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O BARQUEIRO DO TIBRE / Adolfo de La Grange
O BARQUEIRO DO TIBRE / Adolfo de La Grange

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O BARQUEIRO DO TIBRE

 

           Roma – 476 DC

É a história de dois irmãos, Marcelo e Valéria, que eram da aristocracia romana, órfãos e abandonados pelo tio, se tornaram imaturos e fúteis. Quando seu tio falece, perdem todos os seus bens e vão viver na miséria. Tomam rumos diferentes: Valéria com a ajuda de pessoas abnegadas encontra seu caminho na fé e no amor cristão. E Marcelo vira traidor de Roma e alia-se a Alarico, rei dos Gôdos.

É também a história de São Jerônimo que nos dá exemplo de amor ao próximo.

Era um magnífico dia de outono, do ano de 408 de Cristo; o céu sorria, e os raios do sol refletiam-se nas águas alouradas do Tibre, onde, não longe da Ponte Palatina e justamente onde outrora se encontrava a ponte Sublícia , via-se uma barca nos moldes duma galézinha, que servia para transportar duma margem à outra do rio os habitantes do Aventino, que assim encurtavam um pouco o caminho.

No momento em que tem início a nossa narração, a barquinha     encontra-se amarrada a um poste de fer¬ro, fincado na margem lodosa do rio: um homem e um menino estavam sentados nela; o menino brin¬cava mergulhando uma vara n'água, o homem, sen¬tado na proa, de pernas cruzadas, tinha o cotovelo apoia¬do no joelho, a cabeça encostada sobre a mão direita. Parecia mais velho do que era na verdade, e seu rosto, outrora lindo, aparecia agora sulcado por rugas pro¬fundas. Vestia uma curta túnica de lã gris, que dei¬xava descobertos seus braços robustos e suas pernas musculosas; um boné, de forma cônica, da mesma cor da veste, descia-lhe até às sobrancelhas, e uma bolsa de pele pendia-lhe no lado esquerdo, segura por uma correia colocada em bandoleira.

Quedava-se mergulhado na sua meditação, imóvel como uma estátua, quando o menino gritou:

— Sérgio, Sérgio, uma matrona e um patrício es¬tão vindo para cá!

O barqueiro sobressaltou-se surpreendido, como se acordasse, depois começou a aprontar a barca.

Os dois que pretendiam atravessar o Tibre eram um moço de cerca de vinte e seis anos e uma jovem de não mais de vinte. Ambos ricamente trajados; a jovem trazia uma estola de seda branca, orlada de uma larga renda de prata; uma capa de fina lã carmesim cobria-lhe a cabeça, ondeando em amplas dobras so¬bre os ombros. Era de uma beleza excepcional; tinha cabelos castanhos, olhos muito negros, a tez alva como a neve e vermelha como a rosa, as feições perfeitas, e o rosto animado por uma expressão de alegria des¬preocupada.

O moço, fora as feições mais marcadas e viris, era o retrato perfeito da jovem; ele não vestia a toga, pois poucos, no inicio do quinto século,   usavam-na, e co¬meçava a desaparecer da indumentária romana. Nada mais havia de grande no luxo daquele tempo; havia apenas uma exibição de trapos dourados, pois se esbanjavam quantias enormes em sedas, rendas, pérolas; mas gastava-se pouquíssimo em objetos de arte. Era tão grande a mania de se vestir suntuosamente, que S. Jerônimo a flagelava em suas epístolas. Os verdadeiros cristãos vestiam-se com simplicidade decente; mas, apesar de ser a religião de Cristo a predominante, em Roma o número dos pagãos igualava o dos cristãos, não se tendo em conta os que, sem professar nenhuma religião, enfeitavam-se com o requinte afeminado dos idólatras.

O nosso moço então, ataviado como esses últimos, tinha uma túnica cor de amaranto, bordada com flores douradas; um cinto gemado apertava-lhe as costas del¬gadas como as de uma donzela; seus cabelos e barba recendiam a âmbar; grossos anéis faiscavam em seus dedos, e abanava-se com um leque, embora fosse outono.

Dois jovens escravos, vestidos fantasticamente, se¬guiam os donos e, para protegê-los do sol, cada um dele carregava uma sombrinha de seda.

A jovem precedia o irmão, e aproximava-se saltitando à barca; mas recuou em altiva atitude à vista do barqueiro, que, querendo ajudá-la a aproximar-se à borda, estendia-lhe a mão escura e calejada.

Sérgio reparou na descortês esquiva da patrícia e cruzou os braços no peito sorrindo ironicamente.

— Cuidado, Valéria, não é para se aproximar de¬masiado ao rio; o Tibre é uma fera que nunca devolve à presa — disse o moço vendo que a jovem se aproxi¬mava excessivamente à margem.

A jovem sorriu graciosamente, depois com um salto desceu à barca e sentou-se; o moço imitou-a, os escravos encolheram-se no fundo da embarcação.

O trajeto foi breve; logo a barca aproou na mar¬gem oposta; e os passageiros desceram e iam embora esquecendo a passagem devida ao barqueiro.

Sérgio não ligou com a coisa e com indiferença repunha no lugar os remos da barquinha, quando o menino gritou atrás dos jovens esquecidos, que se afastavam:

— Patrícios, não pagastes a passagem! Àquelas palavras a jovem virou-se e, depois de rir gostosamente, disse:

— Coitado do Marcelo, em toda parte os credo¬res te perseguem; mas fica sossegado, eu repararei a tua culpa.

Dizendo isso Valéria aproximou-se à barca e es¬tendeu a mãozinha para oferecer ao barqueiro uma moeda de prata.

— É mais do que me deves — disse o velho re¬pelindo bruscamente a alva mão que lhe apresentava o preço.

— Os patrícios só pagam com ouro e prata — disse a jovem atirando a moeda na barca.

Pela primeira vez Sérgio fitou a jovem, à qual até então olhara distraidamente, empalideceu e tremia qual vara verde. Permaneceu demoradamente imóvel como uma estátua de mármore, seguindo com o olhar a jovem que se afastava; depois enxugou o gélido suor que lhe orvalhava a testa e disse com voz comovida:

— O meu foi um sonho cruel; foi o grito da minha consciência.

— Sérgio, um patrício quer passar o rio — disse o menino apontando a margem oposta.

Sérgio enxugou uma lágrima que tremulava nas pálpebras, e, empurrando a barquinha, foi para a margem de onde viera.

Dessa vez um homem de idade avançada desceu e sentou-se devagar na barca, segurando na mão di¬reita um volumoso pergaminho enrolado.

Era ele de aparência muito severa e digna; ves¬tia uma comprida toga preta, recoberta em parte por uma túnica, conforme o uso dos gregos; no peito des¬cia-lhe a barba comprida e vasta, e seu rosto, macilento, era moreno como o de um árabe. Tinha testa espaçosa e seus olhos brilhavam dum fogo sobrenatural, como se aí resplandecesse o sumo gênio que lhe acla¬rava a mente.

Atravessado o rio, o homem de barba grisalha desceu a terra, e depois de entregar uma moedinha de cobre ao barqueiro, disse em tom compassivo:

— És velho, ó irmão, e tua profissão é dura; se quiseres, poderei empregar-te na casa duma sábia matrona, onde descansarás na tua velhice.

— Somente no túmulo hei de descansar — res¬pondeu Sérgio abruptamente.

O patrício não compreendeu o sentido daquelas palavras; e sendo recusada a sua oferta queria afas¬tar-se, quando, pensando melhor, voltou atrás para dizer:

— Estou com pressa e não me posso deter con¬tigo, mas, se precisares de ajuda e conselho, vai ao monte Aventino, à casa da patrícia Marcela, e chama por Jerônimo, o Dálmata.

— Jerônimo, Jerônimo — repetia o barqueiro, como a despertar na mente uma longínqua recorda¬ção; depois se sentou na barca, e até a noite trans¬portou duma margem para outra uma multidão de passageiros, quase todos plebeus, os quais vociferavam da melhor, atirando seus chistes a ele, que, com im¬passível seriedade, conduzia a barquinha.

Ao chegar da noite, Sérgio amarrou a barca à margem, fez a conta do que ganhara; depois colocou duas moedas no bolso e, dando o resto ao menino, disse:

— Leva esse dinheiro a tua mãe, e dize-lhe que, como sempre, reze a Deus por mim.

Sérgio olhou o menino que se afastava correndo; depois foi andando pelo bairro Aventino, mas logo parou diante da loja dum padeiro para comprar um daqueles pães pretos, chamados pão plebeu e sen¬tou-se à margem duma fonte situada aí perto. A luz do facho de resina do padeiro iluminava aquele pobre velho, que, cansado pelo trabalho do dia, matava a fome com um bocado de pão.

Enquanto o barqueiro consumia a sua frugal re¬feição, um jovem patrício, de alto talhe, vestido di¬ferentemente de seus contemporâneos, pois trazia a toga viril que não estava mais em moda, parou diante dele.

A sua fisionomia pálida tinha uma expressão de tristeza em contraste com a sua idade juvenil; e de¬pois de olhá-lo disse:

— Prosit, Sérgio; tu comes frugalmente como um filósofo grego.

— Agradecido, patrício Décio Fúlvio — respon¬deu Sérgio   levantando-se para cumprimentar o jovem.

— Que está fazendo a tua barca? Esta noite a deixaste mais tarde do que de costume! — continuou a dizer o patrício, obrigando o barqueiro a sentar-se de novo.

— Do levantar do sol até ao anoitecer sempre transportei pessoas duma margem para outra.

— Meu bom Sérgio, trabalhas demais, e quando a noite traz-te o descanso, hás de te sentir bem can¬sado.

— Quando chega a noite eu não sinto o cansaço dum dia trabalhoso, e alegro-me com o pensamento de que mais um dia transcorreu tirando-o da minha existência — disse o barqueiro com tristeza.

— Pobre velho! Desejas que a morte acabe com teus sofrimentos — acrescentou o patrício Décio Fúlvio.

— Faz muito tempo que a desejo, mas a cruel foge de mim — respondeu Sérgio sombriamente.

— Escuta, amigo — voltou a dizer o jovem sen¬tando-se na margem da fonte. — Eu também estou sozinho no mundo; não tenho parentes e tenho pou¬cos amigos. A solidão me pesa; vem comigo; morarás na minha casa e não precisarás mais levar uma vida tão penosa.

Ultrapassada a adolescência, os jovens deixavam a toga praetexta e vestiam a toga viril.

— Obrigado, patrício, tens um coração bondoso, mas eu não mereço a tua generosidade — disse Sérgio comovido.

— Ânimo! Vem, contar-me ás tuas desventuras e eu chorarei contigo — insistiu Décio com voz persuasiva.

O barqueiro levantou-se, como a querer afastar-se para esconder o pranto; depois, acalmando-se, disse:

— Não me fales nas minhas desventuras; não me perguntes quais foram, se não queres dilacerar o meu coração. Tu és o descendente duma nobre prosápia, não degeneraste de teus antepassados, pois que estendes as mãos ao pobre e não recusas chamá-lo amigo.

E depois de ter apertado a destra do jovem, Sérgio fugiu precipitadamente pela rua que levava à Porta Capena, deixando Décio Fúlvio surpreendido e descon¬tente com a recusa.

 

Deixando o barqueiro, o patrício Décio Fúlvio dirigiu-se para as encostas do Aventino; e parando no limiar duma casa de aparência modesta, empur¬rou a porta, e entrou no ambulacro, em cujo centro via-se escrito em letras cubitais: Cuidado com o cão. Do ambulacro duas portas levavam para o interior da casa; encostado a uma delas estava um servidor, que, vendo o jovem patrício, sorriu; e depois, indi¬cando uma larga escada de mármore, disse:

— Encontrarás a matrona no quarto branco, onde costuma receber os amigos.

O patrício subiu num relâmpago a escada; e de¬pois de ter atravessado diversas salas ornadas com muita simplicidade, parou no limiar do quarto a que os moradores da casa deram o nome de branco; e na verdade fazia jus àquele nome, porque brancas eram as paredes recobertas de estuque claríssimo. No forro, seguro por grossas vigas de madeira, entre um interstício e outro, havia esculturas de aves multicores, e o assoalho de mármore cândido parecia um espelho. Se o quarto se encontrava completamente desfornecido daqueles móveis preciosos que ornavam as habitações dos patrícios romanos, em compensa¬ção nele reinava a ordem mais perfeita e limpeza absoluta.

Uma matrona de idade madura e porte digno estava fiando à luz duma lâmpada de alabastro; ves¬tia uma estola de lã gris, guarnecida duma faixa preta, e trazia ao pescoço uma correntinha de prata, de que pendia uma cruzinha de madeira.

Ao ruído dos passos do moço, a matrona levan¬tou a cabeça; e pondo a destra sobre os cílios para proteger os olhos dos raios da luz, que lhe impediam de ver o patrício, começou a dizer sorrindo e com voz benévola:

— Bem-vindo Décio Fúlvio; julgava tivesses es¬quecido o caminho que conduz à minha casa.

— Não procurarei uma desculpa para a minha demorada ausência — respondeu Décio Fúlvio em tom faceiro, enquanto sentava-se ao lado da matrona.

— Estou brincando, Décio; e tu sabes que os filhos pródigos são bem recebidos em minha casa — respondeu a matrona; e recomeçando a fiar, acres¬centou: — és um moço sábio; Jerônimo fala freqüen¬temente de ti, e sei muito bem que, não seguindo o exemplo dos contemporâneos, desprezas as diversões levia¬nas e culpáveis.

— Não mereço, ó Asela, teu elogio — respondeu Décio modestamente.

Por um instante a matrona e o patrício ficaram calados; depois Asela observou:

— O tempo há de parecer-te muito curto, pois que bem o empregas.

— Não sempre; o estudo das leis romanas não é tão breve nem tão agradável como acreditas. Há momentos em que a minha imaginação juvenil en¬torpece no meio daqueles manuscritos poeirentos; e, jovem, na flor da vida, acho-me um velho decrépito.

Asela desviou o olhar do fuso, e encarou o jovem que pronunciara aquelas palavras em voz de profun¬da melancolia, e que continuava dizendo:

— O isolamento em que vivo é-me de peso; se tivesse um parente, a minha existência não seria tão monótona; mas estou só no mundo; meus contemporâneos zombam da minha seriedade; tenho que evitá-los por prudência, porque a paciência humana pode ser ven¬cida, e eu sou um homem, não um anjo. O meu recreio são as freqüentes conversas com Jerônimo; as suas palavras de sábio devolvem a calma ao meu co¬ração, mas nem sempre posso vê-lo. Todos me fogem; esta noite ofereci a minha casa a um pobre barqueiro e tive uma recusa...

— A companhia de um barqueiro não serviria lá para amenizar muito — disse Asela sorrindo.

— Estás enganada, porque ele tem a sabedoria de um homem de inteligência elevada — respondeu Décio.

— Onde o conheceste? — perguntou Asela.

— Dois anos transcorreram desde que o vi pela primeira vez. Estava atravessando o Tibre junto com uma matrona e um menino. O menino para olhar no rio caiu nele; eu queria salvá-lo, mais pronto do que eu, porém, o barqueiro atirou-se n'água e levou-o salvo à margem. A matrona queria recompensar ge¬nerosamente o velho, mas ele recusou rispidamente qualquer coisa. Desde aquele dia tornei-me seu ami¬go; a sua companhia ser-me-ia grata, mas parece que eu esteja fadado a viver só.

— O voto mais férvido da tua mãe era ver-te consagrado a Deus; mas, uma vez que não tens vo¬cação para o sacerdócio, não hás de forçar teus sen¬timentos; escolhe portanto uma virtuosa companheira e compartilha com ela a vida.

O patrício suspirou profundamente; depois, pondo a mão entre os cabelos morenos, começou a dizer como a procurar persuadir a si mesmo:

— Sim, o homem deve escolher uma companheira sábia e virtuosa; a existência transcorrida ao lado du¬ma mulher leviana deve ser insuportável... mas nem sempre o coração obedece aos ditames da razão.

— O coração — disse Asela abanando docemente a cabeça — o que tu chamas de coração é o grito das paixões rebeldes, mas a bondade divina deu ao homem o poder de dominá-las.

Décio abaixou a cabeça sobre o peito e ficou em silêncio; e a matrona, depondo numa mesa de mármo¬re a roca e o fuso, acrescentou:

— Ainda é cedo, mas eu deito-me logo para me levantar de madrugada.

O jovem compreendeu a despedida, e já estava de pé para ir embora, quando, voltando atrás, disse com hesitação:

— Queria confiar-te o segredo do meu coração... mas faltou-me a coragem.

— Fala filho; tudo o que te toca interessa-me mais do que pensas — respondeu Asela.

— Outra vez, outra vez — disse Décio saindo do quarto; e enquanto se afastava da casa da bondosa Asela, acrescentava, falando com seus botões:

— Ainda é cedo; os livros estão à minha espera; livros abençoados que expulsam da minha mente todo pensamento melancólico e afastam-me do presente, fazendo-me esquecer o mundo em que vivo!

Pronunciadas essas palavras, o patrício caminhou em silêncio; e logo chegou a uma rua espaçosa que do morro Aventino levava às encostas do morro Célio, onde ele morava. Caminhou ainda um pouco e che¬gou a uma casa magnífica, cujo vestíbulo, iluminado por numerosos fachos, resplandecia. Décio parou in¬deciso diante da porta que do vestíbulo conduzia à casa, é naquele instante a seus ouvidos chegou o har¬monioso preludiar duma citara. O som prosseguia, ora flébil e abafado, ora alto e vibrado, como se o músico quisesse romper as cordas do instrumento; aquela harmonia parecia o gemido plangente duma alma aflita ou o grito frenético da ebriedade mais desvairada.

Décio suspirou; e depois de um instante de inde¬cisão, não sabendo que fazer, entrou no pórtico que se abria, circundado por uma grandiosa colunata de pórfiro ornada com magníficas estátuas de bronze. Do pórtico uma larga escada levava ao andar superior, e naquela noite estava iluminada mais do que de cos¬tume por muitos círios, que ardiam em grandes candelabros de bronze dourado. Nos primeiros degraus da escada estavam sentados dois escravos vestidos de branco e coroados de flores, e um deles, vendo o pa¬trício, levantou-se e precedeu-o para anunciá-lo.

Décio Fúlvio seguia o escravo, que o fez atraves¬sar numerosos quartos, cujo luxo rivalizava com o das mais altas famílias patrícias. As paredes estavam to¬das recobertas por baixos relevos e pinturas mitoló¬gicas, e o pavimento de mosaico representava caçadas, lutas de gladiadores e jogos da naumaquia. A água jorrava em graciosas fontes de alabastro oriental, e em toda parte viam-se colossais estátuas gregas, ricos leitos no triclínio, mesas de madeira marchetadas de marfim ou prata e, finalmente, muitos objetos artísticos de alto custo e muitos móveis que a moda tornava de apre¬ciação.

Décio seguiu lentamente o servo e de sobrecenho olhava aquele luxo por ele bem conhecido, e que sem¬pre o chocava, ao refletir que duma hora para outra os que mergulhavam naquelas magnificências pode¬riam ser empurrados por implacáveis credores a morar numa choça miserável; e naquele momento mais do que nunca o chocava porque comparava aquele luxo voluptuoso com a casta simplicidade da casa de Asela.

Depois de atravessadas muitas salas, o servo levantou a cortina adamascada duma porta entreaberta, e acenou ao patrício para entrar no quarto contíguo. Aquele quarto era menor, mais suntuoso, porém, do que os outros, e estava impregnado de perfume de cinamono, tão forte que abafava a respiração de quem não estivesse acostumado. A jovem chamada Valéria, que vimos no capítulo precedente atravessar o rio, es¬tava deitada num leito macio; trajava uma comprida estola azul, bordada com flores brancas, colares   precio¬sos de pérolas orientais ornavam-lhe o pescoço, os bra¬ços, e um diadema de esmeraldas cingia-lhe os bastos cabelos castanhos.

Não longe da jovem estava, de pé, um anão, ves¬tido estranhamente, que abanava de vez em quando um leque de penas de pavão, para refrescar o rosto da sua senhora. O infeliz, para quem a natureza fora madrasta, tinha cabelos grisalhos, mas seu rosto era menos feio do que aparentava à primeira vista, já que a expressão de inteligência que brilhava em seus olhos diminuía a sua feiúra.

Uma escrava, sentada sobre uma almofada de púrpura, no chão, afinava a citara de Valéria, e três gaditanas , com os cabelos coroados de hera, estavam no meio do quarto prontas para começar a dança.

Vendo Décio, cujo rosto estava mais pálido que nunca, Valéria fez um gesto de arrufo; depois, sorrin¬do meio maliciosa, convidou o patrício a   sentar-se, e pegando a citara, preludiou a harmonia duma dança vivaz.

As gaditanas começaram a saltar, tendo compre¬endido a intenção da jovem brejeira, que queria des¬peitar Décio, sabendo que ele não gostava de danças; mas o patrício não se perturbava com aquilo, sério como sempre, permanecia de braços cruzados, fitando distraidamente as dançarinas; mas logo Valéria en¬fadou-se de tocar e, entregando a citara ao anão, deu ordem às gaditanas para descansarem; depois, virando-se para Décio, disse sarcasticamente:

— Não esperava a tua visita, ó sábio patrício, e à uma hora destas te julgava mergulhado em teus manuscritos poeirentos.

— Nunca se espera uma visita importuna; mas eu vim falar com teu irmão — respondeu Décio gelidamente.

— Não tens o dom de escolher o tempo propí¬cio; esta é a hora em que Marcelo senta-se à mesa, embora não tenha ainda voltado; mas não faz mal, tu ficarás em companhia dele, falando-lhe com o copo na mão.

— Agradeço-te, mas o que devo dizer a teu ir¬mão não pode ser dito num banquete — respondeu Décio com rispidez.

— Não duvido, uma vez que não costumas estar alegre — disse Valéria rindo; depois, freando o riso, acrescentou:

— És triste como um coveiro e falas sempre em morte; sê como eu: nunca penso nisso; se a parca quiser cortar o fio dos meus dias, tanto melhor, não verei essa minha brilhante cabeleira embranquecer, nem meu rosto tornar-se engelhado. No que vier depois não penso, para não me entristecer como acontece contigo, ó patrício.

— Longe esses funestos pensamentos — continuou Valéria, sacudindo a cabeça. — Sou moça, rica, um futuro feliz me espera, e...

As palavras de Valéria foram interrompidas por um lúgubre gemido produzido pela oscilação da citara, que o anão, distraído, deixara cair no chão.

Cheia de cólera, a jovem recolheu o alaúde para percutir com ele a cabeça do desgraçado anão; mas, dominando os nervos, envergonhou-se por ter-se aban¬donado assim à ira e, com mágoa infantil, desatou a chorar; depois, enxugando, às escondidas, as lágrimas, dirigiu-se a Décio, e disse-lhe grosseiramente:

— Marcelo demora mais do que de costume; te¬nhas paciência se quiseres esperá-lo.

Décio convenceu-se de que a sua presença era inoportuna para Valéria; ofendido, levantou-se com ex¬pressão de importância, e já estava para ir embora, quando na sala próxima ouviu-se o ruído de muitas vozes. Era Marcelo que, acompanhado por três jo¬vens patrícios, entrava no quarto.

Com aquele cavalheirismo próprio dos romanos ao falar com uma mulher, Marcelo aproximou-se à irmã para dizer-lhe:

— Nossos pais costumavam levar as sombras aos banquetes a que estivessem convidados, e eu os imito. Espero que minhas sombras ser-te-ão de agrado.

Valéria estendeu a destra em sinal de cortês sau¬dação; e Marcelo, reparando na presença de Décio Fúlvio, exclamou:

— Tu aqui, imberbe Platão? Que astro propício guiou-te até minha casa?

Décio não sorriu àquela facécia insípida; e, pon¬do a destra no ombro de Marcelo, disse com seriedade:

— Vem comigo, preciso falar-te.

Marcelo obedeceu a contragosto, porque o gênio severo de Décio impunha-lhe, malgrado seu, respeito.

Chegando à sala vizinha Décio parou e, olhando zangado o amigo, começou a dizer com tom de re¬preensão:

— Não te julgava capaz de expor tua irmã ao convívio dos teus amigos devassos.

Marcelo fremiu de indignação, empalideceu, e com voz rouca pela cólera respondeu;

— Tu me salvaste a vida, mas isso não te dá o direito de me ralhar como se fosse criança. Onde eu estou, minha irmã está segura, pois sei fazerem respeitá-la.

— Sim, mas conseguirás impedir que seus ouvi¬dos recebam as conversas que a embriaguez arrancará de vossos lábios? Poderás fazer com que aquela alma virgem não receba as impressões de vossas máximas depravadas?

Marcelo abaixou a cabeça e ficou pensativo; depois, esfregando a testa, balbuciou confuso:

— É verdade, tens razão; mas não acontecerá mais, juro.

— Escuta, — disse Décio — eu vim para falar-te, mas escolhi um momento impróprio; portanto, não quero mais me expor a importunar tua irmã. Amanhã, ao anoitecer, estarei esperando-te na minha casa; virás?

— Irei — respondeu Marcelo.

— Promete — insistiu Décio.

— Sim, sim, prometo — disse Marcelo com im¬paciência; depois, dando as costas ao amigo, voltou cantarolando para o quarto onde o esperavam os com¬panheiros de crápula.

— Somente a desgraça poderá corrigir aquele co¬ração leviano — dizia Décio, enquanto se afastava daquela casa, em que seus conselhos eram desprezados e sua presença indesejável.

 

Aproximava-se a noite; o céu estava escuro e cho¬via torrencialmente. Marcelo, fiel à promessa feita ao patrício Décio Fúlvio, saía de casa para ir ao encontro marcado, mas primeiro queria assistir a um banquete que um dos seus amigos fizera preparar numa taverna do morro Capitolino, e justamente na Rua Argilete.

As tavernas, além de ser lugar de reunião para os homens da plebe, serviam também para lugar de encontro dos patrícios, que aí se reuniam em turmas festivas. Eram também o mercado dos mascates que vendiam leques de penas de pavão, bolas de âmbar para refrescar as mãos e semelhantes bugigangas.

Marcelo caminhava apressadamente para pôr-se ao abrigo da chuva, e não demorou a chegar à taverna; iluminada por um facho de resina que ardia de¬baixo do oculiserium, que era uma espécie de tabuleta, onde estavam pintados em cores vivas os petiscos co¬zinhados na taberna. Marcelo descerrou os batentes semi-abertos duma portinhola estreita e baixa e en-trando num quarto muito pequeno foi recebido por alegre vozerio.

— Prosit, amigos, — disse Marcelo sentando diante da mesa onde estavam colocados muitos alimentos, com¬postos na maioria de ovos e carne salgada.

Esses alimentos constituíam o primeiro prato chamado gustatio porque serviam a solicitar o apetite.

Cinco moços folgazões como Marcelo estavam sen¬tados à mesa, e por extravagância vestiam trajes plebeus.

Uma lâmpada de bronze, segurada por uma cor¬rente de ferro, pendia do forro refletindo seus raios nos rostos dos convivas que a intemperança tornara pálido e chupados.

— Ao lugar de honra destinado ao pai do ban¬quete! — exclamaram os patrícios, apontando a Mar¬celo o lugar de distinção, isto é, aquele cuja parte vizinha não estava ocupada, uma vez que os convivas circundavam a mesa apenas de três lados.

Marcelo obedeceu rindo; e tomando com afetada gravidade uma taça cheia de vinho de Creta bebeu e depois disse:

— Faço jus à honra que me fazeis: um sábio como eu a merece.

— Colocamos-te aqui para que possas tombar mais folgadamente quando os vapores de Baco tiverem su¬bido ao teu cérebro — disse um dos patrícios apeli¬dado Epicuro.

— Estás enganado, meu amigo, pois esta noite hei de ir embora com a cabeça em juízo.

— Que importante negócio te espera?

— Tenho encontro marcado com um fabricante de sermões, um filósofo cristão, e seria ridículo se me apresentasse a ele cambaleando.

— Marcelo, bebe! Assim terás a inspiração filo¬sófica para uma peroração digna de Demóstenes so¬bre a intemperança! — gritou um dos crápulas.

As taças giraram, os jovens desordeiros bebiam como esponjas; aos poucos foram abandonando-se a uma alegria frenética. Davam gargalhadas e falavam alto; quem declamava uma sátira de Horácio, e quem, emborcando a copa na cabeça do vizinho, quebrava as taças e as ânforas. Era um barulho atordoador, uma orgia desbragada. A certa altura Epicuro saltou sobre a mesa, exclamando, enquanto levantava a copa cheia:

— Gozemos a vida, amigos; inebriemo-nos com os prazeres! Gozemos, pois, com o sobrevir da morte, tudo acaba, e depois o nada nos espera. Platão foi um vendedor de quimeras e os filósofos mentiram quando falaram da imortalidade da alma.

Epicuro calou-se, e no mesmo instante, sem que ninguém compreendesse a causa, ouviu-se um forte barulho; depois a escuridão mais completa invadiu a taverna.

Os convivas, querendo fugir, derrubaram os escanos em que estavam sentados; espavoridos, não sabiam o que acontecera; mas logo correu o dono do local e os servas e à luz de seus fachos viu-se Epicuro esten¬dido no chão, aturdido por um baque violento que o golpeara na têmpora: o crápula, gesticulando, fizera cair a lâmpada de bronze, que o ferira gravemente.

Os patrícios, atordoados, de olhos esbugalhados, fitavam seu amigo e Marcelo era o mais desvairado entre todos; parecia-lhe que o chão vacilasse debaixo de seus pés, e que o forro ondeasse prestes a desabar; faltava-lhe a respiração, e sentindo necessidade de ar precipitou-se para fora. A cena a que assistira, o vinho que bebera, descompunha as suas idéias de tal forma que ele não sabia mais em que mundo se en¬contrava; o ar fresco da noite, em lugar de abrandar a sua ebriedade, aumentava-a; todavia queria voltar para casa, mas as pernas não obedeciam à vontade, fazendo-o cambalear dum lado para outro da rua. Por muito tempo o desgraçado vagueou nas trevas da noite sem encontrar uma mão piedosa que o amparas¬se, pois as vitimas da intemperança despertam mais desprezo do que piedade. Finalmente chegou à ponte Palatina e não podendo prosseguir porque os joelhos se lhes dobravam, aproximou-se ao parapeito; subiu nele penosamente para ai se deitar, e, com a insensatez dos bêbedos, adormeceu a beira do precipício!

A noite era tão escura e fazia mais de uma hora que Marcelo dormia de um sono agitado, quando um homem passou pela ponte, e, justamente no instante em que chegava perto do patrício, um relâmpago rasgou as trevas.

— Esse é louco varrido — disse o desconhecido, aproximando-se a Marcelo, quando o jovem, virando-se de lado, caiu no Tibre.

Rápido como um raio o desconhecido jogou-se nas águas, animado pelo impulso duma alma generosa que queria salvar a vida dum homem mesmo a preço da sua.

A correnteza arrastava a presa: se o homem de¬morasse um átimo, Marcelo estaria perdido para sem¬pre. Os relâmpagos sucediam-se com mais freqüência enquanto o desconhecido fazia esforços inauditos; pa¬recia que a Providência divina dava-lhe vigor e protegia quem se expunha daquela maneira, não para conseguir a aclamação da multidão presente, e nem por desejo de recompensa. As trevas duma noite borrascosa, ilu¬minadas apenas pelos relâmpagos, envolviam os dois, um, arrastado, semimorto, pelas águas, e o outro, que o encalçava com a energia dum provecto nadador; mas o coração deste último palpitava com violência, faltava-lhe o fôlego, e inutilmente quis agarrar a víti¬ma, que um redemoinho estava para lhe roubar. O desespero deu-lhe novo alento; do profundo da alma invocou a misericórdia divina. Deus ouviu a sua ora¬ção; o nadador deu um vigoroso arranco para a frente, uma exclamação de júbilo saiu de seus lábias: sua mão aferrara a veste do afogado!

Pouco depois o nadador deitava Marcelo na mar¬gem do rio e, exausto, tintando de frio, sentava-se ao seu lado dizendo:

— O infeliz está morto, meus esforços foram bal¬dados; Deus não quis que eu salvasse a vida do meu semelhante...

Naquele instante Marcelo moveu-se e deu um fraco gemido.

— Ele vive, mas pode morrer por falta de ajuda — disse o nadador levantando-se com ímpeto; depois, batendo-se na cabeça, como se movido por improvisa inspiração, tomou o desacordado em seus braços e, ca-minhando ligeiro como se não carregasse um corpo hu¬mano, depois de ter percorrido muitas ruas tortuosas do Aventino, chegou ao monte Célio, e bateu à porta duma casinha, que, com certeza, não demonstrava a riqueza do proprietário.

Pouco depois ouviu-se o murmúrio de duas vozes. A porta abriu-se e Décio, acompanhado pelo homem de aspecto venerando que dissera ao barqueiro para chamar por Jerônimo, o Dálmata, apresentou-se na soleira.

— Meu Deus, está morto! — gritou Décio reco¬nhecendo o rosto lívido de Marcelo à fraca luz de um lume.

— Não, ainda não está morto — respondeu o nadador.

Décio emitiu uma exclamação de surpresa ao re¬conhecer o barqueiro do Tibre; depois tomou em seus braços o irmão de Valéria, levou-o para um quartinho abarrotado de grossos volumes e deitou-o sobre uma pequena cama.

O venerando homem e Sérgio seguiram Décio Fúlvio. O primeiro estava atarefado com o moribundo, esfregando-lhe os pés com um paninho de lã, e o se¬gundo, imóvel, com o olhar cravado no rosto de Marcelo, parecia uma estátua de mármore.

— Como é que esse desgraçado caiu no Tibre? — perguntou Décio.

Sérgio não ouviu a pergunta e continuou mergu¬lhado no silêncio mais sombrio.

— Responde, como conseguiste salvá-lo? — insis¬tiu Décio, sacudindo o braço do barqueiro.

— Estava dormindo no parapeito da ponte Palatina; vi-o cair e precipitei-me para salvá-lo — respon¬deu Sérgio.

— Infeliz! Provavelmente estava voltando duma orgia e a embriaguez fê-lo cair — exclamou Décio dolorosamente.

Marcelo continuava sem sentidos, imóvel; inutil¬mente o esfregavam da cabeça aos pés; seus membros permaneciam gélidos, entorpecidos. De repente emi¬tiu um fraco gemido, depois ficou imóvel como um cadáver.

— Morreu. Ó Jerônimo, reza ao Todo-poderoso para que este coitado não morra em pecado, caso es¬teja vivo — exclamou Décio aflito.

Uma expressão de melancolia fugaz sombreou o rosto de Jerônimo, depois um raio de fé divina brilhou em seus olhos; aproximando-se à cama estendeu os braços pondo ambas as mãos sobre os negros cabelos de Marcelo e, com a cabeça voltada para o céu, disse em fervorosa oração:

— Eterno Deus, não o castigues com teu furor, não o corrijas com a tua ira.

— Redentor dos homens, escuta a oração de teu servo — disse Décio ajoelhando-se.

Também Sérgio dobrou maquinalmente os joelhos, mas seus lábios permaneceram mudos.

A pálida luz da lâmpada iluminava aquela cena solene e refletia-se na alta e majestosa figura de Je¬rônimo, que naquele momento era mais imponente do que nunca.

De repente Marcelo abanou os braços como se qui¬sesse nadar, depois suspirou mais vezes e virou-se dum lado.

— Sê bendito, Deus Todo-poderoso, — disse Je¬rônimo unindo as mãos com inefável gratidão.

— Sê bendito para sempre — acrescentou Décio levantando-se cheio de gratidão. Aos poucos Marcelo recobrava os sentidos, e Jerônimo, acompanhando a melhoria, sorria com doçura angelical.

Sérgio parecia indiferente a tudo, mergulhado nu¬ma apatia surpreendente; molhado da cabeça aos pés, não sentia o frio causado pelos vestidos ensopados, e fitava a cama de Marcelo com os olhos esbugalhados.

Até que o irmão de Valéria estivera em perigo de vida, todos os cuidados de Jerônimo e Décio tinham sido absorvidos por ele; mas em seguida, Jerônimo quis ocupar-se do barqueiro e levado pela caridade cristã, sua principal virtude, disse-lhe:

— Estás tiritando de frio; vem comigo, enxugar-te-ei.

Sérgio obedeceu e, depois de ter vestido uma toga de Décio, foi interrogado por Jerônimo:

— Como se chama aquele que salva este de morte horrível?

— Não sei — respondeu o barqueiro.

— E para salvar um desconhecido expuseste a tua vida? — observou Jerônimo comovido.

— Fiz a minha obrigação — disse Sérgio fria¬mente.

— Fizeste mais do que tua obrigação! — excla¬mou Jerônimo; depois, estendendo a destra para o ve¬lho barqueiro, continuou: — Abaixa a testa, homem generoso, em nome do Todo-poderoso recebe a bênção dum ministro da Igreja de Cristo.

Uma expressão indefinível alterou o rosto de Sér¬gio; uma lágrima desceu de seus olhos riscando lentamente a face rugosa; abaixou a cabeça no peito e fez um movimento como para se ajoelhar, mas, levantando-se de supetão, cobriu o rosto com as mãos, exclamando:

— Não me abençoes, não o mereço! — Depois fugiu e, correndo como se suas pernas tivessem a elas¬ticidade das de um rapaz de dezesseis anos, abandonou a casa do patrício Décio Fúlvio.

Vivamente surpreendido e comovido pelo repenti¬no desaparecimento de Sérgio, Jerônimo sentou-se so¬bre um escabelo de pedra e abandonou-se a uma me¬lancólica meditação.

O coração de Jerônimo transbordava de ternura para com os infelizes. Odiava a culpa com toda a força duma alma eminentemente virtuosa, mas compa¬decia dos culpados e com doces palavras reconduzia-os ao reto caminho; até lá a vida do sábio doutor da Igreja estava semeada de obras caridosas e pias. Per¬tencendo a nobre família de Estridônia, perto de Aquiléia, ainda muito novo foi enviado a Roma pelo pai para aperfeiçoar-se nos estudos, e teve como mestre o célebre gramático Donato. Seus progressos foram     rá¬pidos e a sua extraordinária eloqüência arrebatava to-dos os que o ouviam. Desejoso de adquirir novos conhecimentos, quis viajar em países distantes; de volta ficou várias anos em Roma, depois partiu para o Oriente e retirou-se ao deserto de Cálcides, que di¬vide a Arábia da Síria, onde viveu quatro anos na mais austera penitência. Com a saúde abalada foi obrigado a deixar o deserto e estabeleceu-se em Belém, onde escreveu muitas daquelas obras que chegariam até nós em glória da Igreja. Naqueles tempos ho¬mens insignes pela sabedoria não se esquivaram de pedir conselho ao anacoreta de Cálcides, que, sempre humilde e piedoso, sofria por ser tão estimado. O Papa Dâmaso I, para acabar com o cisma de Antioquia, convocou um Concilio, a que foi chamado Je¬rônimo; depois teve que ficar em Roma para fazer a vontade do Santo Pontífice que muito o estimava. Dotado de caráter enérgico e severo, pregava e escre¬via continuamente contra a moleza e a depravação dos costumes daquele tempo, de maneira que a sua lin¬guagem franca atraiu-lhe o ódio de todos os malvados que, não podendo vingar-se de outra forma, calunia¬vam-no arremessando-se contra ele com ímpios libelos. Mas que adianta o ódio dos maus contra os protegidos de Deus? Venerado pelos bons, o nome do santo dou¬tor atravessaria os séculos cingido por uma auréola de admiração e de glória!

Logo de volta a Roma, Jerônimo encontrou Décio enquanto chorava no túmulo da mãe, falecida poucos diais antes; Jerônimo apiedou-se e confortou-o falando-lhe de uma vida melhor onde se encontram os que se amaram; e o santo que, para consolar uma matro¬na, dissera: "Não é bom consolador quem não souber chorar e falar ao mesmo tempo e cujo ânimo não sente a dor que pretende aliviar", chorou com Décio. As palavras de Jerônimo consolaram o coração aflito do jovem patrício, que, desde aquele dia, sempre demons¬trou a maior admiração para o santo doutor, que, amando-o como a um filho, ia freqüentemente à sua pobre casa para animá-lo na prática das virtudes cristãs.

Jerônimo continuava pensativo no quarto onde o deixara o barqueiro, quando apareceu Décio para lhe dizer que Marcelo adormecera placidamente.

A alegria de Décio testemunhava como ele amara o jovem libertino; Jerônimo, surpreso, disse-lhe sor¬rindo:

— Não sabia que tivesses um amigo tão querido.

— Nunca me atrevi a falar-te dele porque Mar¬celo é um daqueles patrícios cuja existência é uma orgia contínua; a virtude não morreu completamente no seu coração, mas dorme um sono profundo. Já faz três anos desde que, passando uma noite por um dos mais remotos becos da Suburra, vi-o assaltado por quatro malfeitores, que queriam matá-lo; corri a seu socorro e desde aquele tempo iniciou-se a nossa amizade. Os costumes de Marcelo são diferentes dos meus; órfão, não quer dar ouvidos aos meus conselhos, ele está ro¬deado por uma turma de parasitas, que o arrastam a se enfraquecer cada dia mais. Infelizmente não está sozinho a caminhar à beira do precipício, e arrasta uma jovem, cujo ânimo altivo impediu sucumbir ao mau exemplo... De uma hora para outra uma multidão de credores desapiedados pode jogá-lo na miséria; e então que irá fazer, transviado como é por uma exis¬tência epicuréia?

— Haverá de corrigir-se; em todo caso, porém, é preciso salvar aquela infeliz jovem dos perigos que a rodeiam — disse Jerônimo.

— Salvá-la é o meu desejo mais ardente! — ex¬clamou Décio com exaltação.

— No entanto rezemos a Deus por eles; mas é tarde — continuou Jerônimo; — deita-te na mesa, porque na tua casa há só uma cama! Eu ficarei ao lado do teu amigo!

— Como poderia dormir sabendo que tu estás ve¬lando? — respondeu Décio, não querendo deitar-se.

— Faze o que eu disse; na tua idade o sono é necessário. Eu estou acostumado a velar, e as horas mais felizes da minha vida são as em que, sozinho, no silêncio da noite, meu espírito pode elevar-se até.

A contragosto Décio obedeceu à ordem do vene¬rando homem, e deitado sobre uma dura mesa de már¬more, não podendo dormir, olhava para o quarto con¬tíguo onde Jerônimo, sentado perto da cama de Mar¬celo, estava completamente absorvido numa fervorosa oração.

 

Três dias depois dos acontecimentos que acabamos de narrar, Marcelo estava deitado no quarto de Valé¬ria; estava ainda pálido, mas recobrara parcialmente as forças e, com a leviandade do seu caráter, ria do perigo por que passara, propondo-se contá-lo naquela mesma noite a seus amigos na taberna da Rua Argilete.

Valéria encontrava-se perto do irmão e brincava com um macaquinho que pulara no seu regaço, e ria puerilmente percutindo-o com um leque de marfim.

Os dois jovens estavam enfadados e não sabiam que fazer quando não estavam rodeados pelos parasi¬tas que devoravam seus jantares. Abandonados a si mesmos, Valéria e Marcelo eram mais dignos de compaixão do que de repreensão; nascidos em Roma, fica¬ram órfãos de pai na infância; pouco depois morrera também a mãe e antes de morrer ela escrevera ao único irmão que morava na Dalmácia, confiando-lhe as suas criaturas que, por enquanto, deixava aos cui¬dados do anão, incumbindo-o de levar as crianças ao tio.

O irmão da finada era um moço devasso que não suportou a presença dos órfãozinhos. Para livrar-se deles, depois de alguns anos, reenviou-os a Roma com a desculpa de que numa cidadezinha da Dalmácia não era possível educá-los conforme as exigências do seu nascimento. Por isso fez vender a casa onde nasce¬ram para comprar outra maior e mais faustuosa; e querendo que Marcelo e Valéria usassem seu nome de família, adotou-os e de longe enviava-lhes todos os meses uma vultuosa quantia para que se mantivessem à altura da sua posição social.

Não tendo guia, os dois jovens cresceram à mercê de seus caprichos, posto que, a não ser o anão que nunca os abandonara, ninguém pensava neles. Num primeiro tempo o dinheiro do tio bastara às necessi¬dades de Marcelo, mas em seguida, tendo ele estreitado amizade com o "escol" dos vadios, começou a endivi¬dar-se; além disso, não se preocupava minimamente com os estudos, e assim, afora as maneiras polidas que aprendera na infância, era ignorante como um indi¬víduo da plebe e Valéria não era certamente mais culta, porque mal e mal sabia ler; e com exceção da música, que aprendera de uma serva, não tinha outros conhe¬cimentos.

Entregues a um luxo frenético, os dois desvaira¬dos jovens haviam-se rodeado duma porção de servido¬res que os furtavam impunemente, e haviam gasto quantias enormes na ornamentação da casa e para oferecer banquetes opulentos. Apesar disso Marcelo nunca pedia dinheiro ao tio, dando um jeito por meio das dívidas, e recorrendo aos usurários que lhe conce¬diam empréstimos, na esperança de redobrar seu cré¬dito à morte do pai adotivo.

Depois de ter largado o macaquinho, cujas carícias começavam a enojá-la, Valéria ficou um instante pensativa, em seguida, dirigindo-se a Marcelo, disse:

— Tu esqueces o homem generoso que te salvou a vida, e na tua irreflexão descuidas o dever da grati¬dão que é recompensá-lo.

— Meu único pensamento, antes de deixar a casa de Décio, foi o de pedir notícias do meu salvador, mas nem Décio Fúlvio nem aquele seu amigo de cara séria quiseram dizer-me seu nome, por terem sido proibidos. Tu não sabes até onde chega a teimosia de Décio; acreditarias? Ele fez-me prometer que de agora em diante não farias mais dívidas, nem embriagar-me-ia nas tabernas.

— Décio tem razão, e tu não hás de faltar à promessa.

— Em parte, sim, — respondeu Marcelo satis¬feito; — eu serei econômico; mas quanto ao vinho, não o posso deixar, e não é minha culpa se sobe ao cérebro.

— És excessivamente farrista — disse Valéria; — não foi por isso que nosso tio fez-te deixar a Dalmácia?

— Nosso tio pensa em mim quando dorme, e eu acho que nos expulsou de perto dele para ficar livre da nossa presença. De resto os homens ricos não precisam ser sábios.

— Décio não pensa assim e, para instruir-se, es¬tuda com afinco.

— Décio é pobre; é um bom rapaz, mas seria melhor se estudasse menos e se não fosse um ardoroso cristão.

— Mas nós também somos cristãos — respondeu a jovem com vivacidade.

— Como o sabes? — perguntou Marcelo sur¬preendido.

— Milo disse que recebemos o batismo.

— Milo é um burro — disse Marcelo sacudindo os ombros.

— Era o confidente de nossa mãe. — observou Valéria compungida; — quando penso na nossa infe¬liz progenitora tenho vontade de chorar. Milo disse--me que ela estava sempre triste, mas ninguém nunca soube o motivo da sua melancolia.

Um profundo suspiro provindo do fundo do quarto respondeu às palavras da mocinha. Marcelo virou-se e vendo o anão que, tímido, estava num canto, gritou-lhe zangado:

— Que queres, cara feia?

O anão empalideceu e, curvando-se respeitosa¬mente, respondeu tremendo de medo:

— Pareceu-me ter ouvido a tua voz, ó patrício, e corri às tuas ordens.

— Talvez tenha chamado teu irmão — disse Marcelo, apontando o macaquinho, e rindo cruelmente duma brincadeira que feria mais o coração do que o amor-próprio do pobre anão.

— Por que choras? — perguntou Valéria, vendo tremular uma lágrima nas pálpebras avermelhadas de Milo.

— Ouvi falar em tua mãe, e a recordação daquela que sempre foi bondosa provocou involuntariamente em mim o pranto — respondeu o anão enxugando os olhos com a fralda da sua linda túnica.

— Nossa mãe não judiava de ti, como fazemos nós — disse Valéria olhando Marcelo com ar de repre¬ensão; mas ele permaneceu impassível.

— Vós não judiais de mim, meus bons patrões; e, afinal, quem sou eu senão um pobre ser destinado ao escárnio? A natureza, cruel comigo, convosco foi generosa de seus dons, e eu não fico ofendido, meni¬nos queridos, quando me chamais de feio, porque o sou.

— Pobre Milo; tu sabes sofrer como um mártir os nossos caprichos! — exclamou Valéria em tom compassivo.

Também Marcelo ficou comovido com a humil¬dade do pobrezinho e para reparar a maldade pou¬sou-lhe a mão no ombro e disse:

— Sim, Milo, tu és paciente e bom; e se todos os amigos nos abandonassem, tu continuarias fiel.

Uma luz de alegria indescritível apareceu no rosto do anão; a sua microscópica figura ergueu-se altivamente; e unindo as mãos, disse com acento de suma gratidão:

— Graças, patrício, sê bendito pela confiança que tens no teu servo! — Depois, com o júbilo expansivo dum coração desfeito à alegria, pegou a destra de Marcelo e após beijá-la fugiu para esconder o pranto.

— Irmão, promete que de agora em diante não insultarás mais a Milo, e que não irás mais à taberna — disse Valéria suplicante.

Marcelo levantou os ombros e desatou a rir; de¬pois, esfregando as mãos, acrescentou:

— Conquanto Milo não me apareça com sua hor¬rível cara quando estou em cólera, prometo não tor¬ná-lo vítima do meu mal-humor; no que diz respeito à taberna é outro negócio; não posso deixar de acom¬panhar meus amigos.

— Pior para ti se caíres outra vez no Tibre — respondeu Valéria zangada.

— Estás virando moralista como Décio; a mania de fazer sermões é contagiosa — disse Marcelo bocejando.

— Fica sossegado — retrucou a mocinha sorrin¬do; — as palavras de Décio me enojam demais para eu mesma impor igual suplício aos outros.

— Então escuta — falou Marcelo, enquanto per¬corria a longos passos o quarto — quando for rico, no lugar de ir à taberna, convidarei todos os dias os amigos aos meus banquetes. Eu não desejo a morte do nosso tio, mas pelas leis da natureza ele deve pre¬ceder-nos no túmulo; então venderei esta casa para comprar outra melhor, ornada de estátuas raras; farei fabricar vastas termas parecidas às de Caracala; minhas vestes serão de púrpura e ouro, e Roma pas¬mará com os meus banquetes. Viverei como verda¬deiro sibarita; verás que todos me chamarão de sapiente e sábio, pois a riqueza traz consigo o saber e a sabedoria, e os que convidarei a meus almoços proclamar-me-ão em voz alta sábio como Diógenes, sapiente como Sêneca!

— E eu irei aos espetáculos públicos deitada nu¬ma liteira de prata, com os braços ornados de jóias preciosas; em minha volta haverá muitas gaditanas que deverão dançar o dia inteiro para divertir-me; mandarei vir de África as aves mais raras, e de Ásia os perfumes mais suaves — disse Valéria, que, ven¬cida pelo mau exemplo de Marcelo, via-se em sonho a patrícia mais rica de Roma.

Inebriando-se com planos falazes das futuras ri¬quezas, os dois jovens estultos só se reprometiam os gozos egoísticos e culpáveis que embotam as asas à inteligência do homem e tornam desprezível a mulher; sem dúvida, a mulher leviana que só pensa em di¬versões é a gangrena da sociedade; se for mãe, edu¬cará uma turma de vadios, e se a religião e a virtude não emoldarem o seu coração, a obra mais linda do Criador pode tornar-se o ser mais perverso, sendo o mais astucioso.

Enquanto Valéria e Marcelo estavam sonhando tão docemente, apareceu Milo que entregou uma carta chegada naquele instante da Dalmácia.

Marcelo pegou o pergaminho e sem olhá-lo pas¬sou-o para Valéria, dizendo:

— É uma carta do nosso tio; chega justamente em tempo, porque fiquei sem um sestércio.

— Estás enganado, irmão, — respondeu a jovem, devolvendo o pergaminho a Marcelo, que começou a lê-lo.

Enquanto o patrício lia, uma expressão de intensa dor apareceu no seu rosto e suas mãos tremiam convulsas, quase não conseguindo segurar a carta.

— Que tens, Marcelo? — perguntou Valéria an¬siosamente.

— Nada — respondeu o moço. Depois, andando para cima e para baixo do quarto, dizia: — Destino cruel, tu me persegues... tantos lindos projetos esvanecidos, tantos doces sonhos dissipados...

— Oh! Marcelo, não tenhas por mais tempo a minha alma suspensa; a certeza duma desgraça é menos, cruel que a dúvida — exclamava a mocinha chorando.

— Acalma-te irmã, na minha volta saberás a verdade; agora devo deixar-te... corro à procura de amigos que mil vezes me carregaram de ofertas ge¬nerosas.

Deixando a pobre Valéria numa dolorosa incer¬teza, Marcelo fugiu, e depois de ter percorrido um bom pedaço de caminho parou diante dum palacete onde muitos dos seus amigos se reuniam para jogar xadrez; e depois de entrar na casa, que era circun¬dada por pinheiros gigantescos, chegou a uma sala onde estavam reunidos seus companheiros vadios, que o saudaram com gritos descompostos.

Primeiro Marcelo contou como se salvara do rio, e depois tirando o pergaminho de debaixo da túnica leu a seus amigos a funesta notícia que lhe chegara, isto é, que seu tio, morrendo de repente, deixara uma herança de dívidas.

— Teu tio foi um sábio, e você está errado magoando-se por isso — disse um dos jogadores rindo.

— Junto com meu tio acabam minhas rendas — retrucou Marcelo exasperado; — se pelo momento pu¬desse esconder a minha situação aos credores, em se¬guida, daria um jeito para poder salvar algo do nau¬frágio; mas como primeira desgraça não tenho uma moeda sequer, e os usurários dificilmente far-me-ão crédito, se levado pela extrema necessidade apresentar-me a eles para suplicar-lhes, portanto...

Marcelo parou de falar. Era a primeira vez que pedia dinheiro aos amigos, e a vergonha amarrava-lhe a língua, fazia-o enrubescer.

Os patrícios olharam o amigo com surpresa, unida a desdenhoso compadecimento e nem uma voz repe¬tiu-lhe as generosas ofertas de auxílio em outros tem¬pos feitas ao suposto rico, mas que ninguém mais fazia ao pobre endividado.

Marcelo fitou os companheiros que permaneciam em silêncio e um amargo sorriso aflorou a seus lábios. Não querendo rebaixar-se com inúteis súplicas, saiu daquela casa e afastando-se do palacete, disse doloro¬samente:

"Julgava-os meus amigos e eram amigos dos meus banquetes"!

Marcelo, desesperado, não sabia o que fazer; seu orgulho           mal-entendido impedia-lhe pedir conselho a Décio, e fora de si pela dor amaldiçoava a mão pie¬dosa que o salvara do Tibre; em vez de ver na des-graça que se abatera sobre ele uma justa punição pela sua vida desregrada, ele amaldiçoava a humanidade, exclamando como Calígula: "Quisera que todos os ho¬mens tivessem uma única cabeça e eu seria o carrasco que a cortaria!" Faltando-lhe ânimo para comunicar a Valéria a funesta notícia, vagueava pelas ruas de Roma como enlouquecido, e várias vezes teve vontade de atirar-se ao rio e acabar a sua existência com uma culpa muito mais grave dos erros cometidos. Final¬mente, cansado de deambular sem rumo, criou cora¬gem, e voltou para casa, para informar Valéria da improvisa desgraça que os surpreendera, no instante mesmo em que sonhavam com as delícias duma exis¬tência sibarítica.

 

Com viva aflição Valéria ouviu a triste notícia, e não quis dar crédito às palavras confortadoras de Mar¬celo, que procurava fazer nascer em seu coração uma falsa esperança.

Com efeito a situação dos dois jovens não deixava caminho aberto para ilusões; acabara o dinheiro que recebiam mensalmente e, rodeados de objetos preciosos, corriam verdadeiro perigo de morrer de fome. É ver¬dade que tinham muitas coisas para vender, mas não era tão fácil encontrar já um comprador, e além disso, apesar de devasso, Marcelo não era por completo de¬sonesto, e não queria esconder nada do que sabia per¬tencer por direito aos credores. Não achando algo de melhor, resolveram abandonar a casa e os escravos, com a desculpa duma saída improvisa para a Dalmácia.

— Em que parte de Roma esconderemos a nossa miséria vergonhosa? — disse Valéria, enquanto en¬xugava as lágrimas.

Marcelo franziu o sobrolho, virou a cabeça dum lado para esconder a emoção, e respondeu:

— Irmã, eu não sei, minha cabeça está tão trans¬tornada, que me parece ter enlouquecido.

— E não teremos nada com que viver, não tendo dinheiro — observou Valéria.

— Nada, nada — confirmou Marcelo amarga¬mente.

— Espera, irmão, — falou a jovem; saiu para voltar logo depois trazendo um cofrinho de madeira de cedro, marchetado de prata, e, entregando-o a Marcelo, disse chorando:

— Eis as minhas jóias; podemos vendê-las. Grossas lágrimas caíam dos olhos da mocinha ao pronunciar essas palavras; privar-se daqueles     orna¬mentos que lhe eram tão queridos era o maior sacri¬fício que se pudesse exigir de sua vaidade; era a pri¬meira exigência da miséria; e em lugar de desfazer-se daquelas jóias que faziam ressaltar a sua beleza, daria de bom gosto em troca dez anos da sua vida.

— Na Rua Argilete, onde há os mercadores de pedras preciosas, eu sou conhecido — disse Marcelo, e só ao pensamento de se apresentar como humilde vendedor lá onde tantas vezes comprara principescamente, o rubor corava-lhe as, faces.

— Não poderíamos incumbir Milo? — perguntou Valéria.

— Que sabe fazer esse aborto de natureza senão ser ludibriado? — exclamou Marcelo com impaciência; e justamente naquele instante sentiu que alguém lhe puxava a túnica: surpreendido, virou-se e viu Milo que, carregando com esforço um saquinho de pele, estava perto dele, muito tímido.

— Que queres? — disse o moço rispidamente.

— Patrício, o mensageiro que chegou da Dalmácia contou-me a morte de teu tio; estás precisando de di¬nheiro, visto que o tempo em que costumavas ter aca¬bou, toma este que te ofereço; é pouco, mas não tenho mais, e não envergonhes teu servo com uma recusa,

— Como é que tens esse dinheiro? — perguntou Marcelo imperiosamente.

— É meu — respondeu Milo; — muitas vezes depois de me teres batido, me davas uma moeda; além disso eu vendia a minha parte das sobras dos teus banquetes, e com a parcimônia do avarento consegui juntar esta quantia, em previsão que cedo ou tarde os filhos da minha benfeitora precisariam.

O rosto de Marcelo se tornou de púrpura; aceitar o socorro daquele pobre ser, que mil vezes percutira, parecia-lhe o cúmulo das humilhações; portanto, repe¬lindo o saquinho, permaneceu silencioso.

Valéria leu no coração do irmão e esteve com medo que humilhasse o bom anão com uma recusa grosseira; para impedi-lo tomou depressa o saquinho, e disse sorrindo entre as lágrimas:

— Obrigada, Milo, pela memória de minha mãe, aceito a tua generosa oferta.

Marcelo bateu os pés com raiva, mordeu os lábios até sangrar, mas não falou nada; e o anão, cheio de gratidão, beijou a cândida mão de Valéria.

Naquela mesma noite os dois jovens deixaram, chorando, a sua suntuosa habitação para morar numa pobre casinha situada numa das ruas mais escondidas de Roma, e não levaram nada consigo a não ser as jóias de Valéria. Depois Marcelo escreveu umas linhas para Décio em que lhe comunicava a sua partida para á Dalmácia, pedindo-lhe para avisar os credores a fim de que se apoderassem dos escravos e vendessem a casa para se refazerem dos créditos. O orgulho in¬duzia o jovem inconsiderado a mentir, e afastava-o do único sábio e fiel, cujos conselhos poderiam guiá-lo para o bem.

Milo foi incumbido de entregar a carta a Décio, e aquela mesma noite o anão escondeu-se nos arre¬dores da casa do patrício, e quando o viu de volta para casa, depôs a carta na soleira da porta e fugiu.

Ao ler o escrito, que se lhe apresentava tão mis¬terioso, Décio não acreditou em seus olhos; a repenti¬na saída de Marcelo e Valéria parecia-lhe impossível e causava-lhe uma cruel angústia.

O ótimo jovem caminhou até a noite avançada no seu quartinho, detendo-se de vez em quando para encostar a testa ardente às paredes; inutilmente várias vezes deitou-se, pois apenas estendido punha-se de pé para passear de novo. Finalmente, não conseguindo dominar a sua agitação, pela madrugada foi até à casa de Marcelo, mas não quis entrar, e detendo-se perto do vestíbulo a sua imaginação fez ouvir o melan¬cólico som da citara de Valéria; vencido por cruel emoção deixou aquele lugar para ir à casa de     Jerônimo. Chegava ai pouco depois, e seguindo o santo doutor que lhe abrira a porta, entrava num quartinho.

Uma mesa de pedra onde havia uma porção de pergaminhos, uma cruz de madeira preta, uma cavei¬ra e uma lâmpada, estavam no centro da cela, que não tinha outros móveis além de dois assentos de már¬more e uma pequena cama, estreita e baixa, recoberta por um grosseiro cobertor de lã. Entre todos os quar¬tos, que a matrona Marcela pusera a sua disposição, Jerônimo escolhera aquele que parecia a cela dum anacoreta da Tebaida.

Ali Décio ajoelhou-se, e Jerônimo pondo-lhe a mão na cabeça abençoou-o e depois de tê-lo olhado fixa¬mente, disse:

— Ó filho, há algo que te angustia?

— Sim, meu pai; Marcelo, aquele amigo que com teu auxílio eu esperava levar para o reto caminho, partiu sem se despedir de mim; e ...

— Aquele moço é um ingrato — disse Jerônimo depois de lido o escrito de Marcelo; depois acrescentou: — Eu sou um homem e posso enganar-me, mas o coração me diz que teu amigo mentia em escrever estas linhas; talvez a mão da desgraça pese na cabeça do infeliz; mas, que podes tu fazer contra a vontade do Eterno, cujo juízo é um abismo insondável?

— Quero achá-lo! — exclamou Décio com vivacidade.

O olhar severo e perscrutador de Jerônimo cravou-se no do jovem patrício: dir-se-ia que queria ler em seu coração; depois, abanando a cabeça, com voz lenta e martelada, disse:

— Sim, procura aquela mocinha que escandali¬zava os cristãos com o rosto branqueado, branco de¬mais para ser humano, e que despertava a imagem dos ídolos de mármore; procura aquela que se fazia admirar pelos vestidos resplandecentes, que dava com que falar pelos seus lautos convívios, dos quais nem uma migalha caía para o pobre que jazia diante da porta da sua casa. Sim, procura-a a fim de que le¬vante o rosto para Deus e, arrependida, aumente o número das virgens que são a glória da Igreja de Cristo.

— Este é meu desejo; mais não peço, e Deus, que lê em minha alma, sabe quão puros são os meus sen¬timentos — respondeu Décio com tristeza indizível.

— Acredito, ó filho, — disse Jerônimo; — mas sem ajuda não conseguirás achá-los. Vai, então, ter com a piedosa matrona Asela, e diz a ela de minha parte que se una a ti para reencontrar teus amigos; ela tem muitos conhecidos na sociedade e quem sabe poderá ser-te útil com seus conselhos; vai, que Deus te guie e ilumine.

Saindo da casa de Jerônimo, Décio foi imediata¬mente para a de Asela, e contou à bondosa matrona o motivo da sua visita. Com ela o patrício foi mais expansivo do que com Jerônimo; o coração da mulher inspira mais confiança, e Asela compadeceu-se pela aflição do filho da sua amiga. A sábia matrona não tinha desgostos, pois a sua vida transcorria numa cal¬ma perfeita, e então tomava a seu cargo os do pró¬ximo; seus olhos tinham uma lágrima para cada dor, seus lábios uma palavra de conforto para qualquer desventura, e quando não podia socorrer e consolar os aflitos, rezava a Deus por eles. Anjo de bondade, Asela rivalizava em caridade cristã com as piedosas matronas de seu tempo; os da sua família contavam que quando a mãe a carregava no seio, o piedoso pai viu em sonho a esposa dar à luz um vaso de puro cristal, resplandecente; e a existência incontaminada de Asela era verdadeiramente uma seqüência de obras misericordiosas.

A matrona não duvidou minimamente que a par¬tida de Valéria afligisse o rapaz mais do que a de Marcelo, e em sua bondade angelical sorriu, porque tinha convicção de que o nobre coração de Décio Fúlvio não obedeceria a um sentimento culpável, e mais con¬firmava-se lembrando-se como poucas noites antes Dé¬cio quisera fazer-lhe uma confidência que as circuns¬tâncias depois adiaram.

— Vivi por muito tempo na Dalmácia — disse a matrona depois de ter consolado com as suas pala¬vras o patrício, — mas não conheço a cidade onde mora o tio dos teus amigos; um senador que residiu naquele lugar por muito tempo poderá informar-me. Volta dentro de uns quinze dias e saberei dizer-te algo.

Consolado de certa forma por essa esperança, Décio, deixando a matrona, levou a carta de Marcelo para um dos credores que, enfurecido pelo desaparecimento do seu devedor, ameaçou mandá-lo perseguir até na Dalmácia e citá-lo diante do pretor para que cedesse formalmente seus bens .

Décio deixou o usurário com ânimo exasperado e, depois de transcorridos três dias numa impaciência mortal, voltou para a matrona que lhe disse ter sido informada pelo senador como o tio de Marcelo e Valéria morrera improvisamente deixando seu patri¬mônio carregado de dívidas.

— Jerônimo tinha razão; Marcelo na carta escon¬dia a verdade! — exclamou Décio surpreendido e aflito pela notícia.

— É improvável que teus amigos tenham ido pa¬ra a Dalmácia, uma vez que nada poderiam obter da herança do tio defunto — disse Asela.

— Meu Deus, onde estarão escondidos, que lou¬cura estarão planejando? — disse Décio cobrindo o rosto com as mãos para esconder a palidez.

— Não te aflijas, Décio, havemos de encontrá-los — tranqüilizou Asela; — como tu, tenho dó daquela mocinha irrefletida e daquele moço transviado, e pro¬meto que farei o possível para achá-los: apesar de Roma ser grande, cedo ou tarde descobriremos onde se escondem.

— Poderemos encontrá-los, pois, não, Asela? — disse o patrício com o acento duma criança que pro¬cura conforto.

— Esperemos em Deus, porque é tão frágil a vontade do homem sem a assistência divina — res¬pondeu a pia matrona.

Décio voltou para casa sobremaneira aflito e, não querendo perder tempo, iniciou imediatamente a pro¬cura dos seus amigos, mas inutilmente pediu informa¬ções aos escravos abandonados na casa de Marcelo, em vão por mais de um mês correu dia e noite; as suas buscas não deram resultado como também as de Asela. No fim, cansado, desanimado, o pobre Décio perdeu toda esperança de reencontrar os que por nada pensavam em quem tanto se interessava e sofria por eles.

 

Era uma noite encantadora, tranqüila e serena; a lua iluminava com seu disco cheio a via Ápia e os, colossais sepulcros que a ladeavam, cujos restos ainda se conservam para testemunhar que tudo rui, que o tempo nada respeita. A vaidade dos vivos erigiu aque¬las moradas fúnebres, esperando que os anos passassem por cima delas sem tocá-las, mas não foi assim; cada século ai deixou seus rastos, e agora maciços informes onde trepam as plantas parasitas, e a cujos pés medra o cardo espinhoso, é tudo o que resta daqueles túmulos patrícios.

Um homem em trajes plebeus estava sentado na frente de um daqueles mausoléus e parecia apreciar a belíssima vista que se apresentava a seu olhar. Nada, na verdade, poderia ser mais digno de admiração; à sua direita duas linhas paralelas de sepulcros prolon¬gavam-se até a via que leva a Cápua; enquanto à esquerda via-se, ao longe, o bosque Egério, e mais além a antiga rainha do mundo, com seus obeliscos, suas colunas, seus templos, e melhor do que tudo distinguiam-se os muros colossais do palácio dos Césares, que ficara deserto desde quando no Oriente surgira uma rival de Roma; depois a imensa planície que se es¬tende até às encostas dos montes Tusculanos, e os aquedutos que a atravessam; dum lado as grandezas da capital daquele império que, decrépito, corroído até o miolo, estertorava; do outro, os túmulos iluminados pelo raio melancólico da lua, que dava àquele pano¬rama um aspecto de solene melancolia.

O homem sentado aos pés do mausoléu virava a cabeça ora dum lado ora do outro; em que estava pensando? Era, quem sabe, um poeta, que, no silêncio da noite e no pálido luar, inspirava-se para compor um canto triste, ou então era um filósofo, que entre os sepulcros, meditava na vaidade da terra? Não era nem uma coisa nem outra; seus olhos olhavam maquinalmente o sepulcro, dirigindo-se ardentemente para Roma, e com férvida imaginação via as ricas ha¬bitações dos patrícios, ouvia os gritos das orgias, aplau¬dia os trejeitos das gaditanas!De repente um suspiro doloroso, quase um gemido, saiu do seu lábio, depois com gesto convulso rasgou a túnica, apertou o punho, estendeu a destra para o céu em ato de raivosa de-mência, e prorrompeu em soluços.

Tudo era silêncio, ouvia-se apenas gemer aquele homem, que, depois de ter chorado demoradamente levantando-se do seu lugar pôs-se a correr, como se correndo conseguisse escapar a seus pensamentos, e depois de ter percorrido um longo pedaço de estrada, exausto, ofegante, parou para descansar. À sua direita elevava-se, sobre um pequeno morro, um mausoléu de forma circular, lindo na sua majestosa simplicidade: era o túmulo de Cecília Metella, daquela matrona cujo nome chegou até nós, não por virtude de grandeza, mas porque foi esculpido na pedra dum sepulcro colossal.

O homem que parecia tão angustiado, virou o olhar para o mausoléu, e exclamou amargamente:

— Tu nasceste nas riquezas, ó Cecília, eras tu talvez mais linda e melhor do que Valéria?... Se a morte interrompesse o fio da existência da minha irmã. eu não poderia comprar-lhe uma lápide, e não haveria uma mão piedosa a não ser a minha para cavar a se¬pultura ao seu cadáver.

Dizendo isso, Marcelo encaminhou-se novamente, até chegar à Porta Capena; depois de transposta a por¬ta, virou à direita, avançando por uma viela ladeada por uma sebe de sabugueiros.

Na metade da viela via-se uma casinha de tijolos sem estilo e sem ornamentos arquitetônicos, de um único andar, composto por quatro quartinhos. Duas aberturas ovais iluminavam dois dos quartinhos e os outros eram iluminados por uma clarabóia.

Aquele tugúrio recém-fabricado pertencera a um cristão que levado por momentâneo zelo ascético aí se encerrara; mas a vocação do solitário esvanecera, e voltando para o mundo deixara abandonado o eremitério. Milo conhecia o sujeito, e quando a casinha ficou vazia quis comprá-la com o fruto das suas eco¬nomias, mas por não ser livre, não podia possuir nada; portanto dirigiu-se a Valéria dizendo-lhe que nos dias da sua velhice, quando em recompensa dos seus servi¬ços Marcelo libertá-lo-ia, seu único desejo era morrer naquele lugar solitário. Comovida pelo pedido do anão a jovem persuadiu Marcelo a comprar aquele casebre e a doá-lo a Milo. Pela primeira vez na vida o patrí¬cio demonstrou-se generoso e não quis ser reintegrado da despesa; não imaginava que naquele tugúrio es¬conderia a miséria de que tanto se envergonhava.

Na frente da casinha de tijolos restavam os escom¬bros duma casa caída em ruína; as paredes perfuradas em vários lugares; o terraço, que uma vez a dominara, ruíra por completo, e do vestíbulo só ficaram duas co¬lunas quebradas. Aqueles restos despertaram a curio¬sidade de Milo, porque várias vezes, ao anoitecer, vira lá entrar um desconhecido.

Marcelo bateu a porta da casinha; pouco depois o anão abriu a porta e com voz humilde disse:

— Patrício, tua irmã chora esperando-te. Marcelo subiu depressa as escadas, e sentou-se ao lado de Valéria cujo rosto se tornara pálido e magro. A mocinha caprichosa ainda não largara de todo os antigos costumes de luxo; trazia um vestido excessiva¬mente rico para aquela pobre morada e seus braços eram enfeitados com correntinhas de prata.

— Irmão, faz mais de duas horas que estou es¬perando-te; por que voltas tão tarde? — disse Valéria com doce repreensão.

— Sem querer avançara demais pela via Ápia, mer¬gulhado em meus cruéis pensamentos, ou, por melhor dizer, nos meus planos, porque afinal temos que pen¬sar no futuro — respondeu Marcelo suspirando pro¬fundamente.

— O futuro apresenta-se ao olhar, negro como o céu duma noite tempestuosa — respondeu a jovem.

— Não desesperes, irmã.

— Como é possível esperar, se toda esperança para nós desvaneceu!... Sozinhos na terra não temos nem parentes nem amigos; a miséria horrível nos aguarda, e esta fúria de unhas de abutre nos agarra sem que possamos defender-nos. Se tivéssemos nascido na plebe poderíamos pelo menos ganhar o pão trabalhando, ou receber as gratificações de César, mas por infelicidade somos patrícios, e o sangue de nossos pais queimar-nos-ia como lava se o arrastássemos na lama: um nome ilus¬tre é um fardo que na miséria chega a esmagar!

Valéria pronunciara estas palavras com dolorosa emoção, e o lindo rosto estava molhado de lágrimas.

— Escuta, irmã, quero comunicar-te meu projeto — disse Marcelo; e a mocinha fêz-se atenta. — O di¬nheiro conseguido pelas tuas jóias poderá bastar por uns meses, mas depois?... Não teremos mais nada; para evitar a miséria que nos incumbe dividiremos o dinheiro em duas partes; uma para ti, a outra levá-la-ei comigo porque resolvi partir para a Dalmácia.

— Partir! — exclamou Valéria aterrada pela de¬cisão do irmão.

— Sim, — disse Marcelo — tenho que partir para salvar alguma coisa do patrimônio do nosso tio, para pôr um freio aos credores que se aproveitaram da nossa ausência. Se me for possível apanhar as sobras do naufrágio compraremos uma casa e voltaremos a viver, no lugar de vegetar nesta miserável habitação:

— Oh! As riquezas são necessárias à existência — disse Valéria.

— Sim, voltaremos a sorrir à vida; mas se tudo acabou, então me alistarei no exército e morrerei com¬batendo contra os bárbaros.

— E eu abrir-me-ei as veias — disse Valéria a quem nem a religião cristã impedia de pensar num crime que os pagãos julgavam o derradeiro recurso duma alma grande e infeliz.

Enquanto os dois jovens sonhavam como de cos¬tume, um homem percorria a largos passos um quarto da casa arruinada, e dizia, pondo a cabeça fora dum buraco, que o tempo abrira no muro:

— Quem habitará aquele tugúrio?... Ontem pela madrugada pareceu-me ver sair um homem e um me¬nino; talvez sejam infelizes que querem esconder-se a todos; infelizes, sim, mas não culpados. Ah! A des-graça é menos cruel quando não é filha do remorso... Deus eterno, se eu me atrevesse a rezar, rezaria para todos os que sofrem...

Assim dizendo, o indivíduo afastou-se do buraco e voltou a percorrer em largos passos o quarto, depois deitou-se sobre uma enxerga, e o luar, atravessando a abertura do forro, refletia-se no rosto do barqueiro do Tibre que não tendo outra morada dormia naquelas ruínas, ninho de mochos e morcegos.

Enquanto Sérgio ferrava no sono, Milo saía devagarzinho do casebre e levado pela curiosidade de co¬nhecer o homem misterioso que morava entre aquelas ruínas trepava como um cabrito pela escada derrocada, e detendo a respiração arrastava-se gatinhando até perto do barqueiro; todavia conseguiu ver somente seus ca¬belos brancos, porque Sérgio cobria o rosto com um braço.

"Pobre velho, não tem uma casa onde repousar", pensou o anão, o pondo a mão no bolso sacou uma moedinha que depôs perto da enxerga do velho: era a espórtula do pobre que na balança divina pesava o te¬souro do rico!

Depois de descido daquela casa, Milo voltou para seu quarto escuro e, não conseguindo adormecer, esteve a pensar no futuro dos seus queridos patrões e resolveu ir ver Décio, para informá-lo da desgraça que abatera sobre Valéria e Marcelo; mas refletindo melhor, as¬sustou-se com a sua idéia; acostumado desde a infância a ser o joguete de todos, e obedecer cegamente aos patrões, não tinha nem a energia nem a vontade de agir por iniciativa própria, e ele mesmo pasmava ter concebido o pensamento duma ação que não lhe fora ordenada.

Na manhã seguinte, de madrugada, Marcelo foi para os arredores do Forum Boarium (Mercado do gado) para alugar uma daquelas carruagens de viagens chamadas rheda, que, puxadas por quatro parelhas de muares, desempenhavam a função de diligências nas vias consulares. E depois de ter estabelecido o preço, voltou a casa para se despedir da irmã.

Dolorosa foi a separação dos jovens; Valéria não queria deixar o irmão, e suplicava-lhe, chorando, para levá-la junto com ele à Dalmácia.

É sempre cruel o momento da despedida e mais cruel do que nunca quando a desgraça nos arranca da família, e levando-nos para longínquos países deixa-nos apenas uma esperança enganadora de voltar para o teto paterno.

Com muito esforço Marcelo separou-se de Valéria e, correndo como um desesperado, abandonou para sempre a casinha solitária.

A jovem seguiu o irmão com o olhar perdido, e quando não o viu mais, uma expressão de extrema angústia se lhe imprimiu no rosto, e chegando à dor mais aguda exclamou:

— Sozinha! Não tenho mais ninguém que me possa proteger.

— Resta Deus— disse o anão com voz solene.

— Deus? — disse Valéria fitando Milo de olhos esbugalhados; seus braços lhe caíram inertes, e com acento desanimado continuou: — Nunca pensei nisso.

A voz da jovem revelava um remorso; talvez na¬quele momento uma inspiração divina dizia-lhe que, no meio das trevas da desgraça, há um fio de luz, no meio das opressões há uma mão que ampara, no meio do desespero há um raio de esperança, uma âncora de salvação; e essa luz divina que resplandece no meio das trevas, esta mão em tudo poderosa, esta âncora a que se agarra a mão do náufrago, chama-se Deus!

O anão na sua simplicidade o dissera; para Valéria restava ainda Deus, mas ela nunca pensara naquilo, e como haveria de pensar naquela hora?...

 

O tempo transcorria vagaroso e doloroso para Va¬léria, depois que Marcelo deixara Roma; fechada na casinha enojava-se mortalmente, e conforme seu pre¬guiçoso costume permanecia continuamente deitada, pensando nos dias felizes em que tanto se divertia, e chorava-os sem ter nenhum conforto, uma vez que lhe faltava o único consolo dos infelizes, a religião!

Inutilmente Milo procurava consolar sua senhora; repelido bruscamente, chorava ele também, não con¬seguindo fazer melhor.

Um mês decorrera da partida de Marcelo, um outro estava para findar, e a pequena quantia deixada pelo irmão diminuía cada dia, de maneira que a mi¬séria mais negra pairava sobre a pobre Valéria. Ver-dadeiramente penosa é a situação de quem não tem recursos para viver e é obrigado a dizer: amanhã terei que morrer de fome ou estender a mão para pedir auxílio, mas nem sempre se encontra o auxílio. Está mentindo quem afirmar que na terra não há corações generosos; é grande o número dos que escarnecem a miséria, a insultam, ou passam ao lado dela com fria indiferença; há, todavia, seres piedosos, que oferecem a mão ao infeliz para socorrê-lo, para guiá-lo com seus conselhos; o número deles é muito reduzido, de acor¬do, mas maior, porém, é seu mérito; e a voz trêmula do velho, a doce oração da donzela, o lábio balbuciante da criança dirigem-se a Deus para que a bênção celeste desça sobre eles!

Milo várias vezes aconselhara a patroa para que procurasse Décio, mas o ânimo orgulhoso de Valéria rebelara-se a semelhante conselho; ela experimentava uma indefinível emoção em recordar o sábio amigo de seu irmão, e queria que ele a visse numa luxuosa habitação rodeada de escravos, e só em pensar de re¬velar-lhe a sua miséria a fazia fremir e enrubescer.

Se Valéria tivesse confiança em Deus não se aban¬donaria ao desespero e, convencida da ajuda da Provi¬dência divina, diria: "Aquele que não abandona o par¬dal em busca do ninho, não esquecerá uma criatura feita à sua imagem". E a fé que faz jorrar a água da pedra, que faz andar sobre o mar, dar-lhe-ia cora¬gem; mas a fé, santo Paládio de quem crê, não domi-nava no coração da mocinha transviada.

A última moeda de Milo tinha sido gasta, e ao pobre anão faltava coragem para confessar à patroa que naquele dia não havia com que comprar um pe¬daço de pão. O pobrezinho não sabia a quem se dirigir e, depois de ter muito refletido e nada concluído, saiu da casinha em demanda da Providência.

Andando ora vagarosamente e ora ligeiro, o anão chegou ao Aventino e parou diante do templo da deusa Bona. Na época da nossa narração havia em Roma ainda quatrocentos templos pagãos, mas sem culto, aban¬donados; as colossais colunas serviam para construir igrejas que os devotos faziam erigir. Roma pagã des¬moronava-se aos poucos; Roma cristã surgia gloriosa, e a Igreja católica herdava o domínio mundial no meio das ruínas do império dos Césares.

Imóvel na frente do templo fechado da deusa, Milo olhava uma multidão que se dirigia para o vestíbulo duma casa patrícia. Eram os "clientes"; a clien¬tela era uma verdadeira praga, apesar de que diminuísse cada dia mais com a propagação do cristianismo. Aos inícios da república essa situação foi ótima porque todo plebeu podia escolher um patrício que devia pro¬tegê-lo para que não se lhe fizessem injustiças, e aju¬dá-lo se precisasse de dinheiro; era uma sábia e gene¬rosa proteção dispensada pelo nobre ao plebeu, pelo rico ao pobre; mas poucas são as instituições humanas que com o decorrer do tempo não se pervertam; não demorou muito que a clientela mudou-se numa torpe profissão. Porque dava nojo ver homens, que se ufa¬navam serem cidadãos romanos, correr pela manhã, solícitos em desejar o bom-dia ao seu protetor, espe¬rá-lo nos átrios, para cumulá-lo de bajulações e para mendigar por força de baixezas um sorriso benevo¬lente, uma palavra amável; e em paga por tantas humilhações eram retribuídos com a sportula, isto é, gratificação, que os pobres recebiam sofregamente, ao passo que os menos necessitados, ficavam satisfeitos com a amizade dos protetores.

Vendo os clientes, uma idéia nasceu na mente do anão; para dar-lhe realização correu, e sem ser visto conseguiu introduzir-se na multidão dos aduladores fa¬mintos.

Os clientes entraram no átrio da casa, muitos deles se agruparam aqui e acolá falando baixo, enquanto os outros perambulavam debaixo do galpão com afetada gravidade, proclamando em voz alta os méritos do protetor para serem ouvidos pelos escravos.

Milo aproximara-se a um grupo de clientes, e sen¬tado na base duma coluna escutava as suas conversas.

— Sabes, Flamínio, — dizia um dos parasitas com ar de importância para um companheiro — o patrício encarregou-me de encontrar uma citarista e duas gaditanas para sua irmã, a ilustre matrona Clemência Petrônia.

— A coisa não é difícil e, se quiseres, posso aju¬dar-te em servir o nosso generoso patrício — disse Flamínio.

O diálogo foi interrompido pelo distribuidor da sportula, que seguido por um numeroso cortejo de es¬cravos trazia o dinheiro para ser distribuído aos clientes.

Parando no centro do átrio o distribuidor disse em voz alta que naquele dia o patrício não queria ver seus protegidos.

Os clientes fingiram estarem muito tristes e prorromperam em gritos choramingueiros chamando infaus¬to aquele dia, ao passo que na realidade estavam muito contentes por receber a sportula mais depressa do que de costume.

O coração de Milo palpitava com violência; o medo fazia tremer o pobrezinho, não se atrevendo a avançar por receio de ser visto, nem recuar; permaneceu no seu lugar como cravado, e, sem querer, encontrou-se em primeira fila escondido em parte pelos vestidos de dois clientes.

O distribuidor pegava as moedas dum saco que um escravo trazia, e dava a cada um a sua quota; chegando diante de Milo estendeu a mão, mas logo a retraindo, perguntou irado:

— Quem és, cara de sátiro?

Milo não teve a força de responder, as palavras morreram-lhe na garganta, e todos os olhos convergi¬ram sobre o coitado, que, tremendo de pavor, estava para desfalecer.

— É um intruso, é um intruso; o patrício não protege os símios! — gritaram os clientes rodeando Milo ameaçadoramente.

— Vai embora, e agradece a minha bondade se não te faço fustigar até a tua pele ser reduzida a pe¬daços — disse o distribuidor da sportula, percutindo brutalmente o anão.

Os clientes se fizeram mérito em imitar o distri¬buidor e cada um deles deu uma pancada no pobre escravo.

Sem se queixar, expulso como um cão raivoso, Milo saiu da casa do patrício, e enquanto duas grossas lágrimas caíam-lhe dos olhos, dizia dolorosamente:

— Meu Deus, tu também foste percutido! Enquanto pensava não ter pão para Valéria, o anão andava sem saber aonde seus passos o guiariam; no fim, sem mais forças, encostou os ombros contra o canto duma casa e com a cabeça abaixada sobre o peito recomeçou a chorar. Enquanto o infeliz desabafava a sua mágoa, duas matronas, vestidas de escuro, com a cabeça coberta dum linho cândido, passaram diante dele.

Uma das matronas era Asela; a outra, mais nova do que a amiga de Décio, tinha tez morena, olhos ne¬gros e cabelos cor de azeviche; alta e delgada, seu rosto era lindo e o olhar vivaz manifestava o fogo dum caráter cheio de energia.

Vendo Milo ela parou e pondo-lhe uma mão no ombro disse-lhe com voz compassiva:

— Por que choras, desventurado?

O anão não respondeu; o pensamento de mendigar fê-lo tremer, mas voando com a mente para Valéria criou coragem, e vencendo o acanhamento, estendeu a mão, e fechou, por vergonha, os olhos para não ver a matrona.

— Asela, eu não tenho mais nada — disse a pa¬trícia mais nova depois de ter vasculhado o bolso.

Asela deu uma moeda de prata ao anão, e depois segredou ao ouvido da amiga:

— Melânia, esse infeliz é pobre, e a sua feiúra o expõe aos insultos da plebe; não poderíamos oferecer-lhe um abrigo?

— Dizes bem, irmã, — responde Melânia; e aproximando-se do anão principiou a dizer com toda doçura:

— Ês pobre, amigo, mas se quiseres vir comigo, em minha casa viverás sossegado e não terás necessi¬dade de mendigar teu pão de cada dia.

— A tua oferta é generosa, mas eu não posso aceitá-la — disse Milo.

— Por quê? — perguntou Melânia, enquanto em seus olhos brilhava um raio de curiosidade feminina.

Milo abaixou a cabeça não sabendo responder, pois não queria dizer nada sem o consentimento de Valéria.

— Vamos, fala!

— Irmã, não faças com que a curiosidade torne cruel a nossa esmola — disse Asela severamente.

— Tens razão, amiga, mas a minha intenção era boa — respondeu Melânia confusa.

— Em teu coração só abrigam as santas intenções — concordou Asela, sorrindo com bondade; depois deu outra moeda ao anão e disse: — Já que não queres aceitar a nossa oferta, faze o que quiseres e que Deus te guie e proteja.

As duas matronas afastaram-se de braços dados, e Melânia virava atrás a cabeça na esperança de que o anão a seguisse.

Milo acompanhou com o olhar as duas piedosas mulheres, e quando não as viu mais deu uma pancada na testa exclamando:

— Pelo menos soubesse onde elas moram!...

— Não será difícil sabê-lo, posto que Asela e Me¬lânia são conhecidas por todos os pobres do Aventino — disse uma mocinha plebéia, que passando lá vira as matronas afastar-se e ouvira a exclamação do anão.

— Se for assim, encontrá-las-ei — dizia Milo en¬quanto se dirigia para uma padaria; e depois de ter comprado uma boa provisão de pão e legumes enca¬minhou-se para a casinha confiando que Valéria agiria ajuizadamente manifestando as suas desgraças às duas caridosas matronas que, tendo oferecido abrigo e pro¬teção a um ser disforme, com certeza não negariam um e outra a uma linda jovem.

Enquanto o anão dirigia-se para a porta Capena apressando o passo para chegar logo, Valéria estava esperando-o com impaciência sentada na soleira da ca¬sinha; a pobrezinha temia ser abandonada pelo seu único amigo, e quando o viu de longe, o rosto feiíssimo e rugoso de Milo pareceu-lhe lindo como o de um anjo.

Feliz e sorridente o anão mostrou a jovem as pro¬visões, e depois de ter cozinhado apressadamente um prato de legumes, apresentou-se a patroa servindo-a à mesa com o maior respeito. O anão era bem diferente daqueles vis mercenários, que, aproveitando das misé¬rias dos seus patrões, os humilham com ignóbil des¬cuido; para ele Valéria era ainda a rica patrícia, e com a fidelidade do cão que lambia a mão que muitas vezes lhe batera.

Depois que a jovem comeu, Milo contou-lhe as suas peripécias, e vendo-a comovida pela narração de bondade de Asela e Melânia, aconselhou-a a se dirigir às duas piedosas matronas.

— Não quero pedir piedade àquelas patrícias — disse Valéria batendo os pés no chão com raiva; — repelir-me-iam sabendo que gosto de música, dança e vestidos de seda. Marcelo descreveu-me aquelas mu¬lheres severas e intoleráveis, para as quais todo inocente recreio é um crime.

— Se aquelas matronas são verdadeiras cristãs co¬mo o foi tua mãe, seu coração deve ser indulgente, pronto a perdoar, e a considerar todos inocentes e jus¬tos — disse Milo.

Valéria franziu as sobrancelhas e sacudiu a cabeça de maneira que os vastos cachos ondearam-lhe no pes¬coço e, depois de ter refletido, observou:

— Não conseguiria esconder o meu nome a essas matronas; talvez saibam que a nossa casa no monte Célio encontra-se em mãos dos credores; tal humilha¬ção ser-me-ia insuportável e poderiam impelir-me ao desespero.

— Que farás então? — perguntou Milo muito triste.

— Veio-me uma idéia que me parece sábia e prudente.

Milo boquiaberto e de olhos arregalados olhou a jovem, espantado em ouvi-la falar em sabedoria e pru¬dência.

— Tu me contaste — continuou Valéria — que um cliente está à procura duma citarista para a pa¬trícia Clemência Petrônia. Eu conheço de nome essa matrona e sei que possui uma casa suntuosíssima no Esquilino; daqueles lados eu não sou conhecida; apresentar-me-ei à patrícia como uma jovem dálmata nas¬cida livre, mas órfã e pobre, e pedir-lhe-ei de me em-pregar como musicista.

Ouvindo tal projeto insensato, Milo tornou-se pá¬lido como um cadáver e, unindo as mãos, exclamou angustiosamente:

— Tu deliras e não sabes quanto seja amargo o pão da escravidão!

— Eu não sou escrava, residirei numa casa luxuo¬sa, e meus olhos acostumados às riquezas não verão as toscas paredes deste covil de raposas.

— Oh! É muito melhor morar no próprio tugúrio do que na rica casa dos outros — disse Milo amar¬gamente.

Valéria não ligou às palavras do anão, e andando pelo quartinho, falava no tom imperioso da menina mimada.

— Eu quero assim e não adianta falares diferen¬temente; amanhã irei ter com Clemência Petrônia. ..

De vez em quando virás visitar-me e o meu ganho ser¬virá para viver até à volta de Marcelo; então deixa¬remos Roma para sempre e iremos para países distantes.

Pensando na volta futura de Marcelo e satisfeito do seu projeto, Valéria andava irrequieta pela casinha fa¬zendo mil castelos no ar, e satisfeita, apesar de seu orgulho sofrer, por acabar com a vida mesquinha e monótona que estava levando há vários meses. Depois de ter andado bastante, sentou-se par arrumar as cor¬das da citara, e depois começou tocar uma vivaz me-lodia.

Milo a fitava com o olho severo duma mãe que, lastimando a filha, não pode deixar de amá-la, e para não ouvir a melodia que o irritava   afastou-se dizendo em voz baixa:

— Deus Todo-poderoso, ilumina a sua mente transviada, dirige a ela um raio da tua luz divina para que não caia no abismo que se lhe abre na frente...

 

Valéria quis pôr em ato a resolução de ingressar no serviço da matrona Clemência Petrônia e dando um último adeus à casinha     encaminhou-se para o morro do Esquilino acompanhada pelo anão que carregava a citara.

Desde que a desgraça a golpeara era a primeira vez que a jovem saia de casa. Preferia as ruas mais remotas e solitárias porque tinha vergonha por não estar acompanhada de uma turma de escravos e tinha medo de ser vista por algum dos antigos conhecidos.

A habitação de Clemência Petrônia surgia no cen¬tro do Esquilino, e era uma das melhores casas de Roma. O vestíbulo era rico de mármores, o átrio ornado com estátuas gregas, e em toda parte viam-se em profusão o ouro, a prata, o marfim, os mármores orientais, as púrpuras mais preciosas.

Chegando ao átrio, Valéria alegrou-se com a vista da magnífica coluna de pórfiro e dos numerosos es¬cravos que o ocupavam, e por um instante deleitou-se na contemplação daquelas riquezas que tanto cobiçava, mas o seu contentamento foi muito curto, e a humi¬lhação feriu o seu coração e o sangue corou-lhe as faces, quando teve que se dirigir a um escravo para que avisasse a patrícia que uma citarista oferecia-se para servi-la.

— Espera aqui, linda donzela, e dentro em pouco saberás a vontade da matrona — disse o escravo aca¬riciando o queixo de Valéria, que pálida de raiva o teria esbofeteado se ele não se tivesse afastado.

A familiaridade do escravo fizera ferver o sangue patrício de Valéria, que pela primeira vez se lembrou de que, pondo-se ao nível dos escravos, haveria de su¬portar a amizade, as brincadeiras, e talvez até os in¬sultos deles.

Milo olhava melancòlicamente a sua patroa, com a certeza de que o gênio dela não era apto a suportar com resignação os sofrimentos duma humilde posição; por isso ainda uma vez quis levá-la a desistir do pro¬pósito de ser citarista de Clemência Petrônia.

Teimosa como sempre, Valéria repeliu os conse¬lhos do anão, dizendo que não lhe seria difícil manter afastada de si aquela súcia de escravos, e para demons¬trá-lo respondeu orgulhosamente recusando-se a com prazer as ancilas da matrona que lhe pediam de tocar um pouco a citara.

Milo conhecia bem até demais as pessoas no meio das quais nascera, e tinha certeza que Valéria com as suas maneiras altivas atrairia sobre si a antipatia dos escravos; por isso lhe pediu para não se fazer odiar logo desde o primeiro instante por aqueles com quem devia viver em paz.

Como de costume, as observações do anão não de¬ram nenhum fruto. Valéria não quis tocar, e já as ancilas começavam a lhe atirar suas graçolas picantes, quando em boa hora o servo, que lhe acariciara o queixo, voltou para lhe dizer que a patrícia desejava vê-la.

Milo ficou no átrio alvo das chocarrices das es¬cravas, que, para se vingar da incivilidade da citarista, escarneciam-no, e Valéria seguiu o servo, admirando com vivo prazer as lindas salas pelas quais passavam.

— Ó jovem, se quiseres fazer coisa grata à ma¬trona, fala em voz baixa e aparenta surpresa pela beleza dela — disse o servo que no fundo era boa pessoa; depois levantou uma pesada cortina de da¬masco e acenou a Valéria para entrar no quarto contíguo.

A mocinha não era desprovida de espírito, mas tendo que se apresentar como humilde ancila diante duma mulher igual a ela pelo nascimento, hesitou em transpor a porta; depois, irada contra a sorte que a humilhava daquela maneira, criou coragem e erguen¬do a cabeça em atitude altiva, entrou no quarto onde a patrícia Clemência costumava receber os amigos; mas chegando no meio do aposento parou; a expressão al¬tiva desapareceu do seu rosto, e para embargar a von¬tade de rir, que lhe sobreviera de repente, mordeu os lábios e virou a cabeça para trás.

A moça bonita, que, para obedecer à moda, de¬turpa seu rosto para torná-lo mais lindo, excita o des¬prezo; mas a mulher madura, que, chegando à idade na qual há de inspirar respeito, se torna ridícula por meio de hábitos esquisitos e pueris, dá nojo e desperta a hilaridade.

Do tempo da república até os primórdios do im¬pério as modas variaram freqüentemente, conservando quase sempre algo de severo, apesar de terem as vestes perdido a simplicidade do tempo de Rômulo; mas, perto da decadência do império, o luxo aumentara em ma¬neira desmedida, e a moda, ditada quase sempre pelos poderosos, tornara-se ridícula e também apta a defor¬mar a beleza. Os filósofos cristãos faziam de tudo para curar essa praga da sociedade; e do passado julgando o futuro, previam a caída de um império, cujos cos¬tumes empobreciam e envileciam as famílias patrícias.

A vista da matrona Clemência, mais ridícula que a de qualquer outra mulher, excitava o riso. De idade avançada seu rosto engelhado aparecia recoberto duma camada de alvaiade e carmim, uma pirâmide de ca¬belos falsos entrelaçados de pérolas elevava-se, acuminada, sobre a sua cabeça. E uma porção de estrelinhas estava colada na sua testa e cobria-lhe as têmporas, como se o inteiro firmamento tivesse descido sobre as suas sobrancelhas pintadas. Vestia uma comprida estola de seda azul com flores brancas e vermelhas, e os braços e o pescoço estavam recobertos de jóias preciosas.

Aquela múmia pintada em várias cores estava dei¬tada com afetada moleza sobre um leito de púrpura; a seu lado havia uma escrava flabettífera , e outra, ajoelhada perto do leito de triclinio, tinha no ombro uma ave africana que Clemência acariciava de vez em quando.

Vendo Valéria a escrava flabettífera abaixou-se para segredar ao ouvido da senhora:

— Ilustre patrícia, a citarista chegou à tua presença.

Petrônia estendeu a destra com gesto estudado, acenando a Valéria para vir adiante.

A jovem aproximou-se, e a matrona, sem se im¬portar em olhá-la, disse com tom imperioso:

— Toca.

Valéria agastou-se por aquela ordem insolente e, arrastada pelo seu gênio indomável, estava para deso¬bedecer, quando, refletindo mais sabiamente, iniciou uma melodia que se diria o eco do seu pensamento, porque era desarmônica e parecia um grito de raiva.

A velha lambuzada nada entendia de música; aquele som desafinado pareceu-lhe lindo, e, depois de ouvi-lo com a maior atenção, aplaudiu; depois falando baixo para tornar doce a sua voz roufenha, perguntou à jovem:

— Onde nasceste?

— Cidadã romana, eu nasci na Dalmácia de famí¬lia plebéia e somente a indigência me obriga a tornar-me citarista

A matrona, acostumada às bajulices de seus escra¬vos, estranhou a linguagem altiva de Valéria; por isso olhou-a com despeito e disse desdenhosamente:

— Apesar de não gostar da tua aparência, dar-te-ei serviço em minha casa e cuidarei para que sejas edu¬cada como há de sê-lo quem trabalha em minha casa.

Valéria franziu o sobrolho pela ira; seus lábios moveram-se para responder atrevidamente à matrona, mas também aquela vez conseguiu dominar-se e, abai¬xando a cabeça, ficou calada.

— Ficarás com as ancilas e com elas compartilharás as refeições; a respeito do ordenado serei ge¬nerosa conforme teus méritos — disse Clemência.

O orgulho de Valéria recebeu outra ferida e tal¬vez mais profunda do que a primeira. As lágrimas molharam as suas pupilas, e a irrefletida começou a sentir toda a amargura daquela posição escolhida tão desastradamente.

— Adoro a música — continuou Clemência, en¬quanto a mão ossuda acariciava as penas da ave — e tu deveras tocar a qualquer meu aceno; mas flébil e mesto há de ser o som da tua citara: detesto qualquer har¬monia barulhenta. À noite adormecerei embalada pela música e pela manhã, perto da metade do dia; acordar-me-ás tocando. Se souberes ganhar os meus favo¬res, serás a mulher mais feliz do mundo. Meu cora¬ção é bom e sensível; eu amo meus escravos, e até os animais me são muito queridos.

Assim dizendo a velha estendeu a mão ao pássaro, que, assustado, levantou vôo e foi parar na piramidal peruca da patrícia vasculhando-a com o bico.

A mulher, fula, agarrou o bicho apertando-o até sufocá-lo; depois, quase morto, jogou-o do meio do quarto.

Valéria sentiu compaixão pelo pobre animalzinho, que, agitando as asas, agonizava, e apanhando-o do chão procurou reanimá-lo com seu hálito.

Toda ocupada em se ajeitar à peruca, a velha vaidosa não prestou atenção à mocinha, mas quando a viu preocupar-se assim com o culpado, deu um pulo pela raiva e com voz rouca gritou:

— Deixa morrer o bicho que mereceu o meu cas¬tigo, e vai embora ou acabarás como ele!

Reprimindo a custo a vontade de arrebentar a citara na cabeça da velha, Valéria saiu do quarto, e levando consigo o pássaro desceu no pórtico.

— Viste a matrona? — perguntou Milo correndo a seu encontro.

— Sim, a vi: é ridícula e é ruim; e se não fosse tarde demais, arrepender-me-ia de ter descuidado teus conselhos.

— Ainda é tempo; volta para a casinha, eu pedi¬rei esmola para proporcionar-te o pão de cada dia, uma vez que não queres aceitar a proteção de Asela e Melânia — falou Milo suplicante.

— É tarde demais, respondeu Valéria, mas se a minha existência tornar-se insuportável, eu bem sabe¬rei acabar com ela.

Milo não compreendeu o sentido misterioso das palavras que Valéria pronunciava em tom sombrio. Comovido beijou-lhe a mão, e não conseguindo repri¬mir o pranto, afastou-se do átrio.

Valéria correu para o limiar do vestíbulo e, cho¬rando também ela, seguiu o anão com o, olhar. Aquele ser disforme tornara-se querido desde que Marcelo a deixara, e tivera ensejo para avaliar a sua abnegação. O pensamento de ficar sem amigos, no meio de pessoas estranhas que a considerariam como uma serva, quase a levou ao desespero; mas refletindo que, afinal das contas, ela era livre e que a qualquer hora pode¬ria deixar aquela casa onde esperava somente vexames e maus tratos, reanimou-se e voltou entre as ancilas que se haviam declarado suas inimigas.

Se Valéria estava triste, Milo estava ainda mais; afastava-se da casa de Clemência Petrônia chorando co¬mo criança; era a primeira vez que se separava daque¬la mocinha que amava com afeto paternal e que fizera brincar sobre seus joelhos quando ela era criança, so¬frendo resignadamente com o passar dos anos a ingra¬tidão. Para ele Marcelo e Valéria eram uma herança de infelicidade a ele deixada por uma desditosa mulher.

Até a noite Milo vagueou pelas ruas mais solitá¬rias de Roma, ora chorando e ora consolando-se com o pensamento de que o dia seguinte poderia rever a jovem. Ao pôr do sol, cansado, exausto, por tantas e cruéis emoções, encaminhou-se rumo à casinha, e aí chegando, a sua dor aumentou e pondo a mão a destra sobre a cicatriz duma ferida que lhe atravessava o peito, dizia amargamente:

— Se ele tivesse golpeado melhor agora eu não sofreria tanto.

Depois de ter chorado muito, Milo deitou-se, mas o sono não veio a confortá-lo, e via com a imaginação Marcelo êxule em terra estrangeira abandonar-se ao desespero, via Valéria enxotada e espancada pelas es¬cravas de Clemência Petrônia. Atormentado por tais cruéis imaginações, exclamava soluçando:

— Oh! tu que fostes uma mártir sobre esta terra, roga ao           Todo-poderoso pelos teus filhos.

Não conseguindo dormir, o anão saiu da casinha na esperança que o ar fresco da noite acalmasse a sua agitação febril, e encaminhou-se pela viela; mas logo parou vendo um homem, que, de lanterna na mão, ia de encontro a ele.

"Talvez seja o velho que dorme na casa arrui¬nada", pensou o anão; e aproximando-se lhe disse:

— Amigo, és tu aquele que dorme nas ruínas da casa vizinha?

Ouvindo a voz do anão o barqueiro deu um grito estridente; depois aproximando a luz do rosto de Milo recuou aterrorizado, e, transtornado, com os cabelos eriçados, gritou, enquanto deixava cair a lâmpada e fugia precipitadamente.

— A sombra de Vertuno! O espectro da minha vítima!

O anão também tremia pelo horror, somente um homem o chamara tempo atrás com a alcunha de Vertuno , e ele o reconhecera; julgando, porém, ser vítima duma funesta visão, fechara os olhos tremendo de medo; quando os reabriu, encontrando-se sozinho naquele lugar solitário, seu susto aumentou e começou a correr feito louco. Correu por muito tempo, como se fosse perseguido por aquele que reputava um espec¬tro; depois, sem forças, caiu pouco longe das ruínas do templo de Marte em Piscina, onde o santo Pontífice Anastásio já fizera erigir a igreja cristã de São Xisto.

O pobre Milo ficou a noite inteira estendido no chão e Deus sabe até quando lá ficaria, se um sacer¬dote, que pela madrugada ia à igreja, não o tivesse socorrido.

O bom sacerdote não se assustou com a feiúra de Milo, que, coberto de poeira, de olhos esbugalhados e rosto pálido era simplesmente medonho; e pegando-o nos braços levou-o para a sua habitação no morro Célio, perto do Clívio de Scàuro onde o Senador Pamáquio , que empregara as suas riquezas em obras pias, fizera construir a igreja dos santos João e Paulo. Aí deitou-o na sua pequena casa, onde ficaria bastante tempo, abalado por uma febre violenta e assistido apenas pelo piedoso sacerdote que a Providência pusera no seu ca¬minho.

 

A ausência prolongada do anão causava a mais viva preocupação a Valéria que o esperava com im¬paciência. Não o vendo aparecer, tencionava procu¬rá-lo, mas estava proibida de se afastar da casa da patrícia Clemência Petrônia.

A vida da infeliz moça tornava-se cada vez pior; seria, entretanto, menos cruel se Valéria soubesse re¬sistir energicamente à dor, aceitando-a como uma pu¬rificação; mas seu ânimo acostumado a ditar ordens não suportava aquela humilde condição. As escravas de Clemência haviam-se tornado suas inimigas, e faziam de tudo para humilhá-la. À mesa deixavam-na de lado, oferecendo-lhe as sobras dos alimentos, e escarneciam-na chamando-a por zombaria "a patriciazinha". Cada dia tinha que suportar mil pequenos vexames, que con¬tinuamente repetidos tornavam-lhe a vida impossível. Grande era a maldade das ancilas, maior, porém, era a prepotência e a grosseria de Clemência Petrônia, que obrigava Valéria a tocar de manhã até a noite, e quando não gostava da melodia, enfurecia-se com a citarista, chamando-a brutalmente: refugo da plebe, rebotalho de escravidão.

Aquela manhã, Valéria, mais triste ainda do que de costume, tocava diante da patrícia, que estava enfeitando-se para um espetáculo público.

A velha frívola estava sentada folgadamente sobre duas macias almofadas de seda, colocadas uma em cima da outra. Uma ancila, segurando um espelho de aço polido, apresentava-o de vez em quando diante do rosto da múmia envernizada, e as outras escravas estavam atarefadas em preparar as vestes, as jóias e os cos¬méticos. Clemência lambuzara-se mais do que de cos¬tume, duas manchas de carmim ressaltavam nas suas faces rugosas. A sua peruca no lugar de ser pontuda e negra, era loira, cacheada, ornada com uma quantia de borboletinhas douradas e cravejada de pérolas e esmeraldas.

Valéria não ria mais à vista da patroa; o nojo tornara-se mais forte do que o riso. Pensando no passado, enrubescia por ter-se pintado o rosto, e uma voz secreta dizia-lhe que ela também, gostando assim de enfeites   tornar-se-ia, com o passar dos anos, uma velha ridícula.

Clemência pôs uma veste de pano branco onde estavam tecidos um sem número de cupidos de arco esticado, e depois começou a pavonear-se acompanhada pelas melífluas adulações das ancilas.

Valéria permanecia calada, e seu olhar só expres¬sava a repugnância que lhe inspirava a velha maluca, que olhando hostilmente a citarista estava zangada por não receber dela louvores; e andando-lhe em volta para mendigar inutilmente uma lisonja, disse raivosa:

— Somente tu estás muda, e não sabes dizer nada de amável à tua patroa.

Valéria sacudiu os ombros, sorriu ironicamente e continuou calada.

O silêncio e o sorriso da jovem atiçaram a ira da matrona, que no auge da cólera, deu-lhe uma bofetada.

Valéria uivou de furor, seus olhos faiscaram, estendeu os braços como para agarrar a peruca da velha, depois pisou a citara que jogara ao chão, e disse em voz de indignação reprimida:

— Velha, agradece à tua idade se não te esgano agora mesmo; — depois saiu do quarto, desceu ao átrio o sem se deter abandonou a casa da patrícia, a quem o epíteto de velha dera convulsões.

Sem derramar uma lágrima, o rosto pálido mar¬cado pelo sinal violáceo dos dedos ossudos da matrona. Valéria voltava para a casinha. Uma dor sombria e fechada impedia-lhe de chorar; uma tempestade sacu¬dia a sua alma, e presa do delírio sentia a tentação de bater a cabeça contra os muros dos edifícios, que ladeavam a estrada. Ela se esquecia de ter muitas vezes esbofeteado seus servos, que sofreram em silêncio a afronta do insulto mais aviltante; não refletia de ter merecido a sua punição, e que a justiça divina freqüen¬temente castiga com a mesma pena. Andava cabisbaixa apertando os punhos como se segurasse lá dentro Cle¬mência Petrônia, e arrependia-se por não se ter vinga¬do diferentemente. Finalmente chegou à casinha, e quando de longe viu seus muros, aquela choça lhe pa¬receu uma regia; o coração palpitou de alegria, se é que seu coração pudesse experimentar alegria mergulhado como estava na dor, e lembrando-se das palavras do anão, exclamou:

— Melhor o próprio tugúrio do que o rico palá¬cio dos outros.

Depois correu na esperança de encontrar Milo, e filtrando na casinha cuja porta estava semi-aberta, gritou:

— Milo, Milo onde estás?

Ninguém respondeu; em vão a pobre Valéria o procurou em todo canto. Saindo, então, de casa cha¬mou de novo em voz alta o servo fiel; e o eco das ruínas da casa derrocada repetia lugubremente o nome de Milo!

Desesperada, Valéria reentrou, e sentada num canto chorava, pensando que o pobre anão ficando sozinho tivesse fugido longe daquele lugar que lhe recordava seus patrões. Agora que se encontrava em solidão, ela, tarde demais, avaliava a companhia daque¬le pobrezinho cuja abnegação abrandara-lhe a desven¬tura. Agora não tinha um amigo sequer; sozinha, haveria de mendigar ou morrer de fome! O pensa¬mento de se dirigir a Décio, para que a recomendasse a alguma matrona romana, veio-lhe de novo à mente; mas logo o rechaçou, não querendo manifestar a sua miséria ao jovem patrício. Até a noite ficou sentada, de olhos cravados na porta da casinha, com a esperança de que aparecesse o anão, mas a expectativa ficou bal¬dada. Recordando-se também de que Milo dissera-lhe que um homem morava nas ruínas da casa derrubada, teve medo, e de olhos arregalados espreitava através da janela de onde se viam em distância os restos der¬rocados.

A noite estava caindo, o medo e a dor iam aos poucos alterando o juízo da jovem. De repente um funesto pensamento apoderou-se da sua mente. A re¬cordação do passado aumentava as suas penas, o pre¬sente horrorizava-a; nada esperando mais do futuro, resolveu morrer sem amedrontar-se com a eternidade de castigo que estava esperando-a.

Concebida aquela culpável determinação, Valéria acalmou-se, ergueu o rosto pálido, afastando com a mão os cabelos que lhe caíam em desalinho na testa, e dei¬xou apressadamente a casa. Chegando ao fim da ve-reda, virou a cabeça e, olhando pela última vez o tugúrio, exclamou:

— Adeus, Marcelo, adeus, Milo; dentro de pouco a infeliz Valéria terá acabado de chorar.

A inconsiderada prosseguiu seu caminho e só ouvia a voz de Satã que, ávido da presa, gritava-lhe ao ouvido: "Anda, anda". Era noite quando chegou à Ponte Palatina, porque queria atirar-se do lugar em que Mar¬celo caíra no rio; naquela hora a ponte estava deserta, Valéria aproximou-se ao parapeito, olhou o Tibre e fremindo de horror fechou os olhos, balbuciando na sua demência:

— Sentirei frio lá embaixo.

Pensando no que sofrerá, a desventurada encora¬jou-se, e subindo no parapeito estava para jogar-se no rio, quando um homem agarrando-a firme pelo braço, deteve-a e com voz severa disse-lhe:

— Mulher, qual demônio leva-te a pôr fim a uma existência de que só Deus é dono?

Valéria, assustada, não soube responder e olhou com supersticioso temor o indivíduo que a sacudia rudemente pelo braço.

— Fala, por que atentavas à tua vida? — insis¬tiu imperiosamente o desconhecido.

— A desgraça tornou-me insuportável a vida — respondeu a jovem não conseguindo resistir àquele ho¬mem, que, com tanta severidade, lhe falava.

— Aquele Deus, de cujo querer depende até a queda duma folha ou dum passarinho, ele corrige os que ama. Deves abençoar uma vida de provação, porque é o Onipotente que envia a desgraça, e não eliminá-la com um crime imperdoável, pois é o único que não pode ser expiado.

Havia uma expressão tão doce e ao mesmo tempo tão severa nestas palavras, que Valéria sentiu-se como¬vida: quis inutilmente distinguir o rosto de quem es¬tava falando, a escuridão da noite não o permitia. Se conseguisse   vê-lo experimentaria plena veneração para aquele homem, de aspecto tão imponente, e tendo nos olhos um brilho sobrenatural.

— Segue-me — falou o desconhecido, tomando de novo o braço da jovem.

Coisa estranha: dessa vez Valéria não teve medo!

Naquele instante não lhe parecia estar só na terra; uma voz secreta lhe dizia: encontraste um protetor, um amigo!

O homem e a mocinha foram caminhando pelo Aventino, e logo ele parou diante duma casa modes¬ta, tendo ao lado um grandioso prédio, e apontando-a disse:

— Moro aqui, mas não posso oferecer-te hospeda¬gem, nem quero levar-te à casa vizinha, onde, segundo o exemplo da patrícia Marcela, vivem as virgens que se consagraram a Deus. Suas almas cândidas assustar-se-iam vendo teu aspecto transtornado. Afastadas do mundo, elas ignoram a existência das paixões tempes¬tuosas, que fazem naufragar no oceano da vida. A porta daquele santo recinto abrir-se-á para receber-te, se pedires, quando, purificada pelo arrependimento, te tomares mais branca do que a neve... Agora segue-me.

— Aonde me levas? — - perguntou Valéria com ansiedade.

— Para a casa duma piedosa matrona que viveu no mundo, e depois de conhecidas as misérias do mes¬mo, abandonou-o para se consagrar a Deus e servir os pobres.

Depois de poucos passos, o desconhecido entrou no vestíbulo duma ampla casa, e precedido por um servo entrou num quartinho onde à luz duma lâmpada duas matronas estavam fiando.

Uma era Asela Camila, a outra Melânia. A se¬gunda descendia de uma antiga família patrícia de origem espanhola. A desventura a surpreendera no meio da felicidade; esposa dum homem que amava, mãe de três filhos, aos vinte e três anos ficou viúva, e ao mesmo tempo perdeu duas das suas criaturas

A dor foi imensa, mas não chorou, não murmurou; aliás, de braços estendidos para um Crucifixo, gritou, no dia funesto em que se viu privada do esposo e dos filhos: "Eu agradeço-te, meu Deus, por teres quebrado os vínculos que me ligavam à terra!" E com heróica coragem seguiu o cortejo fúnebre do esposo, carregan¬do nos braços o cadáver do menor dos filhos. Depois partiu para o Egito; visitou os anacoretas da Tebaida, e mais férvido tornou-se nela o amor divino. Perse¬guida pelos arianos foi encarcerada, mas logo libertada; serviu os prisioneiros católicos, introduzindo-se disfar¬çada nos cárceres, e gastou a maioria das suas substân¬cias para socorrer os pobres perseguidos. Depois fundou em Jerusalém um abrigo de virgens consagradas, e depois de muitos anos voltou para Roma, para ver o único filho sobrevivente, resolvida a partir de novo sem demora para se retirar no mosteiro que fundara.

Dotada de caráter enérgico, nos tempos das per¬seguições Melânia ter-se-ia tornado uma heroína da Igreja, arrostando a morte com alegria. Seu coração sensível levava-a a amar aos pobres, aos infelizes, que encontravam nela uma mãe piedosa, os pecadores ar¬rependidos, uma amiga que lhes falava com entu¬siasmo da bondade divina.

Asela e Melânia amavam-se ternamente; seus co¬rações eram igualmente santos, mas assemelhavam-se apenas na bondade, pois o de Asela era plácido como a superfície dum lago; o de Melânia ardente como um raio do sol espanhol e atirava-se a Deus cheio de ardo¬roso entusiasmo.

Vendo o acompanhador de Valéria, as matronas levantaram-se para saudá-lo, e Melânia exclamou:

— Bem-vindo, Jerônimo, sempre trazes a bênção divina à minha pobre casa.

— Irmã, conduzo-te uma ovelha desgarrada do aprisco, ou melhor, um cordeiro que nunca ouvira a voz do pastor — disse Jerônimo indicando Valéria, que, com muito espanto, olhava as matronas, cujo aspecto era tão diferente do de Clemência Petrônia.

Mal o santo doutor pronunciara aquelas palavras, Melânia correu perto da jovem e fitando-a com seus grandes olhos cheios de lágrimas, afirmou com voz compassiva:

— Sê bem-vinda em minha casa, ó filha; se sofreste, chorarei contigo para consolar-te; se pecaste, o ar¬rependimento santificar-te-á, pois todos podem errar, mas nem todos sabem corrigir-se.

A benévola acolhida de Melânia comoveu Valé¬ria, que, escondendo o rosto nas mãos, começou a cho¬rar copiosamente.

— Irmãs, louvemos a divina bondade, que deu hoje ensejo a um humilde servo de Deus para salvar uma alma da eterna perdição — disse Jerônimo.

As matronas ajoelharam-se e Asela agradeceu a Deus; também Valéria dobrou os joelhos chorando pela culpa que tencionara cometer, e pela primeira vez desde que nascera, seu ânimo se dirigiu àquele Deus           Todo-poderoso e misericordioso, em quem nunca pen¬sara! ...

 

                   OS GÔDOS

 

Quem tivesse visto Roma no tempo de Domiciano, de Nerva ou de Trajano, ficaria aturdido pelo barulho incessante que aí reinava. Carros carregados de mer¬cadorias percorriam as ruas abarrotadas por pessoas vestidas em trajes gregos, asiáticos, africanos; os ven¬dedores ambulantes berravam, sobretudo os salsamentários e os traficantes de escravos, que expunham sua mercadoria humana diante das tabernas, louvando em voz alta as suas qualidades. Ilustres patrícios, rodeados de escravos, saíam dos templos para ir aos teatros, ao encontro de seres devassos; tanto que o marido podia repudiar a esposa se lá tivesse estado sem o seu con-sentimento. Os bufões os prestidigitadores, os decla¬madores davam espetáculo pelas ruas; os clientes bisbilhando, rindo, corriam a cumprimentar seu protetor; os ociosos iam aos pórticos para ouvir as notícias do dia; as matronas ostentavam as vestes luxuosas sentadas nos carpentios , era, enfim, um rebuliço contínuo de povo, uma barulheira contínua, suficiente para atordoar quem quer que seja. Quem tivesse depois visto Roma no tempo de Constantino, encontrá-la-ia muito diferente; fechados os templos pagãos onde antes celebravam-se horrendos mistérios, o povo rezava nas igrejas cristas, abertas a todos, e a cruz erguia-se no topo dos obe¬liscos; os declamadores não mais recitavam pelas ruas os versos de poetas eróticos, nem os bufões davam es¬petáculo público de cenas ofensivas ao pudor, nem as gaditanas dançavam ao som das castanholas, excitando a admiração dos moços vadios. Roma era ainda       ba¬rulhenta, mais pudica, porém, era a mulher que ficara purificada pela água lustral; era o rochedo contra o qual haveria de se esmigalhar a perversidade humana, era o abrigo dos pobres, a pedra onde devia apoiar-se o centro do cristianismo. A cruz expulsara os ídolos do paganismo.

Os pagãos não ostentavam mais a sua libertinagem, e estavam com saudade dos tempos antigos em que, à imitação dos imperadores, podiam mergulhar no lodo dos prazeres sensuais; os escravos rejubilavam-se ao ver o fim do seu cativeiro, e a voz dos propagadores do Evangelho dizia-lhes: "O Filho de Deus derramou seu sangue pelo rico como pelo pobre, pelo servo como pelo patrão". Mas quem, enfim, tivesse visto a capital do mundo no momento em que empreendo descrevê-la, isto é, quatro meses depois do dia em que Valéria encontrara asilo na casa de Melânia, ficaria aterrado. As casas dos patrícios, particularmente dos pagãos, es¬tavam hermeticamente fechadas, e diante do vestíbulo uma multidão de escravos armados de porrete impe¬diam a todos de se aproximar. As ruas melhores e povoadas por famílias de destaque estavam desertas; as lojas fechadas; os vendedores não ofereciam mais a sua mercadoria em voz alta; viam-se apenas magistra¬dos ir ao seu trabalho rodeados de escravos armados de relhos. De vez em quando ouvia-se um canto flébil e triste, e de alguma rua aparecia uma procissão de ho¬mens descalços e vestidos com sacos grosseiros que iam rezar no túmulo do Príncipe dos Apóstolos. Se as ruas em que moravam pessoas de destaque inspiravam tristeza pela desolação, as habitadas pela plebe desper¬tavam horror. Em toda parte se viam mulheres desgrenhadas, que arrastando a custo suas crianças, pediam pão em altos gritos, ou caíam desfalecidas pela fome, roendo sem proveito algum alimento repelente. Pelos becos jaziam cadáveres lívidos de homens da plebe que morreram na estrada, ou haviam sido jogados fora das casas para que não matassem os sobreviventes com seu fedor e os mortos eram tantos e tantos que muitos apo¬dreciam corrompendo o ar com exalações impuras, apesar de que os edis fizessem o possível para que fos¬sem enterrados. No meio de cenas tão nauseabundas e dolorosas, avaliava-se quanta abnegação inspire a fé, e como a religião de Cristo estenda a sua mão piedosa sobre as calamidades humanas. Entre tantas desven¬turas estavam presentes matronas respeitáveis, donzelas ilustres, jovens patrícios, virgens consagradas que ha¬viam momentaneamente abandonado seu claustro, para servir os pobres. Velhos sacerdotes de cabelos brancos entravam nas casas da plebe, e desafiando o contágio davam pão para os famintos, socorriam os enfermos, assistiam os moribundos com os socorros da religião; muitos deles tornando-se coveiros da caridade, sepul¬tavam os cadáveres em putrefação, e verdadeiros sequazes de Cristo, no pobre, no infeliz, viam e serviam o Filho de Deus.

O mais incansável de todos aquele que estava em movimento dia e noite, era Jerônimo, que, apesar da sua pouca saúde, corria para toda parte, não se dei¬xando assustar nem pelo cansaço nem pelo caminho comprido; era o anjo da beneficência e, com o bom exemplo, com a sublime eloqüência, tornava-se mestre de abnegação e de virtudes cristãs.

Época mais triste que aquela nunca surgira para Roma; a fome, a pestilência sobrevoavam a cidade eterna, e as hordas dos bárbaros chefiadas por Alarico aproximavam-se do túmulo de São Pedro!

O imperador Honório, desde quando os bárbaros estavam aproximando-se da Itália, residia em Ravena. Talvez a capital do mundo civilizado oprimisse seu ânimo mesquinho; talvez também a proximidade do sucessor de São Pedro despertasse ciúme num sobera¬no de escassa inteligência. Uma atrás da outra, as províncias caíam em poder dos bárbaros; em Roma desapareciam insensivelmente todas as antigas institui¬ções políticas; uma única instituição progredia, uma instituição divina de solidez inabalável, que soube do¬mar até os indomáveis bárbaros. A Igreja Católica é essa instituição, é o Pontificado romano. No meio das atormentadas vicissitudes de mais de três séculos, junto à clamorosa história do império, formara-se a história da Igreja por meio da fraternidade na cari¬dade, da liberdade moral e da heróica resignação dos mártires; portanto essa sagrada instituição, fortalecida na árdua luta contra o paganismo com a vitória glorio-sa sobre a idolatria, e no combate destemido da heresia soubera conservar a liberdade, ou melhor, a fizera res¬surgir da opressão em que a mantiveram reinantes despóticos. O palácio dos Césares, abandonado e silencioso, não ditava mais leis ao mundo, nem ninguém mais obedecia à força das suas armas; mas a voz trêmula dos anciões do Vaticano voava de terra em terra, e a religião civilizadora, progredindo cada dia mais. Tor¬nava-se poderoso como as legiões romanas.

As tropas de Honório, chefiadas por Estilicão dis¬persaram os bárbaros e chegaram até debaixo dos muros de Florença; mas foi a última vitória conseguida pelo valoroso e infeliz comandante romano, que foi recom-pensado pela mais negra ingratidão. Mas nada sob o sol é novo, disse o mais sábio entre os reis; a maldade humana, sempre golpeou os homens que souberam elevar-se acima da esfera comum: Cipião, como prêmio do seu valor, perdeu o comando das legiões romanas; Mário, sentado sobre as ruínas de Cartago, chorava a ingratidão de Roma; Estilicão, por ter derrotado os bárbaros, caiu vítima das intrigas da corte de Honório.

Alarico, querendo ostentar extraordinária genero¬sidade, mostrou-se indignado pela morte do seu valoroso inimigo, e dizendo de vingá-lo, avançou em direção de Roma. Conta-se que respondera a um pio eremita, o qual lhe suplicava para não pisar com seus bárbaros a terra banhada do sangue dos mártires: "Uma força poderosa arrasta-me para Roma e uma voz misteriosa grita-me: Destrua a cidade soberba!" Os romanos, apavorados pelo aproximar-se do inimigo, não se dis¬punham à defesa; o pressentimento duma funesta catástrofe paralisava a sua antiga energia; os cristãos reputavam a invasão uma terrível punição divina; os pagãos, recordando os vaticínios dos arúspices, julgavam tivesse chegado o último dia de Roma. No entanto Alarico atravessou o rio Pó perto de Cremona, e avan¬çando pela via Flamínia, deixou atrás de si Ravena, sem se importar com Honório que estava lá encerrado com a sua corte; e não querendo por enquanto atacar Roma, limitou-se a   bloqueá-la, esperando que se ren¬desse: com efeito bem cedo encontrou dois poderosos aliados na fome e na pestilência, que logo reduziram nas mais lastimáveis condições os desgraçados cidadãos de Roma.

Um dia que a mortalidade fora maior do que de costume, uma procissão atravessava as ruas além do Tibre para ir à Basílica de São Pedro; matronas, vir¬gens e crianças participavam da pia cerimônia; na frente de todos andava Marcela, rica patrícia romana, que, abandonado o mundo, transformava a sua casa do Aventuro num mosteiro de virgens consagradas: seguiam-na as freiras vestidas de branco com o rosto coberto por um cândido véu; depois vinham as matronas e as viúvas, depois as jovens patrícias com os cabelos engrinaldados por rosas brancas e a cabeça coberta por um véu azul, e por último as crianças.

As piedosas mulheres caminhavam de olhos baixos e com a mente dirigida a Deus; seu espírito abando¬nara a terra, de maneira que nenhuma delas, a não ser uma matrona e uma jovem, viu dois homens ago¬nizantes estendidos no chão.

O aspecto daqueles infelizes era assustador; tinham os membros inchados e o rosto manchado de pústulas pretas. De olhos vidrados, os punhos apertados pare¬ciam inanimados, e apenas um estertor sufocado indi-cava uma existência próxima ao fim.

Deixando a procissão, a matrona ajoelhou-se perto de um daqueles moribundos, e superando a repugnância, com a coragem cristã suspendeu-lhe a cabeça.

A jovem de manto azul correu perto da matrona, e ninguém reconheceria nela a Valéria de rosto pin¬tado e com vestidos de seda; não teve porém, força de ânimo para imitar a sua amiga, e recuando assus¬tada exclamou:

— Melânia, minha mãe, esse homem está conta¬giado. Não exponhas a tua vida preciosa ao contágio.

— Se não expusesse a minha vida por receio de perdê-la, não seria mais preciosa — respondeu Melânia; depois olhando em volta continuou com voz aflita:

— Meu Deus, ajudai-me para que possa levar esses infelizes para o hospital de Fabíola .

— Aqui não tem ninguém — disse Valéria olhan¬do em toda parte.

— Eis um homem! — exclamou Melânia indi¬cando um velho de vestes rasgadas que vinha para elas.

Era Sérgio, que à vista da matrona parou sur¬preendido.

— Irmão — disse-lhe Melânia — ajuda esses in¬felizes e eu recompensar-te-ei generosamente.

Sérgio não respondeu e já estava para pegar nos braços um dos pestilentos, quando Melânia o deteve:

— Amigo, não quero que por desejo de lucro ex¬ponhas a tua vida sem refletir no perigo que enfrentas; pensa que carregando este coitado poderás ser contagiado.

— Darás aos pobres a recompensa que me deves; eu sou coveiro da caridade — respondeu Sérgio brus¬camente.

A essas palavras a patrícia curvou-se cheia de res¬peito diante daquele velho de vestes rasgadas. A con¬fraria dos coveiros inspirava respeito a todos, porque era uma reunião de homens pertencentes a todas as classes, os quais, cheios de zelo cristão, sepultavam os mortos; o rico unia-se em fraternidade cristã ao pobre, o nobre ao plebeu, e ninguém ligava mais com a dis¬tinção de nascimento.

— Aonde hei de levá-lo? — perguntou Sérgio depois de ter levantado o corpo do chão.

— Para o hospital de Fabíola, ó pai, — respon¬deu Melânia, e depois, dirigindo-se a Valéria, disse-lhe:

— Vem conosco, ó filha.

— E esse coitado? — observou a jovem indicando o outro moribundo.

— Voltarei para buscá-lo — disse Sérgio.

— Mas no entanto poderia morrer, sem que uma alma piedosa reze a seu lado — respondeu Valéria.

— Não quero impedir-te uma obra caridosa; fica, portanto, dentro de pouco estaremos de volta — disse Melânia afastando-se.

Ficando só, Valéria tirou a capa branca que lhe ondeava nos ombros, e depois de enrolá-la, colocou-a debaixo da cabeça do moribundo, e   ajoelhou-se. A ca¬ridade cristã não poderia oferecer um quadro mais comovedor do que o daquela mocinha de cabelos coroados por uma grinalda de rosas, que, superando a repugnância natural, rezava perto daquele repelente pestoso.

Dois homens viram de longe a cena, e apressando o passo, um deles disse com voz comovida:

— Jerônimo, se não estou enganado, aquela vir¬gem piedosa é Valéria.

— E Melânia por que não está ai também? — observou Jerônimo falando consigo mesmo.

— Que está fazendo aqui, irmã? — disse Décio que chegara perto da mocinha antes de Jerônimo.

Valéria sobressaltou, empalideceu; depois, levantando-se, respondeu:

— Estou rezando por esse infeliz moribundo. Décio estava para dizer: "Tu és um anjo e eu não te conheci"; mas, não tendo coragem de pronun¬ciar o elogio à moça em presença de Jerônimo, ficou calado.

— Onde está Melânia? — perguntou Jerônimo es¬tranhando em vez a jovem sozinha.

Em poucas palavras Valéria contou que a matrona afastara-se para levar um moribundo para o hospital.

No entanto Décio abaixava-se sobre o agonizante e já estava para pô-lo nos ombros, quando Valéria, as¬sustada, exclamou:

— Irmão, esse homem tem a peste!

— Por que receias, ó donzela? Décio é coveiro e todos os dias enfrenta a pestilência — disse Jerônimo.

— Coveiro! — disse Valéria, e cheia de admira¬ção olhou aquele moço que ela tantas vezes escarne¬cera e desprezara.

— Apressemo-nos — insistiu Décio encaminhando-se, e Jerônimo e Valéria seguiram-no até o hospital de Fabíola.

Aquele hospital erigido num primeiro tempo para os doentes de toda espécie por uma piedosa mulher, na época do contágio servia para as vítimas da pestilência que eram ai assistidas por piedosas matronas.

Vendo os grandes quartos apinhados de moribun¬dos o coração de Valéria estremeceu de horror, e não tendo coragem de avançar ficou na porta de um vasto ambulacro, seguindo com o olhar Jerônimo e Décio, que depunham o moribundo sobre uma enxerga.

Pouco depois Melânia chegou perto da jovem para dizer-lhe que faltando os assistentes, queria ficar no hospital para ajudar as matronas fatigadas que não tinham um instante de descanso, em vista do grande número de doentes.

— Eu ficarei contigo — respondeu Valéria.

— Tu não agüentarias o trabalho e o fedor desse lugar -— observou Décio, que, chegando com Jerônimo, ouvira as palavras da jovem.

— Vai aonde te chama teu dever de coveiro, e deixa que Valéria cumpra uma obra de misericórdia, — o fedor desse lugar purificará a sua alma; a bondade divina vela sobre as criaturas beneficentes — disse Je¬rônimo severamente.

Décio não se atreveu a retrucar; deixou em silên¬cio o hospital, e chegando na rua viu Sérgio pensativo, com os ombros encostados no canto duma casa.

— Pobre velho, deixou a sua barca quando nin¬guém mais se servia dela, e agora talvez esteja sem recursos para viver —- disse o patrício; depois aproxi¬mando-se ao barqueiro acrescentou.

— Sérgio, vem para minha casa, peço-te de novo, e num tempo tão triste ajudar-nos-emos reciprocamente.

— Obrigado, patrício, — respondeu Sérgio; e desgostoso por ter sido estorvado na sua meditação afastou-se apressadamente.

— O orgulho dele é tão grande como a sua misé¬ria — dizia Décio ofendido pela recusa, enquanto se encaminhava para o lugar onde costumavam reunir-se os coveiros da caridade.

 

Valéria mudara muito desde que encontrara em Melânia uma terna mãe, em Asela uma amiga e em Jerônimo um mestre que lhe falava com sublime elo¬qüência dum Deus até então por ela desconhecido. A vida transcorrida perto da piedosa matrona em ou¬tros tempos ser-lhe-ia insuportável, mas depois de ter percorrido uma existência semeada de tributações, de¬pois de ter experimentado a fome, os insultos, a casa de Melânia era por ela considerada um abrigo pacífico, onde lhe era possível descansar, e aos poucos recebera a influência que o caráter doce e ao mesmo tempo enérgico da patrícia exercia sobre todos. Reencontrara Décio, e aquele moço, que em outros tempos fora alvo das suas zombarias, aquele único sobrevivente duma antiga e pobre família, que, não tendo bens de fortu¬na, suportava com digna resignação a miséria, inspi¬rava-lhe agora admiração; e comparando as virtudes de Melânia e Asela com a sua vida passada, julgava encontrar-se muito embaixo aos olhos daquele cuja es¬tima desejava e cujo desprezo temia.

A existência de Valéria transcorria, se não feliz, pelo menos pacífica, se o silêncio e a ausência de Mar¬celo não a afligissem incessantemente; além disso, pen¬sava também em Milo, de quem não sabia mais nada, e a esses cruéis pensamentos acrescentava-se também o temor da pestilência, que cada dia se tornava mais cruel. Não só para si temia, pois não era egoísta, mas preocupava-se também pelos seus benfeitores, que já amava com todo o impulso de um coração virgem de todo afeto. À noite, depois de ter voltado do hospital, onde, seguindo o exemplo de Melânia, Asela e mui¬tas outras matronas, desafiara o contágio, deitava-se com a mente conturbada pela recordação de cenas cruéis, e sem fechar os olhos ao sono, pensava, fremindo, que de uma hora para outra seus amigos poderiam cair vítimas da peste. Pensando nisso, um suor frio banhava seus membros, e não esperando na eficácia daquelas orações que aprendera recentemente, chegava a delirar. Na manhã seguinte, cansada por não ter dormido, le¬vantava-se cedo, e escondendo seu abatimento moral, seguia Melânia ao hospital de Fabíola, onde passava o dia assistindo os doentes com zelo incansável, de tal maneira que todos admiravam aquela jovem patrícia, que, desprezando o cansaço e o perigo da moléstia, estava sempre em movimento. Agora correndo perto dum moribundo para molhar-lhe os lábios áridos na agonia, agora amparando um convalescente, que, vol¬tando à vida, começava a andar cambaleando. Um dia fechara os olhos duma pia jovem, que, falecida na flor da mocidade, entregara a alma a Deus, feliz de sair do mundo ainda virgem, sorrindo aos anjos que lhe entrelaçavam uma grinalda de lírios; ajoelhada à cabeceira da defunta, Valéria invejava aquela que dei¬xara a existência antes de conhecer suas angústias e que, após ter percorrido um curto caminho semeado de flores, descansava lá onde as desventuras não podiam afetá-la.

— Bem-aventurados os que morrem em Deus. Bem-aventurados os que, depois duma vida virtuosa, encontram descanso na morada do Eterno! — excla¬mava Valéria fitando o rosto céreo da defunta.

— Bem-aventurados os que, depois de ter chorado na terra, sorriem no céu. Bem-aventuradas aquelas almas que, arrastadas como frágeis embarcações pelas vagas das aflições humanas, encontram o porto eterno de salvação — disse Melânia que chegando naquele momento ouvira a exclamação da jovem.

Valéria apertou com ternura a mão da matrona, que a convidou para acompanhá-la à Basílica de Pamáquio , onde naquela hora reuniam-se os fiéis para rezar ao Onipotente, cuja cólera ameaçava flagelos ter¬ríveis para o povo romano.

Uma ao lado da outra as duas mulheres percor¬reram as esquálidas ruas do morro Aventino e, depois de terem atravessado o Célio, chegaram ao clivo de Escauro. A igreja edificada pelo senador Pamáquio tinha um aspeto simples e severo, e inspirava ao ânimo aflito uma doce melancolia; dir-se-ia que os gemidos dos atribulados, atravessando o forro do lugar desti¬nado à oração, elevavam-se mais harmoniosos e aceitos ao trono daquele que sabe suavizar toda ferida, con¬fortar toda lágrima e que não repele o coração arre-pendido e humilhado que a ele se dirige.

As igrejas cristãs foram construídas à semelhança daqueles vastos salões onde os pagãos reuniam-se para discutir os negócios, e à imitação deles tomaram o nome de basílicas. Longe do barulho, separadas dos outros edifícios, as primeiras igrejas de Roma surgiram em lugares solitários propícios à oração e à meditação.

O altar-mor elevava-se no fundo da nave central e consistia numa mesa de mármore apoiada em quatro colunazinhas enroscadas e sombreadas por um palio dou¬rado.

Os mansionárius , espalhados pela igreja, distribuíam os lugares aos fiéis, e já se dispunham a dar com a campainha o sinal da reza, quando Melânia e Valéria entraram no lugar sagrado.

Valéria ajoelhou-se perto duma coluna è unindo as mãos dirigiu o olhar para a capela-mor, rezando por Marcelo e pelos seus benfeitores.

Melânia prostrou-se não longe da moça, e abaixan¬do a cabeça até o chão, aprofundou-se na oração.

Enquanto as duas mulheres rezavam fervorosa¬mente, um mansionarius, acompanhado por um menino, passou perto de Valéria e continuou o caminho; mas aquele que parecia um menino, deixou escapar uma exclamação de surpresa e apoiou-se a uma coluna para não cair; pobre Milo! Naquele instante julgava estar sonhando e aquela pálida donzela de veste branca pa¬recia-lhe o fantasma da sua patroa.

No entanto o sacerdote, ajoelhado diante do altar-mor, entoava os primeiros versículos dum salmo que os fiéis repetiam em coro; o canto era flébil e triste como uma lamentação; e, com efeito, gemidos de viú¬vas e órfãos enchiam a alma de imensa tristeza. Todos rezavam com devoto fervor, pois o homem quando não espera mais no homem, levado pela desgraça, dirige-se a Deus, de quem se esqueceu nas horas ditosas; todos rezavam, com exceção de Milo, que fitava Valéria com os olhos perturbados, não ousando mover-se, por medo que a suposta visão desvanecesse.

Terminado o salmo, o sacerdote benzeu a multi¬dão, depois os fiéis saíram da casa de Deus santificados pela oração, reanimados pela fé e pela esperança.

Enquanto Valéria caminhava vagarosamente pela descida do clivo de Escauro, virou-se surpreendida ao ouvir um gemido, e logo soltou um grito de alegria ao reconhecer o fiel anão que, seguindo-a ofegante, exclamava num júbilo irrefreável:

— Valéria, minha senhora, reencontro-te final¬mente!

O coração da jovem sobressaltou de contentamento vendo o pobrezinho que tanto lhe queria; oprimida pela emoção, não tendo forças para falar, estendeu-lhe a destra; depois, vencendo a emoção, disse:

— Milo, servo fiel, eu julgava-te morto.

Enxugando as lágrimas de alegria, o anão contou como desfalecera nos arredores da porta Capena; calou, porém, os motivos que o fizeram desfalecer. Falou em seguida da caridade do piedoso sacerdote que o le¬vara ao clivo de Escauro, onde tinha sido acometido por uma febre rebelde e violenta; acrescentou que, depois de restabelecido, fora à casa da patrícia Clemên¬cia Petrônia, onde lhe disseram que Valéria fugira de Roma.

— Desde aquele dia — prosseguiu Milo — o de¬sespero apoderou-se do meu coração; a angústia foi tão intensa que caí outra vez doente, e teria morrido sem a assistência do caridoso sacerdote. Hoje fui à igreja rogar à bondade divina para reencontrar-te. Deus Todo-poderoso ouviu o meu pedido, e te vi no lugar sa¬grado. Não acreditava em meus olhos e te reconheci plenamente só depois que te vi caminhar.

— Boa criatura — disse Melânia comovida — de agora em diante não abandonarás mais a tua patroa.

Milo dirigiu-se à patrícia para agradecer-lhe e com surpresa reconheceu a matrona que já uma vez lhe oferecera abrigo.

Valéria e Melânia retomaram o caminho, e o anão seguia-as a uma distância respeitosa. Chegando perto do arco triunfal de Constantino, Melânia parou, e dirigindo-se à filha adotiva disse:

— Tenho que ir ao morro Esquilino; uma pobre mulher que morreu ontem no hospital recomendou-me seus órfãos que moram lá em cima. Se quiseres en¬frentar uma longa caminhada, vem comigo; caso con¬trário podes voltar para a nossa casa acompanhada por Milo.

Valéria, apesar de cansada, quis acompanhar a ma¬trona, e ambas dirigiram-se para o Esquilino com a alma contristada pelas cenas dolorosas que se apresentavam a seus olhares. Porque ora viam uma lúgubre turma de coveiros que, vestidos de túnica escura, carregavam um cadáver numa padiola descoberta, ora encontravam mu¬lheres, crianças, velhos andrajosos que em pranto pe¬diam pão ou invocavam auxílio para um moribundo. Melânia teria gostado de aliviar tantas misérias, e não conseguindo fazer mais, num triz esvaziou uma bolsa cheia de moedas que carregava à cintura.

As duas amigas já haviam percorrido muitas ruas do Esquilino, quando Valéria, parando, indicou uma casa majestosa que se via ao longe, e com voz fremente disse:

— Eis a casa da patrícia Clemência Petrônia; eis o lugar onde fui esbofeteada.

— Não penses no passado, ó filha, e perdoa àquela que te ofendeu — respondeu Melânia.

Valéria calou-se e, com olhar turvo, sobrancelhas contraídas, aproximou-se da casa da velha patrícia.

Naquele momento a casa de Clemência Petrônia parecia deserta; a porta do peristilo estava aberta, de maneira que se podia ver o átrio e um galho de ci¬preste, sinal que havia aí alguém que estava morto ou para morrer, via-se pendurado a uma coluna do peristilo. Quando Melânia e Valéria chegaram diante da casa, dois escravos carregados de pesados fardos saí¬ram depressa, e se afastaram olhando em volta como se tivessem receio de ser vistos.

— A morte visitou esta habitação, surpreendendo a velha maluca no meio de seus egoísticos gozos — disse Valéria com amargura.

— Talvez Clemência não esteja morta; mas so¬zinha, abandonada pelos seus escravos poltrões, não tem uma mão amiga para lhe fechar os olhos — observou Melânia aproximando-se do peristilo.

— Nada podemos fazer por ela — respondeu a jovem, que, não esquecendo o insulto recebido, não ti¬nha compaixão para a patrícia Clemência Petrônia.

— Estás enganada, ó Valéria, porque com a nossa presença podemos abrandar-lhe os últimos instantes — frisou Melânia, fitando com os, olhos negros a jovem, que ao pensar em ver aquela que a percutira, fremia de indignação.

— A desapiedada mulher já está morta; não vês o galho de cipreste? — respondeu Valéria com impa¬ciência.

— Filha, não é cristão quem não sabe perdoar as ofensas; o ódio não pode transpor o túmulo, e o rancor deve desaparecer à cabeceira do moribundo — disse Melânia com acento de severa repreensão.

O rosto pálido de Valéria corou, o remorso pene¬trou-lhe no coração, e levantando a cabeça, que abai¬xara no peito pela admoestação da matrona, disse hu¬milhada:

— Perdoa, ó mãe, perdoa aquela que, fraca e vil, não tem força para dominar as suas paixões.

— Tu pedes perdão, entretanto o negas a Cle¬mência? — disse Melânia com doçura.

— Vem, aproxima-te, ajudemos a patrícia, se ain¬da for possível, e rezemos por ela se estiver morta — exclamou a jovem com transporte.

— Sê bendita, minha filha, — disse a matrona; depois, segurando a destra da mocinha, seguida por Milo, transpôs o limiar da casa de Clemência Petrônia.

 

As ricas salas da morada de Clemência Petrônia estavam desertas e nelas havia a maior desordem; as trípodes derrubadas não exalavam suaves perfumes; os armários de madeira marchetada de marfim estavam abertos, os leitos de triclínio sem os cobertores de púrpura; tudo indicava que os escravos antes de abando¬nar a patroa haviam vasculhado em toda parte rou-bando o que lhe fora possível. Aquelas salas suntuo¬sas tinham um aspeto desolador. Melânia e Valéria atravessaram-nas não ousando quebrar o silêncio, de maneira que no pavimento de mosaico só se ouvia o ruído dos seus passos.

Valéria conhecia a casa e, detendo-se diante duma porta fechada, disse a Melânia que a patrícia costu¬mava dormir no quarto contíguo. Depois disse a Milo indicando-lhe um leito de triclínio: "descansa e espe¬ra-nos". Depois abriu a porta e, precedendo a matro¬na, entrou no quarto de Clemência Petrônia.

Aquele quarto oferecia à vista uma desordem ainda maior que a das salas contíguas; os armários estavam abertos, os cofres arrombados, as cortinas rasgadas e no leito da moribunda faltavam até os cobertores. Aquela mulher egoísta e frívola, que nunca havia enxugado as lágrimas dos infelizes nem socorrido um necessitado, não inspirara piedade para ninguém e seus servos ab¬jetos haviam-na abandonado na agonia depois de ter feito limpeza do que havia de melhor na casa, e ape¬nas um escravo, menos cruel do que os demais, pen¬durara no vestíbulo o galho de cipreste, para que os coveiros enterrassem o cadáver.

De cabeça calva, rosto lívido, os olhos vidrados e arregalados, Clemência jazia envolvida num lençol em cima duma pequena cama cubicular, revirava-se debalde chamando a sua ancila predileta que lhe molhas¬se os lábios áridos, ninguém respondia, e uma baba grossa e esverdeada sufocava a infeliz, que, acometida pelo desespero, arranhava-se o peito gemendo.

A morte do homem que tem fé comove o ânimo ao pranto, desperta admiração. Grande e sublime é a vista da matéria que se desagrega, e do espírito que, animado pela fé e a esperança, luta contra o instinto que o vincula a terra. O justo aproxima-se, confor¬mado, à última viagem e não tem medo, e no limiar da eternidade não diz adeus a seus queridos, porque espera revê-los na pátria celeste; mas a morte daquele que não crê é pavorosa; para ele tudo acaba com a existência, não há esperança nem consolação. Terrível punição de quem viveu unicamente na carne e não teve fé em Deus. No Deus que criou o homem, não para que passasse como uma sombra na terra para depois recair no nada, mas para que vivesse na eter-nidade, na vida sem fim.

Melânia e Valéria olhavam apavoradas a agoni¬zante e ouviram, fremindo, as imprecações, que a raiva de se ver abandonada fazia sair de seus lábios; final¬mente Melânia venceu a repugnância, e pegando uma taça cheia de água que se encontrava numa mesa, aproximou-se à cama da moribunda e, levantando-lhe a cabeça, a fez beber.

Sôfrega, Clemência esvaziou a taça; depois dirigiu o olhar para a mulher compassiva e, soltando um grito, caiu no travesseiro, repelindo-a com as mãos descarnadas. Clemência Petrônia conhecia Melânia, apesar de nunca lhe ter falado; mas a fama da matrona cristã, que, jovem e bonita, virará as costas ao mundo con¬sagrando a sua viuvez a Deus e aos pobres, havia-lhe inspirado aquele ódio viperino que as pessoas maldosas sempre alimentam para tudo que há de bom e grande na terra; e vendo-a perto, em ato de socorrê-la, foi acometida por uma raiva tão violenta que a levou a um esforço supremo. Além disso, outra dor dilacerou-a. Acontece com freqüência que, fechando os olhos ao sono, a mente combalida pensa ainda no que nos     preo¬cupa durante o dia: assim, ao aproximar-se da morte, os pensamentos que predominaram durante a existên¬cia, apesar de enfraquecidos, apresentam-se à imagina¬ção. O maior cuidado da vida de Clemência fora a beleza; a mágoa maior, a velhice que deturpara seu rosto, e o receio de parecer feia; naquele momento, portanto, em presença de Melânia, teve vergonha da sua cabeça calva sem peruca; num gesto raivoso co¬briu-se com o lençol e, ofegante, oprimida pelo estertor, perto da morte, ainda se agarrava às vaidades da terra!

Impelida pela compaixão, Melânia chamou Valéria, que, horrorizada, ficava de lado, para que a ajudasse a levantar a deitada, a fim de tornar-lhe a respiração menos penosa, mas a piedade das duas mulheres foi inútil. Clemência estrebuchava como uma energúme¬na, depois, aos poucos, foi perdendo as forças, seus mem¬bros endureceram, seu rosto descompôs-se ainda mais e, apenas respirando, já parecia um sórdido cadáver.

— Rezemos por essa infeliz — disse Valéria, ajoelhando-se aos pés da cama daquela que a esbofeteara.

Também Melânia ajoelhou-se, mas não lhe foi pos¬sível rezar; aquela morte medonha, desesperada, hor¬rorizava-a e tinha os olhos cravados na moribunda, co¬mo atraída por um fascínio poderoso.

De repente Clemência se contorceu, envolvendo-se no lençol, e depois de ter emitido um grito rouco que fez tremer as duas mulheres, ficou imóvel.

— Morreu! — exclamou Valéria.

— Morreu como viveu, sem pensar em Deus, sem arrependimento — disse Melânia.

— Oh! Rezemos por ela; Deus é imensamente bom, — observou Valéria que perto do leito de morte da patrícia, esquecia todo rancor.

— Sim, Deus é imensamente bom, mas suma é a sua justiça, terrível a sua cólera — frisou a matrona, que não tinha força para rezar, e só via, só pensava naquele cadáver que estava diante dela em toda a sua feiúra.

Pouco depois ouviu-se um ruído de passos no quarto vizinho, depois dois coveiros, com o rosto escondido por um capuz, entraram no quarto da defunta. Um deles aproximou-se à cama, o outro encostou-se à om¬breira da porta como se não agüentasse em pé pelo cansaço.

Aquele que se aproximara do cadáver de Clemên¬cia exclamou, surpreso, ao ver Melânia e Valéria:

— Irmãs, afastai-vos deste quarto cujo ar cor¬rompido pode causar a morte.

— Não tenhas medo, Décio Fúlvio; Deus, que nos preservou até agora da pestilência, preservar-nos-á tam¬bém no futuro.

— Assim o espero — disse Décio — mas não é para se expor sem motivo ao perigo. Afasta-te, uma vez que nada mais te detém neste lugar.

Enquanto Melânia e Valéria afastavam-se, o coveiro que até então estivera encostado à ombreira da porta mantendo os olhos fixos em Clemência, aproxi¬mou-se de Décio e, levantando o capuz, descobriu a cabeça do barqueiro do Tibre.

— Patrício, — disse Sérgio — vá embora tu tam¬bém deste quarto e deixa só para mim a incumbência de encerrar o cadáver da patrícia no lençol funerário.

— Teu modo de falar é estranho, ó Sérgio; achas que eu esteja com medo do contágio? — respondeu Décio.

— Afasta-te, por favor — insistiu o barqueiro — eu a conheci um tempo, um dia prometi-lhe que a deitaria no lençol mortuário; deixa-me cumprir a pro¬messa.

Tais palavras pronunciadas com acento lúgubre impressionaram Décio que, não querendo se opor ao pedido de Sérgio, afastou-se imediatamente.

Aí o barqueiro aproximou-se do leito de morte; com mão trêmula descobriu o rosto de Clemência Petrônia e, não conseguindo vencer a repulsa, recuou hor¬rorizado. Acostumado a enterrar mortos, via continua-mente vítimas da pestilência, mas até então nunca se lhe apresentara um cadáver tão asqueroso; e oprimido pelo nojo falou com voz tremida:

— Eu te vi, jovem e formosa, gastar a vida em contínuas diversões, esbanjar as riquezas em fúteis en¬feites; de que te aproveitou a vaidade, uma vez que não conseguiste deter o tempo que te levou a envelhecer? A tua beleza desapareceu como sombra e agora, cadáver repelente, desces à cova sem o pranto dos sobreviven¬tes... Foste culpada, ó Clemência, mais culpada do que eu, pois me induziste ao crime... Naquele dia fatal eu te falei que expiaria a culpa, e viveria para te envolver no lençol mortuário. Deus escutou a minha oração, velho como tu, eu vivo para chorar e te per¬doar! Dorme em paz, ó Clemência, se pode ter paz uma alma impenitente, e recebe minha extrema sau¬dação...

Dito isso, Sérgio cobriu o cadáver da patrícia e, tomando-o nos braços, levou-o para o quarto vizinho.

Pouco depois Valéria, Melânia e Milo saiam da casa de Clemência, precedidos por quatro coveiros que carregavam um caixão. Os coveiros caminhavam em silêncio sem pronunciar uma oração; as salmodias dos cristãos não acompanhavam a patrícia à sua derradeira morada, a melopéia dos pagãos não se fazia ouvir no seu acompanhamento fúnebre e, sem pompa, em si¬lêncio, sem prantarias, o cadáver de Clemência Petrônia descia à cova!...

No fim daquele dia, tão cheio para Valéria de acontecimentos extraordinários, Milo, hospedado na casa de Melânia, deitava-se jubiloso por ter encontrado a patroa e, não se importando com a pestilência, esque¬cendo as aflições passadas, adormecia feliz. Melânia e Valéria tinham ido à casa de Asela, que estava doente, e Melânia, sentada perto do leito da amiga, trabalhava nos vestidinhos dos órfãos que trouxera para a sua casa depois de ter acompanhado o corpo de Clemência ao necrotério, e de vez em quando parava a agulha de marfim para olhar Jerônimo, que, sentado a uma mesa de mármore, lia em voz alta o livro de Tobias que traduzira da língua caldaica.

Valéria, de pé ao lado da matrona, escutava a leitura do santo doutor, e acompanhava com interesse o moço Tobias na viagem perigosa, quando um servo anunciou a visita do patrício Décio Fúlvio.

Com a feição transtornada, com os negros cabelos em desalinho, Décio compareceu à presença de seus ami¬gos, que, acostumados a vê-lo sempre dono de si, fica¬ram impressionados com o seu aspecto.

— Que notícias trazes, filho? Teu rosto não in¬dica nada de bom — disse Jerônimo.

— Meu rosto manifesta a tempestade que se agita dentro de mim — respondeu Décio, e prosseguiu: — Até agora sofri a miséria, a solidão, sem me queixar, e só Deus conheceu as angústias do meu coração. So¬brevivente duma antiga família, guardei impoluto o nome dos meus antepassados, e antes de manchá-lo mor¬reria contente; ora, este nome, que foi a minha única herança, encontra-se arrastado na lama por uma calú¬nia infame, por uma intriga infernal!

— Explica-te, não te compreendo :— disse Jerônimo, enquanto no rosto de Melânia, de Asela e de Valéria lia-se a mais viva ansiedade.

— Escuta, então — respondeu Decio. — Esta tarde depois de ter descido à cova o cadáver de Clemência Petrônia, eu alcançara os coveiros, que, reunidos no pórtico da basílica de São Marcos, nas proximidades do Circo Flaminio, descansavam antes de retomar a busca dos mortos. Com o rosto coberto pelo capuz eu estava num canto ouvindo as conversas dos meus   com¬panheiros. "As calamidades de Roma vão aumentando, disse um dos coveiros, que os outros chamavam de se¬nador. Com sacrifícios proibidos pela religião cristã invocaram as divindades pagas e esconjuraram os es¬píritos infernais. O povo romano não é mais o de um tempo e, em lugar de tomar as armas para defender-se, suplica clemência aos bárbaros, e entre a soldadesca de Alarico, coberto pela armadura dos gôdos, há um pa¬trício romano, que, esquecido da antiga glória de seus antepassados, cobre-se de ignomínia,".

— O nome do infame? Revela seu nome, para que seja execrado — gritaram os coveiros.

— É o único descendente dos Fúlvios e chama-se Décio, respondeu o velho.

— Mentes! — gritei — e obcecado pela indig¬nação, enfurecido por ouvir meu nome caluniado, ar¬remessei-me contra o coveiro dizendo: Eu sou Décio Fúlvio!

— Moço, acredito, e perdoa-me se, enganado pela calúnia, sem querer, te insultei — defendeu-se o velho — mas escuta o conselho dum velho senador: faze o possível para dissipar esse engano porque no campo dos gôdos há um sujeito que se vangloria de trazer teu nome, nome que, amaldiçoado, coberto de insultos, já corre de boca em boca.

— Eu arrancarei o coração ao impostor! — gritei no extremo da ira; e deixando os coveiros vim aqui para te pedir conselho, ó pai.

— Paz, Décio, — disse Jerônimo — e não queiras guardar no coração pensamentos de vingança. A calú¬nia faz sorrir o cristão, e somente os fracos e os mal¬dosos a aceitam; o sábio não se deixa obcecar pela mentira, e à vista do teu nobre rosto proclamar-te-iam inocente; cedo ou tarde a verdade sempre resplandece, e depois das trevas a luz aparece mais luminosa.

— Entretanto haveria eu de ir cabisbaixo escon¬dendo o meu nome para não expô-lo aos insultos da plebe? — respondeu Décio com amargura.

— Não é isso que quero dizer. Tu, podendo, hás de rebater a calúnia. Vai ao Senado, protesta contra quem usurpa teu nome, e faze com que todos saibam que não foi Décio Fúlvio quem traiu a pátria unindo-se ao inimigo, e sim um impostor que quis raptar-te a fama de honesto cidadão romano.

Décio não respondeu, e de olhos cravados no chão parecia mergulhado em tétricos pensamentos:

— Em que estás pensando, filho? — disse Jerônimo amavelmente.

— Em acatar teu conselho. Sim, irei ao Senado, e depois irei para o campo dos gôdos em busca daquele que tenta usurpar meu único bem, a minha herança exclusiva.

— Vai ao Senado e não faças nada do que pre¬tendes — intimou Jerônimo com severidade.

— Não te exponhas inutilmente — disse Melânia; — teus amigos, convencidos da tua inocência, te esti¬mam, os patrícios e a plebe saberão dentro de pouco a verdade, que mais queres? Achas talvez que, reve¬lando o nome do impostor, impedirás à maledicência dilacerar a tua reputação e fazer com que desapareça a calúnia? Engano: falar mal do próximo, caluniar os inocentes, é um gosto para os homens perversos e vadios, de que está cheio o mundo. Eu também sofri calúnias quando fui a Jerusalém depois da morte do meu marido. Deixei a minha fama aos cuidados de Deus, e ele, na sua bondade, enalteceu-me em tudo quanto foi humilhada. Imita meu exemplo e desiste da idéia de ir ao campo de Alarico.

— Oh! Grande desdouro! O sexo mais frágil vence o mundo e o mais robusto é vencido pelo mundo — exclamou Jerônimo em tom repreensivo.

— Filho, em nome da tua finada mãe, não te ex¬ponhas ao perigo, e conforma-te ao querer de quem exalta quem se humilha sob a vergasta da desgraça — disse Asela suplicante.

Só Valéria calava, mas seu olhar dirigia-se ao jo¬vem patrício e era mais eloqüente que qualquer rogo.

Décio não reparou naquele olhar que talvez o comovesse; estava taciturno de olhos baixos, e depois de ter permanecido longamente em silêncio, despediu-se dizendo:

— Pai, irmãs, eu vos deixo; minha cabeça trans¬tornada precisa de calma; esta noite, na solidão da minha casa, meditarei vossos sábios conselhos, e ama¬nhã conhecereis a minha resolução.

Afastando-se da casa de Asela, dominado por uma febril emoção, Décio esquecia os conselhos dos seus amigos pensando como chegar o mais cedo possível no campo de Alarico. De caráter sério e reflexivo até então, ele conseguira dominar o impulso juvenil, mas agora não tinha mais força, e seu ânimo era como o ribeiro plácido e límpido, que, aumentado de repente pelas águas da montanha, torna-se uma torrente que arrasa qualquer barreira e continua furiosamente a sua corrida.

 

O dia seguinte à morte de Clemência Petrônia, ao cair da noite, um homem vagueava perto da casa de Melânia, e com intensa curiosidade olhava para o vestíbulo da mesma. Tinha cabelos compridos, a barba perfumada, aguçada; seu vestido era sobremaneira ele¬gante e levava a pensar num rico patrício romano. Depois de ter examinado a habitação da matrona cristã, escondeu-se atrás duma coluna do peristilo duma casa dianteira à de Melânia, e seguiu com o olhar Valéria e a patrícia que iam visitar Asela.

Melânia andava apoiando-se ao braço de Valéria, que, como de costume, tinha o rosto coberto por um véu que descia até a cintura.

Quando o desconhecido não viu mais as duas mu¬lheres, afastou-se do peristilo, e vagarosamente, mergu¬lhado em graves preocupações, dirigiu-se para o Foro Romano; depois percorreu a Rua Argilete, deserta na¬quela hora, estando fechadas as lojas dos ourives, e parou diante da locanda que já descrevemos; deu uma olhada em volta, e depois de ter esperado um instante dirigiu-se ao taberneiro.

Os patrícios não freqüentavam mais a locanda des¬de que a pestilência tirara a todos a vontade de far¬rear, e nela não se encontrava nada por causa da hor¬rível carestia que flagelava Roma.

O taberneiro, magro, pensativo, encontrava-se no quarto interior, mais por antigo costume do que por outra coisa, e vendo o homem teve um movimento de surpresa; porque fazia muito que seu miserável bo¬tequim só via a ralé dos facínoras que, noite alta, se reuniam para a pândega e enxotar o medo da peste embriagando-se.

O patrício jogou na mesa um punhado de moedas, e disse em tom de mando:

— Estou à espera de dois amigos, e quero ficar só neste quarto; no entanto prepara o jantar e vinho de Falerno, tens daquele bom, eu sei.

O taberneiro, de olhos esbugalhados, fitou o freguês como se o ouvisse falar em língua estrangeira; depois torceu as mãos e principiou a dizer em tom de queixa:

— Jantar? Estás talvez chegando do outro mundo, patrício, se ignoras que nem o pão se encontra e que é preciso pagá-lo a preço de ouro... Estou morrendo de fome e tu me pedes um jantar!... Mesmo se me prometesses as riquezas de Creso, nem uma migalha de pão poderia dar-te.

— Dá-me vinho, então, e não me amoles com tuas lamúrias — respondeu o patrício impacientemente.

— Vinho posso dar, não de Falerno, porém; desde que o inferno enviou os bárbaros às nossas portas, em toda Roma não há uma gota sequer.

— Dá-me o que quiseres, conquanto que meus amigos e eu possamos ficar sós.

— Podes ficar sossegado, os freqüentadores são pouquíssimos, e pagam muito mal para que eu os prefira a um patrício generoso como tu. Fecharei a porta, e quando meus fregueses noturnos chegarem, deixá-los-ei chamarem até a madrugada.

O patrício saiu da taberna e com o olhar dirigido para o Foro Romano demonstrava-se bastante impaciente. Dentro de pouco dois homens chegaram, e depois de cumprimentá-los respeitosamente, precedeu-os no quarto, onde o taberneiro, antes de se retirar, preparara o vinho.

Os dois recém-chegados eram um velho de cabelos grisalhos e constituição robusta, e um homem de idade madura, de talhe alto e delgado. Este vestia a toga romana, e tinha a cabeça coberta por uma espécie de capuz que lhe escondia uma parte do rosto; dir-se-ia que a toga o atrapalhasse no caminhar, pois balançava-se de maneira esquisita, pronunciando de vez em quando uma imprecação em língua estrangeira.

O patrício cumprimentou de novo respeitosamente os dois estrangeiros; depois, indicando uma ânfora cheia de vinho e três taças colocadas numa mesa, acrescentou:

— Só o vinho encontrei; em Roma falta de tudo, e corre-se o perigo de morrer de fome.

— Não tenho direito de me queixar — respondeu o togado; e enquanto sentava-se num dos assentos que circundavam a mesa, descobriu-se por completo o rosto.

Tinha os cabelos loiros e compridos que, vastos, desciam-lhe por sobre o pescoço. A sua barba, mais clara do que os cabelos, pouco ressaltava no seu rosto de tez amarelada, e os olhos azuis tinham uma expres¬são pensativa; tipo germânico, em seus frios países devia parecer bonito, mas comparando seu rosto ao puro tipo romano, tão regular e expressiva, parecia o de uma estátua modelada pelo aluno, ao lado da obra prima do mestre.

Depois de sentar-se, tirou de debaixo da túnica um punhal, com o cabo enfeitado por pedras preciosas e cravou-o na mesa; depois, dirigindo-se ao patrício, dis¬se-lhe em perfeito latim, que, porém deixava transpa¬recer a pronúncia estrangeira :

— Senta-te, patrício, e tu, Engelberto, deita o vi¬nho. Longe da minha pátria, longe da terra onde vive a memória dos meus antepassados, quero esvaziar a taça em região estrangeira; quero embriagar-me do vinho da pátria de Rômulo, desta tirana do mundo, que, agora, derrubada, pede clemência. Deita, Engel¬berto, meu bardo fiel: aqui podes entoar a canção dos valorosos que fazias ecoar nas florestas da nossa pátria.

Dito isso o estrangeiro esvaziou várias vezes a taça, sem se preocupar com a expressão de descontente im¬pressa no rosto do moço de cabelos negros, e apoiando um cotovelo na mesa, disse:

— Tiveste que esperar, ó patrício, mas o culpado é Engelberto; apesar de ter vivido por muito tempo em Roma, esqueceu-se das ruas, e não sabia encontrar esta taberna.

— Não vendo ninguém chegar, tremia pensando numa desgraça — respondeu o moço.

O estrangeiro de vasta cabeleira levantou os ombros num gesto de escárnio, sorriu ironicamente, e abanando a cabeça para afastar os cabelos da testa disse:

— No meio dos meus inimigos nada receio e os desprezo; alguém predisse que eu morreria em terra estrangeira, mas minha hora não chegará tão cedo... Vi os que ao par de mim seguem o arianismo, e deles soube que dentro de dois dias Roma enviará um tri¬buto ao campo dos gôdos; portanto andei pelas ruas, a fim de admirar os grandiosos monumentos... Quando, nas bocas da Vístula ou nas margens do Danúbio eu ouvia Engelberto falando-me de Roma, eu, achava-o exagerado; mas hoje averigüei a realidade das suas pa¬lavras... Quantos prédios soberbos, quantos monu¬mentos colossais que parecem erguidos pela mão de ciclopes gigantescos! No entanto tantas magnificências me agastaram, acostumado a contemplar apenas as be¬lezas da natureza. Vi o anfiteatro Flávio, onde foi derramado o sangue germânico dos prisioneiros de guer¬ra; admirei o Foro Trajano, que celebra o vencedor dos dácios! Tantos monumentos levantados em glória dos conquistadores me indignaram; a minha férvida imaginação via-os arrasados pelos filhos da minha pá¬tria e ouvia Engelberto entoar um canto sobre as ruínas de Roma.

— Sim, naquele dia cantarei a canção dos valo¬rosos; cantarei como quando aos pés do majestoso roble, derrubado pelo raio, eu fazia vibrar as cordas da harpa — disse o bardo com os olhos elevados ao céu e o rosto inspirado, como estivesse para improvisar um canto de guerra.

— Por enquanto cala-te — ordenou o loiro es¬trangeiro; depois acrescentou melancolicamente: — (Grandiosa pareceu-me a cidade das sete colinas, mas esquálida e recoberta por um véu funéreo; pelas ruas só encontrei cortejos de enterros, e outro ruído não ouvi a não ser o grito das crianças pedindo pão. Aque¬las vozes tenras e queixosas ainda as ouço; elas me comoveram, e dessa vez o ultra poderoso povo romano deverá a sua salvação ao pranto das crianças.

O desconhecido calou-se, e depois de ter ficado bas¬tante tempo pensativo, esvaziou outra vez a taça, e continuou:

— Amanhã, no fim da tarde, a barca, que me levará para Óstia, estará pronta nas proximidades da Basílica Ostiense; virás comigo, ó Patrício?

— Sim, meu senhor, — respondeu o moço de cabelos negros.

— Não me falas nada daquela que te é querida; tuas buscas não tiveram êxito? Conseguiste achá-la?

— Sim, vi-a — respondeu o moço com voz sotur¬na — mas muito mudada, no seu rosto não resplandece mais beleza, seus lábios não sorriem mais. Pálida, en¬volvida em vestes brancas, anda vagarosamente, mal agüentando em pé. A desgraça atirou-a nas garras daquelas mulheres tolas que, rejeitando os prazeres do mundo, transformam a existência num longo martírio. Mas eu a arrancarei dos seus grilhões; a sorte propícia me fez encontrar; espiando-a conheci a casa onde mora, e soube o nome da mulher que sempre está perto dela, e que aparvalhou minha irmã, tornando-a escrava de preconceitos cristãos.

— Pelas selvas da minha pátria! Tu chamas pre¬conceitos à religião redentora do universo? Ariano por fé, eu não gosto dos sequazes da Igreja primitiva, mas, não posso deixar de admirar as suas virtudes, e em minha presença tu não deves insultar a religião de Cristo — disse o estrangeiro dando um murro sobre a mesa e erguendo a cabeça com ar imponente de quem está acostumado ao mando.

— Desculpa, não queria contrariar-te — respon¬deu o moço; e o homem loiro observou:

— És pagão, pois que desprezas assim os cristãos.

— Eu não acredito em nada — respondeu o pa¬trício, com um cinismo que despertava horror.

A essa resposta, uma expressão de indignação faiscou nos olhos azuis do estrangeiro, que disse:

— Moço, aquele que não acredita no Ser Supremo, é tolo quanto culpado, porque surdo à voz misteriosa que fala do Criador a toda criatura, reputa obra do acaso esta terra formada tão admiravelmente pela mão divina. Afinal eu não quero converter-te, mas escuta o meu conselho; deixa tua irmã onde se encontra, por¬que parece-me que ao teu lado nada haveria para   apro¬veitar e poderia perder tudo.

O rosto do jovem patrício tornou-se lívido pela raiva e, mordendo os lábios, ficou um instante em silêncio; depois disse:

— Minha irmã deve seguir-me; acostumada aos gáudios da vida, agora fenece em companhia duma severa matrona, e seu único alívio são as visitas aos pestosos. Tu me cumulaste de favores, me tornaste rico, e quero compartilhar as minhas riquezas.

— Faze o que quiseres, mas procura não ser des¬coberto, porque poderias prejudicar-me irremediavel¬mente. .. Deixei, para os que vi aqui, bem claro que sairia imediatamente da cidade, por receio de ser traí¬do; talvez tenha sido imprudente em afastar-me do campo, mas o desejo de ver Roma seduziu-me, e na minha vida errante e cheia de perigos, nunca, nunca tive medo da morte.

— Fica sossegado; devo manter-me escondido mais do que tu, e amanhã minha irmã e eu seguir-te-emos ao campo.

— Amanhã, portanto, verei essa beleza de que me falaste. As mulheres da tua terra têm cabelos es¬curos, olhos negros e o rosto lindo, mas dormem em camas fofas, perfumam o corpo, usam vestidos de seda e não pensam em outra coisa; mas as louras filhas da minha vida errante e cheia de perigos, nunca, nunca nos da armadura e, com eles, compartilham os perigos — disse o estrangeiro com entusiasmo.

O patrício não respondeu e em seu coração preferia o rosto moreno das romanas à face branca das mulhe¬res nórdicas que seguiam os gôdos.

— Já é tarde — disse o estrangeiro — e, pois que não quis outra habitação senão aquela paupérrima que me ofereceste, vamos até lá.

— Ao teu mando o mais grandioso palácio de Roma abrir-se-ia para te receber — disse Engelberto.

O estrangeiro sorriu satisfeito, depois seguido pelos seus companheiros deixou a taberna e dirigiu-se para a porta Capena. Ele caminhava em silêncio, e ultra¬passado o Circo Máximo, parou para indicar a via Ápia que se abria e disse:

— Eis a via que, ladeada de soberbos mausoléus, prolonga-se até à terra onde, conforme foi-me vaticinado, jaziriam meus ossos... mas eu desmentirei a predição; meu corpo não descansará em terra pisada por homens, meu túmulo não será um colossal mau¬soléu, e ninguém poderá dizer: "Eis o lugar onde jaz Alarico!"

— Afugenta da mente, ó meu senhor, tão lúgubres pensamentos; jovem, guerreiro, formidável e po¬deroso, terás longa vida — disse Engelberto.

O chefe dos gôdos calou-se e um profundo suspiro dilatou seu peito hercúleo.

Tendo chegado à porta Capena encaminharam-se pela vereda que levava à casa de tijolos onde se haviam abrigado, tempos atrás, Valéria e Marcelo.

— Essa é a hospedagem que te posso oferecer em minha pátria, onde nada possuo afora desse tugúrio — disse o patrício amargamente.

— É o suficiente para quem transcorreu muitas noites à claridade das estrelas, tendo como cama a areia fofa duma charneca.

— Meu senhor, meu rei, — disse Engelberto em sua língua nativa — eu velarei à tua cabeceira, pois não confio nesse indivíduo que não crê em Deus e trai a sua pátria.

— Dorme em paz, Engelberto, não me trairá, porque espera ao meu lado ser dignificado; sem essa certeza não confiaria nele, nem me entregaria nas mãos dum traidor.

O patrício não compreendeu nada do diálogo e, antes que estivesse terminado, entrou na casinha para acender uma lâmpada.

Logo depois Alarico deitava-se na cama de Valéria, e com a despreocupação do homem acostumado a contínuos perigos, adormecia tranqüilamente, e em sonho via suas hordas devastadoras assolar os grandiosos mo¬numentos romanos, as obras-primas de arte, nada res¬peitando, a não ser os edifícios em que se erguia o glorioso sinal da Redenção.

 

O sol apenas se havia levantado e apesar da hora matinal uma turma de pobres apinhava-se na frente da casa de Melânia, esperando a patrícia sair e não demorou muito que Melânia e Valéria chegassem ao limiar do peristilo; a matrona deu a cada um a esmola falando com suma bondade àqueles maltrapilhos; de¬pois, abençoada pelos pobres, satisfeita por ter aliviado um pouco a miséria do próximo, a piedosa mulher dirigiu-se para o hospital de Fabíola.

— Triste é a sorte de Roma — disse Valéria, que caminhava ao lado da matrona; — e dentro de pouco esta cidade poderá ser chamada a terra dos mortos.

— Quando fala a cólera divina, o homem não tem defesa — respondeu Melânia. — Talvez tenhamos merecido tantas calamidades; logo ou tarde Deus cas¬tiga, e na sua ira tremenda flagela os povos culpados cancelando da terra o nome de nações poderosas.

Naquela altura as duas mulheres haviam chegado ao hospital; Melânia transpôs o pórtico, precedendo à amiga, que se detivera para acariciar uma menina, que, curada da moléstia, ainda se encontrava convalescente.

Depois de ter levantado em seus braços a menina, Valéria estava para seguir Melânia, quando um ho¬mem vestido com a túnica escura dos coveiros e o rosto escondido pelo capuz aproximou-se e disse com voz sumida:

— Valéria, nenhum gesto de surpresa, nenhum grito se não queres perder-me.

Ao som daquela voz, Valéria estremeceu da ca¬beça aos pés e premeu o coração para abafar as palpitações; depois, reanimando-se, perguntou ao desco¬nhecido.-

— Fala; quem és?

O coveiro descobriu de relance o rosto e Valéria, vacilando como se estivesse para cair, exclamou num arroubo de alegria:

— Marcelo, irmão, finalmente te reencontro!

— Cala-te — disse Marcelo dando uma olhada em volta, amedrontado; depois continuou falando rapida¬mente: — Dentro duma hora ao mais tardar vai à casa de tijolos; estarei lá à espera; mas não fales com ninguém da minha volta, se não queres matar-me: obedece ao meu pedido, sê prudente, e silêncio!

Pronunciadas essas palavras, Marcelo fugiu deixan¬do Valéria transtornada.

Por uns instantes a jovem ficou imóvel, espavorida, como que sem sentidos; depois, com dificuldade, pensou nas palavras de Marcelo, sem entender a sig¬nificação, e não conseguindo construir um pensamen¬to, ainda, aturdida, foi para uma das enfermarias onde sentou-se cobrindo-se o rosto com as mãos. As palavras de Marcelo continuavam ressoando-lhe nos ouvidos e aos poucos, o pressentimento duma desgraça apoderou-se do seu ânimo, amargurando-lhe a alegria de ter re¬encontrado o irmão. Além disso, não se atrevia a afas¬tar-se do hospital, não sabendo como justificar a sua ausência; e reputava ingratidão ter um segredo para a sua benfeitora. Permaneceu bastante tempo sem sa¬ber o que fazer na mais cruel incerteza; finalmente tomou uma resolução corajosa e evitando Melânia, que andava pelas enfermarias assistindo os doentes, saiu apressadamente do hospital; depois, caminhando assus¬tada e cabisbaixa por temor de encontrar algum co-nhecido, dirigiu-se para a porta Capena; mas antes de entrar na vereda que levava à casinha, parou e, fal¬tando-lhe as forças, sentou no chão para descansar um pouquinho; depois chorou pensando que, às escondidas, tremendo como uma ré, ia ver um irmão cuja ausên¬cia a afligira cruelmente.

— Por que Marcelo não veio visitar-me na casa de Melânia? — dizia a jovem falando consigo mesma — seria recebido com alegria, e todos festejariam a volta do filho pródigo... Meu Deus, tende piedade de mim que tanto sofri; fazei que meu irmão não seja culpado, porque a sua volta misteriosa e as suas pala¬vras fazem-me fremir.

Valéria levantou-se e prosseguiu o caminho, mas parou de novo quando viu de longe a casinha onde tanto sofrerá e de que, impelida pelo desespero, fugira para se matar. Aquele dia parecia-lhe agourento, e um cruel pressentimento dizia-lhe que naquele tugúrio choraria ainda. Finalmente chegou e, abrindo a porta encostada, entrou no primeiro quarto, mas recuou as¬sustada vendo um homem de cabelos grisalhos de pé no meio do quarto, com os braços erguidos e os olhos para o céu, falava enfaticamente uma linguagem es¬trangeira. Era Engelberto entretido em improvisar um canto de guerra.

Valéria olhava-o não ousando mexer-se, quando o bardo, reparando de se encontrar em presença duma linda mocinha muito acanhada, exclamou na sua língua:

— Quem és tu, donzela de rosto cândido qual neve da minha terra e de cabelos negros? Celeste Valquíria que a mim apareces?

Valéria não entendeu a pergunta do bardo, e ao ver aquele estrangeiro gigantesco aproximar-se, foi to¬mada de terror e, dando um grito, já estava para fugir, quando Marcelo correu, e tranqüilizando-a, levou-a para o quarto vizinho.

Sentados perto, os irmãos deram livre curso à ale¬gria experimentada por reencontrarem-se; e Valéria, depois de ter contado o que sofrerá e como tinha sido recebida generosamente pela patrícia Melânia, disse:

— Irmão, fala a verdade, alivia este meu cora¬ção da dúvida que o crucia; dize-me, por que te es¬condes a todos como se fosses culpado dum crime?

— Eu sou apenas culpado por ter renegado a mi¬nha pátria e execrar meus concidadãos — respondeu Marcelo.

— Oh! Cala-te, eu não acredito; não se renega o solo que nos viu nascer, não se execra os que falam a nossa mesma língua e que tiveram conosco em co¬mum a Pátria! — exclamou Valéria.

— Pátria... nome vazio de sentido; — retrucou Marcelo com amargura — não é minha Pátria a terra que me negou o pão; não são meus concidadãos os que me repeliram quando pedi auxílio... Mas não fale¬mos nisso, o dia em que deixei Roma, se estás lembrada, disse que voltaria rico ou que nunca me haverias de ver. É a verdade, agora sou rico, e quero comparti¬lhar as minhas riquezas contigo.

— Recuperaste, então, a herança do nosso tio? — perguntou Valéria.

— Não, cheguei pobre à Dalmácia, e de lá saí pobre e escarnecido pelos credores... Desesperado, sem recursos, fui a Ravena, apresentando-me a Honório, como patrício romano pedi um lugar nas suas milícias; fui recebido friamente pelo imperador, que pouco se importa com Roma, e foi muito favor se consegui engajar-me como vélite... Exasperado, deixei Ravena, e em outros países, entre populações estrangeiras, fui recebido hospitaleiramente; e lá um homem generoso tirou-me da miséria e tornou-me rico.

— Revela-me o nome deste benfeitor, para que o recorde nas minhas orações — disse Valéria.

— Nas tuas orações... a quem rezas tu? — quis saber Marcelo com mal disfarçada ironia.

— A Deus — respondeu a jovem, — àquele Deus que antes eu não conhecia, e que agora revelou-se à minha mente obcecada pela ignorância. Àquele Deus que Melânia adora, que Décio venera, e diante do qual prostra-se a alta inteligência de Jerônimo. Nós éramos culpados, ó irmão, quando, não nos importando com a vida futura, julgávamos que os prazeres fossem o único fim da existência. Não, não! Deus sumo não criou o homem para que nascesse, envelhecesse, mor¬resse, sem cumprir uma boa obra, para deixar- o lugar a outras gerações que apareceriam, amedrontadas, para recair no nada; se assim fosse, a criação do homem seria tolice e Deus, sabedoria infinita, não é um tolo. Fomos criados para uma finalidade mais alta e devemos semear para a eternidade.

Assim falando, o rosto pálido de Valéria corara-se e seus olhos negros brilhavam fulgidíssimos. Marcelo olhava-a turvamente, depois levantou os ombros num movimento de desprezo e comentou:

— Não sabia que, desmiolada a tua inteligência, tinhas sido aparvalhada.

— Irmão, não invejo a tua sabedoria — respon¬deu Valéria calmamente, e minimamente ofendida pela grosseria do patrício.

— Escuta, Valéria, — respondeu o moço — tu hás de vir comigo; um futuro brilhante te espera. Tu gostavas de jóias preciosas, de vestidos de seda; ao meu lado estarás ornada como a esposa do imperador. Cir¬cundada por gaditartas, no meio de cantos e danças, viverás admirada pelos moços estrangeiros, que estarão a teus pés contemplando-te e suspirando.

Marcelo falava com entusiasmo para enviscar o coração da jovem, que o ouvia com indiferença; ela não era mais a sonhadora de um tempo; a desgraça a havia corrigido, e os gozos que o patrício pintava em cores tão vivas, deixavam frio seu coração, frio como a pedra duma sepultura.

— Então, estás pronta para me seguir? — per¬guntou Marcelo       mal-humorado.

— Sim, seguir-te-ei; não para gozar de tuas ri¬quezas, mas para estar sempre ao teu lado, e para te dizer as palavras de verdade que conduzem ao sumo Bem; por isso deixarei a minha benfeitora, direi adeus à minha Pátria sem nem te perguntar aonde me levarás.

— Hoje mesmo terás que vir comigo sem dizer nada à que chamas de tua benfeitora — disse Marcelo em voz imperiosa.

Valéria olhou-o pasmada; depois uma expressão de indignação apareceu em seu lindo rosto, e falou com energia:

— Irmão, estás delirando, supondo que eu possa manchar-me da mais negra ingratidão. Bem pouco te importas com minha honra, pois que pretendes que eu me exponha a perdê-la. Que diriam de mim se deixar a casa de Melânia, às escondidas como uma malfeitora?

— Que peso tem a opinião dos teus estultíssimos amigos? Mais tarde saberás o motivo por que sou obrigado a me esconder; agora prepara-te a vir comigo.

— Nem penses nisso — disse Valéria em tom firme; — se, com a minha fuga, eu tivesse que salvar a tua vida, não me demoraria um instante; mas hei de te seguir para gozar ao teu lado; parte portanto sozinho, porque eu não abandonarei a casa acolhedora que me recebeu quando todos haviam-me repelido; não a aban¬donarei tão covardemente, agora que não preciso mais do pão.. . O nome que usou minha mãe é-me caro, e não quero expô-lo à calúnia; parte sozinho, repito, se hei de te seguir sem que Melânia o saiba.

— Queiras ou não queiras virás comigo — gritou Marcelo irritado: — as leis romanas dão-me o direito de mandar em ti; estás esquecendo ser eu teu tutor?

— Não podes apelar às leis quem renega a Pátria e não tem coragem de se mostrar a seus concidadãos. Quisera enganar-me, irmão, mas uma voz terrível se¬greda a meu ouvido que te encontras fora da lei!... Marcelo, volta para o reto caminho, não me leves a compartilhar a tua ignomínia. Diante de Deus não há homem isento de culpa, mas o arrependimento pu¬rifica o ânimo mais perverso.

— Cala-te, não me amoles com tuas lendas tolas e resigna-te a vir comigo, porque, se teimares, empre¬garei a força e carregar-te-ei em meus braços à barca que nos levará longe de Roma.

— Pois sim, emprega a força, atormenta o meu corpo, bate-me se quiseres, mas eu farei de tudo para me opor à tua violência.

Isso dito, Valéria dirigiu-se para a porta, resolvida a deixar a casinha, mas no mesmo instante Marcelo pulou ao lado dela, e agarrando-lhe um braço a obrigou a se sentar novamente.

— Deixa-me, irmão, não te aviltes oprimindo a filha de tua mãe — disse Valéria debatendo-se inu¬tilmente.

Marcelo, furioso, segurava-a ainda mais, quando uma das portas do quarto abriu-se e Alarico se aproxi¬mou ao patrício dizendo-lhe:

— Deixa em paz tua irmã; ontem à noite te aconselhei para não arrancá-la a seus amigos; despreprezaste meu conselho; ordeno-te agora de não fazer vio¬lência contra a sua vontade.

Marcelo arreganhou os dentes, mas não teve co¬ragem de se rebelar ao querer daquele de quem de¬pendia a sua fortuna.

— Parte, donzela, — continuou Alarico — e reza por teu irmão; Deus escuta as orações dos anjos, e tu és um anjo de beleza.

— Agradeço-te, ó generoso varão; se não estou enganada, tu és o benfeitor de meu irmão; vela por¬tanto sobre ele, a ti o confio — disse Valéria, sem saber que apertava a mão do rei dos gôdos.

— Não receies; se for agradecido como o és tu, terá em mim um amigo — respondeu Alarico, que pouco antes ouvira o diálogo de Marcelo e Valéria.

— Irmão, — suplicou a jovem — não nos sepa¬remos com o ânimo exasperado.

Marcelo virou a cabeça ao lado oposto a Valéria e disse irritado:

— Parte, eu não tenho mais irmã.

Valéria desandou a chorar, e atirando-se para o moço uniu as mãos exclamando:

— Marcelo, em nome de nossa mãe, não me deixes tendo teu coração agastado contra mim; irmão, por piedade!

A voz flébil de Valéria comoveu o patrício; o grito da natureza foi mais forte do que o ressentimento, e apertando a mão de Valéria saiu da casinha.

— Adeus, Marcelo, — disse Valéria, parando no mesmo lugar onde vários meses antes se havia sepa¬rado do moço; — ainda estás em tempo, abandona aquelas riquezas que não te tornarão feliz e segue-me à casa de Melânia.

— Como tu, hei de pagar uma dívida de gratidão, e não quero ser ingrato; mas fica sossegada, ver-nos-emos ainda e, cedo ou tarde, virás comigo...

Valéria não respondeu, encostou a cabeça no om¬bro do irmão e chorou de novo; depois, abafando os soluços, afastou-se da casinha de tijolos.

Um homem havia sido testemunha do adeus de Marcelo e Valéria; era o barqueiro do Tibre, que, através das paredes desconexas da casa derrocada, re¬conhecera a moça que ora lhe inspirava um terno sentimento, ora o enfurecia porque o rosto dela lhe recordava um crime. Indo atrás dela, o velho Sérgio apertava o punho dizendo:

— O culpado não deve morar na casa dos justos; essa moça tão admirada por Décio Fúlvio engana seus amigos com a mais requintada hipocrisia; eles a jul¬gam uma santa, e ela vai visitar um rapaz e chora em deixá-lo... Décio saberá a verdade, arrancarei de seus olhos a venda que o obceca.

Enquanto o barqueiro, enganado por falsas apa¬rências, entregava-se a seus solilóquios, a pobre Va¬léria, afligida pelo misterioso comportamento de Mar¬celo, atormentada pela dúvida de que ele se tivesse unido aos inimigos de Roma, ia para o hospital de Fabíola, não sabendo como justificar a sua ausência aos olhos de Melânia.

Com efeito, a matrona a estava esperando com a mais viva ansiedade depois de tê-la procurado por toda parte e vendo-a ao longe, correu a seu encontro para lhe dizer:

— Por que te afastaste?

— Poderia enganar-te com um pretexto — res¬pondeu Valéria — mas não quero mentir; puro e irrepreensível foi o motivo que me fez deixar este lugar sem teu consentimento; mas não o posso revelar, porque é um segredo que me pertence.

Melânia olhou fixamente a moça, como a ler-lhe no coração; depois, pondo-lhe a destra no ombro, disse-lhe:

— Filha, eu não te pergunto nada, apesar de que as tuas palavras sejam estranhas.

— Eu falei a verdade — assegurou Valéria.

— Acredito — respondeu a matrona — e, acom¬panhada pela pobrezinha, que mal conseguia disfarçar a sua aflição, saiu do hospital.

 

— Oh! Por que um rosto angelical serve de más¬cara à mulher mais perversa? — dizia Décio Fúlvio, a quem o barqueiro acusara Valéria; e assim dizendo, caminhava pelo quarto, preso de febril agitação.

Depois de ter andado por muito tempo com a angústia estampada no rosto, o patrício parou diante duma clepsidra e olhando-a exclamou: "Está na hora, e eu quase esquecia!" Vestiu às pressas uma toga e, deixando a sua casa, foi ao Foro romano; depois parou perto da basílica da Concórdia. Aí estava reunida uma multidão olhando uma fila comprida de carros e coches, parada diante da basílica.

Havia mais de dez carros e, puxados pelos grandes e peitudos bois do Agro Romano, não tinham carga. Os coches eram cinco, e chamavam-se carrus magistratuum, porque as duas rodas, no lugar da caixa, sustentavam a cadeira curul dos magistrados.

Deixando de lado a multidão, Décio entrou na basílica para se aproximar a um grupo de senadores; eram cinco e traziam as insígnias do seu grau, isto é, a toga laticlava, que, orlada por uma larga faixa de púrpura, descia até aos pés deixando ver os calcei um dos quais trazia uma luneta de marfim.

Não longe dos senadores viam-se, no chão, dez grandes sacos que continham cinco mil libras de ouro, vinte outros do peso de trinta mil libras de prata, e cinco saquinhos de pimenta ; era aquele o tributo que Roma enviava para o campo dos gôdos.

Nos dias anteriores uma deputação fora ao campo inimigo pactuar para afastar Alarico, e Basílio, um dos enviados, dissera ao chefe dos bárbaros que os ro¬manos, não por completo desacostumados às armas, in-surgiriam compactos para defender a Pátria. — "Melhor assim", respondera o gôdo, e com a arrogância do mais forte, pediu lhe fossem entregues as chaves da cidade, e todos os escravos que houvesse nela.

A deputação voltou para Roma desanimada; envia¬da outra vez, Alarico prometeu tirar o cerco mediante um tributo. Enorme foi o resgate exigido pelo rei dos gôdos. E os ricos cidadãos romanos tiveram que con-tribuir (e naquela época não eram poucos), pois as riquezas de muitas famílias patrícias chegavam a uma renda anual de quatro mil libras, sem ter em conta as receitas em natureza que recebiam de suas vastas possessões; apesar disso tiveram que empregar as es¬tátuas de ouro e de prata dos templos pagãos aban¬donados para perfazer a quantia necessária.

Décio aproximara-se dos senadores, entre os quais via-se o prefeito Pompeiano, o mesmo que, ao aproxi¬mar-se dos gôdos, obrigara o senado a retomar os so¬lenes sacrifícios pagãos, apesar de serem os templos desertos no momento das cerimônias, porque o culto dos deuses não encontrava mais seguidores na cidade eterna. O jovem patrício, depois de ter protestado con-tra o impostor que usurpava o seu nome, conseguira permissão para acompanhar a deputação ao campo inimigo.

A um aceno do prefeito, os escravos e os servidores públicos subiram nos carros do tributo, depois os se¬nadores sentaram nos coches magistratuum, Décio Fúlvio sentou-se num deles ao lado dum senador, an¬tigo amigo de seu pai.

0 cortejo atravessou as ruas de Roma no meio duma multidão silenciosa e triste, que se reunira para vê-lo: dir-se-ia que todo romano chorasse vendo a preciosa carga destinada aos gôdos.

Ao transpor a porta Salária os senadores pensaram com angústia que em outros tempos os membros do senado ditavam leis no lugar de as receber, e que da¬quela porta freqüentemente saíram as fortes legiões ro-manas, que levavam a toda parte as águias conquistadoras.

O acampamento dos gôdos prolongava-se da via Salária até a Niomentana e do lado oposto até os Montes Pariolis, e à conjunção do Anienes com o Tibre, ocu¬pando as suntuosas vilas de veraneio e os vinhedos, que desde aquele tempo surgiam naquele vasto território. A tenda de Alarico estava localizada na esquerda da via que desce para a ponte, e perto dela   via-se a tenda do Mallo , onde os chefes do exército reuniam-se para o conselho do rei.

Os esquadrões barbáricos ofereciam um aspeto mui¬to pitoresco, e estavam prontos para mostrar-se em toda a sua imponência à deputação que trazia o tributo.

De repente ouviu-se o som de um corne que che¬gava dos postos avançados do campo, e ao sinal os gôdos dispuseram-se em ordem.

Alarico, revestido das insígnias reais, saiu da ten¬da, rodeado pelos chefes do seu exército, e pouco longe dele estava o bardo Engelberto segurando a harpa com que acompanhava seus cantos de guerra.

Logo depois, ao longe, apareceram os carros que se aproximavam vagarosamente e, ao chegar, em vista da tenda do rei, pararam; os senadores desceram dos coches, e dirigiram-se para Alarico.

Um velho senador precedia os outros; chamava-se Flávio Nemério e era o amigo do pai de Décio; che¬gando à frente do gôdo, fez continência com altiva dignidade, depois em nome dos companheiros assim falou:

— Roma, ó rei Alarico, envia-te o tributo que pediste, e nós, membros do senado, representantes dos patrícios e da plebe, viemos receber a promessa que tu abandonarás esses lugares.

Um sorriso de satisfação brilhou nos lábios de Ala¬rico, que, depois de se ter inclinado em sinal de sau¬dação, disse:

— Diante do céu e, na presença do meu exército, juro que me afastarei de Roma, reservando-me o direito de aqui voltar quando julgar oportuno.

A indignação manifestou-se nos olhos dos senado¬res ouvindo estas palavras, e o velho Flávio Nemérico, erguendo a cabeça, disse em tom firme:

— A preço de grandes sacrifícios conseguimos reu¬nir o tesouro que pediste; se a nada aproveitar, a tua promessa seria um escárnio insultante. Não nos jul¬gues fracos e desanimados. Sabe, ó rei, que se nos arrastares ao desespero ainda podemos voltar ao que fomos. Abandonados pelo imperador e pelas suas le¬giões, saberemos defender-nos; cada romano, recordan¬do as glórias dos seus pais, insurgirá furente para salvar seus lares do jugo estrangeiro, e se tiver que tombar, morrerá gloriosamente sepultado nas ruínas da rainha do mundo.

— Jurei de me afastar e não serei perjuro — disse Alarico.

— E nós te deixamos confiando na tua lealdade — frisou Flávio Nemério fitando o gôdo, que disse:

— Antes de nos separarmos, esvaziemos a taça da paz.

No mesmo instante foi levantada uma cortina da tenda real, e viu-se uma mesa, onde havia um grande carneiro assado e grandes ânforas cheias de vinho.

A deputação entrou na tenda, e enquanto Alarico estava para segui-la Décio se lhe aproximou para dizer:

— Ouve-me, ó rei, suplico-te.

— Que queres, jovem romano? — respondeu Ala¬rico, olhando com simpatia o belo rosto de Décio.

— No teu campo há um homem que, usurpando o nome de Décio Fúlvio, cobre-o de ignomínia; o nome é o meu; só eu tenho direito de usá-lo, e quem se serviu dele é um impostor.

— Moço, se teu nome foi usurpado, justo é teu res¬sentimento. Ambos sois romanos, apesar de que um vista as armas dos meus guerreiros, portanto não quero ser vosso juiz. O culpado se encontra agora na tenda do Mallo; vai lá, e se em teu corpo pulsa um coração de varão, desafia-o a se bater.

Décio correu para o lugar indicado pelo rei, e logo ao transpor o limiar ficou estarrecido e recuando ex¬clamou:

— Marcelo! Tu no campo dos gôdos?

— Bem-vindo, Décio — disse Marcelo em tom de escárnio; — tu também, meu sábio amigo, deixaste as águias romanas para abrigar-te entre os gigantescos filhos do norte?

Décio olhava o velho amigo aturdido pela surpresa; aquele que lhe usurpara o nome era então Marcelo, o irmão de Valéria; o mesmo a que ele salvara a vida. Permaneceu calado por algum tempo, depois em seu coração a indignação, o desprezo sucederam ao espanto; cruzando os braços no peito, apelou à calma, que sem¬pre guiava as suas ações, e com voz pausada falou:

— Marcelo, se eu não ouvisse a tua voz, não acreditaria em meus olhos. Teus costumes desregrados impeliram-te a renegar o nome de cidadão romano. Recoberto de armas estrangeiras, tu atraiçoas a Pátria e, não satisfeito com isso, usurpas o meu nome e o expões à calúnia. Teu sangue é maldito, pois que escor¬re nas veias de seres tão perversos.

Dizendo isso Décio aludia à Valéria, cuja suposta hipocrisia   inspirava-lhe horror.

— Que demônio te instiga a perseguir-me em toda parte com teus ralhos, que mais me enfadam do que me irritam? — exclamou Marcelo. — Teu nome me apareceu mais reboante que o meu e me servi dele: podes   retomá-lo, não sei o que fazer dele. Anuncia a teus concidadãos que Marcelo Nervo combate junto com os gôdos, e que deseja o instante em que com o exército inimigo chegará a se apoderar da soberba Roma.

— Miserável, meus lábios não encontram pala¬vras para te expressar o meu desprezo — respondeu Décio exasperado pelo cinismo de Marcelo, que se vangloriava da sua traição.

O irmão de Valéria, lívido de raiva, soltando um grito rouco atirou-se contra o patrício para golpeá-lo com o punhal que trazia ao cinto: mas, abafando ime¬diatamente a cólera que o arrastava ao crime mais negro, recuou e com voz trêmula disse:

— Salvaste a minha vida; nada mais te devo por¬que não te matei.

Pálido e calmo, Décio não recuara um pas¬so diante do furor de Marcelo, e ouvindo as palavras do traidor, sorriu amargamente e respondeu:

— A tua raiva não me assusta como não admiro a tua generosidade, e ainda uma vez te digo que grande é a tua culpa.

— Oh! Cala-te afinal — gritou Marcelo, e obcecado pela ira quis esbofetear Décio.

Pálido como um cadáver, o descendente dos Fúlvios segurou o braço de Marcelo, e apertando-o com toda a força da mão musculosa, disse:

— Poderia destrancar essa mão que quis insultar-me, mas que não me teria ofendido porque a mão dum traidor não pode macular a honra do cidadão honesto. Se eu não fosse cristão amaldiçoaria o dia em que te salvei a vida... Fica aqui; que Deus te per¬doe e ilumine a tua mente transviada; mais generoso do que tu esconderei teu nome aos romanos, para não o expor à execração de todos.

Dito isso, Décio saiu da tenda do Mallo, e enca¬minhou-se para a tenda dos senadores, que, prestes a partir, haviam subido nos coches; e passando diante da tenda de Alarico não ouviu o rei gôdo que dizia com acento de desprezo, enquanto o acompanhava com o olhar:

— Trata-se de um covarde que teve medo da es¬pada do seu inimigo.

Alarico não sabia que muitas vezes há mais co¬ragem em perdoar uma ofensa do que em se vingar.

— Então? Viste o impostor? Quem é? Como se chama? — perguntou o velho Flávio Nemério.

— O dum obscuro plebeu que só merece desprezo — respondeu o patrício; depois recusou subir no coche e, precisando de solidão e movimento para acalmar a irritação do seu ânimo, quis voltar a pé para Roma, e de longe seguiu os coches que desapareciam da sua vista numa nuvem de poeira.

Andando devagar pela via Salária, Décio parava de vez em quando, ora virando-se para olhar os gôdos cujas armaduras coruscavam ao sol, e ora para dirigir os olhos sobre Roma, sobre que se havia acumulado uma nuvem negra de tempestade iminente.

"Os raios do sol doiram o campo inimigo, e o vendaval sobre Roma; Pátria infeliz, aonde foram as tuas grandezas? Teus filhos te renegam, estás na iminên¬cia de cair na mão dos bárbaros", pensava Décio, quan¬do suas melancólicas reflexões foram interrompidas por um canto que provinha de ai perto. Uma voz me¬lodiosa e cheia de entusiasmo, apesar de flébil, modulava um hino cuja poesia correspondia aos pensamentos do patrício. Ele parou para escutar: e aquelas palavras, cheias de melancolia e esperança, chegaram a seu ouvido:

 

Roma, tu choras; e por que tu choras, ó Roma?

Estrugindo uma horda às suas portas está;

Sem mais espada, gemendo e debelada,

Quem a ajude em tanta dor não há.

Da coroa antiga, impiedosamente

Arrancaram-lhe as jóias e o fulgor;

E suas províncias, despovoadas,

Tornaram-se covil de rapina e esqualidez.

Os olhos em pranto descerra suas dores,

Dos Alpes a Cila quão grande é a aflição!

Vê em toda parte branquear

Os insepultos ossos de seus mortos na batalha.

Os infiéis amigos de seus dias gloriosos,

Surdos e mudos agora se mostram à sua dor.

Desfalecida em tais horríveis angústias

Que mais lhe resta senão morrer?

Não, não morrerá; pois Deus lhe resta,

E uma sede arcana, imortal a ela apronta;

Se no Capitólio murchou o louro,

Giganteia a Cruz no Vaticano.

Ergue, ó Roma, a testa de rainha humilhada,

Ainda reinarás, triunfarás ainda;

Onde campeia o símbolo do oprimido,

Não tem valia possança do opressor.

E mesmo se, por algum tempo,

Cair dos ímpios presa este sagrado chão,

Ressurgirão das ruínas os templos,

Sereno brilhará no Tibre o sol.

Entre os palácios e as torres e os arcos e os

A inimiga sanha esfalecer-se-á; mármores

Contra Roma não há poder de armas,

A hidra infernal aqui sucumbirá.

Eia, confia em tua real sede

Que o céu te apronta imperecível, arcana,

Que se o lábaro falta ao Capitólio,

Te protege a Cruz no Vaticano.

 

"Oh! a cruz que se ergue gigante nas altas colinas de Roma, desbaratará quem contaminar o chão dos már¬tires! A Roma dos Césares foi poderosa, mas, nos séculos futuros, o mundo inteiro prostrar-se-á diante da Roma de Cristo!" exclamou Décio entusiasmado pelo canto; depois olhou em redor à procura do cantor, e viu um moço trajado de forma estranha, carregando nos ombros um grosso alforje, sentado nas ruínas dum antigo túmulo dos tempos da república; era ele um declamador, que ia para longínquos países em demanda de fortuna, e inspirado pela visão do campo dos gôdos improvisara o canto que Décio escutara emocionado.

— O adeus de quem abandona a Pátria é triste e solene; que tuas palavras, ó desventurado, possam rea¬lizar-se, ó infeliz que dentro de pouco estarás longe do torrão natal — disse o patrício; depois estendeu a des¬tra para o cantor em sinal de saudação e retomou seu caminho.

 

Cinco dias haviam transcorrido desde que Décio fora aos campos dos gôdos. Alarico levantara o cerco, e já gozavam-se os efeitos do seu afastamento, porque a carestia diminuía dia a dia e todos esperavam que a pestilência, que fizera seu curso ceifando tantas vítimas cessasse aos poucos. De volta do campo, o patrício saíra uma só vez de casa para relatar a Jerônimo o êxito daquela ida, e o santo doutor pedira-lhe encarecidamente para esconder a Valéria a traição de Marcelo para que aquilo não afligisse excessivamente a pobre moça. Décio ouviu em silêncio o elogio que Jerônimo tecia da piedosa jovem, e rechaçando a indignação no mais profundo do coração, nada dissera que pudesse levar a duvidar da virtude de quem a seus olhos pa¬recia mulher esperta e perversa.

À noite do quinto dia Décio foi para casa da pa¬trícia Asela, ainda acamada e pelo caminho fremia ao pensamento que estava para ver a irmã do traidor. Chegando diante da casa da matrona, encontrou-se com Sérgio que queria visitar a patrícia para interessá-la em favor duma família necessitada.

Depois de ter cumprimentado cortesmente o barqueiro, Décio subiu a escada que levava ao quarto branco; mas antes de lá chegar, atravessou um quarto onde Milo estava sentado num canto. Os dois visitantes não repararam a presença do anão, que, ao ver Sérgio, ficou aterrorizado, como quando o encontrara nos arredores da via Ápia; e depois de tê-los visto entrar no quarto vizinho, balbuciava com as mãos nos cabelos e sem fôlego:

— Então não foi uma visão!... Ouvi a sua voz; não estou enganado, é ele... Velho, arqueado, sob o peso do remorso, encoberto pelos vestidos da plebe, vol¬tou a Roma... Que hei de fazer?... A quem pedir conselho?...

Pronunciadas essas palavras incoerentes, Milo apro¬ximou-se devagar à porta para escutar o que se dizia no quarto onde se encontrava o barqueiro do Tibre.

Jerônimo, como de costume, estava lendo às pie¬dosas mulheres, quando Décio e o barqueiro entraram no quarto. Melânia e Valéria fiavam, e a jovem pen¬sando continuamente em Marcelo, parecia mais do que nunca triste.

— Socorrerei a família de que me falas, e ama¬nhã também Melânia levará a sua esmola — disse Asela depois de ter escutado as palavras de Sérgio.

— Sê abençoada, ó patrícia, e a bênção do pobre abrir-te-á as portas do céu — respondeu Sérgio.

— É assim mesmo, ó Sérgio; — observou Jerô¬nimo — a bênção do pobre chega até o trono do Filho de Deus, que se fez pobre, e que impôs como obriga¬ção a esmola; não a esmola do fariseu que faz tocar a trombeta para que todos o saibam, mas a esmola que sabem fazer Asela e Melânia e muitos outros patrícios. "Que as entranhas dos famintos vos louvem, ó filhas, e vos abençoem seus lábios. Construam outras igrejas, e recobram seus muros de mármores, ornem as portas de marfim e prata, de gemas os altares. Não os cen¬suro, não os condeno, cada um faça pela religião o que achar melhor; vale mais fazer isso do que se deitar em cima das riquezas ocultadas; mas vós vos propusestes fazer outra coisa, vestir Cristo nos pobres, nos enfermos, alimentá-lo nos famintos, recebê-los nos que não têm onde descansar e, sobretudo nos familiares da fé . Santo é o vosso propósito e Deus o terá em conta.

— Ah! Não há nada de mais repelente do que a hipocrisia de quem quer parecer virtuoso — disse Va¬léria.

— Falas sabiamente, ó filha, — disse Jerônimo.

Ouvindo as palavras de Valéria, um clarão de in¬dignação apareceu no rosto do barqueiro e como que sem querer, quase como que empurrado por uma força superior à sua vontade, acusou com expressão de cruel desprezo:

— Sim, donzela, a hipocrisia é a mais negra das culpas; e tu que escondes uma alma perversa por baixo da virtude, hás de sabê-lo.

Valéria empalideceu mortalmente; levantando-se de seu lugar aproximou-se com dignidade ao barqueiro e com voz firme perguntou-lhe:

— Por que me injurias? Qual é a culpa de que me acusas? Fala...

A voz de Valéria fez estremecer as fibras do co¬ração de Sérgio; mudo, não soube responder, e escondeu o rosto nas mãos.

— Velho, por que acusas essa jovem e depois per¬maneces calado? — disse Jerônimo severamente; — fala, teus cabelos brancos deveriam ensinar-te que não se acusa um culpado tirando-lhe a possibilidade de se defender.

— Ele delira — explicou Décio, tremendo de susto que o barqueiro revelasse a suposta culpa de Valéria.

— Vamos, explica-te, para não ser tachado de mentiroso; não sabes que a honra duma virgem é sagrada, e que Deus é inexorável contra quem a ofende? — exclamou Melânia com os olhos faiscantes de indig¬nação; depois segurou a destra de Valéria, como a de¬monstrar amparo para a infeliz.

— Não estou mentindo; — disse Sérgio — eu a vi, a ela que vós julgais santa, ir para uma casinha solitária não longe da via Ápia, para se encontrar com um bonito moço de quem se separou em pranto.

Valéria desandou a chorar, e seu pranto parecia devido ao remorso e à vergonha.

Melânia fremiu de horror em recordar como Va¬léria deixara às escondidas o hospital por três horas, e supondo a jovem culpada largou a sua mão.

De repente Valéria levantou a cabeça; uma expressão resignada e ao mesmo tempo dolorosa apare¬ceu no seu rosto e não querendo desculpar-se para não trair Marcelo, disse apenas:

— Eu sou inocente, e abandonarei esta casa antes de ser expulsa, e abençôo aquela que me acolheu; so¬zinha voltarei à miséria, que não mais me assusta, pois tenho fé em Deus.

— Fica, ó jovem; — disse Jerônimo, que, enquan¬to Valéria estava falando, observara-a atentamente adi¬vinhando a verdade — fica, e levanta a cabeça; em presença de Deus e dos homens proclamo-te inocente.

Valéria soltou uma exclamação de alegria, e Me¬lânia a abraçou efusivamente; Jerônimo proclamava-a inocente, ele não podia enganar-se, e Melânia e Asela tinham firme convicção naquela afirmação.

— Sim, Valéria é inocente, e tu, patrício Cláudio Varrão, acusaste tua filha! — gritou Milo, compare¬cendo inesperadamente diante do barqueiro, que re¬cuava da presença do anão, como se visse um gigante e ameaçador e, com os cabelos eriçados, exclamou:

— Vertuno!... O espectro de Vertuno persegue-me!

— Estás enganado, eu não sou um espectro; sou aquele que tu chamavas Vertuno e que querias matar; mas Deus é justo nas suas disposições. O inocente fe¬rido de morte viveu, e o culpado, presa do remorso, foi vagueando por terras estrangeiras, até que, velho, voltou à pátria para acusar sua filha, para cobri-la de infâmia!

— Mentira! Eu só tinha um filho! — exclamou o barqueiro.

— Quando abandonaste a tua esposa, ela trazia em seu seio uma filhinha, e viveu para dar à luz.

Os espectadores da cena calavam pasmados; Valé¬ria não conseguia recuperar-se do sobressalto experi¬mentado, e estendendo os braços para o pai, não ou¬sava aproximar-se por medo de ser repelida.

— Ai de mim! Amaldiçoado por todos com a marca de Caim na testa, descerei ao abismo... Não há piedade pelo pai desapiedado, pelo esposo culpável! — gritava Sérgio no auge do desespero.

— Homem, infinita é a misericórdia divina, e não há culpa que o arrependimento não lave; eu, ministro de Deus, digo-te: não desesperes — disse Jerônimo comovido pela dor do velho.

— Pai, em nome de minha mãe eu te perdôo! — exclamou Valéria, dirigindo-se para Sérgio, que recuou; depois um tremor convulso o sacudiu, e caiu desacor¬dado no chão.

Jerônimo e Décio levantaram-no imediatamente e levando-o para outro quarto deitaram-no numa cama fazendo o possível para que voltasse a si.

No entanto Valéria rezava fervorosamente ajoelha¬da num canto do quarto. Coitada! Nos dias passados intercedia de Deus o perdão de Marcelo, e agora, por cúmulo de infelicidade, devia suplicar pelo pai culpado.

Décio parecia o mais estremunhado de todos, ia, voltava, não sabendo que fazer; depois arrependia-se por ter julgado Valéria culpada e agastava-se contra Sérgio que a acusara; e chamando Milo em lugar se-parado interrogava-o a respeito do pai da moça: mas o anão respondia que jurara à cabeceira de um mo¬ribundo permanecer calado.

Também Asela ficara muito impressionada e, com fadiga, fora perto de Valéria para consolá-la com suas palavras cheias de doçura cristã.

Melânia, porém, não perdia a calma, e imitava Jerônimo, que com o maior desvelo prodigalizava so¬corro ao velho.

A noite já estava avançada quando Sérgio readqui¬riu os sentidos, mas foi tomado por febre violenta, e palavras estranhas e incoerentes saíam dos seus lábios; ora julgava estar nos desertos africanos e falava com os anacoretas da Tebaida, ora via-se sentado à rica mesa e com voz gutural entoava um alegre brinde.

— Deixai-me só com ele — disse Jerônimo. Todos obedeceram e o santo doutor sentou-se ao lado do leito do velho, como vários meses antes sen¬tara-se ao lado de Marcelo moribundo.

— Ânimo, filha, e conforma-te com a vontade divina — disse Asela a Valéria.

— Falta-me a coragem — respondeu a jovem; — há pouco, prostrada no chão, queria rezar, mas os meus lábios permaneceram mudos, e não me foi possível di¬rigir a mente ao Céu.

— Deus aceita as boas intenções — observou Me¬lânia.

— Não tenho coragem de ver morrer meu pai e resignar-me — disse Valéria. — Perdê-lo logo depois de tê-lo encontrado; perdê-lo dilacerado pelo remorso, é cruel...

— Reza, minha jovem, reza àquele que disse: "Batei e vos será aberto" — disse Asela; — na tua idade eu gemia à cabeceira da mãe moribunda. Oh! Não há dor que se compare ao que crucia a alma em ver sofrer a própria progenitora... desenganada pelos médicos, nada mais se podia esperar da ciência dos homens. Dirigi-me então àquele médico supremo, que tem remédios para qualquer moléstia, tive fé, acreditei na eficácia da oração e minha mãe foi salva... Reza, portanto, ó filha, Deus ouvir-te-á, porque Deus ouve sempre os corações que sofrem e rezam.

— Deus todo poderoso, salve meu pai e faze com que eu possa expiar as suas culpas — exclamou Valéria prostrando-se.

Também Melânia, Asela e Décio ajoelharam-se, e uniram suas orações às de Valéria.

— O infeliz dorme tranqüilamente — disse Jerônimo, apresentando-se no limiar do quarto.

— Louvado seja Deus, louvado para sempre — exclamou a jovem dirigindo o olhar cheio de gratidão a um Crucifixo de mármore pendurado à parede do quarto.

— Agora descansa — avisou Jerônimo — e du¬rante vários dias precisará de sossego porque, se não estou enganado, a sua mente está descomposta... Mas onde se esconde o anão? Quero vê-lo.

Melânia foi imediatamente à procura de Milo, e pouco depois voltava amparando o pobre anão, que, sacudido por cruéis emoções, mal e mal conseguia andar.

— Deixai-nos sós — disse Jerônimo.

Todos se afastaram, e Milo, amedrontado pelo porte majestoso de Jerônimo, teria preferido estar de¬baixo da terra.

— Conforme as tuas palavras, aquele que se cha¬ma Sérgio é o patrício Varrão? — pergunto Jerônimo.

— Sim, é ele, conquanto seu filho legítimo chama-se Marcelo Nervo, do nome do tio, pois assim quis a esposa de Cláudio — respondeu Milo.

— Cláudio foi deveras muito culpado?

Milo abaixou a cabeça, ficou algum tempo pensativo, como se receasse falar; depois, tomando ânimo, disse:

— Sim, foi culpado, e a sua infeliz esposa, para evitar que cedo ou tarde seus filhos caíssem em poder dum pai cujo exemplo poderia     corrompê-los, confiou-os, antes de morrer, a seu irmão, que cumpriu mal suas obrigações de tutor.

— E quais foram as culpas de Cláudio Varrão?

— Não as possa revelar; uma solene promessa mo proíbe, mas se quiseres livrar-me do juramento que fiz ao leito duma moribunda, contar-te-ei a história dolo¬rosa da família dos Varrão.

Antes de responder, Jerônimo pronunciou, em leve mover de lábios uma oração, depois disse:

— Eu não posso, mas se para o bem de Valéria e de seu irmão delinqüente for necessário revelar o se¬gredo doloroso, o sucessor de Sérgio Fúlvio anulará a tua promessa. Entretanto podemos esperar que Cláudio Varrão se arrependa das suas culpas confessando-as. Agora descansa, pobre infeliz, e esquece no sono as tuas penas; hoje sofreste bastante, cada dia tem suas angústias, e o homem, que passa como uma sombra sobre a terra, inquieta-se e desespera-se inutilmente.

Depois de deixar o anão, Jerônimo ordenou a Melânia para que consolasse Valéria e obrigasse-a a dei¬tar-se. A jovem obedeceu, mas não foi possível fechar os olhos. Durante a noite banhou de lágrimas quentes o travesseiro, e mais do que tudo sofria por ter sido acusada pelo pai.

Jerônimo e Décio velaram até a manhã à cabecei¬ra de Cláudio, que acordando dum sono letárgico, caiu numa prostração tão grande até fazer recear que ador¬meceria para acordar no dia do juízo supremo.

 

A dor por ter acusado a filha havia levado Sérgio à beira do túmulo, mas a sua robusta constituição ven¬ceu a doença e depois de dez dias de febre violenta, foi melhorando paulatinamente, apesar de que seu juízo parecesse afetado; sempre soturno, nunca falava, como se tivesse perdido o uso da palavra; não se queixava, nada perguntava e não respondia a quem se interessava pela sua saúde, e quando Valéria aproximava-se da sua cama, estendia a mão para repeli-la, e para não a ver, encobria-se a cabeça com o lençol.

Jerônimo, Décio e Melânia prodigalizavam ao doen¬te a assistência mais carinhosa e, sabendo-o culpado, ele¬vavam orações para que sarasse e pudesse arrepender-se das suas culpas.

Um dia, durante a convalescença de Sérgio, Je¬rônimo sentou-se ao lado do velho, que se levantara da cama havia três dias, e apertando-lhe a destra, co¬meçou a falar cheio de doçura:

— Por que continuas calado? Esse teu silêncio contrista teus amigos; fala para consolar, a pobre Valéria.

Sérgio abaixou a cabeça sobre o peito, uma lá¬grima caiu-lhe dos olhos e, comovido pela bondade de Jerônimo, rompeu o silêncio em que se mantinha des¬de tantos dias e disse:

— Homem generoso, eu não sou digno da tua piedade e,           beneficiando-me, tu me oprimes... Eu sou o mais culpado dos homens, e não ouso olhar o rosto de minha filha por temor de nele ler desprezo.

— Não se despreza o progenitor, e Valéria chora e reza pela tua felicidade.

Sérgio prorrompeu em soluços dilacerantes; o pran¬to daquele velho suscitava compaixão! Jerônimo ficou comovido até as lágrimas e para   consolá-lo continuou com doçura maior ainda:

— Se grandes foram as tuas culpas, muito maior é a misericórdia divina; e eu te repito: não desesperes.

— Em que hei de esperar? A vida foge de mim, a morte me agarra para impelir-me ao abismo infernal.

— Espera em Deus e serás salvo — disse Jerônimo — depois erguendo-se em toda a sua majestade, esten¬deu a destra na cabeça de Sérgio e prosseguiu com fir¬meza: — Pecador, prostra-te não diante do homem que, como tu, está sujeito à culpa, mas diante do ministro do Todo-poderoso; prostra-te, e levantar-te-ás mais bran¬co do que a neve. A Igreja, esposa de Cristo, deu a nós, seus sacerdotes, o poder de absolver... Infinita bondade divina! Ela quis que o pecador arrependido tivesse certeza da sua salvação, depois de ter recebido a absolvição das suas culpas.

— Sê bendito, homem de Deus — respondeu Sérgio; — tuas palavras alentam-me para nova vida. Sim, a teus pés chorarei minhas culpas, mas primeiro, como amigo, escuta a minha história, e depois prostrado diante do sacerdote, implorarei o perdão dos meus pe¬cados.

Uma pausa demorada seguiu esse diálogo comovente. Sérgio recompunha seus pensamentos desconexos e to¬mava ânimo para revocar à mente as culpas da sua mocidade. Jerônimo dirigiu os olhares para o céu e, radiante por ter comovido o coração do culpado, aben¬çoava o Altíssimo. Finalmente Sérgio suspirou pro¬fundamente e com voz lenta principiou a dizer:

— Único supérstite duma antiga família, da qual nasceu o historiador que traz o meu nome , perdi os pais na infância; órfão, entreguei-me sem freio a todos os gozos em que se mergulhavam os homens da minha categoria... Os parasitas, os jogadores, constituíam a minha companhia, e assistiam a meus banquetes, que eu mandava descrever em pergaminhos e depositar no tabelário da casa. Sentado num carro e rodeado por escravos ia ao Teatro; para ostentar generosidade, dava quantias enormes às gaditanas. Passava grande parte do tempo nas termas, ponto de encontro dos vadios, e de homens de péssimos costumes, de maneira que em pouquíssimo tempo, esbanjei a metade dos meus haveres. Foi então que conheci uma jovem de família patrícia; gostei dela e, acostumado a satisfazer meus caprichos, pedi para desposá-la, o que consegui.

Minha esposa era cristã e, para obedecer ao pai, que morreu logo depois do nosso matrimônio, tornou-se minha companheira; de caráter angelical, fez o possível para inspirar-me a sua religião, mas eu não acreditava em nada, apesar de eu também ser cristão, e escarnecia uma fé que vedava os gozos sensuais.

Nos primeiros anos do meu matrimônio, tendo-me tornado pai dum lindo menino, eu freqüentava menos os teatros, vivendo quase sempre ao lado da minha esposa; mas aqueles dias felizes cedo transcor¬reram; Satanás colocou no meu caminho um jovem patrício, que forçosamente quis apresentar-me a uma matrona chamada Clemência Petrônia, cuja casa aco-lhia os indivíduos mais devassos daquele tempo; aí vol¬tei para os jogos, os bailes, os cantos, e com homens e mulheres libertinas esqueci a minha esposa, afundando na lama dos vícios, gastando as sobras do meu patri-mônio.

Minha conduta dilacerou a alma da minha doce companheira, e debalde a pobrezinha chorou e supli¬cou; eu a repeli pior do que um tirano, e Clemência Petrônia, apoiando o meu comportamento, escarnecia a santa chamando-a hipócrita. Minha culpável ce¬gueira chegou a tal ponto que nem de noite eu vol¬tava para casa. Uma noite, depois de uma ausência de vários dias, finalmente voltei ao lar, e minha es¬posa aproximou-se de mim mais triste ainda do que de costume, para me dizer: — Cláudio, Deus nos envia outra criatura; oh! Não condenes teus filhos à miséria, não faças com que mesmo a contragosto eu seja obri¬gada a recorrer a meu irmão.

— Aquelas palavras ir¬ritaram-me e, chegando ao extremo de cólera, empur¬rei-a brutalmente dizendo-lhe: — Vai aonde quiseres; a tua presença me é odiosa.

A infeliz vacilou, e caiu batendo com a cabeça no pedestal de mármore duma estátua; o sangue, espirrando duma profunda ferida,   banhou-lhe o rosto; e imóvel, sem respirar, tinha a aparência dum cadáver. Na certeza de tê-la matado, os cabelos eriçaram-se-me, e naquele momento ouvi uma voz gritar: — Mi¬serável, mataste a mãe de teus filhos! Era a voz do anão, nascido na minha casa; a raiva redobrou a minha ferocidade como o tigre que mais enfurece a vista do sangue, e sacando o punhal do cinto, atirei-me contra ele o golpeei no peito... Apavorado pelos meus cri¬mes, não sabendo onde salvar-me, corri para a casa de Clemência Petrônia, que, recebendo-me friamente, aconselhou-me a matar-me para escapar à desonra. Não, — lhe respondi, — não quero matar-me para tirar-te o incômodo que te causa a minha presença, mas viverei até chegar envolver-te na mortalha. O         Todo-poderoso é terrível em seus juízos: eu vi a mulher mais culpada do que eu, pois foi ela quem me induziu à culpa, mor¬rer abandonada, e minhas mãos a deitaram no lenço fúnebre!

— Fiquei ainda algum tempo em Roma escondido a todos, exceto a um amigo, que, pagando-me uma dí¬vida contraída comigo em outros tempos, deu-me os meios para abandonar a Pátria. Fui para as Gálias e cheguei a Treves; e aí entreguei-me novamente aos prazeres, esperando sufocar o remorso, cravado qual espinho no meu coração. Meu dinheiro diminuía cada dia; farto de deleites, de que muito abusara, sempre guiado pelo meu gênio irrequieto, fui adiante às re¬giões germânicas, e estabeleci-me lá onde a Mosela conflui no Reno. Não tendo outra diversão, andava o dia inteiro visitando os pitorescos arredores do rio, não somente para escapar do enfado, mas também para me cansar e assim dormir placidamente de noite; mas minhas esperanças quase sempre eram baldadas, a insônia tornara-se meu castigo. Não raro uma voz se¬creta dizia-me que a maldição divina pesava sobre a minha cabeça; eu zombava daquela voz, e, como a maioria dos malvados, fazia o possível para me persuadir de que Deus não existia e que a criação e a criatura eram efeito do nada! Miserável mortal, que não era capaz de subir até o cimo das árvores, sem correr pe¬rigo de morte, explicava à minha maneira a criação do universo, e querendo raciocinar, deformava a minha razão; mas a negação do Ser Supremo, vingador da culpa, era necessária para o meu sossego; eu negava Deus, por medo de tê-lo como juiz. .. Nos meus pas¬seios ao longo das margens da Mosela, encontrei um jovem romano, que deixara a Pátria desde criança; ele era cristão, e na beleza da natureza admirava a Providência; todas as coisas criadas lhe falavam de Deus. Chamava-se Múcio e a sua amizade era-me de grande conforto, apesar de que eu o caçoasse freqüentemente ouvindo-o falar da bondade de Deus. Um dia nos               en¬contrávamos juntos nas margens do rio e meu amigo, que trazia sempre consigo o corne de caça, tocava uma melodia por ele composta sobre as palavras do Salmo: Louvai o Senhor, em seu santuário; louvai o no seu firmamento .

— Era um dia magnífico, a primavera estava pró¬xima, e a neve das montanhas derretia aumentando as águas do Mosela. O rio estava coberto de gelo, sobre o qual se via uma camada de água, sinal evidente que o gelo começava a perder a sua solidez, e poucos atrever-se-iam a andar em cima dele. Meu amigo e eu cami¬nhávamos pela margem, quando, do lado oposto, vimos uma mulher, que, estendendo para nós os braços, pediu socorro: como soube depois, era uma louca que costu¬mava vaguear naqueles lugares.

— Está pedindo ajuda — disse Múcio.

— Que podemos fazer?" — respondi. O gelo amea¬ça romper-se, e não vale a pena expor-se ao perigo de perder a vida por uma mulher.

— Sem correr perigo em auxiliar o próximo, que mérito teríamos? — disse Múcio; e assim dizendo apro¬ximou-se à margem, e pôs o pé sobre o gelo.

— Não tive coragem de segui-lo: culpado, eu temia a morte, ao passo que o justo enfrentava-a denodamente!... Vi Múcio avançar sobre o rio gélido, e, chegando ao meio, abanou a mão em sinal de despe¬dida; o pobrezinho reparara que o gelo mexia-se de¬baixo de seus pés. A água do rio aumentava, e pare¬ceu-me ouvir um estrondo ameaçador, e meus cabelos eriçaram-se, quando vi uma massa de gelo despegar-se da superfície do rio e seguir a correnteza... O gelo arrebentara justamente no lugar pisado por Múcio; o coitado estava perdido! Não consegui mais enxergar, e em vão quis acompanhar com os olhos o meu amigo, que as águas velozes arrastavam consigo. Eu não via nada, apenas ouvia o corne de caça a modular: Louvai o Senhor, em seu santuário.

— O som tornava-se mais abafado, e ouvia-o repetir os primeiros versículos do salmo; de repente não ouvi mais nada, o rio tragara a vítima que, até o último instante, abençoara o Todo-poderoso com o som do seu instrumento...!

O velho emudeceu, o pranto impedia-lhe prosseguir; também Jerônimo parecia comovido e enxugava uma lágrima dedicada à recordação de Múcio.

— Desde aquele dia funesto meu coração mudou, continuou Sérgio; a morte de Múcio foi para mim uma revelação; o arrependimento fez-me chorar, e prometi a Deus expiar a minha culpa. Deixei as mar¬gens do Mosela,     dirigi-me para o Mediterrâneo e zarpei para o Egito, pretendendo ir a Jerusalém chorar no sepulcro do Salvador do gênero humano. Vivi por muito tempo como anacoreta num antro cavado nas encostas do Calvário. Lá soube que um santo eremita vivia no deserto da Cálcides; quis ir para a seus pés receber a absolvição das minhas culpas, mas soube que o homem de Deus deixara o deserto. Não demorou que o desejo de rever a minha Pátria começasse a atormentar o meu coração e, não conseguindo resistir, voltei para Roma.

— Velho, pobre, oprimido pelo remorso, revi a mi¬nha terra, e no trabalho e na oração quis expiar a minha culpa, mas eu não sabia fazer nada, e, não tendo com que viver, o patrício Varrão estendeu a mão e pediu esmola; encontrei benfeitores, e consegui jun¬tar uma pequena quantia com que comprei a barca e tornei-me barqueiro do Tibre. Chegando a Roma, procurei meu filho, mas não soube nada; fui para minha casa, nela moravam estranhos, estava portanto sozinho no mundo, e estranho, não tinha nem amigos nem parentes!... O resto da história conheces. O ministro do Altíssimo, julga as minhas culpas; obedecerei à tua voz, se condenar-me a novas expiações.

O santo doutor colocou a destra na cabeça de Cláu¬dio e disse:

— Grandes foram as tuas faltas, mas grande tam¬bém foi o arrependimento; pede de novo perdão a Deus e abençoa a sua bondade infinita.

Cláudio se ajoelhou. Jerônimo, com os olhos di¬rigidos ao céu, pronunciou as palavras da absolvição: naquele momento o ministro do Altíssimo sentia toda a sublimidade do seu ministério. Era Deus mesmo, que, por meio das suas palavras, perdoava a um homem.

A confissão purificara o transviado, que, regene¬rado para nova vida, rejuvenescido, sentia no coração uma alegria indefinível. Agora que Deus lhe perdoa¬ra, ele podia olhar seus filhos e estreitá-los ao coração: a confissão, instituição divina, reabilitava-o e enchia--lhe o coração de inefável contentamento.

— Deixo-te na solidão para que possas rezar — dis¬se Jerônimo; — reza pelos teus filhos e por mim, que sou pecador como tu.

— Tu és um santo e não precisas de orações — respondeu Cláudio, beijando com veneração a destra do sacerdote.

— Estás enganado, porque não há homem sem pecado, nem se sua vida for de um só dia; diante de Deus nem as estrelas são puras, e em seus anjos encon¬tra manchas — frisou o santo Doutor com humildade; depois deixou sozinho o patrício Cláudio Varrão e foi dar a Melânia e a Valéria a notícia confortadora que Cláudio não perdera a razão, mas se arrependera das suas culpas.

 

Surgiram, finalmente, dias menos tristes para o desgarrado, que tanto chorara as suas culpas. Melânia ofereceu-lhe a sua casa hospitaleira e Valéria, cheia de amor filial, assistia-o com a mais terna solicitude; a           po¬brezinha sorria ao pai, enquanto seu coração sangrava pela traição de Marcelo.

Cláudio várias vezes pedira notícias do seu primo¬gênito, mas sem resultado, pois que ninguém ousava revelar-lhe a verdade. Décio contara-lhe que aquele moço de que Valéria separara-se chorando era Marcelo que naquele dia estava de saída para longínquos países. O velho acreditara na piedosa mentira do patrício e cada dia renovava a esperança de ver seu filho.

Tendo cessado a peste, Valéria e Melânia não freqüentavam mais o hospital. A matrona voltara a seus costumes antigos, transcorrendo muita parte do tempo na oração ou trabalhando pelos pobres, e par¬ticularmente pelos numerosos órfãos por ela recolhidos.

O patrício Décio Fúlvio raramente visitava seus amigos; silencioso, procurava a solidão; seu desejo era ter Valéria como esposa, mas, pobre, nada possuía afora um coração generoso, e não queria presentear a jovem com uma existência cheia de privações. Aquilo o en¬tristecia e, portanto, evitava, o mais que lhe fosse pos¬sível, a casa de Melânia.

Também Jerônimo parecia triste; resolvera aban¬donar aquela terra, onde a maldade dos homens man¬chava com as calúnias mais negras a sua fama incontaminada. O homem virtuoso escrevera e gritara com energia descomunal contra a depravação dos costumes; sacerdote, exaltara a casta vida das virgens consagradas, aconselhando-a a muitas jovens de nobre linhagem, e a sua linguagem e seus escritos acabaram com atrair-lhe o ódio dos que, na castidade, encontram um poderoso obstáculo contra paixões brutais. Num primeiro tem¬po o santo sofrerá com resignação, depois cansado, mas sempre paciente, resolvera abandonar Roma, e nova¬mente retirar-se na solidão daqueles santos lugares que tanto venerava. A sua resolução feriu o coração das pessoas virtuosas, que, tendo-o como mestre, seguiam seus piedosos conselhos, e suas súplicas haviam retar¬dado a partida do santo Doutor.

Uma noite, enquanto Valéria lia ao pai uma pá¬gina da Sagrada Escritura, e Melânia, como de costu¬me, estava costurando, chegaram Jerônimo e Décio.

A presença do santo era de agrado a todos, e so¬bretudo a Cláudio Varrão, que se apressou a beijar-lhe a mão.

— Brevemente, ó filhos, abandonar-vos-ei, talvez para sempre — disse Jerônimo depois de sentar-se.

— Partes, então? — perguntou Melânia com voz aflita.

— Sim, dentro de pouco deixarei Roma; fui tolo: queria cantar o cântico de Deus em país estrangeiro e, deixando o monte Sinai, pedia auxílio ao Egito. Esque¬cera o Evangelho; com efeito, quem sai de Jerusalém logo encontra os ladrões — falou Jerônimo com indizível amargura.

— Sim, os malvados conspergiram de fel a tua permanência em Roma; mas, que importa seu furor, se os corações virtuosos te admiram? — exclamou Melânia cheia de entusiasmo.

— Podes falar-me assim porque não há em Roma outras mulheres, que como tu e Paula se tenham tor¬nado a lenda do povinho; mas tu desprezaste as rique¬zas, abandonaste teus queridos penhores, e elevaste a cruz do Senhor como estandarte seguro de piedade; se, pelo contrário, tivesse freqüentado as termas, se as ri¬quezas e o estado de viuvez tivessem sido para ti oca¬sião de pecado, então talvez te chamassem de santa .

— Não me louves, Jerônimo; eu fiz o que todo cristão deve fazer — respondeu a piedosa matrona.

— Fizeste mais, e receberás abundante recompen¬sa; não julgues, porém ser o temor da maledicência a expulsar-me de Roma: unicamente os juízos de Deus me atemorizam . Muitos beijavam-me as mãos e com língua venenosa murmuravam contra mim: via-os Deus, escarnecia-os e   assinalava-me a mim, infeliz, seu servi¬dor, para o futuro juízo junto com eles. Um falava mal da minha maneira de caminhar ou rir, aquele da minha cara, esta suspeitava outra coisa da minha sim¬plicidade; mas eu nunca me importei e meu coração só procura solidão.

— Não demorará muito que eu também irei àquela terra abençoada para a qual pretendes ir — disse Melânia.

— Eu também deixarei a minha Pátria, e irei em busca de paz em outros países — disse Décio.

Ouvindo as tristes palavras do patrício, Valéria abaixou a cabeça, e uma lágrima abafada brilhou em seus olhos.

— Pobre Décio, nós nos veremos de novo no céu — disse Jerônimo dolorosamente.

Dir-se-ia que as palavras do santo fosse um cruel pressentimento, porque olhava o patrício com indizível tristeza.

— Se Deus quiser, seguir-te-ei no Oriente — res¬pondeu o moço.

Jerônimo abanou a cabeça, seus lábios quiseram pronunciar uma palavra; mas, reprimindo a voz, man¬teve-se um bocado em silêncio, depois falou:

— Com grande aflição vos deixo, ó meus caros: a ti, Melânia, recomendo Cláudio e Valéria; sê para eles um anjo tutelar; vela sobre esta jovem, a quem Deus mantém reservadas grandes glórias, e sê o amparo desse velho, que necessita de paz.

Valéria beijou a mão do santo e, enquanto enxu¬gava as lágrimas, disse com a mais viva gratidão:

— Meu pai, meu benfeitor! Todos os dias a mi¬nha voz elevar-se-á para abençoar-te; sem ti, tremo ao recordar, teria morrido: a ti devo a minha salvação. Oh! Não te esqueças de mim em tuas orações; Deus não se mostra surdo às orações dos santos.

— Sim, rezarei por vós todos, mas não nos aban¬donemos à melancolia; a hora da partida não está tão próxima, e o navio que há de levar-me longe de Roma ainda não içou as velas...

Jerônimo procurava alegrar seus amigos, mas inu¬tilmente. Ninguém sorria e todos, mudos, pensavam com tristeza na próxima partida do seu mestre.

Melânia parecia menos aflita que os outros; cedo ou tarde estaria perto do santo; mas não assim Valéria e Cláudio, que não conseguiam esconder a sua dor.

— Que será de nós, quando também tu, Melânia, nos deixares? — disse a jovem.

— Não tenhas medo, eu não irei embora sem antes ter garantido o vosso futuro.

— Partiremos contigo! — exclamou Valéria, es¬treitando-se à matrona.

— Filha, teu pai não nos poderia seguir; mas não chores, ainda     ver-nos-emos na terra; e se Deus assim não quiser, ver-nos-emos no céu.

— Sim, no céu, aonde irei esperar-vos — interrom¬peu Décio com voz sombria.

Todos olharam o patrício, surpreendidos pelas suas palavras, Jerônimo suspirou profundamente, e Cláudio observou:

— Moço, cheio de forças, não fales em morte, e deixa ao mais velho a esperança de chegar antes de vós todos ao porto da eterna salvação.

— Quantas vezes vi rebentos caírem antes dos car¬valhos seculares! — disse Décio.

— Afastemos esses funestos pensamentos! — ex¬clamou Melânia: e com a vivacidade própria do seu caráter iniciou uma conversa menos triste.

Depois que Jerônimo e Décio deixaram a casa de Melânia, Valéria retirou-se para o seu quarto, e não conseguindo dormir, chorou e orou a noite inteira.

Também Décio afligia-se com a partida de Jerônimo e gostaria de ir com ele; mas não podia deixar seus estudos e, não se sentindo chamado à vida monástica, não queria expor-se à tentação de pronunciar votos, de que em seguida, talvez, arrepender-se-ia. Jerônimo fez o possível para confortar seu jovem amigo, mas as suas palavras foram inúteis; a tristeza de Décio tornava-se cada vez mais intensa.

Na noite em que Jerônimo partira de Roma, Me¬lânia, Valéria e Cláudio encontravam-se reunidos na casa de Asela, que ignorava a saída do santo, quando lhe foi entregue um envelope.

Era uma comprida carta escrita por Jerônimo an¬tes de subir ao navio que o levaria para o Egito; nela anunciava a sua partida, e terminava com essas pala¬vras: "Saudai todas as irmãs e dizei-lhes; Estaremos juntos diante do tribunal de Cristo; lá estará patente a intenção com que cada um viveu. Recordai-vos de mim, vós, exemplo insigne de pudicícia e virgindade, e com vossas orações acalmai as vagas agitadas do mar .

Asela beijou com devoto respeito o escrito do Santo; depois, elevando os olhos ao céu, disse com emoção:

— Jerônimo, as tuas orações são mais ouvidas do que as minhas; reza, portanto, para que este meu corpo logo descanse no túmulo.

Os presentes não conseguiram refrear o pranto, e enquanto o santo doutor atravessava o mar, feliz por rever os lugares santificados pelo nascimento e a morte do Filho de Deus, seus amigos choravam copiosamente, e, inconsoláveis, acompanhavam-no com o pensamento.

 

Um ano após a partida de Jerônimo, novas cala¬midades haviam oprimido Roma e ameaçavam oprimi-la cada vez mais. Alarico, recebido o resgate, reti¬rou-se na Tuscia aguardando que o imperador Honório aceitasse as condições de paz que lhe propusera; mas Honório, ou melhor, seu ministro Olímpio, não quis aceitá-las. Alarico, indignado, dirigiu-se de novo para Roma, e parou em Porto, localidade situada à direita da boca do Tibre, que parecia como uma obra gran¬diosa, erigida como por encantamento sobre um solo faludoso, para se opor ao ímpeto das águas. De tudo isso hoje só resta umas ruínas.

A fome manifestou-se mais terrível do que antes, e os romanos, que não tinham outra saída, foram obri¬gados a eleger um novo imperador a eles imposto por Alarico.

O Senado teve que se abaixar ao querer do gôdo, e elegeu Átalo, que fora enviado a Roma por Honório como prefeito. A plebe aplaudiu com alegria frenética às gratificações concedidas pelo novo imperador, e exal¬tou-se à vista dos jogos do circo e dos combates orga¬nizados com grande pompa no Anfiteatro Flávio.

A eleição de Átalo desgostara os cristãos, que re¬lutavam ao governo dum imperador, que, educado ao paganismo, abjurara o culto dos deuses, e para fazer coisa grata a Alarico, recebera o batismo por um bispo ariano, e do paganismo passara à heresia sem perder nada da primeira religião. E a provar isso deu dispo¬sições para que se reabrissem os templos pagãos e das moedas que foram cunhadas, desapareceu o Lábaro com o monograma de Cristo, e foi gravada a efígie da vi¬tória romana.

Enquanto tais acontecimentos funestavam a paz de Roma, a sorte das principais personagens da nossa nar¬ração melhorara bastante. Cláudio e Valéria não cho¬ravam mais a ausência de Marcelo; a sua dor abran¬dara-se um pouco, e com paciência estavam esperando sua volta. Décio não era mais melancólico, porque pela primeira vez a felicidade sorria-lhe, e um futuro ditoso apresentava-se à sua imaginação juvenil.

Melânia resolvida a ir a Jerusalém, antes de sair, queria ver garantida a felicidade dos seus protegidos; por isso deixara uma parte das suas riquezas a Valéria e, tendo percebido o sentimento que Décio alimentava para a jovem, desejaria que a pedisse em casamento; mas o patrício, cheio de nobre orgulho, repeliu as su¬gestões da matrona, não querendo viver à custa duma rica esposa, sendo ele tão pobre.

As repetidas insistências de Melânia nada teriam conseguido se Asela, que cada dia mais se aproximava da morte, não suplicasse ao moço aceitasse a sua he¬rança, e a deixasse morrer com a satisfação de ter as-segurado a felicidade do filho da sua amiga.

Cláudio consentiu com alegria ao pedido do pa¬trício e, abençoando a bondade divina, não julgava me¬recer a consolação de chegar a morrer rodeado de netinhos.

Também Valéria estava feliz e sonhava com um futuro diuturno e cheio de santas alegrias. Seu amor para Décio não era uma daquelas paixões loucas ou romanescas, que nascem e morrem deixando o coração gélido; era um sentimento fundado na estima, guiado pela religião; um sentimento que não morre com a mocidade e a beleza, porque, saindo da alma, não so¬fre a influência da matéria e não está sujeito à saciedade.

Felizes, calmos, cheios de gratidão para com o Al¬tíssimo, os dois noivos esperavam o dia em que um sacerdote consagraria a sua união; mas Deus, em seus imperscrutáveis desígnios, dispusera diferentemente; a grinalda das virgens não seria tirada dos cabelos negros de Valéria e acompanhá-la-ia ao túmulo!

Um dia, ao cair da noite, Décio chegou à casa de Melânia enquanto a matrona estava prestes a sair, para ir perto do leito de Asela moribunda.

— Melânia, rogo-te, não abandones a tua casa; esta noite será de luto para Roma! Os gôdos avançam ameaçadores para calcar o chão dos nossos pais — disse Décio com voz emocionada.

Valéria empalideceu, Cláudio ficou assustado por causa da filha, e Melânia disse, erguendo o olhar para o céu:

— Que Deus proteja as suas igrejas, e os abrigos das virgens consagradas! Mas, dize-me, tens certeza? Quem falou?

— Falaram-me a esqualidez e o pavor que rei¬nam em todo recanto de Roma. Muitas famílias fogem apressadamente e procuram a salvação no Lácio. Ou¬tros escondem os objetos mais preciosos nos esconderijos mais remotos, ou nos sarcófagos dos mausoléus, e todos temem as rapinas dos bárbaros.

— Meu Deus, que será de nós? — exclamou Va¬léria, e seu olhar amedrontado fitava-se no do patrício.

— A Providência divina não nos abandonará — disse Melânia — mas de qualquer forma eu tenho que ir assistir a minha amiga moribunda, e irei mesmo se tiver que passar no meio das fileiras dos gôdos. Em minhas longas viagens Deus salvou-me de graves pe¬rigos, e nada receio, pois tenho fé na sua proteção.

Ninguém ousou opor-se à vontade da matrona, e Décio ofereceu-se para acompanhá-la, prometendo vol¬tar para reanimar com a sua presença o velho e a moça.

Enquanto a matrona despedia-se dos seus amigos, chegou um servo anunciando que uma carroça carre¬gada de objetos, cobertos por um amplo cobertor, en¬trara no átrio e que um sacerdote da Basílica Lateranense pedia para falar com Melânia.

Logo depois um venerando ancião apresentava-se à patrícia e   disse-lhe, falando apressadamente:

— Piedosa mulher, venho em nome do nosso su¬premo Pastor, para que tu escondas na tua casa as sacras e preciosas alfaias da Basílica Lateranense. Os gôdos estão às portas; Alarico mandou avisar que os sacros abrigos das virgens não serão violados, como também as habitações dos senadores; mas quem pode confiar na sua palavra? A rapacidade da sua gente é bem conhecida; crêem que nas igrejas estejam escon¬didos grandes tesouros e os sacrílegos aí entrarão; por isso às casas dos senadores estarão menos expostas à ra¬pina.

— Mas, onde esconderei as alfaias? Sou digna de guardá-las?

— Não há mulher mais digna do que tu — res¬pondeu o sacerdote — e a tua casa é casa de Deus, porque aqui mora uma santa. És viúva de um sena¬dor; pendura no peristilo da tua casa as insígnias do teu esposo defunto, e os bárbaros não entrarão. Mas o tempo voa, a cada instante os invasores aproximam-se, apressa-te, portanto, a receber os objetos sacros.

Melânia e seus amigos desceram no átrio e, ajuda¬dos pelo sacerdote e pelos servos, tiraram do carro os preciosos paramentos e colocaram-nos num grande ar¬mário num dos quartos mais escondidos da casa.

Partido o sacerdote, a matrona recomendou a Va¬léria para guardar as alfaias sacras durante a sua au¬sência; depois afastou-se.

— Volta, Décio, volta logo meu filho; a tua pre¬sença salvará Valéria do medo — disse Cláudio.

— Voltarei, sim, pai, se Asela mo permitir.

— Não te importes comigo, Décio, — disse Va¬léria; — cumpre a tua obrigação com a tua benfeitora, e não a abandones nos últimos instantes.

Melânia e o patrício encontraram Asela agoni¬zando, de maneira que ele não teve coragem de aban¬doná-la, apesar de que o coração o solicitasse para voltar ao lado de Valéria.

À noite em que Asela agonizava era o dia 24 de agosto de 410 da era de Cristo, noite funesta para Roma, noite em que, como diz S. Jerônimo em carta a Eustóquio, "A cidade que conquistara o mundo era con¬quistada". A traição dos arianos abriu as portas ao inimigo; uma horda de bárbaros ferozes, acostumados ao sangue, à rapina e a todo gênero de violência, pre-cipitou-se da via Salária nas estradas circunjacentes, que desde o tempo de Tácito eram consideradas as mais estreitas e sujas; eram habitadas pelos pobres. Não longe da porta havia os suntuosos jardins de Salústio, ornados de tudo que a arte pode criar de lindo; lá correram os ávidos saqueadores, e roubando tudo o que podiam levar, quebraram e mutilaram as estátuas, der-rubando e devastando, com fúria satânica, tudo que lhes caía nas mãos; depois avançaram, e pouco ou nada en¬contrando nas casas miseráveis daquele labirinto de becos estreitos, atearam fogo nelas.

Os habitantes daqueles lados fugiam em massa dian¬te das hordas devastadoras, levando a desolação para o centro de Roma; e aquele povo, que era justamente considerado o mais valoroso da terra, sem defesa, apa-vorado, estendia-se por medo daqueles que nos séculos passados fizera tremer: triste sorte de tudo que é hu¬mano! Sobe-se devagar, mas tomba-se precipitadamente, e não há nada, aqui embaixo, que, chegando ao seu apogeu, não seja fadado a desaparecer!

Semelhantes a torrente impetuosa, os gôdos pene¬traram em todas as ruas matando e saqueando, e os monumentos mais grandiosos, as estátuas mais formosas receberam o abraço devastador do bárbaro.

As igrejas, declaradas asilo inviolável pelo rei gôdo, foram em parte respeitadas, todavia nelas deram-se mui¬tas matanças e violências, e estavam apanhadas de mulheres, crianças e virgens consagradas que lá se ha¬viam abrigado; e nem andaram isentas as casas dos se¬nadores: os gôdos, soltando urros selvagens, irrompiam nelas e, derrubando as portas, entravam furibundos nos átrios, subiam correndo as escadas, e com fachos acesos atravessavam os quartos cometendo as mais horríveis violências; e depois, molhados de sangue, carregados de despojos, voltavam às ruas para continuar a sua cor¬rida devastadora.

Na chefia duma mesnada mais feroz do que as outras via-se um homem de barba comprida, cabelos desgrenhados; parecia prático em Roma e guiava seus capangas para as habitações dos patrícios mais abastados; o maldito não era gôdo, falava a linguagem das suas vítimas, e com elas tinha em comum a Pátria; traidor do solo que o vira nascer, trazia-lhe a devastação, e no meio da chacina, iluminado pelo clarão dos incêndios, parecia o anjo decaído, o gênio do mal!

Alvorecia quando a turma do barbudo que a noite inteira foliara no sangue, parou diante do peristilo de Melânia. Contemporâneamente estava chegando tam¬bém Décio de volta da casa de Asela. No breve per¬curso, o jovem noivo conseguira evitar os gôdos e corria ansioso para logo chegar; à vista dos que estavam para derrubar a porta da casa onde residia a sua amada, perdeu o lume dos olhos, e furioso, não tendo uma arma para atacar ou se defender, pulou no meio dos inimigos como se lhe fosse possível dispersá-los com a sua voz ameaçadora.

— À morte, ó romano! — gritou o homem de barbas compridas, sem saber a quem estava mandando trucidar.

No mesmo instante Décio caiu ferido por nume¬rosos golpes, e antes de tombar estendeu os braços para a morada de Melânia exclamando:

— Adeus, sonhos felizes; adeus, Valéria!

O nome de Valéria chegou aos ouvidos do chefe da mesnada, que se abaixou sobre o ferido para olhá-lo, e um grito de horror saiu dos seus lábios vendo o jovem generoso que há um tempo salvara-lhe a vida.

Aquele grito fez abrir os olhos ao moribundo, que, reconhecendo o gôdo, disse-lhe com voz sumida:

— Marcelo, eu te perdôo... Possa também Va¬léria perdoar-te a morte do seu noivo.

Um grito mais angustioso que o primeiro ecoou em volta; o transviado enfiou as mãos nos cabelos com um gesto de desespero, depois com o olhar fixo, e fora de si, fugiu precipitadamente. Um dos gôdos       perse¬guiu-o, mas não conseguiu alcançá-lo.

Marcelo tinha ido à casa de Melânia, para arran¬car sua irmã do lado da matrona, mas seus homens nada sabiam do seu plano, a não ser aquele que corria atrás dele; por isso, na suposição de encontrar uma rica presa, os gôdos recomeçaram a pôr abaixo a porta.

Enquanto Décio jazia no peristilo crivado de fe¬ridas, Valéria, em companhia de Milo, estava no quarto onde haviam sido escondidas as alfaias. A jovem obri¬gara Cláudio e os servos a deitarem-se, assegurando-lhes que não havia nada a temer, sendo a casa de Melânia considerada inviolável: não podendo fechar os olhos ao sono, ela velava na custódia do precioso de¬pósito que a matrona lhe confiara.

Aquela noite funesta parecia eterna à pobre moça; os gritos ferozes dos invasores, o gemido das vítimas, chegavam a seu ouvido, fazendo-a tremer de susto. Apesar de se encontrar em pleno verão, tiritava de frio, e inutilmente procurava rezar, porque as suas súplicas eram distraídas pelo estrondo de fora. A al¬vorada dissipava as trevas, uma luz frouxa penetrava no quarto, onde a chama da lâmpada ia minguando. Cansada de ficar sentada, Valéria levantou-se do seu lugar, e, aproximando-se do anão, disse-lhe:

— Dentro de pouco aparecerá o sol; quantos que ontem viram-no pôr-se, não o verão surgir hoje, e seus raios iluminarão um cúmulo de ruínas!

Valéria escondeu o rosto e permaneceu entregue a uma tristeza indizível; depois sobressaltou-se de ter¬ror e, empalidecendo, exclamou:

— Milo, escuta, derrubam a porta!

— Meu Deus, salvai-nos! — gritava o anão caindo de joelhos diante dum Crucifixo.

Os golpes repetiam-se e ribombavam no coração de Valéria que, sem esmorecer, fechou a porta do quarto vizinho para que o barulho não acordasse o pai. De repente três servos com o rosto agitado pelo terror en-traram no quarto gritando:

— Os gôdos assaltam a Casa, estamos perdidos!

Valéria ficou por um instante desnorteada, tremen¬do, prostrada pelo terror, mas logo reanimando-se, disse aos servos com voz firme:

— Escondei-vos atrás das estátuas do terraço, e tu, Milo abre a porta do peristilo; qualquer resistência se¬ria inútil.

Em dizer isso o rosto de Valéria expressava a ener¬gia dum coração cheio de fé; pálida e linda dirigiu o olhar ao céu, depois olhou em volta, e vendo-se sozinha porque os servos haviam obedecido, tirou da parede um Crucifixo, e, segurando-o na destra, colocou-se diante do armário onde havia os paramentos.

Os bárbaros, furiosos, atiraram-se pelas escadas acima, em busca de vítimas e despojos, vasculharam os quartos desertos, mas nada encontraram, porque Melânia não possuía nenhum objeto de muito valor. A so¬lidão daquela casa surpreendeu os rapaces invasores, que, adentrando-se sempre mais, chegaram ao quarto das alfaias, e estacaram pasmados no limiar.

Aquele quarto era completamente desprovido de móveis; as paredes eram escuras, o assoalho e o forro enegrecidos; num canto havia um grande armário de madeira dourada diante do qual estava uma mulher em vestes brancas, que na destra segurava um Crucifixo diante de si, como a fazê-lo seu escudo. O sol da ma¬drugada atravessava uma abertura no forro, e refletia-se sobre a cabeça daquela branca criatura, rodeada por uma auréola de luz.

— É um fantasma — gritou um daqueles supers¬ticiosos filhos do Norte.

Ao grito, aqueles homens que permaneciam impá¬vidos diante do inimigo, e que de nada se assustavam, recuaram. Aquele grito passou de boca em boca, e muitos deles, sem ter visto nada, seguiram seus com-panheiros, que, tomados por pânico, fugiam em de¬bandada.

Enquanto aquela mesnada deixava a casa de Melânia, o gôdo que perseguira inutilmente Marcelo volta¬va, sabendo que aí morava a irmã do seu chefe, e vendo seus companheiros receou alguma catástrofe. Correndo atravessou o átrio, e depois de ter procurado em toda parte, chegou ao quarto onde Valéria encon¬trava-se ainda diante das alfaias que salvara com a sua presença.

Vendo o recém-chegado, a pobrezinha tremeu de novo, mas não se moveu.

— Sossega, branca virgem; teu irmão chegará dentro de pouco, e desde já mandarei imediatamente vigiar esta casa para que meus companheiros de armas não se aproximem dela — disse o gôdo com maneiras corteses.

— Meu irmão está convosco! — gritou Valéria horrorizada: — depois, com dolorosa indignação, acres¬centou: — Vai e dize-lhe que se por minha infelici¬dade teve em comum comigo a mãe, não chegue aqui se não quiser suscitar dos lábios de um velho uma ter¬rível maldição... Eu não peço proteção aos inimigos da minha Pátria, mas se queres ser menos cruel que os teus companheiros, faze com que estas alfaias sacras que se encontram escondidas aqui, e que foram mila¬grosamente saldas, não caiam nas mãos dos profanos.

O aspeto de Valéria era tão imponente que o gôdo sentiu-se cheio de respeito para com aquela virgem in¬defesa; e, obediente como uma criança, afastou-se incontinenti.

Ficando só, Valéria foi tomada pela dor mais agu¬da, mas, pensando em seu pai, tomou ânimo, e desceu ao átrio em procura de Milo, para que o fiel anão es¬perasse Marcelo, a fim de avisá-lo para que não se apresentasse a Cláudio Varrão, envergando as vestes dos invasores.

Chegando ao átrio, a pobrezinha deu uma olhada em voltai por acaso seus olhos dirigiram-se para o peristilo, e deu um grito de angústia vendo Milo, que, de joelhos, chorava perto do cadáver de Décio; depois, sacudida por um tremor convulso, sem derramar uma lágrima, ficou de pé com os braços estendidos; a sua dor incutia temor, e comoveria também os ânimos mais cruéis; depois uniu as mãos e caindo prostrada, ex¬clamou:

— Deus todo-poderoso, dá-me a força para aben¬çoar a tua vontade suprema!

— A árvore nova tombou antes do velho carvalho — disse uma voz trêmula, que entre os soluços repetia as palavras já pronunciadas por Décio; era a voz de Cláudio que, acordando, chamara em vão sua filha, e não a encontrando descera para procurá-la no átrio.

O sol, com seus fúlgidos raios, iluminava as ruí¬nas de Roma, os gôdos, cansados da orgia de sangue, não procuravam mais despojos, e andavam confusamente pelas ruas. Muitos deles passaram diante da casa de Melânia não se atrevendo a entrar, porque o amigo de Marcelo havia colocado um guarda; mas detiveram-se a olhar surpreendidos aquele peristilo on¬de um velho, uma jovem e um anão, ajoelhados, re¬zavam perto dum cadáver ensangüentado.

 

Dois dias depois da invasão, o aspeto de Roma era deveras desolador; em toda parte viam-se as ruínas cau¬sadas pelos gôdos, que, percorrendo a cidade, não se entregavam mais a violências, mas embriagados, en¬toavam cantos de guerra e faziam-se de bobos pelas ruas.

À vista de tantas devastações, um secreto remorso feriu o coração de Alarico, tanto assim que teria gos¬tado de remediar de qualquer forma o mal feito, mas era tarde; e agastado, pensativo, perambulava pelas sa¬las do palácio dos Césares. Chegando ao cimo dos seus sonhos, sentia-se o ânimo angustiado e o seu triunfo parecia-lhe vil e mesquinho, porque triunfara sobre os indefesos, e as pegadas que seus homens haviam im¬presso no chão sagrado de Roma, eram pegadas de sangue indelével.

Reuniu os chefes do seu exército e impôs que fosse posto um freio à brutalidade dos gôdos, ameaçando severas punições a todos que ainda se tornassem réus de rapinas. Depois perguntou por Marcelo, mas nin¬guém soube dar notícias, a não ser um guerreiro, que contou como um jovem romano, acometido por repen¬tina demência, dera-se a fuga precipitada; e no mesmo tempo falou de Valéria e do tesouro por ela custodiado.

A narração do gôdo fêz vislumbrar uma idéia na mente de Alarico, que, extremamente astuto, pensou em mandar levar as alfaias à igreja de onde haviam sido tiradas, e comunicar a todos o nome da virgem que as custodiara, assim ele lucraria a simpatia dos cristãos e abrandar-se-ia o ódio despertado pela fero¬cidade das suas hordas.

Naquela mesma manhã, seguido por numeroso cor¬tejo, Alarico foi à casa de Melânia e atravessando aque¬le trecho de caminho que separa o Aventino do Palatino, teve ensejo de ver as ruínas e as mortes que pesavam sobre a sua cabeça. Àquele espetáculo, a fronte soberba do conquistador curvou-se humilhada e seus olhos, que nunca haviam lagrimejado, derramaram pela primeira vez uma lágrima. Dolorosa é a lágrima do vencido, mais amarga, porém, e mais cruel é a do vencedor, que chora sobre as ruínas causadas pela sua vitória.

Chegando à casa da matrona, Alarico quis entrar sozinho, e atravessando o átrio, estranhou a solidão aí reinante; subiu as escadas, atravessou muitos quartos desertos, finalmente ouviu uma flébil oração que pa¬recia um fraco gemido, e adentrando-se ainda, deteu-se diante da lúgubre cena que se oferecia a seus olhos.

No quarto das alfaias estava estendido o cadáver de Décio Fúlvio, envolvido num branco lençol, que escondia as feridas ensangüentadas, e em suas mãos postas havia um crucifixo de madeira. Aos pés do morto, sentado no chão, chorava Milo, e pouco longe dele, o velho Cláudio rezava entre os soluços. À ca¬beceira do defunto duas mulheres ajoelhadas recitavam um salmo; uma era Valéria, com os cabelos esparsos nos ombros parecendo a imagem da dor, a outra era Melânia, que, depois de ter fechado os olhos da sua amiga, voltara à sua habitação para orar perto dum outro cadáver.

Alarico não ousou, estorvar o velório, e já estava para ir embora, quando a matrona, reparando na sua presença acenou-lhe para aproximar-se, e depois foi com ele para o quarto vizinho e lhe perguntou:

— Quem és tu, ó estrangeiro?

— Alarico — respondeu o rei gôdo, como se aque¬le nome, que costumava pronunciar com orgulho, na¬quele momento queimasse-lhe os lábios.

— Se és tu o chefe dos bárbaros, possa Deus per¬doar-te as vítimas que caíram por tua culpa, e que não te peça conta disso quando te apresentares ao tri¬bunal da sua justiça.

Uma breve pausa seguiu às palavras: o poderoso conquistador, aquele diante de quem todos tremiam, permanecia humilde diante duma mulher, cujo rosto severo inspirava-lhe respeito.

— Quem te guia a esta casa onde estamos rezan¬do para uma vítima dos teus ferozes sequazes? — con¬tinuou Melânia.

— Soube que aqui estão escondidas as alfaias duma igreja cristã — respondeu Alarico — e vim notificar à virgem, cuja presença salvou-as da rapina, que, à tarde, antes do pôr do sol, serão levadas solenemente para o lugar de onde foram removidas. Eu esperava que a jovem pudesse acompanhá-las, mas a infeliz geme ao lado dum cadáver, e não me atrevo a pedir-lhe ta¬manho sacrifício.

— Para um verdadeiro cristão não há sacrifício quando se trata de honrar o que serve para o culto da nossa religião. Valéria obedecerá à tua vontade; pro¬meto-o em seu nome.

Dito isso, Melânia virou as costas a Alarico e vol¬tou para o velório.

O rei gôdo acompanhou com o olhar aquela mulher severa, que, sem atemorizar-se com a sua presença, respondera-lhe com energia cheia de calma; ele julgava as mulheres romanas capazes apenas para se enfeitar e assistir aos espetáculos públicos, mas a sua opinião mudou, vendo Melânia, e convenceu-se de que também no peito das descendentes de Rômulo podia palpitar um coração viril.

Enquanto o gôdo saía da casa de Melânia, a pa¬trícia contava a Valéria a vinda de Alarico.

— À tarde, antes do pôr do sol — disse a jovem — o corpo de Décio descansará no túmulo; naquela hora não serei mais a viúva dum homem, e em vestes de noiva irei para a santa morada do meu esposo celeste para   bendizê-lo.

Melânia apertou a destra da virgem aflita, e fitou com admiração a piedosa criatura a quem a fé abran¬dava a dor e abria o coração à esperança sem fim.

Três horas mais tarde, em silêncio e sem aparato, dois cadáveres eram levados ao cemitério ad Ursum pileatum ; um era o da matrona Asela, o outro do patrício Décio Fúlvio. Duas mulheres e um velho acom¬panhavam o cortejo fúnebre, e quando os defuntos fo¬ram colocados um perto do outro na terra abençoada, os amigos supérstites saudaram chorando os que, cedo ou tarde, reveriam no céu...

O sol deixava cair os raios do tramontar sobre os altos cimos dos monumentos romanos. Uma comprida procissão movia do Aventino rumo ao Anfiteatro Flávio, para depois dirigir-se, em passo lento, para a Basílica Lateranense.

Diante de todos andavam os sacerdotes paramentados, depois vinha um carro revestido de púrpura, or¬namentado de festões dourados, puxados por quatro ca¬valos brancos, e nele estavam colocadas as sacras alfaias, isto é, cálices adornados de jóias, patenas, candelabros e cruzes de ouro e prata. Atrás do carro caminhavam Valéria e Melânia; a jovem estava vestida festivamente, como uma noiva que se dirigia às núpcias, e rosas engrinaldavam seus cabelos. Não longe delas ca¬minhava Alarico, encabeçando os chefes do seu exército; depois vinham sem ordem personagens ilustres, pessoas da plebe, mulheres, velhos, crianças, cristãos, arianos e pagãos, muitos atraídos pela devoção, muitos pela curio¬sidade ou por disposição de Alarico.

Chegando diante da Basílica Lateranense o cortejo parou, os sacerdotes tiraram as alfaias do carro, para levá-las processionalmente à igreja.

A Basílica Lateranense, edificada no lugar onde há um tempo surgia a casa de Pláucio Latrão, que foi morto por ter conspirado contra a tirania de Nero, unia à beleza do lugar que domina sobre a planície que se estende até os montes de Túsculo e os montes Albanos, a magnificência das decorações; era justamente chamada a Basílica Áurea, sendo a mais rica de todas as Basílicas Constantinianas .

Durante o trajeto Valéria nada vira, e com a men¬te dirigida a Deus rezara fervorosamente; mas antes de entrar na basílica olhou em derredor e mirou surpre¬endida a multidão reunida na praça; depois a sua vista correu pelos montes do Lácio, que, àquela hora do en¬tardecer, destacavam-se sobre o horizonte dum azul pálido, marchetado de reflexos dourados; àquela hora melancólica e solene entristeceu ainda mais o coração da derrelita, e gemendo pensou que esperara ir àqueles montes com Décio; e agora seu noivo descansava de¬baixo da terra!

A procissão entrou na igreja, e os coristas entoa¬ram um cântico, a que respondeu a multidão. Valéria havia-se ajoelhado diante da balaustrada que cercava a capela-mor e com a cabeça abaixada ao chão chorava e rezava. Subitamente uma visão apresentou-se ao seu olhar: pareceu-lhe ver Décio entre os anjos, vestido de túnica alva; ele sorria-lhe, dizendo com voz celestial: "Na terra fugaz é a alegria, curta a dor; no céu a felicidade é eterna, inexprimível".

Não longe de Valéria, escondido atrás duma co¬luna, estava um homem de rosto lívido, e com os olha perdidos fitava a melancólica virgem, fazendo de vez em quando um movimento como se quisesse correr ao seu lado; mas depois detinha-se e tremia parecendo-lhe que a sombra ameaçadora de Décio o repelisse. Não conseguindo resistir à tamanha emoção, Marcelo precipitou-se fora da igreja, mergulhando na multidão dos pagãos e arianos.

Terminado o canto sacro, os cristãos saíram da igreja; Valéria, Melânia e Cláudio voltaram para casa no meio da admiração de todos os que olhavam a linda jovem que salvara as sacras alfaias.

Valéria estava serena, seu rosto não trazia mais a expressão de dor, e como que extática, tocava apenas com os pés no chão, parecendo prestes a levantar vôo para o céu. Atravessando o peristilo da casa de Melâ¬nia, seus olhos caíram sobre as manchas do sangue saí¬das das feridas de Décio: correu, então, para o átrio e, molhando um paninho na água duma vasilha, fêz       de¬saparecer os sinais do sangue. No desempenho daquela tarefa dolorosa as suas mãos não tremeram e os seus olhos não derramaram uma lágrima; peregrina na terra, conformava-se com os sofrimentos e, recordando a     apa¬rição da Basílica Lateranense, repetia com entusiasmo: "Fugaz é a alegria, curta a dor, e no céu a felicidade é eterna, inexprimivel!..."

 

Cinco anos haviam transcorrido desde a invasão de Roma, e o inimigo da Cidade Eterna já fazia muito tempo que havia morrido; a divina justiça o apanhara, na flor da idade, no meio dos seus ambiciosos desígnios, entre as suas estrondosas vitórias, e falecera depois de breve enfermidade nas proximidades de Cosenza. A sua vontade foi cumprida, os pés dos homens não de¬viam pisar o chão onde estava enterrado o seu cadáver; perto dos muros de Cosenza corre o Bisento; os homens de Alarico desviaram o curso do ribeirão, e, aberta uma cova no lodo, puseram nela o corpo do rei e uma parte de seus tesouros; depois encaminharam de novo o rio ao seu leito, mataram os prisioneiros de guerra que haviam cavado aquele túmulo estranho, para que nin¬guém conhecesse o lugar exato onde jazia o rei gôdo; e nunca se soube. Muitos séculos passaram, aquele sepulcro permanece desconhecido, e o transeunte, en¬quanto descansa à margem do rio, que atravessa um vale pitoresco, contempla as suas águas tranqüilas, que faíscam aos raios do sol, e sonha ver no fundo os te¬souros de Alarico.

Depois da morte do seu rei, os gôdos proclamaram Ataulfo, cunhado de Alarico, como chefe supremo e ele retomou as negociações interrompidas por Alarico, obrigando-se a uma aliança com Honório e prometendo combater com ele nas Gálias e na Espanha, e em troca o imperador deixou para os gôdos a Aquitânia e a Gália Narbonense, para que pudessem estabelecer-se aí.

Quando em Roma chegou a notícia da morte de Alarico, Cláudio Varrão encontrava-se moribundo, e expirava nos braços de Valéria, perdoando a Marcelo de quem conhecera a traição que apressara a sua morte.

Depois do falecimento de Cláudio, Melânia e Va¬léria deixaram Roma, indo para Jerusalém, onde a pia matrona fizera edificar um mosteiro; nele estabelece¬ram-se a patrícia e a jovem, fazendo voto a Deus de aí terminar seus dias.

Era um dia muito quente do mês de junho, e Je¬rusalém parecia mais esquálida do que nunca; a atmos¬fera era sufocante e os raios abrasadores do sol, fazendo cintilar a areia da planície, desprendiam dela vagas de fogo.

O mosteiro edificado por Melânia elevava-se no vale, aos pés do morro das Oliveiras, e seu aspeto ex¬tremamente severo e triste, condizia com aquele lugar cheio de recordações tão santas e grandiosas. No vale não havia vegetação, e a serra, íngreme e estéril, que a circundava de longe, tornava-o ainda mais monótono. Aquele lugar fora bem escolhido para erigir um abrigo de oração; aí a mente das piedosas mulheres, despren¬dida de qualquer vínculo terreno, elevava-se a Deus na contemplação e na oração.

Um homem vestido com comprido burel de lã es¬cura, apertado à cintura por uma corda, com a cabeça coberta por um largo chapéu, e com um bordão na mão, vinha do lado de Jerusalém. Era moço e seus compridos cabelos negros confundiam-se com a barba igualmente comprida e inculta. Chegando à frente do convento, parou, depois encaminhou-se lentamente e empurrando a porta da igreja semi-aberta, entrou no sacro recinto.

A igreja era pequena e tinha a forma duma basí¬lica romana: naquela hora estava iluminada apenas pelos círios que ardiam no altar-mor. Um canto flébil, que provinha de longe, aumentava a melancolia daque¬le lugar dedicado à oração; o canto era dulcíssimo e penetrava no coração do peregrino, que, de pé no li¬miar da porta, ouvia-o com a mais viva atenção: su¬bitamente o bordão caiu-lhe das mãos, os joelhos dobra¬ram-se e, prostrando-se no chão, apoiou a testa ardente no piso de mármore.

Naquele instante dois homens entraram na nave central, um era um velho servo de Melânia, o outro era Milo. Ao ruído dos seus passos, o homem prostrado levantou-se e, dirigindo-se ao velho servo, disse-lhe:

— Sendo permitido, desejaria falar com a virgem Valéria.

— A virgem Valéria — respondeu o servo — e a piedosa viúva Melânia sempre recebem prazerosamente os peregrinos que aqui chegam; espera: quando o canto terminar, anunciarei a tua presença à santa jovem.

O velho afastou-se e logo depois voltava para ace¬nar ao desconhecido que o seguisse e, precedendo-o, fê-lo transpor uma porta, que, da igreja, dava para um comprido corredor de paredes cinzentas e o           pa¬vimento formado por quadradinhos de pedra do Nilo; depois abriu uma pequena porta e deixou-o sozinho num quarto em cujo redor havia um banco de madei¬ra de cedro. Pendurado à parede havia um Crucifixo e, diante da sacra imagem, via-se uma porta com os batentes de bronze.

O peregrino sentou-se num canto e, mantendo o corpo retesado para a frente, apoiava-se no seu bordão, com os olhos cravados na porta fechada; dir-se-ia que receasse de vê-la abrir-se, porque seu rosto estava pá¬lido e contraído, e o seu peito ofegava pela ânsia. De¬pois de não muito ouviram-se ranger os gonzos da porta, os batentes se abriram, e Valéria apresentou-se no Kirriar.

A filha de Cláudio Varrão conservara perfeitamente a sua beleza; seu rosto contrastava em alvura com as cândidas vendas que o enfeixavam, e irradiava uma calma celestial; sorrindo docemente, saudou o peregri¬no, que permanecera no seu lugar, tremendo, e com voz suave disse-lhe:

— Aproxima-te, porque meus votos me proíbem transpor esta porta, e dize-me, o que pedes duma po¬bre mulher que tantos anos vive segregada do mundo?

Ao som daquela voz harmoniosa, o peregrino apro¬ximou-se com vivacidade; depois, deixando-se cair de joelhos diante da virgem consagrada, exclamou:

— Só peço o teu perdão, ó Valéria!

Valéria ergueu os braços ao céu, dizendo com ine¬fável alegria:

— Meu irmão!...

— Perdoa ao traidor da Pátria, perdoa ao assas¬sino de Décio Fúlvio — acrescentou Marcelo, em pranto.

Valéria não sabia que a morte de seu noivo pe¬sasse sobre a cabeça de seu irmão; recuou horrorizada; mas, vencendo a repulsa momentânea que a invadira, pousou a destra sobre a cabeça do arrependido, ajoelha¬do diante dela, e disse:

— Irmão, eu te perdôo!

— Obrigado, irmã, — disse Marcelo levantando-se do chão com a alegria impressa no rosto.

Sobremaneira comovedor foi o colóquio daqueles dois desventurosos, que haviam pecado e sofrido no mundo, e que, longe da sua Pátria, reencontravam-se depois de tantos anos no recinto de um claustro soli¬tário.

Depois de ter ouvido a dolorosa história de Cláudio, Marcelo contou como em seguida à morte de Alarico, deixara os gôdos, e, arrependido das suas culpas, perse¬guido sempre pela sombra de Décio, que o remorso apresentava à sua imaginação, dera aos pobres as suas riquezas, e partira rumo a Jerusalém, para que Valéria lhe perdoasse a morte de Décio Fúlvio.

Terminada a narração do peregrino, Valéria par¬ticipou a sua alegria a Melânia, que pediu a Marcelo para aceitar a hospitalidade que o claustro oferecia aos viandantes.

Marcelo permaneceu vários dias no mosteiro do monte das Oliveiras, depois partiu para expiar na soli¬dão seus erros.

Valéria não ousou dissuadi-lo do seu propósito; a piedosa virgem estava completamente desapegada de qualquer afeto terreno, e alegrava-se pensando que no céu, na felicidade eterna, veria ainda seus entes que¬ridos, e estaria para sempre junta com o irmão.

Milo não teve a virtude da sua patroa, que seguira fielmente, e chorou pela separação do moço, que foi a Belém para receber de Jerônimo a absolvição das suas faltas.

Muitos anos transcorreram, e o peregrino, que, atravessando o deserto do Mar Morto, dirigia-se a Je¬rusalém, contava da austera vida de um penitente, que, aos pés duma estéril palmeira, vivia numa choupana vestido de tosco burel: era o assassino de Décio, o traidor da Pátria, que, na solidão daquele lugar expiava seus desvios.

 

Glossário

Toga praetexta – era uma toga branca que apresentava uma banda larga púrpura. Era usada pelos rapazes que ainda não tinham tomado a toga uirillis e pelas jovens que ainda não tinham casado, bem como pelos principais magistrados e sacerdotes

Toga pura ou uirillis (Toga Viril) – era uma toga lisa feita de lã branca, usada pelos homens romanos assim que atingissem a idade adulta.

Prosápia – linhagem, ascendência, genealogia

Ambulacro – lugar plantado com árvores em aléias

Naumaquia – espetáculo romano, que simulava um combate naval

Triclínio – sala de refeições dos antigos romanos, na qual havia três leitos inclinados, dispostos em volta de uma mesa

Epicuréia – tem por objetivo alcançar a felicidade, sem dores, só com prazer

Sibaritica - Diz-se de, ou pessoas dada aos prazeres físicos, à voluptuosidade, à indolência

Anacoreta – monges cristãos ou eremitas que viveram em retiro, solitariamente, especialmente nos primórdios do Cristianismo, dedicando-se à oração e a produção de textos litúrgicos, a fim de alcançar um estado de graça e pureza de alma pela contemplação

Pórfiro – rocha de lava vulcânica usada muitas vezes em revestimento de fachadas

Ancilas – escravas, servas

Engelhado – enrugado, encarquilhado, amarrotado

Alvaiade – pigmento branco

Flébil – choroso, lacrimoso, plangente

Mesto – poético que causa tristeza, lúgubre, triste

Êxule – exilado, desterrado

Bisbilhar – murmurar: as águas bisbilham

Água lustral – água do batismo

Arúspice – História (Roma Antiga) sacerdote pagão que predizia o futuro pelo exame ‘as entranhas das vítimas

Céreo – de cera, da cor da cera,muito pálido

Peristilo – galeria formada por colunas isoladas, à volta de um edifício ou a frente dele

Poltrão – que ou a pessoa que não tem coragem, cobarde, medroso

Debalde – em vão

Locanda – tenda, pequena mercearia

Roble – nome vulgar por que também é designado o carvalho comum ou alvarinho

Tugúrio – habitação rústica e pobre, choça, choupana

Vélite – soldado romano armado à ligeira

Enviscar – 1- cobrir ou untar com visco; 2- figurado: engodar; atrair com métodos astuciosos

Espavorida – aterrorizada, amedrontada, apavorada

Estultíssimos – derivação masc. pl. de estulto

Estulto – que não tem bom senso ou discernimento

Solilóquio – fala que alguém dirige a si próprio, monólogo

Clepsidra – relógio de água, foi um dos primeiros sistemas criados pelo homem para medir o tempo

Deputação – delegação de poderes. As pessoas que recebem essa delegação

Corne – instrumento de sopro de palheta dupla, da família do oboé

Furente – enfurecido, furioso, irritado, colérico

Possança – poder, força, valentia

Supérstite – sobrevivente

Diuturno – de longa duração, vivaz

Mesnada – força militar com que os ricos-homens ou os senhores da Igreja contribuíam para o exército real em campanha

 

                                                                                Adolfo Klitsche de La Grange  

 

                      

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