baixa e que caminhavam com alguma dificuldade para terra. Pareceu-lhe que duas pessoas transportavam uma terceira ou,
em qualquer

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caso, que duas pessoas carregavam um fardo bastante grande. Aquilo que os homens abandonaram na praia, antes de se afastarem para regressar a bordo, parecia de grande
volume.
A lancha recomeçou a trabalhar, avançou em direção ao largo e desapareceu na escuridão. Calò) aproximou-se daquela espécie de saco informe e quando viu do que se
tratava não se espantou por se encontrar perante um ser humano, se é que aquele ser humano ainda estava com vida. Uma voz débil provinha do enorme cobertor que envolvia
o corpo. Calò levantou cuidadosamente uma ponta e viu o rosto de uma mulher besuntado de Mon, de rímel e de base, tudo misturado de modo a formar uma grotesca paleta.
A rapariga, que apertava contra o peito uma bolsa, tinha o aspeto patético e doloroso de uma boneca quebrada e abandonada num sótão.
- O que foi que aconteceu? - perguntou Calò, com a sua voz profunda e tranquilizadora.
- Fui violada - confessou a rapariga. Tinha sido interrogada em italiano e em italiano respondera.
- É sempre a nós que acontecem as coisas más - observou Calò, suspirando profundamente, ao mesmo tempo que o seu rosto assumia uma expressão de dor e de raiva.
- Foi terrível - murmurou ao desconhecido.
- Tenta não pensar nisso - aconselhou-a. - De momento, é a única coisa que podes fazer. Depois vê-se. Onde moras?
- Numa pensão. Em Cannes. - Falava devagar, mas com mais segurança. Sentia que podia confiar naquele homem.
- Queres que te leve a casa? - ofereceu-se Calò.
- Acho que nunca mais volto a casa - acrescentou dolorosamente. E não se percebia se por casa entendia o quarto risonho da pensão Saint-Yves ou a cave da viela do
bairro de Montecalvario.
- Também sobre isso falamos depois. - Calò debruçou-se sobre ela e ergueu-a nos seus braços, delicadamente, como se fosse uma criança.
- Quem foi?
- Um animal. Uma besta feroz.
- Diz-me o nome.
- Foi Omar Achmal - confessou Rosalia.

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- Que Deus lhe pague com a mesma moeda - rebateu Calò, com a voz calma de quem tem a certeza de uma terrível vingança. Estava profundamente persuadido de que o Omnipotente
tinha o mesmo conceito de justiça que ele.
- Não chame ninguém, por favor - suplicou-lhe.
- Não - respondeu a sorrir -, quando é que se viu alguém resolver um caso como o teu?
- Há uma coisa mais terrível. Tenho de fazer uma denúncia - insistiu Rosalia.
- Depois vemos... - consolou-a, ao mesmo tempo que se dirigia aos pinheiros que circundavam o pavilhão.
- Tu deves ser muito bom - disse. - Como te chamas?
- Calò.
- Isso chega?
- Chega e sobra.
- Eu chamo-me Rosalia. - A rapariga abandonou-se nos braços daquele gigante desconhecido que a embalava como a uma boneca. Talvez a mãe um dia tivesse pegado nela
assim, mas deveria ser pequena para se lembrar.

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Cada qual no seu lugar

As duas raparigas pararam junto à prancha do Trifoglio. Eram bonitas, de uma beleza suave e sofisticada de cartaz publicitário, vestiam longas vestes indianas, tinham
os cabelos lisos caídos sobre os ombros e na cabeça uma grinalda de flores. Muitas outras grinaldas ornamentavam os braços das duas raparigas, mas não com um fim
meramente decorativo. Os arranjos florais eram oferecidos de barco em barco aos afortunados hóspedes das sumptuosas residências flutuantes que àquela hora repousavam
no convés enterrados em amplas poltronas a tomar bebidas exóticas e a conversar.
As duas insólitas floristas hesitaram um instante porque a prancha do Trifoglio era a mais larga e a mais comprida de todas as que tinham visto e dava acesso a uma
embarcação de dimensões imponentes. Era um verdadeiro navio. Do interior provinham luzes discretas e flutuavam na noite as notas de um trecho de música clássica
difundidas em surdina por uma instalação estereofónica de altíssima fidelidade. No convés estava uma mulher jovem, sentada numa poltrona de madeira coberta de almofadas.
Parecia adormecida. Assim que ouviu um rumor de passos abriu uns extraordinários olhos azul-violeta. Karin ficou irritada: as visitas que tinham subido a bordo para
apresentar os seus cumprimentos ao Barão tinham acabado de se afastar e já se anunciava um novo aborrecimento.
As jovens ficaram intimidadas com aquela beleza perturbadora e altiva. - Des fleurs, mademoiselle? - arriscou a mais audaz, ao mesmo tempo que lhe estendia uma grinalda
de pequenos lírios e flores de buganvília.
- Beautiful flowers for you - murmurou a segunda, com uma voz musical.

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Karin lembrou-se de que num dos bolsos da sua túnica de linho tinha uma nota de dez mil liras. Deu-a em troca da grinalda que lhe estendiam. A doce florista olhou
para a nota como se fosse falsa e Karin tivesse tentado vigarizá-la.
- Seulement dollars, mademoiselle. - A voz da cativante vendedora tinha perdido toda a musicalidade.
- Ou francs - interveio a outra - si vous n'avez pas de dollars.
- Vão para o diabo com a pedinchice! - exclamou Karin.
As raparigas olharam uma para a outra perplexas, aflitas.
- Dollars ou francs - repetiram a cantiga.
- Querem dólares! - explodiu Karin, ao mesmo tempo que se levantava, ficando uma cabeça acima delas. - Estas mendigas de luxo à procura de moedas fortes! Do you
understand? - Como toda a gente que ganha o seu salário, Karin detestava as pessoas que, para além de viverem de expedientes, manifestavam petulância e desprezo
pelas vítimas dos seus próprios esquemas.
As duas jovens recomeçaram a sorrir estupidamente, assumindo a expressão de quem, ainda que com muito boa vontade, não consegue entender.
- Se eu tivesse dólares não estava aqui - continuou, mas falando já consigo mesma. - Se eu tivesse dólares estava de férias no Tirol - esclareceu. - Mas só tenho
umas poucas, miseráveis liras. Sorry. E estou aqui a trabalhar. Ainda por cima, neste momento nem sequer estou de serviço. Por isso, rua! Desapareçam! - ordenou,
sublinhando as últimas palavras com um inequívoco e ondulado movimento da mão direita, que era um convite perentório para se retirarem.
Bruno Brian surgiu no convés a tempo de captar o sentido, aliás explícito, do gesto de Karin. Dirigiu-se às raparigas em inglês.
- A senhora não aprecia as vossas flores - disse com ironia -, que objetivamente estão um bocado murchas - constatou apontando para elas. As duas floristas de Saint-Tropez
olharam novamente uma para a outra com o espanto de quem foi parar a uma gaiola de doidos e voltaram a descer a prancha em direção ao cais, sublinhando com um passo
empertigado a sua desaprovação por aquilo que consideravam um acolhimento completamente inadequado.

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- Era isto que pretendia? - perguntou a Karin, exibindo os seus dentes deslumbrantes.
- Mais ou menos, apesar de saber tratar de mim - acrescentou, quase como uma censura. - Já sou bastante crescidinha.
- Quer dizer que com a minha tenra idade ainda não aprendi a meter-me na minha vida? - Bruno gracejou com a situação, mas talvez houvesse uma ponta de ressentimento
nas suas palavras.
- Eu não queria dizer isso - replicou Karin, mordendo o lábio inferior.
Quando regressou a bordo, depois de ter feito as compras, esperava encontrar Bruno e jantar com ele. Mas o Barão estava ocupado com algumas pessoas que tinham ido
cumprimentá-lo. Por isso acabou por jantar sozinha naquela grande e absurda sala de jantar que dava para vinte comensais. Sentiu-se estúpida e inútil como um manequim.
- O Gaetano esteve à altura da situação, espero - disse. Quando queria, sabia ser frívolo e vazio como alguns dos seus convidados.
- O Gaetano é adorável. - "Mas tu és detestável", gostaria de ter acrescentado.
Obviamente, para além dela e de Bruno, não havia nenhum hóspede a bordo naquele momento. Apercebeu-se disso pelo seu ar descontraído. Provavelmente, se havia alguma
mulher, tinha-a mandado embora enquanto ela andava a dar uma volta pelas lojas. Mas então porque a deixara só durante tanto tempo, como um sapato sem par?
- Quer dizer que eu não sou adorável? - provocou-a.
Da instalação estereofónica flutuavam na noite estival acrobáticas modulações de um grande virtuoso do violino, provavelmente Oistrakh, no célebre rondó do Concerto
para Violino em Ré Maior, de Beethoven.
- O senhor percebe sempre as coisas com muita facilidade, mister Brian. - Era a guerra.
- Posso fazer alguma coisa para a ajudar? - ofereceu-se ele.
- Não acho que esteja a precisar de ajuda - rebateu, pondo-se à defesa.
- A Karin tem imensos problemas - insistiu Bruno. Havia pessoas a Passear no cais: falavam, riam e observavam com curiosidade os barcos atracados.
- Quem é que não tem problemas? - Era um comentário óbvio, previsível, pouco sincero.
- Com certeza - admitiu o Barão -, mas ainda assim eu gostava de

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fazer alguma coisa para a ajudar. Gostava de a ajudar a libertar-se do cinto de castidade que a oprime - disse com um sorriso radioso, sem se preocupar em mitigar
a pesada grosseria da insinuação.
- Era isso que me queria dizer? - Karin sentiu desejos de o matar. A raiva relampejou nos seus olhos e um súbito rubor cobriu-lhe o rosto. Apercebeu-se de que a
indignação a tOmaria ridícula. - A sua experiência em matéria de mulheres - continuou, esforçando-se por sorrir - não deve afinal ser assim tão profunda, se lhe
sugere conclusões tão grosseiras. Pareceu-lhe uma boa saída.
- Está a queimar estupidamente os seus melhores anos - retorquiu. - Impõe a armadura ferrugenta de um mal-entendido sentimento de honra a um corpo fantástico que
grita para ser libertado.
- Um corpo do qual o senhor apenas se lembra - reagiu com uma veemência insuspeita - para fazer uma apreciação indigna de um cavalheiro ou para tentar decifrar as
franjas marginais da sua atividade. O senhor pode criticar-me e interrogar-me sobre a minha atividade profissional. Sou paga para isso. Mas não o autorizo a exprimir
juízos sobre a minha vida privada. Porque o senhor, meu caro mister Brian, na sua infinita presunção, das mulheres apenas conhece o lado horizontal.
- Nem sequer vou tentar dizer-lhe como está linda neste momento afirmou com seriedade. - Parece uma leoa a defender o seu território.
- É a sua filosofia - continuou, sem sequer o ouvir -, a filosofia horizontal da vida. O senhor é um cínico, mister Brian. - Claro, que sentido fazia continuar a
mentir?
- Sexo, dinheiro e poder - concordou o Barão.
- Uma afirmação formalmente banal, mas substancialmente verdadeira. Sexo, dinheiro e poder. Eu não pertenço a essa equação, mister Brian. - Bem podia ele considerá-la
uma mulher inquieta, insatisfeita e cheia de complexos, mas entretanto tinha-lhe dito aquilo que pensava dele.
- É tudo? - Perscrutou-a com os seus olhos cinzentos que, apesar da situação, continuavam a fazer-lhe tremer as pernas e a causar-lhe uma grande perturbação.
- Ainda há mais uma coisa. Queria acrescentar que sobre mim o senhor não sabe nada. Absolutamente nada. - Tinha levantado consideravelmente o tom de voz com a intenção
de ser desagradável. - E não

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permito que ninguém se meta na minha vida particular. Agora, com a sua licença, agradeço-lhe a hospitalidade e regresso a Milão. Pode perfeitamente passar sem mim.
Bruno escutou impassível aquele desabafo, mas quando Karin se mexeu para descer até à sua cabina segurou-a por um braço que apertou até magoar.
- Deixe de se armar em melhor aluna da turma - censurou-a seriamente. - Se acabar por perder também o sentido de humor, vai ficar mesmo mal. - Ele sabia sobre Karin
mais coisas do que ela poderia imaginar. Sabia sempre tudo o que havia a saber sobre as pessoas que, de uma maneira ou de outra, entravam no seu círculo.
- Deixe-me ir ou eu grito - rebelou-se Karin.
- Porque - perguntou, chamando-a à realidade. - Acha que até este momento sussurrou? Olhe à sua volta. Tornamo-nos uma espécie de parque de diversões para a gente
de Saint-Tropez.
Era verdade. No cais tinha-se juntado uma pequena multidão e as embarcações vizinhas pareciam camarotes de teatro. No meio das pessoas estavam também as floristas
desiludidas que ali encontravam a sua desforra, enquanto o repórter fotográfico, da janela de uma casa em frente ao porto, disparava uma série de imagens com uma
teleobjetiva de quinhentos milímetros apetrechada com um multiplicador de luz a raios infravermelhos. Havia uma remota possibilidade de apanhar alguma coisa de definido,
mas era capaz de fazer qualquer coisa, era capaz de passar por cima do cadáver da mãe para causar nem que fosse uma pequena perturbação àquele trombudo omnipotente
e cheio de presunção que o mantinha à distância através dos seus implacáveis gorilas.
A altercação a bordo do Trifoglio estava já definitivamente entregue às crónicas mundanas. Karin libertou-se de Bruno e, com o rosto em chamas pela ira e pela vergonha,
desapareceu na escada que dava acesso ao interior do iate. Ficou longos instantes com a mão apertada em volta do pesado puxador de latão antes de entrar na cabina.
Estava atormentada pelos remorsos por causa daquelas palavras e daqueles gestos desabridos, sentia vergonha daquela discussão que tinha propiciado e mantido e estava
preocupada com o escândalo que ia seguir-se. Gostaria de poder cancelar aquela rápida série de acontecimentos que iriam impedir uma aproximação. Mas

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já não podia voltar atrás. Então chorou como uma criança, desesperadamente, sobre os cacos do seu extraordinário brinquedo. Tinha-o desejado com todas as suas forças
e precisamente quando podia acalentar esperanças de o obter perdera-o irremediavelmente. Entrou e fechou a porta da cabina atrás de si. As lágrimas formavam um véu,
mas depressa começou a distinguir imagens com que nunca tivera sequer a coragem de sonhar. Esfregou os olhos como as meninas dos contos de fadas e passou de espanto
em espanto. Em cima da mesa de cabeceira, em cima da mesa de toilette, ao longo do peitoril da janela, estavam dispostos raminhos de muguet imaculado e miosótis
azuis mergulhados em copos de prata. Em cima da cama, uma caixa larga e baixa atada com uma grande fita prateada ostentava a assinatura de Valentino num elegante
cursivo. Karin abriu a caixa. Macio como uma nuvem, cuidadosamente dobrado, estava um vestido de noite com lantejoulas prateadas: uma simplicíssima túnica comprida,
sem mangas, com um decote redondo pouco pronunciado. Karin ergueu o vestido com mãos trémulas e encostou-o ao corpo em frente ao espelho. Parecia mesmo o seu tamanho.
E, por último, havia, em cima da almofada, uma pequena caixa de camurça cinza-prata no qual viu brilhar uns brincos compridos de pérolas barrocas em gota montadas
em ouro com diamantes amarelos que conferiam àquela jóia um aspeto surpreendente. E, ainda, um bilhete, que dizia:

Para a Karin, vestal incorruptível de um profissionalismo perdido, para que aprenda a gostar um pouco mais de si mesma. Bruno.

- Porquê? - chorava, desolada. - Porquê agora... depois da minha estúpida insolência? Nunca ninguém lhe tinha exprimido a sua estima e talvez até um sentimento mais
profundo com tanta delicadeza. Certamente não usaria nunca aquele vestido, nem poria aquela jóia, mas tinha de voltar a ver Bruno, de lhe pedir desculpa. Tinha de
lhe dizer que não merecia nada daquilo.
Abriu a porta da cabina. Apoiado ao caixilho da porta estava Bruno, de braços cruzados, com um ar paciente de quem sabe tudo e está à espera.

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- Fazemos as pazes? - sorriu e curvou-se em sinal de perdão.
Karin olhou para ele, incrédula.
- Porquê? - sussurrou Karin num sopro, ao mesmo tempo que baixava a cabeça e a abanava devagar, melancolicamente, fazendo ondear os seus incríveis cabelos ruivos.
- Porque sim - respondeu ele, decidido, enquanto lhe apertava delicadamente os braços. - Se passássemos o tempo a responder a perguntas como esta, não nos sobrava
tempo para viver. Karin não se preocupou mais com as lágrimas que lhe inundavam os olhos e lhe sulcavam o belo rosto sem maquilhagem. Como poderia falar-lhe na contradição
de sentimentos da qual nascia a sua angústia, das reminiscências cruéis do passado, das sensações de um presente maravilhoso que, no entanto, a aterrorizava? Como
poderia dizer-lhe que estava perdidamente apaixonada por ele, se chegava ao ponto de negar aquela grandiosa realidade até a si mesma?
Bruno era um homem de ação, mas era capaz de sofrer, sabia que havia uma linguagem dos sentimentos, que não conseguia ler, mas que tentava interpretar. Atraiu-a
a si lentamente, mas de forma resoluta, e não ia voltar atrás. Karin intuiu aquela determinação e deixou-se encostar ao peito dele, respirou aquele cheiro que a
atordoava e pela primeira vez abandonou-se.
- Isso, assim mesmo - murmurou, enquanto lhe afagava os cabelos. - Deixa-te ir. Vive. Karin levantou o rosto para ele: já não tinha o ar aflito da vítima, mas o
de uma mulher que tem uma grande necessidade de viver e de amar. Os corpos de ambos estavam unidos, os lábios prestes a tocarem-se. Uma intervenção decidida e brusca
quebrou aquele encanto. Não era a primeira vez que Frank Lo Cascio, o secretário americano de Bruno Brian, interrompia as conversas íntimas do Barão.
- Brancati, de Washington - anunciou. - É urgente.
Karin soltou-se rapidamente daquele abraço e voltou a barricar-se atrás dos seus complexos e das suas angústias: umas poucas palavras tinham desfeito a sua primeira
e talvez única tentativa de sair do escuro. Assumiu imediatamente o tom e o aspeto profissional que eram a sua farda. Bruno, por seu lado, não teve nenhuma dificuldade
em reentrar na realidade habitual com a imperturbabilidade de sempre.

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Agarrou no telefone do corredor.
- O que se passa? - disse, sem sequer cumprimentar. Escutou brevemente, anuindo. - Parece-me que é uma conversa longa - interrompeu o interlocutor. - Espera. Vou
retomar a chamada no meu escritório.
Deu dois passos no corredor e depois voltou-se a olhar para Karin, imóvel, à porta da sua cabina.
- Anda - convidou-a. Tinha passado ao tratamento por tu como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Karin seguiu-o.
No escritório, sentada no sofá, enquanto Bruno levantava o auscultador, Karin teve ocasião de refletir sobre a sua situação. Também ela, dali para a frente, poderia
tratá-lo por tu? Mas haveria um dali para a frente? Tinha-se criado uma situação mágica que a fez esquecer muitas coisas.
Poucos minutos atrás, Bruno estava prestes a beijá-la e ela ia deixar-se beijar, ia realizar com naturalidade aquele gesto de amor ao qual, neuroticamente, se tinha
sempre negado. Mas, qual era o momento da verdade? O do sentimento acabado de nascer, quebrado como um fino cristal, ou o momento real, reemerso impiedosamente com
uma chamada aos negócios que era também um aviso sobre as suas diferentes condições? Ela amava apaixonadamente Bruno, havia de amá-lo sempre, mesmo que não fosse
um personagem tão importante, mas quais seriam os sentimentos de Bruno por uma jovem de cabelo ruivo e olhar azul-violeta? Ternura? Amizade? Ou apenas a curiosidade
de uma nova aventura? E se fosse piedade? Piedade e ternura por uma mulher muito bonita e atormentada podem acender o desejo de um homem que faz da arte de amar
uma bandeira.
Mas que probabilidades razoáveis teria ela de que Bruno Brian, o cortejado e disputado barão di Monreale, se apaixonasse por ela? O mundo da alta sociedade estava
cheio de mulheres que à beleza juntavam o fascínio da condição e dos milhares de milhões e estavam disponíveis. Porquê logo ela? Porquê logo uma tal Karin Venier,
nascida vinte e seis anos antes no monte San Vigilio, em Lana d'Adige, no Tirol, numa velha casa coberta de neve macia como a dos postais de Boas-Festas? Porquê
ela e não as que tinham nascido ricas, com nomes universais e pedigree grandiosos? Podia considerar-se com sorte e agradecer ao seu espírito de iniciativa se com
aquela cultura superficial do colégio, com a sua extraordinária memória

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e com a sua inteligência tinha conseguido impor-se no seu campo, tornando-se indispensável e transformando-se numa secretária muito bem paga.
Os homens que se tinham aproximado dela com diversas intenções, mas sempre com o mesmo objetivo, tinham imediatamente sentido a impenetrável couraça daquela espécie
de Joana d'Arc. Era uma mulher de impossível classificação: não procurava protetores, nem namoros, nem aventuras, nem propostas matrimoniais. Esforçava-se por dar
aos outros a imagem de uma criatura assexuada, ainda que lindíssima, unicamente interessada no seu próprio trabalho. O resultado era o de suscitar inquietantes suspeitas,
das quais não se excluía a de uma secreta inclinação pelo seu próprio sexo.
Karin não queria saber daqueles comentários malignos, continuava a viver segundo a imagem que tinha criado e renunciando à sua vertente de mulher. Só ao conhecer
Bruno as suas defesas se tinham quebrado, apaixonando-se por aquele homem a tal ponto que sentia por ele, em certos momentos, um ódio profundo.
Naquela noite de agosto em Saint-Tropez tinha quase inconscientemente começado a sonhar que era uma Cinderela e Bruno a versão moderna do Príncipe Encantado. E,
no entanto, era apenas uma pobre rapariga marcada pelas feridas do passado, consciente dos seus complexos e dos seus limites. Não sabia falar com a desenvoltura
e a ligeireza elegante da gente bem-nascida, conhecia os sítios famosos só por ter ouvido falar e raramente, como naquele momento, comparecia num deles por motivos
profissionais. Não jogava ténis nem golfe, não sabia montar a cavalo e as águas em que se sentia tranquila eram as da sua banheira. Mas esquiava como um anjo e conduzia
o trenó à velocidade de um míssil, tendo nascido e crescido na montanha.
Tinha aprendido a estar à mesa observando os outros convidados de almoços e jantares de trabalho, mas perante uma maçã por descascar ficava ainda um pouco embaraçada.
Falava perfeitamente francês e inglês porque se tinha esforçado muito, mas o sotaque era deficiente. O alemão era a sua segunda língua.
No ano anterior, para analisar juntamente com Bruno Brian um acordo com um país do Golfo Pérsico, tinha acompanhado o advogado Brancati a Saint-Tropez, a bordo do
Trifoglio. O Barão tinha-lhes mostrado o iate e

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o pavilhão de Cannebiers. Nessa mesma noite, em Nice, tinha embarcado num DC-9 em direção a Milão. Só isto. Agora encontrava-se diante de um homem distante dela
mil anos-luz que estava prestes a beijá-la.
Todos estes pensamentos dominavam na sua mente, enquanto Bruno falava ao telefone com o advogado Brancati, que lhe tinha ligado de Washington. Era Karin que tinha
sonhado com a história da Cinderela ou tudo tinha realmente acontecido e a magia ia ser retomada depois daquela interrupção? De vez em quando Bruno sorria-lhe. Eram
verdadeiras as flores da sua cabina? Eram verdadeiros o vestido de Valentino e os brincos barrocos de pérolas? Olhou para o relógio. Era meia-noite. Tinha de deixar
o baile, a correr, se não queria ver o vestido de cerimónia transformar-se nos seus velhos trapos. As ilusões eram perigosas, sobretudo para quem sempre as recusou
com um sentimento de terror. Mais valia continuar a ser a melhor das secretárias do que a mais desajeitada das amantes. Tanto mais que não sabia ainda se estava
pronta para se entregar a um homem.
Karin era bastante fatalista e começou a acreditar naquela interrupção como um sinal do destino, que coincidia singularmente com a sua filosofia de vestal da castidade
e com o seu orgulhoso realismo.
- Cada um deve ter a coragem de permanecer no seu lugar - concluiu.

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A HISTÓRIA DE KARIN

Orfanato feminino

- Um dia menos na nossa vida, um dia mais perto da grande eternidade - ressoava o vozeirão da irmã Sabine.
Tinha uns grandes olhos mortiços de um azul deslavado, atravessados por veias vermelhas, que se estendiam às maçãs do rosto e ao nariz. Só os camponeses que frequentavam
as tabernas tinham aquelas características. A Karin, ajoelhada no chão frio da grande camarata do colégio com mais quarenta raparigas, as palavras ameaçadoras e
a voz retumbante da irmã Sabine provocavam um arrepio irrefreável.
Todas as noites se repetia, sempre igual, o mesmo ritual: as órfãs eram alinhadas em fila, duas a duas, e do refeitório, através de um corredor lúgubre de teto alto,
eram conduzidas ao dormitório. Ali tinham de se despir rapidamente, cada uma ao lado da sua cama, dobrar cuidadosamente a roupa, metê-la no pequeno arMario da mesa
de cabeceira, e depois lavar as mãos, a cara e os pés na água gelada de uma bacia de esmalte branco com uma faixa azul que estava em cima de um banco aos pés da
pequena cama de ferro. Cada cama tinha o seu banco e a sua bacia. Depois da higiene, todas se ajoelhavam no chão gelado para a oração orquestrada pela irmã Sabine
que, aos olhos de Karin, assumia os traços da bruxa de Hansel e Gretel, uma história que para ela tinha o sentido de uma punição.
A voz aterradora da religiosa prometia castigos atrozes a todas as crianças, mas sobretudo a ela que, para todos os efeitos, não era órfã e era olhada com uma malevolência
especial. Terminada a oração, as raparigas enfiavam-se rapidamente debaixo do edredão de penas, forrado de tecido áspero, que funcionava como lençol e como cobertor.

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Uma noite, Karin tremia de frio e no entanto tinha a garganta a arder de sede. A irmã Sabine, entretanto, num esvoaçar de amplas vestes que espalhavam em volta um
cheiro a incenso e naftalina, avançou ameaçadora a passos largos em direção à sua cama.
- Antes de adormeceres - ordenou-lhe, como todas as noites -, tens de rezar um Mistério para que Deus ajude a tua mãe.
Karin disse que sim. Estava habituada a obedecer, mas tinha sede. Tinha muitas vezes sede, e naquela noite não conseguia mesmo aguentar.
- Tenho sede - arranjou coragem para dizer.
A irmã Sabine debruçou-se sobre ela com o seu carão rubicundo enquadrado por uma touca imaculada, trespassando-a com o olhar.
- Was? - trovejou a religiosa. - O que é que tu queres?
- Wasser, bitte - implorou Karin, com um fio de voz.
- Ach, so! - replicou a freira. - Na cama não se bebe - sentenciou. Não era por sadismo que a religiosa negava a água aquela hora, mas para limitar os casos de enurese
noturna. Havia ainda muitas meninas que molhavam a cama.
Karin, atormentada pela sede, ficou acordada durante muito tempo. Sentiu bater as horas num campanário distante e ouviu o silvo de um comboio. A camarata estava
mergulhada em silêncio e uma pequena lâmpada azul por baixo do crucifixo difundia uma luz espetral. Quando achou que estavam todas a dormir, deslizou cautelosamente
para fora do edredão e, caminhando sobre o chão gelado, aproximou-se da bacia, bebeu a água que tinha servido para se lavar e voltou para a cama.
A água não era tão boa como a da torneira, e muito menos como a da nascente no fim da vereda que atravessava o bosque de abetos, mas também não era tão má como seria
de esperar. Assim pelo menos conseguiu dormir e sonhar com as gencianas que salpicavam a erva baixa como estrelinhas azuis.
Desde aquela noite, sempre que tinha sede, Karin esperava pelo silêncio para se poder saciar com a água da bacia. Tinha concebido até mais uma brincadeira engraçada
que lhe permitia adormecer com a sensação de ser uma menina com sorte.
Gostava de inventar situações que lhe dessem a sensação de ser uma menina feliz. Na primeira noite no colégio, não conseguindo dormir por

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causa dos arrepios de frio, imaginou que estava enterrada na neve, nua e moribunda. Depois chegava a mãe com os seus grandes sapatos a prova de frio e de gelo, envolvia-a
num cobertor macio e tépido e levava-a para uma pequena casa onde havia uma lareira acesa e uma grande tina de água fumegante. A mãe mergulhava-a na tina, até que
a pele de Karin se tornava vermelha como uma flor de soldanela. Então tirava-a da água, punha-a em pé junto a lareira e enxugava-a bem. E, finalmente, vestia-lhe
uma camisola de lã que lhe chegava aos joelhos, uma camisola de lã fiada, dobrada e torcida pela velha Ilse Klotz. Era áspera, mas aquecia-a muito bem. Calçava-lhe
umas meias de lã amarela e por fim vestia-lhe uma camisa de flanela azul de florinhas cor-de-rosa e metia-a numa cama forrada de um tecido aos quadrados vermelhos
e brancos. Assim Karin adormecia feliz. Era um dos seus truques para não se deixar vencer pela solidão e pelo frio.

O despertar atingiu-a como uma chicotada que lhe explodiu no cérebro. A irmã Sabine surgiu à porta da camarata com uma sineta e continuou a agitá-la até todas as
raparigas se encontrarem ajoelhadas, de mãos postas para rezarem a oração da manhã.
Um dos momentos mais doces do dia era o que as meninas viviam no refeitório, diante de uma malga cheia de leite morno e denso de nata e uma fatia grossa de schwartz
Brod, o pão escuro de que ela tanto gostava, barrado com manteiga e mel.
A doçura do mel desaparecia quando eram divididas por turmas. Ela, que frequentava a primeira classe, tinha como professora a velha irmã Monika, que com pedagógica
assiduidade lhe batia nas pontas dos dedos com uma vara sempre que Karin se enganava a escrever ou a fazer contas. E enganava-se muitas vezes. Mas quando superava
a margem de erro fixada pela irmã Monika, a freira sibilava: Raus! e com o dedo esticado indicava a porta da sala; era um momento mágico que compensava Karin de
muitas amarguras. Naquela manhã, depois de diversas vergastadas, Karin foi expulsa da aula. O pequeno edifício que albergava o orfanato feminino Santa Gertrude em
Merano situava-se nas proximidades da estação ferroviária. De uma das janelas do corredor, Karin conseguia distinguir ao longe a sua montanha, o monte San Vigilio,
coberto de neve durante cinco meses do ano desde o meio da encosta até ao cume. Karin estava encantada a observar os bosques, que conhecia como a palma das suas

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mãos. Primeiro havia videiras e avelaneiras, depois carvalhos e áceres, até começarem os abetos brancos. Depois havia os abetos vermelhos e, ao longo das encostas
mais íngremes, os cedros prateados de pinhas pequenas e arredondadas. Karin recordava as suas aventuras nos bosques onde, conforme as estações, nasciam campainhas
de veludo, brancas e púrpura, gencianas azuis, prímulas, saxífragas, anémonas, rododendros, morangos silvestres e mirtilos, cerejas silvestres e groselhas, cogumelos
bons e cogumelos venenosos mas fantásticos. Em volta corriam veados e esquilos e no meio daquelas fragrâncias ficava a casa da velha use Klotz, que era a casa de
Karin, uma antiga construção de madeira onde tinha nascido.
Era setembro, o ar estava mais fresco, o sol punha-se mais cedo e a sombra tornava-se dona do bosque. O verão, como todas as coisas boas, passara depressa. Karin
tinha o olhar cheio das cores da festa de São João, recordava as fogueiras a arder nos montes que desciam sobre o vale do Adige. Na noite de São João, Karin estava
em casa e tinha ido também até ao planalto do monte San Vigilio com uma tocha na mão para iluminar o caminho. Havia muita gente de todas as idades no círculo mágico
das fogueiras, sob um céu cintilante de estrelas, no ar tépido do verão que levava para longe a voz do lustige Sepp, o alegre Giuseppe que cantava as ritmadas canções
do folclore tirolés. Havia würstel e crauti e krapfen com compota de papoila, cerveja para os adultos e limonada para as crianças. A montanha estava repleta de alegria.
Karin tinha-se sentado em cima do tronco de um velho abeto cortado e dominava a festa. Para a ocasião, por cima do vestidinho de algodão, a velha Ilse tinha-lhe
vestido uma Sarner nova, uma camisola típica feita por ela, de um bonito cinza-pérola, debruada a vermelho e verde e com uns botões verdes com a efígie de São Jorge
a trespassar o dragão. A velha use foi até junto dela. Segurava com a mão, habituada ao trabalho e a ternura, uma grande caneca de cerveja.
- Estás a divertir-te, Schatzi? - perguntou-lhe com um largo sorriso. E Karin parecia mesmo um passarinho no grande tronco do abeto cortado. Ela não sabia o que
queria dizer divertir-se, mas respondeu-lhe: - Isto é lindo, Tante Ilse. - Chamava-lhe tia, Tante, apesar de não ser da família, mas era como se o fosse.
Ilse tinha-a ajudado a nascer na madrugada do dia de Natal de 1954 e se Karin ainda estava viva devia-lho a ela. Quando a bela Martina deu

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à luz, ela não se decidia a chorar nem a respirar. Por isso a velha Ilse, depois de ter rapidamente cortado o cordão umbilical e de ter visto que ela não reagia,
agarrou-a pelas pernas e segurou-a de cabeça para baixo fora da janela, abanando-a como se fosse um ramo de flores a que se quer fazer cair as pétalas.
- Com o frio que está - disse -, se não estiver morta vai respirar. O corpinho nu, ainda sujo de sangue, estremeceu. E logo a seguir ouviu-se um vago vagido. A menina
estava viva. Aqueceu-a, lavou-a e vestiu-a e quando a entregou à mãe disse: - No céu, esta noite, nasceu Jesus. Na terra nasceu a tua filha.
Martina, com o seu belo rosto de porcelana e o seu corpo de estátua, deixou rapidamente a montanha. Regressava de vez em quando para levar à filha qualquer pequeno
presente e para dar algum dinheiro a Ilse que, no seu canto, não pedia nada nem para ela nem para a menina.
Na noite de São João, enquanto ardiam as fogueiras debaixo das estrelas e Karin estava sentada, feliz, no tronco do abeto, a velha Ilse disse-lhe: - Quando cresceres,
quando fores uma mulher, vais ter de estar muito atenta na noite de São João. Foi precisamente numa noite como esta que a tua mãe se desgraçou.
- Magoou-se? - perguntou.
- Pois, e muito. Mas é uma coisa que tu não podes entender.
Não, não podia entender. Entenderia muito mais tarde.
Karin recordava aquelas estranhas palavras e olhava para a sua montanha. Gostaria de ter asas como uma andorinha para sair pela janela do colégio e voar até à casa
de madeira da Tante Ilse, até à sua casa. Mas era prisioneira daquele lugar horrível, regido por leis incompreensíveis, cheio de freiras severas, juntamente com
a irmã Sabine que com ela era particularmente dura e inexplicavelmente lhe impunha todas as noites uma oração a mais pela mãe.

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Véspera de Natal

Nas ruas a neve desfazia-se numa poeira suja e Karin apercebeu-se de que a neve da cidade é muito diferente da neve macia e compacta dos montes, que cintila no sol
do meio-dia e liberta reflexos azuis e rosados. Passavam automóveis a lançar lama para os transeuntes que avançavam rapidamente, carregados de embrulhos. Era véspera
de Natal e ela fazia 6 anos no dia seguinte.
Muitas meninas tinham deixado o colégio e estavam agora em casa de parentes e de famílias amigas. Karin sabia que não podia contar com ninguém. A mãe estava sabe-se
lá onde e só voltaria em junho, no fim do ano letivo, para a levar de volta a casa da Tante Ilse. Recordou as palavras da mãe quando, quatro meses antes, ao regressar
depois de uma das suas ausências, lhe tinha dito: - A partir de amanhã vais para a escola na cidade.
- Na cidade, onde?
- No colégio. Eu não te posso ter comigo.
Depois levou-a para Merano, para o orfanato, e entregou-a como um embrulho nas mãos da irmã Sabine: - Agradeço-lhe por ter aceitado a menina. Eu tenho de me ir embora
e não sei quando voltarei. Se houver problemas, escreva-me para Roma. Posta-restante. - Depois beijou-a na face e foi-se embora.
A irmã Sabine deu-lhe um lenço e disse-lhe: - Limpa depressa. - E indicou-lhe o ponto da face onde tinha ficado a marca do bâton da mãe.
Karin ficou imóvel como uma estátua, a olhar para a mãe que se afastava com o tiquetaque dos tacões altos e o seu passo de bailarina, ao longo do triste corredor
que conduzia à saída.

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Queria ter ido atrás dela, abraçá-la, sentir-se aconchegada no seu abraço, sentir mais uma vez o seu cheiro e o seu calor. Dizia-lhe com o olhar: "Não me deixes
sozinha, por favor. Tenho muito medo de ficar aqui.". Via-a partir e continuava imóvel. Tinha vontade de chorar, mas limitou-se a respirar profundamente. Depois
começou a esfregar a face com o lenço que a freira lhe tinha dado, no ponto em que a mãe tinha deixado uma marca de bâton.
Logo a seguir uma mão agarrou-lhe a grande trança vermelha e a voz troante da irmã Sabine decretou: - Vai ser preciso cortar-lhe estes cabelos compridos. Senão,
vão crescer lá dentro muitos bichinhos nojentos.
Ouvia ainda e sentia na alma o som arranhado da grande tesoura que apresentava alguma dificuldade, apesar das laminas bem afiadas, em cortar aquela densa espessura
de seda. A irmã Sabine tinha a ponta da língua apertada entre os dentes, como se contrabalançasse o esforço da mão que apertava a tesoura. Cada tesourada era para
Karin uma punhalada. E quando a freira brandiu a trança cortada, erguendo-a como um troféu, apercebeu-se de que dos grandes olhos azul-violeta da menina corriam
grossas lágrimas.
- O que é isso, estás a chorar? Que menina ridícula.
- Eu não volto a chorar - prometeu Karin, ao mesmo tempo que as lágrimas saltavam dos seus grandes olhos desesperados e lhe rolavam nas faces.
A freira ficou um instante perplexa e provavelmente foi tocada pela dor da sua pequena vítima, pela mortificação arbitrária e absolutamente insensata que lhe tinha
infligido. Por isso disse-lhe, com um dos seus raros sorrisos: - Vão voltar a crescer mais bonitos do que antes. E, agora, schnell! Um bom banho e ficas em condições.
Karin não ousou mexer-se. Fez chichi pelas pernas abaixo e aos seus pés tinha-se formado um pequeno lago. A irmã Sabine, que posteriormente havia de a punir por
muito menos, daquela vez não lhe deu nenhum castigo.
Recordava o seu passado recente, observando a neve da cidade, tão diferente da dos seus montes, quando de repente o coração deu um salto. Na rua, no meio da neve
que caía, por entre a multidão da véspera de Natal, tinha-se perfilado aquela figura maciça que Karin tanto amava. Avançava cautelosa e devagar, as pernas grossas
inchadas pela flebite, com a ajuda de um bastão, naquele passo incerto das pessoas mais habituadas

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às asperezas do terreno montanhoso do que ao asfalto viscoso de neve da cidade. Trazia um loden com capa e tinha a cabeça coberta por um lenço de lã amarrado no
pescoço.
- Tante Ilse! - Karin tinha finalmente arranjado coragem para gritar o nome dela.
Pouco depois estava nos seus braços, no átrio do colégio.
- Levas-me contigo? - perguntou, apreensiva.
- Claro que te levo comigo, Schatzi. Vim até aqui com estas pernas desgraçadas para te levar comigo. Vamos passar o Natal juntas em San Vigilio.
Karin lançou sobre a velha use uma torrente de palavras, como se as tivesse guardado durante aqueles longos meses de silêncio e solidão. Podia respirar aquele cheiro
bom do bosque que a velha trazia consigo, e ouvir de novo a sua voz quente e reconfortante como uma cantilena, e gozar o prazer de ouvir alguém chamar-lhe Schatzi,
querida.
A irmã Sabine esperou o fim das efusões para intervir. Ilse apercebeu-se disso e afastou o seu rosto do de Karin.
- Irmã, amanhã é Natal - começou Ilse, apoiada no bastão. Karin olhava para a Tante Ilse e para a irmã Sabine e o seu coração parecia enlouquecer.
- Vim buscar a pequena - prosseguiu. - Por mais nenhuma razão do mundo, irmã, eu viria à cidade. As minhas desgraçadas pernas atraiçoam-me. Até me doía o coração
por saber que ela estava sozinha.
- Ach, so! Aqui nenhuma menina está sozinha - respondeu a freira, irritada, ao mesmo tempo que as pequenas veias vermelhas nos olhos deslavados se tornavam mais
evidentes.
- Não o disse nesse sentido, irmã - desculpou-se Ilse. - Sei que são bondosas e que se preocupam com estas pobres crianças. Dizia no sentido em que não tem ninguém
de família.
- A senhora é da família? - perguntou, perentória.
- Não. Mas sou de qualquer modo quase toda a família que ela tem. E ela, a Karin, é certamente toda a minha família.
- Isso eu não entendo - replicou a freira.
Ilse tentou explicar quem era para Karin. A irmã Sabine percebeu, e sem sequer se enternecer conseguiu ser simpática, mas categórica: - Sinto muito, Frau Klotz -
disse -, a criança não pode sair do colégio sem a autorização da mãe.

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- Mas a mãe está certamente de acordo - garantiu.
É preciso uma autorização escrita - rematou. - Se acontecesse aluma coisa, nós é que éramos responsáveis.
Karin estava tensa como um arco, tremia e seguia com uma extrema atenção o diálogo entre as duas mulheres, mexendo para a esquerda e para a direita os grandes olhos
azul-violeta.
- Se soubesses a pena que eu tenho, Schatzi - tentou consolá-la. - Vais ver que vamos arranjar essa bendita autorização. E depois eu levo-te um dia inteiro comigo.
- Vais voltar? - balbuciou a menina, quase a chorar.
- Espero que entenda - disse a freira - que também nós lamentamos este contratempo.
- Claro - anuiu Ilse.
O que ela entendia é que Karin estava a sofrer. Entendia que tinha feito todo aquele caminho inutilmente e que tinha de o fazer de volta com aquelas pernas em tão
mau estado. Entendia que ainda que se ajoelhasse aos pés da freira para lhe implorar a graça de deixar Karin regressar sua montanha no dia de Natal seria inútil.
Por isso limitou-se a agarrar o bastão com mais força.
- Então, vais voltar, Tante Ilse?
- Vou voltar, não duvides - garantiu Ilse. - Pelo menos voltei a ver-te, meu passarinho. E devo dizer que estás muito bem.
- O cabelo também? - perguntou Karin.
- Ficas ainda mais linda - mentiu. use tinha reparado imediatamente que aquela bela trança vermelha tinha sido cortada, mas nem tocou no assunto para não magoar
Karin.
- Estás a falar a sério? - perguntou, enquanto os olhos brilhavam de alegria.
- Estou a falar a sério - proclamou solenemente a Tante Ilse, beijando-lhe as pontas dos dedos.
Então eu também estou contente. - No átrio passavam as colegas acompanhadas pelos familiares.
- Aprendeste a escrever? - Ilse estava muito perto dela.
- Um bocadinho. - Karin respondia mecanicamente, embora tivesse imensas coisas para lhe contar.
- E a ler?

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- Estou a começar.
- Gostava de te ouvir ler - disse Ilse.
- Ela lê bem e é muito obediente - interveio a irmã Sabine, que não parecia insensível àquele diálogo comovente. - Tenho a certeza de que vai buscar o livro e que
lhe vai ler alguma coisa. - Depois acrescentou: - Excecionalmente, poderá ficar com ela até logo à tarde. Sem sair do recinto do colégio, obviamente.
E assim aquele dia triste sossegou por um momento. E Karin passou o dia de Natal a recordar a véspera passada com a velha Ilse, com a sua voz doce e o seu cheiro
a bosque.

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Angelica

Martina chegou cinco anos depois, bela e radiosa, com o primeiro sol do verão. Vestia um Dirndel, o vestido tradicional do Tirol, cor de avelã com uma faixa larga
de veludo bordada e uma camisa branca. O decote amplo enquadrava os seios exuberantes que o corpete do vestido tirolés empurrava para cima. O pescoço comprido e
cândido era iluminado por um colar de prata com um medalhão de pedras vermelhas. Os cabelos loiros, apanhados na nuca, estavam atados com uma fita de veludo castanho.
Karin estava ainda nos braços da mãe a respirar a alegria daquele contacto quando se apercebeu de uma presença ao seu lado. Pareceu-lhe que uma grande nuvem negra,
de repente, tinha escurecido o sol. Aquela grande alegria esfriou e depois transformou-se em medo.
Karin afastou-se da mãe e olhou para o homem, olhou-o com ódio, apesar de ele lhe sorrir. Tinha agora 11 anos e aprendera a avaliar o calor de um abraço e o significado
de um sorriso. O sorriso do homem não prometia nada de bom.
Karin estava já no início da puberdade, tinha uma expressão mais madura e um corpo mais harmonioso, os cabelos tinham voltado a crescer e emanavam uns reflexos maravilhosos.
Sentou-se no banco de madeira encostado ao muro da casa da Tante Ilse. Martina olhava para ela, perplexa. Era mais do que uma rapariguinha que tinha diante de si
naquele momento. Era um complicado enigma que ia para além da sua capacidade de entender.
- É melhor apresentarmo-nos - disse o homem. Era um sujeito robusto, escuro, com a pele cor de azeitona, bigodinho fino que alargava depois e rosto redondo.

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- Este é o Mario - disse Martina.
- Quem é? - perguntou com dureza.
- Um amigo meu, e teu também.
Karin fitou agressivamente o homem e dirigiu-se à mãe.
- Este homem nunca será um amigo meu - afirmou em tom de desafio.
- Mas se tu não o conheces... - tentou dizer Martina.
- Não o conheço nem quero conhecê-lo.
- Vais ter todo o tempo para o conheceres melhor. Dentro em breve vens viver connosco. Vais ver que não te come.
Martina cometeu o erro de sorrir e de assumir o tom de quem não dá nenhuma importância ao comportamento irracional de uma menina mimada.
- Então não temos mais nada para conversar.
Karin fugiu para dentro de casa, bateu com a porta e foi refugiar-se no seu quarto. Estendeu-se na cama para se acalmar, mas não tinha vontade nenhuma de chorar.
Lá fora apenas se ouvia os zumbidos do verão. Levantou-se da cama e aproximou-se da janela aberta sobre a varanda de madeira desconjuntada, onde os gerânios, as
petúnias e as campainhas de mil cores ornamentavam o corrimão com mais de cem anos.
Olhou para o prado e viu aquilo que já estava à espera de ver: a mãe e o homem que estava com ela. Estavam sentados na erva tépida de junho, o homem rodeava-lhe
os ombros com um braço numa atitude de posse e a mãe ria e inclinava a cabeça para trás, deixando a descoberto ainda mais o pescoço e os seios nos quais o homem
pousava os seus lábios ávidos.
- A tua mãe é puta, em Roma - tinha-lhe dito uns tempos atrás, com a brutalidade das crianças, Angelica, uma menina da sua idade que vivia numa quinta do outro lado
das nascentes radioativas e que brincava às vezes com ela quando se encontravam no largo, junto à estação do teleférico que dava acesso ao cimo do monte. Disse-lhe
aquilo de repente, sem um pretexto, a meio de uma brincadeira, provavelmente para a informar de um facto referido pelos adultos.
Para Karin foi uma chicotada em plena face. - Puta és tu! - respondeu, agressiva, pois conhecia o significado do termo, e acrescentou: - Puta é a tua mãe. E a tua
irmã! - Com um salto, galgou a cancela e seguiu o caminho de casa.

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Ilse estava a remexer a roupa com um instrumento rudimentar, uma espécie de seringa que funcionava à força de braços, e com o qual se obtinha uma barrela branquíssima.
Karin quase a derrubou quando lhe saltou para o pescoço a gritar: - A Angelica disse-me que a minha mãe é puta em Roma. É verdade? Diz-me, é verdade?
Karin tinha 11 anos, já tinha tido a primeira menstruação e sabia muitas mais coisas do que Ilse supunha. Aquilo não era a reação de uma criança ofendida por uma
palavra vulgar, mas o comportamento consciente de uma jovem que quer saber a verdade.
- Mas o que é que tu estás para aí a dizer? - A Tante Ilse abandonou a tina da roupa, secou as mãos, tirou do bolso do avental a caixinha do tabaco e aspirou com
voluptuosidade.
- Não sabes dizer outra coisa - retorquiu Karin, zangada. - Nunca tens uma conversa a sério. - Conhecia apenas em parte o significado de certas palavras, mas a verdade
sobre a mãe já ela a tinha intuído e sofria por isso, até porque a única pessoa em quem tinha confiança não a ajudava a perceber.
Tante Ilse avançou lentamente, atravessou o prado e abriu a pequena cancela de madeira que delimitava o terreno inclinado em frente ao estábulo. Aproximou-se de
Rosy, a vaca malhada de raça bruno-alpina, de tetas inchadas, que ruminava continuamente.
Com gestos lentos e antigos, Ilse agarrou no balde de zinco com uma mão e no banco de madeira com a outra e chamou Karin:
- São horas de mungir. Faz as tuas obrigações.
As duas mungiram o animal, recolhendo o leite tépido e denso. Ilse continuava calada. Karin esperava uma resposta.
A certa altura Ilse disse-lhe: - A tua mãe é uma mulher ainda jovem, bonita e sem marido. Nesta montanha a única distração é o falatório. A tua mãe tanto está cá
como não está. Tanto aparece como não aparece. É por isso as pessoas falam.
- A irmã Argentina também é jovem, bonita e sem marido. Mas ninguém diz que ela é uma puta.
- Mas é uma freira - disse Ilse, escandalizada.
- Tante Ilse, tu não me estás a dizer a verdade toda. - Sentia-se desiludida, traída.

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Ilse tinha arrumado o balde com o leite. O sol estava a recolher-se e um crescente branco de lua brilhava no céu. Entraram em casa e use falou com a jovem com toda
a sinceridade de que era capaz.
- A tua mãe é uma mulher exuberante. - Puxou para cima uma madeixa de cabelo que lhe tinha caído para a testa.
- O que é exuberante? - Havia sempre alguma palavra cujo significado não conhecia.
- É uma mulher que ama a vida.
- Nós também amamos a vida, Tante Ilse. Era verdade. Era possível que fosse assim tão complicado explicar uma coisa tão simples?
- A tua mãe gosta de companhia. - Tinha-se sentado ao lado de Karin.
Os últimos raios de sol brincavam na parede de madeira. - Quando chegou de Val Pusteria - começou a contar - era uma rapariguinha pouco mais velha do que tu. Eram
outros tempos. Havia mais miséria.
- Porque é que no passado havia sempre mais miséria? - interrompeu-a, cheia de curiosidade.
- A tua mãe tinha fome - use ignorou aquela pergunta -, fome de comida e de amor. Foi trabalhar para o hotel dos Winterholer. Quando se tornou uma linda rapariga,
achou que o amor estava nos encontros ocasionais que tinha com os homens que apareciam.
- Mas, então, o que é o amor? - Era sempre capaz de a deixar embaraçada.
- Se calhar é uma história que me contaram há muito tempo. - Os olhos bondosos da velha sorriram a uma recordação distante.
- Tante Ilse, porque é que a minha mãe já não trabalha no hotel dos Winterholer?
- Porque vive em Roma.
- Porque é que ela está em Roma?
- Não sei, Schatzi. Ela é que to há de dizer um dia, se lhe apetecer.
- Gosto muito de ti, Tante Ilse.
- Claro, meu passarinho. - A velha Ilse e a menina abraçaram-se com efusão.
Naquele momento via aquela mãe exuberante e inquieta, com a sua maneira criticável de amar a vida, nos braços de um desconhecido, na

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erva tépida de junho. E sentia-se devorada por um sentimento cruel a que ela sabia dar um nome mas que se assemelhava terrivelmente ao ódio.

Na sala de jantar do Hotel Vigiljoch jantava-se à luz quente e oscilante de mais de cem velas que ardiam sobre a candura das mesas. Os hóspedes sorriam enquanto
os empregados com roupas tirolesas os serviam no meio de um tilintar de talheres, de copos e de um elegante murmúrio de vozes alegres. As grandes janelas emolduravam
a noite cheia de estrelas e o perfil distante e solene das Dolomitas.
Karin, escondida na sombra, mantinha os olhos quietos para observar, através dos vidros, aquela magnificência que para ela era a expressão mais alta do luxo. O edifício
baixo, de telhado inclinado, solidamente ancorado na montanha, com as longas varandas de madeira ornamentadas de flores e as portadas com uma abertura em forma de
coração, era para Karin um lugar tão fascinante, misterioso e inatingível como um castelo de fadas.
Ninguém depois do pôr do sol podia subir ou descer o monte San Vigilio porque não havia estradas, o teleférico era a única ligação e em sete minutos cobria um desnível
de mil e quinhentos metros. Às oito da noite fechava. Não havia automóveis, motorizadas, jukebox, televisões ou cinema. Só o silêncio misterioso e profundo da montanha.
No meio do bosque, para lá do hotel, havia algumas moradias fantásticas, tipicamente tirolesas, e algumas propriedades rurais antigas.
Karin conhecia todos os segredos do monte San Vigilio e sabia perfeitamente como observar, sem ser vista, o espetáculo que se desenrolava do lado de dentro dos vidros.
Percebeu também a diferença que existe entre observar e espiar quando finalmente descobriu a mãe na companhia do homem que tinha vindo com ela da cidade.
Martina tinha mudado de roupa. Trazia uma camisa às flores com uma saia ampla azul-turquesa. Para Karin, era a mulher mais elegante do mundo. Ele vestia um blazer
azul, calças de fazenda, uma camisola de gola alta de algodão bege e usava um vistoso anel com uma pedra negra e chata na mão direita. Trocavam palavras e sorrisos,
seguravam felizes a mão um do outro sobre a candura da toalha. Às vezes Martina olhava em volta para ter mesmo a certeza de se encontrar no sítio onde durante tantos
anos tinha servido. Sobressaía pela sua beleza no meio dos clientes importantes que se podiam dar ao luxo de uma estadia no Hotel Vigiljoch.

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Serviam em travessas grandes trutas acompanhadas de batatas cozidas, molho quente de manteiga dourada e maionese macia. Karin ficou com água na boca. Não lhe acontecia
muitas vezes comer aquele prato requintado e em qualquer caso não com aquele serviço, não naquela moldura de elegância. Observou o copo de cristal fino que a mãe
levava aos lábios e viu brilhar reflexos de jade. O vinho tinha a mesma cor do Apfelsaft, o sumo de maçã, que uma vez Heini, o dono do hotel, lhe tinha oferecido
por ela ter sido capaz de encontrar o seu relógio de pulso que lhe tinha caído na relva, à beira da piscina.
Sentiu um fôlego quente à altura do braço. Virou-se, assustada - quando viu o cão ficou tranquila e sorriu.
- Olá, Berry - murmurou.
Um grande São Bernardo, de expressão bondosa e meiga, lambeu-lhe a mão. Berry era uma espécie de instituição, mas era sobretudo o seu companheiro de jogos. O animal
seguia-a de inverno até ao cimo do monte; quando ela se lançava de cabeça para baixo na descida com o seu trenó, ia atrás dela a ladrar de alegria e, com a intenção
de brincar, ia contra ela e rolavam juntos na neve macia no planalto do teleférico.
- Estamos sós, Berry - disse Karin. Estendeu uma mão para lhe afagar o focinho quente e o cão ganiu de prazer. Aninhou-se no chão ao lado dele, abraçou-o e chorou
devagar, com seriedade, como choram os adultos.

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Na cidade

- Não gostas deste sítio? - Martina estava irritada com a indiferença e com a hostilidade da filha em relação ao novo ambiente que, sem dúvida nenhuma, aos olhos
dela era mais rico e estimulante do que uma velha casa de madeira no monte San Vigilio.
- Faz-me impressão.
Karin não tinha ainda aprendido a mentir, mas já sabia que a sinceridade completa traz mais prejuízos do que vantagens. Da cidade gostava das lojas, das pessoas
sentadas às mesas na piazza Walter, mas tinha em relação a estas novidades o interesse do visitante ocasional. Aquelas vistas e aquelas imagens apenas seriam uma
maravilha se, depois de as admirar, pudesse regressar a casa. Mas tinha de entrar naquele grande apartamento num segundo andar da Lauben Strasse, no centro histórico
de Bolzano, onde ela, habituada aos espaços abertos, se sentia sufocar.
Também não era alheio ao seu desconforto o facto de, mais uma vez, ter sido arrancada à força da velha Ilse e obrigada a viver com dois estranhos, um dos quais era
a sua mãe. Estava praticamente confinada ao seu quarto, um aposento de três metros por dois que dava para uma rua sombria, e tudo aquilo que podia ver da janela
era uma fatia de céu e uma outra janela idêntica à sua na casa em frente.
Levantava-se de manhã cedo, quando Martina e Mario dormiam ainda, porque à noite se deitavam sempre muito tarde, e ia para a escola. Andava no liceu, um grande edifício
de arquitetura fascista perto da praça do tribunal.
Na escola sentia muitas dificuldades. Tinha de aprender o alemão e o italiano, duas línguas difíceis de pronunciar e com uma gramática muito

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complexa; enquanto a língua que conhecia melhor, o dialeto do Sul do Tirol que falava com Tante Ilse e com as pessoas da montanha, lhe servia apenas para aumentar
a confusão que sentia.
Quanto mais pensava nisso mais se apercebia de que, no entanto, não eram aqueles os seus problemas: o seu espinho era San Vigilio, a casa de madeira, o bosque, Tante
Ilse: as suas raízes. Olhava para as nuvens naquela fatia de céu por cima da casa e via os perfis do hotel e da igreja no cimo do monte, o focinho de Berry, o rosto
sorridente da velha Ilse.
Tinham-se despedido num dia de sol na Stube revestida de madeira, ao lado do aquecedor de cerâmica verde e amarela que espalhava em volta uma agradável tepidez.
Ilse mordiscava com um solene desgosto um raminho de ervas apanhadas no bosque, amargas como veneno, que eram uma panaceia contra todos os seus males: do reumatismo
a má circulação. De vez em quando, aspirava voluptuosamente a sua caixa de tabaco.
- Talvez não nos voltemos a ver, Schatzi - disse-lhe, com um sorriso nos lábios.
- Porquê? - rebateu Karin, com amargura.
- Porque estou velha, meu passarinho. E em cada dia que passa agradeço ao Senhor por me ter dado mais um bocadinho de sol.
- Não deves falar assim. - Havia uma afetuosa censura na sua voz. - Ainda vais viver muitos anos e eu hei de voltar sempre a tua casa. Já sabes.
- Já sei, mas estás a tOmar-te uma senhorinha. Muita coisa vai mudar. Vais morar longe. Na cidade.
Para ela, Bolzano, Paris ou Nairobi eram caóticos e monstruosos aglomerados sem alma, cidades nos confins do mundo onde nunca tinha ido e de que apenas ouvira falar.
- Demora pouco daqui a Bolzano.
- Sim, claro. - Assentiu com um movimento de cabeça, mas no fundo do coração estava convencida de que a menina estava a mentir para tOmar menos amarga aquela separação.
Ilse sabia que as cidades, com exceção de Merano, ficavam todas no fim do mundo. Ela sabia algumas verdades e não se afastava um milímetro delas. Certa vez em que
Rodolfo, o carteiro, a tinha tentado convencer de que os homens tinham chegado a Lua, tinha-o mandado embora com maus modos, censurando-o por estar a fazer pouco
de uma pobre velha.

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No dia em que acontecesse um bruxedo daqueles, qualquer forma de vida acabaria na Terra.
- Nunca te vou esquecer - prometeu Karin.
- Eu sei que nunca me vais esquecer. - Tinha a certeza de que eram aqueles os sentimentos da jovem.
- Não vai mudar nada, vais ver. Virei sempre ter contigo no verão. Logo que a escola acabe. Como fazia quando estava no colégio.
- Fico à tua espera.
Parecia confiante, mas o seu coração continha certezas mais amargas. Estava firmemente convencida de que Martina nunca mais iria permitir que a filha regressasse
depois de a ter censurado duramente pela decisão de a levar para a cidade para viver com um homem que nem sequer conhecia, mas do qual intuía a profissão e a vocação.
- E depois vou escrever-te muitas cartas.
- Isso vai ser bom. O Rodolfo pode ler-mas. E ele escreve as respostas que eu lhe ditar para ti. - Ilse nunca tinha andado na escola nem tivera tempo para aprender
a ler e a escrever. Karin abraçou a pequena Stube com um longo olhar afetuoso. Tinha passado ali os melhores dias da sua vida. Olhou para os retratos dos santos
pintados no vidro com a ingenuidade dos artistas do campo. Havia o de San Vigilio, de Santa Gertrudes, de Santa Mónica. A toda a volta daquele aposento, de uma limpeza
absoluta, sobressaíam patéticos ornamentos: as tranças de alhos, o chifre de boi cheio de espigas de trigo, a foice, a roca por baixo da janela com cortinas de renda.
Das gavetinhas da masseira entalhada chegava o perfume intenso das ervas aromáticas do bosque secas ao sol. Os vasos de plantas colocados um pouco por todo o lado
e a toalha branca bordada com motivos vermelhos e pretos sobre a grande mesa maciça conferiam uma alegria comedida àquele ambiente austero.
Partiu ao fim do dia, quando a montanha se torna sombria e solene. Ilse deu-lhe a mão e acompanhou-a à estação do teleférico. Mario cumprimentou sem entusiasmo aquela
velha incompreensível, enquanto Martina, que provavelmente se sentia em culpa, se despediu com um surdo rancor do seu grilo falante.
- Eu volto em breve, Tante Ilse. - Karin abraçava-a com força, esperando encontrar-se apenas no meio de um sonho mau.
- Tenho a certeza disso, Schatzi. Vou ter sempre pronto o teu quarto.

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Karin instalou-se na cabina, que iniciou a descida com o roçar veloz das cordas de aço. Ilse abanava lá no alto o seu grande lenço de flores, enquanto Karin, com
o rosto colado ao vidro, a via tOmar-se cada vez mais pequena e distante. Esforçou-se por não chorar, mas estava desesperada.
No vale entrou num Fiat 1100 azul que seguiu imediatamente pela estrada cheia de curvas que vai de Lana d'Adige a Bolzano. Trinta e cinco quilómetros de uma dor
dilacerante. Diante da pequena igreja de Terlano o carro deu um safanão e ela esperou que fosse um pneu furado; e continuou a esperar um milagre capaz de a fazer
regressar à Tante Ilse.
Mas chegaram à cidade sem problemas, com Mario ao volante a fumar um cigarro atrás do outro a fazê-la tossir. A mãe, cheia de alegria, atordoava-o com palavras que
Karin não escutava. O apartamento, sobrecarregado de coisas inúteis de plástico, tinha um cheiro estranho, frio, repelente. Era já noite quando Martina lhe mostrou
o quarto dela.
- Gostas? O Mario também quis pôr aqui uma escrivaninha. Tu vais estudar. E toda a gente sabe que uma estudante precisa de ter uma mesa de trabalho só para si. Foi
o Mario que insistiu para eu não te meter num colégio, sabes?
- Sim, mãe.
- Vais ver como vai ser bom. Também o Mario... - Não dizia mais de duas palavras sem referir o nome de Mario. E aquele facto deixava Karin nervosa: teria preferido
saber que a iniciativa de a mudar para a cidade tinha partido da mãe e não daquele estranho desagradável.
- Este é o armário para a tua roupa. Vamos comprar coisas novas.
Agora vives na cidade. Tens de largar esses casacos de lã, esses sapatos pesados e a roupa rude da montanha. - Era uma girândola de palavras pontuada por risadinhas
frívolas e parecia não se dar conta do silêncio obstinado de Karin, que respondia e se mexia como um autómato.
Na escola oficial foi imediatamente alvo de mil e uma perguntas inquietantes. As colegas agrediram-na com a impiedosa curiosidade das crianças.
- O que é que faz o teu pai?
- É verdade que fizeste a primária num orfanato?
Karin fechava-se como um ouriço e punha de fora os seus espinhos para se defender.
- Porque é que não se metem na vossa vida?
Mas o que mais a feria eram as perguntas insidiosas dos professores.

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- Porque é que a tua mãe nunca cá vem?
- Tens de lhe dizer que é importante o diálogo entre os pais e os professores.
- Para fazer esta pesquisa vão precisar da ajuda dos vossos pais.
- Porque é que a tua mãe não te ajuda?
Poderia ter dito: "A minha mãe trabalha", mas isso ia provocar a única pergunta à qual ela não queria responder: "Qual é a profissão dela?"
Martina e Mario deitavam-se muito tarde e dormiam quase todo o dia. Karin acordava de manhã as sete horas e a casa estava sempre em grande desordem. Então ela metia
pratos, chávenas e copos no lava-louça, lavava-os, despejava os cinzeiros e arejava a casa. Depois aquecia o leite, comia pão de centeio com manteiga e saía para
a escola.
Quando regressava, o quarto que a mãe dividia com Mario ainda estava fechado. Karin arranjava-se com um pouco de toucinho, queijo e ovos que encontrava no frigorífico,
e depois fechava-se no quarto a fazer os trabalhos de casa. Consolava-se na nostalgia e a escrever longas cartas a Tante Ilse. Tudo isto até que Martina e Mario
começavam a dar sinais de vida.
Naquele dia Martina abriu a porta e assim despenteada, com a maquilhagem desfeita, em roupão, pousou-lhe um beijo distraído nos cabelos. Karin experimentou uma sensação
de mal-estar ao respirar aquele odor de perfumes desagradáveis, tabaco, vinho e cama.
- Oh, meu Deus, estou tão cansada - queixou-se Martina ao sair do quarto.
Poucos minutos depois apareceu Mario. Tinha um aspeto mais civilizado e mais digno.
- És capaz de me fazer um café? - perguntou com cortesia.
Karin, solícita, foi até à cozinha preparar o café sem o qual Mario não podia passar, mas que ela detestava.
Chegava da sala de estar o eco abafado de comentários jocosos e risadinhas. Era um dia bom. Muitas vezes, pelo contrário, a sala de estar e o quarto tornavam-se
numa caixa de ressonância de discussões ferozes.
A casa era grande, demasiado grande para duas pessoas, e o quarto de Karin era isolado do resto do apartamento e dava para uma sala na qual nunca entrava ninguém.
Quando Karin estava no quarto, gozava de tuna certa proteção acústica e não podia registar os estados de espírito do casal, mas na cozinha assinalava até a mais
pequena mudança de humor.

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Por volta das nove horas, Martina apareceu elegante e pronta para sair, como, de resto, todas as noites.
- Porta-te bem. - Era uma recomendação supérflua.
- A nossa Karin é uma ótima menina - defendeu-a Mario, ao mesmo tempo que dava o braço a Martina e se dirigia à porta.
- Vai cedo para a cama e não abras a porta a ninguém - disse a mãe.
- Sim, mãe - respondeu, obediente.
Karin ligou a televisão, viu a primeira parte de uma entediante comedia em alemão, depois foi para a cama e puxou o edredão para cima da cabeça, esperando adormecer
depressa e sonhar com alguma coisa alegre. Os sonhos, tal como no colégio, também naquela cidade sem amigos eram o seu único recurso.
Foi acordada a meio da noite por vozes alegres e despreocupadas, um tilintar de copos e comentários grosseiros. A princípio pensou que fosse um sonho, mas logo a
seguir, à medida que recuperava a lucidez, apercebeu-se de que se tratava de uma realidade que provavelmente se obstinava em negar.
Levantou-se e em bicos de pés foi entreabrir a porta. A salinha que lhe servia como proteção acústica estava deserta, como sempre, mas alguém tinha deixado aberta
a porta que dava para a sala de estar. Por isso os ruídos a tinham acordado. Dominada por um sentimento que era um misto de excitação, de inquietude e de vergonha,
aventurou-se no aposento vazio e, escondida atrás de uma poltrona, conseguiu ver o que se passava na outra sala. A mãe, com um vestido decotado que lhe deixava nus
os ombros e as costas, estava abraçada a um alemão corpulento de cabeça calva como uma bola de bilhar, com uns óculos de armação de ouro, que lhe beijava o pescoço
e tentava enfiar uma mão dentro do decote, entre os seios.
Mario ria e servia bebidas, e os outros convivas bebiam, beijavam-se e apalpavam-se. Karin retirou-se, assustada, vermelha como o fogo, com o sangue a pulsar-lhe
enlouquecido no pescoço e nas têmporas. Enfiou-se na cama, escondeu a cabeça debaixo do edredão para não ouvir os ruídos que a tinham perturbado e recordou as palavras
de Angelica: "A tua mãe é puta em Roma." Enterrou a cabeça na almofada e chorou.
- Não é verdade - soluçou -, não é verdade. É apenas uma festa.

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Martina

Karin estava sentada à secretária, onde tinha os livros e os cadernos dispostos numa ordem meticulosa. Era o terceiro inverno que passava na cidade.
Mario entrou bruscamente no seu quarto sem bater. Tinha a cara ainda inchada de sono e a barba por fazer: trazia vestidas as calças do pijama e uma camisola de algodão.
Emanava um odor desagradável a tabaco e a espaço fechado. Karin olhou para ele com ar de censura.
- A tua mãe está mal - anunciou.
- Mal... como? - perguntou Karin.
- Isso é o que nos vai dizer o médico que está a chegar. - Estava preocupado. Percebia-se pela maneira nervosa como fumava.
- E o que é que eu posso fazer? - ofereceu-se.
- Trata de pôr em ordem o nosso quarto. - Dava ordens como um patrão com a certeza de ser obedecido.
- Vou já. - Estava desprovida de emoções e aquela dolorosa situação não a atingia.
- Estás a ficar cada vez mais bonita - elogiou-a, enquanto fechava o livro de História que Karin estava a ler.
- A minha mãe não está bem - sublinhou ela, sobretudo para sair de uma situação embaraçosa.
- Então vê lá o que é que podes fazer. - Falava lentamente, com um tom desconhecido e inquietante.
Karin levantou-se e ficou imóvel a olhar para ele com os seus grandes olhos azul-violeta: Mario tinha-se colocado à frente da porta e observava-a avidamente.

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- Se me deixar passar, posso despachar-me mais depressa - disse, sem baixar os olhos.
Mario afastou-se.
- Meto-te assim tanto medo para continuares a tratar-me por você?
- O sorriso apalermado e cruel provocava-lhe uma sensação incómoda. Porque é que não te soltas?
Karin passou sem responder e dirigiu-se ao quarto da mãe. As suas relações com Mario eram formalmente marcadas pela mais absoluta indiferença. Ignoravam-se reciprocamente:
ela porque instintivamente sentia que não havia nenhuma afinidade, ele porque se apercebera rapidamente de que as suas ambíguas e dissimuladas abordagens não resultavam.
Mas isso não impedia que Mario tentasse aproximar-se dela sempre que surgia uma oportunidade. Karin achava que conseguia mitigar aquela odiosa presença ignorando-a.
Fazia a mesma coisa com as moscas quando não conseguia afastá-las ou matá-las: ignorava-as. Mas as moscas continuavam lá e incomodavam-na.
- O que se passa, mãe? - perguntou.
- Desta vez estou mesmo mal - respondeu Martina. Estava pálida, tinha o cabelo colado à testa transpirada, mas parecia mais jovem, mais vulnerável, indefesa.
- Talvez seja gripe - diagnosticou Karin, otimista. Pela primeira vez experimentava um sentimento de ternura por aquela mulher que depois de a ter arrancado A. sua
montanha e ao afeto da Tante Ilse lhe tinha dedicado em três anos o tempo de um beijo distraído antes de sair de casa.
- Precisávamos aqui das ervas da velha Ilse - sorriu com ironia.
- Se calhar faziam-te bem mesmo - rebateu Karin.
- Tenta dar um jeito a isto - disse. - Senão, chega o médico e nem tem por onde passar. - Falava-lhe com doçura.
No ar pairava o cheiro acre da febre e da doença misturado com o dos perfumes e dos cosméticos. Em volta havia uma confusão caótica de roupa atirada aqui e além,
de sapatos abandonados, de frasquinhos e de revistas ilustradas espalhadas pelo chão e em cima da cama. Movendo-se com a rapidez racional de quem está habituado
ao trabalho e à ordem, Karin transformou o aspeto daquele quarto sob o olhar espantado de Martina.

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- És tão diferente de mim - constatou com orgulho.
Karin pegou numa bacia de plástico e numa toalha e lavou a cara e o pescoço da mãe, tal como a Tante Ilse lhe fizera uma vez em que tinha tido febre. Retirou os
resíduos de maquilhagem, arejou o quarto e ajudou Martina a vestir uma camisa de noite de algodão lavada e com um aspeto vistoso mas aceitável, depois de lhe ter
tirado a que trazia, cheia de rendas e de folhos.
Penteou-a com cuidado e depois sentou-se ao pé da cama até à chegada do medico, que diagnosticou uma pneumonia grave e lhe receitou uma dose maciça de antibióticos.
- Vais ter de ficar em casa para tratar da tua mãe - disse Mario. - Importas-te?
- Não tem importância nenhuma - disse a rapariga. - Depois vou ter tempo para recuperar. Foi uma experiência importante, que lhe permitiu conhecer a mãe e falar
com ela pela primeira vez.
- Como é que te sentes hoje? - Tinha regressado com as compras num grande saco de plástico.
- Acho que daqui a um dia ou dois já me posso levantar. - Martina parecia muito mais jovem e tranquila, muito calma.
- Oh, mamã - exultou -, isso é que é uma boa notícia. - Levou o saco para a cozinha, arrumou as compras e voltou para junto da mãe.
- Ajudaste-me muito, minha querida - disse com um tom comovido.
- Não me custou nada - afirmou Karin com entusiasmo.
Era janeiro, os montes estavam brancos de neve, o céu azul e limpo, e o coração de Karin estava cheio de nostalgia pelas descidas de trenó na pista do monte San
Vigilio, com aquela paisagem fantástica que corria em direção a ela e o ar que a feria alegremente com as suas mil e uma agulhas de cristal.
- Em que é que estás a pensar? - perguntou-lhe Martina.
- Na Tante Ilse - respondeu. - Em San Vigilio.
- Nunca os esqueceste - disse a mãe, com uma ponta de incredulidade.
- Nunca. - Os seus grandes olhos azuis dilataram-se de comoção.
- Nestes três anos sempre desejaste regressar.
- Sempre.

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Tinha agora 14 anos, as raparigas da idade dela iam esquiar no planalto de Renon e ela, pelo contrário, não podia ver a velha use por causa dos ciúmes da mãe.
- E nunca me disseste nada. - Martina estendeu uma mão, que Karin segurou entre as suas.
- Sabia que não ias gostar. E não queria causar problemas.
Eram agora duas amigas, ou talvez duas irmãs, que se tinham reencontrado depois de uma longa separação.
- Mas tens sofrido com isso. - Era a primeira vez que Martina se preocupava com os sentimentos da filha.
- Bastante. - Pensou em Tante Ilse e esperou poder voltar a vê-la agora que alguma coisa tinha mudado entre ela e a mãe.
- Não, tudo aquilo que tu fizeste por mim eu não o merecia - repetiu Martina. - Eu nunca estive assim tão próxima de ti.
- Não vale a pena falar sobre isso. - Karin recordou todas as vezes em que tinha estado doente, sozinha e com febre, a invocar a mãe, recebendo em troca a anónima
presença de uma freira. - Tu estavas em Roma - continuou.
- Pois... - respondeu Martina, pensativa.
- Mãe - disparou Karin à queima-roupa -, o que é que estavas a fazer em Roma enquanto eu estive no colégio?
- É uma longa história. - Martina tinha sido apanhada de surpresa. - Uma história que já esqueci, no meio de gente odiosa, numa cidade enfeitiçada. Fui para Roma
- continuou - atrás de um homem que tinha conhecido em Merano. Tinha-me prometido que me ia apresentar à mãe e que nos íamos casar. Mas afinal... - virou a cara
e limpou os olhos com um lenço.
- E o que aconteceu, afinal?
- Mandou-me trabalhar num estabelecimento noturno. Mas é uma história tenebrosa.
- É a tua história, mãe - Karin olhou para ela, suplicante. - Não pode ser uma história tenebrosa. Eu não sei nada de ti. Nem sequer sei quem é o meu pai.
- Eu nunca te disse? - rebateu, com uma superficialidade ostensiva.
- Nunca me disseste - disse Karin, inclinando-se sobre a mãe para a ouvir melhor.

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- O teu pai era alemão - confessou Martina, após um instante de silêncio. - Era professor de Filosofia na Universidade de Bona. Digo era porque nunca mais soube
nada dele. Por mim até podia estar morto.
- Como era? - interrompeu-a.
- Era muito bonito. Chamava-se Joseph Steiner. Conheci-o quando trabalhava no hotel dos Winterholer. Tinha 18 anos. Conquistou-me quando me disse que o meu rosto
era o de uma moderne Madonna. Falava com sinceridade e eu tive a estupidez de acreditar nele. Era um homem belo, sabes? Alto, cabelos ruivos, tinha os teus olhos
e era um extraordinário conversador. Lia muitos livros, mas gostava da boa vida. Eu vinha de uma casa decrépita em Val Pusteria, onde me tinha alimentado de batatas
e havia miséria. Um dia ofereceu-me um cesto de cerejas selvagens, uma rosa e uma pulseira de ouro. Era junho, era o dia 24 de junho, a festa de São João. O ar estava
quente e perfumado. Eu tinha trabalhado todo o dia a preparar as mesas, os bancos e tudo o que era preciso para a festa com as fogueiras no planalto de Bären Bad.
Lembras-te de Bären Bad, o banho do urso?
- Claro que me lembro - sorriu Karin, a cuja mente voltaram as palavras de Tante Ilse a propósito da noite de São João.
O teu pai chegou, lindo, jovem e generoso como um príncipe a oferecer-me os seus presentes. As cerejas e a rosa eram prendas comuns, apesar de nunca ninguém me ter
oferecido nada semelhante. Mas nunca imaginaria que neste mundo, um dia, alguém me iria oferecer uma pulseira de ouro. Chegou a noite, acenderam-se as almas e as
fogueiras. Havia uma orquestra que tocava num palco e toda a gente bebia e dançava, até nós, as empregadas, com os clientes do hotel. Os jovens desapareceram atrás
das avelaneiras, no bosque de mirtilos ainda verdes. Também eu, quando aquele belo jovem que me tinha enchido de presentes me estendeu a mão, o segui para longe
de toda a gente e das fogueiras. Entrei em êxtase quando me disse ao ouvido Du bist eine moderne Madonna. Naquela noite no bosque, que foi a mais doce da minha vida,
tornei-me mulher no meio do perfume dos morangos silvestres, enquanto ao longe ardiam as fogueiras de São João e as pessoas divertiam-se na festa.
- Não é uma história tenebrosa - constatou Karin, que tinha ficado corada e sentia o sangue pulsar-lhe nas têmporas.
- Mas vai acabar por ser, minha menina. As histórias de amor são sempre lindas quando começam. Depois, por uma razão ou por outra,

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acabam mal. O Joseph partiu, jurando-me amor eterno. Eu estava contente com aquilo que tinha tido e chorava nos seus braços, mas parecia-me quase impossível que
um professor universitário de Bona, lindo e generoso como um príncipe, pudesse apaixonar-se por uma rapariga nascida numa casa de camponeses de madeira no Alto Adige.
Quando ele regressou ao hotel dos Winterholer, julguei que enlouquecia de alegria. A neve tinha derretido um pouco, os esquilos saltavam de ramo em ramo e o bosque
tinha-se enchido de ruídos e perfumes novos. Os prados estavam de um verde terno e na erva despontavam gencianas de veludo. Todas as noites eu ia ter ao quarto dele
e parecia-me que estava a transpor as portas do paraíso. Foi mais um adeus, mais uma partida, mais lágrimas, novas promessas. Depois, uma antiga e resignada solidão.
Um dia, por sinais inequívocos, apercebi-me de que estava grávida. Escrevi-lhe a dizer isso, relembrando-lhe o nosso amor e as suas promessas.
- E ele... o meu pai... respondeu-te? - Karin continuava absurdamente espera do final feliz, apesar de viver numa realidade que o desmentia.
- Não. A minha carta não teve resposta. Talvez o teu pai nunca a tenha recebido. Talvez até nem estivesse em Bona. Provavelmente nem sequer era professor de Filosofia.
E ninguém me tira da cabeça que em Bona não há universidade nenhuma. Em qualquer caso, nunca mais soube nada dele. Quando souberam do meu estado, os Winterholer,
que tu conheces bem, fizeram tudo para saber quem era o homem que me tinha comprometido, mas sem resultado. Tentaram até ajudar-me economicamente, porque era evidente
que eu não podia continuar a servir. Por isso entregaram-me à velha Ilse Klotz. E fiquei junto dela até que tu nasceste. Nos meios pequenos as notícias voam, e a
minha reputação ficou arruinada. Desci até Merano e arranjei trabalho num hotel, como empregada. Todas as quartas-feiras, o meu dia de descanso, ia ter contigo e
levar algum dinheiro à velha Ilse. Quando fizeste 6 anos, um turista romano prometeu-me que casava comigo. Disse-me também que em Roma eu ia ficar com a mãe dele
e que me ia arranjar um trabalho bem remunerado. Parecia uma boa proposta e ele tinha ar de ser uma boa pessoa. Eu já tinha conhecido muitos homens com cara de boas
pessoas que me tinham desprezado, mas a esperança é dura de morrer. Fui atrás dele sem as ilusões que tinha quando fui atrás do teu pai na noite de São João, mas
com a convicção de arrumar a minha vida. Tu tinhas de ir para a escola. A Tante Ilse não

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podia fazer as vezes de uma professora e assim, depois de vários pedidos, consegui pôr-te no colégio de Merano, onde ias poder frequentar normalmente a escola primária.
A mãe daquele turista era, na realidade, a proprietária de uma pensão equívoca. E o trabalho bem remunerado era o entretenimento de clientes num estabelecimento
noturno. Tinha a tarefa de fazer beber os clientes e ganhava um tanto por garrafa. A parte maior do meu pagamento ficava o tal fulano com ela. O resto dava-me para
pagar a mensalidade do colégio. Mas era uma vida infame. Depois, quando já estava desesperada, conheci o Mario. É um bom homem. Faz-me companhia. Acompanha-me ao
night-club e eu continuo a fazer o mesmo trabalho. Agora já sabes quem era o teu pai. E sabes quem sou eu.
- Sinto muito por ti, mãe - disse Karin, que ao ouvir a última parte da história tinha ficado rígida. - Gostava de te poder ajudar.
Tinha escutado a confissão da mãe, mas era incapaz de entender e justificar a mórbida dependência de Martina daquele homem detestável que tinha um modo de vida nojento.
Estava pronta para lhe dar afetuosamente a mão.
- Agora já há pouco para ajudar. Tenho quase 30 anos e já não vou poder continuar esta vida - disse com amargura. Desde que adoeci, o Mario passa as noites fora.
Se calhar anda à procura de outra mulher que me substitua.
Karin sentiu-se horrorizada com aquela última confissão, mais inconveniente do que franca. A mãe não procurava a verdade, antes corrompia a sua alma pura, com aquela
vulgaridade que tinha dentro de si.
- Então porque é que me quiseste aqui... convosco? - perguntou com uma impiedosa frieza.
- Quero que tu tenhas instrução. - Martina falava em voz baixa, mas com um tom decidido. - Tu não vais ser empregada de mesa. Tu não te vais perder numa noite como
eu! - Nos seus olhos havia uma expressão de violência.
- Mãe, acalma-te - disse Karin, assustada.
- Os homens são todos uns porcos! - prosseguiu sem a ouvir. - E tu tens de ter muito cuidado e andar longe deles. - Agarrou-a decididamente por um braço e gritou:
- Percebeste bem?
- Percebi, mãe. - Tentou fugir daquele aperto de aço. Tinha lágrimas nos olhos.

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- Se alguma vez - ameaçou-a -, uma vez que seja, eu te vir na companhia de um homem, mato-te de pancada. - Respirava com dificuldade, como se lhe faltasse o ar.
- Mãe, por favor.
- Parece que eu não penso em ti. Mas penso. E de que maneira! Tens de ficar longe dos homens porque te levam à ruína. Nunca te esqueças disto - concluiu Martina.

Mario olhava para ela com avidez e brilhavam-lhe os olhos. Aquela rapariga punha-o doido: era deliciosa, com aquelas tranças cor de fogo, o rosto de opala, a boca
macia, o narizinho delicado, o olhar encantador, a silhueta esguia mas já cheia de vida que a bata negra da escola não conseguia esconder.
As meias de lã cinzenta que Martina lhe impunha, negando-lhe as meias de nylon, em vez de atenuar, acentuavam a beleza das pernas esguias, enquanto a saia curta
deixava a descoberto os joelhos perfeitos dos quais nasciam umas estupendas coxas de mulher.
Karin, sentada a mesa da cozinha, com os olhos inclinados sobre o seu trabalho de costura, comportava-se como se Mario não existisse.
- Olá, linda - cumprimentou-a cordialmente.
- Bom-dia - respondeu Karin sem olhar para ele. Conseguia imaginá-lo com o seu bigodinho ridículo e o seu sorriso obtuso, os olhos negros afiados como um alfinete,
e odiava-o ferozmente.
- Onde está a tua mãe? - perguntou.
- Saiu. - Como é que Martina conseguia tolerar aquela arrogância? E no entanto tinha a certeza de que o desprezava, mas não podia passar sem ele.
Mais do que uma vez, durante as suas discussões furiosas, a tinha ouvido implorar: - Por favor, não me deixes. Eu faço tudo o que quiseres.
Karin levantou os olhos da saia que estava a coser e encontrou os olhos do homem. Era um olhar inquieto e estranho e, por um instante, teve medo.
Mario sorriu-lhe para a sossegar. - Vi-te tão concentrada no trabalho - disse - que não tive coragem para te pedir o café do costume.
Karin pousou o trabalho em cima da mesa e aproximou-se do fogão para pôr a cafeteira ao lume.

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Mario foi até junto dela e pegou na caixa do café que estava em cima do balcão.
- Quantas colheres? - perguntou, atencioso.
- Eu faço - disse Karin, tentando libertar-se dele, mas o homem não a ouvia. Aquele cheiro de menina que provinha daquele corpo ainda não de mulher, mas já perfeito,
transmitia-lhe um desejo que o atordoava.
- Porque é que nunca sais de tarde? - A voz do homem tOmara-se rouca, insinuante. - Não queres que eu acredite que não tens um namorado.
- Mas que namorado? - Karin sentiu-se corar e fulminou-o com um olhar. - Onde foi buscar essa ideia?
- Todas as raparigas têm um namorado - disse ele a rir. - E tu és a rapariga mais bonita que eu conheço.
A água da cafeteira começou a borbulhar e ela apagou o gás.
- Vá lá, não fiques ofendida por isto - disse. - Estava só a brincar.
- Para a próxima vez vá brincar com outra - replicou Karin.
- Porque é que estás zangada comigo? - perguntou. Sentia vontade, uma vontade selvagem, de tocar aquele corpo estupendamente imaturo.
- Não estou zangada com ninguém. Só quero que me deixem em paz. - Pousou a cafeteira fumegante em cima da mesa e abriu a porta de um armário de parede para tirar
a chávena e o açúcar.
- E, no entanto, já tens idade para ter um namorado - insistiu. - És linda - continuou, aproximando-se cada vez mais. - Eu posso fazer a tua fortuna, sabes?
- O café está pronto - disse Karin, para tentar afastar-se. E fez tenção de se dirigir ao quarto. Mario barrou-lhe o caminho. - Então, pequena, estava só a fazer-te
um elogio - disse em voz baixa. - Não me parece que seja caso para tu reagires assim. - Tinha o olhar humilde de um cão escorraçado.
- Eu não reagi de maneira nenhuma. Quero ir para o meu quarto e basta. Foi para o quarto e sentou-se à secretária. Abriu o livro de História no capítulo da Revolução
Francesa, mas não conseguia concentrar-se. Fitava as páginas e recordava as palavras do homem, o olhar do homem, a sua insólita perturbação. Era a primeira vez na
vida que alguém fazia apreciações sobre ela.
Estava tão absorta nos seus pensamentos que não se apercebeu daquela presença atrás dela e quando deu conta já o homem tinha fechado

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as suas mãos ávidas sobre os seios imaturos e lhe dizia com voz rouca:
- Deixa-me acariciar-te.
Karin tentou libertar-se, mas ele tinha-a bem presa. Depois, tudo aconteceu como num pesadelo assustador, foi atirada para cima da cama, a saia levantada até ao
queixo, enquanto o homem a esmagava e a violava sem piedade, sufocando os seus gritos de terror com uma mão apertada contra a sua boca.
Mario levantou-se e Karin viu-lhe o sexo ainda sujo do seu sangue enquanto subia as calças que lhe tinham escorregado até aos joelhos. Teve um ataque de vómitos
e um fio fétido derramou-se sobre a coberta da cama. Os arranques de vómito continuavam a rebentar-lhe o estômago, mas já não tinha mais nada lá dentro. Nem sequer
ouviu o homem imprecar:
- Cristo, o que é que eu fui fazer?
Karin estava morta, perdida, aniquilada, já não existia, já nada mais existia à volta dela, nem o quarto, nem o homem, nem a cama conspurcada, nem o sangue que lhe
escorria entre as coxas.
O mundo começou a girar a volta dela como uma vertigem imparável e depois foi o silêncio. Karin não viu nada daquilo que aconteceu a seguir porque tinha desmaiado.
Dois dias depois, quando começou a recuperar, uma assistente social disse-lhe que podia regressar a casa da Tante Ilse: a mãe estava na cadeia. Tinha matado à facada
o seu violador.

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O DESAFIO

Intriga internacional

Bruno estava sentado no seu escritório a bordo do Trifoglio atrás de uma elegante escrivaninha de jacarandá. Carregou no botão que ativava o sistema de amplificação
e a voz do advogado Brancati, em Washington, ressoou clara e forte.
- Alguém nos tramou - praguejou o advogado. Brancati, que habitualmente era cauteloso, não tinha dúvidas naquele momento.
- De certeza? - perguntou Bruno. Serviu-se de uma bebida e acendeu um cigarro. A presença de Karin dava-lhe uma sensação de maior serenidade.
- Só assim se explica o alinhamento da IBB com as outras multinacionais contra o governo do Burhwana.
Karin escutou a voz do seu patrão difundida pelo amplificador e perguntou a si mesma o que iria pensar a Tante Ilse daquela modernice se ainda fosse viva e estivesse
com ela em Saint-Tropez, no iate de um milionário.
- Com certeza já investigaste o assunto - insistiu Bruno.
- Com certeza.
- Resultado? - Era um diálogo básico, insistente.
As cúpulas da IBB defendem que já não estão interessadas nos fornecimentos de ouro e diamantes do Burhwana.
- E assim o vazio a volta do país será completo. Falaste com o senador?
- Claro que falei - rebateu bruscamente. - Por isso vim a Washington. E descobri que ele te teria dado diretamente estas informações se ao menos tivesses tido a
cortesia de lhe comunicar onde raio te ias enfiar.
Bruno esvaziou o copo e esmagou o cigarro no cinzeiro de cristal. Era

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uma peculiaridade sua, desaparecer no vazio, e ninguém, exceto Calò Costa, poderia fornecer alguma luz sobre aqueles misteriosos parêntesis.
- Os factos, doutor - rematou, ao mesmo tempo que acendia outro cigarro. - Tínhamos ficado no senador.
- Depois do advento da administração Reagan, pode fazer muito pouco.
- Não era preciso voar até aos Estados Unidos para saber isso.
- Obtive as informações por vias travessas - prosseguiu Brancati, indo direto ao assunto.
- Então queres ter a gentileza de me informar?
- Alguém apanhou sete e meio por cento das ações da IBB.
- Uma quota suficiente para entrar na sala dos comandos.
- Pesadamente, diria eu.
- Um pacote de ações tão relevante não se consegue numa noite. - Bruno tinha ficado subitamente sério, pensativo, e os seus olhos cinzentos pareciam procurar à sua
volta uma solução. - É preciso tempo para obter sete e meio por cento de muitos milhares de dólares. Será possível que ninguém tenha dado conta de nada?
- De há dois anos a esta parte, vários grupos pequenos aparentemente sem ligação entre eles andam a recolher informações no campo da IBB. No fim, juntaram-se como
um enxame de vespas. E agora querem-nos lixar. - A voz de Brancati estava alterada pela indignação.
- Take it easy, Paolo. Não adianta exasperarmo-nos. No nosso meio, indignar-se é ridículo e infantil.
Tinha perdido algumas batalhas e nem sempre usara luvas de veludo nas que vencera. Tanto num caso como no outro, nunca se tinha indignado com o comportamento do
adversário. O importante era programar com calma o contra-ataque, para ter boas probabilidades de atingir o sucesso final.
- Eu não devo exasperar-me? - retorquiu, furioso. - Muito bem. Tu perdes algumas dezenas de milhões de dólares por causa de uma finta diabólica e eu fico tranquilo!
Havia sicilianos frios e racionais, e eram a maioria, e sicilianos perigosamente emotivos: a essa minoria pertencia o advogado Paolo Brancati.
- Quem está por detrás da operação? - perguntou Bruno.
- Os árabes. Esses lixados, danados e teus queridíssimos amigos árabes.
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- Os árabes são muitos - comentou Bruno. - Tenta não generalizar e seria melhor particularizar.
- É tudo o que eu sei, valha-me Deus! Oficialmente, a operação foi montada pelo banco suíço De Martigny. Mas por detrás estão eles: os teus amigos árabes. Alphonse
de Martigny nunca te perdoou aquela ofensa que fizeste à Claudine.
- É tudo?
- Bruno, eu vou apanhar o primeiro avião para Paris. Amanhã vou ter contigo à Côte. Entretanto, não era pior se tivesses alguma ideia.
- OK. Fizeste um bom trabalho. Fico à tua espera.
- Mais uma coisa.
- Diz lá.
- Eu tinha mandado a Karin ir ter contigo.
- Ela veio ter comigo. - Bruno piscou-lhe o olho.
- Ainda bem. Vou precisar dela. Quanto a mister Hachette, posso dizer-te que quer encontrar-se contigo para te contar a história dos preços que já não são competitivos
e outras doçuras mais. Pó dourado que os americanos deitam nas suas traições. Dizem que é melhor não criar inimizades com o Barão. Não mais do que o necessário.
- Estás a ver como eles não perderam completamente o juízo? - comentou, satisfeito. - Vai beber um copo àquele bar da Quinta Avenida sugeriu-lhe. - E regressa com
calma. - Bruno desligou. O sorriso radioso e a expressão divertida não traíam o golpe que acabava de encaixar.
O Barão tinha aprendido com a vida a sair dos cantos e a fugir das emboscadas. Sabia por experiência que a maneira mais rápida de sucumbir era alarmar-se e pedir
piedade. Tinham-no subavaliado e isso não lhe desagradava. O mesmo erro tinha feito com que outros antagonistas seus perdessem. Serviu-se de bourbon e chamou Frank.
- Espreme aquele maldito computador - ordenou ao secretário.
- Chama em código todos os nossos informadores. Quero o nome dos clientes árabes do banco De Martigny. E de entre eles quero a referência de quem fez transferências
para a IBB desde janeiro de 1980.
A bordo do Trifoglio estava instalado um computador onde eram inseridas todas as informações provenientes do mundo económico e político. Processador de dados fornecia
ao Barão informações preciosas e detalhadas sobre diversos assuntos e pessoas.

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Frank desapareceu em direção ao centro nevrálgico do barco, aquele espaço insonorizado e secreto que don Calogero Costa batizara de "o quarto do diabo".
Bruno levantou-se e aproximou-se de Karin, envolvendo-a com toda a ternura do seu olhar cinzento e sorridente.
- Onde é que tínhamos ficado? - perguntou, como se entretanto não tivesse acontecido nada. Como se algumas dezenas de milhões de dólares não se tivessem volatilizado.
- Quando? - perguntou Karin, com uma voz triste.
- Quando estávamos quase a chegar ao paraíso - rebateu, enquanto avaliava com um breve olhar a sua extraordinária beleza. - Há um século atrás.
- Precisamente - concordou Karin -, há um século. - Na expressão de Karin, subitamente sombria, tinham-se apagado o encanto e a luminosidade de um momento maravilhoso.
- Sou um especialista na recuperação da felicidade. - As suas mãos fortes seguraram as mãos finas de Karin.
- Desde então aconteceram muitas coisas, mister Brian - observou, conseguindo dominar a tremura e o aturdimento que aquele homem lhe suscitava.
- Mas não éramos amigos? - perguntou, fingindo espanto. Estavam muito próximos e ele respirava aquele cheiro de mulher e sentia o seu irresistível fascínio. - Os
amigos tratam-se por tu. Tratam-se pelo nome. Não é verdade? - Era convincente, mas o sorriso triunfante que brilhava no seu olhar tinha sido substituído por um
moderado otimismo. O espírito de competição tinha mudado alguma coisa dentro dele, apesar de manter intacta a expressão do rosto.
- Está bem, Bruno - disse com gratidão.
- Só isso? - Afagou-lhe o rosto.
Karin sentiu um arrepio, mas esquivou-se àquele ímpeto extraordinariamente meigo.
- Agradeço-te - disse, sem se preocupar em esconder a sua perturbação.
- O quê? - Intuía que Karin lhe escapava e sentia por sua vez um vago mal-estar.
- Talvez a ti pareça natural - justificou-se -, mas não é todos os dias

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que o Barão oferece a sua amizade a alguém. Sou uma mulher insignificante, Bruno. - Sabia quem era, de onde vinha, a vergonha que trazia consigo.
- O que sabes tu disso? - afirmou, praticamente ignorando-a, o pensamento e o olhar ausentes, longe, para lá das paredes do escritório, para lá das luzes de Saint-Tropez,
para lá do mar, em direção a uma memória que ninguém podia conhecer. - O que sabes tu disso? - Repetiu, acariciando-a novamente com a sua mão forte e nervosa, a
cheirar a colónia. Karin, como quando era criança, sentiu o sangue pulsar no pescoço e nas têmporas.
- Deixemos as coisas como estão, Bruno - suplicou-lhe, com uma voz envolvente. - Aquilo que para ti é um jogo pode transformar-se numa maldição para mim. Continuamos
a ser duas pessoas que se estimam, está bem?
- Tens medo que te faça perguntas sobre ti, sobre o teu passado? exclamou Bruno. - Ou então será que achas que eu preciso de mais uma medalha para pendurar ao pé
das que já tenho?
- Nada disso - disse Karin, cuidadosa. - Apenas o desejo de manter as coisas como estão. - Os seus cabelos libertavam reflexos acobreados à luz do candeeiro.
- Nunca fui contra os desejos de uma senhora - gracejou, mas havia alguma amargura na sua voz.
- Sempre achei isso - admitiu Karin.
- Tens medo?
Podia ter-lhe dito que sabia tudo sobre ela, o seu tormento, o seu amor por ele, o seu passado trágico, e que tudo isso, unido a sua extraordinária beleza, fazia
dela uma mulher pela qual poderia apaixonar-se perdidamente.
- Talvez tenha medo de mim - confessou. - Ou talvez não tenha ainda a coragem de olhar para trás.
- No fundo de qualquer existência - continuou ele -, há um segredo mais ou menos confessável. Quem quer que se debruçasse sobre o poço do seu próprio passado, seria
apanhado por uma vertigem.
- Também... tu? - balbuciou Karin, com o olhar carregado de espanto.
- Porquê? - replicou com dureza. - Quem sou eu? Chamam-me Barão e a volta deste nome as pessoas construíram uma lenda.

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Levantou-se, deitou mais bourbon no copo e depois apoiou-se no braço da poltrona onde ela estava sentada, acendeu um cigarro e disse: - Viagens, festas, divertimento,
mulheres. Sobretudo mulheres - disse com sarcasmo, enquanto observava o copo de cristal facetado que brilhava como um diamante. Mais do que com aquela mulher de
cabelos vermelhos e olhar azul-violeta, parecia falar consigo mesmo.
Karin pensou que lhe apetecia interrompê-lo para lhe gritar: "Porquê, talvez não seja assim? Claro, mulheres. Onde quer que tu estejas, estão mulheres." Mas calou-se
e decidiu deixá-lo falar, porque talvez o Barão estivesse prestes a confessar-se, a abrir um postigo secreto da sua vida.
- Se tu também pensasses assim, terias razão para o fazer - admitiu Bruno, passando uma mão pelos fartos cabelos castanhos já adornados de alguns fios de prata.
- É verdade. Houve muitas mulheres. Mas nunca as considerei objetos de coleção. Depois aconteceu algo... - Aproximou-se do Canaletto pendurado na parede em frente
à secretária e tocou com as pontas dos dedos a antiga moldura dourada.
Mas o postigo fechou-se e tudo mudou de repente.
- Gostava de te amar, Karin - confessou Bruno inesperadamente. - Gostava de poder amar-te como mereces. E eu sei amar uma mulher quando a amo.
- Mas, então, porquê? - perguntou Karin, enternecida.
- Porque a uma mulher eu só posso dar uma noite de amor - contradisse-se, com um sincero pesar. - Tu não és uma mulher que se leva para a cama e pronto. És algo
de mais e de melhor. Estou-te grato por teres sabido deter-me a tempo. Tu tens razão: devemos deixar as coisas como estão.
- Estás a ver como uma mulher insignificante se pode comportar de uma forma razoável? - Karin tentou reprimir a angústia. - Mas o teu segredo? - ousou, atrevendo-se
para além do aceitável.
O Barão deu uma gargalhada com demasiado vigor e demasiado sonora para ser natural. - O segredo está escondido nos meus aposentos respondeu, assumindo inesperadamente
o personagem público.
Karin empalideceu e não conseguiu impedir o coração de galopar furiosamente. - Nos teus aposentos? - disse.
- Mais precisamente, no meu quarto - comunicou-lhe brutalmente, com o tom desenvolto que ostentava para a plateia.

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- Podes poupar-me aos pormenores. - Ajeitou a saia para assumir um ar mais formal e preparou-se para se retirar.
- Somos amigos, não somos? - perguntou Bruno em tom de camaradagem. - É uma confidência entre amigos. A outra é apenas uma aventura.
- Não me interessam as tuas aventuras - pronunciou com dureza. - Poupa-me. Não me interessam aventuras passadas, presentes ou futuras.
- Mentirosa - replicou. - Estavas a morrer de vontade de saber. E talvez até quisesses saber como é, como se chama e tudo o resto.
- És um ser repugnante - agrediu-o sem medo.
- Não é tão bonita como tu - esclareceu - e não tem sequer uma ínfima parte do teu fascínio, se é que isso te pode consolar. Ainda está para nascer uma mulher que
se pareça contigo.
- Conversa - disse, devorada pelo ciúme. - Não passas de uma fábrica de palavras. - A incoerência de Bruno confundia-a.
- Se houvesse uma mulher que se parecesse contigo, eu ia procurá-la até ao fim do mundo. - Parecia querer prolongar aquele diálogo até ao infinito, como se depois
tivesse de desaparecer da sua vida. - Mas esta procurou-me a mim. Insistiu em vir atrás de mim. Amanhã estará novamente em Capri, onde tem um marido à espera dela
de braços abertos. Para mim tem tanta importância como aquilo - acrescentou, ao mesmo tempo que indicava a garrafa de bourbon pousada no tampo da secretária. - Ajuda-me
a distender os nervos. Naquele carrossel vertiginoso de sentimentos, Karin encontrou força para sorrir.
- Acabaste por me levantar o moral - disse sinceramente. A ideia de o homem que amava andar às voltas com uma aventura deprimia-a menos do que o previsto, em certo
sentido até a consolava. Seria trágico sabê-lo com uma mulher por quem estivesse apaixonado.
- Assim está melhor - disse Bruno, satisfeito. Mas não estava assim tão bem, uma vez que ambos, para além das aparências, estavam dominados por um profundo mal-estar.
O toque do telefone interrompeu o diálogo e as reflexões. Bruno levantou o auscultador, ouviu a voz que lhe falava do outro lado do fio e assentiu.

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- Acho que a Karin lhe podia ser muito útil. Mais do que tu ou eu disse. - Vou ver se lhe apetece dar aí um salto.
- O que foi? - perguntou Karin, alarmada.
- É uma mulher - comunicou-lhe, sério - que está no pavilhão de Cannebiers.
- Conhecendo o personagem - ironizou, num tom amargo, Karin, - não me parece uma circunstância assim tão insólita. E nem sequer particularmente original.
- Não se trata de uma brincadeira, Karin - interrompeu-a duramente. - É uma rapariga que o Calò apanhou na nossa praia. Alguém a deixou em muito mau estado.
- Em que sentido? - perguntou ela, subitamente preocupada.
Uma ruga amarga sulcou a testa de Bruno, que não conseguia justificar um certo tipo de violência.
- O Calò está convencido, tal como eu, de que uma presença feminina conseguiria tranquilizá-la mais do que ele consegue fazer.
Karin foi apanhada por uma sensação de náusea. Quando ouvia falar de violência sexual, vinha-lhe à memória aquele espetáculo nojento do homem que a tinha violado.
- Foram desconhecidos? - perguntou, enquanto passava uma mão pela boca à espera de sentir um arranque de vómito.
- Não - disse, ao mesmo tempo que um lampejo de vingança lhe atravessava o olhar. - Foi um indivíduo bem concreto que tem o talento de não passar despercebido. É
o filho de um egípcio e de uma árabe que acumulou uma fortuna colossal com tráficos pouco confessáveis. Quer obscurecer a fama de Adnan Khashoggi sem ter nem o seu
estilo nem a sua inteligência. Até mandou construir um barco maior. Conta exclusivamente com as suas relações e com a sua esperteza. É completamente desprovido de
escrúpulos. Não respeita as leis da Bolsa nem as do Corão.
- É aquele sheik que anda pelo Mediterrâneo numa espécie de porta-aviões?
- Esse mesmo - admitiu, ao mesmo tempo que os sinais da ira afloravam ao seu rosto. - Mas não é um sheik nem um homem de negócios. É um renegado. Chama-se Omar Achmal.
- Conhece-lo bem? - Estava angustiada pela sorte da rapariga desconhecida e por tudo aquilo que revivia dentro dela.

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- Não - respondeu. - Dele conheço apenas episódios repugnantes. Mas creio que esta noite vou saber muito mais. - Carregou no botão do intercomunicador que estava
ligado A sala do computador.
- Frank - disse -, pergunta ao supercérebro tudo o que ele sabe sobre Omar Achmal. Saudita. 53 anos. Comerciante de armas e sabe-se lá que outras negociatas.
Quando levantou a cabeça, Karin já não estava ali.

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Mister Hachette

Sob o sol do meio-dia, o Soraya, ao largo de Cannes, parecia um brinquedo esquecido por uma criança. O sol derramava ouro no ar imóvel.
Um ponto negro apareceu no céu límpido e azul, seguido de um zumbido incómodo. O pontinho que se aproximava rapidamente revelou a sua verdadeira estrutura: era um
helicóptero que se dirigia diretamente embarcação fundeada.
Na vertical sobre o Soraya, o grande inseto metálico imobilizou-se e começou lentamente a descer para o convés da popa, pousando no centro de um grande alvo.
- Bem-vindo a bordo, Mister Hachette. - Um oficial cumprimentou o americano que tinha saído da cabina quando as pás ainda rodavam.
- Barco fantástico - comentou o visitante, sorrindo cordialmente.
- Mister Achmal está à sua espera - disse o oficial, convidando-o a segui-lo.
Desceram uma escada de madeira maciça, percorreram corredores, atravessaram aposentos luxuosos e finalmente chegaram a uma ampla sala de estar sumptuosamente decorada
e com o chão coberto de tapetes valiosos.
Omar Achmal, de tronco nu e umas bermudas floridas que lhe acentuavam a proeminência do ventre, estava sentado num cadeirão de veludo.
- Hello - disse o árabe, levantando ligeiramente os olhos.
- Como vai? - cumprimentou-o o americano, de fato e gravata, o que tornava ainda mais grotesca a situação.
- Esteja à vontade, faça o favor - recitou a voz gorgolejante de Achmal, indicando-lhe um grande sofá.

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- Muito bem - suspirou o americano, enquanto se sentava.
Nunca na vida se sentira tão pouco à vontade, porque no comportamento de Achmal havia algo de mais violento do que a ausência do olhar, havia o sentimento de ódio,
o desejo da violação.
Hachette era um homem à volta dos 50 anos, alto, magro, com a face e a pele do pescoço ligeiramente flácidas, sinal inequívoco de uma dieta recente.
- Pois é... o Burhwana - resmungou Achmal a abanar a sua grande cabeça como uma cobra à espreita da presa. - O Burhwana - repetiu. - Têm os sul-africanos à porta,
os cubanos à janela e os líbios empoleirados no telhado. Se as forças de Pretória, em vez de andarem atrás dos angolanos, tivessem invadido o Burhwana...
- O problema não é esse - interrompeu-o o americano.
- Então qual é? - replicou com desprezo.
O americano tentou clarificar a situação, mas o árabe ignorava-o. Recordava a carne macia e branca da rapariga ajoelhada diante dele e o seu membro aterrador a penetrá-la.
Pensava naquela relação antinatural e violenta, recordava o destroço da rapariga, ao mesmo tempo que o rosto se iluminava com uma expressão de prazer diabólico.
- Está a ouvir-me? - perguntou o americano, que já não sorria, sinal de que a sua resistência tinha superado todos os limites.
- Claro - retorquiu Achmal. - Estou a ouvi-lo e a pensar nos meus assuntos e a recordar os meus prazeres. - O seu olhar indolente e viscoso estava fixo no convidado.
- Eu posso fazer muitas coisas ao mesmo tempo, mister Hachette. É uma virtude dos grandes homens.
O árabe confundia grandeza com poder. Poderoso era, há um tempo relativamente breve; grande nunca viria a ser.
Até 1964, Omar Achmal era um pobre beduíno Wahiba que nunca tinha ultrapassado os limites do golfo de Masirah e só de vez em quando se afastara até Muscat, no dorso
de um camelo, para comprar açafrão e gengibre.
Omar Achmal era um "filho do pecado", como todos os Wahiba sequiosos de liberdade, apesar de ele, mais do que os espaços infinitos e a, independência, amar o dinheiro.
Sabia também que era preciso ser persistente quando se quer conquistar algo: e ele era muito persistente no que dizia respeito ao dinheiro.

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Um dia abandonou o firqan da mãe, abandonou a mulher e os dois filhos que apenas eram nominalmente seus, porque as mulheres Wahiba deitam-se com todos os homens
que desejarem, e partiu para Abu Dhabi com seis camelos brancos, os mais belos camelos da Arábia. Eram propriedade sua porque os camelos são sempre do macho entre
os Wahiba enquanto tudo o resto pertence as mulheres.
Seguiu, pois, o caminho de Abu Dhabi o pobre beduíno Omar Achmal, sem saudades da imensidade das dunas douradas pelo sol, acariciadas pelo vento, endurecidas pelo
gelo, sem nostalgia daquela bela mulher que preferia outros machos para os quais besuntava as faces com açafrão e o cabelo com manteiga. Sem remorso pelos filhos
que não eram seus. Recordava sem afeto os olhos negros e profundos da mãe, que eram a única parte visível do seu rosto secreto coberto, e evocava com uma vaga sensação
de inquietude as palavras da mulher alguns dias antes da sua partida.
- Tu não pertences à nossa terra nem à nossa gente, Omar - disse-lhe. - Vives na tua pátria de estrangeiro. És diferente de todos. Como o teu pai. Um pirata egípcio
que vinha sabe-se lá de onde e que não conhecia as nossas palavras. Não pintava os olhos com antimónio. E não tinha a sedosa barba negra dos nossos pais e dos nossos
irmãos beduínos.
Omar Achmal já era um homem feito quando chegou à cidade de Abu Dhabi com os seus belos camelos brancos, a sua única riqueza, e muita vontade de possuir dinheiro
para satisfazer a sua necessidade de poder e a outra sua perversa avidez de possuir todas as mulheres que pudesse, penetrando-as de forma antinatural com o seu membro
monstruoso, gozando com o sofrimento delas.
Nenhuma beduína aceitaria a ideia de uma relação semelhante e uma tentativa do género significaria a exclusão, o ostracismo. Uma tímida aproximação tinha terminado
na sua marginalização. Também por isso decidiu ir para Abu Dhabi, onde talvez ganhasse dinheiro suficiente para ter todas as mulheres que desejasse.
Os primeiros ganhos foram realizados com a venda daqueles esplêndidos camelos brancos. Depois comprou e vendeu mercadoria proibida, revelando um talento extraordinário
e arriscando muito. Descobriu o comércio das informações e das armas, o mercado dos mercenários que, por um punhado de dólares, estavam prontos para matar sob todas
as bandeiras.

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Depois de ter conhecido o russo Vassili Karpov, criou tramas e intrigas para sustentar governos, para abater governos. Massacres tremendos levaram o seu nome.
Tinham passado quase vinte anos desde então, Vassili estava morto, as tinha havido outros encontros com expoentes máximos do KGB que apreciavam a sua capacidade
de comprar, vender e distribuir armas e de propiciar alianças no momento certo.
E os seus tentáculos acabaram por chegar a uma multinacional norte-americana.
- Fui claro? - perguntou mister Hachette, que entretanto tinha continuado a falar. Detestava aquele árabe e a sua odiosa ostentação. Tinham-lhe atribuído a pior
tarefa da sua carreira. E, no entanto, achava que já tinha visto tudo. Sondar as intenções daquele árabe renegado que falava um inglês incipiente e grosseiro causava-lhe
um desconforto insuportável. As palavras árabes que misturava no diálogo tinham uma ressonância gutural, eram diferentes das palavras cadenciadas e melodiosas dos
sheiks que tinham profundas raízes culturais.
- O senhor é sempre claro, mister Hachette.
Pensava na carne branca da rapariga que tinha sofrido o seu ataque na noite anterior, recordava o seu passado, mas tinha acompanhado o discurso do americano e tinha-se
apercebido de que a IBB não tinha ainda digerido a surpresa de se encontrar perante um sócio que iria influir pesadamente sobre uma parte dos seus interesses africanos
e canadianos.
- Então? - perguntou mister Hachette, à espera de uma resposta.
- Sente-se bem a bordo do Soraya? - mudou subitamente de conversa. O beduíno era esperto, escorregava como uma enguia e parecia uma serpente venenosa sempre prestes
a morder. - Acho que nem mesmo o vosso presidente se podia dar ao luxo de um barco como o meu. Estou errado?
O americano mexeu-se no grande sofá revestido de almofadas de damasco com trama dourada e massajou o lobo da orelha direita entre o Polegar e o indicador, máximo
sinal de nervosismo para ele.
- Mister Achmal - disparou -, não estou aqui em viagem de lazer. Gosto da montanha e enjoo no mar. Vivo num apartamento confortável em Park Avenue e não a trocava
por este porta-aviões.
O árabe deu uma gargalhada gorgolejante que lhe fez saltar a barriga.

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- O senhor é muito divertido, mister Hachette - disse, ao mesmo tempo que secava os olhos lacrimejantes. - Muito divertido - repetiu.
- Considero que a minha tarefa acaba aqui - rebateu mister Hachette decidido, manifestando a intenção de se ir embora.
- Nos negócios é preciso muita calma. - O árabe sabia que tinha a faca e o queijo na mão.
- Claro, claro - admitiu o americano.
Confrontou mentalmente a grosseria do beduíno com a classe do Barão. Pessoalmente, estava ao lado de Bruno Brian, profissionalmente estava na frente errada. Uma
hora atrás, quando o secretário de Bruno lhe tinha dito que o Barão não podia recebê-lo pelo simples facto de ter partido para Saint-Tropez, tinha ficado pesaroso.
De resto, no ponto em que estavam as coisas, não tinham muito para dizer um ao outro, mas um encontro com Bruno Brian acabava sempre por se transformar numa ocasião
agradável. Tinham-no encarregado de lhe fazer engolir uma pastilha amarga e Hachette, no que dizia respeito ao Barão, tinha já optado por um discurso leal, que era
o único discurso possível com ele. Era pena que se tivesse recusado a recebê-lo. Ou talvez, quem sabe, tivesse realmente passado ao contra-ataque, e nesse caso alinharia
com ele. Desta vez a guerra não era apenas entre o Barão e a IBB, mas, com características diferentes, entre a IBB e Omar Achmal. Provavelmente, Bruno Brian não
sabia disso.
- Meu amigo, não seja tão suscetível - disse, num tom insinuante. Ao fim e ao cabo, eu não sou o número um da nossa organização. Ainda não, pelo menos - acrescentou
perfidamente.
- Ainda não - repetiu o americano, reencontrando o sorriso.
- Tento fazer os meus negócios - continuou - e quanto a isso devo dizer que me saio muito bem. Mas não tenciono interferir nos vossos negócios com o Burhwana.
- Isso eu não tinha percebido - disse o americano com ironia.
- Parece-me que é esse o aspeto mais simples da questão - observou Achmal.
- Pode então explicar-me a oposição dos seus representantes a renovação do contrato de compra do ouro e dos diamantes?
- Foi uma decisão momentânea.
- Uma decisão que cria um vazio em volta do Estado do Burhwana,

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boicotado por todos os países que o rodeiam. Se ninguém lhe comprar o ouro e os diamantes, é como condená-lo a desaparecer da face da Terra.
- As decisões, como o senhor sabe, podem alterar-se. As relações com esse Estado africano, se é que se pode chamar Estado àquele trapo de terra, irão ser retomadas
em breve, e melhor do que anteriormente.
- Melhor para si, para a 1BB ou para o Burhwana?
- A última parte da questão não me diz respeito - esclareceu. - Se o Burhwana desaparecesse da face da Terra, era uma coisa que me deixava completamente indiferente.
E também não acredito que a IBB esteja disposta a um pequeno sacrifício para salvar a independência daquele país minúsculo e distante. No entanto, naquilo que diz
respeito aos nossos negócios, só lhe posso lembrar que estamos no mesmo barco. - Era substancialmente verdade.
- De qualquer modo, as coisas nunca mais vão ser como antes - objetou o americano. Era quase uma hora, tinha tomado o pequeno-almoço muito cedo e sentiu agudizar
as perturbações causadas por uma incómoda duodenite.
- Quanto a esse ponto, tem absolutamente razão - concordou o árabe, enterrando-se na poltrona com uma respiração cansada. - Não vai ser como antes. Bruno Brian vai
ter de se afastar. - Era a primeira vez que o árabe pronunciava explicitamente o nome do Barão.
- O que é que tem contra ele? - Era uma pergunta inútil.
- Eu não tenho nada contra ninguém em particular - sublinhou. - Terei alguma coisa contra se alguém se meter entre mim e as coisas que eu desejo. Porque quando há
alguma coisa que me interessa eu agarro-a, a partir do momento em que possa fazê-lo.
- Portanto, o senhor quer o Burhwana. Ou não? - Apertou instintivamente uma mão contra o estômago que lhe doía.
- O Burhwana tem toda a gente pendurada há anos - revelou o árabe. - Diz que não quer ingerências estrangeiras. E vende com as suas condições. Assim o cofre só se
abre para quem se contenta com migalhas. Eu quero o tesouro do Burhwana. E para o ter preciso de conquistar o poder Político.
- A nós parece-nos razoável, e economicamente vantajoso também, Comprar nas quantidades definidas por Aschwinda, aos preços estabelecidos por Londres - objetou Hachette
em tom resoluto.

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- Nós! Nós! Nós! - O árabe levantou-se e começou a declamar. - O senhor esquece-se, mister Hachette, que nesse "nós" também estou eu. Sou o último em termos de antiguidade,
mas não sou o mais pequeno. E eu digo-vos que é possível obter a galinha dos ovos de ouro, em vez de um ovo de vez em quando.
- O príncipe Aschwinda está sólido na presidência - replicou o americano. - Tem o conforto do bom trabalho feito e um largo consenso entre a população.
- Aquele negro insignificante - exclamou Achmal, continuando o seu comício - sempre conseguiu levar a melhor. Mas há uma oposição interna muito ativa. Se alguém
armasse os inimigos do zulu, o trono podia vacilar e cair.
- Nós não somos a legião estrangeira nem traficantes de armas - afirmou o americano com energia.
- Vocês são aquilo que vos convém ser - disparou. - É uma questão de oportunidade e de método. Cada um tem os seus. Eu não estou disposto a aceitar que o registo
da contabilidade do Burhwana fique nas mãos do Barão. Porque é ele, e isso toda a gente sabe, que marca as entradas e as saídas na contabilidade do Aschwinda. A
partir deste momento, o Burhwana está à venda. E eu cedo-o à melhor oferta.
O americano sentiu agudizar-se a dor de estômago e fez um esforço para reprimir um esgar. Onde quereria chegar aquele beduíno renegado? Em que bases fundamentava
as suas certezas?
- É um interessante argumento cinematográfico - disse lentamente, tentando desdramatizar o quadro traçado pelo árabe. - Um produtor corajoso podia convencer-se a
fazer daí um filme.
- O senhor é um diletante, mister Hachette - provocou Achmal.
- Ou talvez o senhor esteja cego por uma ambição desmedida - rebateu. - Volto a dizer-lhe, podia dar um bom filme.
O americano não acreditava nas palavras do árabe. Sabia que ele se tinha encontrado com Kadhafi e que, por conta da Líbia, manobrava os instrumentos da guerrilha
e do terrorismo. Na África Austral estavam os cubanos a fazer o jogo da União Soviética. As peças do mosaico encaixavam e o quadro que dali resultava era realmente
alarmante.
- Podia ser um filme profético ou um sonho premonitório - disse com dureza.

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- Pois, podia ser tudo - admitiu o americano, entrando no jogo de Achmal.
Movimentava-se na escuridão de uma estrada sem saída. Não era indispensável observar a bola de cristal para perceber que o beduíno se referia a uma ingerência soviética.
E o regime de Pretória, com o seu racismo delirante, justificava todos os movimentos de libertação. Fornecia um álibi até para os eventuais libertadores do Burhwana
que, com um governo-fantoche armado pelos líbios ou pelos cubanos, poderiam erguer-se em defensores da soberania do país ameaçado pelo expansionismo de uma potência
racista.
- As forças sul-africanas - esclareceu o americano - perseguem para lá das fronteiras os guerrilheiros namibianos da SWAPO. Mas isso não seria possível no Burhwana.
A vigilância nas fronteiras é rigorosíssima. Aschwinda está demasiado empenhado na independência do país. Se desse asilo aos combatentes marxistas da SWAPO, desencadearia
uma reação imediata de Pretória. E daria uma justificação aos conselheiros soviéticos.
- Está a ver como é simples o mecanismo? - Achmal fingiu-se satisfeito com a sagacidade do americano. - Mas isso - acrescentou - é uma hipótese. A outra hipótese
é que, entre os dois contendores, se intrometa um terceiro acima de ambas as partes.
- O senhor, mister Achmal? - brincou o americano.
- Estou a ver que a perspetiva o diverte. E fico contente por isso disse o beduíno, que não se deixava abater nem ofender com o comportamento do seu visitante.
- Também o senhor se teria divertido se eu lhe contasse a mesma história - justificou-se.
- Se me tivesse contado a mesma história - admitiu, com uma grande seriedade - eu rir-me-ia, com certeza. Mas já não me ria se fosse Omar Achmal a contar-ma. O Achmal
eu levaria terrivelmente a sério. Há muitos anos - recordou em voz alta -, quando cheguei a Abu Dhabi com seis camelos brancos, prometi que os ia trocar por dois
Range Rover. Disse que com aqueles carros ia transportar turistas europeus e americanos e ganhar dinheiro com isso. Disse que aquele seria o primeiro passo, ao longo
de um caminho que haveria de me levar muito longe. Ainda agora alguém se deve estar a rir com isso. Mas eu, que parti a pé e sem um tostão, cheguei aqui onde o senhor
vê.

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Hachette levantou-se, fingindo indiferença, e foi encostar-se ao bar de madeira escura. Esperava que ao mudar de posição as dores de estômago acalmassem.
Tinha chegado o momento da despedida.
O americano sentiu-se aliviado.

102

Em viagem para Umpote

O Boeing 747 branco-leite que ostentava na fuselagem um trevo verde, o símbolo do Barão, estava a sobrevoar o Sahara a uma quota de doze mil metros de altitude e
a uma velocidade de novecentos quilómetros por hora. A temperatura exterior era de 40 °C abaixo de zero. Na cabina o termómetro marcava 25 °C.
O avião, restruturado interiormente em Basileia pela Jet-Aviation em 1978, era uma moderna casa voadora que permitia a Bruno rápidas e confortáveis deslocações em
qualquer parte do Mundo. A bordo havia dois quartos, duas casas de banho, uma ampla sala de estar, uma cozinha apetrechada e um escritório, para além das instalações
da tripulação. A decoração era sóbria e funcional: as paredes revestidas de freixo claro, a alcatifa verde-azeitona como a do Trifoglio, as poltronas e sofás de
camurça cor de tabaco. Em cada aposento havia uma televisão.
Na roupa branca das camas e das casas de banho, nas toalhas de mesa e nos guardanapos, delicadamente bordado, o trevo verde.
A tripulação, desde o comandante às hospedeiras, era constituída por americanos, quase todos de origem siciliana, os quais tinham por Bruno Brian uma autêntica devoção.
Todos eles respeitavam o silêncio: era uma qualidade que não tinha preço e que nenhum salário nem nenhum prémio Poderiam pagar.
Quem quer que se dirigisse a eles, um jornalista ou um personagem importante ou a mulher ou a mãe, ouvia responder invariavelmente: I don't Know, a que se seguia,
se as circunstâncias o exigissem, um antigo reforço em dialeto: Nenti sacci'u.
Tony Moscato, o comandante, que tinha cara de professor de Filosofia

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e um sistema nervoso à prova de stress, estava com Bruno Brian há dez anos. Antes do Boeing tinha pilotado o Mystère e o DC-9, e quando o II Barão decidiu adquirir
aquele moderno colosso fez um curso de seis meses em Seattle, nos Estados Unidos, a fim de obter as competências necessárias para o pilotar.
O chef, Domenico Macaluso, era uma raridade: nunca tinha visto a América e não se importava nada com isso. Gostava da Europa, adorava Paris. Natural de Enna, tinha
emigrado muito jovem para a capital francesa e depois de muitas experiências foi contratado para o Chez Maxim. Partindo do degrau mais baixo, subiu a escada profissional
até se tornar Cordon Bleu. Aceitou colocar-se ao serviço de um só homem, dos seus colaboradores e dos seus hóspedes selecionados, sem ter pena de deixar célebre
restaurante parisiense. Tal como Frank Lo Cascio, que entrou ao serviço de Bruno renunciando ao posto de secretário de um vice-presidente da Remington.
O comandante, Frank, Domenico e todos os outros nunca se deixariam aliciar por remunerações mais elevadas. Porque Bruno lhes oferecia o risco, mas também a aventura,
o mais alto reconhecimento do seu profissionalismo e o máximo respeito pela sua pessoa. E não havia preço que pagasse aquele tipo de gratificação.
O avião levantou de Nice. A chegada ao aeroporto de Umpote, capital do Burhwana, estava prevista para as vinte e três horas. Bruno e Frank tinham passado muito tempo
a estudar a situação, primeiro a bordo do Trifoglio e depois no avião. O computador programado com as informações recolhidas tinha traçado um perfil de Omar Achmal
que o colocava de forma inequívoca no centro da intriga. Havia espaços para preencher, vazios a completar, mas o quadro era suficientemente claro e significativo.
- Fizeste um trabalho interessante, Frank - elogiou-o.
- Foi o supercérebro que fez tudo - replicou o secretário.
- Claro - disse, batendo-lhe amigavelmente no ombro. As palavras entre eles eram supérfluas.
Bruno estava perplexo pela coincidência singular: a descoberta da rapariga violada pelo árabe, na praia de Cannebiers, e a descoberta simultânea da manobra sobre
a IBB e as consequentes repercussões sobre a economia e a política do Burhwana, o pequeno país que tinha de se preparar para enfrentar dias difíceis.

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Havia demasiadas potências que se candidatavam a defensoras da soberania e da segurança dos países da África centro-meridional.
- Vamos descansar umas horas - propôs Bruno, ao mesmo tempo que enfiava numa gaveta da secretária os papéis que tinha estado a analisar com Frank. Espreguiçou-se
lentamente e acrescentou: - Passámos a noite a pé. E temos um trabalho duro à nossa espera.
Um assistente de bordo tinha já preparado a cama. Em cima da mesa de cabeceira, solidamente ancorados em bases metálicas, havia uma garrafa de bourbon e um copo.
Bruno despiu-se, entrou na casa de banho e tomou um longo chuveiro quente, respirando o vapor, o que o fez sentir-se melhor. Enfiou um roupão branco de felpo e à
frente do espelho dispôs-se a barbear-se.
Começou a ensaboar cuidadosamente a face servindo-se de um pincel de texugo com punho de ouro. Também a navalha era de ouro maciço, um modelo que Bulgari executava
para o sheik Admal bin Yussef. Este último, com quem Bruno entre 1961 e 1965 tinha frequentado um curso na Universidade de Berkeley, tinha-lha oferecido recentemente.
À medida que a navalha passava sobre a face, a imagem no espelho rejuvenescia e a cordialidade da expressão acentuava-se; só os grandes olhos cinzentos continuavam
marcados por pequenas veias e sublinhados por um sulco azulado que denunciava cansaço e tensão.
Enxaguou o rosto com água fresca, secou-o com cuidado, depois deitou na palma da mão umas gotas de Rochas e passou na face, experimentando uma sensação de frescura
e de bem-estar.
Penteou o cabelo com os dedos, estendeu-se em cima da cama e fechou os olhos, deixando-se embalar pelo ruído dos motores. Pensou no azul-violeta dos olhos de Karin,
nos seus cabelos flamejantes, na pele de alabastro, no seu subtil e penetrante cheiro de mulher e ficou com a certeza de que aquela teimosa montanhesa do Tirol lhe
tinha entrado no sangue.
Ele, Bruno Brian Sajeva di Monreale, meio americano e meio siciliano, que muitas vezes se deixara amar pelas mulheres mais belas do mundo, estava loucamente apaixonado
por aquela estranha jovem. Mas, precisamente por isso, precisava de descer a cortina sobre um episódio que ameaçava tornar-se terrivelmente sério e perigoso para
ambos.
Uma pessoa muito querida, na noite anterior, falara-lhe de morte, da

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sua morte. Alguém tinha jurado matá-lo. Era uma notícia que nenhum terminal eletrónico lhe poderia dar.
Sentou-se na cama, serviu-se de uma dose robusta de bourbon, bebeu e um calor agradável espalhou-se por todo o seu corpo. Carregou nu botão do telefone interno que
o punha em comunicação com Frank.
- Aqui estou - respondeu o secretário.
- Toma uma nota - pediu-lhe.
- Sou todo ouvidos, caneta e bloco de apontamentos - brincou.
- Frank - disse Bruno -, lembra-te de que todos os anos, no dia 1 de agosto, vais ter de enviar a Karin Venier, onde quer que ela esteja, uma jóia de Buccellati.
Quero que tenha sempre uma pérola com brilhantes amarelos. Expliquei-me bem?
- Explicaste-te bem e eu entendi perfeitamente. Mas falta pouco menos de um ano para isso.
- Faço questão, Frank - afirmou, com um tom resoluto.
- Está muito bem - disse o secretário.
- Eu sabia que podia contar contigo - agradeceu Bruno. - E agora tenta descansar.
- Era o que eu estava a fazer antes de me ligares. - Era uma voz agradável, sem sombra de ressentimento ou de despeito.
Bruno olhou para o relógio: eram duas horas da tarde, tinha ainda seis boas horas de sono, mas não conseguia adormecer. No dia anterior estava no Trifoglio com uma
americana engraçada que tinha embarcado em Capri e a perspetiva de umas férias agradáveis. Depois, tudo mudara. Sentia a falta de Calò, o seu anjo da guarda, que
desta vez tinha ficado em terra.
Na noite anterior, enquanto estudava com Frank a situação da IBB e de Omar Achmal, Calò tinha entrado no seu escritório com um rosto estranho.
- A rapariga? - perguntou Bruno, com interesse.
- Está com a Karin. Está a recuperar bem, fisicamente. - Durante algum tempo ficou ali sossegado a ouvir as cifras e as referências trocadas pelos dois. Mas uma
vez que as coisas estavam para durar, disse: - Bruno, preciso de falar contigo. Era a primeira vez que don Calogero Costa interrompia uma reunião de trabalho de
Bruno. O Barão ergueu para ele um olhar espantado.

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- Eu chamo-te daqui a um instante - disse a Frank. - Desculpa. - O secretário afastou-se imediatamente.
- O que se passa, Calò? - perguntou imediatamente, preocupado.
- O renegado quer matar-te. - Nos seus olhos cheios de bonomia passou a sombra de uma grande dor. Aquele siciliano grande e forte como um antigo guerreiro normando
ia sempre direto ao assunto, por mais amargas que fossem as coisas. Estava diante de Bruno com o seu corpo enorme, como se quisesse usá-lo como escudo.
Era um acontecimento imprevisto que teria feito gelar o sangue nas veias do homem mais corajoso, mas o Barão ficou impassível. Acendeu um cigarro e disse com calma,
em voz baixa:
- Ora conta, Calò.
Num siciliano cerrado, naquele dialeto difícil e áspero da Sicília central, começou a contar o episódio de Rosalia Paglia, abandonada na praia de Cannebiers.
- Não podia dizer-te isto pelo telefone - explicou. - Por isso pedi a colaboração da Karin. Não queria deixar a rapariga sozinha depois daquilo que me confessou.
O Barão serviu-lhe uma bebida e Calò engoliu um largo trago.
- Quando os homens de confiança do árabe trouxeram a rapariga para terra - continuou Calò - vinham a conversar entre eles, convencidos de que ela ainda estava sob
o efeito da anestesia. Mas a Rosalia estava acordada e ouviu tudo. Disse-me que os homens falavam em inglês e que ela, apesar de conhecer apenas as letras de algumas
canções, ouviu perfeitamente: boss... killer... Barão. Disse-me que com certeza falavam de morte em relação ao Barão.
- A rapariga conhece-me? - perguntou Bruno.
- Como toda a gente. De ouvir falar em ti. E de ter visto as tuas fotografias nos jornais. Mas não sabia que estava em tua casa. Queria ir à Polícia contar o que
tinha ouvido.
- Acalmaste-a? - perguntou o Barão, que já sabia a resposta.
- Convencia-a a estar calada, dizendo-lhe que iam tomá-la por louca. Não ia conseguir provar nem sequer a agressão. Agora a Karin está a tratar dela.
- E está ao corrente deste facto novo?

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- Claro. Eu disse-lhe que a rapariga podia ter percebido mal. Mas alguma coisa me diz que percebeu perfeitamente.
- Quem está com a Karin e com a rapariga?
- Dois marinheiros do Trifoglio.
- Muito bem. O árabe quer a minha cabeça. E não vai deixar de tentar seja o que for para a conseguir. Calò, meu amigo, a Karin e aquela rapariga não devem falar
com ninguém. A vida de quem conhece este segredo não vale um tostão. Tens de tratar disso pessoalmente. Confio-te a Karin, Calò.
- E tu? - perguntou, intuindo a resposta.
- Tenho de ir a Umpote. - Sabia que lhe ia causar um dissabor e uma grande preocupação a Calò.
- Sem mim?
- Sem ti, velho urso.
- Levo-as para casa? - Quando falavam de casa, Bruno e Calò referiam-se à Sicilia. Ao palácio de Piazza Armerina.
- Leva-as para casa e espera lá por mim. Eu vou ter contigo.
Calò apoiou as mãos possantes nos ombros de Bruno e apertou-os afetuosamente.
- Não gosto nada desta história, filho - disse, dirigindo-lhe um olhar bondoso e sincero. Tinha andado com ele ao colo, em criança, sempre o protegera, e naquele
momento gostaria de poder construir em volta dele uma couraça que o tornasse invulnerável. - Não me agrada nada deixar-te ir sozinho - concluiu. - Tem cuidado contigo,
Bruno.
Bruno abraçou-o e beijou-o na boca, como abraçava e beijava o avô, o velho barão di Monreale, que o confiara a Calò quando era pequeno. E aquela era a antiga maneira
de dizer adeus. Embalado pelo roncar dos motores e pela agradável sensação de segurança que a lembrança de Calò que dava, adormeceu por fim.

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Rosas para um killer

A eficiente rececionista do clube cumprimentou-o com o sorriso radioso que reservava para os melhores clientes. E Johann Kofler, de entre os melhores clientes, era
o número um. As suas gorjetas e presentes eram proverbiais, assim como o seu fair-play e a sua discrição. Era um autêntico cavalheiro e as atraentes rececionistas
gostariam de ver da parte dele uma maior iniciativa para poderem experimentar os píncaros da sua generosidade.
Johann Kofler passava a manhã inteira no ginásio: das oito às nove, ginástica; das nove às dez, natação, uma interrupção de dez minutos, depois judo e karaté. Das
onze ao meio-dia, sauna, massagem e relaxamento. Ao meio-dia e meia, uma ligeira refeição vegetariana de base macrobiótica que durava até à uma. Tudo isto cinco
dias por semana.
A atmosfera agradável daquele clube de Zurique, dotado de aparelhos modernos e de todo o conforto, modelava o físico de homens e mulheres de todas as idades que
tinham um atributo comum: o dinheiro. Johann Kofler frequentava-o há dez anos, desde que, proveniente da sua Innsbruck natal, decidira fixar residência na grande
cidade suíça.
Tinha 28 anos e um metro e noventa de altura, mas não podia considerar-se um homem bonito, pois o conjunto não apresentava harmonia. Apesar de ser alto e esguio,
conseguia parecer uma grande tartaruga marinha. Tinha mau cair, como o velho casaco de um antigo amanuense. Tudo caía nele: os olhos, o nariz, os ombros, a maneira
de caminhar. Mas era um atleta excecional. Adaptava-se-lhe perfeitamente a definição inventada para o vespão: "Contraria todas as leis da aerodinâmica, mas voa".
O seu corpo era um insulto a todas as regras da harmonia, mas era

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de uma eficiência atlética exemplar. Só os olhos azuis, pequenos e intensos, exprimiam uma extraordinária vitalidade.
Subiu no elevador que ligava a cave ao nível da rua e saiu do edifício. Sob o sol de agosto, percorreu rapidamente a distância que o separava do parque de estacionamento.
Transpirava abundantemente, também por causa do chinó. Do bolso das calças largas de algodão apertadas no tornozelo tirou um lenço e passou-o na testa, com cuidado
para não tirar do sítio a madeixa de cabelo postiço.
Cruzou-se com duas funcionárias muito jovens que regressavam ao escritório depois do intervalo de almoço. Uma delas disse baixinho A outra: - Se metesse aquela crina
no bolso, transpirava menos.
Enfiou-se no Renault vermelho e seguiu o caminho da colina.
O seu apartamento ficava num pequeno prédio de três andares que fazia parte de um recente complexo residencial bastante elegante. Passou pelo porteiro, que o cumprimentou
afavelmente.
- O seu correio, Herr Kofler - disse, ao mesmo tempo que lhe entregava os jornais e um maço de cartas. Eram essencialmente mensagens publicitárias. Havia um envelope
com selo e carimbo de Santa Mónica, Califórnia. Deteve-se naquela carta com um interesse ávido. O diretor do Jardim Botânico convidava-o para um simpósio que ia
decorrer em maio de 1983.
Eram duas horas da tarde. No apartamento, decorado com uma simplicidade elegante, havia uma penumbra agradável e um ar condicionado bem regulado. Deixou-se cair
no sofá e começou a folhear os anúncios do Bill Zeitung, convencido de que também naquele dia não ia encontrar aquilo que procurava, mas foi atraído por um anúncio
particular: "Alfred perdeu setter branco zona sul margem lago sexta-feira vinte uma horas."
Johann levantou-se de um salto, como uma mola: aquelas doze palavras, que tinham um significado preciso em código, impunham uma mudança imediata no seu programa.
Saiu de casa, meteu-se outra vez no carro e pouco depois parou em frente a um pavilhão com umas vigas de pedra sobre as quais assentava uma ampla estrutura em vidro
e aço, uma grande e moderna estufa, a sua estufa.
Veio ao encontro dele um homenzinho branco, calvo e esguio, que abriu caminho pelo meio de uma selva de flores e de perfumes.

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- Chegou cedo, hoje, Herr Kofler - disse-lhe, sorridente.
- Amanhã vou para fora - avisou Johann. - Vim um pouco mais cedo para poder ficar mais algum tempo com elas - acrescentou, indicando as flores.
O homenzinho, que trazia por cima das calças e da camisa um avental azul de peito, observou: - Vão sentir muito a sua falta.
- Também eu vou sentir a delas - replicou Johann, como se estivesse a falar da mulher e dos filhos. - A da minha Johanna, em particular. Aproximou-se de um tufo
de rosas grandes, de um amarelo intenso, quase cor de laranja, raiado de rosa-velho.
- Eu vou continuar com o meu trabalho - anunciou o homenzinho, enquanto se afastava com discrição, quase como se se tratasse de deixar a sós dois amantes na véspera
da partida. Johann acariciou com as pontas dos dedos as pétalas daquela rosa túrgida e sentiu irradiar-se e explodir dentro de si uma voluptuosidade indescritível
que acelerou o seu batimento cardíaco. Sentiu uma fisgada na virilha, que se transformou num prazer imenso, e o sangue afluiu ao sexo que inchou enquanto aspirava
o perfume sensual da rosa.
- Amo-te, criatura soberba - murmurou, com uma voz quebrada pela emoção. Falava-lhe como a uma amante muito terna.
Johanna era uma criação sua. Ele mesmo a tinha criado, após anos de trabalho minucioso e incansável, cruzando centenas de exemplares após horas de observação ao
microscópio, com um amor infinito. Johanna dava-lhe as alegrias que as mulheres sempre lhe tinham negado, e por isso sempre as desprezara. A começar por Erika, que
no ginásio troçava dele pela sua falta de jeito, porque era demasiado alto, demasiado magro e tinha o rosto coberto de espinhas.
- As mulheres são falsas, intriguistas, umas putas - confiou a Johanna, que lhe respondia com o seu perfume extenuante.
As flores nunca o tinham traído como o tinham feito as mulheres, como tinha feito a mãe ao rejeitá-lo, como -tinha feito o pai ao condená-lo ao marasmo de uma insuportável
mediocridade.
A história de Johanna, que recebera o seu nome, estava escrita com letras de ouro nos textos oficiais de floricultura. Com Johanna ganhara O Primeiro prémio em dois
concursos para rosas híbridas. Era o resultado mais alto da sua genialidade, que lhe tinha proporcionado louvores

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e consensos universais. A mãe tinha acabado na miséria juntamente com o representante de perfumes com quem fugira e o pai tinha morrido afogado em cerveja na velha
casa de Innsbruck, carregada de hipotecas.
- Tenho de partir. - Acariciou as pétalas aveludadas da túrgida rosa para mitigar a dor da separação. - Juro-te que vou continuar a pensar em ti. Todos os momentos
vão ser dedicados a ti. E regresso assim que terminar o trabalho. O velho Hans vai tomar conta de ti enquanto eu estiver longe. Quando voltar conto-te tudo. Já sabes
que não tenho segredos para ti. Adeus, Johanna.
O velho Hans conhecia-o bem, estava habituado aos seus intermináveis diálogos com Johanna e à sua maneira singular de se relacionar com as flores, com um afeto humano.
Tinha-o até ouvido com muita atenção quando tentara convencê-lo de que falar com as flores é útil, porque as flores escutam, absorvem as palavras, que têm sobre
elas o efeito de um bálsamo gerador de vida. Tinha experimentado o método e, a julgar pelos resultados, acreditava que podia testemunhar a favor da sua validade.
Por isso não se espantou sequer quando Johann instalou uma aparelhagem estereofónica para ter música na estufa. Pessoalmente, ele até apreciava boa música e sabia-lhe
bem ouvir Beethoven, Vivaldi ou Mozart. Talvez o patrão exagerasse ao afirmar que a música fazia bem às flores, mas seguramente não lhes fazia mal nenhum.
- Tenho a impressão de que a Johanna não está nas suas melhores condições - disse Johann quando se cruzou com o jardineiro a caminho da saída.
- Eu fico de olho nela, Herr Kofler - garantiu-lhe.
- Eu sei que posso contar consigo - disse à despedida, com um caloroso aperto de mão.

Às vinte e uma horas exatas, Johann Kofler sentou-se a uma mesa do Kursaal, um elegante bar com esplanada na zona sul da margem do lago. Era sexta-feira e muitas
das mesas estavam ocupadas com pares de namorados. A lua refletia-se na água onde passavam cisnes elegantes e patos-reais iridescentes. As gaivotas ruidosas sulcavam
os céus onde se vislumbrava ainda a última claridade do dia. Johann pediu um ice-café e pouco depois veio ter com ele uma jovem morena, muito elegante e bem vestida.
Era o tipo de rapariga prestes a

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transformar-se numa mulher notável. Trazia pela trela um esplêndido exemplar de setter irlandês com uma cabeça elegante e a cauda com franjas. Beijaram-se com uma
cautela suíça, enquanto o animal se aninhava aos pés de ambos. Johann voltou a chamar o empregado e pediu para a mulher uma Coca-Cola com uma rodela de limão.
- Era mesmo isso que eu queria - disse ela.
Deram as mãos através da mesa e olharam-se nos olhos como dois apaixonados.
Ela tinha uma expressão intensa e os seus lábios sorriam, cheios de amor. Parecia que o queria cobrir de beijos.
- Daqui a duas horas vais apanhar o voo da Swissair, número 626, para Bruxelas - murmurou, simulando uns olhos sonhadores. - À meia-noite exata embarcas no voo da
Air France para Kinshasa. Às oito da manhã entras nas linhas aéreas portuguesas para Joanesburgo. Um avião da companhia sul-africana levar-te-á a Durban. Ali encontrarás
um Range Rover com um motorista negro. Com esse indígena vais atravessar o Natal e através da fronteira do Lesotho passas para o Burhwana. És um fotógrafo que tem
de realizar um serviço sobre a flora local. Preciso de repetir? - disse a mulher.
- Está bem assim - respondeu Johann. Tinha uma memória prodigiosa.
A jovem tirou da bolsa que tinha pendurado nas costas da cadeira um exemplar da revista Stern e pousou-a em cima da mesa.
- Dentro do jornal está um envelope - continuou, com ar de quem está a falar de amor infinito.
- Percebo. - Escutava-a em êxtase. Em poucos segundos tinha perdido o seu aspeto desajeitado e exibia um ar radioso.
- Nesse envelope estão os bilhetes, documentos, passaportes, instruções e a chave de um pequeno cacifo na estação. - A rapariga pousou-lhe um beijo nos lábios, levantou-se
e foi-se embora com o seu esplêndido setter.
Era bela, jovem, elegante. Johann nunca a tinha visto antes e observava-a enquanto ela se afastava, mas sem um interesse particular, porque seguramente nunca mais
a veria. Olhou para o relógio: não tinha muito tempo. Saltou para o carro e dirigiu-se a. estação. Felizmente, a cidade estava quase deserta: era um fim de semana
de verão.

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Abriu o cacifo do átrio da estação e retirou um embrulho; não precisou de o abrir para saber que continha duzentos mil dólares. O seu preço para apagar uma vida.

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Aschwinda

O comandante do Boeing 747 pediu à torre de controlo de Umpote autorização para aterrar na pista central.
Tshilenghe, um zulu robusto com um metro e oitenta e cinco de altura, nascido e crescido na margem oriental do rio Zambeze, identificou-se.
- Os bóeres ainda não te comeram? - brincou Tony Moscato, que era amigo dele.
- Têm os problemas deles com a SWAPO - respondeu. - Pintaram o diabo a perseguir os guerrilheiros. - Era um técnico informado, tinha estudado em Londres e quando
tomava conta de um avião a aterrar pousava-o como uma pluma no asfalto de Umpote com quaisquer condições climáticas.
- Vês alguma coisa nesse teu maldito radar? - Tony referia-se aos Mirage El que tinham penetrado alguns dias atrás cerca de quinhentos metros em território angolano
e que ele preferia não encontrar na sua rota.
- És o único cavaleiro do céu, meu amigo - garantiu. - Estás sob a minha tutela. Confia no tio Tshilenghe. Estás no caminho certo. Daqui a quinze minutos sirvo-te
a dose mais robusta e mais forte do melhor café.
- Eu sigo-te, está sossegado - obedeceu o comandante.
- O presidente já está avisado - disse.
- OK, mas nada de fanfarras. É uma visita, especial. Mister Brian vai diretamente para o palácio.
Quinze minutos depois, o Boeing 747 do Barão tocava o solo no aeroporto de Umpote, capital do pequeno Estado do Burhwana. Alguns homens de secções especiais, vestidos
à civil, trouxeram a escada.
O comandante foi ao encontro de Tshilenghe e do café, parte da

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tripulação instalou-se na carrinha do hotel e Frank ficou a bordo com mais dois homens enquanto o pessoal do aeroporto se ocupava da manutenção do avião.
Bruno entrou no Cadillac presidencial. O automóvel partiu a grande velocidade para percorrer os quinze quilómetros de asfalto em direção ao palácio de Aschwinda,
no centro de uma grande clareira que confinava a oeste com a floresta, a este com o planalto e a norte com a cidade.
O palácio era uma construção simples de dois andares, em madeira e tijolos, rodeada por um pequeno muro mais decorativo do que defensivo. Dois militares abriram
o portão de ferro forjado e fizeram continência, apresentando as armas.
- Podes parar aqui - disse o Barão ao motorista.
Saiu do carro e avançou a pé ao longo da pequena alameda até ao portão da residência presidencial, que parecia mergulhada no sono. Foi cumprimentado por mais duas
sentinelas. O maciço portão abriu-se e apareceu um africano impecavelmente vestido à europeia que foi ao encontro dele a sorrir.
- O príncipe está à tua espera - disse-lhe, enquanto retribuía o abraço de Bruno e lhe batia afetuosamente nos ombros com as mãos.
- Vejo que manténs uma forma exuberante, Choo Awaba - cumprimentou-o.
- Tu também não brincas, rapaz - retribuiu o africano. Era um dos mais leais e inteligentes colaboradores do presidente.
- Como é que ele está? - perguntou, referindo-se ao príncipe Aschwinda.
Choo Awaba fez um esgar que lhe acentuou a magreza do rosto. - Estamos muito preocupados com ele - disse.
- E eu acho que lhe trago notícias que não irão melhorar a sua saúde lamentou. Atravessaram o átrio, caminharam ao longo de um corredor e entraram num aposento caiado
de aspeto quase franciscano.
- Estará aqui dentro de um momento - explicou Choo Awaba. - Agora tenho de ir.
- E o Sunny? - perguntou Bruno com ternura.
- Saltitante como um antílope - respondeu o africano com entusiasmo. - Corajoso como um leão.

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- Tens visto a Mahary? - perguntou, escondendo a emoção por detrás de um sorriso.
- Bela como a lua, doce como o mel - respondeu o homem, antes de desaparecer atrás da porta.
Bruno Brian deu alguns passos no chão de tijoleira, observou as lanças e os escudos pendurados nas paredes e depois sentou-se no macio sofá cor de nata que era a
única nota luxuosa naquele ambiente que nada tinha de principesco.
Cortinas brancas cobriam as janelas e uma grande ventoinha imóvel estava colocada no centro do teto. Flores de magnólia em grandes vasos nos quatro cantos da sala
emanavam um perfume intenso.
Sobre uma mesinha baixa de cana entrançada, à frente do sofá, havia um bule, uma garrafa de bourbon, um balde com cubos de gelo e alguns copos. Bruno sorriu e Aschwinda,
que vinha a entrar nesse momento, captou aquele sinal de satisfação.
- Estás a ver como nos lembramos de ti? - disse, ao mesmo tempo que lhe estendia os braços. Tinha um rosto cansado e triste, uma voz gorgolejante, rouca, pesada,
produzida muito a custo pela passagem do ar emitido pelo estômago. Tinha sido operado em Paris a um cancro da laringe e respirava através de um furo praticado na
traqueia, escondido pela seda branca de uma camisa que lhe cobria o pescoço marcado de cicatrizes e queimado pelos raios Röntgen.
- Fico contente por te ver - disse o Barão. - Apesar de não te trazer notícias muito reconfortantes - acrescentou com sinceridade.
O presidente encolheu os ombros, resignado.
- A verdade - disse mecanicamente - tem sempre em si alguma coisa de bom. Tinha apenas 60 anos, mas parecia muito mais velho. A doença e as preocupações tinham-no
marcado duramente. Rugas densas e profundas sulcavam-lhe a testa. Os olhos redondos, sempre atentos, pareciam sublinhar a mutilação sofrida e queriam acrescentar
alguma coisa ao seu discurso incompleto.
Bruno recordava os olhos negros e profundos de Aschwinda antes da Operação: eram cheios de inocência e de ternura, enquanto naquele momento estavam inchados de apreensão
e injetados de sangue. A voz, em tempos, tinha sido quente e musical, a conversa brilhante.

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- Bebe, rapaz - disse o presidente, ao mesmo tempo que lhe indicava a garrafa de bourbon e o convidava a sentar-se no sofá ao seu lado.
O príncipe zulu Aschwinda, com a ajuda de Bruno, tinha conseguido manter a independência do Burhwana, um pedaço de terra assediado pelos sul-africanos e ameaçado
pelos novos defensores da soberania dos países da África centro-meridional. O pretexto era o da segurança e de uma nova liberdade; o fim era, pelo contrário, a posse
definitiva e a exploração das minas de ouro e de diamantes: as únicas minas da África Austral que escapavam ao controlo das multinacionais e das potências estrangeiras.
Explorando ele próprio os recursos naturais da nação, o príncipe Aschwinda estava a transformar o país, elevando-o de uma miséria obscena a um nível de existência
digno. O presidente escutou com extrema atenção as palavras de Bruno.
- Então, o árabe quer pôr as mãos nas nossas riquezas. E a IBB? - perguntou.
Bruno refletiu um instante. A incapacidade do interlocutor provocava-lhe uma infinita tristeza.
- Acho que, pela maneira como as coisas estão, tem as mãos atadas respondeu. - No entanto, não me parece que haja boas relações entre a sociedade e Achmal.
- Entretanto, o objetivo - rebateu amargamente o outro, seguindo a linha dos seus pensamentos - é evidente, vão tentar armar confusão para se apoderarem do país.
O esquema é claro. Primeiro, os sul-africanos declaravam-nos democraticamente a guerra, criando uma espécie de embargo sobre a nossa produção. Seríamos donos do
ouro e dos diamantes, mas ninguém os compraria.
- O que equivale a não os ter - observou Bruno.
- Depois, tu resolveste o problema com a IBB. E agora? - Aschwinda levantou-se, aproximou-se de uma das janelas e contemplou ao longe o perfil da cidade de Umpote.
Noutros tempos, no lugar das casas e das ruas, havia uma vasta extensão de erva atravessada pelo grande rio, onde os Bushwinda levavam os seus rebanhos a pastar.
Recordou-se de si mesmo ainda jovem, a descer do planalto, envergando o karos, um quente casaco de peles, e trazendo na mão a kalabaza já vazia, a enorme cabaça
que ia encher no rio. Tinha parado em êxtase diante daquela maravilhosa planície, uma boa terra fértil e

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perfumada, porque aquele era o termo da sua viagem e era ali, mesmo no centro da grande planície, que ia fundar a cidade de Umpote, em memória do pai, o grande príncipe
trucidado pelos brancos.
"Aqui construiremos o nosso país" tinha dito aos guerreiros sobreviventes da batalha, que se ajoelharam diante do rapaz descendente do rei, testemunhando-lhe a sua
fidelidade e a sua confiança.
Muito sangue fora derramado, muitas vidas ceifadas, mas por fim venceram. Os sul-africanos ratificaram um pacto que permitia àquele bando de desorientados viver
livremente num território onde não havia senão erva. As minas seriam descobertas muito mais tarde, quando os Bushwinda tinham já criado um governo estável.
- Tu já conheces esta história - disse, voltando-se para Bruno.
- Conheço.
- Nessa altura eu era jovem e acreditava nos sonhos - continuou Aschwinda com um grande esforço. Havia algo de senil e de desesperado naquela cada vez mais frequente
repetição da história.
- Este país existe porque tu assim o desejaste - afirmou o Barão.
- É verdade - admitiu. - Alguns sonhos acabam sempre por se realizar. Mas já lá vão mais de trinta anos que eu estou na corda bamba. A partida ainda não acabou.
Antes de os brancos escavarem aqueles malditos trilhos para penetrarem na floresta, nós éramos um povo orgulhoso. Durante gerações e gerações, os brancos pisaram
ouro e diamantes que para nós não significavam nada. Preciosos para nós era a água, os frutos do embondeiro, o amor, a caça, os filhos. Nunca nos adaptámos à exploração
dos nossos recursos. Agora as nossas crianças andam na escola. Alguns jovens frequentam a universidade. As cabanas de lama são cada vez menos. Comprei armas, aviões,
helicópteros. Reuni um pequeno exército. Assumi compromissos. Este país existe porque eu o desejei. Tens razão. Mas já não existiria sem ti. - Falava penosamente,
tinha a testa banhada de suor e o rosto de ébano com uma expressão antiga que se tinha transformado numa máscara trágica.
- Descansa, Aschwinda - murmurou afetuosamente Bruno.
- As forças abandonam-me - confessou tristemente, recostando-se nas almofadas.
- As forças vão e vêm - disse Bruno.
- Acho que o meu mal me atacou outra vez - disse, resignado.

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- Eu levo-te a Paris - ofereceu-se. - Ou aos Estados Unidos.
- Ninguém deve suspeitar de nada - retorquiu, sombrio. - A situação poderia precipitar-se irremediavelmente.
- O que dizem os teus médicos? - perguntou Bruno, entreabrindo a janela. Estava uma noite limpa e fresca, uma fantástica noite de inverno.
- Os médicos não sabem nada. - Bebeu lentamente um longo sorvo de chá.
- Mas, então - replicou, esperançado -, pode ser uma perturbação.
- A dor não é uma impressão - afirmou. - Sinto que se aproxima de noite, arranha a porta e espeta os dentes dentro de mim. Escura. Surda. Não tenho medo de morrer,
bem sabes. Tenho medo de não ter tempo para deixar o meu país em ordem.
- Vem comigo - insistiu. - Na América fazem milagres.
- Havemos de falar sobre isso, mas não agora - disse o presidente.
- Agora não tenho tempo para tratar de mim nem para morrer. Preciso de falar. E felizmente estás cá tu. O que me aconselhas?
Bruno tinha feito muito pelo Burhwana, estreitando relações, propiciando alianças, garantindo colaborações poderosas. Era o homem-chave do país. Sem ele, o Ultimo
Estado independente da África Austral já teria ido parar às mãos dos especuladores e dos mercadores de poder.
- Temos de restabelecer o equilíbrio no conselho de administração da IBB - observou o Barão.
- Consegues fazer isso? - Estava pronto para lhe fornecer qualquer ajuda, para empenhar todas a suas forças.
- É uma operação complexa - avançou. - Complexa mas não impossível.
- Se for uma questão de dinheiro, estou disposto a pôr em ação as minas que só tu e eu conhecemos. - Ergueu a chávena de chá da Velha Saxónia e depois voltou a pousá-la
no pires.
- Dinheiro vai ser preciso, mas não podemos trair-nos - aconselhou Bruno. - Se soubessem dos tesouros escondidos, amanhã entravam aqui com tanques.
- Estão a financiar a oposição - comunicou-lhe.
- É possível - concordou com preocupação. - Bastava-lhes um mínimo pretexto social para avançar na escalada do poder político. Vão tentar manobras de desestabilização.

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- Vão passar aos atos de terrorismo - disse Aschwinda. A dor começava a insinuar-se no ombro direito.
- Por enquanto a situação parece tranquila - Bruno tentou tranquilizá-lo.
- Pode deixar de estar amanhã - rebateu Aschwinda com realismo, dirigindo-se a Bruno com um sorriso afável. - Quando se caminha pela estrada do progresso, nunca
se vê o fim. Conquista-se uma meta e há logo outra a seguir. Quanto mais coisas se conhecem, mais se descobre a nossa própria vulnerabilidade. Entretanto, já se
está a caminho e é preciso seguir em frente. Mas depois vale a pena? Será que o meu povo é mais feliz desde que surgiram os edifícios de cimento? As pessoas também
morriam e se curavam nos tempos dos feiticeiros. Hoje, os comandos de Pokana foram substituídos pelo juramento de Hipócrates. E as pessoas morrem na mesma. Mas é
mais triste, porque já não se tem nenhuma familiaridade com a morte. Sopra um vento de melancolia sobre a nossa terra desde que a nossa civilização se perdeu.
- Ainda podemos ter algum controlo - garantiu Bruno com calma, renunciando a contrariar a filosofia de Aschwinda, com que em parte estava de acordo. - Anda comigo
- acrescentou.
- Amanhã falamos sobre isso - concluiu - Agora vai - disse-lhe. - A tua mulher e o teu filho estão à tua espera.

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A doce Mahary

Mahary, a encantadora princesa de olhos de âmbar e pele de cobre, era o vínculo de ternura que ligava Bruno Brian ao Burhwana. Tinham-se conhecido na Europa, onde
se apaixonaram imediatamente, e tinham casado secretamente muitos anos atrás, de acordo com o rito e a tradição zulu, quando a lua está na última fase e prestes
a desaparecer.
- Meu amor - murmurou Mahary com a sua voz antiga, na língua arcaica dos pais zulu e swazi. O timbre era materno e sensual.
- Tive saudades tuas - confessou Bruno. Era sincero, apesar de a lembrança de Karin se manter ainda próxima e intensa. Mahary era a sua companheira, a mãe do seu
filho.
- É a minha única consolação, saber que tiveste saudades minhas. - Estava à espera dele, descalça, no vestíbulo que dava acesso aos seus aposentos. Os traços delicados
mantinham-se num equilíbrio precário entre o riso e o choro, mas tinham uma intensa expressão da felicidade. Na simplicidade do seu olhar de âmbar brilhava uma ternura
infinita.
Bruno olhou para ela intensamente, afagando-lhe a beleza inalterável.
- Estiveste sempre comigo - mentiu, sem o saber.
- Agora estás aqui. - Era quase tão alta como ele, bem constituída, com um longo pescoço estreito que fazia realçar a forma graciosa da cabeça, sublinhando um rosto
perfeito.
A cor da pele de Mahary fazia lembrar o cobre, o âmbar, o jade: era elástica, compacta e tinha uma tonalidade amarelo-acastanhada. Dos zulus tinha os cabelos uniformemente
crespos, muito curtos e de uma singular macieza que traía o contributo cromossómico dos malaios importados

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pelos brancos como escravos em finais do século XVIII para cultivar, no Natal, a cana-de-açúcar.
O seu corpo flexível, os seios pequenos e duros e as pernas longas e nervosas eram realçados pela linha de um vestido de seda verde-claro que escorregava ao longo
dos flancos estreitos. Ambos se olharam longamente. Ela sorriu-lhe, descobrindo uns pequenos dentes muito brancos. Nos lóbulos das orelhas, pendurados num fio de
ouro, oscilavam dois diamantes puríssimos, diamantes da sua terra, gotas de luz que tornavam a sua pele mais preciosa. Abraçaram-se sem falar.
Mahary conduziu-o até à sala de estar, que era um aposento de singular requinte naquela residência quase austera. A luz suave de um grande candeeiro de porcelana
irradiava sobre as pequenas esculturas de marfim espalhadas sobre uma mesa Luís XV. Bruno olhou para as poltronas do século XVIII que estavam colocadas em frente
a um moderno e confortável sofá de camurça branca e escolheu este último.
A princesa aproximou-se de uma cómoda estilo Regência e de uma ampla taça de porcelana chinesa que continha um arranjo de pequenas flores brancas e escolheu a flor
mais bonita.
- Para o homem do meu coração - murmurou, ao mesmo tempo que lha estendia.
- Minha doce Mahary - disse Bruno com devoção. Contemplou a sua figura admirável contra uma parede de vime ao fundo, em parte refletida pelo opaco esplendor de um
antigo espelho veneziano colocado por cima de uma lareira de mármore branco com embutidos florais dourados.
- Estou aqui - disse, sentando-se ao lado dele. Falava um francês irrepreensível.
- Lembras-te daquele pequeno hotel na rue des Beaux Arts? - perguntou Bruno.
- Lembro-me de tudo - respondeu, abanando levemente a cabeça de cabelos curtos e macios de malaia e fazendo ondear as gotas de luz penduradas nos lóbulos das orelhas.
- Dos jantares no Procope também? - Era o mais antigo café de Paris.
- E também dos realejos e das montras de Saint-Germain-des-Prés. Fazia girar sobre si mesma, dentro de um balde de prata, a garrafa de Krug 1974.

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- Alguma vez te disse que te pareces com Paris? - Admirava a sua reserva delicada.
- Não. Mas fico contente por me dizeres isso agora - respondeu reconhecida.
Bruno tentou afastar os pensamentos tristes que o dominavam, enquanto Mahary servia o champanhe em flûtes de cristal.
- Para que o nosso amor nunca acabe - brindou a princesa.
- E que o nosso filho possa crescer num mundo mais justo - acrescentou Bruno.
- O Sunny não estava à tua espera - disse. - Queres vê-lo já?
- Não - respondeu Bruno. - Seria um despertar demasiado brusco. Ia estragar-lhe a noite. Vejo-o amanhã. - Dirigiu-lhe um olhar cheio de reconhecimento. Sentia-se
grato pela sua reserva, pelo seu amor calmo e desinteressado.
Mahary nunca o agredia com mil e uma perguntas, esperava pacientemente que fosse ele a falar, se quisesse falar, se quisesse comunicar os seus pensamentos.
- Parece-me uma decisão sensata - concordou a princesa.
Bruno puxou-a para si, mergulhando o rosto no côncavo do seu pescoço para respirar aquele inebriante aroma de musgo e magnólia que era o seu perfume natural. Mahary
e a sua beleza não precisavam de artifícios particulares.
- A minha decisão é egoísta - confessou.
- Qual? - provocou-o, contendo um sorriso.
- A de não acordar o Sunny. Tomei-a sobretudo por nós. Aquilo que resta desta noite fantástica quero viver só contigo. - Pousou o copo vazio em cima da mesa.
Mahary abandonou-se nos seus braços e Bruno levantou-se, erguendo sem esforço o corpo flexível como um junco da sua princesa, que lhe passou os braços em volta do
pescoço. Atravessou a sala de estar e abriu com uma pressão do pé a porta que dava para o quarto. Ela sorria, deliciada com a força delicadíssima de Bruno, sorria
daquele ritual sempre igual e sempre diferente que era o prelúdio de um extenuante jogo de amor. Mahary sentiu uma ligeira vertigem enquanto, nos braços do marido,
atravessava a alvura absoluta do quarto nupcial, o chão coberto de peles de ovelha, a grande cama fechada por cortinas

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leves de batista, as janelas ovais protegidas por véus, os candeeiros sobre as mesinhas de cana entrelaçada e cobertas de tecidos brancos bordados. Bruno instalou-a
delicadamente na cama e ficou durante alguns instantes de pé, a olhar para ela. Depois começou a despir-se lentamente, enquanto ela deixava escorregar o vestido
dos ombros com uma graça que a Bruno fazia lembrar os dias do primeiro encontro em Paris. Tentaram uma conversa de amor, mas aperceberam-se de que as palavras já
não faziam sentido a partir do momento em que os seus corpos falavam por eles numa linguagem intraduzível.

As fogueiras expandiam-se em volta de uma luz avermelhada: estavam demasiado distantes para mitigar a frescura noturna do inverno austral, mas suficientemente próximas
para acentuar com reflexos teatrais os traços decididos, a beleza viril de Bruno.
A doce Mahary, a encantadora princesa de olhos de âmbar e pele de cobre, segurava-o pela mão, impelida por uma necessidade feminina de proteção.
Caminhavam lado a lado, o homem de estrutura atlética e a mulher de corpo delicado de gazela, em direção à árvore gigantesca construída pelos séculos no centro da
planície, tendo como fundo a floresta fervilhante de vozes que misturava a sua respiração vital com a brisa noturna.
Ambos, vestidos de branco, caminhavam com a naturalidade do primeiro homem e da primeira mulher, fitando o embondeiro com intenções diferentes, mas com a mesma emoção,
com idêntico respeito. A cerimónia desenrolava-se da mesma maneira de cada vez que Bruno deixava o Burhwana. Na reverberação das fogueiras, os indígenas dedicados
à princesa modulavam um antigo canto auspicioso apoiando-se nos seus assegai, uma lança de punho curto introduzida no armamento dos guerreiros zulu pelo grande e
cruel chefe Shaka.
O assegai era no passado uma arma mortal que obrigava os homens a ferozes lutas corpo a corpo, favorecia o ataque, mas deixava cruelmente os guerreiros sem defesa
no preciso momento em que lançavam aquela arma tremenda. Shaka tinha sido assassinado pelo meio-irmão, Dingane, em 1828, mas a memória da sua coragem e da sua crueldade
estava ainda Presente e o tremendo assegai, a arma que tinha submetido as tribos

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inimigas de uma imensa região, estava ainda em uso entre os guerreiros do Burhwana, apesar de disporem também de armas modernas. A peregrinação ao embondeiro tinha
para a princesa Mahary a solenidade de um rito tribal. Na véspera de qualquer partida, escoltada pela sua guarda pessoal, queria que Bruno a seguisse até aos pés
daquele colosso vegetal, com dez metros de altura e nove de diâmetro, que era tradicionalmente o ponto de encontro dos numes tutelares, a sede mágica dos espíritos
protetores dos Bushwinda.
O povo do minúsculo Estado do Burhwana, através de ocasionais diásporas, migrações e batalhas, tinha aportado naquele canto da África Austral com a memória do grande
Monomotapa, o mítico imperador que conhecia o segredo das minas do rei Salomão.
O vento passava por entre o emaranhado dos ramos, transportando uma música misteriosa da árvore dos mil anos, uma harpa ciclópica majestosamente desenhada na luminosidade
noturna. As estrelas brilhavam no céu macio de agosto sulcado por efémeros caminhos de prata.
Era inverno e na grande copa em forma de cúpula do embondeiro tinha ficado o eco de um perfume subtil, a exótica reminiscência das flores brancas, semelhantes a
pequenas trombas, que se tornava mais percetível quando o vento caía. Depois regressava a brisa que trazia os perfumes da floresta.
- Amo-te - murmurou Mahary na sua língua arcaica. Procurou refúgio e proteção no peito do seu homem, colocando-se assim entre ele e o escuro fervilhante de mistérios,
como um escudo.
Bruno sorriu, mas sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.
- Dizes-me isso como se nos tivéssemos conhecido agora. - Apesar da intenção de exorcizar o feitiço que passava da pele de Mahary para o seu coração e de desdramatizar
uma situação que o envolvia, proferiu aquelas palavras com uma inflexão grave e solene.
- Conhecemo-nos agora - retorquiu Mahary. Era verdade. Conheciam-se há dez anos, tinham um filho de 9, mas aquele sentimento continha a doçura e a agressividade
dos amores acabados de nascer, e por isso aquelas palavras continuavam a ter um sentido profundo.
- Eu também te amo - disse Bruno. Ergueu com a mão forte e quente o rosto da mulher e fitou o olhar de âmbar que refletia as estrelas.

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- Gosto dos teus olhos - declarou Mahary, olhando para ele com adoração. Depois acrescentou: - Olhos de lua.
- Vai ser uma separação breve, desta vez - tentou sossegá-la, intuindo os seus pensamentos secretos.
O amplo teto do céu foi sulcado por uma luz de prata.
- Imagino um dia sem partidas e sem adeus - respondeu Mahary, exprimindo o seu desejo mais verdadeiro e profundo.
Bruno abraçou-a.
- Esse dia vai chegar em breve - garantiu-lhe com a sua voz quente e protetora. - Prometo-te.
- Acho que se pudesse estar sempre perto de ti... - Não completou a frase.
Sentia-se oprimida por pensamentos tristes.
- O que foi? - perguntou Bruno, preocupado. Tinha cuidadosamente evitado comunicar a Mahary os factos recentes, mas sentia que ela, com a sua extraordinária sensibilidade,
tinha sabido intui-los.
- Há demasiada gente que te odeia. - Vibrava como uma gazela ferida que sente o cheiro das hienas a espreita.
- Já te esqueceste de que eu sou invulnerável, como Aquiles? - A solenidade da árvore, que se impunha sobre eles como uma catedral naquela esplêndida noite africana
cheia de estrelas, conferia as palavras de Bruno um estranho significado.
- Ninguém é invulnerável - disse, agarrando-se a ele como a última esperança. - Também Aquiles... - Um nó apertou-lhe a garganta, mas acalmou-se e continuou: - Só
quando estou junto de ti me sinto tranquila. - Falava-lhe junto aos lábios e o seu hálito perfumado reacendia-lhe um desejo nunca completamente satisfeito.
- Não vou ficar longe muito tempo - prometeu. - Regressarei antes que a lua desapareça pela segunda vez. Toma conta do Sunny.
Mahary sorriu àquela inútil recomendação.
- O Sunny sabe muito bem como se comportar - comunicou-lhe.
- Aprendeu a pedir graças aos abosom.
- E os deuses escutam-no? - perguntou Bruno, brincando com aquela superstição.
- Quando estás longe - disse Mahary oferece-lhes os frutos do

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embondeiro para que possam alimentar-se e ter força suficiente para t seguirem e protegerem onde quer que estejas.
Tinham decidido juntos que Sunny, quando atingisse a idade da razão escolheria livremente a sua própria fé, mas aquele não era o momento de censurar a Mahary a falta
de respeito pelos pactos.
- Vejo-o muito pouco - lamentou. - Em breve fará 9 anos. Vou ter de o levar comigo a Itália e aos Estados Unidos. Vai ter de ir para a escola.
- Também há escola em Umpote - replicou, ressentida. Um vento ligeiro trazia o cheiro selvagem da floresta.
- Havemos de decidir isso juntos. - Bruno estava disponível para uma solução concertada no interesse da criança.
- E depois o Sunny - objetou Mahary - sabe muitas mais coisas do que qualquer criança europeia ou americana da idade dele. Consegue capturar o antílope mais veloz.
Sabe preparar um amasi requintado com nata e leite.
- O Sunny vai ter de governar o Burhwana, um dia. Precisa de conhecer a tecnologia, as leis, a cultura dos brancos. Dos quais, sobretudo, vai ter de aprender a defender-se.
Não te estou a dizer nada de novo.
- Ainda só tem 9 anos - argumentou Mahary.
- O tempo passa depressa - observou Bruno, que naquele momento se sentia mais velho do que a sua idade. - O príncipe Aschwinda está cansado.
- Mas temos-te a ti - replicou a princesa com orgulho. - Sem ti, os brancos já tinham posto as mãos nas minas. Tu és a voz e a força de Aschwinda.
- Muito em breve chegará o dia em que o Sunny vai ter de assumir as suas responsabilidades - rebateu. - Nesse dia vai ter de saber muitas coisas. Mas para que tudo
isto se processe da melhor maneira, o nosso filho vai ter de começar muito em breve a estudar.
- Será como tu quiseres - rendeu-se Mahary.
Bruno abraçou-a para lhe transmitir a sua força, mas também para exorcizar o mal-estar que o invadira. O vento tinha caído e tudo em volta era silêncio. As fogueiras
ardiam imóveis como num quadro gigantesco e os guerreiros estavam calados. Naquela noite sem vozes nem sons, ganhou consistência uma situação já vivida e Bruno sentiu
o cheiro inconfundível da morte. Sentia-se triste e impotente como em certos sonhos angustiantes, só que agora não haveria nenhum despertar para apagar aquele terrível
mal-estar. Porque o cheiro da morte pertencia à realidade.
Era o mesmo cheiro e o mesmo mal-estar que o tinham aterrado

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quando, em criança, num caminho da planície ensolarada aos pés de piazza Armerina, no coração da Sicília, assistira impotente e aterrorizado à morte do avô, o barão
Giuseppe Sajeva di Monreale.
Bruno tinha visto o avô assassinado no meio de um campo de trevo. Depois levantara-se uma ténue lufada de vento que conseguira dispersar o cheiro da morte.
Aquele cheiro tinha-lhe ficado impregnado nos olhos, no cérebro e no coração e naquele momento voltava a senti-lo sob o vasto céu africano, no ar imóvel, num súbito
silêncio que tinha congelado a palpitação das estrelas.
Seguindo um instinto animal, Mahary, subitamente, teve a força de fazer rodar Bruno sobre si mesmo. Bruno sentiu um rumor, um baque quase impercetível, e depois
sentiu pesar nos braços o corpo inerte da princesa, que escorregou lentamente para o chão: o seu pescoço esguio tinha sido trespassado por um projétil. O vento da
noite recomeçou naquele instante, enquanto aquela mulher encantadora quase sorria estendida sobre a erva, no seu sangue quente, por debaixo do embondeiro, embora
o seu olhar de âmbar já não refletisse a luz das estrelas.
Bruno caiu de joelhos e beijou ternamente o que restava do sonho mais belo da sua vida. Aquele único tiro, partido da floresta, de uma arma munida de silenciador,
era para ele, Bruno Brian Sajeva, barão di Monreale, herdeiro do fabuloso tesouro dos Bushwinda.

O assassino era um corpo inerte nos limites da floresta, rodeado pelos caçadores bosquímanos que o tinham apanhado antes de amanhecer. Os tambores tinham rufado
toda a noite e tinham sido mais eficazes do que os modernos meios de comunicação.
O Barão olhou para o prisioneiro ferido e ensanguentado e teve a sensação de que se parecia com uma enorme tartaruga marinha. Quando o estenderam numa maca, pronunciava
palavras desconexas.
- A minha pequena Johanna - murmurava. - Soberba... sensual. Adeus... terna Johanna. Bruno pensou que as feridas na cabeça fossem responsáveis pelo delírio, mas
este era apenas o reflexo dos últimos pensamentos do homem que, segundo uma reconstrução plausível, tinha entrado pela fronteira do Lesotho, na região árida do planalto,
tinha viajado num Rover e Vinha de Durban. O explorador africano que lhe servia de guia estava

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morto. Os documentos qualificavam-no como repórter fotográfico, mas o starlight-scope que aumentava quarenta vezes a luminosidade noturna não era para as Nikon nem
para as Leica. Estava montado numa carabina Remington modelo 700 BDL, calibre 22, da qual tinha partido a bala soft-point que tinha ceifado a vida da doce Mahary.
O passaporte do assassino estava em nome de Peter Müller: um nome falso, um passaporte falso, um assassino profissional, habituado a matar por contrato sem se interrogar
para quem matava, nem quem matava.
Nada naquele corpo podia ajudar Bruno a tentar identificá-lo. Era um homem muito hábil, tinha engendrado bem o plano para regressar ao lugar de onde tinha vindo
e talvez o tivesse conseguido sem os bosquímanos, que tradicionalmente são os mais temíveis caçadores de África.
Só pela sua voz poderia saber mais alguma coisa. Mas quanto mais? Entretanto, o ferido continuava imerso no delírio.
- Bela... soberba... sensual... Johanna. - No seu rosto rasgado e ensanguentado passava a sombra de uma nostalgia sincera.
Um médico aproximou-se e debruçou-se sobre a maca para o auscultar.
- Está a morrer - disse, erguendo o rosto para Bruno.
Enquanto a vida o abandonava, diante dos seus olhos dilatava-se em todo o seu esplendor a imagem que Johann Kofler guardava no coração: a calidez da grande estufa
na qual passavam cores e perfumes do jardim inventado pela sua inteligência, desabrochado pelas suas mãos. As vidas ceifadas por aquelas mesmas mãos não representavam
para ele motivo de remorso ou de culpa, nem sequer naquele momento em que oscilava no limite extremo da existência.
A vítima, enquadrada no intensificador de luz aplicado à carabina, era pouca coisa para a sua consciência, tinha falhado e pagava com a vida. O último pensamento
foi para a rosa que tinha o seu nome e que ia continuar a viver para sempre.
- Johanna... - Uma pequena lágrima de amor brilhou nos seus olhos já apagados.
- Está morto - disse o médico.
- Levem-no embora - ordenou Bruno, entontecido pela dor.

O corpo da doce Mahary, lavado e perfumado, revestido de panos principescos, tinha sido instalado na grande cama de canas entrançadas:

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O leito nupcial. Através da janela em ogiva protegida por um denso véu branco, com a primeira luz do dia entrava o canto de morte entoado pelos indígenas, que o
lúgubre rufar dos tambores tornava mais dilacerante.
- Dorme, bela princesa - diziam as palavras da canção. - Nós iremos à caça para ti no grande Vale da Lua, trar-te-emos ricos troféus e flores e frutos perfumados
para que tu possas continuar a iluminar as nossas noites com o teu sorriso.
Bruno debruçou-se sobre ela e pousou-lhe um beijo nos lábios. Os seus olhos cinzentos de aço não tinham deixado uma lágrima.
Sunny apertava a mão de Aschwinda, que parecia ainda mais velho e triste.
Bruno ergueu o rapaz, que tinha os seus olhos e a pele de âmbar de Mahary. Era um menino alto para a sua idade e magro, mas extraordinariamente forte.
- Dá um beijo à tua mãe - disse.
Sunny, hirto de dor, beijou-a sem um lamento. Era um pequeno guerreiro Bushwinda e sabia que a vida e a morte andam de mãos dadas.
- Nós nunca a vamos esquecer - disse Bruno.
Sunny assentiu.
- Nunca a vamos esquecer - repetiu.
Bruno apertou-o nos seus braços, mas o rapaz libertou-se e foi a correr para o seu quarto.
O pai fez um movimento para ir atrás dele.
- Deixa-o ir - ordenou Aschwinda. - Há coisas que tu, mesmo sendo pai, não podes entender.
Bruno obedeceu e não reagiu às palavras do velho príncipe, que se retirou por sua vez.
O Barão ficou sozinho no quarto da princesa e finalmente chorou. E naquele mesmo instante surgiu no seu coração a lembrança da dor dilacerante que tinha despedaçado
a sua vida de criança: tinha 9 anos, a mesma idade de Sunny.
Bruno limpou os olhos e sentiu na alma o amargo conforto da vingança, a terrível vingança dos Monreale.

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O FEUDO DOS MONREALE

Piazza Armerina

A grande lua de agosto brilhava silenciosa e prateada sobre a antiga cidade de Piazza Armerina, no coração da Sicilia, conferindo profundidade e relevo ao palácio
seiscentista dos barões Sajeva Mandrascati di Monreale. Uma única luz, atenuada por uma espessa cortina de linho bordado, saía de uma das janelas do imponente edifício.
Uma lufada de vento transportava o perfume do campo estivo e uma esperança de alívio depois de um dia escaldado pelo sol e pelo siroco. Sob aquela capa insuportável
de fogo, o trevo tomara-se palha e os prados verdes tinham-se transformado em manchas de um amarelo violento e sequioso. Só as cigarras pareciam ter sobrevivido
àquele inferno e enchiam o ar de uma estridência aguda.
A respiração da noite, perfumada de flor de laranjeira e oleandro, tinha pousado fresca e aveludada como um bálsamo sobre as velhas casas e sobre os antigos palácios,
quando um grito de dor rasgou o silêncio, quebrando aquele encantamento lunar. Após alguns segundos, o resoluto gemido de uma criança acabada de nascer sobrepôs-se
àquele grito com a sua carga vital.
No quarto cor-de-rosa da residência senhorial, a filha única do barão Giuseppe Sajeva, de 20 anos, juntando as suas forças para o último, dilacerante impulso, expelira
do seu ventre, atormentado por doze horas de trabalho de parto, um rapaz de quatro quilos e cem gramas. Annalisa jazia, exausta, gozando plenamente o fim daquele
longo sofrimento.
Rosaria, a parteira, e Tanino Nascè, o médico, andavam atarefados à volta daquele menino prepotente, enrugado e sujo, cuja voz imperiosa ecoava no teto abobadado
do grande quarto cheio de frisos dourados e anjinhos bem torneados no mais denso estilo barroco.

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A princesa Rosa Miranda Isgrò di Monte Falcone, madrinha de Annalisa, que a assistira maternalmente, entreabriu a porta do quarto cor-de -rosa, debruçou-se na balaustrada
do primeiro andar e anunciou radiante ao barão Sajeva: - Peppino, és avô de um rapagão fantástico.
O barão levantou-se do opulento cadeirão que o tinha acolhido durante tantas horas, e cujos braços tinha longamente martirizado com as suas mãos possantes, para
ir ver a filha.
- Depois, Peppino, depois - deteve-o a princesa, rodando o indicador da mão direita como se estivesse a enrolar um novelo. E voltou a fechar a porta.
Ao lado do barão estava um jovem gigante loiro: tinha os olhos azuis e o aspeto de um antigo guerreiro normando.
- Calò, vai acordar o chefe dos correios - disse. - Diz-lhe para mandar um telegrama ao americano. Tens de lhe dizer que foi pai. Pai de um rapaz. Depois volta para
aqui depressa.
- Com certeza, Excelência - disse o jovem, com uma vénia. Avançou rapidamente pela escadaria elíptica de degraus de mármore.
O palácio tinha subitamente acordado e os criados estavam todos à volta do barão com mil e uma frases de felicitações.
- Depois, depois - respondia, como tinha feito a princesa. A seguir, dirigiu-se ao seu quarto, com o seu passo decidido e maciço, e fechou a porta atrás de si.
Foi até a poltrona da escrivaninha debaixo da janela, ao lado da cama, e deixou-se cair pesadamente, exprimindo o seu orgulho com um grande sorriso.
- Um rapaz - disse em voz alta. E em poucos segundos imaginou para o neto que acabara de nascer um fantástico futuro. - A América - acrescentou com uma sombra de
desprezo. - Mas talvez - concluiu - seja melhor assim.
Depois dos fenícios, dos gregos, dos romanos, dos bizantinos, dos árabes e dos normandos, era a vez dos americanos.
Giuseppe Sajeva serviu-se de uma generosa dose de conhaque de uma velha garrafa, respirou a fragrância da bebida longamente envelhecida e por fim bebeu, apreciando
aquele sabor aveludado.

136

*

O velho barão de Monreale era pouco mais alto do que a média e tinha um físico naturalmente forte, robustecido por uma vida ativa. Havia alguma coisa de magnético
nos seus olhos negros e uma certa altivez na grande cabeça de cabelos prateados. Vestia com elegância roupas já fora de moda: havia muitos anos, desde antes da guerra,
que não voltava a Londres para renovar o guarda-roupa. E por ali não havia artífices que pudessem chegar ao nível dos alfaiates ingleses. Com 56 anos, o barão Giuseppe
Alessandro Bruno Sajeva Mandrascati di Monreale, que apesar do vigor físico e da frescura mental era conhecido por toda a gente como o velho barão, tinha sido avô
naquela fantástica noite de agosto.
Annalisa Elisabetta, a sua única filha, a menina dos seus olhos, em cujo rosto se descobria a pacata e misteriosa beleza da Annunziata de Antonello de Messina, tinha
dado à luz um rapaz. Sobre ela derramara todo o amor de um pai e de uma mãe, porque a mãe de Annalisa morrera em 1923, ao dar à luz a menina.
O neto tinha nascido em dias propícios, quase em coincidência com o Palio dos Normandos. Iria pedir e obter a permissão de envolver Bruno Alessandro Giuseppe Sajeva
na bandeira que representava Maria Santíssima delle Vittorie, doada em 1091 pelo conde Ruggero à cidade de Piazza, depois de ter libertado a Sicília dos sarracenos.
- Bruno Brian - pronunciou lentamente o barão, que tentava habituar-se àquela contaminação estrangeira. - Nenhum Brian - comentou em voz baixa - poderá alguma vez
sobrepor-se a um barão di Monreale.
Parecia não querer conformar-se com aquele casamento apressado da filha com aquela espécie de pele-vermelha, sem costados de nobreza nem tradições familiares, aparentado
com uma montanha de dólares. Culpa da guerra, que tinha virado as suas terras, a ilha e o mundo de pernas para O ar. A sua Sicília não era nova quanto a invasões;
sofria-as há milénios, de todas as maneiras, impondo a sua própria lei. Civilizações distantes, apesar dos saques efetuados, tinham contribuído para fazer daquela
ilha um diamante de rara beleza. Até os lombardos tinham ali chegado, e influenciado o dialeto, a arte e a cultura. Já para não falar dos espanhóis e dos franceses.
Tinha sido sempre um dar e receber, um sofrimento e um regozijo. E daquelas sucessivas misturas saíra uma raça altiva, orgulhosa e

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sonolenta que não tinha, porém, nenhuma afinidade com os últimos invasores: os alemães antes e os Aliados logo a seguir. Uns e outros tinham trazido apenas destruição
e caos. Talvez fosse injusto que o barão Giuseppe Sajeva igualasse o comportamento dos alemães ao dos Aliados, mas o seu critério de avaliação era certamente influenciado
pelo facto de Annalisa, contra a sua vontade, ter querido unir-se em matrimónio com um dos três mil quatrocentos e cinco paraquedistas da 82.a Divisão, que partira
de Kaironan, na Tunísia, em duzentos e vinte e sete C 47, e que aterrara em Gela com a colaboração da "honrada sociedade" na hora H do Dia D de sábado, 4 de julho
de 1943.
O pele-vermelha chamava-se Philip James Brian Junior e apresentara-se no palácio Monreale no dia 22 de julho. Era um bonito rapaz, de cabelo negro, um sorriso simpático
de canalha, maxilar quadrado, olhos de aço e uma maneira de falar rápida e despachada, tão diferente da aristocrática lentidão e do discurso pacato do autêntico
nobre siciliano.
O italiano do capitão Brian resumia-se a duas frases: "Celeste Aida, forma divina" e "Tu não sabes como sofreu o teu velho pai". A primeira servia para apostrofar
a velha Annina, uma personagem que era meia governanta, meia totem da família, pequena, estrábica, petulante, de idade indefinível, castigadora dos secretos arranjos
do patrão; a segunda designava o barão Giuseppe Sajeva nas suas apaixonadas conversas com Annalisa.
A jovem, depois de o major Philip James Brian Junior do Exército dos Estados Unidos se ter mudado para casa deles com o ajudante italo-americano Gaspare Cuomo, tinha
literalmente perdido a cabeça. O pai pôs atrás dela a princesa Isgrò, que Annalisa tratava afetuosamente por tia Rosa e que em tempos tivera um lugar privilegiado
na vida sentimental e no quarto do barão, com o supremo desdém de Annina. A nobre senhora, ainda jovem e cheia de sonhos, tinha dado um pontapé as convenções para
alinhar ao lado de Annalisa. As histórias que a pupila lhe contava deliciavam o lado romântico que prevalecia na sua personalidade.
Quando o barão se apercebeu de que, em vez de impedir uma eventual relação, a madrinha da filha favorecia a ação do inimigo, tentou fazer marcha-atrás. Mas era demasiado
tarde. Enrolado pelos invasores e pela filha com a cumplicidade de uma nobre dama que tinha apertado e

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amado entre os seus braços, portanto duplamente traído, não teve remédio senão fazer boa cara.
E o neto, felizmente, ao lado do insignificante apelido Brian, receberia os três nomes próprios do avô e o das nobres casas de Sajeva Mandrascati di Monreale. Sempre
era uma consolação.
O barão, durante o fascismo, nunca se tinha dedicado à política, já que os seus títulos lho permitiam e o respeito de que gozava lhe possibilitava uma larga margem
de independência.
Tinha fechado há anos o palácio da via Maqueda, em Palermo. Era um edifício imponente, construído pelos barões di Monreale em finais do século XVII segundo um desenho
do arquiteto Amato, com três portas imensas e severas na longa fachada. Havia um exótico jardim suspenso à esquerda e, ao centro, um átrio de elegantes colunas com
uma escadaria de mármore vermelho de dupla rampa. Tinha-o esvaziado de tapetes, quadros, tapeçarias, porcelanas e pratas, deixando no entanto os móveis preciosos,
que seriam destruídos com os bombardeamentos.
O barão tinha fechado também a villa setecentista de San Lorenzo, perto de Mondello, uma autêntica jóia neoclássica que conservava ainda os tons opulentos da ilha,
onde os seus antepassados tinham espalhado o seu gosto um pouco lânguido e decadente, empenhando os mestres da época na decoração dos salões com cenas da Jerusalém
Libertada e imagens triunfantes de sensuais divindades pagãs.
As solicitações de participação ativa na vida política incomodavam-no. Do fascismo não aceitava os métodos nem o estilo e não partilhava daquela ideologia, assim
como não aprovava a política do rei, que não tinha em nenhuma conta os problemas da ilha. A Sicília, na sua maneira de ver, precisava de outro tipo de atenções para
se tornar efetivamente parte integrante da Itália Unida.
Para fugir à guerra e às adulações dos fascistas, tinha-se refugiado com Annalisa, a princesa Isgrò e os criados no seu feudo de Piazza Armerina, esperando que ali,
ao menos, pudesse esperar em paz que a confusão passasse. Porque nenhuma guerra, disso estava convencido, nenhuma revolução, mudariam nunca o rosto terno e violento
daquela ilha rica de contrastes.
Tinha visto partir aos milhares homens de todas as idades e deixara que mulheres, velhos e crianças se servissem das suas colheitas para matar

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a fome. Enquanto esperava, cidades e países tinham sido destruídos pelas bombas. Passava os dias a caçar, na companhia de Calogero Costa, a quem chamava familiarmente
Calò, uma criança abandonada que criara por mera caridade cristã. À noite, na sala azul do rés do chão, recebia o doutor Tanino Nascè, o médico, o farmacêutico Domenico
Vicari e Luciano Insolia, professor de Letras em Enna. Jogavam cartas e conversavam.
- Meu caro barão, os barões Farra estão na miséria - dizia o médico. - Os amigos dos amigos expropriaram-nos do último feudo: mil e seiscentos hectares.
- Excelência, o senhor tem sorte - intervinha o farmacêutico. Os seus camponeses às vezes esquecem-se do pagamento das rendas em géneros ou em dinheiro, mas respeitam-no.
- Doutor Vicari, os camponeses respeitam-me porque sempre vivi mais nas minhas propriedades do que na cidade - esclarecia o barão. - Os outros puseram-se a abanar
a cauda diante do poder político. A maior parte está arruinada, a desbaratar de uma forma insensata o seu capital. Viagens, mulheres, carruagens, jogo. Conta-se
sem vergonha a anedota do nobre que para ajudar o amigo a encontrar uns cêntimos que lhe caíram pega fogo a uma nota de mil liras.
- Irresistível - ria o doutor Nascè.
- Criminoso - Giuseppe Sajeva dava um murro na mesa de jogo. Absolutamente pueril, estúpido e criminoso.
- Peço desculpa - dizia o médico, tentando justificar-se. - Eu referia-me ao episódio em si. É claro que se o considerarmos à luz mais correta o discurso muda.
- Há várias gerações que esqueceram a cor e o perfume da nossa terra. - Pegava numa carta, metia-a no leque das que tinha na mão esquerda e deitava fora outra. -
A terra ao deus-dará e eles a fornicar com mafiosos e fascistas. Assim não pode ser.
- Eu cubro - dizia o professor Insolia, que se recusava obstinadamente a exprimir a sua opinião política e o seu juízo sobre a guerra. - Deito fora uma e fico com
três.
- E eu fecho - surpreendia-os o barão, pondo as cartas na mesa.
Nesse momento entrava a princesa Isgrò seguida por Annina, que transportava um grande tabuleiro com o ponche de tangerina ou o granizado de limão, conforme as estações.

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A princesa, já próxima dos 50 anos, não renunciava à vaidade de usar vestidos com decotes audazes que faziam realçar uns seios ainda apetecíveis. Levantavam-se todos
e ela estendia a cada um deles a mão a beijar. Era o momento que permitia ao barão deter os olhos naquele cândido decolleté e à princesa deleitar-se com isso.
Annina retirava-se com a discrição habitual e ela sentava-se com os homens a conversar. Aquelas intromissões femininas numa Sicília que tinha sido árabe e era ainda
medieval seriam consideradas escandalosas se a intrusa fosse uma pessoa diferente da princesa Isgrò di Monte Falcone, cuja modernidade e ausência de preconceitos
eram consideradas, excecionalmente, um mérito. Por fim, aquelas incursões femininas acabaram por se tornar um hábito muito apreciado e um serão não podia considerar-se
concluído sem a sua amável presença.
Naquela noite, como em todas as noites, depois de se despedir dos amigos, Giuseppe Sajeva passou à biblioteca, onde ficaria ainda uma ou duas horas na companhia
dos seus livros: Voltaire, Rousseau, mas sobretudo Montaigne.
Estava a meditar sobre o facto de o mundo não ser mais do que um perpétuo andar às apalpadelas quando ouviu bater discretamente à porta. Reconheceu o toque de Calò.
- Entra, meu filho - disse.
Calò trazia a roupa de sempre: calças de bombazina castanhas, camisa branca com as mangas arregaçadas e lenço amarelo ao pescoço. Vinha insolitamente sério.
- Excelência - começou -, preciso de lhe falar.
O barão indicou-lhe a poltrona em frente à secretária.
- Instala-te - disse. Normalmente aquela hora Calò Costa estava a dormir, ou então enfiado na cama de Stellina Patérne, uma atraente camponesa, viúva, que por amor
do rapaz desafiava a opinião das pessoas com aquela relação ilícita.
- Esta noite vai haver confusão para os lados de Gela - revelou.
- Que confusão? - quis saber o barão.
- Vão desembarcar os ingleses e os americanos para nos libertarem anunciou.
A pergunta que lhe surgiu espontânea foi: "E como é que tu sabes?", mas não a formulou.

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Há meses que até as pedras estavam ao corrente de que os submarinos aliados se cruzavam ao largo da costa e que agentes americanos tinham desembarcado na ilha. O
barão, que fingia ignorar tudo, estava informado sobre todos esses factos. Quem dominava as ligações com os Aliados era a Máfia que, tendo sobrevivido ao fascismo,
continuava a agir: a invasão era um trunfo, um livre-trânsito em direção a novas posições de poder.
O príncipe Saverio di Belmonte, que tinha vindo de Palermo visitá-lo alguns meses atrás, confiara-lhe os seus receios. Fechara-se com ele na biblioteca e, falando
em voz baixa e em inglês para maior segurança, tinha-lhe dito: - Estamos quase a passar a mão, Peppino. A aristocracia desta ilha está no fim. Vai crescer a nova
classe dominante: a Máfia. Vão tomar conta dos nossos palácios, dos nossos feudos, dos nossos privilégios.
- Que nós usámos para demonstrar o elevado grau de inconsciência a que chegámos - retorquiu o barão, ressentido. - Em qualquer caso, para aqueles de nós que a merecerem
restará a nossa cultura. Os novos patrões não têm sequer um mínimo de dignidade camponesa.
- A cultura adquire-se - insistiu o príncipe. - Basta dar-lhes tempo. Vão mandar os filhos para as universidades americanas, vão vestir-se em Londres, vão fazer
férias em Paris e vão morar nos nossos palácios...
- Será apenas uma camada de verniz - interrompeu Giuseppe Sajeva. - A ferrugem da vulgaridade mantém-se por debaixo das aparências. Não, meu amigo, a nobreza normanda
nunca há de morrer. Viverá, não por aquilo que infelizmente é, mas por aquilo que felizmente foi. Mesmo quando os nossos palácios forem ruínas, nós viveremos na
História. Podem tirar-nos os feudos, cancelar os privilégios, derrubar-nos. Mais nada.
- Os patrões - objetou -, e sabes isso melhor do que eu, não mudam a História, mas podem alugar os historiadores. A crónica, em qualquer caso, são eles que a fazem.
Na América organizaram-se cientificamente, formaram grandes sociedades. Controlam várias atividades mais que vergonhosas: estupefacientes, prostituição, jogo, usura,
especulação, contrabando, sindicatos, Las Vegas, slot-machines e, como se não bastasse, assassinos anónimos.
- E tu achas que homens assim podem fazer a História? - O barão di Monreale não se conformava com a realidade que ameaçava derrubá-los.
- Estão a escrevê-la debaixo do nosso nariz, Peppino. Se compraram

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o poder político nos Estados Unidos, porque é que não hão de comprá-lo também aqui? Frank Coppola, Lucky Luciano, Vito Genovese: eis o triunvirato do crime constituído
entre 1930 e 1940. E há também Johnny Torrio, um consuellor a que eles chamam consigliori.
- No entanto, o Luciano já foi condenado a trabalhos forçados - esclareceu o barão.
- O Luciano e o Costello estavam no partido democrático de Nova Iorque com a garantia de outro cavalheiro, o leader Albert Martinelli. Percebes que o Roosevelt foi
eleito também com o apoio deles?
- Ao menos uma coisa boa sempre fizeram - rebateu, convencido.
- Não me parece altura para brincar. O Luciano está em liberdade na Sicília, na nossa ilha, para mostrar aos americanos como devem desembarcar.
- E como é que tu sabes isso? - Acabou por ficar surpreendido com aquela série de informações tão precisas.
- Eu vivo em Palermo, Peppino. Podia fazer-te uma lista dos homens que são donos e senhores da situação. Tudo gente que não tinha onde cair morta: Vincenzo Mangano
di Villabate, Antonio Lopparo di Bagheria, Pietro e Giuseppe di Giovanni di Agrigento, Nicola Gentile di Canicattì e muitos outros que se rebatizaram com nomes americanos
e passaram a ser Joe, Frank, Peter, Albert e por aí adiante. Todos responsáveis pelas frentes portuárias. Vão chegar às nossas terras e vão aniquilar-nos.
Eram palavras pesadas como pedras e impregnadas de veneno.
- Estas coisas, meu caro príncipe, eu conheço-as - admitiu com tristeza. - As que não sei diretamente, adivinho-as. Falaram-me no nome e na história desse Salvatore
Lucania di Lercara Friddi, que agora dá pelo nome de Lucky Luciano. Está agarrado ao Vito Genovese como a lapa à rocha. Encontrou-se recentemente em Palermo com
o Calogero Vizzini. Estão a preparar refúgios seguros para os agentes secretos americanos.
- Agora sou eu que te pergunto como é que sabes essas coisas.
- Sei estas coisas porque o Vizzini tem dois tios bispos. Eu tenho parentes e amigos na cúria de Palermo. Não que essa gente tenha a língua comprida - esclareceu,
para evitar equívocos -, mas se conheceres a nossa mentalidade, se perceberes os silêncios entre as palavras e souberes alguma coisa de aritmética, depressa fazes
a soma. Tenho de te dizer com franqueza que este pandemónio não me interessa grande coisa. A guerra

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destruiu-me o palácio da via Maqueda e até dessa ferida eu estou quase curado. Os camponeses tiram sem perguntar. Quando pedem, dou. São tempos difíceis. Meu caro
príncipe, deixemos as coisas para os recém-chegados. Nós não precisamos de ter para ser. Nós somos - concluiu, com um ar resignado, enquanto abanava a sua bela cabeça
prateada.

E naquele momento Calò estava a dizer-lhe que os Aliados iam desembarcar na Sicília. Era uma informação segura, mas o barão não quis saber como Calò Costa tinha
chegado ao conhecimento da hora H e dos locais do desembarque. Calogero era um personagem estranho, tinha as suas fontes e que eram bastante fiáveis.
O barão considerava-o como um filho; existia entre eles um sentimento tenaz mais importante do que a piedade, do que a simpatia e do que a amizade, eram duas pessoas
indispensáveis uma à outra.
O rapaz não obedecia a ninguém para além do barão e era, como diziam os mafiosos, um homem di panza - o que sabe manter um segredo -, nunca diria uma palavra a mais
do que o necessário nem que o esquartejassem. A sua coragem era proverbial e a sua audácia estava concentrada na alcunha que as pessoas lhe tinham dado: Cocciu di
tacca, ou seja, grão de fogo. Calogero Costa sabia sempre uma coisa a mais do que os outros e sabia-a um momento antes. Os amigos amavam-no tanto como os inimigos
o temiam.
- Então vão chegar os ingleses e os americanos para nos libertar - repetiu o barão Giuseppe Sajeva. - E nós bebemos a isso, meu pequeno acrescentou, servindo-lhe
um conhaque.
- Excelência, a informação vem de Villalba - disse Calò, que não gostava de perguntas e não dava explicações a ninguém para além do barão. Não eram precisos mais
detalhes. Como se uma notícia relativa ao Papa tivesse chegado do Vaticano.
- Villalba - murmurou o barão, pensando na vila em frente às Madonias, na província de Caltanissetta, estratificada ano após ano em volta do coração do feudo Micciche.
Villalba era o berço de don Calogero Vizzini, um peso pesado que conduzia a aproximação dos Aliados, o chefe da Máfia sobre quem o barão tinha conversado com o príncipe
de Belmonte.
- Calò, faz-me um favor. Manda chamar a baronessina e a princesa. Para que não fiquem assustadas quando ocorrer essa situação incómoda - disse. O barão, no que a
si mesmo dizia respeito, não conhecia o medo.

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- Don Peppino - disse num tom familiar, sabendo que podia fazê-lo -, aqui ninguém corre perigo.
- Tenho a certeza disso - respondeu o barão, a sorrir àquele extemporâneo "don Peppino" que testemunhava a intimidade dos dois homens, o afeto profundo que os unia.
- Boa-noite, meu filho. E boa-noite também a Stellina Paternò - acrescentou, com uma orgulhosa malícia. - Vê lá que ela também não se assuste muito.
Calò corou como uma criança. Quando o barão, que tinha fama de libertino, falava de mulheres, conseguia sempre deixá-lo atrapalhado.

Às três horas da manhã, enquanto o céu se tornava de fogo no horizonte e ribombavam os canhões, a gente de Piazza Armerina bateu ao portão do palácio Monreale. O
barão Giuseppe Sajeva ordenou que o abrissem de par em par, de forma que quem quisesse pudesse entrar no grande átrio iluminado por duas dezenas de candelabros de
prata. Ele estava junto à balaustrada da escadaria, alguns degraus mais acima, e dominava a cena. À chama vacilante das velas, a cena parecia um quadro decalcado
numa cena de história medieval, uma dramática oleografia, tendo ao centro o senhor que infunde confiança e serenidade ao povo.
Da figura imponente do barão libertava-se uma força paternal e tranquilizadora, uma força que tinha nascido com ele e que ele herdara dos seus antepassados normandos.
Olhava para aqueles camponeses e aqueles artesãos já idosos, aquelas mulheres acabadas, aquelas crianças aflitas com a novidade da situação e recordou as palavras
do príncipe de Belmonte: "A aristocracia desta ilha está no fim."
"Talvez", respondeu-lhe mentalmente. "Mas é um fim muito glorioso, meu caro príncipe, se os tenho todos à minha volta à espera de uma palavra de conforto. De mim,
percebes? Não do pároco ou do bispo ou do presidente da Câmara. Mas do seu barão. Exatamente como acontecia há mil anos atrás, no tempo do conde Ruggero."
- O que é que está a acontecer, Excelência? - perguntou um dos velhos.
- Não está a acontecer nada.
- Diz-se que estão a chegar os americanos.
- Chega sempre alguém a esta terra, mas não acontece nada. O que é que podem mudar os Aliados numa terra onde não acontece nada desde a criação do mundo?

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- E de quem é que estes Aliados são aliados?
- São aliados entre eles.
- E o que é que os Aliados querem connosco?
- Querem libertar-nos.
- Ah! - Foi a última consideração do velho, que tinha percebido tudo. Desde que tinha memória, havia sempre alguém que os queria libertar de alguma coisa.
- Fiquem tranquilos e voltem para a cama - ordenou o barão. - os Aliados ainda estão nas praias. Antes que cheguem aqui ainda demoram uma semana à vontade.
O presidente da Câmara, que estava entre a pequena multidão, não teve coragem para contrariar as decisões do barão. O seu dever seria o de incitar os camponeses
à luta armada, a defesa obstinada do solo sagrado da pátria, mas os fascistas, os alemães e aquilo que restava do Exército italiano tinham-se retirado rapidamente
para posições que servissem melhor para fazer frente ao exército inimigo. O tempo das palavras de ordem e dos discursos sonantes tinha definitivamente passado. A
realidade avançava em todas as frentes e o presidente da Câmara, para não ser apontado a dedo pelos fascistas, decidiu refugiar-se no campo junto de amigos de confiança
à espera que o vento mudasse.

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A ofensa

No dia 22 de julho, um rapazinho que estava a brincar nas muralhas do castelo aragonês do século XIV viu aproximar-se três carros que traziam soldados que ele nunca
tinha visto. Não tinham a arrogância sombria dos alemães nem a descarada desenvoltura dos italianos. Eram soldados limpos, resplandecentes e sorridentes e não metiam
medo, apesar dos capacetes, das armas e das fardas. Eram jovens e pareciam entretidos num passeio pelo campo.
O rapaz correu como um louco até à praça e anunciou a chegada dos Aliados. Os militares desconhecidos estavam a subir a colina em direção a cidade. Pouco depois,
três jipes paravam mesmo em frente a escadaria da catedral. O barão Giuseppe Sajeva, através das persianas entreabertas da biblioteca, viu os americanos ruidosos
e alegres a sair das viaturas e a esticar as pernas, ao mesmo tempo que olhavam em volta com alguma suspeição: a praça estava completamente deserta. Os habitantes
estavam barricados dentro das suas casas à espera de um sinal que lhes indicasse como se comportarem.
O barão viu um soldado escorregar no esterco de uma mula e ouviu-o resmungar numa linguagem desconhecida, enquanto os companheiros se riam.
- Diz a alguém que vá abrir o portão - ordenou a um criado. - Desta vez vamos ter visitas.

A princesa Rosa Miranda Isgrò di Monte Falcone bateu à porta da cozinha.

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- Posso entrar, monsù? - perguntou delicadamente e não sem alguma apreensão.
- A princesa está em sua casa - ouviu responder a voz do cozinheiro, enquanto um dos seus ajudantes se apressava a abrir. - Faça o favor - convidou.
Nunca uma nobre família siciliana ofuscaria o prestígio do seu cozinheiro chamando-lhe chef. Era tal a autonomia do cozinheiro que lhe era reconhecida a soberania
absoluta na cozinha, e qualquer pessoa, patrões incluídos, deveria bater a porta e pedir licença.
Por vezes, monsù respondia: Agora não, com todo o respeito." Naquele dia estava a espera da visita da princesa que, por encargo do barão, tinha de discutir com ele
a organização de um jantar inesquecível. O cozinheiro e os seus colaboradores estavam a trabalhar em volta de uma torre normanda de maçapão.
- Vamos lá pôr aí alguma ação, monsù, conteúdo e coreografia - sugeriu a princesa. - Fiz-me entender?
- Faremos o nosso melhor, Excelência - respondeu o mestre, muito empenhado, ao mesmo tempo que limpava as mãos no avental imaculado. Era alto e solene, e o cabelo
branco e oscilante dava-lhe o ar de um sacerdote pagão prestes a celebrar um rito.
- Temos estrangeiros - murmurou, afetada não sei se me entende.
- Vamos deixá-los atordoados, Excelência. - Para ele, que era um mestre na sua arte, aquilo era um convite a felicidade.
Desenhou com palavras aladas um menu real. Sublinhou a leveza da crème soufflé, a suavidade da creme veloutée, a delicadeza dos pombos à la reine, a delícia da pá
de vitela a l'impériale, as exóticas subtilezas da sauce a l'échalote, a perfumada fragrância da crème Chantilly.
Depois a princesa, com a ajuda de Annina, do mordomo e de dois criados, preparou na sala de jantar a grande mesa retangular que remontava aos primeiros anos do século
XVIII, obra de um marceneiro famoso. O pé era um peça única esculpida num enorme tronco, animado com um centro de cupidos e figuras mitológicas que, entretecendo
uma dança aérea, seguravam um grande vaso do qual chovia, viçoso, trevo de quartzo verde embutido nos dourados da madeira. Em cima da mesa foi posta uma toalha branca
adamascada em cuja trama se repetia até ao infinito o brasão dos barões Sajeva di Monreale: duas torres normandas num

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campo amarelo e as letras S e M entrelaçadas, sobrepostas a um grande trevo.
No centro foi colocada uma jarra de prata muito baixa e oblonga cheia de trevo florido. Os criados, com meticuloso cuidado, dispuseram as porcelanas de Capodimonte,
em tons de rosa e verde-pastel, copos de finíssimo cristal e talheres de vermeil. O efeito visual era extraordinariamente sugestivo.
A princesa, antes da guerra, tinha ido duas vezes a Nova Iorque, num transatlântico. Aquelas breves estadias tinham-lhe permitido descobrir a admiração quase devota
da sociedade americana por tudo aquilo que dizia respeito à antiga aristocracia italiana. Alguns dos militares americanos convidados para aquele jantar pertenciam
à melhor sociedade dos Estados Unidos e, entre eles, o mais ilustre era o major Philip James Brian Junior, que residia, juntamente com os outros oficiais superiores,
no município de Piazza, sede institucional de todos os quartéis-generais.
A princesa tinha espalhado pela sala de jantar pratas de rara beleza, peças únicas assinadas por Adam van Vianen e datadas de 1621. Tabuleiros, taças, bandejas e
talheres reproduziam, com os seus frisos, o motivo recorrente do trevo, criando um efeito de insólita magnificência que não pretendia deslumbrar apenas os americanos.
E desse pormenor se aperceberam o doutor Tanino Nascè, o doutor Domenico Vicari e o professor Insolia, que participavam na festa com as respetivas consortes.
Aquele fausto deveria explicar aos americanos com quem estavam a lidar, para que entendessem as diferenças profundas e substanciais entre quem os tinha levado até
ali e a verdadeira alma da ilha, da qual conheciam apenas o aspeto pitoresco ou, pior, as ligações com a indústria internacional do crime.
Aquela organização do barão, com a cumplicidade involuntária da princesa Isgrò, era uma representação que pretendia sublinhar a importância e o significado dos diferentes
papéis.

O barão Giuseppe Sajeva vestia um fato cinzento, camisa branca e gravata azul. Os seus densos cabelos de prata pareciam mais brancos à luz dos candeeiros.
- Este palácio é uma residência de reis, don Peppino. - Don Ferdinando Salemi foi ao encontro do barão com a mão estendida e o busto

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ligeiramente inclinado para a frente em sinal de respeito, qualquer coisa entre a vénia e a reverência, um comportamento ridículo e grotesco que revelava a mediocridade
da pessoa. Giuseppe Sajeva imobilizou-se como uma estátua e os seus traços contraíram-se impercetivelmente, mas o suficiente para dar a entender a quem o conhecia
que o convidado, com aquela inoportuna familiaridade, tinha pisado o risco.
- Eu sou don Peppino apenas para os meus amigos - esclareceu, pronunciando lentamente cada palavra. - Para si - acrescentou, erguendo para o homem um olhar dardejante
e um sorriso carregado de desprezo -, sou o barão Giuseppe Bruno Sajeva Mandrascati di Monreale.
O braço estendido do convidado afrouxou lentamente, como um girassol de outono, contra um casaco preto mal feito que cobria um físico robusto.
- Como está, don Ferdinando - disse o doutor Tanino Nascè, tirando-o momentaneamente daquele embaraço ao conduzi-lo em direção a um grupo de convidados.
- Caríssimo doutor - respondeu o homem, voltando para ele um rosto congestionado no qual o médico leu sinais de uma forte tensão.
- Vejo-o de boa saúde. - Tanino Nascè tentava minimizar a afronta que o barão tinha feito a don Ferdinando Salemi, ex-secretário municipal, nomeado presidente da
Câmara graças as suas ligações a Mafia local e de Villalba.
- Doutor Nascè, não se convida um homem para lhe faltar ao respeito - observou, com um sorriso feroz.
- Singularidades de aristocratas. - O médico tentou deitar água na fervura, pois estava muito preocupado com o comportamento do barão.
Tal como ele, toda a gente tinha observado o episódio e toda a gente sabia que o barão di Monreale tinha negado a Máfia qualquer possível sinal de solidariedade,
assim como a tinha negado aos fascistas e aos alemães. Com a mesma firmeza, recusara qualquer forma de colaboração com o prefeito fascista de Palermo, Cesare Mori,
quando este tentou envolvê-lo politicamente depois da visita de Mussolini a Sicília, em 1942. Esta última tomada de posição do barão, porém, era um facto grave e
perigoso que dificilmente seria tolerado.

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*

Annalisa entrou na sala levando consigo uma lufada de alegria juvenil para um ambiente que tentava ser animado mas que apenas conseguia parecer. Havia tensão no
ar depois da afronta sofrida por Ferdinando Salemi, que dedicava à mulher, a transbordar de ouro como uma Nossa Senhora, as atenções que não lhe tinha dedicado em
toda a vida, com o resultado de a confundir.
Falava-se da guerra passada, da paz futura, de várias banalidades, sempre com receio de compromissos. O padre da catedral, don Vincenzo Malta, respondia por monossílabos
e limpava continuamente o suor por dentro do colarinho branco com um grande lenço de quadrados.
Os americanos estavam aturdidos e perplexos com a magnificência do ambiente e ficaram imediatamente perturbados com a aparição de Annalisa. O major Philip James
Brian Junior e o capitão Mike Cristina olharam para ela como para uma visão.
A baronessina di Monreale trazia um vestido de seda branca estampada com barquinhos à vela vermelhos e azuis. Tinha mangas curtas franzidas, a saia rodada e o corpo
justo com um decote quadrado.
Tinha os cabelos negros e densos penteados para trás e presos por uma fita de seda vermelha. A graça do pescoço era sublinhada por um colar de coral. No pulso trazia
um delicadíssimo relógio Vacheron-Constantin de ouro com pulseira de seda azul.
Entrou com a exuberância dos seus 18 anos, trazendo atrás de si uma lufada de perfume de flores de laranjeira e de sol.
Era uma figura encantadora, que reunia a graça da jovem aristocrática e a desenvolta firmeza das senhoras que pertenciam às grandes famílias. Sentia-se à vontade
em qualquer ocasião, comportamento pouco habitual para uma mulher siciliana que exerce a sua autoridade em família mas que se deixa intimidar por ambientes novos
e pela presença masculina.
Philip James Junior e Mike, que viam Annalisa pela primeira vez e eram os únicos jovens presentes, gostariam de poder satisfazer o seu impulso, que era o de dar
um assobio de admiração; no entanto, se o tivessem feito teriam sido alvo de um alto índice de impopularidade.
- Esta é a minha filha, Annalisa - disse o barão, dirigindo-se aos americanos e aos outros convidados.

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Houve uma profusão de largos sorrisos e de How do you do, de enérgicos apertos de mão e de respeitosos beija-mãos.
Depois na pequena sala voltou-se o denso sussurro das conversas com os olhares de entendimento, com sorrisos e, no meio daquela confusão, houve até quem conseguisse
ter um pouco de intimidade.
O suave olhar triste da baronessina e os olhos de aço do oficial americano encontraram-se. Dali nasceu uma faísca que acendeu a fantasia e o coração dos dois jovens.
- Eu devia beijar-lhe a mão? - perguntou Philip, com ar de quem se desculpa.
- É um hábito antigo - respondeu Annalisa. - Um ritual ultrapassado nos tempos em que vivemos - concluiu, para o pôr a vontade.
Estava impressionada com a singular beleza de Philip, com os olhos cinzentos que a observavam com uma curiosa admiração, mas também com uma ponta de ironia, revelando
assim, ao contrário de Mike, que seria capaz de se lançar aos seus pés, a personalidade do homem habituado ao comando, e não só na vida militar. O olhar de Philip
tinha alguma analogia com o do barão, embora sem possuir a orgulhosa altivez de uma antiga tradição consagrada pelos séculos, que nenhum acontecimento poderia nunca
apagar.
Através dos gestos, das subtilezas do olhar, da intensidade dos sorrisos, ficou imediatamente clara a simpatia de Annalisa pelo major, que retribuía com igual intensidade.
- Esta menina ainda vai dar algum grande desgosto ao barão - disse em voz baixa uma das senhoras presentes a sua vizinha.
- Jovens, belos, vencedores e cheios de sorte - comentou, num tom maldoso, o professor Insolia, contradizendo a sua proverbial prudência.
A princesa di Monte Falcone deixou escapar um romântico suspiro e lamentou o facto de já não ter 18 anos.
"Será melhor vigiá-la com mais atenção, esta pequena estouvada", pensou o barão, que decidiu intervir, movido por uma imprevista sensação de perigo.
- Sinto muito, major, que a sua conversa seja interrompida - disse o barão. - Infelizmente, é obrigado a conversar com a minha filha e comigo, uma vez que somos
os únicos capazes de falar inglês.
- Estou vexado com esta minha deplorável lacuna - saiu-se

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admiravelmente Philip - mas considero um privilégio falar com o senhor e com a baronessina.
- O senhor é muito bondoso - adulou-o ironicamente -, mas os nossos convidados acabarão por não conhecer nada da vossa epopeia se ninguém se encarregar de a contar.
- Se é por isso, eu próprio a conto. - O capitão Mike Cristina caiu na armadilha.
- E nós - observou o barão, que tinha conseguido interromper a conversa entre o major e a filha - estamos literalmente presos às suas palavras.
- O major e eu - começou Mike, satisfeito por ter finalmente a situação na mão - estamos às ordens do general Bradley.
- Que atualmente está em Enna - murmurou-lhe Philip -, mas que te vai mandar para a frente russa mediante um pedido simpático. - Pronunciou a frase num slang incompreensível
que nem sequer o barão e Annalisa, apesar de conhecerem perfeitamente a língua inglesa, conseguiam entender.
Os convidados prestaram atenção ao capitão Cristina, que retomou a sua narração a sorrir ironicamente ao seu superior.
- Há dois dias - explicou -, caíram Sciacca, Menfi, Castelvetrano, Marsala e Trapani. Nós devíamos ter avançado para Norte. Enna devia ser ocupada pela 8.a Companhia
britânica. Mas os canadianos, sabe-se lá porquê, quando chegaram perto da cidade, fizeram um desvio para este em direção a Leonforte e deixaram-nos descobertos do
lado direito. No entanto, Bradley, sem pensar duas vezes, ordenou o ataque a Enna. Tomámos a cidade com dois regimentos da 1ª Divisão, partindo do vale do Salso
e de Pergusa.
- Agora que já tomaram conta do umbilicus Siciliae - disse o barão não vão encontrar mais resistência. Foi sempre assim, desde o princípio dos tempos. Chegarão a
Palermo num sopro. Não é verdade, don Ferdinando? - perguntou ao presidente da Câmara, dirigindo-se com um sorriso cordial ao homem que pouco antes tinha ofendido.
- Se o diz Vossa Excelência - rebateu ele, intimidado.
- Mas o senhor sabe disso melhor do que eu - insistiu. - Sabe melhor do que qualquer outra pessoa que agora acabaram as incursões no stop dos americanos. O caminho
dos americanos não seria difícil, em

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qualquer caso. Mas os vossos amigos trataram de o limpar para estes excelentes rapazes. Estou errado, don Ferdinando?
- Vossa Excelência vai-me desculpar, mas eu só sei aquilo que sabe toda a gente - defendeu-se.
- Mas nem toda a gente sabe - insistiu o barão - que a 16 de abril o coronel inglês Hancock foi obrigado por alguns jovens a desembarcar de noite nas imediações
de Gela. Mas o senhor sabe, não sabe?
- Nenti sacciu. - Não sabia de nada. Onde pretenderia chegar aquele aristocrata insolente e provocador?
- E também não sabia - continuou - que o oficial inglês foi acompanhado à villa do ex-deputado Arturo Verderame? E ninguém lhe disse que, pouco mais tarde, em Palermo,
se mudou para a via Mariano Stabile, perto de Quattro Canti di Campagna, precisamente onde fica o gabinete do advogado Ramirez que vai meter ao bolso uma maquia
considerável? E não vai ser ele o único a apresentar a conta. Está a ver, don Ferdinando - prosseguiu, sorrindo em ar de desafio -, agora há muitos homens de honra
que vão vestir a farda de defensores da ordem. Mas é preciso verificar se a ordem é efetivamente defendida. O meu avô contava que, durante os motins de 48, andavam
muitos jovens a roubar e a saquear à sombra do sacro estandarte italiano. Será tarefa sua, don Ferdinando, garantir que na nossa cidade não se repitam certas patifarias.
Expliquei-me bem?
Giuseppe Sajeva tinha-se explicado bem e o presidente da Câmara tinha percebido perfeitamente.
- Excelência, eu estou em sua casa - disse don Ferdinando. - Pedia uma trégua ou, pelo menos, um tratamento em consonância com a minha posição de convidado.
- Os meus convidados são donos da minha casa - replicou o barão. Falava como um homem habituado a comandar e a ser obedecido.
- Sinto-me honrado com esse sentimento - agradeceu, sem no entanto esquecer a afronta sofrida e as acusações que lhe tinham sido dirigidas.
- Estamos a falar entre pessoas civilizadas a espera do jantar - recomeçou, ameaçando o seu interlocutor de uma posição diferente. - Dizem-me que a antiga Universidade
da Catánia, fundada por Afonso de Aragão em 1434, foi transformada num círculo para os Aliados.
- América ainda não tinha sido descoberta - intrometeu-se o major Brian.

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Precisamente, major - aprovou o barão com severidade. Depois voltou-se para don Ferdinando. - Isso é uma irreverência. Os amigos dos americanos deviam explicar a
estes bravos rapazes que certas coisas não se fazem. É humilhante para todos - desviou o tiro para Philip - saber que o pátio do Siculorum Gymnasium foi instalado
um teatro. Que as salas de aula foram transformadas em bares, restaurantes e salas de baile. Recolhas científicas antigas e materiais didáticos preciosos foram destruídos.
Don Ferdinando Salemi teria vendido de boa vontade o Siculorum Gymnasium aos americanos com aquele barão impertinente e petulante lá dentro. O calor de agosto tinha-se
insinuado na ampla sala de estar, apesar das paredes espessas e das janelas entreabertas. As testas humedeciam-se e os rostos acalorados moviam-se numa busca desesperada
de um pouco de frescura. As senhoras abanavam-se com inadequados lencinhos de renda e os homens tentavam estancar as gotas de suor que lhes humedeciam o rosto. Só
o dono da casa estava perfeitamente a vontade, como se o calor, que fazia subir o termómetro e enlouquecer as pessoas, para ele não existisse.
- Aqui, em sua casa, senhor barão, nada disso acontecerá - disse, por fim, o presidente da Câmara. - O grosso das Forças Aliadas já passou. A ocupação de Piazza,
como vê, foi um ato puramente formal.
- A forma é uma componente fundamental do estilo - explicou o barão a don Ferdinando, apesar de ter a certeza de que o homem não ia entender. Depois, em obediência
aos sagrados deveres da hospitalidade, acrescentou, voltando-se para os dois oficiais:
- Se assim o pretenderem, durante o tempo da vossa estadia na cidade, podem residir em minha casa. Don Calogero Costa providenciará para que tenham tudo aquilo de
que necessitam.
Era a primeira vez que o barão se referia a Calò Costa com aquele tratamento respeitoso. A singular figura da criança encontrada na rua que se tornara homem na casa
Sajeva começava a assumir uma fisionomia precisa. Umas poucas palavras, aparentemente deixadas cair por acaso, delineavam a personalidade de Calò não como criado,
mas como zelador do bom funcionamento da família.
Calogero Costa, no entanto, continuava a ser um mistério para toda a gente e metia medo a muitos, incluindo homens de respeito, mas ninguém sabia dizer porquê.

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Naquele momento surgiu o mordomo.
- Senhor barão - anunciou com uma voz profunda -, o jantar está servido.
Inopinadamente, Giuseppe Sajeva ofereceu o braço a dona Concetta Salemi, a mulher do presidente da Câmara, que gostaria de se poder enfiar pelo chão dentro tal era
a aflição que sentia, e juntos abriram o cortejo dos convidados em direção à sala de jantar.

O jantar foi um desfile de autênticas obras de arte cinzeladas por mestres da gastronomia. O empadão de pombo tinha sido copiado do Etna e era um verdadeiro vulcão
em miniatura, com o cume a arder. Grandes camarões constituíam o suporte de pequenas hastes ornamentais feitas com azeitonas e legumes. O assado reproduzia fielmente
a fonte barroca do jardim. Foi uma profusão de surpresas teatrais que deixaram os convidados em êxtase. O doce desencadeou um espontâneo, irresistível aplauso por
parte dos americanos, que reencontraram naquela sumptuosa sala de jantar seiscentista um sentido de realização desconhecida até dos mais sugestivos espetáculos da
Broadway.
Sobre um largo tabuleiro redondo de ouro maciço, transportado para a mesa por dois criados, estava pousada uma árvore florida: o tronco era feito de açúcar caramelizado
crocante, os ramos frondosos que se abriam em forma de guarda-chuva estavam repletos de folhinhas de menta cristalizadas e sustentavam pequenos cestos de biscoito
cheios de frutos de maçapão. A árvore enterrava as suas raízes num terreno de chocolate sobre o qual nascia um tenro trevo. Aquela fragrante e perfumada obra de
arte estava rodeada de biscoitinhos de massa de amêndoa.
- Soberbo! - exclamou o médico.
- Delicioso - murmuraram as senhoras, lançando gritinhos de espanto.
Don Ferdinando Salemi, que seria capaz de trocar todo o seu poder por um pouco da aristocrática sabedoria que o barão espalhava as mãos-cheias, não conseguiu conter
a sua admiração.
- Permita-me que lhe diga, senhor barão, que nunca vi, apesar de uma vez ter ouvido falar, uma obra-prima semelhante - observou.
- Atravessamos momentos difíceis - replicou Giuseppe Sajeva com uma modéstia tão falsa que parecia verdadeira. - As minhas propriedades

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produzem quanto baste para a nossa sobrevivência. Com isso nos contentamos. Todos são ingredientes simples. Muitos vêm das nossas terras. Toca apenas ao sentido
artístico dos cozinheiros e ao génio de monsù saber transformá-los em coisas agradáveis também para os olhos, para além do palato.
Annalisa e Philip, completamente alheios à troca de comentários geral, conversavam intensamente em inglês. Falavam dos V-disc, os discos da vitória que eram o fundo
musical das Forças Armadas americanas em todas as frentes, da África a Palermo; Toscanini e Armstrong, Duke Ellington e Bing Crosby, Lena Horne e Glenn Miller.
Philip tinha os olhos e o sorriso cheios de música, música para sonhar, palavras como carícias sobre a pele quente de sol e o desejo de Annalisa. Tinha uma maneira
de olhar para ela que lhe transmitia uma felicidade insólita, porque era um olhar de posse tranquila, unida a uma espécie de respeito e de estima.
Os seus olhos cinzentos diziam-lhe: "Não te conheço. Provavelmente, não voltaremos a ver-nos, mas agora pertencemos um ao outro." Era aquela consciência que conferia
uma ternura particular à tensão que se tinha criado entre os dois jovens. E Annalisa apaixonou-se perdidamente por Philip e parecia-lhe ouvir distintamente a música
que tinha escutado no rádio antes do desembarque, entre ruidosas interferências, e da qual ele lhe falava. E desejou uma coisa proibida, desejou aquele estrangeiro
cheio de vitaminas e de otimismo que fumava Lucky Strike e tinha um sorriso vitorioso. Desejou-o pela sua terna ingenuidade, desejou-o porque pedia e não ordenava,
porque a sua feminilidade com ele não tinha medo de se manifestar.
Tinha a consciência de estar a sonhar um sonho proibido, mas naquele momento nascia dentro dela um desejo poderoso e inevitável, um inquietante tumulto no sangue,
uma vontade louca de lançar apelos, de apanhar flores, de compor grinaldas para adornar a sua própria juventude. De uma região desconhecida e misteriosa emergiam
extenuantes pulsões que lhe suscitavam assomos de rubor. Nenhuma daquelas sensações estava escrita nos planos que o pai preparava para ela. Quando era criança fora
prometida ao filho mais novo do príncipe de Belmonte, que tinha poucos anos mais do que ela. O pai nunca lhe falara abertamente do assunto, mas havia uma grande
amizade entre as duas famílias, os seus

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feudos confinavam, os pais eram íntimos amigos e parecia inevitável que, quando a guerra acabasse, quando os dois tivessem acabado o curso, os seus destinos se encontrassem.
Os dois jovens não se viam há alguns anos porque o filho mais novo do príncipe estava prisioneiro dos ingleses em África. Sabia-se, porém que estava vivo por intermédio
de um funcionário da Cruz Vermelha Internacional, que tinha conseguido fazer-lhe chegar uma mensagem.
Annalisa conservava dele uma recordação verde e azul, de primavera e de sol, de francas gargalhadas adolescentes, de corridas loucas pelas alamedas do parque. Não
tinha tido tempo, maneira nem desejo para se aproximar de mais nenhum rapaz, desterrada como estava naquela pequena cidade, sem sequer a possibilidade de frequentar
o liceu de Enna, porque o barão tinha decidido que a viagem de carro entre Piazza e a capital representava uma infinidade de riscos.
Os poucos homens que tinha encontrado tinham-na deixado bastante indiferente, apesar de algumas vezes a terem aborrecido com os seus olhares insolentes. A sua bagagem
sentimental e os seus sonhos de uma imatura e confusa sexualidade eram inspirados nos heróis dos romances históricos; adolescente, tinha-se apaixonado perdidamente
por Alexandre Magno, por Júlio César, por Napoleão. Em relação aos atores de cinema, pelo contrário, sentia uma total indiferença, porque lhe pareciam personagens
cinzentos e inconsistentes, recortados na desolação de histórias banais.
O capitão Mike Cristina, embora estivesse a escutar o barão, que dividia com ele o centro das atenções, não perdia de vista o amigo e Annalisa.
"Phil", sentenciou mentalmente, "se tivesses uma pontinha de bom senso, abandonavas esta casa agora mesmo. Ou esta rapariga vai acabar por te prender para o resto
da vida."

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O jardim encantado

Philip James Junior tinha visto outros céus, respirado outros perfumes, mas a atmosfera inebriante daquele jardim atordoava-o. A suavidade da noite, com a cintilação
das estrelas e uma lua de esmalte pendurada no firmamento, cheirava a rosas e magnólias. Havia alguma coisa de vagamente perverso e requintado naquela paz noturna
que lhe incendiava os sentidos.
O major tinha aceitado a hospitalidade do barão no palácio Monreale e agora admirava a beleza da fonte barroca, onde uma infinidade de pequenos jatos de água produzia
um ruído musical inalterado há séculos.
- Phil - chamou Annalisa em voz baixa.
Ele não estremeceu, porque naquela noite encantada tudo parecia encaixar na ordem das coisas possíveis: até a súbita aparição da jovem junto a um denso arbusto de
murta no jardim iluminado pela lua.
- Estava à tua espera - disse. A noite estava clara e os raios de prata brincavam pelo meio das árvores e das flores. Os grilos cantavam.
O americano esperou, imóvel, enquanto ela avançava em direção da fonte, em direção a ele, percorrendo um caminho de agaves. A tensão que irrompia daquele corpo de
mulher fazia-lhe ferver o sangue.
- Apetece-me beijar-te - sussurrou Philip.
- Nunca ninguém me beijou antes. - A voz de Annalisa era baixa, macia, quente. Uma força irresistível, que, desabrochara no seu temperamento selvagem e resoluto,
empurrava-a inexoravelmente em direção àquele homem.
- Mas desejas que o faça? - perguntou ele, quase a hesitar.
Estavam já próximos, tão próximos que os corpos se tocavam e as bocas também.

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- Phil, beija-me, por favor - pediu Annalisa.
Phil rodeou-a com os seus braços fortes e ela respirou o seu cheiro, um cheiro que a atordoou, ao mesmo tempo que um nó lhe apertava a garganta como quando estava
prestes a chorar, mas não eram lágrimas, era apenas o grito irresistível de uma sexualidade desconhecida. Já não podia falar, nem mexer-se, nem respirar, enquanto
as mãos quentes e magras de Phil lhe seguravam delicadamente o rosto e os lábios dele se fechavam nos seus. Annalisa retribuiu o beijo e uma fogueira queimou-lhe
as veias.
Ao longe, na noite, uma voz árabe cantava uma antiga litania de amor. Annalisa estava prisioneira daquele jogo proibido. Enfiou uma mão hesitante na camisa de Phil
e acariciou-lhe o peito com a cautela que se aplica na exploração de um objeto precioso. O contacto da mão na pele dele trouxe-lhe uma suavíssima perturbação.
- Se o meu pai soubesse, era capaz de te matar - disse-lhe como que para o desafiar.
Do ciúme dos sicilianos Philip sabia aquilo de que falavam as histórias e as lendas que na América se contam sobre o temperamento dos nativos. Alguém lhe tinha explicado
que era melhor ficar longe das mulheres sicilianas se não se queria correr o risco de um buraco na testa ou uma faca no pescoço.
- E se eu dissesse ao teu pai que te amo e que quero casar contigo? - Verbalizou algo que um momento antes nem sequer teria sido capaz de pensar.
- Oh, Phil. - Foi como se uma onda, depois de a ter apanhado e sacudido, a tivesse atirado para a praia.
- Amo-te e quero casar contigo - repetiu Phil. Aquela mulher cheia de fogo, desabrochada no meio dos perfumes inebriantes do jardim, à luz do luar, conquistara-o
em poucas horas e naquele momento tinha-o literalmente enfeitiçado.
Annalisa refugiou-se no peito amplo e forte de Phil.
- Eu não te perguntei se queres sair comigo esta noite - sublinhou Philip -, perguntei-te se queres ser minha mulher.
- Nunca ninguém me perguntou isso antes de ti - murmurou.
- Nunca ninguém te tinha beijado - replicou. - Foram muitas novidades para ti, esta noite.
- Talvez seja por isso que o meu coração parece enlouquecido. - Encostou a face à dele e sentiu-a arder. - Em que pensas?

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- Em nada - mentiu, porque naquele momento pensava no rosto claro no olhar azul, nos cabelos dourados de Mary Jane, cujos delicados traços se tinham sobreposto,
para logo se dissolverem, ao rosto moreno e intenso, ao olhar noturno e misterioso, aos densos cabelos de ébano de Annalisa. Philip pensou na safira de reflexos
suaves que tinha enfiado no dedo de Mary Jane antes de partir da Califórnia, a safira que tinha pertencido à mãe e antes dela à avó. De qualquer maneira ela ia ter
de lha restituir, porque era uma jóia que devia permanecer na família.
- Temos de ser razoáveis, Philip. - Era um discurso que não correspondia ao estado de espírito nem ao temperamento de Annalisa. Era um pretexto, uma justificação.
A proposta de casamento, mais do que perturbá-la, tinha-a assustado, quebrando o encanto daquela noite esplêndida.
Não encontrava as palavras, mas se tivesse tido a experiência e a coragem para exprimir os pensamentos que lhe rodopiavam na cabeça, teria sido obrigada a confessar
que estava entusiasmada com um personagem e não apaixonada por um homem com quem sonhava casar.
Queria uma aventura, a sua grande, romântica aventura. O casamento era um laço que excluía a paixão, um pacto solene que envolvia a família, as instituições, os
amigos, enquanto ela queria um sonho só seu, um sonho proibido e secreto para não revelar a ninguém.
- Não me parece que alguma vez tenha sido tão razoável como agora - defendeu-se o americano.
- E eu nunca te estarei suficientemente grata pela tua prudência.
Tinham vindo ao de cima séculos de educação para sufocar o livre abandono de um momento, para travar a carência da sexualidade que acabava de desabrochar. Por isso
deu por ela a refletir sobre o facto de uma baronesa di Monreale não ser uma Stellina Paternò qualquer. Tinha um nome e uma dignidade a defender, e o desejo ansioso
que a possuía tinha em definitivo um único destino: o casamento.
- Tu não conheces o barão di Monreale. - Mais um protesto, mais um álibi para não revelar as suas perplexidades.
- Temos todo o tempo do mundo para nos conhecermos. - Philip era prático e sabia que a tradição dos Monreale podia contrapor a dos Brian.
- O meu pai nunca entregaria a filha ao primeiro recém-chegado. Sobretudo um estrangeiro. - Tinha como certa essa decisão paterna, quase como se concordasse com
ela.

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- Sou estrangeiro - admitiu -, mas não sou propriamente um arrivista. Acho que até o barão Giuseppe Sajeva di Monreale consideraria com atenção a vantagem de se
ligar à dinastia dos Brian.
Estava contrariado com o súbito volte-face de Annalisa e com o tom vulgar que tinha assumido aquele encontro mágico. Tinha atingido o cimo do mau gosto ao referir
o balanço do império financeiro da família poucos instantes depois de ter apertado nos braços toda a felicidade do mundo.
- Tu não conheces o meu pai - insistiu Annalisa. - Para ele o dinheiro é irrelevante. São outros os valores que aprecia. Acredita em mim, Philip, é melhor não lhe
falar nisso. Ia sofrer demasiado com esta história,
- Tu non sai quanto sofrì il tuo vecchio genitor! - disse em tom de melodrama, num italiano deplorável.
- Esquece La Traviata - retorquiu. - Eu não tenho coragem de abordar o meu pai.
- Abordo eu, então - replicou Philip num tom decidido. - Eu vou casar-me contigo, Annalisa.
Nem por um instante lhe tinha surgido a dúvida de que ela pudesse não querer a mesma coisa. E aquele pormenor incomodou-a tremendamente.
- E se eu não quiser casar contigo? - Annalisa teve finalmente a coragem de perguntar. Philip olhou para ela um instante, duvidoso, e depois dissipou essa perplexidade
com um cândido sorriso.
- Não, tu queres - afirmou. - Porque me desejas pelo menos tanto quanto eu te desejo a ti. Era verdade, desejava-o loucamente. Philip inclinou-se sobre ela, beijou-a
mais uma vez e Annalisa respondeu-lhe com todo o ardor de que foi capaz.
- Anda ao meu quarto - suplicou. - Quero ficar contigo esta noite.
Desejava-a como nunca desejara outra mulher no mundo.
- Até amanhã, Phil - surpreendeu-o, ao mesmo tempo que se libertava daquele abraço. - Agora tenho de me ir embora.
- Annalisa - chamou o americano, enquanto ela corria em direção ao palácio.
Philip sentiu uma violenta reação de cólera. Mas quem era aquela

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rapariguinha para fazer pouco dele? Porque tinha fugido subitamente sem uma razão? Mas havia uma razão.
De repente, Calò, silencioso e potente como um jaguar, caiu-lhe nos ombros.
Philip, numa tentativa de reação, queimou os dedos no cigarro que acabava de acender.
- O que é que queres de mim, idiota? - praguejou, ao mesmo tempo que o reconhecia e tentava em vão libertar-se.
Não o tinha sentido chegar. Calò era cauteloso e traiçoeiro como um animal, mas Philip Brian Junior naquela noite não teria ouvido chegar nem mesmo um tanque, e
nunca imaginaria uma agressão.
- Deixa a filha do barão sossegada - ameaçou. - As tuas mulheres podes encontrá-las nos bordéis, na cidade.
Calò não entendia Philip e o americano não entendia o jovem gigante da ilha, mas olharam-se nos olhos e odiaram-se profundamente.
- Tira as mãos de cima de mim, imbecil! - ordenou o major.
Calò largou-o, como se não tivesse acontecido nada, e afastou-se sem acrescentar uma única palavra. De qualquer modo, tinha feito a sua obrigação: a reputação de
Annalisa di Monreale não podia ser comprometida por um militar de passagem.

Annalisa, que tinha subido as escadas a correr, entrou sem bater porta no quarto da princesa Isgrò. A princesa dormia profundamente, com os cabelos enrolados numa
imensidade de pequenos bigudis e a cara brilhante de creme. A janela estava aberta sobre a noite e a Lua iluminava o rosto sereno e redondo da princesa.
- Madrinha, acorda. - Annalisa sentou-se na cama e começou a abaná-la docemente. Estava ofegante, com o coração na garganta. - Madrinha, escuta-me - continuou, pondo
mais energia na sua tentativa de acordar a mulher adormecida.
A princesa emergiu penosamente do primeiro sono e arregalou os olhos aterrados para Annalisa.
- Jesus, José, Sant'Ana e Maria! - gritou, sentando-se de um salto. O que foi que aconteceu?
- Tia Rosa - disse Annalisa, furiosa -, preciso de falar contigo. - Estava excitada e tropeçava nas palavras.

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- Está alguém doente? - quis saber, tomada de pânico. Tinha recuperado uma relativa lucidez e formulou a única pergunta que, segundo ela, tinha uma importância segura.
- Não, tia - respondeu -, está toda a gente muito bem.
Deu um profundo suspiro de alívio e o seu rosto redondo, que se tinha tornado por um momento comprido e triste, retomou a sua suavidade natural.
- Então acalma-te, porque há remédio para tudo nesta vida - concluiu, já tranquila.
- O Phil pediu-me para casar com ele - anunciou de um fôlego.
A princesa esticou a mão para o interruptor do candeeiro que estava em cima da mesa de cabeceira, enquanto repetia pela segunda vez: - Jesus, Jose, Sant'Ana e Maria!
- O quarto iluminou-se, revelando a expressão atónita da senhora. - E tu acordas-me a meio da noite para me contar essas coisas? A propósito, que horas são? - No
mesmo instante, a expressão do seu rosto passou da sonolenta resignação à incredulidade, ao espanto. - Pediu-te em casamento! - exclamou a princesa, que saía definitivamente
dos braços viscosos de Morfeu.
- Exatamente - continuou Annalisa, cada vez mais loquaz. - Disse que vai falar com o meu pai. Sabes o que significa tudo isto? - E Annalisa atirou-se para os braços
da princesa, a soluçar.
- Conta-me tudo direitinho - pediu a senhora.
- Encontramo-nos há pouco, no jardim. - Era mais difícil do que pensava traduzir em palavras aquela situação recente.
- E depois? - insistiu a senhora.
- Ele beijou-me. - No seu belo rosto acalorado corriam lágrimas.
- Beijou-te? - suspirou a princesa, entre a excitação e o escândalo.
- Foi uma coisa divina, garanto-te.
- Divina em que sentido? - perguntou a princesa, alarmada.
- Divina porque gosto loucamente do Phil.
"Uma mulher que perdeu a pureza não é assim tão sincera", pensou a princesa.
- Só que a certa altura ele começou a falar em casamento. - Uma brisa ligeira abanou a cortina de musselina branca e passou-lhe por entre os cabelos. Ao longe ouviu-se
um estrondo no céu e as duas esperaram que fosse um trovão.

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- Não me parece motivo para tanto desespero - censurou-a.
- Ele disse que quer casar comigo - repetiu, aterrada, como se ele a tivesse ameaçado de morte.
- Não chores, minha menina - disse com sinceridade. - É tudo tão romântico. Os dois no jardim. Os beijos ao luar. Porque é que eu não tenho menos 20 anos?
- Não brinques, tia - replicou Annalisa. - O pai vai matá-lo. Tinha em mente outro futuro para mim.
- O Peppino não vai matar ninguém - interveio com decisão. - O Philip é um belíssimo rapaz e tu gostas dele. Para além do mais, é de uma ótima família e isso facilita
as coisas. Eu trato de fazer o teu pai raciocinar. É verdade que há uma meia promessa ao príncipe de Belmonte, mas este americano tem classe. Será preciso conhecer
melhor a família, ver se bate tudo certo. Mas se estiver tudo em ordem, tal como eu acho, o casamento pode realizar-se.
- Tia, mas então tu não estás mesmo a perceber - reagiu Annalisa. Eu não me quero casar. Não agora. Não com aquele homem.
- O quê? - perguntou a princesa, estarrecida.
- Eu não quero casar com o Phil, tia Rosa - declarou a jovem de uma forma que parecia irrevogável.
A princesa, com um único gesto, afastou violentamente os cobertores, calçou as pantufas, enfiou um roupão leve e enfrentou Annalisa com autoridade.
- Tu gostas do americano, deixas-te beijar e no entanto não queres casar com ele? - A atitude da afilhada estava para além de qualquer compreensão possível.
- É exatamente o que eu estou a tentar explicar-te - suspirou. - O casamento não tem nada a ver com o facto de eu gostar dele e de nos termos beijado. Sou demasiado
jovem para me casar.
- Mas não és demasiado jovem - rebateu - para te encontrares com ele de noite, sozinha, no jardim. Tu deves ser doida, para não dizer pior.
Annalisa passou da agressividade à ternura e tocou todas os cambiantes daquele delicado sentimento para comunicar aquela verdade que até a tia se obstinava em não
entender.
- Tia, se tu não me entendes, ninguém me vai entender - murmurou. - Porque eu não posso falar com ninguém como falo contigo. Eu

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amo o Phil - prosseguiu, comovida - e desejo-o e quero ter com ele a minha grande história de amor. Mas tudo isto não tem nada a ver com casamento.
Rosa Miranda Isgrò entendia-a. Sim, percebia bem aquilo que Annalisa tentava dar-lhe a entender. A paixão romântica era um ingrediente que não era desconhecido para
a princesa e que ela tinha vivido mais do que uma vez na sua vida com discrição e estilo. Mas nunca permitiria, mesmo com toda a liberalidade de que era capaz, que
Annalisa, com a sua idade, cometesse uma loucura daquelas. Para além do mais, o nome ilustre que usava não seria suficiente para a manter ao abrigo das consequências
de um comportamento semelhante. Fosse como fosse, as pessoas iriam julgá-la como uma mulher qualquer.
- Estás enganada, Annalisa - tentou convencê-la. - O casamento é inevitável quando duas pessoas se amam. - Precisava de outras palavras mais persuasivas para atingir
o objetivo que tinha em mente, mas não teve a coragem de as usar. - Não te casarias com alguém de quem não gostasses, pois não? - questionou, com um convencionalismo
banal.
- Não, jamais. - O lugar-comum, vituperado e excluído das conversas inteligentes, ainda funcionava.
- Estás a ver? - sorriu, suspirando de alívio. - Agora só precisamos de pensar na maneira de informar o teu pai. Mas com isso não precisas de te preocupar. Deixa-me
ser eu a tratar disso.
- Escuta, tia Rosa, eu queria dizer-te que...
- Já te disse que trato disso. - A princesa empurrou docemente Annalisa em direção a porta do quarto.
- Está bem, tia Rosa - sorriu, resignada, enquanto a princesa começava a tirar rapidamente os bigudis.
- Ora pronto - exclamou, satisfeita. - Assim está bem. - Ia tomar banho, perfumar-se, pentear-se, vestir um negligé esplendoroso e insinuar-se no quarto do barão:
certos assuntos discutem-se melhor na cama. Uma atitude displicente e uma conceção moderna de ver a vida não tinham realmente nada a ver com aquele assunto. Só havia
uma saída para uma história de amor: o casamento.

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O gigante normando

Annalisa regressou ao quarto, meteu-se na cama, mas percebeu imediatamente que não conseguiria conciliar o sono. Provavelmente, a princesa já estava a falar com
o pai sobre aquela história. A conclusão era uma e inevitável, fosse qual fosse a atitude que o barão decidisse assumir. Em qualquer caso, a partir do dia seguinte
iam construir em volta dela um muro protetor e intransponível, um baluarte que nem ela nem Philip poderiam destruir. Calò, Annina, o pai, os criados, todos iriam
vigiá-la de olhos bem atentos porque era essa a lei, e a partir do dia seguinte não ia ser permitido que Phil continuasse a residir no palácio Monreale. Enquanto
ela não queria perder Philip no momento em que o desejo era mais forte. Só poderia contar com uma única aliada, a princesa, que de qualquer maneira ia poder fazer
muito pouco, na prática, a partir do momento em que o barão impusesse a separação dos dois jovens.
Annalisa decidiu num instante aquilo que ia fazer: uma ação capaz de imprimir um volte-face na sua juventude irrequieta e na sua vida. Saiu do quarto, percorreu
descalça toda a galeria do primeiro andar para não fazer ruído e entrou no corredor que conduzia à ala do palácio onde ficava o quarto de Phil. Avançava com uma
segurança cautelosa, às escuras, por itinerários que conhecia de cor por os ter percorrido mil e uma vezes, em criança, a brincar.
Deteve-se alguns instantes em frente à porta através da qual passava um risco de luz, rodou a pesada maçaneta de latão e entrou silenciosamente: os únicos ruídos
que ouvia eram o do coração que lhe saltava na garganta e o do sangue que lhe pulsava nas têmporas.
Annalisa sabia por instinto aquilo que outras mulheres apenas aprendem

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após uma longa experiência. O primeiro impulso seria o de se despir e se oferecer dramaticamente a Phil, dizendo-lhe: "Possui-me, porque depois vai ser tarde de
mais. E eu morro de desejo de te pertencer."
Mas a sua intuição alertou-a para o facto que até o homem mais orgulhoso não gosta de ser agredido, mas espicaçado, quer conquistar, não ser conquistado.
Quando entrou no quarto de Phil e olhou para ele como uma mulher apaixonada, sabia que se ia deixar conquistar como uma menina respeitável e respeitadora das leis
antigas.
O americano estava sentado à secretária, colocada no canto entre a parede da cama e a da varanda. Estava a ler, quando sentiu um rumor atrás de si. Voltou-se instintivamente,
torcendo os músculos do pescoço e do peito, que estava nu e bronzeado. Distinguia-se entre os pelos macios e sedosos a placa de identificação pendurada num fio preto.
Vestia umas calças verde-azeitona. Tinha os pés descalços.
Levantou-se e olhou para ela, emudecido pela surpresa.
- Então vieste? - Não estava à espera dela e aquela magnífica visão era a última coisa que pensaria voltar a ter naquela noite.
- Parece que sim. - Mostrava-se irónica, espirituosa, sorridente, tinha os olhos grandes e brilhantes, as faces impregnadas de um casto rubor, a expressão decidida
de quem tomou uma resolução fundamental.
- Tenho medo de te tocar - disse-lhe. - E se afinal fores um sonho?
- É um risco que tens de correr, soldado. - Era bela, de uma beleza virginal e perversa que se acendia de desejo.
- Deixa-me olhar-te mais um momento. - Estavam em pé, um em frente ao outro, separados por um espaço exíguo, unidos por uma paixão selvagem.
- Phil, acho que sou maluca.
- Não tem importância nenhuma. Eu protejo-te. - Sentia a sua respiração quente.
- Desafiei tudo e todos para vir a este quarto.
- Ninguém vai poder fazer-te mal nenhum.
- Pensei tanto em ti - sussurrou.
- És a única mulher que desejo. - O americano foi ao encontro dela, hesitante, como se naqueles poucos passos pudesse consumar-se a vida que tinha vivido até àquele
momento.

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Ergueu-a, e com ela nos braços dirigiu-se a varanda aberta para a noite cintilante de estrelas. Uma brisa acariciou-os, fazendo-os tremer.
Quando há uma semana atrás desembarquei na Sicília, não sabia que ia ver o céu mais bonito do mundo ter a felicidade nos meus braços. - Do jardim subia um perfume
intenso de flores.
Annalisa escondeu o rosto no peito nu do americano.
- Estou com arrepios - queixou-se. Efetivamente tremia, apesar da noite quente de verão. Philip regressou ao quarto, dirigiu-se a cama e pousou-a nos lençóis imaculados.
Começou a despi-la com toda a delicadeza possível, lentamente.
- Tenho medo, Phil. Talvez estejamos a fazer uma coisa terrível.
- Não há nada de terrível numa história de amor - tentou desajeitadamente sossegá-la.
Tinha tido algumas mulheres na sua vida, jovens ingénuas e sem malícia, todas de alguma maneira previsíveis, nenhuma tão misteriosa e excitante como Annalisa.
A sua primeira relação tinha sido com uma colega de faculdade, virgem e assustada como ele. Fora uma experiência breve, confusa e embaraçosa, uma relação dolorosa
e desagradável, baseada unicamente numa violenta carga sexual.
E naquele momento, aos 32 anos, tinha nos braços outra rapariga de 18, mas o que prevalecia agora era uma ternura infinita, um langor extenuante, um envolvimento
instintivo e total.
Annalisa deixou-se libertar de todas as peças de roupa e saiu da crisálida que a vestia para se mostrar aos olhos daquele homem com a naturalidade de uma esplêndida
borboleta. Exibicionista por vocação, não fingia esconder-se, quase ostentando a sua impetuosa nudez. Vieram-lhe a ideia as palavras que Annina tinha pronunciado
poucos anos atrás, certa vez em que a velha criada a ajudou a tomar banho. A princesa Igrò tinha aparecido a porta no momento em que Annalisa estava a sair da banheira
cheia de água fumegante e perfumada de alfazema.
- Olhe, princesa, como esta menina é bonita - disse, admirada. - Parece uma pintura.
A princesa tinha sentido um grande orgulho por ela.

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- Por detrás desta perfeição - explicou então à criada - estão cinco gerações de damas sicilianas modeladas na aristocracia da elegância.
Annina não percebeu absolutamente nada, mas anuiu, entusiasmada com a alegria das pessoas simples que vivem no respeito pelo inexplicável.
Annalisa não deu grande valor àquele juízo, até porque, sendo extraordinariamente bonita e tendo consciência disso, o seu aspeto exterior não lhe importava assim
muito. As características físicas tornam-se um problema quando uma pessoa é feia e sofre com isso. No momento em que um homem a observava à luz do luar, como um
macho apaixonado observa a sua fêmea, Annalisa não podia deixar de se sentir orgulhosa da sua beleza singular.
Quando Philip despiu as cuecas ela fechou os olhos e virou a cabeça contra a almofada. Philip apercebeu-se daquela nova perturbação e perguntou-lhe ternamente: -
Nunca viste um homem nu?
- Não - confessou Annalisa com um fio de voz.
Philip debruçou-se sobre ela, segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a ternamente na testa, nos olhos, na boca. - Não tem importância nenhuma - disse-lhe, enquanto
se estendia ao lado dela.
- Conheço o corpo de Júpiter, de Apoio, de Hércules, por os ter visto nos quadros cá de casa. Mas tu és um homem real. Eu nunca vi o corpo de um homem. - Mas alguma
coisa sabia das histórias da prima, a princesa Isabella Florio, que, com a mesma idade que ela, tinha tido uma história de amor com o professor de equitação, um
florentino que arriscava muito se a história se tornasse conhecida.
Assim Annalisa tinha tentado decifrar nos lábios da prima o inquietante mistério do sexo. Mas apenas conseguira intuir que se tratava de um frenesim do sangue, de
uma bárbara voluptuosidade dos sentidos, quase de uma contaminação pecaminosa a que se seguia um desejo de absolvição e de perdão. Um macho que domina a fêmea com
a sua potência viril fazia-lhe lembrar certas páginas do Asno de ouro de Apuleio, que tinha espreitado às escondidas na biblioteca. A imagem do professor de equitação
que viera do continente a cavalgar Isabella como uma jumenta provocava-lhe uma comoção que se espalhava em todo o seu ser para se dissolver num tépido orvalho na
concha delicada do sexo.
Era uma doce tortura contra a qual não sabia combater, uma febre implacável que a possuía enquanto o sangue lhe queimava o rosto.

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Abandonava-se a uma tensão desconhecida, com a cabeça enterrada na almofada Depois o sono e os sonhos salvavam-na dos atos, mas não dos pensamentos impuros. E no
dia seguinte corria até à igreja para rezar e pedir perdão a Jesus. Porque era um pecado mortal aquilo que tinha cometido.
O desejo do pecado e a necessidade de absolvição tinham chegado à vertigem de um ardor que a consumia. E mesmo naquele momento, junto do homem que viera do outro
lado do oceano e que a acariciava com uma extenuante doçura, continuava a oscilar entre o terror e a excitação e pela primeira vez pensou que, provavelmente, a ansiedade
de um amplexo dependia do facto de haver demasiadas proibições que se opunham à sua realização. Naquela espera espasmódica sentia que queimava a sua própria juventude.
Consumava-se um momento importante da sua vida.
Tinha os olhos fechados quando Phil a enlaçou com o seu corpo e ela não ofereceu resistência. A respiração de um confundiu-se com a do outro, as palavras tornaram-se
sussurros e gemidos e Annalisa deixou irromper dento dela aquele rio sobre o qual tanta fantasia tinha criado.
Instintivamente, acompanhou Philip, que se movia ainda, mas com um frenesim já consumado, e esperou que a tensão dele se acalmasse e que se produzisse nela o milagre
sonhado. Mas não lhe explodiram no cérebro girândolas de estrelas multicolores. A sua tensão não achou nenhuma saída, quebrou-se, desfez-se em migalhas como um velho
vaso de barro. Desvaneceu-se o desejo, ficou a vergonha, quase um embaraço grosseiro.
Philip era agora um grande, um incomodativo homem desconhecido, sem mais ardor nem palavras, que obviamente ruminava dúvidas e perplexidades.
- Imaginavas assim a primeira vez? - Estava atrapalhado e sentia que dizia palavras erradas no momento menos oportuno.
- Não sei. - Annalisa estava desiludida com a sua primeira, apressada experiência sexual e recusava-se a acreditar que aquele resultado fosse definitivo. Estava
fria, lúcida, consciente, gostaria de poder estar noutro lugar e no entanto era obrigada a um "depois" para o qual não estava preparada, a um diálogo que nunca teria
imaginado. - E tu? - perguntou, à espera de ser ajudada.

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- És maravilhosa.
- É isso que vocês, americanos, dizem às mulheres... depois? - Estava carrancuda e sombria como um fogo acabado de apagar.
- Estás zangada?
Tentou abraçá-la, pensando que o comportamento de Annalisa era mais do que justificado, depois do que tinha acontecido. Também Philip, no fundo, estava um pouco
perplexo, mas não pelas mesmas razões de Annalisa, antes pelo contrário. Tinha possuído a mulher mais excitante que um homem podia desejar. Aquilo que o atormentava
era que a penetração, facilitada instintivamente por ela não tinha produzido nenhuma laceração, nenhum sangue. Nada.
- Mas tu pareces-me nervoso - rebateu Annalisa, que, pelo contrário, não estava nem de longe consciente daquele problema, certa como estava da sua virgindade.
- Não, estou apenas feliz - mentiu.
Sabia, por ter lido em algum sítio, que o hímen nem sempre é rasgado e que, portanto, à desfloração não corresponde necessariamente a pequena hemorragia que constitui
o orgulho do macho, mas o facto de esse pequeno sinal não ter aparecido tinha-o deixado consternado. Estava na situação penosa de um marido siciliano, agravada pelo
significativo pormenor de não poder nunca trocar uma palavra com ninguém sobre a sua dúvida atroz. Na moldura aberta da grande varanda começava a nascer uma alvorada
de ténue coral que em breve iria explodir no amanhecer. Annalisa observava aquele espetáculo antigo com um espanto infantil. Sentia que alguma coisa tinha mudado
dentro dela, mas infelizmente aquela mudança não era motivo de exaltação ou de alegria. A mágica beleza que sonhava descobrir estava ainda escondida entre as pregas
do mistério.
Philip tinha-se vestido e andava às voltas com uma mala. Também Annalisa tinha vestido a roupa que ele lhe tinha tirado.
- São horas de partir - disse ele. - Preciso de pouquíssimo tempo para preparar a minha bagagem. - Mas onde é que tu vais? - perguntou ela, aflita. Tinha composto
os cabelos que brilhavam com as primeiras luzes do dia e uma delicada palidez tornava-lhe o rosto mais frágil.
- Não queres que fique aqui depois do que aconteceu. - Estava firme e determinado na sua resolução.

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- Para onde vais? - repetiu mecanicamente.
- Vou mudar-me para as instalações da Câmara Municipal. - Sorriu. É uma transferência que tem de ser feita. Estavas com medo que quisesse deixar-te? - O orgulho
masculino e as suas certezas prevaleciam nele e levavam-no a negar as reais motivações de Annalisa.
- Não - respondeu ela. - Era uma simples curiosidade.
Philip, interpretando à sua feição o amuo de Annalisa, apertou-a nos seus braços.
- Nunca mais te deixo - disse. Era uma afirmação e uma promessa. - Aliás - prosseguiu -, a partir desta manhã vou ter de tratar de uma quantidade de papelada para
obter a licença de casamento.
- Oh, Phil - exclamou, com a intenção de dizer uma coisa diferente daquela que ele quis entender.
- Sim, Annalisa - afirmou, ao mesmo tempo que a beijava devagar nos cantos da boca e na testa -, tu vais ser a senhora Brian.
- E se não conseguires a licença de casamento? - pronunciou estas palavras com uma luz de esperança nos olhos, que Phil interpretou como um sinal de apreensão.
- Tu não me conheces. - Pela primeira vez, deixou antever o seu poder pessoal e a autoridade do seu nome.
- Provavelmente não.
- Mais logo venho ao palácio - prometeu solenemente.
- Dizes isso como se fosse um acontecimento extraordinário.
- É um acontecimento extraordinário: vou pedir oficialmente a tua mão ao barão di Monreale. Não é esse o procedimento?
- Mais ou menos - admitiu Annalisa, aterrorizada. - Mas o meu pai pode até não ta conceder.
- Nesse caso, eu rapto-te. - Estava sério, decidido.
- Mas quem és tu, americano? - perguntou-lhe, consternada. - Vens mesmo dos States ou
és um siciliano disfarçado? - Tinha restado muito pouco daquela espasmódica espera e o belo oficial de olhos sorridentes e palavras cheias de música era uma imagem
apagada e incómoda no cenário de um recente, um irreparável erro.
- Provavelmente, as afinidades que tu pensas descobrir - respondeu, conciliador -, nascem da estirpe do camponês irlandês de que provenho.

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Mas é uma referência de há três séculos, quando os meus antepassados emigraram para o Novo Mundo para não morrerem de fome.
"Hoje a família Brian é uma das dez mais importantes da Califórnia", pensou Annalisa tristemente. "Agora vai-me dizer isso, de certeza", pensou.
- Hoje, a família Brian é uma das dez mais importantes da Califórnia - disse efetivamente Philip, confirmando textualmente as previsões da jovem - e tem credenciais
suficientes - acrescentou - para fazer abrir as portas de qualquer palácio. Inclusivamente o dos Monreale.
Annalisa saudou com alivio a partida do major Philip James Brian Junior, o homem que lhe tinha revelado tão desajeitadamente os mistérios do sexo. Mas era só responsabilidade
do americano ou não haveria por acaso uma sua comparticipação pessoal de culpa? A claridade do amanhecer apagara a luminosidade do firmamento, a lua desaparecera,
o presságio da alvorada extinguira a suavidade da noite. Os cheiros um pouco alterados já não subiam da densidade do parque, das rosas, das magnólias. O dia trazia
consigo, de infinitas distâncias, um sopro de ar puro. Até o rumor musical da fonte barroca era diferente, mais claro.
Annalisa viu Philip passar ao lado da fonte, mas o americano não conseguiu levar a cabo o seu propósito, que era o de se voltar para ela e lhe fazer um romântico
gesto de despedida. Calò surgiu do fundo do jardim como uma fúria e não lhe deu nem sequer tempo para recuperar da surpresa. O gigante normando atingiu o americano
na boca do estômago e quando ele se dobrou em dois, como um ramo quebrado, acertou-lhe um murro no queixo e mandou-o sonhar para o meio das rosas de onde o apanhou,
o atirou para cima do ombro esquerdo, o levou para fora do palácio, através da praça, e o depositou nos degraus da igreja.
Annalisa assistiu àquela agressão fulminante e não hesitou um instante em tomar o partido de Calò. Noutros tempos, em épocas de torneios, o lenço com as suas cores
seria entregue ao guerreiro normando, seguro de si, impulsivo, uma força da Natureza, sempre pronto para se bater por ela. Estava profundamente perturbada e pesava-lhe
na alma uma tormentosa desilusão. Queria dormir afagando a última fantasia de acordar e descobrir que aquele tumulto de acontecimentos tinha sido apenas um sonho.
- Não devias ter feito isso, baronessina. - A voz profunda de Calò sobressaltou-a. O gigante loiro de olhos azuis enchia o quarto com a sua poderosa presença.

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- Não é nada contigo, Calò - retorquiu, para restabelecer as distâncias. Mas tu realmente nunca dormes. E insistes em te meter nos assuntos dos outros. - Tinham
crescido juntos, tinham brincado juntos, apesar de Calo ser dois anos mais velho do que ela, e continuavam a tratar-se por tu como quando eram crianças, ainda que
o rapaz nutrisse por ela a admiração e o respeito de um cavaleiro antigo.
- Não devias ter feito isso, baronessina - repetiu Calò. Havia mais sofrimento do que censura naquelas palavras. - Fizeste uma coisa que não digna de ti - repreendeu-a.
- Porque é que não te metes na tua vida? - Estava ofendida, ferida, sentia-se em culpa e por isso sofria.
- Se não me metesse na minha vida não estava aqui - replicou. - Quem não respeita esta lei, na nossa terra é um homem morto.
- E então faz de conta que estás morto. - Annalisa levantou-se de um salto e a sua mão direita abateu-se fulminante sobre Calò, cuja mão se fechou sobre o pulso
dela como uma dentada.
- Estes gestos também não têm nada a ver contigo. Lembra-te do nome que tens. É um nome que merece respeito, não pode ser sujo por um soldado que passa. - Não precisava
de atitudes especiais para exprimir a severidade das palavras e dos pensamentos. O seu sorriso calmo e sereno traduzia a seriedade do seu carácter.
- Larga-me, malvado! - ordenou. O coração saltou-lhe na garganta e o sangue corou-lhe o rosto. Concebeu em relação aquele gigante que a mantinha prisioneira, humilhando-a,
um sentimento ambíguo que naquele momento confundiu com um ódio profundo. Provavelmente, se pudesse, tinha-o matado. - Calò, eu odeio-te! - gritou-lhe na cara.
- E eu respeito-te. - O sorriso tinha dado lugar a uma seriedade insólita. Cerrou os dentes, fazendo realçar os músculos da face. - Respeito-te porque és uma Monreale
e pela gratidão que devo à tua família. - Abriu a mão e deixou-lhe o braço livre.
- Só isso? - perguntou ela, maliciosa. Para além de restabelecer as distâncias, tinha recuperado a supremacia.
- Fizeste mal a toda a gente, Annalisa. - Era a primeira vez que se dirigia a ela tratando-a pelo nome. Fizeste mal ao teu pai. A ti própria.
- E a ti? - Tinha-se tornado insolente, provocadora.
O primeiro raio de sol acariciou as paredes do quarto.

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- Eu não tenho nada a ver com isso - murmurou Calò, com uma tristeza secreta na voz. - Eu estou aqui para te defender.
- De quem? - Brincava com ele numa posição de superioridade.
- Há coisas que as palavras não conseguem explicar - sentenciou. - Eu não vim ter contigo para falar. Mas quero que tu e aquele americano falem com o barão. Quero
ser aliviado desta tarefa ingrata de informador.
O vento trouxe até eles o perfume dos campos e Annalisa estremeceu.
- Eras capaz de descer a esse ponto? - disse, olhando-o com desprezo.
- Só se fosse obrigado - admitiu ele.
- Mas a ti - agrediu-o novamente - que diferença te faz? - No rosto forte e viril do rapaz surgiu uma expressão de infinita tristeza.
- Eu defendo o nome que tens - suspirou profundamente.
- Tu amas-me, Calò. - disse Annalisa num sussurro, subitamente atingida por um fulgor.
- E tu és completamente doida - rebateu ele energicamente, defendendo-se com todas as suas forças.
- O meu cavaleiro normando ama-me. - Envolveu-o com o olhar aveludado dos seus grandes olhos tristes. - O meu guerreiro ama-me e chora de ciúme. - Estendeu a mão
para o rosto de Calò e os seus lábios procuraram os dele. Sentia-se atraída por uma força desmedida, tal como poucas horas antes o tinha sido pelo fascínio do americano,
com a diferença de que esta era uma paixão límpida e solar que a noite não consumiria. Uma paixão que não tinha sabido reconhecer precisamente porque estava demasiado
próxima dos seus olhos. Calò afastou-a e depois bateu-lhe violentamente numa face e na outra. O rosto de Annalisa parecia arder, mas ela não ousou reagir. Depois
agarrou-a pelos ombros e olhando-a nos olhos disse-lhe:
- Tu vais casar com Philip James Brian Junior, major do Exército dos Estados Unidos. - Depois de ter pronunciado aquelas palavras como se fossem uma sentença, o
gigante normando saiu do quarto.

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O lenço de seda

O eco de uma música solene acariciava ainda o ouro dos mosaicos, exaltando-lhes a luminosidade e a profundidade, quando Annalisa e Philip se ajoelharam diante do
altar-mor da catedral de Monreale para se unirem pelo matrimónio.
O americano e a princesa Isgrò tinham razão: o barão, encostado à parede, tinha dado o seu consentimento para o noivado. Novembro chegava ao fim e no céu brilhava
um sol tépido. A Sicília tinha sido libertada e os americanos, passado o estreito de Messina, subiam a bota. O barão Giuseppe Sajeva tinha deixado, com a família,
o palácio de Piazza Armerina para se transferir para a villa de San Lorenzo, no planalto de Palermo, entre o perfume das laranjeiras e o mar.
Tinha sido um acordo arrancado contra vontade, não tanto por faltar ao americano a sua dose de nobreza, mas porque Giuseppe Sajeva estava firmemente convencido de
que o jovem oficial não era homem para a filha. Mas uma vez tomada aquela grave decisão, quis que o ritual fosse digno da família.
O vestido de noiva de Annalisa foi a grande preocupação da princesa Isgrò que, noutros tempos, teria submergido em abraços a sua amiga Coco e, juntas, passariam
em revista uma centena de modelos para escolher o mais adequado à futura esposa.
A Sicília estava libertada, mas o resto da Europa vivia ainda sob o pesadelo da guerra. Coco Chanel continuava a trabalhar, apesar da ocupação nazi, mas uma viagem
a Paris estava completamente fora de questão. Por outro lado, em Palermo não havia uma modista em condições de satisfazer as exigências da princesa. No último momento
foi encontrada

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uma solução de emergência que não era de todo desprovida de genialidade: a baronessina usaria o vestido de noiva da mãe. Era uma obra-prima de seda crua assinada
por Worth e datado de 1923, um modelo de linhas clássicas, enriquecido por um alfinete de esmeraldas em forma de trevo. A joia servia para segurar uma série de pregas
muito suaves que da cintura chegavam até ao tornozelo.
Annalisa usava-o com uma graça régia, seguida por dois pequenos pajens vestidos de branco que seguravam a cauda de seis metros. Um estupendo diadema de brilhantes
estava pousado na sua cabeça altiva. Na mão levava um bouquet de flor de laranjeira. Com um passo lento e solene, pelo braço do pai, de casaca, dirigiu-se ao altar.
A catedral era um palco imenso, mas Annalisa observava com olhos inquietos os perfis bizantinos dos luminosos mosaicos, descobrindo na nave central o dramatismo
cruel dos episódios bíblicos anteriores à Encarnação do Verbo que até àquele dia tinham representado apenas um conjunto harmonioso, quase uma vibração cromática
que lhe acariciava o olhar.
Naquele momento, porém, daquela decoração policroma emergia a tentação de Adão e Eva, os únicos habitantes do jardim do Éden acusados de desobediência, o Homem e
a Mulher na sua culposa nudez expulsos do paraíso terrestre. Depois, o delito de Caim e o sangue de Abel a gritar vingança. Porquê todas aquelas trágicas identificações
na solenidade do templo onde eram celebrados os casamentos de todos os Monreale? Os rostos admirados e comovidos da gente humilde e a expressão altiva dos convidados
não conseguiam consolá-la. Os arranjos de flores e os adornos de prata, na luz palpitante difundida por milhares de velas, alimentavam nela uma dilacerante melancolia.
Viu Philip, no uniforme de gala do exército americano, à espera dela no altar, com a sua polida beleza cinematográfica. E então teve medo, porque num brevíssimo
espaço de tempo ia acontecer o irreparável, um monossílabo ia decidir o seu destino.
Faltava-lhe qualquer coisa, faltava-lhe alguém. Ergueu os olhos para a figura de Cristo na cúpula maior e no olhar intenso do Redentor, na força daquela expressão,
na eloquência daquele gesto, encontrou o poder de um outro olhar, a intensidade de uma outra fisionomia. A audácia da aproximação aterrou-a por um instante, mas
depois convenceu-se de que

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a sua débil vontade não poderia nunca mais repelir a imagem de Calò, que emergia com prepotência do seu confuso arrependimento.
Procurou-o por entre as pessoas, mesmo sabendo que não o ia encontrar. Porque Calogero Costa não estava lá. Tinha desaparecido há dois dias e Annalisa não conseguira
saber onde ele estava. Quando o viu afastar-se no Bugatti do barão, pensou com raiva que talvez tivesse regressado a Piazza Armerina para aquecer a cama de Stellina
Patérne. E sentiu uma grande vontade de chorar. Aquela recordação fê-la estremecer. Imediatamente, a mão do barão pousou afetuosamente na dela.
- Acho que isso acontece a todas as raparigas, no dia do casamento sussurrou-lhe. - Minha menina, coragem.
Na voz do barão vibravam antigas reminiscências que a música do órgão, a exaltação dos mosaicos, a grande mudança em direção à qual a filha caminhava, mas sobretudo
o vestido de Worth com o alfinete de esmeraldas, acordavam nele. Com dezanove anos de distância repetia-se um ritual que se mantivera intacto nos séculos. Mas depois
da morte da mulher, Clara, na casa Sajeva nunca mais se tinha falado em casamento e o barão recusara mil e uma oportunidades. Agora era a vez de Annalisa, que naquele
fascinante vestido de noiva se parecia de uma forma extraordinária com a mãe, pois tinha o mesmo sorriso precioso, o mesmo olhar suave. Pai e filha olharam um para
o outro e evitaram intuir o estado de espírito um do outro, mas nenhum dos dois sabia as motivações profundas daquela comoção recíproca. Annalisa sorriu com gratidão
ao pai e ele a ela antes de se juntarem a Phil no altar.
Annalisa ouviu as recomendações do bispo e respondeu "sim" à pergunta que a unia para o resto da vida àquele soldado que parecia saído de um filme de Hollywood.
Murmurou "sim" com a solenidade devida, os olhos fixos na expressão bizantina do Cristo que lhe fazia lembrar a fisionomia resoluta de um antigo guerreiro normando.

O Mercedes 770 de 1930 cor de nata com motor de oito cilindros em versão descapotável abria o cortejo de Rolls-Royce, Preston Tucker, Lancia e Isotta Fraschini que
se dirigia a Mondello através dos laranjais do barão para se deter na villa de San Lorenzo, uma joia neoclássica que a guerra tinha poupado.
- Um trevo, uma torre sarracena, uma mulher maravilhosa - disse

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Philip a Annalisa, sentada ao lado dele, no carro. Sobre o couro escuro dos assentos do automóvel, decorado com grinaldas de flores de laranjeira, estava impresso
o brasão dos Monreale.
- Phil... Querido. - Estava atónita com os cumprimentos do marido habitualmente avaro de palavras e elogios.
- Há sempre uma nova madrugada no teu sorriso - continuou Philip.
Annalisa não conseguiu conter os soluços.
- Não deves falar assim - suplicou-lhe.
Sabia que não merecia aquelas palavras. O seu coração estava noutro lugar e era outro homem que naquele momento ela queria ter ao lado. Desejava-o simplesmente porque
amava a sua força desmedida, o azul sombrio dos seus olhos ingénuos e bondosos.
- Amo-te - disse Phil.
Annalisa pousou-lhe nas costas da mão um cálido beijo de reconhecimento.
- Ajuda-me a descer, Phil - disse, ao mesmo tempo que um pajem abria a porta do carro já parado.
Soprava do mar uma ligeira brisa quase primaveril. Amigos e parentes tinham-se aglomerado em volta dos noivos distribuindo sorrisos e felicitações, enquanto na escadaria
da villa os criados da casa Sajeva estavam enfileirados com a farda das grandes ocasiões: verde com debruns dourados. O ruído festivo, sob o tépido sol de novembro,
no meio do perfume das laranjeiras e do mar, foi quebrado por repetidas buzinadelas, tão fortes que pareciam de um rebocador. Logo a seguir, da curva de um laranjal
surgiu um enorme camião que avançou como o clássico elefante na vitrina. Era uma nota decisivamente fora de tom naquele fausto preparado de forma minuciosa. Annalisa
olhou em volta aflita e escandalizada.
Só Phil sorria, divertido.
- O que é isto? - perguntou-lhe, irritada com aquela espécie de dinossauro mecânico.
Philip pegou-lhe na mão e, sem responder, obrigou-a a segui-lo durante uma dezena de metros até uma curta distância do ponto em que o colosso tinha parado.
Alguns homens instalaram uma rampa de ferro, as paredes do contentor abriram-se como se de uma caixa mágica se tratasse e do grande ventre do camião deslizou um
estupendo Rolls-Phantom IV metalizado,

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atado com uma fita de seda branca, com um vistoso laçarote colocado ao lado do anjo de prata maciça do radiador.
- A viatura das rainhas para a rainha do meu coração - recitou Philip com um entusiasmo infantil, ao mesmo tempo que, após um instante de perplexidade, explodia
um caloroso aplauso.
Annalisa tinha ficado boquiaberta. A aparição daquele grandioso brinquedo tinha despertado nela a menina feliz entre o sorriso e as lágrimas.
- É uma maravilha! - exclamou, enquanto começava a mexer na fita para desfazer o grande laçarote.
No salão de festas da villa de San Lorenzo tinham sido instalados quatro balcões para expor os presentes de casamento, e alguns deles eram seguramente mais importantes
do que o Rolls, como por exemplo a pequena tela de Antonello de Messina que representava um Cristo Redentor, homenagem dos príncipes de Belmonte.
Tinha sido a teatralidade do gesto, mais do que o objeto em si, a impressionar Annalisa, e também a ideia das dificuldades que certamente Philip tivera de ultrapassar
para trazer até à Sicília um automóvel inglês.
- Se eu tivesse imaginado - disse o barão -, tinha pedido ao motorista para passar pelo meu alfaiate em Oxford Street. Os meus fatos estão a deteriorar-se inexoravelmente.
O reconhecimento do barão di Monreale encheu Philip de orgulho.
- Terei o maior prazer em ajudá-lo a resolver o problema - replicou, esperando sinceramente que os pedidos do sogro se ficassem por aquele simpático comentário.
Gravado nos vidros do carro sobressaía o brasão dos Monreale. O interior era de camurça branca: havia um rádio e um pequeno bar. Annalisa, perdido qualquer embaraço,
abraçou e beijou o marido e disse para si mesma que Phil era certamente o melhor dos homens que uma mulher podia desejar.
O próprio barão, ainda que vagamente perturbado, unicamente por razões de estilo, com aquela clamorosa encenação de cunho americano, teve de admitir a nobreza do
gesto, que pressupunha um grande amor.
- O que é que eu posso fazer para retribuir esta fábula? - Tinha o olhar aceso de amor e de desejo. - Eu não sei contar fábulas destas. -Brincava habilmente com
ele.

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- Vamos inventá-las - propôs Phil, quando teve a certeza de que ninguém os estava a ouvir.
- É tudo o que eu quero - disse com sinceridade. Gostaria de poder guardar aquele instante de abandono e de extraordinária ternura por ele e nunca mais o perder.
- Vamos fugir - sussurrou-lhe ao ouvido. - Eu vou ser o teu motorista. Reservei um quarto no Villa Igiea. Partamos imediatamente. - A sua voz, a sua respiração,
todo o seu corpo a desejavam.
Depois daquela primeira noite de julho em Piazza Armerina não tinha havido mais nenhuma intimidade entre eles. O barão erguera entre os dois jovens o muro intransponível
que Annalisa profetizara. Depois Philip tinha sido transferido para Nápoles, esperando com ansiedade a lua de mel. Mais tarde deveria retomar o seu posto na capital.
Annalisa, no seu canto, estava igualmente ansiosa por se encontrar com ele. Vivia no estado de espírito do paciente que casualmente acha que apresenta sintomas de
uma doença e espera pelos exames clínicos e de laboratório que o tranquilizem quanto ao seu estado de saúde.
Tinha a certeza de que desta vez, nos braços de Phil, ia subir até ao paraíso e no seu cérebro se acenderiam milhões de faíscas. Porque Phil era belo, enérgico,
tinha um sorriso vitorioso e umas palavras cheias de música. Gostava dele também pela sua terna ingenuidade, mas agora também pela sua fantasia e pelo seu poder.
O instinto mandava-a entrar imediatamente no Rolls e correr para o refúgio de Villa Igiea.
- Temos deveres, Phil - justificou-se. - Há o copo-d'água e tudo o resto. Não vamos estar sós antes de anoitecer.
- Eu bem tentei - disse ele a sorrir.
Seguiu-se uma interminável procissão de abraços, depois o desfile para o interior da villa, para os salões decorados, e o almoço.
Giuseppe Sajeva tinha o rosto mais duro do que habitualmente para não ceder à comoção, enquanto a princesa Isgrò produzia em jato continuo soluços e lágrimas. Voluteavam
palavras como voos de pássaros. Saltavam saudações e brindes.
Annalisa esteve alegre e descontraída. Depois chegou o fim da tarde e sentiu como que uma sensação de vazio. Era o alvo da admiração e da inveja e, aparentemente,
tinha tudo para ser feliz. Mas Calò não estava ali.

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Tinha olhado em volta para o procurar, mas o fiel companheiro de brincadeiras continuava ausente.
- Ainda não vi o Calò, tia Rosa. - Tinha conseguido aproximar-se da princesa Isgrò para lhe pedir notícias.
- O Calò, disseste? - balbuciou aflita a princesa, fazendo um gesto de contrariedade. - Com tanta coisa que tive para fazer, esqueci-me.
- Esqueceste-te de quê? - As palavras da senhora deixaram-na apreensiva.
- Do presente. - Rolou os grandes olhos negros como se tentasse identificar o sítio onde o tinha escondido.
- Que presente? - Annalisa sentiu o sangue pulsar-lhe nas têmporas.
- O presente do Calò. Entregou-me um presente para ti, mas agora que penso nisso não acho que seja nada de importante. - Passou uma mão pela testa para apagar definitivamente
aquele pensamento, ao qual tinha inexplicavelmente atribuído algum significado.
- Onde está? O que é? - perguntou, agressiva, sem tratar de esconder a sua excitação.
- O que é, não sei. Só te posso dizer que o pus no meu quarto. - Sorriu àquela birra de menina.
- Mas ele, o Calò.., onde está? - Mais do que uma pergunta cortês, era uma ordem.
- Foi para Piazza Armerina. Acho que disse que tinha um trabalho urgente para despachar. Mas a questão é que Piazza o atrai como o mel atrai as moscas. Sabes muito
bem que está lá a Stellina Paternò. - Afastou-se, levada pelo turbilhão dos seus compromissos.
Annalisa, com a desculpa de se arranjar um pouco, foi até aos aposentos da princesa e em cima de uma mesa da salinha encontrou um embrulho pequeno, frouxo, feito
de uma forma apressada e desajeitada. Abriu-o. Dentro havia um lenço de seda que em tempos tinha sido branca e estava já amarelecida. Annalisa pegou nele e virou-o,
na esperança de entender O significado daquele presente. Num canto do lenço havia duas letras bordadas: C.C., Calogero Costa. Então lembrou-se.
Era um episódio que remontava aos anos da primeira juventude. Ela tinha 13 anos, Calò 15. Estavam no jardim de Piazza Armerina, no verão. Annalisa tinha-se escondido
atrás de uma sebe de murta a chorar por causa de uma dor inexplicável.

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Estava aninhada na relva, o rosto entre as mãos, e as lágrimas brotavam-lhe como chuva e escorregavam-lhe por entre os dedos. Então ouviu a voz do rapaz.
- O que foi? - Era capaz de qualquer coisa para não a ver chorar.
Annalisa negou com um gesto de cabeça. Ele tinha-se acocorado ao lado dela e olhava-a com um ar paternal, carregado de afeto e de compreensão.
- Diz-me o que posso fazer, Annalisa. - Se lhe tivesse pedido para matar por ela, Calò tê-lo-ia feito naquele momento.
O pranto de Annalisa tinha-se transformado em violentos soluços.
- Não sei, Calò. - Eram crises de melancolia e de tristeza incoercíveis, sem uma justificação precisa, apenas um vago mal-estar que crescia como um temporal e explodia
em lágrimas e soluços que a libertavam da escuridão. - Sinto-me tão triste e só - confessou-lhe.
Ele desfez o nó do lenço de seda branca que trazia ao pescoço, presente de Natal do barão, e estendeu-lho.
- Toma - disse, a sorrir. - Limpa as lágrimas - acrescentou. - Pronto, assim já está melhor. E agora vamos montar a cavalo. Quero levar-te a ver as lebres a correr.
É um espetáculo fantástico.
Annalisa limpou as lágrimas e restituiu ao rapaz o lenço e o sorriso.
- Obrigada, Calò. Às vezes sinto uma melancolia que tu nem imaginas. - O temporal tinha passado e brilhava novamente o sol.
Calò pegou no lenço e enfiou-o no bolso da camisa.
- Imagino, baronessina - respondeu. Com a memória revia um menino só, abandonado, que oferecia ao infinito o seu rosto queimado do sol e sonhava que uma mãe, que
nunca conhecera, pegava nele ao colo e o apertava contra o peito derramando sobre a sua cabeça doces e consoladoras palavras de amor. - Eu percebo aquilo que sentes,
Annalisa - continuou. - Mas estou eu aqui para te fazer sorrir.
Ajudou-a a levantar-se e dirigiram-se à estrebaria. Depois Annalisa esqueceu aquele episódio e não voltou a ver aquele lenço. Sentiu uma ligeira vertigem perante
a ideia de Calò o ter conservado durante todos aqueles anos. Oferecia-lhe o lenço para secar as lágrimas de uma menina inquieta e era como se lhe repetisse: "Eu
sei aquilo que sentes, Annalisa. Mas estou eu aqui para te fazer sorrir."
Teve a confirmação naquele instante de que Calò a amava, que sempre a amara, respeitara, venerara. Sabia com certeza que não tinha ido

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para Piazza Armerina tratar de assuntos nenhuns, mas sobretudo sabia naquele momento, não estava nos braços de Stellina Paternò. Tinha fugido com medo de se trair,
para não assistir ao triunfo do americano.
Apertava entre os dedos o lenço de Calò já amarelecido e pegou no auscultador.
Menina, sou Annalisa Sajeva - disse, esquecendo-se de que desde algumas horas atrás era a senhora Brian. - Ligue-me depressa para Piazza Armerina. É urgente.
Poucos minutos depois tocou o telefone. Quando ouviu a voz de Calò, sobre a sua face impassível começaram a deslizar lágrimas silenciosas. Reconheceram-se sem necessidade
de preliminares, como se um e outro soubessem daquele encontro.
- Porque te foste embora?
- Tinha aqui que fazer.
- Estás a mentir. Tu fugiste, Calò.
- Então vamos pôr as coisas de outra maneira: cada um no seu lugar, baronessina. - Aquela voz quente e profunda chegou até ela inalterada.
- Calò.., recebi o teu presente. Obrigada. E... fazes-me falta.
Houve uma interferência no aparelho e a voz ficou mais fraca, mas Annalisa julgou ouvir a frase de que estava à espera:
- Tu também me fazes falta. Fazes-me muita falta.
- O que disseste? - perguntou.
- Nada. Que Santa Rosalia te proteja. - E desligou a chamada antes que Annalisa pudesse dizer algo mais.

Luzes fugitivas deslizavam no mar e no porto ainda protegido pela escuridão. Navios aliados ao largo comunicavam através de mensagens luminosas.
- Um dia as luzes voltarão a acender-se - murmurou Philip.
Annalisa estremeceu no négligé de seda rosa-pálido que tinha sido da mãe. A linha solta fazia realçar a sua silhueta
- E a guerra vai acabar - disse ela, como se só naquele momento se tivesse apercebido de que o maior conflito alguma vez travado estava ainda em curso.
Philip segurou-lhe o rosto entre as mãos e respirou o seu perfume, o seu hálito que sabia a sol e a mar.

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Viviam os preliminares da primeira noite de casados na suite real do imenso palácio-hotel em estilo liberty-mourisco, cujos jardins descia até ao mar numa alternância
de canteiros floridos e de agaves gigantescos.
Na sala adjacente ao quarto tinha sido acesa a lareira, que animava o ambiente com fulgurações oscilantes. A sala tinha o formato de uma caixa de bombons e a atmosfera
de uma alcova com luzes quentes e sugestivas, perfumada de flores frescas.
Empregados discretos tinham trazido um carrinho com uma garrafa de Dom Perignon num balde de prata. O rádio transmitia um concerto para as tropas aliadas. Ellington,
The Duke, tocava Caravan.
É o cenário ideal para uma surpresa - disse Phil, empurrando delicadamente Annalisa para o pequeno sofá à frente da lareira.
- Que surpresa? - perguntou ela, curiosa. - Tive tantas surpresas hoje que acho que já são suficientes.
- Porque é que queres impor um limite à felicidade? - Sentou-se, meteu a mão no bolso do quimono e estendeu-lhe uma caixinha de veludo azul.
- Isto é para ti. - Pronunciou aquelas palavras com uma solenidade insólita.
- Mais um presente de casamento? - Já tinha tido tudo e não conseguia imaginar que outro presente pudesse espantá-la.
Abriu a caixa e contemplou a safira mais bonita que alguma vez vira. Era um fogo azul, de lapidação redonda, e teve a impressão de que se lhe tocasse ia queimar
os dedos. Tinha as dimensões de uma castanha.
- Mas isto é um tesouro - afirmou sem grande convicção, mais para respeitar as regras do jogo do que por um sincero entusiasmo. - Quando sair - disse num tom de
brincadeira - tenho de levar um cofre atrás de mim.
- É o anel de noivado - explicou Philip com minuciosa cautela -, não é uma joia qualquer. Foi comprada em Geneve, em 1811, pelo meu trisavô paterno. Desde então
ficou sempre na família. Cabe à mulher do primogénito Brian.
Incapaz de exprimir comoção diante daquela pedra sumptuosa, sorriu.
- Estou-te muito grata por esta prova de amor. - Era uma frase convencional, pronunciada com a entoação correta.

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Philip não estava num estado de espírito próprio para captar qualquer subtileza. Pensava nos complicados labirintos que a safira da família tinha tido de percorrer
para chegar de São Francisco a Palermo em tempo útil. Pensava na doce Mary Jane, que se tinha contentado com uma breve, sincera confissão para o libertar da sua
promessa.
As portas de um novo paraíso estavam a abrir-se para ele e o mesmo desejo que o empurrava para Annalisa fez desvanecer o olhar melancólico e resignado de Mary Jane.
Concluiu que tudo tinha terminado da melhor maneira, mas não admitiria nunca que a paixão é um sentimento egoísta, que se manifesta na esfera da posse sem condições
e que exclui a ternura, a piedade e a solidariedade humana relativamente a quem está fora do círculo mágico.
A Philip bastava Annalisa, o seu corpo excitante, o sol que ardia na sua pele e os inquietantes mistérios que se consumavam no seu olhar triste. Pegou delicadamente
na safira e enfiou-lha no dedo, onde já brilhava a aliança nupcial.
- Agora és verdadeiramente minha mulher - proclamou Annalisa Brian Sajeva di Monreale. Pegou nela ao colo, atravessou a antecâmara e pousou-a delicadamente no leito
do quarto nupcial.
Deixou-se beijar, deixou-se acariciar, mas aquilo que sentia por dentro já não era, como da primeira vez, um desejo irreprimível, um turbilhão do sangue. Tinha-se
acalmado aquela vontade louca de excitação, de apanhar flores, de compor grinaldas para adornar a sua própria juventude. Os assomos de rubor tinham-se apagado.
Tinha medo do confronto, tinha medo que a desilusão da primeira vez se repetisse. Estava lúcida, racional, retribuiu conscienciosamente os beijos do marido, facilitou-lhe
os movimentos, mas era um confronto absurdo, insustentável. Como se uma pessoa perfeitamente equilibrada tentasse pôr-se em sintonia com um louco. Já não havia pecado,
nem sentimento de culpa, mas alguma coisa dentro dela se tinha bloqueado, dando lugar à vergonha e à recusa. Havia uma imperfeição naquela maneira de estarem juntos
e pareciam-lhe ridículos e grotescos os gemidos e os suspiros do homem que ofegava em cima dela para a possuir.
Da primeira vez tinha sido fácil. Tudo se tinha passado de uma maneira apressada, com resultados dececionantes, mas tinha sido fácil.

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Demasiado fácil, até. Naquele momento, porém, na raiz do desejo havia uma recusa total, uma contração espasmódica e dolorosa que impedia que a relação sexual se
completasse. Fantasias de violência aglomeravam-se dramaticamente num canto desconhecido da sua mente.
- Mas o que é que se passa contigo? - Phil mostrava-se meigo e atén cioso, apesar da desilusão.
- Por favor, deixa-me sozinha. - Chorava, perdida e humilhada.
- Como quiseres - concordou, resignado, enquanto se cobria com o quimono. Foi para a sala. Alguma coisa do género tinha já visto num filme, ou lido num livro, mas
nunca imaginaria que pudesse acontecer-lhe pessoalmente.
Controlou o impulso de bater com a porta, sentou-se no sofá em frente à lareira e acendeu um cigarro. Aquela jovem imprevisível e contraditória tinha comportamentos
que o desorientavam.
Amava-a e sentia-se irresistivelmente atraído por ela. Para casar com ela em tempo de guerra num país estrangeiro tinha incomodado políticos e cardeais, recorrendo
a todo o prestígio da família. E ela negava-se. Da primeira vez tinha até duvidado da sua virgindade. Depois do casamento transformara-se numa fortaleza inexpugnável.
Pensou com amarga nostalgia em Mary Jane, a doce e submissa namorada americana, tão disposta a adorá-lo. Mas não havia possibilidade de comparação entre as duas
mulheres. Annalisa era a inocência e o pecado, o pudor e a perversão, o abandono e a negação. Era um fogo crepitante que nunca ninguém conseguiria dominar e ter
só para si. Era como o fogo que muda continuamente de forma e de aspeto, era linda, podia-se aceitá-la ou rejeitá-la, mas nunca mudá-la.
Atirou para a lareira aquilo que restava do cigarro, bebeu uma taça de champanhe e regressou ao quarto.
- Vais apanhar frio - censurou-a.
Annalisa estava diante da porta envidraçada completamente aberta com as cortinas enfunadas pelo vento. Phil rodeou-lhe os ombros de um modo protetor.
- Não fiques assim. - Puxou-a para trás e com uma mão fechou a janela.
- Sinto muito, Phil. - Annalisa olhou para ele através das lágrimas, quase aflita. A ideia de recomeçar aterrava-a.

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- Eu quero-te, Annalisa - suplicou-lhe, enquanto a levava para a cama.
- Também eu - murmurou. Dizia-o com convicção: não podia aceitar Um mecanismo desconhecido se opusesse à sua vontade de amar.
Philip foi cuidadoso e decidido e penetrou-a com uma violência terna, provocando-lhe uma dor até ao fundo da alma. Annalisa sufocou um grito e deixou que ele fizesse
amor com o seu corpo sentindo um momento de ternura apenas no instante em que a tensão do macho se desfez dentro dela e o sorriso vitorioso regressou aos seus lábios.
- Estás a ver como não era impossível? - comentou ele, com orgulho.
- Não sei o que me aconteceu - desculpou-se. - Esperei tanto tempo por esta noite contigo que acabei por ter medo. - O orgasmo de Phil tinha a despertado e o desejo
voltava a brilhar-lhe nos olhos e a queimar-lhe a ele. - Podíamos recomeçar - propôs, com a sua voz musical e tentadora. Sinto que vai correr tudo lindamente, que
vai ser maravilhoso.
Falava-lhe junto dos lábios, das orelhas e do pescoço com o mesmo ardor de antes. Philip amou-a com toda a ternura de que era capaz, mas ao fim de alguns minutos,
que a Annalisa pareceram um instante, Phil estava ao lado dela, novamente saciado.
- Está tudo OK, agora? - sorriu, satisfeito.
- Sim, querido, está tudo OK - respondeu, ao mesmo tempo que lhe dava um beijo. Mentia. Depois daquela relação apressada continuava a sentir-se vazia, insatisfeita
e vergonhosamente só.
- Daqui a alguns dias vou partir - disse Philip. Ele tinha o quimono vestido e ela cobriu-se com um roupão.
- Tenho pena. - Era uma participação genérica, uma pálida, mal conseguida tentativa de manifestar algum desapontamento. Na realidade, experimentava uma vaga sensação
de libertação perante a ideia da partida próxima do marido. Philip abriu a janela: a respiração da noite tinha-se tornado mais calma.

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O refúgio secreto

Sozinha ao volante do Rolls, Annalisa experimentou uma exaltante sensação de liberdade. A paisagem desfilava em volta dela, sempre igual e sempre diferente, com
uma intensidade insólita. Desde que se tinha casado com Philip Brian era finalmente dona da sua própria vida, dos seus gestos, do espaço e do tempo, podia decidir
uma saída ou programar uma viagem sem pedir autorização a ninguém.
Tinha saído da estrada nacional para Messina e seguia pela que levava a Piazza Armerina. Estava um dia tempestuoso, novelos de nuvens negras rolavam no céu empurradas
pelo tépido vento do sul. Faltavam duas semanas para o Natal e o ar estava carregado, como a anunciar um temporal estivo.
Pensou em Phil mais com inquietação do que com ternura. Tinha-lhe prometido que regressaria a San Lorenzo, do dia 24 de dezembro, e que passaria com ela também o
fim de ano. Deixara-a mais apaixonado do que nunca, prometendo-lhe, assim que a guerra acabasse, um esplêndido futuro na Califórnia.
Durante os poucos dias da breve lua de mel, Philip tinha sido pródigo em presentes e em amor. Annalisa retribuíra os primeiros e aceitara conscienciosamente o segundo,
guardando para si a amarga desilusão de não se sentir mulher, de não experimentar nos braços do homem que era seu marido as sensações durante tanto tempo sonhadas,
imaginadas, fantasiadas. Por fim, tinha-se resignado a considerar as suas trepidantes esperas como aquilo que eram: fantasias. Fantasias para enriquecer e enfeitar
um sentimento que talvez existisse apenas na violenta imaginação das jovens.
Após a partida de Phil, retomara a sua vida como sempre, e se não fosse pela liberdade de que gozava ter-se-ia esquecido de que estava

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casada. O barão insistira para que não abandonasse os estudos e fosse fazer em julho os exames liceais.
- A guerra não vai acabar tão cedo - preveniu-a. - E o teu americano não te vai levar para São Francisco em menos de um ano. Portanto, tens muito tempo para regressar
à escola. Annalisa sabia que a casa Monreale, na questão dos estudos, era bastante intransigente. O barão tinha obtido duas licenciaturas, uma em Direito e uma em
Filosofia, e a mãe tinha-se formado em Letras.
Annalisa não tinha ainda manifestado a sua inclinação, mas o pai estava convencido de que, como pensadora incansável que era, talvez fosse estudar Filosofia numa
universidade americana.
Enquanto percorria estradas tortuosas entre campos e bosques de amendoeiras, trepando por suaves colinas das quais podia admirar a paisagem que amava, Annalisa começou
a perguntar a si mesma o que era aquilo que efetivamente a empurrava para Piazza Armerina. O pretexto tinha sido o de levar para casa amêndoas para o Natal, mas
era um álibi inconsistente. O barão queria acompanhá-la, mas depois desistiu perante o seu desejo de ir sozinha. Ao fim e ao cabo, era uma senhora americana. Quanto
a esse ponto brincou, mas não sem uma certa amargura.
Quando o carro começou a subir, silencioso e solene, a colina que levava à cidade, Annalisa deixou cair a máscara e admitiu que aquela viagem solitária tinha um
único objetivo: ver Calò. Instintivamente, levou uma mão ao bolso da saia, onde conservava o lenço.
Virou em direção aos campos e voltou a subir até ao muro do jardim do palácio Monreale. O monumental portão de ferro forjado tinha sido aberto e estava um criado
à espera dela. Annalisa conduziu o Rolls pela alameda de saibro ladeada de agaves, sem se preocupar com os arranhões produzidos na carroçaria pelas folhas afiadas.
O administrador, previamente informado da sua chegada, foi ao encontro dela quando estacionou o carro no terreiro.
- Bem-vinda, baronesa - cumprimentou-a, ao mesmo tempo que lhe abria a porta e se inclinava cerimoniosamente. Era um homem robusto, com cerca de 40 anos, não demasiado
alto, de rosto perfeitamente barbeado e a expressão impessoal e polida do funcionário municipal. Chamava-se Michele La Rocca. A sua família servia os barões di Monreale
há Várias gerações.

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- Obrigada, don Michele, prazer em vê-lo - retribuiu o cumprimento com uma cordialidade sorridente.
Um criado precipitou-se sobre a bagagem, ansioso por se tornar útil. Era uma criatura subserviente e fiel, chamava-se Giacomino Mancuso. Tinha visto nascer Annalisa
e sentia muito orgulho por isso.
Entre vénias, convencionalismos, frases de circunstância e felicitações, a senhora Brian chegou ao seu quarto. O fogo crepitava na grande lareira e Annina estava
a fazer a cama. A presença da empregada fiel não estava prevista.
- Com que então por estes lados? - brincou Annalisa, enquanto ia ao encontro dela. - Não devias estar em San Lorenzo?
- As vias do Senhor são infinitas - replicou a mulher, maliciosa.
- As vias do Senhor com S maiúsculo ou as vias do patrão com p minúsculo? - Divertia-se com aquele jogo de palavras que antes do casamento nunca lhe teria surgido.
Annina ficou pensativa.
- As duas - disse. - Para mim têm ambas letra maiúscula.
Annalisa agarrou-a pelos ombros, obrigando-a a dar uma volta divertida. - Obrigaram-te a vir à minha frente - disse-lhe -, confessa!
- O senhor barão - admitiu - mandou-me vir aqui. Disse que Vossa Senhoria ia precisar de mim.
Annalisa soltou uma franca, irresistível gargalhada.
- Annina - respondeu, desconcertada -, desde quando é que me tratas por Vossa Senhoria? Sempre me trataste pelo nome. Sempre me trataste por tu. Quando era pequena
deste-me umas palmadas no rabo. Que novidade é esta?
- Palmadas no rabo é que nunca - retorquiu a mulher, corada. - A novidade é que o senhor barão me disse: Annina, vai a frente da minha filha. E vê se os criados
mantêm a distância. Já não é uma menina. Assim, para ensinar os criados a manterem as distâncias, trato-a por Vossa Senhoria.
Annalisa abraçou-a com arrebatamento, deixando-a confusa.
- Não faça isso, baronesa - implorou. - Não é digno da sua condição.
Sentou-se no sofá para onde ela a empurrou e levou uma mão à testa. Tinha a cabeça a andar à roda.
- Onde está don Calogero? - perguntou-lhe bruscamente.

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- Tu ainda vais dar cabo de mim, minha menina. - Tinha voltado a ser a Annina de sempre, terna e afetuosa.
- Onde está o Calò? - insistiu, sem lhe dar tréguas.
- Saiu cedo. Logo a seguir ao almoço. - A mulher recuperava lentamente o equilíbrio.
- Onde foi? - teimou.
- Foi vigiar o corte dos eucaliptos. - Levantou-se.
No campo a norte da cidade, o barão Sajeva tinha transformado muitos hectares de terreno de pasto num majestoso eucaliptal. As árvores alimentavam a indústria da
celulose e representavam um negócio vantajoso. Apesar do ceticismo inicial do administrador, a atividade tinha-se revelado muito rentável.
Annalisa, depois de ter escutado alguns sermões da criada fiel sobre a necessidade de manter as distâncias e de se comportar como uma verdadeira senhora, mandou-a
embora, simpática mas irrevogavelmente, mudou rapidamente de roupa, vestiu as calças verdes de fazenda inglesa e calçou as botas de montar, enfiou o casaco de pele
forrado a pelo e precipitou-se como um diabo pelas escadas abaixo, em direção à estrebaria.
- Vou sair com a Josette - gritou para Annina, que tentava em vão correr atrás dela para saber onde ia.
Josette era o seu puro-sangue árabe, uma fêmea de olhar doce e de movimentos rápidos que o barão lhe tinha oferecido no seu décimo quinto aniversário e que ele mesmo
tinha batizado com o nome de uma sua antiga chama parisiense. Mas isso Annalisa não sabia. Josette tinha sido a companheira de muitas cavalgadas, por vezes solitárias,
mais frequentemente na companhia de amigos, do pai ou de Calò. Era uma égua soberba. O temperamento da jovem e a vivacidade do animal exprimiam-se no galope desenfreado
que acalmava depois em longas passeatas. Annalisa e Josette eram duas personalidades imprevisíveis. Juntas podiam saciar a sua ânsia de liberdade. Annalisa preparou
a sela sozinha, enquanto falava intensamente ao ouvido do animal e lhe oferecia de vez em quando um cubinho de açúcar. Quando ficou pronta, Josette virou a sua esplêndida
cabeça para a convidar a montar. Annalisa mal pôs o pé no estribo instalou-se imediatamente na sela, mantendo as rédeas com a mão direita. Saíram a passo, depois
a trote e finalmente a galope quando

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chegaram ao campo aberto. Josette nunca a traíra. Nem mesmo Sunny, anglo-normando do barão, se comparava com ela.

Annalisa viu-o no limiar do eucaliptal naquele precoce ocaso invernal. Estava imóvel contra o céu tempestuoso no seu hunter negro e brilhante como pez. Vestia um
casaco pesado de fustão apertado até ao pescoço, mastigava uma raiz de alcaçuz e tinha o olhar perdido no último horizonte.
Annalisa abrandou a marcha, ao mesmo tempo que o coração lhe saltava na garganta. Por um instante pensou em dar meia-volta e regressar a casa, mas uma força irresistivel
atraía-a em direção a ele. Homem e cavalo formavam um bloco de força petrificada.
O céu era de tinta, os negros novelos, que de manhã rolavam empurrados por um vento vindo de África, impunham-se agora imóveis como uma capa de chumbo.
Annalisa manteve Josette a passo e parou atrás de Calò, sob a última fileira de eucaliptos, a poucos metros dele. Estava convencida de que, mergulhado como estava
nos seus pensamentos, não a tinha sentido chegar.
- Porque vieste? - perguntou sem se virar.
Annalisa tocou ligeiramente com a bota o ventre do animal, que avançou cautelosamente, passou ao lado de Calò, ultrapassou-o, parou à frente dele e rodou sobre si
mesma.
- Não sei - disse ela baixinho.
Algumas gotas grandes caíram no chão como moedas liquidas, levantando o odor balsâmico dos eucaliptos. Só o olhar de Calò se moveu, fitando Annalisa. Era um olhar
cheio de cólera que ela conhecia muito bem, apesar de ser a primeira vez que lhe era dirigido sobre ela de uma forma tão brutal. Sentiu um arrepio correr-lhe ao
longo da espinha.
- Mas era bom que soubesses, senhora Brian. - Cuspiu a raiz de alcaçuz com desprezo e com raiva.
- Precisava de ti - sussurrou por fim Annalisa com um ar doce, submisso. Pingas dispersas e pesadas continuavam a cair, fazendo tremer as copas das grandes árvores.
- Quando a patroa precisa de um servo, chama-o e o servo acorre. Não precisa de montar a cavalo e fazer longas viagens para ir ter com ele. Basta um chamamento.
- Os seus olhos azuis cintilavam de indignação.

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Dizes coisas que não pensas. - Annalisa abanou a cabeça.
- Eu não sou senão um servo dos Sajeva. E tu és a senhora Brian. Sabes isso bem. Portanto, o que queres de mim? - Não fugia, porque um homem não foge, mas tinha
uma enorme vontade de o fazer.
Annalisa levantou a cabeça e atirou-lhe com o seu olhar altivo.
- És um idiota! - gritou. - Tu amas-me e eu estou apaixonada por ti. O discurso do servo convém-te porque não tens a coragem de enfrentar a situação, Calogero Costa
- disse-lhe, provocando-o. - Tu tens medo de uma mulher.
- Eu não conheço o medo - vociferou. - Temo a tua desonra e a tua vergonha. É diferente.
- Eu não te reconheço - continuou, num tom de voz chorosa. - Apesar de ter crescido contigo e de termos comido o mesmo pão. Começo a acreditar que tu és um diabo,
porque me tiraste a paz e a capacidade de raciocinar. - O trovão ribombou ao longe e a chuva adensou-se.
- És uma menina mimada que se diverte com as suas brincadeiras proibidas. - A voz forte e quente de Calò sobrepunha-se a custo ao clamor do temporal, ao mesmo tempo
que um vento imprevisto fustigava o eucaliptal.
- Eu amo-te, Calò. - Lágrimas e chuva caíam copiosamente sobre o seu rosto esplêndido.
- Tu amas apenas o teu egoísmo e as coisas que não podes ter - retorquiu, humilhando-a. - Só te amas a ti própria. E esqueces os teus deveres de mulher integra.
Sob a chuva torrencial, Annalisa puxou as rédeas e incitou o animal, obrigando-o a um súbito galope, com a única intenção de fugir de si própria, de Calò, do seu
desespero. Um raio abateu-se sobre um eucalipto, partindo-o ao meio, Josette empinou-se e ela não conseguiu controlá-la. Foi atirada ao chão, enquanto a égua continuava
a sua corrida louca, abandonando-a na lama do bosque.

Quando recuperou os sentidos estava de novo a cavalo, mas desta vez na garupa de Morello e nos braços de Calò. Doía-lhe a cabeça e sentia um ardor intenso na testa,
no sítio onde tinha batido ao cair. Estava muito dorida e a chuva fustigava-a impiedosamente sob o impulso do vento. O hunter negro avançava com cautela por uma
encosta, seguindo um Percurso ditado apenas pelo instinto, já que em volta tudo era escuridão.

195

Josette, que já tinha tido tempo de digerir o medo, seguia-os tranquilamente.
Morello parou por debaixo do alpendre e Calò deslizou da garupa do animal, segurando Annalisa firmemente nos seus braços. Ela não sabia onde estava nem o que ia
acontecer, mas a sua sensibilidade de mulher sugeriu-lhe que continuasse a comédia do desmaio.
Calò abriu uma porta com um pontapé e, avançando as apalpadelas, instalou-a sobre qualquer coisa macia e quente, certamente uma pele. Depois sentiu-o ao fundo do
aposento a mexer nuns pedaços de madeira e a imprecar em voz baixa. Uma chamazinha brilhou-lhe nas mãos, ele aproximou-a dos toros de uma lareira, os galhos começaram
a arder e em poucos minutos altas línguas de fogo crepitantes treparam pela chaminé, mordendo os troncos de madeira maiores.
As chamas da lareira iluminaram o interior de uma grande e confortável cabana de paredes brancas, um teto robusto de traves de madeira e um amplo leito coberto de
peles de carneiro, onde Annalisa estava deitada. O calor espalhou-se a toda a volta, transmitindo uma sensação de profundo bem-estar.
Calò pegou-lhe na mão, avaliou como um especialista a intensidade das pulsações, observou atentamente a ferida extensa na cabeça e pareceu mais tranquilo. Tinha
visto gente recuperar depois de quedas piores. Convenceu-se de que tinha apenas desmaiado, mas entretanto, para maior segurança, com gestos insolitamente delicados
para um homem da sua compleição, começou a despi-la, pois a roupa estava encharcada da chuva.
Lidava com aquele corpo magnífico e já nu com o distanciamento de um médico no exercício das suas funções: secou-a com cuidado, friccionando-a delicadamente com
toalhas que tinha aquecido junto do fogo, que ardia agora com intensidade na lareira. Cobriu-a com mais peles de carneiro e pousou a roupa numa cadeira a secar.
Depois despiu por sua vez a roupa encharcada que envergava e ficou em pé junto da lareira.
Pela primeira vez Annalisa viu-o nu, e aquele corpo forte, poderoso, o peito e as pernas cobertos de uma penugem loira e sedosa que a luz do fogo emitia reflexos
de mel, induziram-na novamente a acreditar nos sonhos que a realidade parecia ter dispersado.

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- Calò - disse num sussurro. Tinha o rosto em chamas e o sangue pulsava-lhe nas têmporas. Erguera-se por entre as peles de carneiro, estava apoiada num braço e com
o outro convidava o homem. Tudo aquilo que desejava e que sempre desejara estava agora diante dela.
Ele apressou-se a agarrar numa toalha e a enrolá-la à volta da cintura.
Foi sentar-se ao lado dela, sobre aquela grande cama feita de peles macias e quentes e afagada pelos reflexos do fogo.
- Como estás? - Sorria como nunca tinha sorrido, como um pai, como um irmão, como um amante atencioso.
- Bem, Calò. Mas não sei porque é que estamos aqui. - Naquela mentira havia um fundo de verdade, enquanto olhava para ele a sorrir.
- Deste uma queda tremenda - acalmou-a -, mas agora já passou.
- Onde estamos? - perguntou ainda Annalisa.
- Num refúgio secreto que até há uma hora só eu conhecia.
- A Josette? - perguntou, para tornar mais credível a sua fragilidade.
- Está lá fora debaixo do alpendre com o Morello. - Ostentou um sorriso radioso.
- Está em boa companhia - acrescentou ela, com malícia.
- Não sentes nada partido? - Dos olhos azuis de Calò transparecia uma grande alegria.
- Nunca me senti tão bem. - Annalisa estendeu um braço nu para fora das peles quentes e acariciou-lhe o rosto. - Mas tu ainda estás todo molhado.
- Vou vestir-me agora - respondeu, à defesa. - Tenho de ir lá fora secar os cavalos. Ou ainda ficam doentes. - Tentou levantar-se, mas ela deteve-o com uma doçura
firme.
- São fortes - sossegou-o. - Estão em boa companhia. Podem esperar. Eu não. Eu não posso esperar mais. - Era uma prece que Calò não podia ignorar.
Puxou-o ternamente para o seu lado, tirou-lhe a toalha, secou-lhe o rosto e os cabelos, os braços, depois começou a beijá-lo na boca, no peito, e desceu até às virilhas
tocando-o com os seus lábios de veludo. Gotas de amor desfaziam-se dentro dela, enquanto a chuva lá fora continuava, incessante e violenta. Calò, na sua toca quente,
impregnada do cheiro deles e do calor do fogo, desistiu do combate. Já não foi capaz de rejeitar Annalisa, de a mandar embora, e aceitou tudo aquilo que ela lhe
oferecia.
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Annalisa pôs-se em cima dele e lentamente introduziu dentro de si o sexo desejável de Calo. Ao mesmo tempo que sorria, o acariciava e lhe sussurrava palavras de
amor, lágrimas de felicidade rolavam pela sua face.
Aquilo que considerava já impossível tornou-se de repente realidade. Um langor desconhecido apoderou-se dela e no seu cérebro rebentaram milhões de faíscas. Quente,
molhada, finalmente feliz, levou Calò até ao seu próprio paraíso.

A chuva tinha cessado e a noite descera sobre o refúgio de Calò. Também o fogo na lareira se tinha acalmado e o último grande cepo estava pousado num vasto braseiro.
- Fiz tudo mal - disse Annalisa. - Casei com o Philip mas devia ser tua mulher.
- Fizeste a tua escolha - respondeu-lhe, sem a censurar. Mantinha-a apertada contra si e ela tinha a cabeça pousada no seu peito, sentindo-se pela primeira vez completamente
satisfeita, feliz, mulher.
- Pode-se sempre voltar atrás quando se percebe que se errou - objetou.
- E erraste comigo desta vez, Annalisa. - A sua voz era triste e severa.
- Juntos nunca poderíamos ser felizes.
- Mas eu já o sou - procurou-lhe os lábios e beijou-o.
- Teríamos sempre de nos esconder, de mentir a toda a gente. Se esta história se tornasse pública, para ti seria a desonra. - Calò conhecia bem o seu mundo e a sua
gente.
- E para ti? - Queria implicá-lo, à espera de o convencer.
- Eu não conto. - Estava pronto para qualquer sacrifício, desde que não lhe fizesse mal.
- E, no entanto, tu és tudo o que eu tenho. - Agarrou-se a ele como a uma tábua de salvação.
- Não devia ter-te levado a isto, mas agora é inútil recriminar-me. Detestava as pessoas que choravam sobre o leite derramado.
- Eu sou a responsável - desculpou-o. - Tu não tiveste nada a ver. Foi para isto que eu vim ter contigo. Entendes?
- Eu sou um homem, Annalisa. - Ela sabia o significado daquela afirmação.
- Inesquecível - sorriu, acariciando-o.

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Um homem não pode dizer: Eu nem sei de nada. - À sua voz tinha regressado a mesma decisão de sempre. - Vais ter de esquecer esta história, mesmo que não seja fácil.
Nem para ti, nem para mim. Nós não podemos voltar a encontrar-nos. Percebeste?
- Percebi. - Annalisa sabia que Calò tinha razão. Sabia que eram ambos responsáveis por aquilo que tinha acontecido, sabia que deveria continuar, apesar de tudo,
a ser a senhora Brian. - Talvez não nos voltemos a encontrar - acrescentou -, mas entretanto esta noite é toda nossa. Ninguém no mundo poderá privar-nos dela.
- Esta noite já acabou, Annalisa. Em casa devem estar à tua procura. Não me posso arriscar a que te encontrem aqui. Temos de ir.
- Ninguém sabe deste teu refúgio. Nem sequer eu sabia. Não nos vão encontrar assim tão depressa. - Estava disposta a tudo para não renunciar aquela maravilhosa aventura.
- Cada um sabe aquilo que deve saber. A roupa está seca. Tens de te vestir, Annalisa. - Calò não se decidia a largá-la e ela intuiu essa fraqueza dele.

- Leva-me contigo ao paraíso mais uma vez - suplicou-lhe.
Possuiu-a com a graça e a delicadeza de que é capaz um homem apaixonado e fê-la novamente feliz.

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Bruno Brian Sajeva di Monreale

O barão Sajeva estava fora de si. Olhava para o telefone silencioso como se fosse aquele o seu pior inimigo. Toda a sua pessoa destilava cólera, tinha as mãos frias
e o rosto de uma palidez cadavérica. Os repetidos telefonemas para Piazza Armerina não tinham tido o êxito desejado. Da primeira vez Annina dissera-lhe que Annalisa
tinha saído a cavalo sozinha para ir ter com Calò ao eucaliptal. Num segundo momento a criada fiel e apreensiva referira-lhe que se tinha desencadeado a ira de Deus
e nem a jovem baronesa nem don Calogero tinham regressado ao palácio.
- Mando procurá-los? - perguntou, preocupada.
- Mas tu tens cada ideia! - respondeu o barão, agressivo. - Com esta borrasca, tiveram certamente o bom senso de se abrigarem. Vão regressar assim que pare de chover.
Conhecia Calò, mas sobretudo conhecia a filha, conhecia-a muito melhor do que aquilo que os outros supunham. Por isso estava furibundo, não por causa do mau tempo
ou pelos riscos ligados ao temporal. Olhou para o céu escuro através da grande janela para procurar um sinal da tempestade que mantinha a filha e Calò fora de casa.
Pareceu-lhe sentir o ruído da chuva, mas não era esse o problema.
Regressou à sala de estar, onde a princesa Isgrò entretinha alguns convidados que tinham há pouco acabado de jantar. Para quem não o conhecia, o tom era o cordial
e distante de sempre. A princesa, com a elegância que lhe era habitual, tinha tratado da partida antecipada dos convidados que, um a um, se despediram dos donos
da casa.
- O que se passa, Peppino? - perguntou, quando ficaram sozinhos.

200

- A Annalisa e o Calò - respondeu, enquanto se servia de conhaque. Estava inquieto e apertava os braços da poltrona em que estava sentado.
- É uma jovem com a cabeça cheia de ideias estranhas. - Tinha medo das palavras que pudessem irritar o barão, por isso limitava-se às indispensáveis. Estavam habituados
a dizer as coisas essenciais e a reconhecer as pausas e os silêncios como as partes fundamentais do discurso. Eram capazes de se entender calados, até às escuras.
- É uma jovem que cresceu sem a mãe. - Era um desvio na conversa que refutava a afetuosa presença da princesa Isgrò, que sempre estivera próxima de Annalisa.
- Talvez - admitiu. Mais do que uma confirmação, era uma censura passiva.
- Não leves a mal - replicou, com ar de quem se desculpa -, sabes muito bem que ninguém podia ter feito melhor do que tu.
- Sabe-me bem de vez em quando ouvir-te dizer isso. - Passou um lenço bordado nos cantos dos olhos. - Achas que a Annalisa e o Calò...? - Pareceu tomar subitamente
consciência de uma situação que não tinha previsto.
- Eu não acho nada. - Bebeu um trago de conhaque e empalideceu, já incapaz de esconder o nervosismo.
- Está fora de questão - declarou a princesa, depois de ter elaborado em poucos instantes todas as possibilidades que aquela situação pressupunha. - O Calò nunca
ousaria - concluiu.
- Mas a Annalisa sim! - Arranhou com as mãos poderosas o tecido adamascado da poltrona. - Ela consegue sempre tudo aquilo que quer. E tu sabes isso. - Parecia-se
muito com ele, aquela filha que devia ter nascido homem, com todas as ideias que lhe ferviam na cabeça.
- Casou há pouco tempo - replicou, horrorizada. Recordava a paixão de Annalisa, os seus delírios românticos, mas lembrou-se também que ela excluíra radicalmente
a hipótese do casamento. - Em qualquer caso acrescentou recuso-me a acreditar numa situação semelhante.
- Conversa! - disparou o barão. - Tu foste sempre uma sonhadora. Deixaste-te encantar pela história de amor com o belo oficial vindo da América. Viveste aquilo como
se fosse uma coisa tua. Como se fosse o teu belo conto de fadas - censurou-a. O sangue afluía à sua face máscula.

201

- Por favor, Peppino. - O pequeno lenço bordado já não bastava para conter a torrente de lágrimas.
- Mas aqui não se trata de romantismo - continuou. - A conversa é muito mais prática. O belo soldado vindo do outro lado do mar não tem os tomates do Calò. Esta
é que é a verdade que ninguém conseguiu captar. Mas a Annalisa sim; ela apercebeu-se disso antes de toda a gente, antes de o americano a levar embora. Por isso foi
procurar o único homem digno desse nome que havia por estes lados.
- Falas como se concordasses com uma situação vergonhosa - retorquiu, escandalizada. - Tens mais ar de os defender do que de os censurar.
- A censura perante o facto consumado, admitindo que o haja, é um sentimento que não me posso permitir. É uma reação inútil, não ata nem desata. Levanta pó - gritou.
- Palavras e pó.
- Peppino, por amor de Deus, acalma-te! - Poucas vezes o tinha visto tão perturbado, mas não pelo facto em si, mais por uma ameaça de infelicidade que pairava sobre
a cabeça da filha.
- Acalma-te! É uma palavra! - rugiu. - Mais uma palavra sem sentido.
- Queres criar um escândalo? - perguntou com apreensão. - Os criados...
- Aqui ninguém vê nem ouve. Mas, sobretudo, os criados não falam. Tinha descarregado a preocupação e agora exibia um sorriso melancólico. - Quanto Aqueles dois -
acrescentou afetuosamente-, se o destino quis que eles se encontrassem, que Deus lhes perdoe. - Levantou-se com esforço da acolhedora poltrona em que estava enterrado,
apercebendo-se de que tinha arranhado com as unhas o tecido dos braços.
- E agora, o que vais fazer? - A princesa estava triste, apreensiva, e não se preocupava em escondê-lo.
- O que é que tu queres que eu faça? - rebateu filosoficamente. - Acho que vou dormir, se conseguir.
- Quero dizer, com aqueles... meninos. - A resignação do barão desorientava-a.
- Nada, é o que vou fazer. - Notava-se, apesar de tudo, a sua predileção por Calò. - Se calhar nem aconteceu nada, Rosa. Aliás - precisou -, digamos que não aconteceu
nada. - Apoiou as mãos fortes e nervosas nos ombros redondos da princesa e olhou para ela com uma ternura quase fraterna. Nos seus olhos passava a recordação de
antigos fogos juvenis.

202

- Pois digamos assim - concluiu a princesa, sorrindo com gratidão à recordação de um amor distante.
- Quando acabar a guerra - observou -, a Annalisa vai seguir o marido até à América e estas sombras vão desaparecer. - Depois, como se recordasse de repente um facto
verdadeiramente importante, acrescentou:
- Amanhã trata de chamar o estofador. Está na altura de mudar o forro destas poltronas.

Chegou o Natal. Na villa de San Lorenzo apareceu um grande abeto canadiano. Tinha sido precedido por uma carta dos pais de Philip. Era o presente deles.
O Phil", escreviam, entre outras coisas, na longa mensagem natalícia para a nora, "disse-nos que na Sicília não há abetos. Nós gostaríamos que esta árvore fosse
plantada no vosso parque para se lembrarem de nós."
Seguiam-se pensamentos afetuosos e considerações tipicamente americanas que escapavam A sua compreensão. Annalisa, no entanto, apreciou o significado simbólico,
apesar de duvidar que um abeto canadiano pudesse sobreviver no parque de Mondello.
Por sua vez, o barão Sajeva perguntou a si mesmo como teriam conseguido aqueles imparáveis Brian transferir em plena guerra um abeto dos Estados Unidos da América
para a Sicília.
A coisa que mais feria e humilhava Annalisa era o fingimento. Quando Philip regressava, carregado de desejo, era obrigada a simular uma participação que não sentia
porque a parte mais íntima e secreta de si pertencia a outro. E o outro, Calò, desde o dia do temporal, da descoberta do sexo e do amor, quando juntos tinham vivido
as raízes profundas do desejo, desaparecera definitivamente da sua vida.
- Estás a ficar cada dia mais bonita. - Philip testemunhava-lhe o seu afeto com novos presentes.
- É porque gostas muito de mim. - Tinha perdido o esmalte e o brilho dos primeiros tempos e refugiava-se nas frases convencionais.
Philip negou com um gesto de cabeça, ao mesmo tempo que tirava do bolso do casaco um estojo de veludo preto, que abriu. Continha um esplêndido colar de pérolas.
- É o meu presente de Natal - murmurou.

203

Nos olhos sombrios de Annalisa despontaram lágrimas e prevalece mais uma vez o lugar-comum.
- Não devias - disse. - Vais acabar por me confundir com as tuas atenções.
- E é preciso chorar? - censurou-a, persuadido de que aquela comoção lhe era dedicada.
O choro, no entanto, dava algum alívio a Annalisa e ajudava-a a mitigar as feridas da alma. A falta de Calò e a certeza de que a sua história com ele tinha acabado
para sempre não lhe davam paz.
- Quero ver-te alegre como antes. - A agressividade divertida de Annalisa parecia ter desaparecido.
- Como é Nápoles? - perguntou, para mudar de assunto.
- Esplendor e miséria - sentenciou superficialmente o americano. - Uma grande confusão e muita vontade de viver. É uma cidade grandiosa e triste. Mas não me parece
que eu seja um bom juiz. Sem ti, até a cidade mais bonita se torna melancólica.
- Agora estamos juntos. - Desempenhava na perfeição o papel da esposa mais feliz do mundo.
- E em breve vamos estar juntos para sempre.
- É nisso mesmo que eu penso - disse, com os olhos cheios de lágrimas. - Agora tenho de me ir arranjar. Tenho obrigações para com os outros. - Continuou a empurrá-lo
docemente, mas com firmeza, para fora do quarto. - E, acima de tudo, não esqueçamos que é Natal. Quando ficou sozinha, desatou a soluçar, com a cabeça entre as mãos.
Recordou Calò no bosque dos eucaliptos, naquele precoce ocaso invernal, imóvel contra o céu tempestuoso no seu hunter negro e brilhante como pez. Recordou o seu
corpo poderoso que à luz do fogo libertava reflexos de mel.
Ela e o pai não tinham conversado, mas tinham-se entendido. O barão assistia impotente ao tormento da filha, mas não conseguia deixar de sentir orgulho por ela.
Era uma Monreale: tinha escolhido Philip e seria ele para sempre o seu marido. Os sentimentos dela já não contavam.
Calò, apesar de viver debaixo do mesmo teto, comportava-se de uma forma irrepreensível. Evitava ficar sozinho com Annalisa, estava fora quase sempre e passava longas
horas a cavalo ou no refúgio onde conhecera o amor, dedilhando as cordas de uma velha guitarra.

204

Calò mantinha-se à altura da situação e ninguém suspeitaria nunca de que estava perdidamente apaixonado por Annalisa. Só o barão, a princesa Annalisa sabiam disso.
O gigante normando tinha emagrecido aflitivamente e fugia de Annalisa como um ladrão. Quando não podia mesmo evitá-la, refugiava-se nas frases de circunstância.
A única coisa positiva era que a guerra na Sicília estava definitivamente concluída e que o resto da Itália olhava para a ilha libertada com uma ponta de inveja.
Apesar da rapidez da operação, tinha corrido muito sangue: tinham morrido quatro mil italianos, cinco mil alemães e vinte e dois mil Aliados. Mais um massacre inútil.
Chegava até ali o eco dos bombardeamentos aliados nas cidades do Norte e dos projetos monstruosos ordenados pelo novo governo fascista-republicano. Mas eram notícias
que provinham como que de um país distante. Nos primeiros dias de janeiro, Philip retomou o caminho do continente, enquanto os Aliados desembarcavam em Anzio e em
Nettuno e os fascistas em Verona acertavam as contas com as autoridades que a 25 de julho tinham enfileirado contra Mussolini. A libertação completa do país significaria
ainda a perda de milhares de vidas humanas. Annalisa voltara a frequentar o liceu em Palermo e lançara-se sobre os livros com a força do desespero. Estudava para
não pensar em mais nada, mas não via a hora de deixar a escola, a Sicília e todo um passado de recordações insustentáveis. Queria ir para os Estados Unidos para
aí recomeçar. Achava que se conseguisse pôr o oceano entre ela e as suas inquietações ia recomeçar a viver. Foi na escola, durante uma aula de Grego, enquanto andava
as voltas com o perpétuo devir do mundo de Heráclito, que teve a consciência de estar a espera de uma criança. Uma semana depois, as análises laboratoriais confirmaram
essa sensação. Annalisa estava grávida.
Philip foi imediatamente avisado e reagiu, como um bom americano, com a comoção habitual e a distribuição de inúmeras caixas de charutos. E continuou ainda a espalhar
charutos cubanos autênticos quando regressou a Palermo de licença.
- Vá-se lá saber porquê, mas quando nasce uma criança vocês sentem sempre o desejo de se envenenarem - disse-lhe o barão Sajeva.
Calò soube da notícia pelo barão com uma casualidade suspeita. Os dois homens encontraram-se na estrebaria, no regresso de uma cavalgada.

205

- A minha filha vai dar-me um neto brevemente - disse-lhe, como se falasse do tempo, mas perscrutou-o como se quisesse ler-lhe a alma.
- Fico feliz, don Peppino - susteve altivamente aquele olhar e sorriu.
- Vai nascer em agosto, dizem - o barão respirou profundamente.
- É um bom mês para vir ao mundo. - Nos seus olhos brilhava um orgulho profundo. - Quando chegar o inverno, vai estar suficientemente forte para o enfrentar.
- Tu vais ser o padrinho. - Não era um pedido, mas também não era uma ordem.
- Será uma grande honra, Excelência - agradeceu, movendo levemente a cabeça.
- Também um dever, Calò - disse o barão, impassível. - Vamos ao encontro de tempos difíceis. Eu tenho a minha idade. E tu podes vir a ter de fazer de pai.
- O americano não vai morrer - sentenciou secamente. - Os oficiais, geralmente, estão sempre suficientemente longe dos sítios onde morre gente. No entanto, se tivesse
de acontecer o pior, eu conheço os meus deveres, don Peppino.
Tinham sido poucas palavras, mas suficientes para se entenderem.
Naquela noite, don Calogero Costa participou no jantar e brindou com Annalisa.
- Bebo à saúde do teu filho - disse.
- O amor deu os seus frutos, Calò. - Também eles tinham dito tudo um ao outro sem dizer nada.
Calò voltou a ser o homem de outros tempos e Annalisa reencontrou a tranquilidade perdida.

Bruno Brian Sajeva nasceu numa noite de agosto.
Quando o barão, finalmente permitido junto ao leito da filha, saiu do quarto de Annalisa, encontrou à frente Calò, que o esperava. O barão tinha o rosto marcado
pelo cansaço, mas sorria, feliz.
- É lindo e está bem - anunciou.
- Fico contente - disse Calò.
- Queres vê-lo? - perguntou, dando-lhe uma palmada no ombro.
- Sim quero vê-lo - afirmou Calò.
- Vai lá - encorajou o barão.

206

Entrou silencioso, com a cautela e a solenidade com que em criança se aproximava do altar. Annalisa parecia adormecida e o bebé repousava num berço branco, ao lado
da cama dela.
Assim que sentiu os passos de Calò, Annalisa abriu os olhos e sorriu-lhe.
- Obrigada por teres vindo. - Tinha uma voz doce e tranquila.
- Sofreste muito? - perguntou-lhe, ao mesmo tempo que segurava uma mão dela entre as suas.
- Já passou tudo. - O ar estava quente, húmido, e deixava adivinhar o siroco. - Estou apenas cansada. Olha para ele, Calò. Vê como é lindo.
Ele afastou a cortina de musselina branca engomada que protegia o berço.
- É uma maravilha - confirmou.
- Podes pegar nele ao colo, se te apetecer. - Era o convite calmo de uma mulher finalmente serena e pacificada.
O sangue de Calò começou a correr tumultuosamente ao mesmo tempo que, com toda a delicadeza de que era capaz, meteu as grandes mãos naquela candura de rendas para
erguer o menino acabado de nascer. Bruno mexeu-se e fez uma careta que podia assemelhar-se a um sorriso.
- Que Deus te abençoe - desejou-lhe. Tinha os olhos brilhantes de comoção. Depois voltou-se para Annalisa e acrescentou: - Quando o levares para a América, arranja
maneira de ele não esquecer que é siciliano.

207

ANNALISA

Em Milão entre os escombros

Annalisa viajou de Palermo para Milão, com escala em Roma, num Boeing B-29 americano. Era o verão de 1945. A guerra tinha acabado e celebrava-se a paz sobre um monte
de escombros. Jornais recordavam ainda a morte do presidente americano Franklin D. Roosevelt e falavam do fuzilamento de Mussolini e do suicídio de Hitler no meio
das ruínas da Chancelaria em Berlim. O comité de Libertação Nacional tinha assumido todos os poderes e Ferruccio Parri formara um governo de solidariedade nacional.
Philip estava à espera da mulher e do filho no aeroporto de Taliedo. A velha Annina e a jovem Addolorata, a criada da baronesa, estavam transtornadas com a viagem
e Annalisa tinha tido algum trabalho a convencê-las de que não era possível descer durante o voo.
O Bruno, pelo contrário, estava feliz. Philip pegou nele ao colo depois de ter beijado a mulher. O menino olhava para ele com curiosidade e tentava brincar com as
fitinhas multicolores da farda militar, enquanto Philip lhe falava em inglês.
- Mas este menino não percebe nada - disse o pai, alarmado.
- Não percebe inglês, querido - defendeu-o ela. - Se lhe falares em italiano, vais ficar espantado com a facilidade com que entende.
- Mas a língua dele - disse Philip, escandalizado - é o inglês.
- O Bruno já é bilingue - informou Annalisa -, percebe o italiano e o siciliano com a desenvoltura que lhe permite a sua tenra idade. Se lhe deres tempo e tranquilidade
para o fazer, também vai aprender o inglês.
Philip abordou o problema do ponto de vista do orgulho nacional, Portanto da pior maneira.

211

- You are american - disse, virado para o filho. - Tu és americano Do you understand? Percebeste? American. Remember american! A-m-e-r-i-c-a-n!
O resultado foi que Bruno desatou num pranto, não tanto por aquele discurso incompreensível, que no fim de contas até o deixava curioso, tal como as fitinhas multicolores
da farda, mas pelo tom agressivo e autoritário com que aquelas palavras eram pronunciadas. Estendeu os braços para a mãe à procura de proteção.
- Os americanos, se não bombardeiam, não ficam contentes - comentou ela, incomodada. Entraram num grande Ford do exército que arrancou de imediato. Bruno chorava.
- Não o queria fazer chorar - disse Philip, embaraçado.
- Mas conseguiste. - A reação de Annalisa foi imediata. Estavam só os três e o motorista. Annina e Addolorata seguiam-nos noutra viatura com o sargento que as tinha
escoltado durante a viagem.
- Vá lá, rapaz - interveio Philip, querendo fazer as pazes. - Tenta perceber.
- Obviamente, não deves ter muita experiência em matéria de crianças - disse Annalisa, a sorrir. - Ainda é demasiado pequeno para perceber e para falar. Só diz mamã,
avô, tia. - Melhor do que todos os outros nomes, pronunciava o de Calò, mas Annalisa teve o cuidado de omitir aquele pormenor.
- E papá, não diz papá? - objetou Philip, ressentido.
- Tem paciência, Phil. Ainda não te conhece. - Era uma justificação miserável; na realidade, ela nunca tinha sentido necessidade de lhe ensinar aquela palavra.
- Não quero que se torne um menino mimado - acusou-a.
- Por favor, não me faças discursos absurdos - opôs-se firmemente. - E não me contes a história dos meninos italianos mimados pela mãe. - Bruno, agarrado ao pescoço
da mãe com os bracinhos redondos, tinha deixado de chorar, mas continuava de olhos assustados.
- Não fiques assim, pequenino. - Philip sentiu-se cheio de remorsos por ter provocado uma crise de angústia no filho. - Tu tens razão - admitiu - OK, vamos aprender
juntos a entender-nos.
Inclinou-se para o beijar nos cabelos, que eram fartos e estranhamente loiros. Philip pensou que todas as crianças têm os cabelos loiros e respirou

212

cheiro da inocência, o cheiro das crias indefesas que dão os primeiros passos na vida. Abraçou a mãe e o menino.
- Tenho uma surpresa para os dois - anunciou.
- O que é? - perguntou Annalisa, curiosa.
- Se eu te disser, deixa de ser uma surpresa.
O automóvel dirigia-se para o centro da cidade. Annalisa observava com angústia, através da janela do carro, as profundas feridas causadas pela guerra nos bairros
que apenas poucos anos atrás lhe tinham parecido tão sólidos e ordenados. No ar havia um cheiro de miséria. Até as pessoas tinham um aspeto triste.
Annalisa tinha estado em Milão antes da guerra, de passagem para Londres, na companhia do pai, que quis parar ali alguns dias para visitar um velho amigo, o professor
Filomeno Brancati, docente de Direito na Universidade Católica, para além de ilustre príncipe do foro de Milão. Da cidade tinha conservado uma recordação que não
enfraquecera com os anos.
O pai mostrara-lhe uma cidade ordenada, limpa, eficiente, dinâmica, tão diferente da Palermo caótica e indolente adormecida no calor africano do verão, exposta As
más condições dos breves invernos. Falara-lhe da marca severa deixada pela administração austríaca, contrapondo-a as torpezas da governação borbónica e da espanhola
na Sicília.
O professor Brancati, muito mais jovem do que o seu pai, tinha conseguido uma importante afirmação profissional no Norte, não só pela sua preparação, mas principalmente
pelas suas qualidades pessoais. Tinha no sangue o sentido do direito: um dote difuso entre os sicilianos.
Annalisa tinha conhecido também a namorada milanesa de Brancati, uma bonita jovem de modos desenvoltos que se chamava Cláudia, filha de um construtor e tivera para
com ela, que tinha apenas 15 anos, atenções requintadas. Acompanhara-a a duas receções muito burguesas, onde Annalisa se sentira no centro das atenções pela curiosidade
que suscitaram as suas origens.
Tinha visto casas de uma elegância muitas vezes austera em relação ao estilo mais redundante da sua Sicília. Apercebera-se de que no Norte existia uma espécie de
pudor relativamente a riqueza, que era muitas vezes contida nas formas de uma sobriedade severa, mas não despojada. Também as manifestações de afeto e de amizade
eram como que diluídas no retraimento,

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sendo raramente expressas de forma exuberante. Annalisa tinha ficado intimidada e fascinada ao mesmo tempo com aqueles hábitos de vida.
Naquele momento, porém, a seis anos de distância, já mulher, perante o desastre produzido pela guerra, Annalisa sentia o coração apertado. Experimentava a mesma
angústia de quando tinha regressado com o pai a via Maqueda, em Palermo, para chorar sobre os restos daquilo que fora um dos mais belos palácios dessa célebre rua
da cidade, propriedade da família desde o século XVII. Algumas bombas tinham transformado paredes e móveis seculares num monte de escombros.
Em Milão parecia ter sido pior. Quanto da cidade fora destruída? Quantas belezas artísticas tinham sido destruídas para sempre? Mas, sobretudo, quantas pessoas não
voltaria a encontrar?
Annalisa tinha consigo uma carta do pai para o seu amigo Brancati, que entretanto se tinha casado com Cláudia e tinha tido um filho de nome Paolo. Durante a guerra,
Brancati mudara-se com a família para Varese, mas já tinham regressado todos a Milão e ela gostaria de se encontrar com eles.
O grande Ford atravessou o centro histórico e entrou na via Manzoni. Pouco depois o carro passou o portão de um palácio e parou num terreiro coberto de pedras de
rio.
- Porque é que paramos aqui? - Annalisa olhou em volta. O terreiro saibrado era delimitado nos quatro lados por um pórtico em arcos.
- Porque é esta a surpresa. - O bom humor tinha regressado ao rosto de Philip.
- Um pátio e uma casa não me parecem uma surpresa. - Na penumbra, o ar não era tão abafado como na rua.
- Mas esta casa é tua - disse Phil, cheio de orgulho. - Será a nossa casa de Milão.
Annalisa não sabia o que dizer. Ainda não conseguira apreender toda a situação.
- Devo dizer que é uma maravilha? - brincou, com sinceridade.
- Vais dizé-lo quando tiveres visto melhor. - Ajudou Bruno a sair do carro e a criança, hesitante ainda nos seus passos, mas com a certeza do objetivo a atingir,
caminhou num equilíbrio precário em direção a uma escadaria de pedra que se abria do lado direito do pórtico.
- Bruno - disse a mãe, alarmada -, aonde vais?

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Deixa-o estar, não te preocupes - disse Philip, detendo-a. Bruno começou a gatinhar pelas escadas acima.
- Caja - disse. - Caja... Bruno.
Phil deu uma gargalhada sincera que deixou a vista uma dentadura perfeita.
- Viste, Annalisa? - exultou. - O pequeno siciliano percebeu que isto é a casa dele.
O motorista, Annina, a criada e o sargento, que entretanto tinham chegado, descarregavam as bagagens.
Philip estendeu o braço à mulher e foram juntos atrás de Bruno.
- Acho que fiz um bom negócio ao comprar este palácio - confiou-lhe. - Os proprietários são o Bruno e tu. Será a vossa casa de Milão. Vão ficar aqui comigo uns meses.
Deram-me um lugar administrativo. Parece-te bem?
- Obrigada, Phil - respondeu ela, beijando-o com ternura. - É realmente uma ótima surpresa. - À medida que subiam a escadaria, parecia-lhe dar urn mergulho na quietude
dourada de uma quente tarde oitocentista.
- Estás a ser sincera? - Procurava uma confirmação com os olhos que lhe sorriam.
- Sim, Phil. Não podias dar-nos um presente mais bonito. - Mais uma vez, olhou com admiração para aquele homem generoso que, desde que a conhecera, nunca mais parara
de lhe oferecer tudo aquilo que lhe pudesse dar prazer. - Estou feliz por estar aqui contigo.
- Essa é a melhor recompensa. - Uma alegria infantil apoderou-se dele e o coração martelava-lhe com tanta força no peito que conseguia ouvir os batimentos. - Tenho
vontade de te abraçar.
Annalisa, porém, afastou-se dele imediatamente e foi ter com Bruno, que entretanto tinha chegado ao patamar, se tinha posto de pé e arriscava-se a cair para trás,
descendo as escadas as cambalhotas. Olhou para Philip e mais uma vez sentiu-se culpada por não poder responder com o mesmo calor aquelas manifestações de afeto.
"Vou ser uma boa mulher", prometeu a si mesma, "tenho de ser, porque ele merece."
A porta de casa, uma criada de avental branco, com um ar eficiente e limpo e os cabelos cuidadosamente apanhados na nuca, cumprimentou

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Annalisa com uma deferência cordial. Era jovem, atraente e tinha o aspeto de uma pessoa serena. A mulher fez uma ligeira vénia e baixou levemente a cabeça, dizendo:
- Seja bem-vinda, minha senhora.
Annalisa cumprimentou-a e sentiu-se protegida por aquela simpática presença. Pensou com reconhecimento no marido americano que tinha conseguido instalar uma casa
acolhedora em poucos meses e contratar o pessoal necessário para um bom andamento da vida doméstica, oferecendo-lhe o melhor num momento tão difícil.
- Obrigada, querido - disse, olhando-o com respeito.
- Quero que sejas feliz.
Beijou-lhe delicadamente a mão e olhou para ela. Questionou-se sobre a razão pela qual, depois daquela primeira noite já distante, nunca mais tinha visto brilhar
nos olhos da mulher o fogo da paixão. "Onde será que eu errei?", perguntou a si mesmo.

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O Atélier Ventura

O automóvel percorria a via Montenapoleone e em breve chegaria ao corso Venezia, onde ficava a nova sede do atelier Ventura. Apesar do calor, o ar parecia de cristal
e o sol inundava a cidade. Cláudia Brancati e Annalisa conversavam animadamente uma com a outra. Um vidro de correr separava-as do motorista.
- Sabes - disse Cláudia -, o Ventura fechou a secção de costura e roupa interior. Agora só fazem vestidos e coisas em pele. Imagina que em maio, um ano depois do
fim da guerra, fizeram a primeira passagem de modelos.
- Tu viste? - perguntou Annalisa com uma ponta de inveja. Um desfile de moda, apesar das suas frivolidades, testemunhava um grande otimismo e um irresistível desejo
de recomeçar. Era isso que brilhava no sol daquela manhã quente de verão, por entre as feridas ainda abertas da guerra: a esperança e a vontade de recomeçar, ainda
que entre mil e um sacrifícios. Era aquela ânsia de viver que Annalisa lia no rosto das pessoas.
- Vi uns vestidos lindíssimos do Fath - contou Cláudia, entusiasmada.
- Para a noite os tecidos são todos de organza, tafetá, chiffon e voile. Para o dia, há uns vestidos admiráveis de linho branco. Também tiveram sucesso as calças
de linho branco. Uma maravilha.
Annalisa recordou as histórias da princesa Isgrò.
- A minha mãe e a minha tia vestiam-se em Paris, na Coco Chanel para o dia e no Fath para a noite. - Parecia uma menina a brincar às senhoras. - Mas agora como é
que se faz para ir a Paris?
Havemos de lá voltar em breve. - Passavam pessoas de bicicleta, outras a pé ou a empurrar triciclos. Todos olhavam com admiração para o

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Lancia azul onde viajavam as duas senhoras. - Mas nunca mais vai ser como antes - queixou-se -, esta guerra deixou-nos de joelhos.
Annalisa recordou uma máxima que o pai citava sempre: "Se tivesses de agradecer a Deus por tudo aquilo que te dá, não te sobrava tempo para te queixares." Aquela
esplêndida manhã de julho era uma dádiva inesquecível
- A vida sempre foi vencedora - disse.
- É isso que eu desejo para os nossos filhos - rebateu Cláudia, convicta -, e para todos aqueles que vão nascer.
O automóvel parou diante da entrada de um edifício setecentista do corso Venezia. O motorista apressou-se a abrir a porta e as duas jovens senhoras saíram.
Um rapazinho com os seus 12 anos, de farda verde-escura com botões dourados, abriu-lhes a porta do atelier que ocupava todo o primeiro andar; no segundo, trabalhavam
as costureiras. As bombas tinham poupado aquele antigo edifício.
A première, uma mulher muito elegante e maquilhada com sobriedade, foi ao encontro delas com a respeitosa cordialidade que os clientes respeitáveis esperam dos seus
fornecedores. Falou em voz baixa, a sorrir, e convidou-as a instalarem-se numa sala, pedindo-lhes para aguardarem um instante. A "Senhora" estaria livre dentro de
muito pouco tempo para as atender.
Naquela atmosfera aconchegante e protegida, naquela sucessão de salas deliciosas com paredes revestidas a espelhos de molduras douradas e decoradas com tapetes macios,
pequenos divãs convidativos e grandes ramos de flores espalhados um pouco por toda a parte, as duas mulheres esqueceram os escombros e os pensamentos tristes e sentiram-se
novamente à vontade.
Annalisa viu passar uma senhora idosa no corredor e reconheceu-a imediatamente.
- Condessa Violante - chamou-a.
A senhora, que trazia um vestido de seda cinzento da mesma cor dos olhos e dos cabelos, olhou para ela um instante antes de a reconhecer.
- Mas tu - disse a sorrir, entre a incredulidade e o espanto -, tu és a baronessina Sajeva!
- Fico feliz por se lembrar de mim, condessa - disse Annalisa, fazendo uma ligeira vénia.

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- E aquele urso do barão? - perguntou, com os olhos a brilhar.
- Está a melhorar com a idade - brincou Annalisa.
- Eu lembro-me dele jovem. - A velha senhora parecia envolvida no perfume inebriante de um passado longínquo.
- Posso apresentar-lhe a signora Claudia Brancati? - disse Annalisa.- É uma amiga que assumiu a tarefa de me fazer de guia.
- Mas com certeza - anuiu.
Claudia corou, inclinando-se cerimoniosamente.
- Bom-dia, querida - disse a condessa Violante, ao mesmo tempo que dava o braço a Annalisa e se esquecia de Cláudia. - Então casaste - acrescentou.
- Em plena guerra - respondeu Annalisa.
- Acho que não te vou deixar fugir assim com tanta facilidade - declarou. - Temos muitas coisas para contar uma à outra. - Os seus olhos, extraordinariamente grandes
e brilhantes apesar da idade, impuseram uma pausa. - Desde que os programas de sua Alteza Real coincidam com a nossa curiosidade.
- Considere-me, de qualquer modo, à sua disposição - respondeu Annalisa, manifestando sinceramente a sua disponibilidade.
A condessa Violante era a dama de companhia de Maria José de Saboia. O barão Sajeva, por mais do que uma vez, tinha sido hóspede dos reis de Itália na propriedade
de San Rossore, na Toscânia, para inesquecíveis batidas de caça, e a condessa Violante fora também muitas vezes hóspede muito estimada na casa Monreale: nunca se
chegou a entender se o que prevalecia nela era o seu grande amor pela Sicília ou a sua admiração pelo barão Giuseppe Sajeva. Tinha conhecido Annalisa ainda criança
e o pai no esplendor da sua virilidade.
- Sua Alteza está aqui - disse-lhe em tom confidencial. Está a escolher alguns modelos para o próximo outono. Gostavas de a conhecer?
- Nem ousaria pedir - respondeu Annalisa, corando. - Teria muita honra nisso.
- Então anda - disse, convidando-a a segui-la. - Pode vir também, Signora Brancati. Annalisa lembrava-se de ver Maria José, com a farda da Cruz Vermelha, numas fotografias
publicadas em jornais e revistas, mas ficou surpreendida

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por encontrar uma pessoa tão diferente. Tão magra, tão loira, tão pálida, tão triste, com aqueles imensos olhos azuis sem sorriso.
Vestia um tailleur de linho branco e calçava sandálias de tacão largo e baixo da mesma cor. E sobre aquele branco sobressaíam uns rubis de um profundo vermelho-sangue-de-pombo
que lhe enfeitavam o pescoço, as orelhas e o anelar da mão esquerda. Também os lábios, pesadamente pintados, tinham a mesma cor.
Annalisa lembrou-se de que o pai detestava rubis e entre as joias de família não figurava aquela esplêndida pedra.
"O rubi traz sangue e desventura", dizia o barão.
"Quem sabe se será verdade", pensou Annalisa, enquanto se inclinava diante da princesa.
- Fique à vontade, querida - disse Maria José, convidando-a a sentar-se junto dela numa elegante sala. - A sua amiga também, claro. Vão ajudar-me a escolher umas
peças. Fico confundida com tantos modelos - quase se desculpou. - Está a ver - continuou -, eu afeiçoei-me muito a este atelier, apesar de ter sofrido muito exatamente
nesta sala, quando tive de aguentar as provas extenuantes do meu vestido de noiva.
Annalisa anuiu, confusa, pensando no fausto já longínquo da família real. Seguia a princesa pelo canto do olho enquanto as modelos se sucediam no centro da sala,
passando roupa para ela que, decididamente, não se mostrava muito interessada na escolha do guarda-roupa e nem sequer parecia feliz. Experimentou em relação à princesa
um sentimento de uma humana solidariedade, porque talvez o casamento da princesa, tal como o seu, não tivesse sido um casamento feliz.
Ao chegar a Itália, noiva, o seu coração vinha cheio de sonhos; mas afinal, depois da guerra, depois da fuga de setembro da família real para Brindisi, depois de
um casamento que lhe tinha dado quatro filhos e um número bem mais alto de naufrágios, as suas esperanças andavam à deriva. As rugas que lhe marcavam o rosto ainda
jovem testemunhavam o fim de muitas ilusões.
- Ça c'est joli, n'est-ce pas? - Indicou sem entusiasmo um vestido branco com entremeios de renda no mesmo tom.
- Sim, Alteza, é realmente muito gracioso - respondeu prontamente Annalisa, e fez sinal à première, que anotou imediatamente a escolha.
De seguida não seria preciso tirar medidas nem fazer provas porque

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atelier de moda Ventura possuía manequins com as medidas exatas das clientes. Os vestidos que a princesa estava a escolher teriam precedência sobre todos os outros.
Maria Jose acendeu um cigarro, depois de o ter enfiado numa boquilha de ébano com incrustações de ouro. Tinha uns dedos longos e finos, pálidos, onde sobressaíam
as unhas pintadas de vermelho.
- C'est dommage qu'on ne fait plus de lingerie ici - disse.
- É realmente pena - confessou Annalisa. - Culpa da guerra. - Deu-se imediatamente conta de que tinha sido um comentário infeliz.
A princesa olhou para ela com um sorriso doce.
- Oxalá fossem só esses os efeitos negativos da guerra. - Aspirou algum fumo e em volta dela ergueu-se uma nuvem azulada.
- Heureusemente, tout est terminé - disse Annalisa, conciliadora.
- Vous croyez? - replicou a princesa, surpreendendo-a. E voltou a observar o desfile. Cláudia Brancati olhava para a amiga e para a princesa, que conversavam num
tom tão pacato e desenvolto como se se conhecessem desde sempre, e admirou Annalisa pela sua capacidade de tornar banal o extraordinário. Ela não intervinha, com
medo de tropeçar nas palavras. A condessa Violante, vencida pelo cansaço que com o passar dos anos se fazia sentir, gozava o conforto macio de uma poltrona e de
vez em quando fechava os olhos, mergulhando numa dormência senil.
Entrou um criado com um carrinho de vidro. Pousado, via-se um balde de prata de onde espreitava uma garrafa de Veuve Cliquot. Era conhecida a predileção da princesa
pelo champanhe.
Foi a senhora Ventura em pessoa quem fez as honras da casa.
Depois do primeiro trago, Maria Jose voltou-se novamente para Annalisa: - Sei também que o seu marido, na Califórnia, produz um ótimo vinho - afirmou, provocando-lhe
espanto e surpresa.
- Foi o que me disseram - confirmou Annalisa. - Ainda não fui aos Estados Unidos.
- Mas irá muito em breve, imagino. - O seu tom de voz acordou a condessa Violante, que arregalou os grandes olhos cinza-pérola.
- É uma questão de semanas. - Annalisa não parecia entusiasmada com aquela partida próxima.
- Então dê cumprimentos meus a mister Philip James Brian Sénior

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- recomendou. - No seu campo, é uma autoridade. Agradeça-lhe pelos vinhos que teve a bondade de me enviar. - Era uma despedida. Annalisa levantou-se e fez uma vénia
ligeira, desajeitadamente imitada por Cláudia.
- Adieu, mes chères amies - despediu-se a condessa, e continuou a observar o desfile. Annalisa, enquanto se afastava com a princesa Violante, voltou-se para olhar
uma última vez para ela. O vermelho profundo dos rubis apagava-se na nuvem azulada do fumo do cigarro. Era tão pálida, tão frágil, tão triste, tão só. E sentiu pena
dela.

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As vinhas de Napa Valley

O rádio do carro parou de transmitir música e, após um intervalo publicitário, um locutor começou a falar da China comunista, declarada país agressor pela assembleia
plenária das Nações Unidas, e citou o presidente Truman em relação à estabilização da frente na Coreia, junto do paralelo 38.
- Interessa-te? - perguntou o motorista, com os olhos fitos na estrada.
- Absolutamente nada - respondeu Bruno. - Podes desligar ou mudar de estação - acrescentou. O homem ao volante sorriu à criança e calou o rádio, carregando num botão.
- Nunca mais acabam de fazer guerras e de falar nisso a toda a hora. Virou numa pequena estrada pelo meio de vinhas a perder de vista e abandonou a estrada nacional.
- Quem ganha na Coreia? - perguntou Bruno.
- Quando há uma guerra, nunca ganha ninguém - comentou o motorista. Chamava-se Don Taylor, tinha um apelido americano, mas um rosto e um nome mexicano puro-sangue.
- Mas os nossos são fortes - disse Bruno, à procura de uma confirmação. Tinha sete anos, era um menino curioso, tinha muitas dúvidas, mas entre as suas poucas certezas
estava o mito da América invencível.
- A força não é suficiente para vencer as guerras - afirmou Don.
O grande Cadillac azul metalizado saiu da estrada que dividia em dois a imensa vinha e desembocou num largo. Don Taylor curvou suavemente e o carro deslizou ao lado
da moradia de dois pisos de Napa Valley para parar silenciosamente diante das cavalariças.
- Obrigado, Don - disse Bruno, que vinha sentado ao seu lado.
- Vemo-nos amanhã - disse o motorista, despedindo-se.

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Enquanto o rapaz se dirigia à entrada principal daquela elegante construção oitocentista, a porta de uma box abriu-se silenciosamente, acionada por um dispositivo
automático, o que permitiu a Don estacionar o carro lá dentro. O motorista saiu do carro, tirou de um armário um pequeno espanador vermelho e começou a limpar diligentemente
a carroçaria. Olhou para o relógio. Eram sete e meia da tarde. A mulher, Juanita, e os filhos esperavam-no certamente com impaciência.
Já os ouvia queixarem-se: - Pelo menos, ao domingo podiam ter algum respeito pelos teus horários, estes cabrones. - Era uma mulher de 30 anos, de uma beleza agressiva
e um pouco grosseira.
Don, que concordava plenamente com a opinião da mulher, apesar de não defender os cabrones tentava ainda assim pacificar os ânimos. No fundo, mister Philip Brian
e a mulher, Annalisa, sabiam ser generosos.
Juanita detestava-os porque desde que Don entrara ao serviço dos Brian os domingos em que podia ter o seu marido para si contavam-se pelos dedos de uma mão. Don,
pelo contrário, considerava também o lado bom do seu trabalho: um ótimo salário, assim como gratificações e regalias consideráveis, para além da presença de Bruno,
pelo qual o motorista sentia uma ternura muito especial.
- Pobre criança - dizia à mulher -, naquela casa de doidos sabe Deus como vai crescer.
Então Juanita ficava mais calma.
- É verdade - admitia -, el niño es muy bonito. Mas eles... eles são cabrones.
Era para ela o mais vergonhoso dos insultos. Apesar de não ter podido estar com Juanita e com os filhos, Don tinha de qualquer modo passado um bom domingo com o
rapaz dos Brian, que ele considerava orgulhosamente como membro da sua família. Bruno nutria uma grande paixão pelos cavalos e na época das corridas não perdia uma.
A última competição tinha-se desenrolado em San Matéo, na Bay Meadows, e o rapaz tinha visto correr e vencer os seus favoritos.
- Quando for grande quero ser jóquei - dizia a Don. - O que é que tu achas?
- Parece-me uma excelente ideia - admitia Don. - Tu gostas muito de cavalos. Mas para ser um bom jóquei é preciso ser muito pequeno e muito magro. Tu só tens 7 anos
e és tão alto como um rapaz de 9.

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Mas sou magro. E todos os dias estou uma hora com pesos na cabeça, porque assim não cresço - respondia.
- É uma experiência que pode dar os seus frutos - respondia Don a sorrir, só para ele ficar contente, porque sabia que os seus momentos de felicidade eram raros.
Bruno tinha uma infinidade de regras para respeitar, pois quanto a isso mister Brian era inflexível. De vez em quando, Annalisa intervinha em defesa do filho.
- O Bruno - dizia a Phil - é apenas uma criança. Não podes ser assim tão severo com ele.
- É um siciliano duro e obstinado - replicava o pai. - Tem de perceber que é americano, que vive na América, que o seu futuro é aqui. Tem de aprender antes de mais
a tornar-se americano.
Don Taylor era testemunha daquelas desagradáveis discussões conjugais quando os Brian saíam juntos para ir a alguma festa. Mais do que a dureza do patrão, incomodava-o
a profunda tristeza da senhora, cada vez mais magra, cada vez mais pálida, com os olhos cada vez maiores e cheios de solidão.
Os ricos, dizia para si mesmo, são criaturas estranhas. Conseguem ser infelizes até quando nadam em ouro, e fazem os possíveis por orientar os filhos para o mesmo
caminho. Então pensava na Juanita dos momentos felizes, nos filhos, na sua família em volta da mesa, e sentia-se orgulhoso por possuir aquela pequena grande alegria.
Tinha conhecido muitos patrões ao longo da sua profissão de motorista: pareciam feitos à máquina. O Golden Staté, o Estado de Ouro acariciado por um clima de paraíso
terrestre, estava cheio de mulheres insatisfeitas, algumas petulantes, outras resignadas e disponíveis para o adultério, e de homens prepotentes e arrogantes, bebedores
habituais, prontos para cavalgar uma aventura e depois, uns e outros, para dispararem um tiro na boca ou para se tornarem frequentadores assíduos de médicos psicanalistas.
- Na Califórnia, os desportos mais praticados - tinha Don ouvido dizer - são o divórcio e a psicanálise.
O sol declinava com um sumptuoso tecido escarlate que afagava aquelas vinhas a perder de vista.
"É sempre um espetáculo grandioso", disse Don para si mesmo. De

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uma porta do anexo, onde viviam os empregados, os três filhos correram ao seu encontro.
"Sou um homem feliz", pensou, enquanto os apertava num abraço.
Juanita saudou-o da janela da sala de estar e sorriu-lhe. Estava estranhamente tranquila. Parecia ter entendido o seu estado de espírito.

Bruno, no seu quarto, estava a mudar de roupa diligentemente para se poder apresentar à mesa sem ouvir as censuras do pai. Detestava ouvir dizer que se portava pior
do que um camponês siciliano.
Enquanto abotoava a camisa branca lembrou-se de que não tinha lavado as mãos. Observou-as atentamente e concluiu que não estavam assim tão sujas que justificassem
mais uma lavagem. Estava atrasado, e talvez o pai não desse conta.
Desceu ao rés do chão e entrou na sala de estar decorada com móveis escuros, estilo old America. Nas paredes, cuidadosamente dispostos como numa galeria, grandes
retratos dos Brian: desde o severo James Brian, desembarcado no século XVIII na costa leste depois de uma extenuante travessia atlântica, até aos avós paternos de
Bruno, Kate e Philip James Senior, mortos no ano anterior num acidente aéreo. Bruno sabia que um dia aquela galeria sombria se ia enriquecer com outras figuras:
a da mãe, a do pai, a sua. Que cara teria ele quando fosse velho a ponto de ser pendurado no meio dos antepassados?
Um pintor italiano, especialista em retratos, tinha já pintado o rosto esplêndido de Annalisa e a face severa de Philip. Os quadros estavam no quarto de Bruno e
o rapaz passava muito tempo na contemplação do rosto da mãe, que o artista tinha retratado num vestido de noite azul-celeste pálido salpicado de pequenas rosas transparentes
da mesma cor. Havia uma patine de dor profunda no rosto de Annalisa e Bruno achava que se pudesse de alguma maneira apagá-la descobriria imediatamente por baixo
uma felicidade radiosa. E aquela incapacidade de apagar a patine de dor do rosto e dos olhos da mãe pesava-lhe.
Bruno adorava Annalisa e sempre que lhe acontecia vê-la particularmente abatida esgueirava-se para junto dela, segurava-lhe uma mão entre as suas e beijava-a.
- És toda a minha vida, Bruno - dizia-lhe ela, apertando-o contra si.

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o rapaz sentia que a mãe dizia a verdade e então amava-a ainda mais, com um sentimento profundo e doloroso que as vezes se transformava em pranto.
Bruno entrou na sala de estar onde Philip, Annalisa e George, o irmão mais novo de Philip, estavam a tomar um aperitivo. Bebiam um Traminer branco e fresco das vinhas
dos Brian. O rapaz inclinou ligeiramente a cabeça, mantendo cuidadosamente os braços estendidos ao lado do corpo.
- Boa-tarde, pai - disse. - Boa-tarde, mãe. Boa-tarde, tio George.
Todos eles lhe sorriram.
- Divertiste-te nas corridas? - perguntou Annalisa.
- Imenso, mãe, obrigado. Walter, um criado jovem, loiro, de corpo esguio e olhos vivos, apressou-se a trazer-lhe num tabuleiro de prata um sumo de laranja.
Bruno instalou-se no sofá entre os pais.
- Lavaste as mãos? - perguntou o pai.
- Sim, pai - mentiu, com a prontidão de quem já se habituou a estar sob inquisição, esperando não corar com a mentira, a rezar ao Omnipotente para que o pai não
se lembrasse de fazer um exame pormenorizado. As normas impostas pelos rígidos esquemas familiares faziam-no sofrer.
- Bebe o teu sumo de laranja, rapaz. - Era um convite e uma ordem.
- Sim, pai - obedeceu Bruno, regozijando-se mentalmente por ter escapado ao perigo.
Havia tensão no ar. Havia sempre tensão quando os pais estavam juntos, e no aposento espalhavam-se ondas negativas que transmitiam à criança uma profunda sensação
de desconforto. Com uma sensibilidade infantil, apercebia-se também naquele momento do mal-estar que contrastava com uma atmosfera ordenada de calma aparente. Palavras
vazias ou carregadas de um ambíguo significado marcavam a passagem do tempo e, Bruno tinha de fazer um enorme esforço para ficar quieto e tranquilo à espera que
se concluíssem as formalidades rituais que precediam o jantar. Depois, no fim do jantar, iria finalmente para a estrebaria cumprimentar Babette, o seu pónei vistoso,
e falar com o moço. Na manhã seguinte, segunda-feira, o pai regressaria ao escritório de Frisco, ele e a mãe retomariam a vida de sempre na casa de Sausalito e o
tio George ficaria em Napa Valley a tratar da produção vínica.

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As vinhas dos Brian eram as mais extensas e as mais importantes da Califórnia, o vinho de Napa Valley era distribuído em todos os Estados Unidos e era muito apreciado
também no estrangeiro. Nos últimos anos a produção tinha registado mais um melhoramento. Tinha havido um significativo salto de qualidade. O Pinot, o Cabernet e
o Silvaner Brian eram agora muito procurados. Também o Chianti era de boa qualidade , mas George não estava completamente satisfeito. O seu ponto de referência era
o Chianti de Badia a Coltibuono, com um vago perfume de violeta, e ainda não se tinha conseguido aproximar daquele encanto de sabor e de perfume. Por outro lado,
pensava George para se consolar, o cultivo das vinhas nas propriedades de Coltibuono remontava a 1037. Era um vinho já famoso em 1476, antes da descoberta da América,
quando Baccio Ugolini o recomendou ao seu amigo Lorenzo de Medici como o tinto largamente superior ao de Vallombrosa".
George Brian era o tipo californiano clássico: alto, de olhos azuis, cabelo castanho-claro, físico atlético e uma expressão franca e ingénua sempre iluminada por
um sorriso. O clima, o sol e a vida ao ar livre garantiam-lhe um bronzeado perene. Era um administrador escrupuloso e inteligente, mas gostava também de ser um poeta
do vinho, do qual conhecia histórias e lendas.
George era praticamente o número um da empresa vinícola, que tinha um volume de negócios de alguns milhões de dólares, mas que se tornara uma atividade secundária
da família Brian. Durante os anos da lei seca, com efeito, os Brian tinham negligenciado as vinhas e tinham dado alguns passos tímidos no setor dos grandes hotéis.
Philip James Brian, o pai de Philip e de George, adquirira dois hotéis em San Jose, a sul de São Francisco. No fim da lei seca, a atividade agrícola foi retomada
em pleno ritmo com novos planos de melhoramentos, mas entretanto a atividade hoteleira revelara-se muito interessante. Também a indústria aeroespacial, na qual os
Brian fizeram grandes investimentos, progredia enormemente.
Os novos setores foram confiados por Philip Senior ao filho mais velho, que regressara da Europa com a auréola de estratega, a patente de herói, uma mulher siciliana
e um herdeiro ao trono. A atividade tradicional dos Brian, a viticultura, ficara para George, cujas raízes se enterravam profundamente naquela terra rica do Golden
State

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Todos os fins de semana a família reunia-se na velha casa de Napa Valley, onde Bruno tinha o seu pónei e Annalisa um belíssimo puro-sangue árabe que Philip lhe tinha
oferecido. Josette tinha ficado a envelhecer na estrebaria de Piazza Armerina, ao lado de Morello, o hunter negro de Calò.
A conversa avançava mecanicamente, enquanto cada um mergulhava nos seus pensamentos secretos.
- Acho que devíamos considerar a construção de novas instalações disse Philip, preocupado.
- Isso já está programado - garantiu George. Sabia que o irmão tinha perdido de vista o grande coração do país onde tinha nascido e crescido, e falava com ele na
linguagem que usava com os operadores dos bancos de Nova Iorque. Mas ele não era um funcionário da Morgan Guaranty, do Chase Manhattan, do First National. Era um
agricultor e pensava como um agricultor: entre ele e os métodos da business community existia um espaço sideral.
- Devias vir comigo a Washington - aconselhou Philip. - Gostava de te apresentar a um membro da comissão agrícola do Senado.
- Um public relations man em casa parece-me suficiente - replicou George. - E depois eu não tenho jeito para essas coisas. Preferia tomar em consideração a compra
dos pomares dos Johnson.
- Não os conheço - disse Philip.
Tinham lá ido pelo menos dez vezes quando eram pequenos, mas Philip falava como se nunca os tivesse visto.
- São os pomares que confinam com a nossa propriedade - explicou George, esforçando-se por se manter calmo. - Tenho em mente um projeto para o incremento da produção
de sumos de fruta.
- Pois - disse Philip, com uma ponta de desprezo -, não consegues tirar de cima de ti o cheiro da terra. - Provou o Traminer branco, mas afastou rapidamente o copo,
que estava horrivelmente quente. Talvez a temperatura do vinho fosse só um pretexto, na realidade queria beber alguma coisa mais forte. Bastou-lhe um gesto para
dar a entender ao criado de casaco branco aquilo de que necessitava: uma robusta dose de bourbon com gelo. Retomaram fatigadamente a conversa de negócios. Annalisa
e Bruno escutavam os dois irmãos com um ar entediado.
- Desculpa, Phil - interveio Annalisa -, mas tens mesmo de falar em trabalho ao domingo à noite? O Bruno está a aborrecer-se de morte.

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Philip ficou indignado e fulminou-a com o seu olhar de aço.
- É verdade que te aborreces? - perguntou, dirigindo-se ao filho.
Bruno pensou que duas mentiras numa noite eram realmente de mais e preferiu arriscar mais uma cena em vez de mentir.
- Sim, pai - confessou, arregalando para ele os seus olhos cinzento-azulados.
- Pois bem, sinto muito por ti e pela tua mãe - replicou, tentando inutilmente conter-se e mitigar a aspereza das palavras. Bebeu um trago e começou a brincar com
um bibelot de prata. - A tua mãe até se pode dar ao luxo de se aborrecer, mas tu precisas de encarar como um tesouro estas conversas aborrecidas, porque são a vida
da nossa família. São a alma dos Brian.
- Ele só tem 7 anos, Phil - defendeu-o Annalisa mais uma vez.
Philip ignorou-a deliberadamente com um sorriso de desprezo.
- Sem vinhas - continuou, voltado para o filho -, sem estas conversas sobre maquinaria e sobre os investimentos, sem terrenos, sem hotéis, não podias ter tudo aquilo
que tens. Inclusivamente os cavalos. - Acabava de tocar numa tecla em relação à qual Bruno era particularmente sensível.
- Oh, não - replicou instintivamente a criança. - Cavalos podia ter todos aqueles que quisesse. Bastava que tu me deixasses ir para a Sicília, para casa do avô.
- Quando se deu conta de que o tinha provocado, era demasiado tarde. A Sicília era tabu em casa dos Brian.
- Chega! - gritou Philip, ao mesmo tempo que dava um pesado murro na mesa. A réplica do filho evocara um encanto há muito quebrado, um ódio inextinguível por um
gigante loiro, um ódio sem justificação aparente, ou talvez com demasiadas justificações.
- Por favor, Philip - suplicou Annalisa, com um olhar triste.
- Chega de Sicília! - O punho de Philip abateu-se novamente sobre a mesa de mogno, fazendo oscilar perigosamente os copos e provocando a imediata saída do criado,
que ao primeiro sinal de tempestade se dissolvia como a neve ao sol.
- Acalma-te, Phil - interveio George.
- Tu és americano - disse ao filho, com a mesma veemência de quando tinha apenas 1 ano e o recebera em Milão, no aeroporto de Taliedo - e chamas-te Brian.
- É verdade, pai - replicou o rapaz com decisão. - Chamo-me Brian e sou americano. Mas também sou o último barão di Monreale. Chamo-me

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Brian Sajeva Mandrascati di Monreale. É isso que está escrito no meu registo de nascimento. Sou americano, mas nasci na Sicília. - Estava orgulhoso por isso.
Bruno tinha passado das marcas.
- És tu que lhe metes na cabeça todas estas grandezas de papelão. Philip transferiu a sua cólera para Annalisa.
- Sabes bem que não é verdade - limitou-se a objetar. Sabia demasiado bem o que angustiava o marido. O naufrágio daquele casamento fora inevitável porque a boa vontade
pode manter as ligações oficiais, mas não garantir a intensidade dos sentimentos.
Philip Brian, primogénito e chefe de uma grande família californiana, não tinha qualquer semelhança com o jovem major do Exército dos Estados Unidos que na suavidade
de uma noite estrelada tinha acreditado conhecer a felicidade. O ar doce e limpo do Golden State transportava um perfume ligeiro mas não evocava os aromas do denso
parque do palácio de Piazza Armerina, das rosas e das magnólias. O encanto noturno que acendia os sentidos pertencia a um passado de que ele se envergonhava.
Havia entre ele e Annalisa a palpitante realidade de Bruno, aquele estranho, extremamente sensível rapaz em cujos traços delicados e fortes Philip procurava em vão
alguma coisa que lhe recordasse a estirpe dos Brian. Agora a criança tinha crescido e os cabelos, que tinham escurecido, tornaram-se quase da cor dos seus. Também
os olhos eram de um cinzento-azulado muito semelhante ao paterno. Mas as correspondências somáticas ficavam por ali. Philip não podia deixar de recordar aquela noite
distante de 1943 quando o singular personagem que respondia pelo nome, segundo ele completamente mafioso, de Calogero Costa, o tinha agredido. Lera nos seus olhos
o ciúme do animal pela sua fêmea. Tinham passado oito anos e aquela recordação ficara-lhe agarrada à pele. Sabia que a única pessoa sem responsabilidades naquela
história absurda era Bruno; não sabia porquê, mas Bruno fazia-lhe lembrar Calò e Calò fazia-lhe subir o sangue à cabeça.
- Ilha maldita! - vociferou Philip. - Aristocratas arrogantes, mafiosos e miseráveis, e o meu filho prefere aquilo ao seu grande país.
- Não é bem assim - interveio Annalisa. - O Bruno ama a Sicília porque é também a sua terra. Mas ergue-a às estrelas porque tu lha negas,

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nunca lhe permitiste revê-la. Para ter a alegria de voltar a abraçar este único neto, o meu pai foi obrigado a vir ele mesmo à América.
- E terá de continuar a vir, se quiser vê-lo - disse com dureza.
- E assim o Bruno vai continuar a idealizar um sonho proibido.
Annalisa bebeu de um só trago o vinho que sobrava e, no mesmo copo, serviu-se de scotch. O álcool, havia já algum tempo, era o corrimão a que se agarrava na ilusão
de a ajudar a não cair.
- O Bruno está cansado - prosseguiu - de continuar a ouvir repetir que é americano. Claro que é. Como o são os outros meninos que conhece e com quem se dá. Mas esse
ser americano é-lhe imposto como uma maldição. - Annalisa, nas suas discussões, assemelhava-se ao barão di Monreale.
- Mãe, não fiques assim. - Bruno, que naqueles momentos a amava ainda mais, abraçou-a com força a chorar.
Philip e Annalisa já teriam há tempo enveredado pelo caminho do divórcio se a sua educação católica não os tivesse impedido. Nenhum casamento se desfizera na casa
dos Brian, ainda que em muitos outros casos tivesse havido mais razões para a separação do que para manter uma vida em comum.
- Agora estamos no ponto alto da representação - reagiu Philip, ao ver que também a mulher chorava. Perante as lágrimas de Bruno e de Annalisa, sentiu o peso da
sua cruel irracionalidade, uma máscara para a angústia que o atormentava. É claro que tinha boas razões para estar furioso e, provavelmente, Annalisa também tinha
as suas, mas Bruno era completamente inocente. Gostaria que aquela conversa insensata sobre a Sicília nunca tivesse começado. Comportara-se com a arrogância do pai
e do avô, tendo a vulnerabilidade e a incoerência de uma criança.
- Seria bom que acabasses com isso. - Annalisa continuava a beber perigosamente.
- Desculpa, Annalisa - disse Philip, com uma voz clara e baixa. - E tu também, Bruno. Levantou-se e saiu para o crepúsculo iminente.
George, que tinha assistido à cena com a aparente impassibilidade de uma testemunha, aproximou-se da cunhada e do sobrinho.
- Fim de transmissão - disse, ao mesmo tempo que oferecia o lenço ao rapaz. - Agora vamos mudar de programa.

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Obrigada, George. - Annalisa sabia que a neutralidade do cunhado era uma opção, a única possível para que a discussão não degenerasse em briga maior. George tinha
muito respeito por Philip, reconhecia nele o talento e detestava o seu autoritarismo.
Bruno limpou os olhos e assoou-se.
- Sinto muito, tio George - agradeceu. Guardou para si as críticas ao comportamento do pai.
- OK, rapaz. - George sorriu. - O teu pai pediu desculpa, o que já não e pouco, tratando-se de Phil. A noite ainda está intacta. Podemos tentar recuperá-la.
Ouviu-se o ruído de um carro e pouco depois o Buick de Phil percorreu o caminho da saída.
- O Phil vai regressar a São Francisco - anunciou Annalisa. Não havia dor nem preocupação na sua voz, até porque não era o primeiro domingo em que o marido, depois
de uma cena daquelas, os deixava ficar.
- Assim a paz está momentaneamente assegurada - disse o cunhado.
- Obrigada, George - repetiu Annalisa, comovida. - Tentemos ficar realmente tranquilos, esta noite.
- Tio George, o que dizes a uma cavalgada até ao pomar dos Johnson? propôs Bruno, que já tinha esquecido o ataque de fúria do pai.
- E depois, umas braçadas na piscina - acrescentou George, para completar o programa. - A piscina acaba de ser limpa e temos de inaugurar a estação. - Sorriu a Annalisa
com os seus olhos azuis e bondosos que lhe faziam lembrar um outro olhar distante no tempo, mas presente na memória.
Bruno gritou e saltou de alegria.
- Tudo bem, mas agora vamos para a mesa.
Foi um jantar saboroso e insolitamente barulhento à base de camarões, gambas e pequenas lagostas de carne doce e delicada. Também Bruno bebeu uma gota do ótimo Silvaner
que Walter, o impassível criado, lhe serviu.
Depois cavalgaram a trote por estradas e caminhos interiores no meio das vinhas, na tépida noite californiana iluminada pela lua, até aos pomares dos Johnson. A
seguir regressaram a casa para completar o serão na Piscina. George, Annalisa e Bruno pareciam ébrios de felicidade. Bruno concluiu que nem sequer durante as festas
de Natal e no seu aniversário

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tinha havido tanta alegria. Annalisa, ajudada pelo scotch, ria até às lágrimas com os comentários mais inocentes e George fazia uns improvisos de palhaço que desencadeavam
a hilaridade de Bruno.
"Meu Deus, a necessidade que eles têm de felicidade", pensou George. E descobriu que os três pareciam destinados a estarem juntos.
Despiram-se no anexo que ficava do lado norte da piscina completamente iluminada.
A grande piscina tinha a transparência da água-marinha. Em volta havia amplos cadeirões de bambu cobertos de macias almofadas azuis e um bar muito bem fornecido.
- É bom ficar acordado até tarde - disse Bruno à mãe da sua cabina. - Nunca me tinha divertido tanto!
- Atenção, Bruno - replicou Annalisa. - Isto é um segredo entre nós que nunca deverá ser revelado. - Apercebeu-se de que o estava a ensinar a mentir e sentiu-se
pouco confortável. Disse-o a George em voz baixa, quando se encontraram os três à volta da piscina.
- É uma pequena mentira por uma boa causa - justificou o cunhado.
- Tenho sede. Vamos beber qualquer coisa antes do banho - propôs Annalisa. Tinha bebido muito mais do que o necessário, mas achava que precisava ainda de um suplemento
de ilusão.
George não se opôs, apesar de ter razões válidas para o fazer. Havia de encontrar outro momento para abordar um problema que o afligia.
- Mãe! Tio George! - chamou Bruno.
Mergulharam na água tépida e brincaram como crianças. Mais do que uma vez os corpos de Annalisa e George se tocaram por acaso, mas afastaram-se imediatamente. Annalisa
sentiu uma languidez há muito esquecida e George conheceu um arrepio de prazer que nenhum contacto feminino até àquele momento tinha conseguido comunicar-lhe. O
instinto sugeriu-lhes, em qualquer caso, que mantivessem as distâncias.
George era um jovem brilhante e animado, suscitava admiração nas mulheres do seu meio, mas nunca se tinha apaixonado por nenhuma delas. Isto, segundo Philip, depositário
da moral da família, era um mal. Provavelmente, apesar de tudo, o irmão mais velho tinha razão. Saíram da piscina a escorrer água e alegria e deixaram-se acariciar
pela agradável brisa noturna. Sob o céu prateado, a temperatura era amena. Estavam

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próximos do verão naquele grande vale protegido pelos ventos do oceano por uma cordilheira.
Annalisa, com um roupão vestido, começou a enxugar energicamente o corpo do filho.
- Se o teu avô te visse... - Sorriu com orgulho, a pensar no velho barão di Monreale.
Bruno deixava-a esfregá-lo, sentindo-se no paraíso.
- Achas que eu ainda posso ficar convosco? - Fez uma tentativa, apesar de ter a consciência de já ter transgredido o horário habitual.
- Não, Bruno - respondeu docemente a mãe.
- Está bem, mãe - concordou. - Boa-noite. Boa-noite para ti também, tio George.
- Boa-noite, Bruno.
Foi para o quarto, orgulhoso e feliz por ter ficado a pé até tarde como um homem. No dia seguinte, na escola, os colegas certamente nem iam acreditar.
Annalisa observou-o enquanto percorria com um passo elástico a beira da piscina em direção a casa.
- É um bonito rapaz - disse George.
- Esperemos que seja também um rapaz tranquilo - acrescentou Annalisa. Não disse feliz por superstição.
- A mãe dedicada esquece-se dela mesma - censurou George, enquanto se aproximava dela e lhe massajava vigorosamente os ombros. Ela reagiu àquela atenção afetuosa
a rir, mas o contacto da mão de George produziu-lhe uma sensação tão lânguida que deixou de rir imediatamente.
- Gostava que este momento nunca acabasse - murmurou Annalisa, aproximando-se perigosamente dele. Ao fim de muitos anos, sentia-se pela primeira vez novamente mulher,
jovem e cheia de alegria de viver.
George apercebeu-se disso e deu-se conta do perigo que estava a correr.
- Vai haver muitos momentos como este na tua vida. - Ganhava tempo ou talvez estivesse a tentar construir um alibi.
- Então não percebeste. - O álcool só tinha a ver com aquilo numa mínima parte. Estava lúcida, tinha as faces acesas, os olhos negros brilhantes e o rosto emoldurado
pelos longos cabelos de ébano apresentavam uma

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suave luminosidade lunar. - Talvez haja mais momentos como este - concordou -, mas eu estava a pensar em todos aqueles que perdi e que nunca vão regressar.
- O coração dos homens está cheio de esperanças perdidas - brincou George.
- É uma antiga máxima irlandesa? - Aquele diálogo feito de nada agradava-lhe, fazia-lhe bem.
- Não - disse ele, para grande espanto dela -, é um velho provérbio siciliano.
- Eu quero que este instante nunca acabe - sentenciou Annalisa.
- É como inventar o elixir da longa vida. Como pedir ao céu a imortalidade. - Aflorava uma inquietante verdade naquele jogo aparentemente superficial e tonto.
- A imortalidade não é um dom - observou Annalisa. - A imortalidade é uma conquista.
- Antigo provérbio Siciliano? - perguntou George, que estava com medo da faceta mais séria que a conversa estava a tomar.
- Não - rebateu Annalisa. - Antologia de Spoon River.
Riram-se, exorcizando momentaneamente a tensão.
- Agradeço-te por este serão maravilhoso - disse George. Estavam muito próximos.
As suas bocas uniram-se e George experimentou uma sensação extremamente doce e exaltante que nunca tinha tido com outras mulheres. Annalisa sentiu as pernas a tremer.
Tinham passado oito anos desde que, nos braços de Calò, conhecera a alegria de ser mulher.
George separou-se decididamente dela e afastou-a de si.
- Isto é tudo quanto podemos permitir-nos, Annalisa - afirmou com gravidade.
- Percebo. - Estava grata ao cunhado por aquela verdade que não lhe provocava nenhum sofrimento. - Seria lindo. - Não queria que se fechassem todas as janelas.
- É importante que possamos ainda olhar para o Philip nos olhos e abordá-lo sem nos envergonharmos. - Dirigiram-se ao bar.
- OK, George. - Aceitava aquela prova de lealdade por disciplina familiar, sem no entanto ficar convencida. - Mas agora estou mesmo a precisar de recuperar - acrescentou
seriamente.

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- Scotch? - perguntou ele a sorrir.
- É uma emergência - respondeu Annalisa. - Qualquer coisa serve.
- Devias mudar-te para a cidade durante uns tempos - aconselhou-a.
- Provavelmente, tens razão - admitiu sem entusiasmo. - Podia ser uma boa ideia.
- Estou contente por também pensares assim. - Acendeu um cigarro e suspirou de alívio. Philip, da porta envidraçada do escritório, tinha visto tudo, mas não pôde
ouvir o que os dois disseram um ao outro. Tinha voltado para trás quando Annalisa, George e Bruno saíram para a cavalgada noturna. Queria reparar os estragos provocados
pela sua brutalidade e tinha-se refugiado na biblioteca a remoer a raiva e os remorsos e a beber bourbon. Esperou por eles, viu-os chegar A. piscina, nadar e brincar
felizes e, quando Annalisa e George se beijaram, sentiu gelar o sangue nas veias. Ficou petrificado, incapaz de reagir. Sentiu-se humilhado, impotente, e sentiu
o desejo de se anular completamente, de desaparecer.
George, com um punhado de alegria e uma migalha de naturalidade, tinha conseguido conquistar a mulher que era sua desde sempre, mas que nunca conseguira possuir.
Também com ele, Annalisa tinha rido por uns instantes, mas depois a felicidade apagara-se de repente como uma lâmpada defeituosa. Aquilo que tinha visto revelara-lhe
precisamente aquela verdade: Annalisa nunca lhe pertencera.
Depois daquele primeiro, mágico encontro, ela continuara a fugir dele enquanto o seu desejo se agigantava cada dia mais. Era o desejo de uma paixão, não da oferta
ritual de um corpo resignado. Phil nunca deixara de a amar.
Observou Annalisa e George sentados nos bancos altos do bar, a beber e a conversar: eram a imagem do seu falhanço como homem, marido e pai. A mulher tinha-se abandonado
nos braços de George e, antes disso, Bruno tinha-se divertido com eles, tinha rido e brincado.
O regime de terror instaurado por Philip, segundo as rígidas normas da família Brian, não tinha dado nenhum resultado: o amor, o afeto e a admiração não se podem
impor. Philip tinha errado grosseiramente sobre todas as frentes e provavelmente, no ponto em que estavam as coisas, era demasiado tarde para recomeçar. Com a ajuda
de ambas as mãos para não cair, deixou-se escorregar lentamente para o sofá.

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O acidente

Resplandecia o radioso verão californiano. Era junho e tinha passado um mês desde aquela estranha noite de Napa Valley. Annalisa estava estendida num colchão junto
à piscina, no parque da casa de Sausalito, entre o verde de uma vegetação luxuriante.
Trazia um fato de banho branco que lhe realçava o bronzeado. A brisa do oceano transportava um perfume de sal e de flores. O sol acariciava o seu corpo magnífico
e ela saboreava já antecipadamente a alegria de um mergulho. Viu as horas no velho Vacheron-Constantin que tinha pousado no tabuleiro ao lado do copo de sumo de
toranja que Irene, a criada mexicana, lhe tinha servido. Eram dez horas.
Dali a poucos dias Bruno acabaria as aulas e ela estava firmemente decidida a voltar à Europa com ele para umas longas férias. Tinha estudado o programa com todos
os pormenores: Londres, Paris, Milão, Roma, Palermo. Ia renovar o guarda-roupa, reencontrar velhos amigos, abraçar o pai, voltar a ver Calò.
A recordação de Calò nunca a tinha abandonado apesar de, durante todos aqueles anos, ter tentado sufocá-la, fechá-la num canto escondido da sua mente. Mas ela teimava
sempre em aparecer. Bastava-lhe olhar para o rosto do filho para reencontrar algum vestígio de uma realidade que não se resignava a perder.
Por fim tinha havido aquele serão delicioso rematado pelo beijo de George e que despertara nela a vontade de viver. Não que estivesse apaixonada por ele, mas aquele
episódio tinha evocado os desejos insatisfeitos e acordado a sua sexualidade, que os melhores intentos não tinham conseguido sufocar.

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Desde aquele domingo não voltara a Napa Valley, à casa no meio das vinhas. Philip tinha partido para Washington, da capital tinha ido para Nova Iorque e regressara
a Sausalito apenas dois dias atrás. George não voltara a dar sinais de vida e Annalisa estava-lhe grata por isso. Sabia que se voltassem a encontrar-se e ele a beijasse,
não ficariam por ali. Decididamente, não estava apaixonada por George, mas o apelo físico, depois daquele beijo, tornara-se irresistível. Vivia em 1951, na Califórnia,
não na Sicília árabe e medieval, e sabia que muitas amigas americanas não hesitariam um instante em seguir os seus impulsos. Hollywood, a fábrica de sonhos de celuloide,
estava perto, circulavam histórias e bisbilhotices que testemunhavam uma moralidade muito elástica. A indústria dos divórcios no Nevada era muito ativa. Parecia
tudo demasiado fácil.
Annalisa tinha recebido uma educação muito latina e muito siciliana. Sentia-se desconfortável, como se se tratasse de uma afronta própria, quando ouvia repetir a
anedota das mulheres Sicilianas que fazem tudo em casa, incluindo o adultério e a fornicação que são praticados entre primos, compadres e cunhados. Achava aquilo
uma piada nojenta. A sua vida era já suficientemente difícil assim, com aquele filho problemático e misterioso, com a recordação do amor atormentado de Calò e com
o seu casamento falhado.
Levantou-se preguiçosamente, caminhou junto da piscina, levantou os braços e mergulhou, gozando aquela carícia fresca. Quando voltou à superfície, com o rosto estendido
para o céu e os cabelos lisos e cintilantes, o telefone estava a tocar.
Com quatro braçadas chegou à escada de ferro esmaltado, saiu da piscina e levantou o auscultador.
- Mister George pretende falar com a senhora - disse Albert, o mordomo.
- Pode passar - respondeu, esforçando-se por conservar um tom indiferente.

- Como é que estás? - O tom de Gearge era tão irresistível como o desejo que crescia nela.
- Bem, e tu? - Apetecia-lhe saltar os preliminares e dizer-lhe que tinha um desejo tremendo de o voltar a ver.
- Há uns tempos que não nos vemos. - Tinha uma voz alegre.

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- Pois é, sabes - quase se desculpou - o Phil só voltou de Nova Iorque há uns dias. - Os longos cabelos desciam-lhe sobre os ombros.
- Ouve, estou em Frisco. No Sheraton. Porque não vens ter comigo? Podíamos tomar o pequeno-almoço juntos. - Tinha assumido um tom que não a convencia.
- O que é que se passa, George? - No céu passou um avião, despertando nela a vontade de partir.
- O Philip convocou-me para o escritório dele. - Precisamente para não dar peso à notícia, acabava por lhe conferir um significado sinistro.
- Não me parece um acontecimento relevante. - As convocatórias de Philip pertenciam à rotina.
- Perguntou-me quais são as minhas intenções em relação a ti - continuou.
- Então já me parece um acontecimento relevante. - Bebeu um gole de sumo de toranja. Tinha a garganta seca.
- Era o que queria dizer. - Instalou-se um silêncio momentâneo.
- Já disseste.
Philip sabia e durante um mês tinha ficado calado. Era típico do seu comportamento.
- Não me perguntas como é que ele soube de nós os dois?
- Como é que soube? - Gotas de água deslizaram-lhe do cabelo para os ombros.
- Tinha voltado atrás para te pedir desculpa. Nós tínhamos saído a cavalo. Viu tudo da biblioteca. Estava a cair de bêbedo e foi-se outra vez embora de madrugada,
quando estava toda a gente a dormir.
- Como é que te justificaste? - O sol aquecia-lhe os ombros morenos.
- Disse-lhe para não se armar em moralista. Expliquei-lhe que o nosso beijo tinha sido um beijo inocente. - Tinha uma voz clara, tranquila.
- É assim, George? - O sol, o ar do mar e o perfume das flores provocavam-lhe um ligeiro aturdimento.
- Não - disse com franqueza -, eu amo-te.
- É uma declaração irrefletida - retorquiu ela, assustada.
- Amo-te e desejo-te - repetiu, para consolidar a veracidade daquela afirmação.
- Oh, George, sabes bem que não nos podemos permitir a uma coisa dessas.

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- Desejo-te, mas nunca farei nada para te ter. Já tens problemas que cheguem mesmo assim.
- Eu não vou ao Sheraton - decidiu Annalisa.
Acho que tens razão. - Continuava a ser ela quem conduzia o barco.
- Vem tu ter comigo, George - propôs. - Comemos qualquer coisa juntos.
- Quando? - perguntou George, ansioso.
- Já
- Pousou o auscultador e voltou a levantá-lo para falar com o mordomo.
- Albert, hoje vai preparar um almoço para dois. O meu cunhado vem almoçar. - Pousou o auscultador e sentou-se na relva. Sentia-se muito calma, quase serena, enquanto
tentava avaliar aquilo que George acabava de lhe comunicar.
Portanto, Philip sabia. Tinha antecipado a viagem a Washington e a Nova Iorque para ter tempo de refletir e talvez para saber o que aconteceria na sua ausência.
Certamente tinha contratado um detetive para que lhe comunicasse qualquer movimento e, uma vez que a investigação não tinha tido qualquer êxito, tinha ido ao cerne
da questão, abordando o irmão.
Annalisa perguntou a si mesma se ele saberia também de Calò e concluiu que essa possibilidade era muito menos realista. Philip continuava a ser um enigma.
Eu não o conheço", pensou, aflita. "Não sei se tem ciúmes ou se não tem. Nem sequer sei se me ama verdadeiramente. A minha única certeza e que me mantém prisioneira,
sem se questionar se esta situação me pesa. Vinga-se do amor que não consegui dar-lhe. Mas o pior é que envolve o meu filho nesta briga psicológica. Provavelmente
tem razões para manter esta situação. Mas eu tenho outras tantas para acabar com ela."
Vestiu um roupão, sentou-se à mesa, pegou no telefone e marcou o número do escritório de Philip em São Francisco. Atendeu Vera, a secretária.
- Mister Brian está em reunião - comunicou-lhe. - Se a senhora quiser, peço-lhe para lhe ligar mais tarde.
- Não - replicou com decisão. - Quero falar com ele já.
Um instante depois, a voz do marido chegou até ela clara e dócil, mas era uma segurança fingida, de conselho de administração.

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- O que foi, querida? - perguntou, imperturbável.
- Uma simples comunicação. - A sua calma vinha-lhe da certeza de ter tomado finalmente uma decisão leal. - Resolvi pedir o divórcio. - Por um momento ouviu apenas
um vago zumbido no auscultador. - E enquanto os advogados programam o melancólico epílogo desta triste história, eu regresso a Itália com o meu filho. - Desligou
sem lhe dar tempo de alinhavar uma réplica.
Levantou-se, percorreu o caminho cheio de ervas por entre as árvores e entrou em casa. Foi a casa de banho, enfiou-se debaixo do chuveiro e deixou que os jatos violentos
de água morna que saíam de múltiplos de orifícios ao longo das três paredes lhe friccionassem o corpo quente do sol. Ficou assim muito tempo, imóvel, de olhos fechados.
Secou-se cuidadosamente antes de se estender na marquesa de massagens. Carregou num botão e Catherine entrou imediatamente na grande casa de banho com um frasquinho
de óleo cor de âmbar e um perfume fresco de musgo.
Era uma mulher jovem, enérgica e que sabia falar no momento certo e calar quando era preciso. Uma interlocutora perfeita, que Annalisa sabia apreciar porque lhe
permitia ser sempre ela mesma.
Depois de alguns comentários essenciais para se entenderem, Catherine aproximou-se de Annalisa, deitou na palma da mão algumas gotas daquele óleo que cheirava a
musgo e começou a massajá-la a partir dos dedos dos pés, que manipulou um a um. Annalisa fechou os olhos enquanto as mãos sapientes da mulher passavam pela planta
do pé e pelo calcanhar e subiam em direção a barriga da perna e a coxa. Catherine sabia de cor o corpo harmonioso de Annalisa, conhecia a técnica para desfazer os
nós, para abrandar a tensão e para acalmar o seu espírito inquieto.
Quando a mulher saiu, silenciosa, depois de ter executado aquela operação cuidadosa, Annalisa sentiu-se em extraordinária forma. Vestiu um roupão de seda leve, entrou
no quarto, sentou-se a mesa de toilette, maquilhou cuidadosamente as maçãs do rosto, os olhos e os lábios, e depois penteou os cabelos juntando-os na nuca num chignon
com a ajuda de alguns ganchos de tartaruga.
Por fim vestiu-se, escolhendo para a ocasião um vestido de seda branca que lhe realçava o bronzeado magnífico e o corpo elegante. Pôs

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ainda um colar de pequenas pérolas cinzentas em volta do pescoço, após o que se sentiu perfeita e de excelente humor.
Enquanto descia as escadas com a desenvoltura de uma rainha, apercebeu-se de que George a observava do átrio.
- O que é que te hei de dizer? - perguntou-lhe extasiado.
- Aquilo que pensas - respondeu, dedicando-lhe o mais radioso dos sorrisos.
- Estás linda - disse apenas. Todas as palavras que lhe acudiam ao espírito não conseguiriam definir melhor o encanto que tinha à frente. - Estás linda - repetiu.
- E tu És muito querido, George - agradeceu.
Ele beijou-lhe a mão, que exalava o perfume fresco do musgo, e dirigiram-se juntos ao jardim. Albert tinha mandado pôr a mesa para dois por debaixo da pérgula de
rosas trepadeiras.
- Uma gota de vinho? - propôs George, enquanto se sentava.
- Não, obrigada - recusou ela.
- Não queres uma gota de vinho antes de almoço? - perguntou, admirado, uma vez que conhecia os gostos de Annalisa.
- Estou curada, George - comunicou Annalisa com seriedade.
- É um novo jogo? - Decididamente, não entendia.
- O que quer que eu faça, daqui para a frente, quero fazê-lo livremente. Sem o pretexto do álcool. - Saboreava o fim de uma escravidão.
- O que é que estás a tentar dizer-me?
Serviu-se de vinho branco, estava a precisar.
- Vou pedir o divórcio. - Olhou para o cunhado, que bebeu um longo trago para recuperar da surpresa.
- É um acontecimento histórico na nossa família. - Disse-o com tristeza, como se sentisse naquele anúncio, que marcava uma reviravolta na tradição, um funesto presságio.
- Já comuniquei ao Phil. - Ela própria se espantava pela simplicidade com que abordava a situação.
- Estás a dizer-me que tive a minha parte nesta conclusão. - Nos seus olhos, Annalisa leu uma grande tristeza.
- Provavelmente sem ti - replicou com sinceridade - este casamento ainda se arrastaria por mais algum tempo. Mas não para sempre.

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- A situação não me enche de orgulho - disse, abanando a cabeça. - No fundo, trata-se de ti e do meu irmão.
- Mas não deves sentir-te culpado porque não és - tentou absolvé-lo. - O nosso casamento nunca funcionou, apesar de eu ter tentado ser uma boa esposa e de o Phil
ter feito tudo para me tornar feliz. Mas não basta querer que as coisas funcionem.
Albert tinha servido ouriços-do-mar em molho cor-de-rosa sobre largas tiras de alface, mas para seu grande espanto os dois jovens não pareceram apreciar a refinada
frescura daquele prato requintado.
- Voltas para Itália, não é verdade? - Era uma pergunta óbvia, que implicava uma resposta terrifica.
- Sim, George. - Olhou-o nos olhos, exprimindo-lhe toda a alegria ligada a perspetiva daquele regresso. - Tenho muitas saudades da minha terra. Aqui nunca me senti
completamente em casa. Nem o Bruno se sentiu plenamente à vontade.
Albert apareceu para servir outro prato, mas Annalisa deu-lhe a entender com um olhar e um rápido sinal de cabeça que queriam estar sós.
- Tenho muita vontade de ser feliz, George - disse.
Ele levantou-se, deu a volta à mesa, foi colocar-se atrás dela e acariciou-lhe os braços nus.
- Amo-te, Annalisa - sussurrou-lhe.
- Eu sei - respondeu ela, sentindo-se estremecer ao contacto daquelas mãos quentes que passavam pela sua pele.
- Amo-te desde que te vi descer a escada do avião a guiar os passos do teu filho - confessou-lhe.
Annalisa deixava-se acariciar pelas mãos e pela voz dele e o seu olhar perdia-se no azul profundo da baía, onde deslizavam preguiçosas velas coloridas ao sol do
meio-dia.
- Uma mulher sabe avaliar um olhar e um silêncio - disse. - Sempre conheci os teus sentimentos por mim. És uma presença importante na minha vida. Desejei-te. Talvez
te deseje ainda. Mas não te amo, George. Não posso amar-te.
- Comportas-te como se tivesses jurado fidelidade a alguém. - Sentiu inveja do homem que suscitara nela um amor tão profundo.
- Por favor, George. Deixemos os fantasmas sossegados. - Pegou-lhe numa mão e beijou-a com reconhecimento. - Hoje decidi ser feliz e

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fazer-te feliz. Pelo menos uma vez. - Sentia-se finalmente livre e senhora das suas ações. Annalisa levantou-se.
- Vem - convidou-o.
Caminharam juntos pelo parque, ao longo de um caminho que descia pela colina inclinada em direção à baía. George tinha-lhe rodeado os ombros com um braço e ela tinha
a cabeça apoiada no seu ombro, obtendo com aquele contacto uma agradável sensação de conforto. Havia um pequeno pavilhão ao fundo do parque, cujo lado setentrional
ficava a pique sobre o mar. Aquela pitoresca construção de madeira coberta de hera era o refúgio de Annalisa. Tinha-o decorado ela mesma com um estilo italiano e
refugiava-se ali quando se sentia invadida pelo mau humor e pela melancolia. Era o seu buen retiro, o seu calmo isolamento, o lugar seguro para olhar a sua alma.
Podia escrever cartas ao pai, a madrinha, pensar em Calò.
O pavilhão ao fundo do parque não pertencia à casa dos Brian, era uma propriedade só sua numa terra estrangeira. Poucos metros mais a frente, um portão dava acesso
a uma saída secundária para uma via panorâmica percorrida essencialmente por turistas.
Annalisa ia levar George para o seu pequeno feudo. Para sua casa.

- Hasta mañana, Bruno - disse Don Taylor ao rapaz, que acabava de sair do Cadillac em frente a casa.
- Hasta mañana, Don - gritou Bruno. - Muchas gracias.
- De nada - respondeu o motorista a sorrir, enquanto o via correr para casa, como era seu hábito.
Eram quatro horas da tarde. Don tinha-o ido buscar à escola na Lombard Street, em São Francisco, para o levar a Sausalito. Tinha de regressar rapidamente a Union
Square, ao escritório de mister Brian. O patrão, naquela noite, tinha decidido regressar a casa mais cedo do que o costume. Era uma boa notícia para Don, pois significava
que também ele ia chegar a casa mais cedo e saboreava já a satisfação de um longo serão em família. Mademoiselle Huguette, a velha senhora francesa que tomava conta
de Bruno desde a sua chegada a América, travou-lhe a corrida.
- Bonsoir, Mad.
O diminutivo de mademoiselle tinha-se tornado o nome da senhora.

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Bruno começara a chamar-lhe assim um ano atrás. Havia uma relação muito boa entre os dois.
Bonsoir, mon choux - respondeu ela, avançando à frente dele em direção ao quarto e Bruno para o ajudar a mudar de roupa.
O guião era sempre o mesmo: depois do duche vestia-se, estudava um pouco de piano com Mad, mais para fazer a vontade ao pai do que para satisfazer a sua real necessidade
de música, e depois ia brincar e ver televisão, enquanto esperava para jantar.
De repente, teve uma ideia. Para aquele dia talvez arranjasse um pretexto capaz de alterar o programa, algo que lhe permitisse escapar da aborrecida escravidão do
esquema habitual.
- Tenho de ver a mãe, já - disse, surpreendendo a senhora, que nunca estava suficientemente preparada para travar as suas reações.
- Por favor, Bruno, não me arranjes problemas. - Estava completamente nas mãos do rapaz, que quando se soltava se tornava um terramoto.
- Tenho de comunicar à mãe uma notícia muito importante! - E já descia as escadas numa correria desenfreada.
- Estás com ela depois, Bruno. - A sua voz pouco firme perseguiu-o em vão.
- É só um minuto, Mad - gritou-lhe, saindo para o jardim. - Volto já.
Normalmente, àquela hora encontrava a mãe na piscina e tinha a certeza de não a ir aborrecer, porque a notícia que tinha para lhe dar era realmente excecional. A
professora, na aula de História, tinha falado aos alunos da Itália e em particular da Sicília, referindo-se aos primeiros vestígios fenícios e gregos e mostrando-lhes
imagens sugestivas daquelas antigas civilizações.
- Tu, Bruno, tens muita sorte - disse-lhe a professora. - Em breve vais ter ocasião de ver estes monumentos que em certo sentido te pertencem.
O rapaz corou, sentindo-se no centro das atenções, e gostaria que a mãe estivesse ali para ouvir aquelas palavras. Procurou-a inutilmente na piscina. Entrou no parque
e dirigiu-se ao pavilhão, onde certamente a encontraria. Corria feliz pelos caminhos de erva sobre os quais passavam borboletas multicolores.
A porta do pavilhão estava fechada. Bruno girou a maçaneta chamando pela mãe e parou petrificado com a porta já aberta, sem perceber imediatamente que sentido tinha
aquele emaranhado de corpos nus que se combatiam e se procuravam sobre o grande sofá, na penumbra do pavilhão.

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Depois, quando se apercebeu de que alguma coisa de monstruoso estava a acontecer entre a mãe e o tio George, levou uma mão à boca para reprimir o horror. Chamou
pela mãe, sem que dos seus lábios saísse qualquer som. Naquele momento, os rostos de Annalisa e de George voltaram-se para o sítio onde ele estava e o rapaz viu
nos olhos de ambos o seu mesmo terror.
Annalisa, escudando-se com o vestido que apanhou do chão, levantou-se e gritou o seu nome: - Bruno! - Mas ele já ia a fugir para não a ouvir, para não a ver, porque
ela o tinha irremediavelmente ofendido e ele odiava-a.
Corria em direção à via panorâmica, repleta de turistas. As lágrimas formavam-lhe um véu sobre os olhos, mas ele continuava a correr para não morrer.
Os carros passavam a grande velocidade nos dois sentidos e Bruno conseguiu miraculosamente passar sem parar, atravessou a estrada e entrou num parque cerrado que
não era o seu. Enquanto fugia da sua própria vergonha, pareceu-lhe ouvir a voz da mãe, uma voz cheia de terror e de angústia.
- Bruno, para! - Depois ouviu-se uma estridência aterradora de pneus no asfalto que lhe feriu os ouvidos e, por fim, o silêncio.
Sentou-se debaixo de uma grande árvore e desatou a soluçar.
- Porquê, mãe, porquê? - Conservava nos olhos a nudez obscena do homem e da mulher, aquele emaranhado de membros que se desfizera perante o seu desespero. - Porquê?
- repetiu mais uma vez, ao mesmo tempo que dava murros violentos no chão.

A julgar pela posição do sol, deviam ser mais ou menos sete horas da tarde. Bruno tinha o rosto escondido entre os joelhos quando ouviu um ruído de passos. Decidiu-se
a olhar e viu primeiro os pés, depois as pernas, o tronco e finalmente o rosto de Don. Nunca o tinha visto tão sério, tão sombrio.
- Levanta-te, Bruno - disse-lhe, enquanto lhe estendia a mão. - O teu pai está a tua espera. - E uma vez que teimava em não se mexer, Don ergueu-o e levou-o ao colo
para a villa.
- Não quero voltar para casa - murmurou.
- Andámos há duas horas a tua procura. - Falava quase com dificuldade.

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Bruno não fazia ideia do tempo, sabia apenas que a sua vida tinha mudado e que o sol se tornara negro.
- Estava aqui - murmurou.
- Não ouvias quando chamávamos por ti? - Estava feliz por o ter encontrado e angustiado por aquilo que o esperava.
Bruno negou com um gesto de cabeça.
Quando viu o pai a passear junto à entrada da villa pediu a Don que o pusesse no chão.
- Anda, rapaz - disse Philip. Tinha o olhar vazio e havia um grande cansaço estampado no seu rosto.
- Sim, pai - respondeu mecanicamente.
Entraram no Cadillac. Don sentou-se ao volante e arrancou imediatamente. Desceu a via panorâmica, atravessou a Golden Gate Bridge e entrou na cidade. Ninguém pronunciou
uma palavra.
O carro parou em frente ao Hospital Saint James. Philip não esperou que Don saísse para lhe abrir a porta.
- Anda, meu filho - disse-lhe, ao mesmo tempo que lhe dava a mão. - Temos de ir ver a tua mãe.
- Porque é que ela está no hospital? - perguntou.
- Houve um acidente.
Passaram por corredores brilhantes e rumorosos, entre macas brancas e carrinhos que espalhavam em volta um cheiro a desinfetante.
Um médico alto e loiro de rosto bronzeado foi ao encontro deles.
- Está aqui, mister Brian. - Indicou uma porta fechada.
Entraram num pequeno quarto sem adornos, iluminado por uma luz ofuscante. Philip pôs uma mão no ombro de Bruno e apertou-lho até lhe doer. Numa cama branca de hospital,
tapada até ao queixo com um cândido lençol, jazia o corpo de Annalisa.
- Tens de ser forte - disse Philip.
- A mãe está mal? - perguntou ele, sem emoção.
- A tua mãe está morta - anunciou brutalmente o pai, como se receasse que o filho não acreditasse.
Bruno olhou para a mãe imóvel naquela cama branca de hospital e achou que ela estava a dormir.
- Está a descansar - replicou, negando a afirmação do pai.

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- Está morta, Bruno - foi a confirmação irrevogável. - A tua mãe está morta. É esta a realidade. Se quiseres, podes dar-lhe um beijo.
Bruno abanou a cabeça em sinal de negação e ficou imóvel, colado ao pavimento brilhante do quarto. Olhou para o pai, depois para a mãe na cama. Poucas horas antes
estava viva, tinha-a visto com os seus olhos: linda nua, e o tio George abraçava-a e estava nu também. Certamente mais cedo ou mais tarde alguma coisa iria acontecer
dentro de si, que de súbito ficou suspenso, mas naquele momento apenas conseguiu pensar: "Porquê, mãe? Porquê?"

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XADREZ

Um guerreiro que chora

Bruno contemplava o corpo da doce Mahary e recordava o da mãe à luz violenta do pequeno quarto do Hospital Saint James de São Francisco. As duas imagens e as duas
figuras sobrepunham-se no jogo de uma tormentosa ilusão até que regressou com mais força a realidade da tragédia atual.
Aproximou-se de Mahary e beijou-a na testa pela última vez.
- Tens de partir, Bruno - surpreendeu-o Aschwinda, que tinha entrado em silêncio no quarto.
O Barão não se mexeu.
- O corpo da Mahary - explicou Aschwinda com calma - vai ser entregue aos cuidados da grande Nzambi. Ficará protegido no ventre da Mãe-Terra. - A dor não podia ser
mais visível na sua face já sulcada de muitas rugas.
- Claro, a Mãe-Terra. - Bruno imaginava a grandiosa cerimónia fúnebre acentuada pelos prantos do povo e pelo sombrio rufar dos tambores.
- Não quero que te matem a ti também - declarou com uma voz firme. - E quero que o meu neto viva. - O tom de voz era de tal forma enérgico que fazia pensar que tinha
recuperado o uso das cordas vocais.
Bruno olhou para Aschwinda e disse: - Preocupas-te demasiado connosco. - Lá fora continuava o cântico de morte entoado pelos indígenas.
- Vocês são tudo aquilo que me resta. - Passou uma mão pela testa e retirou-a coberta de suor.
Regressaram ao aposento de decoração quase franciscana onde se tinha desenrolado o seu primeiro encontro e sentaram-se no sofá de almofadas. Nas jarras as magnólias
exalavam um perfume intenso. Na mesinha baixa de cana entrelaçada um criado pousou um bule e uma garrafa de bourbon.

253

- Eu falo e tu não me ouves - censurou-o Aschwinda.
- Eu ouço-te - protestou Bruno. - Mas não ouço a tua apreensão. Ouço o guerreiro, não o pai.
O príncipe zulu fez um gesto como que para libertar o campo de utopias.
- Tens de regressar à Europa e esquecer que existe este ponto insignificante no mapa. - Falava o desalento do homem irremediavelmente atingido pela dor.
- Kwammang-a - replicou Bruno -, o esposo da rainha dos mortos, não poderá acolher a princesa Mahary se ela não for vingada primeiro.
- O assassino foi morto. - Queria, passando por cima dos seus princípios, que aquela espiral de ódio acabasse.
- Aquele foi o dedo que premiu o gatilho - esclareceu Bruno. - A mente que deu a ordem para matar estava longe.
- Mandei destituir o chefe da polícia - disse Aschwinda. - Vai ser processado.
- Isso não vai servir para trazer a Mahary de regresso à vida. - Bruno acendeu um cigarro, aspirou profundamente e sentiu o fumo acre queimar-lhe a garganta e os
brônquios, mas experimentou uma sensação de alívio momentâneo.
- Nem sequer a tua vingança a vai trazer de regresso à vida. - Era uma conversa que nunca atingiria um ponto de consenso.
- Vou regressar à Europa - prometeu Bruno.
- Vais levar o Sunny? - perguntou Aschwinda.
- Vou levar o Sunny, mas não imediatamente. - Cruzou as pernas com a naturalidade que lhe era habitual.
- Regressa à Europa e chega a um acordo. - A dor pela morte da filha e o medo de perder o neto tinham-no tornado mais vulnerável. A doença não lhe permitia fazer
planos a longo prazo.
A experiência tinha ensinado a Bruno a inutilidade do espanto. Também a resignação do velho zulu, que não temia pela sua própria vida, mas pela dele e pela do neto,
não o apanhou desprevenido.
- Sossega, Aschwinda. Não tenho a minima intenção de me deixar matar nem de pôr em perigo a vida de Sunny. - Falava com toda a ternura e compreensão de que era capaz
àquele velho desfeito pela dor.
- O Choo Awaba vai proteger o teu filho enquanto estiveres longe.

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O príncipe recuperara a antiga honra e estava grato a Bruno por o ter ajudado a reencontrar o seu orgulho.
O Barão sorriu e bebeu um trago de bourbon.
- Vou deixar o meu avião no aeroporto de Umpote - explicou, apontando o indicador da mão direita sobre a mesinha como se ali estivesse um mapa com um plano preciso
das suas deslocações.
- Como é que vais partir? - Aschwinda parecia mais animado com a conversa. Serviu-se de chá.
- Esta noite vou entrar na floresta e passo a fronteira do Natal. - O dedo indicava o percurso. - Vou percorrer em sentido inverso o caminho do killer. No Natal
encontrarei amigos que me levem a Durban. Dali apanho um voo regular para Joanesburgo. De Joanesburgo para Roma, de Roma para Palermo. Preciso que toda a gente pense
que estou aqui durante pelo menos um mês.
- Eu vou fazer todos os possíveis para que esse teu desejo seja realizado. - Era difícil saber onde o velho Aschwinda ia buscar a vitalidade e a energia que lhe
brilhavam no olhar naquele momento.
- Também esperava isso de ti, pai. - Bruno sorriu-lhe.
- Entretanto, vão continuar a procurar-te. - Voltava a apreensão.
- É isso que eu quero. - Os cânticos de morte calaram-se e por um instante ouviu-se a voz solene do silêncio.
- E se te encontrarem? - perguntou.
- Não, Aschwinda - garantiu Bruno. - Desta vez vou ser eu a encontrá-los a eles. Tens a minha palavra. E tu sabes que eu nunca a dou em vão.

Bruno e o pequeno Sunny despediram-se no quarto do menino. Também Choo Awaba, o guerreiro a quem o herdeiro dos Aschwinda tinha sido confiado desde que nascera,
estava presente. Chamava-se Choo Awaba pela sua maneira de ressonar e era um negro gigantesco de sorriso bondoso e voz meiga.
Sunny tinha os olhos inchados e vermelhos, mas não chorava.
- Estás cansado, meu rapaz - disse Bruno.
- Os guerreiros nunca estão cansados - replicou com firmeza.
Parecia indestrutível e Bruno olhou para ele com orgulho.
- Quando os guerreiros são meninos, as vezes ficam cansados - tentou convencê-lo.
255

- Eu sou um menino africano, pai - esclareceu. - Sou um príncipe zulu.
- Foste muito corajoso - elogiou-o.
- Sim, pai - disse, enquanto os lábios lhe tremiam.
- Sabes que tenho de me ir embora? - Esperava uma reação qualquer.
- Sei. - Estava diante do pai, imóvel e altivo.
- Vais ter de apoiar o avô. - Tentou envolvê-lo com um pedido de participação.
- Pois vou - prometeu -, podes contar comigo.
Queria falar-lhe da mãe, devia falar-lhe da mãe para que chorasse, ou a sua dor acabaria por esmagá-lo.
- Vais ter de rezar pela mãe - recomendou-lhe.
- Porque é que aquele homem a matou? - perguntou com um tom frio e impessoal.
- Enganou-se. Queria matar-me a mim. - Decididamente, não conseguia demovê-lo.
- Porque é que te queria matar? - interrogou.
- Porque assim o príncipe Aschwinda ficava sozinho - respondeu Bruno. - E contra um homem só, isolado, velho e doente, seria mais fácil vencer.
- O que é que querem de nós os nossos inimigos?
- Querem explorar as minas do Burhwana, querem destruir aquilo que o teu avô Aschwinda Umpote construiu para o seu povo.
- Mas tu vais defendê-lo, não vais? - Queria uma promessa daquele pai que tanto amava e estimava.
- Vamos defendê-lo juntos, Sunny.
- Eu fico à tua espera. - Tinha a voz quebrada pela comoção. - Pai?
- Sim, Sunny.
- O que é que acontece se um guerreiro chorar?
- Nada. Havia um grande guerreiro, talvez o maior guerreiro branco, que se chamava Aquiles. Quando o inimigo matou o seu melhor amigo, ele chorou. Mas não aconteceu
nada. Todos continuaram a considerá-lo um valoroso guerreiro.
- Obrigado, pai. - Sunny abraçou-o com todas as suas forças e rompeu em soluços.

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A fuga do Burhwana

O gigante de cabelos de prata que ia ao encontro dele oscilante, recortado contra o monte Pellegrino, sobre o asfalto do aeroporto de Punta Raisi, parecia uma miragem.
O termómetro marcava trinta e cinco graus a sombra.
Bruno desceu a escada do avião proveniente de Roma e aproximou-se do homem. A grande cabeça de cabelos brancos, que tinham sido loiros na juventude, sobrepôs-se
a do Barão quando os dois homens se abraçaram por um longuíssimo instante.
- Estou feliz por voltar a ver-te, Calò - disse Bruno. Sentia-se verdadeiramente a salvo e pronto para recomeçar.
- Vamos para casa - disse Calò.
Havia gente A. espera dos poucos passageiros.
- Estamos em segurança? - perguntou o Barão, referindo-se aquela pequena multidão.
- Controlados um a um - tranquilizou-o o gigante.
Bruno fez um gesto de assentimento e seguiu-o em direção aquela espécie de hangar provisório que é o aeroporto de Palermo.
- Em casa. - O sol reverberava inexorável sobre o asfalto, do qual subia um cheiro a querosene e borracha queimada.
- Está tudo organizado, para já. - O altifalante anunciou uma partida para Milão. Um DC-9 ligou os motores e começou a rodar na pista.
O diretor do aeroporto, um homem alto e magro com cara de diplomata, apertou-lhe a mão e precedeu-o até ao escritório.
- Bem-vindo, Barão.
- O Barão está com pressa - avisou Calò.

257

- Obrigado - disse Bruno.
- É nosso dever. - Fez uma vénia, abrindo respeitosamente os braços.
O funcionário tratou de lhe fazer chegar imediatamente a bagagem.

Bruno instalou-se no Fiat 132 azul ao lado de Calò que se tinha sentado ao volante. No banco posterior estavam dois jovens elegantemente vestidos com o belo rosto
inexpressivo dos atores de séries policiais: cabeleira farta, músculos salientes e reflexos prontos. Por baixo da axila traziam uma Magnum-Special e saberiam como
usá-la, se fosse preciso. Bruno olhava fixamente à sua frente, aparentemente perdido no vazio, mas de facto admirava as cores da sua terra, inalteradas ao longo
dos séculos, apesar do desastre que, sobretudo na zona costeira, estava a ser levado a cabo pela especulação imobiliária.
Para lá dos rails de proteção corriam campos e muros baixos de pedra salpicados de grandes e espinhosas figueiras-da-índia e cobertos de delicadas buganvílias. Nos
sítios onde tinha crescido trevo na primavera o terreno estava amarelo e sobre ele notava-se uma espécie de poeira dourada. Parecia-lhe sentir o cheiro sensual das
flores das laranjeiras que se perfilavam no horizonte, na cintilação ofuscante daquela manhã de agosto.
Dentro do carro, o ar condicionado criava uma incomodativa e pouco natural sensação de frescura.
- De regresso a casa, Calò - disse o Barão. Voltou a ver-se menino quando, depois da morte da mãe, regressara à Sicília com o gigante normando.
- De regresso a casa, rapaz - retorquiu Calò. Eram os dois únicos aspetos reconfortantes naquele momento problemático: a presença de Calò e a perspetiva de regressar
a casa. Bruno falou-lhe de Mahary, do pequeno Sunny, do velho Aschwinda.
- É uma coisa terrível, Bruno - limitou-se a dizer. - Sinto muito. Que sentido fazia conversar mais sobre o assunto se duas palavras bastavam. Calò nunca estivera
de acordo com aquele casamento. Mas isso era outra conversa.
- Não devia ter acabado assim. - O Barão acendeu um cigarro com um isqueiro automático. "Podia ter corrido pior", pensou Calò. - E o rapaz? - perguntou.

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- Vai voltar quando estiver tudo acabado. - Era uma promessa que exigia muito.
Calò observava-o pelo canto do olho. Seguiam a toda a velocidade pela autoestrada de Enna, em direção ao coração da Sicília.
- Os nossos antepassados ensinaram-nos uma coisa: o que está escrito é para cumprir - disse. - E não se pode fazer muito para mudar o curso do destino. Se assim
deve ser, assim será.
- Não esperes que o destino castigue aquele que me tentou matar disse Bruno, irónico.
- Isso não. - Os traços de Calò endureceram e no seu olhar intuiu-se uma decisão. - O destino não endireita o que está mal. Os nossos antepassados ensinaram-nos
a rezar como se tudo dependesse de Deus e a agir como se tudo dependesse de nós.
Bruno tinha reencontrado o seu conselheiro: as máximas de Calò infundiam-lhe uma tranquila segurança.
- Foi uma coisa muito feia. - Recordava a bela princesa de olhar de âmbar na erva molhada pelo seu sangue por debaixo do embondeiro.
- Eu sei. - E com isto o homem considerou o assunto encerrado. Sabia da dor de Bruno, mas também sabia uma coisa que o Barão ignorava: a sua vida não acabava ali
e voltaria a haver outros momentos mágicos para ele.
Os dois seguranças permaneciam imóveis como estátuas de cera. Como se nem respirassem. Parecia que não tinham boca para falar nem orelhas para ouvir.
- Tivemos três dias de siroco - começou Calò a contar. - Até as galinhas deixaram de pôr. Bruno recordou a sua infância, quando se fechavam todas as portadas do
palácio e as pessoas se abrigavam na "sala do siroco", no centro do palácio Sajeva, uns ao lado dos outros e assustados à espera que o bafo escaldante da terra acalmasse.
- E os nossos hóspedes? - perguntou, mudando de assunto.
- Estão cá todos - respondeu prontamente. A tua espera.
- O Brancati também? - Esmagou a ponta do cigarro no cinzeiro.
- Está o Brancati - começou a enumerar -, mister Hachette e também está aquele outro advogado de Washington.
- E a Karin? - A recordação dos seus olhos azul-violeta e dos seus cabelos flamejantes explodiu-lhe na mente como um clarão.

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- À tua espera - disse, voltando ligeiramente a cabeça para ele. Bruno não manifestou nenhuma reação.
- E aquela rapariga... - quis saber -, a vítima do renegado?
- A Rosalia? - sorriu Calò. - Também cá está. Uma rapariga formidável. Percebeu imediatamente a situação. Mas não quis afastar-se da Karin.
- E ele onde está? - Teve de se esforçar para não trair uma certa emoção.
A referência a Omar Achmal foi imediatamente captada por Calò.
- Em Capri. - Calò falava com repugnância. - Continua a oferecer refeições e joias a bordo do Soraya. As pessoas vão e vêm para lhe prestar homenagem. Ele ainda
não foi a terra. - Evitou falar das mulheres que se sucediam no barco para satisfazer os seus desejos.
O carro seguia a cento e sessenta quilómetros por hora pela autoestrada quase deserta entre colinas amarelecidas pelo sol. Árvores sequiosas pareciam implorar a
chuva a um céu em fogo.
Nos lábios de Bruno surgiu um sorriso cruel que Calò conhecia bem. - Omar Achmal faz bem em se divertir - disse com calma, como se falasse do tempo. - É um direito
que lhe assiste. Já é um homem morto.
Agora Calò reconhecia-o.

Piazza Armerina ali estava, sob um céu majestoso, para lhe recordar todo o bem e todo o mal do seu passado. Sentiu alegria, comoção, saudade.
Naquelas terras os barões di Monreale tinham exercido o seu poder e ele, o americano de Piazza, conhecia de cor a propriedade atravessada pelo rio Disueri que se
estendia até à planície de Gela. Ao longo dos séculos, cereais, azeitonas, fruta e mais alguma magra produção arrancada A terra com o suor e com o sangue dos camponeses
tinham sido os únicos recursos; depois, para aumentar o rendimento das propriedades, tinham-se acrescentado as minas de enxofre, as mais ricas da Sicília e, nos
últimos anos, os eucaliptos.
Os barões di Monreale tinham largamente contribuído para a construção de grandiosos palácios barrocos e para a edificação da igreja, coração da cidade, a monumental
beleza e a grande esperança de que as pessoas condenadas ao cansaço e à indigência precisavam para não enlouquecer.

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O carro blindado percorreu a estrada principal, àquela hora deserta, virou à direita e entrou numa alameda de saibro que conduzia ao parque do palácio rodeado por
um muro alto. Acedia-se ao edifício através de um gigantesco portão de ferro forjado sustido por colunas altas sobre as quais se impunham uns enormes vasos de pedra
em forma de cálice, tratados por excelentes jardineiros, dos quais transbordava viçoso o trevo, o mesmo trevo que dominava o brasão da família.
Com o canto das cigarras e o zumbido dos insetos sob um sol impiedoso, o lugar parecia abandonado, mas a chegada do Barão tinha sido anunciada e centenas de olhos
velavam pela sua segurança. Bruno viu os agaves, os oleandros, as sebes de murta e a fonte barroca na qual uma infinidade de jatos de água produzia um rumor musical
inalterado através dos séculos. Respirou os cheiros já um pouco diluídos que provinham do denso jardim. Sentiu-se a salvo. E quando se fecharam atrás de si os pesados
portões de ferro, respirou de alívio.

A guerra tinha começado. O Palácio Sajeva era o quartel-general de onde Bruno ia desferir o contra-ataque. Saiu do carro e com um passo ágil e seguro subiu os seis
degraus de pedra que davam acesso ao grande vestíbulo sobre o qual se abriam as portas de carvalho, portas estas que conduziam aos salões do rés do chão e à escadaria
que levava ao andar superior. Calò sorriu-lhe, como quem diz: "Estás a ver como eu te trouxe para casa?" O contacto com as raízes revigorava-o.
- Avisa os nossos hóspedes de que os espero daqui a meia hora no escritório do avô. - Olhou em volta: os dois guarda-costas tinham-se volatilizado. Subiu ao quarto
que tinha sido do velho barão.
Fechou a porta maciça atrás de si, encostou-se àquela madeira antiga, semicerrou os olhos e respirou o cheiro bom e fresco daquele aposento grandioso que parecia
construído para inquietantes paixões e pensamentos profundos.
Na parede do fundo havia uma cama enorme, escura, maciça, com quatro colunas retorcidas que sustinham um pesado dossel. As paredes e o teto estavam recobertos de
estuques dourados adornados de elegantes volutas barrocas que o tempo tingira de vermelho.
Bruno atravessou o quarto e dirigiu-se a uma portinha disfarçada na parede de brocado escuro; empurrou-a e um mecanismo de mola

261

provocou a sua abertura. Entrou na casa de banho restaurada pelo avô em 1920 e que desde então se conservara inalterada. A banheira em ónix verde-claro estava pousada
sobre dois imaculados cisnes de esmalte de bico dourado. O lavatório era uma concha de ónix e as torneiras eram pequenos cisnes que deitavam água pelo bico. As paredes
e o chão de mosaico reproduziam algas lacustres e flores de lótus. A tonalidade dominante era o dourado.

Era a casa de banho mais bonita que Bruno alguma vez vira e tinha a certeza de que no mundo não havia igual, não tanto pelo luxo, mas pelo gosto requintado que o
velho barão tinha conseguido transmitir-lhe.
Bruno despiu-se e atirou para o chão a roupa que trazia vestida desde o momento da sua partida de Umpote. Alguém tinha tratado de encher a banheira com água ligeiramente
tépida que um pacote de aveia tornara leitosa. Meteu-se lá dentro e experimentou uma difusa sensação de bem-estar. Fechou os olhos para melhor saborear o prazer
daquele banho tonificante e deu por si a pensar que apenas dez dias antes tinha chegado a Saint-Tropez com a perspetiva de umas férias agradáveis.

Naquele curto espaço de tempo tinha acontecido de tudo: desde a morte de Mahary à fuga do Burhwana, que durara dois dias e duas noites. Karin tinha-lhe confessado
o seu amor e agora que a doce princesa de olhar de âmbar o tinha deixado para sempre experimentava um doloroso sentimento de culpa.
Alguém atacava o Burhwana para lançar no caos uma administração difícil e se apoderar das minas de ouro e diamantes de Aschwinda. E, por fim, para rematar aquele
plano, queriam a sua cabeça. Não dormia há quarenta e oito horas e num tempo muito breve deveria concretizar uma estratégia eficaz. Saiu da água, revigorado e lúcido:
no quarto de vestir encontrou roupa fresca e bem passada. Regressou ao quarto, acendeu um cigarro, sentou-se numa poltrona, pegou no telefone e marcou o número para
as chamadas internacionais.
- Internacional - grasnou uma voz.
- Queria falar com Aldo Paoletti, por favor - disse Bruno, com um tom firme.

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- Vou passar. - A voz desconhecida e impessoal tornou-se participativa, quase simpática.
- Fala Paoletti - apresentou-se o novo interlocutor, com uma inconfundível pronúncia Siciliana só ligeiramente limada pela rotina profissional.
- É Bruno Brian - disse ele. Era um funcionário dos telefones que o Barão conhecia bem. A sua eficiência era proverbial.
- Preciso de falar imediatamente com Abu Dhabi.
- Com quem pretende comunicar?
- Com o sheik Admad bin Yussef.
- E se não o encontrar?
- Deixe-lhe o recado de que Bruno Brian precisa de entrar em contacto com ele. É muito urgente.
- Conte comigo.
Desligou. Sabia que dentro de dez minutos estaria a falar com o seu antigo colega da universidade de Berkeley.

263

Admad Bin Yussef

Um velho de barba tão branca como o amplo disdash que vestia entrou na tenda principesca onde seis homens aninhados num tapete macio, de desenhos singelos e cores
ténues, discutiam pacatamente. Vestiam todos a imaculada indumentária tradicional fechada no pescoço e só o kafie, atado na cabeça de diferentes maneiras, os distinguia.
Bebiam chá de jasmim e pareceram não dar grande importância à chegada do velho.
O homem aproximou-se do mais jovem dos dignitários reunidos e falou-lhe em voz baixa.
- Sheik Youssef - anunciou -, o teu amigo americano Bruno Brian está a telefonar-te de Itália.
O sheik murmurou uma frase de desculpa, levantou-se e saiu da tenda. Era alto e forte, tinha um sorriso simpático por baixo do bigode inclinado, o queixo coberto
de barba, um firme nariz aquilino, bem proporcionado, e olhos grandes e luminosos coroados por umas espessas sobrancelhas. A sua fisionomia irónica difundia lealdade
e simpatia. Do kafie, com um padrão de folhas vermelhas em fundo branco, escapava uma madeixa de cabelos grisalhos.
Yussef aproximou-se do seu Range Rover ladeado por dois guarda-costas armados de espingardas metralhadoras. Ao lado do condutor havia um radiotelefone com o auscultador
levantado. O aparelho estava ligado via satélite com a Europa e com os Estados Unidos. O jovem príncipe árabe sentou-se no carro e sorriu como se estivesse na presença
aquele interlocutor distante.
- Estou a ouvir, meu amigo - disse. Por mais ninguém no mundo,

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nem sequer pela sua lindíssima mulher, a sheik Musa, Admad Yussef interromperia o encontro com os seus velhos chefes de tribo.
- Diz-me que a tua mulher e os teus filhos estão bem - começou Bruno - e passo imediatamente ao assunto. - Dispunha-se a abordar problemas graves e recordava anos
longínquos e despreocupados.
- Estamos todos bem. Imagina que às vezes arranjamos tempo para falar de ti. - Sabia que o telefonema do amigo tinha a ver com notícias importantes.
- Tenho de te contar uma história, Yussef. - Escolhera uma linguagem de salão para o informar sobre os últimos acontecimentos.
- As bisbilhotices do smart-set deixam-me em êxtase. - Perguntou a si mesmo se o amigo teria tomado as precauções necessárias e concluiu que Bruno era mais cuidadoso
do que um árabe.
Desde que, em 1976, com apenas 32 anos, se tormara o colaborador mais próximo do ministro do Petróleo da União dos Emirados, Yussef raramente se encontrava com o
Barão, mas a amizade dos tempos de Berkeley, quando partilhavam o mesmo quarto, tinha-se conservado intacta. Amigo do Ocidente, onde tinha vivido durante muito tempo
e onde confluíam muitos dos seus negócios, estava agora ligado às fontes petrolíferas sem que aquele vínculo o afastasse das suas origens e das tradições da sua
gente. Vivia em palácios luxuosos de cimento armado e vidro com a alma de um nómada e o coração na tenda negra dos beduínos do deserto para onde o seu pai, quando
era criança, o mandara viver durante dois anos.
O grande sheik Zuyad queria que o filho assimilasse, vivendo-a, a cultura autêntica e a alegria do seu povo. Queria que fosse educado no respeito dos velhos e das
tradições, com o orgulho da raça e a humildade do trabalho.
Yussef, ao tornar-se adulto, conhecera o bem e o mal do Oriente e do Ocidente, mas sentia-se melhor debaixo das tendas do deserto do que num palácio com piscina.
A necessidade de conhecimento, que o tinha levado a frequentar empenhadamente a escola corânica, levava-o também a dialogar com os nómadas que falavam a língua dos
pais, exprimiam os princípios de uma sabedoria imortal, da qual sentia necessidade, sobretudo no momento em que o efémero bem-estar do petróleo parecia assumir um
significado dominante e não satisfazia as necessidades espirituais do seu povo perturbado pelo consumismo. Alguns meses atrás, quando se encontrara em Washington
com Bruno por ocasião de uma conferência

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sobre petróleo, tinha-lhe confessado: - Se dependesse de mim, fechava a torneira do ouro negro. Gostava de voltar aos tempos em que a minha gente não sabia que debaixo
da areia havia riqueza. A civilização do petróleo um dia vai acabar. O que é que vai restar aos homens do deserto senão as necessidades inventadas pela outra civilização?
Bruno escutara as dúvidas e as perplexidades do amigo e julgava entender o seu problema, mas naquele momento em que de uma pequena cidade dentro de uma grande ilha
do Mediterrâneo pedia a sua ajuda não era tocado pela filosofia de Yussef.
O Barão expunha-lhe num tom objetivo e aparentemente superficial o problema gravíssimo que o afligia.
- O meu amigo - concluiu Yussef - precisa de uma ajuda concreta.
- E imediata.
- Não vai ser uma intervenção fácil.
- As coisas simples consigo eu fazê-las sozinho.
- A adulação não faz mal a ninguém.
- A sensatez não precisa de ser adulada.
- Acho que o posso ajudar - disse o sheik, após uma pausa de reflexão. É uma questão muito urgente.
- Prometo-te que farei tudo o que for possível.
- Tenho a certeza de que vais fazer alguma coisa mais.
- Alá é grande! - concluiu o sheik.

Pousou o auscultador, saiu do Rover enquanto os guardas lhe faziam uma vénia e regressou a. tenda.
- Um amigo muito querido do meu coração - disse, ao mesmo tempo que se sentava com os sábios das tribos do deserto - interrompeu a nossa reunião. Peço-vos desculpa.
Os outros assentiram com um gesto de cabeça. Um a um, levantaram-se e aproximaram-se de Yussef, que os beijou duas vezes no rosto em sinal de despedida. Cada chefe,
antes de abandonar a tenda, depositou aos pés do príncipe uma oferenda: pérolas ou joias.
- O povo agradece-te - disseram, com uma vénia. - Tu és a nossa luz e a nossa vida. Antes de ti, o deserto tinha uma voz frágil.
Quando saíram todos do firqan entrou Mandj, o velho da barba

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branca que tinha anunciado o telefonema de Bruno, e acocorou-se diante do jovem sheik. Era um velho de expressão calma e severa que esperava serenamente o fim dos
seus dias, mas os olhos brilhantes e profundos continuavam a ver muito longe. Yussef considerava-o um mestre e tinha por ele uma devoção filial.
- Podes falar, se quiseres - disse o velho, sem atenuar a sua expressão dolorosa. Parecia que tinha tomado para si todos os males do mundo e que os vivia na primeira
pessoa.
Admad Yussef agradeceu-lhe com um sorriso.
- É uma longa história. - Tentava fazer-se perdoar por aquele acréscimo de atenção. - É uma história complicada.
- Não há histórias longas e complicadas - replicou Mandj. - Há apenas histórias.
O sheik falou então de Bruno, daquela amizade nascida e consolidada nos anos de faculdade, do Burhwana, da IBB, da morte de Mahary, do árabe renegado.
- Nós não temos nada contra Omar Achmal - objetou o velho, observando-o com um ar resoluto.
- Se um homem atinge o teu amigo, tu tens o dever de intervir - replicou humildemente Yussef.
- A nós não nos incomoda nada - observou, seguindo o fio do seu raciocínio pessoal. A grande tenda filtrava o calor do deserto e os dois homens gozavam a frescura
daquela atmosfera repousante.
- Provavelmente nem sequer nos vai incomodar no futuro. - Mandj tergiversava, não para o dissuadir, mas para o fazer entender que estava prestes a deixar-se envolver
numa situação difícil.
- É demasiado esperto para não saber que os seus tráficos não devem interferir com os nossos interesses. - Yussef olhou para o velho com um ar interrogativo.
- E nós não temos nenhum motivo para decretar o seu fim. - Mais do que uma sentença, era um convite à reflexão.
Um servo paquistanês entrou no firqan e levou-lhes chá de menta. Silenciosamente, serviu a infusão em copos de tamanho médio debruados a ouro que pousou diante dos
dois homens. Yussef e o velho saborearam aquela bebida aromática.

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- O renegado está a tentar destruir o meu amigo - continuou o sheik. - Matou-lhe a mulher. Comprometeu os seus interesses.
- O homem generoso ajuda sempre o amigo em dificuldades - observou Mandj. - Mas o homem sensato tenta fazer coincidir o interesse do amigo com o seu próprio interesse.
Quando é possível. Era uma observação sensata que o jovem Yussef devia tomar em consideração.
- O Omar é a marioneta dos russos. É amigo dos líbios e dos cubanos. Perscrutou o velho para lhe captar uma eventual reação, que não teve lugar.
- São muitos os amigos e as marionetas daquelas potências. - Continuava a beber o chá em pequenos goles.
- Fomenta revoluções, fornece armas e pretextos aos inimigos do Ocidente. - Por muito que tentasse, não conseguia manter o sereno distanciamento do velho.
- Queres dizer que temos mais conveniência em manter boas relações com os países da área ocidental do que com os da linha soviética? - As posições começavam a aproximar-se
e Yussef achou que tinha vislumbrado uma saída.
- Os nossos filhos estudam nas universidades da América e da Europa. - A calma da sua voz era apenas aparente.
- É a minha aprovação que queres? - perguntou subitamente Mandj.
- E um bom conselho - disse humildemente.
- Que Alá te proteja. - Nos lábios do velho aflorou um sorriso que era a forma mais visível para lhe exprimir todo o afeto que sentia por ele. Os dois homens levantaram-se
e beijaram-se duas vezes na face. O encontro estava concluído. O destino do renegado estava marcado. A forma e os tempos da operação eram tarefa de Yussef, a partir
do momento em que tinha obtido a aprovação de Mandj.

Admad bin Yussef conduziu ele mesmo o seu Rover em direção a Abu Dhabi. Os três guarda-costas iam sentados no banco traseiro. Em pouco mais de uma hora deixou atrás
de si o deserto dourado, sobre o qual começavam a alongar-se as sombras da noite, e chegou à periferia da mais rica cidade do Golfo Pérsico.
Pensou mais uma vez em Bruno, naquele primeiro encontro que remontava ao início dos anos 60, no Campus da Berkeley University, onde

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ambos frequentavam o curso de Economia. Eram tempos difíceis para Admad bin Yussef. Bruno, pelo contrário, estava instalado num grande apartamento onde havia uma
empregada mexicana que tratava de tudo e um gigante italiano que velava assiduamente pela sua segurança.
Mais do que uma vez Yussef fora hóspede de Bruno e quando o cheque mensal tardava o amigo italo-americano recebia-o em casa como um irmão. Estavam unidos por uma
forma idêntica de ver a honra e a amizade, mas dividia-os uma maneira diferente de conceber a relação homem-mulher.
O estudante árabe, de modos requintados e sóbrios, sentia-se embaraçado diante de uma presença feminina. Desejava as mulheres, mas quando olhavam para ele baixava
os olhos, suscitando desconfianças e pensamentos ambíguos. Bruno era a agressividade, Yussef a discrição.
- Se eu não te conhecesse - provocava-o o Barão -, duvidava da tua virilidade.
Yussef fitava-o com os seus grandes olhos negros velados por longas pestanas.
- Tu não podes entender - tentava explicar-lhe. - Não podes entender o embaraço e a desilusão de um árabe diante de uma mulher ocidental. Gostariam de ser aquilo
que parecem, mas nunca parecem aquilo que são. Falta-lhes o fascínio subtil que esconde todos os mistérios. O olhar delas é nu, o pudor sem véus. As nossas mulheres,
mesmo quando se nos oferecem completamente, reservam uma alma secreta onde só em certos instantes é possível ler a delicadeza de uma inesgotável feminilidade.
Às recordações do passado sobrepôs-se a imagem suave de Musa, a misteriosa, a evanescente sheik Musa, a sua doce esposa, a mãe dos seus três filhos. Carregou com
o pé no acelerador para abreviar o tempo de espera. Estava longe dela há uma semana e o sangue vigoroso pulsava-lhe nas têmporas, ao mesmo tempo que um arrepio lhe
percorria a espinha.
Sentia falta do seu perfume, do tilintar coquete das suas joias, do rumor dos seus vestidos de seda, da macieza da sua pele sob os seus dedos. As luzes da cidade
desafiavam o crepúsculo incipiente. No seu regresso da Califórnia, com uma licenciatura em Economia, Abu Dhabi era uma aldeia que não tinha sequer uma rua asfaltada.
Agora achava-a muito semelhante a Los Angeles, com certos aspetos que lhe faziam lembrar algumas das cidades europeias que conhecera: Cannes e Nice.
Abu Dhabi, meta de turistas à procura de aventuras exóticas, tinha

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ultrapassado os cem mil habitantes e os beduínos do deserto, os pescadores e os piratas do Golfo tinham-se ocidentalizado, viajavam de automóvel e viviam em casas
confortáveis onde os objetos antigos e essenciais tinham sido substituídos pelos modernos eletrodomésticos numa profusão de televisores e frigoríficos. No deserto
batido pelo vento e sulcado pelos efémeros caminhos das caravanas havia oleodutos monumentais que testemunhavam a nova civilização portadora de poder e de riqueza.
O petróleo que esguichava imparável das profundezas daquele dourado mar de areia provinha das maiores jazidas do mundo e era da melhor qualidade. O ouro negro tinha
transformado o rosto da sua terra; ruas e moradias semelhantes às de São Francisco, ancoradouros como os de Nova Iorque, siderurgias comparáveis As monstruosas instalações
alemãs, aeroportos que não tinham nada a invejar aos americanos, joalharias que ofuscavam o fausto da Tiffany.
O amigo que tantas vezes o tinha fraternalmente ajudado, quando a opulência estava ainda escondida debaixo da areia, o companheiro que Yussef tantas vezes invejara,
pedia agora a sua ajuda. E Yussef iria usar todo o seu poder para lhe resolver o problema. Ao entrar no portão do palácio foi cumprimentado pelos guardas. Saiu do
carro, entrou no seu pavilhão, foi até ao escritório e sentou-se à secretária. Um criado fez uma vénia profunda e serviu-lhe um café com cardamomo. Yussef disse-lhe
com um gesto que desejava ficar só. Ligou diretamente um número de Washington. Atendeu uma voz de mulher a que o satélite conferia um toque metálico, tornando-a
oscilante como um eco.
- Passe-me o senador George Brian - disse com decisão.
- Quem deseja falar? - perguntou a zelosa secretária.
- Menina, não me faça perder tempo - retorquiu, sabe perfeitamente quem eu sou. - Yussef detestava a loquacidade telefónica. Por outro lado, os seus interlocutores
estavam na mesma situação. Por isso usavam frases convencionais que só os interessados eram capazes de compreender.
Alguns segundos de zumbidos astrais, depois a voz forte e clara de George Brian.
- Salve! - cumprimentou-o. - Passa-se alguma coisa?
- É verdade. O rapaz está com alguns problemas.
- Pois - observou George Brian, com uma voz diferente. O rapaz era Bruno, o sobrinho. E naquele instante voltou a vê-lo. Recordou Annalisa, o seu trágico fim, o
seu amor violento, a pele que sabia a sol e a musgo.

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- Podemos ajudá-lo? - Yussef jogava aquele jogo subtil com uma paciência de árabe.
- Julgo que conheço a razão desse incómodo.
George sabia da entrada do renegado nos centros nevrálgicos da IBB mas não tinha podido fazer nada para impedir que Omar Achmal pusesse Bruno numa situação difícil.
A sua influência naquele setor, com o advento da administração Reagan, tinha-se reduzido muito. Para além do mais, tudo aquilo que tinha a dizer já o tinha dito
a Paolo Brancati, o advogado do Barão.
- Acho que o problema central é outro - comunicou Yussef.
- Saúde ou negócios? - Apalpou cautelosamente o terreno. Sentiu uma fisgada no peito, a clássica dor precordial que malignamente progredia para cima, pesando-lhe
no peito como uma pedra. Mecanicamente, tirou do bolso do casaco uma caixinha, abriu-a, pegou num comprimido branco e meteu-o na boca.
- A saúde está ótima - garantiu o sheik.
- Perfeito - suspirou, aliviado.
O senador George Brain, aos 64 anos, aparentava pouco mais de 40 fartos e loiros, o corpo bem tonificado, o olhar irónico, e ostentava ainda o sorriso franco que
punha bem-disposta a inquieta Annalisa. Mas o coração estava mal. Nunca conseguira recuperar da morte da única mulher que tinha amado. Um fim atroz de que se considerava
em grande parte responsável. A pastilha branca e as palavras consoladoras de Yussef tiveram um efeito benéfico e a dor atenuou-se, restituindo-lhe a capacidade de
pensar e de agir.
- O que é que se pode fazer? - Estava disposto a tudo para ajudar o sobrinho.
- Precisa de um apoio consistente e imediato.
A conversa era clara. Sem uma intervenção sólida, a economia do Burhwana ia pelo ar, favorecendo a oposição, já preparada para o golpe. E Bruno acabaria derrotado.
- Só dinheiro? - perguntou George.
- Dinheiro e solidariedade - esclareceu Yussef, querendo dizer homens, mercenários, soldados de profissão para suster o vacilante regime de Aschwinda.

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- Não posso fazer nada - confessou com amargura. - No meu gabinete não há botões. Tu sabes isso muito bem.
- O poder decisório é como o vento do deserto - disse Yussef a sorrir -, vai e vem.
- Esperemos que em breve sopre do lado certo. - Tinha muitas razões para acreditar no otimismo do sheik, mas gostaria de ter ainda mais algumas.
- Em breve terás a chave para resolver o enigma - garantiu.
- Quando? - O senador Brian dependia agora daquele jovem filósofo que, sendo necessário, sabia ser um extraordinário homem de ação.
- Daqui por doze horas vais receber uma "encomenda", tio George. Tratava-o assim desde os tempos de Berkeley, pela familiaridade que tinha sabido conquistar. - E
vais lá encontrar tudo o que é preciso para te fazeres ouvir nos sítios onde há botões para carregar.
- Que Deus te abençoe, rapaz. - O senador estava nas suas mãos. Massajou o peito. A dor de há pouco tinha-lhe deixado uma sensação incomodativa.
Yussef despediu-se, pousou o auscultador e carregou num interruptor que iluminou um pequeno ecrã de televisão. Apareceu imediatamente na imagem o rosto de um jovem
árabe vestido à ocidental.
- Ziad Shatl - disse o sheik -, chegou o momento de mandar uma "encomenda" para aquele endereço que tu sabes.
- Quando deve partir? - perguntou o homem.
- Imediatamente - ordenou. - Daqui por doze horas deve estar no destino. Eu prometi - concluiu, sublinhando as últimas palavras.
Bebeu um gole de café com cardamomo: frio era péssimo. Levantou-se da secretária. Tinha o ar e o sorriso do homem consciente de ter desempenhado um bom trabalho.
Podia finalmente tomar um duche para depois ir ter com Musa.

Admad bin Yussef atravessou um jardim de palmeiras de aspeto sofredor e poeirento e entrou no pavilhão da sheik Musa precedido por uma criada paquistanesa que anunciava
a sua chegada como uma pregoeira simpática e musical. Aquela cantilena desaforada, que fazia lembrar os pássaros nos ramos das árvores ao entardecer, dissolvia-se
magicamente medida que o príncipe e o arauto avançavam, até atingir um extático

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silêncio. As delicadas figuras femininas aninhadas nos tapetes macios, envoltas em vestes leves e multicolores, desapareceram como um voo de borboletas coloridas
numa nuvem perfumada de aloé e âmbar.
Só uma figurinha magra, de rosto de camafeu, vestida de sedas transparentes cor-de-rosa intenso, o pescoço ornamentado com uma faixa de diamantes e topázios rosa
que lhe descia até ao peito, as pálpebras descidas e os lábios entreabertos num radioso sorriso, ficou à espera dele.
Yussef aninhou-se no tapete diante dela e beijou a mão coberta de anéis que ela lhe estendia.
- Bem-vindo a tua casa - disse, com uma voz melodiosa.
- Fizeste-me tanta falta como o ar que respiro - murmurou o Yussef.
- Agora estás aqui. - Era uma criatura de uma beleza rara, mesmo com vestes ocidentais, mas quando vivia no seu país preferia a indumentária árabe, que acentuava
a languidez dos seus olhos de gazela e a graça das mulheres da Arábia.
- És encantadora. - Nunca se tinha habituado à beleza da mãe dos seus filhos
- É o teu amor que me transforma.
Filha de um professor de História na Universidade de Oxford, Musa crescera e estudara na Europa. Tinham-se conhecido em Veneza, no Grand Hotel des Bains, onde Musa
estava a passar umas breves férias com a família. Ele tinha ido acertar um acordo comercial com um grupo italiano.
Yussef foi imediatamente atingido pelo fascínio daquela jovem de 18 anos que sabia discutir, com a mesma desenvoltura, assuntos frívolos e sérios. Sentia-se à vontade
quer se falasse de uma corrida de Fórmula 1, quer se abordassem os temas complexos do mundo islâmico. Praticava esqui aquático, conhecia a fundo o Corão, apreciava
os aspetos positivos da vida ocidental, mas identificava-se com os princípios fundamentais da sua cultura. Graça e inteligência fundiam-se numa síntese admirável.
Foi amor à primeira vista e casaram-se dois meses depois daquele primeiro encontro.
Musa conhecia o marido muito melhor do que ele a conhecia a ela. Sabia interpretar os seus estados de espírito, com nuances que para os outros seriam impercetíveis.
Bastou-lhe um olhar para perceber que estava preocupado e que aquela visita ia ser breve. Apesar dos sinais negativos, esperou que passasse a noite com ela, mas
nunca ousaria pedir-lho.
- Amanhã vou a Zurique - anunciou-lhe com alguma amargura.

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- É uma cidade triste. É uma cidade que se arma imenso - brincou, num momento em que deveria prevalecer a melancolia. Segui-lo-ia até qualquer lugar, e sabia que
se ele pudesse a levaria consigo.
- De Zurique vou ter de ir a Washington. - Gostaria de a ouvir protestar, pelo menos uma vez, mas a princesa sorriu condescendente.
- Gosto mais de Washington. - Bateu palmas duas vezes e apareceu imediatamente uma serva que trazia num tabuleiro leite com açafrão e pastelinhos de fruta cristalizada
com coentros.
- Gostava de te levar comigo. - Era uma maneira de lhe pedir desculpa e de lhe agradecer pela sua ilimitada capacidade de entender.
- Posso saber o que te preocupa? - Era uma pergunta impertinente, mas sabia que Yussef não tinha segredos para ela. Levou aos lábios o copo e bebeu um trago de leite
tépido.
- O Barão precisa de ajuda. - Tirou um pastelinho do tabuleiro, olhou para ele e voltou a pô-lo no mesmo sítio.
- Bruno Brian está com problemas? - perguntou Musa espantada, uma vez que considerava o Barão um personagem protegido pelo mito da invencibilidade.
- O Omar Achmal quer vê-lo morto. Está pronto para meter as mãos no Burhwana. - Sentia-se contente por poder confessar aqueles segredos à mulher. Os conselhos da
companheira sempre se tinham revelado uma grande ajuda.
- Mais violência - disse, pesarosa. - Violência e sangue. - Musa conhecia Bruno pessoalmente, estimava-o e conhecia a lenda do renegado por ter ouvido contar.
- A mão de um sicário atingiu um inocente. - Não conseguia conformar-se com a morte da doce Mahary.
- Eu conheço? - perguntou Musa alarmada, ao ler a tristeza nos olhos do marido.
- Mahary - disse Yussef.
- A filha do príncipe Aschwinda? - perguntou, esperando uma resposta negativa.
- Sim - confirmou ele. - Era mulher de Bruno Brian. Só hoje soube disso.
As lágrimas brotaram dos grandes olhos de Musa: chorou silenciosamente a morte de uma mulher como ela que apenas conhecia de nome.

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- É terrível - disse.
- Deixou o filho único de ambos. - Agora a Musa sabia tudo.
- É uma história devastadora - comentou.
- Eu não sabia que estavam casados - começou a contar - nem sequer sabia da existência de um filho. Mas lembro-me de quando há uns dez anos o Bruno e a Mahary se
conheceram em Paris. Ela era modelo e vivia numa água-furtada pitoresca na rue des Beaux Arts.
- Nunca me tinhas falado nisso.
- Ignorava os desenvolvimentos. Pensava que era uma história acabada. - Aproximou-se dela e pegou-lhe na mão.
- Agora, mais do que nunca, deves ajudar o Bruno. - Chegou-se mais a ele, à procura de proteção. Olhava com um desejo intenso para aquele homem tão bonito, com aquele
rosto de corsário, meio poeta e meio bandido, que a fascinava com o seu olhar de fogo.
- Desejo-te - disse ele, com a sua voz quente.
Também ela o desejava, mas Yussef não saberia nunca a intensidade desse desejo porque o seu coração de mulher prudente a conduzia por caminhos misteriosos onde a
curiosidade do homem mais apaixonado não conseguiria aventurar-se.
Mesmo com os olhos descidos, observou-o enquanto passava um dedo pelo bigode farto, num gesto que lhe era habitual. Naqueles momentos Yussef daria tudo para saber
os pensamentos que lhe passavam pela cabeça. Não tinha outras mulheres nem concubinas. Era-lhe inexoravelmente fiel e depois de três gravidezes desejava-a como no
primeiro dia. Mas temia-a, também: o seu orgulho e a sua honra infundiam-lhe respeito. Se tivesse realizado alguma ação ou apenas feito algum gesto que pudesse ferir
a sua dignidade de mulher, seria perfeitamente capaz de pedir o divórcio e regressar à Europa. Oferecia-lhe a dedicação mais completa, mas em troca queria amor e
respeito. Era um acordo tácito que nenhum dos dois desrespeitara nunca.
Yussef estendeu-lhe a mão forte, de dedos longos e nervosos, para a ajudar a levantar-se. Antes de irem jantar juntamente com os filhos, queria desfrutar com ela
uma intimidade mais completa.
- Desejo a tua companhia - disse em voz baixa, como se estivesse a rezar.
- Os teus desejos parecem-se contigo. - Um vago rubor avermelhou-lhe

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as faces de âmbar. Depois, achando que tinha saído da linha de um ritual delicado, acrescentou: - De Zurique, por favor, vais ter de me trazer um creme que aqui
não se arranja. Vou dar-te um papel com todas as indicações. É uma especialidade contra as rugas. Um produto novo que parece ser muito eficaz.
- As rugas? - Olhou para ela desconfiado e divertido: uma mulher como ela nunca falaria de cosméticos com o marido, e para além disso não tinha rugas.
- É para a sheik tua mãe, obviamente. - Deixou que a ajudasse a levantar-se e caminharam juntos em direção a um novo, esplêndido sonho.

O avião estava a sobrevoar o território helvético em direção a Zurique e faltavam poucos minutos para a aterragem. O sol batia nas janelas, refletindo-se no interior
da cabine. Nuvens brancas flutuavam imóveis entre o céu e a terra. Yussef conservava ainda na pele o mel perfumado de uma noite de amor com Musa, que tinha o dom
de o fazer sentir-se o homem mais importante do mundo. Deixava-se embalar pelo ruído dos motores e pela ligeira flutuação do avião sobre as correntes de ar.
O seu pensamento oscilava entre Bruno e a recordação daquela recente noite de amor. O comissário de bordo serviu-lhe um chá de jasmim.
- A aterragem está prevista dentro de dez minutos - anunciou o homem de farda azul-escura.
Yussef apertou o cinto de segurança. O céu estava de uma transparência absoluta e a terra cada vez mais próxima parecia um imenso jardim verde. Era o espetáculo
que iluminava o olhar radioso de Musa.
- Eu gostava - tinha-lhe dito uma vez - que o meu jardim fosse um grande relvado. - Adorava o verde da Europa, o seu encanto de flores, as árvores fortes e viçosas.
Aquela natural aspiração ao verde, como alternativa à essencialidade seca do deserto, era comum a todos os árabes. Alguns sheiks tinham contratado jardineiros europeus
para inventar estufas estupendas alimentadas por uma ininterrupta distribuição de água que tinha um custo superior ao do petróleo.
Musa queria um relvado e tivera-o. Yussef conseguira realizar uma operação de transplante nunca antes pensada, transportando de Itália para Abu Dhabi, com uma ponte
aérea, seiscentos metros quadrados de

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relvado, um tapete de relva arrancado a uma profundidade de alguns centímetros, seccionado e enrolado como um verdadeiro tapete. A um ano de distância, graças aos
cuidados assíduos de cinco jardineiros, o pátio da sheik Musa era ainda um relvado macio e maravilhoso sobre o qual ela e as amigas podiam caminhar descalças.
Admad bin Yussef afastou do pensamento a doce companheira e começou a reconstituir a história de Bruno. Enquanto o avião sobrevoava o Mediterrâneo e a Itália estava
por baixo dele, o sheik tinha tentado avaliar a situação em que se encontrava o Barão, que, no coração do seu triângulo dourado, a Sicília, tinha começado a combater
uma guerra que o podia derrubar.
Era uma emergência diferente daquela que ele e a gente do golfo Pérsico tinham vivido depois da invasão soviética do Afeganistão e do conflito esquecido entre Teerão
e Bagdad. Mas os príncipes do petróleo tinham corrido imediatamente para os abrigos, obtendo dos Estados Unidos um reforço dos dispositivos de segurança. Cinquenta
mil marines escolhidos entre as forças de intervenção tinham-se instalado no atol Diego Garcia.
Com novos e sofisticados armamentos confiados aos contingentes "privados", exércitos pequenos e eficientes ao serviço de cada sheik protegiam os petroleiros que,
um em cada dezanove minutos, atravessavam o estreito de Ormuz. Bruno, num setor aparentemente excluído das estratégias dos grandes interesses, estava a ser atingido
pelo mesmo problema. Até o minúsculo Burhwana podia contar com contingentes armados e modernamente equipados, mas tinha de potenciar os dispositivos de segurança
internos para afugentar a ameaça de um golpe.
Se os sheiks tinham recrutado homens entre o Paquistão e Oman, Bruno teria de contratar mercenários, profissionais da guerra, prontos para combater sob todas as
bandeiras. Para garantir aquela colaboração precisaria de muito dinheiro e de um decisivo apoio politico por parte dos Estados Unidos.
Enquanto o avião deslizava já estável sobre o invisível corredor de aproximação, o sheik Admad bin Yussef tinha bem claras na sua mente a situação e as medidas a
tomar para uma intervenção com boas probabilidades de sucesso.

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A encomenda

O toque insistente do telefone arrancou-o violentamente do sono. George Brian tinha passado uma noite difícil, dormindo com muita dificuldade por causa daqueles
pensamentos de que não conseguia libertar-se, mas também pelo calor tórrido que pairava sobre Napa Valley. Eram sete horas da manhã. Com a mão entorpecida, tateou
com alguma dificuldade pelo meio das coisas espalhadas sobre a mesa de cabeceira até que finalmente encontrou o telefone.
- Quem fala? - perguntou, com uma voz empastada.
Quem poderia ser àquela hora senão Sarah Miles, a secretária?
- Sou eu, George. - Tinha uma adoração pelo chefe, com quem trabalhava há anos, e a última coisa que queria era perturbá-lo. - Acho que chegou a "encomenda" - comunicou-lhe.
- Onde está? - Tinha-lhe bastado aquele anúncio para recuperar a prontidão e a lucidez.
- Na biblioteca. - Também no telefone interno continuava aquele jogo de agentes secretos.
- É só o tempo de me vestir e vou já ter contigo.
Aproximou-se da janela e abriu-a. O sol irrompeu com uma alegria dourada, como a gargalhada estridente de uma mulher despreocupada. O verão californiano não conhecia
os problemas que o angustiavam e continuava a produzir o seu eterno espetáculo. Tirando o sol, o ar perfumado da manhã e o esplendor do dia, George não tinha muitos
motivos de felicidade, mas, no entanto, sorriu. Dali a poucas horas o calor ia voltar a atacar.
A partir do momento em que se aperceberam de que o coração perdia força, os médicos tinham-lhe desaconselhado o ar condicionado,

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sugerindo-lhe antes o clima menos tórrido de São Francisco; mas a "encomenda" de que estava a espera vinha endereçado a Napa Valley e por isso instalara o seu quartel-general
na velha casa de família no meio das vinhas.
Na casa de banho olhou-se ao espelho: a luz violenta do dia eram mais evidentes os sinais dos anos. Meteu-se debaixo do chuveiro e deixou-se massajar pelo violento
jato de água pouco menos do que fria, obtendo um alívio benéfico.
Os últimos acontecimentos, para além de o terem deixado apreensivo, tinham-lhe reavivado com violência a trágica ferida do seu passado distante que a rotina quotidiana
parecia ter ofuscado. Os compromissos da carreira política, a manutenção do seu feudo eleitoral, o despacho de assuntos importantes e a administração diária, apercebia-se
só agora, não eram mais do que um paliativo modesto.
Temera pela posição de Bruno ligada a sobrevivência do Burhwana, no ir qual investira grande parte dos seus bens sem nunca se ter afligido mais do que o necessário.
O Barão podia sempre contar com o património da família americana, apesar de o seu orgulho o desaconselhar a recorrer a fortuna dos Brian. Mas não era esse o problema.
Agora estava em jogo a sua vida. Omar Achmal e o grupo político que representava queriam-no morto. Começou a fazer a barba com cuidado, porque aqueles gestos que
acompanhavam uma liturgia obrigatória o ajudavam a recuperar a segurança, a calma e a confiança em si próprio. Pensou com simpatia no jovem sheik Yussef e deu por
si a refletir sobre a importância da amizade num mundo onde parecia prevalecer a filosofia do ter.
Passou água fresca na face e sentiu-se mais jovem. Decidiu, não sem um certo orgulho, que o seu aspeto ainda estava razoável, apesar de o motor ter necessidade de
acertos cada vez mais consistentes. Se tivesse imaginado a evolução dos acontecimentos, teria dedicado mais tempo a política e menos atenção à produção vinícola,
que estava já organizada de tal forma que podia avançar sem ele. Poderia, nesse momento, encontrar-se numa situação menos problemática com a administração Reagan,
que não lhe perdoara o seu afastamento voluntário. Substancialmente, tratara-se de um estúpido mal-entendido.
Ele, que tinha estado entre os jovens colaboradores de Kennedy e acreditara firmemente no mito do novo presidente, nunca chegara a recuperar depois daquele atentado
que extinguira uma grande esperança.

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Encontrara-se com uma realidade difícil, por vezes mesquinha, que já não coincidia com as suas expectativas, e fora-se aos poucos alheando do carrossel alimentado
em volta da Casa Branca pelo frenesim do poder.
Era exclusivamente mérito da sua honestidade e da sua inteligência viva o facto de Jimmy Carter ter continuado a consultá-lo sobre problemas de política interna.
Com o advento de Reagan, o senador Brian optara pelo desinteresse e, tal como Aquiles, refugiara-se dentro da tenda. Se os homens do presidente tivessem requerido
a sua disponibilidade, certamente não ia fugir a isso. Era californiano como ele, e os californianos em volta de Reagan constituíam um verdadeiro clã. Mas o presidente
ignorara-o. Nunca mais teria repensado o seu pecado de orgulho se naquele momento a pertença ao grupo presidencial não lhe tivesse permitido abordar com maior serenidade
o problema de Bruno.
Do armário de nogueira ao lado do lavatório tirou um frasco de água de colónia. Sempre que abria aquele armário, o olhar caía-lhe sobre duas filas de boiões e frasquinhos
que continham ainda os cremes e os perfumes de Annalisa. Tinham passado trinta anos, mas aquela recordação mantinha-se intacta.

Eram dois árabes de proporções atléticas, estavam sentados na beira do sofá com um ar circunspecto, vinham de Abu Dhabi e vestiam roupa europeia de excelente corte.
Quando o senador entrou na biblioteca em camisa levantaram-se com uma ligeireza felina.
- Salve - disseram. Tinham rostos simpáticos e leais, com grandes bigodes negros.
- Como está? - disse George, com um sorriso, enquanto estendia a mão ao primeiro. Sentado numa poltrona estava um terceiro personagem, a encomenda" anunciada por
Yussef, que também se levantou mas sem a prontidão dos outros dois. Era um jovem magro e musculoso de olhos grandes, encovados, onde ardia um sentimento intraduzível
entre a agressividade e o medo, e tinha uns cabelos curtíssimos muito ralos no centro do crânio. Vestia uns jeans, uma T-shirt branca e calçava botas de camurça.
Trazia no pulso um vistoso Rolex de ouro maciço.
Também ele o cumprimentou e lhe sorriu, revelando uns dentes branquíssimos.

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Sarah Miles, a secretária de cabelos loiros que começavam a embranquecer desde que tinha ultrapassado o limiar dos 40 anos, disse: - São estes os senhores de que
estava à espera. - Estava radiosa, com um vestido fresco de algodão azul avivado por um colar de turquesas em volta do pescoço.
- Muito bem, Sarah - observou George, ao mesmo tempo que convidava os hóspedes a reocuparem os seus lugares.
Sarah parecia ter perdido a desenvoltura habitual. Trabalhava com George há mais de vinte anos, desde que saíra da Universidade de Berkeley com uma licenciatura
em Letras. Estivera ao seu lado em encontros de negócios e em batalhas políticas e assistira à sucessão de personagens pertencentes ás condições, seitas e profissões
mais díspares: ministros, senadores, funcionários, camponeses, sujeitos equívocos e algumas altezas reais. Mas nunca, em toda a sua carreira, recebera em nome do
senador George Brian um trio tão singular.
- Se for preciso, posso ficar - disse, pondo-se à disposição. Tinha-se apercebido de que aquele encontro assumia um carácter excecional.
- Obrigado, Sarah - replicou -, acho que podemos ficar sós.
- Com certeza, senador. - Provavelmente, embora não tivesse a certeza absoluta, mais tarde saberia o que se passava.
- Certamente, os senhores não tomaram o pequeno-almoço - disse George. Ainda não eram oito horas e pareceu-lhe uma observação razoável.
Os dois árabes agradeceram, mas recusaram a oferta.
- Diga ao Sergio para trazer café - decidiu. - Para todos. - Sergio era um empregado italiano que lhe tinha sido recomendado por Bruno muitos anos atrás. tornara-se
seu criado pessoal, era eficiente e silencioso, fiel. George nunca se arrependera de o ter contratado.
O senador instalou-se numa ampla poltrona em frente às visitas. Tentou identificar qual seria a "encomenda" prometida por Yussef entre os três árabes: dois bem vestidos
com um ligeiro inchaço por baixo da axila, pois estavam armados, e um de jeans e T-shirt. Provavelmente, era o jovem magro, nervoso, de olhos encovados, que os outros
dois não perdiam de vista.
- Acho que preciso de um bom café. - Sorriu enquanto procurava no bolso da camisa a caixinha dos comprimidos brancos que o ajudavam a manter uma relação satisfatória
com o coração.

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De casaco branco, luvas brancas, cabelos negros e fartos ligeiramente ondulados e uns grandes olhos cor de avelã sorridentes, Sergio entrou com uma cafeteira fumegante,
quatro grandes chávenas de porcelana branca e preparou-se para servir.
- Obrigado, Sergio - interveio o senador. - Nós fazemos isso. - O desejo de conhecer a verdadeira razão daquela visita mantinha-o apreensivo, mas aceitava a lógica
do Médio-Oriente, não queria ser ele a solicitar o início das explicações.
- Café? - ofereceu às visitas.
- Obrigado - respondeu aquele que parecia o chefe.
Serviu o café aromático e adoçou o seu com sacarina. Bebeu um primeiro trago e achou-o ótimo. Ninguém conseguia igualar o café de Sergio.
- Estou pronto para ouvir - disse.
Falou o árabe mais velho; parecia ser o que tinha maior autoridade. Devia andar à volta dos 30 anos.
- Este é o Kajan - começou, indicando o jovem de jeans e T-shirt. A situação estava a tornar-se cada vez mais misteriosa. O sol ia já alto no céu e o calor começava
a fazer-se sentir.
- Como está, Kajan? - disse George, enquanto pousava no tabuleiro a chávena já vazia.
O rapaz fez um gesto de assentimento com a cabeça.
- O Kajan é libanês - prosseguiu o árabe mais velho - e tem 21 anos. Trabalha para os líbios.
O rosto do jovem exprimia desconfiança e George notou que mexia nervosamente as mãos.
- Percebo - interveio o senador, para preencher um silêncio incómodo. Dentro dele acendeu-se um alarme que provavelmente antecipava aquela dor esmagadora no peito.
Perguntou a si mesmo se seria caso para tomar um comprimido como prevenção, mas depois desistiu.
- O Kajan tem uma irmã casada com um homem de Oman - explicou o árabe, que falava um americano quase perfeito. - Durante uma viagem à Líbia, na periferia de Seba,
o marido da irmã foi detido pela polícia líbia, preso, interrogado, torturado e morto.
Não era preciso ler os relatórios da Amnistia Internacional para saber que todos os dias, em todas as partes do mundo, se praticavam delitos atrozes e insensatos.

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- Porquê? - perguntou George. Apetecia-lhe beber alguma coisa forte, mas não podia sequer pensar nisso.
- Os líbios disseram que era um espião americano. - Relatava o acontecimento com simplicidade, como se se tratasse de um facto que não lhe dizia respeito.
- E era? - George sabia que os serviços de segurança utilizavam as pessoas aparentemente mais inócuas.
- Não, não era - afirmou o árabe mais velho, com uma voz segura. - Viram-no às voltas junto de um campo de aviação militar. Era um turista indisciplinado ou inconsciente.
Apanhava pedras no deserto. Resíduos fósseis. Uma atividade proibida. - Lá fora, sobre o verde do jardim, intensificava-se um rumor do verão.
O senador olhou para o libanês, cujas mãos de dedos longos e nervosos continuavam a mover-se como se estivessem a desfiar as contas de um rosário invisível.
- A irmã do Kajan amava muito o marido - sublinhou o árabe, quando a atenção de George se deslocou novamente do libanês para ele. - Era um técnico eletricista que
trabalhava no porto de Abu Dhabi.
George olhou para uma fotografia numa elegante moldura de prata em cima do piano de cauda. Retratava Annalisa e Bruno pequenino na beira da piscina, em Sausalito,
alguns meses antes da tragédia. A sua visão já não era a de antigamente e aquela imagem desfocada evocou-lhe os fantasmas do passado, as cores da juventude e da
felicidade.
- Está a ouvir-me, senador? - perguntou respeitosamente o árabe, que tinha uma tarefa a desempenhar e queria desempenhá-la com precisão e pontualidade.
- Pode continuar - replicou com dureza. - Não perdi uma única palavra.
- A irmã do Kajan foi ter com o sheik para pedir justiça. Admad bin Yussef, que Alá o proteja, garantiu-lhe que arranjaria uma forma para aquele delito não ficar
impune. - O árabe, fiel a um hábito antigo, contava a história desde o princípio, mas não queria propriamente adorar o discurso. Aqueles preliminares tinham um valor
preciso. O libanês seguia com atenção a história do árabe, mas conseguia manter-se imóvel. Só as mãos revelavam a sua tensão interior.
- O nosso sheik é sábio - retomou o árabe - e bom. Alá é justo e

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poderoso e guia os passos dos seus filhos segundo a justiça. Admad bin Yussef providenciou generosamente as necessidades da irmã do Kajan Depois disse-lhe: "Se o
teu irmão quiser lavar o ultraje e, se para o fazer tiver necessidade da minha ajuda, pois eu ajudá-lo-ei." A irmã do Kajan sabia quem era o responsável pela morte
do marido. Um polícia sanguinário. Uma besta humana. Depois do encontro com o sheik Yussef, a mulher foi a Beirute e contou tudo ao Kajan. Os dois irmãos regressaram
juntos a Abu Dhabi para se encontrarem com o nosso sheik. Passou algum tempo. Depois este homem foi-nos confiado com a ordem de nunca o perdermos de vista. Nós não
sabemos o que o nosso sheik lhe disse. Mas sabemos que agora o Kajan vai falar contigo. E nós não podemos ouvir.
- OK. Nesse caso deixem-me sozinho com ele. - O seu rosto tinha recuperado vivacidade e cor e o coração decidira colaborar.
- Isso não é possível - opôs-se o árabe, com a sua voz de tom inequívoco.
George ficou aturdido com aquela imposição contraditória.
- Como é que eu posso falar sozinho com ele sem saírem os dois?
- Nós não podemos deixá-lo - disse o árabe, com uma grande determinação. - Nós estamos sempre com ele. O Kajan pode falar, nós não vamos ouvir.
George passou uma mão pelos cabelos e fitou intensamente o seu interlocutor para procurar a confirmação de uma ideia que lhe surgia na mente. Recordou que uma vez,
durante uma viagem a Tóquio, tinha encontrado um velho professor de Antropologia que lhe explicara que as populações pré-históricas, vivendo em grupos de total promiscuidade,
para defender a sua privacidade tinham através dos milénios estruturado o cérebro de tal forma que podiam gerir mediante automatismos biológicos alguns comportamentos.
Pondo em funcionamento aquele mecanismo, conseguiam excluir da sua visão determinadas coisas e não ouvir outras que não deviam ser escutadas. Assim, mesmo vivendo
aglomerados na mesma caverna, homens e mulheres, aos pares, conseguiam criar momentos de completa intimidade. O estudioso explicara-lhe finalmente que aqueles automatismos,
em certas populações, podiam ainda ser ativados nos nossos tempos. Os japoneses, por exemplo, quando viviam em casas de paredes de papel, conseguiam a sua privacidade
e respeitavam a dos outros desencadeando pura e simplesmente esse arcaico interruptor

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da mente, e assim não ouviam aquilo que acontecia no quarto ao lado ou no mesmo aposento.
George procurou uma confirmação dessa teoria junto do árabe.
- Isso é uma forma um pouco complicada de explicar aquilo que nós também conseguimos fazer - admitiu o enviado de Yussef.
Então o senador Brian dirigiu-se ao libanês.
- Pode falar - pediu-lhe. - Estou pronto para o ouvir.
O rapaz perdeu o seu ar embaraçado e olhou-o nos olhos.
- Sou um agente do serviço secreto de Kadhafi - confessou, como se anunciasse a sua recente admissão a um clube.
- Será que percebi bem? - perguntou o senador.
- Percebeu muito bem. - Falava corretamente o inglês e usava uma linguagem apropriada, precisa.
- Pertencer a um serviço secreto não é uma condição desprovida de originalidade - rebateu. - Não vejo, porém, como poderá atingir o seu objetivo que, se bem entendi,
era o de vingar o marido da sua irmã.
- Julgue o senhor, senador Brian - disse, pondo nas palavras um profundo desprezo por um inimigo invisível - e tire as conclusões que considerar oportunas. Sou um
terrorista. Há nove meses que venho a ser treinado num campo secreto com mais nove elementos: dois cubanos, três líbios, dois iranianos e dois libaneses. O objetivo
do nosso treino é matar o presidente americano Ronald Reagan. O senador George Brian percebia finalmente as intenções do libanês e o mecanismo da sua vingança. A
"encomenda" que lhe fora enviada por Admad bin Yussef continha a chave que lhe ia abrir a porta principal da Casa Branca.

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A almadrava

Bruno abriu a maciça porta de carvalho e entrou no escritório que tinha sido do avô. Nada mudara: a estante de madeira escura que continha preciosas edições dos
clássicos tão queridos ao velho barão di Monreale, as poltronas e o divã oitocentista e a grande secretária de jacaranda.
- Hallo - cumprimentou os amigos e recebeu em troca frases convencionais e sorrisos sinceros.
- Anda, meu traste. - Bruno ouviu de novo com prazer a voz pacata de Werner Klammer, o advogado americano de origem alemã que tinha chegado expressamente de Washington
para estar à disposição do Barão.
Também o sorriso de mister Hachette reatou o significado de uma amizade que parecia perdida.
- Sinto muito pelo que aconteceu - disse o representante da IBB. - Sinceramente.
- É bom poder falar disso. - Pois, e Mahary? A banalidade dos lugares-comuns profanava involuntariamente a memória da doce princesa. Por outro lado, nenhum dos presentes
podia partilhar um acontecimento que desconhecia.
- Esperava pior - interveio Klammer -, mas encontro-te em grande forma. - O eterno Lucky Strike pendia-lhe a um canto da boca. Tinha despido o casaco, alargado o
nó da gravata, mas continuava a suar copiosamente. As complicadas alquimias dietéticas a que se submetia não conseguiam conter aquela alarmante obesidade que, aos
50 anos, era mais do que nunca um fator de risco. Bruno parecia efetivamente repousado e sereno, mas Paolo Brancati, que o conhecia bem, observou que as pequenas

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rugas nos cantos dos olhos se tinham acentuado e que a tensão embaciava o seu olhar de aço. Duas rugas amargas sulcavam-lhe a testa.
- Caramba! - exclamou Klammer. - Não existe ar condicionado neste maldito país? - Tinha os cabelos loiros e lisos colados A testa e os olhos claros como água pareciam
prestes a derreter. O nariz proeminente estava coberto de gotinhas de suor.
- Experimenta um granizado de limão - sugeriu Hachette, que saboreava o seu com imenso prazer.
- Detesto gente que possui uma regulação de temperatura eficiente ameaçou Klammer com um punho fechado - e se gaba disso como se fosse uma conquista pessoal. - Era
um homem extraordinário, um profissional de primeira, um advogado que tratava por tu o Direito Internacional; o próprio Henry Kissinger tinha recorrido aos seus
serviços para resolver os problemas mais difíceis e conquistar os marcos miliares da sua fulgurante carreira.
- Devias ter mais cuidado contigo - advertiu Bruno afetuosamente.
- Para entregar à imortalidade um cadáver de perfeita saúde? - rebateu, com uma ênfase suspeita. Todos os fatores de risco assinalados pelos mais atualizados relatórios
médicos o ameaçavam: da hipertensão à obesidade, do fumo ao álcool. Talvez no falhanço do seu casamento estivesse a origem de uma espiral perversa que o afastava
dos limites de segurança. Tinha poucos amigos. Bruno Brian era um deles.
- Podemos considerar encerrados os preliminares? - Bruno aproximou-se da secretária.
- Claro. - Klammer pareceu acalmar-se, pronto para enfrentar o problema central que os reunira no palácio de Piazza Armerina.
Paolo Brancati, pequeno, magro, nervoso, escuro de pele e de cabelo, olhou para o Barão por detrás das suas espessas lentes de míope e depois abraçou-o sem falar.
Bruno foi sentar-se à secretária ao mesmo tempo que Calò entrava com um jarro de café gelado. Pousou-o numa pequena mesa para que cada um se servisse, se quisesse.
Depois foi sentar-se ao fundo do escritório.
- Já sabem de tudo aquilo que aconteceu - começou o Barão. - E sabem também o que está a acontecer. - Mais do que as palavras que lhe afluíam naturalmente aos lábios,
tentava controlar o tom. Tirou um cigarro de uma

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caixa de cristal e acendeu-o. - Mas há pelo menos dois pormenores que não conhecem.
- O imprevisível Barão - interrompeu-o Klammer, sarcástico. Estava em pé diante de uma grande janela com as portadas entreabertas por onde se escoava uma luz discreta
mas suficiente para iluminar o escritório. Tentava desesperadamente abanar-se com um lenço. Bruno endureceu e na sua voz vibraram ressonâncias metálicas.
- A Mahary - continuou, fitando Klammer com um olhar de aço -, a filha do príncipe Aschwinda, morta por lapso, era minha mulher. Klammer baixou os olhos e mordeu
o lábio inferior ate sangrar. Bruno fez uma pausa para dar aos três homens tempo para assimilar o golpe.
- Queres desculpas? - murmurou Klammer.
- Se servissem para alguma coisa.
Estava terrivelmente calmo, mas isso foi sobretudo Brancati quem notou; era o mais espantado dos três. Tinha-lhe escapado uma situação que se desenrolava debaixo
dos seus olhos. Depois justificou-se, admitindo que Bruno era capaz de esconder até o episódio mais clamoroso.
O sol que entrava pelas portadas entreabertas atingia com as suas lâminas de ouro a parte mais alta da estante.
- Deixei um filho lá - anunciou, com os olhos semicerrados e assumindo uma expressão de profunda tristeza. - Chama-se Sunny. Tem 8 anos. Será o herdeiro de Aschwinda.
Hachette imaginou Martin, o mais novo dos seus três filhos, que tinha mais ou menos a idade de Sunny, confinado naquele farrapo de terra que estava prestes a ser
sufocado pelo abraço de demasiados pretendentes.
- É terrível - disse o homem da IBB.
- Continuemos - foi a sugestão prática de Werner Klammer. Um estado de espírito emotivo era contraproducente. O velho combatente de Washington sentia cheiro de batalha
e estava pronto para a ação. Continuava a ser the first, o primeiro no seu campo.
Bruno observou-os a todos de um modo significativo.
- Temos de abordar o problema da sobrevivência do Burhwana como Estado independente, porque a isso está ligado o futuro do meu filho e da sua gente.
Klammer observou o grande relógio de pêndulo e confrontou a hora com a que indicava o seu relógio de bolso. Um dos dois estava errado.

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- Em concreto? - questionou, enquanto enchia o grande copo de café gelado.
- Aschwinda está muito doente - prosseguiu Bruno. - Pode desaparecer de um dia para o outro. Sobrevive graças a sua desesperada vontade. Se morresse, os seus colaboradores
não poderiam opor-se a constituição de um governo-fantoche pronto para abrir as portas aos líbios e aos cubanos.
- É uma síntese admirável - ironizou Klammer, que já tinha renunciado a contrariar aquela transpiração copiosa -, mas não podemos certamente dirigir-nos as Nações
Unidas.
Bruno não deu importância à sua intervenção.
- Desde que a IBB suspendeu a concessão de fundos - explicou - a situação económica precipitou-se. Quebrar o isolamento, tal como as coisas estão, é impossível.
A oposição, pelo contrário, é financiada e armada pelo renegado e torna-se cada vez mais perigosa. É preciso estudar medidas adequadas para superar a crise.
- Da maneira como as coisas estão - disse Klammer, chamando-o realidade -, só a IBB poderia reabrir os canais de aprovisionamento. E o conselho de administração
tem as mãos atadas pelos representantes do Achmal. As potências ocidentais, que teriam poder e meios para influir na situação política do país, consideram o Burhwana
uma coisa insignificante.
- Ninguém te está a pedir um ensaio sobre política internacional - interveio duramente Brancati. - O que está em jogo é o futuro do filho de Bruno, o seu prestígio
pessoal, a sua fortuna.
- Com emotividade não se definem estratégias - replicou Klammer - e sobretudo não se ganham guerras.
Falavam em inglês, uma língua de que Calò não gostava particularmente, mas que durante anos de relacionamentos internacionais tinha acabado por entender perfeitamente.
Escutava aqueles homens importantes que tentavam encontrar a ponta de uma meada que estava a ficar cada vez mais emaranhada. Mastigava uma raiz de alcaçuz, enterrado
no grande sofá, e, entretanto, ia concebendo a sua maneira um plano que o convencia pela clareza e pela simplicidade. Um grande advogado americano escutado pelos
políticos, o representante de uma multinacional, um príncipe forense e um financeiro internacional continuavam a tentar trepar uma parede de gelo.

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Calò lembrou-se da caça ao javali, como os batedores tiravam a besta para fora do esconderijo, e pensou nos lobos que, atraídos pelos cordeiros, nas montanhas, transpunham
as margens de segurança e acabavam por cair nas armadilhas dos caçadores.
Passavam automóveis na praça, ouviu-se o ladrar de um cão e o passo resignado de uma mula. As antigas paredes do palácio não conseguiam proteger do calor imenso
que provavelmente anunciava o siroco. As palavras rodopiavam à sua volta como um zumbido sonolento e na sua mente ia-se concretizando uma ideia elementar que, precisamente
por isso, lhe pareceu interessante e talvez decisiva.
Recordou uma engenhosa e antiquíssima armadilha, a almadrava, e reconstituiu mentalmente aquele labirinto, inventado provavelmente pelos Fenícios, com uma rede vertical
estendida perpendicularmente à costa e um sistema de outras redes ligadas ao corpo central, uma verdadeira ilha à qual os peixes têm acesso através do foratico.
Calò viu os atuns a passar pelos vários compartimentos da armadilha até à câmara da morte, rodeada pelas embarcações, com o chefe, o Rais, a comandar a matança.
Talvez a solução estivesse mesmo naquele esquema impiedoso mas eficaz da almadrava. Tratava-se de encontrar os pescadores de guarda capazes de conduzir os atuns
do forático até à ilha, fazendo-os passar de compartimento em compartimento até à câmara da morte. Havia ele mesmo de arpoar Omar Achmal como um tubarão na armadilha.
A primeira parte da reunião tinha-se concluído sem resultados apreciáveis e, quando os hóspedes se levantaram para o almoço, Calò chamou Bruno à parte no momento
em que ele ia a sair.
- Acho que o teu problema tem uma solução - disse em Siciliano.
O Barão sorriu-lhe, surpreendido e animado. Era uma boa notícia naqueles dias negros. Reuniram-se todos em volta da grande mesa retangular com a base feita de um
enorme tronco sobre o qual estava esculpida uma série de cupidos que, entretecendo uma dança aérea, seguravam um grande vaso do qual chovia, viçoso, trevo de quartzo
verde embutido nos dourados da madeira.
Sobre a mesa já não se encontrava a toalha adamascada em cuja trama se repetia até ao infinito o brasão dos barões de Monreale. Aquele precioso

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tecido tinha sido substituído por um serviço à americana e as porcelanas de Capodimonte em tons rosa e verde-pastel tinham dado lugar a uma baixela moderna.
Mantivera-se no centro, solene como um totem familiar, a jarra de prata muito baixa e oblonga cheia de trevo florido. E já não havia monsù para ilustrar com palavras
aladas os menus reais de outros tempos: os empadões de macarrão que espalhavam em volta um aroma a cogumelos, de fígados que deslizavam em rios cremosos de bechamel
cor-de-rosa, a delicadeza dos pombos a la Reine, a delícia da pá de vitela a l'impériale, as exóticas nuances da sauce à l'échalote, amaciez da creme veloutée que
pertenciam à aristocracia pré-histórica de uma gastronomia marginalizada pelas campanhas terroristas travadas pela moderna dietética, sacrificada ao mito da eficiência.
Os comensais, não querendo discutir problemas graves diante das duas únicas senhora presentes, Karin e Rosalia, enumeravam, na presença de umas esquálidas fatiazinhas
de vitela grelhada, as suas maleitas: trocavam os respetivos níveis de colesterol e de triglicérideos e confrontavam os valores da tensão arterial.
Calò sentiu saudades dos tempos em que se morria de uma apoplexia sem a mortificação de dietas de hospital e sem as angustiantes esperas impostas por discutíveis
check-up. Mas eram considerações pessoais que não quis exprimir.
Don Calogero Costa estava também sentado àquela mesa em 1943, trinta e oito anos atrás, e dos comensais daquele dia longínquo era o único sobrevivente. A princesa
Isgrò tinha sido ceifada por uma doença inexorável, o doutor Tanino Nascè não resistira a um segundo enfarte, enquanto don Ferdinando Salemi, ex-secretário municipal
e ex-presidente da Câmara, tinha sido encontrado por um pastor no campo de Villalba com o peito perfurado por um tiro de caçadeira.
- O que é que tu achas, Calò? - surpreendeu-o Klammer, indeciso entre um Corvo de Salaparuta e um Chianti de Badia a Coltibuono, escolhendo este último após uma
ponderada reflexão.
- Sobre quê? - perguntou o gigante, abandonando de má vontade as suas reflexões.

- Sobre a melhor maneira de a gente se manter em forma. - Bebeu um trago daquele vinho tinto com um vago sabor a violeta e uma espécie de êxtase espalhou-se no seu
rosto flácido.

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- Eu acho - observou Calò sem perder o fio dos seus vários pensamentos - que um homem deve viver segundo as suas próprias escolhas, Não acho que ajude muito à saúde
pensar na morte enquanto se come. Há muitas maneiras de morrer e a pior é fazer preceder um acontecimento que não depende de nós de tantas provas gerais.
- Isto é filosofia estoica - disse Klammer, admirado.
- Eu não sei o que é a filosofia estoica - objetou Calo. - O velho barão ensinou-me que quando uma pessoa vem ao mundo o Senhor escreve a data de nascimento no seu
livro pessoal. Depois, no mesmo livro, escreve o dia da morte e mete-o numa gaveta onde ninguém o pode ver. Ele sabe quando se nasce e quando se morre. Portanto,
é inútil afligirmo-nos por causa de um acontecimento que não depende de nós.
Karin olhou para ele com afeto e admiração e Calò leu nos olhos dela uma grande tristeza. Observou aquela lindíssima mulher de olhos azul-violeta e cabeleira flamejante
e recordou a chegada de Annalisa, trinta e oito anos atrás, à sala de estar.
Recordou o vestido de seda branco de Annalisa, que tinha estampados barquinhos à vela azuis e vermelhos, e os cabelos negros e fartos amarrados por uma fita de seda
vermelha. Tinha entrado naquele dia de verão com uma lufada de flores de laranjeira e de sol.
A figura moderna de Karin tomara agora o seu lugar. Tinham o mesmo fascínio.
Rosalia aparentava o ar perdido e modesto da parente pobre.
- Até quando vamos ter de ficar aqui? - perguntou baixinho Rosalia a Karin, aproveitando o facto de os comensais terem mergulhado novamente naquela conversa aborrecida.
- Até decidirmos partir - respondeu num tom de desafio.
Os empregados pousaram na mesa duas taças de fruta.
- Se me dissessem há um mês atrás que eu ia viver num sítio como este, eu não acreditava - disse Rosalia. Tirou uma cereja e começou e observou intensamente Karin.
- Mas - acrescentou -, é uma situação que não me convence. Sinto-me emprestada. São todos muito simpáticos comigo, tratam-me como uma verdadeira senhora, mas eu
não me sinto à vontade. Já não me reconheço.
- Faz de conta que estás a passar umas férias. - Karin, por de trás do

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sorriso de circunstância, estava inquieta, de mau humor, pronta para uma briga.
Rosalia tinha aprendido a estimá-la pela sua sinceridade e a gostar dela pela sua capacidade de transmitir solidariedade e amor.
- Tu és uma senhora, vê-se logo. - Abraçou com um olhar perdido aquela sala de jantar, que era alta e imensa. - Tu sabes estar num ambiente como este. Eu nasci numa
cave do bairro de Montecalvario. E em poucos dias aconteceram-me mais coisas do que em toda a minha vida. Tu não percebes, és de outro meio.
Karin não estava com disposição para a contrariar com a sua autobiografia.
- Sou uma mulher que trabalha e que por razões diferentes das tuas se encontrou envolvida numa situação da qual gostaria de poder sair. - Tentou exprimir solidariedade,
mas naquele momento só conseguia pensar em si mesma.
- Tu lês - disse com admiração. - Falas muitas línguas. És instruída. Eu, se não cantar as minhas cançonetas e não estiver com os meus rapazes, aborreço-me de morte.
- Procurava algo no meio dos seus pensamentos, mas não queria abordar o episódio do ultraje. Era um momento vergonhoso e dramático da sua vida, que tinha removido
inconscientemente para não se sentir esmagada por ele.
- Então canta - aconselhou Karin. - Pega na guitarra e canta.
Sorriu-lhe, olhando-a com devoção.
- Mas como é que tu consegues ser assim tão querida? - Pegou numa maçã, deu-lhe uma dentada e depois pousou-a no prato e olhou em volta com receio de que alguém
a tivesse visto.
- Pareço querida - disse Karin. Trincou por sua vez uma maçã, para grande alegria de Rosalia.
- Às vezes penso na minha família - continuou, a olhar para o passado. - Virgem Maria, que desgraça! Mas sabes que ao longe a gente só se lembra do lado bom das
coisas? Quando lá estava, era capaz de entregar a alma ao diabo para chegar a um sítio como este. Agora deu-me uma grande vontade de regressar a casa. Eu sou uma
pessoa que nunca sabe aquilo que quer.
- Nenhum de nós sabe. - Olhou para Hachette e para Klammer, que conversavam animadamente um com o outro, e para Bruno, que murmurava qualquer coisa a Calò.

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- Alguma vez perguntaste a ti própria, quando eras pequena, o que querias ser quando fosses grande? - perguntou Rosalia. Bebia vinho em pequenos tragos gulosos e
isso ajudava-a a ter vontade de conversar.
- Tudo aquilo em que se pensa quando se é pequeno - disse Karin - nunca se concretiza.
- E quando se concretiza é por pouco tempo - observou Rosalia, com desilusão. - Sabes o que é que eu pensava? - passou do desconforto à alegria com a rapidez das
crianças. - Pensava: quando crescer vou ser uma grande senhora, vou morar em palácios de ouro, com muitos criados, e as pessoas na rua vão-me tratar com muita reverência.
- É uma história bonita. - O seu rosto recuperou uma expressão alegre.
- Se os pobres não soubessem contar histórias, já estavam todos mortos. Estava contente porque a amiga importante a apreciava. - A televisão conta-nos histórias.
A publicidade faz-nos sonhar. Se a gente lê um livro procura lá dentro a esperança. A crueldade assusta-me. - Estava outra vez no limite do choro.
- Não fiques assim - disse Karin, para a animar.
- Gostava de viver num mundo de desenhos animados. - Trincou a maçã com ferocidade. - Mas, afinal, andam por aí feras à espreita. Gostava de andar por onde o céu
fosse sempre azul, o mar sempre azul, onde o sol fosse de ouro e as pessoas sorrissem por gostarem umas das outras. Sonhei com o mundo dos ricos, depois conheci-o
e agora acho que, lá bem no fundo, é um nojo.
Karin estava calada: não tinha argumentos para a contradizer e sentia-se muito próxima da pequena napolitana.
Quando serviram o café, sentiu o olhar de Bruno à procura dela, voltou-se para o lado onde ele estava e os olhos de ambos encontraram-se.
- Como é que vai isso? - perguntou ele, como se só naquele momento tivesse dado por ela. Estava triste e não fazia nada para o esconder. Karin foi invadida por um
sentimento intraduzível que, no entanto, não tinha nada em comum com o amor e com a admiração.
- Como uma prisioneira - confessou, sem meios-termos.
Klammer levantou-se: - Acho que uma sesta de meia hora me fazia bem - disse.
Hachette retirou-se com o pretexto de ordenar os seus apontamentos. Paolo Brancati, que conhecia Bruno e sabia interpretar os humores da sua

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colaboradora, não precisou de pretextos para abandonar o terreno. Rosalia, instintivamente, sentiu ares de tempestade.
- Eu vou dar uma volta pelo parque, com a vossa licença - despediu-se.
Só Calò continuou imperturbável no seu lugar, a ler um jornal e a mastigar uma raiz de alcaçuz.
Karin e o Barão não apreciaram muito a atitude de Calò, mas contornaram o obstáculo falando em alemão.
Calò teve uma reação de despeito. Trinta e oito anos atrás, Annalisa e Philip tinham-se posto a falar inglês; agora que ele tinha aprendido aquela língua, Karin
e Bruno excluíam-no, comunicando em alemão.
- Desculpa por não te ter ligado muito - começou Bruno.
- Não vejo razão nenhuma para isso, dadas as circunstâncias - replicou ela.
- Em que sentido? - Fez um ar perplexo. Esperava compreensão, solidariedade, e sentia-a, pelo contrário, a julgar pelo tom e pelo comportamento, particularmente
agressiva.
- No sentido - esclareceu - em que objetivamente não existe nenhuma razão para tu me considerares de maneira diferente dos outros.
O rosto de Bruno iluminou-se de cólera e os seus olhos cinzentos faiscara
- Então não aconteceu nada entre nós? - Calò, atrás do jornal, não percebia nada mas intuía tudo.
- Eu diria que não.
Endureceu num gesto de irritação e os cabelos vermelhos e macios agitaram-se, aprisionando um raio de sol que penetrava através das portadas entreabertas. Fez um
esforço terrível para repelir a recordação de tudo o que tinha acontecido no Trifoglio: o muguet imaculado, os miosótis azuis a flutuar dentro das taças de prata,
o vestido de Valentino, os brincos compridos de pérolas barrocas.
- Julguei que me podias dar alguma coisa mais do que uma genérica ajuda profissional - atirou-lhe.
- Querias a consolação de um abraço terno? - Nunca a tinha visto tão bonita, tão atraente, tão desejável. - E talvez também gostasses que eu usasse em tua honra
o vestido de Valentino que tiveste a bondade de me oferecer. Não, obrigada.

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- Porquê? - perguntou, entre o espanto e a indignação.
- Porque sim - replicou, usando as mesmas palavras que ele uma vez tinha usado com ela. - Se passássemos os dias a responder a perguntas como esta, não nos sobrava
tempo para viver. Lembras-te?
Bruno lembrava-se de tudo.
- O que foi que te magoou? - dirigiu-se a ela com humildade.
- A mentira, Bruno. - Era sempre a mesma criatura motivada por uma necessidade poderosa de viver e de amar, mas aquele homem que poucos dias atrás lhe dava vertigens,
provocava agora nela, pelo contrário, uma incoercível crise de rejeição. - A mentira e o ultraje. Que afinal são a mesma coisa.
- Devia ter-te dito que era casado? - perguntou com um sorriso embaraçado.
- Não era preciso - respondeu, gélida -, bastava que te tivesses comportado como um homem.
Bruno nunca tinha dado uma bofetada a uma mulher, mas teve de se reprimir violentamente para travar um gesto do qual se arrependeria amargamente em seguida.
- Mas afinal - agrediu-a, com a intenção de a ferir - quem é que tu pensas que és?
- Uma mulher que não está disposta a aceitar-te no papel de viúvo inconsolável - respondeu, impiedosa. - Uma mulher que não está pronta para abrir os braços e dizer:
anda, chora no meu ombro.
- Podias ao menos poupar a memória da Mahary - gritou, levantando-se de um salto.
- A questão não é essa - deteve-o com severidade -, e tu sabe-lo bem. Se assim não fosse, não terias motivo para te enfureceres. Eu apenas sinto admiração e piedade
por aquela mulher que certamente morreu para te salvar a vida.
- E então? - rebateu ele secamente.
- Então tu não merecias tanta dedicação - respondeu brutalmente. - Não te censuro por teres amado outra mulher, por teres sido casado, por teres um filho; mas não
te perdoo que me tenhas cortejado como se eu fosse a única mulher no mundo. Eu não tenho autoridade para te absolver ou para te condenar, mas tenho o direito de
exprimir uma opinião que coincide com o meu modo de pensar.

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- É uma opinião estúpida, porque exclui o conhecimento dos factos reagiu com veemência.
- Já chega, mister Brian - rematou. - Tu das mulheres apenas conheces o lado horizontal. Já te disse isto uma vez. É a tua filosofia. A filosofia horizontal da vida.
És um cínico, mister Brian. E, mesmo assim, eu podia ter-te aceitado. Mas eu nunca poderei aceitar o mentiroso que há em ti.
- Podes voltar para de onde vieste. - Lançou-lhe um olhar terrível, endurecendo os músculos da face. Que sentido fazia insistir com aquela pequena burguesa presunçosa
e moralista a quem tinha dedicado tempo e atenções, a quem tinha dado o seu amor? - A porta está aberta. Faz o que quiseres.
- É exatamente aquilo que eu esperava de si, mister Brian - disse, ostentando o seu melhor sorriso. - E é exatamente aquilo que eu tencionava fazer. - Girou com
elegância sobre si mesma e saiu da sala.
- Passa-se alguma coisa? - perguntou Calò, ao mesmo tempo que pousava o jornal que fingia ler.
- Não te metas tu também, agora. - Nos momentos de cólera, era extremamente parecido com Annalisa. Tinha a raça e a emotividade da mãe.
- Vai dar uma volta a cavalo - aconselhou-lhe. - Vai fazer-te bem.
Bruno foi-se embora sem responder.
Calò também tinha assistido, trinta e oito anos atrás, ao encontro entre Philip e Annalisa no jardim do palácio. Tinha sido um encontro de amor à luz da lua, entre
o perfume das flores, mas intuíra imediatamente que aquela história exaltante não ia acabar bem. Naquela conversa nervosa, no limite da discussão, a que acabava
de assistir, acreditava ter vislumbrado, bem pelo contrário, sinais diferentes, presságios favoráveis.
Aquela mulher orgulhosa, criada no meio da neve do Tirol, tinha afinidades incríveis com a baronessina di Monreale. No olhar altivo de Karin, Calò encontrara os
súbitos furores, mas também a doçura de Annalisa, a capacidade de amar, a alegria e a dor de ser mulher, mas com mais coerência e sinceridade.
Annalisa, que tivera nos braços na cabana escondida para lá do eucaliptal, tornara-se sua para sempre, mas apenas depois de a morte decepar a sua bela juventude.

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O CHEIRO DA MORTE

Mister Costa

- Faça o favor, mister Costa. Se quiser acompanhar-me, eu mostro-lhe o caminho. - A hospedeira era loira, tinha um narizinho de menina e um sorriso simpático. O
físico elegantemente esguio parecia de manequim e a farda da Alitalia favorecia-a.
- Com certeza - grunhiu Calò, cujo rosto impassível e duro não denunciava a noite em claro, dominada por pensamentos tremendos.
Foi atrás dela, dócil como um autómato. De vez em quando a hospedeira voltava-se para trás e sorria-lhe. Estava elegantemente maquilhada, sem ser excessivamente
coquete, e transmitia uma sensação de frescura e de eficiência cordial. Deixava atrás de si uma nuvem de Arpège que lhe fazia lembrar flor de laranjeira e oleandro.
Calò, naquele lugar onde tudo era diferente da realidade que conhecia, sentia um grande desconforto e olhava em volta com desconfiança.
A hospedeira dirigia-se a ele com o tom reservado às personalidades de respeito. Executava com atenção as ordens recebidas de Roma no momento do embarque. Tinha
de lhe dar assistência durante toda a viagem e, uma vez em São Francisco, devia entregá-lo a mister Luciano Conforti, o responsável pelas relações públicas do aeroporto
californiano. De resto, não era assim tão difícil dar-lhe assistência.
Aquele gigante loiro de olhos azuis e bondosos, claramente pouco à vontade dentro do fato escuro com camisa branca e gravata preta, tinha-a deixado docilmente apertar
o cinto de segurança, executando rigorosamente todas as instruções que lhe eram dadas. Era evidente que aquele era o seu primeiro voo, mas era igualmente evidente
que aquele novo meio de transporte não lhe causava nenhuma emoção.

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Quando lhe ofereceram a refeição, recusou com um gesto de cabeça e um meio-sorriso. Depois fechou os olhos como se estivesse a dormir, mas na realidade queria defender-se
de qualquer intromissão. Havia mais quatro pessoas na zona reservada à primeira classe, três homens e uma mulher; Calò escutou-lhes as vozes, mas não captou o sentido
daquelas conversas.
Apenas uma vez, a meio da noite, pediu um copo de água, e depois mastigou uma raiz de alcaçuz.
Entraram no imenso átrio do aeroporto que a Calò pareceu tão grande e frequentado como uma praça ao domingo, animado com os letreiros coloridos das companhias e
com as fardas multicolores dos funcionários, atravessado pelas vozes persuasivas difundidas pelos altifalantes que davam indicações numa língua desconhecida.
No centro destacava-se a estátua de São Francisco de Assis, de quem a cidade californiana recebera o nome. A presença do santo aliviou-lhe a tensão e modificou a
sua opinião relativamente aos americanos.
Um homem de meia-idade, com um sorriso afetado e inexpressivo, foi ao encontro dele. Era alto, magro e envergava um fato cinzento made in Italy irrepreensível e
que lhe assentava como uma segunda pele.
- Hello, Luciano - cumprimentou cordialmente a hospedeira.
- Como está? - respondeu o recém-chegado.
- Here is mister Costa - apresentou. - He doesn't speak English.
- Não falo inglês - interveio Calò. - Muito gosto.
- Bem-vindo à Califórnia, mister Costa - disse o responsável pelas relações públicas, ao mesmo tempo que estendia a sua mão elegante e bem tratada à mão forte de
Calò.
- OK - respondeu Calò, que continuava a olhar em volta com desconfiança.
- Se me quiser facultar o seu passaporte, terei muito prazer em tratar pessoalmente das formalidades alfandegárias. - Na realidade, tinha muito prazer em recuperar
a sua mão, dorida com aquele aperto insolitamente vigoroso.
Calò respondeu com uma rosnadela de assentimento e estendeu-lhe o passaporte.
- Muito bem - agradeceu o funcionário. - Agora vai ter a bondade de aguardar uns minutos.

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A hospedeira acompanhou-o a uma pequena sala muito moderna, fria e, em sua opinião, muito pouco acolhedora, apesar do conforto evidente.
Foi surpreendido por um ruído incomodativo.
- O que é isto? - Olhou em volta sem perceber.
- É o ar condicionado - tranquilizou-o.
- Ar quê? - Para ele, ar era ar. E chega.
- Ar condicionado - explicou com paciência. - Um aparelho para tOmar o ar fresco. De facto é um pouco ruidoso. Se quiser, posso desligá-lo.
Calò encolheu os ombros.
- Era só para saber - disse.
Numa mesa de canto estava montado um elegante buffet coberto de garrafas coloridas e de pratinhos que continham comidas estranhas.
- Posso oferecer-lhe alguma coisa? - perguntou graciosamente a hospedeira. Gostaria de acertar em pelo menos uma coisa com aquele gigante silencioso que parecia
ter escolhido o isolamento como modo de vida.
Ele sorriu-lhe pela primeira vez ao fim de tantas horas e a hospedeira considerou aquilo um sucesso.
- Obrigado, mas não - respondeu. - Bastou-me aquela mistela escura no avião que vocês chamam café.
Não era sinceridade o que faltava àquele personagem que fora incluído, talvez por lapso, na lista de pessoas importantes.
- Como preferir, senhor Costa - respondeu a rapariga, hirta, já que acabava de esgotar o repertório das boas maneiras.
Acolheu com uma sensação de alívio o regresso de mister Conforti. Estava outro homem com ele, de olhos e cabelos negros e um rosto que destilava cordialidade.
- Já está, mister Costa - disse o funcionário das relações públicas. - A sua bagagem está resolvida. Este senhor - acrescentou, indicando o recém-chegado - é Don
Taylor, o motorista de mister Brian.
- Muito prazer - cumprimentou o mexicano com uma ligeira vénia.
- Não fala italiano - informou -, mas fala perfeitamente o espanhol. Espero que possam entender-se.
Calò levantou-se e os dois homens apertaram as mãos. Don inundou-o imediatamente com um sem-número de palavras.
- Diga-lhe que é melhor calar-se - recomendou Calò. - De qualquer maneira, não percebo nada.

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A viagem do aeroporto até ao Hospital Saint James durou uma eternidade. Calò não estava habituado àquele trânsito intenso que corria dos dois lados em estradas que
subiam e desciam como uma montanha-russa de um parque de diversões. Aquela espécie de percurso de feira dava-lhe a volta ao estômago. Don tentou por duas vezes comunicar
com o enigmático gigante, mas o siciliano estava fechado num doloroso isolamento, na companhia dos seus pensamentos. O mexicano não o julgou, mas teve a certeza
de que nunca mais esqueceria aquele rosto de antigo guerreiro.
Calò apercebeu-se de que tinham chegado quando o Cadillac passou o portão de uma espécie de parque, o percorreu durante umas centenas de metros e parou diante de
um pequeno edifício branco com uma porta em forma de ogiva. Uma placa de mármore tinha inscrito SAINT JAMES HOSPITAL CHAPEL. Era a capela do hospital.
Calò não esperou que Don desligasse o motor para sair do carro. Entrou na pequena igreja mergulhada na penumbra e foi atingido pelo cheiro do incenso e das velas,
pelos ténues reflexos coloridos que choviam dos longos vitrais com desenhos de santos e de anjos. Nos tubos prateados do órgão vibravam as últimas notas de uma música
solene.
No centro da igreja, junto ao altar, sobre um suporte largo e baixo coberto de flores brancas estava o caixão que continha o corpo de Annalisa. Era uma caixa de
madeira clara com veios rosados, semelhante a um cofre precioso, com pesadas pegas douradas. A luz das velas criava em volta dela uma aura misteriosa e sugestiva,
mas desprovida de sinceridade, que não se adequava A majestade da morte.
Um sacerdote de rosto rubicundo dizia com uma voz neutra aos poucos presentes palavras que Calò não entendia. Alguém tentou conter um ataque de tosse. Era uma voz
ligeiramente nasal e entediada, a do padre. Dissesse o que dissesse, certamente não era aquele o tom correto para celebrar Annalisa Sajeva Mandrascati di Monreale.
Calò ficou hirto junto a entrada e manteve-se imóvel como uma grande estátua. Sentiu um nó apertar-lhe a garganta e fisgadas lancinantes dilacerar-lhe o estômago.
O barão, com uma voz firme e o olhar árido, tinha-lhe dito dois dias atrás: - Calò, a Annalisa morreu. Traz-ma para casa.
E ele tinha ido buscá-la. Esperou um momento e depois começou a

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andar em direção ao caixão. Os seus olhos azuis, raiados de vermelho pelo cansaço e pela dor, fitavam a urna sob a perspetiva dourada do altar.
Sentiu alguém puxar-lhe a manga.
- Tu és o Calò, não és? - O menino meteu a sua mão pequena na do gigante e, pela primeira vez, sentiu-se seguro.
- Bruno - disse Calò, a olhar para ele. A mão da criança era um contacto agradável e vital naquele mar de dor.
- A mãe - murmurou -, a mãe morreu.
- Sim, Bruno. - Reconhecia-o porque era idêntico ás fotografias que tinha recebido em Palermo, mas reconhecê-lo-ia de qualquer maneira, não só pelo seu belo sotaque
Siciliano, mas também porque a sua voz infantil era idêntica à de Annalisa.
Bruno conduziu-o até ao caixão.
- Queres vê-la? - perguntou.
- Sim, por favor. - Naquele momento precisou de fazer um imenso esforço para não trair a emoção.
Bruno fez um sinal a dois empregados da funerária, que levantaram a tampa do caixão. Annalisa repousava num leito de veludo imaculado. Alguém lhe tinha posto um
esplêndido vestido branco. Tinham trabalhado aquele rosto extraordinário com mãos sapientes para lhe restituir na morte a ideia de um sorriso, mas apenas tinham
conseguido transformá-la numa boneca de cera.
- Meu pobre amor - murmurou. - Que raio de país é este onde até a morte se tenta enganar? - A vida não tinha sido generosa para com ela; mas agora ninguém mais os
iria separar. Fez um sinal aos dois homens, que fecharam definitivamente o caixão.
Calò voltou-se para os presentes e viu Philip. Tinha os traços marcados, o rosto cansado. Já não era o forte e alegre rapaz americano de sorriso vitorioso. O seu
corpo já não apresentava a solidez de outrora e a voz tinha perdido qualquer ressonância.
Os dois homens apertaram as mãos sem amizade e sem rancor. Ambos, ainda que de maneira diferente, tinham amado Annalisa apaixonadamente.
- Vou levá-la para casa - disse o siciliano.
- Era a vontade dela - admitiu lealmente Philip
- E Bruno? - Uma resposta negativa tê-lo-ia atingido como uma

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machadada. - O pequeno pode vir connosco? - repetiu, temendo que a sua proposta pudesse cair no vazio.
- Ele quer ir à Sicília - anunciou Philip, erguendo ligeiramente as sobrancelhas.
Era uma constatação, uma declaração genérica, mas não uma autorização para partir.
- Então? - insistiu o gigante.
- Pode ir consigo. - Tinha tomado uma decisão que lhe pesava muito, mas que o honrava.
- O barão Giuseppe Sajeva ficar-lhe-á reconhecido - agradeceu.
Bruno deu a mão a Calò e disse-lhe: - Anda. A cerimónia acabou. E avançou á frente dele em direção A saída.

A bordo do DC-8, fretado pelo barão de Monreale, que os levava de volta a casa, Calò e Bruno estavam pela primeira vez sozinhos. Tinham sido retirados alguns assentos
na parte posterior da fuselagem para dar lugar ao caixão, que foi cuidadosamente fixado.
Bruno dormia ao lado de Calò e conservava a sua mão pequena na mão grande do gigante loiro. Se Calò tentava mexer-se, logo a criança acordava com medo de perder
o contacto físico com aquela figura masculina que lhe transmitia uma incrível sensação de força.
- Não era assim que eu imaginava a viagem para a Sicília - disse de uma das vezes em que acordou. - A mãe tinha resolvido que íamos regressar os dois.
- Ela também está connosco - disse Calò.
- Mas está morta. E quem está comigo és tu. - Tinha em mente outras coisas para lhe dizer, mas não se sentia com coragem.
- Claro que não é a mesma coisa. - Bruno consolava-o, mas a sua fé não era suficiente para justificar ou aceitar serenamente a tragédia que os tinha atingido.
- Calò - Tinha chegado o momento das perguntas importantes.
- Sim, Bruno. - Fosse o que fosse que lhe perguntasse, tinha de lhe responder.
- Tu acreditas no paraíso? - Fitava-o com os seus olhos curiosos e quase impertinentes.
- Eu? - Tentou ganhar tempo.

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- Sim, tu. Acreditas no paraíso? - Andavam nuvens à deriva como gigantescos galeões. A hospedeira interrompeu a conversa para verificar se os passageiros não precisavam
de nada.
- Talvez o menino - disse Calò.
- Não, obrigado - disse Bruno -, não preciso de nada.
- Viste que nuvens imensas? - tentou distraí-lo.
- Não respondeste à minha pergunta - continuou.
- Qual?
- A do paraíso. Acreditas?
- Claro que acredito. - Suspirou profundamente e meteu nos dentes uma raiz de alcaçuz.
- Então é mesmo verdade - exultou. Aquele homem grande e possante não podia estar enganado. - Calò.
- Sim, Bruno.
- Eu sinto-me bem contigo. - O menino encostou a cabeça ao ombro do gigante e adormeceu.

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Em casa

Calò não se lembrava de um início de novembro tão suave desde o longínquo 1943, ano em que Annalisa se tinha casado com o americano.
Regressara à Sicília vindo da Califórnia com Bruno e Annalisa quando os jornais comentavam a destituição do general Douglas MacArthur do comando das tropas da ONU
empenhadas contra a Coreia do Norte. O alto oficial que em 1945 recebera a rendição do Japão queria levar a guerra para o território chinês. O pesadelo da primeira
bomba de hidrogénio pesava no mundo.
Naquele período, à distância de três anos, perdurava a política do terror. Nas páginas da Life que Calò tinha comprado para Bruno vinham as fotografias de Marilyn
Monroe em farda militar, em cima de um grande tanque de guerra, durante a sua visita às tropas americanas na Coreia. Mas a Bruno interessava mais o campeão de basebol,
Joe di Maggio, do que a diva de Niagara.
Nos laranjais da Conca d'Oro as laranjas refletiam o sol quente do início da tarde, espalhando por entre o verde reflexos dourados. Um perfume inebriante passava
no ar claro e os frutos túrgidos pendiam dos ramos, fazendo-os dobrar, à espera de serem colhidos. Calò vinha da villa de San Lorenzo e dirigia-se a Palermo para
ir buscar Bruno à saída da escola, que andava no quinto ano. Pela estrada de laranjais conduzia com prudência o novo MG TF vermelho-escuro que o barão Giuseppe Sajeva
tinha adquirido para grande alegria de Bruno, que saltava para dentro daquele brinquedo grande passando por cima da porta com um gesto acrobático, como tinha visto
fazer no cinema, para depois convencer Calò a enterrar o pé no acelerador, vencendo a sua

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relutância. Gostava da velocidade naquele carro descapotável porque o vento lhe despenteava o cabelo.
O avô, severo com toda a gente, rendia-se as suas vontades, mas tinha-o avisado de que deveria suspender, atendendo à época do ano, as corridas no MG. Naquele dia
de novembro o ar estava suave e o sol radioso.
- Só mais uma vez, don Peppino - rogou Calò. - Bruno ia ficar contente. O tempo está bom. O barão abanou a cabeça, a sorrir com bonomia.
- Vejam lá se não arranjam complicações - disse, referindo-se à cumplicidade secreta entre o Calò e o neto.
- O senhor conhece-me bem. - Calò não tinha nem estima nem simpatia pelos automóveis, e quando andava sozinho nunca ultrapassava os oitenta quilómetros por hora.
Abria algumas exceções à regra para fazer a vontade a Bruno.
Ao longo da estrada de laranjais moderava ainda mais a velocidade para gozar o espetáculo e observar o trabalho da colheita, que estava em pleno andamento.
Naquele dia, um acontecimento insólito atraiu a sua atenção. O capataz estava na berma da estrada a falar com um homem que Calò julgou reconhecer. Não era nenhuma
referência precisa, era uma impressão, uma sensação desagradável, a perceção instintiva de um animal que sente no ar um sinal de perigo. Um rosto e uma silhueta
que passaram com a rapidez de um fotograma. A campainha de alarme calou-se e ficou um pensamento desconfortável.

A saída da escola, Bruno furou um mar de crianças tagarelas, distribuindo alguns cumprimentos apressados, atirou a pasta para o porta-bagagens, saltou para o assento
ao lado de Calò e deu-lhe um beijo na face.
- Segue aquele carro - disse, imitando os detetives cinematográficos.
Calò estava no sétimo céu e partiu como um raio.
- Com toda a força - incitou-o.
O caminho de regresso foi breve e descontraído.
- Assim nunca mais vamos ganhar um grande prémio - lamentou, - andas como um caracol. Ao chegar à estrada dos laranjais, Calò abrandou a velocidade.
- Tenho de dar uma vista de olhos por aqui - justificou-se.

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Ultrapassaram dois camiões carregados de caixas de laranjas porque Bruno gostava das ultrapassagens, mas sobretudo para se esquivarem aos gases emitidos pelos tubos
de escape.
- O que é que estás a ver? - perguntou Bruno, curioso.
- Como vão os trabalhos. - Estavam no mesmo local onde tinha visto anteriormente o capataz a falar com o indivíduo cuja figura e fisionomia o tinham alarmado. Mais
uma vez, pensou naquele homem, esforçando-se, sem êxito, por se lembrar.
- Mas tu, realmente, nunca descontrais - disse-lhe Bruno.
- Mesmo quando observas - disse-lhe - arriscas-te a deixar para trás coisas importantes. Diminuiu a velocidade para ver se no meio dos homens e das mulheres que
efetuavam a apanha da laranja reconhecia alguém. Ficou inquieto. Tinha a certeza de que alguma coisa não estava certa.
Diante da villa esperava-os a princesa Isgrò.
- Estou enganada ou vieram mais tarde? - disse com apreensão, ao mesmo tempo que consultava um pequeno relógio de pulso.
Bruno saiu do MG com um salto e correu ao encontro dela.
- O Calò vive no tempo das carroças - disse, enquanto a abraçava com efusão. - Que agradável surpresa voltar a ver-te, madrinha! - A princesa não dava sinais de
vida há vários dias.
- Sabias que estava em Paris, não sabias? - Gostava de ouvir o filho de Annalisa tratá-la também por madrinha.
- Imagino que tenhas muitas coisas para me contar. - Estava ávido de notícias, mas sobretudo contava com um presente.
- Vou contar-te tudo sobre a minha viagem - prometeu-lhe, enquanto Bruno esperava uma demonstração mais vistosa e concreta. - Mas agora temos de nos despachar. O
teu avô está à nossa espera para o chá. - Era um dos rituais obrigatórios da família.
Calò foi ter com eles, trazendo a pasta de Bruno, e entraram juntos em casa. O chá era também um pretexto que permitia ao barão ter um pouco mais próximo aquele
neto indisciplinado que, aos 9 anos, adquirira o hábito de fazer longas cavalgadas que o deixavam apreensivo.
Calò ia frequentemente com ele, mas por vezes estava ocupado nos trabalhos da propriedade e Bruno não renunciava por isso ao seu desporto favorito.
Bruno entrou a correr na sala e abraçou o avô, dando-lhe um beijo

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sonoro na face que cheirava a lavanda. O barão corou de prazer, perturbado com aquela afetuosa agressão.
- Mais dia, menos dia, ainda cais e magoas-te - censurou-o.
- Sou um mestre nas quedas - rebateu, cheio de orgulho.
- Também é verdade - admitiu o velho barão.
Tinha passado o limiar dos 60 anos e conservava uma esplêndida forma física. Só os cabelos estavam mais brancos, assim como as sobrancelhas fartas. As frequentes
rabugices e as apreensões irracionais testemunhavam a passagem do tempo. A trágica morte da única filha acentuara-lhe as rugas. Os olhos brilhavam-lhe quando olhava
para o neto, que se tornara a razão da sua vida.
Bruno renunciou ao seu irrequieto vaivém e esperou que Annina, que estava cada vez mais pequena e cada vez mais branca, servisse o chá, ajudada pela princesa.
- Tenho a certeza de que me trouxeste um presente de Paris - disse à madrinha, apesar das boas intenções para dominar a curiosidade que sentia.
- Isso é depois - interveio o avô, severo. - Primeiro quero saber o que fizeste hoje na escola. - Também o clássico relatório, que dava alegria ao avô, fazia parte
do ritual.
Para Bruno a escola era uma aventura, desde que não se tratasse de escrever ou de resolver problemas. A sua especialidade era a comunicação verbal.
- Hoje correu às mil maravilhas - começou a contar, observando pelo canto do olho o tabuleiro com pastéis folhados que Annina tinha pousado em cima da mesa e do
qual se libertava um delicado aroma a baunilha.
- Vamos lá ouvir. - O velho barão estava ansioso por saber.
- O padre Rolando levou-nos a Villa Giulia para visitar o jardim botânico.
Bruno frequentava o colégio dos padres jesuítas. Segundo o avô, eram educadores intransigentes mas extremamente eficazes.
- Não me digas que para ti foi uma novidade. - Tinham-no visitado juntos diversas vezes.
- Os meus colegas também foram. E também foi o padre Rolando. - Em grupo tinha admirado aquela maravilha com outros olhos. - O padre Rolando ensinou-nos que o jardim
tem uma arquitetura típica do século XVIII.

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- É verdade - disse o barão, lamentando não ter sido ele a dar-lhe aquelas informações.
- Também disse que Villa Giulia - prosseguiu - se chama assim por causa de Giulia Guevara, mulher do vice-rei.
- Goethe considerava-o o canto mais bonito do mundo - acrescentou o barão, para não perder o andamento imposto pelo neto.
- Eu também acho isso - rebateu com seriedade. - Mas não sabia que lá estavam todas as árvores exóticas que aparecem nos romances do Salgari. O padre Rolando mostrou-nos
a figueira-de-bengala, a sumaumeira e as araucárias verdíssimas.
O barão estava admirado com a capacidade que o neto tinha para recordar os nomes, as coisas e os pormenores.
- Numa estufa - continuou -, havia um lótus sagrado, aquele que se vê reproduzido nas estátuas do Buda. Vimos orquídeas maravilhosas, a árvore do café e uma infinidade
de plantas da selva.
- Pois parece-me que hoje o dia foi muito interessante - interrompeu o barão. Sabia por experiência que se não travasse o ímpeto verbal do neto o chá ia ficar frio
e Bruno acabaria por dar uma conferência sobre o jardim botânico. - Vê lá - acrescentou -, se estes pastéis folhados preparados por monsù não são igualmente dignos
de atenção.
Bruno não se fez rogado, pegou num pastel e provou-o: - Está ótimo!
Calò, mais do que beber, engoliu o chá e pousou no tabuleiro a chávena já vazia.
- Com licença, don Peppino - despediu-se bruscamente.
- O que se passa? - O barão notou alguma coisa de estranho.
- Um trabalho que ficou a meio. - Tinha-se-lhe metido na cabeça que alguma coisa não estava a funcionar na apanha das laranjas. Queria ver com mais atenção.
- Vai lá. - Giuseppe Sajeva não o incomodou com mais perguntas. Calò sabia o que andava a fazer e tinha a sua confiança incondicional.
Bruno despediu-se dele distraidamente porque se aproximava o momento da surpresa.
- É este o meu presente para ti - anunciou a princesa, ao mesmo tempo que tirava de detrás da poltrona um grande embrulho que pousou aos pés de Bruno.
Bruno deu-lhe outro beijo, puramente formal desta vez, porque o

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embrulho captava toda a sua atenção. Com o entusiasmo de o abrir, por pouco não atirou ao ar o chá e os pastéis.
O barão olhou alternadamente para o neto e para a princesa, que de duas formas diferentes lhe recordavam a inexorável passagem do tempo. Ela estava mais perto dos
60 do que dos 50 e tivera a prudência de renunciar a maquilhagem e de arrumar no fundo de um armário os seus célebres decotes, abandonando assim os expedientes grosseiros
que consistiam em sobrepor aos sinais de uma agradável e elegante maturidade a ilusão de uma juventude teatral.
O barão olhou para ela com admiração, enquanto Bruno se encontrava numa grande azáfama em volta das fitas que fechavam o embrulho.
- És uma das presenças mais agradáveis que um homem pode desejar - elogiou-a.
A princesa sorriu-lhe com reconhecimento.
- Agradeço-te. - Olhou para ele, comovida. - Só um cavalheiro da tua estirpe consegue fazer sentir-se jovem uma mulher da minha idade sem necessidade de a adular.
- Como está Paris? - perguntou com nostalgia.
- Cheia de recordações. - Bebeu um gole de chá da chávena de porcelana inglesa. - Com mais algumas rugas. Mas sempre agradável.
- Como tu - disse ele, com uma vénia impercetível.
- Como nós - precisou com um vago tom de tristeza na voz.
Tinha retomado o hábito de voltar a Paris uma vez por ano, ao atelier da sua amiga Coco. Os tempos tinham mudado: em vez de adquirir um guarda-roupa inteiro, limitava-se
a escolher apenas alguns vestidos.
- Já não estamos juntos há tanto tempo - queixou-se o barão.
- Talvez seja por isso que os nossos encontros são mais intensos e agradáveis. - Depois da partida de Annalisa para a Califórnia, a sua presença naquela casa ficara
desprovida de uma justificação oficial.
- Escolheste a liberdade para viver a tua segunda juventude - brincou ele.
- Uma liberdade condicionada. - Tinha sido obrigada a reabrir o palácio da via Ruggero Settimo, em Palermo, assumindo um notável sacrifício económico. Morava só
no primeiro andar, mas a vida estava muito mais cara, sobretudo em relação ao património familiar, que era cada vez mais exíguo e improdutivo.

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- Esta casa é tua - disse o barão, acariciando uma secreta esperança.
Bailou-lhe nos olhos um leve sorriso.
- Nunca regressar ao local do crime - replicou com uma alegria discreta.
No entanto, depois de Bruno regressar da América, ela tinha retornado o hábito de passar grande parte do seu tempo livre ao lado do barão e de Bruno.
- O Bruno precisa de uma presença feminina - disse o barão. - O Calò e eu não podemos substituir... - Ia dizer a mãe, mas deixou a frase por concluir. Qualquer referência
a Annalisa lhe causava comoção e reacendia a sua dor.
- És um amigo muito querido, Peppino. - Quem sabe se teriam sido igualmente felizes se tivessem decidido casar-se.
As exclamações de Bruno interromperam aquele diálogo. Espantado, admirava o presente da tia Rosa, finalmente livre do invólucro. Era um bonito barco em miniatura
ligado a uma pilha que lhe permitia navegar eletricamente. Na popa e na proa, sobre um fundo branco leite, tinha sido pintado um trevo e o nome que se destacava
a dourado era Il Trifoglio.
- Este barco foi feito de propósito para mim! - exclamou, entusiasmado, ao reconhecer o símbolo da família.
- De propósito para ti - confirmou a princesa, feliz com a felicidade dele. - Se o meteres no lago da fonte, o Trifoglio vai poder navegar. E tu podes manobrá-lo
como quiseres.
- Avô, posso ir experimentar agora? - perguntou, ansioso.
- Claro que podes - autorizou. - Vê lá se não te encharcas. O sol já está a pôr-se. E já não está assim muito calor.
Bruno dirigiu-se à porta, abraçando delicadamente aquela maravilha, mas deu meia-volta e anunciou solenemente.
- Quando eu for grande, vou ter um barco a sério. E vai chamar-se Trifoglio. - Depois correu até ao jardim. A história da viagem da madrinha a Paris já não lhe interessava.

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Mimmo Caruso

Calò foi ter com Bruno, como todas as noites, às nove e meia em ponto, quando este recolhia ao seu quarto para se deitar. Calò sentava-se numa poltrona estilo Império
com os braços em forma de cisne espera que Bruno se enfiasse debaixo da roupa.
Era aquele o momento em que Bruno lhe fazia as suas confidências e lhe contava os episódios aparentemente irrelevantes do seu pequeno mundo. Calò escutava, anuía
ou tentava responder aos seus muitos porquês.
- Hoje o padre Rolando - disse - ditou-nos uma frase: "A água é um solvente". Mas eu percebi: "A água é um sorvete." Não te dá vontade de rir?
- Dá-me vontade de rir, sim. - Escutava Bruno, numa atitude afetuosa, mas o seu pensamento vagueava fora daquele quarto tranquilo.
- Calò - murmurou Bruno com ar de quem lhe vai fazer uma confidência muito difícil -, hoje vi uma coisa que me impressionou muito. Fez uma pausa embaraçada e acrescentou:
- Mas se calhar é melhor não te dizer nada.
- Depende. - Calò estava curioso e preocupado.
- Depende de quê? - A vontade de lhe confessar o seu segredo era irresistível e estava à procura de um pretexto para o poder fazer.
- Se prometeste guardar um segredo, deves ficar calado - ensinou-lhe.
- Não fiz promessa nenhuma - garantiu -, só que é uma coisa muito delicada.
- Então depende de ti - observou com voz calma. - Depende de ti e da pessoa a quem queres confessar.
- Calò - decidiu-se -, posso pedir-te que guardes um segredo?

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- Claro - garantiu. - Não sabes que podes contar comigo?
- Oh, sim, isso eu sei - disse com entusiasmo.
- Então? - Tinha conseguido transformar numa espera tensa uma pausa que seguramente não escondia nenhum acontecimento dramático. Pelo menos, assim esperava.
- Um amigo meu levou para a escola uma fotografia de uma mulher toda nua - disse de um fôlego.
- Estou a perceber. - Calò deu um suspiro de alívio e sentiu uma grande vontade de rir.
- E não me dizes nada? - Espantou-se pela indiferença com que ele tinha recebido aquela notícia "sensacional".
- E o que queres que te diga? - Até se tinha esquecido dos pensamentos obscuros que o angustiavam.
Bruno ganhou uma nova segurança com o rumo que a conversa estava a levar.
Uma mulher nua - repetiu -, com uns seios assim. Encontrou-a numa gaveta no escritório do pai. Mostrou-a a toda a gente. Eu fiquei corado, mas percebi que gostava.
Porque é que eu gostei tanto de ver uma mulher nua?
Calò passou uma mão pelo rosto para ganhar tempo. Não estava preparado para uma pergunta daquele género.
- Acho que é uma reação normal. - Não era grande coisa como explicação, mas sempre era melhor do que nada.
- O avô ia ficar zangado se soubesse? - perguntou, preocupado.
- Era preciso dizer-lhe, para se saber. - Pareceu-lhe uma maneira eficaz de encerrar o assunto.
- Mas nós não lhe vamos dizer nada - disse, alarmado.
- Claro - sossegou-o -, é um segredo entre nós.
- Calò, quando for grande gostava de ser cientista - confessou.
- Seria bom - comentou, paciente.
- Gostava de inventar um verniz que tornasse invisíveis as coisas e as pessoas. Achas que vou conseguir? - perguntou.
- É uma pergunta que requer uma grande reflexão - tergiversou. É melhor deixarmos isso para outra vez...
- Se calhar tens razão. - Puxou a roupa até ao queixo e sorriu-lhe com os grandes olhos cinzentos que se iam tornando visivelmente mais

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pequenos com o sono. Era o sinal de que Calò estava à espera. Tinha pressa em se ir embora e queria que Bruno adormecesse imediatamente.
Bruno abraçou-o.
- Esta noite estou particularmente feliz - murmurou-lhe ao ouvido. - A madrinha também está aqui connosco. Trouxe-me um barco que se chama Trifoglio. Quando eu for
grande vou mandar fazer um a sério para mim. Tu vens comigo e vamos navegar por todos os mares do mundo. Como os heróis do Salgari.
- Isso parece-me boa ideia - disse Calò, enquanto lhe aconchegava a roupa da cama.
- Sabes que quando o avô pensa que eu estou a dormir - confiou-lhe - entra em bicos de pés e passa-me uma mão pelos cabelos? Eu gosto. Por isso faço de conta que
estou a dormir. E a madrinha convida-me para ir para junto dela no sofá, abraça-me e embala-me como se eu fosse um bebé. Também gosto disso. Mas também gosto de
ser um herói do mar. Esta noite estou mesmo contente. - Tinha a voz empastada de sono.
- Eu também estou, meu menino. Uma noite feliz - disse, dando-lhe um beijo na testa.
- Uma noite feliz para ti também, Calò.
Calò fechou delicadamente atrás de si a porta do quarto de Bruno e desceu a escadaria, dirigindo-se ao escritório do barão.

O barão estava sentado numa poltrona a ler o seu inseparável Montaigne. Uma máquina diabólica chamada televisor tinha sido colocada numa mesa: era um aparelho monumental
e maciço ao qual Giuseppe Sajeva ainda não se tinha habituado e que para ele não tinha futuro.
- Isto é uma coisa boa para os americanos - afirmava abanando a cabeça.
A primeira série transmitida pela RAI que passou no ecrã daquela caixa escura não lhe tinha agradado assim muito, mas o mecanismo que permitia a transmissão à distância
de imagens em movimento tinha o seu quê de milagroso.
- Novidades? - perguntou a Calò, sem levantar os olhos da leitura. Agora usava para ler uns pequenos óculos pousados em equilíbrio sobre o seu nariz robusto.
Galã serviu-se de conhaque.

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- Nem sei - respondeu evasivamente, ao mesmo tempo que se instalava naquela que passara a ser a sua poltrona, no canto do escritório ao lado da janela. Giuseppe
Sajeva contentou-se com aquelas duas palavras e continuou a confrontar os pensamentos contidos nos ensaios do grande castelão do Perigord com as suas próprias ideias
sobre a vida e a morte.
A princesa estava sentada ao lado da lareira, atenta a um minucioso bordado de ponto pequeno. Calò abriu o livro que tinha escolhido na biblioteca. Desde que tomava
conta de Bruno, lia antecipadamente as suas aulas para não fazer figura de ignorante. Aos 31 anos tinha começado a estudar as matérias que em criança ninguém lhe
tinha ensinado. E achava aquela ocupação muito interessante.
O grande relógio de pêndulo bateu dez toques musicais. Calò sabia que dali a pouco a princesa se ia retirar. Queria falar com o barão, mas tratava-se de coisas demasiado
reservadas para serem discutidas na presença de outras pessoas, ainda que se tratasse da princesa Isgrò.
O barão vigiava-o pelo canto do olho ao mesmo tempo que iniciava um capítulo de história renascentista e apercebeu-se de que o afeto que sentia por aquele gigante
confinava com a ternura. Nenhum pai protegeria um filho como Calò protegia Bruno.
Giuseppe Sajeva, tal como o seu inspirador Montaigne, mas por razões diferentes, estava preparado para a grande viagem e podia sorrir à morte agora que o grande
medo fora exorcizado. O barão nunca se enganara na escolha dos homens. Quando o recolhera, macilento e esfomeado de pão e de afeto, na praia deserta em frente ao
mar do Vale dos Templos, ficara com a certeza de que aquele filho do vento se tornaria um homem verdadeiro: tinha tido razão.
A princesa Isgrò, com um bocejo protegido pela elegante mão cheia de joias, abandonou o bordado numa caixa e pousou-a na mesinha de trabalho.
Quando fez menção de se mexer os dois homens levantaram-se em sinal de respeito. Aproximou-se do amigo e pousou-lhe um beijo na face.
- Boa-noite, Peppino. - Iam longe os anos em que a incansável e brilhante dama era sempre a última a despedir-se.
- Boa-noite, Rosa - desejou-lhe, observando por baixo dos olhos dela alguns sinais de cansaço.

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- Boa-noite, princesa - disse Calò com uma vénia.
- Para ti também, meu jovem amigo. - Entrou um criado, atiçou o fogo na lareira onde colocou um grande tronco que começou imediatamente a crepitar.
Quando o criado se retirou, Calò fechou o livro de História e pousou-o em cima da mesa.
- O que é que se passa? - perguntou o barão, olhando-o finalmente nos olhos.
- É que este ano alguma coisa não está bem nos laranjais. - Andava às apalpadelas com as palavras e com os gestos. - Passa-se qualquer coisa de estranho que não
me agrada nada.
- Quando deste conta? - Giuseppe Sajeva avaliava os problemas como as doenças graves: identificando-os precocemente era mais fácil eliminá-los ou limitar-lhes os
danos.
- Hoje, quando ia para a cidade buscar o Bruno. - Contou-lhe de forma clara aquilo que tinha visto.
- E voltaste ao mesmo sítio depois do chá. - Tirou os óculos e enfiou-os no bolso do casaco.
- E não encontrei o capataz, o Nicola Peci. - Era um novelo emaranhado de vagas suspeitas. - Os homens estavam a carregar as caixas para o último camião.
- Que depois se dirigiu ao porto - afirmou o barão.
- Não - desmentiu Calò. - E foi isso que me fez desconfiar. Depois, o camião foi metido no armazém e fechado à chave.
- Porquê? - O barão levantou-se e aproximou-se da janela. Olhou lá para fora como se estivesse à espera de encontrar alguém emboscado.
- Foi o que eu perguntei aos homens. - Pegou num número da Life e folheou-o distraidamente, como se procurasse ali a solução dos seus problemas.
- E eles? - O barão retomou o seu lugar e bebeu um gole de conhaque.
- Disseram-me que era tarde. - Levantou os olhos da revista e olhou em volta. - Disseram-me que o camião ia chegar ao porto com os portões fechados. Disseram-me
que por ordem de don Nicola o último camião fica sempre fechado no armazém. E só parte de madrugada.
- Bastava começar um pouco antes para evitar este inconveniente. Tinha-se levantado e ouviu-se bater uma portada.

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- Foi o que eu pensei - observou.
- A carga estava em condições? - perguntou o barão.
- Verifiquei pessoalmente - afirmou. - Tudo em ordem. As caixas perfeitamente fechadas. E, no entanto, eu acho que há qualquer coisa que não bate certo.
O barão escutava-o com extremo interesse. Queria fazer uma objeção, mas guardou-a para si. Se don Calogero Costa tinha uma dúvida, era preciso acreditar nele.
- Quando regressei a casa, ao fim da tarde - continuou Calò -, encontrei a resposta. Como se a névoa que tinha na memória se tivesse dissipado. Acho que sei quem
é o homem que estava a falar com o capataz.
- Quem é?
- Mimmo Caruso - pronunciou lentamente.
- Não me recordo - afirmou, enquanto fazia o inventário das caras e dos nomes conhecidos.
- Mas eu sim. - Indicou um ponto distante na direção da janela.
- Isso é bom - observou -, mas seria melhor se soubéssemos os dois de quem estamos a falar. - Com o entusiasmo da conversa, também o barão se tinha posto a falar
em Siciliano cerrado.
- Lembra-se de quando me mandou ter com o deputado Rizzo por causa daquele processo que tinha a ver com o palácio da via Maqueda?
O barão lembrava-se. Logo depois da guerra quis restaurar o palácio destruído pelos bombardeamentos, mas o orçamento era elevadíssimo. O assessor das Obras Públicas
sugerira-lhe que se dirigisse ao deputado Rizzo que fazia parte de uma comissão parlamentar criada para a reconstrução e restauro dos edifícios considerados monumentos
históricos. O palácio da via Maqueda tinha todos os requisitos para obter o licenciamento e os fundos previstos pela lei. Mas aquele projeto permanecera um belíssimo
projeto e o palácio Sajeva uma ruína decrépita invadida pelas ervas daninhas, frequentado pelos ratos, sepultado debaixo do lixo. O deputado Rizzo gozava da fama
de cavalheiro e bom cristão e deu a entender que sim, que a coisa seria possível, com a condição de o projeto ser reelaborado por um arquiteto da sua confiança.
Mas mesmo naquele caso os fundos só chegariam se os trabalhos fossem executados por uma empresa que ele indicaria de boa vontade. Era, portanto, uma operação engenhosa,
complexa e decididamente pouco limpa.

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O que é que o deputado Rizzo tem a ver com isto? - perguntou o barão, irritado com a evocação daquele episódio desagradável.
- Não sei - respondeu Calò. - Sei que naquela ocasião, no escritório do deputado, vi a mesma pessoa que vi hoje no laranjal a falar com o capataz.
- Mimmo Caruso - repetiu o barão, para o gravar bem na memória.
- É um sujeito baixo, encorpado, com os cabelos pretos - esclareceu Calò. - E é irmão do Joe Caruso, o boss da frente portuária de Nova Iorque. Achei que tinha uma
relação de grande cordialidade com o deputado Rizzo. E a coisa espantou-me.
O barão tinha ficado particularmente atento e não lhe escapava um sinal, um gesto, uma nuance.
- Então, interroguei-me - continuou Calò -, que sentido teria aquela amizade? Mas ao fim e ao cabo a coisa não me dizia respeito e acabei por esquecer. Hoje pensei:
o que é que o Mimmo Caruso anda a fazer nos nossos laranjais? Que relação terá com o Nicola Peci? As nossas laranjas são carregadas no porto de Palermo e vão para
Nova Iorque, onde está o irmão de don Mimmo que faz o que quer e lhe apetece. Don Peppino, o que pensa disto?
- A minha conclusão é desagradável, Calò - respondeu num tom sério e conclusivo. - Eu acho que naquele camião parte alguma coisa que não tem nada a ver com as nossas
laranjas.
- O que é que me aconselha? - Tinha a humildade de um subalterno e a devoção de um filho.
- Que indagues com toda a discrição de que és capaz. - O tronco na lareira cedeu sobre as cinzas ardentes. - Temos de saber se alguém anda a tentar envolver-nos
em alguma história suja.

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Caggiu

Calò tirou do armário a espingarda Browning de caça, a arma automática que preferia e com a qual tinha o máximo cuidado, levantou o obturador e fez deslizar para
dentro do recetáculo cinco cartuchos com projétil de chumbo único em vez das esferas de chumbo. Eram cartuchos para a caça ao javali. Acionou cautelosamente a arma,
pôs o travão e limpou-a com um pano macio; depois pousou-a na mesa da cozinha, amarrou a cartucheira à cintura e controlou os cartuchos um a um. Finalmente, tirou
de um frasco algumas raízes de alcaçuz e meteu-as no bolso do casaco.
O café fervia ao lume e em volta espalhava-se um aroma agradável. Despejou todo o conteúdo da cafeteira numa grande chávena branca. Começou a beber devagar, em pequenos
goles, aquele café amargo e fragrante que lhe proporcionou uma agradável sensação de bem-estar. Pegou na espingarda, passou a correia pelo ombro e saiu para a noite.
Os seus olhos habituaram-se à escuridão e na ténue luminosidade das estrelas avançou por um caminho que percorreu durante vários quilómetros, no meio do perfume
das laranjeiras, enquanto desfrutava os cheiros e a claridade noturna da sua terra, a voz misteriosa e sussurrante das árvores.
Ao fim de meia hora de marcha chegou perto do armazém; os seus olhos já se tinham habituado ao escuro e distinguiam nitidamente os contornos do edifício. Em volta
não havia vivalma e o grande portão estava trancado. Deu a volta ao armazém, percorreu o lado direito e parou diante de uma pequena porta nas traseiras da qual tinha
a chave. O interior estava mergulhado numa escuridão total, mas Calò sabia de cor todos os cantos daquele armazém, e sabia exatamente onde pôr os

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pés, avançando com a cautela de um gato. Dirigiu-se ao ponto onde estavam colocados uns grandes sacos de nozes, tateou para ter a certeza de que tinha chegado ao
sítio certo, acocorou-se no chão, instalou a espingarda automática entre os joelhos, enfiou na boca uma raiz de alcaçuz e à espera, imóvel. Segundo os seus cálculos,
devia ser já uma hora da manhã. Por volta das duas ouviu passos e uma ligeira agitação, uma chave rodou na fechadura e a porta grande abriu-se, deixando passar um
ténue de luz. Entraram dois homens e brilhou uma pilha elétrica. Calò reconheceu um pela voz: era Nicola Peci, o capataz. O outro falava em silo arcaico com um forte
sotaque americano. Calò não o reconheceu.
Com movimentos rápidos de quem está habituado àquela operação, descarregaram quatro caixas de laranjas, abriram-nas, tiraram uma peça de fruta de cada uma das quatro
caixas e substituíram-na por uma laranja idêntica que iam tirando de um saco que o homem de forte sotaque americano trazia a tiracolo. Voltaram a colar o papel azul
à madeira das caixas agrafos. Meteram no saco as laranjas retiradas das caixas.
- OK - disse o americano, com alívio. - Esta também já está feita. Mais duas cargas e termina o trabalho deste mês.
- E a minha parte? - perguntou Nicola Peci preocupado, referindo-se evidentemente à sua compensação.
- Depois de amanhã. - O italo-americano piscou-lhe o olho com uma cordialidade fingida. - A tua parte é com o trabalho concluído. Quando fecharmos a última caixa
vais receber o que te toca. Não confias?
- Confiar, confio - disse o capataz, que preferiria receber imediatamente o seu dinheiro.
- Somos homens de honra - afirmou o outro, de uma forma desagradável. - Nunca nos esquecemos de compensar quem nos serve fielmente.
Saíram os dois e fecharam cuidadosamente a porta. Calò ouviu os passos que se afastavam e pouco depois ouviu-se o motor de um carro. Era estranho não ter ouvido
o motor quando chegaram. Obviamente tinham desligado ao longo da ligeira descida com cerca de um quilómetro dava acesso ao armazém.
Quando teve a certeza de que estava só, acendeu uma lanterna e aproximou-se do camião para inspecionar a carga. Eram centenas de caixas, todas exatamente iguais
umas às outras: descobrir aquelas que tinham sido mexidas equivaleria a procurar uma agulha num palheiro. E, no

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entanto, devia haver um sinal de reconhecimento, um pormenor qualquer que as distinguia das outras.
À luz da lanterna, examinou cuidadosamente aquelas que se encontravam no ponto de onde provinham as vozes. Em cada caixa havia a marca das laranjas do barão. Todas
inexoravelmente iguais, sem um único pormenor que as diferenciasse: era de perder a cabeça. Mas as embalagens mexidas eram certamente dirigidas a alguém que tinha
de as reconhecer e para isso tinha de ter um ponto de referência.
Calò continuou a examiná-las minuciosamente segundo um método: de cima para baixo e lateralmente. Algumas tinham nós escuros nos veios, outras eram perfeitamente
brancas. Passou as pontas dos dedos sobre as superfícies lisas à procura de eventuais saliências. Nada. Quando estava prestes a render-se perante uma tarefa que
se revelava superior as suas capacidades, foi atraído por um detalhe.
Aproximou o feixe de luz de algumas caixas que se encontravam na parte lateral da carga e apercebeu-se de que a marca vermelha das laranjas dos Monreale era um pouco
mais escura, mas o que lhe chamou sobretudo a atenção foi um borrão de cor sobre a parte superior da torre normanda. E chamou-lhe a atenção porque em todas as outras
caixas o desenho era nítido, perfeito.
Contou as caixas com as marcas escuras e o borrão no desenho: eram quatro. O coração saltou-lhe: talvez tivesse chegado à solução do problema. Descarregou uma das
quatro caixas e, com a ajuda de um canivete, levantou os agrafos; depois levantou o papel pesado que cobria os frutos envolvidos em papel de seda vermelho e azul
com desenhos dourados e observou-os. Parecia tudo em ordem. Pegou nas laranjas uma a uma e tomou-lhes o peso na palma da mão. Cada caixa continha noventa, todas
selecionadas com cuidado, e de peso mais ou menos idêntico: entre duzentos e noventa e cinco e duzentos e trinta e cinco gramas. Também o diâmetro correspondia ao
modelo da exportação: pouco mais de vinte e cinco centímetros. O que é que não batia certo? Onde estava o imbróglio?
Pegou nelas mais uma vez, uma por uma, e apalpou-as com as pontas dos dedos. Nada. Sentou-se no chão e recomeçou com tenacidade, desta vez fazendo passar cada fruto
sob o feixe de luz da lanterna. A certa altura descobriu um pormenor que lhe fez subir o sangue à cabeça. Apeteceu-lhe gritar de alegria: tinha finalmente descoberto
a artimanha.

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No meio das outras havia uma laranja que tinha um brilho diferente, uma macieza insólita e uma textura suspeita, uma coloração ligeiramente mais viva. Era tão bonita
que parecia artificial. Calò espetou a unha na casca e não teve mais dúvidas: era uma laranja de cera, uma autêntica obra de arte. Agora tratava-se apenas de saber
o que continha aquela reprodução fidelíssima. Certamente algo de precioso ou de muito importante e pouco limpo.
Abriu as outras três caixas, identificou imediatamente a laranja falsa, enfiou as quatro imitações no casaco de veludo e substituiu-as nas caixas por outros exemplares
idênticos retirados do monte no setor reservado seleção. Voltou a fechar as caixas, tendo o cuidado de que a embalagem ficasse perfeita, após o que, passando pela
pequena porta que dava para as traseiras, tomou rapidamente o caminho de casa.
Eram cinco horas da manhã e a madrugada ainda estava longe quando chegou à villa de San Lorenzo. Através da janela do quarto do bardo via-se luz. Giuseppe Sajeva
tinha passado a noite à espera dele. Abriu a porta com a sua chave e viu descer o barão, em roupão, com um lenço branco de seda ao pescoço.
- Fizeste uma noitada, Calò? - Encontraram-se no átrio e o Barão deu-lhe uma palmada no ombro.
- Vossa Excelência também - observou. A sua prudência natural não conseguia de todo esconder o entusiasmo da descoberta.
- Fizeste uma boa caça? - Olhou-o com um ar interrogativo.
- Boa e má - respondeu Calò. - Em qualquer caso, surpreendente.
- Vamos para o escritório - sugeriu, enquanto avançava à frente dele.
A boa Annina apareceu por uma porta do corredor de serviço.
- Minha Nossa Senhora, o que aconteceu, Excelência? - Estava um pouco despenteada e tinha uma madeixa branca caída na testa.
- Não aconteceu nada. - Sob o olhar severo do barão, ficou ainda mais pequena e magra.
- Já percebi. - Fez uma vénia, em atitude de submissão.
- O que foi que percebeste? - Giuseppe Sajeva olhou-a com um ar interrogativo.
- Que Vossa Excelência e don Calogero dormiram toda a noite - pronunciou com solenidade -, que ainda estão a dormir. Que até eu estou a dormir no meu quarto e que
não vi nada.

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O barão apreciou o discurso da governanta
- Não - sorriu-lhe -, tu estás aqui connosco. E já que aqui estás, vais fazer-nos um bom café e levá-lo ao escritório.
- Ao seu serviço, Excelência - respondeu, inclinando-se humildemente.
Calò, com uma calculada lentidão, pousou em cima da secretária do barão as quatro laranjas que tinha tirado das caixas.
- Esplêndidas laranjas - observou o velho barão.
- Demasiado bonitas para serem verdadeiras. - Calò sentou-se numa das poltronas em frente à secretária.
O barão aproximou-as do candeeiro e examinou-as lentamente uma a uma.
- Demasiado bonitas, realmente - admitiu. Viu a marca provocada pela unha de Calò e aprofundou a incisão com a ponta do abre-cartas.
Calò, sentado na poltrona, estava imóvel e compenetrado.
- Cera - observou o barão imperturbável. Examinou-as melhor e acrescentou: - Uma verdadeira obra de arte, uma perfeita imitação da Natureza. É difícil distingui-las
das verdadeiras.
Calò tirou de uma gaveta uma grande folha de papel grosso e pousou em cima um dos frutos.
- Abro? - perguntou, com o abre-cartas na mão.
O barão assentiu, abanando ligeiramente a cabeça branca.
- Vamos lá ver a surpresa que contêm. - Através das portadas da janela entrava a primeira luz da madrugada.
Calò enterrou a lâmina, a laranja abriu-se e o conteúdo espalhou-se em cima da folha. Era um pó branco e leve como talco.
- Droga! - disse o barão, colérico, e o sangue desapareceu da sua face austera. - A marca dos Monreale a apadrinhar esta peste branca - imprecou. - Vai buscar a
minha balança - ordenou.
Calò abriu a parte de baixo da estante e tirou de lá uma pequena balança de prata que sustinha um prato retangular e tinha um ponteiro oscilante em volta de uma
roda numerada de zero a duzentos gramas. O barão despejou todo o pó contido na laranja e o indicador parou nos cento e vinte.
- Cento e vinte gramas de droga - disse Calò.
O velho barão recolheu o pó no papel e pesou a laranja partida. A agulha parou nos cento e dez.

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- Um mecanismo diabólico e perfeito - admitiu o barão. - No total duzentos e trinta gramas, o peso médio de uma laranja de noventa. - Deixou-se cair contra as costas
da poltrona. Tinha-se tornado subitamente num velho cansado. - O nome, a dignidade e o orgulho dos Monreale arrastados numa história suja de droga. Profanaram a
nossa casa com o mais vergonhoso dos tráficos.
Calò sabia que um homem pode ter razões para matar e para roubar ou para vingar um ultraje, mas não havia justificações para quem envenenava o mundo.
- Embarcam meio quilo de droga por dia - disse, depois de fazer uma conta rápida. - A mercadoria é traficada por aquele camponês americanizado que eu não conheço.
É ele que mantém o contacto com o artista da cera. O Nicola Peci escancarou-lhe as portas de uma casa íntegra. Mas quem detém o jogo é o Mimmo Caruso. No fim do
carregamento, quando o navio parte para a América, sob a marca das laranjas Monreale, estão doze quilos de droga.
- É uma coisa inaudita. - O barão cerrou os punhos e apertou os maxilares. Palidez e rubor alternavam-se nas suas faces. - E provavelmente nunca vamos saber há quanto
tempo dura este tráfico.
Calò ficou pensativo por uns instantes.
- Eu sempre tive os olhos bem abertos - disse, com ar de quem se justifica. - Acho que é uma coisa recente. Pelo menos, espero.
Annina bateu à porta. Calò não a mandou entrar, pegou no tabuleiro com o café e voltou a fechar a porta rapidamente.
- Mimmo Caruso, dizes tu? - perguntou o barão.
- É uma pessoa muito influente. - O jovem serviu a bebida fragrante nas duas chávenas e açucarou abundantemente a do barão.
- Que tu conheceste no escritório do deputado Rizzo. - O barão provou o café e achou-o excelente.
Calò intuiu a dúvida do barão.
- Acha que o deputado Rizzo pode ter facilitado esta manobra? - Ficou por um instante com a chávena suspensa no ar.
- A droga é a vergonha dos nossos tempos. - Estava descontente por viver num mundo que considerava errado. - É um mercado em expansão alimentado por miseráveis que
matam sem risco. O dinheiro não tem

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cheiro, Calò. E quando chega às mãos das pessoas de respeito, até os trocos mais sujos ficam limpos.
Calò estava mortificado pelo sentimento de impotência que o atormentava.
- Não sabemos quem são os responsáveis - exclamou, com a intenção de resolver o problema à sua maneira.
- Os tempos mudaram, meu amigo - disse o barão, com um sorriso de desalento e afetuoso. - E a culpa é de toda a gente. Sobretudo nossa. Não quero dizer que antes
se estivesse melhor. Mas havia regras que eram respeitadas. Há apenas alguns anos ninguém teria ousado profanar a minha casa.
- É uma história acabada - consolou-o Calò. - Desta vez a carga não parte. Disso temos a certeza. E os carregamentos desta noite e de amanhã à noite? - perguntou.
- Vais fazer o mesmo trabalho - ordenou, recuperando subitamente o seu tom autoritário e decidido. - O navio vai partir sem droga.
- E quando em Nova Iorque se aperceberem de que descobrimos o tráfico? - Estava obviamente preocupado com o barão. - Vão pensar no senhor.
- É o que eu quero. - Nas grossas veias salientes da mão do barão parecia-lhe ver correr o sangue.
- É gente que não perdoa - disse, preocupado. O café estava a arrefecer nas chávenas, esquecido pelos dois homens. - Temo pela sua vida.
O barão olhou para ele com uma simpatia paterna.
- Quando uma coisa tem de acontecer, acontece - explicou. - O temor não modifica o curso das existências. O medo não trava o destino dos homens, mas despe-os da
dignidade necessária para o enfrentar.
Calò apercebeu-se de que não poderia fazer nada para se opor à vontade do barão.
- A primeira a saltar vai ser a cabeça do Nicola Peci - disse Calò com raiva. - E o deputado Rizzo? - O seu rosto contraiu-se.
- Os piemonteses, quando chegaram à Sicília - recordou o barão, enquanto empurrava com o indicador a chávena de porcelana inglesa -, ensinaram-nos a política da
alcachofra. Uma folha a seguir à outra, lentamente, para chegar ao coração. - Pegou na chávena entre o indicador e o polegar e fê-la em pedaços. - Eu tenho um neto
- continuou,

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aparentemente mais calmo e sereno. - Tenho-te a ti, que considero um filho. Estou velho e começo a estar cansado, mas sobretudo amargurado. No entanto, quem nos
envolveu nesta vergonha vai acabar como esta chávena. Não importa quem o vai fazer. Mas um de nós vai fazê-lo.
- E esta coisa? - perguntou Calò, referindo-se à droga.
- Na retrete, Calò. - Era uma ordem perentória. - Esta coisa vais deitá-la na retrete. Assim como a desta noite e a de amanhã.
O barão Giuseppe Sajeva levantou-se da poltrona. Tinha o rosto cansado de uma noite de insónea e os olhos injetados de sangue pelo ultraje sofrido. Mas tinha o ânimo
e o coração em paz, apesar de saber que ao declarar guerra à Máfia da droga tinha assinado a sua condenação à morte.
- Os tempos mudaram, Calò. Perdeu-se o respeito pela dignidade humana.
Mas Calò não acreditava que alguém no mundo tivesse a coragem de atentar contra a vida de Giuseppe Sajeva, barão di Monreale. Provavelmente iam atingi-lo a ele,
mas antes tinha de ajustar umas contas com Mimmo Caruso.
Se tinha de haver guerra, tanto fazia ser o primeiro a atacar.
- E o Mimmo Caruso? - perguntou.
- Resolve isso como quiseres. - O seu rosto já não parecia perturbado.
- De qualquer maneira, lembra-te de que não vais mudar a substância das coisas. - Estava ofendido, amargurado. - Os tempos mudaram - repetiu, ao sair do escritório.
- Bom descanso, don Peppino - despediu-se Calò. Foi até ao seu quarto e abriu a janela. O sol surgia no horizonte, expandindo ouro no dourado dos laranjais. O dia
prometia, o tempo não tinha a noção da mesquinhez e dos medos dos homens.
O jato quente do chuveiro restituiu-lhe vigor e um segundo café deixou-o com melhor disposição de espírito. Dali a pouco Bruno ia acordar e, como sempre, ele ia
levá-lo à escola. A vida daquela casa devia continuar ao longo dos carris da mais absoluta normalidade.
Era inútil pensar em Mimmo Caruso; de qualquer maneira, ele já estava marcado. Por aqueles lados a vida de um traidor valia muito menos do que o preço de um cartucho.
Calogero Costa já tinha matado e fizera-o instintivamente para reivindicar o seu direito como ser humano. Recordou aquele episódio com uma trágica clareza.

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Tinha 11 anos e guardava as ovelhas de um proprietário agrícola. Os dias e as noites, com sol ou com gelo, eram marcados pela pancada, pelos abusos, pelo escárnio
dos lambe-botas do patrão, que para acentuar o desprezo lhe chamavam caggiu, ou seja, rapaz de boa família, apesar de saberem que não tinha mãe nem pai e que fora
abandonado nos degraus da igreja de Girgenti.
Se uma ovelha ficava manca, era chicoteado até sangrar; se um cordeiro se perdia, era açoitado sem piedade. Mastigava raízes de alcaçuz para acalmar as ferradelas
da fome. Alimentava-se de pão, de cebola e de alguma azeitona roubada das árvores, no tempo dela. Um dia, ao entardecer, quando estava sentado numa pedra, rodeado
pelo rebanho, desorientado pelo terror, esfomeado e esfarrapado, viu chegar o patrão a cavalo. Estava tudo em ordem, nenhum dos animais se tinha perdido e não tinha
havido acidentes, mas ele sentia-se dominado por um estremecimento convulso. Porquê ter medo, então? Mas Calogero Costa, o bastardo, o abandonado, o filho de ninguém,
a criatura indefesa sobre quem se abatia o sadismo dos grandes, mas sobretudo a crueldade perversa do patrão, tremia da cabeça aos pés.
O homem desceu do cavalo. Era forte, entroncado, escuro, desagradável. Os olhos pequenos e afiados como espinhos pareciam os de um lagarto.
- Estás a descansar, não estás? - Começou a rir, deixando a descoberto uma coroa de dentes estragados. O rapaz não respondeu, já que qualquer resposta poderia provocar
uma reação negativa e violenta.
- É justo descansar depois do trabalho - considerou o homem, ao mesmo tempo que se aproximava dele com o chicote bem apertado no pulso e a dar pequenas pancadas
na própria coxa.
Calò, instintivamente, escondeu a cabeça entre os joelhos e encolheu-se em posição fetal. Esperou que o chicote se abatesse sobre as suas costas.
Mas o patrão continuou a falar com uma voz serena e um tom quase afetuoso.
- Divertes-te com essa brincadeira que estás a fazer? - perguntou-lhe.
O rapaz tinha apanhado pedras e construído um muro, empilhando-as umas em cima das outras. Gostava de construir barreiras atrás das quais pudesse procurar proteção
e segurança. O seu sonho era viver numa grande casa de pedra rodeada de altas muralhas.

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- Que sentido é que isso faz? - perguntou o patrão.
Calò ouvia a voz do homem, que era estranha, rouca e sem graça, mas insistia em manter-se com a cabeça baixa em posição de defesa. Não podia explicar-lhe o prazer
que lhe dava construir barreiras. Era difícil encontrar palavras mas, ainda que as encontrasse, o homem não ia entender.
- São horas de jantar, sabias? - O seu tom tinha-se tornado harmonioso. Calò esperava que o patrão voltasse a montar a cavalo para comer a sua ração de pão e cebola.
Tinha sido surpreendido na sua brincadeira solitária e conservava ainda uma grande pedra apertada na mão.
- Gostavas de ir até a propriedade e comer com os outros? - Calò continuava com a cabeça entre os joelhos, sem conseguir captar o sentido daquela insólita aproximação.
- Hoje a noite há costeletas de cordeiro - insinuou. Parecia um sonho ou o início de uma brincadeira. E se fosse verdade?
Calò ganhou coragem, ergueu finalmente a cabeça e olhou para o homem entre o medo e a surpresa. Era disso que o patrão estava a espera. O chicote assobiou no ar
antes de o atingir em plena face. O sulco azulado surgiu à flor da pele e começou imediatamente a sangrar.
- Assim vais aprender a brincar com as pedras - disse, a rir. - Junta as ovelhas, bastardo!
O cão, a ladrar, foi atrás de uma ovelha fugitiva e trouxe-a de volta ao rebanho. Em volta ressoavam balidos queixosos.
- E que não volte a acontecer eu ver-te a preguiçar antes da noite cair - avisou.
O patrão olhou para ele como se fosse um monte de esterco e depois dirigiu-se ao cavalo, que mordia uns fios avaros de erva amarelecida.
O rapaz viu-o tão negro e ameaçador contra o horizonte de fogo do poente que lhe pareceu o diabo. Era forte, violento, seguro de si e provavelmente achava-se imortal.
Calò pegou na pedra maior de entre as que tinha amontoado, agarrou-a com as duas mãos, aproximou-se do patrão, silencioso como um gato, ergueu-se em bicos de pés
e com uma força, que nem ele suspeitava que tinha, atingiu-o com a pedra na cabeça. O homem conseguiu virar-se para ele com uns olhos desorbitados e depois caiu
de bruços sobre o terreno poeirento. Então Calò continuou a bater intensamente com aquela pedra na cabeça do homem até a reduzir a uma coisa informe.

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Cuspiu naquele corpo já sem vida e fugiu. Parou de tremer e teve a certeza de que a partir daquele momento ninguém lhe ia chamar bastardo, ninguém o ia chicotear
ou açoitar. Nunca mais.
Quando chegou à praia deserta era de noite, o mar embalou-o com a sua canção ancestral e o vento acariciou-o como a mãe que não conhecera. Adormeceu no areal tépido,
sob o manto claro da noite com um céu cintilante de estrelas. O barão Giuseppe Sajeva encontrou-o naquela praia, ouviu a sua história e levou-o para o palácio de
Piazza Armerina. Tinha circulado a história de que o homem tinha sido morto por ferozes bandidos, a polícia encerrou o caso e o processo acabou no arquivo poeirento
do tribunal. E a partir de então Calogero Costa começou a conhecer a alegria de viver.
Naquele momento preparava-se para matar Mimmo Caruso e ia eliminá-lo sem arrependimento. Já não era um menino ultrajado e maltratado, era um homem consciente que
vingava a afronta feita à família Monreale. A sua família.

332

A presa

Tinham voltado a florir as giestas, o trevo verdejava e nas montanhas o amarelo do astrágalo destacava-se sobre o fundo dos terrenos de lava. Em junho Bruno tinha
superado brilhantemente o exame de admissão ao liceu. A família tinha feito uma grande festa. De São Francisco, o tio George e o pai enviaram-lhe dois presentes
inesquecíveis: um soberbo exemplar de cavalo indiano, a que Bruno deu o nome de Corsaro, e o registo de propriedade do palácio de Milão, na via Manzoni, que Philip
adquirira para Annalisa no fim da guerra. Os documentos da doação vinham acompanhados de uma carta. Sei que preferes viver em Itália, escrevia-lhe Philip, entre
outras coisas, e por isso não te quero obrigar a regressar a Califórnia. Mas quero voltar a ver-te. Parece-me um desejo legítimo, uma vez que és o meu único filho.
Por isso vou eu ter contigo. O que achavas se eu te pedisse que me recebesses na tua casa de Milão? Para mim, agosto dava perfeitamente. Achas que o teu avô aceitava
acompanhar-te a Milão para passar uns dias com um parente afastado americano?
- O que dizes, avô? - perguntou Bruno, que não conseguia apreciar plenamente a oferta do palácio, mas continuava entusiasmado com o cavalo indiano oferecido pelo
tio George.
- Acho que o teu pai é um homem realmente excecional - admitiu o barão, que em tempos tinha exprimido juízos apressados e injustos relativamente àquela espécie de
pele-vermelha aparentado com uma montanha de dólares.
Uma sombra de tristeza passou pelo bonito rosto de Bruno, velando-lhe o sorriso.

333

- Eu também acho. - A distância tinha mitigado a aspereza das regras férreas que muitas vezes o pai lhe impunha.
- Gostava muito de voltar a vê-lo.
O barão reconheceu que o genro se comportava com uma discrição e uma generosidade que o honravam. Escrevia muitas vezes ao filho e, com maior frequência ainda, telefonava-lhe.
Claro que acompanharia o neto a Milão, em agosto, altura em que aquela grande cidade lombarda é particularmente agradável.
Logo a seguir ao fim do ano letivo partiram no Lancia Artena do avô para Piazza Armerina e o barão falou-lhe de Milão, onde Bruno tinha vivido durante poucos meses
no distante ano de 1945.
Regressavam, avô e neto, de um passeio a cavalo. Tinham ido até ao bosque. Um corvo voou de um arbusto de rosa canina, espalhando um delicado perfume. Bruno, que
montava o seu Corsaro, sentiu-o tremer e afagou-o para o acalmar, apesar de o jovem animal ser de índole particularmente dócil e ter a qualidade de nunca teimar.
Um zumbido musical de insetos conferia voz ao verão e as abelhas obreiras atacavam as vistosas florescências lilás do cardo-mariano.
- O Calò diz que Milão é uma grande babilónia de cimento - disse Bruno, que continuava a acariciar o pescoço curvo do cavalo.
- O Calò é um urso, faccioso e bairrista.
- O que é que isso quer dizer, avô? - Uma esplêndida borboleta branca , com a ponta das asas cor de laranja quase lhe afagou a face e desapareceu ao longe.
- Quer dizer que, para ele, onde a Sicília acaba começa a barbárie. É a natureza dele. - Um coelho selvagem saltou de uma vala.
- E pode-se andar a cavalo em Milão? - perguntou Bruno, preocupado.
- Com certeza. - O velho falou-lhe da charneca de Gallarate e da propriedade nos arredores de Melzo, compradas no momento certo pelo seu amigo Filomeno Brancati.
- Eu vou desenterrar os velhos tempos com ele e tu podes brincar ou andar a cavalo com o filho. Tem 14 anos. Chama-se Paolo. Acho que até podiam tOmar-se amigos.
- Com uma pessoa de Milão? - duvidou seriamente.
- O Brancati é um Siciliano autêntico - garantiu com orgulho o homem
da ilha. - Vive e trabalha há anos em Milão, mas não se esqueceu de onde nasceu. Acho até que vai ser útil para ti conhecer a família Brancati.

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- A mãe falava-me muito de Milão. - A sua voz tornou-se triste e distante. - A mãe gostava muito daquela cidade. - Um grande melro de bico amarelo no meio de uma
clareira ergueu a cabeça, assustado com os dois cavaleiros, e levantou voo. - Dizia-me que Milão é uma cidade lindíssima. É verdade, avô?
- Todos os lugares são bonitos se lá houver alguém que te ame e que te respeite. - Os cavalos avançavam a passo, em sincronia; o barão gozava a paz daquela encantadora
manhã de sol e a companhia do neto.
- Os Monreale fazem-se respeitar em toda a parte, avô - afirmou Bruno com orgulho.
- Os Monreale - decretou solenemente - estão acima de qualquer suspeita.
Um gavião navegava no céu claro com asas imóveis.
- Como aquele falcão? - perguntou Bruno.
- Como aquele falcão - respondeu o avô, satisfeito com a comparação. - Sê tolerante com os fracos e inflexível com os fortes.

Passaram naquele encantamento alguns minutos de silêncio cadenciado pelo passo dos cavalos.
- Em que é que estás a pensar, avô? - perguntou Bruno.
- Que sou um homem cheio de sorte a partir do momento em que tenho um neto como tu.
Não mentia, mas escondia-lhe a verdade que o angustiava. Refletia sobre os acontecimentos do inverno, relembrava a intrusão ultrajante nos seus laranjais quando
alguém tinha achado que podia servir-se da sua marca para traficar droga: a infâmia dos vis, a profissão vergonhosa dos homens sem honra.
Os jornais sensacionalistas tinham registado sem excessivo entusiasmo alguns delitos genericamente considerados como ligados a Máfia. Nicola Peci tinha sido encontrado
com a garganta desfeita e uma pedra na boca na praia de Castellammare. Mimmo Caruso tinha sido liquidado com um tiro na testa quando saía uma noite de um conhecido
restaurante em Palermo. O ítalo-americano Joe Scalia tinha sido morto num camião em plena noite, em frente a um estabelecimento noturno. Depois das investigações
habituais, os casos foram arquivados. Ninguém tinha visto nada, ninguém estava em condições de ajudar a Justiça a fazer alguma luz sobre aqueles crimes ferozes.
Don Calogero

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Costa e o velho barão nunca mais abordaram o assunto, mas Giuseppe Sajeva tinha a certeza de que a história das laranjas disfarçadas não ia acabar ali. Poderia ter
tentado deter eventuais represálias e não lhe faltava a voz para fazer chegar às pessoas certas a informação de que estava disposto a negociar, mas os Monreale nunca
tinham descido a fazer pactos com ninguém, nem com os políticos, nem com os responsáveis da nova Máfia, que não tinham outras regras senão as que coincidiam com
o seu lucro pessoal.
- Lembra-te de outra coisa, meu filho - instruiu o neto -, na tua vida vais certamente encontrar pessoas que vão tentar encostar-te à parede. Nunca cedas. Quem cede
é um homem acabado.
Era uma frase que para Bruno não fazia sentido.
- Vou lembrar-me, avô - respondeu respeitosamente, ainda assim. Achou que era uma informação inútil. Quem poderia alguma vez encostar à parede o neto de Giuseppe
Sajeva, barão de Monreale?

Eram quatro horas da manhã. O céu cedia o seu azul-escuro intenso, no qual empalideciam as últimas estrelas, às tonalidades de madrepérola da madrugada. No palácio
de Piazza Armerina, ainda mergulhado no sono, Calogero Costa saiu do seu quarto em bicos de pés, levando umas pesadas botas numa mão e na outra um saco com o pequeno-almoço.
Entrou no quarto cor-de-rosa que tinha sido de Annalisa. Bruno estava já levantado e a vestir-se.
- Já estás acordado? - disse Calò, espantado.
- Estava ansioso. Ontem à noite não conseguia adormecer - confessou. - Tinha medo de não acordar e por isso pus o despertador.
- Estavas com medo que eu te deixasse em casa? - perguntou a sorrir, participando no entusiasmo de Bruno.
- É a primeira vez que o avô me leva com ele à caça. - Enfiou um casaquinho de fustão à caçador absolutamente idêntico ao de Calò. - Se tivesse vindo ele em vez
de ti e me encontrasse a dormir, podia não me acordar. Sabes como é o barão - observou, com ar cúmplice. Bruno tinha-se tornado num rapaz alto, robusto e bem constituído
para a sua idade.
- Então é melhor despacharmo-nos - sugeriu. - O teu avô com certeza já desceu.
Giuseppe Sajeva estava à porta à espera deles.

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- Estás preparado para esta aventura, rapaz? - perguntou-lhe a sorrir.
- Bom-dia, avô - cumprimentou-o, ao mesmo tempo que dava uma volta sobre si mesmo para que o velho pudesse constatar que tinha cumprido escrupulosamente as suas
indicações: dos sapatos pesados ao casaco de fustão.
Calò estava orgulhoso dele. Aquele rapaz havia de se tornar num verdadeiro homem.
- Então vamos - decidiu o barão.
Saíram os três para o jardim e percorreram a alameda bordejada de agaves. O ar estava límpido e perfumado, o céu sereno, e Bruno respirou avidamente, sentindo uma
embriaguez que não sabia explicar. Na claridade da madrugada apenas resistia a estrela da manhã. Os pássaros tinham acordado e davam início ao seu descarado e alegre
concerto.
Passaram o portão de ferro forjado e percorreram um caminho íngreme que os levou ao campo aberto. De junho a setembro, mesmo nos dias em que a época de caça não
estava oficialmente aberta, o barão ia caçar nas suas terras na companhia de Calò.
Bruno levava a tiracolo uma espingarda calibre vinte e oito de fabrico inglês, muito mais pequena do que a do avô, uma velha espingarda calibre doze de canos exteriores
fabricada por encomenda no antigo estabelecimento Pieper Herstal-Lez de Liège. Era uma arma decorada com uns magníficos arabescos que representavam dois pequenos
veados, uma estrela e dois guerreiros medievais a cavalo que, de lança em riste, carregavam um inimigo invisível. Calò transportava em equilíbrio sobre o braço direito
a sua inseparável Browning.
- Posso disparar? - perguntou Bruno, pronto para abraçar a arma. Um francelho e um milhafre negro voavam baixo à procura de uma presa.
- Não - ordenou terminantemente o barão. - São espécies demasiado raras - explicou. - E alimentam-se de víboras. São úteis.
Bruno tinha aprendido uma coisa nova.
A saída matinal era um pretexto para mergulhar naquela solitária imensidão quando o sol ainda não escaldava, numa paisagem mutável e colorida como uma paleta onde
se alternavam argilas gessosas e argilas arenosas, com um fundo de suaves colinas que desciam para vales extensos.
Era uma ocasião para gozar a paz daquela Natureza impoluta, áspera e selvagem. Avançavam com um passo lento e cadenciado em direção ao

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bosque que em certas zonas estava coberto de trepadeiras. Os dois homens pensavam no cume da colina, onde se sentariam a tomar o pequeno-almoço preparado por Annina
e a admirar a paisagem. A perspetiva do rapaz, pelo contrário, era a da aventura e captura do seu primeiro troféu: uma lebre, um faisão ou até pura e simplesmente
um coelho selvagem. Calò arrancou de um arbusto de folhas viscosas com florzinhas azuis uma raiz, limpou-a com a lamina da faca, lavou-a com um pouco de água do
cantil, cortou-a ao meio e ofereceu metade a Bruno.
- O que é? - perguntou, curioso.
- É uma raiz de alcaçuz - explicou Calò. - Reforça os dentes. Mantém-nos limpos e tem um sabor agradável.
Bruno agradeceu e começou a chupar a raiz fresca, ainda húmida e cheia de sumo.
- É mesmo bom - disse.
Bonbon, o pointer do barão, que já tinha quase 10 anos de idade, avançava a frente deles com o focinho estendido para o ar como um radar na clássica atitude característica
da sua raça. Tinha uma cabeça admirável, o focinho ligeiramente arqueado numa pose perfeita e o nariz negro e húmido. Manchas negras sobressaíam elegantemente no
seu corpo já pesado da idade, dos hidratos de carbono e dos doces da princesa Isgrò.
- Ainda vais acabar por o matar com as tuas porcarias - ralhava o barão. Bonbon tinha o estilo inconfundível do pointer, mas a velocidade de um braco alemão. Tinha-se
esquecido de pertencer a uma raça "de grande busca", renunciava por preguiça e por hábito as explorações profundas e as largas inspeções laterais. Já não tinha idade
e a tolerância do barão perdoava-lhe aquelas falhas. Avançava a frente dos caçadores uma dezena de metros e confiava voluntariosamente no seu infalível olfato.
- Achas que ele vai conseguir pôr cá fora alguma coisa? - perguntou Bruno, ansioso.
- Acho que sim - respondeu o barão. - Com a condição de encontrar alguma coisa.
- A mim bastava-me um coelhinho selvagem - murmurou Bruno, enquanto queimava os olhos numa observação incansável.
O ar tornava-se mais tépido, mas o sol estava ainda escondido pela colina coroada com a sua luz. Só quando atingiram o ponto mais alto o viram brilhar em todo o
seu esplendor.

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- Então, valeu a pena? - perguntou o barão, sorrindo para Bruno.
- Valeu a pena - admitiu Bruno por cortesia, sempre possuído pelo intenso desejo da presa. O barão sentou-se num tronco cortado, Calò numa pequena rocha da qual
despontava um tufo de flores vermelhas. Bruno imitou-os, sentando-se com muita compostura.
- Tens fome? - Estavam a caminhar há uma hora e não tinham comido nada antes de partir.
- Bastante - disse Bruno.
O avô estendeu sobre os joelhos um guardanapo que tirou do saco que Calò tinha pousado aos seus pés, pegou na faca e cortou algumas fatias de pão. Fez uma sanduíche
com um queijo aromático e deu-a ao neto.
- Primeiro tu, avô - recusou educadamente, apesar de estar com água na boca e de sentir um grande vazio no estômago.
O barão preparou mais sanduíches. Bonbon, com uma aristocrática compostura, tinha-se sentado aos pés do barão para participar no piquenique. Giuseppe Sajeva olhou
para ele com amizade: tinham envelhecido juntos, gostavam um do outro e respeitavam-se. Tomaram aquele pequeno-almoço frugal como se fosse uma delícia elaborada
pelo inigualável monsú. Bruno estava excitado, nervoso, e os seus vivíssimos olhos cinzentos deslocavam-se continuamente de um ponto a outro da colina a procura
de animais, sondavam um arbusto distante de primaveris flores cor-de-rosa e espreitavam por entre a giesta de flores perfumadas.
- Fica sossegado, Bruno - disse o avô com ar bondoso. - Estás demasiado agitado. Qualquer animal selvagem nas imediações se irá aperceber do teu nervosismo e vai
fugir. - O velho barão falava mesmo sabendo que a experiência é uma coisa que não se pode transmitir. O neto tinha de aprender sozinho a virtude da calma.
- Não posso concluir o meu primeiro dia sem uma presa, nem que seja pequena - justificou-se.
- A pressa e o pessimismo são inimigos perigosos - ensinou-lhe o velho. - É preciso paciência e otimismo para conseguir qualquer resulttado. - Estava insolitamente
minucioso.
- Está bem, avô - condescendeu -, vou tentar acalmar-me.
- Tu vais ter o teu coelho - continuou. - Vai levar tempo, se calhar

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vais ter de caminhar muito. Se calhar não o encontras logo. Mas vais tê-lo. Para isso tens de ter fé e aguçar o engenho, os olhos e a atenção.
Falava de coelhos num radioso dia de sol, mas na realidade ensinava-lhe regras de vida. Dirigia-se ao neto com uma clareza pedagógica, como se aquela fosse a última
ocasião para lhe transmitir um ensinamento que deveria servir-lhe para a vida.
Calò seguia o discurso do barão ao mesmo tempo que nascia nele um obscuro pressentimento, que atribuiu imediatamente à sua sensibilidade especial e a sugestão daquele
lugar.
- Sim, avô - disse Bruno, que captava nas palavras do barão uma solenidade especial.
- Não tenhas pressa de aniquilar o teu inimigo. - O avô estava calmo, sereno e tinha excecionalmente acendido meio charuto. - Neste caso é um pobre e inócuo coelhinho.
Perante um inimigo verdadeiro, nunca deves perder a compostura. Se decidiste ter o teu coelho, vais tê-lo. Aliás, já o tens. Mas tens de ser firme na tua determinação.
- OK, avô. Já acabei o pequeno-almoço e estou calmo. - Tinha-se instalado nele uma sensação de desconforto. - Posso começar a caçar?
- És um ótimo rapaz. Vai lá - condescendeu o barão.
Calò estendeu-lhe um limão cortado ao meio.

- Chupa isto - sugeriu-lhe. - Tira a sede e ajuda a digestão. Bonbon, ao perceber que a sua refeição tinha terminado, levantou-se a bocejar como um velho senhor
satisfeito e de boa saúde e começou a descer a encosta a frente de Bruno, que tinha chupado o limão e ia ao encontro da sua primeira aventura de caça. O cão acelerou
a marcha e procurou por entre os cheiros intensos do campo aquele odor especialissimo de animal selvagem.
- Segue-o - disse o barão a Calò. - Eu ainda vou descansar um pouco. Depois vou ter convosco. Bonbon, a meio da encosta, começou a bater escrupulosamente o terreno
de um lado para o outro, na horizontal, de modo que nada escapasse ao seu olfato. Era um trabalho sistemático que permitia explorar uma área muito vasta, deixando
poucas possibilidades de fuga aos animais. Subitamente, dando meia-volta sobre si mesmo, o cão imobilizou-se numa pose de estátua: a cauda rígida e vibrante, a parte
posterior ligeiramente baixada e o resto do corpo, e sobretudo a cabeça, esticada para

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cima em direção a um arbusto de palmeira-anã de folhas agudas e lanceoladas.
Calò fez sinal a Bruno para se preparar e este colocou-se ao lado do Cão, de espingarda em punho, pronto para a abraçar. Só os olhos do animal oscilavam entre o
arbusto e o rapaz.
O gigante afagou-o e o animal avançou uns metros com um salto, conservando a pata anterior erguida.
- É um coelho - murmurou Calò. - Olha bem para o lado esquerdo do arbusto.
Bruno aguçou os olhos e viu-o, pequeno, branco e imóvel na sua toca.
Também o coelho os via, mas ainda se considerava a salvo. Esperava passar despercebido. Bruno abraçou a espingarda, pronto para disparar.
Calò baixou-lhe o cano, impedindo-lhe o gesto.
- Isso não se faz - sibilou. - Nunca!
Bruno olhou para ele, atarantado.
- Não se dispara contra um animal parado - explicou. - Também eles devem ter uma possibilidade de salvação.
Bruno anuiu. As palavras de Calò tinham-no convencido.
Afagou o dorso de Bonbon e o cão deu três saltos de aproximação. Então o coelho saltou para fora da toca e do arbusto e no instante em que ganhava velocidade, Bruno
recordou o ensinamento do avô: "Quando disparares sobre um animal selvagem em movimento, aponta sempre um palmo à frente do focinho."
Abraçou a espingarda e disparou segundo as indicações do barão. O coelho, atingido em cheio, impulsionado pela velocidade, rolou sobre si mesmo como um frasco vazio
antes de parar à frente de um arbusto. Bruno olhou para Calò, depois para a sua primeira presa.
- Consegui, Calò - exclamou, ainda incrédulo. - O avô tinha razão.
Calò deu-lhe uma palmada no ombro.
- Foste mesmo fantástico - replicou.
Bonbon, fiel ao seu esquema de treino, continuava imóvel.
- Busca - ordenou-lhe Calò, indicando-lhe o coelho.
O pointer deu um salto, segurou o coelho na boca, trouxe-o para trás a abanar a cauda e depositou-o aos pés de Bruno, ao mesmo tempo que o observava com os seus
olhos bondosos e reconhecidos.

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- O avô tinha razão - repetiu Bruno, exultante. - É preciso calma e determinação.
Agarrou pelas longas orelhas o pequeno animal ainda quente e começou imediatamente a subir a encosta, gritando com quanto fôlego tinha na garganta: - Avô! Avô! Consegui.
Matei o meu coelho! - Um vento ligeiro acariciava a erva alta que mudava de cor a cada instante. A colina tinha as cores da felicidade.
Mas na breve passagem de um instante aconteceu alguma coisa de estranho, como se de repente a terra tivesse deixado de respirar. No ar imóvel pairavam um cheiro
desconhecido e um mal-estar que o aterraram. Aquele cheiro intraduzível enchia-lhe os olhos, o cérebro, o coração.
Calò foi até junto dele, agarrou-o por um braço e apertou-lho ate lhe doer.
- Não te mexas. - Era uma ordem que não devia transgredir.
- Porquê? - Olhou para ele assustado.
- Sentes este cheiro? - perguntou-lhe, enquanto perscrutava o cume da colina.
- É uma coisa estranha que eu não entendo - balbuciou Bruno.
- É o cheiro da morte. - Os seus grandes olhos azuis estavam cheios de um terror impotente. Naquele momento soou um disparo e o eco fez ricochete pela planície.
Logo a seguir ouviu-se novamente a respiração da terra.
- Quem foi que disparou? - Também Bruno intuiu a tragédia.
- O avô - gritou Calò, precipitando-se pela subida. - Vamos ter com o avô, depressa. Chegaram ofegantes ao sítio onde tinham tomado o pequeno-almoço. O avô estava
estendido no chão, junto à pequena rocha onde despontava um tufo de flores vermelhas. Pairava ainda nos seus lábios um vago sorriso e olhava para o céu sem o ver.
Porque estava morto. Só a farta cabeleira se movia impercetivelmente no vento ligeiro que acariciava o trevo.
Bruno estendia em direção ao corpo sem vida do avô o seu primeiro troféu, o resultado da sua primeira aventura de caça.
- Avô.., queria mostrar-te... queria dizer-te que tinhas razão. - Estava confuso, a gaguejar, incrédulo.
Calò tirou o chapéu e depois Bruno sentiu a sua mão forte no ombro.
- Está morto, Bruno. - Tinha uma voz forte e calma.

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- Ninguém pode matar o barão di Monreale. - Bruno falava com segurança, como se afirmasse a existência de Deus.
Ao longe, um homem fugia a cavalo na planície cheia de sol.
- Foi ele - afirmou Calò.
- Mata-o, Calò. - O grito histérico de Bruno ecoou ao longe.
- Não vale a pena - observou calmamente.
Bruno deixou cair o coelho, que era agora um montinho branco em cima da erva.
- Morreu como um coelho - murmurou Bruno - e era o barão de Monreale.
Bonbon aproximou-se do cadáver do barão e estendeu-se ao lado dele a ganir num tom baixo. Pouco depois calou-se e ficou aninhado, com a cabeça entre as patas, como
se estivesse a dormir. Calò ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e depois fechou os olhos do velho barão di Monreale.
- Vai a correr para o palácio - ordenou a Bruno. - Diz ao motorista que o avô se sentiu mal. Diz-lhe que venha buscá-lo imediatamente. Olhou-o nos olhos com uma
seriedade que Bruno não conhecia. - Não te esqueças, só deves dizer isto: o avô sentiu-se mal.
Bruno experimentou uma tormentosa sensação de náusea e engoliu em seco para repelir um arranque de vómito. Tinha sentido o cheiro da morte e nunca mais o esqueceria.
Correu pela encosta abaixo, arriscando-se várias vezes a perder o equilíbrio. Estava transtornado e esperava que tudo aquilo que tinha sucedido fosse um pesadelo.
Apesar do sol, o campo tinha-se tornado sombrio e as flores tinham perdido a cor e o perfume. Sabia apenas que tinha de chegar depressa a casa, dizer a Giacomo que
o avô se tinha sentido mal, e regressar com ele ao sopé da colina para o levarem de carro para o palácio.
"Ainda bem que a madrinha não está cá.", pensou. "Com ela é difícil guardar um segredo." Bruno acompanhou o motorista por estradas poeirentas até ao ponto mais próximo
da colina onde um sicário tinha assassinado o barão di Monreale. Mas então sempre era verdade que acontecera aquilo que o tinha deixado devastado?
Bruno viu Calò avançar sobre a erva em direção a ele. Caminhava com um passo lento e seguro, transportando nos braços o corpo sem vida

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do velho barão com a cabeleira branca levemente agitada pelo vento. No rosto severo de Calò lia-se a dor profunda de um filho.
Bruno correu ao encontro dele.
- O carro está lá em baixo - disse.
- Eu vi-vos chegar. - Sem esforço, superou a valeta que o separava da estrada.
Bruno abriu a porta traseira e Calò pousou o corpo do barão no assento, instalando-o entre ele e Bruno. Enterrou-lhe o chapéu de caça sobre a testa de modo a que
parecesse adormecido.
- Ajuda-me a segurá-lo - disse Calò. - Ninguém deve aperceber-se de nada.
O motorista arrancou sem fazer perguntas, evitando olhar para trás. Depois de passar o portão de ferro, o carro parou em frente à entrada das traseiras do palácio.
Calò segurou novamente nos braços o corpo do barão e começou a subir a escadaria deserta. Os criados pareciam ter desaparecido. Só Annina olhava de longe, com lágrimas
nos olhos.
- Volta ao teu trabalho - disse bruscamente Calò. - Mas antes diz ao Giacomo para ir depressa ao doutor Nascè. O barão sentiu-se mal.
O corpo de Giuseppe Sajeva Mandrascati di Monreale repousava sobre o grande leito. A morte tinha congelado no seu rosto os sinais de uma nobreza antiga. Calò ajoelhou-se,
logo imitado por Bruno.
- Reza comigo - disse Calò.
Bruno ergueu a cabeça e Calò apercebeu-se de que os olhos de Bruno pareciam desorientados, mas enxutos.
Ficaram alguns minutos em silêncio, com a cabeça inclinada. Depois foram sentar-se nas duas poltronas ao lado da janela. Calò tinha tapado o corpo para esconder
a ferida que lhe tinha dilacerado o coração.
- Ouve, meu filho - disse Calò. O tom era rude e amigável. - Daqui a dois meses fazes apenas 11 anos. Mas a dor tornou-te um homem antes do tempo.
Bruno estava a espera de palavras iradas e propósitos de vingança e ficou espantado com aquele discurso pacato.
- O teu avô sabia que alguém o ia matar - continuou. - E eu também sabia. Receava-o, embora me agarrasse à esperança de que ninguém ousaria cometer um tal sacrilégio.

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- Porque é que o mataram? - gemeu, ao mesmo tempo que a trágica imagem na colina passava diante dos seus olhos.
- Porque não quis vergar-se a um mundo sem leis e sem regras. A dor que tinha na alma espalhou-se por todo o corpo e no sangue, que adquirira um ritmo violento.
- Mas há uma justiça? - Bruno sentia-se triste e traído. Triste pela morte do avô, que julgava imortal, traído pela inconsistência de um mito que decretava a intangibilidade
dos Monreale.
- Há muitas justiças - tentou explicar-lhe Calò. - Nós praticamos a nossa. Ninguém vai nunca saber que o teu avô foi assassinado.
- Há muita gente a saber - observou Bruno.
- Muita ou pouca, não tem importância - explicou-lhe - a partir do momento em que ninguém vai falar.
- Pacto de silêncio - pronunciou Bruno, com uma ponta de desprezo, recordando as observações do pai sobre aquela regra de vida.
Calò leu o ressentimento e a crítica nos olhos de Bruno.

- Pacto de silêncio não é a fraqueza dos miseráveis - replicou -, mete isto bem na cabeça. Pacto de silêncio é a virtude dos fortes. É uma lei sagrada e inviolável.
Pacto de silêncio significa comportamento de homens. E um homem sabe quando se deve calar.
- Pacto de silêncio quer dizer Máfia - replicou Bruno com uma ponta de desprezo, evocando as violentas discussões entre a mãe e o pai.
Calò ficou algum tempo em silêncio, enquanto procurava um discurso que fosse compreensível para a acriança.
- Pacto de silêncio quer dizer muitas coisas - sublinhou com ar grave. - Máfia é uma palavra com que demasiadas pessoas enchem a boca. Às vezes com razão, as mais
das vezes sem razão nenhuma. Um dia vais entender.
Era uma consideração que não o convencia.
- Porque é que eu não posso entender já? - perguntou.
Calò passou uma mão pelo cabelo: era mais fácil agir do que falar. Em qualquer caso podia tentar, ainda que a compreensão do problema, para Bruno, só pudesse vir
a ser o resultado de uma lenta assimilação, de uma longa experiência.
- Máfia é uma palavra de grande efeito - tentou esclarecer. - A Máfia é o sintoma mais clamoroso de uma doença geral. Se tu tiveres febre, a

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culpa não é do termómetro. Se tu tiveres um furúnculo, não o curas arrancando-o, mas consegues eliminá-lo se curares o mal que o provocou.
Bruno não percebia completamente, mas sentia que havia verdade nas palavras de Calò.
- A Máfia é a expressão de um poder politico corrupto - prosseguiu. - É a má consciência, a alma perversa dos "cavalheiros" que sustentam com os lucros do crime
organizado os seus potentados. Os Monreale nunca agradaram a Máfia nem a política. A tua família cortou relações com os centros do poder desde o fim do infame regime
borbónico, que afinal não era mais infame do que os outros, desde a unidade da Itália.
- E foi por isso que lhe deram um tiro?
- Não, Bruno - respondeu, a abanar melancolicamente a cabeça. - Deram-lhe um tiro porque reagiu como um homem deve reagir a um ultraje.
Estava outra vez as escuras.
- Um dia talvez entenda - conformou-se.
- Muito em breve, Bruno - garantiu-lhe. - Muito em breve. Naquele momento bateram a porta.
- Entre - disse Calò.
O doutor Tanino Nascè entrou e tirou o chapéu. O sorriso de circunstância ficou gelado ao ver o seu velho amigo em cima da cama. Calò e Bruno levantaram-se.
- O que aconteceu? - Era uma pergunta inútil e o médico sabia.
- Está a ver perfeitamente, doutor - disse Calò, chamando-o a realidade.
- Estou a perceber. - Claro que via por si, tinha visto muitos, demasiados, ao longo da sua carreira.
- Ao barão - comentou o médico, de lágrimas nos olhos. - Tiveram a coragem de fazer isto ao barão. - Uma lágrima deslizou-lhe na face e parou no nariz.
Recordou uma vida passada em comum, os estimulantes serões no palácio, a guerra, os comentários sobre a política, sobre a História, sobre as leituras queridas a
Giuseppe Sajeva.
- É preciso resolver isto depressa, doutor Nascè - pediu Calò.
- É o crepúsculo de uma civilização - comentou o médico amargamente.

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- Eu vou ajudá-lo a vesti-lo - ofereceu-se Calò. - A ferida não deve ver-se. O senhor sabe como fazer.
- E o pequeno? - Indicou Bruno.
- O pequeno é Bruno Brian Sajeva, barão di Monreale - afirmou com solenidade. - Precisamos de nos despachar. Por isso eu vou ajudá-lo.
Quando o corpo do velho barão estava já dignamente composto e vestido com um fato escuro, o doutor Nascè sentou-se à secretária para passar a certidão de óbito.
Olhou para Calò.
- Morte súbita cardíaca - ditou Calò.
- Morte súbita cardíaca - repetiu o médico, enquanto escrevia.

O corpo do barão Giuseppe Sajeva foi exposto na entrada do palácio, cujas paredes tinham sido revestidas de um pesado veludo negro e cinzento com frisos dourados.
Quatro velas enormes em maciços candelabros de prata foram colocadas nos quatro cantos do caixão. Todos os habitantes da cidade e do condado, durante um dia e uma
noite, sucederam-se na câmara ardente para prestar homenagem ao corpo do aristocrata que sempre espalhara à sua volta o prestígio, a coerência e a honestidade de
uma estirpe.
A gente mais humilde chorou e os notáveis dirigiram uma última e comovida saudação ao homem que soubera alimentar, com as palavras e com o exemplo, os últimos momentos
de grandeza de uma aristocracia de sangue. Aos nobres corruptos, comprometidos, receosos e dissipadores, o barão oferecera um exemplo raramente imitado. Tinha conservado
bem alto o nome da sua estirpe e com uma coragem sem altivez mantivera distância da classe política, sempre à procura de consensos e de lucros fáceis, e do crime
organizado que aquela classe política sustinha.
Não era um santo nem um benfeitor, mas o seu paternalismo era sincero. Cumpria a sua parte com dignidade, no respeito dos papéis de cada um. As pessoas inclinavam-se
perante os seus restos mortais e beijavam-lhe a mão pela última vez.
Muitos ainda se lembravam de uma noite distante, em 1943, quando o céu se tornara fogo, ribombavam os canhões e a gente de Piazza Armerina fora bater às portas do
palácio Monreale. Um dos velhos que tinham falado com ele recordava aquele mesmo átrio iluminado por duas dezenas

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de candelabros de prata e revia o barão, ao lado do balaustrada da escadaria, a animar a sua gente e a infundir confiança aos camponeses que se tinham refugiado
no palácio.
Naquele momento, a sua figura imponente jazia serena no veludo do caixão. Nessa noite distante impusera-se como um gigante sobre toda a gente e da sua grande cabeça
leonina libertara-se uma força que nascera com ele e que ele herdara dos seus antepassados normandos. Aqueles camponeses assustados, para quem então olhava com a
autoridade de um pai, aqueles artesãos já avançados nos anos, aquelas mulheres desgastadas pelo tempo, aquelas crianças já adultas, beijavam o crucifixo e o rosário
entrelaçado entre as suas mãos de cera.
O velho que nessa altura lhe pedira alguns esclarecimentos sobre os Aliados que estavam a desembarcar na ilha tornara-se mais velho e mais branco.
E no momento da última despedida pareceu-lhe ouvir de novo a voz forte e vibrante do barão: - Estão a chegar os americanos, mas não se passa nada. O que podem mudar
os Aliados numa terra onde nada acontece desde a criação do mundo?
Mas afinal tinha acontecido o irreparável: a morte decepara aquela figura carismática que curava com a voz e tranquilizava com o olhar. Tinha sido um barão, um patrão,
um senhor feudal, mas desempenhara o seu papel segundo a justiça. Defendera um mundo onde os senhores continuavam senhores e os pobres continuavam a ser pobres.
Nunca prometera a igualdade, mas garantira a sobrevivência e governara com sensatez. As pessoas tinham-no amado por isso, e por isso o choravam.
Bruno, em pé, vestido de negro, com as suas primeiras calças compridas, recebia comovido palavras de conforto e bênçãos. Tinha finalmente uma ideia precisa do grande
prestígio daquele homem que tinha sido o seu avô.
- Um dia vai ser forte e justo como ele - disse-lhe uma mulher com o rosto sulcado de lágrimas. - Deus abençoe Vossa Excelência.
Sentia o peso de uma responsabilidade que não sabia se conseguiria aguentar. A dor era uma lâmina ardente que lhe atravessava a alma, mas não chorou. Sentiu-se só
e inútil.
Encontrou o olhar de Calò e implorou ajuda. O gigante dirigiu-lhe um sinal de solidariedade.

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A princesa Rosa Miranda Isgrò, que estava ao lado dele, vestida de luto, exprimia uma força insuspeitada. Ela, que era tão emotiva, não deitara uma lágrima.
- Bruno Brian - disse-lhe solenemente, quando a fila de visitas começava a diminuir -, agora és tu o barão di Monreale. Nunca te esqueças deste momento.
- Não vou esquecer, madrinha - respondeu com firmeza.
- Os seus títulos - continuou -, os seus bens, a sua honra, o avô passou tudo para ti. Íntegros. Sem mancha. Tu saberás ser digno de tudo isso.
- Sim, madrinha. - Um velho inclinou-se diante dele, pegou-lhe numa mão e beijou-lha com respeito.
Calò, que provavelmente sofria mais do que todos, exprimia uma calma que não era natural. Naquele momento em que se tornara, por vontade do barão e com base numa
lei não escrita, tutor do pequeno, era a pessoa de mais autoridade na família.
O menino abandonado do Vale dos Templos soube comportar-se com dignidade e compostura. Conversou com o arcebispo que tinha celebrado o rito fúnebre, recebeu as condolências
dos políticos e dos notáveis e escutou impassível as acaloradas palavras do deputado Rizzo, que tinha aparecido para tomar parte nas exéquias, enviando um monumental
ramo de flores.
Bruno admirou a prudente firmeza e a nobreza do comportamento de Calò. E foi para ele uma lição de vida.
Quando os restos mortais do barão di Monreale foram sepultados no jazigo de família e, à saída do cemitério, entraram no carro que os ia levar de volta ao palácio,
Calò disse-lhe: - Amanhã partes para Milão. - Era uma determinação irrevogável.
- Tu vens comigo? - Temia enfrentar aquela nova experiência sem o inseparável Calò.
- A madrinha vai contigo - disse Calò. - Eu irei ter contigo no momento oportuno.
- E o pai? - perguntou, preocupado.
- Já foi avisado - respondeu. - Vais estar com ele em Milão. Em agosto.
- Porque é que eu tenho de ir me embora? - perguntou, sabendo já a resposta.
- Um dia eu explico-te. - Foram as últimas palavras que trocaram até ao abraço da partida.

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Oito dias depois do funeral de Giuseppe Sajeva, o deputado Umberto Rizzo desapareceu em circunstâncias misteriosas. O seu corpo crivado de tiros foi encontrado nas
imediações do lago de Pergusa, o umbigo da Sicília. Para identificar os responsáveis daquele crime inumano foi organizada uma cimeira entre os investigadores na
qual também participou, para além do chefe da polícia e do prefeito de Enna, um funcionário do Ministério da Administração Interna. Os jornalistas mais fantasiosos
evocaram as imagens mitológicas do rapto de Prosérpina por Plutão, que teria ocorrido precisamente naquele espelho de água, o único da Sicília, rodeado de eucaliptos.
Os comentadores políticos configuraram naquele crime um atentado à democracia que não devia nem podia ficar impune.
No funeral tomaram parte os altos funcionários do Governo regional e um representante do Governo central.
A notícia da sua morte ocupou as primeiras páginas dos jornais Sicilianos durante algum tempo e depois deu lugar aos acontecimentos mais prementes: o casamento de
Maria Pia de Saboia em Cascais, a eleição de Giovanni Gronchi para presidente da República, mas sobretudo o projeto da senadora Lina Merlin para abolir a prostituição
legalizada nas "casas fechadas".
E também do deputado Umberto Rizzo ficou um processo destinado a amarelecer no poeirento arquivo de um tribunal.

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PHILIP BRIAN

O Barão

Em Milão, Bruno foi arrastado por uma avalanche de números e de palavras pronunciadas por homens e mulheres obcecados pela pressa, pelo frenesim de chegar primeiro
a um sítio que, definitivamente, não lhes importava assim tanto. Uma síntese que o ajudou a perceber aquilo fora expressa por um poeta: Descanso na piazza del Duomo.
Em lugar de estrelas acendem-se palavras. Também os apelidos eram diferentes daqueles que lhe eram familiares. Chamavam-se Casati, Venosta, Locatelli, Brambilla,
Colombo.
Bruno concluiu que as pessoas de Milão, assim como os californianos, tinham o gosto pelos números, a paixão das estatísticas. Ele na Sicília sabia dos sentimentos
e das tradições, reconhecia as dunas de areia modeladas pelo vento e onduladas como quadros abstratos no litoral de Selinunte, o pôr do sol na ilha de Panarea, os
trilhos do mar sulcados por golfinhos, os calcários de Capo Passero, as asperezas lunares da Isola delle Femmine, os perfumados arbustos de giesta, as gigantescas
alfarrobeiras de Francavilla. Durante aqueles anos, com a ajuda do avô e de Calò tinha procurado apreender o significado profundo das coisas e os sentimentos que
essas mesmas coisas inspiravam. Em Milão, pelo contrário, em poucos dias tinha sido instruído, com uma precisão notarial, sobre as características daquela cidade
que exercia sobre o Sul a força de atração de um moderno eldorado.
Ele, que não sabia sequer quantos quilómetros havia exatamente entre Palermo e Piazza Armerina e ignorava a extensão do feudo dos Monreale, conhecia perfeitamente
as dimensões da capital lombarda: cinquenta e cinco quilómetros quadrados de carris, estradas, praças, arranha-céus,

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armazéns, oficinas, teatros, escadas e casas. Os jornais davam voz sistematicamente aquele esplendor recordando que todos os dias se registavam cinquenta e seis
nascimentos e quarenta e nove mortes, que cento e treze pessoas desembarcavam naquela terra prometida e quarenta, incapazes de resistir ao tormento da integração,
retomavam tristemente o caminho de regresso, arrastando consigo esperanças perdidas, filhos chorosos e malas de cartão.
Bruno passeava ao lado de Paolo Brancati no corso Venezia. Dirigiam-se a Montenapoleone. Escutava o novo amigo com a atenção e a admiração do provinciano sequioso
de novidades. Apesar de já ter 15 anos, Paolo era apenas um palmo mais alto do que Bruno. Era magro, não muito alto, de olhos negros por detrás das espessas lentes
de míope, escuro de pele e de cabelo, tinha uma desenvoltura muito lombarda e emanava vitalidade e eficiência. Vestia como um homem, raciocinava e gesticulava como
um adulto, mas o que sobretudo o caracterizava, no falar, era um típico sotaque milanês.
- Não te deves deixar enganar pela fachada de alguns palácios deselegantes do tempo do rei Umberto - disse Paolo, intuindo a desilusão do amigo. Tinham deixado para
trás os Giardini Pubblici. - E também não avalies a cidade pelas fachadas dos bancos - explicou-lhe pacientemente.
Bruno sentia-se ainda demasiado deslocado para exprimir uma opinião.
- Milão é uma cidade particular - continuou Paolo -, tem um fascínio subtil que faz lembrar Paris.
Bruno não conhecia Paris e gostaria de poder ter uma ideia mais clara da comparação se o ponto de referência fosse São Francisco. Mas não conseguia conceber de que
forma uma cidade que engolia dois mil quintais de carne por dia, seis mil de vegetais, vinte mil dúzias de ovos, cinco mil hectolitros de vinho, podia ser definida
como dotada de um fascínio "subtil". Estava obcecado pelos números.
- Mas porque é que as pessoas correm tanto? - perguntou Bruno, cheio de curiosidade. - Porque é que toda a gente se cumprimenta à pressa, fala pressa, caminha como
se tivesse de bater um recorde?
- E tu, que cresceste na América, é que fazes essa pergunta?
Paolo falava com ele como se fossem da mesma idade, sem lhe fazer pesar a diferença de idade: tinha mais quatro anos do que Bruno. Paolo

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tratava-o assim por cortesia, mas também porque se apercebia da maturidade de Bruno e sentia o fascínio da sua personalidade.
O sol estava quente e um ar límpido e fresco soprava das montanhas do lado de Bergamo. - Eu morei na Califórnia. - Recordou Sausalito e Napa Valley e pareceu-lhe
uma referência muito longínqua. - Sob certos aspetos - esclareceu -, é uma terra preguiçosa e sonolenta como a Sicília. - Exprimiu aquela opinião tal como lhe tinha
vindo à ideia, mas provavelmente não era correto. O meu pai - acrescentou - nunca admitiria isto.
Também Paolo estava fascinado com a conversa de Bruno, que se exprimia num italiano perfeito, mas tinha um sotaque em que se misturavam as suaves inflexões do Siciliano
e a entoação monótona do inglês da América.
- Nestes dias que nos restam, antes de partir para Santa Margherita prometeu-lhe -, quero mostrar-te melhor a cidade. Vale a pena, já que vais cá morar.
Aquela decisão de viver em Milão não era uma escolha sua, mas uma cautela imposta pelas circunstâncias. Calò queria assim e ele submetera-se docilmente às decisões
do homem que amava e respeitava.
- Agradeço-te, Paolo - disse -, acho que é uma boa ideia. - Se tivesse ficado pela primeira impressão, teria decidido de outro modo, ter-se-ia oposto, mas estava
habituado a ir ao fundo das coisas.
- Os milaneses são gente prática - observou, como se se tivesse apercebido das perplexidades do amigo e quisesse convencê-lo. - Dificilmente se dão conta da beleza
da sua cidade.
Percorreram uma parte da via Montenapoleone e entraram no Cova. O advogado Filomeno Brancati e Philip Brian estavam ao balcão diante de um Martini cocktail.
Philip tinha chegado a Milão havia poucos dias, com um mês de antecedência relativamente ao encontro de agosto. A morte do velho barão tinha alterado o programa.
O encontro com o filho fora menos problemático do que o previsto, apesar de alguma perturbação, sobretudo por parte de Philip, rapidamente superada. O cenário do
aeroporto de Milão acabou por constituir uma espécie de território neutro.
- Estou muito triste por ti - disse-lhe, ao abraçá-lo.
- Foi terrível - respondeu.

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- Gostavas muito dele, não gostavas? - Estava desconcertado com a transformação do filho, que achou incrivelmente alto e maduro para a idade.
- Eu pensava que gostava muito dele - confessou-lhe -, mas agora apercebo-me de que o amava mais do que imaginava. Era muito importante para todos nós. - Olhou-o
cheio de orgulho com os seus grandes olhos cinzentos que em função da luz tinham matizes azuis. Philip observava o filho, espantado, lia na sua expressão decidida
o seu desenvolvimento e confrontava-se com o reflexo dos seus erros e das suas derrotas.
- Acho que percebo o que sentiste. Coração, não foi?
- Coração - confirmou Bruno, com uma determinação que não dava lugar a posteriores aprofundamentos.
Já não era o menino assustado e irrequieto, confuso com o respeito imposto por regras contra as quais muitas vezes não concordava.
Tem o rosto da mãe, pensou Philip, observando-o. Mas depois captou naquele olhar de aço uma determinação fria e selvagem que o deixou pouco à vontade. Recordou todas
as vezes que com uma exasperada monotonia o tinha obrigado a repetir: I am an american boy. Talvez sem aquela imposição autoritária Bruno se tivesse tornado realmente
num americano. Tinha sido um tormento inútil, uma crueldade psicológica que acabou por ter um efeito contrário ao desejado. Assim, Bruno permanecera italiano, aliás,
Siciliano, e nada no mundo poderia mudar aquela realidade.
No carro, a caminho da via Manzoni, Philip Brian tentou sondar cautelosamente antes de chegar à pergunta-chave.
- Agora que o avô já cá não está, não gostavas de regressar a São Francisco? - propôs-lhe.
- É uma pergunta ou uma imposição? - apressou-se a perguntar.
- É uma pergunta, meu filho. - Philip sofria tremendamente, mas não queria cometer mais erros.
- Então vou estudar em Milão, se não tiveres nada em contrário. - Os olhos brilhavam-lhe intensamente. - Vou fazer o liceu. Como todos os Monreale.
Philip contraiu-se e os músculos do rosto tornaram-se salientes.
- Lembra-te de que te chamas Brian - admoestou-o.

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- Brian também é meu nome - admitiu. - A mãe ensinou-me a sentir orgulho no nome que tenho. A minha universidade será Berkeley. Como o foi para ti, pai. - Era simpático,
mas muito determinado.
- És um rapaz fantástico, Bruno. - A decisão do filho tinha-o consolado.
Philip e Brancati fizeram sinal aos dois rapazes que acabavam de entrar no Cova.
- Obviamente, um sumo de fruta - disse Philip, voltando-se para Bruno.
- Obviamente, para mim também - disse Paolo a sorrir, por solidariedade para com o jovem amigo.
- Divertiram-se? - perguntou Philip.
- Conversámos. - Bruno bebeu um gole de sumo.
- Gosto muito de estar com o Bruno - disse Paolo.
- É um jovem que sabe o que quer - interveio Filomeno Brancati.
Philip terminou o seu Martini.
- Então posso regressar tranquilamente a São Francisco - disse, ao mesmo tempo que pousava em cima do balcão o copo vazio.
- Se ficares mais algum tempo dás-me muito prazer. - Sabia que o fazia feliz e dizia a verdade. Quando não exercia o papel educador intransigente, Philip era para
o jovem uma presença agradável.
- Agradeço-te, meu filho, mas não me parece que o meu trabalho me conceda mais distrações. - Ia dizer perdas de tempo, mas corrigiu-se.
- Podes ficar sossegado - garantiu o advogado. - Nós tomamos conta dele.
- Então não há problema. Quis exprimir gratidão e alegria, mas sorriu penosamente. O seu orgulho saía em pedaços daquela experiência, apesar de o seu estado de espírito
ser de tranquilidade. Em Milão, Bruno ia viver numa atmosfera familiar, com a presença constante da princesa Isgrò, que tinha para com ele a atenção e o afeto de
uma avó, e a companhia dos Brancati, que o consideravam como um filho. Mas o seu verdadeiro ponto de referência sempre seria Calò, em relação ao qual, e apesar de
o tempo ter cicatrizado muitas feridas, Philip não conseguia sentir amizade, mas apenas respeito.
Estava no entanto persuadido de que apenas ele, sempre que fosse preciso, saberia orientar Bruno, admitindo que Bruno precisava de ser

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orientado. Porque o rapaz, que objetivamente não se parecia com ninguém para além da mãe, tal como Annalisa ouvia toda a gente, mas decidia sozinho.

A princesa Isgrò, com a ajuda de Claudia Brancati, tinha conseguido transformar o palácio da Via Manzoni numa verdadeira casa. Cinco criados selecionados com cuidado
asseguravam a funcionalidade dos serviços nos aposentos de dois pisos. Havia um motorista de Bergamo, um cozinheiro de Mântua com a mulher, uma governanta de Brianza
corn funções de costureira e uma criada de quartos que desempenhava perfeitamente as suas funções.
Aquela feliz combinação era mérito quase exclusivo de Claudia Brancati, que conseguira juntar o melhor graças ao papel ativo que desempenhava nas senhoras de San
Vincenzo, uma instituição de beneficência que lhe permitira a ela, burguesa rica e mulher de um profissional de alto gabarito, entrar num circulo exclusivo de senhoras
do qual faziam parte as poucas famílias da mais antiga aristocracia de Milão. Moravam em vetustos palácios marcados pelos anos, enriquecidos com a patine dos séculos
e com os móveis de família. Não fora fácil para ela, mesmo descendendo de uma boa família de Milão, ser aceite por aquela gente fechada que gostava ainda de se exprimir
em dialeto cerrado e viver segundo as regras de uma tradicional frugalidade.
O prestígio adquirido nos ambientes universitários, bancários e industriais pelo professor Filomeno Brancati, consultor muito requisitado, acabou por facilitar a
sua inserção nos salões mais exclusivos.
Claudia Brancati, investindo em boas obras, adquiria consensos aos níveis mais elevados da escala social e programava a carreira do filho, Paolo, que no seio da
alta sociedade encontraria os seus melhores esteios.

A beleza máscula de Philip, mais do que pelos anos, era marcada por uma expressão de tédio e indiferença. Esperava levar o filho para casa e escrever a palavra fim
no episódio italiano que tinha mudado a sua vida e afinal deixara-se invadir pela melancolia em Milão, onde tantos anos antes acreditara conhecer o amor.
Participava nas conversas com muita cortesia e pouco entusiasmo, talvez porque não tinha nada a acrescentar. Estava nervoso, irritável e tinha

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de recorrer a todo o seu autocontrolo para não trair os seus verdadeiros sentimentos.
Se Bruno tivesse aceitado segui-lo, poderia finalmente contar-lhe com toda a calma e discrição possível o segredo que, naquele ponto, já não lhe podia esconder.
- O que foi? - Seguiam de carro por uma estrada no campo em direção à villa dos Brancati, onde iam passar o dia.
- Nada de especial, Bruno. - Através dos vidros viam correr o campo verde e plano de horizontes longínquos, sulcado de canais de água clara.
- Não me pareces muito contente. - A paisagem desenrolava-se numa sucessão de searas e de prados.
- Porque é que não havia de estar? - Ao longe perfilou-se uma igreja perto da qual surgia agora uma fábrica de ar moderno.
- É um campo muito diferente do da Sicília - tentou distraí-lo.
- Mas não deixa de ser muito bonito. - Alternavam-se bois corpulentos e potentes tratores naquela terra fértil e macia. Nos campos de trigo surgiam manchas vermelhas
de papoilas. Talvez fosse o momento certo para o pôr ao corrente do segredo que o angustiava. Faltava pouco para a partida para os Estados Unidos e não podia partir
sem lhe confessar a verdadeira razão que o tinha levado a atravessar o mar para voltar a vê-lo. Tinha havido a morte do avô, mas mesmo sem aquela tragédia Philip
teria antecipado um mês a sua chegada a Itália.
- Escuta, meu filho - pronunciou, com o tom das grandes ocasiões. - Eu...
- Olha, pai - interrompeu Bruno, que não tinha dado importância àquele início severo. - Ali ao fundo é a villa do Paolo! Já chegamos! - exultou. Na perspetiva de
uma longa alameda flanqueada por choupos altíssimos entrevia-se um edifício solidamente construído à sombra de árvores seculares.
- É realmente muito bonita - disse. - Finalmente vais poder montar a cavalo. - Sabia da paixão desenfreada do filho pela equitação.
- Oh, claro - quase começou a saltar no banco -, vai ser fantástico. - Infantilmente distraído da conversa com o pai, só naquele momento recordava que Philip estava
a falar com ele quando avistaram a villa. - O que é que me estavas a dizer, pai? - Sorriu-lhe, tentando desculpar-se pela sua impetuosidade.

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- Nada de importante - mentiu. - Nada que se compare com este dia esplêndido.
Os Brancati chamavam-lhe quinta, porque o tinha sido até há dez anos atrás e em certa medida continuava a ser, uma vez que albergava alguns camponeses que tomavam
conta dos campos, dos estábulos onde se criavam vacas leiteiras e da estrebaria onde havia seis cavalos. Não eram certamente exemplares comparáveis àqueles que Bruno
estava habituado a montar, mas, no entanto, eram sempre animais de muito respeito. Philip não voltou a ter ocasião de abordar Bruno em relação ao assunto que o angustiava.
O jovem, tal como tinha acontecido com a mãe muitos anos atrás ao chegar a Milão com o barão Giuseppe Sajeva, tornou-se imediatamente o centro das atenções.
Havia muitos convidados sobre os quais a figura insólita daquele jovem barão Siciliano com um apelido americano exercia um fascínio irresistível.
Para além do mais, Bruno era despudoradamente bonito. A altivez do seu porte, os traços aristocráticos, os modos requintados, o discurso perfeito e aquele inefável
acento exótico faziam dele objeto da admiração geral. Já para não falar do modo perfeito como montava. A sua história, na versão oficial, passava de boca em boca,
tornando-se uma lenda com o decorrer das horas. Os jovens, que tinham todos mais ou menos a idade de Paolo, assim como os adultos, começaram a referir-se a ele como
o Barão.

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Mary Jane

Philip folheou distraidamente o New York Times de alguns dias atrás, títulos e sumários das páginas económicas, verificou as listas da Bolsa apercebeu-se de que
não tinha acontecido nada de relevante, nada que pudesse em qualquer caso perturbar o seus últimos dias em Milão. Folheou o jornal e pousou-o na mesa retangular
estilo Império coberta com uma simples toalha de linho verde-pálido. Sobre os móveis em volta brilhavam pratas e cristais bem polidos.
Bruno estava sentado à frente dele.
- Não me parece que estejas com muito apetite - disse Philip.
- É que já não estou habituado a isto. - Olhou com desconfiança para os ovos estrelados com bacon que a governanta de Brianza lhe servira por indicação do pai.
- A que é que estás habituado?
- Ao chocolate e aos pastéis folhados crocantes - confessou o seu pecado de gula, que cometia todas as manhãs na Sicília sob o alto patrocínio do insuperável monsù.
Philip preparava-se para dizer que aquilo que ele tinha na sua frente era a comida dos verdadeiros homens.
- Mas isso é bom - limitou-se a observar. - E faz bem.
- Sim, pai - anuiu, com uma docilidade suspeita. Os ovos ao pequeno-almoço faziam-lhe lembrar os anos passados na Califórnia, e quando estava em Palermo ou em Piazza
Armerina aquele perfume evocava-lhe a imagem severa e intransigente do pai.
- Ninguém te obriga a comer se não te apetece. - Sorriu-lhe, lamentando no fundo do coração vê-lo menosprezar mais uma das suas tradições.

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- Sim, pai. - Era um prato que Annalisa detestava. Considerava que era uma comida de selvagens, que rebentava o estômago. - Mas hoje, por acaso - acrescentou com
alegria - até me está a apetecer.
Philip fitou-o como se estivesse diante de um enigma que gostaria de ver esclarecido.
- Nós começamos o dia desta maneira - explicou. - Desde sempre.
- Claro, pai. - Comportando-se como o pai, Bruno sentiu-se mais velho do que a sua idade. Philip, que estava habituado a abordar os problemas mais complicados e
se desembaraçava com habilidade e segurança com interlocutores duros e cínicos dados a todas as astúcias, tinha bastante dificuldade em estabelecer uma relação equilibrada
com o filho.
- É uma cidade agradável, Milão, nesta estação - disse, recordando um outro verão, uma outra presença, um outro amor cheio de confusas perspetivas.
- Mas quando vem o bom tempo - replicou Bruno - vai-se toda a gente embora. O Paolo dizia-me que só os pobres ficam em Milão no verão. - Conversavam como velhos
amigos na sala de jantar, naquela radiosa manhã de julho, com a grande janela aberta sobre a antiga rua ainda silenciosa, numa paz quase idílica, interrompida de
vez em quando pelas campainhas e pelo ruído dos elétricos.
- Disseram-me que os milaneses gostam do nevoeiro - referiu bebendo um gole de café.
- Nunca o vi - confessou Bruno -, mas deve ser uma coisa muito atrativa - acrescentou com entusiasmo.
Philip achou que aquele era o momento propício para abordar o assunto que o afligia, para pôr o filho ao corrente do seu segredo.
- Tenho de falar contigo, Bruno. - Olhou para o filho, que tinha a cabeça inclinada sobre o prato, às voltas com os restos do pequeno-almoço.
- É o que estamos a fazer, acho eu - observou com a boca cheia, uma liberdade que em São Francisco nunca se tinha permitido.
- És de uma lógica desarmante, meu filho. - Observou os tetos altos sabiamente pintados com frescos em tons de verde, azul e amarelo. Era uma sequência de leves
arabescos intervalados com grandes medalhões ovais que continham ramos de flores de várias cores e feitios.
- Lindo, não é? - Bruno ergueu os olhos do prato e admirou por sua

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vez a delicada composição que se repetia também em outras salas. - Se eu bem entendi aquilo que o Paolo me disse, é de fins do século XVIII.
- A tua cultura é assombrosa - comentou o pai, admirado, já que não saberia sequer datar o fato que trazia vestido, um fato de riscas azuis que evocava os tempos
da lei seca. Tinha, no entanto, muito sólida a memória dos negócios, conhecia a alquimia da alta finança e funcionava obedecendo a esquemas consolidados ao longo
de várias gerações.
- É só um divertimento - replicou Bruno, enquanto observava aquela maravilha esbatida pelo tempo, tão delicada que fazia temer que se desvanecesse ao primeiro sopro
de vento. Philip entrelaçou os dedos e inclinou-se em direção ao filho.
- Estás disposto a ouvir-me um momento? - perguntou, duvidando que a fugidia atenção do filho o permitisse.
- Claro, pai. - A perspetiva da partida para Portofino, um sítio que não conhecia e que toda a gente definia como magnífico, excitava-o e aumentava a sua predisposição
para a alegria. - Papá, achas que eu posso aceitar o convite dos Brancati para passar o mês de agosto com eles em Santa Margherita?
- Nesta fase - replicou, resignado -, acho que tu deves fazer aquilo que considerares oportuno. Tenho a impressão de que os meus conselhos não são fundamentais.
- Philip serviu-se de mais café.
- Obrigado pela confiança. - Trincou uma fatia de pão com manteiga. - Mas não me disseste qual é o teu programa. - Tinha uma voz agradável, musical, uma voz macia
e atrativa como a de Annalisa.
Philip ergueu com autoridade a mão direita para deter aquele rio de palavras.
- Já te vou dizer qual é o meu programa - interrompeu-o com decisão. - Escuta-me bem, meu filho. Eu tinha em mente, antes do mais... - Fez uma pausa, ao aperceber-se
da dificuldade em completar a frase.
- O quê? - perguntou, com olhos radiantes.
- Tinha em mente voltar a casar. - Pronto, estava dito, e deu um grande suspiro de alívio.
A reação de Bruno foi para além das suas expectativas.
- Estás a falar a sério? - perguntou o jovem, com um entusiasmo sorridente. - E só agora é que me dizes isso? - Levantou-se, foi junto do pai e abraçou-o com emoção.
- Fico contente por ti. - No fundo, aquele

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homem que agora conhecia sob uma luz diferente estava demasiado só para se sentir tranquilo.
Philip afastou-o com uma firmeza terna.
- Tem calma, rapaz. - Estava perturbado com aquele comportamento inesperado. - Só estava à espera do momento oportuno para te falar nisto.
- Estás feliz?
A felicidade, para ele, era uma aspiração, uma tensão, talvez um estado de espírito que se sente uma única vez na vida.
- Estou convencido de que fiz uma boa opção. - Porque aquele era talvez o segredo da felicidade: viver convencendo-se de que a paixão é um doença juvenil que a uma
certa idade pode produzir complicações graves.
- Fico contente por ti. - Os olhos cinzentos de Bruno exprimiam um acordo total.
- E não me perguntas mais nada? - Tinha elaborado uma série de justificações plausíveis.
- Por acaso tu perguntaste-me por que razão eu quero ficar em Itália? Aquele rapaz não parava de o surpreender.
Pensou com ternura em Mary Jane, a doce e afetuosa Mary Jane que o tinha visto partir novamente para a Europa e perguntara a si mesma se mais uma vez não se iria
interpor um novo obstáculo entre ela e o homem que amava. Mas não ousara manifestar-lhe os seus receios, ela que desde o primeiro beijo sempre se mantivera fiel.
Após a morte de Annalisa, Mary Jane deixou passar um tempo razoável e depois telefonou-lhe.
- Só para te cumprimentar - disse.
Foi um mergulho no passado concreto cheio de certezas agradáveis, ainda que não exaltantes. Apercebeu-se da falta que lhe tinha feito durante aqueles anos de atormentada
solidão passados ao lado da altiva, enigmática, inalcançável Annalisa.
Voltaram a encontrar-se e sobretudo ele falou em reatar o fio de uma relação brutalmente interrompida. Ela escutou-o paciente e devotamente.
- Já não ouso falar-te em casamento - concluiu. - Mas se tivesse de pensar em partilhar novamente a minha vida com uma mulher, essa mulher serias tu, Mary Jane.
Ela, com o rosto marcado pelos anos, chorou lágrimas silenciosas e Philip soube finalmente o que tinha perdido. Mary Jane era a realidade

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dos sentimentos acessíveis. Annalisa era a utopia inatingível, o veneno violento, o mistério inquietante que não se deixa revelar.
A safira da família estava no dedo certo quando ele a fora buscar de volta, sem refletir, para a conceder a um sonho.
A doce Mary Jane não respondeu, pegou-lhe na mão e beijou-a longamente. Ergueu para ele o seu olhar azul velado pela comoção.
- Dás-me uma grande alegria - agradeceu-lhe. - Isso quer dizer que a minha vida não se consumiu nesta longa espera. - O seu rosto oval, a testa marcada por uma impercetível
trama de pequenas rugas, nunca exprimira tanta delicada beleza. Philip apenas precisava de dizer a Bruno, que perante aquele anúncio o fitou com os seus grandes
olhos cinzentos, absolvendo-o e participando da sua alegria.
- Esta... senhora - disse-lhe - vai passar a ser tua... - o termo não era decididamente agradável, mas não havia outro - vai passar a ser tua madrasta. E eu ia ficar
desolado se não gostasses dela.
- Foste tu que a escolheste - falou com uma sinceridade comovente -, deve ser uma mulher maravilhosa.
Não pôde deixar de pensar na mãe e recordou a cruel situação em que todos tinham acabado por se encontrar. Nessa altura era demasiado pequeno, mas naqueles anos
passados com o avô e com Calò, ainda que não tivesse propriamente esclarecido muitas coisas, tinha pelo menos começado a entendê-las.
Um clarão intenso iluminou por um instante a região misteriosa dos pensamentos ocultos pondo em relevo uma imagem que só ele conhecia, um segredo que nem sequer
a Calò e ao avô alguma vez revelara, um sofrimento que havia de o acompanhar para o resto dos seus dias. O relâmpago ardente revelou a mãe nos braços do tio George,
os corpos nus e emaranhados, os olhares cheios de terror e de vergonha. Agora aquela cena enchia-o de piedade, já não sabia condenar nem absolver, ainda não conseguia
justificar, mas começava a intuir vagamente que mesmo um contrato solene como o matrimónio não pode ser respeitado se for celebrado entre duas pessoas erradas. A
voz do pai despertou-o das suas dolorosas meditações.
- Chama-se Mary Jane - comunicou-lhe Philip.
- É um bonito nome - disse Bruno distraídamente.
- Ela gostava muito de te conhecer. - O pai olhou para ele com uma

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certa apreensão. Tinha visto que o entusiasmo inicial se tinha transformado numa penosa reflexão.
- Eu também gostaria. - O seu bonito rosto foi novamente iluminado pelo sorriso.
- Então vão conhecer-se - replicou Philip, exultante.
- Não me digas que ela também está em Itália e que a mantiveste escondida de mim durante este tempo todo.
- Não, está em São Francisco. - Sentia vontade de o abraçar. - Posso telefonar-lhe e pedir-lhe para vir.
- Faz isso imediatamente, papa - disse. - Tem de apanhar o primeiro avião. Nós esperamos por ela em Milão.
- E Portofino? - perguntou Philip, preocupado.
- Não foge se atrasarmos a ida alguns dias. - Como amigo, gostava imenso de Phil. - Vamos juntos de férias.
Phil pousou a chávena no tabuleiro.
- Obrigado, Bruno. - Pegou-lhe afetuosamente nas mãos através da mesa. - És um rapaz fantástico.
Dois dias depois, a doce Mary Jane aterrava no aeroporto de Malpensa.

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Férias em Portofino

No Hotel Splendido de Portofino os dias corriam velozmente. Bruno estava à espera de uma mulher jovem e luminosa como a mãe, mas Mary Jane não tinha o aspeto de
uma jovem, demonstrava bem os seus 37 anos. No entanto, tinha um grande dom: o de irradiar paz à sua volta. Era alegre sem ser exuberante, era afetuosa com Phil
e atenta com Bruno. Nunca impunha a sua vontade e fazia os possíveis por satisfazer os desejos dos outros. Estavam sempre os três de acordo e Bruno havia de recordar
para sempre aqueles dias de paz idílica. Ancorado no pequeno porto estava o barco dos Davies, uma família americana amiga dos Brian. O tema daquele verão era Banana
Boat, o ritmo das Caraíbas lançado por Harry Belafonte.
Quase todos os dias os Brian iam ter com os Davies, subiam a bordo e iam tomar banho longe da costa. Bruno sentia-se à vontade com aqueles novos amigos e referia-se
a Mary Jane como "a namorada do meu pai".
- Parece o título de um filme - dizia Philip, a rir.
Um dia, em meados de julho, enquanto Bruno estava a tomar um duche depois de um dia de sol e de mar, tocou o telefone. Vestiu um roupão e levantou o auscultador.
- Como é que vai isso, rapaz? - Não era preciso mais nenhuma explicação. Aquela voz que lhe chegava forte, clara e pacata era a voz de Calò
- Onde estás? - Sentiu-se corar e depois foi invadido por um extraordinário bem-estar.
-Em Milão - respondeu. - Viajei um dia e uma noite. Agora estou em Milão. Não me disseste como estás.
- Estou bem, Calò Tenho muita vontade de estar contigo.
- Também eu, Bruno. Por isso vim a Milão.

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Bruno secou a água que lhe caía do cabelo sobre o rosto.
- Vou pedir ao pai para me levar já para casa.
- Podes terminar as tuas férias - sugeriu Calò. - Um dia a mais ou a menos não muda nada. Não te sentes bem em Portofino?
- Oh, sim. Mas estou melhor contigo. Porque não vens ter comigo?
- Nem pensar. - A voz resoluta de Calò convenceu-o de que era inútil insistir.
- De carro, estás aqui em três horas - tentou, ainda assim.
- Não - rebateu com firmeza. - Dizem que isso aí é um lugar cheio de gente de nariz empinado que não me agrada nada. Espero por ti em Milão.
- Deixa-me tratar do assunto - disse Bruno, despedindo-se.
- De qualquer maneira, ficas a saber que estou à tua espera - disse Calò a rir antes de desligar. Uma promessa do gigante valia um contrato.
Naquela noite, enquanto jantavam no barco dos Davies, Bruno encontrou o momento favorável para manifestar as suas intenções.
- Pai - disse -, gostava de regressar a Milão.
- Já não estás bem aqui connosco? - perguntou Philip, preocupado.
Mary Jane enviou-lhe um sorriso radioso.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou.
- Não aconteceu nada - explicou Bruno - e sinto-me maravilhosamente bem convosco - acrescentou, voltando-se para Mary Jane.
- E então? - perguntou o pai, admirado.
- O Calò voltou - admitiu sinceramente. - Está em Milão. Tenho vontade de o ver.
- Ah - comentou, desapontado.
Philip não ignorava o profundo afeto que ligava Calò e Bruno. Ao fim de tantos dias de descontração, sentiu pena do seu falhanço como marido e como pai, mas não
ciúme. O ressentimento tinha-se atenuado, pertencia a um período da sua vida que se esforçava por manter fechado, mas que nem sempre conseguia.
- Eu também posso saber quem é esse personagem misterioso e tão importante? - perguntou Mary Jane.
- É o meu padrinho - respondeu Bruno de imediato, evitando involuntariamente que Philip interviesse para dizer que se tratava de um empregado dos Monreale.

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Tinham passado anos, tinham sucedido muitos acontecimentos, mas não podia esquecer aquele encontro no jardim do palácio de Piazza Armerina, nem o ódio profundo que
vira lampejar nos olhos do gigante.
- Querias passar o mês de agosto em Santa Margherita com os Brancati - lembrou-lhe, com a intenção de o fazer refletir.
- Mudei de ideias, papa - retorquiu com firmeza. - Se não te importares - pronunciou lentamente aquelas últimas palavras -, gostava de regressar a Milão.
- Quando? - Era um pedido de esclarecimento inútil.
- O mais depressa possível - murmurou - se isso não te criar problemas.
- Vamos ver o que se pode fazer. - Philip recordou Annalisa. O filho era tal e qual: nada o afastava das suas decisões.
- Agradeço-te - disse, fitando os anfitriões com um olhar que era de consternação e de desculpa.
Philip retomou a conversa interrompida, voltando tudo a normalidade. Os comentários banais desenrolavam-se segundo um ritual esgotado. Philip falava, mas não conseguia
esconder o mau humor. Naqueles dias de serenidade tinha esperado recuperar o filho, esperava até que Bruno lhe dissesse que tinha mudado de ideias e que regressava
com ele e com Mary Jane a Califórnia. A vinda de Calò tinha estragado tudo. Mais uma vez se sentiu ameaçado por aquele estranho.
Regressaram ao hotel sem falar. Era bastante tarde quando o carro parou em frente ao Splendido.
- Partimos amanhã - informou Philip.
Bruno abraçou-o afetuosamente.
- Eu sabia que tu ias entender - disse.
- Eu e a Mary Jane regressamos a casa. - Mary Jane, que tomava conhecimento naquele momento da antecipação do programa, olhou para ele com uma certa surpresa, mas
não interveio.
- Gostava que ficassem ainda até ao fim do mês. - Ao fim e ao cabo, era aquela a data estabelecida para a partida.
- E nós esperávamos que tu fosses ao nosso casamento - replicou severamente Philip.
- As aulas começam em setembro - justificou-se Bruno com muita calma. - Não vou poder. Mas façam de conta de que eu estou lá. Fico

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muito contente por se casarem. - Deu-lhes um beijo e desejou-lhes boa-noite.
- Só mais uma coisa, Bruno - disse o pai.
Bruno não ouviu, tinha já subido um lanço da escadaria mas estava a muitas milhas de distância, estava na companhia de Calò e tudo o resto se diluía nas coisas sem
importância.
- Quer que o mande chamar? - ofereceu-se o porteiro, solícito.
- Não é preciso, obrigado - disse Philip.
Deu a mão a Mary Jane e dirigiram-se ao ascensor.

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A safira

Estava parado aos pés da escadaria de pedra e olhava para Calò à espera dele lá em cima, imóvel como uma estátua. O ar abafado daquela manhã de julho atenuava-se
na sombra do antigo palácio da via Manzoni.
Bruno correu ao encontro dele, subindo os degraus dois a dois, e o gigante agarrou-o levantando-o do chão.
- Meu filho lindo! - exclamou em dialeto Siciliano. - Como tu cresceste. E como estás bronzeado.
Bruno sentiu-se como uma pena nas mãos possantes daquele homem e corou. Ao entusiasmo do primeiro abraço tinha-se sobreposto o desconforto de ser tratado como uma
criança.
- Põe-me no chão - ordenou, confuso.
Calò pousou-o no chão, dando-se conta de que tinha exagerado.
- Tu também estás bem - constatou Bruno, que teria continuado a brincar com ele se não receasse passar uma imagem ridícula de si próprio a Philip e a Mary Jane.
- Estás um rapaz muito forte - disse Calò, com ar de quem se desculpa.
- Há um mês que não nos vemos. - Falavam entre eles excluindo o resto do mundo. Mary Jane ficou espantada com aquela sintonia extraordinária e Philip sentiu-se mais
uma vez anulado por aquele estranho.
- E o entusiasmo do primeiro momento. - Mary Jane tentou dar uma justificação plausível.
- A paternidade - brincou, procurando não atribuir muita importância à coisa - não é um facto biológico, é uma conquista. Eu não acho que tenha sido um bom pai para
ele. - Em parte aquilo que dizia era

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verdadeiro, mas não conseguia superar a hostilidade que em certos momentos sentia por aquele gigante loiro.
Recordou o funeral de Annalisa e viu mais uma vez Calò a entrar na capela do Hospital Saint James e Bruno, que nunca o tinha visto a não ser com poucos meses de
idade, a aproximar-se dele e a dar-lhe a mão. Que força singular se libertava daquele homem rude para conseguir atrair a atenção e o afeto do seu filho?
- Apresento-te don Calogero Costa - disse a Mary Jane, respeitando o cerimonial de rapaz bem-educado. - É o meu padrinho - acrescentou com orgulho. E logo a seguir,
voltando-se para ele: - Mary Jane Marshall. A namorada do pai.
A doce Mary Jane estendeu-lhe a mão, observando-o com o arrebatado assombro de uma rapariga da província perante um prestidigitador que materializa do nada um voo
de pombas.
- How do you do, mister Costa? - Pronunciou a fórmula ritual automaticamente, mas logo pensou, desorientada: Meu Deus, mas este é que é o pai do Bruno.
Calò apertou a mão delgada daquela senhora de expressão suave.
- Prazer em conhecê-la, menina - cumprimentou.
- Vocês não precisam de apresentações - interveio Bruno, referindo-se aos dois homens, que apertaram as mãos.
Ao fim de tantos anos, Philip achou que Calò não tinha mudado e experimentou um sentimento de inveja por aquela imagem de juventude e de força.
Subiram juntos as escadas.
- Que estúpido - lembrou-se Calò -, esqueci-me de trazer as malas.
- Não é preciso - retorquiu Philip. - Nós vamos já embora - acrescentou, voltado para ela. - Não é verdade, Mary Jane?
Ela olhou para ele, atrapalhada.
- Com certeza, querido - assentiu, sem pedir mais explicações. - Como tu quiseres. Mas antes gostava de descansar um instante.
Enquanto os dois homens e Bruno passavam à sala de estar, ela refugiou-se na casa de banho. Precisava de ordenar as suas ideias sem criar suspeitas e aquele pareceu-lhe
o melhor lugar.
A imagem de Calò tinha-a literalmente transtornado. Seria possível que ninguém tivesse dado conta? Bruno era idêntico a Calò. O gigante

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tinha olhos azuis e cabelos loiros, Bruno tinha olhos cinzentos e cabelos negros, mas por mil e um outros pormenores eram idênticos: os mesmos zigomas altos, o mesmo
nariz forte, os mesmos movimentos, a maneira de andar, os gestos de entendimento, as alusões. Também o sorriso, tão claro e envolvente, era o mesmo. Como era possível
que ninguém tivesse tido aquela mesma suspeita? Ou talvez Philip soubesse e fizesse de conta que não sabia.
Mary Jane olhou-se no grande espelho circundado de pequenas lâmpadas e apercebeu-se de que o cansaço, mas sobretudo aquela perturbadora constatação, lhe tinham alterado
a fisionomia, que era agora a de uma mulher assustada por um segredo maior do que ela. Lavou o rosto, refez uma maquilhagem ligeira, penteou-se com cuidado e tentou
convencer-se de que aquilo em que tinha pensado era uma enormidade, algo inadmissível. Certamente tinha interpretado mal, o calor e a fadiga da viagem, a súbita
passagem do sol do verão para a sombra tinham-lhe pregado uma partida.
Olhou-se novamente ao espelho, arranjou o cabelo com a mão, tentou em vão anular com a ponta do indicador as minúsculas rugas que irradiavam dos cantos dos olhos,
mas à sua imagem refletida sobrepôs-se a de Bruno e a esta última o rosto claro de Calò. Estava a tornar-se uma obsessão.
Não, não era o calor ou a passagem da luz à sombra, não era uma ilusão: Bruno era mesmo filho de Calò.
Mary Jane abotoou a blusa e apressou-se a regressar para junto de Philip. Agora muitas coisas lhe pareciam claras: o conjunto perfeito do jovem com Calò, a profunda
aversão que tinha lido nos olhos de Philip em relação ao enigmático personagem. Certamente Philip sabia, provavelmente sempre soubera, mas alguma coisa o impedia
de aceitar abertamente aquela verdade.
A certeza de ter desvendado o doloroso segredo dos Brian não a induziu a formular juízos precipitados sobre Annalisa; pelo contrário, deteve-se a considerar com
infinita piedade a figura da primeira mulher de Philip, apesar de a ter invejado e de ter também sofrido, por culpa dela, tormentos inenarráveis. Mas agora sentia-a
idêntica e próxima, irmanada pela dor. Porque também ela devia ter sofrido muito ao casar com um homem quando amava outro. Mary Jane foi até assaltada pela suspeita

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de que o acidente de Sausalito tivesse sido programado e desejado e ficou cada vez mais convencida de que se tratara de suicídio. Porque se há apenas uma maneira
de entrar na vida, há inúmeras para sair, sobretudo quando se pretende fugir a um sofrimento insuportável.
Insinuava-se nela, contaminada pela violência de sentimentos e situações novas, uma subtil inquietude que ameaçava a sua moderação inata. Sentia um desejo enorme
de regressar a casa.
Quando achou que estava novamente segura de si dirigiu-se à sala de estar.
Calò, apesar dos bons conselhos dados pela governanta de Brianza, não conseguiu obter um granizado de limão que se parecesse ainda que vagamente com o que Annina
fazia com muito profissionalismo. Abandonou aquela mistela esbranquiçada no copo em cima da mesa de vidro.
- Bruno - explicou Calò a Philip - não precisa de um motorista, mister Brian.
- Então porquê? - perguntou Philip, desconfiado.
Mary Jane encolheu-se num amplo sofá de veludo e começou a folhear uma revista.
- Estou aqui eu para isso - afirmou Calò.
- Mas o senhor pode ausentar-se - objetou.
- O tempo das ausências já passou - decretou categoricamente. - E depois eu não confio em ninguém. Tirando o senhor, mister Brian acrescentou, para não ser mal-entendido.
Philip ficou sério e assumiu um tom autoritário.
- O senhor tem uma elevada opinião de si próprio, mister Costa disse, com a intenção de restabelecer a diferença de papéis.
A governanta trouxe um bule de chá e pousou as chávenas na mesa, após o que se afastou silenciosamente.
- Tento dar um passo do tamanho da perna. - A luz entrava suavemente através das cortinas, produzindo uma poeira dourada.
- Antes de partir - iniciando um novo assunto -, vamos ter de abordar o problema económico.
- Não percebo. - Olhou para ele espantado, enquanto se servia de chá.
- Gostaria de saber qual era o valor do salário que o meu sogro lhe atribuía - disse brutalmente. - Gostaria de saber se aquilo que ganha lhe chega.

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Manobrando com uma notória falta de jeito a pinça de prata, Calò pegou num cubo de açúcar e deixou-o cair na chávena, arriscando-se a lido acertar.
- Não tenho muita prática - desculpou-se a sorrir.
- Mas não respondeu à minha pergunta - insistiu Philip com o tom de uma pessoa que nunca repete duas vezes a mesma questão.
- Talvez eu não tenha entendido bem - tergiversou o Siciliano, não sem uma certa ironia.
- Perguntei-lhe o valor do seu salário - repetiu com irritação.
Bruno tinha-se prudentemente instalado junto a Mary Jane e comentava com ela as ilustrações e os títulos daquela revista.
- Eu nunca tive um salário, mister Brian - disse, ostentando a segurança e a cortesia dos fortes.
Philip teve um gesto de contrariedade que repeliu rapidamente.
- E como vivia? - perguntou, convencido de que o ia pôr em dificuldade.

- Como uma pessoa da família - respondeu com espontaneidade.
- O senhor daria um salário ao seu filho?
- Não me parece que o senhor se chame Sajeva. - Estava a enfiar-se num túnel do qual lhe ia ser difícil sair airosamente.
- Seria uma honra demasiado grande. - Deixou entrever num sorriso jovial a sua raça de mastim. - Mas se quiser continuar o interrogatório, esteja à vontade.
Philip pegou nervosamente num cigarro e acionou o isqueiro várias vezes antes que a chama brilhasse.
- Posso perguntar-lhe como viveu até hoje? - Era incapaz de reconhecer esquemas diferentes daqueles em que sempre vivera.
Calò bebeu um gole de chá, saboreando-o como um bom entendedor.
- Vivi pegando naquilo de que precisava. - Olhou para o americano, que revelava a sua inquietação na maneira como lidava com aquele cigarro que ardia rapidamente.
- E acredite, mister Brian: preciso de pouco.
- Mas a partir do momento em que se vai ocupar do meu filho - insistiu com a arrogância dos vencidos que não aceitam a superioridade do adversário - eu exijo que
seja convenientemente compensado.
- É um direito que não lhe posso negar. - Calò fingiu render-se. - Mas

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não me peça para o ajudar a definir a importância. Não sou muito entendido em questões económicas.
- Então ficamos assim entendidos, senhor Costa - comportava-se como se fosse ele a conduzir o jogo. - No dia 30 de cada mês receberá um cheque do meu advogado em
Itália. Galã anuiu com o seu belo sorriso juvenil e irónico. Considerou inútil dizer-lhe que ia transferir o cheque para a conta de Bruno, tal como tinha feito com
todos os outros bens recebidos em herança. O barão tinha-lhe deixado o eucaliptal, uma fábrica de papel e um certo número de títulos para ele administrar no interesse
do neto, juntamente com o palácio, o feudo de Piazza Armerina e a villa de Palermo.
Bruno, em voz baixa, estava a contar a Mary Jane que o barão tinha designado Calò como seu tutor e portanto como administrador de todo o património da família.
- Acho que posso dizer que o meu filho está em boas mãos - concluiu Philip. Era o máximo que podia conceder aquele troglodita que decidira assumir o papel de cão
fiel.
- Eu também acho - disse Calò.
Mary Jane, vencendo o seu natural acanhamento, decidiu intervir, sobretudo depois das confidências de Bruno, sorrindo a Calo com amizade.
- O senhor é realmente muito amável, mister Costa - disse. - Estou muito contente por o ter conhecido. O siciliano inclinou-se como tinha visto fazer ao barão, mas
a imitação saiu-lhe muito mal. Absolvia-o a sua simplicidade.
- A menina descansou? - queria ser galante, mas apenas conseguiu exprimir ternura.
Mary Jane observou-o melhor e apercebeu-se de que qualquer mulher gostaria de ter um homem assim ao seu lado, pronto para a defender e para a amar. Percebeu o grande
amor de Annalisa e desculpou-a.
- Agora estou pronta para partir - murmurou, olhando para ele com os seus olhos límpidos. - Agora sei que o filho do Philip... que o nosso filho está em ótimas mãos.
Bruno aproximou-se de Calò e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Este assentiu, tirou uma chave do bolso do casaco e entregou-a a Bruno.

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- Espera só um momento, Mary Jane - disse Bruno. - Tenho de te dar uma coisa.
Saiu do escritório a correr, regressou ao fim de poucos minutos, entregou a chave a Calò e estendeu à namorada do pai uma caixinha de camurça verde.
- Isto é para ti, Mary Jane - disse Bruno.
Ela abriu o pequeno estojo e deparou-se com a safira mais bonita do mundo, uma joia que já conhecia, que lhe tinha sido enfiada no dedo com uma promessa solene e
que depois lhe fora arrancada com brutalidade.
- Porque é que me ofereces este anel, Bruno? - Estava comovida e tremiam-lhe os lábios.
- Era da minha mãe - disse Bruno -, mas pertence à mulher de Philip Brian. É teu, Mary Jane. Eu não vou poder ir ao vosso casamento, mas faço muita questão em que
o aceites como meu presente de casamento.
Mary Jane inclinou-se para dar um beijo a Bruno.
- Obrigado, Bruno - disse Philip, empalidecendo de emoção. Tinha sido o seu filho a repor a joia de família no caminho da tradição dos Brian.

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O SUCESSO

Lucilla

O luminoso sorriso de Lucilla suscitava em Bruno uma sensação subtil e misteriosa que ele não conhecia, mas que lhe acendia o sangue e que o fazia corar. Um gira-discos
escondido difundia as notas ingénuas de Romântica, a canção que tinha ganho o festival de Sanremo. Aberta em cima da cama estava uma revista com uma grande fotografia
de Margarida de Inglaterra e Armstrong Jones numa das suas viagens depois do casamento celebrado em maio.
Ela olhou para ele com um ar malicioso. Era parecida com Brigitte Bardot, sabia-o e fazia gala disso.
- Estás um homem - disse-lhe com admiração. - E que homem!
Bruno baixou os olhos, Lucilla sentou-se na cama e acariciou-lhe a face com as mãos macias de dedos longos e finos carregados de anéis.
- Sim, senhora - disse ele, perturbado pelo embaraço. Era, na realidade, de uma beleza singular, uma beleza doce, diluída no encanto da juventude que desabrochava.
- Há um século que não nos vemos - observou Lucilla com alegria e pesar.
- Foram só três meses - esclareceu Bruno. - Desde o fim do ano letivo.
Bruno era o melhor amigo de Matteo, o filho de Lucilla, e naqueles dois anos de liceu tinham-se encontrado muitas vezes.
Matteo era um louro que tinha a alcunha de Arcanjo pelo seu ar místico e sonhador e a sua auréola de caracóis louros. Os dois rapazes tinham criado aquela ligação
desde o primeiro ano e adquirido o hábito de estudarem juntos.
Bruno ia muitas vezes a casa de Matteo. Calò ia buscá-los à escola e

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levava-os à via Spiga, onde Matteo morava. Bruno ficava com ele até à hora de jantar, quando Calò, depois de atravessar a via Manzoni, caminhava pela via Spiga até
ao prédio de esquina com o corso Venezia buscar o seu afilhado e levá-lo para casa.
A princesa Isgrò, que com a velhice se tornava cada vez mais intransigente, não aprovava aquele hábito. Mas Calò estava convencido de que a presença da mãe de Matteo,
tão jovem, divertida e despreocupada não podia senão fazer bem a Bruno. E Lucilla tinha realmente uma personalidade alegre que influenciava de um modo benéfico Bruno,
cujo termo de comparação feminino, na família, era representado apenas pela princesa Isgrò. Calò via Lucilla quase duas vezes por dia: quando lhe entregava os rapazes
e quando regressava para ir buscar Bruno.
- É uma cabeça tonta - dizia alegremente Calò referindo-se a ela -, mas é boa rapariga.
- Tonta porquê? - perguntava a princesa, curiosa.
- Diz que o Bruno e o Matteo parecem Euríalo e Niso, que também podia ser Castor e Pólux. Figuras mitológicas, diz ela. No outro dia agarrou nos dois, abraçou-os
e disse: "Não acha também, senhor Costa, que estes rapazes fazem um par magnífico?". Imagine o Bruno, arisco como é. Ficou vermelho como um pimento. Eu, para não
alimentar a conversa, disse que efetivamente são dois bonitos rapazes. No entanto, ela continuou, em êxtase: "Mas é o contraste que é extraordinário, o Bruno tão
moreno e o Matteo tão louro. As minhas amigas, quando os veem, ficam hipnotizadas. Tao iguais e tão diferentes."
- Isso a mim não me dá nenhuma vontade de rir - afirmou a princesa com um ar severo. - Nem a tua mímica de ator de variedades me diverte. Calò, vê lá o que é que
me arranjas - censurou-o. - Estás a ficar frívolo como uma mulher.
Calò conhecia demasiado bem a princesa para se sentir ferido com as suas palavras.
- O que é que quer - replicou, a abanar a grande cabeça de cabelos loiros que começavam a embranquecer. - Há anos que vivo num mundo de crianças e mulheres. Estou
mesmo a ficar perdido.
No fim do quinto ano do liceu, durante o período dos exames, os dois amigos tinham acabado por passar juntos dias inteiros, em casa de um e

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de outro, alternadamente. Eram alimentados e mimados à vez pela princesa Isgrò e por Lucilla.
Às vezes, Bruno encontrava o pai de Matteo, o engenheiro Alberti, concessionário de uma fábrica de automóveis.
A abordagem era sempre a mesma, óbvia e previsível: - Boa, rapazes. Mostrem o que valem - dizia, para os incitar ao estudo. - Eu tive de lutar, vim do nada. Vocês
já partem de bases sólidas.
Era um homem alto, magro, de perfil ascético e com um grande nariz que o tornava parecido com Gerolamo Savonarola. Os negócios eram para ele uma religião e considerava
os escritórios da sociedade um templo sagrado, onde passava uma grande parte do seu dia. Sentia-se um protagonista do milagre económico e sacrificava afetos e sentimentos
no altar do sucesso. Considerava Lucilla, quase vinte anos mais jovem, como um automóvel de apresentação, um símbolo do sucesso adquirido, como a villa de Brianza,
o palacete de Paris e o chalé de St. Moritz. Nas ocasiões importantes tirava-a de casa, juntamente com o Rolls, enchia-a de joias e punha-a na montra.
Lucilla era muito bonita, superficial e frívola o suficiente para aceitar com desenvoltura o papel que lhe era imposto pelo marido. Para ela a vida era uma sequência
de passagens de modelos, de provas de vestidos na modista, de sessões no instituto de beleza de Elisabeth Arden, de ações de beneficência apoiadas pela figura vagamente
corrupta de um monsenhor, mais próximo dos salões do que dos altares, que fazia as delícias de uma dezena de senhoras como ela, sussurrando em cada casa as bisbilhotices
da casa de onde acabava de sair.
Mas a verdadeira grande paixão de Lucilla era a oração. Havia aquela cansativa agitação dos natais em Acapulco, dos fins de ano em St. Moritz e dos almoços programados
para a abertura da caça, mas nos serões solitários, entre dois compromissos mundanos, Lucilla passava horas no genuflexório seiscentista que constituía a peça de
mobiliário mais venerada do seu quarto. Rezava de mãos postas com o olhar arrebatado e fixo num admirável Cristo sofredor esculpido em madeira por um artista de
Klausen. Só quando, devido à imobilidade e à concentração, sentia vertigens, tocava a campainha para que a empregada a ajudasse a levantar-se e a estender-se na
cama, onde adormecia imediatamente.
Convencida de que tinha uma relação privilegiada com o Omnipotente,

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tinha construído para si própria uma liturgia própria, que previa os êxtases místicos e as perfídias de salão. Numa noite era capaz de destruir as mais sólidas reputações.
Abria e fechava a torneira da fé a seu bel-prazer, mas a oração libertava-a de qualquer sentimento de culpa. Aos 36 anos era bonita, atraente e gozava de uma saúde
de ferro. Enquanto relativamente à beleza e à elegância do corpo estava disposta a transigir completamente, decidira, pelo contrário, que o bem-estar físico não
ficava bem a uma mulher dedicada a praticar o bem.
Por isso inventava vagas indisposições que os médicos a quem pagava a peso de ouro definiam como criptogenéticas, ou seja, de origem misteriosa, inexplicável. Metia-se
na cama depois de se ter abundantemente borrifado com Chanel, e usava camisas de noite de uma etérea transparência que revelavam uma inconsciente mania exibicionista
e exerciam um apelo sexual deliciosamente provocatório.
A empregada paciente, e principescamente paga, levava-lhe uma garrafa de água de Fiuggi e ela recebia as amigas no quarto, armada em dama setecentista. Às selecionadas
visitantes oferecia chá e ela bebia aquela milagrosa água mineral de Fiuggi, dizendo: - Hoje não estou nada bem.
Uma tarde, por volta das duas horas, Matteo tinha ido com o pai visitar um cliente importante e não voltaria antes do fim do dia. Bruno tinha sido admitido no quarto
de Lucilla, vítima perfumada de um mal-estar criptogenético.
Os cumprimentos da senhora fizeram-no corar. Baixou os olhos e começou a olhar para os pés.
- Nos tempos que correm - observou ela -, a timidez num jovem como tu é uma coisa rara e preciosa. - Não havia premeditação naqueles elogios. - Quantos anos tens?
- perguntou, abrindo os lábios num sorriso encantador.

- Dezasseis. Como o Matteo. Somos colegas de escola, não se lembra? Dizia coisas óbvias, pela primeira vez perturbado com aquela presença que lhe suscitava desejos
secretos.
- Estás a ver como me pões baralhada? - Media-o com os seus olhos de ouro como se o visse pela primeira vez, como se pela primeira vez fosse atacada pela febre do
enamoramento que anula as convenções e os esquemas

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morais. O cheiro selvagem que emanava do jovem macho de olhos de aço incendiava -lhe os sentidos e queimava-lhe a pele. E teve medo.
- Não quero incomodá-la, minha senhora - murmurou Bruno, mas entretanto continuava imóvel a respirar o perfume de mulher que subitamente lhe causara uma perturbação
violenta e doce.
Lucilla tinha começado por brincadeira, mas apercebia-se agora de que tinha desencadeado uma reação em cadeia que passava sem controlo de explosão a explosão.
- Talvez - murmurou com uma voz estranha - seja melhor ires para ali esperar pelo Matteo. Instintivamente, tapou-se com o lençol azul, o que teve o resultado de
fazer escorregar a alça da camisa de noite, descobrindo por um instante um seio redondo e firme, bronzeado até ao mamilo ereto.
- Talvez seja melhor. - Mas Bruno, contradizendo as suas próprias palavras, sentou-se ao lado dela num puff de veludo branco.
- O Matteo vai chegar muito tarde. - Um violento rubor cobriu-lhe as faces e os seus olhos brilhantes lembravam ouro antigo. O desejo que tinha lido nos romances
circulava violento no seu sangue quente.
Bruno ficou uns minutos em silêncio, com os olhos fixos naquela visão que o fazia tremer.
- Não me mande embora - suplicou-lhe.
- Não, querido, não te mando embora. - Tinha os olhos húmidos e não conseguiu conter um soluço. Já não era uma encantadora mulher de 36 anos, mas uma rapariga em
flor que acendia o fogo de uma paixão incontrolável.
Bruno aproximou-se dela e acariciou-lhe o seio com uma cautela pueril. Tinha a garganta seca, ardiam-lhe os olhos e sentiu um espasmo na virilha.
- O que é que eu devo fazer? - Era sincero, tinha medo de errar, a excitação e a ereção do sexo atrapalhavam-no, ofegava como um náufrago naquele mar de doloroso
prazer. Via a mulher através de uma névoa e sentia-se apanhado numa leve vertigem.
- O que fazes com a tua namorada. - Lucilla acariciava-lhe o rosto, o pescoço, as orelhas.
- Eu nunca tive uma namorada - confessou.

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- Nunca? - As mãos leves da mulher tocaram-lhe a testa e despentearam-lhe o cabelo.
- Nunca, minha senhora. - O calor nos flancos acentuou-se e estendeu-se ao longo do ventre.
- Então não faças nada. - Levantou-se e deixou que a camisa de noite lhe escorregasse até aos pés, revelando uma nudez radiosa. As pernas longas e esguias, o ventre
plano, a cintura fina, as ancas de uma maciez luzidia, os seios gloriosos, todo o seu corpo vibrante desmentia a idade e atribuía-lhe juventude.
Bruno fechou os olhos e sentiu-lhe os dedos experientes, com toque de borboleta, a desapertar, um atrás do outro, os botões das calças. Um beijo cheio de ternura
aprisionou o sexo ereto, que passou de uma constrição tormentosa a uma escravidão ardente e libertadora. O fluxo quente do seu sémen não se perdeu. Depois os lábios
da mulher pousaram cálidos sobre os seus lábios e traziam o sabor do seu primeiro verdadeiro orgasmo.
- Anda cá, querido - murmurou com uma voz rouca.
Bruno, que passava em poucos instantes de uma ereção a outra, deixou-se conduzir pela sua mão em direção a uma humidade ardente, entrou dentro dela e foi um êxtase
vibrante. Sentiu novamente o prazer subir-lhe, imparável, e conheceu o encontro de dois espasmos, de duas voluptuosidades, soube o significado profundo da sexualidade
que se realiza quando o ápice do desejo se atinge ao mesmo tempo.
Separaram-se exaustos e aturdidos.
- Amo-te - disse Bruno, tratando-a por tu pela primeira vez.
- Não, meu rapaz. - Lucilla chamou-o a realidade com uma voz dura, enquanto saltava da cama para enfiar um roupão. Atirou-lhe a roupa dele. - Agora arranja-te.
- Mas eu amo-te verdadeiramente - repetiu com determinação, enquanto enfiava desajeitadamente as calças.
- Um dia vais conhecer o amor - disse ela, passando as mãos sobre as suas faces em chamas - e vais perceber que é algo completamente diferente.
- Mas eu... - balbuciou.
- Volta amanhã, se quiseres, para estar com o Matteo. - Sobre o seu rosto tinha descido uma grande severidade.

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- E nós? - perguntou Bruno, quase a chorar.
- Entre nós não aconteceu nada - replicou ela secamente. - Uma mulher ajudou-te a tornares-te homem. Mas a ser um cavalheiro tens de aprender sozinho. Entre nós
- repetiu - não aconteceu nada.
- Sim, minha senhora - prometeu Bruno, e beijou-lhe respeitosamente a mão antes de se despedir.
Quando ficou sozinha, Lucilla deixou-se cair sobre o genuflexório seiscentista, o seu olhar aceso focou o Cristo sofredor, segurou a cabeça entre as mãos e rezou
pelos seus pecados. Desde aquele dia as mulheres que conheceram Bruno Brian descobriram uma pessoa diferente e acalentaram de forma mais ou menos secreta o desejo
de o terem como companheiro.

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A mulher certa

A caminho de casa Bruno meditou sobre o suicídio. A mulher que o tinha levado ao paraíso, a única mulher no mundo, a primeira que o fizera subir ao sétimo céu tinha-o
despachado logo a seguir. Pensou no jovem Werther e viu-se em traje de noite no seu leito de morte.
Possuído por românticos furores e por dilacerantes sentimentos de culpa, pois ao fim e ao cabo tinha traído o seu melhor amigo, entrou no palácio da via Manzoni.
Eram três e meia da tarde. A casa parecia deserta. Certamente a princesa tinha saído para fazer as suas compras e os empregados estavam a descansar.
Percorreu todos os aposentos e examinou todos os cantos que lhe eram queridos com uma dolorosa melancolia, como se visse pela última vez as coisas que amava. Na
cozinha encontrou Calò a utilizar, com religiosa delicadeza, uma napolitana, uma velha máquina de café que remontava aos tempos da dominação borbónica, para fazer
um café como manda a regra.
- Esta gente do Norte nem sequer sabe por onde se começa a preparar um verdadeiro café. - Era o seu tema preferido. - Para eles basta que seja preto. É claro que
a água de Milão não é a melhor, e isso tem a sua importância. Mas há outros pequenos detalhes que esta gente apressada não conhece nem conhecerá nunca.
Bruno surpreendeu-o a dosear com a precisão de um farmacêutico o café moído no ponto certo.
Calò ficou surpreendido de o ver mais cedo do que o previsto.
- Então, o que aconteceu? - perguntou-lhe. Observou-o com atenção, sem no entanto se preocupar com o seu ar mortificado.

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- Não aconteceu nada - respondeu, tentando esconder o tormento do seu coração.
- Porque é que não estás em casa do teu amigo? - Usou um tom neutro para não se pôr na pele de uma ama apreensiva.
- Não estava - explicou, fingindo indiferença. A cozinha estava fresca, limpa, grande, acolhedora, e o seu olhar caiu sobre o monumental frigorífico branco.
Os espasmos do coração e os tormentos da alma escorregaram inexoravelmente para o estômago: apercebeu-se de que estava com uma fome selvagem. Dissolveu-se a ideia
romântica do suicídio e concretizou-se outra menos trágica mas mais urgente: a de uma robusta merenda.
- Como é que não estava? - Calò acendeu o gás e pôs a cafeteira ao lume
- Foi com o pai, não sei onde. - Olhava com adoração para o frigorífico e imaginava as coisas boas que devia conter. Envergonhou-se daquele pensamento prosaico,
mas não a ponto de renunciar ao desejo de verificar se o conteúdo correspondia à sua voracidade.
Calò sentou-se à mesa da cozinha enquanto esperava que a água fervesse, fingindo ler o jornal. Na realidade, observava o jovem pelo canto do olho. Naquele dia, Bruno
estava a comportar-se de um modo realmente estranho. Na sua expressão alternavam-se sentimentos contraditórios. Conhecia-o demasiado bem para não intuir as suas
emoções. A espera paciente era o método mais eficaz: mais cedo ou mais tarde acabaria por descobrir o que se estava a passar com ele.
Bruno tinha cortado ao comprido uma baguete e com uma meticulosa atenção ia pousando na parte inferior um presunto suave, magro, cortado em fatias muito finas. Sobre
a camada de presunto, ordenadamente, alinhou cogumelos porcini em azeite, pequenas alcachofras das suas terras e tiras de pimento vermelho. Na parte superior do
pão espalhou uma ligeira camada de manteiga, fez uma pequena pausa para refletir e depois decidiu que um toque de mostarda não ficaria mal. Fechou com diligência
a sua obra de arte, tendo o cuidado de não deixar que nada escorregasse para fora, mediu-a com um olhar satisfeito e começou a demolir com os seus dentes de lobo
aquela sanduíche monumental.
"Seja qual for a coisa que o perturba", pensou Calò "não é com certeza preocupante." Continuava calado, com um ouvido no fogão para

389

captar o primeiro silvo da água a ferver na cafeteira e um olho em Bruno, que comia com uma insólita avidez.
Bruno aproximou-se da janela e olhou distraidamente lá para fora.
- Apetece-te sair? - perguntou Calò.
- Ainda não decidi - respondeu com a boca cheia.
A água da cafeteira começava a ferver. Calò desligou o gás, retirou a cafeteira do lume, virou-a ao contrário, pousou-a em cima da mesa e começou a sentir a água
que se escoava devagar, levando atrás de si a essência do pó de café e convertendo-a numa infusão divina. Bruno, que já tinha liquidado a sanduíche, abriu novamente
o frigorífico e ficou a contemplar um queijo aberto há pouco com aspeto sublime, cortou uma fatia e pegou em mais pão para aplacar aquele resto de apetite. Mastigando
com menor entusiasmo, mas com a mesma potência, deu por si a refletir sobre a afinidade dos contrários: os pensamentos de amor e os tormentos do êxtase não excluem
os prazeres da gula, aliás, as duas coisas completam-se. Sentiu-se novamente alegre, despreocupado, feliz.
Calò esperava pacientemente que Bruno se decidisse a confiar-lhe o seu segredo, mas aquele silêncio levou-o a capitular.
Calò levou religiosamente a chávena aos lábios e começou a beber o seu café escaldante. Estava uma delícia.
- Há um velho ditado na Sicília - começou com calma, provocando a imediata curiosidade de Bruno, que já sabia que certos inícios de Calò prenunciavam conclusões
imprevisíveis.
- Há muitos ditados para os nossos lados. - Queria dar-se ares de homem vivido e imperturbável, mas tinha uma vontade irresistível de saber o que Calò queria dizer.
- Aquilo que eu tenho em mente é um ditado muito especial - rebateu, enquanto continuava a saborear a sua incomparável infusão.
- Estás com mais vontade de me dizer do que eu de saber - surpreendeu-o Bruno.
Calò baixou os olhos para a chávena ainda sem saber se havia de lhe pregar a rasteira, que podia até basear-se numa intuição errada, ou esquecer o assunto. Mas estava
demasiado seguro da sua convicção.
- Então, como é esse ditado? - perguntou Bruno, rendido.
- Diz: seja fame fotti, se fa sete smetti, se o sexo der fome deve-se fazer; se der sede, deve-se parar - disse asperamente Calò.

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A calma e a firmeza desapareceram do belo rosto de Bruno, que corou violentamente.
Calò pegou na chávena para saborear o resto do café.
- Tal e qual - confirmou.
O único comportamento possível seria a indiferença, mas Bruno não tinha ainda a têmpera de Calò.
- O que é que tu queres de mim? - disparou. - Porque é que não tomas o teu café em paz e não te metes na tua vida? - Os olhos de Bruno brilhavam de uma forma insólita
e o nervosismo traía-o.
- Porque estás cheio de vontade de falar e não sabes por onde hás de começar - arriscou à sorte.
- Agora pões-te a adivinhar - reagiu violentamente. - Mas a mim não me apanhas.
O nevoeiro tinha-se dissipado e o alvo era visível.
- Então conto-te eu a história - disse Calò - e entre nós não é preciso referir os pormenores.
- Tu és completamente louco - disse Bruno, furioso.
- Tinha de acontecer, mais cedo ou mais tarde - disse baixinho Calò, olhando para ele. - A primeira vez é muito importante. E tu, evidentemente, tiveste a sorte
de o fazer com a mulher certa.
- Mas eu não posso viver sem ela. - Os seus olhos cinzentos tinham-se tornado tristes e desolados. Com o estômago cheio, recordava a vertigem da paixão.
Calo sabia que as palavras não adiantavam e que a experiência não se pode transmitir. Para ele aquela não era a primeira, mas a única mulher no mundo.
- Tu acreditas em mim? - perguntou-lhe Calò a sorrir.
- Acredito - afirmou -, mas isso não muda nada.
- Um dia vais conhecer a tua mulher - contou-lhe, ao mesmo tempo que o seu rosto másculo e seguro se iluminava. - E vais aperceber-te disso porque o mundo vai brilhar
com uma luz imensa. E as estrelas vão-se multiplicar no céu.
- Por palavras diferentes, já me disseram isso. - Pensou em Lucilla, no seu corpo macio, nos seus suspiros, na sua infinita ternura e na severidade da sua profecia
logo a seguir A iniciação.
- Volto a dizer-te que encontraste a mulher certa para esta primeira

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experiência - insistiu Calò. - Mas para ti apenas começou a amanhecer. - Recordou a sua única noite com Annalisa, na cabana para além do bosque de eucaliptos, enquanto
lá fora recrudescia a tempestade. Aquela única noite era a sua recordação, o seu tormento, a sua consolação.
- Calò, porque é que ainda não te casaste? - perguntou-lhe Bruno de repente. - Pela maneira como falas, parece que também viste as estrelas multiplicarem-se no céu.
- Só tenho 37 anos - tentou brincar. - Ainda tenho tempo para encontrar uma boa companheira.
- Mas não será a mesma que te fez ver a luz imensa de que me falavas.
Aquelas palavras saíram-lhe espontâneas dos lábios.
Calò curvou as sobrancelhas e o seu olhar tornou-se triste e distante.
- Não, essa não.
- Por acaso deixou-te? - Sentia-se participante, solidário com ele.
- É uma velha história, meu rapaz. - Deu um suspiro penoso e acrescentou: - Ela era única, maravilhosa. Sim, é verdade - admitiu melancolicamente -, deixou-me.
Bruno apercebeu-se de que tinha tocado num tema muito doloroso e no ar perdido de Calò viu uma infinita, dilacerante tristeza. Percebeu que não era momento para
aprofundar o assunto.

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Uma escolha difícil

Em 1966, Bruno Brian licenciou-se em Economia com distinção e louvor e, nesse mesmo ano, alguma coisa determinou uma viragem fundamental na sua vida.
- Estou orgulhoso de ti, meu filho - disse Philip, com um enérgico aperto de mão e uma palmada no ombro. Tinha envelhecido sensivelmente e as rugas profundas no
rosto denunciavam o desgaste dos anos.
- Agora só tens de expressar um desejo - interveio Mary Jane, que naquele jovem de extraordinária beleza via o filho que sempre desejara, mas que nunca poderia ter.
- Vamos festejar no restaurante chinês? - propôs o pai, que se sentia de alguma forma protagonista daquele sucesso.
Bruno teria preferido uma solução muito mais simples: uma sanduíche e uma cerveja num self-service de Berkeley e a seguir um passeio no pitoresco elétrico que liga
Market Street ao Fisherman's Wharf.
- Está bem, pai - condescendeu. Os desejos e as decisões do pai, quando não eram partilhados, suscitavam polémicas. Mais valia aceitar, fingindo entusiasmo.
Don Taylor, o motorista dos Brian, com o seu simpático rosto agora mais pesado com as tortillas de Juanita e com o passar dos anos, esperava pacientemente junto
ao carro, pronto para abrir as portas.
- Tinha a certeza de ter feito uma boa escolha - disse Philip a rir.
Atravessaram o bairro italiano, passaram um arco em forma de pagode e entraram em Chinatown.
- Porque é que o teu amigo árabe não veio connosco? - perguntou Philip.

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- Acho que tinha um compromisso sentimental - respondeu afavelmente. Era uma mentira piedosa, que evitava inúteis aprofundamentos. Se lhe dissesse que Yussef e Calò
tinham ido ter com o tio George, era capaz de ficar furioso.
- Tu também não brincas, tanto quanto eu sei - interveio Mary Jane.
Os olhos de Philip brilharam com orgulhosa altivez.
- Ouço dizer que as raparigas te arrancam a roupa. - Participava também na primeira pessoa nos sucessos sentimentais do filho.
- Que exagero - replicou Bruno, que mantinha a capacidade de corar. O seu índice de exigência, que tinha atingido níveis altíssimos, tinha-se reforçado ainda mais
quando se tornara a ponta de diamante da equipa de futebol universitária. Depois da vitória sobre a equipa de Stanford em Palo Alto, as raparigas elegeram-no mister
Berkeley.
- E ainda arranjas tempo para estudar? - gracejou Mary Jane com uma malícia simpática, se é que se podia considerar maliciosa aquela senhora de meia-idade que pedia
agora em vão alguma ajuda As máscaras de beleza.
- É uma questão de método - retorquiu Bruno, entrando na brincadeira.
- É o robusto ramo dos Brian - afirmou Philip com ênfase. - Os Brian conseguem fazer ao mesmo tempo tudo aquilo que querem. - Era um dia de particular solenidade
que justificava a imodéstia das afirmações.
Almoçaram no Tao-Tao, um dos mais famosos restaurantes chineses, com a inevitável coreografia de balõezinhos multicolores, lâmpadas de seda com franjas e biombos
lacados numa orgia de preto, vermelho e dourado.
Bruno foi obrigado a empanturrar-se de porco caramelizado, de pato, de ninhos de andorinha e de barbatanas de tubarão condimentados com molhos vulcânicos. Recusou
um horrível peixe de estrutura pré-histórica e um nojento queijo de soja.
- Eu acho que não há nada melhor do que a antiga cozinha chinesa concluiu Philip. - E agora? - acrescentou, enquanto esvaziava mais um copo de um licor fortíssimo
que sabia vagamente a vodka.
- Agora o quê? - perguntou Bruno.
- O que é que tencionas fazer? - Um empregado obsequioso serviu mais licor no copo de mister Brian. - Quais são os teus projetos?

394

- Gostava de fazer uma pequena pausa - disse Bruno. E não se percebeu se se referia à comida que o maitre do Tao-Tao continuava a trazer para aquela mesa ou a um
período de descanso mais ou menos longo.
- Parece-me justo - observou Philip -, aliás, obrigatório, que recuperes as energias gastas. Tens os olhos cansados - acrescentou, preocupado, mas imediatamente
atribuiu risonhamente aquelas olheiras ás batalhas de amor.
- Estás a sufocá-lo com as tuas perguntas - disse Mary Jane em defesa de Bruno.
- A Mary Jane tem razão - admitiu o pai - e vão ter de perdoar a minha excitação. Não é todos os dias que um filho se forma em Berkeley com distinção e louvor. -
Não cabia em si de alegria.
Os projetos de Bruno, porém, mais uma vez não coincidiam com os do pai. Precisava de tempo para refletir, queria falar com um antigo professor que sabia contar com
uma poética verosimilhança a sua chegada a Berkeley, quando sobre as colinas de um verde-claro pastavam ainda os cavalos, enquanto no ar ecoavam os toques do sino
da igreja construída sobre o modelo da Basilica de São Marcos em Veneza. Recordava o rosto do professor que soubera conviver com a raiva juvenil. Berkeley, de facto,
tinha sido teatro, naqueles anos, da primeira revolta do poder estudantil, o detonador da contestação que iria explodir nas universidades da América e da Europa.
- Vais fazer umas fantásticas férias à volta do mundo - decidiu Philip, que tinha os olhos e as faces animados pela comida e pelo álcool.
A ideia de umas férias sem objetivo não entusiasmava Bruno.
- Vou pensar nisso, pai. - O rosto de Bruno enevoou-se. O mundo estava a mudar inexoravelmente, desvaneciam-se os últimos sonhos; tinha havido o assassinato do presidente
Kennedy, que Philip não considerava assim tão insensato, alastravam as desordens raciais e a escalada da guerra no Vietnam parecia imparável, pelo que centenas de
milhares de famílias viviam uma das maiores tragédias americanas. Os jovens reivindicavam o direito de defender novas ideias.
- Vamos ter tempo para falar nisso nos próximos dias - disse, conciliador - OK?
- Fazemos como tu quiseres - rendeu-se. O fosso entre as duas gerações era mais profundo e insondável do que aquilo que pensava.

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- Brindemos ao teu futuro - disse, pegando no copo - e ao futuro do império dos Brian.
Um jornalista que estava sentado numa mesa próxima da deles esticou a orelha e pensou: "A família Brian em peso. Só cá falta o senador George. Mas é sabido que entre
os dois irmãos as coisas não correm muito bem. Os encontros limitam-se aos conselhos de administração."
- Ao futuro presidente da Brian Corporation - brindou Philip.
Bruno pousou o copo em cima da mesa e mostrou uma profunda contrariedade.
- A sociedade já tem um presidente - afirmou - e, tanto quanto sei, está em muito boa forma.
- Certamente - sorriu Philip -, vais precisar de um período de aprendizagem. Mas em poucos anos estarás sentado no topo do nosso império económico.
- Eu não te quero desiludir, pai. - Para se esquivar àquele desagradável assunto gostaria de ir a correr até ao gabinete do tio George, onde tinha à espera dele
Yussef e o seu padrinho Calò.
- Não, meu filho - afirmou com convicção -, tu és um Brian e tudo aquilo que nós temos te pertence.
Mary Jane pensou em Calò, olhou para Bruno, teceu mentalmente as suas considerações, mas continuou a interpretar escrupulosamente o seu papel de observadora neutra.
- Ainda tenho de conquistar aquilo que me vai pertencer. - O tom era duro, intransigente.
- O teu orgulho agrada-me, meu filho - aprovou. - Tens carácter. E isso honra-te. Entretanto - acrescentou com uma ternura severa -, faz umas férias longas e quando
regressares instalas-te no gabinete ao lado do meu. Acho que tenho muitas coisas para te transmitir. - Pela primeira vez, não usou o verbo ensinar.
Bruno ficou hesitante por uns momentos.
- Eu nunca serei o vice-presidente ou o presidente, nem ocuparei nenhum outro cargo na tua empresa. - Era uma declaração meditada, definitiva.
- Será que percebi bem? - Philip empalideceu e depois corou novamente de uma forma alarmante, a olhar em volta à procura de uma confirmação para a sua perplexidade.

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O jornalista, raposa velha, lamentou não ter um repórter fotográfico à mão. Podia telefonar imediatamente para a redação, mas a situação ameaçava precipitar-se e
então ia perder o melhor de uma notícia sobre a qual todos os jornais, à exceção dos que eram controlados pelos Brian, se iam lançar.
- Percebeste perfeitamente, pai - retorquiu Bruno. - Eu não quero ter a profissão de filho do patrão.
Philip, pela primeira vez, pensou que na cadeia de transmissão que passa os valores e as fortunas de uma geração para outra devia haver alguma coisa que já não funcionava.
- Foi aquele imbecil do George que te meteu isso na cabeça! - Estava violáceo e agitava as mãos atabalhoadamente.
- O tio George não tem nada a ver com isto. - Era verdade. O senador nunca tentara influenciar de nenhuma maneira as decisões do sobrinho.
- Gostavas de ser viticultor? - disse com desprezo, referindo-se à atividade da empresa de Napa Valley.
- É um trabalho que não me interessa - rebateu decididamente.
- Então queres dedicar-te à política como ele - replicou agressivo. - Mas os tempos dos Kennedy já acabaram. Felizmente.
Ressoou na sua mente um dos slogans do período duro da contestação: "O mundo que queremos, podemos tê-lo." No entanto, decidiu que era melhor não acender mais polémicas
com o pai. Ele tinha ideias precisas e nem todas erradas sobre a nova esquerda e sobre as minorias proféticas.
- Eu não quero nada de ti, pai. - Era difícil falar dos princípios em que acreditava.
Philip recordou uma célebre frase de Tom Hayden: a luta já não é entre o trabalhador e o patrão, mas entre o capitalista e o filho que se recusa a tratar do estabelecimento
paterno. Repetiu-a a Bruno:
- É este o sentido da tua recusa? - perguntou em tom autoritário.
- É difícil as pessoas entenderem-se - respondeu ao mesmo nível - quando falam duas línguas diferentes, -quando raciocinam com base em princípios opostos, sem que
haja respeito e compreensão pelas opiniões recíprocas.
- Eu ofereço-te um império num tabuleiro de prata - disse com a impetuosidade do favorito obrigado a sofrer a iniciativa do adversário -, e tu tentas envolver-me
nas tuas utopias. Mas o que é que tu queres realmente?

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- Nada - liquidou-o Bruno. - Absolutamente nada.
Philip limpou a testa com o guardanapo. Mais uma vez, sentia-se traído pelo seu único filho.
- Nada é uma palavra estúpida - rebateu, furibundo. - Um homem não pode querer nada da vida.
- Eu não quero nada de ti, pai, é diferente. - Falava de uma forma tranquila para lhe dar a entender que não era movido pelo ódio nem pelo ressentimento. - Da vida
espero alguma coisa, mas quero ser eu a abrir o meu caminho.
- É uma aspiração legítima - ousou Mary Jane.
Philip, que parecia subitamente mais velho, fulminou-a com um olhar.
- Como é que tu podes afirmar uma idiotice semelhante se na tua vida, para além dos estudos, nunca fizeste nada?
- Isso não é exato - retificou Bruno. - A herança dos Monreale constitui um bom rendimento, sobretudo por mérito do Calò, mas também pelo meu empenhamento pessoal.
Aquela ilha maldita e aquele nome que tinham sido a causa dos seus piores tormentos, aquele mundo absurdo e degradado que gostaria de apagar da face da Terra, apareciam
sempre nos momentos mais difíceis.
- A Sicília, os Monreale - comentou com desprezo. - Fantasmas, abstratos furores que se encarniçam sobre o nada. E o meu único filho prisioneiro de uma estéril ilusão.
O que é a fortuna dos Monreale comparada com a dos Brian?
- Eu acredito naquela ilusão - rebateu Bruno, com uma calma sorridente.
- Tu podes dar-te a esse luxo - ironizou. - Não combateste em nenhuma guerra, tiveste o melhor de tudo. Sempre viveste rodeado de todas as comodidades.
- Está na hora de me afastar desse refúgio dourado. - Podia dizer-lhe o quanto tinha sofrido com a morte da mãe, podia revelar-lhe o segredo de uma criança que vira
assassinar o avô, mas soube conservar a sua imperturbabilidade e o silêncio.
- Pensa bem - ameaçou o pai. - Foram precisas cinco gerações para fazer a nossa fortuna. E tu agora recusas-te a assumir as tuas responsabilidades. É um comportamento
inqualificável.
- Sinto muito, pai - replicou Bruno, ao mesmo tempo que se levantava.

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- Está a ficar tarde e parece-me inútil continuar esta discussão sem saída. Tu queres que eu parta do pedestal construído durante cinco gerações de Brian, enquanto
eu quero partir do zero. Eu respeito a tua opinião, apesar de não concordar com ela, e espero que um dia tu consigas respeitar a minha.
Também Philip se levantou.
- Muito bem. É a tua última palavra? - perguntou.
- É a minha última palavra - confirmou.
- Não aprovo a tua escolha, mas sou obrigado a aceitá-la. Ficas a saber que a partir deste momento sais da família Brian - Tinha uma voz estranha, impregnada de
dor e de raiva. - Aconteça o que acontecer, não me procures. Porque de mim não vais ter mais nada.
- Sinto muito, pai. - Estendeu-lhe a mão, mas Philip não lha apertou e virou os olhos para não o ver.
Mary Jane abraçou-o.
- Pensa no assunto, Bruno - aconselhou-o, falando-lhe ao ouvido. Eu ajudo-te a fazer as pazes.
- És fantástica, Mary Jane. - Beijou-a nas duas faces e foi-se embora. O jornalista agarrou-se ao telefone mais próximo e ditou de improviso a história do conflito
insanável no seio da família Brian. No dia seguinte a notícia figurava com grande destaque nas páginas económicas e nas rubricas mundanas.

399

O primeiro negócio

O sol pousava sobre a baía de São Francisco, projetando franjas de ouro e púrpura. O ar estava impregnado do cheiro do Pacífico. Yussef, Bruno e Calò viajavam no
Preston Tucker do tio George, construído em Chicago na fábrica que tinha servido para produzir os motores das fortalezas voadoras. Apesar da amarga despedida do
pai, Bruno sentia-se feliz. Tinha a vida pela frente e muitos projetos confusos que, mais cedo ou mais tarde, haviam de se realizar. O senador não tinha criticado
nem aplaudido a sua decisão: limitara-se a aceitá-la, respeitando o princípio de que cada um é livre de escolher o seu caminho.
- Não sentes ares de casa? - A pergunta era dirigida a Calò.
- É sempre flor de laranjeira - comentou o gigante - mas a da Sicília é especial. - Atravessaram o Orange Country, onde os laranjais se estendiam na planície risonha.
O potente automóvel conduzido por Bruno avançava com segurança em direção a Berkeley. Yussef admirou aquela paisagem tão encantadora para ele, que não tinha como
ponto de referência a pérola do Mediterrâneo mas o ondulado deserto da Arábia, e pensou com prazer e nostalgia que em breve partiria para Abu Dhabi. O seu belo rosto
grave estava obscurecido por uma sombra de desapontamento. Desagradava-lhe o facto de o seu amigo não ter chegado a um acordo satisfatório com o pai.
O tema central, que tinha sido evitado durante a viagem, foi abordado no apartamento de Bruno.
- Sabes ao menos por onde começar? - perguntou Yussef bruscamente, com um carácter prático muito ocidental, sem se deter em preliminares.
- Não - respondeu Bruno, com uma frieza apenas aparente.

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- Escolheste o caminho mais difícil - constatou o árabe.
Calò serviu um bourbon a Bruno e um sumo de laranja a Yussef.
- Eu também acho - admitiu Bruno, anuindo com um gesto de cabeça -, mas também acredito no antigo mote dos meus progenitores: suae quisque faber fortunae est. Cada
qual, caro amigo, é o artífice da sua própria fortuna. Preciso de saber se valho alguma coisa.
- O orgulho é teu amigo - disse o árabe -, esperemos que também o destino te seja propício.
- Há quem comece com muito menos e atinja o sucesso. - Sabia que podia contar com o apoio incondicional do tio George, tinha uma licenciatura em Economia e possuía
na Sicília um património suficiente para lhe garantir um notável padrão de vida.
- Que Alá te proteja - pronunciou com solenidade, no tom sofrido das despedidas. Os dois jovens estavam prestes a separar-se ao fim de anos de vida em comum. Admad
Yussef ia partir para Abu Dhabi e Bruno, com a ajuda de Calò, preparava já as suas coisas para regressar a Sicília. Tinha direito a umas breves férias, ainda que
não fosse a fabulosa viagem a volta do mundo sugerida por Philip.
- Tenho muita pena que não te entendas com o teu pai. - Havia na sua voz um empenho particular.
- Vai-lhe passar. - Para além dos vidros descia a noite macia e quente.
- Eu gosto dele. Estimo-o muito - corrigiu.
- Mas eu gostava que a relação não se tivesse deteriorado. - O vento do oceano passava através das cortinas leves.
- Não te armes em árabe comigo - disse Bruno. - Se tens alguma coisa para me dizer, diz e acaba já com isso.
- Estava a contar contigo para resolver um problema. - Oscilava entre o embaraço e a contrariedade.
- Estavas a contar comigo ou com o meu pai? - retorquiu, sem rodeios.
- Com os dois. - Bebeu um grande gole de sumo de laranja fresco e doce. - Mas já tomaste a grande decisão. - Conhecia Bruno e sabia que não ia voltar atrás.
Grandes candeeiros de pé espalhavam em volta uma luz agradável.
- Devo dizer-te que me desiludes - comentou com ressentimento - se excluíres a hipótese de eu, sozinho, poder ajudar-te a resolver o teu problema. De que se trata?
- O assunto estava a deixá-lo curioso.

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Yussef fez-se perdoar com um sorriso conciliador.
- Um bom conselho é sempre precioso - afirmou, já disposto a revelar-lhe o seu segredo. - O meu pai precisa de equipamento elétrico e mecânico para pôr a funcionar
cinquenta poços.
Bruno olhou para ele espantado, como se lhe tivesse pedido a programação de uma expedição a Marte.
- Tudo aquilo que eu sei sobre petróleo - confessou candidamente - é que serve para fazer andar os automóveis e fazer ganhar milhões a quem o tem. Considero, em
qualquer caso, que para o trazer a superfície, partindo do princípio de que existe, é preciso um capital que está fora do meu alcance.

Também Yussef admitiu a sua ignorância.
- Para ti não é indispensável uma competência específica - explicou -, mas eu, bem ou mal, vou ter de saber tudo aquilo que tem a ver com o petróleo. Se é verdade
o que os especialistas afirmam, o ouro negro vai mudar a face do meu país. Mas para saber se as previsões são corretas, é preciso cavar o ventre da terra.
- Era essa a ajuda que esperavas de mim? - Sentiu interiormente a excitação dos momentos cruciais.
- É preciso dinheiro, Bruno - declarou Yussef com tristeza. - Para obter dinheiro é preciso confiança. Acontece que as empresas que produzem a tecnologia necessária
para a pesquisa não se contentam em ter como garantia cabras e deserto. Querem dólares, participação nos eventuais ganhos, mas sobretudo a palavra de uma pessoa
prestigiosa e fiável.
- O meu pai seria a pessoa certa - lamentou o Barão que agora, perante o facto consumado, não era capaz de garantir sequer a compra de um hambúrguer num self-service
de Berkeley.
- Mister Philip Brian poderia representar a solução ideal. - Estava resignado e encerrou o assunto com um gesto fatalista.
Calò parou de andar as voltas com uma mala que não queria fechar-se. Do diálogo entre os dois amigos não tinha perdido uma única palavra.
- As amizades influentes valem dinheiro - interveio Calò. - E mister Philip Brian não é a única pessoa influente que conhecemos. - Ignorava as leis da economia e
os mistérios das transações. Nele falava a antiga sabedoria siciliana e sabia que um padrinho pode chegar onde um pai não chega.

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Bruno apanhou a mensagem no ar.
- Podes adiar a partida por alguns dias? - Nos seus olhos de aço brilhou a sua primeira certeza.
- Se for uma espera que possa ajudar-me a atingir o meu objetivo, respondo-te já que sim. - Olhou para ele com um sorriso irónico.
- Isso não te posso prometer - replicou Bruno. - Só te posso garantir que vou fazer aquilo que estiver dentro das minhas possibilidades. Peço-te um prazo de dois
dias. Quarenta e oito horas.
- Olha que não temos dinheiro - avisou Yussef, que com o amigo queria ser honesto até ao fim. - Nem um cêntimo.
- Mas há petróleo? - perguntou.
- Se eu tivesse a certeza, não precisava de garantias. - O raciocínio não tinha uma falha.
- Mas tu pensas que há - insistiu o Barão.
- Sem essa convicção, não pedia a ajuda de um amigo - disse com um largo sorriso. - Aquilo que eu te posso oferecer como garantia é a minha convicção pessoal, que,
no entanto, não é desprovida de fundamento, o meu pedaço de deserto e os meus rebanhos. Ou seja, tudo aquilo que tenho.
Saltaram o jantar e passaram o resto do serão a transcrever criteriosamente todas as informações relativas às pesquisas e às sondagens realizadas até àquele momento,
retirando dados e cifras dos documentos que o pai de Yussef tinha enviado ao filho.
Quarenta e oito horas depois, Bruno e Admad bin Yussef encontraram-se no aeroporto de São Francisco. O Barão tinha os contratos prontos e Yussef, graças à procuração
que o pai lhe tinha passado, assinou-os na presença do advogado Paolo Brancati, que viera de Itália para dar assistência a Bruno na sua primeira e complexa operação.
- Como é que conseguiste fazer isto tudo em tão pouco tempo? - perguntou Yussef, espantado.
- A pergunta não tem resposta - respondeu Bruno. - Era isto que querias e foi isto que te dei. Está tudo conforme as regras. Daqui a seis meses vais ter os teus
cinquenta poços em funcionamento. - Tinha jogado tudo por tudo. Tinha empenhado o seu nome, o prestígio do tio senador, tinha hipotecado dois palácios sicilianos
e o de Milão, o feudo de

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Piazza Armerina, as joias de família, mas ao fim conseguira obter aquilo de que precisava.
- E a tua percentagem? - perguntou Yussef, depois de ter lido atentamente os contratos. - Aqui não fala nisso.
- Podes determiná-la tu, se quiseres. - O sentimento de uma grande vitória estava gravado no seu rosto - Em qualquer caso, a Tex Oil Entreprise tratará de me compensar
convenientemente.
No fim daquele ano, a dois meses de distância da entrada em funcionamento dos poços no deserto de Abu Dhabi, Bruno Brian realizou o seu primeiro lucro: um milhão
de dólares. Foram anuladas as hipotecas e obteve uma linha de crédito da Tex Oil.
Logo a seguir encomendou o seu primeiro barco, a que chamou Il Trifoglio. Era um grande sonho que se realizava, o sonho que acalentara desde os 10 anos, quando a
princesa Isgrò lhe trouxe de Paris um barco de brincar.
Ninguém, além de Calò, soube quanto lhe custara em termos de stress aquele primeiro negócio. Tinham sido meses de tensão incrível, não só porque podia perder tudo,
mas porque se alguma coisa não funcionasse ia comprometer ao mesmo tempo o bom nome dos Brian e o dos Sajeva. E o pai teria assim um motivo válido para lhe demonstrar
que as suas previsões se tinham confirmado.
Nos dois anos que se seguiram apercebeu-se de que o entusiasmo da primeira vitória não era suficiente para se manter em equilíbrio sobre a crista da onda, aliás,
tal como os jogadores principiantes, percebeu que era relativamente fácil fazer o primeiro en plein, mas que aquilo que tinha de aprender eram as astúcias da navegação.
A profissão de intermediário, que tinha começado por acaso e talvez por aposta, era uma das mais cansativas e arriscadas do mundo.
Na sua primeira operação não tivera concorrentes e pudera contar com uma série feliz de circunstância positivas, mas a seguir confrontou-se com autênticos predadores
do business que navegavam desde sempre naqueles mares tempestuosos e duvidosos; gente hábil, cínica, habituada a todas as astúcias e a todas as experiências, pessoas
que dispunham de confiança e de capitais ilimitados, mas que sobretudo sabiam como olear as engrenagens para tornar mais corredio o complexo mecanismo dos negócios.

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As intermediações não requeriam um trabalho de quarenta e oito horas, mas semanas, meses e às vezes anos de negociações extenuantes, de subtis complexidades, de
poderosas influências. E, mesmo quando tudo se processava no melhor dos modos, não era fácil chegar em primeiro às melhores condições.

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Claudine

Claudine pousou um casto beijo sobre os lábios de Bruno, que estava em fato de banho, sentado diante de um gin and tonic numa poltrona branca de jardim, dirigiu-se
a piscina e foi uma imagem dourada contra o sol estivo. Não era muito alta, mas bem proporcionada, atrativa, jovem, tinha uns seios magníficos e uns cabelos longos,
negros e ondulados.
- Não tomas banho? - perguntou, enquanto tirava a parte de cima do biquíni, antes de se estender na cadeira.
O Barão abandonou o seu gin e aproximou-se dela.
- Queria tomar banho contigo - respondeu com um ar intencional.
Aqueles seios redondos e duros punham-no em êxtase e o inchaço repentino do sexo revelou a sua excitação.
- Senta-te, que se vê tudo - censurou-o ela severamente.
Bruno ajoelhou-se perto dela, beijou-a nos olhos e na boca, estendeu uma mão e acariciou-lhe um seio. Claudine estremeceu de prazer.
- Está quieto - repeliu-o. - Alguém pode estar a ver.
O Barão sabia como ela era formal em público, graças à sua educação calvinista, e desenfreada na intimidade. O potencial erótico daquela morena aparentemente comedida
era inesgotável, apenas comparável insolência do seu temperamento de filha única, rica e mimada.
- Então vamos para casa - propôs o Barão. A casa era uma villa imponente, construída nos primeiros anos do século XX na margem ocidental do lago de Genève, no meio
de um imenso parque do pai de Alphonse de Martigny, presidente do homónimo banco, um dos institutos de crédito privado mais sólidos da Europa.

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- Nem penses nisso - respondeu com energia. - Se queres acalmar os teus ardores vai dar um mergulho.
Os dois jovens andavam juntos há alguns meses e Bruno ainda não tinha percebido se ela o amava verdadeiramente ou se o queria para o ostentar como uma espécie de
troféu. As discussões eram frequentes: ela era terrivelmente possessiva e não fazia nada para esconder a sua natureza ciumenta. Bruno mergulhou na água transparente,
obtendo um imediato alívio e transformando as braçadas vigorosas numa manobra de diversão que serviria para esconjurar mais uma discussão.
Tinham passado dois anos desde que Bruno Brian acabara o curso em Berkeley: no Vietname os vietcongues tinham desencadeado a violenta ofensiva do Tet, devastando
a própria Saigão e desferindo um duro golpe ao prestígio e a tecnologia bélica das tropas americanas. Robert Kennedy tinha sido assassinado como o irmão John quando,
no Hotel Ambassador de Los Angeles, festejava a vitória nas eleições primárias da Califórnia.
A figura de Vincent Poly, o impecável mordomo dos Martigny, avançou ao longo da alameda de saibro com um telefone na mão. Claudine vestiu rapidamente a parte de
cima do biquíni, apesar de o empregado ter a delicadeza de não olhar.
- O senhor deseja falar-lhe - disse.
Bruno interrompeu o crawl e observou Claudine como se a visse pela primeira vez: não era certamente uma das mulheres mais belas que conhecera, tinha muitos defeitos,
aborrecia-o com o seu ciúme infantil, mas tinha um certo fascínio, indubitavelmente acrescido pelos muitos milhares de francos que possuía.
Acenou-lhe com a mão e ela respondeu ao gesto enquanto continuava a conversa. Bruno mergulhou, nadou muito tempo debaixo de água, reemergiu perto da escada e saiu
da piscina. O seu corpo musculoso e bronzeado contava com uma flexibilidade harmoniosa e o rosto viril irradiava um fascínio que fazia dele um dos homens mais desejáveis
do momento.
Claudine tapou o bocal com a mão.
- Apetece-te passar um fim de semana no Burhwana? - perguntou-lhe.
Bruno caiu literalmente das nuvens.
- E onde é que isso fica? - Os seus conhecimentos geográficos excluíam o país indicado por Claudine.

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- No Sul de África, se bem percebi - esclareceu.
- Tenho de pensar nisso - respondeu, para ganhar tempo.
- O Barão tem de pensar nisso - disse num tom irónico ao pai, que escutava do outro lado da linha. - Mas acho que o consigo convencer acrescentou.
Bruno esboçou um meio-sorriso que não era de condescendência.
Claudine pousou o auscultador e foi estender-se ao sol ao lado de Bruno.
- Porque é que não fazemos esta viagem com o meu pai? - voltou à carga.
- Porque eu nem sequer sei onde fica esse lugar - rebateu secamente. - Porque não conheço o objetivo da viagem. Porque não há uma razão plausível.
- Se eu ta disser, vens? - Optou pela via da meiguice.
- Tenta - exortou.
- Então - começou, como uma guia turística -, o Burhwana é um minúsculo Estado pouco maior do que os cantões de Geneve e de Vaud juntos. - Quando conseguia esquecer
a arrogância de filha única tornava-se uma pessoa encantadora e os seus olhos negros cintilavam agradavelmente. - Estás a seguir?
- Com extrema atenção - disse ele, divertido.
- É como a Suíça - continuou.
- Bancos e relógios?
- Não - retorquiu. - Não tem saídas marítimas. Por isso tem de se servir do porto de outro país. Quem governa é um presidente que é uma espécie de rei. Tem uma estrada
asfaltada que o liga à África do Sul e a Moçambique. Parece que há umas minas de diamantes que, no entanto, não percebi muito bem porquê, ninguém quer. Isto é: querem
e não querem. As árvores crescem três vezes mais depressa do que aqui e com as árvores fazem pasta para papel e madeira.
- E por que razão é que o presidente do banco de Martigny se dá ao trabalho de ir até ao outro lado do mundo? - O assunto começava a interessar-lhe.
- Porque o Burhwana navega em águas turvas e precisa urgentemente de um grande financiamento, sem o qual, se bem entendi, corre o risco de perder a sua própria independência.
E agora não me perguntes mais nada

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porque esgotei completamente o assunto. Então - propôs, em termos de ultimato fazemos esta viagem ao Burhwana?
Bruno virou-se para ela, abraçou-a e beijou-a apaixonadamente na boca.
- É a proposta mais entusiasmante de que tenho memória - respondeu, exaltado. - Nunca mulher nenhuma me fez uma proposta tão inteligente.
Bruno fazia o papel de galã, mas na realidade meditava nas palavras de Claudine: um Estado africano precisava de um financiamento para conservar a sua própria independência
e um dos maiores banqueiros europeus estava disposto a tomar o pedido em consideração, aliás, estava interessado ao ponto de se deslocar pessoalmente.
Faltava uma única peça no mosaico.
- Quem é o intermediário desse negócio? - perguntou.
- Aquilo que eu sabia já te disse - respondeu friamente. - E depois, francamente, não é coisa que me interesse.
A Bruno, pelo contrário, a operação interessava imenso, mas não quis insistir.
- O que é que achas de almoçarmos hoje com o teu pai? - propôs com um entusiasmo que deixou Claudine espantada.
- Normalmente, evitas cuidadosamente estes encontros triangulares - brincou.
- É a nostalgia da família - justificou com uma hipocrisia sorridente. Já tinha arrancado a grande velocidade. No seu horizonte perfilava-se o business mais clamoroso
da sua jovem carreira.

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As minas de diamantes do Burhwana

Durante a viagem ao Burhwana, Bruno ficou a par de tudo o que havia a saber sobre aquele pequeno Estado africano e à medida que avançava na sondagem apercebia-se
de que o negócio, se conseguisse tomar conta dele, lhe permitiria dar um grande salto para a frente, o salto de qualidade que o consagraria definitivamente como
um business man.
Tinha 24 anos, o jet set internacional conhecia-o como o Barão e começava a delinear-se nele uma personalidade que acabaria por se tornar uma lenda. A empresa era
tanto mais convidativa quanto o patrocinador da "Operação Burhwana" era um dos protagonistas da intermediação internacional: Omar Achmal, um árabe cínico e badalado,
um indivíduo sem escrúpulos, mas dotado de um talento raro, com conhecimentos fundamentais e um vasto crédito.
Omar Achmal tinha atuado com eficiência e cautela para convencer uma dezena de bancos ocidentais a emprestarem ao Governo de Umpote, capital do Burhwana, dez milhões
de dólares. O mecanismo era simples: o príncipe Aschwinda, para conservar a independência do seu pequeno Estado, precisava de dinheiro. O árabe ia conseguir que
ele recebesse o financiamento necessário para poder explorar as jazidas de diamantes e ouro descobertas depois da declaração de independência do país.
No momento em que viessem à luz diamantes e ouro, o Burhwana concederia ao árabe uma percentagem de dois por cento sobre os lucros da exploração mineira. Os bancos
ocidentais recuperariam o seu dinheiro a uma taxa vantajosa e o Banque de Martigny, que desempenhara o seu papel de garantia, teria em exclusivo, para além de uma
percentagem, todas as futuras transações de negócios do pequeno Estado com o Ocidente.

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A operação interessava a todos, mas com uma condição: que as jazidas de diamantes fossem ricas como defendia Achmal. Era isso que Alphonse de Martigny queria verificar.
Se as minas se revelassem um buraco negro, o árabe perderia a sua percentagem, mas ele arriscava muito mais.
Foi assim que Bruno conheceu o príncipe Aschwinda, digno e altivo cinquentão que, tal como os seus súbditos, consumia uma refeição por a dia, vestia em honra dos
hóspedes um venerando fato às riscas de corte ocidental e residia num edifício de uma simplicidade franciscana. Bruno viu-o e sentiu por ele uma estima e um afeto
imediatos.
- As nossas riquezas - disse Aschwinda a de Martigny - estão sepultadas nas entranhas da Terra. Os árabes têm petróleo. Nós temos ouro e diamantes. Todos os estados
da África Austral sofrem a ingerência dos sul-africanos. Até agora resisti. Explorámos ao máximo a agricultura e a pastorícia. A nossa terra é fértil e poderia bastar
para a nossa sobrevivência. Mas o progresso não para. E será progresso? Em qualquer caso, a nossa gente quer mais. A oposição faz promessas que, uma vez no poder,
não poderia manter. Por isso tenho de recorrer a este auxílio antes que aconteça o irreparável, porque com as promessas não se contribui com o progresso mas fazem-se
revoluções.
Os dois geólogos ingleses que há meses sondavam o território deram uma resposta favorável. Havia diamantes e tratava-se de jazidas extraordinariamente ricas.
Quando se achou na posse de todas aquelas informações, o Barão desinteressou-se do assunto e dedicou-se com uma insólita ternura à pequena Claudine, que começava
a arrepender-se de ter aceitado a proposta do pai. Aborrecia-se de morte.
- Nunca fiz uma viagem mais idiota do que esta - disse, assumindo o seu ar de menina mimada.
Bruno, em vez de reagir bruscamente aos seus caprichos, como habitualmente fazia, foi de uma ternura extrema com ela.
- Anda comigo - sussurrou-lhe ao ouvido. - Vamos fazer as férias mais bonitas da nossa vida.
Ela sentiu um arrepio de prazer e seguiu-o até um acolhedor bungalow que Bruno tinha descoberto com a cumplicidade de um dignitário.
- E o meu pai? - suspirou, ao mesmo tempo que se entregava, nua, àquele homem que a fazia enlouquecer.

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Bruno fechou-lhe a boca com um beijo e ela começou a mexer-se como uma serpente enquanto ele lhe dava a conhecer todas as nuances do prazer: do amor até ao êxtase.

No avião que os levava de volta a Genève, Claudine estendeu-se sobre três assentos da primeira classe e adormeceu, exausta.
- Esta viagem cansou-a - disse o banqueiro.
- Obviamente - confirmou o Barão, que queria deixar o assunto de lado.
Um assistente de bordo serviu champanhe aos dois homens.
- O que é que tu pensas disto tudo? - perguntou de Martigny.
- Parece-me um excelente negócio - observou. - Mas há uma coisa que eu não entendo - acrescentou.
- O que é? - observou a bebida à transparência e bebeu um gole.
- Qual é a necessidade da mediação do árabe? - objetou Bruno. - O senhor podia mediar e ao mesmo tempo garantir o negócio. Agora já constatou que as minas não são
uma ilusão. O banqueiro olhou para ele com uma bonomia tolerante.
- Antes de mais - explicou -, um negócio nunca é seguro até ao momento da conclusão. Em segundo lugar, nenhum banqueiro aceitaria nunca o papel de mediador.
Bruno arrependeu-se daquela avaliação apressada e tentou perceber onde tinha errado.
- Provavelmente, não entendi bem o mecanismo - disse, admitindo a sua própria ingenuidade.
- Se um banqueiro aceitasse ser mediador - rebateu, paciente - podia fechar a loja. Ninguém mais lhe pediria uma garantia - Alphonse de Martigny teve a sensação
de que a ingenuidade de Bruno era apenas aparente e que ele almejava um objetivo bem definido.
- Mas eu podia fazer de mediador - afirmou, deixando-o perplexo.
- E sacar o negócio ao árabe? - retorquiu, desconcertado, apesar de já ter visto enganos mais torpes na sua carreira.
- Ou, mais simplesmente, precedendo-o - tentou atenuar o golpe.
Alphonse de Martigny quis entender qual era o jogo do Barão.
- Os negócios, ainda que vá repetir um lugar-comum, são negócios. Admitindo que eu tome em consideração a tua proposta, o que é que eu recebia em troca? O que é
que tu me davas a mais que o árabe?

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- Nenhuma contrapartida. - Bruno sorriu com firmeza.
- Então eu não ia ganhar mais nada do que aquilo que já ganho afirmou - e ia fazer um inimigo. Um inimigo poderoso, pronto para me esperar ao dobrar de uma esquina.
Bruno bebeu o champanhe que restava no seu copo e depois ostentou um sorriso radioso.
- Preferia criar uma inimizade com o seu futuro genro? - Acendeu um cigarro e observou o rosto perplexo do banqueiro.
- O meu futuro genro? - perguntou, enquanto o sangue lhe afluía ao rosto.
- A Claudine e eu decidimos casar - anunciou.
Estavam a sobrevoar o Sahara a uma altitude de dez mil metros. Mais uma vez, o Barão tinha intervindo no momento certo. E tinha acertado em cheio.

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O escândalo

A presa mais ambicionada pelos caçadores de notícias mundanas, os noivos do ano, o par ideal das revistas cor-de-rosa, eram Claudine de Martigny e Bruno Brian Sajeva,
barão di Monreale. O seu índice de popularidade superava o que fora atingido por Gabriella de Saboia e Robert Balkany. Até as notícias provenientes da ilha de Skorpios,
onde se falava do casamento próximo de Jacqueline Bouvier com o armador Aristóteles Onassis, passavam para segunda linha, tanto mais que a viúva de John Kennedy
destruía um mito sagrado no coração dos americanos e caro a todo o mundo.

A presse du coeuur e os títulos de maior autoridade tinham dedicado ao acontecimento do ano espaço e comentários: a primeira com ênfase de fábula, em linha com as
expectativas do grande público, os segundos com a ironia hipócrita dos castigadores de costumes. Mudava o processo de confeção, mas o produto era o mesmo: estilo,
classe, personalidade, amor, sexo e dinheiro, os ingredientes que fazem falar o grande mundo e sonhar muita gente que acredita ainda na lenda dourada da alta sociedade.
Porque as pessoas dedicavam uma genérica indignação à primavera de Praga, sufocada pelas tropas dos países do Pacto de Varsóvia, mas detinham-se com uma participação
enfática nas notícias que referiam os vícios privados e as públicas virtudes dos protagonistas do jet set.
Fotógrafos e jornalistas rondavam irrequietos o Chez Régine, onde se encontrava o tout Paris, os expoentes mais destacados da alta sociedade e do mundo da finança
internacional. Toda a gente fazia de conta que se divertia, muitos aborreciam-se, mas ninguém renunciaria àquela passarela fulgurante. A tragédia vietnamita consumava-se
num país longínquo,

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a contestação estudantil estava sob controlo, os tanques soviéticos em Praga eram imagens logo esquecidas, as vítimas do terramoto no Belize eram arrumadas com palavras
apressadas de lamento. Mas o combustível para as grandes tiragens estava ali, ao mais alto nível da bisbilhotice, naquela cintilante montra de vaidades, naquela
feira de snobismo e de luxo.
O carrossel faiscante de luzes, cintilante de joias, movimentado pelos virtuosos da maledicência, começava a girar.
Faltavam apenas os protagonistas: ele, o último descendente de uma antiga e nobre casa siciliana, rebento dourado da alta finança californiana, playboy por definição;
ela, única herdeira de uma dinastia de banqueiros de Genève, caprichosa, extrovertida, voluntariosa, que tinha sabido agarrar o homem mais disputado e admirado do
momento.
- Comprou um brinquedo muito caro - comentou uma senhora que cintilava como uma exposição de joalharia.
- Provavelmente é o único com os atributos adequados para lhe acalmar aquele espírito ardente - insinuou outra, com uma ponta de inveja.
Claudine, mesmo sendo aparentemente irrepreensível, não fazia nada para desmentir as intemperanças sentimentais que lhe eram atribuídas. Desde que se espalhou a
notícia do seu noivado oficial com Bruno Brian, onde quer que fosse acendiam-se os projetores.
- É a noiva do Barão - era a inevitável frase que era sussurrada.
O poder da sua família passava para segundo plano em relação à popularidade que o Barão gozava nos círculos mais exclusivos.
Claudine sentia-se lisonjeada com todo este conjunto de factos, mas incomodava-a que o nome de Bruno fosse o de maior destaque no cartaz do espetáculo que se representava.
O facto de ter de brilhar com uma luz refletida provocava-lhe uma surda irritação que o enamoramento apenas mitigava um pouco.
Até as ofertas para os convidados levavam a marca dos Monreale. Aos homens tinha sido oferecido um porta-chaves Cartier de ouro em forma de trevo e às senhoras um
pingente também em forma de trevo.
Claudine e Bruno tinham chegado ao Chez Régine com algum atraso e os especialistas leram de imediato no rosto da jovem, maquilhado com sabedoria, uma certa contrariedade.
Ainda assim, os protagonistas souberam movimentar-se no palco com grande savoir faire.

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Enquanto se preparava para a festa, uma amiga habitualmente maldosa ligou-lhe.
- Leste, querida, o artigo no France-Soir?
Maurice, o cabeleireiro, estava a dar os últimos retoques aos seus caracóis negros.
- Mas tu achas que com tudo o que eu tenho para fazer ainda arranjo tempo para dar atenção aos jornais? - Era sincera. Do mil milhão para cima, as ocasiões mundanas
implicam um ritual de preparativos complexo, que faz lembrar o dos toureiros e o das cantoras líricas.
- Queres que te leia? - Era capaz de vender a mãe para deturpar o quadro cintilante em que Claudine se reconhecia.
- Se não puderes passar sem isso. - A rendição custava-lhe menos energia e menos tempo.
- Então, ouve - começou, com a voz alterada para deixar transparecer a sua falsa indignação -, fazem-te parecer uma pequena Cinderela.
- Deixa lá, Josette - tentou interromper.
A perfídia não tem ouvidos e a amiga continuou: - O barão di Mon reale vai apresentar aos seus trezentos convidados a sua pequena milionária suíça. A filha do banqueiro,
Cinderela de ouro, encontrou o seu Príncipe Encantado.
- São os resultados da democracia, Josette - comentou com uma voz aflautada antes de desligar, deixando a interlocutora na mais negra consternação.
Ficou imóvel durante alguns instantes, depois levantou-se de um salto, como uma fera, agrediu Maurice que tentava trazê-la à razão com palavras doces e movimentos
leves, lançou-se em lágrimas sobre o vestido que Yves Saint Laurent tinha desenhado e realizado para a ocasião e fê-lo em pedaços.
Depois telefonou a Bruno.
- Leste os jornais? - perguntou. Era uma pergunta idiota, que prenunciava uma das habituais cenas por motivos fúteis.
- Há muitos jornais. - Queria paz.
- Leste o France-Soir? - insistiu.
- Não. Mas se quiseres posso lê-lo. - Estava disposto a tudo.

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- Fazem-me passar por uma espécie de Cinderela. - Chorava copiosamente. - Tens de intervir!
Era uma sugestão ainda mais idiota do que a pergunta anterior.
- Sabes que aquilo que está escrito não se pode apagar. - Parecia-lhe uma observação razoável. - E depois não tem nada de ofensivo.
- Então não vai haver nenhuma festa de noivado - decretou.
- Parece-me uma decisão adequada à entidade reguladora da indelicadeza - disse com ironia. Não estava loucamente apaixonado por Claudine, em certo sentido tinha
organizado aquele casamento em função do negócio no Burhwana, mas estava pronto para respeitar a palavra dada. Alphonse de Martigny tinha-lhe atribuído a intermediação,
passando por cima do árabe, e o acordo estava concluído. E se Claudine queria atirar tudo pelo ar, ele não ia fazer nenhuma loucura para o impedir.
- É só isso que tens para me dizer? - O tom prenunciava uma reação histérica.
- Vê se te acalmas e depois volta a ligar-me - replicou tranquilo.
Mas foi Alphonse de Martigny quem lhe telefonou pessoalmente, pedindo-lhe para intervir. Quando Bruno chegou à avenue Niel, na Étoile, à casa parisiense dos Martigny,
encontrou Claudine num estado deplorável. Tentou sorrir àquela menina superficial e oca, estúpida e mimada, apaixonada por si própria, incapaz de se adequar à realidade.
- Tu! Tu! Sempre e só tu! - agrediu-o. - O barão di Monreale. E eu? Eu não existo. Sou uma suiçazinha qualquer que tem de beijar o chão que tu pisas. Já não aguento
viver nas costas do grande divo.
- Ninguém te impede de anunciar a rutura do nosso noivado - sugeriu-lhe. - Assim passas às notícias como a mulher que mandou passear este playboy de meia-tigela.
Estou pronto para desempenhar o papel do seduzido e abandonado, mas não me peças mais do que isso.
As mãos dela apertavam as costas de uma cadeira.
- É só isso que tens para me dizer? - Os lábios temiam-lhe e nos seus olhos lampejava o ódio.
- Agora chega! - interveio em tom autoritário Alphonse de Martigny, causando a perplexidade da filha, que estava habituada a um pai tolerante e permissivo. - Tu
vais aquela maldita festa. Porque foste tu que a quiseste. E vais-te comportar como convém a uma de Martigny.

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Aos profissionais dos mexericos reunidos no Chez Régine bastou um olhar para se aperceberem de que entre os noivos havia ou tinha havido tempestade. Mas os estados
de espírito individuais e os ressentimentos pessoais não podem deter o complexo mecanismo de uma festa.
O cerimonial foi respeitado: o champanhe foi o vetor que provocou o primeiro impulso e sob o efeito do álcool as conversas animaram-se, a orquestra encontrou o ritmo
certo, as palavras propiciaram maliciosos encontros. Por fim, toda a gente foi dançar. Bruno, que tinha visto o avô dançar a valsa nos salões da villa de San Lorenzo,
detestava aqueles movimentos de marionetas desprovidos de harmonia e dignidade. Claudine, pelo contrário, queria participar a todo o custo, e os homens dispostos
a abanar-se diante de um monte de milhares não faltavam. Bruno, que era um excelente ator, seguia o desenrolar da festa com aparente atenção, respondendo delicadamente
as perguntas que lhe eram dirigidas. Estava sentado numa poltrona um pouco afastada, fumava um cigarro atrás do outro e bebia bourbon.
- Porque é que teima em ficar aqui quando sente uma vontade tão grande de fugir? - pronunciou uma voz atrás dele. Era uma voz intensa, musical, como as notas baixas
de uma harpa.
Bruno ficou perturbado com aquela doçura e receava virar-se com medo de estar a ser vítima de uma alucinação.
- É uma criatura verdadeira ou vem de outro mundo? - perguntou, mantendo-se imóvel.
- Decida você. - A mulher tinha-se posto diante dele: alta, esguia, negra e brilhante como uma noite de agosto.
- Conhecemo-nos? - Nunca tinha feito uma pergunta tão estúpida. Uma mulher como aquela, uma vez vista nunca mais se esquece.
- Eu conheço-o. - Abriu os lábios num cândido sorriso e o seu olhar de âmbar iluminou-se de admiração por ele.
- É uma coisa que não faz sentido. - Começava a recuperar a sua vivacidade.
- Que eu o conheça?
- Não faz sentido que eu não a conheça a si. - Levantou-se e beijou-lhe a mão.
- A Claudine não faz outra coisa há meses senão falar-me de si. A cor da sua pele fazia lembrar o cobre e o jade.

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- Então conhece a Claudine - observou com tristeza.
- E a Claudine conhece-me a mim - disse. - Se não fosse modesta, dizia-lhe que sou a modelo fotográfica mais procurada de Paris. Chamo-me Mahary.
- Lamento imenso - justificou-se -, mas é um ambiente que infelizmente não frequento.
- O da fotografia de moda?
- O da moda em geral e o das imagens em particular. No entanto, agora que penso nisso... - Lembrou-se de ter visto fotografias dela em alguns jornais. Decididamente,
não lhe faziam justiça.
- Está a ver como em certo sentido também me conhecia? - Nos lóbulos das orelhas, pendurados num fio de ouro, oscilavam dois diamantes puríssimos como gotas de luz.
- Acho-o muito solitário para um homem que acaba de ficar noivo.
- Quer fazer-me um pouco de companhia? - perguntou-lhe vivamente.
- Se me pede com esse tom... - Tinha um sorriso tão terno, uma voz tão musical, um perfume tão insólito que Bruno acabou por se esquecer do resto do mundo, encantado
com aquela beleza singular.
O Barão convidou-a a sentar-se.
- Não, obrigada - fez um gracioso gesto de cabeça. Tinha os cabelos curtos que pareciam de uma extraordinária suavidade.
- Sabe o que é que eu desejo mais do que qualquer outra coisa? - perguntou o Barão.
- Estou pronta para escutar confissões escabrosas - arriscou Mahary.
- Gostava de lhe acariciar o cabelo - disse num tom cândido.
- Pode fazê-lo, se quiser. - Fitava-o com o seu olhar de âmbar, onde brilhava algo mais do que uma simples amizade. - Mas tem de fazer isso depressa. Estou quase
a ir-me embora.
- Também a mim me apetece sair desta farsa - replicou -, mas acho que para um noivado são necessárias pelo menos duas pessoas. E eu sou uma das duas.
- Não está com nenhuma vontade de que esta farsa se conclua - leu nos seus pensamentos.
- É verdade - admitiu.
- Tem medo do escândalo? - perguntou ela, provocatória.

419

- Dei a minha palavra - recordou.
- Prometeu um sentimento que não tem - continuou.
- O casamento e o amor nem sempre coincidem - disse.
- Obviamente, enganei-me na pessoa - sorriu Mahary com ironia. - Pensei que estava a falar com o Barão di Monreale. - Era deliciosa, naquele vestido comprido de
crepe branco com as mangas apertadas no pulso e fechado no pescoço com um fio de pequenos diamantes. O seu corpo flexível moveu-se, fazendo realçar os seios pequenos
e duros, as pernas longas e nervosas.
O olhar de aço de Bruno tentou sondar o mistério que aquela mulher que tinha na sua frente ocultava. Aproximou-se dela como se estivessem os dois sozinhos num prado
imenso na primavera e segurou entre as suas mãos o delicado rosto de jade de Mahary. Muitas caras se voltaram para eles.
- Acredita no amor à primeira vista? - Bruno e Mahary devoravam-se com os olhos.
- Não - respondeu Mahary.
- Eu também não - sussurrou Bruno. - Mas amo-te.
- Vé lá a quantidade de lugares-comuns que correspondem à realidade - observou ela, extasiada.
Enquanto os relâmpagos dos flashes explodiam na semiobscuridade da sala, Bruno pousou os lábios nos de Mahary e beijou-a. O tempo tinha parado, a orquestra estava
calada, os rostos desorientados dos convidados observavam o imprevisível, o insólito, aquilo que nenhum deles, na permanente busca do insólito, conseguiria inventar
ou sequer imaginar.
- Amo-te, Mahary - disse Bruno.
- Amo-te, Bruno - disse Mahary.
Procuraram-se mais uma vez e foi um beijo longo, doce, apaixonado.
Claudine quebrou o encanto, intervindo como uma fúria e agredindo Mahary com uma bofetada.
- Puta negra nojenta! - sibilou.
- C'est formidable! - exclamou um repórter fotográfico, ao mesmo tempo que continuava a disparar. Aquelas imagens iam dar a volta ao mundo.
Mahary reagiu com uma estalada que fez oscilar a herdeira.
- Sou uma negra, Claudine - admitiu -, mas não me consideres uma colega tua - esclareceu.

420

Mademoiselle de Martigny lançou-se histericamente sobre Bruno, que a imobilizou.
- Tu não me conheces! - gritou. - Não sabes do que eu sou capaz. Eu vou arruinar-te. Vou destruir-te. Vou eliminar-te da face da Terra.
Ninguém esperava tanto daquela noite. Bruno entregou uma Claudine beira do desmaio a um grupo de pérfidas amigas.
- Champanhe et circenses - disse. E dirigindo-se aos convidados: - Meus senhores e minhas senhoras, já tiveram o vosso espetáculo. Mas a festa continua. É o barão
di Monreale quem oferece. - Depois voltou-se para Mahary e estendeu-lhe a mão. - Vamos embora? - disse.
E saíram para a quente noite parisiense.

Caminharam durante muito tempo, sem um objetivo preciso, por ruas quase desertas, mergulhados no seu sonho. Foram ter por acaso ao Quai de la Tournelle. O Tour d'Argent
ainda estava aberto. Olharam um para o outro, sorriram e entenderam-se imediatamente.
- Filet de sôle cardinal ou huîtres de l'Atlantique? - propôs ele.
- Les deux - decidiu Mahary.
Mas acabaram por comer apenas ostras e beber champanhe.
- Quando eu era pequena, tecia muitas fantasias sobre a minha primeira história de amor - começou a narrar com uma voz de harpa. - Imaginava que um homem lindíssimo
e desconhecido se aproximava de mim, me olhava intensamente nos olhos, me beijava com doçura e me dizia "vamos embora". Eu seguia-o com o coração num tumulto, mas
desconfiada. Porque esse seria o meu esposo.
- Foi exatamente aquilo que eu te disse! - comentou o Barão, feliz.
- Mas tu não és um desconhecido - esclareceu ela. - És mais famoso do que o Richard Burton e do que o Gunther Sachs. E não és lindíssimo. És um branco. O homem lindíssimo
em quem eu pensava era um africano como eu.
Bruno pensou que Mahary estava a brincar, mas não.
- Sempre achei que os racistas éramos nós. - Um empregado serviu o café e Bruno acendeu um cigarro.
- Talvez não sejamos racistas - explicou Mahary, inclinando-se sobre ele -, mas temos sérios motivos para reivindicar uma dignidade racial que nos pertence. A vossa
suposta superioridade é filha de um equívoco.

421

Porque somos nós a raça mais antiga da Terra. O primeiro homo sapiens e uma mulher africana. Sabias?
- Resolveste medir o meu coeficiente de inteligência? - replicou, acusando o toque.
- Estava só a tentar explicar a mim mesma o que me está a acontecer. - Eram os últimos clientes do célebre restaurante e os empregados, ensonados, resistiam imperturbáveis,
conhecendo a generosidade do Barão.
- Posso saber também o que te está a acontecer? - perguntou, ao mesmo tempo que lhe segurava as mãos por cima da mesa.
- Gosto de ti, Barão - confessou. - Mas tenho um medo terrível de ser apenas um pretexto para interromper um noivado que nunca desejaste. Um lampejo de satisfação
brilhou nos olhos de Bruno.
- Não tenho nenhuma intenção de ir em teu auxílio. - O café arrefecia nas chávenas. - Só o tempo poderá demonstrar-te se erraste ou não.
- Acho que não tenho outra escolha. - Tinha os modos, os gestos, a ternura de uma mulher apaixonada.
- Acho que te amo - disse, preocupado - e nem sequer sei quem és.
- Uma mulher - respondeu com simplicidade -, uma aventura ou um grande amor. Tu mesmo disseste que só o tempo poderá responder a estas perguntas. É um bom juiz,
o tempo. Podemos confiar nele.
A um sinal do Barão, o maître chamou um táxi. Quando saíram, uma nota passou da mão de Bruno para a do elegante empregado, que a fez desaparecer com uma rapidez
de prestidigitador.
- Para onde? - perguntou o motorista. Ao seu lado estava aninhado um grande pastor-alemão.
- Queres dar-lhe a tua direção? - propôs Bruno. - Imagino que o meu telefone esteja na mira de muita gente indesejável.
- Por mim, tudo bem - disse Mahary.
Saíram diante de um palacete oitocentista na rue des Beaux Arts. Subiram cinco andares a pé por uma estreita escada de pedra até uma água-furtada cujas janelas se
abriam sobre os telhados do antigo bairro de Saint-Germain-des-Prés. Estava a romper o dia.
Mahary aproximou-se do telefone e levantou o auscultador.
- É a maneira mais simples de não sermos incomodados - surpreendeu-o. - Não sabias, Barão?
- Como pretexto para vir a tua casa - admitiu - foi bastante idiota.
422

Bruno sentia-se maravilhosamente a vontade naquela casa que emanava uma sensação de paz. Admirou uma tapeçaria de estilo provençal, a alcatifa alta e macia, almofadas
por todo o lado, uma parede de livros. Uma porta abria-se para a cozinha e outra para a casa de banho rosa-velho.
Mahary tirou os sapatos e Bruno imitou-a.
- O que dizes a um bom café? - Sem esperar pela resposta, dirigiu-se à cozinha.
Ele olhou em volta à procura de uma cadeira, de um sofá, de uma poltrona, mas não havia sequer um banco. Por isso resolveu instalar-se em cima de uma almofada e,
acabou por achá-la confortável.
Mahary chegou com duas grandes chávenas de café fumegante num tabuleiro de madeira. Pousou-o no chão ao pé dele e sentou-se ao seu lado.
- É só isto a tua casa? - perguntou, embaraçado.
- Sim, porquê? Falta alguma coisa? - perguntou, maliciosamente.
- A cama - disse. - Se bem me lembro, nas casas há pelo menos uma cama.
- No sítio onde eu nasci - explicou afavelmente -, as camas não existem. E garanto-te que no meu país as pessoas dormem tão bem como em Paris. Para quem trabalhou
duramente e tem sono, uma camada de folhas pode bastar.
- Reconheço que são melhores as almofadas do que as folhas - sorriu.
- Consideras-me uma selvagem?
Saboreava o café. O seu corpo mexia-se de uma forma quase impercetível, mas era terrivelmente excitante.
- Por vezes, no campismo - contou Bruno -, dormi num saco-cama. Também dormi numa cabana sobre peles de carneiro - Pensou em Calò, que uma vez o tinha levado ao
seu refúgio. - Mas não imaginava que em Paris houvesse uma criatura encantadora a dormir no chão.
Mahary estava divertida com o espanto do homem que, segundo a sua própria lenda, não deveria espantar-se com nada.
- Mas é assim - afirmou.
- O snobismo não tem limites - comentou Bruno. - Mas não vais conseguir convencer-me a dormir no chão.
Nos olhos de Mahary passou a sombra do desejo.

423

- Não pensei que tivesses vindo aqui para dormir - disse.
- Precisamente por isso, estava a reclamar um sítio cómodo para me deitar. - Os seus olhares encontraram-se e as mãos procuraram-se.
- As almofadas são ainda melhores - garantiu ela. - Experimenta e verás.
Ergueu-se com uma graça felina e enfiou-se na casa de banho. Pouco depois Bruno sentiu o ruído do chuveiro. Reapareceu esplendidamente nua, com o corpo negro e brilhante
como uma noite de agosto. Bruno sentia-se embaraçado e tenso como no seu primeiro encontro de amor com Lucilla. Mahary era uma beleza diferente, preciosa e rara.
- Ainda sou eu - garantiu-lhe, perante o seu assombro.
Bruno lembrou-se de uma estatuazinha de ébano que representava a Vénus saída das águas e que emergia de entre os preciosos bibelots na villa de San Lorenzo, tão
delgada e flexível que parecia poder quebrar-se com um sopro, tão forte que resistia ao mais violento dos furacões.
- És linda - disse. Sentiu-se inábil e emocionado como da primeira vez.
- Tu também és. E eu desejo-te.
Aproximou-se dele e começou a despi-lo.

424

O casamento zulu

Bruno tinha a sensação de voar no ar escaldante em direção a uma nuvem cinzenta onde finalmente encontraria alívio. Mas o sol que inundava a água-furtada de Mahary,
atingindo-o em plena face, arrancou-o do sono. Abriu os olhos e o excesso de luz impediu-o de ver. Protegeu os olhos com a mão e tentou habituar-se à nova situação.
Gradualmente, as cores delicadas e a elegante decoração da água-furtada ganharam consistência, enquanto os seus olhos se habituavam à luz.
O corpo flexível de Mahary, mergulhado no sono, libertava um calor tranquilizante e estava coberto por uma luz dourada. Bruno olhou-a com admiração e respirou o
seu perfume subtil e penetrante.
Tinha o coração leve e não sentia remorsos. Era belo, jovem, rico, o sucesso tinha-lhe sorrido pela segunda vez e estava apaixonado.
Puxou uma cortina com a intenção de proteger o sono de Mahary, mas quando se virou ela estava a olhar para ele com os seus esplêndidos olhos de âmbar.
- Estás a ver - disse com ternura - que também se pode inventar o amor sem uma cama?
- E eu que pensava que sabia tudo. - Beijou-a nos lábios e sentiu-a quente, vibrante.
- Anda cá - pediu, puxando-o para cima dela.
Amaram-se longamente, em pleno sol, com uma delicadeza extrema, pronunciando as palavras vazias e insensatas dos apaixonados, confundindo as suas respirações, os
corpos entrelaçados, até que o desejo ficou novamente satisfeito.

425

Foram juntos para o duche e deixaram que o potente jato de água revigorasse os seus corpos lânguidos.
- Veste isto - disse Mahary, atirando-lhe um roupão de felpo. - Vou preparar o pequeno-almoço.
Sentiu-a movimentar-se na cozinha enquanto no ar se espalhava um aroma de café. Bruno agarrou-se ao telefone. Talvez a sua esplêndida aventura estivesse a chegar
ao fim, mas a realidade impunha as suas regras. Mais valia enfrentá-la.
Marcou o número do seu apartamento na place Furstenberg.
- É o Bruno - disse ao padrinho, que tinha atendido o telefone.
- Mas será que se pode saber o que é que andas a fazer? - disse com agressividade. Seguiram-se uns insultos em dialeto siciliano pronunciados com um tom afetuoso
e que exprimiam, mais do que desapontamento, uma sensação de alívio pela graça recebida.
- Tenta ser claro. - Bruno tirou um cigarro do maço e acendeu-o. Da cozinha chegava um vago tilintar de chávenas e ele saboreou antecipadamente o prazer do pequeno-almoço
iminente.
- Isto aqui em baixo está cheio de jornalistas - explicou Calò. - Gente a telefonar, gente a bater à porta.
- Estamos a ficar cada vez mais populares - disse Bruno, a tentar desdramatizar a situação.
- Até ligou o teu tio George, de Washington. E está aqui o Yussef que quer falar contigo.
- Diz-lhe que espere - respondeu alegremente -, saber esperar é uma característica dos árabes.
- O banqueiro andou à tua procura - continuou Calò. - Alphonse de Martigny diz que lhe deves uma explicação.
- É o mínimo que eu posso fazer - disse Bruno, de sobrolho franzido.
Mahary entrou com o café, manteiga, mel e pão torrado no tabuleiro de madeira. Trazia um vestido leve de linho branco que acentuava a flexibilidade do seu corpo.
- Eu ligo-lhe - disse. Sorriu a Mahary e atirou-lhe um beijo com a ponta dos dedos.
- Viste os jornais? - perguntou.
- Não, não vi os jornais - respondeu após uma pausa.
- Anda para aí uma confusão tremenda - avisou Calò.

426

- É uma publicidade que eu não procurei - tentou acalmá-lo.
- Está-se mesmo a ver que a culpa foi minha - respondeu, ressentido.
- Talvez seja a inveja que te faz falar - brincou. - Diz a verdade, gostavas de ver a tua cara impressa.
- Bruno, a coisa é mais séria do que pensas - advertiu-o.
Mahary dedicava uma atenção escrupulosa a tarefa que estava a desempenhar: barrava com manteiga o pão torrado e espalhava por cima uma ligeira camada de mel. Parecia
cumprir com solenidade gestos indispensáveis à sobrevivência da espécie.
- Foste tu que me ensinaste - recordou-lhe - que todos os problemas são sérios.
Aquele rapaz era muito teimoso e Calò renunciou a polémica.
- Onde estás? - perguntou-lhe.
- Isso não tem importância. - O aroma do café, o cheiro do mel e do pão torrado, o perfume de Mahary, a fragrância do pequeno-almoço punham-lhe a cabeça a andar
a roda.
- O que é que tem importância, então? - gritou o Calò do outro lado.
- Ouve-me bem, Calò - disse com calma -, eu não vou a casa. Tu entendes. Seria uma loucura.
- Mas temos de nos encontrar - exclamou ele.
- Encontramo-nos esta noite para jantar no restaurante da Gare de Lyon. - Gostava daquele lugar antigo, semelhante a uma caixa de bombons, que tinha a data da Exposição
Universal.
- Então não percebeste nada, meu filho - tentou explicar-lhe. - Nós estamos barricados. Se me atrever a sair, aquela gente vem atrás de mim como cães.
Bruno começou a tomar o café e sentiu-se melhor.
- São franceses - disse, mantendo-se calmo. A hora de jantar levantam o assédio e para além do mais não sou eu que tenho de te ensinar a despistar meia dúzia de
gatos-pingados.
- É verdade - disse Calò, atingido no orgulho.
- Leva o Yussef contigo.
- E com o banqueiro, como é que fazemos? Estava furioso.
- Acho que, do ponto de vista dele, tem razões válidas - admitiu Bruno. - Em qualquer caso, eu trato disso.
Preparava-se para desligar.

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- Uma última coisa - adiantou-se Calò - Sabes quem é a beleza negra que estás a beijar em todos os jornais do mundo?
- Sei que é uma maravilha. - Espreguiçou-se por um instante.
- Dá uma vista de olhos aos jornais - aconselhou-o -, e tenta refletir bem sobre aquilo que estás a fazer.
- Está bem, padrinho - despediu-se. - E tu lembra-te do encontro na Gare de Lyon. Digamos, às dez horas.
Mahary tinha uma expressão intensa e sonhadora, radiante.
- Algum problema? - perguntou, prosseguindo o ritual do pequeno-almoço.
- A vida é um problema sem fim - filosofou.
- Dormiste bem? - perguntou.
- Estupendamente - respondeu a sorrir. - Mas decidi que te vou oferecer, de qualquer maneira, a cama mais bonita de França.
- Eu também gostava de estar de acordo contigo. Se não te importas. - Sorria.
Comeram o pão barrado com manteiga e mel e tomaram outro café.
- Queres vir comigo? - propôs-lhe.
Mahary ficou um momento calada, olhou para ele e um doce sorriso iluminou-lhe o rosto.
- Aonde? perguntou.
- A um sítio onde possamos estar em paz os dois, sem gente enfadonha à volta. - Pensou no palácio de Piazza Armerina e na villa de San Lorenzo.
- Existe um sítio assim? - Parecia bastante cética.
- É ver para crer - afirmou, decidido.
Estava outra vez em pé e olhava à volta. O sol reavivava as cores da água-furtada e dourava a pele da jovem.
- Se o que aconteceu entre nós é uma aventura - disse-lhe Mahary -, acaba aqui. E este parece-me o sítio mais bonito para uma despedida sem lágrimas.
O coração de Bruno transbordava de felicidade; da acabada de viver e da antecipada.
- Não sei o que é, Mahary, aquilo que sinto - replicou sinceramente.
A jovem assentiu.
- Quando souberes o que queres - disse -, avisa-me. - Pegou no tabuleiro e regressou à cozinha. Bruno levantou o auscultador e ligou para o

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pai de Claudine. Detestava deixar as coisas penduradas. Estava preparado para aceitar a sua legitima agressão, mas afinal Alphonse de Martigny atendeu com um tom
particularmente simpático.
- Parabéns, Barão - começou. - Querias tudo e tiveste. Agora já não tenho dúvidas - acrescentou sem ironia -, vais mesmo percorrer um longo caminho na tua vida.
Bruno não conseguia decifrar o sentido daquelas palavras.
- Sinto muito - justificou-se -, a culpa é toda minha.
- Culpa? - perguntou o banqueiro, levantando a voz.

- Eu conheci aquela rapariga por acaso - tentou explicar. - Não estava nada previsto.
- É uma casualidade demasiado cinematográfica para ser credível - objetou de Martigny com amargura e admiração. - Pergunto a mim mesmo se o que prevalece em ti é
a fantasia ou o cinismo. Em qualquer caso, são ambos elementos indispensáveis para quem escolheu o caminho acidentado dos negócios.
O Barão continuava a tatear no vazio.
- A questão é que eu acho que não sou o homem certo para a Claudine - confessou.
- O homem certo para a minha filha - reconheceu - provavelmente ainda não nasceu. Talvez ela seja assim também por culpa minha ou talvez devido ao facto de ter crescido
sem mãe. A minha filha é um desespero. Outros vão falhar depois de nós. Não te censuro pela tua tomada de consciência, nem critico o teu método. O fim justifica
os meios. Talvez o vosso Maquiavel não quisesse dizer exatamente aquilo que nós entendemos quando tentamos interpretar a sua filosofia, mas a máxima aplica-se pontualmente
à realidade dos negócios. Admiro a tua inteligência e não deploro o teu cinismo. Tenho muita admiração por ti. Mas tens de entender que a partir deste momento as
nossas relações profissionais acabam.
- Estou a ver.
Pensou por um instante que seria um gesto nobre transferir para a conta de Claudine a percentagem sobre a mediação do negócio relativo às minas do Burhwana. O aristocrático
desprezo dos Sajeva di Monreale pelo dinheiro sugeria-lhe que o fizesse, mas a dura lei do business aprendida com os Brian impedia-lho.
- Se tu tivesses escolhido qualquer outra mulher - continuou o

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banqueiro -, eu partilharia da tua decisão e as nossas relações não se interromperiam. Não te bastavam os ovos de ouro. Também querias a galinha dos ovos de ouro.
Talvez tenhas feito a jogada certa ou talvez não. Fiquem lá com as vossas minas, mas lembrem-se de que o meu banco nunca mais considerará a possibilidade de fazer
qualquer negócio com o Burhwana.
A perplexidade impediu o Barão de se despedir do banqueiro. Ouviu o clique do telefone a ser desligado do outro lado da linha.
"Porque é que ele disse as vossas minas?", pensou.
Mahary parou diante dele, sorridente e feliz. Duas gotas de luz penduradas num fio de ouro brilhavam-lhe nas orelhas.
- Estou pronta - murmurou com a sua voz musical. - Vamos?
Bruno segurou-a pelos ombros com uma veemente doçura.
- Antes que eu saiba pelos jornais - perguntou-lhe -, queres dizer-me quem és?
Fitando-o com uma calma surpreendente, respondeu: - Sou Mahary Umpote, filha do príncipe Aschwinda, presidente do Burhwana.
Após um momento de absoluta perplexidade, Bruno explodiu numa sincera, incontrolável gargalhada e abraçou-a com ternura.
- Nem cínico nem fantasioso - exultou, a abanar a cabeça. - Por uma vez, só privilegiado pelo destino.
- Que eu propiciei - afirmou ela. - Vamos, Barão? - acrescentou, enfiando-lhe o braço.
- Vamos, princesa - respondeu, entrando no jogo, ao mesmo tempo que se dirigiam à porta. Depois de alguns dias inesquecíveis passados em Paris, Bruno e Mahary voaram
para Umpote, onde se casaram segundo o ritual zulu. O Barão di Monreale passou a ser o conselheiro económico do príncipe Aschwinda e o defensor da causa do pequeno
Estado do Burhwana.

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O APERTO FINAL

Sob controlo

Bruno acordou com o ruído fragoroso de um motociclo enlouquecido, conduzido por um demente que fazia uma gincana no adro da igreja. Levou alguns segundos para perceber
que se encontrava no quarto que tinha sido do avô, no palácio de Piazza Armerina. Carregou no botão do intercomunicador para entrar em contacto com a cozinha.
- Manda alguém matar aquele atrasado mental da moto - ordenou ao mordomo. A perda de Mahary, o atentado à sua vida, toda aquela sucessão de acontecimentos dramáticos
tinham-no levado aos limites da tolerância.
"Os tempos mudaram realmente: droga, terrorismo, delinquência. E para terminar, o motocrosse no adro da igreja", pensou.
Tateando no escuro, procurou em cima da mesa de cabeceira o seu Patek-Philippe lunar. Acendeu a luz e viu as horas. Eram oito da manhã. Tinha dormido três horas.
Chegaram-lhe as memórias da noite anterior, passada no escritório a falar com Calò e a fazer uma série de telefonemas entre África e os Estados Unidos. Por fim,
e era o único dado positivo, tinham encontrado uma solução para o problema do Burhwana, uma solução sugerida por Calò que, pela sua simplicidade, parecia realizável
e eficaz.
Tinha também discutido com Karin. Com todos os problemas que já tinha, só faltava mesmo a suscetibilidade provinciana, o moralismo beato e o rigor austro-húngaro
daquela imprevisível criatura de cabelo vermelho.
Estava cansado, deprimido, prostrado pelo calor que começava já a fazer-se sentir. Tinha a barba crescida, a boca empastada dos cigarros e do bourbon; ao mínimo
movimento, a cabeça parecia estourar. O ruído

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da moto estava a pô-lo doido. Finalmente, o motociclista foi afastado e regressou o silêncio. Levantou-se a custo. Estava completamente no. De madrugada, depois
de se ter despido, nem sequer tinha tido forças para enfiar um pijama.
Foi a casa de banho e começou por deixar correr a água para a banheira: precisava de se retemperar, mesmo que não conseguisse ficar em forma, ficaria pelo menos
em condições de raciocinar. Nenhum chuveiro do mundo poderia relaxá-lo e restituir-lhe alguma clareza mental como um banho quente de imersão. Enquanto a banheira
enchia fez a barba com cuidado, conseguindo assim fazer a parecer lentamente alguma semelhança com uma expressão humana.
Tinha acabado de se meter na água quando Calò apareceu com um café fumegante.
- Bebe que te faz bem - disse, ao mesmo tempo que lhe estendia a chávena.
- Já estás a pé? - comentou Bruno, espantado.
- Estou a tentar ajudar-te a juntar os cacos - respondeu. Tinha um aspeto fresco e repousado como se tivesse dormido dez horas seguidas. - Toma isto - disse, entregando-lhe
uma aspirina. - Vais sentir-te logo melhor.
O Barão engoliu a aspirina e tomou o café.
- Não me digas que nem sequer foste a cama - pronunciou com irritação.
- Pois não te digo - obedeceu, com uma voz sem inflexões.
- Não estás cansado? - Era uma pergunta vã.
- Não tenho a tua idade - respondeu com firmeza. - Mas ainda me Posso dar ao luxo de passar uma noite em branco.
Bruno saiu da banheira a resmungar qualquer coisa desagradável sobre aqueles velhos cepos insensíveis ao cansaço e às emoções, secou-se cuidadosamente e regressou
ao quarto, onde a roupa lavada e fresca estava alinhada com cuidado em cima de um sofá. O café e a aspirina começavam a fazer efeito. Já se sentia melhor.
- Espero por ti lá em baixo para o pequeno-almoço - disse Calò, enquanto ele começava a vestir-se.
A primeira coisa que tinha em mente era fazer as pazes com Karin, vencer aquele seu formalismo do Norte e fazê-la entender que nem

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sempre a aparência reflete a realidade das coisas. Atravessou com um passo expedito a galeria do primeiro andar em direção a ala este do palácio e bateu à porta
do quarto de Karin.
Esperou durante alguns instantes uma resposta que não veio. Bateu mais uma vez e, como o silêncio se mantinha, decidiu entrar.
"Merecia que eu ficasse zangado durante em mês", pensou, um pouco envergonhado da sua própria fraqueza.
Rodou a maçaneta e a porta abriu-se para um quarto deserto. A cama estava perfeitamente em ordem, como se ninguém ali tivesse dormido. Talvez Karin tivesse descido
muito cedo para o pequeno-almoço e uma empregada tivesse já arrumado o quarto.
Desceu as escadas e entrou na sala de jantar. Calò estava a comer tranquilamente.
- Bom apetite - disse. A serenidade do gigante tranquilizou-o. Se tivesse acontecido alguma coisa de estranho, Calò saberia.
Calò balbuciou um obrigado com a boca cheia, enquanto o mordomo servia o pequeno-almoço ao Barão.
- Onde é que anda toda a gente? - perguntou Bruno com irritação, para tentar chegar indiretamente ao que lhe interessava.
- Está tudo a dormir que nem pedras - respondeu Calò com calma. A Bruno a ideia de comer provocava náuseas.
- E a Karin onde está? - perguntou, enquanto se servia de sumo de laranja de um jarro de cristal.
- Foi-se embora - respondeu Calò imperturbável, enquanto continuava empenhadamente a tomar o seu pequeno-almoço.
- Como... foi-se embora? - Bateu com o jarro na mesa, arriscando-se a fazê-lo em pedaços.
- Foi-se embora - confirmou. - Foi há cerca de duas horas. Com a Rosalia.
- E tu deixaste-a ir? - disse o Barão, colérico. Rosalia importava-lhe muito menos.
- Agora também queremos sequestrar pessoas? - respondeu, fingindo indignação. - Disseram-me que se queriam ir embora e eu mandei alguém levá-las ao aeroporto de
Punta Raisi. Que mais é que eu podia fazer?
Bruno esvaziou de um só fôlego o copo de sumo de laranja.
- Aquela doida não sabe os riscos que corre - disse, preocupado.

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- Estás a pensar no renegado? - perguntou Calò.
- E em quem mais podia estar a pensar? - Olhou com raiva para o padrinho, que continuava a comer como se estivesse em jejum há um mês.
- Depois do prato que lhe servimos esta noite - observou, enquanto limpava a boca -, vai ter muita coisa em que pensar. Entretanto, não sabe se estás morto ou vivo,
mas sobretudo não sabe que estás a sofrer por causa daquela rapariga. - Sacudiu com a mão algumas migalhas que se tinham agarrado a camisa. - Ninguém imaginaria
que alguma vez uma mulher fosse tão importante para o Barão que pudesse ser considerada como refém.
A diferença entre Bruno e Calò era que este último não estava emotivamente envolvido e raciocinava.
- Porque é que ela se quis ir embora? - Mais do que com o padrinho, falava consigo mesmo.
- E perguntas-me a mim? - disse Calò, espantado. - Tu é que devias saber isso depois da maneira como a trataste ontem à noite.
- Agora também te queres meter nisto? - censurou-o.
- Eu só digo aquilo que penso - acrescentou Calò.
- Estão todos unidos contra mim. - Bruno procurava uma discussão para aliviar a tensão que sentia.
- Mas se tens tanta pena que ela se tenha ido embora - aconselhou -, podes sempre ir atrás dela.
A calma de Calò exasperava-o.
- Tens sempre a resposta pronta - tentou feri-lo.
Nos olhos azuis de Calò passou uma fúria sombria.
- A tua mulher morreu ontem - agrediu-o -, o teu filho vive num pais que oscila no fio da navalha, quase te mataram, e pões-te a fazer a fita do apaixonado desiludido.
Sentiu-se profundamente humilhado com a verdade das palavras de Calò. Pareceu tomado de uma timidez repentina, como quando em criança fazia uma asneira.
- As mulheres não se seguram com correntes - continuou Calò, mitigando a aspereza do tom. - Tu és bom e generoso, Bruno, mas quando achas que amas uma mulher deixas
de raciocinar. Aos 16 anos querias fugir com uma de 36.
- A Karin não percebeu nada - rebateu, inclinando a cabeça.

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- Percebeu que está apaixonada por ti - reforçou Calò -, pelo homem menos recomendável que uma mulher pode desejar. Percebeu que tinha uma única maneira de se salvar:
ir-se embora e esquecer-te.
- Encontra-a! - ordenou. Os olhos de aço do Barão relampejaram de cólera. O moralismo de Karin e de Calò, que não conheciam os seus estados de espírito, os seus
sentimentos, as suas reais emoções, ofendia-o.
Na firmeza de Bruno, Calò reconheceu o autoritarismo do velho barão e a sua mesma determinação em perseguir um objetivo.
- Nunca pensei em perdê-la de vista - sossegou-o.
Bruno deu um suspiro de alivio.
- Onde está? - Saber onde se encontrava era já uma consolação.
- Vamos sabê-lo em breve - disse. - O Michele Fiumara foi atrás dela. E vai segui-la aonde quer que ela vá.
- Bom trabalho, padrinho - sorriu. - Agora podemos começar a trabalhar.

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A isca

A bordo do Soraya havia uma grande festa. O palácio flutuante de Omar Achmal resplandecia de luzes no encanto da noite de Capri. Havia um rumor de vozes, de música,
uma cintilação de joias e de vestidos de noite. Os barcos a motor andavam entre o barco e a ilha para transportar a súmula da vida mundana.
Omar Achmal, o beduíno da tribo de Wahiba, num smoking impecável, tinha-se afastado para um canto do convés para contemplar as estrelas, guias e conforto dos nómadas
e dos navegantes. Reconheceu entre a constelação de Aquário e a de Sagitário as dez estrelas de Capricórnio, a referência astral sob a qual tinha nascido.
As previsões astrológicas eram muito ambíguas e prometiam momentos azuis e momentos cinzentos, e a oposição de Marte poderia influir negativamente nos seus negócios.
Adivinhava com um instinto animal o peso de infaustos presságios. Tinham passado treze anos desde que o Barão lhe tinha sacado a intermediação com o Burhwana, depois
tinha finalmente realizado a sua vingança e a vitória decisiva parecia estar ao alcance da mão. Ele, o pobre beduíno, que se tornara uma estrela de primeira grandeza
no firmamento dos negócios, ia truncar a fulgurante carreira do nobre siciliano.
Os nomes mais destacados da melhor sociedade internacional, mulheres magníficas e homens de indiscutível prestígio consideravam um raro privilégio participar nas
suas festas reais e ele olhava-os do alto do seu poder com a condescendência de um monarca absoluto. Sim, também ele tinha percorrido um longo, um esplêndido caminho.
Mas havia uma coisa que o irritava profundamente: o Barão sabia agradar e à volta

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dele resplandecia a lenda do homem de fascínio irresistível, beijado na testa pela sorte, enquanto sobre ele pesava a maldição do renegado.
Tinha agido com circunspeção e cautela. Em março, depois da redução das taxas de juro na Grã-Bretanha, convertera os depósitos de libras em dólares, ganhando vinte
e cinco por cento, e naquele momento, propiciando a invasão soviética no Burhwana, tentaria atenuar a irresistível ascensão da moeda americana para organizar em
seu favor a operação contrária. Naquele pequeno Estado africano estava a jogar tudo por tudo, e com a ajuda de Alá obteria o duplo resultado de se tornar o homem
mais rico do mundo e de arrastar o Barão para a lama. O killer tinha falhado o alvo, mas o erro está na ordem das coisas previsíveis. No entanto, o plano geral tinha
sido cuidadosamente estudado e o êxito final ser-lhe-ia favorável, ainda que as estrelas, no mapa cintilante do céu, lhe transmitissem mensagens confusas.
O estridente bip do aparelho eletrónico que trazia enfiado na faixa de seda do smoking chamou-o de volta à realidade.
Talvez o homem que esperava tivesse finalmente chegado. Omar Achmal apressou-se a entrar, sorrindo amavelmente aos convidados com quem se cruzava ao longo do caminho.
Abriu a porta do escritório e ficou satisfeito pelo facto de ali encontrar a pessoa que estava à espera.
- Bem-vindo a bordo - cumprimentou-o.
- Os meus respeitos, Achmal - respondeu o homem, erguendo-se prontamente da macia poltrona de pele, em sinal de respeito.
O árabe estava nervoso. Muitas coisas, talvez o êxito da operação, dependiam do relatório que o recém-chegado lhe ia transmitir.
- Então, Barthelemy? - sentou-se à secretária maciça em semicírculo, pousada numa espécie de pedestal, e preparou-se para escutar. O longo treino do autocontrolo
fazia-o parecer calmo e sorridente.
Barthelemy era um africano com quase dois metros de altura, que tinha o físico de um jogador de básquete e o sorriso inocente de uma criança. Tinha nascido trinta
anos atrás numa aldeia da savana congolesa e emigrara com a família ainda na infância em direção ao sul, até ao Natal, na sequência dos motins desencadeados entre
as tribos do Zaire antes do advento de Mobutu. Do Natal passara para o Burhwana à procura de trabalho e

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conseguira entrar no corpo da polícia, fazendo uma rápida carreira, até se tornar o braço direito de um personagem insuspeito do governo do príncipe Aschwinda: Choo
Awaba, homem de confiança do presidente, precetor do pequeno Sunny Brian Umpote, o filho do Barão e da doce Mahary.
Omar fez-lhe sinal e o africano retomou o seu lugar na poltrona.
- Então? - repetiu Achmal. Carregou no botão que acendia a luz vermelha do lado de fora do escritório: ninguém os iria incomodar.
- No Burhwana - começou -, a situação está a precipitar-se, senhor. O negro sorriu, sabendo que estava a comunicar uma boa notícia.
Fez uma pausa para estudar a expressão do interlocutor.
- O que é que está a acontecer, exatamente? - Entrelaçou os dedos e apoiou-se na secretária, inclinando-se para a frente.
- O velho príncipe está moribundo.
O prestígio pessoal de Aschwinda, chefe carismático do Burhwana, era o último dique da maré de insurreição. Sem ele, a oposição tomaria conta do poder.
- É uma notícia segura?
Era um pedido inútil de esclarecimento. Barthelemy transmitia-lhe informações sobre factos dos quais tinha sido testemunha ocular. O coração do árabe acelerou os
batimentos. Era uma boa notícia que chegava no momento errado, desorientando os seus planos.
- Vamos por partes - pediu-lhe. - Conta-me tudo desde o princípio.
- O Barão - começou a contar, com a precisão cadenciada de uma criança que repete a lição -, depois da morte da princesa Mahary, desapareceu.
- Nada desaparece. - Levantou a voz, manifestando pela primeira vez o seu desapontamento. - Nada desaparece se houver olhos para ver.
O africano calou-se à espera que o árabe se acalmasse.
- Desapareceu - repetiu, com o tom neutro de um embaixador. - Ninguém sabe onde está. No palácio não está, de certeza. Se estivesse, o Choo Awaba sabia. O avião
está em Umpote. Todos os seus homens estão em Umpote.
- O que é que diz o Choo Awaba?
Ignorar onde estava o Barão era perigoso. Conhecia o valor e a inteligência daquele homem, que tinha agora a vantagem de poder atacar em primeiro lugar.

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- O Choo Awaba diz - explicou Barthelemy - que o Barão não saiu do Estado do Burhwana. A opinião do braço direito de Aschwinda não era o Corão, mas Achmal concluiu
de tudo aquilo que o Barão escondido podia representar um sério perigo.
Agora a luta estava no auge.
- O Bruno Brian é esperto como um árabe - disse.
- Mas nunca abandonaria o filho - objetou o africano.
Aquele argumento convencia Achmal mais do que qualquer outro. A ligação do Barão ao filho era conhecida e era improvável que se tivesse ido embora deixando-o numa
situação tão precária.
- Fala-me do estado de Aschwinda - ordenou, golpeando o ar com um gesto.
- Há dois dias chegou uma equipa de especialistas do hospital de Roissy, de Paris - respondeu.
- São oncologistas, não são? - Fez uma careta de rejeição. O medo dos tumores obcecava-o e só o facto de evocar aquela palavra provocava-lhe uma sensação de desconforto.
- Sim - confirmou o africano -, mas parece que não podem fazer grande coisa. O diagnóstico é mau. Depois da morte da filha, as condições agravaram-se. Tem os dias
contados. Talvez as horas. O Choo Awaba está à espera que o velho morra para fazer cair o Governo.
Achmal escolheu um charuto cubano de uma caixa de mogno, acendeu-o e o seu rosto untuoso foi imediatamente envolvido por uma nuvem azulada.
Levantou-se e deu duas voltas ao escritório antes de se deter diante do homem do Burhwana. A progressão da doença dependia apenas de Alá, que por uma vez parecia
ter-lhe virado as costas.
- E, no entanto, os recentes relatórios médicos faziam supor um tempo muito mais longo - acrescentou. O africano encolheu os ombros.
- Parece que o organismo cedeu repentinamente, depois da morte da filha - disse.
- Pois. - Isso já ele tinha entendido, mas era uma questão que não tinha considerado e o chão ardia-lhe debaixo dos pés.
Tinha arquitetado uma a uma as peças daquele complicado puzzle, mas a situação corria o risco de se completar com uma antecipação que

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para ele se revelaria desastrosa. Tinha organizado e armado a rebelião, tinha infiltrado os seus agentes no Governo de Aschwinda, garantindo a colaboração de Choo
Awaba, para encaixar sete e meio por cento das ações da IBB mineira e fornecer um pretexto legal a um aguerrido contingente escolhido entre os cinquenta mil militares
do bloco soviético, com o apoio de guerrilheiros da SWAPO namibiana, para se apoderar do Burhwana e das suas riquezas mineiras.
Era um plano perfeito, organizado sob o patrocínio do Instituto de Estudos Africanos de Moscovo, dirigido por Anatoli Gromyko, em colaboração com os conselheiros
de Cuba, da Checoslováquia e da Alemanha de Leste a operar na Líbia, em Angola, em Moçambique, na Etiópia, na Guiné, no Benim e em Madagáscar.
Achmal avaliara atentamente os esquemas estratégicos e táticos, neutralizara o Barão, com os financiamentos do bloco soviético apoderara-se do controlo da IBB mineira
e as ações tinham-se valorizado. Para as converter em dólares ia usar a mesma cautela empregue na aquisição e o tempo necessário fora calculado em oito ou dez meses.
A partir do momento em que o golpe de Estado era iminente, e por aquilo que sabia até já podia ter-se verificado, aqueles sete e meio por cento queimavam-lhe as
mãos. Se Aschwinda morresse e o poder passasse para os revoltosos, ele possuiria sete por cento de nada.
Barthelemy não sabia nada daquilo e por isso não conseguia entender a sombria reação do árabe.
- Choo Awaba - disse-lhe - encarregou-me de lhe comunicar que depois do Governo instalado pedirá o apoio e a assistência dos soviéticos.
- Perfeito - disse, sorridente. Era uma despedida. - Agradeço-te acrescentou. - Podes ir descansar. Deves estar exausto. Amanhã de manhã mando entregar-te uma mensagem
para o Choo Awaba.
O africano saiu e Achmal carregou num botão de um complicado engenho que parecia um terminal eletrónico. Havia muitos botões de diversas cores e a cada um deles
correspondia a referência dos seus principais colaboradores.
Respondeu-lhe uma voz feminina com um acentuado acento parisiense.
- Françoise - ordenou -, anda ao meu escritório. Já.
Poucos minutos depois a mulher entrou sem bater A porta.

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- O que é? - perguntou. Trazia um vestido comprido de seda negra ousadamente decotado e suficientemente transparente para revelar todos os segredos de um corpo perfeito.
- Incomodei-te? - perguntou gentilmente o árabe.
- Salvaste-me de uma agressão sexual de grupo - brincou. - Um texano do petróleo e um príncipe romano estavam quase a passar a vias de facto.
- Tens unhas e carácter para te defenderes - adulou-a. Por favor, senta-te - pediu-lhe, indicando-lhe a poltrona de pele onde pouco antes se sentara o africano.
Françoise instalou-se com a elegante familiaridade da gente mundana que se sente à vontade em qualquer ambiente. A saia do vestido rodou por um instante, revelando
até à coxa as pernas longas e perfeitamente bronzeadas.
- Vi sair o negro - disse. - Parecia em baixo de forma. - Françoise Blandin, em termos de certidão de nascimento, com os seus 42 anos, estava mais próxima da meia-idade
do que da adolescência; no entanto, aparentemente podia ser confundida com uma jovem.
- Deves ter feito um pacto com o Diabo - dizia-lhe Achmal.
Tinha os cabelos loiros, uma pele de porcelana e um corpo esguio sem uma ponta de gordura. Gostava do seu trabalho e do dinheiro, mas sobretudo adorava o seu próprio
corpo. Naturista convicta, fazia descender da eficiência física a vivacidade mental. Da alma nunca falava, era coisa que provavelmente não possuía. Não fumava, bebia
apenas água, seguia uma dieta espartana pobre em hidratos de carbono, sem gorduras nem açúcares, e detestava o mar e o sol. Dormia dez horas por noite, não sonhava
e não tinha ligações sentimentais, pois defendia que o enamoramento é uma degradação da inteligência. Considerava o sexo tão necessário como a ginástica, mas os
exercícios físicos prevaleciam sobre os amplexos, até porque Françoise se limitava aos homens cujo check-up conhecia.
Tinha nascido como desenhadora e tinha feito nome com a publicação dos seus trabalhos num conhecido semanário parisiense, pelo que recebia uma retribuição adequada.
Tinha um vício secreto: o prazer inefável da intriga e da bisbilhotice. Ao crescer profissionalmente, apercebera-se de que aquela sua propensão podia ser convertida
em dinheiro e em sucesso. Por isso se tornara numa espia industrial. O seu talento no desenho

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abriu-lhe as portas douradas da alta-costura e sentiu-se imediatamente capaz de vender pela melhor oferta as criações secretíssimas que desenhava de cor. Omar Achmal
tinha-a conhecido num famoso atelier e percebera que aquela mulher bonita, extravagante, inteligente e cheia de fantasia lhe interessava.
- Mas tem vocação espia - recordou-lhe um dos seus conselheiros.
- A fidelidade e a honestidade - comentou Achmal - têm um preço. E eu acho que o conheço.
Avaliadas minuciosamente as qualidades do objeto, o árabe fez-lhe uma oferta que ligava definitivamente aquela mulher à sua organização. Françoise era o elo que
faltava para a engrenagem ser perfeita. O renegado possuía um dote indispensável a uma pessoa de sucesso: a desconfiança. Ninguém gozava plenamente da sua confiança.
Cada um dos seus espiões tinha outro espião que o controlava. A supervisão da rede informática do Burhwana estava entregue a Françoise Blandin.
- O que é que pensas? - perguntou Achmal.
- Da saúde do Aschwinda ou do golpe de Estado no Burhwana?
- Das duas coisas - disse o árabe. Tinha pressa em saber a verdade.
- A equipa de especialistas já regressou a Paris. - Compôs a saia, que fazia uma prega. - O Aschwinda está no fim.
- Quanto tempo tem?
- Dias - arriscou -, horas. É um bom homem - acrescentou. - De entre os chefes dos regimes corruptos que criaram miséria e desespero em África talvez seja o melhor.
- Não te pedi uma interpretação sociológica - disse, sombrio, franzindo as sobrancelhas. - Pedi-te uma informação precisa. Um conselho técnico.
- Vende - disse com segurança. - As IBB mineiras convertidas imediatamente numa montanha de dólares. Amanhã vão ser um pacote de rebuçados.
O africano tinha dito a verdade. O renegado levantou-se, aproximou-se da janela e afastou a cortina. As luzes de Capri salpicavam o veludo da noite.
- Quanto valem as ações da IBB mineira à cotação de hoje? - perguntou a Françoise.
- Duzentos milhões de dólares - respondeu ela prontamente, conservando a imobilidade de um manequim pensante.

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Tinha de as vender, quanto a isso não havia dúvidas, mas a quem? A quem quer que tivesse dinheiro para investir, aquele petisco ia saber bem. A Bolsa ia engoli-las
sem dificuldade, mas a operação tinha de se processar fora dos canais tradicionais.
- Se amanhã eu as pusesse à venda, seria o pânico. Os organismos de controlo iam fazer investigações. Iam querer uma explicação plausível. E a verdade ia saltar
cá para fora em poucas horas.
- E os teus patrocinadores - observou, referindo-se aos soviéticos - iam querer saber porque esperaste tanto tempo para lhes transmitir uma informação tão preciosa.
Achmal olhou para ela com desprezo.
- Podia ser uma notícia que necessitasse de mais confirmações - tentou justificar-se.
- Podia - admitiu Françoise -, mas objetivamente tu sabes que não é assim. - Fechou os olhos e massajou as pálpebras. - O Barão comprava-as imediatamente, fora do
mercado, sem fazer demasiadas perguntas. Não ia ser difícil para ele arranjar duzentos milhões de dólares. Mas também ele se questionaria sobre as razões de teres
decidido vender.
A perspetiva de perder aquele clamoroso negócio tinha-o feito esquecer tudo o resto.
- Será possível que ninguém saiba onde ele está? - perguntou, furioso, dando um murro em cima da mesa. - Pago principescamente para ser informado sobre tudo aquilo
que acontece no Burhwana e os meus colaboradores deixam escapar o Bruno Brian à frente do nariz.
A crítica também a envolvia a ela.
- No Burhwana - replicou Françoise, sentindo-se atingida -, se me tivesses atribuído o Barão em vez de me entregares a custódia do Barthelemy e do Choo Awaba, agora
sabia onde está o Bruno Brian. Quando me mandaste ir atrás dele para Saint-Tropez, eu fiz tudo muito bem feito.
- Esquece - disse Achmal. - Tu não tens responsabilidades nenhumas. - Era demasiado preciosa, sobretudo naquele momento, para pôr em jogo a sua colaboração.
- Obrigada pela confiança - sublinhou ironicamente -, mas, se queres a minha opinião, mister Brian saiu do Burhwana há algum tempo. Ele sabe quem matou a Mahary.
Sabe quem queria a cabeça dele. E tu sabes que Bruno Brian não perdoa.

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Um arrepio correu-lhe ao longo da espinha.
- Quero saber onde está - gritou. - Quero saber o que está a fazer.
Françoise sorriu-lhe, transmitindo-lhe uma sensação de calma.
- Acho que tenho uma ideia melhor - anunciou. - Perseguir uma sombra não adianta. O melhor, de momento, é intensificar as medidas de segurança.
- E a tua ideia? - perguntou.
- Preciso de a afinar.
Saiu do escritório com a leveza de uma borboleta. O árabe estava outra vez sozinho, com mais uma promessa e um grave problema para resolver.
Em África, onde as superpotências, aproveitando-se da miséria económica e social, criavam os pressupostos de um neocolonialismo de rapina, o árabe tinha jogado as
suas melhores cartas. Desligado de qualquer ideologia, tinha-se apoiado por mera conveniência na área comunista. A sua meta era o poder e os meios para o atingir
eram o dinheiro, a intriga, a corrupção e a conivência com as cúpulas burocráticas ou militares que construíam a sua fortuna sobre o subdesenvolvimento dos países
à deriva onde a inflação galopava selvaticamente e o desemprego aumentava.
Omar Achmal não precisava de justificações, mas ainda que tivesse sentido a exigência de construir um álibi moral, os pontos de referência não lhe faltariam. Ele
fazia em ponto pequeno aquilo que Ronald Reagan de um lado e Leonid Brejnev do outro projetavam e realizavam em grande num continente onde em cada mil crianças nascidas
sobreviviam
oitocentas e destas um número incalculável acabava por morrer à fome.
Dos quarenta mil milhões de dólares gastos nos últimos vinte anos em África, o renegado tinha amealhado a sua pequena parte, mas o grosso do bolo tinha sido repartido
entre russos, americanos, franceses, alemães, ingleses e italianos. Os emissários das nações onde se prega a filosofia o das ajudas ao continente negro e se pratica
a política da razia organiza nas suas frentes privilegiadas o tráfico de armas, de informações e de mercenários.
Cada um daqueles personagens, de um momento para o outro, poderia captar as notícias sobre os assuntos do Burhwana e vendê-las na bolsa sempre ativa das informações
internacionais. Então o renegado não teria justificações plausíveis. Tinha de ser ele a avisar os seus patrocinadores

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sobre as mudanças iminentes. O tempo era uma serpente à espreita. E naquele parêntesis de silêncio tinha de encontrar uma colocação para a carteira de controlo da
IBB mineira. Precisava de um comprador fora dos canais tradicionais que estivesse disposto a desembolsar duzentos milhões de dólares para se apoderar de um pacote
que em poucos dias ou em poucas horas se ia esvaziar do seu precioso conteúdo.
Aproximou-se da janela e olhou mais uma vez para o céu. Uma estrela cadente cavou na escuridão um efémero caminho de prata.
É assim a vida dos homens, pensou. E perguntou a si mesmo se isso seria um bom ou um mau presságio.
Pensou novamente em Françoise e na sua promessa. Que ideia teria surgido na mente daquela estranha mulher? Achmal conhecia-a bem, em muitas ocasiões tinha apreciado
seu talento, a sua fantasia, a sua iniciativa, mas desta vez não havia nenhuma margem para o erro. Nem sequer se questionou sobre se poderia ou não confiar plenamente
nela. Tinha de confiar: não havia alternativa.

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A perseguição

- Vi-gil-joch - pronunciou Michele Fiumara, com a pronúncia adulterada, ao ler o letreiro em grandes letras negras na fachada da minúscula estação de pedra cinzenta,
telhado de ardósia e portadas verdes contra uma montanha densa de bosques de pinheiros e de abetos de que não se via o fim. - Mas para onde foi que me trouxeram
estas duas infelizes? murmurou para si mesmo.
Tudo começara ao amanhecer. Ele dormia a sono solto, em casa dos pais, no meio dos campos na encosta da colina de Piazza, quando a mãe o acordou tomada de uma estranha
animação.
- Michele, acorda! - Como se as palavras não bastassem, a mulher abanava-o pelo ombro.
- O que foi que aconteceu? - Sentou-se de repente. - A casa está a arder?
- Não. - Queria sossegá-lo, mas a ansiedade permanecia no seu rosto. - É que don Calogero Costa quer falar contigo.
- Quando? - Esfregava os olhos, tentando raciocinar. O nome pronunciado pela mãe trouxera-o definitivamente de volta à realidade.
- Já. - A mulher virou a cara para não o ver nu.
Michele Fiumara levantou-se de um salto, enfiou as calças e foi ao lavatório passar água pela cara. Pegou na toalha que a mãe tinha nas mãos, limpou-se e depois
passou os dedos pela farta cabeleira de caracóis negros. A sua imagem refletida num pequeno espelho sossegou-o. A juventude não precisava de expedientes particulares
para restituir a uma fisionomia agradável e simpática o seu aspeto natural.
Trepou como um cabrito por atalhos que conhecia bem e em poucos

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minutos estava na porta das traseiras do palácio, onde don Calogero o esperava ao lado de um Fiat 131 azul, a mastigar uma raiz de alcaçuz.
- Muito bem - cumprimentou-o -, galopaste como um poldro. - Recordava as suas corridas de rapaz no ar claro da madrugada.
- Os meus respeitos, don Calò - saudou-o cordialmente, sem obséquio.
- Michele - começou, ao mesmo tempo que lhe pousava uma mão no ombro e o olhava diretamente nos olhos. - Tu tens que me fazer um favor.
- Ao seu serviço - respondeu, antes ainda de saber do que se tratava.
Calò entregou-lhe um volumoso maço de notas de cem mil. O rapaz pegou no dinheiro e enfiou-o no bolso de trás das calças.
- Estão duas senhoras no palácio - disse-lhe.
- Ah - limitou-se a replicar.
- Daqui a pouco vão ser acompanhadas a Punta Raisi.
Michele Fiumara, que não perdia uma silaba, assentiu.
- Acho que vão apanhar um avião para Milão - continuou Calò.
- Confirma. O diretor do aeroporto vai fazer-te chegar o bilhete, seja qual for o destino delas. Mas deve ser Milão.
Michele Fiumara tinha executado outras missões e sabia desenrascar-se em qualquer situação. Não tinha problemas.
- E eu? - perguntou.
- Deves segui-las. -Calò apertou a mão ao rapaz para sublinhar a importância daquelas duas simples palavras. - E, se for necessário, protegê-las.
- Eu vou segui-las.
- Onde quer que vão, tens de as seguir - insistiu. - E nunca as percas de vista.
- Nunca - prometeu.
- É um favor que me fazes a mim, pessoalmente - sublinhou.
- Pode contar comigo. - O rapaz sorriu, revelando uns dentes impecáveis.
- Tens três milhões no bolso - informou-o. - Se não chegar, pede mais dinheiro.
- Só tenho de as seguir? - perguntou ainda.
- E telefonar todas as noites para me dizeres onde estão e o que fazem.
- Só isso?

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- Só isso.
Foi um dia alucinante. Embarcou com elas no avião para Milão; do aeroporto de Linate, de táxi, seguiu-as até um elegante edifício moderno na via Pascoli e esperou
por elas durante duas horas.
O motorista olhava-o com desconfiança: nunca lhe tinha acontecido esperar duas horas juntamente com um rapazinho que, tanto quanto sabia, podia ser um delinquente
ou até um elemento das Brigadas Vermelhas.
Era um milanês bonacheirão, à volta dos 60 anos, com quatro filhos, um dos quais tinha ido trabalhar para a Líbia e tinha tido muito pouca sorte. Resumia os episódios
mais importantes da sua movimentada existência de transportador de homens na esperança de receber em troca alguma informação sobre aquele passageiro surdo-mudo que
talvez fosse um norte-africano daqueles que habitam o bairro de Porta Venezia e muitas vezes se destacam por atos de violência. O taxista, por muito que tentasse
ser otimista, não estava tranquilo.
- Ainda vamos ter de esperar muito? - ousou finalmente perguntar.
- Quem sabe? - respondeu, lançando o pobre do homem no mais sombrio desespero.
- Porque não chama outro táxi quando as senhoras saírem? - sugeriu-lhe. - Para além do mais, poupa, não é?
- Não - foi a última palavra do Michele
O taxista abriu os braços, resignado, e dirigiu uma oração ao céu. Uma coisa a mais sabia: pela meia dúzia de palavras pronunciadas por aquele cliente singular,
tinha ficado com a certeza de que não se tratava de um norte-africano.
"Mas na casa dele também se devem ouvir os tam-tam", pensou com a ironia fina do Norte.
Finalmente, as raparigas saíram, cada uma com uma mala na mão, e entraram noutro táxi que se dirigiu à Estação Central. Compraram bilhetes para Bolzano, onde chegaram
às quatro horas da tarde. Em Bolzano mudaram de linha e entraram numa carruagem de segunda classe no comboio local para Merano. Também Michele Fiumara se instalou
nos bancos de madeira da mesma carruagem, enquanto o comboio atravessava uma paisagem florida, um vale risonho cheio de pomares com muitas montanhas ao fundo.

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Michele pensou que de todas as tarefas que lhe tinham sido confiadas por don Calogero Costa, aquela era a mais singular. Se ao menos ele soubesse até quando ia durar
aquela viagem!
As pessoas falavam uma língua estranha que parecia alemão mas não era. Na estação de Merano as duas raparigas apanharam um táxi que, depois de ter percorrido uma
estrada cheia de curvas, abrandou nas proximidades de uma placa que indicava LANA D'ADIGE. Olhou para o relógio. Eram quase cinco horas e pensou que a viagem tinha
acabado. Mas as duas senhoras tinham desaparecido numa espécie de pequena estação onde se via uma cabina cintilante ligada a um cabo de aço fixado em altos pilares
de cimento solidamente cravados na montanha.
- Teleférico do monte San Vigilio - leu a tradução italiana do alemão Vigiljochbahn. - Mas onde é que elas me trouxeram? - repetiu.
Pagou o táxi e subiu rapidamente os degraus da pequena estação. Em cima de um murete estavam alinhados uns canteiros onde floriam campânulas, gerânios, chagas e
petanias que proporcionavam uma alegre nota de cor.
Ouviu o toque de uma campainha e quando se aproximou do interior da plataforma terminal o teleférico moveu-se e a cabina cheia de gente começou a subir com um ruído
de aço, ultrapassando o primeiro pilar, pelo meio de abetos e pinheiros.

Regressou ao átrio onde ficava a bilheteira, proferindo entre dentes todas as imprecações que conhecia. E eram muitas.
- Quer comprar bilhete? - perguntou-lhe em alemão um senhor de meia-idade, loiro, de expressão tranquila e rosto avermelhado de bom bebedor.
- Não percebo - respondeu Michele Fiumara.
- É italiano? - O rosto suave, enquadrado pelo postigo, iluminou-se.
- Eh! - Era um rapaz de poucas falas.
- Quer comprar bilhete? - repetiu o homem em italiano.
- Aquele já partiu - observou, referindo-se a cabina que cintilava por entre os abetos.
- Já vai sair outro - sossegou-o o funcionário.
Michele Fiuma deu um suspiro de alívio.

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- Dê-me um bilhete - disse. - Já quando? - perguntou.
- Já, daqui a uma hora - respondeu o funcionário alegremente.
- Daqui a uma hora não é já - replicou o siciliano, enfurecido.
- Isso é verdade - concordou o homem, após uma breve reflexão.
- Não se pode subir de carro? - Queria restabelecer o contacto com as duas raparigas e, para além do mais, a ideia de se enfiar naquela caixa não o entusiasmava.
- Isso não é possível. - Falava num tom simpático, com uma cordialidade ingénua.
- Como não é possível? - Andava-se de um lado para o outro no espaço e não era possível subir aquela montanha?
- Não há estrada - explicou. - Só o teleférico. - Depois corou como um semáforo: - Pode fazer uma viagem especial. Se quiser. Custa vinte mil.
- Especial para mim? - perguntou. - E parte imediatamente?
- Sim - rebateu, satisfeito por o ter ajudado a resolver o seu problema.
- Vamos então fazer essa viagem especial. - Pagou e retirou o recibo.
Saiu para a plataforma e sentou-se num banco de madeira à espera que a cabina regressasse. O funcionário da bilheteira saiu do seu pequeno cubículo e instalou-se
no banco ao lado do rapaz.
- Vai para o hotel? - perguntou-lhe. Sorria. Com a luz, as pequenas veias vermelhas nas maçãs do rosto e no nariz ficavam mais marcadas.
Evidentemente, havia um hotel no fim daquela caranguejola.
- Sim - respondeu. O funcionário anuiu, sempre a sorrir, e deixou-se estar alguns instantes a olhar para ele com curiosidade.
- Tem reserva? - perguntou.
- Não.
- Tem bagagem? - Na sua terra um interrogatório semelhante não teria sido tolerado, mas nas perguntas do funcionário parecia não haver a intenção de entender segredos,
apenas o desejo de ajudar o visitante a orientar-se melhor naquele ambiente novo. Mas a intenção nem sempre coincidia com o resultado.
A única maneira para não responder era fazer perguntas.
- Olhe, aquelas duas meninas que subiram primeiro... conhece-as?

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- Subiram muitas meninas - sorriu, malicioso.
- Uma tem o cabelo vermelho - esclareceu. - A outra, negro.
Nos seus olhos de um azul deslavado brilhou uma alegria sincera.
- Eu conheço a menina do cabelo vermelho - disparou. - É a Karin Venier. Nasceu lá em cima. Na casa da Ilse Klotz. A outra amiga dela não a conheço. É a primeira
vez que aqui vem.
- A menina Venier mora lá em cima? - Tinha agora a certeza de ter chegado ao fim da viagem.
- Às vezes. - Chegou-se mais a ele com ar de cumplicidade. - É uma mulher muito importante - contou-lhe. - Trabalha em Milão. É advogada. Viaja muito. Sim, provavelmente
vai dormir no hotel. Ou talvez durma na velha casa de madeira. Isso não sei.
Tocou a campainha que anunciava a chegada da cabina. Saíram alguns turistas a rir e a falar. Vestiam fatos tiroleses: calças de veludo e de couro, camisas aos quadrados.
Alguns vinham armados com máquinas fotográficas e de filmar, outros com instrumentos de alpinismo.
O teleférico voltou a partir só com ele e o funcionário despediu-se como se o rapaz estivesse prestes a partir para a lua. Tirou um cigarro do bolso da camisa. Era
o último. Tentou acendê-lo.
- Verboten - disse o funcionário de serviço. Era um jovem alto, loiro, que mitigava a aspereza da proibição com um sorriso jovial e ligeiramente obtuso que lhe fazia
lembrar o do funcionário da estação.
Michele Fiumara voltou a meter o cigarro no bolso e sentiu-se pouco a vontade naquela caixa que se afastava da terra de uma forma preocupante, com uma oscilação
que lhe fez lembrar a dos barcos quando subia a maré. A cada pilar correspondia um abanão que lhe cortava a respiração.
- Itália é tão comprida e eu tinha de vir parar logo aqui - lamentou-se em voz alta.
- Ja, Itália - repetiu o funcionário do teleférico, que da frase apenas entendera aquela palavra.
À medida que a cabina subia, o ar tornava-se mais fino e fresco. Michele estremeceu. Doíam-lhe os ouvidos devido à pressão.
- Está sempre assim tanto frio, aqui? - perguntou.
- Ja - sorriu o loiro.
- Tinham mesmo que me mandar para esta espécie de Kilimanjaro! Estava furibundo.

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- Was? - Decididamente, não se entendiam.
A cabina estremeceu no último pilar, abrandou e encaixou perfeitamente na plataforma no cimo do monte, a mil e quinhentos metros do nível do mar, como testemunhava,
e não havia motivo para dúvidas, a inscrição gravada na parede por baixo da indicação em duas línguas: monte San Vigilio.
O vale de dois rios, fechado pela cordilheira das Dolomitas, era de uma beleza indescritível. As luzes de Lana d'Adige tinham-se acendido no crepúsculo iminente,
delineando os contornos da vila que eram os de um imenso cravo. À esquerda, em direção a Merano, via-se ainda o ocre dos edifícios e o verde do hipódromo.
O jovem caminhou numa paisagem que se situava entre a ficção e o desenho animado: as pequenas veredas cruzavam-se num subir e descer de prados e bosques de abetos.
No centro do breve planalto, que tinha como fundo um céu de esmalte azul, havia uma construção branca, baixa, tipicamente tirolesa com grandes janelas iluminadas
e um letreiro de ferro forjado: Hotel Vigiljoch.
Michele Fiumara entrou de boa vontade naquela fibula de madeira antiga, cortinas coloridas, móveis atraentes, um grande fogão de majólica, cheiro de pinho e de cerveja,
cheia de velas acesas.
Uma bonita mulher de olhos resplandecentes, cabelos apanhados na nuca e uma expressão elegante e serena foi ao encontro dele.
- Bitte? - perguntou delicadamente. Trazia um vestido leve de lã cor de avelã que ajudava a atenuar as suas formas opulentas e os seios robustos. Podia ter 50 anos,
mas seguramente não os aparentava.
- Tem um quarto? - perguntou Michele.
- Está com sorte - respondeu-lhe num italiano perfeito.
Michele Fiumara não partilhou da opinião da sorridente senhora, que não podia conhecer as suas desventuras.
- Então tem um quarto? - Precisava de certezas, depois de tanta precariedade.
- Sim - disse a rececionista. - É difícil arranjar uma vaga em agosto. Mas há precisamente uma hora atrás um cliente de Düsseldorf anulou uma reserva. Quer facultar-me
um documento, por favor?
O rapaz entregou-lhe o passaporte que ela abriu para ler a identificação do hóspede.

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- Frau Martina! - chamou alguém.
- Ein Moment, bitte - respondeu ela. Depois, dirigindo-se ao hóspede, acrescentou: - Senhor Fiumara, onde é que posso mandar buscar a sua bagagem?
- Não tenho bagagem. - Sentia-se embaraçado com a sua situação anómala. - Mas preciso urgentemente de comprar algumas coisas.
Frau Martina tinha experiência de vida suficiente para saber reconhecer um cavalheiro, com ou sem bagagem, ainda que fosse bastante insólito que um forasteiro se
aventurasse até àquele sugestivo terminal sem objetos pessoais.
- Se lhe bastar - sugeriu-lhe -, pode comprar o que necessita na loja de Frau Klara. Está a ver ali em cima? - Indicou-lhe da janela as luzes de uma casinha no fim
de uma breve subida.
A solicitude cortês daquela mulher não o impedia de se sentir um emigrante em terra estrangeira. Meteu uma mão no bolso e as notas de cem mil deram-lhe alguma confiança.
Precisava de restabelecer o contacto com aquelas duas doidas, mas não sabia por onde começar. Mais valia ir abastecer-se do indispensável na loja de Frau Klara.

Michele Fiumara olhou em volta e sentiu-se como um animal enjaulado. E no entanto o quarto era agradável, alegre, a cheirar a resina: uma cama de madeira sólida
com a cabeceira pintada de flores estilizadas, um armário de duas portas tipicamente tirolês, paredes brancas animadas com ingénuos quadrinhos coloridos, uma macia
alcatifa verde, uma casa de banho a reluzir de limpa e um silêncio sobrenatural.
Na loja de Frau Klara encontrou tudo: a escova de dentes, roupa interior para mudar, camisolas, sabão de barba, uma camisa, calças de veludo, meias de lã, cigarros,
uma sanduíche de salame para aplacar momentaneamente a fome e um copo de bom vinho.
A refeição na sala do hotel foi requintada. Empregadas muito jovens com fatos tiroleses e avental dedicaram-lhe palavras incompreensíveis e sorrisos eloquentes.
O estabelecimento estava repleto. Os hóspedes falavam em voz baixa, enquanto comiam alegremente.
"Não as podes perder de vista", tinha-lhe dito don Calogero. E ele tinha-as perdido. Mas como poderia ele saber que se iam enfiar naquela

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caixa pendurada num fio de aço? Não era um autocarro que se pudesse seguir com um táxi. Telefonou a Calò e explicou-lhe a situação, pronto para sofrer a reação mais
violenta.
Mas don Calogero riu-se.
- Fizeste um bom trabalho - cumprimentou-o. Ele conhecia San Vigilio. - Sossega. Se não está no hotel, está com certeza em casa dela. Amanhã vais encontrá-la.
Sossegou. Serviu-se de um copo de aguardente de framboesa e acendeu um cigarro. Na loja de Frau Klara tinha encontrado uma única revista em italiano, de há um mês
atrás, e em grande parte dedicada ao casamento do ano, entre o herdeiro do trono de Inglaterra e lady Diana Spencer. Era a prosa do costume, mas as fotografias eram
bonitas, coloridas. Viam-se os guardas da rainha, os reis e os príncipes da Noruega, da Holanda, da Dinamarca, da Bélgica e do Luxemburgo. Havia também uma princesa
negra de uma beleza deslumbrante que o jovem siciliano reconheceu imediatamente. Era Mahary Umpote do Burhwana. Os jornais tinham publicado a fotografia dela depois
de um sicário a ter assassinado. Naquela imagem parecia feliz e o seu rosto resplandecia de juventude.
Michele Fiumara sentou-se numa poltrona e pôs a revista de lado. Estava furibundo e deprimido como um animal enjaulado. Ele, que nunca tinha falhado em nada, tinha-se
deixado enrolar por duas... Olhou para o desenho leve de uma bétula branca emoldurado com elegância, depois observou a linha sinuosa de uma flor. Orchidea Lipari
Loeselii, leu. Levantou-se de um salto: estava prisioneiro da sua própria impotência.
- O que é que eu faço? - praguejou -, passo a noite a admirar os exemplares da flora do Alto Adige?
Procurou um sítio para passar o serão: um cinema, uma discoteca, A falta de outra coisa, uma televisão. Havia um televisor na jägerstube, mas tinha sido eleito por
vontade popular um programa em língua alemã.
- Mas como é que esta gente vive? - perguntou a si mesmo, desesperado. Tinha caído de paraquedas numa civilização desconhecida e sentia-se como um náufrago.
"De certeza que o Cristóvão Colombo se sentiu mais integrado no meio dos índios da América", pensou.

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Atirou-se para cima da cama, com os olhos virados para o teto a tentar imaginar que desenvolvimentos ia ter o dia seguinte.
- E se aquelas duas fazem uma especial e regressam ao vale esta noite? questionou-se. Era uma probabilidade.
Foi até à porta envidraçada, abriu-a, saiu para uma pequena varanda de madeira e debruçou-se na balaustrada. A cabina estava encaixada na plataforma e a estação
do teleférico estava apagada. No vale resplandeciam as luzes da vila. Ao longe, na noite límpida, via-se a cordilheira das Dolomitas. Vozes, música e gargalhadas
subiam do bar, um ruído acentuado pelo silêncio da montanha. Algumas luzes ténues filtravam-se através do bosque denso, fazendo supor a existência de casas. Talvez
uma delas fosse a tal casa de madeira onde se tinham refugiado as duas raparigas.
Voltou a fechar a porta envidraçada.
- A cólera é má conselheira - tentou convencer-se, mas os furores da juventude impetuosa contrariavam essa ideia.
Observou mais um quadro: o lago de Carezza bem emoldurado por uma floresta de abetos vermelhos. Ao fundo, o maciço branco azulado de Latemar. Até podia ser mais
bonito do que o monte Pellegrino, mas ele não trocava.
O intercomunicador na mesa de cabeceira começou a grasnar de uma forma desagradável. Reconheceu imediatamente a voz de Frau Martina.
- Há uma chamada para si - anunciou. - Pode descer?
- Imediatamente. - Precipitou-se pelas escadas de madeira a pensar em don Calogero Costa. Frau Martina, com um sorriso, indicou-lhe o telefone do escritório com
o auscultador levantado.
- Estou - disse, à espera de ordens.
- Senhor Fiumara? - Não era a voz de barítono e decidida de Calò. Era uma voz de mulher, de timbre risonho.
- O próprio - respondeu, após alguns instantes de desorientação.
- Fala Karin Venier - apresentou-se.
- Muito prazer. - À aflição juntava-se agora a sensação de se sentir gozado.
- Fez boa viagem?
- Não me posso queixar.
- Está bem instalado no hotel?

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- Ótimamente.
Ouviu-a rir.
- Ao contrário daquilo que provavelmente pensa - explicou-lhe -, em certo sentido esta montanha assemelha-se à sua ilha. Nada acontece sem que eu saiba. Com uma
diferença: aqui o barão sou eu.
Era exatamente aquilo que Michele Fiumara percebia naquele momento. Os sorrisos vazios e estereotipados, a cordialidade ingénua, não excluíam uma atenção minuciosa
e uma rápida capacidade de comunicação.
- Sim, senhora - admitiu, à falta de melhor. Olhou em volta à procura de uma solução, mas encontrou o desenho de um cedro.
- Porque não vem ter connosco? - propôs amigavelmente. - Se temos de estar juntos, o melhor é fazê-lo sem dramas.
Era uma proposta concreta.
- Eu vou ter consigo, mas onde está? - Agora dependia dela em tudo.
- Frau Martina explica-lhe. - Aquela espécie de madre superiora que parecia um monumento de hospitalidade estava feita com Karin.
- Vou já. - Desligou. Enfiou uma camisola vermelha por cima da camisa nova e desceu até ao átrio.

Frau Martina, com o seu doce sorriso, estava à espera dele ao fundo das escadas de madeira com uma lanterna elétrica.
- O senhor não conhece bem o lugar - observou, ao mesmo tempo que lhe estendia a lanterna. - E aqui não há iluminação como na cidade.
Gostaria de lhe explicar que também para os seus lados a situação era a mesma, mas preferiu escutar os conselhos da senhora.
- Siga por aquele caminho - indicou-lhe. - Vai encontrar uma primeira casa. Continue até à bifurcação. Vire à esquerda e pare na segunda casa. É aí que está a Karin.
- Provavelmente esforçava-se por esconder um sorriso, mas ele apercebeu-se.
- Devo agradecer-lhe? - perguntou Michele que, apesar de tudo, se sentia traído.
- Não é rigorosamente necessário, mas se considerar oportuno...
Havia naquela voz segura um vago lamento, uma sombra de melancolia.
Caminhou com cautela ao longo da vereda, sobre um tapete de agulhas de coníferas, no meio de um perfume de resina e de flores selvagens. O feixe da lanterna modulava
sugestivos jogos de luz e de vez em quando

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esvoaçava um pássaro perturbado com aquela presença. Esquilos apressados escondiam-se com os seus medos.
Movia-se num sonho que nunca tinha sonhado, numa noite distante e desconhecida. Não se espantaria muito de acordar na sua casa, em pleno sol, rodeado pelo campo
árido.
Depois viu a luz que provinha de uma janela emoldurada de flores. Sobre o parapeito viu as duas raparigas que tinha seguido desde as primeiras luzes da madrugada:
uma ruiva e uma morena. Recordou a indicação do funcionário da bilheteira na estação do vale.
"Eu conheço a menina do cabelo vermelho", dissera-lhe. "É a Karin Venier. Nasceu lá em cima. Na casa da Ilse Klotz. A amiga dela não a conheço."
A outra era morena e tinha o sorriso prudente das mulheres meridionais.
- Está a ver como era fácil encontrar-nos? - disse Karin. - Entre.
Entrou imediatamente numa grande sala antiga, totalmente revestida de madeira, iluminada e aquecida por uma grande lareira. As duas mulheres estavam sentadas num
banco, de costas para a janela.
A ruiva indicou-lhe uma cadeira ao lado da mesa. Era uma mulher lindíssima, com uma pele de alabastro e uns olhos azuis cor de violeta que impunham respeito.
- Eu sou a Karin - apresentou-se. - Ela é a Rosalia. Podemos oferecer-lhe cidra, aguardente ou chá de rosas. O que prefere?
- Nada, obrigado. - Apenas desejava despertar daquele sonho humilhante.
- Então, senhor Fiumara - foi direta ao assunto -, o que é que pretendemos fazer?
Antes de mais, queria recuperar o controlo dos seus nervos.
- Sinceridade por sinceridade - respondeu -, sabem melhor do que eu o que devo fazer.
- Seguir-nos? - disse, irritada. - Proteger-nos? Mas isso é uma mania vossa, dos sicilianos! - exclamou. - São capazes de inventar um drama até neste paraíso.
- Eu cumpro ordens - admitiu. - Pessoalmente, tinha ficado em minha casa de boa vontade.
- Isso eu posso entender - concordou Karin.

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A única coisa que desejava verdadeiramente era ficar fora das intrigas, longe da tentação, do homem que apesar de tudo representava para ela uma poderosa atração.
Se assim não fosse, não teria sido necessário fugir.
- E então? - Michele Fiumara exprimiu em duas palavras um conceito que Karin tinha apreendido perfeitamente.
- Então diga a quem lhe deu este encargo desagradável - gritou, fitando-o com os seus olhos indignados - que a única coisa que desejamos é que nos deixem em paz.
Michele anuiu. Olhava alternadamente para uma e para outra. Rosalia ainda não tinha falado. Se pudesse escolher, a sua preferência iria para a rapariga silenciosa
de grandes olhos doces e assustados. Enquanto Karin era fria, enérgica, determinada e inatingível, a outra era doce, meiga e havia nos seus traços uma secreta tristeza
que ele conhecia bem.
- Porque é que não fazemos uma espécie de tratado de paz? - propôs a terna Rosalia.
Era uma proposta praticável que nem Karin nem Michele tinham tomado em consideração.
- Em que sentido? - perguntou Michele, desconfiado.
- Respeitarmo-nos - observou Rosalia. - Nós gozamos as nossas férias. E o senhor comporta-se como melhor lhe aprouver.
- E dão-me a vossa palavra de honra que não fogem? - Estava em jogo a sua reputação. As duas raparigas entreolharam-se e sorriram.
- É um passatempo divertido e novo - interveio Karin.
- Prometem? - repetiu Michele.
- Mas com certeza - disse Karin.
- No entanto - avisou com lealdade -, eu vou ter de telefonar todas as noites. E tenho de comunicar a don Calò o nosso acordo.
- Por mim, tudo bem - aceitou Rosalia.
- E a mim também não me incomoda nada. - Aquela proposta de Rosalia, que Michele Fiumara tinha aceitado prontamente, podia ter um desenvolvimento divertido.
O armistício estava terminado.
- Eu não a conhecia, menina Karin - disse Michele. - Como é que sabe o meu nome? - Ardia de vontade de saber.
- Frau Martina - respondeu Karin, a sorrir -, a diretora do hotel, é a minha mãe.

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Por amor de Bruno

Mister Hachette, o manager da IBB, estava radiante. Em Itália, seguindo as indicações de um dos grandes nomes da gastrenterologia, tinha resolvido o problema da
duodenite que o afligia há anos. Bruno tinha-lhe marcado uma consulta com o professor Luigi Barbara da clinica de Sant'Orsola, em Bolonha, que por aqueles dias se
encontrava de férias em Cortina. Tinha bastado ao ilustre clínico uma consulta conscienciosa para remover aquele doloroso problema mediante o uso correto de um novo
medicamento e dois ou três bons conselhos.
Parecia rejuvenescido e tinha recuperado plenamente a sua eficiência. O sorriso não precisava de ser forçado para emergir. Estava em São Francisco, no gabinete de
George Brian, sentado à frente dele.
- Uma intervenção perfeita, senador - congratulou-se. - Conseguiu aquilo em que falharam aqueles pataratas dos serviços de segurança. - O terrorista libanês que
Yussef lhe enviara estava agora bem protegido pelos homens da CIA.
- Foi uma operação feliz.
Não procurou esconder a satisfação. O seu coração maltratado não admitia jogos psicológicos de nenhum tipo. Por outro lado, com Mister Hachette podia dar-se ao luxo
de ser ele próprio.
- Na Casa Branca - retribuiu com a mesma sinceridade -, toda a gente o julgava fora de qualquer jogo. Até o presidente.
Sarah, a sua fiel secretária, ofereceu-lhes chá frio aromatizado com alperce. George sentia-se em forma e concluiu que a sinceridade era o melhor remédio. Estava
calor e o ar condicionado não funcionava por decreto dos médicos.

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- Há quanto tempo seguia aquela pista? - Mister Hachette bebeu um longo gole de chá.
O senador olhou para ele com simpatia, apesar de saber que ia desiludir as suas expectativas.
- Se eu contasse a verdade, ninguém ia acreditar em mim - disse. - Nem mesmo o senhor. Deixemos aos especialistas do ramo a liberdade de formular hipóteses fantasiosas
e, por isso mesmo, credíveis.
- A segurança do presidente está garantida - comentou mister Hachette, satisfeito.
- Era aquilo que eu desejava - rebateu. - Admitindo que o guarda-chuva protetor seja tão grande e tão sólido que garanta a segurança de Reagan. - Tinha pretendido
trocar a notícia do projeto louco de Kadhafi pela oferta de garantias para Bruno, que sozinho não poderia defender a estabilidade e a independência do Burhwana.
Mas isso Hachette já sabia e não valia a pena recordar-lho.
- Soube que o presidente o convidou para o próximo fim de semana felicitou-o. - Parece que agora já não pode passar sem o senhor.
- Se calhar o contrário é que é verdadeiro - esclareceu George. - Sou eu que não posso passar sem ele.
- O Bruno está suficientemente acautelado, parece-me. - Olhou com uma sombra de desconfiança para a secretária, que ordenava os papéis em cima da mesa.
Sarah apercebeu-se e despediu-se com um pretexto qualquer, para evitar que mister Hachette se sentisse embaraçado. O senador não tinha segredos para ela. Tinha conhecimento
de todos os pormenores, sabia do projeto homicida dos líbios, sabia que um nutrido contingente de "conselheiros" armados estava já no Burhwana para neutralizar um
eventual golpe de Estado.
- O meu receio - continuou Hachette, quando ficaram sós - é que a notícia transborde antes de se arranjarem novas provas.
- Os serviços de segurança - observou George - precisam de meses para documentar o plano terrorista. As diplomacias internacionais e a opinião pública querem elementos
seguros, provas certas. Não esqueçamos que o Kadhafi faz jogo pesado por conta dos soviéticos. - Obviamente, os americanos iam também expressar o seu reconhecimento
a Admad bin Yussef, artífice daquela clamorosa descoberta.

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- Os soviéticos! Estão a tOmar-se cada vez mais impopulares - comentou Hachette. - Têm os canhões apontados contra a Polónia, invadiram o Afeganistão, os seus submarinos
ameaçam a Europa e ao mesmo tempo jogam no tabuleiro de xadrez africano. Pelo menos metade dos vinte golpes de Estado tentados ou conseguidos nos últimos anos tem
a marca deles. Aquela política de desestabilização é um perigo para toda a gente.
- Ninguém me tira da cabeça que o atentado a João Paulo II... - O telefone em cima da mesa diante dos dois homens emitiu um ligeiro zumbido.
George Brian levantou o auscultador e ficou à escuta.
- Entretenha-o um momento, Sarah - ordenou, após alguns instantes. Depois voltou-se para o seu hóspede: - Faça saber aos seus amigos da IBB que eu não me vou esquecer
do apoio dado ao meu sobrinho. Ainda que seja supérfluo, exprimo-lhe a minha infinita gratidão.
- Limitei-me a seguir o meu instinto - observou - e as minhas simpatias. - Hachette compreendeu que tinha chegado o momento de se despedir.
Levantou-se e os dois homens apertaram as mãos.
- Pode passar a chamada - disse o senador a Sarah.
Estava emocionado e o seu coração deu uma cambalhota. Verificou se os comprimidos brancos estavam no seu lugar, no bolso da camisa. Estavam.
- Fala George Brian. - Largou o auscultador, segurando-o entre o ouvido e o ombro, e limpou as mãos com um lenço de papel. Do outro lado alguém fez um breve discurso
que o senador escutou atentamente.
- Comunique-lhe que eu vou ter com ele - consultou o relógio - dentro de exatamente uma hora.

Sarah conduziu-o de São Francisco a Saugalito. Tinham passado mais de trinta anos desde que percorrera aquela estrada pela última vez, no dia em que Annalisa o convidara
para o almoço e aquele encontro se concluíra com uma tragédia.
Tentou distrair-se daqueles longínquos pensamentos, concentrando-se numa atividade que de alguma forma o envolvia.

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- O Reagan acabou de recuperar do atentado de março - disse, dirigindo-se a Sarah - e já há uma nova ameaça a pesar sobre ele. Em maio tentaram assassinar o papa.
A quem vai tocar agora? Os homens políticos mais importantes do mundo estão em perigo. O Yussef prestou um grande serviço ao Reagan. Mas quantos serão os assassinos
que circulam no meio de nós?
Sarah escutava-o pacientemente, concordava com os argumentos do senador, mas sabia que o acontecimento que realmente o preocupava era aquele que se ia dar no fim
daquela breve viagem.
Sarah conduzia com habilidade e prudência.
- É melhor comprar umas rosas para a Mary Jane - propôs Sarah, sem desviar o olhar da estrada. - Ela aprecia - acrescentou.
- Oh, claro - disse ele, reconhecido.
Antes de entrar na Golden Gate Bridge, Sarah encostou ao passeio diante de uma grande loja de flores.
- Trato eu disto? - perguntou.
- Não, obrigado. - Era uma ocasião demasiado importante para a delegar mesmo à sua colaboradora mais fiável.
Sarah aprovou a sua decisão e ficou à espera dele no carro. Meia hora depois estavam na villa dos Brian, em Sausalito.
George saiu, segurando um sumptuoso ramo de rosas escarlates.
- Há uns tempos que não nos víamos em privado - brincou Philip, como nos velhos tempos -, mas estas rosas todas parecem-me excessivas. O irmão esperava-o, sorridente,
à entrada da villa.
Os dois homens apertaram as mãos e ao fim de tantos anos olharam-se com amizade.
- Onde está a tua adorável mulher? - perguntou George.
Sarah viu-os entrar em casa.
"Foi preciso o Bruno estar atrapalhado para aqueles dois fazerem as pazes", pensou Sarah. Philip Brian tinha tido um papel fundamental, durante aqueles dias, nas
negociações secretas para ajudar Bruno. Estava comovida. Assoou-se, deu a volta e seguiu a caminho de São Francisco.

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Em direção ao abismo

Françoise Blandin tinha a elegante frieza de um croupier, mas a sua beleza resplandecia como uma joia rara.
- Foi uma das tuas festas mais glamorosas - começou. Parecia que se tinham encontrado para sublinhar os aspetos faraónicos daquela luxuosa receção organizada a bordo
do Soraya.
- Uma coisa bem conseguida - replicou Omar Achmal que, se quisesse chegar com alguma dignidade ao cerne da questão, tinha de lhe fazer a vontade. Por outro lado,
os jornais tinham dedicado um amplo espaço ao acontecimento.
- Também é verdade a história do presente? - perguntou. Estavam sentados no escritório do árabe, a bordo do palácio flutuante.
Achmal tirou de uma gaveta da secretária um pequeno estojo de camurça e ofereceu-lho.
- Isto? - disse.
Françoise abriu-o: era uma reprodução do Soraya em ouro maciço, salpicada de diamantes. Os seus lábios abriram-se ligeiramente num sorriso gélido.
- Uma autêntica obra de arte - comentou com ar entendido.
- É uma modesta lembrança - respondeu Achmal.
- Posso ficar com ele? - perguntou, com um olhar ávido.
- Se quiseres. - O total desinteresse do árabe não correspondia ao seu verdadeiro estado de espírito.
- És sempre muito generoso. - Pouco antes, nos seus aposentos no Quisisana, tinha recebido nove ramos de orquídeas verdes amarrados com uma pulseira cravejada de
rubis. Havia também um bilhete assinado

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por Omar: Para a mais bela. Naquele momento a joia brilhava no pulso de Françoise.
- Era o mínimo que eu podia fazer por ti - disse com displicência quando ela lhe agradeceu.
- Eu apreciei sobretudo o bilhete - mentiu ela. Nos seus olhos frios passou um lampejo de cólera. Era muito supersticiosa, como todos os jogadores, e achava que
os rubis traziam sangue.
- És realmente a mais bela - declarou o árabe, ao mesmo tempo que um sorriso aflorava lentamente aos seus lábios sensuais.
Gostaria muito de ter por baixo dele aquela espécie de esfinge de sangue frio e expressão inexplicável, mas era demasiado inteligente para misturar trabalho e prazer.
Podia comprometer uma colaboração essencial com uma aproximação que ela não apreciaria com toda a certeza.
- Dito por ti é um duplo cumprimento.
Era perfeita. Trazia um tailleur de linho azul-escuro de corte masculino e uma blusa de seda branca fechada no pescoço por uma gravata de riscas azuis e brancas.
Parecia aquilo que era: uma autêntica mulher de negócios.
- Fico contente. - O árabe esperava que os preliminares se concluíssem assim.
- Eu acho que também tenho uma coisa agradável reservada para ti. Finalmente tinha introduzido o tema que lhe interessava.
- Ou seja? - A atenção libertava-se por todos os poros do seu rosto escuro.
- Acho que resolvi o teu problema - anuiu.
- Em dois dias? - O renegado estava apreensivo e desconfiado, mas não queria contrariá-la de forma nenhuma. Conhecia o valor de Françoise, tinha bem presente a situação
e não tinha alternativa. Não havia espaço para subtilezas: só podia acreditar ou não acreditar.
- Dois dias é muito tempo - replicou ela com severidade. - E eu, se me permites, gozo de um certo crédito.
- Permito, com certeza - apressou-se a responder, com a intenção de se fazer perdoar.
- Então não vale a pena tergiversar. - Mantinha a faca bem segura pelo cabo e isso dava-lhe uma notável vantagem.
- É isso mesmo que eu quero - rebateu o árabe, deixando de lado as cerimónias.

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Françoise deixou passar um tempo razoável para aguçar a curiosidade de Achmal.
- Há um grupo financeiro - revelou finalmente - disposto a comprar o teu pacote vazio por duzentos milhões de dólares.
A testa do renegado cobriu-se de suor.
- Quando? - A situação no Burhwana podia precipitar-se de um momento para o outro.
- Já - disse Françoise. - Os compradores estão dispostos a fechar o negócio quanto antes. E estão a morrer de vontade de entrar na posse do pacote de ações de controlo
da IBB mineira.
- Pagamento em dólares? - Era demasiado bom para ser verdadeiro.
- Pagamento em ações - esclareceu a mulher.
O árabe limpou o suor.
- Que ações?
- Da Tex Oil Enterprise.
A memória do renegado disparou como uma máquina de calcular ao identificar aquele nome. A sociedade era sólida.
- Tratamos diretamente com eles? - A prudência prevalecia sobre o entusiasmo.
- Tratamos com a Standard International S. A. - Era um diálogo seco. - Possui a maioria das ações de uma jazida petrolífera no Texas. A maioria das ações Tex Oil
contra o pacote de controlo da IBB mineira. Duzentos milhões de dólares contra duzentos milhões de dólares.

Omar Achmal passou uma mão pelo rosto.
- Quem é o homem destacado para negociar?
- O homem destacado para negociar é uma mulher - disse Françoise, pronunciando lentamente cada palavra.
- Uma mulher? - Estava decididamente desorientado. - Que mulher? - acrescentou.
- Eu - respondeu ela, olhando-o com firmeza.
O renegado deixou-se cair contra as costas da poltrona de couro, atirou a cabeça para trás e soltou uma gorgolejante gargalhada de alívio e suspeita. Com um lenço
imaculado, enxugou as lágrimas.
- Tínhamos a solução dentro de casa e não sabíamos - exclamou.
- Tu não sabias - objetou ela.

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- Pois - disse, recuperando o controlo. - Eu não sabia. De onde é que aparece essa sociedade?
- De longe. É uma sociedade anónima que tem sede nas ilhas Caimão, nas Caraíbas.
Achmal perguntou a si mesmo como é que uma mulherzinha conseguia manter aquela calma surpreendente. Provavelmente, dependia do facto de não ter nada a perder.
- As ações são sólidas. - Era uma pergunta e uma afirmação.
- Basta ver a Bolsa de Nova Iorque. - Já tinha verificado as últimas informações.
- E como é que obtiveste essa procuração para negociar? - Aquela fêmea danada nunca deixava de o surpreender.
- Isso são assuntos meus - respondeu secamente.
- Com certeza - observou, fazendo boa cara a um jogo que ainda não tinha percebido completamente. - Podemos tentar - decidiu. - E a tua intermediação quanto me custa?
- Metade do pacote de controlo da IBB mineira. - Tinha o mesmo tom frio e altivo de quando falava de acontecimentos mundanos.
Omar olhou para ela como se a visse pela primeira vez.
- Cem milhões de dólares? - Tinha um ar perplexo. - Estás a brincar tentou sorrir. - E porque é que eu havia de te dar cem milhões de dólares num negócio que é só
meu? Françoise inclinou-se para a frente de uma forma quase impercetível, ostentando o seu inquietante sorriso.
- Porque eu sei as mesmas coisas que tu sabes - começou a explicar com calma. - Porque eu soube estas coisas antes de ti. Sei que o Aschwinda está quase a morrer,
que se calhar já morreu. Sei que a oposição está pronta para o golpe e que o governo fantoche do Choo Awaba vai pedir a intervenção dos soviéticos. Sei que o pacote
de controlo da IBB mineira é um pacote vazio porque o destino do Burhwana está traçado. Sei que se os teus patrocinadores soubessem que lhes estás a fazer uma patifaria
te apagavam da face da Terra. Chega-te como justificação?
O renegado estava entre a espada e a parede. A desconfiança não fora suficiente.
- Já chega - deteve-a -, convenceste-me. - O veneno daquela víbora circulava-lhe no sangue. - E depois - concluiu de uma forma realista

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-, metade de duzentos milhões de dólares sempre é alguma coisa em relação ao total de nada. Honra ao mérito - admitiu, interpretando mal o papel de adversário leal.
- Onde e quando vai decorrer tecnicamente a operação? - Estavam no lance final.
- Na sede da sociedade nas ilhas Caimão ou a bordo do Soraya. Isso não é problema - disse.
- Quando? - perguntou Achmal.
- Pode ser amanhã.
- E os documentos?
- Vou pô-los em cima desta mesa para assinar no preciso momento em que a Leu Bank de Zurique me confirmar que tu fizeste uma transferência, para uma conta cifrada
que eu te vou dar, dos meus cem milhões de dólares.
Omar Achmal levantou-se.
- Puta nojenta! - gritou. - Então tu querias ser paga antes de o negócio estar concluído?
- Estou a ver que percebeste o sentido do discurso - felicitou-o. - Eu sou uma mulher prática e tu um homem sem escrúpulos. Se eu te deixasse levar a cabo a operação,
ias arranjar maneira de me tramar. Ou de me eliminar fisicamente. Estou errada?
- Achas que é fácil arranjar do pé para a mão cem milhões de dólares? - estava outra vez pronto para negociar. Não tinha escolha.
- Seria uma empresa árdua para uma pessoa qualquer - disse com uma voz melíflua -, mas não para o poderoso Omar Achmal.
Tinha perdido a batalha, mas não queria perder a guerra.
- Achas que a situação no Burhwana ainda se aguenta quatro ou cinco dias?
- Mas não mais - respondeu a sorrir.
Olhou para ela com ódio.
- Daqui a três dias aqui, a esta hora, com todos os documentos - capitulou. Entretanto, teria tempo de efetuar posteriores verificações e de se encontrar com os
seus advogados. Para juntar cem milhões de dólares tinha de se endividar até ao pescoço. Françoise Blandin levantou-se e saiu, depois de lhe ter dedicado o seu sorriso
gélido.

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O desconhecido

- Grüss Gott - cumprimentaram-no afavelmente os desconhecidos de calças curtas de couro com peito, camisas aos quadrados e mochila ao ombro.
- Gruscot - tinha aprendido a responder Michele Fiumara, que agora conhecia aquela ilha verdejante, desde o planalto do hotel ate as cabanas de Bären Bad e do jocher.
Aqueles sorrisos de circunstância e joviais comunicavam-lhe um sentimento onde se misturavam sinceridade e enfado. Certamente, o que quer que significasse aquele
cumprimento, parecia sincero e de bom augúrio.
Os funcionários do teleférico e o pessoal do hotel já o consideravam um cliente estimado.
Michele continuava a perguntar a si mesmo que sentido teria para aquela gente de rosto claro e cabelos loiros, faces rosadas e estômagos dilatados pela cerveja,
caminhar durante horas por caminhos de cabras em direção a uma pastagem, uma casa de madeira, uma nascente.
À noite chegavam à estação do teleférico mortos de cansaço, ruidosos e alegres, para descer novamente até ao vale com a perspetiva de voltar a percorrer no dia seguinte
o mesmo itinerário à procura de uma flor, de uma ilusão de liberdade.

Era uma maneira de se divertirem que transcendia a sua compreensão. Na sua ilha as pessoas cansavam-se, mas para arrancar à terra avara os meios de sobrevivência.
O empregado do bar do Hotel Vigiljoch, um homem de poucas palavras, explicara-lhe inutilmente: - São turistas. Gente em férias.

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- Mais uma razão para descansar - replicou Michele. Por muito que se esforçasse, continuava a não entender.
Todas as noites telefonava para Piazza Armerina para fazer o resumo do dia. E aquilo também era uma coisa que não entendia. Tinham-lhe pedido um favor e ele desempenhava
a sua tarefa com eficiência, desejando que a história acabasse depressa.
Sabia, no entanto, que quando a operação se concluísse regressaria a casa com uma ponta de nostalgia e sentia já um amargo de boca perante a ideia de não voltar
a ver a pequena Rosalia.
Aquela moreninha de simpático sotaque napolitano, de grandes olhos aveludados e melancólicos, estranha como ele àquela civilização do sorriso, dos coros, das bebidas
coletivas e das escaladas, tornara-se algo mais do que um simples ponto de referência. O seu corpo esguio de adolescente, a expressão arguta e triste de quem sofreu
muito, o sorriso inocente, suscitavam nele o desejo de a proteger, de a acariciar, um langor infinito, uma vontade irresistível de estar perto dela e de a olhar
em silêncio nos olhos.
Rosalia chegava com Karin de manhã, quando o primeiro sol dourava o terraço do hotel onde estavam dispostas as mesas para o pequeno-almoço. Frau Martina, com uma
solicitude maternal, servia-lhes grandes fatias de schwarzes Brot, um pão negro aromatizado, que eram barradas com manteiga, mel ou compota. Tomavam um café no qual
se misturava, como uma nuvem branca, a nata líquida contida num jarrinho.
Comiam todos juntos e de vez em quando Rosalia lançava uns olhares a Michele que o deixavam confuso, enquanto Karin e Frau Martina trocavam frases numa língua desconhecida,
pontuadas por gargalhadas alegres.
Depois as jovens dirigiam-se ao monte. Às vezes ele ia atrás delas, mas a maior parte das vezes ficava no terraço a apanhar sol, a gozar a paisagem e a observar
os turistas que, em grupos de vinte, subiam no teleférico que ao sol parecia de prata. Os excursionistas passavam ao lado do terraço para depois se dispersarem como
formigas multicolores nos caminhos dos bosques. À tarde iam os três para a piscina. Michele contemplava o corpo esguio e elegante de Karin, abrigada por um grande
guarda-sol, e admirava o físico sinuoso de Rosalia, que escurecia um pouco mais cada dia por efeito do sol. Rosalia era realmente uma criatura radiosa,

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enquanto Karin conservava o mistério de uma personalidade inacessível. Até os olhares de admiração dos homens pareciam não provocar nela qualquer tipo de reação.

Tinham passado alguns dias e Michele esperava, de um momento para o outro, ser chamado de volta à Sicília. O interesse de Calò pelas duas raparigas estava a esgotar-se,
ele sentia isso pelo tom que Calò assumia durante os habituais telefonemas do fim do dia.

Na tarde do quinto dia aconteceu um facto insólito e imprevisível que voltou a pôr tudo em causa. No relvado da piscina apresentou-se um jovem desconhecido no qual
Michele reconheceu todas as características do homem do Norte. Era alto, loiro, de pele clara, com uns grandes olhos azuis e uma musculatura harmoniosa de atleta.
Trazia um fato de banho que deixava adivinhar uma sólida virilidade.
Os homens olharam-no com inveja e as mulheres devoraram-no com os olhos. Michele não lhe teria dignado um olhar se o rapaz não se tivesse dirigido diretamente a
Karin, que estava a ler um livro.
O desconhecido inclinou-se cautelosamente sobre ela, abraçou-a e beijou-a nos cabelos. Michele levantou-se de um salto, pronto para intervir, mas Karin, ao reconhecer
o jovem, retribuiu afetuosamente o abraço. Entre eles passou uma torrente de palavras cordiais numa língua absurda e incompreensível para ele.
- Desculpa - disse Karin, a sorrir, dirigindo-se a Rosalia encontramo-nos para jantar. - Enfiou um roupão e dirigiu-se ao hotel com o recém-chegado. Caminhavam abraçados
e felizes. Michele preparava-se para os seguir, sentindo-se ridículo.
- Não se incomode - aconselhou Rosalia, tirando-o daquele embaraço.
- A Karin disse que nos encontrávamos para jantar. Por isso não vai fugir.
- Gostaria que ela não corresse riscos - esclareceu o siciliano.
Rosalia sorriu com uma insólita malícia.
- O que é isso, um ataque de ciúmes por conta de terceiros? - Referia-se evidentemente ao Barão.
- Não é essa a minha tarefa - respondeu, irritado. - Por mim, a sua amiga pode andar com todos os homens que quiser.
- Veja lá se não exagera - replicou Rosalia. - Durante todo este tempo, foi o primeiro homem que se aproximou dela.

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- Conhece-o?
- Objeção, meritíssimo - brincou Rosalia -, a pergunta não é pertinente.
- Só estava a pensar na segurança dela - desculpou-se corando. Quanto mais se mexia mais se enterrava no ridículo.
Rosalia convidou-o a sentar-se ao seu lado.
- Nesse sentido, não corre perigo nenhum - tranquilizou-o -, pode ficar sossegado.
Tinham sede e mandaram vir dois sumos de laranja.
- Eu nunca me tinha encontrado numa situação como esta - confessou-lhe.
- Faça como eu, que aprendi a não me espantar com nada. - Era uma sugestão correta e afetuosa.
- São muito amigas? - perguntou.
- Estou muito reconhecida à Karin. Ajudou-me e continua a ajudar-me a recuperar alguma confiança no dia de amanhã, a levantar-me do chão... - sorriu com amargura.
O empregado veio levantar os copos vazios.
- O que é que diz de nos vestirmos e irmos dar um passeio? - propôs Michele, quase hesitando. - Eu sinto-me tão bem contigo, Rosalia... Baixou os olhos e tocou delicadamente
com os dedos na mão dela.

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O telex

A bordo do Soraya o telex despertou. O tiquetaque arrancou o responsável pelas telecomunicações, Roger Genoux, a um sono leve mas cheio de sonhos. Era um francês
com cerca de 30 anos, falava quatro línguas incluindo o árabe e trabalhava com Omar Achmal há dez anos. Estava de serviço há dois dias, ancorado àquela máquina infernal
por uma ordem taxativa de Achmal: comunicar-lhe a qualquer hora do dia ou da noite todas as notícias que de alguma forma tivessem a ver com a África Austral e em
particular com o Burhwana.
Roger levantou-se da cadeira giratória sobre a qual dormitava, esfregou os olhos cansados e vermelhos e tentou focar a mensagem que se ia formando no papel branco.
Tinha diante dele um quadro enevoado e assustou-se, mas depois lembrou-se de que não tinha posto os óculos. Procurou-os em cima da mesa, pô-los e começou a ler:

United Press. Quinta-feira 27 de agosto Telegrama da agência de Umpote, Burhwana (UP) Golpe falhado no pequeno Estado da África Austral

Era a notícia de que estava à espera há quarenta e oito horas. Esticou a mão para um aparelho telefónico que estava em cima de um pequeno móvel ao lado do telex,
pegou no auscultador e carregou num botão vermelho.
- O que foi? - atendeu ao fim de alguns segundos a voz de Achmal.
- Notícias do Burhwana - comunicou-lhe o francês.
- Já aí vou - respondeu o árabe.

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Achmal entrou na pequena cabina onde estava entranhado o fumo de muitos cigarros. Trazia os cabelos desalinhados, vestia um pijama de seda amarelo, tinha o rosto
marcado pelo cansaço e calçava uns socos de madeira.
Omar começou a ler:

Chegou agora a notícia de uma tentativa de golpe no Burhwana. A operação preparada minuciosamente pela oposição foi neutralizada à nascença pelas tropas especiais
treinadas no Ocidente para a antiguerrilha. Fontes autorizadas confirmam a presença de conselheiros militares americanos. A detonação do golpe teria sido a notícia
recentemente difundida da morte do príncipe Aschwinda. O chefe do Estado independente da África Austral apareceu em público juntamente com o seu braço direito, Choo
Awaba, testemunhando com a sua imponente presença as suas excelentes condições de saúde.
Foi abortada pelas tropas de Umpote a tentativa de controlo do aeroporto, da rádio, da televisão e de outros centros nevrálgicos do país. Na capital reina a calma.
O cérebro da operação terá sido Choo Awaba, neutralizando os planos dos guerrilheiros com falsas notícias sobre a saúde do presidente.
Nas minas de diamantes do Burhwana, o maior recurso económico do país, improdutivas há alguns meses devido a um boicote internacional, o trabalho foi retomado em
pleno ritmo. Na Bolsa de Nova Iorque os operadores de todo o mundo observam com interesse as ações da IBB, a única sociedade ligada à exploração mineira daquele
Estado independente...

O renegado apoiou-se ao tampo da mesa.
- Como é possível? - murmurou e saiu da sala a cambalear.
Omar subiu de elevador até ao quarto. Olhou em volta, desesperado, como se visse aquele aposento pela primeira vez: as sedas, os brocados, as pinturas preciosas,
os móveis sumptuosos, tudo tinha algo de estranho, de maléfico.
- Estou perdido - disse, sentindo-se prisioneiro de um pesadelo.
Ia ter de se ver com os conselheiros da área soviética, que lhe tinham

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dado carta-branca e crédito ilimitado em troca do Burhwana. E sabia que não eram muito dados à compreensão.
Tinha-se desfeito do pacote de controlo da IBB mineira, considerando-o vazio, e afinal na abertura da Bolsa as ações iam surgir em ascensão.
Havia ainda os cem milhões de dólares transferidos para o Leu Bank de Zurique, para a conta de Françoise.
- Aquela puta nojenta! - recordou com rancor.
Todo o seu património estava ligado à operação Burhwana ou investido em países que sofriam a influência do Leste.
O único recurso com que poderia contar para renascer era a Tex Oil Enterprise. Se conseguisse convencer os seus patrocinadores de que não os tinha traído, de que
a situação do momento era o resultado do duplo jogo de Choo Awaba, que a partida podia ainda ser disputada, talvez lhe oferecessem uma possibilidade. A última.
Outras vagas o tinham derrubado e sempre conseguira emergir antes de se esgotar a reserva de oxigénio. Com o pacote maioritário da Tex Oil poderia manobrar em todos
os mercados e ter um largo crédito.
Viu as horas. No mercado de Nova Iorque a Bolsa estava quase a abrir.
- Ajuda-me a pôr-me apresentável - ordenou ao empregado que tinha acorrido A. sua chamada. - Mas com certeza - raciocinou -, uma batalha não é uma guerra.
Regressou ao telex, tentou sorrir a Roger Genoux e disse-lhe: - Vai descansar. Eu fico no teu lugar.
O francês olhou para ele por detrás das espessas lentes de míope.
- Obrigado - murmurou, incrédulo. Era a primeira vez que na voz gorgolejante de Achmal havia uma nota de simpatia. - Posso ir? - perguntou.
- Claro - respondeu o árabe.
- Em cima da mesa há mais comunicações sobre o Burhwana - avisou-o, antes de sair.
- Vou já ver. - Sentou-se à mesa, sem perder de vista as últimas notícias que o telex estava a bater.

Globe Press. Quinta-feira 27 de agosto. 9 horas. Abertura calma na Bolsa de Nova Iorque. Nenhum pormenor interessante quanto ao

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anúncio de que a taxa de desemprego desceu de 7,6 para 7,3 por cento. Início calmo. As contratações ressentem-se ainda do clima cansado do meio de agosto.

O telex calou-se. Omar observou aquela geringonça milagrosa que não diferia grande coisa de uma normalíssima máquina de escrever e começou a estudar as informações
relativas ao Burhwana que confirmavam as anteriores, enriquecendo o quadro com novos pormenores. A tentativa de golpe era o resultado de um projeto que tinha demorado
dois anos e deveria permitir ao imperialismo de Leste infiltrar-se no tecido conectivo do país, que oferecia avultados recursos e uma posição estratégica de primeiro
plano. Delineava-se a figura do príncipe Aschwinda, cuja política de equidistância dos blocos resultara vencedora. As minas continuariam a ser propriedade do Estado
e o fluxo vital seria garantido pela venda de diamantes através da IBB mineira, uma empresa financeira americana em concorrência com os grupos sul-africanos.
Uma outra informação fazia referência ao homem de negócios italo-americano, Bruno Brian, que, segundo opiniões credíveis, teria sido o marido da princesa assassinada
duas semanas atrás. Fazia-se finalmente alusão ao pequeno príncipe Sunny Brian Umpote, que tinha deixado a capital no avião do Barão em direção a um destino impreciso.
O renegado verificou com satisfação que o seu nome não estava envolvido, enquanto a agência dedicava espaço e relevo a um funcionário africano da polícia, Barthelemy,
que fora encontrado morto na sua residência na periferia da cidade: afirmava-se insistentemente que tinha estabelecido a ligação entre a oposição e os financiadores
do golpe de Estado. Achmal atirou os papéis para o lixo: não precisava de memórias escritas para se lembrar. Segurou o rosto com as mãos e ficou à espera. Os seus
amigos não iam tardar a dar sinais de vida. Perguntou a si mesmo se lhe iam dar tempo para se justificar. As probabilidades de o eliminarem sem uma explicação eram
elevadas, mas havia pelo menos uma possibilidade de reatar o diálogo. Tinha excelentes informações para oferecer em troca e bons projetos de reserva. Só Alá seria
o árbitro do seu destino. A máquina começou a martelar uma nova mensagem.
Achmal inclinou-se sobre o telex, interrogando-o como a um oráculo. Havia mais uma informação sobre o andamento da Bolsa de Nova Iorque.

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A Bolsa, que abriu num clima incerto, animou depois com as IBB mineiras após as notícias de estabilidade política no Burhwana. As IBB mineiras, que atualmente ganharam
três pontos sobre a cotação de ontem, continuam a subir.

Passaram-se alguns minutos de silêncio. Achmal continuava a observar com olhos febris. O telex recomeçou a bater:

O resto do mercado não regista variações substanciais, à exceção do colapso da Tex Oil, cujas ações estão a cair sem uma explicação plausível. Os operadores acompanham
o fenómeno com uma extrema atenção.

A cabina começou a girar vertiginosamente em volta de Achmal. O seu equilíbrio psicossomático tinha-se quebrado e o beduíno renegado da tribo dos Wahiba, o impiedoso
mediador de negócios, caiu desamparado como um animal atingido na testa, enquanto o telex continuava a inscrever friamente no papel a sua condenação.

Pareceu-lhe esbracejar no limo viscoso de um pântano do qual por um instante conseguiu reemergir.
- Não aconteceu nada - tranquilizou-o um jovem loiro cheio de saúde e eficiência. Era o médico do Soraya.
Achmal tentou falar, mas as palavras morriam-lhe nos lábios: tinha a língua grossa e a mente confusa.
- Está tudo bem, senhor - interveio o médico com autoridade profissional. - Teve um pequeno ataque - explicou. - A pressão está a voltar aos valores normais. Dei-lhe
uma injeção. Daqui a pouco vai dormir. Está a precisar. Amanhã vai estar novamente em forma.
- Amanhã? - balbuciou.
- Um tempo brevíssimo, como vê - sublinhou, satisfeito. - O trabalho, a partir de um certo limiar, torna-se causa de doença. Deixe-se estar.
O árabe arregalou os olhos, tentou levantar-se, mas o seu corpo pesava milhares de toneladas. Só mexer um dedo era uma ação impossível. E, no entanto, tinha de sair
daquela armadilha, tinha de apanhar aquela puta da Françoise, tinha de entrar em contacto com a Standard International S. A.,

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tinha de recuperar os seus dólares antes que se transformassem completamente em fumo. E aquele desgraçado daquele médico principescamente pago, em vez de o ajudar,
tinha-o drogado no momento em que precisava de todas as suas forças para se manter à tona. Fez ainda uma tentativa para voltar a si, mas só conseguiu enterrar-se
cada vez mais no limo viscoso do pântano do qual por um instante tinha conseguido emergir. Mergulhava inexoravelmente na escuridão sem fim com um pensamento na cabeça:
"Ilhas Caimão... Caraíbas..."
- Não pense em nada - aconselhou a voz calma do médico. - Deixe-se estar.
Tinha pensado vender um pacote e afinal tinha-o comprado. Depois a escuridão foi completa e o silêncio absoluto.

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EPÍLOGO

A matança

Don Calogero Costa foi acordado pelo toque insistente do telefone. Antes de atender consultou o relógio de pulso: passava pouco das três da tarde. Uma vela branca
deslizava preguiçosamente no mar enquadrado pela porta envidraçada. Retirou os pés da mesa onde os tinha esticado quando adormeceu, instalou-se melhor na poltrona,
tirou dos lábios a raiz de alcaçuz e depois levantou o auscultador.
- O que foi? - perguntou.
O porteiro do Hotel Villa Igiea disse em voz baixa: - Senhor Costa, chegou a pessoa que esperava. Posso mandar acompanhá-la até aí? Usava um tom deferente, reservado
às pessoas de respeito.
- A propósito - queixou-se -, o que é que se passa neste hotel?
Do outro lado, o homem, que esperava uma resposta sobre como deveria comportar-se, disse:
- Não percebo, senhor Costa.
- A casa de banho está desarrumada - gritou -, os móveis cheios de pó, o frigorífico está vazio, já para não falar num copo com uma marca de bâton.
- Estou consternado, senhor Costa. - E, no entanto, tinha recomendado à governanta que os aposentos de don Calogero estivessem em condições. Já não se podia confiar
em ninguém. O pó era quase inevitável: na ala este estavam há meses em curso os trabalhos de restauro, mas a casa de banho desarrumada e o bâton no copo eram inadmissíveis
para qualquer cliente, imagine-se para o lugar-tenente do Barão. - Vou tratar imediatamente do assunto - acrescentou.
- Deixa lá - disse, mais calmo, Calò. - Manda subir o hóspede.

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- E a bagagem? - O porteiro recordou que don Calogero Costa lhe tinha anunciado a sua partida.
- Manda descer - ordenou.
Foi A casa de banho para se refrescar, depois regressou à sala e instalou-se na poltrona acolhedora.
Ouviu bater à porta.
- Entre - trovejou.
Um instante depois, Omar Achmal estava em pé diante dele.
- Instale-se. - Indicou-lhe a poltrona diante da sua. E, uma vez que a surpresa parecia ter petrificado o árabe, acrescentou: - Por favor.
Achmal sentou-se sem pronunciar uma palavra, renunciando a qualquer tentativa de esconder a sua aflição. Não sabia quem ia encontrar naquele hotel, talvez o próprio
Kadhafi, mas nunca imaginaria ter de tratar o assunto com o lugar-tenente do Barão di Monreale.
- Estou pronto para escutar as suas propostas - arranjou coragem para pronunciar. Não tinha escolha.
Calò meteu na boca uma raiz de alcaçuz.
- Eu não tenho nada para lhe propor. - Fitava-o sem ódio, achava-o muito parecido com um coelho selvagem a tremer na sua toca, sem alternativa.
- Então para quê é esta cena? - perguntou, agarrando-se a um resíduo de orgulho.
- Só preciso de lhe fazer uma comunicação. - Cruzou as pernas, para ganhar tempo.
- Vamos lá ouvir essa comunicação. - Fosse como fosse, continuava a ser Omar Achmal.
- Isto é o fim da linha - sentenciou o gigante. - Chegou ao fim da sua viagem.
O suor humedeceu-lhe a testa e a palma das mãos.
- Só Alá pode sabê-lo. - Falava com esforço e em voz baixa, faltava-lhe a respiração.
- Faz alguma ideia do que é uma almadrava? - A voz de Calò era calma, serena, clara.
O esgar de perplexidade que se desenhou no rosto do árabe respondeu por ele.
- Devia imaginar que não soubesse - continuou Calò. - Mas os seus

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amigos líbios sabem. A almadrava é um labirinto de redes. Nós, sicilianos, somos mestres nesta pesca, que remonta ao tempo dos Fenícios.
- Não vim aqui para falar dos Fenícios - conseguiu replicar.
- O senhor está aqui para ouvir - avisou Calò, franzindo o sobrolho. - O senhor é prisioneiro da sua avidez, do seu cinismo. Eu organizei a armadilha, eu lancei
a isca e o senhor entrou na almadrava. Depois, o bando desta pesca, os tonnarotti, é assim que se chamam no meu dialeto, conduziu-o devagar, mas inexoravelmente,
em direção à bastardella. Que é a entrada da câmara da morte. O senhor, Omar Achmal, é apenas um atum preso na armadilha.
Os lábios do árabe tremiam visivelmente, mas não era tanto o medo que o fazia tremer mas a impotência perante o escárnio e o ultraje.
Calogero Costa recordou a pequena Rosalia e a doce Mahary e retomou o seu papel de justiceiro.
- Faça o que tem a fazer e acabe com isto - rendeu-se o árabe, num ímpeto de dignidade. Tinha mentido ao dizer que não sabia o que era uma almadrava. Tinha visto
uma matança e lembrava-se dos homens armados de ganchos e dos atuns arpoados que, num espaço cada vez mais pequeno, se contorciam no seu sangue, fazendo erguer os
barcos.
Era inútil perguntar àquele gigante de cabelos de prata quem eram os tonnarotti que o tinham empurrado para a câmara da morte. O esquema, que devia ter identificado
mais cedo, tornara-se de uma clareza extrema: os Brian, o sheik Yussef, o advogado Paolo Brancati, o advogado Werner Klammer, mister Hachette, o príncipe Aschwinda,
o seu braço direito, Choo Awaba, mademoiselle Françoise Blandin. Pronunciou aqueles nomes em voz alta, como num sonho.
- Esqueceu-se do nome do rais - recordou-lhe -, o nome do chefe dos pescadores. Esqueceu-se do meu nome, mister Achmal.
- Um siciliano contra um árabe - arranjou ainda força para sorrir.
Tinham-no apanhado numa ratoeira com uma admirável obra de arte de astúcia. Entrara no labirinto, assinando o contrato com Françoise, penetrara na área das ilhas
Caimão, um dos paraísos fiscais das Caraíbas, para descobrir que a Standard Entreprise, que tinha trocado o pacote maioritário da Tex Oil pelo pacote de controlo
da IBB mineira, se dissolvera tão depressa como se tinha constituído. Perseguira a ilusão de recuperar os seus dólares em Houston e em Paris, onde tinha sabido também

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que os poços texanos estavam em vias de extinção. E aquela informação, posta a circular na Bolsa, provocara a queda das ações.
- No entanto - sugerira-lhe um informador -, há uma pessoa disposta a negociar a liquidação daquele pacote vazio. - A última esperança estava A espera dele no Hotel
Villa Igiea de Palermo, na Sicilia.
No quarto número 266 encontrara don Calogero Costa.
- E agora? - perguntou com firmeza.
- Nada - disse Calò, ao mesmo tempo que se levantava. - Pode ir-se embora. A minha tarefa termina aqui - despediu-se.
Não havia necessidade de explicações: já estava morto. A riqueza que constituía a sua única defesa estava perdida para sempre. O rais empurrava-o para o canto mais
escuro da câmara da morte. Lá fora seria um cão vadio no meio de um bando de hienas prontas para o despedaçar.
Omar Achmal saiu do quarto a cambalear.
Calò ligou ao porteiro.
- O meu carro - ordenou. - Parto imediatamente.

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A máquina de café

Bruno Brian leu a notícia da morte de Omar Achmal nos jornais. Cada um dava uma versão diferente. O único ponto relativamente ao qual todos concordavam era a explosão
durante o voo do avião pessoal do árabe sobre o golfo de Sirte.
- Os cúmplices deram-lhe o golpe de misericórdia - disse Calò.
- É o que parece - replicou o Barão, sem interesse. Atirou o monte de jornais para cima de uma arca velha e foi como se atirasse para trás das costas um episódio
a esquecer.
Estavam em Milão, na cozinha do palácio da via Manzoni.
- O que foi? - perguntou Calò, enquanto preparava a máquina de café do costume.
- Nesta casa estou a dar-me conta de que o tempo passa. - Bruno vinha de Umpote, onde tinha voltado a abraçar o seu pequeno Sunny, definira os programas futuros
com Aschwinda e preparava agora o ambiente que deveria acolher o filho. Sunny, tal como ele, ia frequentar o liceu em Milão e, depois, a Universidade de Berkeley.
- Eu também me dou conta disso fora daqui - disse Calò, a sorrir.- A propósito - acrescentou -, estás mesmo decidido?
- Referes-te ao Sunny? - perguntou.
- Claro - confirmou -, e pergunto a mim mesmo se não seria mais prudente escolher um colégio suíço. Ou pensar na Califórnia. Apesar de a melhor solução ainda ser
a Sicília - sugeriu. - A ilha possui robustos anticorpos para se defender da ameaça terrorista.
- Eu acredito muito nesta cidade e neste país - disse Bruno. - Apesar

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de tudo. - Tinha vencido aquela obscura, sangrenta batalha do Burhwana, mas não ostentava o sorriso do triunfador.
Calò referiu-lhe isso.
- Parece que te falta o ar. - Sob um certo aspeto, sentia que tinha acertado no ponto fulcral.
- Acho que acontece sempre isso depois de um confronto - afirmou Bruno -, quer se ganhe, quer se perca. É a tensão que nos abandona.
Calò continuava às voltas com a sua velha geringonça e observava Bruno pelo canto do olho.
- Lembras-te, há vinte anos atrás? - Colocou a porção exata de café em pó no recipiente da máquina e pressionou ligeiramente com a colher.
- A minha cabeça é um arquivo - brincou.
Recordou a sua imagem aos 16 anos, desorientado com a sua primeira experiência sexual com a frenética e devota Lucilla, a mãe de Matteo, o seu melhor amigo. Calò
tinha-lhe lido o pensamento no olhar.
- Parece-me que querias casar com ela. - Carregou no botão e o gás acendeu-se.
- Até pensei em suicídio, agora me lembro - confessou, rindo de si mesmo.

- Que foi esconjurado por uma sanduíche - precisou Calò, rudemente.
- E por um bom conselho - recordou Bruno.
- Talvez. - Calò pousou com cautela a cafeteira sobre a chama. - Também queres? - perguntou.
O Barão negou com um gesto de cabeça.
- Disseste que a primeira vez é muito importante e que eu tinha tido a sorte de o fazer com a mulher certa. - Lembrava-se palavra por palavra.
- Talvez. - Calò ignorou-o com um ar ligeiramente matreiro.
A casa não tinha mudado muito desde os tempos da infância de Bruno, desde que Philip lha oferecera. Por outro lado, era uma daquelas casas que melhoram com o passar
dos anos. Fontana, um pintor artista e decorador, uma espécie de instituição para as mais importantes famílias milanesas, tratava da manutenção e conhecia a arte
de conservar os frescos das paredes, os estuques, os dourados. Por duas vezes tinham sido renovadas as cortinas e o revestimento das paredes. Bruno encostou-se ao
fogão a gás, acionou involuntariamente um mecanismo e a chama apagou-se.

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- Estas engenhocas diabólicas! - reagiu Calò bruscamente, apressando-se a reacender.
- Estraguei-te a obra de arte?
Calò fulminou-o com um olhar e retomou a tutela do seu fetiche. A cozinha, construída por Biraghi & Maggi, parecia a sala de comando de uma astronave: um frigorífico
com triturador de gelo e um lava-louça de aço luzidio com recipiente para lixo incorporado.
No meio de todas aquelas revolucionárias inovações, Calò continuava irremediavelmente fiel à sua velha máquina de café. A água começava a ferver e o vapor fumegava
na ponta do bico meio torto.
- Então, queres ou não queres? - Apagou o gás, retirou a cafeteira do lume e pousou-a na mesa para deixar filtrar a água.
- Sim, obrigado. - Sabia que lhe dava prazer. Escolheu de uma prateleira de madeira escura duas chávenas inglesas pintadas com flores e o açucareiro.
Calò começou a servir o café com uma atenção meticulosa, ao mesmo tempo que sobre o seu rosto de antigo guerreiro normando se espalhava uma profunda serenidade.
Bruno pôs açúcar na sua chávena.
- Há quantos anos é que tu fazes o café nessa espécie de tubo de fogão? - perguntou.
- Faz quarenta anos no Natal. - Nos seus olhos passou uma sombra de nostalgia. - Desde que a tua mãe ma deu.
- O que era a minha mãe para ti? - A pergunta queimava-o por dentro há anos, mas só naquele momento conseguiu formulá-la com naturalidade.
- Era um sonho - respondeu Calò com a mesma simplicidade.
- Tu amaste-a - insistiu Bruno.
O gigante anuiu com a grande cabeça de cabelos de prata.
- Na vida de um homem - disse, olhando-o diretamente nos olhos há amores impossíveis e amores possíveis. O meu era impossível. O teu não.
Mais uma vez, estava a ler a sua vida.
- Estás a falar de mim? - fingiu espantar-se.
Calò deu uma grande palmada na mesa e ficou furioso.
- Tu não gostas do meu café - disse, agressivo. - Preferes aquelas aguadilhas imundas que servem os americanos. Não vieste à cozinha para

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tomar um café, mas para saber da Karin. - Desta vez foi Bruno quem baixou a cabeça.
- Eu conheço-te bem, Bruno - continuou Calò. - Nunca acreditei na história da Mahary - acrescentou secamente. - Sim, casaste com ela, a tua maneira gostaste dela,
foste feliz com ela, deu-te um filho. Mas aquela relação não te impediu de dar umas voltas por esse mundo fora com outras mulheres. Mas desde que apareceu aquela
alemã de cabelos vermelhos ficaste cego, já não vês mais nada.
Era inútil fazer-se desentendido.
- Onde é que ela está agora? - perguntou Bruno simplesmente.
Calò acabou de tomar o café.
- No meio dos seus montes - disse -, naquela espécie de velha casa de madeira onde nasceu.
- E a rapariga que estava com ela? - quis saber.
- A Rosalia?
- Acho que é assim que se chama.
- Está na Sicilia. - Limpou os lábios com um guardanapo de papel. - Quando tivermos resolvido o problema da escola do Sunny, tenho de regressar a casa para ser padrinho
de casamento. Vai-se casar com o Michele Fiumara.
- Então ela está sozinha - constatou Bruno, alarmado.
- Mas não corre risco nenhum - respondeu Calò, com ironia. - Pelo menos no que diz respeito a integridade física.
- O que é que queres dizer? - desafiou-o.
- Nada. Mas eu no teu lugar ia dar uma espreitadela.
Não lhe comunicou que Michele Fiumara a tinha visto na companhia de um jovem alemão de aspeto muito atraente.

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Benno Steiner

O quarto destinado a Benno Steiner era um dos mais bonitos e mais amplos da ala antiga do hotel. O jovem loiro e atraente aproximou-se da janela. No terraço, sentada
a uma mesa, Karin alinhava sobre um cartão branco flores e folhas da montanha com a intenção de as deixar secar: estava a alisá-las e a espetá-las com pequenos alfinetes.
Estava magnífica, com os cabelos compridos e macios que passavam do loiro ao cobre. Vestia uma camisola branca da qual despontava a gola vermelha da camisa. Também
as calças eram brancas de veludo canelado tufadas no joelho, onde terminavam; calçava meias vermelhas e sapatos de camurça. Deu por ele à sua frente como o loiro
herói de uma saga nórdica e sorriu-lhe. O jovem abraçou-a e depois aquele encontro foi-se adensando de palavras e de sorrisos, revelando uma relação e uma atmosfera
de grande confiança.
- Também estou aí a ver uns trevos no meio das tuas descobertas - observou Benno, indicando o quadro de flores e folhas da montanha. Karin corou e reagiu nervosamente.
- O que é que isso quer dizer? - replicou, erguendo para ele os olhos azul-violeta.
- Nada - disse com ironia -, absolutamente nada. Porque não vamos até ao lago pescar trutas? - propôs.
Estava inexplicavelmente tensa, subitamente cansada e aborrecida.
- Prefiro ficar aqui - disse.
- Há alguma coisa que te entristeça? - O sorriso luminoso de Benno traduzia a sua disponibilidade. Um grupo multicolor de turistas saía do teleférico que acabava
de chegar.

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- Não tenho razões particulares para estar triste - agradeceu-lhe com um sorriso -, mas não me apetece fazer nada. Isto é, se calhar há uma razão - lembrou-se. -
Estamos no fim das férias.
- Também é verdade - admitiu Benno. - Eu vou voltar a ser médico e tu uma personagem internacional.
- Por favor - levantou a voz -, não me ponhas ao mesmo nível de certas pessoas.
- Continuas a pensar nisso? - Dava tiros no escuro, mas tinha a certeza de acertar no alvo.
Uma nuvem branca atenuou por poucos instantes a dourada intensidade do sol e a tristeza no rosto de Karin transformou-se em raiva.
- A mim parece-me que és tu quem pensa mais vezes nisso. - Mexeu os dedos atabalhoadamente e um trevo delicado rasgou-se.
- As doenças não se curam a esconder os sintomas. - Só queria ajudá-la a resolver o seu problema.
- Por favor, não vamos brincar aos médicos - censurou-o. - Estou apenas cansada, não me apetece fazer nada, não me apetece ir pescar trutas. E gostava que me deixassem
em paz. Amanhã recomeça o trabalho.
Benno acariciou-lhe os cabelos em sinal de paz.
- Se voltas para o escritório do Brancati, vais voltar a vê-lo. - Referia-se a Bruno Brian, sem possibilidade de equívoco.
Karin juntou as flores e as folhas no cartão branco, destruindo a sua bela composição floral.
- Talvez sim - admitiu - talvez não. - Benno era um mastim vestido de bom samaritano. Era melhor concordar com ele, tanto mais que o seu afeto e a sua boa-fé estavam
fora de questão.
- Mas tu - continuou a interrogá-la -, queres voltar a vê-lo?
Karin atirou o cabelo para trás e no seu olhar dardejou a indignação.
- Não! - disse com raiva. - De maneira nenhuma. Nunca mais o quero ver enquanto viver. É cínico, egoísta. Só ele existe. Quer ser consolado, aprovado e em troca
oferece os seus dons. Não partilha, não dá amor, paga! E eu odeio-o - murmurou, à beira das lágrimas. - A sua vida sentimental é uma corrida por etapas. E eu não
quero ser a pequena meta de uma longa corrida de que não vejo o fim.
- Talvez tenhas razão - admitiu Benno.
- Claro que tenho razão - disse Karin com uma graça que o fez sorrir.

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- Talvez. Mas então porque é que levas isto tão a peito? - Era implacável como um computador.
- É proibido levar as coisas a peito? - tentou calá-lo.
- É proibido mentir - censurou-a com severidade. - Eu sou médico, Karin, e os meus mestres ensinaram-me a sinceridade, sobretudo com nós mesmos. - Apertou-lhe os
ombros com um beijo. - Tens de admitir que o Bruno Brian se comportou de uma maneira bastante insólita para ser aquele homem cínico e egoísta que tu pintas.
- Só porque não me levou para a cama? - replicou, apontando-lhe o indicador.
- Podia ter tentado - disse Benno. - Estaria mais de acordo com a sua personagem. Mas comportou-se de uma forma muito correta.
Era verdade, mas Karin não queria admiti-lo.
- Vamos fazer uma coisa - propôs Benno, conciliador. - Amanhã eu volto para Innsbruck. Tenho de retomar o meu trabalho no hospital. Mas o pai está só. No fundo,
também é teu pai - acrescentou com severidade. - Talvez ele também tenha necessidade de usufruir da companhia de uma filha que nunca vê. Vem passar algum tempo connosco.
Karin via raramente Joseph Steiner, que numa longínqua noite de junho amara a sua mãe, enquanto na montanha ardiam as fogueiras de São João. Martina e Joseph Steiner,
os pais de Karin, tinham-se encontrado depois do processo, que se concluíra com a absolvição de Martina, mas nunca mais houve condições para constituírem juntos
uma família, apesar de ele estar viúvo e ela livre e desejável. Aquelas terríveis experiências tinham ensinado a Martina o prazer da moderação e o gosto do retraimento,
enquanto ele aprendera com os anos a apreciar as vantagens da independência, apesar de ter concedido imediatamente àquela filha, que nunca soubera que tinha, um
afeto profundo.
- Então - insistiu Benno -, queres vir passar algum tempo connosco?
- Não sei - respondeu Karin, perplexa. Estava cansada de fugir, até porque sabia que o desconforto estava dentro dela, o obstáculo morava nas regiões mais profundas
da sua personalidade.
Karin estava diante do meio-irmão, escutava-o, procurava rebater ponto a ponto os seus argumentos, mas na realidade o seu verdadeiro problema continuava sem solução.
- Ainda não me respondeste - disse Benno. - Queres vir a Innsbruck?

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- Não - afirmou com decisão. - Se tiveres uma doença não te curas a fugir.
- Isso quer dizer que o Bruno Brian está mais do que nunca dentro de ti e que continuas a levá-lo atrás para onde quer que vás. - Benno nunca tinha sido tão explícito
e as suas palavras tiveram o efeito de a desorientar.
- Queria ser livre nas minhas decisões - afirmou, corada, entre a cólera e a vergonha.
- Livre para arrumares a tua história com o Bruno Brian no armário, ao pé dos outros esqueletos do passado? - disse-lhe, provocando-a abertamente.
Karin ergueu uma mão, como se se estivesse a defender da violência daquelas palavras. Olhava para Benno enquanto lhe passavam pela memória as imagens de uma tragédia
longínqua: o seu quarto de Bolzano, o companheiro da mãe a levantar-lhe a saia e a esmagá-la e a violá-la sem piedade, sufocando os seus gritos de terror com uma
mão apertada contra a sua boca. Recordou-o em pé, com o sexo ainda sujo do seu sangue, enquanto subia as calças.
- Não! Isso não! - Desfez-se em lágrimas, ao mesmo tempo que cobria o rosto com as mãos. - Não aguento.
Benno acariciou-lhe os ombros com ternura.
- O que é que não aguentas?
- A relação com um homem. É repugnante.
Benno levantou-lhe o rosto com uma mão.
- É repugnante a violência que sofreste.
- Para mim acabou, Benno - disse, enquanto enxugava as lágrimas. Nunca mais vou conseguir ser uma mulher.
- Vives a tua desgraça de uma forma neurótica - tentou abaná-la, com palavras desprovidas de ternura. - Foste vítima de um acidente. Ponto final.
- Cada um escolhe viver segundo a sua própria inclinação - rebateu.
- Eu acho que tenho de escolher o mal menor: a solidão. Parece-me mais suportável.
- É nesse campo que eu não te acompanho - contrariou-a. - Não podes caminhar pelas estradas da vida conservando a intangibilidade da veste imaculada que confecionaste
por medida.

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Karin olhou para ele surpreendida. - Não te entendo - reagiu.
- Diz antes que não queres entender - censurou-a. - É claro que na tua casa de bonecas não há contaminações, mas há vazio, silêncio, a vertigem da solidão. Achas
que basta fechar os olhos para apagar a violência? Achas mesmo que basta tapar as orelhas para não ouvir?
- Tu vives noutra dimensão: os teus estudos, os teus doentes, a universidade. Vives num país tranquilo, tolerante. Não precisas de espaços protegidos. Eu conheço
um mundo onde as pessoas andam à facada para conseguirem chegar a algum sítio, onde o sucesso é a única medida para avaliar uma pessoa. O dinheiro e a intriga são
os escravos que abrem todas as portas.
Benno sorriu e nos seus olhos brilhou mais uma vez a ternura.
- Já não há, e que pena, ilhas felizes e paraísos protegidos. Porque a natureza humana é a mesma a todos os níveis e em todas as latitudes. E depois há uma contradição
no teu raciocínio - observou, irónico. - Pintas a sociedade como uma selva impiedosa e é a este bando de lobos que querias oferecer a tua pureza incontaminada. Que,
além do mais, é uma maneira de te pores um palmo acima da média.
- Estás a chamar-me presunçosa?
- Foste tu que disseste isso, minha pequena Karin - brincou. - Eu não confirmo nem desminto.
- Uma presunçosa! Uma insignificante, muito senhora do seu nariz, que apenas tem a sorte de ter um aspeto razoável.
- É uma abordagem errada - corrigiu-a Benno. - Mas tu às vezes tens prazer em te magoar. Tu não correspondes à personagem que sintetizaste com tanta brutalidade.
Tu sabes disso e eu também sei. Sabe-o a Martina, que guarda os teus segredos, sabe-o o Brancati, sabe-o o Bruno Brian, que provavelmente não te ama apenas por aquilo
que pareces. Porque o Barão sabe de ti muito mais coisas do que tu imaginas.
- O Barão - sublinhou com desprezo - é um cínico. Um homem impiedoso. Alguém que nasceu rico. Julga que pode comprar tudo com o dinheiro que tem. Eu não estou à
venda. Fui clara?
- Ponhamos as coisas assim - concordou ele, com um tom pacato. Mas então porque te zangas tanto? Porque foges? Porque passas os dias e as noites a pensar nele? Porque
é que a ideia do Bruno Brian se transformou numa obsessão?

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- São assuntos meus! - respondeu, zangada.
- Precisas de te libertar desse cinto de castidade que te oprime - disse Benno.
Eram mais ou menos as palavras que Bruno lhe tinha dirigido a bordo do Trifoglio em Saint-Tropez, e mais uma vez a raiva relampejou nos olhos imensos de Karin.
- Porque é que continuas a pensar naquele homem? - disse Benno, trazendo-a de volta à realidade.
- Porque o amo - confessou impetuosamente. - Apesar de tudo, estou apaixonada por ele.
- Finalmente! Então deixa-te ir. Não tenhas medo de arriscar. Tudo isso são pretextos para adiar uma prova que temes como o fogo!
- Detesto o teu cinismo - tentou ainda defender-se.
- Tu também estás apaixonada pelos defeitos dele - reforçou Benno. - Também gostas do personagem e estás apanhada pela lenda que o rodeia.
Karin corou violentamente ao recordar o encontro a bordo do Trifoglio, quando Bruno a tinha puxado contra o seu peito, lentamente, mas de uma forma decidida, e ela
se tinha deixado ir, abandonando-se a um homem pela primeira vez na sua vida.
- Não é verdade - disse devagar. - Talvez essas coisas me fascinassem no início. Mas depois... depois percebi que estava apaixonada.
- Então desce do pedestal. Deixa de fazer o papel da supermulher e tenta gostar também de ti mesma.
Da cabina do teleférico estava a sair outro grupo de turistas, mas desta vez daquela mancha abstrata emergiu uma figura que fez acelerar os batimentos do coração
de Karin. Ao observar aquele homem, que ia ganhando contornos precisos no meio da multidão, sentiu-se irremediavelmente estúpida, vazia, prisioneira de um feitiço.
- O que foi? - perguntou Benno, ao vê-la perturbada.
- Chegou - murmurou, enquanto continuava a fitar o prado.
- Quem? - perguntou Benno.
- O Barão.
Era sempre assim quando estava prestes a encontrar-se com Bruno: a mesma angústia extenuante, o mesmo aperto visceral, um mecanismo incontrolável, um emaranhado
de medo e de desejo, de amor e de ódio. E um prazer dolente que lhe atormentava o estômago.

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Finalmente, viu-o em pleno sol, estava a aproximar-se dela. Mais uma vez um fogo de artifício explodiu nos seus olhos e uma girândola de sensações começou a rodopiar-lhe
entre o coração e o cérebro. As pernas tremiam-lhe.
- Vim buscar-te - disse ele simplesmente, diante dela, fitando-a com os seus olhos cinzentos. - Desejo passar o resto da minha vida contigo.
Karin estava incapaz de pronunciar uma única palavra.
- Não tenhas medo. Vem - pediu Bruno. - O teleférico está quase a partir.
Karin levantou-se e foi atrás dele.
Benno viu-os caminhar em direção à pequena estação e não se espantou pelo facto de Karin não se ter sequer despedido dele.

 

 

                                                                  Sveva Casati Modignani

 

 

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