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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BASTARDO DA RAINHA - P.2 / Robin Maxwell
O BASTARDO DA RAINHA - P.2 / Robin Maxwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

 

SEGUNDA PARTE

 

Antes de me ir embora procurei Hírst e Partrídge no acampamento deles. Fui dar com Hirst ocupado, preparando-se para carregar as armas naquele dia - uma tarefa de facto entediante.

 

- Onde está o nosso rechonchudo Partridge? - perguntei eu, saltando da sela.

 

- Lá dentro ainda. Um raio de um maníaco, é o que ele é, com o seu livro de cifras.

 

- Oh, um maníaco, é o que eu sou? - disse o nosso amigo enquanto carregava para fora da tenda um arcabuz e uma braçada de equipamento, pousando-os sobre a tela em que Hirst tinha quase acabado os seus preparativos.

 

Virou-se para mim e disse:

 

- É uma coisa fascinante, estas cifras. Tens códigos e símbolos no lugar das letras do alfabeto. Tens figuras geométricas, como um quadrado que significa paz e um rectângulo para guerra. Depois uma coisa que se chama "não-significantes" que significam um montão de nada, mas que se metem num despacho para confundir o inimigo. E a escrita invisível com sumo de limão é de um belo engenho, sabes. Mas não é completamente seguro, pois qualquer pessoa, a menos que seja tola, saberá que uma folha em branco é uma mensagem secreta. Tudo o que se tem quefazer é aquecê-la numa chama e as palavras aparecem...

 

- Partridge - interrompi eu. - Estou completamente fascinado, mas não tenho tempo para completar a lição agora. Vou-me embora.

 

- Embora? - disse Hirst a olhar para cima. - Dizê-lo como se fosses para outro sítio que não aquele para onde nós vamos.

 

É isso que eu estou a dizer, rapazes.

 

Para onde, então? - perguntou Partridge.

 

Eu dei-lhe um murro com pouca força no ombro antes de voltar a montar.

 

- Devias saber que não me deves fazer uma tal pergunta, cifrador. Mas posso-vos garantir que é uma aventura.

 

- Bem, é melhor não fazeres com que leves um tiro já - disse Hírst. A guerra ainda está a começar.

 

- Vai com Deus - acrescentou Partridge, e eu parti.

 

À primeira visão do quartel-general da resistência holandesa o meu coração afundou-se. Era desoladoramente pequeno, talvez quinhentos homens no total, as tendas em farrapos, os soldados na mesma, uns quantos trapos brancos envolvendo os pés deles afazer as vezes de botas. Pude ver a mísera escassez de artilharia pesada. E as carroças que os transportavam as rodas afundadas até aos eixos na lama - podiam cair em pedaços ao mínimo solavanco.

 

Eu não estava portanto preparado para o que encontrei dentro da habitação do comandante holandês. Era uma tenda não melhor do que as outras, mas guardada com segurança por meia dúzia de homens de cara feroz, três com mosquetes, três com alabardas. Lá de dentro vinha uma boa quantidade de riso masculino. Pedi a um guarda para alimentar e dar de beber à Beauty, ao que ele abanou a cabeça em sinal de concordância. Então passando pelas abas da tenda vi uma casa de simples soldado, sem objectos pendurados, chão de terra, uma mesa de madeira e um cesto cheio de mapas de pergaminho enrolados. Um cão pequeno com penugem dormia numa cama estreita. Seis homens estavam sentados à volta da mesa a beber sociavelmente, mas moderadamente, e eu não consegui à primeira distinguir o líder, pois todos eles pareciam iguais na sua boa natureza, vestimentas e familiaridade uns aos outros. Não repararam na minha presença, e à medida que observava depressa vim a saber - através das suas posturas, da forma como se inclinavam, os seus sorrisos virados todos na mesma direcção - qual deles era Guilherme, príncipe de Orange. Parecia-me nada menos do que um íman humano atraindo para ele toda a boa vontade e lealdade dos seus homens.

 

Por fim fui visto de pé à porta da tenda, e a divisão sossegou. Comecei a falar na língua holandesa, mas Guilherme pôs-se de pé e saudou-me dizendo: "Falarei contigo em inglês, que parece que eu conheço melhor do que tu conheces o holandês."

 

Fez um gesto para os homens dele criarem espaço para mim à mesa. Esta indiferença ao posto - permitindo a um mero mensageiro sentar-se à mesa com um príncipe e os seus generais - chocou-me de tal maneira que fiquei em silêncio por algum tempo, e tive a certeza de que a minha cara estava a denunciar o meu incómodo interior. Então foram colocados à minha frente uma caneca de cerveja e um prato de comida e a minha confusão apenas aumentou, pois não sabia se deveria comer - estava faminto, tendo as minhas próprias rações acabado no dia anterior - ou entregar a mensagem. Comecei a falar, mas o oficial corpulento e de cabelo claro ao meu lado fez-me sinal para comer. E assim fiz.

 

A conversa surgiu à minha volta toda na língua holandesa e houve algumas coisas dela que me escaparam, mas consegui perceber que eles estavam a falar de uma aliança que desejavam fazer com a Inglaterra, e como Isabel tinha começado, à sua própria maneira, a dar assistência à causa deles com algumas medidas indirectas. Já uns anos antes ela tinha, na sua mais audaciosa forma, apreendido quatro navios genoveses que transportavam 85 mil libras destinadas ao duque de Alba para ele pagar às suas tropas e ficou com elas para si. Agora os seus piratas queimavam regularmente os navios mercantes de Filipe, e interceptavam os navios carregados de ouro que velejavam do Novo Mundo para Espanha. De repente ouvi o nome Leicester e arrebitei as orelhas, debatendo-me para entender tudo o que conseguia. Percebi que eles desejavam a assistência dele para ajudar a Inglaterra a declarar-se abertamente pela Holanda, que a sua influência junto da Rainha era tão grande que ele era de facto a sua melhor esperança.

 

Por diversas vezes em que me arrisquei a desviar o olhar do meu prato para cima deparei com os olhos do príncipe sobre mim. Arrisquei olhar para ele também e vi um homem belo, muito musculado, com uma cabeça que se parecia com um quadro que eu tinha visto uma vez - uma estátua de um deus grego. Guilherme tinha olhos escuros e cabelo castanho encaracolado, agora matizado de prateado. Os seus modos eram ao mesmo tempo reais e amigáveis. Estava completamente alerta e envolvido, e inclinava-se para a frente na direcção do grupo. Parecia apreciar muito esta conversa sincera. Pensei nestes homens junto ao seu líder na tenda dele. Um era um alto príncipe, talvez os outros fossem nobres também, mas eram todos tão maravilhosamente simples... Nunca no exército inglês tinha eu visto tal determinação, de força na unidade. Eles pareciam-me uma força da natureza tão grande como um qualquer furacão, uma tempestade no mar.

 

Quando viu que eu tinha terminado a refeição, Guilherme não desperdiçou mais tempo. Primeiro cumprimentou-me por ter encontrado o acampamento deles, com votos de que os espanhóis não tivessem batedores tão aptos como eu. O seu inglês era bom e tinha apenas um leve sotaque. O timbre da sua voz era quente, calmo e reconfortante, e eu pensei que essa era talvez a sua maior força. Então ele perguntou pela mensagem que eu tinha trazido. Quando a dei e Guilherme a traduziu para os seus oficiais, houve silêncio a toda a volta, e diversos homens coçaram a cabeça. Alguém fez um comentário em holandês que eu não percebi e toda a gente se riu, todos menos Guilherme que estava agora sério. Parecia estar a tentar dar forma aos seus pensamentos antes de falar.

 

- Soldado Southem - disse ele. - Diz-me, quantos soldados ficaram para trás para defender a cidade de Haarlem?

 

- Não muitos, Sir. Cem de infantaria, cinquenta de cavalaria. Todos os risos cessaram.

 

- E se Haarlem for sitiada enquanto os ingleses estão a sitiar desnecessariamente o forte espanhol... ?

 

- Desnecessariamente? - perguntei eu.

 

Um dos outros oficiais falou num inglês rude.

 

- Os vossos líderes estão aborrecidos na sua guarnição. Não têm qualquer desejo de ficarem sentados calmamente à espera da batalha, vão antes eles próprios à procura dela.

 

Eu engoli em seco e senti-me a enrubescer de vergonha, sabendo que U que este homem dissera estava totalmente correcto. Aqui estavam soldados a valer que sabiam o verdadeiro significado da guerra, e não um qualquer trio de bobos incapazes nos seus fatos engomados.

 

- Eles colocam-se num perigo desnecessário, percebes - continuou o oficial. - Esse forte perto de Gouda está bem armado e aprovisionado, e as perdas inglesas serão seguramente grandes.

 

- Tenho que voltar com a vossa mensagem e avisá-los! - disse eu. Guilherme abanou a cabeça.

 

- Não percebes. Não faz qualquer diferença o que eu digo. Eles farão o que quiserem. Disseste já que eles não desejam a nossa assistência. E nós temos outras preocupações prementes.

 

- Sir - gaguejei eu -, as minhas ordens são conhecer os vossos movimentos futuros e relatá-los ao meu comandante.

 

Guilherme ficou em silêncio por um longo momento, durante o qual considerou o meu pedido. Nunca desviou os olhos dos meus, parecendo procurar o entendimento da minha alma neles. Então respondeu à minha pergunta com outra pergunta:

 

- Diz-me, filho, porque achas tu que nós na Holanda estamos a travar esta guerra?

 

- Bem, penso que é porque desejam ser um país protestante, como a Inglaterra é.

 

- Sabias - continuou ele - que eu fui educado como católico?

 

- Sir? - disse eu com o meu queixo a cair. - Não compreendo. Pensei...

- Sabes que aqui nos Países Baixos os calvinistas perseguiram os seus conterrâneos católicos tão cruelmente como os espanhóis perseguiram os calvinistas? Achas que um herético católico a morrer sobre as brasas de um fogo lento sofre menos agonia do que um protestante? Entendes que a ideia de tolerância envolve ambos os lados de uma questão em pé de igualdade?

 

Não respondi. Não conseguia abrir a minha boca para falar, mas abri os meus olhos e a minha mente, pois sabia que estava a aprender a essência de algo verdadeiramente muito grandioso.

 

- Eu sempre acreditei no Direito Divino dos Reis - disse Guilherme. Durante a primeira rebelião apoiei a autoridade de Espanha sobre os Estados Holandeses. Pedi... - Sorriu ironicamente. - Sim, "pedi" que Filipe parasse com a Inquisição aqui. Disse-lhe que os interesses dele requeriam um país pacífico e próspero que eu tinha esperança de lhe entregar. Acreditava que o meu velho amigo acabaria por concordar. Em vez disso chamou Alba para lhe levar a minha cabeça. Instruiu-o a ele e ao seu exército de vinte e quatro mil homens para espalhar o terror e morte sobre o povo dos Países Baixos.

 

Guilherme bebeu até ao fundo do seu copo e parecia estar a recordar uma memória dolorosa.

 

- Eu juntei um exército para resistir, talvez não o melhor, mercenários já se sabe, e alguns dos meus conterrâneos lutaram connosco, mas outros quebraram sob a força de Espanha. Alguns camponeses trabalhavam para Alba e denunciaram as nossas posições. O nosso dinheiro esgotou-se e os meus soldados fizeram greve pelo pagamento. Houve quem se passasse para o outro lado, e fomos forçados a dispersar. Eu fui banido da minha terra natal... mas não derrotado.

 

De repente, o pequeno cão saltou da cama do príncipe e pulou para o colo do seu dono. Guilherme acariciava-o enquanto continuava:

 

- Fui pedir a outros países protestantes e assim reuni outro exército. Éramos para ser apoiados por um grande contingente de huguenotes franceses, e tínhamos mais uma vez atravessado a fronteira para a Holanda, desta vez no Reno. Estávamos a ganhar terreno, recuperando muitas cidades aos espanhóis... - Parou, com um ar de dor. - E então deu-se a Matança de São Bartolomeu. Tudo ruiu, Fomos escorraçados do nosso acampamento. Muitos dos meus homens morreram. O resto desertou. Dois dos meus irmãos foram mortos em batalha pouco depois. Nada restou do meu exército a não ser uns quantos oficiais leais... - Olhou afectuosamente à volta da mesa, e eu soube que estes eram esses homens. - E claro o meu cão - acrescentou, sorrindo com um pequeno sorriso. - Alba irrompeu, retomou as cidades que tínhamos resgatado. Puniu, puniu brutalmente todos aqueles que tinham ajudado a resistência. Apenas o Norte, apenas a Holanda se manteve fiel a mim e à minha causa.

 

Guilherme ficou sossegado por um longo momento, mas eu mantive-me respeitosamente silencioso e porfim elefalou:

 

- O que nós nos Países Baixos agora sabemos é que não é necessário ter esperança para empreender... nem ser bem sucedido de forma a perseverar. Somos pobres em recursos, mas somos fortes, muito fortes em espírito. Eu comecei a chamar-me a mim próprio um holandês - disse ele, olhando à volta para os seus homens - e tornei-me um calvinista.

 

Por fim, eu aventurei-me:

 

- Este exército, o vosso terceiro, é todo constituído por holandeses?

 

- Precisarei sempre de contratar uns quantos soldados estrangeiros, mas todos os outros são protestantes holandeses. Tenho muito orgulho nos meus homens, pois eles combatem paciente e corajosamente por uma causa em que acreditam. Prometi-lhes que enquanto eu viver não haverá qualquer perseguição religiosa na Holanda.

 

Guilherme deve ter visto o fogo nos meus olhos a ser acendido pelas suas palavras apaixonadas.

 

- Inglês, camarada, vejo que estás a ouvir com atenção, mas eu quero que compreendas totalmente - eu nunca morrerei pelo bem de nenhuma religião, mas morreria de bom grado se a tolerância por todas as religiões fosse para sempre observada. Percebes?

 

Eu acenei com a cabeça vigorosamente embora me sentisse completamente estúpido na presença de um tal homem. Batendo com o copo na mesa, ele encerrou a reunião. Os seus oficiais puseram-se de pé e, com boas-noites calorosas, desapareceram da tenda. Eu também me levantei.

 

- Qual é o teu primeiro nome, filho?

 

Enquanto lhe respondia, perscrutei a sua cara nobre e lembrei-me do que a mãe Hoogendorp tinha dito acerca do filho mais velho dele levado como refém por Alba, e vivendo como um prisioneiro em Espanha. E, igualmente, acerca da mulher com quem ele se tinha casado por amor.

 

- Arthur Southem - disse ele com o que eu imaginei ser uma leve afeição -, darás os meus cumprimentos ao teu comandante e comunicar-lhe-ás a nossa posição. - Tirou um mapa do cesto e desenrolou-o em cima da mesa.

- Vou-te mostrar para onde vamos... - Então olhou-me nos olhos e sorriu. Mas o teu capitão deve saber que os planos dos nossos movimentos podem a qualquer momento mudar.

 

- Compreendo, Sir - disse eu.

 

Enquanto caminhava comigo até ao meu cavalo ele continuou em modos muito amigáveis, como se eu fosse um seu par.

 

- Receio que os vossos comandantes mal habituados não entendam a vontade e a paixão do duque de Alba e dos seus soldados profissionais. Como o seu rei, eles acreditam que estão a lutar pelo Próprio Deus. Odeiam as nossas maneiras civis, a nossa riqueza, a verbosidade das nossas igrejas. Não percebem que nós somos mercadores, e que os mercadores não fazem qualquer distinção entre as pessoas a quem vendem. Um protestante ou um católico fazem um cliente igualmente bom, como vês. Mas Alba está enganado ao pensar que nós somos moles, que nos pode cobrar impostos como bem entender. Agora que a Espanha expulsou os judeus e os mouros das suas terras e conquistou os turcos, sente-se invencível. Alba alega ter domado homens de ferro, e vangloria-se de que pode facilmente domar os Holandeses. "Homens de manteiga", chama-nos ele. Bem, veremos...

 

A atenção do príncipe voltou-se para mim.

 

- Dorme umas horas antes de partires novamente. - Penetrou-me com aqueles olhos escuros como se pudesse ver algo dentro de mim que não era aparente por fora. - Boa viagem - disse ele, virou-se e regressou à sua tenda.

 

Naquele momento eu soube que não havia nada que não tivesse jeito por aquele homem, aquele grande príncipe, que embora não fosse do meu país era meu no coração e no espírito. A minha educação, que tinha verdadeiramente começado com o incitamento do conde de Leicester, sofrera uma poderosa reviravolta à mesa de Guilherme de Orange. Fiquei grato efiz um voto silencioso de que esta educação não seria em vão.

 

Seis horas mais tarde estava de volta à estrada, tendo dormido como um homem morto numa cama emprestada numa tenda em farrapos. Tinha sonhado com o meu pai e com a Coutada de Enfield, mas no meu sonho ele tinha por vezes a cara do príncipe Guilherme e até mesmo a do ladrão que eu libertara da captura. Tinha acordado com os músculos rígidos, mas refrescado, com um sentimento de doçura na minha alma. Era estranho, pensei enquanto calçava as botas, ter uma experiência tão agradável no meio de uma guerra e da sordidez. Lembrei-me de outro despertar assim na manhã seguinte ao meu encontro com a Rainha e o conde de Leicester. A dor das minhas feridas tinha sido extrema, mas a minha mente estava leve e alegre como uma rolha a boiar à superfície de um lago.

 

Assim caminhámos, a Beauty forte e de pé seguro, eu sabendo a minha direcção e destino, e tendo cumprido as minhas ordens em todos os aspectos. Sentia-me talvez demasiado confiante, demasiado cheio de mim próprio para os meus sentidos serem os mais claros, pois bastante subitamente dei pelo meu nariz a estremecer com um odor perigoso.

 

Era o cheiro de um exército a marchar à minha frente.

 

Claramente, a estrada estava repleta de bostas de cavalo frescas. Desvanecido mas claro, o cheiro a suor humano e a transpiração de cavalo, o odor a fogueiras de acampamento que se entranha nos uniformes de todos os soldados. Depois, restos - uma ligadura ensanguentada, uma casca de queijo, até fezes humanas onde os homens se tinham agachado rapidamente na berma da estrada e regressado às suasfileiras.

 

Parei a Beauty, tirei o meu mapa e vi pela direcção em que eles viajavam que não podiam de forma nenhuma ser os reforços de Amesterdão. Estas eram tropas espanholas e estavam em movimento. A estrada para Gouda. Eu estava ainda a cinco horas de caminho da fortaleza e da minha companhia.

 

Não sabia o número dos inimigos, mas sabia que qualquer movimento de exércitos através do terreno dos Países Baixos era lento, com as carroças a andarem a um ritmo de passo. Havia muitos rios, brejos e ribeiras para passar a vau. Embora a cavalaria pudesse movimentar-se mais depressa do que a infantaria, todo o corpo se arrastava ao ritmo da sua componente mais lenta.

 

Apercebi-me de que as tropas da retaguarda não podiam estar muito à frente, não mais do que duas milhas, e analisei as minhas opções, que eram apenas duas. Podia evitar o exército, fazendo um grande desvio à volta deles e nesse caso perderia tempo a chegar ao meu destino. Porém, como a terra em ambos os lados da estrada era - pantanosa iria fornecer um caminho muito difícil para a Beauty. Por outro lado podia continuar nesta estrada cavalgando directamente para o meio deles, fingindo ser um holandês amigo da sua causa. Esta opção colocava muitos perigos óbvios, mas a sua vantagem era ser o mais directo e rápido caminho até junto da minha companhia, dando-lhes o melhor aviso do exército que se aproximava e que iria de facto encurralá-los entre a sua emboscada e a fortaleza de Gouda.

 

Escolhi a última e esporeei a Beauty para a frente para o meu primeiro encontro com o inimigo. Teria de ser tanto esperto como ter sorte para ser bem sucedido, mas sabia que estefracasso iria custar muitas vidas inglesas, talvez as vidas dos meus amigos. Endireitei-me na minha sela, satisfeito por ir de encontro a este momento do destino em cima de um cavalo que era onde me sentia mais confiante.

 

Com o som de um corpo de homens em movimento a aumentar e a tornar-se mais nítido, vislumbrei a retaguarda do regimento do exército espanhol. Fiquei surpreendido com o acerto da formação final - uma pequena unidade de cavalaria e um regimento de soldados a pé. Não havia quaisquer retardatários ou transviados, o que dizia muito acerca da sua disciplina, algo de que eu ouvira falar. Eram conhecidos por suportar fome extrema, sede e calor - um grupo orgulhoso mesmo na hora da morte. Cautelosos no combate. Destros em escaramuças. Ágeis a escalar muros. A sua infantaria tinha melhor fama do que a cavalaria, mas os seus cavalos eram incomparáveis - "Filhos do Vento" chamavam-lhes. Estes eram os homens que na Holanda haviam varrido tudo à sua frente, e por duas vezes esmagaram os exércitos de Guilherme de Orange.

 

À medida que me aproximava, e de forma a não os espantar, gritei no meu mais alegre e, esperava eu, mais autêntico sotaque holandês.

 

- Goeden Morgen! - gritei, abanei a cabeça e sorri enquanto me aproximava dos soldados a cavalo que, não obstante, me observavam com ar suspeito. Aparentemente não falavam holandês, e o meu fingimento convenceu-os o suficiente para me deixarem passar. Sabiam que eu tinha de, naturalmente, passar pelos seus superiores que, se assim o decidissem, me mandariam parar e interrogariam.

 

Para minha consternação esta era uma coluna comprida, cinco companhias de quatrocentos homens cada uma - cavalaria com cavalos fortes e frescos, uma infantaria de lanceiros, arcabuzeiros e mosqueteiros. Havia dezasseis grandes canhões, guindastes e alavancas utilizados para elevar as armas, carroças a arrastar pequenas cargas de balas de canhão de metal. Estas últimas disseram-me que o exército tinha estado a sitiar e que bem podia ter esgotado as suas provisões de artilharia. Vi peças de uma ponte flutuante transportadas nas costas de mulas que podiam facilmente ser montadas para atravessar um fosso, e um grande contingente de padres que caminhavam em silêncio, com as mãos dobradas dentro das mangas das suas batinas. Contei cuidadosamente e registei na memória o que vi, pois o meu relatório teria que ser preciso e completo.

 

Enquanto passava pela infindável caravana perguntei-me se eles seriam de facto a tropa normalmente estacionada em Gouda. Se assim fosse, quantos deles permaneceriam dentro da fortaleza para a defender? O número podia ser pequeno. Nesse caso o cerco inglês podia estar a correr bem e ter-se desencadeado uma sensação de confiança - uma falsa confiança, não sabendo os meus comandantes o que se estava a passar nas suas costas. Amaldiçoei Lord Holcomb por colocar em perigo os seus homens na sua ingenuidade e fraca inteligência, e continuei a cavalgar, com os olhos fixos bem em frente, virando-me ocasionalmente com um largo sorriso cumprimentando os espanhóis.

 

Pelos grandes capacetes com penas e ornamentos coloridos e brilhantes mais à frente, podia ver que me aproximava dos comandantes deste regimento, embora não soubesse se era o assassino Alba em pessoa, ou outro dos seus exércitos. A minha mente apressou-se a elaborar a história que me preparava para contar, uma parte em holandês, uma parte em espanhol hesitante, esperando convencer os meus interrogadores de que era um mercador holandês a caminho de casa em Woerden, várias milhas mais perto do que Gouda, e de que lhes desejava as melhores felicidades. Rezei Para que os batedores deles não tivessem ainda chegado a Gouda deparando com o ataque inglês em progresso, o que tornaria a minha alegação de ser um inocente uma piada de pouca duração, e a minha vida como espião similarmente abreviada.

 

Mas a sorte estava comigo. À medida que me aproximava dos dois comandantes encontrei-os tão envolvidos numa quente troca de ideias que nem sequer deram por mim, e aqueles homens que me viram devem ter partido do princípio de que me tinha sido concedida licença para passar por aqueles que estavam atrás deles. Era tal a ignorância e ineficácia de todos os grandes corpos de homens, e eu rejubilei em usá-la desta forma em minha vantagem.

 

Pouco depois tinha passado pela guarda avànçada, mas mantive o meu ritmo preguiçosamente até estar bem longe da vista. Até deixei uma distância suficiente para que a nuvem de pó que levantasse quando esporeasse o meu cavalo para o galope tivesse já assentado quando eles passassem, e assim não levantasse neles suspeitas acerca da minha verdadeira ocupação. Finalmente eu estava a cavalgar à velocidade máxima, não precisando a Beauty de qualquer incitamento para voar, o meu grande e sério propósito a correr sem palavras do meu corpo para o dela. Quintas, canais e moinhos de vento eram uma mancha nos meus olhos. Uma ponte destruída, passámos a vau um ribeiro pouco profundo, a água fria a salpicar até à minha cabeça. Sentia-me leve, livre e infindavelmente heróico nesta viagem de redenção e então tudo acabou subitamente.

 

A Beauty estava inegavelmente a favorecer a perna dianteira direita. Parei e examinei o casco. Ela tinha perdido uma ferradura. Raios, raios me partam! Ela tinha-a perdido, suspeitei eu, no leito pedregoso do ribeiro umas milhas atrás. Tinha sido a minha própria arrogância e estupidez, a minha falta de preparação para a viagem que o tinham provocado. Devia tê-la verificado antes no acampamento holandês mas estava demasiado ávido para partir, demasiado embrenhado na minha glória e nos meus belos sonhos... Que estúpido tinha sido!

 

Caminhei com a Beauty lentamente até à aldeia seguinte, por sorte não a mais de uma milha. Quando cheguei descobri que oferreiro tinha acabado de sair para a sua refeição do meio-dia e o seu aprendiz assegurou-me que o homem não se apressava nunca. Não tinha opção senão esperar, o tempo todo sabendo que o exército espanhol se aproximava. Para passar o tempo tentei falar com o rapaz, mas ele era muito calado e de qualquer forma mais interessado na sua empada de carne do meio-dia do que em mim. Assim, ainda furioso comigo próprio, vagueei pela aldeia.

 

Por fim vi o ferreiro a regressar à sua loja. Era pelo aspecto de facto um homem que apreciava a comida, transportando uma grande prega de gordura à volta do pescoço e uma rodela à volta da barriga. Apressei-me atrás dele para ver o aprendiz a abanar o fogo com os foles. Ele deve ter contado ao seu mestre o meu pedido, uma vez que o homem estava já a tirar uma ferradura de um prego com um grande conjunto de tenazes. Rapidamente chegámos a acordo. Mediu o casco da Beauty e começou a trabalhar. Enquanto o observava a martelar a ferradura branca e quente moldando-a na suaforma vi que, apesar das pontas moles do seu corpo, era um homem poderoso com braços fortes como o metal que trabalhava.

 

Ouvi uma criança a gritar e soube que o exército espanhol se aproximava. O ferreiro ainda estava a meio do seu trabalho, segurando a ferradura de encontro ao casco da Beauty e procurando os sítios para ajustar. Voltou a mergulhá-la no fogo. O som da tropa a entrar ruidosamente na aldeia tornou-se muito alto. Rezei para que não parassem, mas duvidei que as minhas preces fossem ouvidas. Um momento mais tarde diversos soldados espanhóis de cavalaria entraram, precisando dos serviços do ferreiro, e ele gesticulou educadamente que iria ajudá-los, mas que tinham de esperar.

 

Viram-me e eu abanei a cabeça. Então um falou-me em espanhol:

- Vimos-te na estrada, não vimos?

 

Eu hesitei por um momento, então respondi num espanhol pobre e hesitante que supus que um holandês comum pudesse falar, que eles tinham de facto passado por mim e que o meu cavalo tinha perdido umaferradura. Então olhei para eles impotente com um sorriso cómico como que a dizer que desejava conseguir falar a língua deles melhor. Mas o soldado persistiu:

- Para onde te diriges? - perguntou ele.

 

Era uma pergunta tão comum, que eu não podia, mesmo naquela língua, fingir incompreensão.

 

- Para Woerden - respondi.

 

- E o que vais fazer quando chegares a essa cidade? - perguntou o outro, os olhos a cerrarem-se. Pressenti perigo, mas agora oferreiro, sem se aperceber do meu desconforto, tirava a ferradura arrefecida da bacia de água e levava-a lá para fora para começar a pregá-la no casco de Beauty. Eu precisava de tempo. Continuei a sorrir e fingi, utilizando o que passava pelo meu holandês, não perceber a pergunta que ele me fizera em espanhol. Reparei no aprendiz a olhar para mim com estranheza, pois tinha-me provavelmente atrapalhado com a língua dele. Era ele um amigo ou inimigo dos Ingleses? Não sabia dizer, mas ele olhava à volta para os soldados, para mim, e para fora da porta da loja para o gordo ferreiro agora mesmo a acabar o seu trabalho.

 

- Guilherme, príncipe de Orange! - arrotei eu.

 

Os dois soldados estavam de súbito sobre mim a agarrar-me os braços com força. O aprendiz, completamente alarmado, colou-se à parede.

 

- O que sabes desse vilão? - perguntaram eles.

 

Eu obriguei-me a responder calmamente no meu mais hesitante e patêtico espanhol, completando com gestos das mãos, que nas minhas viagens tinha deparado com o acampamento dele. Perguntava-me se eles precisariam da sua localização pois eu, disse sorrindo timidamente, era um bom católico e desejava ver aquele herege fora da Holanda para sempre.

 

Pressionaram-me para saberem onde é que eu o tinha visto e quando.

 

- Nem há dez dias... - disse eu, e ambos gemeram e largaram os meus braços com desagrado. O paradeiro do príncipe de Orange e do seu exército rebelde dez dias antes era tão inútil como uma mesa de duas pernas, pois ele movimentava-se de um lado para o outro tão frequente e clandestinamente que agora podia estar em qualquer sítio.

 

Nesse momento o ferreiro surgiu pesadamente pela porta anunciando que o meu cavalo estava calçado. Paguei-lhe, embora não tão rápido que levantasse mais suspeitas e saí sem pressas, sorrindo para os soldados e desejando-lhes bom dia.

 

Felizmente de volta, montado no meu cavalo, passei pelos soldados que tinham parado para uma refeição de meio-dia e para dar de beber aos seus cavalos no poço da aldeia. Inclinei o meu chapéu de uma forma amigável e alguns acenaram também, pois por esta altura eu era uma figura familiar para eles. Uma vez fora de vista corri, como a fugir do Diabo, para Gouda, agradecendo a Deus pelo meu até agora não descoberto talento para a mentira e pela estupidez de alguns homens.

 

A minha cavalgada sem parar até Gouda correu sem novidade. Mas a diversas milhas da fortaleza já era capaz de ouvir o estrondo das armas grandes e pequenas, e ver uma nuvem de fumo a pairar sobre ela, anunciando que de facto o nosso ataque tinha começado. Então passei por um cavaleiro sozinho a galopar na direcção oposta como se o Diabo estivesse no seu encalço - um soldado espanhol, ou um batedor. Ele iria, deduzi eu da sua velocidade, passar palavra aos seus comandantes dentro de menos de uma hora. Com a viagem deles acelerada pelas novidades, o Exército de Deus podia chegar pela hora do pôr do Sol.

 

O "trecht" que conduzia ao bosque e por trás dele à fortaleza em GoUda, era uma estrada a pique e íngreme flanqueada por canais que corriam direitos e estreitamente entre dois grandes campos de tulipas, um vermelho, outro branco.

 

A cena que me aguardava quando emergi do bosque perante Gouda não era de todo a que eu esperava - muros de fortaleza muito altos erguendo-se acima de um acampamento arrumado, mestres de fosso a supervisionar os pioneiros na tarefa de cavar, fileiras de soldados disparando as suas armas, colubrinas e canhões manejados por equipas de artilheiros, engenheiros atarefados a construir engenhos de guerra e escadas de cerco. Tudo isso, pelos sons que ouvia, estava muito seguramente algures à minhafrente, mas eu nada conseguia ver, pois uma cortina de fumo tão espessa como impenetrável envolvia tudo o que estivesse para além do comprimento de um braço. juntamente com o fedor de pólvora queimada e o desigual brilho vermelho dofogo, parecia um verdadeiro inferno. A bruma fedorenta feria as narinas, dava ferroadas nos olhos e deixou-me confuso, sem orientação. Ouvia o contínuo ribombar das armas ligeiras, o trovão do canhão, um grito ocasional, e gemidos de agonia em voz baixa.

 

Uma explosão muito próximo fez com que a Beauty recuasse com terror, por isso desmontei e com palavras suaves de acalmia conduzi-a cuidadosamente através dofumo espesso. Por várias vezes estive a um passo de atravessar uma linha de fogo, ou de tropeçar numa vala repleta de soldados a praguejar. Todos os homens que encontrei espreitavam para mim com olhos com orlas vermelhas, os narizes a ficarem pretos. Encontrei a minha unidade de cavalaria em descanso nas suas tendas, procurando repousar deste inferno fedorento, amarrei a Beauty com os outros cavalos e pedi indicações para a tenda de Holcomb. Entrei para encontrar o meu capitão a discutir petulantemente com os capitães Billings e Medford.

 

- Se continuarmos o nosso bombardeamento assim, a brecha estará pronta para o ataque dentro de algumas horas - declarou Holcomb. - Temos agora informações acerca da localização e força dos seus muros de flanco. Lembrem-se que isto não é nenhum antigo bastião com três metros e meio de espessura. Foi feito à pressa pelos espanhóis e cairá, com persistência. Confiem em mim, cavalheiros. Eu estudei a matemática dela, e os meus engenheiros estão confiantes no nosso sucesso.

 

- Sir - disse eu com um tom urgente que foi inteiramente ignorado.

- Um momento, soldado. - Holcomb regressou aos outros dois cujas caras me asseguraram que tinham abandonado a sua preocupação de ofender o alto, mas absolutamente ignorante, nobre. - Apesar das defesas espanholas que flanqueiam os muros da brecha serem fortes - continuou Holcomb - os meus homens estão muito ansiosos por acção e eu acredito que é quase o momento de atacar.

 

- Capitão Holcomb - reprovou MedfÓrd, o mais velho dos dois outros comandantes -, esquecestes-vos que os reforços de Amesterdão ainda não chegaram? Esta incursão foi planeada tendo em conta os números deles combinados com os nossos. Somos menos arregimentados do que os que sequer lhes apresentámos, uma vez que sofremos baixas substanciais. Não temos nada que prosseguir a ofensiva com tão poucos homens.

 

- Sirs! - Intrometi-me eu insistentemente. - Têm que me dar permissão para falar!

 

Todos os olhos finalmente vieram ao meu encontro. Respirei fundo e comecei o meu relatório - a aproximação iminente do exército espanhol, os seus números, o estado das suas armas e material, a hora da sua chegada estimada. Observei as faces dos oficiais alterarem-se à medida que eu falava, a de Lord Holcomb da segurança calma dos seus bem delineados planos para uma vitória fácil, deteriorando-se para um medo rígido de uma turba sanguinária. Os outros dois pareceram tão calmos quanto Holcomb gelou, como se fossem peixes mantidos demasiado tempo fora da água, finalmente libertos de volta ao mar. Começaram quase de imediato por ignorar Holcomb. Bíllíngs virou-se para mim:

 

- O batedor espanhol que viste... quanto tempo até ele alcançar a vanguarda do exército que se aproxima?

 

- Ele ia a voar, capitão. Na melhor das hipóteses uma hora.

 

Os dois verdadeiros soldados puseram as cabeças a trabalhar juntas. Holcomb, pude ver, estava a tentar recuperar terreno.

 

- Podemos rapidamente movimentar can... - a voz dele quebrou embaraçosamente. - canhões das posições ofensivas para o...

 

- Não podemos movimentar nada rapidamente, meu senhor - disse Medford. - O solo é demasiado mole e as armas demasiado pesadas. Temos que começar a movimentar homens com a maior rapidez para posições que flanqueiem a estrada que vem dar aoforte. - Então Holcomb foi dispensado como uma criança o seria da mesa do jantar, enquanto o capitão mais velho se virava com grande urgência para Billings. - Faz de forma a que o número de homens que continuarem o bombardeamento não fique tão desfalcado que o inimigo consiga pressentir a nossa fraqueza.

 

- Muito bem - respondeu Billings. - Vou mandar o Renfrew para verificar lá o solo, e dispor a cavalaria.

 

Holcomb reparou subitamente em mim a ouvir os procedimentos e à sua dispensa casual pelos dois soldados mais experientes.

 

- Sai! - gritou-me ele, com a voz a quebrar outra vez.

 

- Sim, senhor! - disse eu, e então acrescentei: - Gostaríeis primeiro de saber as notícias do príncipe de...

 

- Fora!

 

Eu virei-me rapidamente para sair. Então ouvi uma voz firme atrás de mim.

 

- Soldado... - voltei-me. MedfÓrd olhava-me com um olhar respeitoso. - Bem feito - disse ele. - Podes reunir-te à tua companhia.

 

- Obrigado, Sir - disse eu e saí de volta para o inferno.

 

Uma brisa firme tinha clareado o ar o suficiente para revelar uma cena tão devastadora que eu desejei subitamente o regresso da névoa fumarenta. Ali estava de facto a fortaleza, uma rude parede exterior de pedra e madeira bem fustigada pelo nosso assalto concentrado, de cujos taludes e hornaveques saíam baforadas de fumo e grandes explosões de fogo direccionado de volta para os ingleses. Os nossos soldados agachavam-se numa rede de valas cavadas à pressa disparando as suas armas ligeiras. Vi um homem, fatigado para além da consciência, disparando mecanicamente, recarregando e reabastecendo, imperturbado pelo corpo do seu camarada, com metade da cabeça rebentada e atolada nem sequer a um metro dele na vala. Passei por outros soldados que pareciam ter esperança na segurança por trás do seu canhão maior que vomitava fogo amarelo e bolas de ferro. Aqueles que manobravam a catapulta com os seus complicados pesos e contrapesos estavam agora a carregar-lhe a concha com uma pilha de pedras aguçadas e várias dúzias de ratos mortos, esses para a esperançosa disseminação de doenças do lado de dentro do forte.

 

Eu parei por momentos num grande buraco no chão com um homem lá dentro extraindo balde após balde de terra húmida. Isto, percebi eu, era a abertura de um túnel até à base da fortaleza através do qual podiam ser transportados explosivos para minar o muro. Contraí-me ao pensar nos homens debaixo do chão passando de mão em mão aqueles baldes de terra lamacenta, o perigo do túnel ruir e o horror de se ser enterrado vivo. Agradeci a Deus por ser um soldado de cavalaria.

 

- Southem! - ouvi o meu nome ser chamado numa voz amigável, olhei em volta e vi o Hirst encostado contra a parede da vala agarrado à sua ferida. Se ele não me tivesse feito sinal, acho que nunca teria reconhecido este soldado com ligaduras e enfarruscado. Saltei lá para baixo e agachei-me ao lado dele.

 

- Estás ferido - disse eu, olhando fixamente para o trapo sangrento em volta do ombro esquerdo dele - embora eu veja que isso não te impede de continuares.

 

- Sim, eu acredito que estou mais seguro cá fora do que numa tenda de enfermaria. Eles cauterizaram a ferida com óleo quente e isso foi suficientemente mau, digo-te. Mas quando o cirurgião apareceu com um unguento feito de dois cachorros cozidos vivos, misturados com minhocas impregnadas em vinho branco, eu disse muito obrigado e vim-me embora.

 

- Onde está Partridge?

 

- Lá ao fundo - respondeu Hirst. Uma explosão a vinte jardas da vala lançou grandes nuvens de poeira para cima de nós. - Ainda estava vivo há uma hora - continuou ele, afastando a poeira dos olhos. - Nós chamamos um pelo outro e cantamos deixas de uma cançoneta nojenta entre rebentamentos.

 

- Estamos em sarilhos, sabes - disse eu. - Uma grande companhia de tropas espanholas vem nesta direcção. Nós, os sitiantes, estamos prestes a ser sitiados.

 

- Estamos encurralados, então?

 

- Sim, mas pelo menos não estamos emboscados. Eu vi o inimigo quando regressava. Acabei de fazer o meu relatório.

 

- O que achou o nosso bom capitão Holcomb das notícias?

 

- Muito bem na verdade. Parecia ter engolido a língua. - Pus-me de pé e pulei para fora da vala. - Vejo-te no campo, então. Tem cuidado, Hirst.

 

- Tu também! - gritou ele depois.

 

No escuro eu não conseguia ver os homens da infantaria inglesa que, numa linha única, estavam colados contra as paredes angulosas em ambos os lados da íngreme estrada de gravilha. Com o disfarce da noite eles tinham cavado cada um uma pequena vala na qual podiam ajoelhar-se, posicionados para dispararem para cima para o exército enquanto ele passava, ao mesmo tempo que tentavam não escorregar para trás no canal de águas baixas. Billings e Medford tinham muito pouco para os confortar nos seus planos de ataque, excepto que os espanhóis acreditavam que nos estavam a emboscar completamente desprevenidos. As nossas desvantagens eram muitas. Éramos poucos em número, uma grande parte de nós estava ainda verde nas lides do combate, e estávamos fisicamente encurralados entre a praça-forte espanhola e os soldados experientes, uma força talvez com o dobro do tamanho da nossa.

 

Holcomb insistiu que os reforços iriam aparecer a tempo de nos salvar, e ficou paralisado quando chegou o momento de retirar o grosso das suas forças da praça-forte de Gouda. O cerco tinha sido o seu grande desígnio e, subitamente, os seus sonhos de glória ruíram.

 

- Eu e os meus colegas cavaleiros estávamos montados e silenciosos no escuro da floresta esperando pela ordem de carregar. Billings e Medford haviam concluído que os espanhóis iriam, à primeira luz ou no momento imediatamente antes, precedidos pela cavalaria, passar em dois tempos pela estrada e superar, com a simples força do seu número, qualquer guarda inglesa à entrada da floresta, e depois irromper pelo campo que rodeava a fortaleza. Se o espião deles estava correcto, presumiriam eles, todas as nossas armas estariam direccionadas para oforte, e eles facilmente nos superariam.

 

Desconfortáveis nas suas armaduras até à anca, os homens ao meu lado inquietavam-se nas suas selas, confirmavam e reconfirmavam pistolas, munições. Poucos falavam, mesmo em sussurros. Também eu pouco encontrei que dizer, pois sabia o que nos esperava com a chegada da alvorada. Rezei então por Billings e MedfÓrd, pela sua sabedoria e força, e por um milagre também, pois o exército espanhol era uma força tenebrosa. Eu tinha-o visto com os meus próprios olhos.

 

Dentro da minha armadura de metal, o calor, o medo e a ansiedade ergueram-se da minha pele tremente. Deitei-me em cima do pescoço da Beauty, os meus lábios de encontro à orelha dela que abanava nervosamente. Sussurrei um suave encorajamento, acariciei-a, cheirei o odor dela para meu próprio conforto.

 

Um murmúrio fileira abaixo. Aí vêm eles, aí vêm eles! De facto o chão começava a tremer junto de nós. O ribombar dos cascos da cavalaria espanhola na estrada de gravilha. E os passos dos soldados a pé, dois a dois, o ruído distante das suas peças de metal, cada vez mais perto. O Sol mal espreitava por cima do horizonte oriental. Luz cinzento-rosada. Um campo de tulipas revelando as suas cabeças escarlates.

 

Temos que esperar. Os homens comprimidos contra a parede angulosa da estrada, também com ordens para esperar. Esperar até o caminho estar repleto duma ponta à outra de tropas inimigas para começar o assalto. Toda a gente está quieta. Todos esperam, os corações a palpitar. Os espanhóis devem acreditar que a sua surpresa é completa de forma para que a nossa surpresa possa ela própria ser completa.

 

Eu nunca tinha visto o Sol a erguer-se tão depressa, o céu a passar de rosa para azul forte no tempo de um fôlego. Os campos de tulipas estão agora completamente iluminados. O que está à minha frente é vermelho, o outro para além do caminho é branco. A estrada encheu-se de homens e cavalos. Vejo-os a chegar. Belíssimos cavalos espanhóis a ribombar na nossa direcção.

 

Então é a hora. O som do tambor. O sinal. E começa.

 

Todos ao mesmo tempo, os homens, cada um na sua pequena vala ao longo da parede da estrada, põem-se de pé e disparam. Recordo-me das tropas do Faraó a conduzirem as suas carroças para o leito do mar Vermelho, a forma como Moisés esperou até que o leito seco ficasse repleto de uma ponta à outra com o inimigo antes de baixar o seu bastão e trazer de novo as grandes águas esmagando-se sobre as suas cabeças. Tantos homens e cavalos caem naquele momento ardente. Guinchos humanos e gritos de cavalos mortos debaixo a curta distância com tiros em barrigas moles. À distância eu vejo cabeças e peitos de homens explodirem. Não sobra ninguém de pé no caminho. Um momento de triunfo para os ingleses - mas de curta duração.

 

Pois agora o imenso Exército de Deus do rei Filipe aparece a esvair-se a partir da sua fonte, correndo pelas encostas em ambos os lados do caminho, chapinha pelos canais de pouca profundidade e para dentro dos campos de tulipas e com uma precisão e velocidade inímagináveis forma em quadrados à espanhola, um em cada lado. O quadrado interior é umafalange apertada de quinhentos lanceiros, com as suas lanças altas a apontarem para o céu, a borda exterior com vários homens de profundidade, armados com mosquetes e arcabuzes, cada canto fortificado com mais homens ainda. O quadrado movimenta-se como um qualquer monstro geométrico aterrorizador.

 

Os que estão no quadrado mais perto do caminho trocam salvas de tiros com os nossos homens encostados à estrada a pique. São os ingleses quem é chacinado agora, pois os nossos homens são apenas uma única linha, e os espanhóis têm várias linhas de profundidade. Uma linha do quadrado aponta, dispara, e então vai para trás permitindo à linha seguinte ajoelhar-se e disparar. Eu vejo minúsculas baforadas de fumo branco vindas de centenas de armas em filas como tulipas brancasformadas por ar.

 

Nós, os da cavalaria, estamos à espera ainda da ordem para carregar, os nossos cavalos a rebentarem e a baterem com os pés no chão irrequietos. Agora observamos enquanto o grosso da nossa infantaria avança do bosque para o campo. Da estrada no bosque três carros armados emergem - todos os que conseguem passar pelo estreito caminho de gravilha, pois os campos são demasiado moles para canhões pesados.

 

Os ingleses formam também quadrados, nos campos de tulipas, mas são quadrados mais pequenos, menos homens. Formam cunhas, em ésses e dês, ensinados em exercícios em campo fácil em Inglaterra. Proteger o porta-estandarte. Todos os quadrados e cunhas a disparar. Homens a cair. Somos em menor número, numa proporção de dois para um.

 

O som surge para a cavalaria carregar. Um calafrio estremece a minha armadura bem cerrada quando, de repente, todos os cavalos à minha volta disparam do bosque para o campo escarlate. Estou sem saber se esporeei a Beauty para dentro da acção, mas ela, não obstante, levou-me até lá, e estamos a correr entre eles. Os cavaleiros formam, em quatro linhas umas atrás das outras, uma grande falange varredora para atormentar o extremo exterior do quadrado espanhol.

 

As minhas coxas espremem os flancos da Beauty com toda a força pois eu tenho de ficar sentado direito, uma torre de força galopando a toda a velocidade na direcção do inimigo mortal. Toda a minha vida, todos os meus sonhos me conduziram a este momento. E eu estou em fogo, sem medo, completamente desenfreado e, no entanto, completamente consciente.

 

Estou na segunda das quatro linhas de cavalaria. Abrando para ver a aproximação da primeira linha ao assalto, descarregando as duas pistolas para dentro do quadrado. O homem à minha frente é derrubado do cavalo como se uma grande mão lhe tivesse dado um golpe com as costas da mão. A montada dele, confusa, pára completamente e é ela própria derrubada pelo fogo inimigo. Aquela visão a curta distância - o cavalo a morrer tão facilmente, até mais do que o homem - é uma lança na minha barriga. Mas sangue selvagem corre agora nas minhas veias e nenhuma visão, nem piedosa nem enfurecedora, detém o meu curso. A Beauty e eu carregamos para a frente para tomar a posição do cavaleiro caído. Prometi a mim próprio nunca disparar cegamente de forma afazer uma retirada apressada, por isso paro pelo tempo de um fôlego, agradecendo silenciosamente à Beauty pela sua calma de outro mundo. Sinto um chumbo a passar perto do meu ouvido. Firme. Encontro o meu alvo - um pequeno espanhol ajoelhado, a apontar para mim. Disparo. Ele cai violentamente para trás e é rapidamente substituído por outro arcabuzeiro que, ajoelhando-se, baixa a sua arma para disparar. Eu disparo outra vez, rodo a Beauty e retiro para a linha mais próxima, sem esperar para ver o resultado do meu segundo tiro.

 

Inclíno-me nas costas da Beauty murmurando-lhe certezas frenéticas ao ouvido. Recarrego as minhas pistolas, mas nem sequer tenho tempo para me movimentar novamente para a linha da frente, pois agora a cavalaria inimiga está em cima de nós. Um espanhol montado galopa na minha direcção, um louco, as armas a disparar. No momento antes de devolver o disparo, ainda deitado sobre o pescoço de Beauty, vejo um lado do quadrado espanhol a fraccionar-se, os terríveis lanceiros libertos do seu muro de artilharia em jeito de escudo protector, espalhando-se da ruptura pelo campo. Dois tiros das minhas armas. O espanhol gira para o lado e tomba do seu garanhão que continua a vir, a vir. Tão perto que eu consigo alcançá-lo e tocar-lhe, mas não ofaço. Obrigo a minha mente a fugir do destino dos cavalos no campo de batalha.

 

Vejo o capitão Medford a conduzir uma cunha de infantaria contra o avanço dos soldados a pé. Recarrego apressadamente. Apanho pelo canto do olho a visão de um lanceiro, com a arma apontada a mim, um alvo perfeito no meu cavalo alto. Ele corre, guincha um som inumano à medida que se aproxima. Eu salto da Beauty. Ajoelho-me por baixo da barriga dela. Disparo. Ele cai. O meu cavalo dispara com a explosão inesperada por baixo de si. "Foge para as árvores!", grito-lhe eu, mas sei que ela não me ouve.

 

Por um momento abençoado o meu corpo não está sob cerco imediato, embora a toda a minha volta estejam pares de homens numa batalha hedionda, um com o outro, corpo a corpo. A mortalha de fumo obscureceu o céu claro da manhã. Homens e cavalos caídos estão deitados, despedaçados e estripados, sangrando o seu sangue escarlate para cima das flores da mesma cor. A mais obscena chacina no meio da mais grandiosa beleza de Deus.

 

Outro inimigo corre para mim e eu, pela primeira vez um soldado, dou por mim a pé, as pistolas inutilizadas, deitadas fora. Ergo a minha espada e, enquanto carrego sobre o espanhol, ouço um grito alto é de gelar o sangue um grito de animal - e apenas no momento em que o metal embate no metal ensanguentado sei que o som vem da minha garganta. Então fico completamente perdido, apenas tenho uma vaga memória do combate, os sons angustiados dos homens a morrer, quantos eu matei ou mutilei, o tempo que dancei aquela tenebrosa dança. Apenas sei que ainda estou vivo quando o cornetim toca à retirada, ouço que vem não da direcção da fortaleza mas da estrada que saí de Gouda. Estamos a abandonar oforte aos seus proprietários, e nós, os atacantes, estamos a fugir. Redondamente derrotados, deixando os nossos mortos para trás.

 

Estou dormente, mal consigo assobiar para chamar a Beauty. Cambaleio pelo campo cego através do fumo espesso, tropeço com as minhas botas no corpo estropiado de um inglês, a cara dele estranhamente pacífica na morte. Recuo. Então lembro-me de ver Hirst morrer. Ele estava ajoelhado, a debater-se para recarregar. Um cavaleiro surge em grande velocidade atrás dele, a espada na mão. O golpe. O sangue do meu amigo a jorrar numa fonte terrível.

 

Grito o nome de Beauty incapaz de disfarçar o meu desespero crescente. Subitamente ela aparece no meio da névoa cinzenta. Está incólume, completamente sã. Eu amo aquele cavalo corajoso naquele momento tanto como alguma vez amei o meu fiel Charger. Monto-a e ela galopa para fora dali, pisando com os seus cascos um caminho por entre as tulipas vermelhas holandesas a caminho da nossa vergonhosa retirada.

 

Mesmo enquanto jovem soldado eu sabia que a companheira mais íntima da vitória era a derrota, mas nunca imaginei o quão amargo perder poderia ser quando a causa era a estupidez e o resultado era desnecessário. Na Batalha das Tulipas, como veio a ser chamada pelos soldados, juntamente com as perdas do cerco, perdemos quase três quartos da nossa força. Mil homens e trezentos cavalos mortos. Medford e Billings ambos feridos mortalmente, acabaram por morrer na estrada ao longo dos dias da nossa ignóbil retirada. Hirst tinha morrido, mas Partridge sobrevivera.

 

O regresso à cidade com a nossa força grandemente diminuída, rabos entre as pernas, alarmou os Holandeses. Um dia, pouco tempo depois do nosso regresso, um grupo de burgueses solenes e dignos encontram-se com Holcomb no seu quartel-general, sem dúvida para exigir alguma informação acerca do combate, questionando-se se a Inglaterra iria enviar mais tropas para reforçar esta guarnição. Vi os velhos homens a emergir ainda mais taciturnos do que tinham entrado, e calculei que a resposta de Holcomb não lhes agradara.

 

Perguntei-me se a corrupção do meu capitão seria tão grande ao ponto de ele continuar a receber a paga dos mortos pelos mil homens que tinha perdido na Batalha das Tulipas, ou se a consciência o teria assaltado e ele reportaria a perda aos seus superiores. Mas foi só quando já estávamos em Haarlem há uma semana que eu entendi o perigo que a conduta vergonhosa deste homem representava para mim. Com Billings e Medford mortos, apenas um jovem soldado sabia quão grande loucura tinha sido o cerco do forte em Gouda logo à partida.

 

Rapidamente Holcomb começou a enviar-me em todas as missões perigosas que conseguia conceber. As tropas espanholas estavam nos campos em volta de Haarlem - eu fui enviado sozinho e em uniforme completo para bater as posições deles. Uma epidemia mortal de disenteria apareceu na guarnição inglesa de Amesterdão - eu fui enviado para lhes entregar um carregamento de pombos-correios e ficar lá, sem me ser dada nenhuma razão especial, por quinze dias. Um túnel antigo foi descoberto debaixo do muro sul de Haarlem - eu fui destacado para liderar a equipa que ia encher a passagem em perigo de ruína para que os espanhóis nunca a pudessem utilizar num ataque. De alguma forma consegui afastar a morte e confundir Holcomb de cada uma das vezes. Sempre que voltava de uma missão mortal incólume o capitão encolerizava-se mais veementemente, e tornou-se uma piada entre as fileiras que eu era impossível de matar.

 

Entretanto Partridge lucrara com a derrota de Gouda. Embora tivesse perdido o seu amigo de toda a vida, Hirst, com a redução radical do nível das tropas - os cifradores entre eles -,foi promovido por ser perito naquele campo e foi levado para esse sector. Enquanto eu permanecia um mero soldado, elefoi elevado a tenente e deu por si a trabalhar no luxo relativo do quartel-general. As aptidões que ele não possuía quando começou a sua missão depressa as aprendeu no trabalho, e eu descobri muito em que elogiá-lo na sua pura audácia e espírito inventivo.

 

Sempre que podia escapava-me para visitar os Hoogendorp, mas nem tudo estava bem naquela família. Dois dosfilhos que combatiam com a resistência tinham sido mortos, e o alegre riso da mãeficara silencioso, asfaces rosadas agora sem brilho. Os navios espanhóis ao largo estavam a assediar os barcos de pesca holandeses e a diminuir a captura.

 

Jacqueline, a jovem de cara fresca, no espaço de um ano tinha-se tornado uma mulher. Alarmava a mãe pelas companhias que procurava, embora não fosse qualquer homem que a mãe temesse que pudesse desflorar-lhe a filha. Era um bando de raparigas que se julgavam soldados, conduzidas por uma estranha viúva e construtora naval chamada Kariau Hasselaeer. Para consternação de todos e não pequena derisão, treinavam para a batalha com armaduras que Hasselaeer comprara para ela própria - com armas, antiquados arcos e flechas, facas de cozinha e cabos de vassoura aguçados. O capitão Holcomb condenava-as especialmente como aberrações da natureza, e proibiu-as de continuar. Imperturbáveis, ignoraram-no simplesmente e tornaram-se um bando de guerreiras tão provocador como qualquer outro que eu alguma vez tivesse conhecido.

 

Jacquelinefalava-me da sua vida de soldado, e eu achei-a muito mudada. Ela estava endurecida, já não era aquela jovem rapariga namoradeira que eu vira pela primeira vez naquele dia da procissão do arenque. Kanau, disse-me ela, tinha sido ela própria transformada numa mãe de luto pelas tropas de Alba. Inflamava as suas seguidoras com histórias das mulheres amazonas da antiga Cítia. Embora ela não sugerisse que as raparigas holandesas deviam deixar de fora os seus peitos direitos como as Amazonas faziam para tornar o disparo de setas mais fácil - exigia obediência e uma ferocidade de espírito às suas tropas. Todas elas, dizia Jacquelíne, morreriam de bom grado pela sua líder e pela causa da Liberdade Holandesa.

 

E demasiado cedo o chamamento veio. Os espanhóis, conduzidos pelo filho de Alba, Dom Frederico, nesse Inverno marcharam do Sul para atacar a cidade de Haarlem. Começou com um bombardeamento que se prolongou durante dias, trazendo a morte e a destruição para bem dentro da cidade. Uma bala de canhão voou até tão longe como o centro da cidade, alojando-se na parede da Grande Igreja, mas o antigo bastião da cidade manteve-se firme contra o assalto. Os cidadãos - embora juntamente com a guarnição inglesa não contassem mais do que quatro mil defensores armados - uniram-se para a defesa. Posicionaram-se nas seteiras, dispararam torrentes de balas, atiraram pedras, despejaram tonéis de piche e óleo a ferver sobre os invasores espanhóis. Depois de vários dias ambos os lados se resignaram à inevitabilidade de um longo cerco. Foi nesse tempo, seis meses no total, que eu conheci o verdadeiro valor e ardor dos Holandeses.

 

Após semanas de luta ficámos muito alegres com a visão de camponeses que apareceram através das brumas, deslizando nos canais cobertos pelo gelo em trenós, entregando comida e munições aos seus irmãos da cidade. Mas o primeiro batalhão de três mil soldados do príncipe Guilherme, enviado para destroçar os sitiantes espanhóis, foi ele próprio derrotado pela superioridade numérica dasforças de Dom Frederico. Aqueles que não morreram de imediato foram feitos prisioneiros e enforcados em massa em frente ao portão da cidade para todos verem. Mas o povo não desesperava. Guilherme começou a enviar mensagens por pombos-correios, prometendo mais tropas, mas ainda mais importante uma mensagem de esperança e coragem, de que a nossa luta era justa e que toda a Holanda se estava a juntar para nos ajudar.

 

Semanas, e depois meses, passaram na expectativa dessa ajuda, e a comida e a lenha começaram a escassear. Partridge relatou-me que um desalentado Lord Holcomb se tinha retirado para o isolamento, deixando o problema da defesa inglesa de Haarlem a vários dos seus oficiais. Ele próprio havia passado os dias a compor longas cartas para o Conselho Privado implorando a retirada das suas tropas da Holanda. Partridge fora incumbido da cifração das cartas. Mas os únicos meios de as levar da cidade eram os pombos-correios - e estes, quando lançados no ar, eram prontamente mortos a tiro pelos atiradores espanhóis que sabiam que qualquer outro tipo de pássaro na cidade inteira tinha já sido comido pelos cidadãos esfomeados.

 

O príncipe Guilherme manteve a sua palavra, enviando mais tropas para combater os sitiantes, mas na cidade fomos forçados a observar impotentes das muralhas enquanto a minúscula força holandesa era dizimada. Pouco depois da batalha ter começado, as catapultas espanholas mandaram a voar para dentro da cidade uma carga macabra cabeças, braços, pernas, metades de troncos, órgãos sexuais masculinos decepados aos combatentes da resistência derrotados. Este horror ao princípio desencorajou muito os cidadãos de Haarlem que choraram abertamente pelos seus conterrâneos perdidos na defesa da sua própria cidade. Mas, à medida que as pessoas se reuniam para recolher aquela terrível colheita, e cavavam o chão terrivelmente gelado para enterrar os mortos decentemente, eu vi a inundar as suas caras um ódio tão feroz e uma determinação tão severa de punir aqueles que os puniam, que não fiquei surpreendido quando uma outra delegação de burgueses entrou a marchar na guarnição inglesa - sendo o seu propósito propor medidas mais arrojadas do que as que alguma vez tinham sido tentadas.

 

Como as missões eram perigosas eu, naturalmente, fui chamado pelo capitão Holcomb para liderar ou participar em várias delas. Mas agora em defesa de Haarlem eu ia de bom grado. Numa noite sem lua um grupo de ingleses, holandeses e uma dúzia de cavalos bem treinados escapulíram-se pelo portão da cidade, e com o mais extremo cuidado e muitos tropeções pois até uma pequena vela nos teria denunciado -, dispusemos minas à volta das tendas no perímetro do acampamento espanhol, colocámos os pavios e fugimos rastejando. Quando se deu a explosão, as chamas e o caos a envolverem o acampamento, rapidamente atrelámos os nossos cavalos a seis carros de artilharia e arrastámos de volta para dentro dos portões seis canhões de bom tamanho sem uma única baixa entre nós.

 

Houve um júbilo tal com a nossa conquista, por pequena que ela fosse pois não tínhamos material adequado para os canhões -, que os homens, mulheres e crianças dançaram nas ruas e cantaram canções de vitória. Gritaram o nome de Guilherme de Orange e carregaram aos ombros os atacantes até à praça da cidade. Alguns escalaram as muralhas e gritaram para os espanhóis que eles eram uns porcos, e despejaram lixo em cima do acampamento em chamas com catapultas tomadas no assalto a guarnição inglesa.

 

No seguimento daquela vitória veio uma outra, mais uma vez pequena mas que deu aos habitantes de Haarlem ainda mais esperança. Um grupo, talvez uma dúzia dos mais novos e "mais bonitos" dos homens - eu fui o escolhido pela guarnição, e Dirk Hoogendorp pela cidade - disfarçaram-se de prostitutas pintadas, adornados com madeixas de cabelo cortadas das matronas da cidade. As raparigas que nos barbearam e vestiram fizeram-no com grande folguedo, apertando bem as fitas do espartilho de forma a que, alegavam elas, conhecêssemos as dores que elas sofriam apenas para vestir as suas roupas de manhã. Fomos perfumados, os nossos lábios e bochechas avermelhados, toucas atadas por baixo dos nossos queixos com bonitos laços, e então, em plena luz do dia, acompanhados por uma verdadeira mulher apenas - era uma das raparigas de Kanau Hasselaeer - abrimos o portão e deambulámos para fora à vista do exército espanhol.

 

A rapariga, Margriet, gritou na sua voz mais sedutora que nos éramos prostitutas esfomeadas que estavam fartas do cerco. Como éramos holandesas, continuou ela, gostávamos do negócio e não nos importaríamos de aceitar dinheiro de clientes espanhóis, uma vez que os homens da cidade, de qualquer forma, já não podiam pagar os nossos serviços. Então sentámo-nos num muro baixo e esperámos. Aproximaram-se três soldados, mas, cautelosamente, até que Margriet avançou, a contrair os lábios e a sacar os seus belos peitos brancos para fora do corpete! Os homens correram simplesmente o resto do caminho até ao nosso círculo - e estavam mortos, apunhalados uma dúzia de vezes cada um, um momento depois. Todos ao mesmo tempo virámos as costas ao acampamento espanhol que não tínhamos qualquer dúvida de que estava a observar-nos, içamos os nossos saiotes, dobrámo-nos e abanámos os nossos testículos e rabos peludos para o inimigo. Então apressámo-nos de volta através do portão, carregando os soldados mortos connosco. Mais tarde os burgueses de Haarlem cortaram as suas cabeças ofensivas, e os habitantes catapultaram-nas jovialmente por cima da muralha para o meio do acampamento de Dom Frederico.

 

Mas as nossas vitórias tinham os dias contados. Os fornecimentos de comida ao campo diminuíram de intensidade e na cidade tínhamos real e verdadeiramente começado a morrer de fome. Todas as provisões de arenque seco e farinha tinham acabado. As pessoas começaram a comer as ervas e flores de Primavera, e até a matar gatos e cães pela carne. O outrora próspero povo da jóia da Holanda apresentava agora caras descarnadas e olhos demasiado brilhantes esbugalhados em cavidades escuras. As roupasficavam penduradas em esqueletos. Os humores inflamavam-se, e as pessoas cujos filhos estavam quase mortos de fome começaram a discutir sobre renderem-se aos espanhóis.

 

Eu fui visitar os Hoogendorp, mas não reconheci logo a pessoa que me abriu a porta. Pensei que talvez tivesse ido à casa errada, uma vez serem todas iguais. Mas era de facto a mãe. já não era a mulher roliça e maternal que me tinha obsequiado, à sua família e a si própria com montanhas de tortas, peixes e bolos. Ali estava um saco de ossos com grandes dobras de pele penduradas como tapeçarias obscenas de carne do pescoço e dos braços. Não se tinha dado ao trabalho de moldar a sua roupa à sua nova forma, e também ela se pendurava flácida no seu triste corpo. Sorriu um sorriso breve, mas sincero, ao ver-me e convidou-me a entrar, porém eu conseguia ver que ela estava envergonhada, incapaz por não me poder proporcionar a hospitalidade de outrora. Tentei aligeirar as coisas, lançando-me numa história acerca de como eu tinha abandonado a guarnição trazendo uma caixa de suculentos ratos para fazer um cozido, mas antes de eu ter acabado a história ela começou a chorar - lágrimas grandes e redondas que abriam caminho pela sua cara de bochechas esvaziadas. Entre soluços admitiu que se tinha na verdade rebaixado a apanhar ratazanas e ratos, e a cozínhá-los. Todas as donas de casa estavam afazer o mesmo, e agora não havia um roedor em toda a cidade.

 

No pico do Verão um Pombo-correio do príncipe Guilherme conseguiu chegar a Haarlem, com uma mensagem de que uma força gigantesca de soldados holandeses vinha a caminho para libertar a cidade. Fracos como estávamos, não obstante, permitimo-nos ter esperança e em breve ouvíamos o ribombar de canhões do que parecia ser em todas as direcções. Eu corri pelas alamedas desertas até à Grande Igreja e sem fôlego - a minha própria força estava a pouca distância da inanição - escalei a escada do campanário. Daquele ponto de visão altamente vantajoso, olhando para leste, eu conseguia ver os navios dos famigerados Pedintes do Mar em batalha com os galeões espanhóis no lago de Haarlem. Virando-me para sul vi o acampamento armado do lado de fora das muralhas da cidade agora lançado em desordem pela infantaria e cavalaria de Guilherme. Fiquei a olhar fixamente, descrente, pois pareciam ser cinco mil holandeses! Era uma grande batalha, e enquanto olhava para aquele campo de acção, desejei ardentemente estar a lutar contra o inimigo como um verdadeiro soldado e não como estava - um animal encurralado, impotente e esfomeado numa prisão murada. Naquele momento soube, também, que ansiava estar a lutar ao lado do bom príncipe de Orange, tendo mais fidelidade para com ele do para com a própria rainha de Inglaterra.

 

Então observei com alarme crescente que a batalha em terra e no mar sofria uma reviravolta a favor dos espanhóis, e desejei morrer. Enquanto descia da torre vi congregada uma multidão de habitantes, silenciosos e parados, esperando o meu relatório. À primeira visão de mim um grande gemido cresceu, pois eu estava incapaz de esconder dos olhos deles a verdade da nossa terrível derrota. Mais tarde, nesse mesmo dia, ouvimos grandes batidas e gritos no portão da cidade. Os guardas abriram-no para dar com o mais alto oficial de Guilherme, vivo e a andar, mas com o nariz e as duas orelhas cortados, vindo para trazer más notícias de Dom Frederico.

 

Agora nada restava a não ser medidas desesperadas. Todos os cidadãos saíram à rua à luz de archotes para ver quando Kanau Hasselaeer e o seu exército de trezentas mulheres se despediram da família e amigos. Eu vi a mãe Hoogendorp agarrar Jacqueline junto ao seu corpo esquelético com uma ferocidade tão terna que não consegui estancar as minhas próprias lágrimas.

 

Todos nós observámos aquelas bravas mulheres holandesas a marcharem para fora para combater sob a lua cheia contra os demónios espanhóis. Não esperávamos que qualquer delas voltasse viva, mas muitas vezes naquela noite terrível enquanto estávamos de pé em cima da muralha a olhar para o campo espanhol, sussurrou-se em tons calados e reverentes que havia menos gritos de dor e morte do que num campo similar de homens a combater. E nunca mencionámos o destino que sabíamos que aguardava aquelas que nãoforam mortas mas capturadas.

 

Pelo amanhecer, a inigualada coragem daquelas mulheres tinha fomentado um tal estado de espírito comum de rebelião geral que foi decidido pelos cidadãos, um e todos, que iriam formar uma grande legião - muito compacta, com mulheres e crianças no centro, homens armados a rodeá-las. Esta massa de humanidade correria pelo portão duma só vez, tentando forçar a passagem pelo acampamento inimigo. Lord Holcomb, em toda a sua fanfarronice disparatada, proibiu-os de ir. Ninguém, naturalmente, lhe deu ouvidos.

 

Mas então chega do campo espanhol uma mensagem atada a um cão descarnado - pois eles sabiam que com tudo o que se tinha passado qualquer espanhol que viesse bater ao portão seria instantânea e horrivelmente despachado. Era um perdão total para os habitantes de Haarlem de Dom Frederíco, que seria honrado se a cidade se rendesse sem mais demora. Lord Holcomb falou rápida e apaixonadamente. Isto, gritou ele, largando lágrimas sinceras sobre a camisa, é a única esperança da cidade se salvar. Haarlem tinha de ser entregue aos Espanhóis. Os sobreviventes teriam pelo menos as suas vidas, se não a sua liberdade. Alguns resmungaram que Dom Frederico não era de confiança, que ele os trairia no fim, mas toda a gente estava já meio morta de fome e doença. Depois de uma reunião final e uma oração conjunta, resolveram-se pela rendição. O conselho instou os habitantes a recolherem-se em suas casas, dizendo que pela manhã chegariam mantimentos à cidade, e o horror destes seis meses passados estaria terminado.

 

Mas quando os portões se abriram de par em par e o exército subjugador passou por eles, não era de comida que os seus braços vinham carregados, mas de mosquetes e espadas desembainhadas. Fizeram cair sobre os bons cidadãos de Haarlem que tinham confiado neles, o mais horrível castigo e a morte. Encheram as ruas residenciais e deitaram abaixo portas, arrastando pessoas para fora das suas casas. Os primeiros mil homens, mulheres e crianças que encontraram decapitaram-nos, outros duzentos amarraram-nos aos pares e lançaram-nos para dentro do lago de Haarlem, afogando-os.

 

Um ataque subsequente à guarnição colocou todos os ingleses a lutar pelas suas vidas. Eu e vinte soldados defendemos a casa de armas numa luta de fogo incandescente. Os homens caíam à minha volta. Também eu teria morrido lá, se não fosse Dírk Hoogendorp que tinha vindo por vielas secundárias ao meu encontro. Os olhos dele estavam selvagens. A mãe morrera, o pai lutava algures numa batalha perdida. Mas ele e os amigos conheciam um caminho pelos esgotos para fora da cidade. Tinham intenção de escapar e ir de encontro ao exército holandês de resistência e lutar com Guilherme de Orange até à morte ou à liberdade. Queria eu juntar-me a eles? A minha resposta foi um sonante "Sim!", disse que desejava apenas encontrar o meu amigo Partridge, se ele ainda estivesse vivo, e levá-lo connosco.

 

No caminho da casa de armas até ao quartel-general, agachámo-nos para escapar a uma saraivada de balas e desafiámos a morte por um triz uma vez após outra. Escalámos lá para dentro pela janela das traseiras. Os espanhóis já tinham vindo e ido embora, deixando uma cena de carnificina. Pilhas de corpos ingleses, sangue coalhado e espesso debaixo das nossas botas. Estava calmo e silencioso como apenas a morte pode ser. Eu esquadrinhei o sítio, mas Dirk estava a puxar-me o braço.

 

- Arthur, vem! O teu amigo está morto. Não temos tempo, temos que ir agora.

 

- Arthur?

 

Era quase inaudível, literalmente uma voz dos mortos. Dirk e eu caímos sobre a pilha macabra, cavando como loucos, os chamamentos abafados de Partrídge a levar-nos até ele. Tirámos três corpos de cima do dele, que estava coberto da cabeça aos pés de sangue. De repente, sentou-se completamente direito, inteiramente intacto.

 

- Ui! - gritou ele. - Este sangue não é meu. Eu fingi de morto. Vá, ajudem-me a levantar!

 

Assim fizemos, e começámos a sair pela janela traseira. De repente, Partridge agarrou o meu braço e eu virei-me para ver a cara dele, o branco dos olhos claros e no entanto perplexos entre os traços coagulados de vermelho.

- Voltaste atrás por mim - disse ele.

 

- Como tu terias feito por mim - disse eu.

 

- Depressa, se é que vêm! - gritou Dirk, já meio fora da janela. Seguimo-lo, e assim comecei a segunda fase da minha vida como soldado.

 

Isabel quisera surpreender Robin. enquanto ele ia a aguas nas Termas de Buxton, e para seu deleite tinha sido bem sucedida. A meio da viagem de Verão no Derbyshire dera por si a sentir

 

falta da companhia do seu favorito, que tinha sido enviado pelos seus físicos a banhar-se e beber as águas medicinais da nascente de Santa Ana. Escondida com a sua corte não muito longe desse local, nesta manhã ela tinha lançado a sua casa em polvorosa, ordenando subitamente aos menos importantes do seu séquito que a acompanhassem numa viagem - duas damas, a sua anã boba, a senhora Tomison, e quatro guardas reais. Tinha saído com pouca pompa no seu cavalo castanho, chegando a Buxton ao fim da tarde, e agora olhava os edifícios que Lord Shrewsbury tinha inteligentemente erigido à volta da nascente. Havia a casa de banhos própriamente dita, toda de mármore rosa e quente, seguindo o estilo romano com colunas, passagens, jardins suspensos e uma fila de casas que Shrewsbury alugava aos pensionistas que vinham para os banhos. Uma destas tinha sido rapidamente desocupada para a Rainha, e agora ela permitia às suas mulheres que lentamente lhe desabotoassem e tirassem o espartilho.

 

A senhora Tomison, mais elegante e bem-falante do que uma senhora com um metro de altura tinha o direito de ser, sentou-se numa almofada aos pés de Isabel. Ela era certamente beneficiada pelos vestidos que utilizava, os desprezados pela Rainha, cortados para caberem nas suas proporções diminutas, mas tinha também conseguido ter alguma educação, de forma que a sua conversa era ao mesmo tempo erudita e de um sarcasmo mordaz. "Um duende divertido" era o que ela chamava a si própria. Isabel, depois de ter lido no diário de sua mãe coisas sobre o amado bobo de Ana, Niniane, procurara uma mulher com graça para seu próprio prazer. Ela sentia que conseguia manter alguém do seu próprio sexo mais perto de si e por mais tempo, e à medida que os anos passavam a Rainha descobriu que uma história indecente ou uma gargalhada profunda eram uma necessidade cada vez mais frequente.

 

As mulheres ajudaram Isabel a vestir um roupão de brocado vermelho com muitas camadas de fina cambraia, e ela percorreu o caminho sozinha pela passagem de mármore até ao edifício com colunas. Todos os outros banhistas tinham muito discretamente sido retirados da piscina e, quando emergiram, tinha-lhes sido dito que a Rainha chegara recentemente e desejava privacidade. Lord Leicester era, portanto, quando ela entrou, o único banhista na casa de banhos envolta em brumas, sentado com água até ao pescoço e com os olhos fechados na piscina de ladrilhos, a sua camisa de cambraia solta e a flutuar como uma bolha à volta dele.

 

Sem fazer nenhum som acima do ondular da água e do ar sibilante, Isabel removeu o seu roupão de banho e, vestida apenas com uma fina camisa sem mangas, escorregou para dentro da água quente. Deslizou lentamente através da piscina na direcção de Robin, desafiando-se a si própria a manter um tal silêncio e segredo a ponto de ficar cara a cara com ele antes de ele abrir os olhos. A sensação da água na sua pele era deliciosa, com finas bolhas que lhe faziam cócegas na garganta e no suave lado de dentro dos braços. O deleite sensual era quase insuportável. Uma nuvem de vapor coagulou-se na cara de Isabel, que tinha sido limpa pelas suas damas de todos os cosméticos. Ela sentia-se novamente jovem e perfeita.

 

A cara de Robin ficou mais nítida à medida-que ela se aproximava a flutuar. Ele começava a acusar a idade, mas era ainda belo, pensou ela. O cabelo e a barba castanho-avermelhados estavam matizados de cinzento, os olhos amplos irradiavam finas rugas dos lados, e o nariz ligeiramente arqueado estava um pouco mais aguçado do que na juventude. Ainda assim, não havia homem que ela desejasse mais, que soubesse melhor como lhe agradar, afastar os medos dela, fazê-la sorrir. Ninguém era mais devoto e terno. E ninguém, pensou ela com um estremecimento de excitação, era tão perigoso. Havia um animal à espreita por baixo da bela pele, uma besta de voraz ambição, e ela sabia que não podia nunca tirar-lhe os olhos de cima durante muito tempo - nunca poderia confiar nele completamente. De alguma forma perversa isto fazia com que o amasse ainda mais.

 

Isabel estava contente. Os olhos de Robin estavam cerrados, e ele ainda sem saber da sua presença. Ela movimentou-se tão subtilmente que nem sequer agitou as águas e, por um momento, pensou se ele não estaria a passar pelas brasas. Agora estava a centímetros dele, inclinada entre os seus joelhos afastados, tão perto que conseguia sentir-lhe a respiração lenta na sua cara. Ele lambeu os lábios. Não estava a dormir.

 

- Lord Leicester - sussurrou ela na sua voz mais suave e confortável. Tão confortável de facto que ele nem sequer abriu os olhos.

 

- Não estou pronto para sair. Acabei de entrar. Deixe-me estar.

 

- Não vos posso deixar estar - disse ela, quase a cantarolar. - Nunca fui capaz de vos deixar estar.

 

Os olhos dele abriram-se de repente. Embora não tenha havido nenhum sobressalto em particular no corpo dele, ela sentiu toda a pessoa dele, a sua própria alma, iluminados subitamente com a visão dela. Ele não sorriu mas fixou-a com um olhar familiar e penetrante. Ela perguntou-se se ele a tentaria alcançar, puxá-la aqueles últimos poucos centímetros para junto dele. Mas ele não o fez. E ela não ficou surpreendida.

 

De acordo com os desejos dela, Isabel e Leicester já não eram amantes no sentido mais íntimo, já não o eram há mais de um ano. Ela era demasiado orgulhosa para partilhá-lo com outra mulher. Com Douglas Sheffield. Algo mudou nos olhos dele.

 

- Porque estás aqui, Isabel? Não estás doente - disse ele mais como uma ordem do que como uma pergunta.

 

- Não, não estou doente. A minha bochecha está ainda ligeiramente dorida da nevralgia quando lhe toco, mas a úlcera do meu queixo curou-se. Não, vim para saber de vós, meu senhor. Ouvi dizer que a malária vos apanhou novamente, e isso preocupa-me. - Ela pôs a mão na cara dele. - Pareceis estar com febre.

 

Agora ele sorria lentamente e, com um ar divertido, levou a mão dela até aos seus lábios e beijou-a.

 

- Não é de admirar, Isabel. Estamos numa piscina aquecida. Acredita em mim, já estou muito melhor depois de dois dias aqui. Mas se te vens oferecer para cuidar de mim, eu de bom grado ficarei outra vez doente.

 

A intimidade destas palavras pôs subitamente Isabel pouco à vontade. Lançou as costas contra a água, depois virou-se e sentou-se ao lado dele na laje de ladrilhos para não ter que o olhar de frente.

 

- Como vai o vosso filho? - perguntou ela calmamente. Foi precisa toda a sua força e compostura para falar com ele sobre este sensível assunto.

 

- Bem. Tirei-o à mãe para ser criado na casa do meu tio.

 

O filho dele com outra mulher, pensou Isabel amargamente. O lindo filho deles, morto entre eles.

 

Partilharam esta imagem dolorosa em silêncio enquanto Leicester procurava palavras para lhe acalmar o coração dorido.

 

- Lady Sheffield ainda me pressiona para casar - o tom dele deixou prever as palavras seguintes - mas eu continuo a explicar que não posso. Nunca me poderei casar com ela.

 

Isabel não conseguiu conter um sorriso perverso.

 

- A minha adorável prima Douglas. Está muito zangada?

 

- Não devias ser má, Isabel. Fica mal a uma rainha. Se eu fosse menos cavalheiro, chatear-te-ia acerca de Christopher Hatton. Ele parece agradar-te demasiado nestes dias, dentro efora da pista de dança.

 

- Não é o meu jovem Hatton que deveria estar a incomodar-te, meu senhor... - provocou Isabel.

 

- E quem deveria ser, Majestade?

 

- Tenho recebido correspondência recentemente da Médicis. Pergunta-me se quero considerar um casamento com o seu filho mais novo, o duque d'Alençon.

 

Dudley riu-se alto e bom som.

 

- Alençon! Acho que ele não vos agradaria de todo, Isabel. É vinte anos mais novo que... É ainda um rapaz. É franzino e marcado pela varíola e tem um enorme nariz inchado na cara. "Feio" é a palavra que se usa normalmente para descrevê-lo.

 

- Um casamento com ele solidificaria o Tratado de Blois - insistiu ela.

- Sabes muito bem que a França manterá esse tratado sem qualquer casamento. Apenas finges considerar Alençon para me aborrecer.

 

Agora era a vez de Isabel rir. O som ecoou sobre a água e através da casa de banhos envolta em vapor. Leicester tinha razão, claro, embora nem ele nem o resto do mundo o pudessem alguma vez saber. Só ela sabia que nunca se casaria com o príncipe francês. Ainda assim, nos anos vindouros teria de fingir levar esta proposta a sério. Muito a sério, na verdade. O assunto não estava ainda claro na mente de Isabel, mas a aliança com a França

- mesmo que fosse apenas uma ilusão - iria mostrar-se de grande importância nas manobras políticas com a Espanha, e na guerra da Holanda. Mas ela não desejava pensar nisso agora, nas horrendas histórias de chacina e mutilação vindas da Flandres como uma ferida que não se pudesse estancar. Nem desejava contemplar a sua prima escocesa Maria, ainda prisioneira no Norte de Inglaterra, e as suas intermináveis conspirações para roubar o trono de Isabel. Não, ela estava aqui para o seu Robin, para acalmá-lo, provar que o amor e amizade de ambos ainda florescia apesar daquela intimidade perdida. Ela falaria de assuntos alegres.

 

- Um dos nossos rapazes de Oxford esteve em Greenwich antes de eu me vir embora, a aproveitar os alojamentos na corte. Com ou sem ti lá, tornou-se um grande local de encontro para homens de letras, poetas, estudantes, músicos. O círculo literário de Philip Sidney, também. Todos eles falam de ti com tanto carinho - o Grande Patrono. Fala-se que levas o teu cargo de chanceler em Oxford demasiado a sério, mas eles perdoam-te isso também.

 

Ele estava divertido.

 

- Decidi que receber o amor de artistas e pensadores é um bálsamo suficiente para o ódio dos políticos e príncipes, que eu continuo a atrair incessantemente. - Ele sorriu. - Lady Shrewsbury mostrou-me a carta que lhe escreveste acerca da prudente dieta que queres que eu siga. Não mais do que duas onças de carne, e a vigésima parte de um quartilho de vinho ao jantar?

 

Isabel deu um riso abafado.

 

- E tanta água sagrada de Santa Ana quanta desejares beber.

 

- Mas em dias de festa - disse ele, citando a carta - posso comer a asa de uma carriça, e ao jantar uma perna da mesma.

 

- Isso para além das onças normais, meu amor.

- Oh, obrigado, Majestade.

 

- É para teu próprio bem, Robin, e para o meu também. Quando estamos juntos de pé não queremos que os outros segredem atrás das nossas costas, "Ah, lá vão eles, o Gordo e a Magricelas". Iríamos tornar-nos em motivo de troça.

 

- Ah... - Leicester inclinou subitamente a cabeça para trás e fechou os olhos. A testa dele enrugou-se de dor.

 

Isabel ficou alarmada.

 

- Robin, amor. Não comeste antes de vires banhar-te?

- Estou óptimo, Isabel - disse ele fracamente.

 

Ela colocou uma mão na testa dele.

- Estás a arder em febre, Robin!

 

Chamou e duas assistentes femininas apareceram imediatamente.

- Levem Lord Leicester para casa e chamem o meu físico.

 

As assistentes começaram a puxá-lo, com os joelhos fracos, para fora da piscina.

 

- Cuidado com ele! - ordenou ela, o pânico a surgir. - Juntar-me-ei a vocês daqui a nada.

 

Observou-as a vestirem-lhe o roupão e a ajudá-lo a sair. Sozinha, ela permitiu-se a si própria apenas um momento para considerar o mundo sem este homem. Então levantou-se da água e, sem ajudas, vestiu o seu próprio roupão.

 

Não deixaria que nada no mundo acontecesse ao seu Robin, comprometeu-se silenciosamente. Nada. Nada.

 

Por mais de quatro anos eu tinha sido soldado quando numa noite de Verão, um brilhante céu estrelado como nossa única cobertura, estava deitado nu na suavidade das dunas com a Marie Bleiden

 

encaixada dentro do crescente quente do meu corpo. Éramos amantes há muitos meses, e eu tinha alegremente aprendido sob a sua tutela especializada os doces e obscuros segredos da carne feminina. A minha irmã Alice teria ficado orgulhosa, pensei eu enquanto roçava o mamilo de Marje com o mais leve toque dos meus dedos esticados, fazendo com que ela empurrasse as suas nádegas curvas contra mim. Pois eu tinha finalmente sido bem sucedido na arte de dar prazer a uma mulher diversas vezes antes de eu próprio experimentar alívio.

 

Encostei o meu nariz ao Pescoço dela mais a brincar do que apaixonadamente. Estávamos ambos completamente saciados, mas desejávamos que a proximidade continuasse por mais alguns momentos. Então ela virou-se de costas, e eu coloquei-me sobre um cotovelo. Os seus peitos cheios espalhavam-se pendularmente pelos flancos. Marje já não era uma mulher nova, e mesmo ao luar eu conseguia ver as suas linhas a aprofundar-se no rosto gasto embora ainda belo.

 

- Porque é que lutamos? - perguntou ela de repente. - Diz-me a razão pela qual os homens estão sempre em guerra.

 

Eu nunca lhe tinha conhecido qualquer autocomiseração, mas ela estava profundamente entristecida pela sorte que o destino lhe reservara, e ao homem por quem ela estava apaixonada. Ela não era a minha mulher, percebem, mas a companheira de há muito de um oficial do exército do príncipe Guilherme - um general chamado Roost. A maioria das partes masculinas deste bravo soldado tinham sido despedaçadas em batalha, e ele não maisfora capaz de a satisfazer adequadamente. Embora não fosse a sua mulher, apenas uma seguidora de acampamento e enfermeira, eles tinham-se afeiçoado demasiado um ao outro para se separarem depois desteferimento. Ele insistiu, contudo, que ela encontrasse satisfação noutro local. Nisto tinha obedecido, mas fez votos de permanecer a sua mulher no coração e no espírito até que um ou outro morresse. Todos os nossos camaradas soldados sabiam que eu era aquele com quem ela se deitava, até Roost, e eu ficava atónito com a sua coragem, e com a cortesia que sempre mostrou para comigo. Decidi fazer a vontade a Marje respondendo à sua pergunta se isso pudesse acalmar-lhe a mente.

 

- Há soldados que lutam por dinheiro. Tu própria sabes como a maioria dos exércitos estão cheios de mercenários. Nunca é uma boa vida, mas é melhor do que a que muitos encontrariam nas suas aldeias de origem. Sei que alguns vêm para a vida militar a acreditar que hão-de subir na vida. Talvez aqui na Holanda os esforços de um homem no campo de batalha sejam recompensados, mas em Inglaterra isso é apenas um sonho. A nobreza governa acima de todos - disse eu, incapaz de manter a amargura longe da minha voz. Nunca tinha esquecido o desperdício de vidas humanas devido aos caprichos de Lord Holcomb.

 

Marje estava ainda irrequieta, com os olhos a parecerem vasculhar os céus em busca de respostas.

 

- Eu lutei com homens que simplesmente gostam de matar. São poucos e estão bem afastados uns dos outros, esses homens - disse eu, desejando acreditar nas minhas próprias palavras. Tinha querido acalmar a Marje, mas este assunto despertara uma paixão pouco saudável nela. Por isso continuei. - Há homens como eu que entram para o serviço militar em busca de uma vida viril. Uma vida de excitação e aventura. - Ri-me pesarosamente. Eu tive seguramente a minha quota-parte de ambas.

 

Agora ela virou-se para mim, apoiando-se igualmente sobre um cotovelo. Passou a mão sobre a minha cara e eu vi uma tal bondade e carinho nos olhos dela.

 

- Então porque é que ficas? Esta não é a tua guerra, doce rapaz.

 

Pensei durante um longo momento antes de responder, lembrando-me do cerco de Haarlem, dos amigos que lá tinha perdido. Pouco depois da minhafuga e da minha chegada ao exército de Guilherme, as tropas espanholas tinham-se amotinado por falta de pagamento e, num frenesim nunca antes visto - mesmo na Noite de São Bartolomeu -, desencadearam uma incursão de pilhagem, violação e chacina na cidade mais fabulosa da Europa, Antuérpia. Pelo menos a carnificina infame em Paris fora levada a cabo por uma causa considerada cheia de significado pelos carniceiros - purgar a cidade dos heréticos protestantes. Mas em Antuérpia, aquilo a que agora se chamava a Fúria Espanhola tinha sido a mais inoportuna das mutilações. Nenhum pretexto político ou religioso havia sido invocado, pois a própria cidade situava-se no Sul e, consequentemente, leal a Filipe.

 

Os soldados tinham vindo com a intenção de encontrar pagamento se não do tesouro em bancarrota do rei, então dos mercadores mais ricos da cidade. E seguramente que havia riqueza suficiente que chegava para satisfazer qualquer saqueador que lá fosse. Porém algo medonho se tinha passado quando os intrusos atravessavam os portões da cidade. Um certo tipo de loucura abateu-se sobre eles e a sua intenção de simplesmente pilhar transformou-se numa cruel e insensata destruição. Deitaram fogo a casas magnificentes cujos recheios podiam ter roubado. Atiraram tapeçarias de valor incalculável aos canais, esmagaram garrafas de vinho sem preço, calcaram jóias incrustadas de gemas preciosas com os pés. As casas foram pilhadas e as mobílias transformadas em inúteis montes de entulho. Todavia nesses três dias de raiva muito, mas muito pior foi o custo em vidas humanas.

 

As histórias chocaram até os mais endurecidos dos veteranos. Homens cortados em pedaços minúsculos. Mulheres - jovens raparigas e avós também

- violentadas por grupos de soldados embriagados. Casas arrombadas, crianças torturadas perante os olhos dos pais. Contava-se que os saqueadores tinham encontrado numa casa um casamento em curso. O noivo foi esfaqueado cem vezes, o vestido e roupas interiores da noiva rasgados do seu corpo antes dela ser lançada nua para a rua. Todos os convidados foram trancados na cave enquanto os soldados usufruíam do festim de casamento, e quando estavam saciados e loucos com o vinho, com os mais preciosos pertences da família na mão, os intrusos partiram, pegando fogo à casa e queimando vivos todos aqueles que permaneciam encurralados na cave. Contas feitas, oito mil cidadãos católicos e protestantes também - tinham morrido no período de três dias.

 

Devido a todo o seu horror a Fúria Espanhola dera origem a um sentimento partilhado nos corações e mentes de todos os Holandeses - do Norte ou do Sul, anteriormente leais a Filipe ou não. Tinham finalmente começado a ver o exército dele nas suas terras como os camponeses veriam uma praga de gafanhotos. Todas as dezassete províncias se tinham unido, e na cidade de Ghent fora assinado um acordo para expulsar os Espanhóis da sua terra. O direito de cada um escolher a sua própria religião tinha sido garantido, e Guilherme de Orange conhecera alguma alegria por todos os seus conterrâneos se colocarem a seu lado reconhecendo-o como líder.

 

- Eu próprio continuo a lutar - disse eu por fim a Marje, quase timidamente - pela última de todas as razões. Para ser o tipo de soldado que conheci apenas no exército do príncipe Guilherme. O homem que luta pela liberdade.

 

Marje olhou então para o outro lado, pois não conseguia olhar-me de frente, por ter os olhos tão cheios da verdade e dor das minhas palavras. Era a razão pela qual Roost lutava, pela qual todos os conterrâneos dela lutavam, apesar do grande e horrível castigo que o rei Filipe continuava a fazer recair sobre eles em continuados anos sangrentos.

 

A guerra travada na Holanda pelos Holandeses fez de mim um homem. Nenhuma base de instintos mercenários movia os corações destes soldados como acontecia com os Ingleses, Alemães ou Suíços. Era uma longa e dura luta num campo de batalha difícil. Havia escaramuças entre os brejos, diques e pântanos inundados cobertos de um nevoeiro espesso e cinzento, o ar tão húmido que as armas se recusavam a disparar. Éramos um exército pobre e assim tornámo-nos, por necessidade, um exército de engenho - móvel, rápido de movimentos e mestre em surpresas. Descobríamos todas as formas de incomodar o inimigo. Atacávamos quando eles estavam em movimento, ou caíam em desorganização - talvez enquanto atravessavam um rio. Cortávamos as linhas de comunicação espanholas, assaltávamos os seus acampamentos à noite e colocávamos espigões de ferro dentro das culatras das suas armas, de forma a que a pólvora não se acendesse. Cortávamos pontes, espalhávamos na estrada espigões aguçados, e envenenávamos os poços do inimigo. Para ganhar vantagem, a nossa infantaria podia caminhar muitas milhas com água até aos sovacos, sabendo perfeitamente que uma maré alta podia afogar-nos. As guarnições das cidades, agora formadas por guardas burgueses bem treinados e fervorosos, repudiavam até o mais vicioso dos cercos. Mas apenas a "Louca Margarida", um canhão com cinco metros de comprimento com uma boca de dez centímetros, lançava fogo a sério para os corações do exército espanhol.

 

Quanto a mim, que cavalgava com a cavalaria holandesa, eram homens de tal coragem e graça soldadesca que eu me sentia como se tivesse encontrado uma outra família. Embora ainda retivesse a ajuda real que nós precisávamos, a minha Rainha tinha-nos enviado mil cavalos ingleses, e entre eles encontrei muitos animais belos. Vários morreram por baixo de mim e eu chorei as suas bravas e belas almas, todas elas.

 

Mas a Holanda não era um sítio adequado para manobras de cavalaria e nós lutávamos valentemente por pouca recompensa. Uma vez, perto de BrilI, a nossa infantaria envolveu-se numa batalha sangrenta com um regimento inimigo nas dunas, e nós investimos em frente para atacar uma longa linha de cavalaria espanhola disposta ao longo da estrada de costa. Cascos a voar, pistolas a flamejar, quebrámos a linha deles em dois pontos, lançando-os em desordem. Expulsámo-los e quando os seus restos batidos fugiram, carregámos através das dunas com gritos altos e terríveis, vindo em ajuda dos nossos camaradas em batalha a pé. Essa emboscada expulsou a infantaria espanhola e cortou-lhe qualquer retirada.

 

A vitória foi nossa naquele dia e foi doce, embora esses momentos fossem poucos. Porém, nós continuámos a lutar, pois o nosso líder, o príncipe Guilherme, era o farol fiel para a causa. Ele acreditava que Deus não nos iria deixar mal, mesmo que todos os nossos vizinhos protestantes o fizessem, e as palavras dele tornaram-se o nosso mote - "Mesmo que sejamos totalmente destruídos, custará aos Espanhóis metade da Espanha em dinheiro e homens antes que tenham conseguido acabar connosco!"

 

Marje parecia finalmente ter-se acalmado. Começou a vestir-se, e eu observei-a enquanto vestia as minhas ceroulas e camisa. Tínha-me talvez afeiçoado de mais a esta mulher que não era minha para amar, embora se eu fosse completamente honesto devesse admitir que ela não provocava nenhuma ansiedade na minha alma. Agora era eu que ficava pensativo, matutando em torno do sonho ilusório de amor romântico. Raramente o tinha visto expresso, embora se relatasse que a Rainha e o conde de Leicester partilhavam uma grande e duradoira paixão. O príncipe Guilherme e a sua mulher Charlotte, também, eram reputados por terem casado por amor. Existiria uma mulher, pensei eu, que me queimasse a alma e imaginação tão ferozmente como as minhas costelas? Provavelmente. Da mesma forma como eu tinha outrora olhado para as ondas em Milford Haven e visto o meu futuro além delas, agora sentia-me seguro de que uma tal mulher teria de existir.

 

Enquanto Marje e eu, com os braços dados em sinal de companheirismo, calcorreávamos as dunas regressando às luzes tremeluzentes do acampamento, lancei a cabeça para trás, olhando para os céus e soube com uma súbita vaga de alegria que aquelas estrelas que governavam o meu destino naquela noite espalhavam o seu brilho sobre o meu amor, onde quer que no mundo ela vivesse e respirasse. Talvez, pensei eu com um sorriso, ela esteja agora a olhar para as mesmas estrelas e a sonhar comigo.

 

Parecia ao rei Filipe, enquanto fazia a quinta viagem solitária do dia da capela para a Câmara do Conselho, que ele era pouco mais do que uma massa de dores, sofrimentos e articulações a ranger. Estava a envelhecer muito mal. Quando era jovem a sua roupa preta tinha contrastado elegantemente com o seu cabelo claro e olhos azuis. Agora o cabelo estava a ficar dum cinzento apagado, e a pele do rosto tinha uma palidez doentia que quase combinava com o cabelo. Devido ao preto austero que agora utilizava em exclusividade, parecia, enquanto se movimentava pelo pátio do palácio, mais uma sombra escura do que um homem.

 

Uma guinada súbita debaixo da costela inferior direita foi o desagradável sinal de que outro ataque de vesícula estava iminente. Os seus físicos iriam sem dúvida começar a importuná-lo acerca da sua dieta.

 

- As vossas hemorróidas - exclamariam eles como um bando de mulheres nervosas - nunca melhorarão a comer toda essa carne, Majestade! Para o diabo com os doutores, pensou Filipe com irritação, se eu desejar comer carne e apenas carne, carne é o que comerei. O rei de Espanha não comera nem pão nem fruta nem vegetais durante muitos anos e, concluiu ele peremptoriamente, não tinha qualquer intenção de começar agora. Para além disso, a sua vesícula e a sua asma, até mesmo o ocasional acesso de malária, não eram nada quando comparados com os problemas que travavam agora batalha dentro do seu cérebro.

 

Filipe estacou por breves momentos para olhar para uma jaula ao longo do claustro que abrigava alguns macacos do Novo Mundo de membros compridos - o seu Grande Império, que se tinha expandido para englobar mais de cinquenta milhões de súbditos. As bestas estranhamente humanas atrás das grades estavam a lutar por alguma comida, a empurrarem-se e a agarrar com aqueles braços esguios, rangendo os dentes, a guincharem e a colocarem-se em posturas ferozes. Por fim, o maior dos macacos arrancou o bocado cobiçado aos outros e retirou-se para um canto afastado da jaula para consumi-lo avidamente. Filipe sentiu o desconforto a invadi-lo e virou-se rapidamente, dizendo a si próprio que era a confusão e porcaria da jaula que lhe repugnava. Talvez o zoológico real que ele tinha construído para os filhos tivesse sido uma má ideia. A sua quarta mulher, Ana da Áustria, convencera-o de que as raparigas e o jovem príncipe Filipe iriam apreciar as bizarrias enjauladas. Agora ele podia ver que esses animais tão perto do seu meio podiam provocar doenças. Tinha de escrever uma ordem para que os levassem dali para fora.

 

Quando chegou à Câmara do Conselho estavam já à espera três membros da junta de política externa. Este comité era mais casual do que os seus conselhos formais de catorze, com as suas infindáveis catadupas de consultas que Filipe anotava na sua caligrafia esguia antes de os mandar de volta. Estes conselheiros reunidos, com portes e semblantes tão graves como os do seu rei, curvaram-se todos rigidamente enquanto ele ocupava a sua cadeira atrás da mesa e lhes dava permissão para se sentarem. Cada cara, observou Filipe, parecia mais lúgubre do que a anterior. Filipe preferia muito mais ler as consultas que os seus comités lhe enviavam, e escrever as suas respostas, do que estas reuniões cara a cara na qual ele tinha que ouvir e falar e, pior ainda, tomar decisões apressadamente. Filipe pressentia que a junta de hoje ir-se-ia demonstrar particularmente detestável. Bem, era melhor começá-la para que acabasse mais depressa.

 

- Dêem-me notícias da Holanda - ordenou ele, suspirando então aborrecidamente.

 

- Majestade - começou o conselheiro em que mais confiava, Ruy Gómez -, a unificação das dezassete províncias mostrou-se um grande problema. O seu tratado, a que as pessoas chamam - Gómez escarnecia "a Pacificação de Ghent", alinha até mesmo aqueles que anteriormente eram Estados católicos e que vos eram leais, num esforço concertado para expulsar completamente a presença espanhola dos Países Baixos.

 

- O que é que, na vossa opinião - perguntou Filipe a António Pérez provocou uma reacção tão violenta e repentina?

 

- Majestade... - Pérez deteve-se, inseguro acerca de como frasear a sua resposta. Não desejava falar ao rei como um professor a uma criança. Todos nós concordamos que o massacre de Antuérpia é uma causa primária. Os católicos e os protestantes foram chacinados igual e indiscriminadamente.

 

- Mas os cidadãos não compreenderam que estes não eram soldados sob comando de um general espanhol, mas sim amotinados? Que havia tantos alemães nas suas fileiras como espanhóis?

 

O ministro das Finanças de Filipe, Iniigo Ibénez, estava similarmente de língua atada quando tentou explicar ao seu rei que uma pessoa que vê a sua mulher a ser cortada em pedaços por um bando de soldados de Filipe pode ser incapaz de fazer uma tal distinção.

 

- Aliviei o duque de Alba dos seus deveres nos Países Baixos. Não será isso suficiente para satisfazer os Holandeses? - A voz do rei estava a ficar estridente. Irritava-o saber que a presença de Alba tinha tido sobre a rebelião o efeito oposto daquele que Filipe pretendera. - O sucessor dele, o general Requeséns - continuou o rei -, foi muito mais razoável na sua campanha para suprimir a revolta, e o meu meio-irmão Dom Juan, Deus tenha a sua alma, foi no seu curto domínio positivamente clemente. Autorizei-o a oferecer perdão a todos os que tinham pegado em armas contra mim. Prometi cessar a guerra, restaurar o poder de cobrar impostos aos Estados...

 

- Recusastes-lhes perdão da única coisa que eles desejavam acima de tudo, Majestade. Heresia - disse o cardeal Granvelle.

 

- E o príncipe de Orange, embora continue a recusar a coroa da Holanda, tornou-se... pode-se chamar-lhe um herói nacional - disse Ruy Gómez. - Tal como os Espanhóis celebram Dom Juan por ter vencido o infiel em Lepanto, os Holandeses celebram Guilherme de forma muito semelhante. E o que ele está a dizer ao seu povo unificado é que não haverá paz até que os Espanhóis sejam completa e irrevogavelmente expulsos da Holanda.

 

- Absurdo! - gritou Filipe e bateu na mesa do conselho com a palma da mão. Instantaneamente se arrependeu dessa explosão. Não se podia dar ao luxo de mostrar fraqueza aos seus subordinados, Não ficava bem a um rei tão grandioso. - Que planos tem Guilherme para a coroa se não a deseja para si? - perguntou Filipe, tentando trazer alguma frieza de volta à sua voz. - Espera ele seduzir a rainha herética a usá-la?

 

- Parece mais provável que o duque d'Alençon morda o isco, Majestade - lançou António Pérez.

 

- Não está o pequeno gnomo ainda a cortejar Isabel? - perguntou o rei.

- Os dois têm ainda que se encontrar - respondeu Pérez - mas os planos de casamento estão a prosseguir pelos trâmites normais. O costume...

 

Filipe deixou a mente vaguear enquanto o seu conselheiro relatava a informação vagamente irritante enviada de Inglaterra pelos espiões da corte relativamente à dança de acasalamento entre Isabel e o mais novo dos filhos da Médicis. Os Franceses. Há tanto tempo inimigos de Espanha. E no entanto uma tão bela dádiva tinha vindo de lá - a sua amada Isabella. Pelo menos a Casa de Valois já não estava a enviar apoios para os calvinistas holandeses. As lutas internas francesas e a fraqueza de espírito da família real tinham finalmente dado a Filipe uma vantagem formidável. Mas a França aliada à Inglaterra - isso poderia de facto colocar um problema.

 

- ... bancarrota. - A palavra proferida por Inigo Ibénez trouxe Filipe de volta por um instante da sua divagação. - Se não desbaratarmos esta rebelião rapidamente enfrentamos ainda uma segunda bancarrota. Só este ano as nossas dívidas e passivo estão nos setenta e quatro milhões de ducados, Majestade uma soma igual a catorze vezes o rendimento anual da Coroa.

 

Filipe sentiu a sua cabeça a começar a andar à volta. O homem mais rico do mundo era um zero à esquerda nas finanças, nunca tinha compreendido completamente o negócio dos empréstimos e juros. Tudo o que sabia era que os seus navios ainda navegavam pelos seus portos adentro vindos do Novo Mundo carregados de ouro. Como, pelos céus, poderia isto estar a acontecer? Mas mesmo enquanto a questão se formava na sua cabeça a resposta tornou-se clara. Guilherme de Orange tinha ocupado o seu lugar ao lado da meretriz Isabel como o maior inimigo de Espanha. E tinha que ser detido.

 

- Temos que neutralizar o príncipe de Orange - anunciou Filipe subitamente. - Ele tem que ser derrubado forçosamente do campo de jogo, percebem-me? Como uma peça derrubada numa jogada excelente dum tabuleiro de xadrez. - Todo o velho ódio que sentia pelo favorito do seu pai veio ao de cima numa fúria. Guilherme era um biltre, um traidor, um herege. Filipe sentiu a sua cara pálida a ficar vermelha de raiva. - Quero-o morto! disse ele com voz sibilante.

 

Fez-se silêncio entre os conselheiros do rei. Então o cardeal Granvelle falou na mais calma das vozes:

 

- Podíamos declará-lo um fora-da-lei, Majestade. Colocai a cabeça dele a prêmio.

 

- Sim, um fora-da-lei, uma calamidade pública, um assassino de católicos - concordou Filipe. Estava a congeminar este plano, e as palavras rolavam pela sua língua, sem esforço. - Todos os meus súbditos serão proibidos em todos os países, territórios e propriedades que eu governo, de viver, falar, ou comunicar com ele seja de que forma for. Não poderão dar-lhe comida ou bebida ou abrigo sob pena de morte.

 

- Qual será o prêmio por ele, Majestade? - perguntou António Pérez.

- Vinte e cinco mil coroas de ouro - respondeu Filipe calmamente. Alguém se engasgou. Até o próprio rei estava espantado com a segurança e rapidez da sua decisão - e a enormidade do prêmio.

 

Granvelle estivera a escrevinhar numa folha branca de pergaminho.

 

- Iremos nós dar autorização a algum dos nossos súbditos - lia ele agora - suficientemente leais ao seu rei para nos livrar deste homem diabólico, entregando-no-lo vivo ou morto?

 

Ruy Gómez acrescentou:

 

- Se esse súbdito fosse bem sucedido, podíamos igualmente elevá-lo à condição de nobre. E se ele tivesse cometido algum crime, seria perdoado. Filipe abanou a cabeça lentamente. Estava a apreciar imenso esta fantasia do assassinato de Guilherme.

 

- Acho que se esse súbdito leal morresse no acto, tendo sido bem sucedido na execução do príncipe, a sua família deveria receber o dinheiro e as honras em seu lugar. Concordam?

 

Enquanto os seus conselheiros abanaram a cabeça entusiasticamente em consentimento, Filipe sorriu um pequeno mas distintamente agradável sorriso.

 

- Compõe o édito nas tuas próprias palavras, cardeal Granvelle, e eu assiná-lo-ei de imediato. Obrigado, meus senhores. Podem ir-se todos embora.

 

Com os humores consideravelmente elevados, os homens curvaram-se e recuaram pela porta da Câmara do Conselho.

 

Filipe endireitou-se na sua cadeira. Sentiu uma leveza, quase uma flutuação no seu corpo. Vários minutos depois dos seus conselheiros terem partido descobriu que estava ainda a sorrir. E a dor por baixo da sua costela inferior direita tinha desaparecido completamente.

 

O conde de Leicester estava de pé perfeitamente erecto à luz fresca da manhã a olhar para o seu reflexo no espelho alto de moldura dourada. Tinha sido sempre um homem vaidoso, admirado tanto

 

por homens como mulheres pela sua beleza rude e assombroso vigor masculino. Mas a imagem que lhe devolvia o olhar, apercebeu-se ele, já não era tal que inspirasse admiração a quem a via de fora, ou vanglória a quem a via de dentro. Agora com quarenta e cinco anos, há muito que perdera o vigor da juventude. Tinha um ar gasto, e os olhos à sua volta uma máscara dolorosa de rugas. As suas bochechas salientes por baixo do cinzento da barba cintilavam com uma cor pouco saudável. E com a gota a impedir o constante e extenuante montar a cavalo que ele tinha conhecido toda a sua vida, Robin Dudley estava lentamente a ficar gordo.

 

As ricas vestes, pensou ele, voltando-se ligeiramente para um lado, as dobras e cavas em brocado e cetim, as golas e faixas, escondiam de facto um sem-número de pecados. E as barrigas das pernas por baixo dos calções de fina seda estavam ainda firmes e bem feitas. Suspirou. Nesta manhã enquanto estava de pé na opulência doce e prateada de Wanstead House, estava vestido de noivo, mas a noiva que esperava lá em baixo na capela não era aquela com que ele sonhara, há tanto tempo, casar.

 

Ele amava verdadeiramente Lettice Knollys. Mesmo depois de ter dado à luz três filhos, Lady Essex era simplesmente uma mulher deslumbrante, perfeitamente sensual, e combinava com ele ponto a ponto na sua feroz, inextinguível ambição e intriga. Quando se começaram a encontrar ele tinha-se quase perdido de desejo por ela. Moveu mundos e fundos para que o marido dela, Lord Essex, fosse mandado para longe de Inglaterra para as terras selvagens da Irlanda de forma a poderem prosseguir com as suas paixões exorbitantes sem impedimentos. Quando, providencialmente, Essex morrera de febre, Leicester ficou ainda assim tão preso nos braços do desejo que calara todos os rumores de que ele seria - pela terceira vez - o assassino de um esposo indesejado. Até tinha oferecido à sua amante anterior, Douglas Sheffield, uma posição generosa. Indignada, ela recusara e, por fim, aceitando que Leicester nunca seria seu, começara a considerar outras propostas de casamento. Parecia que iria aceitar uma de Sir Edward Stafford, embaixador em França.

 

Leicester conseguira, inacreditavelmente, manter as notícias do caso com Lettice desconhecidas da prima dela, a Rainha, durante mais de dois anos. Lady Essex tinha, como ele próprio, viajado sempre com os mais altos círculos da corte. Talvez, matutou Leicester, Isabel pensasse que ele ainda dormia com Douglas Sheffield. Apesar da criança que ele perfilhara devido às incessantes exigências de matrimónio da parte de Douglas, prometera a Isabel que nunca se casaria com essa senhora. Talvez a Rainha se tivesse acalmado numa espécie de aceitação passiva da sua infidelidade. Talvez estivesse sobrecarregada com assuntos de Estado, ou obcecada com sentimentos de culpa por enviar assistência insuficiente para a Holanda ensopada em sangue. Ou talvez a corte com o duque d'Alençon, e todos os procuradores enviados para a cortejar, fossem mais sérios do que Leicester desejava acreditar.

 

Por vezes tinha parecido irreal, o simples engano e artifício desta relação com Lettice - ambas as mulheres juntas debaixo do mesmo tecto, Lady Essex por vezes a fazer de anfitriã da Rainha. No ano anterior ele tinha dado uma sumptuosa festa aquática de duas semanas em honra da Rainha no Castelo de Kenilworth. Fora um conto de fadas extravagante de fogos-de-artifício e mascaradas musicais, diversões rústicas, requintados cortejos ao ar livre. Tinham vindo pessoas de milhas em redor, para ver a sua amada Rainha bem como os anfitriões. E Isabel ficara encantada com todas as maravilhas que ele criara dentro e fora do palácio - um jardim de prazer com fontes de mármore rumorejantes com água colorida, estranhos animais esculpidos, caminhos pejados de flores e árvores de fruta, campos de morangos prontos a serem colhidos. Entre o pequeno grupo de convidados estava a sua irmã, Mary Sidney, a companhia que Isabel mais amava e de que mais intensamente sentia a falta. Ignorando a face flagelada pela varíola de Mary elas caminharam juntas como jovens raparigas, com as cabeças unidas, os braços à volta das cinturas uma da outra. Lady Essex, como uma qualquer serpente voluptuosa no jardim do Éden, observara em silêncio das sombras, inchada com o seu segredo. Leicester passara a quinzena completamente consumido com culpa e medo de ser descoberto, mas ele era acima de tudo um homem de espectáculo - o Mestre de Diversões da Rainha - e no fim de tudo Isabel nunca se apercebeu de nada.

 

Ele ficara surpreendido pela máquina de escândalos da vida na corte ter de alguma forma falhado no fabrico até do mais ínfimo mexerico sobre o seu mais desprezado membro, para o desacreditar junto da Rainha. Era verdade, ela tinha uma vez confessado a outro dos seus favoritos, Christopher Hatton, que fora um pesadelo - algo acerca de um casamento que lhe faria mal. Mas as suas suspeitas, para grande alívio de Leicester, tinham recaído sobre Hatton. Ele tivera de lhe jurar que não fora com o casamento dele que ela sonhara, e tudo caiu rapidamente no esquecimento.

 

Leicester virou-se do espelho e olhou para fora para o recinto de Wanstead, uma casa outrora em ruínas que Isabel lhe dera, agora magnificamente restaurada. Da janela conseguia ver a capela. Dentro de poucos momentos iria entrar nela e casar com a mulher que estava grávida de sete meses do seu filho. Se Lettice não tivesse engravidado, questionava-se ele, desejaria ainda assim casar com ela? Sim, pensou subitamente. Desejava em alguma parte de si casar com Lettice. Ansiava por filhos legítimos. Irmãos e irmãs como companheiros de brincadeiras uns para os outros, como ele tinha apreciado na sua própria família. Um herdeiro. Podia admitir para si próprio que ansiava um herdeiro, embora a palavra dita em voz alta a Isabel fosse como invocar o Diabo em pessoa. De repente, Leicester sentiu uma onda de calor a subir do peito para o pescoço e rosto, e puxou a janela de pinázios. Deus queira que não seja a febre malária outra vez, pensou ele, engolindo grandes golfadas do ar fresco da manhã.

 

Quando é que ele soubera, finalmente, que o casamento com a Rainha era uma impossibilidade? Que o maior dos seus desejos - ser marido de Isabel e rei de Inglaterra - estava, para sempre, fora de seu alcance? Ela tinha-lhe perdoado Douglas Sheffield e, posteriormente, subira ainda mais na sua confiança e favor do que antes. Então Isabel começara a dar conversa ao príncipe francês de uma forma que desafiava a razão, e Lady Essex começara a importuná-lo.

 

- A Rainha nunca casará contigo - tinha dito Lettice. - já o teria feito, se tivesse essa intenção. Não desejas ser como os homens normais, com mulher e família, e não uma criatura patética, eternamente bajuladora de uma envelhecida e ridícula bruxa real?

 

Leicester tinha, de facto, esperado até ao último momento para realizar este casamento com Lady Essex. Uma qualquer ideia perversa, talvez uma qualquer memória sentimental da sua infância com Isabel, ou a paixão completamente desabrochada da sua longa relação, fizera-o ter uma esperança desesperada de que ela iria mudar de ideias, como um grande navio à vela num vento imprevisível - mudar de direcção e admitir que morreria se não se casasse com ele. Mas naturalmente isto não acontecera, e a cada mês que passava a gravidez de Lettice tornara-se mais evidente.

 

Oh, porque é que ele não tinha simplesmente dito a verdade a Isabel? Pedido a sua bênção para o casamento? Ela rejeitara as suas propostas repetidamente durante vinte anos. Podia ela ser tão pouco razoável ao ponto de presumir que ele ficaria solteiro toda a vida?

 

De imediato a resposta lhe apareceu na forma de uma imagem no seu espírito - uma imagem de Isabel sentada, um espectro pálido e furioso, à espera para condená-lo pela mais pequena infidelidade com Douglas Sheffield. Não, compreendeu ele, se tivesse implorado pela aprovação real de um casamento com Lettice, Isabel tê-la-ia negado. Tê-lo-ia proibido. E tê-lo-ia castigado. Rescindido todas as espantosas ofertas de influência, poder, prestígio e riquezas que lhe conferira com a sua mão amante e generosa. Um dia, Leicester sabia-o, a verdade sobre este casamento chegaria aos ouvidos da Rainha. Talvez por essa altura ele tivesse encontrado já uma forma de pacificá-la, de lhe fazer ver a razão. E talvez não.

 

Oh, como é que ele chegara a isto! Leicester tinha sempre acreditado no princípio maquiavélico de virtú. Que um grande homem podia, por diligência arrojada, controlar uma parte do seu futuro não governado pelo destino. Muito antes, havia concluído que estava de facto destinado a ser o marido de Isabel e rei. Mas se ele estivesse de alguma forma errado e isso não estivesse, na verdade, escrito nas estrelas, então em lugar disso toda a sua paciência, trabalho árduo e intrigas brilhantes teriam por fim que depositar o mesmo prêmio aos seus pés. Ele tinha acreditado nisso em tempos.

 

Mas agora não há nada a fazer. Tem que celebrar o seu casamento com alegria, e esperar ansiosamente o nascimento do seu filho. Com alguma sorte seria um rapaz, e pelo menos o sangue e nome Dudley seriam continuados numa linhagem futura como devia ser. A cerimónia seria breve, apenas três ou quatro testemunhas - todos da família - e um capelão local discreto a presidir. Ele não se permitiria pensar na visita da Rainha a Wanstead programada para dentro de dois dias. Nenhum vestígio do casamento permaneceria. Mandaria Lettice embora, e nos meses seguintes deslocá-la-ia para cima e para baixo no campo para a manter longe da vista da Rainha. Regressar à corte como se nada se tivesse passado. O logro audacioso de tudo isto, pensou Leicester, as mentiras... Seria tudo o que os seus inimigos tinham dito ao longo dos anos acerca dele, perguntou-se, verdade? Era ele o canalha egoísta, arrogante e avaro como indicava a sua reputação, ou antes o amigo bom, preocupado e bom patrono que todos os dias dizia a si próprio que era?

 

Leicester virou-se para mais um olhar para o espelho dourado. Puxou o gibão forrado a bocaxim e meteu para dentro a sua barriga mole. Fizera tudo o que um homem podia humanamente fazer para calcular o seu futuro e desafiar o destino. Agora tinha de aceitar a derrota. Lentamente alterou a sua cara para um semblante de sorriso, atravessou a porta do quarto e desceu as grandes escadas de Wanstead House para se casar com Lettice Knollys.

 

Isabel, no trono, fazia o olhar pairar lentamente sobre a sala e declarou-se satisfeita. Meia dúzia dos seus conselheiros estavam de pé à sua volta em pequenos grupos compostos espontaneamente a discutir, presumiu ela, os seus maiores e menores casos e diversos assuntos de Estado. As suas damas de companhia, caminhando indolentemente por perto à vontade e a darem risinhos abafados com os mexericos, estavam muito bonitas nos seus vestidos da nova moda a preto e branco. Entre todas elas não havia um laivo de cor em lado nenhum, excepto o rosa das faces ou o vermelhão dos lábios. Ela própria se tinha vestido parcialmente à moda, e olhava para baixo com prazer para a sua saia com os seus bordados de seda cosidos ao fundo de cetim completamente negro. Pérolas negras nos pulsos brancos. Pérolas brancas na cabeleira postiça negra. Ainda sou atraente, pensou, com a boca a curvar-se num sorriso subtil, mesmo com a minha idade.

 

Isabel estava satisfeita, e tinha boas razões para isso. Conseguira de certa forma navegar por bancos de areia atrás de bancos de areia políticos e traiçoeiros, pacificar facções que se digladiavam dentro do seu governo, controlar as suas próprias emoções exuberantes, e emergir na luz brilhante do amor do seu povo. Independente dos seus próprios esforços, um culto de adoração tinha de facto surgido para adorar a Rainha Virgem. Todos os escândalos passados que a acusavam a ela e a Robin de serem amantes, com hordas de filhos ilegítimos, haviam desaparecido.

 

Claro que os puritanos eram um incómodo e, potencialmente, perigosos. Esquadrinhou a sala com o olhar mais uma vez e localizou-os instantaneamente entre os seus conselheiros. Os homens eram estranhos com o seu cabelo selvagem à altura dos ombros. Vestiam-se todos de preto, não como uma moda mas como uma vestimenta sóbria, mórbida e rígida como as suas caras. Mas isto era uma ilusão, pensou Isabel, pois os puritanos escondiam-se na violência do discurso - os seus sermões apocalípticos amaldiçoando qualquer vício profundo, reuniões de oração frenética, profecias e a condenação das mulheres iníquas e fúteis. Até davam aos seus filhos nomes ridículos como Reformação, Tribulação, Repente e Dêem Graças. Oh, eram horrendos, estes puritanos, perseguindo os actores para fora das aldeias sossegadas e proibindo os saltimbancos de dançar. Tinham até a audácia de vociferar histericamente dos seus púlpitos contra ela e os seus esforços "inadequados" para reformar a igreja. Às vezes ela desejava que eles desaparecessem todos.

 

Leicester, mais uma vez ausente da corte, era puritano mas razoável. Porém Walsingham, em todas as outras coisas prudente, sofisticado e com uma cultura ampla, era um puritano fanático que teimosamente insistia em colocar a Religião antes do Estado. Se dependesse dele, pensou Isabel com irritação, ela estaria em guerra com todo o poder católico na Europa, e a sua prima Maria seria um corpo sem cabeça em putrefacção. Walsingham havia anunciado - para extremo aborrecimento dela, embora naturalmente nada se pudesse fazer acerca disso - que "desejava em primeiro lugar a glória de Deus e só depois a segurança da Rainha".

 

Bem, apesar dele, apesar deles todos, ela prevaleceria. O Grande Plano da sua mente carregaria o fruto que o seu ventre nunca poderia carregar. O seu Grande Plano.

 

Não tinha confiado a ninguém, a uma única alma, o seu segredo. Pensou outra vez na mãe, no diário que Ana mantivera tanto tempo, todo o seu tempo. E pensou na lição dentro daquele diário. Não confiar em nenhum homem completamente, pois todos os homens são ambiciosos ou intriguistas ou fracos. Até o seu devoto Cecil - o homem que partilhava mais exactamente os seus objectivos e receios políticos - estava a envelhecer. Por estes dias ele apreciava mais balançar os seus netos nos joelhos, e montar um pequeno burro à volta dos caminhos do jardim em Theobalds, do que definir com ela estratégias em assuntos de política externa. E o querido Robin era um problema. A sua oposição fervorosa às propostas de casamento do duque d'Alençon e as suas exigências veementes de uma intervenção militar oficial na Holanda ameaçavam a perfeição do seu Plano.

 

Durante meses ela passara todas as horas em que estava acordada a pensar neste quebra-cabeças. Tinha tido sonhos com ele. Vira com os olhos do espírito grandes mapas do mundo - a Europa, o Oriente, as Índias Ocidentais. Considerara os seus aliados, os seus inimigos. Consultara as estrelas, encomendara a John Dee cartas astrológicas para todos os monarcas do continente. Tinha controlo sobre o Parlamento, rodeara-se de conselheiros sábios cada um à sua maneira mas nenhum, singularmente ou em conjunção com outros, mais forte do que ela. Tinha-se plantado a si própria neste trono e durante vinte anos esperara pacientemente enquanto as grandes raízes verticais do seu poder e autoridade penetravam lenta e profundamente até ao coração de Inglaterra. Ninguém sabia melhor do que ela qual seria o percurso futuro da Grã-Bretanha, pois ninguém a amava ou compreendia mais. Ela era o arquitecto do Plano e, com a ajuda de Deus, o árbitro do seu resultado final.

 

Era tão simples, pensou Isabel, encostando-se às almofadas de penas. Tudo assentava no seu incitamento para a paz ser tão zeloso como o desejo do rei Filipe pela guerra, e no entendimento de que a França e não a Espanha era o maior perigo para Inglaterra. Porque é que mais ninguém conseguia ver o que ela via tão claramente? Talvez na sua condição enfraquecida a França não parecesse apresentar ameaça alguma, mas a antiga inimizade estava profundamente enraizada, e o país era maior e mais populoso do que a Espanha. Mas pior, pela primeira vez na história controlava toda a costa sul do Canal. A ameaça de invasão pela frota francesa era eminentemente mais plausível do que a da Armada Espanhola.

 

O equilíbrio de poder, agora com a França apanhada entre a Espanha no Sul e a Holanda controlada pelos Espanhóis no Norte, tinha permitido que o lucrativo comércio da Inglaterra com a Flandres florescesse durante gerações. Se a Inglaterra destruísse a Espanha e os Países Baixos ficassem sob a protecção - ou mesmo domínio - da França, tudo estaria perdido. A costa europeia desde o Sul da França até às partes mais a norte da Holanda ficariam sob controlo dos Franceses, e as trocas da Inglaterra com o continente totalmente comprometidas. Pior ainda, o custo para manter todo o Sul e Leste de Inglaterra em alerta militar permanente devastaria a economia. Sem estabilidade financeira ela perderia a capacidade de expandir a sua influência na Europa e nas terras inexploradas do Novo Mundo.

 

Havia uma forma, decidira Isabel, uma solução brilhante para o quebra-cabeças. Articulava-se na complexidade da diplomacia, não na agressão bárbara, e assentava no complicado enredo da sua dança de casamento com Alençon. Que todos, especialmente o próprio duque, acreditassem que ela era séria nas suas intenções de casar com ele. Ignorar todos os gritos de raiva dos seus súbditos por sequer considerar casar com um católico, e um sapo nojento como aquele.

 

O príncipe francês já a visitara uma vez durante doze dias, precedido pelo seu representante Simier, um cortesão de uma beleza escura e elegante, adepto dos jogos do amor. E, não obstante, Alençon ser tão feio como a sua reputação o fazia - até mais feio - havia algo de maravilhoso nele. Uma sofisticação desconhecida dos Ingleses e um charme maldoso. "Pequeno mas poderoso", gabava-se ele de si próprio. Assim, apesar da sua aparência - Lord Cecil tinha mesmo contactado um especialista reputado na remoção das cicatrizes da varíola - Isabel achou o namoro suportável, por vezes até mesmo agradável. Cerrara os dentes e deixara os físicos da corte examiná-la e pronunciá-la adequada para ter filhos, pelo menos por mais sete anos. Isabel sorriu. Talvez tivesse falhado a sua vocação. Talvez devesse ter sido actriz teatral, pois não havia um entre os seus conselheiros, até Leicester e Hatton, que não acreditassem na sua farsa. E estavam fora de si com a preocupação.

 

O Plano ficaria completo quando Alençon, encorajado, subsidiado por ela própria e agindo como um potentado independente - independente do seu irmão, o rei de França - firmasse uma aliança com os Holandeses. Tornar-se-ia um herói, um defensor da sua liberdade contra a tirania espanhola. Isto fortaleceria a Holanda contra a Espanha sem o risco da França usurpar os Países Baixos - e sem a guerra aberta e declarada da Inglaterra contra Filipe. Requereria que ela supervisionasse, momento a momento, a situação militar do continente, um passo rápido de intervenção mínima quando seriamente ameaçada, equilibrado pelo retirar das suas hostes quando a ameaça diminuísse. Haveria um sem-número de emissários enviados à Flandres e muitas mediações com a Espanha. Iria, desta forma, adiar qualquer táctica verdadeiramente belicosa indefinidamente, possivelmente até que o perigo passasse por completo. Isabel sabia muito bem que iria, com este método, continuar a levar os seus conselheiros à loucura pela exasperação. Mas os seus instintos mais profundos gritavam contra o confronto com Filipe, e ela estava tão determinada como sempre tinha estado na sua vida a ganhar esta batalha apenas através do compromisso.

 

- Sir Philip Sidney! - gritou o pregoeiro enquanto as portas da Sala do Trono se abriam de par em par e um cortesão, magro e sem barba, os olhos a faiscar de inteligência, entrava rapidamente e caía sobre um joelho em frente à Rainha.

 

Isabel adorava este jovem, filho único dos seus mais queridos amigos, Mary e Henry Sidney. Conhecia-o desde o nascimento e observara a sua transformação num homem soberbo. Mesmo na sua idade, Philip Sidney era o ídolo do mais visível círculo de jovens intelectuais, poetas e dramaturgos em Inglaterra, e era amado universalmente por todas as gerações, não tendo aparentemente quaisquer inimigos. Hoje, contudo, a Rainha tinha-o convocado aqui para uma repreensão. Sidney, alarmado pelo proposto casamento dela com Alençon, endereçara-lhe uma longa carta de protesto, denunciando o carácter traiçoeiro dos Franceses e implorando-lhe que reconsiderasse o partido. Agora Isabel estendia-lhe a mão para ele beijar, e sentia-lhe o fervor da devoção para consigo enquanto ele comprimia os dedos dela nos seus lábios. Com um simples gesto ela afastou todos os cortesãos, conselheros e damas de companhia para fora do alcance da audição, e depois falou apenas em tons sussurrados.

 

- Vem, Philip, senta-te perto do meu joelho - disse ela, e o jovem obedeceu, olhando fixamente para cima em adoração da sua Rainha. - Estou muito zangada contigo, Philip. Não tens qualquer direito de questionar as minhas decisões ou motivos.

 

- Imploro-vos o vosso mais profundo perdão, Majestade, mas tenho que continuar a arriscar o vosso desagrado e manter-me fiel à minha carta. Lembrai-vos, eu estive em Paris na Noite de São Bartolomeu - sussurrou ele ferozmente. - Vi a carnificina com os meus próprios olhos! A família do homem com o qual planeais casar-vos esteve por trás dessa chacina. São inimigos declarados da causa protestante. A mãe dele é um perfeito diabo! O próprio homem é repugnante, a medula dos ossos comida pela devassidão. Não vedes que este casamento ofende os vossos súbditos, Majestade? Não vos importais?

 

Isabel fez tudo o que pôde para não estremecer com as palavras de Philip Sidney, pois sabia-as verdadeiras. Mas não se podia dar ao luxo de ouvir, de deixá-las demoverem-na. Agora pegava na mão dele e segurava-a na sua. A pele era suave, pálida, sem calos - a mão de um cavalheiro. Inclinou-se para baixo e falou-lhe num tom íntimo:

 

- Confias em mim, Philip? Ouviu-o a engolir em seco.

 

- Claro que confio, Majestade.

 

- Então quando eu te digo que amo o meu povo e que não faço nada, nunca, que lhe faça mal, acreditas em mim?

 

Ele debateu-se com a resposta. Aquilo que ele acreditava saber tornava o assentimento impossível. Mas ele conhecia de facto a Rainha, amava-a, e confiava nela muito profundamente. E havia uma cintilação no olhar dela que lhe dizia que havia mais do que ela lhe estava a dizer, talvez desejasse dizer, mas não podia.

 

- Acredito em vós, Majestade. Claro que acredito - disse ele, e deitou-lhe a face sobre as costas da mão branca.

 

- Diz-me - disse ela, a desviar habilmente o assunto -, tens tido notícias ultimamente do teu tutor, o doutor Dee?

 

Philip Sidney sorriu. Sempre o tinha feito feliz falar acerca do bom doutor.

 

- Recebi muitas cartas dele do estrangeiro. Ele está sempre orgulhoso de estar ao vosso serviço, mas por vezes desejava estar mais perto de casa, de MortIake, de vós.

 

- E eu dele - disse Isabel.

 

John Dee tinha-se também ele tornado um membro vital do seu círculo íntimo, com a sua magia bem como com as suas matemáticas, ajudando-a a determinar o destino e futuro de Inglaterra. Walsingham, chefe do seu serviço secreto, tinha-se tornado um bom amigo de Dee, e estava agora mesmo a utilizá-lo como espião no continente.

 

A Rainha sorriu enigmaticamente.

 

- Fecha os olhos, Philip. - Ele fez como lhe disseram. - Agora abre as mãos. - Quando ele as abriu Isabel depositou nelas um volume novo de cabedal gravado com letras a ouro. Antes que ele pudesse abrir os olhos ela disse: - Sabes o que é?

 

- Sim! - Os olhos de Sidney abriram-se completamente e ele rapidamente folheou até à página do título. A Arte Perfeita da Navegação de John Dee. - Oh, Majestade, obrigado! - Folheou e encontrou a dedicatória. - Para Christopher Hatton. - Ele olhou para cima para Isabel. - Ouvi dizer que o investimento de Lord Hatton na viagem do Golden Hind foi de longe o maior.

 

- É verdade - disse Isabel, mais uma vez a suprimir um sorriso. Ela tinha ajudado largamente a financiar a circumnavegação do globo por Francis Drake. Mas era naturalmente um investimento oficioso, uma vez que a lendária pirataria de Drake, com os barcos e portos espanhóis como suas principais vítimas, não podia parecer sancionada pela rainha de Inglaterra em pessoa. Dava, contudo, a Isabel um prazer perverso vingar-se do rei de Espanha desta forma. Fazia um enorme dano no crédito dele, e sonegava riquezas indizíveis dos seus cofres que ele poderia de outra forma utilizar para infligir danos à Inglaterra ou à Holanda.

 

- Dizem-me que é uma viagem extremamente excitante - disse o jovem Sidney. - Que o próprio Drake se passeou pela costa ocidental do Novo Mundo acima do trigésimo paralelo.

 

- Vou contar-te um segredo, Philip. O teu doutor Dee prevê que o Império Inglês se expandirá até essas mesmas costas.

 

- As costas ocidentais da América? - perguntou ele incrédulo.

 

- Correcto. Mas não digas ao meu Lord Cecil, ou receio que ele caia num acesso de apoplexia. Assim, ninguém saberá da nossa conversa sobre este assunto, Philip, nem sequer da minha combinação!

 

Philip Sidney riu-se com agrado e a Rainha juntou-se a ele. Nesse momento as portas da Sala do Trono abriram-se de par em par e o francês Simier entrou de rompante sem ser anunciado. Estava com a cara completamente vermelha e muito, muito zangado, abanava um guarda real de cada um dos braços. As damas sobressaltaram-se com esta visão. Os nobres moveram-se e todos instintivamente - alguns protectoramente para junto e à volta da Rainha, outros para impedir Simier de avançar. Mas Isabel conseguiu ver que ele estava desarmado e acenou para que todos se afastassem.

 

Ele aproximou-se do trono e caiu em ambos os joelhos perante ela, que conseguia ouvir-lhe a respiração arfante e sentir-lhe o coração a querer saltar-lhe do corpo em grandes saltos. Ele ergueu-se sem permissão e ela pôde ver que a sua bela cara estava contorcida de raiva.

 

- Alguém me tentou assassinar, Majestade.

 

O murmúrio na Sala do Trono tornou-se alto e desgovernado.

 

- Silêncio - ordenou Isabel. Virou-se com um ar de simpatia para Simier. - Contai-me o que se passou.

 

- Eu tinha abandonado os meus apartamentos e estava a atravessar o pátio norte quando uma bala... - Deteve-se, como que a reviver o seu encontro de perto com a morte -... uma bala passou a voar a poucos centímetros da minha cabeça. Houve apenas um tiro, e eu corri até ao sítio de onde tinha vindo, onde não encontrei ninguém a não ser um pequeno contingente de guardas do Conselho Privado.

 

Outra onda de falatório a toda a volta.

 

- Silêncio! - gritou Isabel. O coração dela tinha também começado a bater violentamente. - Interrogastes-los, Simier? Eles viram o culpado, alguma actividade suspeita?

 

- Culpado, Majestade? Não houve qualquer culpado excepto um qualquer patife assassino entre os próprios guardas.

 

Como o burburinho ultrajado crescesse, Isabel agiu rapidamente.

 

- Deixai-nos. Todos! - gritou ela, e a Sala do Trono começou rapidamente a ser evacuada. Diversos dos seus altos conselheiros olharam para ela a pedir-lhe permissão para ficarem.

 

O conde de Suffolk falou:

 

- Como podemos deixar-vos a sós com um homem num estado tão agitado, Majestade?

 

- Obrigado pela vossa preocupação, meu senhor. Asseguro-vos, Monsieur Simier não representa qualquer perigo para mim. Fiquem por perto, contudo. Posso precisar de vós.

 

Suffolk e os conselheiros seguiram os outros para fora da sala e fecharam as portas da Sala do Trono atrás deles. Isabel, rapidamente, considerou a aproximação pessoal, utilizando a sua astúcia feminina para acalmar a fúria de Simier, chamando o francês pelo nome afectivo que ela utilizava para ele em privado - o seu Macaco. Não, pensou ela rapidamente, Ele estava demasiado agitado para isso, podia considerar os modos dela condescendentes. Iria adoptar a sua postura mais digna e real.

 

- Agora, Monsieur Simier - disse ela numa voz calma e majestosa estais suficientemente calmo para que possamos falar sobre isto racionalmente?

 

- Oh sim, Majestade - disse ele num tom decididamente amargo. Podemos falar racionalmente, e eu dir-vos-ei a verdade acerca do caso.

 

- Bom - respondeu ela. - Sempre fomos sinceros um com o outro. Isabel esforçou-se por manter os seus traços do rosto imperturbáveis e os olhos ilegíveis, pois as suas palavras eram claramente mentiras. Todas as negociações de casamento entre Simier e ela tinham sido um tecido de engano intrincadamente entrançado.

 

- Não sei dizer qual dos guardas privados me tentou assassinar - disse ele - mas sei muito bem quem esteve por trás da tentativa.

 

- Dizei-me quem.

 

- O conde de Leicester, Majestade. - A cara normalmente bela de Simier tinha-se tornado feia com um ódio cru.

 

Isabel ficou silenciosa e compôs os seus pensamentos e a sua resposta. A acusação de Simier não a surpreendeu inteiramente. Não era segredo nenhum que Leicester era o membro do seu Conselho Privado que mais veementemente se opunha ao casamento dela com Alençon. Robin falava abertamente acerca do seu ódio pelo príncipe francês bem como pelo emissário deste Simier. Isabel tinha, no mais profundo do seu coração, ficado sensibilizada pela oposição de Dudley, e acreditava que no fundo de tudo estava a simples inveja. Apreciara aquele pensamento verdadeiramente. Mas conhecia a mente do conde. Ele era demasiado astuto para ter perpetrado uma tentativa de assassinato sobre Simier. Não serviria qualquer propósito e não era o estilo dele.

 

- Monsieur - continuou ela. - Sabeis que eu vos tenho a vós e ao príncipe na mais alta estima, e que investigarei este odioso ataque sobre a vossa pessoa até o culpado ser descoberto e receber o tratamento severo adequado. Mas quanto à vossa acusação acerca de Lord Leicester, não consigo simplesmente imaginar qualquer motivo. Au contráreo apesar de ele claramente se opor à aliança entre os nossos países, nunca colocaria em perigo com violência a paz futura que um tal casamento garantiria. Além disso, Leicester é o meu mais velho e mais querido amigo em todo o mundo. E o meu conselheiro de maior confiança.

 

- De confiança? - repetiu Sinhora. - Lord Leicester é o vosso conselheiro de maior confiança? - Da voz dele escorria sarcasmo.

 

Isabel sentiu-se, subitamente, como se o sangue lhe tivesse gelado nas veias, e uma estranha premonição de desastre abateu-se sobre ela.

 

- Penso que se isso for verdade, Majestade - prosseguiu Simier

 

a Inglaterra está de facto em grande perigo. Pois esse homem enganou-vos tão traiçoeiramente e durante tanto tempo, que se ele é o vosso amigo mais querido, então não precisais de inimigos.

 

- Dizei-me de que estás a falar, Simier. Explicai essas acusações de imediato e, aviso-vos, é melhor que sejam fundamentadas em factos prováveis ou passareis pelo inferno para pagar.

 

- O conde de Leicester... - disse ele, segurando Isabel com um olhar duro e parado - é um homem casado. Já o é há seis meses. A vossa prima Lady Essex é a esposa dele.

 

Naquele momento Isabel sentiu-se como se o seu corpo tivesse balançado precariamente no trono. Ficou sem fala. Completamente sem palavras. Isto é o que um mudo deve sentir, deu ela por si a pensar, com as palavras a rodopiarem na cabeça mas sem forma de as proferir? Debateu-se para recuperar a voz de modo a poder argumentar com Si-mier. Então entendeu que ele nunca teria feito acusações tão sérias se elas não fossem completamente verdadeiras.

 

Robin estava casado. Robin tinha-a traído. - E há mais, Majestade.

 

Isabel desejou gritar "Não!, parai. Nem mais uma palavra!" Mas continuou com a sua paralisia, completamente desprotegida enquanto o seu inimigo mortal se preparava para lançar ainda outro punhal envenenado para o seu coração.

 

- Eles têm uma criança. Um filho. Nasceu alguns meses depois do casamento. Acho que o vosso mais querido amigo e conselheiro não vos informou das mudanças na sua... situação. Lord Leicester - Si-mier prosseguiu com o silêncio assombrado de Isabel - é considerado por toda a corte excepto vós, Majestade, como um homem vil e perigoso. Um assassino por três vezes. Ele faz o que muito bem quer para conseguir o que deseja. E ele quer que o duque d'Alençon desapareça da vossa vida. Ele está por trás deste atentado sobre a minha pessoa e eu exijo...

 

Isabel pôs-se subitamente de pé. Ainda não tinha encontrado a sua voz mas descobrira que conseguia mexer-se. As pernas pareciam-lhe de madeira e a cara era uma máscara rígida enquanto caminhou silenciosamente passando por Simier. As portas fechadas eram um obstáculo, por isso ergueu o punho e bateu numa. Elas abriram-se de par em par instantaneamente e logo se viu confrontada com a tagarelice dos seus conselheiros, as suas faces preocupadas sobre ela enquanto deslizava através deles, os olhos a ordenar que não a seguissem. A caminhada até aos seus apartamentos pareceu a mais longa da sua vida. Lembrava-se de acenar a todos que se fossem embora, limpando o quarto de dormir das suas damas, para por fim se encontrar completamente sozinha e muito, muito quieta.

 

Então como um grande e terrível furacão Isabel começou a mexer-se selvaticamente. E como o vento começou a gritar, a guinchar e a gemer.

 

Os braços abriam-se-lhe amplamente, deitando abaixo toda a espécie de objectos das mesas e prateleiras, agarrando cortinas penduradas de reposteiros, arrancando-as. Lançou bancos em voo, estilhaçou espelhos das paredes, destruiu inumeráveis jóias e espezinhou pratos no chão. Não se conseguia ouvir a si própria a gritar, mas o som abanava as paredes e corredores muito longe da porta.

 

Os conselheiros que tinham seguido a Rainha até aos seus apartamentos congregavam-se agora na antecâmara, trocando olhares de confusão e alarme. Depois de Isabel ter saído da Sala do Trono, Simier tinha-lhes confessado as revelações que lhe fizera, e embora todos eles soubessem que um dia a tempestade teria que rebentar, inevitavelmente, não estavam preparados para a violência da fúria de Sua Majestade.

 

Os gritos quase inumanos, o vidro a estilhaçar-se, os sons de tecido a rasgar-se e a mobília a partir-se eram insuportáveis para os ouvidos deles, e era sua incumbência, apesar das ordens de que a deixassem com a sua dor privada, assegurar a segurança da Rainha. Decidiu-se que o conde de Suffolk iria enfrentar a tempestade. Indubitavelmente um dos maiores inimigos de Leicester, era não obstante um homem que via as coisas claramente - tinha de facto, quase vinte anos antes, sido a favor de um casamento entre Dudley e a Rainha se essa fosse a forma mais certa de fornecer um herdeiro real. Com um olhar final para os seus pares, Suffolk experimentou a porta do quarto de dormir. Estava destrancada, embora ele tivesse que empurrar com força para abri-la.

 

Lá dentro encontrou uma mesa virada ao contrário a bloquear a passagem e colocou-a direita antes de erguer os olhos com grande agitação. Isabel ficara muito quieta, a Rainha que havia perpetrado tanta devastação pelo seu quarto. Estava desgrenhada, madeixas da sua cabeleira postiça preta de lado e uma manga do vestido preto e branco rasgada e pendurada, expondo a pele nua do braço. A cor carmesim dos lábios estava esborratada à volta da boca, e os olhos, pensou Suffolk, os olhos estavam terríveis, vermelhos e completamente loucos. Deu por si a tremer, pois a visão da sua amada Rainha era ao mesmo tempo horrenda e profundamente triste. Então ela falou. Era um murmúrio baixo e rouco, e ele não conseguiu perceber as palavras dela.

 

- Majestade? - Atreveu-se a avançar uns poucos passos, e então ela repetiu o que tinha dito.

 

- Quero-o morto.

 

- Oh, Majestade, não...

 

- Prendam-no. Mandem-no para a Torre. - Ela estava anormalmente calma. - Levem-no através do Portão dos Traidores. Ele que siga as pisadas do seu pai, avô e irmão através desse portão.

 

- Por favor, pensai, Madame - começou Suffolk. - Deixai que algum tempo passe antes que...

 

- É mau sangue - disse ela quase objectivamente. - Não é completamente culpa dele. Mau sangue. Kat sempre disse isso acerca dos Dudley. Isabel olhou para cima para Suffolk, e embora tivesse estado a falar com ele, pareceu surpreendida por ele estar de pé perante ela. - Vai agora. Vai. Prende-o. Quero-o mesmo morto. Quero-o mesmo... morto.

 

Com isso o corpo da Rainha estremeceu e ela começou a chorar, os seus suspiros de tal forma de partir o coração que Suffolk, esquecendo todo o protocolo, se aproximou dela e embalou Isabel nos seus braços. Ela, não mais a Rainha mas meramente uma mulher enganada e desprezada, permitiu-se ser segurada e reconfortada, embora fosse claro para ambos que nenhum conforto, nenhum ínfimo fragmento de consolação seria encontrado neste dia negro e terrível.

 

Eu tinha sido convocado a Delft, na qualidade de capitão da cavalaria holandesa, para celebrar a investidura do príncipe Guilherme. Ele tinha durante tanto tempo e tão determinadamente recusado a coroa do país cujo destino guiara sozinho no sentido da independência que eu mal acreditava que estava finalmente a acontecer. Desde os dias da Paz de Ghent, os acontecimentos tinham-se sucedido da forma confusa e complicada de todas as manobras políticas. O rei de Espanha enviara o seu mais recente partidário, o duque de Parma, e as suas tropas altamente disciplinadas para arrancar aos Holandeses a sua recém-conquistada libertação. Um diplomata tão brilhante quanto o era como soldado, Parma tinha vencido dúzias de recontros onde outros haviam falhado, simplesmente através do estudo do terreno da Holanda. Ainda mais impressionante, deixara, inteligentemente, promessas de perdão e retorno de propriedades às portas das províncias mais a sul. Num abrir efechar de olhos estas tinham relegado a sua liberdade arduamente conquistada e voltaram-se a submeter ao domínio espanhol.

 

Guilherme, entretanto, fizera tudo ao seu alcance para incitar um monarca protestante estrangeiro a aceitar a coroa holandesa. Todos aqueles holandeses que amavam o príncipe de Orange desejavam fervorosamente que ele se tornasse estatúder, mas para sua consternação ele agarrou-se ao princípio - como uma lapa se agarra à parede de um dique - do Direito Divino dos Reis, e jurando que não possuía tal coisa recusava repetidamente. No seu coração sabia que os Países Baixos nunca poderiam, apesar da sua vontade quase sobre-humana, e da bravura dos Holandeses e Zelandeses, enfrentar Filipe sozinhos. Consequentemente estendeu a pluma dourada da regência à Inglaterra, França e Alemanha.

 

Fiquei dolorosamente desapontado com a minha Rainha que hesitava e gaguejava, continuava a enviar pequenos contingentes de voluntários ingleses para a Holanda, e financiava um exército patético para lutar contra Parma. O príncipe Guilherme mantinha a esperança de que Isabel acordaria daquilo a que ele chamava "o seu longo sonho de paz" e aceitaria a soberania dos Estados, mas tudo o que ela realmente fez foi enviar quinze navios através do Canal transportando o seu prometido, o duque d'Alençon - um imbecil pequeno e moreno com uma cabeça demasiado grande para o seu corpo. Recebido de braços abertos, foi oficialmente nomeado Regente da Holanda. Mas o malvado e desprezível ser não desperdiçou tempo, abandonou a sua causa, e começou a intrigar com Filipe de Espanha para dissolver os Estados e restabelecer a supremacia católica.

 

Traiçoeiro ao extremo, chegou a enviar as suas tropas para invadir Antuérpia, mas elas eram ineptas e mal preparadas, e foram saudavelmente trucidadas de imediato pela guarda de burgueses e pelos cidadãos. O levantamento que Alençon desejava que fosse recordado como a "Fúria Francesa" seria mais correctamente denominada "Farsa Francesa", e uma criatura sem espinha como ele era, recusou a responsabilidade pelo ataque, alegando que tinha sido um simples mal-entendido - o resultado de uma querela entre a sua guarda pessoal e um guarda da porta da cidade holandesa. Um ano depois o duque tinha morrido, alguns diziam que fora envenenado, e embora muitos tenham rejubilado, toda a esperança de uma aliança com a França morria com ele.

 

Assim, por fim, e relutantemente, Guilherme de Orange acedera às implorações do seu país, embora tenha concordado apenas em assumir a seu cargo a administração da Fazenda, e responder à vontade dos Estados Gerais.

 

Nos anos anteriores eu tinha aberto o meu caminho através da hierarquia do exército de Guilherme e dera por mim na presença do grande homem em diversas ocasiões. Ele tinha-se, espantosamente, lembrado de mim e do nosso primeiro encontro - eu um reles soldado do exército inglês vindo com notícias do cerco suicida da minha companhia. Agora havia requerido pessoalmente a minha assistência na sua coroação, e o meu orgulho não tinha limites.

 

Tinha cavalgado pela guarnição de Delft dentro e estava deliciado por me ir encontrar com o meu velho amigo Partrídge. Este ascendera na hierarquia na qualidade de perito em cifra, e tinha de facto encontrado um lugar permanente ao lado de Guilherme. Na minha primeira noite na cidade visitámos uma taverna popular e sentámo-nos a beberricar boa cerveja holandesa, e a banquetear-nos com o arenque e empadas que ambos, após muitos anos na Holanda, considerávamos como acepipes. O meu roliço Partrídge tinha-se, sem o exercício do campo de batalha, tornado positivamente redondo, mas cintilava de vitalidade e com a sua costumeira boa natureza.

 

Apesar da nossa fidelidade continuada para com Guilherme e a causa holandesa, éramos não obstante ingleses nos nossos corações, e caímos imediatamente numa conversa sobre a pátria. Enquanto a família dele estava a diminuir - um surto de mortes prematuras - a minha estava a crescer. Tinha sobrinhas e sobrinhos em que nunca tinha posto os olhos em cima, e o meu irmão John, felizmente, ultrapassara a sua dissipação o suficiente para casar e começar a gerir a Coutada de Enfield com alguma verosimilhança de ordem. O meu pai estava a envelhecer e aleijado das pernas, mas escrevia regularmente e declarava constantemente o seu amor por mim. Tinha há muito tempo perdoado a minha deserção de junto dele, dizendo que, honestamente, esperara que eu ficasse, e que tinha a certeza que eu estava destinado a subir na vida. Essas cartas faziam-me sempre sorrir, saber que um homem podia ter o seu segundo filho numa tão alta estima. Quando já íamos no nosso terceiro prato de peixe, Partrídge e eu começámos a debater ruidosamente os esforços do príncipe Guilherme para trazer Lord Leicester para a Holanda para administrar o país.

 

- O teu querido amigo, o conde - disse Partridge, que tinha por várias vezes ouvido a história do nosso encontro na Coutada de Enfield -, está demasiado ocupado a desviar-se dos punhais da Rainha para vir para cá. Duvido que ela lhe desse uma tão alta comissão, nos sarilhos em que ele está metido.

 

- Ouvi dizer que ela lhe perdoou - disse eu sentindo-me como uma velha alcoviteira. Os Ingleses apreciavam de facto os seus mexericos. - Esteve sob prisão domiciliária apenas durante uma semana, e não foi sequer mandado para a Torre, embora Lady Leicester não esteja autorizada a aproximar-se da corte.

 

- Diz-me - disse Partrídge a gesticular para o estalajadeiro pelo que parecia ser a nossa vigésima rodada de bebidas -, achas que a Rainha alguma vez teve intenção de se casar com o pequeno sapo nojento, ou não? Diz-se que ela e Alençon trocaram anéis antes dele abandonar Inglaterra com um bolso cheio de dinheiro dela. - Partridge enfiou um arenque gordo na boca e depois de mastigar por um momento enfiou os dedos lá dentro até ao fundo e tirou uma espinha.

 

- Bem - disse eu, menos do que sóbrio mas ainda não completamente bêbedo - ela nunca casou com ele, e eles cortejaram-se durante cinco anos. Não consigo acreditar que ela considerasse Alençon para marido. É demasiado requintada. - Sorri sentimentalmente, então, recordando a graça, beleza e força da Rainha, a visão dela num alto cavalo naquele dia há tantos anos.

 

- Bem, ele está morto agora, Deus seja louvado. E que o Diabo o tenha. Ergui o meu copo para secundá-lo.

 

- Então, Partridge, vens comigo às prostitutas quando tivermos acabado aqui? Podes-me mostrar as melhores casas. - Eu tinha estado no campo durante muitos meses e ansiava pelo toque suave de uma mulher. O general RoostfÓra para outro comando e a sua sempre fiel Marje tinha ido com ele.

 

Partridge não chegou a responder à minha pergunta, exceptuando um ruidoso arroto. Eu olhei para cima para ver que ele tinha parado de comer e tinha um ar muito estranho na cara.

 

- O que foi, Partridge? Estás doente? - espreitei para os olhos dele. Estás bêbedo?

 

- Estou desconfortável, embora não esteja doente - admitiu. Então hesitou, olhando-me cuidadosamente antes de voltar a falar. - Mas já não vou com mulheres.

 

A afirmação dele teve o efeito de me espantar, como um peixe deitado no convés do navio, atingido com uma grande moca.

 

- Está tudo bem, Arthur - acrescentou ele com um esgar lascivo. Eu não gosto de homens tão velhos como tu. - Então deu uma risadinha como um rapaz tonto e, contra a minha vontade, contagiou-me. Mesmo enquanto ríamos eu sabia que devia estar repugnado e ofendido com uma tal perversão, mas talvez as grandes quantidades de cerveja consumida tivessem esbatido todos os juizos. Ou talvez eu estivesse mais profundamente imbuído das lições de tolerância do príncipe Guilherme do que alguma vez imaginara.

 

- Não sentes falta do amor de uma mulher, da sua doçura? - perguntei eu sentindo-me genuinamente perplexo.

 

- Às vezes eles vestem-se de raparigas - sussurrou ele embriagado. E nunca dás pela diferença até que as suas saias são atiradas por cima das suas belas caras pintadas. - Inclinou-se sobre a mesa conspiratoriamente. Arthur, não irias acreditar no que...

 

- Não digas mais, Partrídge! Receio ter ouvido tudo o que preciso de saber... e até mais.

 

Ele inclinou-se chegando mais perto.

 

- O meu segredo está seguro contigo, então?

- Perfeitamente - assegurei-lhe eu.

 

- Ah, que grande amigo tu és - disse ele, agarrando na minha mão do outro lado da mesa. Ambos olhámos para baixo para as nossas mãos juntas, depois para cima um para o outro e rugimos de riso novamente. Quando por fim acalmámos ele respirou satisfeito e disse: - Queres vir comigo quando eu amanhã for visitar o príncipe Guilherme? Logo após a refeição do meio-dia. Em casa dele. Ainda não conheces Louise.

 

Eu senti-me instantaneamente sóbrio, quando a menção da nova esposa do príncipe me recordou a morte dolorosa de Charlotte, o seu verdadeiro amor. Foi uma perda trágica, e completamente às mãos do rei Filipe, aquele tirano cuja malvadez real tinha finalmente começado a compreender. Vários anos antes o monarca espanhol tinha oferecido um prêmio de

25 mil coroas de ouro pela cabeça do seu inimigo, e desde então tinham sido perpetrados cinco atentados contra a vida de Guilherme. Numa, o atacante disparara a tão curta distância que o cabelo e barba de Guilherme haviam explodido em chamas. Noutra, o aspirante a assassino - um monge dominicano - enfiara uma bala através duma artéria no pescoço do príncipe mesmo abaixo da orelha, um sítio que não podia ser adequadamente ligado sem o sufocar. A vida dele tinha sido salva por Charlotte que - ela própria a semanas apenas de dar à luz - ficou sentada numa vigília pelo seu marido dia e noite durante oito dias, estancando o sangue com os seus próprios dedos. Por fim, a ferida começara a sarar, mas a preocupação e exaustão tinham cobrado um terrível preço. Em poucos meses a bela senhora estava morta. Com uma casa cheia de crianças pequenas e órfãs de mãe, Guilherme desposara uma mulher mais companheira do que apaixonada, filha dofrancês huguenote Coligny, que ele esperava que lhes trouxesse a todos algum conforto.

 

Eu estava contente por me encontrar na companhia de Guilherme de novo, especialmente sob tão agradáveis circunstâncias como as que Partridge propusera. Porém, nunca tinha sido admitido na privacidade da casa dele. Aceitei rapidamente o convite, esperando que o meu amigo se lembrasse dele no dia seguinte quando estivesse sóbrio.

 

Estava uma bela tarde de Verão enquanto caminhávamos através das ruas de Delft na direcção do Prinsenhof. Toda a cidade fervilhava com grandiosos e alegres preparativos para a coroação de Guilherme, tendo sido planeado um cortejo aquático. Ruas já imaculadas eram esfregadas uma e outra vez, as casas ao longo do percurso do cortejo recebiam novas camadas de tinta, erigiam-se monumentos, palcos para espectáculos e penduravam-se coloridas bandeiras. Os canais estavam apinhados de barcaças de flores e, enquanto passávamos por uma ponte baixa, eu consegui ver uma com tulipas vermelhas, milhares delas. Dei um toque no braço de Partridge e apontei. Parámos por um momento a olhar enquanto a barcaflutuava passando por nós. As nossas mentes - sem que se proferisse uma palavra - vaguearam ambas para trás nos anos até àquele campo de batalha em Gouda. Partridge tirou o chapéu e colocou-o sobre o peito.

 

- Pobre Hirst - sussurrei eu.

- Deus tenha a sua alma.

 

Continuámos a caminhar em silêncio, eu a pensar em como a morte era uma ladra, com um olho arbitrário. Naquele dia sangrento ela tinha percorrido aquele campo vermelho como um salteador que escolhe uma ninharia que lhe agrada ao olho e deixa para trás muitas outras de igual valor.

 

Chegámos à Prinsenhof, um convento renovado, e fomos conduzidos à antecâmara. Era uma casa grande, embora mobilada com mais simplicidade do que muitos considerariam ser adequado para um homem da condição de Guilherme. Perguntei-me se talvez os seus anos de privação enquanto soldado não lhe teriam refreado a sua apetência pela grandiosidade. De repente, caíram-nos em cima duas das bonitasfilhas do príncipe que correram em círculos à volta das nossas pernas e puxaram os nossos casacos até a sua nova madrasta, Louise, aparecer da sala de jantar do andar de baixo, e com admoestações gentis, mas firmes, as mandou brincar para o quarto de jogos. Implorou-nos que esperássemos apenas mais um momento, pois o seu marido estava quase a acabar o jantar. Precisamente nesse momento as portas da sala de jantar abriram-se e o príncipe Guilherme apareceu com a sua irmã, a condessa Schwartzburg, e um burguês da cidade cujas proporções e comportamento eram misteriosamente parecidas com as de Partridge. Louise começou as apresentações, mas então Guilherme, com um esgar a avivar a sua cara cansada, e com um braço à volta de ambos os homens portentosos disse: "Minha querida, não é preciso apresentar estes dois. São pai e filho!" Todos rimos da pequena brincadeira. O príncipe irradiava de prazer por me ver novamente e agradeceu-me com humildade por vir a Delft para a sua coroação. Ele era um homem tão caloroso e gentil, e eu sentí-me feliz por vê-lo tão despreocupado e feliz.

 

O burguês despediu-se de nós e saiu. Então, ainda a sorrir, Guilherme pediu-nos que nos juntássemos a ele no seu escritório que era no segundo andar. O que aconteceu a seguir lamentei-o eu todos os dias da minha vida desde então, e nenhuma quantidade de reconforto de amigos que dizem que eu nada podia ter feito para o impedir aquieta a minha mente ou alivia a dor do meu coração,

 

Sem qualquer aviso, um jovem pequeno e borbulhento emergiu das sombras debaixo do vão de escadas. Eu mal tive tempo para pensar, "Que sítio estranho para um criado estar", quando ele afastou a sua capa, fez surgir uma pistola e disparou em cheio sobre o peito de Guilherme. Mesmo com os meus instintos de soldado eu não estava preparado para um acto tão violento num contexto tão sereno, e fui surpreendido como um imbecil. No momento em que tentei agarrar o homem ele tinha saído por uma porta lateral. Persegui-o. Ele lançou no meu caminho uma grande pilha de caixotes que tinha talvez colocado ali com esse mesmo propósito e eu tropecei, amaldiçoando-me profundamente. Enquanto o perseguia pelos estábulos e pela estreita rua abaixo rezei com toda a minha força pela vida do príncipe...

 

mas sabia com certeza que ele nunca poderia sobreviver a uma ferida como aquela que lhe fora infligida. O meu ódio por este assassino cobarde crescia a cada passo que me aproximava dele, e pensei "Vou desfazê-lo com as minhas próprias mãos. Arrancar-lhe os olhos. Tirar-lhe para fora o coração..." Ele tinha acabado de saltar para cima de um muro de canal e parecia estar a soprar freneticamente para dentro de um par de bexigas de boi. Pulei. Ele tentou saltar para a água com aquilo que eu me apercebi nesse momento serem flutuadores para a sua fuga pelo canal, porém, dei-lhe um sacão por trás e atirei-o ao chão. Por essa altura, Partridge e alguns homens da casa tinham chegado para ajudar a submetê-lo. Mas não havia nada para submeter. Ele estava deitado quieto, a sorrir serenamente para nós, aquela abominação extasiada de cara, repetindo uma vez atrás doutra: "A minha alta e sagrada missão cumprida, a minha alta e sagrada missão..." Partrídge teve que impedir a minha mão de o estrangular.

 

Balthazar Gérard. Um borgonhês católico fanático. Desde os doze anos que acreditava que o seu destino sagrado era tirar a vida ao príncipe de Orange. Numa reviravolta irónica do destino, nem sequerfora pelas 25 mil coroas de Filipe que ele tinha morto o Pai da Pátria, mas pela graça de Deus. Graça de Deus.

 

Como num sonho, forçando-me a pôr um pé à frente do outro, regressei à Prinsenhof para encontrar Guilherme deitado num sofá da sala de jantar. Ensanguentado e com a cara cinzenta, agarrava-se à vida, Louise agarrando-lhe a mão junto do seu coração. Toda a gente chorava - mulheres, crianças, homens - pois todos amavam este homem tão apaixonadamente, ele que tinha amado o seu país até à morte. Quando sentiu o último sopro de vida a esvair-se, o bom príncipe de Orange convocou a sua voz e gritou: "Deus tenha piedade da minha alma, Deus tenha piedade do meu pobre povo!" e então fechou os olhos e morreu.

 

O povo ficou inconsolável, pois ele fora enquanto vivera - como se leria mais tarde no seu epitáfio - a estrela-guía de toda uma brava nação, e quando ele morreu as crianças choraram nas ruas. Eu chorei-o mais tempo e mais profundamente do que qualquer outro homem ou mulher que alguma vez tivesse conhecido. Subitamente, com a perda de uma única pessoa, todo um país era um sítio desconfortável e infeliz para eu residir. Não obstante, regressei à cavalaria, pois o único amor que restava na minha vida eram os cavalos. Além disso, eu era um soldado e esta era a única guerra que importava. O meu coração tinha sido partido, mas eu continuava ainda a lutar.

 

Durante mais de um ano observei desolado como os bons trabalhos de Guilherme na Holanda, desprovidos da sua liderança, começaram a desfazer-se.

 

Parma e o seu exército estavam, grande cidade após grande cidade, a devorar os Países Baixos, e todas, menos as províncias do Norte, tinham caído. Pela primeira vez, dei por mim a questionar o destino, mas tinha durante tanto tempo acreditado na força dele que não conhecia outra forma de proceder. Foi neste estado de espírito que recebi notícias da minha irmã Alice de que o nosso pai estava moribundo. Demití-me da minha comissão no exército holandês e empreendi a passagem de volta a Inglaterra.

 

Coutada de Enfield. Da pequena elevação eu conseguia ver na luz dourada dofim de tarde todo o bosque, os enevoados pântanos do Sul à distância, o fumo a sair das diversas chaminés da casa senhorial. Estava, porfim, em casa.

 

Desta vez a travessia do Canalfora calma e deixara-me mais enjoado do que amedrontado, porém cheguei a terra com o desejo de nunca mais atravessar aquelas águas. Tinha cavalgado directamente de Harwich, parando apenas para alimentar e dar de beber ao pobre pequeno cavalo esgotado que agora montava, a única montada que eu tinha sido capaz de comprar com tão pouca antecedência. Precisava de descansar comfrequência pois de outra forma receava que ele iria entrar em colapso total. Debati-me para ter paciência com ele, sabendo que a culpa não era dele, mas estava desesperado para chegar ao meu destino. A carta de Alice tinha sido clara. O pai estava a definhar e começara a sofrer. Estava a agarrar-se ao fino fio de vida até me poder voltar a ver uma última vez. Eu tinha horror de qualquer criatura em sofrimento, especialmente por minha causa, e quanto mais perto chegava de Enfield, mais agudo era esse tormento de ansiedade.

 

Grato por estar a descer, e talvez sentindo a minha antecipação - ou pelo menos o cheiro dos estábulos - o velho cavalo aumentou a velocidade para um galope rápido. Passei pelos portões e entrei no pátio. Tudo estava quieto e quase deserto. Os estábulos, normalmente a fervilhar de homens e animais, estavam silenciosos, as grandes portas já fechadas para a noite. Mas a Casa de Enfield parecia na mesma, como se o tempo tivesse parado. Não estava maior nem menor do que eu me lembrava, não mais desleixada ou arrumada. As gelosias cobertas de hera por baixo da janela do quarto de jogos eram ainda suficientemente espessas e fortes para aguentar o peso de um rapaz de oito anos a escalar para fugir. Eu sabia que lá dentro estava toda a minha família, no seio da qual seria em breve bem-vindo. No entanto, enquanto desmontava, senti-me um estranho. Tentei recordar-me da minha partida, e que boas razões me teriam mantido longe da minha casa e parentes por tanto tempo. Mas não havia tempo para reflectir.

 

Sem barulho entrei pela porta da frente. Algumas crianças - as minhas sobrinhas e sobrinhos, supus eu - estavam reunidas no grande salão fazendo o possível para estarem tranquilas, embora quando eu passei discretamente por eles tenha ouvido um riso infantil e diversas outras vozes abafadas a silenciá-lo. Subi as escadas dois degraus de cada vez e cheguei lá acima por trás de um grupo de parentes à porta do quarto do meu pai. Alice víu-me primeiro e rebentou em lágrimas enquanto corria para os meus braços. Os outros rodearam-nos e naquele círculo cerrado encontrei as mais doces demonstrações de amor, caras familiares - mais velhas e mais gastas, embora não menos adoráveis aos meus olhos.

 

- Graças a Deus que vieste! - gritou Meg apertando ambas as mãos à volta da minha cintura. - Ele só chama por ti, Vou dizer-lhe que estás aqui - disse ela, e entrou rapidamente no quarto a murmurar: - Graças a Deus, graças a Deus.

 

- Arthur, apresento-te a tua cunhada, Kate - disse John cujos olhos estavam raiados de vermelho de chorar. Deu um passo para o lado e a sua mulher, uma pequena criatura com olhos inquiridores em forma de amêndoa deu um passo em frente. Mesmo comigo a dobrar-me para a beijar ela teve que se colocar nas pontas dos pés para chegar até mim.

 

- Que pensas de voltar a casa depois de tanto tempo, Arthur? - perguntou ela bastante impulsivamente. - Diz-nos qual é a tua primeira impressão. Eu pensei por um momento.

 

- É estranho estar num país que não está em guerra. De repente sou um soldado no meio da paz. - Virei-me para John e Alice. - O que pensam de me ver entre vocês novamente?

 

- Apenas que cresceste - disse John, esboçando um caloroso sorriso. Meu Deus, estás uma cabeça mais alto do que qualquer um da nossa família! Alice estava à espera para me dar a sua resposta.

 

- É tão bom que estejas em casa connosco, irmão. Que estejas onde deves estar.

 

Meg emergiu do quarto, a cintilar. Deu um passo para o lado para me deixar entrar. A visão do meu pai era menos terrível do que eu tinha imaginado. A sua cara e corpo estavam mirrados efracos, mas ele estava sentado na sua cama apoiado nas almofadas, e assim que me viu os seus olhos brilharam de alegria, e não de dor como eu esperara. Abriu os braços de repente a toda a largura e no espaço daqueles vários passos na direcção dele, os meus próprios olhos encheram-se de lágrimas. Agarrou-me com força e eu beijei-o - as suas faces, a sua cabeça, as suas mãos. Eu, a sua maior alegria, tinha-me mantido longe da vista dele durante todos estes anos.

 

- Arthur... - a voz dele era fraca.

 

- Oh pai, obrigado por esperares. - Eu mal conseguia falar devido ao meu choro. - Se tivesses morrido antes de eu chegar nunca teria conseguido viver de bem comigo próprio.

 

Então para surpresa minha ele ríu-se, não uma gargalhada mas de qualquer forma um riso. Eu afastei as lágrimas e observei-o de perto. Ele estava a sorrir com um sorriso malandro.

 

- Eu tinha que esperar, sabes. Se eu tivesse morrido antes de tu chegares - disse ele - iria seguramente parar ao Inferno.

 

- Que coisa! - exclamei eu. - O que queres dizer com isso? Tu, de todas as pessoas, pai, ires para o Inferno.

 

- Arthur, restam-me muito poucas forças, e há algo que eu tenho que te dizer. Foi por isso que eu consegui enganar a morte durante tanto tempo. Foi por isso que esperei.

 

- O que é, pai? - vi-o a olhar para mim firmemente. - O que é que pode ser tão importante? Tens que me dizer! - Uma última hesitação, então. - Tu não és meu filho.

 

Olhei para ele com ar estúpido. Não me lembrava de nada para dizer.

- Nem Maud era a tua mãe.

 

- Eu fui... adoptado?

 

- Quando tinhas apenas uns quantos dias de idade. - Os olhos dele fixavam-se num ponto além de mim. Parecia estar a lembrar-se. - Um minúsculo rapazinho com um par de pulmões como roncos. - Agora ele segurava a minha mão na dele e agarrava-a com a pouca força que lhe restava. Eu amei aquele bebé desde o primeiro momento em que lhe pus a vista em cima.

 

- Não interessa de quem eu nasci - insisti eu ferozmente. - Quando me adoptaste eu tornei-me teufilho!

 

- Sim, tornaste-te de facto meu filho. Mas eu estou a morrer, Arthur. E quero que saibas que não és órfão. Os teus pais... - hesitou - estão vivos.

- Não tenho qualquer desejo de os conhecer! Eles desistiram de mim.

 

Nunca gostaram de mim, não me educaram, não me mostraram como viver. Nunca me amaram!

 

O pai olhou para o outro lado, incapaz de me olhar nos olhos. Disse gentilmente:

 

- Eles não sabem que estás vivo.

 

Uma estranha premonição de gravidade envolveu-me subitamente como se o meu verdadeiro destino pudesse ser vislumbrado outra vez. Não claramente, mas de imediato atrás de uma espessa parede de nevoeiro.

 

Então numa voz tremente de sentimentos, o meu pai disse-me os nomes dos meus pais e as circunstâncias do meu nascimento. Eu fiquei quieto como uma pedra enquanto ele falava e lembro-me de desejar desesperadamente que ele não me deixasse, que pudesse de alguma forma continuar a viver. E também de esperar com toda a minha força que o que ele estava a dizer fosse mentira, apenas os delírios de uma mente moribunda. Pois de repente tudo o que eu sabia, todo o meu passado, tinha-se tornado numa mentira, e o meu futuro num atoleiro. Eu não era eu. Era algo mais. Algo menos.

 

- Perdoa-me, Arthur - ouvi-o dizer. - Podes perdoar-me?

 

- Não há nada a perdoar, pai. Mas que devo eu fazer? - Senti-me como uma criança pequena outra vez, impotente, um estranho na minha própria vida. Os olhos dele tinham-se fechado e ele ficou subitamente muito quieto contra a almofada. - Pai!

 

Vi a boca dele mexer-se, mas nenhum som emergia dela. Frenético, coloquei o meu ouvido junto dos seus lábios e ouvi um terrível ruído chamado Morte a erguer-se da garganta dele. Então, entre estes sons de morte ouvi as palavras, tão fracas que mal eram discerníveis.

 

- Vai ter com eles. Vai ter com eles.

 

- Alice, Meg, John, venham depressa! - gritei eu. A porta abriu-se e lá estavam eles a amontoar-se em volta da cama, cada um encontrando um local no corpo do nosso pai para agarrar ternamente enquanto a alma se lhe erguia para fora dele. Então, morreu.

 

Deitámos o meu pai num simples ataúde no grande salão e nos dias que se seguiram toda a família, amigos e vizinhos acorreram para prestar os seus respeitos. Eu fui entretanto apresentado às minhas jovens sobrinhas e sobrinhos, cada um dos quais via como que através de uma cortina de gaze, pois sabia que eles não eram - como os pais deles -, embora me fossem queridos, da minha carne e sangue. Lutei para ser forte, para celebrar a longa vida temente a Deus e a morte pacífica do meu pai, mas o meu coração e a minha mente bramiam num redemoinho terrível.

 

Vai ter com eles.

 

Lord Leicester o meu verdadeiro pai. A rainha de Inglaterra a minha mãe. Era inacreditável, impensável.

 

Enterrámos Robert Southem no coração do bosque, e quando a pazada final de terra era enviada para dentro da sua sepultura, eu quebrei. As lágrimas cegaram-me. De alguma forma encontrei a minha montada, saltei para a sela e fugi dali num galope. Feliz por me perder na mais profunda parte da floresta passei como um trovão pelos carreiros estreitos, os ramos a chicotear-me a cara. Cavalgara tantas vezes neste bosque em caçadas, mas hoje não tinha coração para matar nada vivo. Tinha visto demasiadas mortes. Demasiado sangue. Tinha perdido o apetite de ser soldado. Tinha perdido dois pais - Guilherme e Robert. Tinha perdido um mundo familiar. O que devia eufazer?

 

Vai ter com eles.

 

Como podia eu fazer tal coisa? Enfrentar Isabel e Leicester, convencê-los de que sou filho deles? Como posso eu convencer-me a mim próprio? Por fim estaquei a minha montada. Desci, sentei-me, com as costas contra uma árvore e tentei pensar claramente, delinear um plano. A minha mente ficou de imediato em desordem. Ela era a Rainha Virgem. Amada. Reverenciada. Tentei-me lembrar da visita deles à Coutada de Enfield. Na verdade era demasiado novo para entender tais coisas. No entanto eles tinham sido conhecidos como amantes. Tinha havido sempre rumores de filhos bastardos. Mas seguramente que eram rumores falsos, e as pessoas tinham sido castigadas por tagarelice.

 

Por um momento tentei encaixar a ideia para mim próprio, como faria com uma nova bota. Eu era ilegítimo, um bastardo. O bastardo da Rainha. Sangue real corria nas minhas veias. O sangue de Henrique Tudor que tinha roubado a coroa ao rei Ricardo. O sangue do grande e terrível Henrique VIII. Eu era neto dele.

 

Não. Impossível. Completamente impossível.

 

Lembrei-me da confissão do meu pai no leito da morte. A história do meu nascimento numa noite de tempestade, a troca de uma criança morta por mim. Kat Ashley. William Cecil. Levantei a minha mão esquerda em frente à cara, olhei para o sexto dedo. Ana Bolena tinha tido seis dedos na sua mão esquerda. A mãe de Isabel. A minha avó.

 

Vai ter com eles.

 

Tinha sido um soldado, enfrentado os meus inimigos, dado provas da minha força e coragem no campo de batalha. Agora de repente acobardava-me com a ideia de falar com as duas pessoas que me tinham trazido à vida. Levantei-me, montei no meu cavalo e cavalguei até à Casa de Enfield. Iria despedír-me da minha família mais uma vez e cavalgar para Londres para confrontar Isabel e Leicester. Nada mais havia afazer.

 

Londres. A minha primeira visão da cidade a partir de um pequeno barco a remos de madeira no Tamisa foi a dos campanários pontiagudos das suas igrejas a furarem através de uma camada espessa de nevoeiro do rio. Tantas, pensei eu. Se havia tantas igrejas, quantos milhares de pessoas deveriam residir aqui? À medida que o remador remava rio acima, as quintas e pastagens deram lugar a povoações que se aproximavam cada vez mais umas das outras, até que agora a margem era uma massa compacta de edifícios e docas. O tráfico de grandes navios à vela, botes e esquifes tinha-se multiplicado, e agora a toda a nossa volta havia comércio na água de todas as formas e feitios.

 

Um barqueiro queimado pelo sol que estava sentado à minha frente, com os seus braços de remar do tamanho de três pernas, lançou o queixo na minha direcção.

 

É a primeira vez que vem à cidade, Sir?

 

É assim tão óbvio que eu sou um novato? - disse eu, sentindo um rubor a erguer-se do meu pescoço para as bochechas.

 

- Consigo sempre ver pelos olhos - respondeu ele. - Quanto maiores eles ficam à primeira visão do sítio, menos vezes o viram. Os vossos estão do tamanho de discos. - Sorriu de uma forma amigável.

 

Eu disse-lhe que tinha estado fora a lutar na Holanda.

 

- Bem - disse ele - mais podem estar para ir em breve, pois a Rainha está a reunir um exército, lá isso está. Oi, olhe ali. - Apontou, novamente com o queixo, para a margem sul do rio, mostrando-me as duas maiores casas de entretenimento de Londres, o teatro das lutas de ursos e a casa de espectáculos - as quais, acrescentou ele, eram praticamente o mesmo na opinião dele.

 

Felizmente o nevoeiro estava a dissipar-se com o sol da manhã e assim eu pude ver a extensão da cidade - quase inimaginável - e as luzes a cintilarem tão brilhantes na água que se podia fingir não se ver a sujidade castanha na superfície dela.

 

- A Torre? - perguntei eu acerca de uma fortaleza maciça de pedra à beira da água.

 

- Sim, é um sítio de que eu espero nunca ver o interior, pessoalmente lançou ele. - Dizem que o fantasma da meretriz de Henrique ainda calcorreia as suas salas.

 

O fantasma da meretriz de Henrique. A mais infame habitante daquela infame torre. A minha avó. Quantos outros da minha família tinham colorido o pátio com o seu sangue traidor? Arranquei-me a tais pensamentos, pois sabia que se permitisse a mim próprio demorar-me demasiado tempo em tais coisas nunca iria em frente com o meu plano.

 

- Agora mesmo em frente a vós - anunciou o barqueiro, sem sequer se virar para ver ele próprio - está a glória de Londres. Ali está seguramente uma das grandes maravilhas do mundo.

 

Olhei de olhos esbugalhados para uma enorme parede que atravessava o rio e surgia agora perante mim. Não era como nenhuma outra ponte que eu alguma vez tivesse visto. Não era simplesmente enorme, de grandes blocos de pedra, espessos pilares e arcos estreitos, mas construída de uma ponta à outra com casas altas, e apenas uma ponte levadiça no centro para deixar passar os navios de mastros altos. O meu primeiro pensamento ao ver a Ponte de Londres foi a substância dos pesadelos de infância - as cabeças cortadas e corpos esquartejados que se dizia que se espetavam em postes nos extremos dela. E não fiquei desapontado, embora mal conseguisse ver as partes macabras devido à multidão de melros que se banqueteavam e lutavam por elas.

 

- É melhor que se agarre, Sir - disse o barqueiro. - A corrente é um pouco violenta por baixo dos arcos.

 

Nos momentos que se seguiram o meu amigo falador e os outros remadores ficaram silenciosos e a concentrar-se à medida que nos aproximávamos da ponte. Então, subitamente, o nosso barco foi puxado para as águas velozes por baixo dos arcos escuros e musgosos. O barco abanou e guinou perigosamente, as pragas e grunhidos dos remadores quase afogados pelo barulho e chapinhar por baixo de nós. Enquanto me agarrava ao barco com os nós dos dedos brancos lembrei-me do meu medo da água e amaldiçoei-me a mim próprio por não ter vindo a cavalo para Londres. Então, quase tão subitamente como tínhamos entrado nos rápidos estávamos de volta à luz do Sol, o rio plácido uma vez mais. O meu amigável companheiro apontou para o Mercado dos Peixeiros e a sua ampla doca na qual eram vendidos todos os tipos de peixe fresco, mas uma vez passada a ponte os meus olhos foram apanhados e ficaram presos por uma única visão, e detive a conversa do homem para lhe perguntar acerca do edifício maciço que se via a alguma distância na margem norte.

 

- Sim, São Paulo. Se quereis aprender a actividade da terra nesta cidade - todo o tipo de negócio, legal ou nem por isso - é para lá que deveis dirigir-vos, Sir.

 

Desembarquei em Three Granes e estava por fim novamente em terra firme, e muito agradecido por isso. Comecei a minha primeira caminhada sem dúvida com os olhos esbugalhados e com um ar estúpido - através do mais espantoso local em todo o vasto mundo. Pensei em como Londres e as cidades da Holanda eram como a noite e o dia. As ruas e avenidas imundas, escuras, sinuosas enquanto as holandesas eram imaculadas, ordenadas efrescas. Aqui, em ambos os lados havia lojas sem fim e escritórios de companhias. Havia um ruído constante de cavalos e carroças em movimento. Os cidadãos berravam os seus cumprimentos uns aos outros, mercadores vigorosos apregoavam os seus variados produtos, e outros simplesmente chamavam qualquer um que passasse, "O que quer!" Havia numerosas lojas de tabaco - algo que eu não tinha visto na Holanda. Aqui fumar era a moda, apesar da folha ser dispendiosa - cinco xelins a onça. Eu tinha fumado de um cachimbo comum numa taverna na noite anterior e gostara bastante do seu sabor rico, mas não parei, pois desejava chegar a São Paulo ainda de dia.

 

Era uma visão, esta catedral. Impunha-se sobre a cidade como um grande monstro de pedra e a toda a sua volta, correndo para dentro e para fora dos seus imponentes portais, estava todo o tipo e forma de humanidade - desde grandes senhores a pedintes. Homens, mulheres, crianças. Clérigos nos seus trajos sóbrios. Prostitutas com os seus peitos nus expostos. Vi uma dúzia de formas de barbas, e os cabelos dos homensfrisados e encaracolados tão frequentemente como os das mulheres.

 

Entrei na sala cavernosa para deparar com uma cena que nunca nos meus sonhos mais estranhos teria imaginado. Aqui na casa de Deus havia nada menos do que uma feira de rua. Enquanto um pregador se encontrava no púlpito tentando gritar acima do burburinho, centenas de pessoas reuniam-se em corredores, naves e áleas, entregando-se a negócios de todo o tipo. Havia gargalhadas de senhoras a mexericar, amantes que se encontravam. Passei por advogados a aconselhar clientes, criados de senhores impingindo os seus serviços a senhores em perspectiva, e mercadores a utilizar os túmulos de antigos reis como balcões sobre os quais vendiam cerveja, pão e queijo.

 

Lá fora no pátio da igreja havia ainda mais multidões. Havia barracas que vendiam livros, ostras, maçapão e compota em tostas. Até vi cavalos a serem comprados e vendidos!

 

Parei por um momento e obriguei a minha mente a acalmar-se. Estava ali para um fim, e não podia ficar detido pelo turbilhão. Voltei a entrar na catedral e os meus olhos caíram sobre um grupo de jovens que, pela sua postura, modos, elegantes roupas de veludos, golas de tufos e rendas, presumi serem cortesãos. Aproximei-me do grupo e insinuei-me discretamente entre eles, tornando-me todo-ouvidos.

 

Decorria uma conversa sobre uma intriga recentemente descoberta pelo secretário Walsingham contra a nossa Rainha urdida pela rainha dos Escoceses e um inglês chamado Throckmorton. Como tinha Isabel, num acesso de raiva, enviado o embaixador espanhol Mendoza - ele próprio envolvido na intriga - de malas feitas para casa, e autorizara que se enforcassem e esquartejassem diversos padres culpados, muito provavelmente aqueles que eu vira na Ponte da Torre. Mas estes cavalheiros tinham mais interesse e viraram a sua conversa nesse sentido - na perspectiva do nosso envolvimento oficial na guerra da Holanda. Antuérpia tinha, desde o meu regresso a Inglaterra, caído nas mãos de Parma - um grande desastre para a causa protestante.

 

- É um soldado brilhante, esse Parma - proferiu um cavalheiro com uma gola engomada tão grande como um queijo redondo, e todos os homens do grupo assentiram com a cabeça e com um ar grave.

 

- Se querem saber a minha opinião, ele é em parte feiticeiro - lançou um homem com uma barba encerada e pontiaguda - dada a forma como convence os seus inimigos a entregarem as cidades quase sem luta.

 

Desejei objectar, defender a honra dos corajosos holandeses e das suas numerosas lutas até à morte. Gritar que nunca tinha visto nem ouvido falar de nenhum bando de mulheres inglesas tornadas guerreiras para defender a sua amada cidade. Mas contive a minha língua, sabendo que estes cavalheiros falariam mais honestamente sem a minha intrusão inesperada.

 

- Parma pode ser um feiticeiro, mas o rei Filipe é o Diabo em pessoa. Apenas o Norte da Holanda está ainda por conquistar, e depois disso todos nós sabemos quem está a seguir.

 

- Graças a Deus que a Rainha finalmente se movimentou contra ele. O Gola Engomada referia-se à força de seis mil soldados, dois mil dos quais tinham já partido para Brill e Flushing. - Um verdadeiro exército inglês, não mais voluntários.

 

- já não era sem tempo também, embora tenha ouvido dizer que a nossa Bess se enraivece só com a ideia de nós sermos arrastados para a luta com Espanha. Ela ainda defende que pode ser negociada uma paz.

 

Todos se riram alto e bom som, como se um tal pensamento fosse profundamente ridículo. Alguns destes jovens dândis gabavam-se das suas próprias comissões e pareciam, na sua ingenuidade, procurar a guerra como

 

Nota: Na língua inglesa, o diminutivo de Elizabeth (Isabel) é Bess, e a rainha Isabel I é também conhecida pelo cognome de "Good Queen Bess" (N. do T.)

 

um divertimento, uma diversão nas suas existências de outra forma monótonas. Eu pensei, mas não disse, quão duro e sangrento iria ser o futuro deles.

 

Então ouvi Proferir o nome de Lord Leicester. Que ele tinha sido escolhido por Isabel para conduzir o exército à Holanda! O meu coração simplesmente saltou-me do peito, em parte de alegria, em parte por medo. Alegria, pois sabia o quão fervorosamente os Holandeses - o príncipe Guilherme em particular - tinham rezado pela ajuda de Leicester. Medo de que já tivesse partido, e de me ter desencontrado dele.

 

Com a minha mente a vaguear, fui trazido de volta pouco depois com renovados gritos de riso roufenho. Quando retomei a escuta da conversa descobri que uma poesia derisória estava em vias de ser composta em honra da mulher do meu pai. Os homens tinham dificuldades com o segundo verso que rimava com "Ouve em tempos uma dama chamada Leicester embora tivessem já escrito as três últimas que eram assim - Ela era conhecida como uma cona, e fodia Chistopher Blount, e por isso a rainha Isabel abençoou-a".'

 

Enquanto vários dos cavalheiros continuavam as suas palhaçadas poéticas, eu rodeei o grupo por trás para ouvir vários outros a discutirem Lord e Lady Leicester mais seriamente. Descobri que ele tinha sido transformado num cornudo pela mulher e pelo jovem Lord Blount, um homem com metade da idade dela. Descobri também que o únicofilho de Leicester desse casamento - Lord Denbigh, de quatro anos - tinha morrido recentemente. O que me chocou mais profundamente, e para isso eu não estava de todo preparado, era o ódio e despeito que todos estes cavalheiros pareciam nutrir pelo meu pai. Eu tinha-o conhecido apenas como um herói. O maior senhor da terra. Um cavaleiro de grande renome. Leal amigo da Coroa e amante da Rainha. Aqui e agora fazia-se um retrato bastante mais feio. Um homem avaro e egoísta consumido de ambição - alguém que merecia completamente a horrível megera que tinha por esposa, os cornos e a morte do seu filho. Aparentemente circulava um panfleto em Londres, vicioso e satíríco, denunciando a "verdade" acerca de Lord Leicester. Que ele era um sibarita que precisava de poções italianas para ficar erecto, que tinha roubado dinheiro à Rainha e que a assediava dia e noite. Pior, que ele não era verdadeiramente nobre de sangue, e ainda pior, que ele cometera assassinato por várias vezes. O panfleto até alegava que Leicester envenenara o seu próprio filho porque

 

Nota: Para se compreender melhor a rima, aqui ficam os últimos versos na língua original: she was known as a cunt, end fucked ncked Christopher Blonnt, and for that Queen Elizabeth blessed her. (N. do T.)

 

o rapaz tinha epilepsia e uma perna mais curta do que a outra, e que o conde não conseguia suportar uma criança aleijada.

 

Cambaleei nas minhas pernas, não apenas por ouvir estas palavras difamadoras acerca do homem que eu iria em breve reivindicar como sendo meu pai, mas por saber que estes cavalheiros, todos eles, acreditavam claramente que elas eram verdade. De repente achei o ar demasiado espesso para respirar - uma rica mistura de suor humano, perfume, odores de comida, cerveja e urina. Recuei de perto do grupo, abri caminho às cotoveladas através da álea cheia de gente e tropecei pelas portas fora.

 

Enquanto engolia algum ar fresco resolvi reunir os meus bons espíritos e disposição, e afastar quaisquer dúvidas lançadas sobre Lord Leicester por um bando de cortesãos invejosos. Eu conhecia o homem pessoalmente, Ele tinha sido bom e preocupara-se comigo, e havia orientado a minha mente para a educação - uma bênção inigualada. Raios partam o que os outros pensassem! Sua Majestade a Rainha Isabel e Robert Dudley e eu estávamos juntos no nosso destino. Eu não era um homem religioso, mas percebia agora Deus como quem dava as cartas deste jogo místico. Nós éramos uma Rainha de Ouros e dois Valetes. Na minha mente apenas uma carta faltava a minha própria Rainha de Copas.

 

A barriga de Robin Dudley doía-lhe. Enquanto se movimentava à volta dos estábulos reais na sua inspecção regular deu por si a tentar disfarçar as cãibras e as tripas em turbilhão com uma aparência de brusquidão. Sabia que os palafreneiros ficariam imperturbáveis com os seus modos. Conheciam-no bem e tinha sempre lidado honestamente com eles, mas esperava de facto ser poupado à indignidade de uma corrida precipitada até às latrínas.

 

Não se sentia bem desde que Deus levara o seu filho. A pobre, doce criança. À medida que lhe vinha à mente a cara do pequeno Lord Deribigh outra dor, aguçada como um punhal, ameaçou a sua compostura. Era mais duro a cada dia que passava, pensou Leicester com infelicidade, refrear-se do hábito de autocomiseração, pois parecia que o mundo estava a cair em redor das suas orelhas. O seu único herdeiro, um lindo rapaz que o adorara e que ele amara perdidamente, era um cadáver morto e decomposto. Assim o eram também a sua querida irmã Mary Sidney e o marido dela Henry. Tanta morte, tanta morte...

 

Tendo por fim abandonado qualquer esperança de se casar com Isabel, ele tinha, talvez incapaz de abandonar todas as pretensões às ligações reais, feito uma tentativa de arranjar um casamento entre a filha da sua mulher e o rei da Escócia. Quando Isabel descobrira ficou lívida, chamando a Lettice uma "loba" e alegando que preferiria ver o rei Jaime morto do que casado com a filha de Lady Leicester. O plano naturalmente gorara-se.

 

O seu grande inimigo, Lord Sussex, tinha morrido, mas a elocução do nobre no leito da morte dirigida à Rainha - "Cuidado com o Cigano. Ele será demasiado duro com todos vocês" - afastara qualquer júbilo que Dudley pudesse ter sentido por finalmente se ver livre dele.

 

E embora já há muito tivesse perdido qualquer verdadeiro amor por Lettice, a publicidade descuidada com a qual ela conduzia o seu caso amoroso com o jovem novo-rico Blount humilhava-o. Igualmente, havia a questão do panfleto calunioso sobre ele, chamando-lhe assassino... Até a grande alegria de montar tinha-se, com a dor acutilante nas suas juntas, tornado pouco mais do que uma corveia. Ainda assim, estes eram apenas problemas domésticos e de alguma forma tratáveis.

 

Porém, Maria, rainha dos Escoceses, e as suas danadas maquinações continuavam a atormentar o Conselho Privado. O sobrinho do embaixador de confiança de Isabel, Throckrnorton, fora executado pela sua participação numa intriga escocesa-espanhola-jesuíta. para derrubar Isabel. E com conhecidos assassinos em movimento a teimosa zombava das preocupações de Leicester com a sua segurança e continuava a cavalgar dum lado para o outro no meio de multidões ou a passear pelo Parque de Richmond a pé. Muitas noites ele acordara empapado no suor frio de um pesadelo a Rainha assassinada enquanto ele observava impotente.

 

Mas havia ainda pior. Isabel, com toda a angústia de um prisioneiro a quem arrancassem as unhas pela raiz, tinha finalmente acedido a enviar ajuda para a Holanda, e nomeara-o comandante de toda a expedição. Era talvez a maior honra que ela lhe poderia ter conferido, um voto de confiança nos seus talentos, e um sinal de que ela lhe perdoara por se ter casado com Lettice. Mas a alegria dele foi de curta duração, pois no momento em que os primeiros dois mil homens navegaram para os Países Baixos, a Rainha havia tido um acesso de remorsos e indecisão. Ela estava segura de que iria, através dos seus actos, atrair toda a fúria da Espanha sobre a Inglaterra. Iria atirar para a miséria todos os seus súbditos e eles odiá-la-iam. E, de repente, não conseguiu suportar a ideia de enviar o seu Robin. para tão longe dela própria.

 

Tinha-o proibido de ir.

 

Felizmente, apenas uma mão-cheia dos seus conselheiros e alguns amigos - Walsingham, Hatton, Clinton e Shrervsbury - sabiam que Isabel cancelara o envio dos restantes quatro mil homens. Tinham sido mantidas as aparências de que tudo estava a seguir como programado. Mas nenhuma argumentação, adulação ou insistência havia ainda levado Isabel a reconsiderar. Embora Leicester tivesse, ao longo dos anos, adquirido uma couraça espessa, sentia - e a sua barriga a doer era a prova visceral - que simplesmente não poderia suportar a humilhação de ter esta esplêndida comissão rescindida.

 

Na minha mente os Estábulos Reais em Hampton Court eram nada menos do que o Céu na Terra - um lugar onde os melhores cavalos do mundo eram criados, treinados e acarinhados. Era bem sabido quanto a Rainha amava esses animais e dizía-se que mesmo agora, já bem dentro dos cinquenta anos, ainda montava vigorosamente todos os dias em que o tempo permitia. No dia anterior, o meu uniforme de oficial holandês e o meu comportamento confiante e imponente - talvez a minha maiorfaçanha de representação de sempre - tínham-me conquistado a entrada na zona dos estábulos. Fui escoltado por um jovem palafreneiro através das compridas cocheiras de pedra que albergavam duzentas montadas, os picadeiros de treino e a sala do equipamento. Esta última estava cheia de traves com elegantes equipamentos equestres e adornos cerimoniais - altos capacetes emplumados, bandeiras coloridas, selas com franjas de tecido de ouro, bridas e freios de prata maciça.

 

Tinha descoberto pelo palafreneiro que Lord Leicester - ainda mestre-do-picadeiro da Rainha depois de todos estes anos - iria realizar a sua inspecção no dia seguinte - hoje. Senti as palmas das minhas mãos a suar por baixo das luvas de couro branco compradas especialmente para este encontro. O meu uniforme estava gasto mas tão limpo quanto me era possível. Eu desejara vestir algo novo para esta ocasião, algo para celebrar a minha nova vida. Tinha pago demasiado pelas luvas suaves de pele de cabrito e estava contente por estar a usá-las agora.

 

Quando passei pelos picadeiros onde uma meia dúzia de cavalos aprendiam o básico da arte de picadeiro, senti o corpo tremer. Era medo. Medo de que a apresentação da minha reivindicação ao conde fosse trapalhona e humilhante, de que as palavras mefalhassem, de começar e ser incapaz de acabar. Ou pior, de que uma vez proferida - mesmo que eloquentemente a minha reivindicação fosse negada. Afinal, que razão tinha eu para ter esperança? Porque é que um nobre havia de acreditar na história de um soldado comum?

 

Ordenei a mim próprio que parasse, acabasse com todas as ideias de derrota imediatamente. Verdade. Coragem. Destino. Apenas esses pensamentos deviam ser permitidos. Localizei o jovem palafreneiro do dia anterior e caminhei para cumprimentá-lo. O rapaz foi mais uma vez amigável e disse-me que eu estava com sorte, pois Lord Leicester chegara e podia ser encontrado nas cocheiras. Agradeci-lhe e sem me permitir mais nenhuma hesitação, fiz-me alto, endireitei os ombros e dírigí-me ao comprido edifício de pedra.

 

Lá dentro senti o corpo descontrair-se de imediato. A luz esbatida, os odores almiscarados, a visão dos animais em toda a sua força e beleza, reconfortaram-me com a sua familiaridade. Mesmo à frente conseguia ver Lord Leicester a conferenciar com um oficial de cara amassada da Guarda Real. Como sabia com certeza que o mais velho dos dois homens era o conde, dei por mim desencorajado pelo tributo cruel que os anos tinham cobrado ao meu ídolo de infância. Embora ainda alto, a graça com a qual Lord Leicester se tinha outrora mexido desaparecera, substituída por sacões dolorosos e rígidos nas suas juntas. Uma cara e barriga inchadas desfiguravam a silhueta da sua outrora seca e musculada forma. Mas à medida que me aproximava consegui ainda, apesar das bochechas pouco saudavelmente coradas, maxilares descaídos e barba completamente prateada, reconhecer este homem como aquele que eu conhecera uns quinze anos antes. Então o oficial de cara amassada partiu, deixando Leicester só, com uma mão a descansar na sua barriga distendida, olhando para um imponente malhado de dezasseis palmos.

 

- Lord Leicester - disse eu. - Peço desculpa, Sir.

 

Robin Dudley estava de visita às cocheiras quando ouviu uma voz masculina profunda e melodiosa a dirigir-se-lhe. Voltou para deparar com um atraente jovem. De maxilares quadrados. Jovem, pensou ele, mas demasiado gasto para ser verde. Alto, até mais alto do que ele próprio, e de construção sólida. Havia uma profundidade nos olhos dele, olhos negros que contrastavam estranhamente com a pele pálida e cabelo vermelho-ouro cortado curto. Usava o característico uniforme de um oficial holandês mas era, pelo som da sua voz, claramente um inglês.

 

Leicester sentiu o seu estômago novamente a evidenciar-se. O homem parecia-lhe vagamente familiar. Podia ser um assassino? Ele tinha mais do que o seu quinhão de inimigos.

 

- Quem és tu? O que queres? - gritou ele simplesmente.

 

O jovem estacou onde estava sem pestanejar. Ele viu a batalha, este, pensou Leicester subitamente - conheceu pior do que uma recepção rude da parte de um maldisposto e velho peido num estábulo.

 

- O meu nome é Arthur Southem, Sir. Ultimamente capitão na cavalaria do príncipe Guilherme.

 

Leicester observou o homem mais de perto. Era uma coisa estranha de dizer. Guilherme de Orange estava morto há mais de um ano. Arthur Southem pressentiu a pergunta silenciosa.

 

- Será sempre o exército dele, Sir.

 

Leicester tinha-se encontrado com Guilherme uma vez, conhecia a sua graça e poder magnético sobre os homens. Por momentos perguntou-se se ele próprio alguma vez engendraria um tal amor e lealdade da parte da sua tropa... se alguma vez lhe fosse dado um exército.

 

- São notícias excelentes as de que ides para a Holanda, meu senhor lançou Arthur Southem. - O povo holandês deseja ardentemente a vossa presença. Era o que o próprio príncipe desejava.

 

- Conheceste-lo?

 

- Conheci. - Os olhos negros de Arthur ficaram subitamente em estado líquido. - Estava com ele quando morreu, Sir.

 

- Porque é que me pareces familiar? - perguntou o conde com um toque de irritação.

 

Surpreendentemente a cara do jovem rebentou num amplo sorriso. Um sorriso, pensou Leicester, que lhe era ele próprio familiar.

 

- Conhecemo-nos, meu senhor. Há muitos anos a Rainha e vós, toda a corte passou pela propriedade do meu pai na viagem oficial de Verão. A Coutada de Enfield no Surrey.

 

Leicester vasculhou a sua memória.

 

- Enfield... há! Uma caçada num adorável bosque. Sim, lembro-me. Um sorriso começou a crescer na sua face cansada. - Um rapazinho fez uma exibição para nós no seu cavalo nesse dia. - Olhou fixamente para a cara de Arthur. - Eras tu!

 

- Era eu, Sir. - Estavam ambos a sorrir deliciados. - Deste-me um livro, lembrais-vos?

 

Leicester pensou um pouco, abanou a cabeça.

 

- A Arte da Cavalaria de Xenofonte. Mudou a minha vida. Lembrando-se por fim:

 

- Aprendeste a ler grego, então?

 

- Aprendi de facto. - Agora riam-se. Dudley estava a lembrar-se de tudo.

 

- Então, vieste para me exigir a minha oferta? Uma posição na guarda?

 

- Não, Sir, não vim por isso. - Artur tinha ficado subitamente sério. Vim para... eu... queria dizer-vos...

 

Agora a coragem faltava-lhe. A verdade parecia estar a mil milhas deste sítio. E o destino parecia nada mais do que uma fantasia de rapaz. Leicester estava a olhar para ele em expectativa, mas as palavras simplesmente não saíam.

 

- Ai! - Sem aviso Leicester agarrou-se à porta da cocheira e as suas bochechas encarnadas empalideceram alarmantemente.

 

- Sir?

 

A respiração do conde vinha em curtos fôlegos.

 

- Os meus aposentos. Ajuda-me a ir para os meus aposentos.

- Apoiai-vos em mim - disse Arthur.

 

- Não! - Leicester endireitou-se, debatendo-se para preservar a sua dignidade. - Caminha apenas comigo. Fica por perto.

 

- Sim, Sir. Honra minha, Sir.

 

Os aposentos do conde eram constituídos por várias salas grandes e confortáveis no segundo andar da ala ocidental de Hampton Court. Quando ele e Arthur entraram, encontraram as salas excessivamente cheias de jovens uma estranha mistura, estudantes debruçados sobre os seus livros, jovens com ares sensíveis dobrados sobre folhas de pergaminho, pena na mão, um sonhador acordado a sonhar num banco de janela, diversos homens a escolher entre uma impressionante colecção de livros. À volta de uma mesa um grupo de cortesãos discutia ruidosamente os méritos de um dos poemas de Philip Sidney versus um de outro jovem poeta, Edmund Spenser, que vivia sob o tecto do conde na sua famosa mansão de Londres, a Leicester House.

 

Leicester dispensou-os a todos e limpou a sala em momentos, fazendo sinal para ficar apenas Arthur. Então correu para trás dum painel de verga até à sua retrete e aligeirou as suas tripas envenenadas, gemendo o tempo todo de agonia e alívio. Quando acabou, reapareceu para descobrir que o jovem Southem tinha um ar surpreendentemente mais aflito do que enojado, e rapidamente tocou para chamar um criado. Enquanto o criado de quarto se apressava a entrar e a remover o recipiente coberto, Leicester engoliu uma golada de líquido de um frasco de vidro azul. O criado voltou quase de imediato e aspergiu o quarto com baforadas de incenso de ervas acres. Por fim, ficaram sós.

 

- Estais doente, meu senhor? - inquiriu Arthur.

 

Leicester ficou emocionado pela aparente profundidade e sinceridade da preocupação do jovem, e igualmente desconcertado. Repentinamente ocorreu-lhe que tinha, um momento antes, permitido a um completo estranho ser testemunha da mais pessoal e incómoda situação. Havia algo nele... uma espécie de conforto. Leicester lembrou-se subitamente que o rapazinho que há tantos anos o espantara com o seu desempenho de mestre na arte de picadeiro tinha sido na altura espancado até sangrar. O conde testemunha da desgraça privada dele. Era isto então o empate?

 

- Devo dizer... não estou em mim - disse Leicester por fim, apercebendo-se enquanto o fazia de que a sua cabeça estava a girar. - A poção é um opiáceo, bom para as dores, mas que dá tonturas. Talvez me devesse deitar por um momento.

 

Arthur saltou de imediato para auxiliar o homem mais velho e gentilmente ajudou-o a deitar na magnificente cama de dossel, de botas e tudo. Dudley sentiu as suas pálpebras de chumbo a fecharem-se lentamente, embora não tenha adormecido. Estava subtilmente consciente da presença de Arthur Southem tipo sentinela e, finalmente, começou a sentir as dores no seu corpo miserável a começarem a dar de si.

 

Ouviu a batida na porta como num sonho. Depois Arthur Southem estava a murmurar ao ouvido dele:

 

- Meu senhor, é uma mensagem da Rainha.

 

Leicester obrigou-se a abrir os olhos. O jovem segurava um pergaminho dobrado com o selo de Isabel aposto. Reuniu as suas forças, levantou um cotovelo e rasgou a carta para a abrir.

 

- Oh, graças a Deus! - gritou ele.

 

Arthur estava a cintilar de prazer partilhado, embora nunca lhe passasse pela cabeça inquirir acerca da natureza da mensagem.

 

- São boas notícias, Arthur, na verdade muito boas notícias. - Leicester sentou-se na cama, pestanejando para afastar lágrimas de alívio. De repente sentia-se completamente bem e perguntou-se se seria a poção opiácea a fazer efeito com a sua magia nas suas veias, ou as notícias de que Isabel tinha finalmente cedido dando-lhe autorização para partir para a Holanda à cabeça do exército. Deus seja louvado!

 

- Vamos tomar uma bebida - anunciou Leicester, quase a saltar da sua cama. Dirigiu-se a uma mesa e deitou um clarete para duas belas taças venezianas. Entregou uma a Arthur - À vitória na Holanda - disse ele, erguendo o seu copo.

 

- E ao sonho do príncipe Guilherme - acrescentou Arthur, brindando com Leicester. Beberam. O conde ofereceu ao seu convidado uma cadeira junto da dele e, puxando de um cachimbo de madeira trabalhada, encheu-o com tabaco. A tarde consumiu-se a um passo lento e langoroso, os dois homens a fumar e a beber e a rir-se como se fossem companheiros de uma vida inteira.

 

Pela altura em que o criado entrou para acender as velas, acender o lume na lareira, e dispor um jantar simples na mesa, Robin Dudley e Arthur Southem estavam bem e verdadeiramente embriagados.

 

- Não vos perguntais, meu senhor Leicester - começou Arthur, tendo engolido uma enorme quantidade de vinho tinto - porque é que eu vos vim ver hoje?

 

- Não é por um posto, disseste-me tu. Não é para me assassinares, pois já o terias feito há muito. Parece-me que vieste... embora não saiba porquê... para te fazeres meu amigo.

 

Arthur limpou a boca com as costas da mão.

 

- Não, meu senhor, eu não vim como vosso amigo. - Leicester recostou-se na sua cadeira e olhou fixamente para ele. - Vim... como vosso filho.

 

Leicester observou o jovem com ar estúpido.

 

- Meu filho? Não, não, o meu filho está morto. - Os olhos dele encheram-se de repente de lágrimas. - O meu rapazinho. Apenas quatro anos de idade. Coxeava, sabias. Uma perna mais curta do que a outra. Eu mandei fazer para ele um minúsculo fato de armadura. Ele vestia-o para mim e fingia - duas grandes lágrimas rolaram pelas faces rosadas de Leicester -, fingia que era São Jorge... a matar o dragão para me proteger. Ele queria proteger-me a mim.

 

Arthur ouviu, pensando no pequeno Lord Denbigh, no conde de Leicester, Robert Southem... em si próprio. E de repente, apesar da quantidade copiosa de vinho que tinha consumido, sentiu-se tão sóbrio e com as ideias claras como se fosse um pregador puritano.

 

- Eu nasci, Sir, em Agosto de mil quinhentos e sessenta e um. No Castelo de Fulham. Foi na noite de uma terrível tempestade.

 

O conde de Leicester debatia-se para aclarar a sua mente enevoada. Descobriu que não conseguia tirar os olhos da cara do jovem sentado na sua frente. Ele estava a falar de coisas que não tinha nada que saber, a dizer palavras que não tinha nada que dizer, a mexer em memórias há muito esquecidas das profundezas em que tinham sido laboriosamente enterradas. Aquela noite terrível. Outra criança morta.

 

Precipitou-se de repente sobre Arthur Southem, caindo sobre ele e abanando-o.

 

- Quem és tu! - gritou ele.

 

A resposta de Arthur quase não se ouviu, um sussurro áspero abafado na garganta, mas ele nem ripostou nem se debateu.

 

- A senhora Katherine Ashley... o senhor William Cecil... levaram-me em segredo nessa noite. - A força nas mãos de Leicester abrandou, e ele olhou com olhos de mocho para o homem que estava por baixo dele. - Uma criança morta foi-vos mostrada... e à Rainha.

 

Leicester largou de repente Arthur Southem como se ele fosse feito de metal a ferver, depois sentou-se pesadamente no chão perto dos pés do jovem, a olhar para o fogo. Ficou profundamente silencioso enquanto Arthur relatava o que lhe tinha sido contado por Robert Southem sobre as circunstâncias do seu nascimento e acontecimentos posteriores.

 

- Tens provas? - perguntou Leicester inexpressivamente, ainda fixo no fogo e nunca olhando Arthur nos olhos.

 

- Que nome haveis dado ao bebé que nasceu morto, Sir? - perguntou Arthur.

 

Leicester ficou em silêncio.

- Chamastes-lhe de Arthur?

 

- Isso nada significa - ripostou Leicester.

 

- Olhai para mim, meu senhor. - Mas Leicester estava quieto como uma pedra, recusando-se teimosamente a mexer-se. - Olhai para mim e dizei-me que não vos vedes a vos próprio... que não vedes a minha mãe em mim!

 

- Tens cabelo ruivo, pele pálida. Também a têm um quarto das pessoas em Inglaterra.

 

- Tenho a vossa altura. Isabel é alta. O meu avô Henrique era...

 

- Cala a boca! - guinchou Leicester, virando-se por fim para Arthur numa raiva assustadora. - Não tens qualquer direito de usar os nomes deles de tal forma. Qualquer direito de me enganar! Sai, sai ou eu juro que te mato com as minhas mãos!

 

Arthur permaneceu calmo.

 

- Talvez, antes de eu me ir embora, devas olhar para as minhas duas mãos. - Desabotoou as suas luvas brancas de pele de cabrito e tirou-as. Leicester deu por si incapaz de continuar o seu ataque. Olhou simplesmente para as mãos quadradas, calejadas e com cicatrizes de soldado, os seus dedos fortes dispostos à sua frente. Lentamente, Arthur virou todo o seu braço esquerdo, com o polegar a apontar para o chão. Leicester pestanejou. Estaria a lareira a pregar partidas aos seus olhos, ou havia de facto, saindo do lado de fora da mão de Artur Southem, um naco de carne e dentro dele um bocadinho de unha? Um sexto dedo?

 

Lentamente levantou os seus olhos e foi ao encontro dos do jovem. De imediato soube onde é que tinha visto aqueles infames e sedutores olhos negros antes. Em retratos da mãe de Isabel... Ana Bolena.

 

- Meu Deus - disse Leicester calmamente enquanto olhava para a cara do filho de Isabel. O filho dele.

 

Quando começou a tremer descontroladamente, o jovem lentamente envolveu com os seus fortes e musculados braços o corpo do homem que lhe tinha dado a vida. juntos começaram a chorar, primeiro de raiva pelos muitos anos desperdiçados, o amor perdido... e por fim de alegria pelo amor descoberto, e pelo grande milagre que Deus, na Sua infinita misericórdia, tinha finalmente considerado adequado fazer.

 

Não chegámos a dormir nessa noite, o meu verdadeiro pai e eu, e antes que o Sol se erguesse numa manhã enevoada ele tinha-me dado o nome dele. Eu era Arthur Dudlley, e por isso sentia-me muito orgulhoso. Todavia, eu só revelara a verdade devido à muita bebida ingerida e depois de assentar os pés com força no caminho do meu novo destino.

 

Mas mais valioso do que o nome dele, este homem dera-me o seu coração - aquele órgão fiel há muito demolido pela desilusão e cheio de cicatrizes pelos anos de ódio e inveja que fora obrigado a suportar. Apesar disso, ele não era amargo de coração, e transbordava de amor por mim.

 

Depois de ter aceite o meu verdadeiro nascimento, Lord Leicester abriu-se comigo - e eu com ele - e passámos a noite demasiado curta a despejar como duas fontes para uma piscina comum as histórias das nossas vidas - os nossos amores, inimigos, provações, esperanças e mistérios. Elefalou demoradamente das suas tentativas para casar com a minha mãe, a Rainha. Como todos tinham acreditado que ele a perseguia apenas pelas vantagens para a sua posição. Reconheceu abertamente a sua natureza ambiciosa, mas jurou - e eu acreditei nele - que amara Isabel apaixonadamente desde o tempo em que eram crianças e que ainda a adorava. Chorou muitas vezes nessa noite, mas nenhuma tão amargamente como quando me contou o momento em que tinha compreendido que ela nunca seria sua, que o sonho de casar com a mulher que amava teria que ser posto de parte final e irrevogavelmente. Contou quão duro tinha sido ver Isabel prosseguir a sua vida pública, sabendo que nalguma parte profunda da alma ela desejava desesperadamente estar intimamente ligada a ele próprio. E quão extraordinária como pessoa a minha mãe era - singular e inteiramente encantadora. Citou um poeta que a descrevera assim - "Ela pesca almas de homens com um isco tão doce que nenhum homem consegue escapar à sua rede". Então ríu-se ruidosamente, chamando a si próprio o maior salmão no mar dela.

 

Falou da sua beleza, especialmente quando jovem. Da sua pele de veludo branco antes de ter sido marcada pela varíola e pelos cosméticos ásperos que lhe comeram a carne como um ácido mortal. Como o longo cabelo encaracolado tinha tido a cor de um sol de fim de tarde. E como a graça majestosa dos seus movimentos era em si uma espécie de encanto.

 

Falou, também, da outra beleza que a minha mãe possuíra, e possuía ainda. A beleza da mente. O meu pai confidenciou-me que essa era a melhor parte dela. Não simplesmente o intelecto - produto de uma constituição mental de aço e de uma magnífica educação - mas o seu espírito, por vezes mordente como um cão atiçado, outras docemente jovial, e outras ainda tão rude e devasso como uma prostituta da rua.

 

Apesar das suas próprias desilusões nos assuntos do coração incitou-me a seguir sempre o meu e procurar fielmente a mulher com que eu admiti que. sonhava desde os meus catorze anos de idade. Ele tinha esperança que ela possuísse, como a minha mãe possuía, aquela rara combinação de beleza e força mental pois, avisou-me, até a mais deliciosa das conas envelhece e murcha, mas uma grande mente, como um bom vinho, torna-se mais rica com a idade.

 

À medida que o Sol se erguia cada vez mais alto no céu saturado ficámos de pé a olhar pela janela para o Tamisa e começámos uma conversa de natureza mais sólida. Lord Leicester partia imediatamente para a Holanda, por isso todos os preparativos relativamente à minha pessoa iriam, por necessidade, ter lugar de imediato. Ele disse que tinha, durante a noite passada, considerado a excentricidade da nossa situação.

 

- Ah, filho, é ainda mais complicado do que tu conseguirias sequer imaginar. A tua mãe... sabes que ela é agora obrigada a entrar em guerra contra a Espanha na Holanda.

 

- Sei. E isso preocupa-a. O meu pai riu-se divertido.

 

- Ela está num estado de tal agitação e fragilidade que temo que o choque súbito da tua existência a pudesse matar. - A voz dele ficou calma.

- A tua mãe não pode na presente situação ser informada de que tu estás vivo. - Enquanto víamos os barcos grandes e pequenos a percorrerem a grande artéria de água na direcção do coração da cidade, Leicester colocou o braço à volta do meu ombro. - Tu és como uma fragata a toda a vela, Arthur. Belo... mas perigoso. Espero que compreendas que teremos de esperar por um momento mais oportuno para lhe contar.

 

Eu estaria a mentir se dissesse que nãofiquei desapontado, mas compreendi a lógica dele e sabia que ele partilhava com a Rainha uma qualidade indiscutivelmente honrada - o amor pelo seu país e a capacidade de colocar as necessidades dele à frente dos seus próprios desejos pessoais. E mais importante ainda, tinha pelo menos conquistado o amor e aceitação dele. A paciência, sabia eu, era uma virtude que teria que aprender.

 

- Eu compreendo, a sério - respondi - mas desejo tanto servir a Inglaterra, meu senhor!

 

Ele sorriu e disse:

 

- Pai. Eu quero que me chames pai.

 

Abraçámo-nos e eu sussurrei a palavra ao ouvido dele, mil vezes agradecido por haver ainda um homem a quem pudesse chamar por esse nome.

- Deixa-me pensar no teufuturo um momento - disse ele -, pois posso dizer-te isto. Se algum mal te acontecesse por minha culpa, quando a tua mãe descobrisse mandava-me decapitar!

 

Rimos os dois e eu assegurei-lhe de que ninguém, ele próprio incluído, podia manter-me muito tempo longe do caminho das armas, pois vivia para a acção, até para o perigo, e suspirava por novas visões e aventuras da mesma forma que um bêbedo suspira pelas suas bebidas.

 

- Talvez devas vir para a Holanda, servir como meu braço direito sugeriu ele.

 

- Não, pai, eu não sou nenhum diplomata. Sou um soldado, e que perdeu o gosto pela luta - pelo menos na forma em que os Holandeses e Espanhóis lutam ainda. O cerco... - mal conseguia continuar. - O cerco traz-me apenas memórias horrendas. De alguma forma sinto que dei tudo o que podia nos Países Baixos.

 

Ele acariciou o seu queixo flácido e observou-me cuidadosamente. Então interrogou-me como o faria um mestre-escola - mas o tema era eu. Quais eram as minhas aptidões, para além do óbvio? Quais eram as minhas paixões, os meus ódios? Eu disse que conhecia várias línguas para além do inglês.

 

- Hum. Sais à tua mãe nisso. Isabel tem um ouvido brilhante e fala oito línguas fluentemente.

 

Sorri, timidamente deliciado por ser comparado com a Rainha, pois apesar de estar rapidamente aficar habituado à ideia de Leicester como meu pai, Isabel como minha mãe era tão exótico como uma tribo de selvagens do Novo Mundo.

 

Disse-lhe que gostava de me disfarçar e assumir papéis estranhos, e relatei as minhas experiências na estrada para Goutia fingindo ser um mercador holandês, e de me vestir como uma prostituta de Haarlem para atrair os soldados espanhóis para a sua morte.

 

- Que pensas tu - disse ele lentamente, como que a formar o pensamento à medida quefalava - de uma carreira como espião de Inglaterra? Eu simplesmente gritei de alegria.

 

- Walsingham tem os seus homens - explicou Leicester. - Alguns no continente. Outros na própria Espanha. Mas eu podia dar uso aos meus próprios "olhos e ouvidos" lá fora. Alguém em que eu pudesse confiar totalmente.

 

Pensei que o meu coração iria rebentar de orgulho e excitação. Começámos a delinear os nossos planos imediatamente.

 

- O secretário do meu pai, o senhor Fludd, foi incumbido de me entregar a Francis Walsingham e pedir-lhe que me emitisse um passaporte. Fludd tinha sido informado, e devia dizê-lo ao homem, que eu era um amigo especial do conde, e que se deviam apressar na conclusão desses assuntos.

 

Chegámos à casa do secretário Walsingham na Strand ao princípio da noite no meio de uma grande chuvada. Quando viu Fludd, Walsingham acenou graciosamente para entrarmos, pois era um bom amigo do meu pai e estava ansioso por ajudá-lo de qualquer forma que lhe fosse possível. Fludd, contudo, deve ter ficado nervoso pelo meu súbito aparecimento vindo do nada, acreditando conhecer todos os amigos e conhecimentos do meu pai, eficou talvez surpreendido com a urgência com a qual lhe tinham ordenado que me arranjasse um passaporte. Assim enquanto levava a cabo as suas instruções de forma correcta em todos os sentidos, a sua forma de explicar a minha situação foi tão nervosa e tremente que Walsingham - chefe do Serviço Secreto da Rainha - ficou imediatamente desconfiado. Disse que de bom grado me emitiria o documento mas - esperava que eu o perdoasse - precisaria de me interrogar completamente. Com a Inglaterra prestes a entrar em guerra com Filipe de Espanha, explicou ele, a segurança do país estava em jogo, e todo o cuidado era pouco.

 

Eu, naturalmente, concordei com ele entusiasticamente e disse que responderia a todas as suas perguntas e lhe forneceria todos os meus papéis que estavam nos meus alforges. Desculpei-me dizendo que ia buscá-los e saí. Tirando o meu cavalo ao palafreneiro montei-o e cavalguei apressadamente pela tempestade adentro, sem olhar para trás, pois tinha prometido ao meu pai que ninguém conheceria o meu verdadeiro nascimento até que chegasse o momento certo. Ele por sua vez iria refrear-se até mesmo de confidenciar a William Cecil que sabia da minha existência. Eu temia agora que Walsingham, um interrogador talentoso, pudesse descobrir mais do que eu - apenas a começar esta vida de subterfúgio - e o meu pai quereríamos que ele soubesse.

 

Tinha feito as minhas despedidas de Lord Leicester, que afirmou estar desmedidamente alegre pelo meu aparecimento na sua vida, e prometeu

manter-se em contacto próximo comigo durante a minha estada. Mas ele próprio estava em preparativos frenéticos para a sua viagem à Holanda esperandoficar lá um ano ou mais - e embora desejasse fervorosamente passar mais tempo comigo, disse que tal era impossível. Estava ansioso pelo dia em que ele, a minha mãe e eu nos reuníssemos, e rezava que fosse num tempo em que a Inglaterra estivesse livre da ameaça da guerra, e que a nossa reunião não fosse simplesmente pessoal, mas uma celebração da paz que Isabel buscava tão religiosamente.

 

Leicester dera-me fundos mais do que suficientes para eu começar a minha vida como espião, assegurando-me de que o dinheiro nunca mais seria um problema para mim. A minha primeira despesa - visto que a tentativa de conseguir um passaporte tinha sido um falhanço - foi um generoso suborno a um marinheiro que alegremente me contrabandeou a bordo de um navio que ia para Calais. Foi a travessia mais fácil que eu fizera até então. Surpreendeu-me o quão pouco tive pena de abandonar de novo a Inglaterra, e tão depressa. Enquanto o navio içava a âncora com uma brisa firme nas velas, olhei por breves momentos para os penhascos cintilantes de Dover, depois virei os olhos para a outra costa. Em quatro horas estava em França, e a minha vida de espião tinha começado.

 

Ele fez o quê! Repita, senhor Davison, pois receio que os meus ouvidos possam estar a amotinar-se na minha cabeça, tal como os meus dentes estão neste momento a fazer. Repita o que disse acerca de Lord Leicester cuidadosa e lentamente. - Isabel estava sentada nesta manhã em conselho com Lord Cecil, o secretário Walsingham, e o seu novo favorito, Walter Raleigh, olhando incrédula para o emissário da Holanda.

 

- Ele aceitou o título que os Estados Gerais o pressionaram a assumir, de Governador Supremo das Províncias Unidas, Majestade.

 

Isabel estava a ferver, mas conseguiu conter-se na presença do ajudante de Leicester, recentemente chegado à corte.

 

- Para dizer a verdade, Majestade, eles de facto pressionaram-no muito fervorosamente a aceitar esta honra, pois necessitam drasticamente de um líder desde a morte do príncipe de Orange.

 

- Oh, é verdade - escarneceu Isabel - tão drasticamente como precisavam de uma forma de envolver a Inglaterra num gesto irrevogável de hostilidade contra Espanha, uma forma que não me deixa alternativa a não ser comprometer todos os meus recursos financeiros para ganhar a guerra deles!

- Virou-se para os seus conselheiros. - Que pensais vós desta desprezível traição, cavalheiros?

 

Cecil e Walsingham estavam silenciosos, porém em contemplação atenta deste desenvolvimento totalmente inesperado. Leicester nunca deixara de impressioná-los com as suas maquinações egoístas, mas isto excedia de longe quaisquer actos anteriores de insolência,

 

- Devo dizer que me surpreende, Madame - lançou Cecil. - Leicester sabia muito bem que vós recusastes este mesmo título há apenas alguns meses.

- E por uma boa razão! - gritou Isabel. - É uma proclamação aberta de guerra contra a Espanha!

 

Walsingham contorceu-se na cadeira. O amigo dele tinha ido além dos limites do bom senso, e agora o secretário procurava uma resposta que não enfurecesse mais a Rainha, mas que pudesse no entanto oferecer uma defesa razoável para a loucura de Leicester. Walsingham estava duplamente incomodado, sabendo que em breve teria que contar a Sua Majestade uma intriga que tinha recentemente descoberto - mais uma vez maquinada pela malvada mulher aranha Maria, rainha dos Escoceses, juntamente com um inglês chamado Babington - para derrubar Isabel, ou mesmo assassiná-la. Desta vez a Rainha não teria opção senão julgar Maria por traição. Oh, como lhe doía a cabeça, mas obrigou-se a si próprio a permanecer calmo enquanto dizia:

 

- Lord Leicester demonstrou uma tremenda organização e bom senso no seu comando das vossas forças na Holanda, Majestade. As tropas são bem-comportadas, assistem aos serviços religiosos regularmente, e refreiam-se admiravelmente na retomada das cidades aos Espanhóis. Não tem havido quaisquer saques, pilhagens ou violações, e Leicester é creditado pela presença extremamente civilizada dos nossos soldados numa terra estrangeira. Isabel bufou, mas Walsingham continuou:

 

- Tenho recebido relatórios de Lord North dizendo que Leicester anda de um lado para o outro a inspeccionar fortificações e a mandar cavar inúmeras trincheiras. North diz que ele não se coíbe de se colocar em perigo de receber um tiro de mosquete e é, aparentemente, respeitado pelo exército. Talvez, sob tais circunstâncias, a maneira dele seja a mais razoável forma de agir.

 

- Eu penso que ele não conseguiu resistir à tentação de uma tal grandeza - contrapôs Raleigh, talvez com um tom demasiado irreverente, embora Isabel tivesse parecido não reparar. Ela estava muito, mas muito, zangada com o seu velho amigo, e o belo e bronzeado Raleigh, ataviado como um pavão nas suas esplêndidas roupas novas e nos seus encantos completamente magnéticos, exprimia com perfeição os seus próprios pensamentos acerca de Leicester neste momento.

 

- Se foi negada a Robert Dudley a coroa de Inglaterra - prosseguiu Raleigh - ele haveria de satisfazer-se, sem dúvida, com a coroa da Holanda. É um homem arrogante e avaro. Como poderia resistir às boas-vindas de que foi alvo? Dizem que foram dignas de um rei - os sinos a tocar, os canhões a dar salvas, festins e espectáculos de rua em sua honra, fogos-de-artifício. Até um arco do triunfo. E eu posso apenas imaginar a satisfação com a qual Lady Leicester está neste mesmo momento a preparar-se para se reunir ao seu marido "soberano".

 

- Oh! - gritou Isabel, a corar com tanta fúria que havia um brilho cor-de-rosa por baixo da espessa maquilhagem branca que ela agora usava. Estou mesmo a ver a exibição ostensiva. Lettice já cavalga por Cheapside numa carruagem puxada por quatro cavalos brancos, com quatro lacaios e trinta cavaleiros a cavalo à frente e atrás. Raios partam, existe apenas uma rainha de Inglaterra!

 

Walsingham desejou poder enfiar o seu punho pela garganta de Raleigh abaixo para abafar os comentários inflamatórios dele. O mal estava feito, reparar é que era preciso e não mais incitamentos.

 

- Irá renunciar publicamente ao título de imediato - disse Isabel, batendo decididamente com os nós dos dedos na mesa.

 

- Penso que talvez seja pouco sensato, Majestade.

 

Walsingham voltou-se surpreendido ao ouvir a resposta sóbria de Lord Cecil. Talvez a idade tivesse de facto amolecido o ódio do velho por Leicester. Ou então, pensou Walsingham, William Cecil era simplesmente o conselheiro mais sensato que Isabel tinha tido a boa sorte de ter ao seu serviço. De facto, a agitação da Rainha, embora ainda palpável, parecia estar a recuar ligeiramente.

 

- Sugeres que o deixemos ficar com o título, William? - perguntou ela.

- Receio que tenhamos que o fazer. Seria bastante mais desastroso retirar a um tão amado beneficiado uma honra. Uma bofetada na cara dos Estados Gerais. E, francamente, Majestade... - Cecil fez uma pausa antes de prosseguir, como se as palavras que estava prestes a proferir lhe fossem detestáveis. - Embora eu tenha sempre partilhado da vossa relutância em nos envolvermos abertamente num conflito com a Espanha, os dados foram infelizmente lançados. Filipe, apesar dos vossos protestos noutro sentido, não pode deixar de ver que pretendeis proteger a Holanda contra a sua invasão.

 

A cara de Isabel fixou-se num trejeito rígido. Fechou os olhos e respirou ferozmente pelas narinas em fogo.

 

- Oh, Robin, Robin, o que foste tu fazer? O que foste fazer?

 

Já não estava armado como soldado, mas como espião. Com a inteligência do meu pai para me guiar procurei conhecer todos os agentes secretos de Walsingham no estrangeiro, para aprender os truques do ofício, e também para melhorar o meu domínio das línguas que podiam tornar-se numa parte importante do meu disfarce.

 

Leicester ordenou-me que me apresentasse ao embaixador inglês em França, um certo Edward Stafford, avisando-me para ter cuidado com duas coisas. Primeiro, a esposa de Stafford era Douglas Sheffield, outrora amante do meu pai, segundo, vestígios da minha relação com ele criariam um ambiente desagradável a quaisquer relações que eu pudesse tentar promover junto do casal. O panfleto difamatório sobre o meu pai tinha recentemente chegado a Paris e estava a provocar um grande embaraço àquela senhora, expondo toda a roupa suja do caso amoroso dos dois e das circunstâncias suspeitas em volta da morte do primeiro marido.

 

Em segundo lugar, Leicester e Walsingham estavam convencidos de que Stafford era um agente duplo, um intermediário entre os católicos ingleses e franceses a soldo do duque de Guise, e suspeitavam que ele tambén fornecia os nossos segredos à Espanha - ambos actos de traição grosseira que eles explicavam, bastante alegremente, como um resultado da pobre condição financeira do embaixador. Achei a atitude estranha, mas descobri que Walsingham tinha em tempos servido nesse mesmo posto em França e da mesma forma sofrera com a sua precariedade devido à avareza da Rainha em questões de salário e garantias. A tentação do suborno era inegável. Porém Walsingham, para além de ser um homem de princípios e um patriota, não tinha uma esposa exigente para sustentar num estado de luxo, e por isso nunca sucumbira a tal traição. Igualmente, considerava que Stafford, tendo conquistado a confiança dos Espanhóis por entregar os segredos ingleses, era, consequentemente, uma valiosa fonte de informações na direcção oposta, e que uma pesava mais do que a outra. Stafford foi portanto autorizado a manter a sua posição. Foi na muito bela Embaixada Inglesa em Paris que eu o visitei bem como à sua esposa.

 

Eu estava ansioso ao extremo para conhecê-los, e não fiquei desapontado. A Embaixada era requintada, decorada ao estilo francês que parecia aos meus olhos - relativamente pouco habituados ao luxo - mais delicado, leve e fantasioso do que o inglês. Lady Stafford, mãe do meu meio-irmão Robert, era ainda uma bela mulher com um grande volume de seios, cor de pêssego e creme a surgir dum corpete de seda. Era fácil ver como é que o meu pai tinha caído sob aquele feitiço. Sir Edward era um tipo sério com modos bruscos, quase rudes que - de alguma forma pouco à vontade na minha primeira missão sob disfarce - achei ligeiramente enervante. Sabendo que estaria bem longe de Paris antes que ele descobrisse o que quer que seja, apresentei-me como Harold Morton, um dos estudantes de alta posição que Walsingham utilizava como agentes.

 

Enquanto comíamos na sala de jantar sob um tecto folheado a ouro, Lady Stafford fez-me olhinhos abertamente, enquanto o marido estava de cara enfiada no prato de sopa, declamando acerca da idiotice de Walsingham em entrar ele próprio em bancarrota para manter o serviço secreto à tona da água. Aparentemente, Isabel ainda não tinha empenhado fundos suficientes para a tarefa em mãos, não acreditando que a situação era tão ameaçadora como ele e os outros falcões de guerra acreditavam ser. Durante o capão e o assado de codorniz, Sir Edward desfez no debochado rei Henrique da França que ele desprezava por se vestir como uma mulher, com maquilhagem e tudo, o cabelo enrolado em grandes tufos e uma ninhada de minúsculos cães vivos pendurados à volta do pescoço como um colar.

 

Mas durante o primeiro prato, Stafford começou a interrogar-me para determinar tanto a minha credibilidade como a minha potencial utilidade para ele próprio. Tendo sido instruído pelo meu pai eu tinha suficiente informação confidencial para pôr o embaixador à vontade, e assim ele admitiu - com o primeiro laivo de qualquer emoção exceptuando a amargura que vi nele - que recentemente havia recebido informações das suas fontes espanholas. Ainda não passara a Walsingham a informação de que dentro de poucos meses Isabel seria atacada no seu próprio reino, e de que um grande exército espanhol estava a ser preparado para isso.

 

Eu estava a mastigar quando ele divulgou isto, e descobri que a minha boca estava aberta de espanto. A Espanha tinha intenção de atacar a Inglaterra! Stafford continuou para dizer que Filipe e os seus agentes tinham passado por grandes trabalhos para esconder esta informação de Isabel, e que teria que se fazer muito no sentido de lhe abrir os olhos para o perigo que a Espanha representava para o nosso país. Eu recompus-me e - enquanto arriscava um olhar namoradeiro para Lady Stafford, que parecia incapaz de despregar os olhos de mim - considerei o quão esperto era Francis Walsingham. Deixar o duvidoso e subornável Stafford no seu lugar tinha compensado largamente, nem que fosse por esta única e brilhante peça de informação.

 

Quando a refeição terminou e todas as cortesias haviam sido cumpridas, Sir Edward ausentou-se para uma reunião, e Lady Stafford conduziu-me à porta. Olhando para trás eu fiquei menos chocado do que pensei quando ela comprimiu o seu corpo contra o meu e me acariciou o sexo que - de alguma forma embaraçosamente - estava desprevenido para o assalto. Douglas Stafford afastou-se com um olhar carregado e petulante. Sabendo que não nos voltaríamos a encontrar tão depressa, e descontraído pelo arrojo dela, eu disse no mais agradável dos tons:

 

- Como passa o vossofilho, Robert Dudley?

 

O choque dela deu-me uma perversa sensação de prazer, mas tinha-lhe também feito cair as defesas, e assim respondeu-me sem questionar a minha curiosidade, e talvez mais directamente do que ofaria de outra forma:

 

- Está em Inglaterra e eu raramente o vejo, mas sei que está bem. já tem quase treze anos. Dizem que é alto e belo... como o pai. - Estas últimas palavras foram proferidas tão sarcasticamente que eu tive que me conter para não ripostar. Então ela olhou para mim outra vez com olhos de tal forma perscrutadores que eu pensei que o melhor era sair do seu campo de visão antes que ela percebesse quem eu realmente era. Virei-me para sair. Ela agarrou-me a mão, colocou-a sobre o seu peito pálido, levou-a para dentro do corpete de forma a que os meus dedos roçassem o mamilo erecto e disse: - Por favor volte a visitar-nos, Harry. Sois sempre bem-vindo aqui.

 

Senti-me a enrijecer naquele sítio, mas não me atrevia a demorar nem mais um momento. Regressei aos meus aposentos e compus num código rude que tinha aprendido recentemente o meu primeiro despacho para Lord Leicester na Holanda, informando-o acerca do escandaloso plano de Espanha para invadir a Inglaterra.

 

- Tendo chegado ao conhecimento das intenções nefastas do rei Filipe, desejei ardentemente partir rapidamente para Espanha para dar o melhor uso aos meus serviços. Mas Lord Leicester, nas suas cartas cifradas, instruiu-me para eu sob nenhumas circunstâncias fazer tal sem primeiro me encontrar com o seu querido amigo e tutor, o doutor John Dee - um homem famoso seguramente, mas cuja utilidade para a causa inglesa era, na minha mente, um tanto ou quanto duvidosa. Não obstante curvei-me perante os desejos do meu pai e viajando através do continente até à Boémia e à sua capital, Praga, consegui encontrar-me com Dee no Palácio Real do rei Rodolfo II.

 

Quando entrei pelos seus portões fiquei, à primeira vista, pouco impressionado com a cidade, não me parecendo nem mais nem menos grandiosa ou povoada do que qualquer outra cidade europeia que tinha visto nas minhas recentes viagens. Mas à medida que penetrava na zona central da cidade, onde se erguia o palácio, fiquei gradualmente consciente de uma estranha atmosfera que imbuía o sítio. Não tanto os edifícios, pois nada tinham de notável, mas a ampla mistura de vozes, línguas e sotaques que se ouviam alemão, italiano, russo, francês, inglês, italiano, árabe. Havia pequenos grupos de estudantes e homens mais velhos, até as mulheres se reuniam, as cabeças inclinadas na mesma direcção numa atitude de discurso apaixonado, ou dobrados sobre um livro aberto numa mesa de jardim. Era inteiramente encantador saber que aqui em Praga havia um caldeirão de culturas, ideias, educação. Parecia de repente, apesar das suas paredes de pedra cinzenta e das ruas sujas, nada menos do que uma cidade de luz.

 

Pela altura em que encontrei o doutor Dee no pátio do palácio - ele era um ancião com um longo nariz, uma longa barba e os olhos mais penetrantes que eu alguma vez vi - estava já num estado de deslumbramento. A toda a volta havia jardins desenhados com os mais intrincados padrões geométricos, elaborados relógios de sol, grutas verdes enfeitadas com estátuas de deuses míticos, criaturas com cornos e asas, e outras engenhocas mecânicas e mundanas. Dee apreciou claramente o meu extático agrado com os terrenos do palácio, e após breves apresentações, esforçou-se por me proporcionar uma viagem guiada ao local.

 

Ele era claramente mais do que um visitante aqui. Era um confidente íntimo do rei Rodolfo, e tínha-lhe sido dada liberdade total para vaguear pelo castelo à sua vontade. Enquanto o explorávamos, Dee começou um discurso no qual se abriu comigo - uma medida da sua confiança no homem que nos tinha reunido, Lord Leicester.

 

- Nunca se adivinharia que o rei Rodolfo é um Habsburgo - disse Dee enquanto entrávamos numa biblioteca impressionantemente fornecida. - O sobrinho dele, Filipe de Espanha, acha-o de facto muito estranho, considerando os seus interesses pelo oculto e pelas ciências como não sendo desprovidos de loucura.

 

Eu mantive-me em silêncio, uma vez que também tinha ouvido dizer que Rodolfo era completamente doido e que igualmente Dee era, ele próprio, de um carácter questionável.

 

- Todos os que vêm a esta cidade são abençoados por ter um tão seguro porto para ideias de qualquer natureza - continuou ele. Olhou para o outro lado pensativamente, fiscalizando as prateleiras talhadas repletas de volumes encadernados a couro. - A minha biblioteca em Mortlake foi recentemente pilhada por um bando de puritanos fanáticos. E é claro que a influência de Espanha não está completamente ausente aqui. O meu sócio Edward Kelly e eu fomos detidos pelas autoridades religiosas - presos de facto. Desejavam enviar-nos para Roma para sermos interrogados relativamente às nossas práticas mágicas, mas Kelly é um bom argumentador. Convenceu o núncio papal a abandonar todas as ideias de processo, pelo menos por enquanto. - Olhou-me com aqueles olhos penetrantes. - Deve-se ter sempre cuidado, Arthur, mesmo em Praga.

 

Agora fazía-me notar para minha surpresa que os livros nesta biblioteca - todos eles - eram de natureza mística. Tirou para fora um volume antigo e folheou-o quase com ternura.

 

- As vossas práticas mágicas - perguntei eu. - Podeis dizer-me mais sobre elas?

 

- Tens que compreender que existe uma diferença entre malificarum, a bruxaria negra da qual fui acusado, e mágica, o estudo dos poderes ocultos da Natureza do qual sou um aderente devoto. Da Natureza pode ser extraído todo o tipo de conhecimento, e no conhecimento está o futuro, sim! - A disposição dele pareceu ter sido subitamente alçada pelo tema, e a voz tornou-se-lhe forte e apaixonada. - O conhecimento da ciência e tecnologia - deve ser aprendido por todos, pelos artesãos em particular. Não existem limites para o que pode ser feito com tal conhecimento, nenhuns! Eu acredito que países inteiros podem ser completamente derrotados sem a utilização de um exército, sim!

 

Tão absurda era aquela afirmação que a minha atitude de curiosidade educada se transformou num choque profundo, mas antes de lhe poder perguntar como podia uma tal coisa ser realizada ele tinha mudado de assunto, perguntando por Lord Leicester. Enquanto lhe relatava as novidades pude ver quão afeiçoado Dee era ao meu pai. Uma parte de mim desejava declarar a minha paternidade, pois sabia que a verdade estaria a salvo com ele. Mas tinha prometido nada dizer a ninguém, e assim permaneci em silêncio.

 

À medida que a nossa volta pelo palácio nos levava para uma das salas de maravilhas de Rodolfo - equipada sem dúvida pelo próprio doutor -, observei todo o tipo de engenhos desde os astrolábios, globos, recipientes do equipamento do laboratório de alquimia, até aos horóscopos em forma de cartas astrológicas de todos os monarcas do continente. Pela altura em que ele sugeriu que nos retirássemos para sua casa eu estava tonto com o que vira, ouvira e com as ideias, que prontamente aceitei o convite.

 

Enquanto atravessávamos lentamente a cidade e saíamos pelos seus portões na direcção do campo luxuriante, Dee inquiriu acerca de outro dos seus estudantes que lhe era muito querido - Philip Sidney. Eu soubera durante aquela primeira noite nos aposentos do meu pai que a sua irmã, já falecida, Mary Sidney era a mãe - e consequentemente eu era o primo do muito amado poeta, Philip. O jovem, que casara com a filha de Francis Walsingham, Frances, havia recebido uma comissão na Holanda como governador de Flushing. Eu podia agora acrescentar a isso o conhecimento, extraído da minha correspondência com Leicester, de que o soldado Philip Sidney estivera envolvido em confronto com as tropas espanholas de Parma, e que se tinha distinguido por feitos de coragem e bravura no campo de batalha.

 

Vi a cara de Dee a escurecer e perguntei-lhe o que é que o incomodava.

- Não gosto das estrelas de Philip - disse ele simplesmente. - Elas auguram muito mal. E no entanto... o que é que se há-de fazer? - Olhou para mim de muito perto e eu perguntei-me se ele veria o meu futuro nos meus olhos. Então pensei, não, ele não fez o meu horóscopo, não consultou o seu cristal negro, não sabe nada de mim excepto o que lhe contei.

 

Chegámos à magnífica propriedade de Trebona, onde Dee e o seu sócio Kelly viviam há mais de um ano como convidados de Villem Rozmbeck. Eu fui conduzido a um quarto adorável com uma janela que dava para um lago ornamentado com flores, e depois de me ter refrescado um pouco encontrei o doutor bastante ansioso para continuar a nossa conversa. Abandonámos a casa principal e vagueámos por alguns caminhos de jardim cobertos de relva, chegando porfim a uma pequena casa, com metade de cima da sua porta de madeira aberta e um homem magro, de meia-idade e vestido simplesmente com umas ceroulas de lã e uma camisa de linho, dobrado sobre uma mesa a desempenhar uma qualquer tarefa meticulosa.

 

- Aqui está Kelly - disse Dee. O homem ergueu os olhos. Tinha o cabelo castanho descuidado e a cara aberta e alegre com um sorriso largo, desfigurado pelafalta de um dente em baixo e do seu companheiro de cima.

- Apresento-te Arthur Southem, Edward. Um amigo de Lord Robert.

 

Entrei e momentos depois estávamos os três embrenhados na mais vívida e menos habitual das conversas que eu alguma vez tinha experimentado. Enquanto que eu acreditara, na minha ingenuidade, que o essencial da filosofia do doutor Dee me tinha sido explicado no palácio de Rodolfo, percebia agora que ele mal tinha arranhado a superfície do brilhante cristal que era a sua mente. Aqui na santidade privada e protegida do seu laboratório, Dee começou afalar da verdadeira razão da sua presença na corte de Rodolfo. Ele era um dos espiões de Walsingham.

 

- Eu posso ser um mágico, mas acima de tudo sou um patriota explicou-me ele, fazendo deslizar a mão de forma ausente pela página de um grande volume aberto - e aprendi a forma de utilizar as artes mágicas... - como uma ferramenta da política de Estado. Comecei há muitos anos quando fiz um horóscopo para a princesa Isabel para determinar o dia mais auspicioso para a sua coroação. Mais tarde usei o meu cristal para descobrir o modo de transmissão das correspondências traiçoeiras entre Maria da Escócia e os seus conspiradores. Era nas garrafas de vinho - acrescentou ele maliciosamente. - Vês, meu rapaz, eu acredito num incomparável e inconquistável Império Britânico Unido com a Rainha como imperatriz, apenas condicionada por Deus, e armada com as armas invencíveis da magia e da tecnologia.

 

Kelly falou numa voz que era suave e imponente, e polvilhada com um pouco mais do que uma pitada de cinismo. O seu timbre levou-me a escutar cuidadosamente, percebendo como é que ele facilmente conseguiria vender um trapo a um trapeiro.

 

- O bom doutor afirma que a nossa Rainha é uma descendente directa do Rei Artur de Camelot, e que o Estado Tudor é a restauração do reino dele. Eu virei-me para olhar inquisitoriamente para Dee - pois a afirmação de Kelly espantou-me e repentinamente perguntei-me acerca do nome que a minha mãe me tinha dado. Seria uma mera coincidência? Descobri Dee a olhar atentamente para mim.

 

- A minha... - fiquei desorientado, completamente vermelho. O doutor Dee furou-me com aqueles olhos. - A Rainha conhece esta sua teoria? Ele abanou lentamente a cabeça, sem tirar os olhos de mim. Desejei perguntar há quanto tempo ela a conhecia, e se concordava, mas não me atrevi a arriscar assim tanto não fosse ele descobrir o meu jogo.

 

Kelly prosseguiu, o cúmulo do sarcasmo aguçado num ponto.

 

- Eu acredito que o meu sócio se vê a si próprio como o Merlin pessoal de Isabel.

 

Dee estava perturbado mas não por esta revelação, nem pelo tom da voz de Kelly.

 

- Kelly e eu conversamos com os anjos, Arthur, numa tentativa de trazer o Céu e a Terra para uma harmonia divina. Os anjos dizem-me que apenas o meu trabalho preserva a Inglaterra da ira de Deus e da destruição.

 

De facto, eu tinha ouvido falar destas "conversas" com personagens angélicas. Tinha sido isto, mais do que qualquer outra coisa, que destruíra a reputação de Dee em Inglaterra efizera dele objecto de ridículo em todo o lado, excepto na libertária Praga.

 

- O seu trabalho. Qual é o seu trabalho, doutor? - perguntei eu, surpreendido com a minha própria audácia.

 

- Símbolos - respondeu ele simplesmente. - A criação das nossas próprias cifras secretas, e decifrar as dos inimigos.

 

Fiquei de boca aberta a olhar para ele e, de repente, só consegui pensar em Partridge dobrado sobre o seu primeiro livro roubado de cífras.

 

Dee virou as páginas do livro que estava debaixo da sua mão até à capa. Eu consegui ver que o título era Monas Hieroglyphia e que o autor era ele próprio. Havia um estranho símbolo a meio da página, uma cruz furada rodeada por outras figuras e sinais igualmente esotéricos.

 

- Tu és um agente secreto, Arthur, e deves portanto saber que a espionagem depende totalmente da eficácia das cífras. Durante anos todos nós Walsingham, Leicester, Cecil, Isabel - utilizámos o manual Albertí. Então eu descobri um texto há muito perdido escrito por Trithemius. Chamava-se Steganographia e era esotéríco até ao cúmulo, mas a partir deste livro eu aprendi segredos e técnicas inimagináveis, muito rapidamente só depois fui capaz de escrever o meu livro. Ninguém nas universidades compreende "Monas". Antes, o mundo acreditava que eu era um mágico de magia negra. Agora pensam que sou um lunático. - Parou, sorriu ironicamente. - Eles que o pensem. Nós, os que temos que compreender o livro, compreendemo-lo. A Rainha dá-me o seu apoio incondicional.

 

- Eu quero aprender a usá-lo - disse eu com toda a urgência dum homem esfomeado perante uma mesa coberta de iguarias.

 

- Não tens tempo, meu rapaz - respondeu Dee. - Tens trabalho importante para fazer noutro sítio. Vem.

 

Deu-me o braço e conduzíu-me pela porta traseira da casa para um pátio murado. Aí havia uma estátua grega, bastante indistinta, dentro de um tanque de água. Estava manchada, ambos os braços e o nariz partidos, e o sol amarelo estava mesmo a começar a cair numa luz angulosa sobre ela. À medida que o fazia, pareceu-me ouvir um gemido desmaiado a emanar da estátua, mas precisamente nesse momento senti Dee a lançar um braço em redor do meu ombro.

 

- Eu tenho um filho chamado Arthur - disse calmamente. Virei-me para ele e vi que tinha os olhos fechados, as pálpebras a bater. De repente agarrou-me com mais força e eu senti o corpo dele a estremecer subtilmente. - A tua mãe e o teu pai... - disse ele lentamente - são-me muito queridos, sabes.

 

Agora o meu corpo começava a tremer, e o zumbido aumentou de volume. Eu estava dividido, sem saber se devia manter os olhos neste estranho homem que tinha proferido um tão espantoso comentário ou se devia voltar o olhar para a estátua canora. Virei-me. A luz angulosa tinha-se estendido mais sobre a forma de pedra. O som estava claramente a aumentar de volume à medida que a luz se movimentava pelo rosto dela. Obriguei-me a olhar de novo para Dee. Os seus olhos abriram-se.

 

- Disseram-me que tinhas morrido à nascença - disse ele. Ele sabia quem eu era!

 

- Também aos meus pais foi dito isso - rosnei eu simplesmente. A minha mãe não faz ainda ideia de que eu estou vivo.

 

- Isso é sensato. Sim, muito sensato. Diz-me, Arthur, sabes a data e hora do teu nascimento? Eu gostaria de fazer o horóscopo de outro dos descendentes do Rei Artur.

 

Fiquei subitamente mudo e petrificado, a minha mente a rodopiar. Como soubera ele? Parecia-me eu assim tanto com os meus pais? Teria ele com o seu simples toque sondado dentro da minha própria mente e descoberto a verdade? Um descendente do Grande Rei. Olhei para o doutor Dee estupidificado, depois de novo para a estátua totalmente iluminada, agora a zumbir ruidosamente e em dissonância. Por fim, encontrei a minha voz.

 

- Como é que se faz? Tem de me dizer! - gritei, sem saber sequer qual das suas estranhas experiências estava a exigir que ele explicasse.

 

Dee sorriu, os seus grandes dentes a cintilarem marfim ao sol poente.

- Magia, meu rapaz. É simplesmente magia.

 

Francis Walsingham virou-se para ver o mensageiro em pé à sua frente. Ele tinha vindo à procura do secretário no grande salão

 

da sua casa de Londres, agora transformada num elaborado departamento de cifra.

 

- Uma carta de Lord Leicester.

 

Walsingham pegou no pergaminho selado e abriu-o. Não estava escrito em código, mas sim na caligrafia normal do seu amigo.

 

Walsingham foi até junto de uma janela para ter luz. Mas depois de ler as primeiras palavras parou, pensando que a partir deste momento haveria de facto menos luz no mundo.

 

Meu caro Francis,

É com o mais profundo pesar que te escrevo dolorosas notícias acerca do teu muito amado genro. Hoje Philip Sidney morreu dos seus ferimentos sofridos na batalha de Zutphen. Imagino o teu choque com esta mórbida reviravolta dos acontecimentos, visto que a minha última carta te assegurava que o ferimento de bala na coxa estava a curar-se bem, sem quaisquer sinais de envenenamento do sangue. A tua doce filha, Frances, apesar de grávida de seis meses, estava a assisti-lo dedicadamente. O apetite dele era bom e dormia com facilidade. Ficámos portanto todos surpreendidos quando, há dez dias, Philip ergueu os cobertores da cama e se sentiu o odor de putrefacção. A gangrena tinha-o apanhado. Foram feitos todos os possíveis, mas, infelizmente, sem esperança, e enquanto ainda estava no seu perfeito juízo ele fez o seu testamento. Proferiu as suas últimas palavras para o irmão Robert, dizendo: "Amem a minha memória."

 

Philip não deveria ter problemas com isso, pois o meu sobrinho era tão bem amado como nenhum outro homem que eu tenha conhecido. Todos aqui o choraram amargamente, e circula entre as tropas uma história que mostra o altruísmo dele e que eu sei que gostarias de ouvir. Depois de ter sido ferido e de ter percorrido duas milhas até ao meu acampamento com muita perda de sangue, foi tirado de cima do seu cavalo. Estava desesperadamente exausto, sedento e prestes a beber um pouco de água quando viu outro soldado - um moribundo - a ser transportado numa liteira. Philip coxeou até ele e colocou a jarra nos lábios do homem e disse: "Bebe isto. A tua necessidade é maior do que a minha."

 

Oh, Francis, esta é uma tragédia inalcançável, pois o jovem Sidney não era simplesmente amado pela sua família e amigos, mas pelo seu talento e grandeza de coração - era um tesouro nacional mais precioso do que diamantes e ouro. Eu choro pela tua filha que sofre pela perda do marido e pelo filho por nascer sem pai. Pela minha parte perdi, para além de um dos principais confortos da minha vida, uma muito preciosa ajuda ao meu serviço aqui na Holanda.

 

Por fim, mando-te toda a minha força para ajudar a convencer a Rainha a passar uma sentença de morte à sua prima Maria, condenada pela lei como uma intriguista e arquitecta da destruição de Sua Majestade. A Inglaterra nunca estará a salvo enquanto essa malvada mulher viver. Força o consentimento da Rainha, se for preciso, mas faz com que aconteça!

 

Assim mando-te esta esperança de boa saúde para ti, uma lembrança de que o pobre Philip está finalmente com Deus no Céu, e uma oração para que os nossos próprios esforços consigam conduzir a Inglaterra para fora da tempestade que se aproxima.

 

Teu em Cristo e teu fiel amigo, R. Leicester

 

Tinha passado algum tempo em Itália, uma vez que era o melhor ponto de escuta de Espanha em todo o continente. Incontáveis navios vindos dos portos espanhóis e portugueses cruzavam o Mediterrâneo surpreendentemente azul, ancorando nos muitos portos de mar altamente agitados da bota. Os reforços de Parma que marchavam para os Países Baixos viajavam por Milão. O dinheiro genovês financiava a guerra de Filipe, e sem Nápoles a Espanha teria ficado privada dos seus grandes construtores de navios. O Vaticano acreditava que era vastamente poderoso, mas naturalmente era pouco mais do que um peão de Espanha. Filipe era, afinal, mais pio do que o papa Gregório em pessoa, e a vitória sobre os infiéis ingleses iria certamente levar o rei espanhol ao Céu antes do papa.

 

Em Itália aprendi a língua, com facilidade, dado todo o meu latim. Travei conhecimento com os falsários locais que eram alguns dos melhores no mundo, e aprendi o ofício que iria alegar ser o meu, uma vez em Espanha - o de mercador italiano, vendedor das mais exóticas especiarias do Oriente.

 

Durante a minha estada consegui obter entrada no Vaticano regularmente, substituindo um dos guardas suíços. Aí escutei todos os mexericos palacianos - do papa, cardeais, bispos e seus criados - e achei-o mais lascivo e perverso do que qualquer outro sítio onde eu tivesse privado em qualquer país antes ou a partir de então. Observei e esperei pelo momento em que poderia causar algum dano ao próprio Gregório, um homem que tinha incitado todos os católicos do mundo a assassinar a minha boa mãe, dizendo que quem despachasse "aquela mulher culpada de Inglaterra", não só não incorreria em pecado como conquistaria mérito aos olhos de Deus.

 

Soube através de um dos espiões de Walsingham em Roma, Francesco Pucci, que o papa estava de posse de uma carta do rei Filipe que discutia as sugestões de Gregório acerca da invasão da Irlanda para construir uma força preparatória para a guerra contra a Inglaterra. A missiva encontrava-se no gabinete privado de Gregório. Precisava de ser copiada, mas eu tinha sido enviado para longe dos aposentos do papa. Concebi um plano que executei com grande cautela numa noite de sábado.

 

Terminado o meu turno, marchei pelas grandes escadas acima com um ar adequadamente oficial no meu uniforme de guarda suíço - que eu chegara a odiar, sentindo-me mais como um remoto bobo de corte do que um soldado. Nos apartamentos papais ataquei Giorgio Odotto, um dos cavalheiros do quarto de dormir, com muitos cumprimentos e algumas garrafas de clarete. O senhor dele estava fora naquela noite - nas prostitutas, disse Odotto - por isso sentámo-nos nas belas cadeiras douradas do Santo Padre a beber pela noite dentro. Quando Odotto já estava embriagado administrei-lhe num copo de vinho uma poção de ervas obtida num químico local, e uma vez emborcado o copo o cavalheiro adormeceu profundamente e depressa ressonava. Disparei pelos numerosos gabinetes do papa repletos de papéis oficiais até que encontrei aquele que procurava, e sentei-me à luz das velas a copiar meticulosamente à mão, palavra a palavra.

 

Tinha acabado de completar o meu trabalho quando ouvi uma agitação do outro lado da porta. Apaguei a vela e deitei-me em pilha junto de Giorgio, fingindo estar a coser a bebedeira. Quando o papa chegou na companhia de uma bela cortesã, encontrou o seu criado e um guarda suíço na mais terrível das condições. Fomos corridos a pontapés instantaneamente e o pobre Odotto, desgraçado injustamente, perdeu a sua posição, despromovido para a lavandaria do Vaticano. Eu fui descomposto pela minha parte na cena, e parti alegremente, com a carta trasladada no bolso.

 

A minha paragem seguinte foi a villa Pucci. Francesco ficou extremamente satisfeito com os meus esforços, pois o meu sucesso nesta missão difícil mas crucial fora ao encontro as ordens de Walsingham ao próprio Pucci. Agora só faltava a entrega pessoal ao próximo na linha, e para meu deleite soube que era John Dee em Praga. Ele ia pegar na minha cópia, transpô-la em código e enviá-la para Inglaterra.

 

Mas agora era tempo de deixar a Itália e apressar-me para Espanha. Escolhi evitar mais uma viagem marítima, mesmo nas águas calmas do Mediterrâneo, e por isso viajei por terra pela perna da Itália acima e pela França dentro, atravessando para Espanha pelos escarpados picos dos Pírenéus. Ao longo desta acidentada viagem no ar gelado e rarefeito dos Alpes, o meu cavalo sofreu mais do que eu, e eu perguntei-me se não me teria saído melhor com uma mula, como tantos dos meus companheiros viajantes faziam. Felizmente descemos e atravessámos uma torrente perigosa chamada a Bidassoa e finalmente dei por mim no país do meu inimigo.

 

Mais do que tudo o resto a Espanha era quente. Quando cheguei corria o mês de Março e em Inglaterra, ou na Holanda, este era o mais frio dos meses. Aqui era Primavera, e o sol na minha pele acariciava-me como a mão doce de uma mãe. Abrandei o passo, dei por mim a pensar acerca de abandonar o passado e todo o conhecimento da minha família. Imaginei brevemente como seria fugir para o campo. Viver entre cavalos. Uma bela mulher. Mas como um bando de malfeitores nocturnos, esses pensamentos apanharam-me de surpresa, e depois desapareceram novamente na escuridão da noite. Claro que eu nunca poderia abandonar a minha missão, o serviço do meu país e dos meus pais. O sangue era tudo em Inglaterra, e o meu sangue era a Inglaterra.

 

Na cidade fronteiriça de Irúri não encontrei vivalma a não ser os agentes da Inquisição interessados na minha travessia para o seu país. Não me pediram passaporte nem documentos de qualquer espécie, mas antes interrogaram-me apenas para descobrir se transportava alguma literatura herética nos meus sacos. Pareceram aceitar a minha alegação de que era um mercador de especiarias italiano. Para jogar pelo seguro dei-lhes algum cravo-da-índia e pimenta para eles levarem para casa para os seus cozinhados, e o suborno deu muito bom resultado.

 

Foi em Castela que encontrei a minha primeira alfândega e, também aqui, houve pouco interesse em quem eu era, mas muitos oficiais alfandegários que me exigiram que registasse não apenas a mercadoria mas também todas as peças de vestuário que tinha comigo e todo o dinheiro que possuísse... para poderem cobrar imposto sobre isso. Aqui desejaram ver o meu passaporte, mas apenas para poderem exigir o exame às minhas malas, esperando descobrir um qualquer pequeno artigo que eu não tivesse declarado e espremer-me até à última moeda que eu tivesse.

 

De novo a caminho, cogitei sobre o rei Filipe ser tão desleixado nas suas fronteiras, armando-as com meros cobradores de impostos e caçadores de hereges, e não agentes do seu governo, para caçarem espiões como eu próprio. Mas abençoei a sua avidez e zelo religioso, pois tornava o meu trabalho muito mais fácil.

 

A minha primeira noite numa estalagem espanhola foi um desastre. Nínguém me explicara que um viajante tinha que levar os seus próprios abastecimentos consigo - azeite, pão, ovos, carne comprada num carniceiro local - que entregava ao estalajadeiro para serem cozinhados. Como nenhum dos outros clientes nessa noite estava disposto a partilhar, passei fome. Um desgraçado imundo com ar de mendigo serviu-me vinho, não de uma garrafa mas de um odre, cuja bebida - aliás razoável na sua qualidade - tresandava a couro e resina. Pensei que tinha tido sorte por arranjar um dos quartos com cama os outros eram meras pilhas de palha - mas dormi nessa noite com tantas pulgas e percevejos que quando acordei no dia seguinte parecia estar com um caso sério de sarampo. Desejando ir-me embora rapidamente parti assim que o Sol nasceu, para descobrir que o meu cavalo caíra morto de exaustão.

Reparei que muitas pessoas de qualidade neste país se faziam transportar em liteiras puxadas por duas mulas - na verdade havia mais mulas do que cavalos. Embora não tivesse qualquer desejo de viajar num tal animal, fui obrigado a regatear com um almocreve por dois dos seus animais para me transportarem a mim e à carga de especiarias até eu conseguir encontrar uma montada como deve de ser. Não estava acostumado à secura do ar e da paisagem, às serras altas e às planícies áridas. A única vegetação que talvez se visse num dia inteiro de viagem era tomilho, com rebanhos de ovelhas a pastarem-no, e nem uma árvore à vista.

 

Era minha missão, tal como para todos os outros espiões ingleses em Espanha, dar notícias acerca dos navios da frota de Filipe - a sua quantidade, tipo, tonelagem, munições e provisões levadas para bordo, e o número de soldados, marinheiros e escravos de galés reunidos neles. Por isso dirigí-me para oeste para Portugal - recentemente anexado à Espanha pelo rei Filipe - com planos de observar as cidades costeiras, portos e docas para obter essa informação vital.

 

A minha paciência com as mulas estava a esgotar-se, mas a sorte não queria nada comigo para encontrar um bom cavalo. Não desejava simplesmente qualquer cavalo, pois esta viagem exigia excelência, até mesmo perfeição, e o companheiro certo era essencial para o meu sucesso. Além disso, a Espanha era famosa pelos seus cavalos árabes, e eu estava determinado a encontrar o cavalo dos meus sonhos.

 

Ainda em Espanha, na estrada para Pontevedra, deparei com um espanhol idoso de pele curtida pelo sol mas com uma cara simpática que estava a treinar um cavalo ainda jovem num campo. Parei e observei-o em silêncio durante um longo momento. Ele reparou em mim imediatamente mas apenas o denunciou com o mais ligeiro reconhecimento, um leve aceno de cabeça na minha direcção. Eu conseguia ver que ele tratava o cavalo com um toque firme mas gentil, e falei-lhe quase constantemente num tom cativante e adulador. Quando o homem acabou, recolheu a corda e começou a levar o cavalo com ele. Eu chamei-o: "Seiior!" - e ele fez-me sinal para entrar na sua propriedade efalar com ele.

 

Não era muito grande - um fidalgo talvez, ou seja, um cavalheiro espanhol de condição baixa - e apesar dos seus olhos encovados e remelosos emanava aquele fantástico orgulho de espírito que os Espanhóis possuem, quase ao extremo. Educadamente, e aderindo a todas as regras de etiqueta desta gente que aprendera anteriormente, contei-lhe o meu problema e perguntei-lhe se ele tinha algum cavalo para vender. Disse-lhe que este método de treinar animais era parecido com o meu e que sabia que qualquer cavalo que ele tivesse criado daria uma montada extraordinária.

 

Enquanto conduzia lentamente o potro para o estábulo, permitindo-me caminhar a seu lado, disse-me que não, que infelizmente nenhum dos cavalos dele estava à venda. Mas que se sentia só sem companhia, e se eu quisesse poderíamos tomar uma refeição juntos. Fiquei verdadeiramente desapontado, porém dei valor à oportunidade de me sentar com um espanhol na sua casa e ouvir os mexericos locais. Comemos ao ar livre debaixo da única árvore grande de toda a propriedade, servidos por uma criada velha e manca. A comida era simples e deliciosa, e ele ofereceu-me, para além do assado de cordeiro, todo o tipo de frutas da época - pêras, diospiros, maçãs e laranjas doces que descascou, separando os gomos e oferecendo-me.

 

O homem, Juan, era um grande conversador e o tópico favorito, claro, cavalos. Como espanhol, disse-me, naturalmente que odiava os mouros infiéis, mas há muitas centenas de anos eles tinham trazido cavalos árabes do continente africano para Espanha, e isso fora uma bênção infinita. Falou acerca da perfeição do cavalo árabe, como podia correr em velocidade um dia inteiro ou mais sem comer ou beber, que tinha, para além da resistência, uma rara inteligência e por vezes um espírito heróico. Falou de Al Borah, o Raio, o garanhão branco e alado montado nos céus pelo profeta árabe Maomé. E relacionou com grande satisfação a famosa história da cavalgada final e vitoriosa de El Cid na batalha - um homem morto mantido em pé pela armadura e sela sobre o seu valente cavalo árabe, Babieca, o Pateta.

 

A minha própria língua soltou-se com o sol e o vinho, retribui as histórias de Juan com as minhas, mudando apenas os detalhes que era preciso para manter a minha farsa. Tinha sido um mercenário na Batalha das Tulípas - por Espanha. Quando tinha catorze anos, o meu cavalo fora roubado por malfeitores na cidade de Nápoles, e com oito anos desobedecera à minha mãe para desempenhar uma demonstração de arte de picadeiro para o duque e duquesa de Milão.

 

Ele ríu-se e bateu palmas de satisfação com as minhas histórias e por fim o Sol começou a pôr-se e ele disse "Vem comigo" e eu segui-o até aos estábulos. Mandou um rapaz levar um cavalo comfreios mas sem sela dos estábulos que, à luz dourada, era uma visão digna de ser contemplada. Ela era uma beleza - cor de amêndoa com uma pata branca e um crescente branco perfeito na testa. A sua cauda alta e arqueada tinha sido maravilhosamente oleada e entrançada, e subitamente tive uma visão de uma mulher deliciosamente estragada com mimos num harém. Ela era esplêndida em todos os pontos - pernas como aço, um belo dorso, cernelhas altas. A cabeça era magnífica - comprida e elegante, os ossos dos maxilares claramente marcados, as narinas achatadas em repouso. Os olhos eram grandes e líquidos e a pele à volta deles preta e lustrosa.

 

Parecia estar a passar-me a pente fino como eu a ela. Aproximei-me e abanou calmamente a cauda. Acariciei-lhe a bochecha profunda e magra, e as orelhas abanaram como se eu tivesse algum interesse para ela. Olhei para Juan que sorria, convidando-me a tentar a minha sorte com a sua senhora. Não demorei nada a agarrar a sua crina entrançada e içar-me para as suas costas nuas.

 

- Qual é o nome dela? - Perguntei eu.

 

- Mirage - respondeu ele, o que imediatamente formou na minha cabeça uma imagem do deserto no qual os antepassados dela tinham corrido outrora.

 

- Vem, Mirage - sussurrei eu. - Mostra-me quem és. - E ela assim fez. Juro que nunca cheguei a completar uma ordem, pois o animal antecipava o meu próprio pensamento, todas as manobras, e com uma graça e precisão que eu nunca tinha conhecido num animal - mesmo no meu amado Charger. O galope era maravilhosamente forte e rápido, e eu adivinhei pela pura alegria com a qual ela corria que não o levava ao extremo. Quando relutantemente regressámos, já quase sem luz, o velho juan estava a palitar os dentes com um pedaço de palha. Enquanto estava sentado nela a avaliar todos os argumentos que podia reunir para ele me vender a Mirage ele disse:

- Quanto é que me dás por ela?

 

Eu quis gritar "Tudo o que possuo ou alguma vez vou possuir!", mas permaneci calmo, apenas me inclinei e me deitei sobre o pescoço quente e húmido dela com uma sensação de terna felicidade por ter encontrado uma nova amiga, e a sentír-me culpado por o homem que a tinha tão amavelmente trazido até mim ser em princípio meu inimigo mortal. Fiz a Juan uma oferta generosa que ele aceitou com um sorriso malicioso dizendo que valia mais, mas que as minhas histórias tinham contado para alguma coisa no sentido da compra, e que estava feliz com a venda em todos os aspectos.

 

- Pensei muitas vezes que a minha viagem até às costas de Portugal estava a ser demasiado agradável. Afinal, eu era um agente secreto a reunir informações para o meu país, que iria ser em breve sitiado pelo inimigo. Mas o tempo de Primavera estava óptimo, eu estava alegre na companhia do meu novo cavalo, e achei os Portugueses um povo tenaz que não tinham mais amor pelo rei Filipe - o usurpador do trono do seu monarca legítimo do que os Ingleses.

 

Os portos - Vigo, Porto, Lisboa - enchiam-se todos os dias com os navios do rei vindos de todo o mundo, e com eles vinham milhares e milhares de marinheiros e soldados que, para os Portugueses, eram estrangeiros a espezinhar as suas costas, esvaziar os seus mercados de comida para abastecerem os barcos, e quefaziam aumentar astronomicamente os preços dos bens de consumo. E para quê? O desejo do rei Filipe de combater em nome de Deus pela Espanha? A todo o lado a que eu ia, em todas as tabernas em que parava ouvia as pessoas a protestar que era para o próprio engrandecimento político de Filipe e não para o Senhor.

 

Era também uma questão de orgulho, soube eu, pois a tradição marítima dos Portugueses tinha precedido e superado em muito a dos Espanhóis. Eles tinham fundado os princípios da navegação com os quais os marinheiros de todas as nações do mundo contavam agora. Pior ainda, Filipe tinha requisitado os seus melhores e maiores galeões, dizendo que lhe pertenciam.

 

Eu ia até uma cidade portuária e apressava-me a chegar aos cais ou às estalagens na zona das docas onde podia abrir as minhas malas e apregoar as minhas mercadorias aos muitos capitães de navios que esperavam um dia serem libertados da "Grande Empresa" de Filipe para novamente esquadrinharem as águas e comerciarem. Aprendi muito nos meus negócios - quais e quantos navios estrangeiros tinham sido requisitados, confiscados ou fretados, como é que os navios estavam a ser aprovisionados com peixe seco, carne salgada, biscoito e vinho. Quanto cordame e velame estavam a ser levados para bordo e, extremamente importante, quais as provisões de munições. Um novo tipo de navio chamado "galé" estava ancorado em diversos portos. Eram propulsionados não apenas pelos escravos aos remos, mas pelos remadores e velas em conjunção. Pensava-se que estes navios eram a maior força da nova Armada de Filipe.

 

Não consistia surpresa que se estivesse a abastecer amplamente todos os navios com armas e artilharia. Surpreenderam-me mais as notícias de que a maioria dos canhões, balas e projécteis fossem de fabrico inglês. Que lógica, perguntei-me eu, havia em abastecer o nosso inimigo com poder de fogo!

 

As notícias do capitão Francis Drake esvoaçavam por todo o lado à minha volta. Chamado El Draco, este pirata inglês era largamente temido pelo prejuízo que provocava à Espanha no mar alto e nos seus entrepostos no Novo Mundo. Mas era respeitado, também, e mais do que uma vez vi cavalheiros a regatear o preço de uma miniatura do retrato do capitão. Eu sabia que de toda a informação que enviava ao meu pai, alguma seria seguramente utilizada ao serviço deste herói de Inglaterra.

 

Continuei para sul e rodeei o canto de Portugal de regresso a Espanha, dirigindo-me para leste ao longo da costa da Andaluzia, uma terra de inumeráveis oliveiras, laranjeiras e ciprestes que se espraiavam em grandes florestas.

 

Aqui vi escravos pela primeira vez - mouros e negros, seguindo as suas senhoras e senhores, por vezes ataviados à moda turca.

 

O antigo porto de Cádis era uma ilha de forma estranha ao largo da costa do continente que, com a sua margem curva, formava um magnífico porto duplo separado por uma pequena garganta, Na sua boca havia dois grandes fortes armados com artilharia pesada. O que me alarmou, contudo, não foi o porto em si mas antes o que encontrei dentro dele - quase cem navios, desde pequenas barcas a grandes galeões de mercadores, armados até aos dentes, que estavam, embora não completamente prontos para largar, mas quase, sendo a maior frota que já vira em toda a minha viagem.

 

Sentei-me na ponta de Santa Catarina em frente ao forte e escrevi o meu relatório para Leicester, completado com desenhos imperfeitos, embora não tivesse ainda encontrado qualquer rede de espiões de correios para Inglaterra tão para sul e, consequentemente, não tivesse uma forma fácil de fazer chegar esta carta ao conde, como tinha acontecido nas outras cidades. Se fosse preciso regressaria a Lisboa, acreditava que esta informação era vital para a defesa de Inglaterra. Tendo terminado, recoloquei a minha correspondência e material de escrita no bolso da sela e parti em busca de abrigo do sol da tarde.

 

Não muito longe, na estrada costeira vinda da ponta de Santa Catarina, encontrei a vila de Santa Maria, e a Mirage, pressentindo que iria ter descanso e uma refeição, lançou-se numa passada célere até à povoação. Não era um sítio grande, mas neste dia estava vivo com celebrações. Eu tinha descoberto nas minhas viagens que em Espanha quase tudo era desculpa para alegria e festividades - nascimentos e casamentos reais, visitas de príncipes, todos os feriados católicos, até a consagração de um santuário ou a procissão transportando uma relíquia sagrada de um lugar para o outro eram suficientes.

 

Nada sabia da causa das festividades deste dia, apenas cavalguei inserido na ruidosa procissão pela avenida principal abaixo. O ar brilhante vibrava com música de guitarras e pandeiretas. As pessoas cantavam, dançavam, em fatos elegantes, outros mascarados de animais. Os monges conduziam as mulas envoltas em cobertas de flores. Os vendedores apregoavam sumo de laranja e água de morangos, e belas senhoras com véus de renda beberricavam chávenas de chocolate tão espesso que eram obrigadas a beber a seguir chávenas iguais de água. Passámos por um palco armado, no qual se dançava uma chacóina frenética. As senhoras rodopiavam e viravam as suas cabeças empertigadas, sacudindo o cabelo e estalando os dedos.

 

Depois um burburinho repentino. Gritos. A multidão separa-se. Mirage e eu somos empurrados contra a parede e encurralados aí enquanto uma fina carruagem puxada por dois cavalos passa como um trovão – sem condutor - apenas as figuras de duas pequenas crianças a agarrarem o banco aterrorizadas. Alguns homens tentam agarrá-la, porém fica fora de alcance e dirige-se a grande velocidade para a estrada costeira. Todos - a pé, alguns sobre mulas - estão impotentes.

 

Eu grito para os que me prendem contra a parede para que, por amor de Deus, me deixem passar! Conduzo a Mirage através da multidão, ansioso para não espezinhar ninguém na confusão, mais ansioso ainda para apanhar a carruagem. A multidão abre caminho.

 

Os cavalos lançam uma nuvem de pó na estrada de terra pisada, mostrando-me para onde ir. Dírigía-se para a ponta de Santa Catarina onde a estrada acabava abruptamente numa paliçada alta por cima do porto. A Mirage corre como o vento, aproximando-se. Não estou suficientemente perto para ouvir as crianças gritar, vejo a ponta a aproximar-se rapidamente, os cavalos loucos, não abrandam. Uma explosão inimaginável de velocidade, abençoada Mirage! Agora três animais em galope lado a lado. Não me atrevo a olhar para as crianças amontoadas no banco, apenas fixo o meu olhar na parelha. São um palmo mais altos do que a Mirage, dificultando o meu salto para as costas deles. Cascos a bater ensurdecem-me. O pó bloqueia-me a boca e narinas. Consigo erguer-me em posição de agachamento na sela para me elevar acima da parelha. Sei que se saltar para as costas de um cavalo entre passadas ele de certeza que cairá. A carruagem virar-se-á, as crianças serão projectadas no ar e eles e os cavalos ficarão muito feridos - ou pior. Espero um momento. Sustenho a respiração. Tentando acertar o ritmo da passada, salto para o dorso do cavalo mais próximo. Ainda assim, o meu peso desacerta o passo dele. Cambaleia, endireita-se, mas eu caio das suas costas, no meio da parelha. Desesperadamente agarro-me à lingueta de madeira. Dor profunda! A minha coxa empalada, um gancho na lingueta. Ouço-me a gritar. Sinto os cavalos a abrandarem com o meu peso sobre a lingueta.

 

Está tudo quieto e silencioso agora exceptuando as crianças a lamuriarem-se, só os cavalos a arfarem, a carruagem a ranger mesmo parada. E o som da água a bater na costa lá em baixo. Levanto-me, em agonia, para fora do gancho, saio de debaixo da parelha. O sangue ensopa-me os calções. Viro-me para ver as crianças. Tão pequenas, os olhos ainda esbugalhados de terror. Coxeio até junto delas, retiro-as, uma em cada braço, da carruagem. Seguro-as enquanto choram...

 

A Mirage aparece então, em galope leve e gracioso como se nada se tivesse passado. É seguida por vários homens da povoação a cavalo, outra carruagem, um frade numa mula. Todos se reúnem à nossa volta, e uma mulher num vestido cor de vinho, com o véu afastado do rosto manchado pelas lágrimas, chama as crianças para junto dela. Os homens examinam a carruagem e através de uma bruma de dor ouço-os a exclamar a sua surpresa por ambos os cavalos estarem bem, apenas a lingueta da carruagem está partida. De repente estavam todos à minha volta, a olhar fixamente para este estranho que tinha vindo à sua terra. A mulher, com a cabeça enterrada nos cabelos dos seus filhos, está a gritar "Gracías, Senhor, Dios le Bendiga..." Então tudo perante os meus olhos fica branco e estou completamente fora deste mundo.

 

Quando acordei a luz do dia desaparecia e eu dei por mim acamado num quarto fresco e bonito, com as suas grandes janelas e porta a abrirem-se sobre aquilo que parecia ser um pátio espanhol, todo ele verdura e com o som de uma fonte gotejante. As mobílias eram boas mas faltava-lhes o esplendor do tipo que eu tinha visto nos aposentos do meu pai na corte. Um crucifixo estava pendurado na parede, e por baixo dele havia um pequeno altar com uma imagem da Virgem e diversas velas, todas acesas. Não havia ninguém por perto, e eu pude avaliar as minhas circunstâncias.

 

A dor na perna era violenta - uma espreitadela para debaixo dos lençóis para a minha nudez revelou uma ligadura bem feita, suficientemente larga para me cobrir toda a coxa direita. Imaginei que a minha partida temporária do mundo tinha tido a ver com a perda de sangue, e que alguém de entre as pessoas da povoação tinha tido pena de mim e por isso me trouxera. Quem era essa pessoa foi algo que se me revelou subitamente quando a porta se abriu e uma mulher com um vestido cor de vinho entrou com um tabuleiro cheio de ligaduras e de instrumentos.

 

Imediatamente me viu acordado, e o seu semblante sério transformou-se na mais sincera alegria. Fiquei estonteado com a beleza dela, pois no nosso primeiro encontro ela estava desfigurada por uma terrível emoção e lágrimas copiosas, e eu por uma dor excruciante. Mas agora podia ver que era bela. Os seus grandes olhos negros surgiam por cima de bochechas redondas que curvavam em baixo para um queixo delicadamente pontiagudo, de forma que juntamente com o profundo negro de viúva do seu cabelo lustroso que usava puxado para trás e preso num pente de prata, o rosto assemelhava-se a um coração perfeito.

 

- Senhor - disse ela pousando o tabuleiro e segurando a minha mão nas dela. Falou num tom rico e gutural muito agradável aos ouvidos. - Estou tão contente de vos ver acordado agora, embora tenha sido uma sorte que estivesses morto para o mundo enquanto o cirurgião vos assistia.

 

A dor era ainda tão violenta que eu mal confiava em mim próprio para falar, sabendo que teria de manter a minha farsa como italiano, se bem que conseguisse falar com ela em espanhol. A minha hesitação incitou-a a continuar.

 

- Não sei se poderei alguma vez demonstrar-vos adequadamente a minha gratidão por terdes conseguido salvar os meus filhos, Senhor. Eles são a minha vida.

 

Eu sorri, e o sorriso que ela me devolveu era tão quente como o sol andaluz. Então retirou-se numa contenção tipicamente espanhola.

 

- Eu sou Federico Reggio - consegui finalmente dizer, a minha voz parecida com a de um sapo a coaxar. - E estou grato que Deus tenha sido tão bom ao ponto de me permitir uma oportunidade de ajudar os vossos filhos. - Nos meses anteriores eu tínha-me tornado perito na formalidade latina do discurso que me era estranho, bem como na inserção de Deus em quase todos os aspectos da conversa.

 

- Eu sou Constanza Lorca de Estrada, e esta é a casa de meu pai. Sem pensar, os meus olhos desviaram-se para as mãos dela e vi que usava uma aliança de casamento. O marido, imaginei eu, estava fora na guerra da Holanda. Lembro-me de me sentir imediatamente entristecido por ela pertencer a outro homem, mas foi nesse momento que fui atingido por um tão terrível laivo de dor em toda a minha perna que gritei involuntariamente e comecei instantaneamente a escorrer suor. A cara de Constanza parecia espelhar a minha agonia e eu fiquei envergonhado com a minha falta de virilidade.

 

Ela tornou-se muito despachada e profissional.

 

- Tendes que me perdoar, Senhor Reggio, mas eu sou a vossa única enfermeira aqui, e tenho que verificar a vossa ferida e mudar a ligadura. O cirurgião receia a infecção. A vossa perna ficou muito desfeita.

 

Ocorreu-me então que esta ferida podia matar-me, e pensei na ironia de sobreviver a cinco anos de guerra e morrer num acidente na vida civil. Depois a porta abriu-se e um homem mais velho que eu supus ser o pai de Constanza e os dois filhos dela entraram.

 

- Vejo que o paciente está acordado - disse ele. Parecia à primeira vista um cavalheiro mal-encarado com uma voz impaciente, mas o sorriso era bondoso, e ele chegou-se a mim e agarrou a minha mão firmemente. - Eu sou Ramón Lorca. A Constanza, sei-o, agradeceu-vos, Senhor. Deixai-me acrescentar a minha gratidão à dela. E aqui estão outros dois que têm algo para vos dizer.

 

As crianças correram para a frente e começaram a sufocar-me com abraços suaves e beijos leitosos que ameaçaram trazer as lágrimas aos meus olhos. Arrisquei um olhar para Constanza que estava a ter dificuldade em controlar as suas próprias lágrimas. Mas num instante gentilmente os pôs fora, dizendo que precisava de assistir ao paciente.

 

Dom Ramón fez uma vénia formal e disse antes de fechar a porta atrás dele:

 

- Estamos a tomar bem conta do seu cavalo que é, como vós, Senhor, um herói na nossa casa. Como se chama?

 

- Mirage - respondi eu, e sorri ao pensar que alguém partilhava a minha admiração por aquele extraordinário animal.

 

Depois de Dom Ramón e os seus netos terem saído, Constanza ergueu o cobertor que cobria a minha perna ferida.

 

- Vou ser tão cuidadosa quanto possível, Senhor. Fiz um cataplasma de salva e alho, embora o cirurgião me tenha proibido de o utilizar.

 

Puxou a ligadura e logo o seu semblante apresentou uma tão grande pena ao ver a minha ferida que eu tive medo de ver por mim. Mas sabia que tinha que o fazer. Ergui-me sobre um cotovelo e espreitei simplesmente para o grande rasgão na carne na face interior da minha coxa que estava, embora cosida com alguma precisão, não obstante, de um púrpura profundo, e inchada a toda a volta. Caí mais do que me recostei de volta na almofada, exausto apesar de tão pequeno esforço, e perguntei-me, se de facto sobrevivesse a este ferimento, se ficaria aleijado para sempre? E mais premente do que isso, como iria eu enviar a minha informação acerca de Cádis para fora de Espanha? Tive pouco tempo para ponderar esse problema, pois no instante seguinte senti uma frescura sobre a chaga e vi Constanza a tirar várias mãos-cheias de uma substância húmida e cinzenta e a colocá-la na ferida.

 

- O que é isso? - perguntei-lhe eu.

 

- O meu cataplasma de salva e alho - respondeu ela.

 

Achei estranho que uma mulher desobedecesse a um cirurgião tão jovialmente. No entanto sentia-me confortável com as suas administrações, e confiava totalmente nela.

 

- Pode ulcerar independentemente do que eu faça, Senhor. Havia muitas lascas de madeira da peça da carruagem. Não sei se o cirurgião...

 

- Senhora - disse eu subjugando a vontade de gemer enquanto outra onda de dor se espalhava como fogo do pé à virilha -, sois mais do que gentil e estais a fazer tudo o que podeis. A minha recuperação está inteiramente nas mãos de Deus.

 

- Onde estava deus - murmurou ela ferozmente - quando os cavalos fugiram com os meus filhos?

 

Mais uma vez esta mulher tinha-me surpreendido. Não eram os espanhóis, de todos os mais católicos do mundo, os mais fervorosos na sua fé e na sabedoria infalível de Deus?

 

- Estais com fome? - perguntou ela colocando uma nova ligadura sobre o cataplasma,

 

- Não - respondi eu. - Embora ficasse grato com um golo de vinho. Enquanto ela limpava as mãos numa toalha de branco puro recordei-me subitamente dos campos alvos de Haarlem, e perguntei-me se o marido dela teria mandado a toalha da Holanda. Então senti o braço forte de Constanza por trás dos meus ombros a erguer-me, e o copo nos meus lábios. Enquanto bebia o vinho fresco e condimentado bebi, também, a sua doce beleza e pensei para comigo que a sua presença apenas poderia ser o suficiente para me curar.

 

Estava enganado. Durante essa noite a infecção na minha perna floresceu como umaflor malévola, espalhando o seu veneno pelas minhas veias. Acordei por momentos, a arder de dores e calor em todas as partes do meu corpo. Estava consciente de que Constanza estava sentada ao meu lado, pressionando panos gelados na minha cabeça e pescoço. Mas se falei fi-lo sem sentido, e lembro-me de vê-la em duplicado e de pensar, Ah, ela tem uma irmã gêmea, uma para mim. Depois comecei a girar caindo na escuridão e inconsciência...

 

Regressei ao bonito quarto na casa espanhola com uma sensação de um pano suave e húmido a limpar agradavelmente a crosta das minhas pálpebras que não tinha ainda forças para abrir. Ouvi uma voz de mulher a dizer:

 

- Vê como ele respira com muito mais facilidade. E a cor dele está boa. Alguém agarrou na minha mão e colocou os dedos sobre o pulso.

 

- A pulsação está muito mais forte, Senhora Estrada. É um homem de sorte, este Reggio. Deus recompensou-o pela sua boa acção para com a vossa família.

 

Quando o médico partiu forcei os meus olhos a abrirem-se lentamente. Até isto era difícil. Conseguia sentir mais ou menos todas as partes do meu corpo, e embora não houvesse qualquer dor exceptuando uma dormência na minha perna ferida, estava maisfraco do que um bebé e, na verdade, sentia-me como se tivesse sido torcido e espremido como um trapo de dona de casa.

 

Então Constanza entrou no meu campo de visão. O olhar na cara dela não era tanto de felicidade como de triunfo calmo, como se tivesse sozinha vencido um monstro. Sorri-lhe, reconhecendo a conquista. Sem falar, sentou-se ao meu lado simplesmente a afagar a minha mão com uma intimidade estranha. Então pensei que não era estranha, na verdade, pois nós tínhamo-nos entrelaçado no mais terno dos laços - eu tendo salvo as vidas dos seus filhos e ela a minha. Ficámos assim, em silêncio e contemplativos, as nossas mãos unidas, durante um longo momento. Por fim, ela sorriu e disse que desejava dizer ao seu pai que o seu honrado hóspede tinha voltado à terra dos vivos. Lembro-me de pensar enquanto Constanza fechava a porta atrás de si que já sentia a falta de a ver, ouvir e cheirar. E fiquei tão excitado como aterrorizado por saber que tinha conhecido a mulher dos meus sonhos.

 

Só quando Dom Rámón regressou com Constanza e eu lhe fiz sinal para me ajudar a sentar de forma a recebê-los com alguma dignidade é que arrisquei um olhar para os meus alforges que estavam pendurados por cima de um banco no canto do quarto. A minha barriga, felizmente vazia, deu uma violenta guinada mas eu rapidamente obriguei os meus olhos a virarem-se de volta para os meus hospedeiros. Fiquei ainda mais alarmado por reparar que Dom Ramón me olhava talvez mais friamente do que o tinha feito no nosso primeiro encontro, embora Constanza estivesse graciosa sem reserva. Ela estava a dizer que eu devia considerar a casa deles como minha até estar inteiramente recuperado.

 

- Há alguém a quem desejeis que nós escrevamos para Itália, Senhor Reggio, a vossa família talvez? - perguntou Dom Ramón num tom que me pareceu calmo mas ao mesmo tempo incisivo.

 

- Sim, à minha mãe - respondi eu rapidamente, fornecendo-lhes um nome e morada fictícios na cidade de Turim, sabendo que pela altura em que a carta tivesse chegado a Itália e sido devolvida aos Lorca eu teria há muito partido da casa deles.

 

De repente esse pensamento provocou-me uma sensação no peito, uma dor vazia. Abandonar Constanza... Não, tenho que me controlar! Ela era uma mulher casada, uma espanhola, uma católica. E eu não tinha qualquer razão para presumir que o meu amor era de alguma forma correspondido,

 

- Quando estiver suficientemente forte, tendes que vir à oficina disse Constanza calmamente. - Somos uma família de fabricantes de selas, já há muitas gerações.

 

- Quando estiver mais forte terei todo o prazer - disse eu olhando mais uma vez para os meus alforges, perguntando-me se eles teriam sido abertos, se a minha carta para Lord Leicester com o mapa do porto de Cádis e dos seus preparativos navais teria sido encontrada, se a minha verdadeira identidade como agente inglês teria sido descoberta. Perscrutando as caras deles pensei de repente que não. Se tivesse sido descoberto eles teriam tido tempo suficiente para convocar as autoridades e mandar-me prender - um espião em casa deles, um inimigo da Espanha, um herege. Não, argumentei em silêncio, não havia necessidade de fingimento da parte deles. Eles tinham de facto respeitado a privacidade de um cavalheiro. As minhas suspeitas acerca de Dom Ramón eram inteiramente infundadas. Eu estava em segurança, por agora.

 

Uma vez confirmado que a minha vida estava fora de perigo, embora a hospitalidade da casa de Lorca continuasse, foram-me negados os ternos serviços de assistência de Constanza, e eu raramente a via. Vinham criadas com os tabuleiros de refeições, e um criado idoso assistia às minhas necessidades pessoais. Lentamente aumentei o tempo fora da cama e exercitei a perna ferida, sabendo que mais cedo ou mais tarde teria de fazer passar o meu documento sobre a Armada em Cádis para o meu patrono.

 

Por fim, numa manhã depois do pequeno-almoço, aventurei-me para fora do quarto, com a perna rígida mas felizmente direita e a mexer-se. Desci as escadas para o pátio do jardim à volta do qual toda a casa tinha sido construída. Estava literalmente a zumbir com abelhas e colibris a banquetearem-se no néctar de mil flores florescentes, motins de cor em cascata pelas paredes brancas abaixo, a toda a volta da fonte gotejante. O meu coração acelerou quando vi o jardim, pois esperava encontrar lá Constanza, talvez rodeada pelos seus filhos, a coser ou a ler sossegada. Imaginei-me a chegar junto dela silenciosamente por trás, apanhando-a de surpresa. Ela engasgar-se-ia, e depois sorriria por me ver a pé e ali, talvez me pedisse para me juntar a ela, e ali ficaríamos os dois - eu a cortejar a bela senhora da casa, ela a contemplar a ideia de pôr os cornos ao marido com o estranho italiano a quem tinha tão devotamente salvo a vida.

 

Mas ela não estava no pátio, nem estava em nenhum outro lugar na grande e bem provida casa. Não me atrevi a inquirir os criados sobre o paradeiro dela, por isso dirigi-me aos estábulos, a pensar que ia visitar a Mirage. Lá dentro encontrei uma dúzia de boxes para cavalos, mas nenhum animal. Um palafreneiro apontou para o sítio onde os animais estavam a pastar numa pastagem distante, muito verde e, pensei eu, um lugar esplêndido para a Mirage passar a sua manhã.

 

Negada a companhia das duas senhoras minhas favoritas, sentia-me apesar disso bem, com o sol da manhã a aquecer a minha pele pálida, e a perna a doer-me cada vez menos a cada passo. À minha frente estava um grande edifício oblongo de um piso, simples e sem adornos a não ser uma estátua de São Francisco de Assis rodeada de flores, perto da porta da frente. Ouvi vindos lá de dentro uma míriade de sons - de vozes, de marteladas, de raspar e lavar - e pensei que teria que ser a oficina de fabrico de selas. Tinha sido convidado para a visitar e, como nunca tendo visto uma tal operação, entrei.

 

Quando passei pela porta fui imediatamente assaltado pelo horrível cheiro de peles a ferver em cubas de caldo de curtir, depois vi os curtidores, narizes cobertos com máscaras que não impediam os olhos deles de chorar, as suas sobrancelhas permanentemente vincadas com rugas de nojo. Perguntei-me como podia um homem trabalhar toda a vida numa ocupação tão revoltante, mas depois pensei que talvez outro homem pudesse pensar o mesmo acerca da ocupação de soldado - matar outros homens por um ordenado.

 

Através de um arco passei para outra sala onde encontrei homens a esticar e tingir as peles, muitas delas pretas, e reconheci os resultados couro cordovão ou berbere utilizado nas melhores selas espanholas.

 

Mais para dentro da fábrica, vi as selas a tomarem forma, algumas das armações de madeira pesadamente acolchoadas para os soldados - arções e patilhas de arções altos e enviesados brilhantemente da parte de frente para a de trás. Outras eram selas de cavalheiro com arções e cornos baixos e estilizados. Observei enquanto um ferreiro formava arções alados tão grandes que descreveriam uma curva ao jeito de armadura em torno das coxas de um soldado. Algumas armações já tinham as suas coberturas de cabedal, abas e estribos. Outras eram meros esqueletos à espera da sua pele.

 

Acontecia assim no Sul de Espanha onde todos os estribos eram curtos, visto que os cavaleiros cavalgavam a la gineta, isto é, seguindo de perto a moda turca, os joelhos dobrados num ângulo agudo, por vezes erguendo-se para ficarem de pé nos estribos para galopar. Se fosse no Norte de Espanha eu teria visto estribos mais compridos para cavalgar a Ia brida na forma ortodoxa preferida dos europeus e dos cavaleiros de antigamente: pernas direitas, os calcanhares em ângulo para a frente. Tinha aprendido que era uma questão de honra e de grande glorificação para um homem que dissessem dele que cavalgava bem em ambas as selas.

 

Através de uma outra porta em arco estava um verdadeiro inferno de calor e barulho - a oficina de metal onde artesãos suados trabalhavam e moldavam a partir de ouro e prata fundidos todo o tipo de adornos adequados para as selas de cavalheiros e reis.

 

A última porta em arco revelou uma câmara completamente diferente das anteriores. Um refúgio silencioso, vozes suaves, a rica e docefragrância do couro acabado. Era um sítio de artesãos - homens que se sentavam corcovados e felizes enquanto poliam e embutiam, gravavam em altos-relevos os pedaços de ouro e prata, ornavam bainhas e estribos. Os aprendizes moldavam a partir do marroquim aveludado e suave todo o tipo de rédeas, freios, gamarras, presilhas. As tiras de veludo eram bordadas, ornamentadas com borlas e guarnecidas de franjas por uma dúzia de avós de dedos esguios.

 

Os meus olhos contemplavam a rica beleza da arte e senti a paixão dos artesãos a moverem-se em ondas silenciosas à minha volta. Vi uma mulher, de costas para mim, com a cabeça inclinada sobre o seu trabalho tão atentamente que fiquei curioso de vê-lo. Aproximei-me, ficando de pé quase por cima do ombro dela. Com um minúsculo martelo a dar pancadinhas no extremo de uma sovela ela estava a criar um desenho gravado espantosamente intrincado num belo cabedal negro - espirais e flores, línguas de fogo, um dragão mítico com cauda de chicote a combater com um arrojado cavaleiro em cima do seu cavalo - tudo isto numa aba de bolso de um alforge.

 

- É magnífico - murmurei eu, relativamente incapaz de disfarçar o meu espanto. A artista virou-se então, e eu dei por mim confrontado com Constanza Estrada.

 

- Fico contente por vos agradar, Senhor Reggio. - Sustentou o meu olhar pelo que me pareceu uma eternidade, depois continuou o trabalho. Contudo, não me mandou embora. Ao invés falou naquela doce voz aculturada enquanto martelava o detalhe de um caracol de fogo a projectar-se da boca do seu dragão. Perguntou pela minha saúde e em particular como é que a minha ferida estava a sarar. Desculpou-se pela sua ausência à minha cabeceira nas últimas semanas, dizendo que o trabalho se tinha acumulado enquanto cuidava de mim e que tinha tido que compensar. Dei por mim satisfeito por ouvi-la falar, a olhar para baixo para o cabelo escuro a encaracolar-se em suaves gavinhas no pescoço, e a observar a posição, ângulo e precisão na batida dos seus hábeis dedos, apenas isso. Agora ela estava a provocar-me, dizendo-me que eu a tinha atrasado duas boas semanas e que o pai a obrigaria a pagar isso com o próprio couro dela. Riu-se então com a sua própria tolice e eu ri-me também.

 

- Senhora Estrada, tendes que me dizer. Como é possível trabalhardes... desta forma?

 

- Quereis dizer porque é que eu trabalho como um comum operário na oficina do meu pai?

 

- Não um operário - protestei eu. - Um artesão, decerto...

- Mas ainda assim isso intriga-vos, Senhor.

 

- Nunca vi uma dama a trabalhar assim em lado nenhum. Ela sorriu então com um sorriso misterioso.

 

- Deveis primeiramente compreender o quão profundamente isto... passou os dedos em jeito de carícia por cima do couro gravado me satisfaz.

 

Fiquei horrorizado ao sentir a minha pulsão e erecção sexual quando ela proferiu estas duas últimas palavras.

 

- Quando eu era rapariga - continuou ela, sem se aperceber do efeito que estava a ter sobre mim - comecei a roubar restos de couro e ferramentas da oficína, e a criar os meus próprios desenhos. Escondi-os, naturalmente, pois embora bordar fosse encorajado numa senhora, uma mulher trabalhar em couro era inconveniente, nunca se ouvira falar de tal coisa. Então, quando tinha treze anos, deparei com um panfleto do meu pai que discutia a corporação dos fabricantes de selas em Inglaterra, como eles tinham sido os primeiros a permitir a entrada de mulheres. Sonhei em tornar-me uma verdadeira fabricante de selas' embora soubesse que a Espanha não era a Inglaterra e que todos os meus sonhos seriam gorados. Mas numa noite quando o meu pai estava triste e com saudades da sua mulher - a minha mãe morreu quando eu era pequena - peguei nas minhas pequenas criações e, sem dizer palavra, coloquei-as em frente à lareira. Claro que ele estava curioso e examinou-as todas cuidadosamente. - Constanza sorriu então, um sorriso de lembrança. - Ele ficou entusiasmado com o trabalho, disse que nunca tinha visto pormenor tão bem trabalhado, disse que o artista conseguira dar vida ao couro. Depois exigiu saber onde é que eu havia encontrado as peças, pois precisava de falar com o artesão, persuadí-lo a vir trabalhar para ele. De repente o meu plano parecia ter funcionado demasiado bem. Como podia dizer ao meu pai que o artesão era eu? Ele nunca acreditaria em mim, até me podia castigar por mentir. Exigiu mais uma vez saber o nome do homem. Por fim balbuciei que tinha sido eu. Que tinha roubado o couro e asferramentas, e implorei-lhe o seu perdão por o enganar e humilhar. Então ele pegou nas minhas mãos, segurou-as em frente aos olhos e olhou-as fixamente dizendo: "Estas são as mãos de um artesão... sempre soube que tinhas sido tu, Constanza. Os meus gravadores relataram-me que tu lhes tinhas roubado as ferramentas e as suas aparas de couro. Eu sabia o que estavas a fazer. Beijou ambas as minhas mãos. "Mas não fazia ideia de que possuías um talento tão profundo. Queres honrar-me trabalhando na minha oficina?"

 

Vi a cor a surgir nas bochechas de Constanza - o rubor da sua modéstia natural envergonhada pela riqueza do amor do seu pai.

 

- É claro que houve um grande protesto na cidade, até cartas de fabricantes de selas por todo o reino a protestar contra um tão grande ultraje. Mas no fim deixaram-nos em paz, pois a determinação do meu pai em mpregar-me e a sua reputação de ter as melhores selas provaram ser maiores que todas as mentes tacanhas e do que todos os protestos ridículos. Trabalhei durante cinco anos... até me casar. Vinde, Senhor, preciso de apanhar ar. Vamos caminhar.

 

Enquanto passeávamos lentamente à volta da oficina do seu pai, Constanza continuou a falar, e parecia que era a primeira vez que contava a história da sua vida a outra alma. Toda ela se abriu comigo como uma flor sob o sol quente, revelando as partes delicadas que, quando observadas de perto, são tãofantásticas. Tão belas.

 

- O meu marido era um homem tradicional, e exigiu que eu parasse com o meu trabalho quando os filhos chegaram. Ao princípio, objectei. Sorriu outra vez. - Depois compreendi que os pequenos eram a minha mais bela criação, e durante vários anos dediquei-me a eles. As saudades que sentia da minha arte empurrei-as para o lado. Além disso, não havia ninguém com quem eu pudesse falar disso, nada afazer. Eu era uma mulher e a história acabava aí.

 

Tínhamos caminhado até ao campo onde os cavalos pastavam, e ela ficou em silêncio. Havia tantas coisas que eu queria perguntar, mas não conseguia suportar a ideia de quebrar o silêncio que de alguma forma parecia sagrado - a história da vida dela uma oferenda que me estava a conceder em pedaços, tudo em bom tempo. Porfim disse:

 

- O meu marido morreu muito repentinamente.

 

A frase tirou-me o fôlego. O marido de Constanza não estava a lutar por Espanha na Holanda como eu tinha presumido. Ela era viúva. Tive dificuldade em controlar o meu júbilo, obriguei-me a lembrar-me que ela era espanhola, minha inimiga.

 

- Eu tinha amado o meu marido, e juntamente com as crianças tínhamos tido algo muito forte, muito completo. Chorei-o, talvez demasiado profundamente e, durante demasiado tempo, recusei-me a voltar a casar. Fiquei muito magra. Por fim perdi a vontade de viver. As pessoas ficaram assombradas "Que tipo de mulher era eu? Não tinha eu ainda os meus filhos? De que mais precisava eu?" Ali, Senhor Reggio, eu fiquei envergonhada por a maternidade só por si não me conseguir fazer sair da dor. Então o meu pai veio ter comigo um dia no ano passado e convidou-nos para viver na sua casa. Disse que ele também se sentia só, e que podíamos amenizar a tristeza um do outro. Concordei. Quando entrei pela primeira vez no meu quarto de cama, montada num bloco perto da janela estava uma sela de couro e um conjunto de ferramentas de gravação... Vi-as e chorei como um bebé, depois sentei-me e comecei a trabalhar. O tempo desaparecia como se fosse magia. Parava apenas para acender as velas e nem sequer me dava ao trabalho de comer ou dormir, sentindo-me como um viajante que estivesse há demasiado tempo no deserto, que finalmente tinha tropeçado num oásis, tornando a primeira bebida fresca. Vede, o trabalho era o que me fazia falta. O que eu precisava. Os meus filhos, o meu pai, a minha arte. Sentia-me novamente feliz,

 

De repente Constanza enrubesceu num cor-de-rosa profundo.

- Meu Deus, contei a história da minha vida a um estranho! Eu aproximei-me e num gesto impetuoso peguei-lhe na mão.

 

- Sabeis muito bem que eu não sou estranho nenhum, Constanza disse, lamentando profundamente não poder partilhar da mesma forma a verdadeira história da minha vida com ela. Os nossos olhos trancaram-se uns nos outros, e o olhar ardente foi interrompido apenas pelo roçar insistente do focinho de Mirage no meu ombro. Constanza e eu rimo-nos, e para o meu cavalo e eu foi uma doce reunião, tornada ainda mais doce pela presença desta adorável mulher. No entanto eu estava dividido, pois os fados tinham-me pregado uma partida infeliz, e pela primeira vez na minha vida comecei a questionar o destino.

 

Nos dias que se seguiram, o caos governou o reino da minha mente. Tinha encontrado o meu amor e no entanto ela estava-me interdita. Pensei que ela retribuía a minha paixão, mas acreditava que eu era uma outra pessoa, que não era. Eu estava ao serviço do meu pai e da própria Inglaterra, e o tempo começava a ser escasso para mim, com a informação sobre Cádis nos meus alforges ainda por entregar. Mas eu estava a convalescer da minha ferida, que ainda estava num ponto em que o mero cumprimento dos meus deveres me podia matar, E se os meus esforços prevalecessem eu trairia os meus gentis anfitriões, a quem devia a vida.

 

Mal dormia. Os dias passava-os exercitando a perna, e depois a envolvê-la em lama para o inchaço. Trabalhei pacientemente, a traduzir a informação sobre Cádis para cífras o melhor que podia, e desejei mais do que uma vez ter o Partridge comigo, pois precisava dele. As regiões mais frias da minha mente estavam ocupadas com o meu dever e lealdade para com a Inglaterra. Outras partes de mim conheciam apenas Constanza. Visitava-a diariamente na oficina, sem que ela nunca se importasse com a minha companhia enquanto trabalhava. Por vezes, as crianças, Lolita e Marco, vinham ver a mãe e passávamos o tempo muito agradavelmente. Marco queria sempre ouvir-me contar as minhas aventuras a cavalo e implorava-me que o levasse a passear comigo quando estivesse bom. A pequena Lolita tinha cabelo negro, um anjo de olhos negros que mefitava tão adoravelmente que acabávamos por ser levados ao riso. Dom Ramón, igualmente, era tão caloroso e receptivo que cada refeição era uma deliciosa confecção de comida, vinho e conversa animada. Ele e Constanza eram ambos contadores de histórias de cavalos e selas, e sentávamo-nos durante horas a trocar histórias.

 

Eu fiquei assombrado com a extensão da educação de Constanza. Ela lia grego - e portanto conhecia Xenofonte. Estava nesse momento a estudar a língua árabe, traduzindo lentamente pequenas passagens do Corão. Dom Ramón coleccionava equipamento equestre antigo. Tinha grande prazer em puxar-me para me mostrar os conteúdos das suas muitas arcas em forma de cúpula - armaduras do século XIII feitas a partir de escamas cortadas de cascos de cavalos e cozidas numa túnica, uma luva de ferro pesada utilizada pelo moço de um cavaleiro para conduzir um cavalo imprevisível através dum campo de batalha, um par de botas altas com fundo amplo que ele alegava terem pertencido a um rei, uma bota de marroquim azul alinhavada a verde, a outra de couro verde alinhavada a azul.

 

Constanza acrescentava partículas de sabedoria desde os nómadas Hunos, que viviam em cima de cavalos, até ao meu bisavô o rei Henrique VII, quefazía o seu cavalo passar fome antes de ocasiões de estado para lhe promover a docilidade, visto ser um mau cavaleiro.

 

Havia poucas oportunidades ou tempo para estar sozinho com Constanza. Mas até o mais breve dos passeios da casa até à oficina depois da sesta da tarde, ou sentar-me durante horas à mesa dela depois de Dom Ramón se ter ido deitar, parecia para a minha mente doente de amor transbordar com romance completamente retribuído, tornado ainda mais apaixonado pela sua impossibilidade. Claro que eu estava desesperadamente dividido, pois quanto mais profundamente me apaixonava por Constanza, mais dífícil me era pensar em abandoná-la.

 

A minha boa Mirage não podia ter tornado o meu primeiro passeio mais suave. No entanto, mesmo com o mais fácil dos passos, parecia que me estavam a aplicar tenazes quentes na perna, e as próprias cicatrizes da ferida ameaçavam abrir. Constanza e o seu pai, preocupados com a minha segurança, inventaram uma inteligente forma de acolchoar-me por baixo e à volta da coxa bem como um estribo especial que mantinha a perna num ângulo confortável. A doçura e cuidados genuínos desta família mudavam de dia para dia a minha concepção dos Espanhóis como pessoas arrogantes. Mas nesses dias da minha recuperação, igualmente, observei na quinta de Lorca o que me pareceu ser mais do que o movimento normal de mensageiros a chegar e a partir para umafábrica de selas. Perguntei-me se Dom Ramón estaria a fornecer ao rei de Espanha selas para a invasão, e pensei que talvez pudesse utilizar os serviços de um destes mensageiros - altamente subornado - para os meus próprios propósitos. Era arriscado colocar a carta nas mãos de um estranho, mas aqui numa fazenda do extremo sul de Espanha a informação era completamente inútil. Completei a cifra da informação o melhor que consegui e imaginei um destino aparentemente inocente para ela em Gênova, sabendo que o agente de Walsingham enviá-la-ía para John Dee em Praga, e este para o meu pai, ainda à frente das tropas na Holanda.

 

O mensageiro de que escolhi aproximar-me numa tarde enquanto a família se retirava para a sua sesta era um jovem com a sela mais rude e a roupa mais andrajosa de todos os correios que tinha observado. Tínhamo-nos visto por diversas vezes nas semanas anteriores, e eu presumi que ele sabia que eu era um honrado convidado dos Lorca. Enquanto ele selava o cavalo para abandonar a oficina aproximei-me, exagerando o meu coxear para gerar simpatia. O rapaz - pois quase não era ainda um homem - era deformado por um lábio leporino, embora de resto fosse bastante bem-parecido. Era tímido como os atormentados frequentemente são, e eu falei com ele gentilmente, admirando a sua forma de montar a la gineta. Chamava-se Enrique, disse-me, e simplesmente brilhou de orgulho com o cumprimento. Falámos durante algum tempo acerca da montada que ele utilizava - não era sua. Era demasiado pobre para possuir um cavalo próprio. Este pertencia ao patrão.

 

Pensando que esta poderia ser a minha melhor e única hipótese, dei a entender que tinha uma carta urgente para ser entregue em Gênova e perguntei se Enrique conhecia alguém que estivesse à altura do trabalho, lamentando que não o pudesse fazer ele próprio, por ser empregado há tão pouco tempo de Dom Ramón. A cara iluminou-se-lhe instantaneamente, e disse que estava mesmo agora de partida para Barcelona na costa do Mediterrâneo, e que numerosos navios partiam desse porto todos os dias tendo como destino a Itália. Abanei a cabeça, dizendo que esta mensagem tinha que ter apenas um mensageiro, mas que o pagamento, metade à partida e metade quando regressasse com a assinatura do Signor Bellini, seria de cinco ducados - que eu sabia serem mais do que suficiente para comprar um cavalo. Pude ver os olhos do rapaz a girarem em todas as direcções enquanto concebia um plano para poder fazer o trabalho ele próprio, no momento em que lhe disse adeos, desejei-lhe uma boa viagem e vírei-me para me ir embora.

 

- Senhor, eu posso entregar a mensagem! Quando chegar a Barcelona apanho o barco para Gênova e colocarei a carta nas mãos do Signor Bellini pessoalmente.

 

- Não és esperado aqui por Dom Ramón? - perguntei eu calmamente.

- Oh, ele tem muitos correios, Senhor. Alegarei doença e alguém tomará o meu lugar até ao meu regresso.

 

Assim, se fechou o negócio. Com uma oração a Deus pedíndo-lhe que eu tivesse sido um bom avaliador de carácter, e para que a mensagem encontrasse o seu caminho para mãos amigas, entreguei-a à responsabilidade do rapaz. Ele partiu e, com o sol a arder no céu sem nuvens, retirei-me para dentro de casa, onde tudo da lide doméstica estava suspenso, excepto as criadas que aspergiam água fria nos chãos de laje.

 

Na varanda perto do meu quarto dei de caras com Constanza que saía do quarto das crianças, tendo acabado de deitá-las para a sesta. Ela resplandeceu com um leve rubor na face. O cabelo húmido pegado ao pescoço, sacudidelas do seu leque de renda preta que não a refrescavam de todo. Sorriu quando me viu, um sorriso íntimo, que eu acreditei no meu coração ser um convite. Senti a última das minhas restrições a desvanecer-se e assim, sem dizer palavra, tomei-a nos meus braços e beijei-a. Longe de resistir ela bebeu profundamente da minha boca, os nossos corpos a derreterem juntos no calor da tarde. Tacteando com uma mão abri a porta do meu quarto e procurámos o seu refúgio fresco e secreto com igual ardor.

 

Uma vez lá dentro fiquei espantado com a paixão dela que nunca imaginei que fosse igual à minha. A cama parecia estar demasiado longe para chegarmos lá, por isso ficámos pegados um ao outro contra a parede, ela a murmurar "mi amor, meu amor" enquanto levantava as saias e me ajudava a encontrar com o meu sexo o seu doce calor.

 

Quando chegou o momento de suprema satisfação Constanza começou a gritar e eu cobri-lhe a boca com a minha, mas a pulsação violenta do momento desencadeou a minha própria libertação explosiva e enterrei a cara no ombro dela para sufocar o meu gemido de êxtase.

 

Completamente esgotados e com os joelhos enfraquecidos, mal nos conseguíamos aguentar de pé. Tentei levá-la para a cama, mas ela abanou a cabeça, endireitou as saias e beijou-me uma vez antes de desaparecer pela porta. Deitei-me, desgrenhado, mas completamente vestido e dormi, à deriva num mar de sonhos adoráveis para além da imaginação.

 

Quando acordei era quase noite, e por isso rapidamente me vesti e desci até à sala de jantar. Os acontecimentos do dia andavam em turbilhão na minha cabeça - a satisfação por ter finalmente despachado a informação de Cádis, preocupação por pensar que ela poderia de alguma forma ser desviada, ou que com o atraso provocado pela doença as notícias pudessem chegar tarde de mais para terem qualquer utilidade. E finalmente a exaltação de Constanza retribuir não só a minha amizade como a minha paixão. Estava portanto completamente perdido em contemplação quando alcancei as portas fechadas da sala de jantar, e fiquei confundido com o que ouvi. Era de facto a voz de Constanza, mas numa língua que me era desconhecida. Havia algo de antigo nos seus tons guturais e misteriosos. Fiquei muito quieto, a escutar. O que eu estava a ouvir, compreendi por fim, era hebraico. Lembrei-me de John Dee me ter dito que através da língua sagrada hebraica podiam ser convocados poderes supra-celestes. Teria eu tropeçado numa família de hermeneutas?

 

- Baruch atah Adoni eluhainu melach haalum...

 

Abri a porta.

Constanza estava de pé rodeada pela família, um curto véu de renda a cobrir a sua cabeça e face, velas acesas que, pensei eu com um choque, tinham que ser velas do Sabat. Era noite de sexta-feira. Eles eram judeus.

 

Quando terminou as suas orações, Constanza trocou beijos com o seu pai efilhos, depois olhou para cima e sorriu-me sem qualquer alarme.

 

- Entrai, Senhor Reggio - disse Dom Ramón. - E deverieis fechar a vossa boca, Sir. Estais de boca aberta. - Fechei a porta atrás de mim e imediatamente os criados começaram a servir a refeição do Sabat. Inteiramente sem fala, ocupei o meu lugar na mesa como os Lorca fizeram. Apenas Dom Ramón se sentou numa cadeira, com Constanza e os filhos a baixarem-se em grandes almofadas à moda mourisca. Esperei que eles falassem, iluminassem as estranhas circunstâncias, visto que eu não conseguia divisar maneira de conceber o que perguntar.

 

- Sabias - começou Dom Ramón - que no mesmo ano em que os nossos ilustres monarcas Fernando e Isabel financiaram a primeira expedição de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo obrigaram ao êxodo de todos os judeus de Espanha? Os nossos próprios antepassados estiveram entre esses miseráveis refugiados que não conseguiam compreender porque é que esse destino tinha caído sobre eles. Eles tinham, afinal, sido os grandes conquistadores e colonizadores desta terra. A cultura deles e a dos mouros e dos ibéricos originais tinham-se combinado ao longo dos séculos no delicioso sabor que era a Espanha. Os primeiros judeus tinham sido guerreiros ferozes e extraordinários cavaleiros. Ao longo dos séculos tinham aconselhado reis, construído impérios mercantis, produzido arquitectos, artesãos, intelectuais. - Suspirou pesadamente. - Por isso foram recompensados com a Inquisição. Perseguidos, torturados, queimados vivos aos milhares. Muitos fugiram atravessando o mar, ou a fronteira com Portugal, a nossa família entre eles. Outros judeus espanhóis converteram-se ao cristianismo, preferindo não lutar contra uma adversidade esmagadora. Estes cristãos-novos foram apelidados de "marranos" - porcos. Eram amplamente desprezados e regularmente aterrorizados, embora muitos fossem, penso eu, fortalecidos pelo conhecimento de que estavam a aderir aos seus princípios. Pois entre aqueles que exteriormente aderiram ao catolicismo, um bom número deles mantinham ainda assim a religião com que tinham nascido. Estes eram judeus secretos e o seu fado - riu-se desconsoladamente -, o fado deles é de longe o mais difícil. Nós somos judeus secretos, Senhor, como estou certo que por esta altura já tereis adivinhado.

 

- Mas - disse eu - pensei que a vossa família se tinha mudado para Portugal.

 

- Mudaram, mas estavam descontentes lá e rapidamente os Lorca abraçaram o subterfúgio e a farsa juntamente com os sacramentos católicos, pois desejávamos regressar à nossa terra natal. Temos andado a encobrir o nosso rasto há sessenta anos, ocultando as raízes da nossa árvore genealógica. Estamos por toda a Espanha, envolvidos em todos os negócios e todos os níveis do governo, e mantemo-nos em contacto permanente através de uma rede de mensageiros, Temos sido extraordinariamente bem sucedidos, mesmo que as nossas práticas religiosas tenham sofrido. Sem o luxo de rezarmos juntos numa sinagoga, alguns rituais perderam-se ou foram esquecidos, outros adulterados. Mas fazemos o melhor que podemos.

 

Dom Ramón bebeu um gole de vinho e meigamente colocou a sua mão sobre o braço de Constanza.

 

- Mas os tempos estão a mudar, Senhor. O rei Filipe dotou a Inquisição de uma nova e assustadora intensidade. Não tem qualquer paciência com os hereges ou infiéis ou judeus. Sabe que nós existimos no país dele e quer-nos a todos queimados. É um louco. Um animal! Indigno da Coroa espanhola. Colocou os cristãos num frenesim com a sua ridícula noção de "sangue puro" - pois ninguém nesta terra hoje pode afirmar ter o sangue verdadeiramente puro! Temos todos o mesmo sangue e é um sangue misturado! E com o país à beira de uma segunda bancarrota, os cidadãos a morrerem de fome, desesperados por dinheiro, os informadores subornados estão por todo o lado a denunciar os seus amigos e vizinhos como judeus clandestinos. Nós temos tido sorte até agora, e naturalmente que somos muito, mas muito cuidadosos, mas não sei por quanto tempo estaremos a salvo. Para mim, a agonia das chamas nada seria comparado com o conhecimento de que a minha família poderia sofrer.

 

Olhei para Constanza implorando-lhe alguma orientação, pois apesar da explicação eloquente do pai, eu estava ainda completamente perdido. Porque é que eles me tinham dito - a um estranho - e, que eles pensavam ser católico - tais coisas?

 

Ela sorriu então, indulgentemente, como uma mãe faria para um filho:

 

- Perguntais-vos, Senhor, porque vos revelámos nós um segredo tão perigoso? - Estas foram as primeiras palavras que Constanza me dirigiu desde o encontro estonteante da tarde. Eu achei-a inacreditavelmente calma. Ninguém teria conseguido adivinhar o que se passara entre nós algumas horas antes. - A verdade é que - disse ela, olhando-me profundamente nos olhos nós sabemos muito bem que não sois nosso inimigo. sois um espião, inglês, e desejais a queda do mesmo inimigo que nós.

 

- Vocês sabem! - gritei eu, sentindo-me um idiota chapado.

 

- No vosso delírio gritastes na vossa língua nativa - disse Constanza sem emoção. - Por isso vasculhei os vossos alforges.

 

Ri-me, horrorizado, escandalizado, divertido.

- Souberam o tempo todo!

 

Constanza e o pai trocaram um sorriso conspiratório. Então ela olhou de volta para mim.

 

- O meu marido, na verdade, era católico, e morreu sem nunca saber que se casara com uma judia, nem que os filhos dele pelo sangue da mãe eram ambos judeus. Sei que nos perdoarás a nossa farsa como nós vos perdoámos a vossa. Compreendemos que tendes que enganar para sobreviver, e nós somos uma família de sobreviventes.

 

- Quais são os vossos planos? - perguntei eu, inclinando-me sobre a mesa rapidamente. - Como se propoem proteger-se?

 

- Como eu disse - respondeu Dom Ramón - a rede da nossa família está amplamente disseminada por Espanha, e somos prósperos e respeitados. Enquanto isso sempre foi uma força, agora também significa mais oportunidades de sermos expostos. Cada um dos nossos membros deve ter um cuidado especial para não enfurecer ninguém, para não criar qualquer ressentimento ou ciúme, pois se um de nós cai, todos nós o seguiremos.

 

- Estamos a ponderar a possibilidade de emigrar para o Novo Mundo disse Constanza. - Os judeus estão a convergir para lá em grande número, sabeis. O rei concedeu recentemente uma enorme extensão de terra nos territórios mais a norte para cem famílias judaicas. Apesar de haver Igualmente Inquisição no outro lado do Atlântico, não é tão activa como a de Sevilha.

- Abandonaríeis Espanha depois de todos os vossos combates?

 

- Não de boa vontade - continuou ela - mas até que os tempos sejam melhores, o Importante é simplesmente continuar, manter vivos os nossos filhos. Mal sabias, quando arriscaste a vida para deter uma carruagem descontrolada, que estavas a preservar a linha de sangue de Abraão.

 

Sorri, e Constanza não fez qualquer tentativa de ocultar o seu amor por mim, embora eu duvidasse que o pai tivesse conhecimento da nossa intimidade dessa tarde.

 

- Tens que nos contar a verdadeira história da tua vida - disse ela. Mas primeiro recebemos recentemente uma informação que com certeza apreciarás conhecer. - Constanza puxou então do seu regaço a carta que eu tinha nessa tarde entregue nas mãos do correio de lábio leporino, juntamente com o pagamento que lhe tinha feito. Ri-me da minha própria ingenuidade, divertido por ter sido tão facilmente enganado por um jovem mensageiro.

 

- A lealdade dos nossos criados - disse Dom Ramón - é precisamente o que nos tem mantido vivos ao longo de gerações. Agora, há algo que tens de saber. O teu conterrâneo, Drake, com uma força de mais de vinte navios ingleses, tem estado a descer a costa de Portugal causando danos nos portos e nos navios que lá estão a ser construídos. Dirige-se provavelmente a Lisboa, e pensámos que desejarias que ele soubesse da frota em Cádis que chegou, de facto, a um ponto de prontidão para zarpar na semana passada.

 

- Sim, ele tem de saber! - gritei. - Podeis colocar-me na mais rápida estrada terrestre para Lisboa?

 

- Os preparativos já foram feitos - respondeu Constanza calmamente. - Partirás à primeira luz da manhã. Enrique viajará contigo para prover ao teu conforto.

 

Eu pude detectar a dor nos olhos de Constanza com a ideia da minha partida, talvez para nunca mais voltar, e preocupação com a minha ferida ainda mal sarada na longa e perigosa viagem. Contudo, ela via-se obrigada a manter uma aparência corajosa, uma vez que questões maiores do que o nosso amor um pelo outro estavam em jogo.

 

- Agora, amigo - disse Dom Ramón reclinando-se na sua cadeira fala-nos de ti. Primeiro, para que nos possamos chamar honestamente, diz-nos o teu verdadeiro nome.

 

- O meu nome - disse eu, amplamente aliviado por parar de mentir a esta boa gente, meus amigos - é Arthur Dudley.

 

Constanza e eu passámos as últimas horas da minha estada nos braços um do outro. O seu corpo perfeito, rico em curvas luxuriantes, fragrâncias doces e misteriosas, a força e paixão sem reservas dos seus abraços, gravaram para sempre a sua memória na minha alma. Quando as velas se haviam consumido quase completamente, soube por fim que ela tinha de partir da minha cama, e eu desta casa. Olhou-me com olhos transbordantes, pegou na minha mão para colocá-la sobre o seu peito e disse simplesmente:

 

- Isto nunca pode ser quebrado, meu amor, nem pelo tempo, nem pela distância, nem sequer pela morte. - Depois beijou-me uma última vez, levantou-se e abandonou o meu quarto.

 

Vesti-me, e no que restava da noite caminhei pelos estábulos onde Enrique tinha já selado a Mirage com a sela especial que os Lorca tinham criado para mim. Pendurada em torno do arção, vi uma bela insígnia de seda. Conseguia ver que para além de um cavalo delicadamente bordado, com as pernas erguidas numa sumptuosa levitação, tinham sido cozidos alguns escritos por baixo dele. Segurando a insígnia junto da luz da lanterna li:

 

Quando Deus criou o cavalo Ele disse à magnífica criatura: fiz-te como a nenhum outro. Todos os tesouros da terra estarão entre os teus olhos. Tu irás moldar os meus inimigos entre os teus cascos. Mas carregarás os meus amigos sobre as tuas costas. A tua sela será o assento de preces a Mim. E tu voarás sem asas e conquistarás sem espada. ó cavalo.

 

O Corão

 

Quando o Sol começava a espreitar no horizonte oriental Enrique e eu montámos e passámos os portões da fazenda. Eu estava grato pela escuridão que ainda permanecia, pois assim ele não podia ver claramente a minha face desamparada nem o silencioso e imparável rio de lágrimas que corria dos meus olhos.

 

Três golpes, pensou Isabel, tentando desesperadamente mitigar a rebelião nas suas tripas enquanto cortava, uma lâmina solitária, através do campo gelado do Parque de Greenwich - três golpes de um carrasco desastrado para decepar a cabeça da minha prima Maria. Teria ela perdido a consciência com o primeiro golpe? Deus permitisse que sim! Ou teria experimentado a agonia total de ser chacinada viva? Pelo menos a sua mãe não tinha sentido nada, disse Isabel a si própria. O carrasco de Calais que o seu pai contratara tinha arrancado a cabeça de Ana do pescoço esguio com um único golpe limpo. Não, não, ela tinha que parar de pensar no horror daquilo.

 

Regressando de uma longa cavalgada, a Rainha ouvira o dobre alegre dos sinos de Londres e perguntara a um ajudante de estábulo o que se passava. Tinham-lhe contado que a rainha da Escócia fora, finalmente, ao encontro do seu fim, com o pormenor de que o carrasco, pegando na cabeça cortada para todos verem, ficara com uma cabeleira ruiva na mão, o crânio

- os lábios ainda a moverem-se numa oração papista - coberto por uma névoa de cabelo cinzento enfraquecido.

 

Como tinha isto acontecido?, pensou Isabel. Sim, ela assinara a sentença de morte para a mulher que lhe tinha, ano após ano, tentado usurpar o trono inglês. Sim, ela assinara a sentença de morte. Até a tinha mandado com o secretário Davison para lhe ser afixado o Grande Selo de Inglaterra. Mas retivera a ordem final que cumpriria a sentença, proibindo expressamente os seus ministros - Leicester, Walsingham, Hatton, Cecil - de dar esse passo final e irrevogável. Tinha-lhes proibido!

 

Ou não?

 

De repente Isabel não se conseguia lembrar, não conseguia ter a certeza absoluta. Deus sabe que ela desejara ser clara com eles. Mas todos eles a importunaram sem misericórdia dia após dia durante anos. Argumentavam que os seus súbditos desejavam fervorosamente - não, exigiam - a morte de Maria. Que se e quando viesse uma invasão, os súbditos católicos não poderiam ter a escolha de se erguerem em defesa de uma monarca católica em lugar de uma protestante e herege. Que devia haver apenas e unicamente uma rainha viva em Inglaterra, e que essa rainha devia ser ela própria. Isabel tinha finalmente cedido e assinara a sentença, mas sabendo o tempo todo que podia reter o sinal final para o seu cumprimento.

 

Em lugar disso os seus conselheiros traiçoeiros tinham-na contornado, desafiado, tomado a lei nas suas próprias mãos, expondo-a às represálias dos Franceses e, pior ainda, de Filipe. Oh, seriam castigados! Iriam conhecer a sua fúria!

 

Um bando de alegres cortesãos na escadaria do castelo fez uma vénia quando ela passou como um trovão por eles. Conteve-se para não os censurar, esbofetear o sorriso de uma cara bovina, bater nas orelhas de um idiota sorridente. Como se atreviam a sorrir? Estavam a rir-se dela, a apreciar o engano perpetrado à sua Rainha pelas mãos dos seus leais nobres.

 

- Malditos! - gritou Isabel enquanto abria caminho por entre um rebanho de damas de companhia à porta do seu quarto, batendo com a porta atrás de si. - A cabeça de uma rainha soberana rolou, e eu juro por Cristo que a paga será o inferno!

 

Naquele momento a Rainha teve um vislumbre de si própria. num espelho. Era uma visão terrível, as lágrimas a riscar o alúmen branco, o carmim vermelho a cair sobre as pregas da sua boca curvada para baixo. Tudo o que precisava era de umas cobras no cabelo, pensou Isabel amargamente, e o meu semblante feio e odioso poderia transformar um homem em pedra!

 

Subitamente surgiu-lhe um pensamento pior. Enquanto por fora ela podia parecer-se com a Medusa, no verdadeiro âmago da sua alma acabara de se tornar como o seu pai. Assassina de rainhas. Podia discursar e prosseguir em acessos de histeria, culpando todos à sua volta pela morte de Maria. Podia alegar a segurança nacional, que receava pela sua própria vida. E no entanto o facto permanecia. Apenas ela governava. Se havia uma lição que aprendera com Henrique VIII, e que tivesse de facto aplicado na prática desde o começo do seu reinado, essa era a arte de governar com autoridade absoluta. Deixar que os outros acreditassem que ela vacilava, que dependia completamente do conselho dos seus conselheiros, que era afinal apenas uma mulher fraca. Que acreditassem. Mas ela era a rainha de Inglaterra, e sabia que todos os dias até ao fim da sua vida iria lavar as suas mãos brancas de neve e longos dedos no sangue de Maria Stuart.

 

Isabel olhou em contemplação para a sua própria imagem, depois pegou numa pequena caixa de prata para jóias e lançou-a violentamente contra o espelho, que se estilhaçou, com o que restava da sua paz de espírito, numa centena de milhar de pedaços.

 

Raios partam os meus olhos!", resmungou Francis Englefield enquanto se apoiava, para não cair, no braço do seu jovem secretário, Randall. Percorrendo o caminho do infindável corredor este do Escorial, Englefield amaldiçoou a sua visão enfraquecida, não só porque o tinha transformado num tolo desastrado, dependente de outro para ler e escrever, mas porque estava completamente impossibilitado de desfrutar das maravilhas que enchiam o palácio monstruosamente grande e magnificente, descrito Pelo seu empregador o rei Filipe como uma residência para Deus na Terra. Aqui, entre oitenta e quatro milhas de corredores e salões, Englefield conseguia distinguir apenas as formas mais vagas nas arrojadas obras-primas de El Greco ou no mural de cinquenta metros retratando a Batalha de Higueruela. Mais frustrante, contudo, era a incapacidade de Englefield para apreciar a extraordinária biblioteca do palácio, fornecida com milhares dos mais grandiosos livros do mundo, o seu tecto em abóbada decorado com frescos que retratavam as sete Artes Liberais,

 

O par de pensionistas ingleses dirigia-se ao Pátio dos Reis, que estava repleto de pessoas - cortesãos, estudantes, frades, belas damas, pedintes e cavaleiros nos seus cavalos. Randall - os olhos de Englefield - comentava o que via ao longo de todo o caminho.

 

- A duquesa de Osuna engordou muito.

 

- Talvez esteja grávida - sugeriu Englefield.

 

- Não. Anda a beber demasiado chocolate. Meu Deus, um verdadeiro exército de artesãos está a erigir estátuas em frente à igreja. Nenhum deles tem ar de ter dormido na última semana.

 

O par subiu as escadas e entrou na igreja para encontrar o rebuliço do pátio completamente ausente. A espectacular capela abobadada de São Lourenço estava sossegada e deserta exceptuando uma criatura solitária vestida de negro e ajoelhada no altar-mor debaixo do qual, corria a fama, toda a família real descansava agora nos seus túmulos. Filipe estava profundamente imerso nas suas devoções, uma das quatro que ele praticava todos os dias. O espaço cavernoso fazia ecoar até o mais pequeno dos sons, por isso Randall colocou a mão em forma de concha no ouvido de Englefield e explicou-lhe, segredando, a cena. Ali esperaram, numa agitação durante três quartos de hora até o rei se erguer com dificuldade. Virou-se, viu os ingleses, e fez-lhes sinal para o seguirem.

 

Enquanto eles avançavam na direcção de Filipe, que estava agora a coxear passando por uma porta do altar-mor, Randall segredou: "Os velhos joelhos artríticos dele estão do tamanho de melões. Imagine, ajoelhar-se assim no mármore. A dor que deve ser!"

 

Apanharam o rei quando este se instalava numa cadeira na austeridade monacal dos seus apartamentos. Ordenara que os seus aposentos fossem desenhados, dizia-se, de forma a que quando se tornasse demasiado fraco e frágil para assistir à missa na igreja, o pudesse fazer da sua própria cama. Englefield e Randall fizeram-lhe a vénia.

 

Filipe, como sempre, falou em espanhol - a única língua que conhecia.

- Ouvistes dizer que a rainha herege mandou executar a sua prima Maria, ilegalmente - disse ele.

 

- Ouvi, Majestade - disse Englefield. - Uma acção repugnante e cobarde. - Nascido inglês, e outrora um criado da família real no tempo da rainha Maria Tudor, Francis tinha vindo a desprezar Isabel, não tanto pela sua fé protestante como pelo recusa permanente dela em lhe conceder as propriedades e fortuna herdadas legalmente da sua família. É verdade, era católico assumido e abandonara a Inglaterra como um homem descontente, mas ela tinha repetidamente ignorado as suas petições escritas, levando-o, sem um tostão, a procurar protecção junto dos Espanhóis. É verdade, ele arranjara intrigas com o seu colega expatriado Throckrnorton para destronar Isabel e pôr a rainha Maria dos Escoceses no lugar dela. A maquinação tinha infelizmente sido descoberta e Throckrnorton perdera a cabeça. Então Isabel, sem conseguir deitar a mão a Englefield, tirara-lhe as propriedades de uma vez por todas, dando-as ao seu amado Lord Leicester. Agora Francis era um pensionista comum na corte de Filipe - o seu secretário inglês - e tinha muito pouco na vida para apreciar. As notícias da decapitação de Maria deprimiram-no ao ponto de ficar doente.

 

- Provavelmente está melhor morta - disse o rei espontaneamente. Isto levou Englefield a engasgar-se involuntariamente e Randall, que era muito mais novo e cujas lealdades estavam muito menos definidas, a rir-se, embora se tenha reprimido rapidamente. - Eu nunca confiei naquela mulher - continuou Filipe. - Por muito católica que fosse, tinha, não obstante, o sangue francês da mãe.

 

- Então preferis o seu filho, Jaime, para o trono inglês? - perguntou Englefield.

 

- Não, nele confio ainda menos. Tem pouco interesse pela religião mas alega ser protestante. Não posso empreender uma guerra com Inglaterra meramente para colocar um herético como Jaime no trono. Que raio de filho era ele, de qualquer forma? Tornou bastante claro que a execução de sua mãe não deveria prejudicar a aliança com a sua assassina. E antes de morrer, convenci Maria a deserdar Jaime e legar-me o direito de sucessão. Ouvi falar de diversas espécies de animais cujas mães comem as suas crias. Aqui, a cria devoraria com igual felicidade a mãe.

 

- Então pretendeis arrebatar para vós o trono inglês?

 

- No principal, sim, embora deixe a minha filha, a infanta Isabella, governar. Eu estou demasiado ocupado, pessoalmente.

 

- Mas, Majestade...

 

- Não haverá problema algum. A Inglaterra está cheia de católicos que nos receberão de braços abertos, é o que diz o meu embaixador Mendoza. Englefield mordeu a língua. Mendoza era talvez o único homem que odiava Isabel mais do que ele próprio. Também ele tinha sido apanhado a conspirar contra ela e humilhantemente corrido de Inglaterra, com um puxão de orelhas. Mas Mendoza tinha, pensava Englefield, levado o rei Filipe a julgar que a facção protestante em Inglaterra era uma minoria, o que infelizmente não era bem assim. Mesmo que o rei conquistasse a pequena nação insular, iria seguramente encontrar lá um povo que morreria antes de aceitar o domínio espanhol. Meu Deus, preocupou-se Englefield, Filipe seria obrigado a montar e sustentar guarnições permanentes, como as da Holanda, para subjugar a vasta maioria dos ingleses que eram cada vez mais patriotas e leais à sua amada Gloriana. Era uma despesa em homens e dinheiro que o rei dificilmente conseguiria suportar. Nada disto, contudo, Francis Englefield teve a coragem de dizer.

 

- Qual é o vosso desejo, Majestade? - disse ele em lugar disso.

 

- Desejo que componhas uma carta para os senhores católicos que ainda há na Escócia. Oferece-lhes... eu preencherei a quantia... uma grande quantidade de dinheiro em troco da promessa que no momento da minha subjugação de Inglaterra eles irão, da forma que acharem adequado, "libertar" o jovem Jaime dos senhores protestantes que agora o controlam, e devolver a Escócia ao catolicismo. Então ele governará esse país enquanto Isabella e eu governaremos a Inglaterra.

 

Filipe levantou-se com dificuldade e dirigiu-se a uma mesa sobre a qual estavam abertos três documentos, dos quais apenas o do meio estava escrito com os gatafunhos do rei. Ele ficou em pé a olhar para baixo para os documentos com uma expressão que Francis Englefield podia apenas descrever como de êxtase, transcendente, glorificada.

 

- As duas peças da minha Grande Empresa contra a Inglaterra - anunciou ele com um pequeno vislumbre de sorriso - podem ter-se originado nas mentes dos meus dois maiores generais, mas a ideia de as combinar foi totalmente inspirada por Deus através do navio da minha própria mente. Deus e eu somos um só nesta invasão e essa, Englefield, é a razão pela qual não podemos falhar.

 

Francis deu por si a tremer de excitação. O rei de Espanha estava prestes a revelar-lhe o seu plano para a Armada, a ele, um mero pensionista.

- O Lorde-Almirante Santa Cruz imaginou, há vários anos, um esquema para livrar os meus oceanos dos piratas de Isabel e invadir Inglaterra com uma armada que navegasse pelo Canal acima. - Filipe bateu levemente no documento no lado esquerdo da sua secretária. A estimativa de Santa Cruz da força necessária apresentava-se de longe demasiado alta, mas o plano era, não obstante, inteligente. - O meu irmão Dom Juan, Deus o tenha em descanso - disse Filipe colocando uma mão sobre o pergaminho no lado direito da mesa -, concebeu um plano para invadir a Inglaterra com as nossas tropas terrestres a partir da Holanda. O duque de Parma refez o plano um ataque surpresa, um salto curto através do Canal com uma infantaria invasora. O padre jesuíta Parsons fez-me notar que, ao longo da história de Inglaterra, se fizeram tentativas para invadir a ilha por dezasseis vezes. Catorze foram bem sucedidas.

 

- E vós - com a inspiração de Deus - haveis concebido a combinação dos dois planos? - perguntou Englefield.

 

- Precisamente! Até agora só tenho ouvido de Santa Cruz lamentos e queixas. "Não devíamos zarpar neste Inverno, Majestade. Os temporais no Canal mandar-nos-ão para o outro mundo. Não estamos ainda aprovisionados. Precisamos de mais tempo." E de Parma na Holanda ainda pior. Desaprovação silenciosa e amuos. Os dois continuam a insistir em conselhos de guerra. Santa Cruz importuna-me incessantemente para eu viajar até Lisboa para inspeccionar a minha frota. Mas isso é desnecessário, não percebem? Porque é que eles têm que se encontrar um com o outro ou comigo quando a empresa é inspirada, supervisionada e aconselhada pelo próprio Deus!

 

Englefield descobriu que estava ainda a tremer, mas já não de deleite. Ele não era nenhum génio, mas via agora que duas das maiores mentes militares do império tinham sérias dúvidas acerca deste plano no qual o rei lançara o país até ao último soldado, recurso e ducado. Se a invasão de Inglaterra falhasse, pensou Francis Englefield, a Espanha estava, muito seguramente, perdida.

 

Isabel acabou de ler o despacho já decifrado de John Dee e pousou-o sobre a mesa de tampo de prata para permitir a Mary Ashby colocar vários anéis nos dedos da sua mão direita. Por todo o seu quarto de dormir damas de companhia acrescentavam toques finais à sua toilette matinal imaculada e começavam a devolver o quarto à sua ordem depois do elaborado ritual de vestir a Rainha. Mas ela estava cega a isso. Tudo o que conseguia ver era o impacto da carta. A Inglaterra estava finalmente, irrevogavelmente, à beira de uma guerra com a mais rica e poderosa nação do mundo. Não mais se poderia pôr de lado ou adiá-la. Ela tinha finalmente admitido que as continuadas negociações de paz entre o duque de Parma e o seu Conselho Privado eram uma farsa, com o único intuito de pacificar Isabel. As evidências que chegavam dos espiões de Walsingham tinham-se tornado demasiado esmagadoras para ela as ignorar, ou rezar, para que de alguma forma pudesse voltar atrás.

 

Filipe tinha construído uma terrivelmente grande e bem aprovisionada armada, como o mundo nunca vira. Quase um ano antes o grupo de assalto transportado por água de Francis Drake destruíra em Cádis uma boa parte da frota, atrasando substancialmente os planos do rei.

 

O capitão Drake regressara a Inglaterra inchado com os seus ricos espólios e convencido de que a melhor forma de derrotar a Armada era não deixar sequer que os navios levantassem âncora. Tinha incitado Isabel a continuar com ataques sistemáticos contra os portos de Espanha. Muitos concordaram com ele que as defesas de Inglaterra eram demasiado fracas para aguentar um ataque nas suas próprias costas e, na verdade, Isabel ficara animada com a vitória de Cádis. Mas Cecil estava incessantemente a sussurrar ao seu ouvido aquilo em que ela queria acreditar - que as negociações de paz podiam ainda salvar a Inglaterra dos horrores da guerra - e assim ela tinha negado a Drake autorização para voltar a partir nas suas missões de assédio.

 

No ano que passara desde então, Filipe tinha obstinadamente continuado com os seus subterfúgios e preparativos. Nove meses antes, John Dee descobrira uma intriga odiosa - por meios nunca questionados, pois a magia e a espionagem estavam intimamente ligados no carácter daquele homem - para queimar a Floresta de Dean, a maior fonte de madeira para a construção da marinha inglesa. Com a informação fornecida por Dee, dois agentes inimigos disfarçados de lenhadores tinham sido apanhados na floresta, preparando-se para lhe deitar fogo.

 

Os espiões de Walsingham no continente relatavam que as tropas de Parma na Holanda estavam envolvidas na invasão, e de Espanha chegavam notícias de que Filipe recuperara as suas perdas em Cádis, reconstruindo e aprovisionando de novo a sua poderosa Armada. Agora tinham chegado à simples questão de quando é que atacariam.

 

Era estranho, pensou Isabel, como a ameaça de guerra, longe de arruinar a sua popularidade junto do povo, apenas servia para a aumentar. É verdade que havia uma espécie de histeria a apoderar-se do país, mas tomava a forma de um fervoroso e novo patriotismo e de uma sempre crescente adoração pela sua Rainha - Gloriana. Assim, enquanto Isabel sentia o coração preso pelo terror de uma guerra no seu próprio solo, a sua alma era diariamente alimentada pelo grande e crescente amor dos seus súbditos.

 

Uma histeria de natureza diferente reinava no continente e em Espanha - outro inteligente artifício do seu mago e mestre espião Dee. Ele tinha recentemente divulgado uma profecia com cem anos do astrólogo Regiomontanus segundo a qual o ano de 1588 iria trazer com ele convulsões e catástrofes, e que grandes impérios se iriam desmoronar. Dee acrescentou a isso a sua própria leitura das estrelas, afirmando que o ano iria ver a queda de um reino poderoso entre tempestades fenomenais e monstruosas. Mas ele tinha oferecido esta informação oculta apenas a uma audiência determinada. Tinha-a sussurrado ao ouvido do rei Rodolfo na Boémia que, como ele esperava, a passara ao papa, e este ao rei Filipe. Os amigos de Dee no ofício de impressão holandês tinham igualmente sido informados, e estas profecias de condenação cobriram o continente na forma de milhares de livros e panfletos, espalhando o terror e pânico entre a população, minando o moral espanhol quando era mais preciso. Contrariamente, por incitamento de Dee, Isabel providenciara para que toda a informação dessa natureza fosse suprimida pelos editores ingleses de forma a que os seus súbditos não ficassem desanimados.

 

Uma estratégia e um homem brilhantes, pensou a Rainha. Pegou na sua correspondência mais recente. Conseguia ler nas entrelinhas o anseio de Dee de regressar a casa. Ele estava fora há cinco anos na sua missão. A sua bela biblioteca tinha sido pilhada. A mulher dele morrera. Ainda assim, Isabel não se podia dar ao luxo de ser sentimental num momento como este. Chamá-lo-ia em breve. Agora tinha que extrair o sentido das instruções de Dee contidas neste despacho. Pegou nele e leu outra vez um parágrafo quase no fim.

 

Muito Graciosa Majestade, apesar de toda a sabedoria convencional e consensos concordarem que a Inglaterra não tem qualquer hipótese de vencer uma guerra contra a Espanha, as minhas próprias consultas celestes indicaram-me o contrário. Ficai de boa-fé, Majestade, pois a expansão do vosso glorioso império para o outro lado do mar, para a Nova Atlântida, está claramente prevista, e uma derrota esmagadora infligida por um tirano como Filipe é algo que simplesmente não figura nas vossas estrelas. Consequentemente continuai energicamente neste mundo - construção de navios, exércitos, marinhas, aprovisionamento e armamento (recomendo veementemente a vossa nomeação de Lord Howard e Francis Drake para comandar a frota), mas começai igualmente os preparativos que sublinhei acima, aqueles que pertencem ao mundo do oculto. Podeis achar tais sugestões estranhas, até pagãs no sentimento e desígnio, mas não duvideis por um momento de que para os propósitos de vencer esta momentosa batalha, a sua eficácia é tão grande, e os seus resultados são tão reais, como o treino dos homens ou o fabrico de artilharia.

 

Isabel reparou de súbito numa das suas damas de companhia ajoelhada aos seus pés, e perguntou-se vagamente há quanto tempo estaria a rapariga ali.

 

- O que é? - A Rainha tinha perdido a maioria da sua paciência com as jovens damas dos seus aposentos. Eram na sua maioria bonitas e bem-educadas, mas todas menos a sua boba, a senhora Tomison, tinham terror de proferir qualquer tipo de opinião na sua presença... e realmente deviam ter razão, presumiu ela. Recentemente, dera a Isabel para bater nas orelhas de qualquer um, homem ou mulher, que a vexasse. Algo dentro dela se tornara muito frio, muito quebradiço. Impiedosa. Ela sabia-o, e entristecia-a, mas não havia qualquer remédio. Tinha reprimido sentimentos irreprimíveis por demasiado tempo, sofrido perdas impossíveis, perdoado traições imperdoáveis. Juntamente com o dom - ou seria uma condenação? - de deter um poder sem limites, Isabel Tudor tinha-se, ao longo dos anos, tornado uma mulher menos de carne e osso do que de éter. Ela era composta, matutava por vezes, inteiramente de pensamentos e ideias - a grandeza da sua pequena nação insular, a feroz protecção das suas crenças, os seus amores e ódios. O seu corpo parecia por vezes um fantoche de madeira, não realmente vivo mas antes parecendo vivo devido a puxões nos fios e uma voz projectada pelo actor.

 

- O que é que disseste! - lançou Isabel com mais irritação do que era sua intenção.

 

- Acabei de vos dizer que Lord Leicester chegou, Majestade - disse a dama com os olhos colados ao chão.

 

- Está bem - respondeu Isabel num tom um pouco mais caloroso. Temo que dentro de poucos anos a tua Rainha esteja surda como uma porta. Leva todas as damas lá para fora contigo, e manda Lord Robert entrar.

 

- Sim, Majestade. - Enquanto falava a rapariga atreveu-se a olhar para Isabel nos olhos. - Estais adorável, Majestade - disse ela.

 

Com o antigo amante prestes a ser conduzido à sua presença, e a sua vaidade ainda muito viva, Isabel escolheu acreditar na mentira da rapariga.

 

- Tenho que admitir que estou surpreendido com o bom comportamento de Drake - disse Robin Dudley - tendo em conta as circunstâncias. Sentou-se mais para a frente na sua cadeira de costas altas ao lado da de Isabel, e reacondicionou a perna inchada no banco acolchoado que ela lhe tinha trazido. - Ele deseja ser nomeado Alto-Almirante da Frota mais do que qualquer outra coisa na sua vida. E na minha opinião mereceu-o.

 

- Eu concordaria contigo, Robin - respondeu ela calmamente. Leicester observou a Rainha a observá-lo a ele. Provavelmente, pensou ele com aborrecimento, está a pensar ser gentil comigo porque eu tenho um ar tão doente.

 

- Mas Lord Howard não só é meu primo - disse ela - como é o mais alto par na terra com uma experiência naval decente. Os outros comandantes de navio nunca acatariam ordens de alguém da sua qualidade, mesmo que fosse Drake. E, francamente, Sir Francis não pode culpar ninguém por esse estado de coisas a não ser a si próprio. Não foi ele que estabeleceu o princípio de que um capitão de navio, e não o soldado de patente mais alta a bordo, era a sua autoridade suprema? Todos eles se vêem agora como semideuses, os capitães. Será preciso um homem da mais alta condição para os unir sob o seu comando.

 

- De facto, considero o teu parente bastante apto. Parece ter encantado completamente o nosso pirata favorito. A última vez que o vi com Drake estavam abraçados, com as cabeças unidas e profundamente imersos em conversas náuticas.

 

- Diz-me - disse ela, tentando não olhar fixamente para o tornozelo inchado debaixo da meia de seda -, achas que eles estão felizes com a sua marinha?

 

- Eles gostam dos novos navios que mandaste construir. São ágeis, robustos e tremendamente rápidos. Mas ouvi tanto Drake como Howard a queixarem-se sobre o aprovisionamento da frota - disse Leicester sem rodeios. - Posso atestar pessoalmente o grande dano que isso faz aos homens e ao esforço de guerra em geral. - Leicester viu os olhos de Isabel cerrarem-se. Era fácil de ver que a sua gentileza para com ele estava prestes a acabar. Perguntou-se se ela tencionaria repreendê-lo uma vez mais por ele ter aceite o cargo na Holanda, ou pela sua actual discórdia com os oficiais ingleses que se encontravam lá sob o seu comando.

 

- Tens um grande descaramento em comentares a minha política de aprovisionamento, meu senhor. Tens muita sorte por eu não ter escolhido censurar-te a ti...

 

- Censurar-me a mim! Fui eu que lutei para alimentar, vestir e armar a tua tropa nos Países Baixos com escassos recursos monetários! Fui castigado, ridicularizado e quase lembrado do meu dever quanto às minhas alegadas pobres práticas de contas. Tenta tu manter os registos correctos quando a única forma de manteres um exército de seis mil homens vivo é pedinchar, pedir emprestado e roubar!

 

- Já chega, Robin.

 

- Ainda não acabei. - Ele viu os olhos dela a abrirem-se de espanto com a sua audácia. - Recomendo-te que por uma vez na tua vida deixes de apregoar a pobreza e que invistas até ao último tostão do teu tesouro na defesa deste reino ou prometo-te, Madame, não terás qualquer reino!

 

- Já acabaste?

- Sim.

 

Leicester estava estranhamente sereno. Tinha enfurecido, desafiado e irritado Isabel ao longo de toda a vida deles em conjunto. Ela tinha gritado e amaldiçoado, maltratara-o e castigara-o, mas ele a tudo sobrevivera. Todavia, ele conhecía-lhe o coração e cabeça. Sabia que eram todos por Inglaterra, e que o conselho que lhe estava a dar agora era honesto, e igualmente a favor de Inglaterra.

 

- Tenho andado a pensar sobre as nossas forças terrestres - continuou ela como se nada se tivesse acabado de passar entre eles.

 

- E o que é que tens andado a pensar?

 

- Que elas estão terrivelmente mal preparadas. Vivemos em paz há tanto tempo em Inglaterra que não temos nem a maquinaria nem o espírito para a guerra. As nossas fortalezas nos castelos estão a cair por falta de manutenção. As nossas milícias são inexperientes, e reunidas demasiado apressadamente; as nossas cidades costeiras são defendidas por camponeses e pescadores que treinam juntos uma vez por semana. Robin - inclinou-se para a frente e agarrou-lhe no braço -, o que é que acontecerá se a nossa frota não conseguir deter a Armada? O que será feito de nós se trinta mil soldados enfurecidos de Filipe invadirem as nossas costas, subirem pelo Tamisa até Londres? Outra Haarlem? Outra Fúria Espanhola? - Um medo cru brilhava nos olhos de Isabel. Os seus finos lábios carmesim estavam a tremer.

 

A única resposta de Dudley foi a de colocar as suas mãos reconfortantes sobre as dela. Desejou subitamente poder recolher Isabel nos seus braços, sussurrar para a acalmar, aquietar-lhe o estremecimento. Lembrou-se das muitas vezes que se tinha deitado com ela na sua cama de Estado e a beijara para afastar os seus terrores. Mais do que tudo ansiava contar a Isabel acerca do filho de ambos. Que ele estava vivo. Que crescera e se tornara um belo homem, alto e de ombros largos, um grande cavaleiro. Que tinha a pele e o cabelo dela, e os olhos negros da mãe dela. Arthur...

 

Mas não podia. Não sabia nada do filho há mais de seis meses. Até essa altura os despachos tinham chegado a Leicester com regularidade. Arthur viajara por amplos espaços, aprendera rapidamente a arte da espionagem, e enviava-lhe notícias valiosas e necessárias de todas as partes do continente. A sua informação relativamente à frota de Cádis possibilitara a espantosa vitória de Drake, dando à Inglaterra um ano adicional de preparativos contra a invasão espanhola. Leicester recebera comunicações subsequentes de Lisboa e do Norte de Espanha, onde Arthur tinha estado a vigiar os progressos da Armada à medida que Filipe começara a reconstruí-la. Então a corrente de cartas cessara abruptamente. Apesar de Leicester não conseguir suportar a ideia, o seu filho poderia estar morto. Ele não podia dizer nada a Isabel até saber. Seria demasiado cruel dizer-lhe agora que o filho deles tinha na realidade vivido, mas que poderia ter morrido antes dela ter oportunidade de o conhecer. Não, Leicester nada diria à Rainha acerca de Arthur Dudley. Falaria apenas com Deus nas suas orações de todos os dias, e imploraria que a vida do filho de ambos fosse poupada, que a Inglaterra de alguma forma prevalecesse na guerra que se aproximava com a Espanha, e que um dia os três pudessem estar frente a frente e rejubilar na companhia uns dos outros.

 

Robin Dudley era ainda um homem largamente desprezado, sabia-o, e possuía muitas qualidades que o tomavam merecedor disso. Mas tinha sido imbuído de uma excelente qualidade - um espírito sempre esperançoso. Tinha-o mantido seguro em tempos difíceis anteriores e agora convocava essa esperança e agarrava-se a ela com toda a força que lhe restava no seu corpo inchado e febril. Voltaria a ver o seu filho, e Isabel conhecê-lo-ia e iria igualmente abraçá-lo.

 

- Tenho que dar o comando das forças terrestres a alguém - disse Isabel de repente, trazendo Leicester de volta à terra.

 

- Quem é que tens em mente? Raleigh? Hatton? Northampton?

- Tu, meu senhor.

 

Leicester foi obrigado a virar-se, a reter lágrimas súbitas. Aclarou a garganta, mas descobriu que não tinha palavras.

 

- Robin - disse ela com uma suavidade na voz que ele pensara que nunca mais ouviria -, não existe ninguém no mundo em que eu confie mais do que em ti. Confio-te a minha vida... e a minha vida é a Inglaterra. Passou os seus ainda belos dedos de marfim numa carícia gentil na bochecha dele cheia de veias vermelhas. - Sei que não estás muito bem. Que estás gasto até ao osso. Mas aceitas o comando, meu amor? Como um favor que me fazes?

 

Ele virou-se novamente para ela e foi de encontro ao seu olhar, que estava tão claro e firme como estivera quando ela lhe concedera o cargo de mestre-de-picadeiro, momentos depois de ter sido informada que era Rainha de Inglaterra.

 

- Honra minha, Majestade - respondeu Robin Dudley, levando os dedos de Isabel aos lábios. - A honra será toda minha.

 

A minha viagem por terra até Lisboa com Enrique mostrou-se a cavalgada mais difícil da minha vida, porém cheguei umas horas antes do capitão Drake se voltar a fazer ao mar e entreguei-lhe, para sua grande satisfação, a minha informação sobre a frota em Cádis. Depois terminei a minha convalescença em Lisboa, travando conhecimento com Nicholas Ousley, reputado como o mais corajoso dos agentes de Walsingham em Espanha. Conspirámos os dois para fornecer a Inglaterra as notícias mais recentes sobre a Armada, que começou a ser reconstruída com uma rapidez espantosa depois da devastação provocada por Drake em Cádis. Não só precisávamos de comunicar o número de navios ao chefe dos espiões da Rainha, mas também a tonelagem de cada navio, munições, número de marinheiros, soldados e escravos e, naturalmente, as provisões.

 

Ousley e eu sentávamo-nos à noite na varanda da casa dele sobranceira ao porto de Lisboa, a beber xerez e a conspirar contra Espanha. Era um tipo simpático, com uma cara larga, um nariz achatado e gordo, cuja impostura era a de um católico escocês mercador de lã. A mulher dele geria a maior loja de lã da cidade. Estavam relativamente seguros, como dizia, visto que os Portugueses odiavam os Espanhóis, ainda mais desde o golpe de Filipe alguns anos antes.

 

Concebemos um plano pelo qual ele se preocuparia com a evolução em Lisboa, e eu estabelecer-me-ia nos portos do Norte da Corunha e Ferrol, avaliando aí a concentração da frota e as fortificações. Haveria capitães bretões para tagarelar com eles, e iria investigar os ingleses de lealdade duvidosa que podiam estar a planear providenciar um desembarque fácil para os barcos espanhóis no Sul de Inglaterra, e os agentes de Filipe que tentavam penetrar nos portos ingleses para espiar as nossas frotas. Felizmente, a recolha de informações pelo rei era inferior à de Walsingham, e embora eles tentassem descobrir os agentes ingleses, ficavam de mãos a abanar na maioria das vezes.

 

Entretanto Enrique regressara para junto de Dom Ramón com notícias da minha chegada em segurança e do meu sucesso. O rapaz regressou imedíatamente com instruções de me guiar para qualquer cidade que eu desejasse e ajudar a estabelecer-me com os membros da rede da família Lorca nesse local.

 

Despedí-me de Ousley e dirigi-me para norte com o que fingi ser o meu criado. Enrique foi uma grande dádiva para mim, muito frontal e simpático, e um belo cavaleiro que me olhava como o seu professor tanto como seu amo. Quando chegámos à Corunha havia grande actividade no porto. À medida que os construtores de navios e os aprovisionadores acabavam o seu trabalho, os navios partiam, navegando até Lisboa onde toda a frota estava a ser reunida.

 

Enrique tinha-me conduzido a casa de Rodrigo Lorca, sobrinho de Dom Ramón, fabricante de acessórios de equitação. Os seus estribos e freios de prata trabalhada eram famosos por toda a Espanha. Rodrigo era um sujeito bem-parecido, impecavelmente vestido e muito culto, pequeno e trigueiro com olhos negros cintilantes. Parecia dar corpo ao espírito do macho espanhol com tanta precisão que eu por vezes tinha dificuldades em lembrar-me que ele não era o católico devoto que fingia ser, mas sim um judeu. Artesão altamente qualificado, Rodrigo já não trabalhava no seu ofício, apenas supervisionava os seus trabalhadores na oficina, isto devido à tendência espanhola de considerar o trabalho manual como diminuidor. De facto, como tantos dos seus compatriotas espanhóis, apesar de modos exteriores afáveis e corteses, ele desdenhava todos os que não eram espanhóis, até os conterrâneos de outras regiões diferentes da sua. Quanto a mim, tinha feito uma excepção, disse-me, pois eu era um amigo do seu tio e estava a espicaçar a pele desprezível do rei Filipe.

 

- Deixa-me mostrar-te uma coisa - sugeriu ele numa noite depois da refeição que eu partilhava com ele e sua esposa, uma mulher bastante comum com modos afectados e uma voz xaroposa. Ela era uma mulher que eu acreditava que melhorava com o uso dos pesados véus. Levou-me para o seu escritório e dispôs sobre a secretária aquilo que era claramente a árvore genealógica da família Lorca, com uma bela caligrafia e decorada a toda a volta com figuras pintadas e douradas.

 

- Chamamos a isto o Livro Verde. Toda a família honrada tem um. Apontou com os seus dedos tratados. - Vês aqui, a nossa linhagem pode ser seguida até ao século doze. Esta é a nossa prova de raça pura. - Riu-se sem grande humor. - Como podes ver, somos cristãos-velhos com a mais pura das linhas de sangue.

 

- Com um mestre falsificador ao vosso serviço - acrescentei eu, a sorrir.

- Vivemos com muito cuidado - disse ele, acariciando o seu longo bigode encerado. - O mais pequeno escândalo mandaria a família Lorca abaixo como um castelo de cartas sob um vento forte.

 

Rodrigo tinha sido muito gentil, providenciando-me um abrigo seguro não longe do local onde morava. Eu era um convidado frequente em sua casa, embora utilizasse muitos disfarces para ir e vir, para desencorajar as suspeitas. Era por vezes um gordo italiano mercador de seda e outras vezes um pedinte local que batia à porta dos criados na casa de Lorca. De quinze em quinze dias ia até Ferrol. O porto era muito mais pequeno do que o da Corunha, mas havia suficiente construção de navios Para eu me deslocar até lá, por isso acrescentava a informação aos meus despachos regulares para Lord Leicester.

 

Rodrigo era também a minha graciosa ligação com Constanza que me escrevia fielmente desde a minha partida de Santa Maria. As cartas dela sempre fascinantes e articuladas, calorosas e repletas de notícias sobre a quinta e a oficina, com encorajamentos do pai e doces beijos das crianças eram um bálsamo para a minha alma. As minhas cartas de resposta nunca eram tão apaixonadas como eu desejava que fossem, mas eu nunca havia escrito cartas de amor para uma mulher, e tinha aversão a palavras melífluas que não conseguiriam nunca exprimir minimamente o que no meu coração eu sentia por ela. Rezava portanto para que conseguisse ler nas entrelinhas das minhas cartas, e sabia que ela nunca poderia interpretar mal nem esquecer o que se passara entre nós na noite antes da minha partida.

 

Utilizava muitos outros disfarces para andar pela Corunha. Era frequentemente um vendedor de empadas de carne nas docas onde podia facilmente contar os soldados e marinheiros que chegavam e vinham dos navios. Foi ali que aprendi a verdadeira natureza dos militares espanhóis, o que de facto me alarmou. Eram duros, disciplinados, brilhantemente treinados e comportavam-se com uma magnífica insolência que os tornava difíceis de governar. De baixa condição como muitos deles eram, transbordavam de honra e dignidade, pois a profissão de soldado conferia-lhes ela própria uma espécie de nobreza.

 

Não tinham uniformes regulamentares mas vestiam-se com um gosto extravagante e rico - longos capotes, gibões e calções de cores vivas, chapéus de amplas abas com plumas em remoinhos de arco-íris. O orgulho deles não tinha igual, com certeza, em qualquer soldado inglês que eu alguma vez conhecera, pois acreditavam que estavam a lutar pela mais justa de todas as causas - o próprio Deus.

 

Num dia em que Enrique tinha implorado para ficar na cama por não se sentir bem eu vesti-me de peregrino com uma grande cabeleira de cabelo longo e desgrenhado. Levava um bastão e uma tigela de pedinte e prendi um dístico de búzios na minha capa rude. Percorri o caminho desde a praça da cidade com arcadas passando pela Rua da Seda, pelas suas belas lojas e grandes casas com pórticos. Cuidadoso em manter o meu comportamento como o de um humilde penitente, não obstante, observei todo o tipo de pessoas na rua - pois esse era um dos meus grandes prazeres. As damas veladas da cabeça aos pés a caminho da igreja eram seguidas por pajens transportando almofadas de veludo que as suas amas utilizariam para se ajoelharem e rezar. Vi um homem com um capuz amarelo e uma máscara comprida, ambos penitência pela sua confissão de heresia perante o Santo Ofício da Inquisição, embora eu o considerasse com sorte por ter escapado às chamas. E havia incontáveis pedintes que, pela lei, tinham licenças passadas pela Igreja para pedir esmola num raio de seis léguas.

 

Tinha quase chegado ao meu destino nos arrabaldes da cidade - quartel-general dos Fornecedores Reais dafrota - quando senti um ribombar debaixo dos meus pés e soube que uma companhia de cavaleiros estava atrás de mim. Com a cabeça dobrada humildemente coloquei-me na berma da estrada para os deixar passar quando de súbito eles estavam todos em cima de mim! Vários soldados saltaram das suas montadas e agarraram-me rudemente, braços e pés. Eu não resisti, falei calmamente, esperando convencê-los de que tinha cometido um erro. Mas enquanto passavam uma corrente à volta do meu pescoço ouví-os a comentar. "É ele." "Inglês."

 

Fiquei na fedorenta prisão da corte em Madrid durante uma semana sem qualquer ideia de como tinha ido ali parar. No silêncio solitário da cela vasculhei a minha mente em busca de algum entendimento da minha situação. Quem me tinha traído? Enrique, que tinha convenientemente ficado em casa naquele dia alegando doença? Teria sido Ousley? Ele tinha-me contado muitas histórias dos agentes ingleses que lidavam traiçoeiramente uns com os outros movidos pela inveja e pela ambição de glória. Talvez um dos meus conterrâneos cobiçasse o meu posto na Corunha para si. Fosse qual fosse a causa eu estava em terrível perigo de vida. Nada sabia dos planos dos meus captores relativamente a mim - se seria interrogado, julgado, deixado a apodrecer neste sítio durante meses ou anos ou pelo resto da minha vida natural. Seria executado - com um tiro, decepado, ou queimado na fogueira como herege que era? E quem, por Deus, me tinha traído!

 

Depois de uma semana de encarceramento solitário - ou o que eu pensava que tinha sido uma semana, pois não havia janela no minúsculo quarto - fui levado para um quarto comum, um local vasto e abobadado de pedra escura e gotejante, e tijolo a desmoronar-se. Nunca pensei queficaría grato por um lugar entre tão imunda e perigosa companhia, mas descobri que era um local em tudo melhor do que o isolamento de dar em louco da minha cela.

 

Quando vi pela primeira vez a multidão que vivia ali em condições que não eram melhores do que as de ratazanas num ninho, o meu estômago vacilou, pois o fedor era insuportável. Movimentei-me lentamente através do chão apinhado, observando atentamente os prisioneiros, tanto homens como mulheres, permitindo-lhes observarem-me atentamente a mim. Havia desadaptados andrajosos, prostitutas e ricos cavalheiros reduzidos a um pesadelo real. Hereges à espera das chamas, impostores e carteiristas, ladrões de castelos e salteadores de igrejas. E apesar de ter visto duas putas a debaterem-se por uma crosta de pão bolorento, e diversos pedintes miseráveis a lutar por um pedaço maior de chão ensopado de mijo para esticarem as suas pernas, vi entre eles, também, laivos de pura humanidade. Uma mulher a cuidar ternamente de um homem esquelético, camaradagem bem-intencionada em soluções de expediente, um prisioneiro só com um olho a extrair os dentes podres de um grande, vestido com o que restava de um belo fato. E, claro, a corrente constante, dia e noite, de amigos e parentes que traziam provisões para os seus amados sem esperança.

 

Tinha dado a minha primeira volta ao quarto comum quando a campainha do recolher soou. Para grande surpresa minha os prisioneiros não começaram a instalar-se para o seu sono nocturno mas todos, de uma forma ordeira, se reuniram para enfrentar uma escada erguida para a qual tinha subido o homem só com um olho. Agindo como um sacristão elefez sinal para que todos se ajoelhassem e cada um deles à sua própria maneira proferiu uma oração murmurada ou silenciosa. Por fim, o ciclope entoou: "jesus Cristo Nosso Senhor que derramaste o teu precioso sangue por nós, tem piedade de mim, um grande pecador." Fiquei espantado naquele momento pelo fervor religioso extremo até nestes espanhóis impiedosamente presos, e tremi por dentro ao pensar que nós em Inglaterra tínhamos uma grave batalha diante de nós.

 

Fiquei assim impedido nessa noite de conseguir reunir qualquer informação e, em lugar disso, lancei-me num sossegado jogo de berlinde com uma confraria de "matadores". Estes eram homens - os mais perigosos na prisão - que assassinavam por dinheiro. Eles, com os seus gibões de couro sobre cota de malha e chapéus de amplas abas com penas, mantinham-se em grupo - ou talvez os outros se mantivessem longe deles. A minha aproximação a eles naquela noite, e conseguir que eles me aceitassem no seu jogo, conferiu-me algum respeito. Assim, naquela noite, quando eram horas de dormir, um espaço foi silenciosamente aberto para mim, e um casaco enrolado foi colocado como almofada debaixo da minha cabeça. Porém, dormi muito pouco naquela noite, matutando infindavelmente uma traição que me tinha trazido para um tal buraco infernal.

 

Fiquei surpreendido quando acordei no chão de pedra, rígido e dorido, por ter conseguido dormir. Tinha sonhado pela primeira vez com Constanza, a tomar banho nua no rio, a sua beleza voluptuosa, o seu espesso cabelo molhado a esconder-lhe os seios. Então começou a rotina matinal da cela e baniram-se todas as memórias de sonhos agradáveis, substituídas por um trio de velhas a servir as nossas mistelas do pequeno-almoço, longas filas para as latrínas que desafiavam a discrição, e a afluência constante de visitantes transformando-se numa corrente incessante. Era um sítio social, senão outra coisa, esta prisão, e eu movimentei-me através do quarto apinhado procurando alguém, algo que pudesse utilizar em meu proveito - uma forma de enviar uma mensagem a um amigo, o pressentimento de um plano de fuga a ser combinado. Qualquer coisa!

 

Então ouvi.

 

- Inglês! - O meu coração bateu com força no meu peito. Pus-me de pé num degrau alto e localizei o carcereiro à minha procura. Hesitei, sabendo que podia adiar, ele dar comigo quase indefinidamente neste caos, mas concluí que era a única esperança de saber alguma coisa sobre a minha condição.

 

- Inglês! - gritei eu por cima do burburinho. Ele veio imediatamente até mim e abruptamente agarrou-me. Recusou-se a responder a qualquer uma das minhas perguntas enquanto me conduzia para fora da divisão e por um corredor tenebroso iluminado com tochas. O meu coração afundou-se quando ele abriu uma pesada porta e me encontrei no limiar da câmara de tortura da prisão.

 

Tinha ouvido dizer que os grandes extremos de dor e terror por vezes desencadeiam um estranho lapso na mente. A memória dos momentos dolorosos simplesmente desaparece, deixando um hiato abençoado de forma a que uma pessoa possa continuar a sua vida sem tormentos. Eu desejava que tal tivesse sido o caso comigo naquela manhã naquela câmara de horrores na prisão de Madrid. Mas infelizmente lembro-me de tudo - o engenho de tortura em forma de escada ao qual fui atado todo nu, tronco e membros, com cordas finas. Os paus presos entre a corda e a carne do meu peito, braços inferiores e no sítio cicatrizado da minha coxa, que eu imaginei que seriam torcidos como um garrote para provocar dor. O ranger da madeira enquanto a escada era lentamente ajustada até a minha cabeça estar ligeiramente mais baixa do que os meus pés. Lembro-me de pensar então que independentemente de quão terrível a dor fosse seria preferível a trair o meu país e a confiança do meu pai. Lembro-me, também, das mãos rugosas do homem que me abria a boca e inseriu uma armação de ferro que me distendeu os maxilares, da nojenta tira de linho colocada sobre a minha língua e até dentro da minha garganta. Lembro-me do primeiro arrepio de medo quando me enfiaram bocados de pano nas narinas, e do som áspero quando comecei a respirar através da boca coberta de tecido. Por esta altura reconhecera o método de tortura que os meus carcereiros queriam empregar - a tortura da água. Era uma das favoritas do Santo Ofício, preferível, segundo ouvira dizer, à roda ou ao guincho ou ao assar dos pés oleados das vítimas sobre chamas.

 

Agora via um guarda-louça a ser aberto, e lá dentro impecavelmente alinhados às dúzias estavam jarros de água acastanhada. A porta da câmara abriu-se e, precedido por uma nuvem enjoativa de perfume de jasmim, entrou um funcionário espanhol, vestido elegantemente de preto e completamente inchado com a importância do seu dever. Sem esperar para me interrogar disse ao assistente "Começa".

 

A primeira jarra de água foi despejada lenta e continuadamente pela minha garganta abaixo. Tentei primeiro engolir a água, mas rapidamente, com os meus pulmões quase a rebentar, veio o impulso de respirar. Não podia, pois as minhas vias estavam ainda cheias! Engoli mais depressa mas o tecido estava encharcado em água. Entrei em pânico. Vi a ondular perante mim as ondas negras monstruosas da tempestade da minha primeira travessia do Canal. O que é que era pior, perguntei-me, o horror de me afogar no meio do oceano, ou o horror desse mesmo destino atado a uma escada numa prisão de Madrid? Cuspi, a vomitar água, engasguei-me e comecei a sufocar. Fui abençoadamente assaltado por um obscurecimento e perdi a consciência. Uma bênção, se bem que por pouco tempo. Voltei à vida da minha asfixia com um raio de dor aguda na coxa recentemente sarada enquanto o pau era torcido apertando a corda em volta dele. Gritei de agonia, mas lembro-me de pensar que esta dor era suportável comparada com a crueldade da água.

 

Agora que tinha sido iniciado, o funcionário começou o interrogatório com uma voz sedosa, exigindo conhecer os pormenores da minha missão. Presumiu que eu era um dos homens de Walsingham, e eu não o contrariei. Porém, após algum tempo, compreendi para meu horror que ele não tinha qualquer interesse real em nada do que eu lhe pudesse divulgar, pois os espiões ingleses tinham, todos eles, a mesma missão - informar a Rainha acerca dos movimentos da Armada. O que eu sabia tinha pouca importância. Ele tinha nas suas garras um dos seus inimigos mortais - o inimigo de Deus - e o seu propósito era simplesmente infligir à minha mente e corpo tanta dor quanto possível até eu morrer.

 

Um plano começou a tomar forma no caos do meu cérebro quando outra jarra de água foi tirada da prateleira, e o assistente trouxe o aparelho estilo garfo para me abrir a boca outra vez.

 

- Eu não sou o que aparento! - consegui gritar antes do aparelho ser colocado na minha cara.

 

- Então o que é que és, inglês? - disse o funcionário, apenas ligeiramente interessado. Ele tinha, naturalmente, ouvido todas as desculpas, explicações e mentiras concebíveis de espiões anteriormente capturados, incluindo aquela que eu estava prestes a proferir, embora acreditasse que me iria fazer ganhar o tempo de que precisava para organizar os meus pensamentos.

 

- Sou um agente duplo, Senhor.

 

Com um ligeiro aceno de cabeça foi dada a ordem para me escancarar a boca. O funcionário observava-me com uma expressão desdenhosa que dizia, Vais ter que divulgar mais do que isso, idiota.

 

- Trabalho em concertação com Sir Edward Stafford que, como sabeis, partilha informações com o embaixador Mendoza em Paris.

 

Isto serviu para o fazer acordar, e agora ele olhava para mim com muito menos indiferença. Não havia forma de saber a extensão do conhecimento que ele tinha da rede de espiões espanhola, especialmente a um tão alto nível.

 

- Há mais uma coisa que deveis saber - continuei eu, planeando as minhas palavras seguintes enquanto falava, pois sabia que o que eu dissesse nos próximos momentos iria ou salvar a minha vida ou pôr-lhe um fim. - Acho que deveis saber exactamente quem estais a interrogar, Senhor. Quem vos estais a preparar para torturar até à morte.

 

Quer fossem as palavras por mim proferidas ou a convicção com a qual as proferi, o funcionário acenou ao seu assistente com os seus dedos perfumados para que se fosse embora.

 

E então eu contei-lhe a verdade. Pelo menos uma parte dela.

 

Com que então, o bastardo da rainha herética? - Francis Englefield tremia de sarcasmo. Estava furioso, igualmente, pela sorte miserável de estar cego num momento tão interessante. Se ele ao menos pudesse ver este jovem. Bem, não tão jovem assim. Randall tínha-o descrito como tendo vinte e cinco anos ou por aí. Englefield estivera muitas vezes na presença da rainha Isabel quando ela tinha essa idade, e mesmo por diversas vezes com Lord Leicester, o qual esta pessoa, este espião inglês, dizia ser seu pai. Se ao menos ele pudesse ver o homem com os seus próprios olhos

- o cabelo ruivo e olhos escuros, a pele naturalmente pálida, queimada e curtida pelo sol - seguramente que saberia se havia a mais leve hipótese da história dele ser verdadeira.

 

Quando o relatório da prisão chegara à atenção de Englefield, o secretário tinha ao princípio escarnecido da sugestão. Certamente que era rebuscado. Mas então com alguns cálculos ele determinara a possibilidade vaga de ser verdade. Nos primeiros anos do reinado de Isabel, recordava-se, os rumores de filhos ilegítimos do seu garanhão Robin Dudley eram tão frequentes como as moscas numa pilha de estrume. Então ele mandou o prisioneiro percorrer as trinta e poucas milhas desde Madrid até ao Escorial para ser interrogado. Se ao menos fosse verdade, matutou Englefield, um sucessor natural ao trono inglês na sua posse. Ele poderia persuadir o rei a abandonar o seu plano suicida de governar ele próprio a Inglaterra... Não, não pode ter qualquer ilusão. O homem era seguramente um impostor. Tem que se contentar em divertir-se com o prisioneiro, escutar e apreciar a história - os pormenores e rodeios que a imaginação duma mente podia inventar de forma a manter o seu corpo longe das chamas dos autos-de-fé.

 

- Sou-o, na verdade - respondeu o homem que se chamava Arthur Dudley. Uma escolha interessante de nome de baptismo, pensou Englefield. O nome do tio paterno de Isabel, primeiro herdeiro da dinastia Tudor, que não viveu tempo suficiente para se ver coroado e cuja morte prematura colocou Henrique VIII no trono inglês. Sim, e o fascínio Tudor pela lenda arturiana... - Contudo, a minha mãe não tem ainda conhecimento de mim. Ela acredita que eu nasci morto. Apenas o meu pai sabe que ainda estou vivo.

 

Englefield estava certo de que tinha detectado um tom de raiva nesta última resposta do homem. Oh, isto poderia provar-se uma história das boas!

 

- Estás a escrever isto tudo, Randall?

 

- Cada palavra, Sir Francis. Não receeis.

 

- E como, por Deus, vieste desde um nascimento real inglês até à câmara de tortura numa prisão espanhola? - perguntou ele a Arthur.

 

- É uma longa história, senhor, mas se tendes a paciência e o vosso escriba a tinta necessária, contar-vos-ei tudo o que desejais saber.

 

Eu tinha-me reunido com o secretário inglês do rei Filipe cinco dias seguidos, e o interrogatório que ele mefizera havia sido não só indolor como por vezes bastante agradável. Francis Englefield era um estranho pavão na forma de homem, esquelético, com óculos espessos que não lhe faziam qualquer bem, e vestido com os mais espalhafatosos fatos - enormes tufos engomados, um gibão verde-papagaio num dia, amarelo-sulfúrico com calções escarlate no seguinte. Perguntei-me porque é que um homem cego escolheria roupas tão berrantes se ele próprio não as podia apreciar, e perguntei-me também como é que um inglês - mesmo católico - podia escolher viver ao serviço do rei de Espanha.

 

Eu era um contador de histórias por natureza, e enquanto por vezes apenas relatava os factos da minha vida, noutros momentos fabricava-os e torcia-os para servirem os meus propósitos. Na verdade havia apenas um propósito - salvar a minha própria cabeça. Tinha determinado que havia pouco que eu pudesse fazer que provocasse mais dano a Inglaterra. É verdade, ela tinha perdido um agente leal por agora, mas a invasão era uma conclusão precedente, e eu sabia que vivo teria mais oportunidades de desempenhar serviços. Morto, não servia de nada a ninguém.

 

Contei a Englefield e ao seu escriba Randall a verdade acerca do meu nascimento, crescimento e o estranho acidente da minha detenção pela Guarda do Conselho Privado na praia de Milford Haven quando tinha catorze anos. Falei do meu serviço militar na guerra da Holanda, e até da minha presença no assassinato do príncipe Guilherme de Orange. Expliquei que tinha sido chamado a casa ao leito de morte de Robert Southem, e aí soubera a verdade acerca da minha linhagem. Até descrevi a minha viagem a Londres e o encontro com Lord Leicester, dando-me a grandes trabalhos para descrever os aposentos dele em Greenwich de forma a conferir autenticidade ao meu relato.

 

Foi nesta conjuntura, todavia, que a fidelidade a toda a verdade se esvaneceu, e o desfiar do conto começou. Disse que Leicester tinha ficado totalmente convencido da minha história - tinha mesmo empalidecido quando ouvira os pormenores do meu nascimento e rapto por Kat Ashley e William Cecil, e também a prova dos olhos negros e do sexto dedo da minha avó. Mas apesar de me ter aceite como seu filho e herdeiro na privacidade dos seus aposentos, Leicester criara, posteriormente, intrigas para se livrar de mim para sempre. Tinha-me explicado que a minha mãe não podia ainda ser informada da minha existência, mas implorou-me para espiar a favor da Inglaterra. Então eu tinha sido enviado com o seu secretário à casa de Walsingham onde me fora passado um passaporte, e apressado a embarcar num navio dirigido a Calais. Relatei o meu choque e raiva quando compreendi que tinha sido totalmente isolado, que Leicester se recusava a responder às minhas correspondências e que me fora oficialmente barrada a entrada em Inglaterra para o resto da minha vida.

 

Eu tinha apimentado o conto com nomes, locais e pormenores suficientes para lhe dar plausibilidade, incitando-o a verificá-los a todos. Mas foi apenas quando comecei a expor a dor e raiva que sentia pela traição e rejeição de Leicester que o interesse de Englefield foi verdadeiramente espicaçado. Eudisse que apesar do meu pai adoptivo ser um protestante, a minha mãe Maud, fora uma ardente católica, e que os meus sofrimentos pessoais dos dois anos passados haviam-me revelado as minhas verdadeiras inclinações religiosas, devolvendo-me à Verdadeira Fé.

 

Por essa altura conseguia ver o anzol alojado na bochecha do peixe, e por isso comecei a puxá-lo. Falei do embaixador Stafford - que Englefield sabia, naturalmente, ser um agente duplo pela Inglaterra e Espanha. Inventei uma soberba patranha em torno do meu encontro e associação com o embaixador em Paris e da minha aprendizagem com ele. Descrevi o ódio de Stafford por Lord Leicester pelo tratamento que este tinha dado a Lady Stafford, anteriormente Douglas Sheffield, e o embaraçoso panfleto acerca deles que circulava pelo continente. Até aleguei ter-me encontrado com o embaixador Mendoza em várias ocasiões, e pus Englefield a rir acerca do ciciar do espanhol. Sabia que contar tais histórias era perigoso, mas sabia também que uma comunicação para confirmar a informação de Madrid para Paris e de volta para Madrid podia levar até dois meses de viagem. Eu seria seguramente um homem livre por essa altura, ou então um morto. Sabia muito bem que me estava a aventurar sobre gelo quebradiço, mas era necessário, não obstante, caminhar arrojadamente sobre ele, ou nunca poderia ter esperança de salvar a vida.

 

Fiz notar que, sendo o único filho natural saído do corpo de Isabel, tinha uma pretensão mais forte ao trono inglês do que o rei Jaime da Escócia. A mãe dele morreu às mãos da minha mãe. Sugeri que depois da conquista de Inglaterra eu acabasse o trabalho, assassinando o herético Jaime, deixando o trono da Escócia convenientemente vazio e facilmente anexado à Inglaterra católica. A minha própria pretensão poderia então ser determinada por Filipe, ao qual eu podia naturalmente garantir obediência total.

 

Conseguia ver a agitação crescente de Englefield, os seus olhos cegos a rodopiar para todos os lados por trás dos seus espessos óculos, o estremecimento do corpo fazendo com que a enorme gola em tufos vibrasse à volta da cabeça. Começou a disparar perguntas para me pôr à prova. Qual era o nome do secretário de Lord Leicester que me tinha acompanhado até junto de Walsingham? Fludd, respondi eu.

 

- Hummm - resmungou ele, depois abanou a cabeça numa concordância silenciosa. Qual era o aspecto do interior da casa de Walsingham em Throgsneck Street, perguntou Englefield. Eu disse que a casa não era em Throgsneck Street, mas antes na Strand, e depois continuei descrevendo-a com bastante pormenor. Ele interrogou-me em diversas línguas e eu respondi fluentemente em cada uma delas. Sorriu e abanou a cabeça, resmungando: Tal mãe tal filho... - Por fim, pegando na minha mão esquerda, beliscou e passou a mão sobre o meu dedo extra como se fosse uma jóia valiosa. Subitamente deu um grito de deleite, um som inteiramente enervante para vir de uma personagem tão peculiar.

 

- Randall - gritou ele -, leva o senhor Dudley à casa de banho e manda-o... lavar-se. Depois manda Parenta vesti-lo com um novo traje. Algo subtil, talvez cinzento com toques de cobre. Randall - acrescentou ele levem vários guardas convosco onde quer que vão.

 

Englefield sorriu-me com uma boca cheia de dentes surpreendentemente bons,

 

- Preparai-vos, Sir. Em breve tereis o privilégio e honra da vossa jovem vida: uma audiência com o rei de Espanha.

 

Escoltado por Englefield e Randall percorri os infindáveis corredores do Escorial. Nunca na minha vida testemunhara tal grandiosidade, desde o chão, paredes e colunas de mármores de várias cores, até à requintada estatuária, aos altares colossais que pareciam pingar ouro. Nem nunca tinha estado tão elegantemente vestido. O próprio alfaiate do rei tinha-me vestido num fato de veludo e cetim em tons de cinzento, preto e branco, com calções de malha de veludo e as mais extraordinárias botas de couro espanhol que eu alguma vez vira, muito menos calçado.

 

Tudo à minha volta parecia muito brilhante e nitidamente focado. Sentia-me indescritivelmente forte e seguro de mim mesmo. Estava a caminhar de encontro ao meu destino. Filipe de Espanha esperava-me.

 

Por fim chegámos à porta intricadamente esculpida e embutida que dava entrada para a Sala do Trono. Os guardas descruzaram as suas alabardas e permitíram-nos a entrada. Eu tinha imaginado um trono imenso e um soberano resplandecente e autoritário, ajaezado de ouro e preciosas gemas. O que encontrei foi um homem pequeno e acinzentado, de queixo saliente, um gibão e calções pretos, empoleirado no que parecia ser um simples banco de campanha. Rapidamente dominei o meu choque e, após a minha apresentação por Francis Englefield, realizei as muitas reverências que ele me instruíra a fazer, depois esperei em silêncio, com a cabeça baixa e de joelhos, que ele me dispensasse das minhas prostrações.

 

- Deixa-me ver-te - disse, finalmente, o rei numa voz fina e petulante. Pus-me de pé em toda a minha altura e senti os seus olhos pálidos sobre mim, a perscrutar-me o rosto, forma e alma. Mas não tremi naquele momento e em lugar disso reconquistei a segurança da minha posição. Lembrei-me a mim próprio, de que eu era o filho de uma rainha e, consequentemente, tão real como ele. Lembrei-me igualmente, enquanto caminhava pelo convulso labirinto que cuidadosamente construíra a partir das verdades, mentiras e fantasia total, que um passo em falso, um simples descuido podia significar o meu fim.

 

Deixa-me ver o dedo - ordenou o rei de Espanha.

 

O homem alto e bem-parecido, que afirmava ser o filho da Rainha, ergueu a mão esquerda e virou o lado de fora para cima. Filipe fez-lhe sinal para se aproximar. Ele aproximou-se lentamente e Filipe olhou para a deformidade com os lábios em beicinho.

 

- Não é nada mais do que um naco de carne com um bocado de unha nele - disse ele.

 

- Como era o da prostituta Ana Bolena - respondeu Francis Englefield. Filipe reparou que o jovem estava a sorrir um sorriso pequeno de escárnio, como que para os assegurar de que tinha pela sua avó um desprezo igual. Podia estar a fingir, claro, pensou Filipe, mas a verdade era que esta pessoa de pé perante ele, que alegava ser Arthur Dudley, tinha uma inquietante parecença com cada uma das pessoas que jurava serem seus pais. Tinha a constituição exacta de Lord Robert Dudley nos seus tempos áureos, quando lutara por Filipe nas guerras napolitanas. Movimentava-se com a mesma graça que o rei sempre considerara peculiar num homem tão grande e masculino - uma graça que ele secretamente invejara. E de acordo com Englefield, o homem era persuasivo. Também Robert Dudley o tinha sido. Afinal, ele até havia persuadido Filipe a apoiar a sua absurda perseguição da mão de Isabel em casamento!

 

- Então o conde de Leicester virou-te as costas? - perguntou Filipe friamente.

 

- Sim, Majestade, e impediu-me de me aproximar da minha mãe.

 

- A tua mãe... - repetiu o rei com um revirar cínico do lábio, e subitamente a imagem de Isabel estava perante ele. Isabel como tinha sido nos dias da doença infortunada da sua irmã Maria. Isabel, a jovem e requintada princesa com uma pele de madrepérola, a delicadeza de uma flor, o cabelo selvagem e vermelho-fogo. Isabel por quem Filipe teria de bom grado derrubado os ditames do seu pai relativamente à paixão. "Não te esforces demasiado", ordenara Carlos "Prejudica o crescimento e a força do corpo masculino. Fica longe da tua mulher tanto quanto possível. Assim que o casamento for consumado, abandona-a sob qualquer pretexto e não regresses demasiado depressa ou com demasiada frequência." Ele tinha obedecido a essas ordens com as suas duas primeiras mulheres. Mas se tivesse tido Isabel...

 

- Conheci a tua mãe - disse Filipe, reconhecendo, enquanto as palavras abandonavam os seus lábios, que, efectivamente, admitira que acreditava que este homem era o filho de Isabel.

 

- Eu vi-a uma vez quando tinha oito anos de idade.

 

O homem falava com tanta autoridade, tanta confiança! Quem se atreveria a mentir tão descaradamente ao rei de Espanha? Mas como podia o filho de Isabel estar perante ele neste momento? Era impossível!

 

- Ela era uma magnífica cavaleira, firme na sua sela e completamente incansável - continuou o homem. - Cavalgámos lado a lado numa caçada desenfreada, um costume nosso em Inglaterra, e digo-vos que a mulher não fazia batota! - Com esta, Arthur riu-se numa gargalhada explosiva que revelou um sorriso esplendoroso.

 

A visão daquele sorriso obrigou Filipe a regressar ao jardim de Hampton Court trinta anos antes. Isabel tinha-se rido de uma das suas pequenas piadas, e a memória daquele sorriso perpetuara-se pelos anos, quente nas paredes da sua mente. Ela também o amara, pensou ele, por um breve momento ela tinha-o amado como ele a ela. Então, abruptamente, sem a permissão do rei, uma pesada porta de prisão fechou-se com força sobre a perigosa recordação, e ele ficou desnudado perante Deus na sua vergonha. "Deus me perdoe", gritou ele em silêncio, "eu amei uma prostituta herética."

 

De repente não permanecia sequer uma ínfima dúvida. Soube quem estava perante ele a gracejar e a sorrir com o sorriso de Isabel e a postura graciosa de Robin Dudley. E também de súbito viu-se exacerbado de raiva. Este homem, este estranho que aparecera do nada, emergira como o seu mais perigoso rival na luta pelo trono de Inglaterra.

 

- Fizeste bem, Francis, ao trazer este jovem Dudley até mim. Englefield irradiava de orgulho. Talvez se conseguisse ver tivesse detectado a fúria gélida por trás da expressão plácida do rei.

 

- Desejais que mande preparar um grupo de aposentos para ele, Majestade? - perguntou Englefield, pensando já nas disposições luxuriosas: o pendurar de tapeçarias e pratos de ouro, o guarda-roupa repleto de vestes adequadas para um príncipe.

 

- De facto - concordou Filipe calmamente -, devemos mostrar ao nosso novo aliado a nossa mais graciosa hospitalidade. Não se poupará em nada. Enquanto falava, o rei de Espanha apercebeu-se de que o sorriso de Arthur Dudley se tinha subtilmente alterado. O homem penetrara o escudo contra intrujões de Filipe. Ele sabia que estava condenado. Os seus olhos encontraram-se enquanto Englefield balbuciava acerca dos apartamentos na ala sul, ou da grande câmara na ala oeste. Para seu crédito, o bastardo da Rainha aguentou sem pestanejar o olhar do Rei. Filipe procurou um sinal de derrota, uma falha no porte dignificado, mesmo a serenidade de espírito de um jogador cuja simulação tivesse sido descoberta. Procurou em vão. Conseguia ver que Arthur Dudley manteria a sua postura orgulhosa enquanto percorria as trinta milhas de volta para Madrid e para dentro da prisão onde viveria na obscuridade até ao dia da sua morte.

 

Era um formidável oponente. Um homem magnífico. Mas isso era de esperar, pensou Filipe com prazer gélido. Arthur Dudley tinha sangue real.

 

Regressado ao aprisionamento horrendo da minha prisão em Madrid consolei-me com o pensamento de que estava ainda vivo, e por ora ignorado pelo sinistro grupo de interrogadores e torcionários. Confesso que estava confuso. Acreditava que Filipe tinha aceite a verdade acerca da minha filiação. Porquê se tinha ele então virado contra mim e, horrorizando o pobre Francis Englefield, me agrilhoara? Mas quem, afinal, pode discernir o pensamento de um fanático religioso e tirano como Filipe de Espanha? Contudo eu estava feliz por me encontrar vivo e pelo menos capaz de encarar os meios da minha libertação.

 

Rapidamente se tornou aparente que a fuga da prisão de Madrid não iria ser fácil. Soube que ninguém o tinha conseguido em mais de vinte anos. Para piorar as coisas, a segurança da prisão fora reforçada com a aproximação da data de largada da Armada, tendo começado preparativos para um auto-de-fé em sua honra.

 

No tempo entre a minha partida e regresso à prisão, o local tínha-se enchido com dúzias de vítimas da Inquisição, homens e mulheres completamente desprezíveis, acusados e condenados de judaizarem em segredo, alguns arrependidos e outros em desafio decidido. Como o Santo Ofício não tinha por si só qualquer direito de infligir castigo físico sobre aqueles considerados culpados dos seus crimes, eram declarados "abandonados" ao braço secular da lei. Esta era apenas a forma polida de dizer que seriam entregues às autoridades civis para serem queimados na fogueira. Estes, então, eram os potenciais participantes no próximo "auto-de-fé" e agora o fedor do medo acrescentava-se a todos os outros odores repugnantes na câmara comum.

 

A minha vida diária era preenchida por um crescente sentimento de impotência e desespero à medida que se aproximava inexoravelmente o dia da invasão de Inglaterra pelos Espanhóis, enquanto a mulher que eu amava parecia estar fora do meu alcance para sempre.

 

Então, num dia de fins de Maio, fui visitado por Sir Francis Englefield em pessoa. Ele provocou grande sensação no seu gibão defúcsia e calções a condizer, apoiando-se no braço do seu jovem escriba Randall. Ocorreu-me que por uma vez o homem ficaria grato pela sua cegueira, tendo suficiente material contra o qual lutar só pelo cheiro ofensivo daquele sítio. Tinha-me trazido do Escorial as transcrições da minha "confissão" e agora requeria a minha assinatura nelas antes de serem enviadas para os Arquivos Reais de Salamanca.

 

Englefield mandou que me levassem para uma minúscula câmara privada e dispensou Randall paraficarmos sós. Eu podia ver a toda a volta da bela caligrafia do escriba no documento uma grande quantidade de anotações nas margens num escrevinhar estranho e louco. Demorei o meu tempo para assinar e li uma ou outra. Eram obviamente os comentários de Filipe sobre o conteúdo da minha história. Perto dofim ele tinha escrito "Será certamente o mais seguro assegurarmo-nos da identidade de Dudley até sabermos mais sobre o assunto".

 

Então ouvi Englefield a sussurrar urgentemente:

 

- Porfavor apressa-te, temos pouco tempo, meu senhor.

 

- Meu senhor? - respondi eu incrédulo. Nunca ninguém se tinha dirigido a mim dessa forma.

 

- Ouve-me, Arthur Dudley. Eu acredito que tu sejas quem dizes que és. E tenho razões para te querer ver livre deste encarceramento que irá inevitavelmente conduzir à tua morte.

 

- Mas o rei Filipe...

 

- O rei Filipe vencerá esta guerra e depois destruirá a Espanha quando tentar assumir o trono de Inglaterra ele próprio.

 

Eu rí-me alto com essa, imaginando aquela pequena criatura mirrada a tentar controlar os obscenos comuns ingleses e as massas crescentes de puritanos rigoristas.

 

- Calado! - ciciou Englefield. - E ouve com atenção. No próximo domingo três dúzias de prisioneiros da Inquisição serão conduzidos em marcha até à praça da cidade para receberem o seu castigo. Um grupo, os "reconciliados", serão queimados apenas em efígie, enquanto dois grupos considerados culpados, os arrependidos e não arrependidos, serão consumidos pelo fogo. Eu consegui colocar o teu nome na lista dos reconciliados. Uma vez que te tenhas apresentado perante os inquisidores e recebido a tua penitência e o capuz amarelo, serás libertado na sociedade.

 

Eu estava completamente desorientado.

- Porque fazeis isto, Englefield?

 

- Porque quando a guerra tiver sido ganha eu tratarei que consigas regressar a Inglaterra. Posso-te parecer a ti nada mais do que um funcionário cego e ineficaz sem importância, mas no meu tempo fui um mestre conspirador. - Englefield pareceu ficar um pouco mais direito e segredou: - Conspirei com a rainha da Escócia contra a tua mãe...

 

- Não sabia.

 

- E conspirarei parafazer de ti rei. E quando tiveres assumido o trono, um monarca católico, mas o verdadeiro herdeiro de um inglês, então eu recolherei a minha recompensa.

 

- E qual será?

 

- Apenas o retorno a que tenho direito das minhas terras e fortuna que o teu pai agora possui. - Agarrou o meu braço. - Prometes-me ao menos isso? Estava siderado. Francis Englefield estava de verdade a levar a sério a minha pretensão ao trono - algo que eu nunca esperara que ninguém engolísse. Recobrei-me depressa e com um braço amigável em torno do ombro de Englefield confidenciei-lhe:

 

- Terás as tuas terras e fortuna, meu amigo, e um título também. Mas escuta, irá este teu plano resultar? O meu nome numa lista, e subitamente sou um homem livre?

 

- Não tenho qualquer dúvida disso, meu senhor. Há apenas uma coisa que tens que me providenciar - o nome de alguém que te vá buscar ao auto-de-fé. Alguém em quem confies inteiramente.

 

Fiquei subitamente gelado ao ouvir estas palavras, e Englefield víu-me enrijecer.

 

- Tens que confiar em mim, ouviste? Ofereço-te a tua única oportunidade de escapar deste sítio. Não terei uma outra oportunidade para te ajudar! Olha para mim, meu senhor. Eu sou um inglês que não pode regressar a casa, assim não sou muito tão diferente de ti. - Bateu no peito e falou com uma paixão que eu nunca antes tinha visto. - Um exilado católico, sim, mas um inglês de qualquer forma! - Ouviram-se vozes do lado de fora da porta. - Tens que decidir rapidamente!

 

Eu sabia que se Englefield estivesse a mentir, divulgar o nome Lorca poderia ser a morte de todos eles. Mas senti no mais profundo da minha alma que o homem era honesto e um inglês, e que podia confiar nele. A porta começou a abrir-se.

 

- No porto de Santa Maria do outro lado da baía de Cádis - sussurrei eu. - Procura Dom Ramón Lorca. O fabricante de selas.

 

Na madrugada do quarto dia depois da Armada ter largado do porto de Lisboa, um monge vestido de preto e branco pôs-se de pé na escada alta da cela comum e entoou com uma voz de Lúgubre Ceifeiro nomes de três listas. Respirei com mais facilidade quando o meu nome foi gritado entre os do último grupo. Tomando o meu lugar naquela sombria companhia fomos conduzidos, fortemente guardados, pelo portão da prisão a fora e para dentro do pátio de uma casa nobre próxima. Olhei para cima para a varanda do segundo andar e vi as crianças da casa a observarem de olhos esbugalhados enquanto os hereges eram despidos das suas roupas, as suas zonas púdicas cobertas com tangas e depois vestidos cada um deles com o fato grotesco do auto-de-fé. O "sambenito" era uma túnica de serapilheira até à altura do joelho com a cruz de Santo André pintada. Os usados pelos reconciliados eram também esses. Mas à frente e atrás das túnicas dos judaizantes arrependidos era pintada uma pilha de feixes em brasa, com as suas chamas a expandírem-se para baixo, o que queria dizer que eles iriam ser poupados à morte pelo fogo e seriam garroteados primeiro. Para os pecadores que não se arrependiam, contudo, as chamas nos seus sambenitos viravam-se para cima, e tinham ainda pintados os garridos diabos e dragões com os quais estes pecadores piores do que todos os outros iriam presumivelmente passar à Eternidade. Altos chapéus cónicos completavam o humilhante fato.

 

Quando o monge de voz lúgubre me entregou a minha túnica senti o fôlego a abandonar-me. Tinha chamas viradas para cima e as faces de demónios saídos de pesadelos sorriam para mim.

 

- Isto é um erro! - gritei eu para o monge que já se tinha movido para a pessoa seguinte na fila. Ele virou-se e franziu a sobrancelha. - Eu sou um reconciliado. Verificai a vossa lista de nomes!

 

Fitou-me com um olhar paternal, mas por fim deslizou para longe para confirmar junto do seu superior. Regressou então.

 

- Tu és Arthur Dudley?

- Sou.

 

Levantou a túnica do meu braço e examinou-a. Depois olhou para mim.

- Está correcto, Senhor. Veste-a, porfavor.

 

O mundo girou à minha volta. Tinha sido traído por Englefield, enganado para ir como um cordeiro para a matança. Pior, muito pior, tinha traído os Lorca. Que tolo tinha sido! Porque é que Englefield tinha feito isto? Eu tinha sido tão cego como ele, não vendo o quão profundamente a maldade do rei Filipe o infectara. Constanza! Dom Ramón! ó meu Deus, pela minha incrível estupidez merecia de facto morrer!

 

Lembro-me da procissão através das ruas apinhadas de Madrid até à Praça da Catedral como se fosse um sonho. Os Soldados da Fé lideraram o caminho, seguidos pela cruz verde da Inquisição embrulhada num véu de luto crepe negro. Um tocador de campainha precedia um padre imponente que caminhava sob um brilhante dossel escarlate e ouro, e à medida que ele passava, as multidões caíam de joelhos e choravam, batendo nos seus peitos ao som da campainha. Depois vínhamos nos, os prisioneiros, cordas penduradas dos nossos pescoços. Os guardas paramentados da Inquisição vinham a seguir, e por fim homens que transportavam em postes altos as grotescas efígies de palha e cera, com os seus sambenitos e caras pintadas sorridentes.

 

Enquanto marchávamos Para dentro da praça, vimos os dois palanques envoltos em preto e o meu coração pesaroso afundou-se ainda mais. Que visão terrível aquela! As multidões - mais milhares de espectadores do que eu alguma vez tinha visto reunidos. A parada festiva e colorida dos que em breve estariam mortos. O ar doentio de piedade hipócrita. Como é que se tinha chegado a isto, perguntei-me, como é que um ritual tão horrendo podia ser considerado necessário para desviar as pessoas dos caminhos do mal? Auto-de-fé. O Triunfo da Fé.

 

Enquanto os padres celebravam a missa, nós, os pecadores, esperávamos de pé em frente aos palanques em três longas filas rodeadas pela multidão de devotos, vindos para rezar pelas nossas almas imortais. Um por um os penitentes subiram os degraus para se sentarem perante os agentes da Inquisição que liam então uma longa litania dos seus crimes contra Deus, depois do que, com grande cerimónia, recebiam as suas penitências. Aqueles que tinham sido abandonados ao braço secular eram sentados em carroças e levados para os campos de queima mesmo à saída da cidade. Depois de duas horas torturantes, o primeiro odor de carne humana carbonizada deslizou até nósfazendo com que vários dos condenados quebrassem em acessos de soluços dos quais não podiam ser reconfortados.

 

Eu próprio tinha caído num torpor de abandono e desespero, piorado pelo arrependimento pela minha estupidez e pelo insuportável remorso pela destruição certa de Constanza e da sua família. De facto desprezei-me infinitamente mais fervorosamente do que a multidão de pessoas que me rodeavam, apesar de elas me desejarem morto. Apenas os monges em ambos os lados impediam as pessoas de me lançarem as suas garras.

 

De repente senti um estranho calor nos meus joelhos. Olhei para baixo. A bainha do meu sambenito estava a arder!

 

Gritei "Fogo, fogo!", tentando tirar o fato em chamas por cima da minha cabeça. O caos explodiu a toda a volta, as pessoas a gritar e a empurrarem-se umas às outras para verem o penitente que não tinha esperado que a pira ardesse. Então senti os meus pés a serem puxados por debaixo de mim. Senti o chão, mãos a agarrarem-me rudemente, pés em pânico a espezinharem e a pontapearem. Estava impotente à medida que o meu corpo era arrastado através da imensa multidão em fúria.

 

E de repente tinha acabado. Eu estava quieto, a tentar respirar, arfando, de cara para baixo no que devia ser uma ruela fora da praça. Com nódoas negras, a pele rasgada em alguns sítios, rebolei nas minhas costas e olhei para cima, espantado por ver as caras de Dom Ramón e Enrique e diversos outros homens que não conhecia. Enrique ergueu-me rapidamente e Dom Ramón lançou um capote sobre os meus ombros.

 

- Perdoa-me por te ter pegado fogo, meu rapaz - disse ele -, mas foi a única distracção que me pareceu ser suficientemente espectacular para a ocasião.

 

Lancei os meus braços à volta dele, rindo, a murmurar os meus agradecimentos. Então por trás do seu pai vi Constanza, a cara iluminada de alegría. Desejei abraçá-la, mas Dom Ramón impediu-me de o fazer.

 

- Temos que nos apressar a sair daqui, Artur - disse ele. - Eles encontrarão a qualquer momento o teu sambenito vazio e saberão que escapaste. Estás muito queimado? Consegues andar sozinho?

 

- Mal me chamusquei, Dom Ramón. - Não conseguia afastar os meus olhos da visão de Constanza. - Estou vivo e livre. Seguir-vos-ei para qualquer lado.

 

Numa casa nobre da família Lorca não longe da Praça da Catedral encontrei não só um refúgio fresco dos meus perseguidores e das chamas do Inferno, mas o reencontro com a minha bela Constanza. Estávamos os dois tão exacerbados de alívio do terror do meu encontro de perto com a morte que passaram muitos minutos antes de nos libertarmos do nosso primeiro abraço.

 

Todos os que participaram no meu arriscado salvamento reuníram-se no quarto enquanto, despido da minha tanga, permiti a Constanza cuidar das minhas feridas e escoriações que eram, dadas as circunstâncias, apenas um aborrecimento menor. Todos falavam ao mesmo tempo, rindo, recordando a participação de cada um na missão.

 

- Eu estava ajoelhado na multidão aos teus pés - disse Enrique. A minha parte era pegar fogo ao teu sambenito com uma tocha comprida. Tinha apenas um momento para o acender e dar com a bainha da tua túnica, mas o raio do monge estava sempre no caminho!

 

- Desempenhaste o teu papel na perfeição, Artur - disse-me Dom Ramón. - Até parecia que estavas a seguir instruções pré-combinadas.

 

- Mas como descobriram a minha situação perigosa? - perguntei eu.

- Uma carta anónima chegou há três dias a Santa Maria.

 

- Francis Englefield... - disse eu baixinho. - Ele disse-me que eu estaria na lista dos reconciliados e que seria libertado. Quando dei por mim nasfileiras dos não arrependidos tive a certeza que ele me tinha traído.

 

- Isso não sei, Artur - disse Dom Ramón. - Tudo o que me disseram foi que te encontraria no auto-de-fé e que seria preciso uma diversão para te tirar de lá.

 

- Talvez - ofereceu Constanza - o teu amigo tenha pensado que não tentarias a fuga se o fracasso significasse arderes na fogueira.

 

- Talvez - concordei eu. - De qualquer forma, ele e todos vós são os meus salvadores, e agradeço-vos de todo o coração.

 

Abracei-os a todos, e eles fizeram fila deixando-me só com Constanza na calmaría da tarde. Não falámos. Ela começou a beijar silenciosamente cada uma das minhas feridas. Um leve roçar dos seus lábios frescos numa ferida no meu ombro, uma arranhadela no peito, uma queimadura na barriga, o meu joelho. Colocou a sua mão meiga sobre a cicatriz da minha coxa. Rapidamente a tomei nos braços e levei-a para a cama onde avidamente sucumbi aos fogos da paixão.

 

Pela altura em que a escuridão caía sobre os campos ardentes de Madrid repletos com as cinzas dos mortos, Enrique e eu, reunido com a minha orgulhosa Mirage, estávamos a cavalgar em força na direcção do Norte de Espanha. A frota de Filipe, que há três semanas largara de Lisboa, encontrara caprichosas tempestades de Verão. Tinham sido obrigados a voltar para trás e agora estavam ancorados no porto da Corunha a tratar dos estragos. Enquanto cavalgava através da noite pensava no estranho destino que tinha libertado um condenado - eu - efeito da Armada um prisioneiro, de forma a que pudesse estar entre os seus homens quando ela porfim largasse para Inglaterra.

 

A nossa cavalgada para norte através de Castela tinha sido horrivelmente quente e seca, mas à medida que eu e Enrique atingíamos a rica terra de quintas e gado que rodeia a Corunha demos por nós no meio de um dilúvio, e pela altura em que chegámos à grande e abrigada baía a cidade estava envolta num nevoeiro espesso. Era uma coisa boa, o nevoeiro, pois ajudava a abafar e esconder a minha presença daqueles que nesta cidade me tinham já traído. De facto ficámos bem longe da casa de Rodrigo Lorca bem como dos seus antros, e não desperdiçámos tempo nos nossos esforços para me colocar em segurança a bordo dos navios que flutuavam no fantasmagórico porto.

 

A Armada tinha-se arrastado até à baía da Cortinha, quarenta navios primeiro, os restantes dispersos pela tempestade, aparecendo nas semanas seguintes. As suas provisões de biscoito, peixe, vegetais e carne tinham, na sua curta viagem, sido encontradas podres, e a água perdera-se em barris defeituosos ou estava demasiado inquinada para beber. Assim a frota estava em grande azáfama para reaprovisionar mesmo enquanto se reuniam, e para reparar os navios danificados pela tempestade, de forma que quando o caprichoso tempo de Verão tivesse passado pudessem largar novamente para Inglaterra.

 

Durante este tempo o almirante da Armada que era o duque de Medína Sidónia concluiu que a sua tripulação estava em necessidade extrema de confissão comum e absolvição. Para este propósito fez preparativos para transportar todos os seus oito mil homens e duzentos padres para uma ilha deserta no porto - com o receio de que a colocação deles no continente levasse a deserções em massa.

 

Este, então, foi o meu ponto de entrada no campo inimigo. Dizendo um triste adeus à Mirage, que nunca mais pensei voltar a ver na minha vida, deixei-a ao cuidado de Enrique que prometeu mantê-la e acarinhá-la sempre, e abordei um barco a remos que ia para a ilha dos penitentes. Não tive qualquer dificuldade em misturar-me entre aquela população, mas senti muita agitação com esta nova carreira de soldado marítimo.

 

Tantos da tripulação tinham já caído doentes devido à comida e agua putrefactas que, depois de comungar na sinistra e pequena ilha e de me colocar na fila para ser transportado para os navios ancorados, a minha presença não foi questionada, mas antes fui calorosamente recebido como um saudável e novo recruta. Inscrevi-me como artilheiro, um arcabuzeiro italiano, não sabendo nada acerca da utilização dos canhões grandes e certamente menos ainda da ocupação de marinheiro.

 

Enquanto o barco a remos se movimentava entre a Armada agora quase inteiramente reconstituída, dei por mim espantado não só com o número e variedade de navios - desde navios almirantes monstruosos e largos e navios de mastros altos, até galeões e galeotas, mercadores e barcos-correios mais pequenos a que chamávamos escaleres - mas também com as grandiosas proporções dos castelos de combate dentro deles. Estes castelos eram fortificações altas de madeira pintadas com janelas e tijolo, utilizados para a protecção dos soldados e lançamento de obuses. Enquanto deslizava entre os navios parecia que eles eram mais grandes fortalezas do que barcos à vela, e que as suas magníficas silhuetas, tanto como o seu número, iriam acometer de medo terrível os corações dos seus inimigos.

 

Fui levado para bordo de San Salvador, um navio vice-almirante de um dos quatro esquadrões da frota - com capacidade para mil tonéis, transportando quase quatrocentos homens. Fiquei grato com a minha sorte. Para além de ser um navio de tesouro transportando grande quantidade de ouro em barra para ser utilizado aquando da chegada da Armada, o navio tinha também enormes provisões de pólvora e munições.

 

Entretanto vieram-me de facto pensamentos de sabotagem, embora por ora me visse obrigado a combater os meus próprios medos. Não seguramente da batalha, pois era um soldado de coração, mas de uma longa viagem oceânica em mares tão viciosos que já tinham feito a Armada do rei Filipe dar meia volta uma vez. Tenho que pensar na Inglaterra, repetia para mim próprio, no meu pai, e na minha mãe, a Rainha. Expulsaria o medo e utilizaria a minha presença bem no meio do inimigo para a maior desvantagem deste.

 

Mas, na verdade, no dia em que a Armada zarpou, o sol a cintilar na água encrespada, fiquei demasiado petrificado pela visão para sentir qualquer agitação. Tudo o que conseguia ver era a brisa a enfunar as velas com as suas arrojadas cruzes vermelhas, as galés de talha baixa, os seus longos remos de fortes remadores a mergulharem num ritmo poderoso, ágeis marínheiros empoleirados no topo de mastros altos, o vento a chicotear-lhes o cabelo. Uma grande bandeira foi hasteada no navio do almirante - uma pintura sinistra da Crucificação flanqueada pela Virgem e Maria Madalena. Soldados de joelhos em cento e trinta barcos, as vozes erguidas em cânticos em honra da sua gloriosa cruzada.

 

Os primeiros três dias no mar foram de certa maneira uma alegria, pois a água estava calma e a brisa perfeita para a viagem. Mas depressa tomei conhecimento das pobres condições enfrentadas por todos os homens a bordo. Os marinheiros eram talvez menos infelizes, pois viviam e trabalhavam no convés superior e de cima, e faziam os seus trabalhos ao ar livre e à luz do dia. Nós, os soldados, estávamos relegados bem para baixo em dormitórios escuros e sem ar, iluminados apenas por uma ocasional lanterna, sem trabalho para passar o tempo. O fedor era inacreditável, pois nos primeiros dias no mar depois de saírem de Lisboa o tempo tinha sido tão mau que a doença arrebatara quase todos os soldados. Aqueles que não vomitavam eram assolados pela diarreia devido às rações estragadas. Mesmo o mês passado no porto da Corunha tinha adoçado apenas minimamente aqueles aposentos, porque os excrementos e o vomitado tinham-se infiltrado nas próprias pranchas de madeira do chão.

 

Soube, para grande surpresa minha, que as tripulações não tinham sido informadas de nada com exactidão ou oficialmente, o rumor tinha de tal maneira penetrado nas fileiras que todos sabiam que a sua missão era a derrota de Inglaterra, e que era o plano divino de Deus. Os soldados no seu todo eram encorajados a ficar lá em baixo sempre fora do caminho do trabalho dos marinheiros, a não ser que fossem necessários para combate. A maioria cumpria, mas eu, com a minha missão privada, não podia dar-me ao luxo de tais restrições.

 

Para afastar as suspeitas acerca dum soldado tão frequentemente a vaguear pelo navio, com o meu charme abri caminho para as suas boas graças, oferecendo a minha assistência trapalhona onde quer que fosse necessária, alegando que só naquele momento me tinha apercebido do meu erro ao escolher ser soldado em lugar de marinheiro. Ajudar a puxar as duas pesadas âncoras, a içar velas, ou aprender a arte de fazer nós, em breve era uma figura bem-vinda e inquestionada no convés, onde quer que me apetecesse ir. Era, consequentemente, fácil fazer uma ronda diária pelas cobertas e porões, examinando as provisões imensas de barris de pólvora, localizando rolos de mecha e formando um plano na minha cabeça para prejudicar a frota espanhola sem provocar dano à minha pessoa.

 

Uma tempestade breve mas aterradora atingiu-nos uma noite antes de atingirmos águas inglesas. Sentíndo-me um biltre e cobarde fugi lá para baixo em lugar de enfrentar a visão das grandes ondas negras. Ali fiquei enrolado no meu duro beliche toda aquela noite cruel, rezando pela minha vida e amaldiçoando o destino por me colocar novamente como um suplicante desesperado numa selvagem tempestade no Canal.

 

Quando a manhã abriu, esgueirei-me para o convés e abençoei o sol. Vários dos navios que tinham sido separados dos restantes estavam a regressar à frota, com mastros partidos e velas rasgadas como herança da ferocidade da tempestade. A meio da tarde o vigia começou a gritar e a apontar para a proa. Olhei para ver o que tanto temia e ansiava em igual medida a costa de Inglaterra, uma ponta a que chamavam o Lagarto. Três canhões foram disparados e todos os homens - soldados e marinheiros, grandes e grumetes lado a lado - se ajoelharam para oferecer agradecimentos a Deus pela Sua misericórdia em trazê-los tão longe na sua missão sagrada.

 

Então de repente com uma saraivada de toques de trombeta e sinais de bandeira, a poderosa frota - como faria um bando de aves - assumiu graciosamente a forma de uma lua crescente gigante, os navios que navegavam à frente a formar a protuberância, com pontas decrescentes que se afastavam cerca de cinco milhas. De onde eu estava, no convés do San Salvador - uma parte do braço sul -, parecia que os navios no centro estavam a navegar tão próximos e sólidos que um homem podia saltar dum convés para o outro. E apesar de navegarmos lentamente - tão lentamente como as embarcações mais vagarosas, tão lentamente como um homem a caminhar em terra - éramos, não obstante, uma visão tão majestosa e horrível como alguma vez tinha sido vista na terra de Deus, e eu tremi ao pensar naqueles aldeões ingleses que estavam a ver-nos de terra.

 

Rezei incessantemente para que a Inglaterra fosse poupada à ira destes inimigos terríveis nas suas costas. Os campos serenos e verdejantes, colinas enrugadas pontilhadas de urze púrpura, promontórios rochosos abrigando aqui e ali uma pequena aldeia! A minha casa! Estávamos tão perto que se eu fosse um bom nadador teria saltado para o mar e nadado até àquela terra abençoada.

 

À medida que o Sol deslizava para debaixo do horizonte ocidental e a escuridão se espalhava sobre nós como um manto, vi uma coisa que levou o meu coração a saltar de alegria dentro do meu peito. A todo o comprimento da costa inglesa, em locais altos, eram acendidas grandes fogueiras, que brilhavam como faróis, uma a uma, de aldeia em aldeia tão longe para leste quanto os olhos alcançavam. Minúsculos pontos de luz assinalavam a aproximação da Armada. A minha mente girou ao pensar na velocidade daquele sinal, e o quão rapidamente todos os meus conterrâneos iriam saber que o momento da sua maior prova tinha chegado. Pensei na minha mãe, como ela devia estar a tremer de ansiedade pelo destino do seu amado reino, mas sabia também que ela era uma rainha de grande coração, e que tinha feito tudo ao seu alcance para preservá-lo.

 

A coberto da noite fiz planos para a manhã em que iria agir, dar o meu próprio golpe pela Inglaterra e levar o medo aos corações dos seus inimigos.

 

Nos promontórios do Canal, mesmo a norte de Dover, as chamas das fogueiras saltavam e rugiam, formando estranhas sombras sobre a estranha criatura que agora dançava em torno delas. À frente,

a cabeça de um enorme cavalo, o corpo longo e ondulante de uma fileira de homens, franjas e bandeirolas a voar por trás enquanto gemiam antigos encantamentos. Era uma visão, pensou John Dee com satisfação, doutros tempos. Tempos do Grande Reino. Em quantas ocasiões se tinham os Bretões unido na sua força para salvar a terra de invasores?

 

Mas viria ela? Iria a rainha de Inglaterra prestar atenção à convocatória de um simples súbdito, despojar-se das suas mais cristãs vestimentas e alimentar este ritual pagão com o poder da sua antiga linhagem?

 

Dee sabia que arriscava o desagrado real com esta viagem não oficial a casa na véspera da guerra com Espanha. Mas sabia, também, que apesar da ordem para a sua presença aqui nesta noite não provir de Isabel tinha, não obstante, emanado de um poder mais poderoso do que o dela. Ele era obrigado a obedecer às fontes cósmicas, que tinham anunciado as suas intenções para ele de uma forma aterrorizadora durante uma daquelas conversas angélicas que tinham com ele - com ele e Edward Kelly - em Praga. A mensagem não podia ter sido mais clara: O Mago do Grande Rei da Bretanha deve assistir aos fogos espontâneos na véspera da Batalha, e invocando os Grandes Poderes, fazer os feitiços circundantes que escudarão e protegerão toda a Inglaterra.

- Bom doutor.

 

Dee virou-se para dar com uma mulher do campo com uma simples capa com capuz de pé diante dele. A sua cara nua brilhava à luz da fogueira, os olhos pestanejavam, e demorou um momento antes de perceber com espanto que estava perante a Rainha.

 

- Não faças qualquer cerimónia comigo, John. O meu disfarce enganou-te por um momento, por isso presumo que irá enganar esta boa gente que nunca me pôs os olhos em cima antes.

 

- ó, Majestade, viestes! - sussurrou ele ferozmente.

 

- Como podia eu fazer outra coisa? Fizeste parecer como se as próprias estrelas no céu me tivessem convocado. - O tom era de irritação mas não de fúria, e Dee teve a certeza que ela lhe tinha perdoado a sua impetuosa viagem para casa. - O que procuras? Vejo os teus olhos a virarem-se em todas as direcções... Ah! Sim, trouxe-o - disse ela num tom mais jocoso do que Dee imaginara que ela tivesse nesta ocasião. - Lord Leicester demora mais tempo a ir de um sítio ao outro do que antigamente.

 

- Agora fazes troça do teu velho amigo aleijado, é? - O conde, com um ar similarmente comum em simples calças de fustão e um casaco curto, tinha aparecido por trás de Isabel e estava a sorrir para Dee. Tinham passado anos desde a última vez que ele e Dee se tinham visto, e de facto o conde parecia alarmantemente mal. Mas não havia tempo para conversas. Havia um ritual que precisava de ser realizado.

 

- Majestade - começou Dee. Mas a Rainha colocou uma mão sobre o braço dele.

 

- Esta noite eu sou Bess. Está bem?

 

Dee fez que sim com a cabeça. Viu que Isabel ficou presa à imagem do cavalo a completar outra volta à fogueira, as suas bandeiras a baterem neles enquanto passavam.

 

- Nunca viste a celebração de Beltane? No solstício de Verão? Isabel abanou a cabeça.

 

- Fui criada estritamente como cristã. Nada sei da adoração pagã. Dee sorriu.

 

- O Cavalo de Madeira confere sorte a todos aqueles que sombreia à sua passagem. A Lei dos Opostos faz presumir que boa sorte para os Ingleses signifique má sorte para os Espanhóis.

 

Isabel não conseguia afastar os olhos do homem que dançava.

- Isto está então a acontecer noutros sítios?

 

- Por toda a Inglaterra, suponho - respondeu Dee. - Esta infindável luta entre católicos e protestantes parece ter usurpado todas as energias religiosas, mas a verdade é que, Vossa Majestade... Bess... - Dee sorriu, pensando em tudo o que tinham partilhado, e na doçura de uma tal familiaridade nesta noite fatídica. - A verdade é que os procedimentos pagãos nunca foram esquecidos por uma grande quantidade de pessoas, e em momentos de grande perigo não há qualquer substituto para as antigas orações. Agora se fizer favor vá colocar-se do outro lado do fogo. Vamos começar de imediato.

 

Dee e Leicester ficaram silenciosos a observar Isabel a caminhar através da multidão de celebrantes, talvez pela primeira vez em toda a sua vida sem ser reconhecida e sendo ignorada.

 

- Tens tido notícias de Arthur? - perguntou Leicester no momento em que Isabel já não podia ouvir.

 

Não. - Dee colocou um braço compreensivo em tomo do ombro do seu antigo aluno.

 

- Receio que ele esteja morto, John. Receio tê-lo perdido uma vez mais.

- Não sinto que ele esteja morto, meu senhor.

 

Dudley perscrutou os olhos do velho feiticeiro.

- Não?

 

- Sinto-o vivo. - A boca de Dee estremeceu. - E sinto-o perto.

- ó meu Deus! - Os olhos de Leicester derramavam lágrimas.

 

- Vem - disse Dee. - Temos que começar. Conserva a tua energia, meu amigo, pois eu tenho que vos pedir a ti e à Rainha para serem fortes, para porem em realce todas as vossas forças vitais combinadas. São mãe e pai de Arthur, que te digo que vive! Arthur, herdeiro do trono do outrora e futuro Império Britânico...

 

- Teremos uma vitória, John?

 

- As estrelas dizem que sim, sim!

 

- Então anda, ensina a este velho puritano os costumes pagãos e deixa-nos expulsar as forças do mal das costas inglesas - disse Dudley, e depois murmurou: - E que Deus me perdoe.

 

- Ram ry goll neheneit, As guyar, Honiieit - entoou John Dee, de olhos fechados. Ele parecia não estar neste mundo mas antes perdido nas velhas brumas do tempo. - Dydoent guarthvor, Gvelattor aruyddion, gwydveirch dyavor, Eingy1 ygh ygvor, Gvelattor aruyddion. - Os olhos abriram-se. Força para os nossos defensores! - gritou e atirou o seu bastão ao cavalo giratório que abanava a longa cauda na direcção do Canal. - Três vezes à volta do circuito da fogueira, o Mal afunda-se no solo. Em torno da pira, três vezes três, afunda o inimigo no fundo do mar!

 

Enquanto o Cavalo de Madeira dançava à volta do fogo rugidor uma vez atrás da outra, o mágico da Rainha, alto sóbrio e completamente inspirado pelo poder dos tempos, entoou as suas orações para que o reino e o sangue dos seus soberanos resistisse à eternidade. Quando ficou satisfeito os camponeses estavam perdidos nas suas danças e encantamentos, Dee aproximou-se de Isabel, agora em transe e a tremer com a força das energias confluentes, e pegou-lhe na mão. Ela olhou-o com um ar interrogador, mas ele não a olhou nos olhos, simplesmente moveu-se em torno da fogueira até junto de Leicester que estava igualmente em transe, e pegou-lhe na mão com a que tinha livre. Conduziu-os, completamente silencioso, para além da luz da fogueira para um pequeno bosque de carvalhos e virou-se para enfrentá-los.

 

- Esta noite - proferiu Dee com a autoridade do próprio céu, vocês dois casar-se-ão, e Robert Dudley tornar-se-á o teu rei e consorte. - Ele ouviu simultaneamente a inspiração aguda de Isabel e a exalação estupefacta de Dudley. - Neste bosque sagrado, vocês vão-se deitar juntos e consumar esse casamento. Isabel, rainha de Inglaterra, o teu corpo irá nesta noite tornar-se a terra e tu, rei Roberto, irás lançar a tua semente fértil sobre ela. Então... continuou ele, nunca tirando os olhos de Leicester - sairás e conduzirás os exércitos de Inglaterra contra os invasores. Morre, se preciso for. - Depois para os dois: - Este é o antigo ritual e o mais poderoso. O que dizem da sua celebração?

 

- Sim - disse Dudley sem hesitação.

 

Dee viu Isabel a olhar inquiridora para o seu velho amante, talvez compreendendo a ironia de que o mais querido desejo da vida dele iria finalmente ser-lhe concedido, mas apenas em privado, apenas pelo bem da magia.

- Sim - disse ela, com os olhos em fogo. - Casa-nos. Casa-nos!

 

Nada disseram enquanto se moviam juntos, encontrando os locais familiares em que os seus corpos se sabiam unir. Ela que tinha estado privada do toque de um homem por tanto tempo, e ele que tinha estado privado do amor verdadeiro de uma mulher, agora descobriam nos braços um do outro, para além do mais profundo consolo, um poço de paixão esquecida. À medida que descobriam o ritmo do prazer, Isabel e Robin Dudley nunca desviaram os olhares um do outro, os anos entre eles derretidos como a neve de primavera, e as suas caras gastas tornaram-se belas à vista um do outro. A doce sensação começou a crescer, a tomar corpo e eles deliciaram-se nela, sabendo que ela era a terra e que a semente dele entornada nela era a fecundidade do seu reino. Com a música do cavaleiro mítico a vaguear pelos penhascos, agarraram-se um ao outro, abanando, abanando, e então como se por uma última vez abençoados pelas estrelas, gozaram juntos, gritaram juntos e rejubilaram, não apenas pela sua amizade inabalável por tudo o que tinha caído sobre ela, mas por Inglaterra, a sua amada Inglaterra.

 

- Curagem! - gritou John Dee, olhando para o Canal iluminado pela Lua. Os dançarinos do cavalo tinham cessado a sua dança para a bênção final, e também eles estavam de pé a olhar para o mar com expressões tão assustadoras como pragas.

 

Prestem atenção e amaldiçoados sejam os homens

 

Cujos navios assolados pela tempestade, O sonho arrogante de Astride Epona,

 

Se avermelham, com as ondas do mar como chamas em fúria Confere doce vento às bandeiras Anglas

 

Enquanto os lobos-do-mar transformam as velas em trapos espanhóis!

 

Então, com um grito selvagem tão velho como o próprio homem começaram a dançar outra vez, e John Dee soube, tão certo como a Terra girava em torno do Sol, que nenhum mal aconteceria nesta terra abençoada, e que a Inglaterra vingaria por mil anos.

 

Ainda bem que fiz os meus trabalhos secretos na noite anterior, pois quando o dia nasceu não só, tivemos a nossa primeira visão da frota inglesa como entrámos em batalha com ela. Eu sou tudo menos um homem do mar efalo com ignorância acerca de todas as coisas náuticas, mas as minhas observações de senso comum foram estas, Ao lado da Armada, a marinha inglesa era pequena, talvez metade dafrota espanhola. De facto, os navios ingleses eram eles próprios pequenos - estreitos e com pouco calado. Mas, bom Deus, se eram rápidos! Ágeis como uma potra de dois anos, e poderosos nas suas manobras.

 

Dez dessas embarcações, canhões em fogo, investiram em ataque sobre vários navios na ponta norte do crescente. Os espanhóis, lentos e pesados, ainda mal tinham virado a sua artilharia quando os ingleses já se tinham aproximado e fugido para fora do seu alcance. Ouvi muito descontentamento nas fileiras dos soldados, pois o inimigo confundia-os, nunca se aproximando o suficiente para serem grampeados e abordados - o único tipo de batalha marítima que eles conheciam. Os navios espanhóis com os seus grandes castelos eram enormes e vagarosos, alvos fáceis para estes ágeis falcões que se aproximavam lestamente, descarregavam a sua artilharia e desapareciam, deixando os orgulhosos espanhóis frustrados na sua busca por uma luta decente.

 

Foi neste momento de fraqueza e balbúrdia que eu fiz a minha jogada. No convés da popa localizei um marinheiro espanhol particularmente belicoso e sussurrei-lhe ao ouvido que tinha ouvido um soldado corpulento que agora afiava a sua espada à vista de todos, a chamar à mulher do marinheiro "puta". Observei apenas o tempo suficiente para ver o primeiro golpe a cair, ouvir o tumulto que se seguiu, e soube que homens de todas as partes do navio estavam a correr para testemunhar uma bela rixa.

 

Furtivamente percorri o meu caminho até ao porão da popa onde estavam armazenados todos os barris de pólvora e mais de metade das munições a bordo. Comprimi-me num vão quando os dois guardas das munições passaram a correr para lutar e, sem desperdiçar um momento sequer, coloquei o comprido rastilho, a ponta enterrada num barril aberto meio cheio de pólvora.

 

A outra ponta acendi-a com uma lanterna. Colocando-a cuidadosamente no chão rezei rapidamente para que ela não se apagasse antes de encontrar o seu feérico fim, e corri.

 

Pelos gritos e ruídos lá em cima percebi que a luta estava no seu auge. Movendo-me calmamente na direcção oposta dirigi-me para o convés da proa, com cuidado para desviar a cara dos outros homens que corriam para assistir à luta. Mal tinha chegado à proa e me agachara por trás de uma antepara quando o mundo explodiu. A explosão projectou-me para a amurada, quase me lançando para o mar. Todo o navio de mil tonéis se ergueu da água e caiu de volta com um rugido de quebra. Um momento mais tarde, à medida que a balbúrdia se esvanecia, ouvi homens a gritar, outros a gemerem piedosamente e sobreviventes a gritarem ordens de assistência aos feridos.

 

Endireitei-me e, vendo que para além de algumas escoriações e uns quantos arranhões estava ileso, corri para a popa para ver a mutilação que tinha provocado. Nada me preparara para a visão de carnificina e horrível destruição. Toda a popa tinha desaparecido. Os dois tombadilhos superiores da popa estavam em ruínas. Havia homens mortos e mutilados por todo o lado. Homens a arder guinchando de agonia saltavam borda fora para encontrar a morte.

 

O porão estava completamente à mostra, e lá dentro muitos fogos vingavam. Era o inferno sobre a água, e eu tinha-o de facto criado. O navio inclinou-se imenso mas parecia, não obstante, miraculosamente, não estar em perigo de se afundar, o que tinha sido a minha intenção. Os navios próximos do nosso esquadrão apressavam-se para o salvamento, levando-nos de reboque. Trabalhei lado a lado com soldados e marinheiros tentando extinguir os teimosos fogos, acobardando-me quando algum esconderijo de pólvora não rebentada explodia com um som poderoso. Os homens feridos eram levados para outros navios e, para meu extremo desagrado, as barras de ouro também foram. Desejara mandar tudo para o fundo das águas do Canal, mas tinha de me contentar com os macabros resultados da minha sabotagem - um navio destruído e duzentos mortos.

 

Porfim os sobreviventes em bom estado foram levados para barcos enviados por outros navios. Certifiquei-me de que ia para um com destino ao San Martín, e foi desta forma que consegui espiar o alto-almirante, Alonso Pérez de Guzmán el Bueno, o duque de Medina Sidónia.

 

Pouco depois dos sobreviventes do San Salvador terem sido içados para bordo do navio almirante, os comandantes dos outros esquadrões foram igualmente transportados para lá. Observei-os com interesse enquanto eram cumprimentados pelo próprio almirante, um homem pequeno e de constituição compacta, de quarenta anos, ao qual parecia faltar a perigosa arrogância dos seus visitantes. Presumi que tinham vindo conferenciar depois do seu primeiro recontro com os ingleses. Recalde, um homem alto e bem-parecido, com olhos negros penetrantes, era sobejamente conhecido como o oficial com maior experiência no mar. Parecia taciturno quando desceu para se juntar a Medina Sidónia no conselho de guerra. Os primos e inimigos jurados Dom Diego e Dom Pedro Váldez, os quais eu imaginaria que se apresentariam com a confiança e orgulho espanhol, apareciam agora com expressões de frustração e desânimo. Os outros - de Levya, Moncado, Oquendo - estavam igualmente sombrios. Porque na verdade as manobras inglesas tinham-nos apanhado a todos de surpresa.

 

Era minha intenção saber o máximo possível acerca dos seus planos, e para esse fim procurei tornar-me amigo do principal homem de acesso à autoridade mais alta, e cuja posição na hierarquia naval era a mais baixa o grumete da cabina do duque, Jorge Montenegro, um rapaz magro, alto e sem graça com uma cara borbulhenta tão achatada como uma pá. Na nossa primeira conversa, horas apenas depois da minha chegada a bordo, soube que era o filho terceiro de um fidalgo castelhano. Jorge tinha começado o seu serviço na Armada como grumete do anterior alto-comandante, Santa Cruz. Jorge disse-me que o almirante tinha, depois de lutar dois anos para mobilizar a frota espanhola, morrido inconvenientemente diversos meses antes dela largar. O seu substituto, Medina Sidónia, não era um homem da marinha, e não viera com o seu próprio criado para o trabalho. Assim, o jovem Jorge tinha ficado.

 

Reconhecí-o imediatamente como um terceiro filho, faltando-lhe a confiança do primeiro ou a indiferença estudada do segundo. Fui capaz de arranhar o fino verniz de altivez espanhola com uma garrafa partilhada de bom xerez que tinha roubado da despensa do capitão antes de abandonar o navio. Quando Jorge foi dispensado por Medína Sidónia, levou-me ao seu beliche, um minúsculo buraco na parede mas que pelo menos era privado. Esmagados como sardinhas num barril bebemos e conversámos. Ele estavafascinado pelas minhas descrições da devastação a bordo do San Salvador.

 

Embora o tempofosse essencial, eu precisava de ser cauteloso e inteiramente delicado no meu interrogatório, de forma a que ele nunca desconfiasse que estava a falar com um espião inglês.

 

- Vi uma pinaça a abandonar a frota e navegar à nossa frente todos os dias desde que deixámos a Corunha, mas nunca vi nenhuma voltar. Para onde vão?

 

- Para Dunquerque - respondeu ele lestamente.

- Porquê Dunquerque?

 

- Porque é onde está o duque de Parma, ele e os seus trinta mil soldados terrestres. Quando nos encontrarmos com eles - disse Jorge, a sua voz a começar a enrolar-se, pois os espanhóis não eram conhecidos como grandes bebedores, e a sua ração diária de vinho era ridiculamente pequena - teremos limpo o Canal de todos os navios ingleses, e então Parma atravessará efará a invasão.

 

Senti o meu coração gelar.

 

- É um plano brilhante - disse, esperando soar entusiasmado. - As defesas costeiras inglesas são reputadas comofracas. Vamos chacíná-los.

 

- Se Deus quiser - acrescentou ele.

- Se Deus quiser - concordei eu.

 

- Mas Parma - disse Jorge, arrancando-me a garrafa das mãos Parma nunca responde aos despachos do almirante. O duque está a ficar ansioso. Ele tem que saber se as tropas de Parma estão prontas, se a sua frota de barcos está preparada para as transportar através do Canal.

 

- Pergunto-me porque é que Parma não responde - matutei eu, alcançando a garrafa.

 

- Também Medína Sidónia se pergunta. Mas ele é obrigado pela honra a seguir as ordens do rei que são muito estritas. Acho que elas o aborrecem.

 

- O que é que o aborrece nas ordens? - sondei eu.

 

Mas Jorge ficou silencioso, e as suas pálpebras caíram. Temi perdê-lo.

- Talvez devamos deixar algum para outro dia, amigo - disse eu, escondendo a garrafa debaixo do meu casaco. - Não seria bom se aparecesses a tropeçar de bêbado no conselho de guerra do duque.

 

Jorge riu-se com o pensamento, e depois ficou sério.

 

- Ele é um homem muito bom, o duque. Muito digno. Muito gentil. Demasiado gentil. Ele não desejava o almirantado da Armada. Não é um marinheiro. Nem sequer é um soldado.

 

- Pensei...

 

- Ele aprecia o governo das suas terras andaluzas. - Jorge aproximou-se e segredou: - Ouvi-o dizer a Recalde que escreveu ao rei Filipe a implorar-lhe para não ser obrigado a assumir o comando. A carta nunca teve resposta.

 

Empurrei o jovem Jorge Montenegro para se pôr direito. Quase não havia espaço para nós os dois estarmos de pé. Endireitei-lhe o casaco e obriguei-o a soprar para a minha cara.

 

- Que horror! É melhor comeres qualquer coisa para esconder o xerez. Pensa na desgraça do teu pai se perdesses a tua posição.

 

Isto pareceu pô-lo sóbrio de imediato.

 

- Vou à procura de algum biscoito - disse ele enquanto eu me virava para partir.

 

- Talvez umas dentadas num peixe forte também - acrescentei eu.

 

- Obrigado, meu amigo - disse o rapaz quando eu abri a porta. - É mais fácil enfrentar o dia com um toque de bom xerez nas veias.

 

Bati na garrafa debaixo do meu casaco.

 

- Talvez consigamos encontrar um momento para acabar a garrafa antes de atingirmos Dunquerque.

 

Ele riu-se e eu deixei-o, percorrendo o meu caminho para baixo onde ficavam as camaratas dos soldados, inteiramente satisfeito com o meu novo informador. Enquanto estava deitado no meu beliche naquela noite, embalado pelo ritmo do mar, pensei no próximo passo.

 

Um dia inteiro passou com as duas frotas a flutuarem calmamente. Observei os homens a bordo do San Martín que estavam a olhar nervosamente para os navios ingleses, sem dúvida a perguntarem-se o que lhe reservava este estranho inimigo ateu e os seus diabólicos e ágeis navios.

 

Eu próprio fui assaltado pela indecisão relativamente às minhas explorações futuras. Mas nenhuma pessoa estava tão bem colocada como eu para provocar estragos dentro dafrota espanhola, no entanto, eu era apenas um homem, um cavaleiro sem cavalo e com medo do mar. Com informações apenas em segunda mão recolhidas junto dum grumete borbulhento, as minhas escolhas estavam limitadas. O mais irónico era que havia um perigo maior de perder a minha vida às mãos dos meus conterrâneos do que às do inimigo.

 

Estava, de uma forma arrepiante, satisfeito com o meu acto de sabotagem a bordo do San Salvador. Todos nós observámos enquanto os ingleses se apoderavam do casco que se afundava, embora tivesse pena que houvesse poucas barras de ouro para tirar dele. Um plano possível insinuava-se repetidamente na minha cabeça - assassinato. Eu podia assassinar o alto-almirante, o duque de Medina Sidónia, ou podia esperar até que o próximo conselho de guerra trouxesse outra vez todos os comandantes de esquadrão a bordo, e despachá-los todos de uma vez só numa explosão atempada. Isto deixaria a enorme frota numa condição impossível de liderar. Mas de todas as vezes que contemplava um tal acto, dava por mim a resistir-lhe, As memórias da morte do príncipe Guilherme vinham-me à cabeça sem serem solicitadas. O assassinato era uma técnica muito utilizada entre as grandes potências, mas eu pessoalmente achava-o um acto repugnante e cobarde. Ainda assim, não tinha plano melhor, e obriguei-me a mim próprio a procurar um momento auspicioso para o levar a cabo.

 

Nessa noite, no meu beliche apertado, sonhei que fazía amor com Mary Willis, e que depoisficávamos deitados lado a lado naquela clareira amena olhando para cima para as árvores a falarmos amigavelmente, e acordei com ansiedade pela sensação da terra firme e seca que tinha estado debaixo das nossas costas. Pensei sobre o mistério dos sonhos - como um homem tão apaixonado por uma mulher podia sonhar com outra - e dei por mim a perguntar-me de repente quais poderiam ser os sonhos de um homem como john Dee. Se sonhava com o fantástico - com estrelas ou máquinas mágicas ou criaturas míticas. Se sonhava com futuros e profecias. Ou se as suas visões nocturnas eram tão mundanas como as minhas.

 

De repente ouviu-se um grito de que o vento se tinha levantado e a batalha estava iminente. Saltámos das nossas camas de tábuas, engolimos à pressa algumas rações pouco comestíveis, e agarrando nas nossas armas apressámo-nos para os nossos postos. O meu era no convés Superior, mas o percurso mais curto até ele levou-me a atravessar as estreitas cobertas dos canhões onde vi soldados a aprontá-los, a calcar a pólvora e as balas, e despejando um rasto de mais pólvora até ao ouvido do canhão. Iriam esperar para saber a posição do inimigo e, com calços e pés-de-cabra, virariam e elevariam ou baixariam os canhões para a posição de fogo. Então iriam colocar-se ao abrigo do recuo com os dedos nos ouvidos. Por isso, entre os artilheiros pesados encontrava-se o maior número de homens surdos a bordo.

 

Encontrei o meu lugar atrás da fachada do castelo e preparei o arcabuz. Espreitando pela minha janela do navio do alto-almirante tive a sorte de ficar posicionado na linha de frente, com boa visibilidade da frota inglesa que se aproximava, agora liderada por um navio almirante. Eu desejava ardentemente saber quem a comandava. Seria Drake, Frobisher, Hawkins? À medida que se aproximavam pareciam estar a formar uma longa linha, um atrás do outro. O San Martín virou-se de lado para o ataque, e baixou as velas de mezena.

 

Então o assalto começou.

 

O navio almirante aproximou-se rapidamente, virou-se e disparou a sua bordada contra nós, enquanto nós fazíamos o mesmo. Mas enquanto estávamos estacionados na água quase sem espaço para manobrar, os navios ingleses desapareciam rapidamente para abrir caminho ao navio seguinte na fila, que igualmente descarregava os seus canhões com brilhantes relâmpagos das suas canhoneiras. Então vinha o próximo, e logo a seguir outro. Claro que eu e os meus colegas de artilharia ligeira éramos incitados a disparar as nossas armas, mas elas eram claramente inúteis. Até o nosso canhão mais pesado não parecia sequer tocar em alvos tão rápidos nos seus movimentos. Mas a artilharia inglesa a atacar tão dura e continuamente estava afazer estragos no San Martín - o mastro de bandeira e o estai do mastro principal foram fragmentados. Lascas da madeira deles transformaram-se em projécteis mortais que atingiram vários espanhóis a bordo.

 

No convés a digna presença do duque de Medina Sidónia manteve o ânimo espanhol em alta, e na verdade nunca vi o homem a baixar-se ou pestanejar ou exibir qualquer outra coisa que não bravura e boa liderança.

 

O ruído daquela batalha foi o mais terrível que eu alguma vez ouvira em todos os meus anos de soldado, o fogo de canhão tão constante que podia ter sido uma batalha em terra com pequenas armas. Mas com toda a velocidade e poder de fogo ingleses, e mesmo chegando tão perto como chegavam, admito que apenas ocasionalmente ouvi o baque de uma bala de canhão no nosso casco, e o San Martín nunca pareceu realmente em perigo de ser afundado. O ataque continuou por duas horas, eu tão maravilhado com a visão e os sons que esqueci todo o meu medo do mar, e concentrei-me em disparar selvatícamente para o céu, desperdiçando tanta pólvora quanto possível, certificando-me de que nenhum soldado espanhol me observava.

 

Por fim os ingleses retiraram, deixando a Armada a lamber as feridas. Embora os navios não estivessem grandemente danificados, o moral dos homens estava gravemente abalado. Era demasiado claro que os ingleses nunca se aproximariam o suficiente para abordarem os navios heréticos, que pretenderiam utilizar as suas aptidões ferozes na luta corpo a corpo com lanças e espadas. Eles eram, com todo o planeamento magnífico e incansável treino, absolutamente inúteis, e infelizes nesse conhecimento.

 

Mas nenhum estava mais infeliz, parecia, do que Medina Sidónia. Na manhã a seguir à batalha, as duas frotas mais uma vez calmas ao largo da ilha de Wight, procurei Jorge Montenegro quando saía da cabina do almirante. O semblante dele era terrivelmente lúgubre, e eu escoltei-o silenciosamente enquanto ele subia as escadas para o convés superior. Oferecer-lhe álcool não era necessário neste dia, pois ele desejava descarregar o seu coração pesado. Ainda não tinham chegado notícias de Parma, nem um sussurro. Mas os relatórios de espionagem chegaram dizendo que a frota inglesa que tínhamos encontrado até agora - já quase metade da Armada em número - seria acrescentada com um segundo contingente de navios frescos no estreito de Dover. Uma força igual à primeira.

 

- As ordens do rei - disse Jorge - estão a matar o duque.

 

- Como assim? - pressionei eu cuidadosamente. - Não foram elas fornecidas pelo próprio Deus?

 

- É esse o problema. O duque sabe que elas vieram do Todo-Poderoso, mas acredita que até o próprio Deus teria dificuldade em levá-las a cabo. Como, em face de uma tão poderosa ofensiva, podemos nós permanecer completamente à defesa?

 

À defesa? O que queres dizer? - Eu estava sinceramente espantado. Segundo as ordens do rei nós não podemos instigar quaisquer ataques sobre os hereges, nem tomar nenhum dos seus portos, apesar das nossas provisões estarem penosamente baixas, para nãofalar na pólvora e munições. Devemos apenas prosseguir na subida do Canal, firmes na nossa formação, até ao nosso ponto de encontro com Parma. Os outros comandantes estão furiosos com o almirante. Ele está envergonhado com o que parecefraqueza, embora esteja apenas a agir em estrito cumprimento das ordens do rei.

 

- Mas nós vamos encontrarmo-nos com Parma e fazer a invasão? disse eu, tentando parecer esperançoso.

 

Jorge anímou-se.

 

- Claro. E quando as duasforças estiverem reunidas não haverá poder na Terra capaz de as deter! Ah, amigo, tu realmente animas-me. É melhor eu ir.

 

- Que Deus esteja contigo, Jorge - disse eu.

- E o mesmo para ti, Artur.

 

Nos dias seguintes de pequenas escaramuças no Canal eu pensei mais em Deus, e sobre a vida, a morte e o destino, do que em toda minha vida anterior. Embora desejasse fervorosamente viver - encontrar-me com a minha mãe, e o meu pai novamente, e mais do que tudo ter Constanza nos meus braços - não conseguia ver um caminho nítido para realizar esses desejos. Estava a bordo dum navio inimigo numa batalha com os meus próprios conterrâneos entre os quais desejava febrilmente estar, mas dos quais estava separado por aquilo que mais temia - o mar.

 

A minha mente voltou uma vez e outra e outra ao príncipe Guilherme e ao seu credo de tolerância. Se ele ainda vivesse, teria sofrido horrivelmente ao ver como a mais profana das guerras santas do rei Filipe tinha chegado a envolver também a Inglaterra. E eu não podia de forma nenhuma acreditar que o verdadeiro Deus iria desaprovar um amor como o meu e de Constanza simplesmente porque adorávamos em diferentes templos.

 

Mas mais incisiva era a minha decisão de assassinar Medina Sidónia e os seus comandantes. Até agora tinha-me sido negada a oportunidade de uma mortandade em massa, uma vez que os capitães não se tinham voltado a reunir todos a bordo do San Martín para um conselho de guerra. Se despachasse alguém, seria apenas o duque, e eu sabia que no caso da sua morte, de Levya ou Recalde, ambos homens do mar mais capazes do que ele, iriam substituí-lo. Mas no meu presente estado de espírito, era mais a questão do direito e da rectidão do assassinato que me assombrava. Eu era um soldado, e na minha carreira tinha morto muitas centenas de homens. Como sabotador tinha impiedosamente despachado duzentos ou mais. Talvez a descrição do almirante por Jorge Montenegro como sendo um homem gentil e pacífico, e a visão do seu comportamento corajoso e viril em batalha, tivessem lançado alguns pensamentos pouco dignos de um soldado na minha cabeça. Mas mais, as memórias do crime repulsivo e cobarde que tinha acabado com a vida do príncipe Guilherme faziam-me tremer ao pensar em mim próprio como o responsável por um tal acto. O duque era seguramente meu inimigo, mas seria o meu dever, o meu destino, assassiná-lo? As minhas dúvidas e hesitação continuaram enquanto navegávamos em direcção ao estreito de Dover e ao nosso ponto de encontro com o enorme exército de Parma. A invasão de Inglaterra estava apenas a alguns dias de distância.

 

Com o ribombar dos canhões a assinalar a chegada da barca real, o conde de Leicester permitiu-se um raro momento de satisfação. Apesar do aviso agoirento da parte do seu conselho de que a vida da Rainha seria colocada em grave perigo ao ir até ao meio das tropas armadas, Isabel, incitada por Leicester, tinha vindo neste dia ao acampamento de Tilbury. Pusera de lado todas as conversas acerca de loucos e malvados assassinos católicos, permitindo-se a si própria ser persuadida uma vez mais pelo seu mestre de diversões, que tinha argumentado a favor da sua participação neste evento mais ferozmente do que por qualquer outro antes dele. Dudley sabia com toda a consciência que este momento de maior perigo para a Inglaterra podia ser, para a Rainha, o seu melhor momento.

 

Observou enquanto a porta da cabina de vidro e madeira dourada se abria e música graciosa esvoaçava no ar perfumado, misturando-se com os roufenhos pífaros, cornetas e tambores militares que tocavam as boas-vindas. As damas de Isabel deslumbrantemente vestidas emergiram primeiro, provocando um surto de excitação entre os soldados no cais. Então apareceu ela, esplêndida, e parou para lançar o seu primeiro olhar às forças terrestres em sentido, dez mil homens.

 

O lugar estava agora limpo, as camaratas do quartel feitas de tábuas de pinho e de ramos verdes varridas da sujidade e detritos de um acampamento temporário do exército, e os homens tão limpos quanto possível. Leicester olhou à volta e deu por si fascinado com as grandes ondas de adoração e respeito que fluíam de igual maneira dos rapazes de cara fresca e dos homens endurecidos na direcção desta estranha e paradoxal mulher. Ela tinha de alguma forma conseguido, pensou divertido. Atingira o que tinha sido o seu mais intrépido desafio e o mais querido desejo da sua vida o amor absoluto do seu povo.

 

Leicester estava igualmente satisfeito Porque, se os pares de Inglaterra ainda o consideravam o homem mais odiado no reino, os homens alistados sob seu comando, tanto aqui como anteriormente na Holanda, gostavam dele e respeitavam-no. Ele tinha lutado pelo bem deles contra a infindável avareza de Isabel, providenciando de forma a que fossem alimentados e pagos, mesmo que isso significasse utilizar dinheiro dos seus próprios cofres. Ele sabia demasiado bem que se a frota não conseguisse deter a Armada, estes soldados reunidos e treinados apressadamente não durariam muito tempo contra as forças terrestres de Parma. Mas tinha orgulho no seu exército, orgulho nesta comissão, e em agradecimento presentearia a sua amada Isabel com o maior cortejo da longa carreira dela.

 

Agora com uma mão a proteger os olhos do sol do meio-dia a Rainha olhava rio abaixo para a fortificação especialmente construída de Ciambelli, que se estendia através do Tamisa, de Tilbury a Gravesend. Era uma grande massa de cabos, enormes correntes e mastros de navios dispostos de uma ponta à outra, todos presos a uma fila de pequenos barcos ancorados no rio. Tinha sido um plano engenhoso mas, embora Isabel não conseguisse detectar grande coisa de onde estava, a barricada ja começara a desfazer-se. Era, apercebeu-se Dudley repentinamente, apenas pela sua crença nas garantias celestes de John Dee de que nenhum mal aconteceria a Inglaterra, que ele se podia permitir rejubilar nesta ocasião.

 

Quando ambos os pés dela estavam assentes em terra firme, um simples toque de trombeta deu o sinal, e no mesmo momento todas as companhias ergueram bem alto no ar os seus brilhantes estandartes. A cara de Isabel floresceu num sorriso da mais pura alegria e gratidão, um sorriso daqueles que Leicester não via há demasiados anos e, nesse momento, deu um passo em frente para a saudar. O olhar que ela pousou nele aqueceu-o e tornou subitamente indolores todas as articulações, ossos e tendões do seu corpo envelhecido. Ofereceu-lhe a mão e conduziu-a a um coche de duas parelhas que tinha mandado pintar especialmente aos quadrados para parecer que estava incrustado com diamantes, rubis e esmeraldas. Assim, a Rainha e o tenente de Sua Majestade contra a Invasão Estrangeira percorreram o mar de soldados que cantavam incessantemente "Deus salve a Rainha" e "Deus salve a boa Rainha Bess!"

 

- ó! ó Robin - era tudo o que ela dizia, pontuado por pequenos suspiros de prazer. Mas parecia, pensou ele, não estar em absoluto preparada para a visão dos dois mil homens em uniforme em cima das suas montadas à espera no centro do acampamento. Não preparada para a forma do seu exército estampada perante os seus olhos, a perspectiva do qual tinha sido sempre o seu maior pesadelo, agora a única salvação de Inglaterra. Isabel começou a chorar. As suas lágrimas silenciosas eram todos os agradecimentos que Robin Dudley precisava.

 

Ela mudara de roupa, vestia de veludo branco, peitoral e um elmo de prata emplumado a cintilar ao sol. A Rainha penetrou no meio da tropa na sua revista primeiro a pé, calcorreando quase masculinamente as fileiras de homens, comentando com prazer a sua força e graciosidade. Então Leicester ajudou-a a subir para um cavalo alto, branco, com os quartos traseiros às manchas cinzentas. Ele sabia quando pegou nas rédeas e a conduziu até à cabeça do seu exército que o garanhão fora treinado para se empinar, e quando ele começou na sua passada alta uma gargalhada inesperada escapou da garganta de Isabel.

 

Numa pequena elevação virou o cavalo para que ela pudesse enfrentar a multidão e olhar para a massa de rostos voltados para cima. Os gritos mais sinceros de "Deus salve a Rainha!" eram tão poderosos que ela lhes fez sinal para parar, mas eles não paravam. Leicester tinha-lhe dito que um bom discurso estava na ordem do dia, e agora enquanto a observava, e ouvia as vozes a aquietarem-se, por fim, soube que as palavras que Isabel tinha escolhido não podiam deixar de ser estimulantes. Ela estava magnífica. Alta e forte. O melhor do seu pai Henrique. Brilhante como o próprio Sol.

 

- Meu amado povo - começou numa voz forte e estável. - Fui avisada por muitos dos meus conselheiros que me diziam que eu devia temer pela minha vida ao vir aqui entre vocês, as multidões armadas. Mas como vêem recusei-me a prestar-lhes atenção!

 

Era verdade, pensou Leicester. Isabel, de facto, deixara os homens amarem-na, mas nunca governá-la. Assim fora desde os primeiros dias do seu reinado.

 

- Acredito que os meus súbditos são leais - continuou ela -, a minha força e não a minha fraqueza, trazendo-me apenas paz e boa vontade. E por isso vim aqui no calor da batalha para viver ou morrer entre vós todos, e para depor a minha honra e o meu sangue, mesmo no pó!

 

Leicester segurou as rédeas, pois também o cavalo estava em brasa debaixo dela. Por Deus, pensou ele, ela exalta-me a mim com as palavras que eu lhe disse para proferir!

 

- Posso ter o fraco e frágil corpo de uma mulher - Isabel continuou, a voz dela erguendo-se até se tornar quase um grito -, mas tenho o coração e estômago dum rei, e do rei de Inglaterra!

 

Um grande rugido emergiu, os soldados a gritarem de alegria, orgulho e amor, e Leicester, o mais reservado dos homens, deu por si a gritar juntamente com eles.

 

- Como se atreve Parma ou a Espanha ou qualquer príncipe da Europa a invadir o meu reino?! - rugiu ela, erguendo o bastão acima da cabeça, apunhalando o céu. - Que me deixem pegar em armas e eu própria os combaterei!

 

Gritos dizendo "Não, não, Majestade, preservai a vossa vida!"

 

- Bom povo, já conheço o vosso valor no campo de batalha, o quão merecedores sois de recompensa, pois fui disso informada pelo vosso tenente-general!

 

Enquanto outro rugido de aprovação se erguia da multidão, Leicester sentiu-se a corar de orgulho.

 

- Digo-vos agora que nunca comandei um súbdito mais valoroso do que ele, e pela vossa obediência a ele, e pelo vosso valor no campo de batalha, prometo-vos que em breve teremos uma vitória famosa sobre estes inimigos de Deus, do meu reino e do meu povo!

 

Jorge, cujo amor e admiração por Medina Sidónia crescia na mesma proporção que os receios do duque, manteve-me bem informado de todos os múltiplos despachos sem resposta para Parma. Um era um pedido de quarenta barcos - barcos de guerra com fundo chato fortes e eficientes - para se reunirem à Armada tão rápido quanto possível. Outro era de pólvora e munições para serem entregues no encontro de Dunquerque, necessárias para ajudar a frota a limpar as águas de ingleses para que Parma as pudesse atravessar. Mas por esta altura, com nada a não ser silêncio vindo da Holanda, Medina Sidónia começava a desesperar de alguma vez estabelecer contacto com o comandante dasforças de terra. Jorge disse-me, com pesar na voz, que o duque revia repetidamente as ordens escritas do rei para se assegurar que a participação de Parma na invasão não tinha sido criação da sua própria imaginação. Estava crescentemente preocupado com o facto que, mesmo que nos encontrássemos com ele, como iríamos limpar o Canal dos navios ingleses quando os nossos eram tão lentos e pesados, e os deles tão rápidos e leves?

 

Então chegou o relatório dos pilotos da Armada de que o encontro com Parma não podia sob nenhuma circunstância realizar-se em Dunquerque, com os seus perigosos bancos de areia a estenderem-se até doze milhas da costa. Outros portos flamengos tinham pouca profundidade para o nosso encontro, e Calais estava em poder do antigo inimigo de Espanha, a França. Notícias tão graves provocaram discussões amargas, os capitães e pilotos a tentarem cada um culpar o outro por um erro estúpido de tão grande magnitude.

 

A 12 de julho, numa tarde ventosa de sábado, a Armada Espanhola fundeou ao largo da costa de Calais. O duque, lúgubre e doente, subiu lentamente ao mastro para ver o desastre incalculável que as ordens do rei tinham infligido à sua frota. Olhou tristemente para a frota inglesa que fundeara atrás deles, a não mais de um quarto de milha de distância. Então virou-se para terra para ver as hordas francesas que se tinham reunido na praia de Calais, para assistirem ao espectáculo de uma grande batalha na sua margem. Logo um barco a remos foi enviado até ao San Martín. Com grande alarde, fruta, queijo e vinho foram trazidos para bordo, presentes do presidente da Câmara de Calais - um reputado católico - que afirmava todo o apoio excepto o mais desesperadamente necessário. Pólvora e munições.

 

Porém, três horas depois apareceu o mais horrível espectro aos olhos de Medina Sidónia - reforços para a frota inglesa, aumentando a sua força até ficar quase igual à da Armada Espanhola. Agora, totalmente consciente da maior velocidade e agilidade do inimigo - e sem duvidar que os porões de artilharia dos ingleses estavam tão cheios de provisões quanto os nossos estavam vazios - o duque já não conseguia esconder o desespero. No momento eu fui assaltado por um grande pressentimento de que estava tudo perdido para os espanhóis, e que afinal não teria que assassinar o pobre homem.

 

Mais tarde ele voltou a descer lentamente e desapareceu sob a coberta, acenando a Jorge para segui-lo. Uma hora depois o grumete reapareceu, com ordens na mão para um capitão de pinaça, que partiu imediatamente costa acima em direcção à Holanda. Encontrei Jorge num corredor do porão. Ao princípio nem sequer me olhou nos olhos, como se o próprio desespero do duque o tivesse infectado. Por isso fiquei muito quieto com ele, sem o pressionar para falar, mas fingindo a minha própria tristeza.

 

- Acabou-se - disse ele após um longo momento. - Pelo menos até à Primavera.

 

- Acabou-se? - perguntei eu.

 

- Não haverá encontro com Parma. Nem invasão de Inglaterra.

 

- Vamos então para casa? - perguntei tentando heroicamente abafar a minha alegria.

 

- Não - disse ele. - Este último despacho, implora a Parma - Jorge não conseguia esconder o seu desprezo -, implora-lhe para pelo menos nos enviar pilotos flamengos para guiarem a Armada até um porto seguro para o Inverno.

 

- Mas voltaremos a atacar na Primavera?

 

- Claro. Mas uma tal desgraça para o duque...

 

- Não maior do que para Parma - disse eu. - Porque é que achas que ele não disse uma palavra, Jorge? - O meu respeito por este rapaz desajeitado crescera nos dias passados através do sincero nível de compaixão que eu o tinha visto mostrar pelo seu comandante.

 

- Ouvi o meu pai dizer que o duque de Parma tem ambições próprias. Sangue real português. Sei que parece loucura, mas ele pode desejar que a invasão fracasse. Tem andado a negociar com a Rainha herege há anos. Talvez... - Era como se o pensamento se estivesse a formar enquanto ele falava. - Talvez ela lhe tenha oferecido algo melhor do que o que o rei lhe ofereceu.

 

Em todas as minhas meditações nos dias anteriores eu tinha pensado pouco nos motivos de Parma, mas agora estava intrigado.

 

- Pensas que ele pode ter traído a Espanha?

 

- Não! - Jorge ficou subitamente pálido. A confusão e o pânico enevoaram-lhe os olhos, pois estava a lançar calúnias sobre um dos maiores senhores da Espanha. - Já falei de mais. Tenho que ir! - Virou-se para se ir embora mas eu segurei-lhe no braço.

 

- Jorge, tem fé. Não ganhámos, mas também não perdemos. Seguramente que Medina Sidónia perderá credibilidade, mas há sempre a próxima Primavera para a nossa vitória.

 

Ele fez um ar pouco convencido, todavia agradecido pelo encorajamento. Conseguiu fazer um sorriso triste e foi para baixo.

 

Uma parte de mim queria gritar no máximo dos meus pulmões a alegria e alívio que sentia pela salvação da Inglaterra. Mas sabia que com estas duas grandes marinhas ancoradas a não mais do que a distância de um tiro de canhão, não havia poder algum na Terra que as pudesse salvar da batalha, e nessa luta eu encontraria a reviravolta seguinte do meu destino.

 

Yo el Rey. Eu, o rei, escreveu Filipe com um floreado grandioso. Ele gostava de facto de afixar assim a sua assinatura em cada um e todos os documentos que abandonavam a sua secretária da câmara do conselho. Esta era talvez a última que ele escreveria ao duque de Medina Sidónia antes da batalha da Grande Empresa se realizar. Sabia que não chegaria ao almirante a tempo, mas tinha ainda muitos bons conselhos para lhe dar, e dava prazer ao rei Filipe pensar que a carta iria um dia ser colocada entre os seus documentos de Estado nos vastos arquivos de Salamanca.

 

Ainda assim, enquanto chamava o seu secretário para selar a carta, o rei de Espanha estava ele próprio num estado de grande aborrecimento. As coisas não estavam de todo a correr como Deus tinha tão cuidadosamente designado. Os homens atreviam-se a questionar as suas ordens e oferecer soluções "melhores" para a tarefa em mãos.

 

Filipe pensara, quando o opinativo Santa Cruz morrera, que fora uma bênção. O homem que ele escolhera para o substituir, Medina Sidónia, acederia sem questionar a todas as ordens reais. Mas desde o momento em que a Armada abandonou o porto de Lisboa, o rei tinha sido desafiado. Pontos de encontro haviam sido disputados, avisos sobre tentativas para reunir forças terrestres e marítimas na presença do inimigo foram emitidos, pedidos de reforços, que todos sabiam não existir, tinham sido apresentados. Medina Sidónia queixara-se sobre como lutar sem nenhum porto para apoiálo, e escorado no infindável silêncio do duque de Parma. Esta comunicação perturbadora fluíra para a secretária de Filipe numa torrente louca e incessante.

o Parma mostrara-se ainda pior, implorando por mais e mais tempo para construir a sua frota de barcos baixos e achatados, alegando que qualquer tempo que não fosse perfeito poria de parte o encontro com a Armada, impedindo a travessia, e gorando completamente a invasão.

 

Era esta falta de apoio da parte dos homens de que ele mais dependia que o obrigara a escrever as Ordens Secretas - o único documento na sua longa carreira que Filipe se arrependia de ter escrito. A ideia daquele pergaminho, agora numa caixa selada na cabina de Medina Sidónia, fez com que o rei se erguesse repentinamente da sua cadeira. Tinha que se mexer, apesar da dor nos joelhos, tinha que caminhar para afastar o pensamento daquela terrível carta da sua mente. Deixou a sua câmara de conselho e percorreu o caminho até à Igreja de San Lorenzo el Real onde iria rezar mais uma vez pedindo perdão, implorar por compreensão. Pois as Ordens Secretas eram nada menos do que uma afronta a Deus.

 

Tenho que me agarrar firmemente à fé, pensou Filipe. Seguramente, apesar deste lapso, o Todo-Poderoso iria recompensá-lo pelo seu devoto serviço. A invasão seria bem sucedida como planeado, e a carta nunca teria que ser aberta sequer. O seu conteúdo devia ser revelado ao duque de Parma apenas no caso de por algum horroroso milagre os ingleses conseguirem vantagem, e do exército invasor dar por si encurralado ou estagnado na ilha da rainha herege. Se isso acontecesse, diziam as ordens, Parma deveria negociar três pontos com Isabel. A liberdade religiosa para os católicos ingleses. A devolução das suas cidades na Holanda. E a reintegração dos exilados ingleses. Um pagamento em dinheiro seria bom se pudesse ser providenciado, mas era pouco importante.

 

Era um terrível documento, uma capitulação vergonhosa, sabia ele. Parma provavelmente diria que, se Filipe se contentava com tão pouco, não tinha sido preciso qualquer invasão à partida. E raios partam Medina Sidónia! Se eles os dois tivessem simplesmente obedecido ao plano divino de Deus, se tivessem tido fé na sua Grande Empresa, as Ordens Secretas nunca teriam sido necessárias. E ele não seria obrigado, todos os dias da sua vida até à morte, a prostrar-se de joelhos buscando o perdão pelo seu humilhante lapso de fé.

 

O rei de Espanha apenas podia rezar, e rezava, para que a sua grande Armada ultrapassasse os obstáculos mundanos e a falibilidade humana, trazendo glória ao seu reino, a Roma, ao próprio Deus.

 

Barcos do Inferno!

 

Que Deus nos acuda!

 

Estes foram os gritos e guinchos que eu ouvi dos marinheiros e soldados do San Martín, e de navios à nossa volta, e em estranhos ecos de navios nas pontas distantes do crescente espanhol, ainda ancorados ao largo de Calais. Os homens caíam sobre os joelhos, agarrando-se às batinas dos padres enquanto estes se apressavam para assistir ao seu rebanho. Ninguém conseguia afastar o olhar da linha de navios ingleses em chamas, mastros e velas em brasas, que agora se dirigiam lentamente para a saliência central da Armada.

 

Vi Medina Sidónia dirigir-se à amurada, mais calmo e corajoso do que tinha o direito de estar. Nessa mesma manhã, soube dum Jorge lívido, ele tinha tido a confirmação de que Parma nunca se encontraría com ele, na verdade não podia encontrar-se com ele. Que as barcaças de fundo achatado que ele tinha recebido ordens para construir e aprovisionar não estavam sequer perto de estar prontas. Que Parma nunca se dera ao trabalho de supervisionar o trabalho feito nos barcos, permitindo assim aos construtores holandeses que tinha contratado sabotarem o seu próprio trabalho. Notícias tão más, naturalmente, não eram postas à circulação entre as tropas espanholas, pois o moral estava já muito em baixo e o motim por um fio de cabelo. Em lugar disso, desde o momento da chegada do barco-correio, eu tinha ouvido rumores de que Parma estava já a caminho com cento e quinze navios para reforçar os nossos.

 

Quando a noite caíra a Armada tinha-se visto encurralada entre a costa de Calais e a frota inglesa, com o vento e a maré contra ela. O duque e todos os homens sob seu comando sabiam que o inimigo iria enviar navios em chamas contra eles. Não havia nada de novo nesta estratégia. Era o mesmíssimo engenho utilizado contra Drake em Cádis. Medina Sidónia tinha aliás tido tanta certeza de que os Ingleses tentariam utilizar navios em chamas, que nesse mesmo momento vários dos seus barcos de patrulha com arpéus de abordagem estavam a remar para ir de encontro ao inimigo antes dele atingir a primeira linha da Armada. Mas agora o duque e os homens da sua frota podiam ver que os navios em chamas eram mais e muito maiores do que tinham imaginado. E o terror real que os assolara vinha não da mera visão de oito navios cobertos de alcatrão e piche, com as chamas a lamber os seus mastros e cordame, mas dum terrível conhecimento - para alguns uma memória - partilhado por todos eles.

 

Em Antuérpia, três anos antes, os Holandeses tinham preparado especialmente um navio em chamas com todos os canhões carregados a dobrar com balas, e todos os porões cheios até à borda de pólvora. As chamas atingiram a pólvora, e uma explosão inimaginável projectara destroços em fogo num raio de uma milha em volta do porto, chacinando mil espanhóis num instante. Agora corria o boato de que Giambelli, o mesmo engenheiro que criara esse monstruoso "barco do inferno", estava ao serviço da rainha de Inglaterra.

 

Os navios totalmente tragados pelas chamas - com as canhoneiras a cuspir labaredas, fontes de brasas vermelhas e quentes que se erguiam de cada uma delas para o céu nocturno fluíam inexoravelmente com a maré e o vento na direcção da nossa massa gigante de navios de madeira e tela. Ouvi orações e murmúrios desesperados à minha volta enquanto observávamos os nossos barcos de patrulha com os seus ganchos e cordas de abordagem, a desviar um navio em ambos os extremos da linha com uma milha de comprimento. Então com uma terrível e súbita rajada de tiros, os canhões em brasa começaram a explodir, lançando tiros em todas as direcções.

 

Gritos de terror. Estes eram os temidos barcos do inferno! E os barcos patrulha não tinham conseguido detê-los. Aqui na linha da frente eu comecei de boca aberta a pensar que morrer queimado tinha-se tornado, pela segunda vez no decurso de um mês, o meu destino provável. Enquanto os tiros de canhão ficavam cada vez mais fortes e o brilho dos navios em chamas iluminava o céu e a água diante de nós, enquanto os gritos de terror cresciam a toda a nossa volta, o duque de Medina Sidónia, ainda calmo, começou a dar as suas ordens.

 

- Levantem as âncoras e evitem-nos! Naveguem para fora do caminho dos navios em chamas e reúnam-se com a mudança da maré nos vossos lugares à luz da manhã!

 

Mas os navios, amontoados tão próximos, mal conseguiam virar. Os marinheiros escalavam o cordame às escuras para lançar as velas. Os navios colidiam com outros navios. Nem vi uma multidão frenética reunida em volta dum marinheiro que tentava recolher o cabo da âncora como ordenado - a multidão a gritar com ele para cortar a corda e acabar com aquilo! Por fim ele foi afastado e um soldado com um machado cortou o cabo com alguns golpes. Momentos depois o navio estava em movimento. Enquanto me agarrava à amurada, observando vários navios à minha volta a abandonar as âncoras, como muitos deles tinham cortado os cabos no seu pânico, perguntei-me, também, se nós no San Martín escaparíamos antes que os barcos do inferno nos rebentassem para o esquecimento.

 

De repente o vento enfunou as nossas velas. O caminho tinha-se desimpedido e fugimos em boa velocidade. Foi apenas então, com o vento frio na minha cara e as seis monstruosas bolas de fogo à deriva dirigindo-se à agora vazia ancoragem, que me ocorreu - os navios não podiam de forma nenhuma ser barcos do inferno, pois completamente envoltos em chamas como estavam já teriam por esta altura seguramente explodido. Eram simplesmente navios em chamas e pelo aspecto, nem um navio espanhol tinha sofrido danos.

 

Mas outra coisa tinha. A formação defensiva em crescente da Armada, pela primeira vez desde a sua reunião, tinha sido dispersa. Tínhamo-nos espalhado, perdido a enorme força da nossa falange apertada. Eu pouco sabia acerca da arte da guerra no mar, mas a lógica dizía-me que a frota espanhola, finalmente separada, era um alvo melhor para os capitães ingleses. Assim fixei a minha mente no dia seguinte e rezei com todo o meu coração para que a alvorada trouxesse a batalha que expulsaria estas criaturas obcecadas com Deus das nossas costas, e para eu viver para poder contar a história.

 

Seis grandes galeões em grande tensão contra as suas âncoras na alvorada brilhante e ventosa era tudo o que restava do outrora poderoso crescente. Nenhum dos soldados ou marinheiros do San Martín tinha dormido lá em baixo, mas sim no convés nos seus postos. Alguns tinham sido embalados até adormecerem onde estavam, exaustos do terror dos navios em chamas que, à luz do dia, apareciam como esqueletos fumarentos encalhados em bancos de areia e nas margens flamengas do Sul. Os outros navios espanhóis - cento e trinta - estavam espalhados como pérolas lançadas de longe no tecido em movimento das águas verde-acinzentadas, alguns a mais de dez milhas para norte, outros igualmente longe no alto-mar. Viam-se dúzias de galés e galeões a passar cuidadosamente os bancos perigosamente pouco profundos de Dunquerque. O navio vice-almirante de Moncado, o San Felipe, estava encalhado e tombado na praia de Calais, os seus remos e canhões a apontar inutilmente para o céu, os seus homens prontos a defender-se de todos os que viessem.

 

Rejubilei por ver a frota inglesa forte e totalmente intacta, a sudoeste de nós, onde tinham estado ancorados na altura dos navios em chamas. Medina Sidónia tinha passado esta noite desesperado no cesto da gávea.

 

Mas posso imaginar o tormento que sentiu ao ver a sua grande Armada tão separada, enfraquecida pela distância e pelo pânico causado. A maioria dos navios, sabia ele agora, tinham de facto cortado ambas as âncoras e, com um vento de sudoeste a soprar, não conseguiriam reunir-se em torno do seu almirante.

 

Porfim o duque desceu do cesto, permitindo a Jorge ajudá-lo no último lanço, e passaram por mim a caminho da cabina. Uma vez que o vento não permitiria à Armada vir até ao duque, ele tinha decidido que o San Martín e cinco outros galeões que estavam por perto iriam até à Armada. Talvez trinta deles estivessem a navegar em força para se reunirem a nós quando os ingleses, não querendo deixar escapar a vantagem, carregaram.

 

Medina Sidónia falou calmamente ao seu piloto. Então toques de corneta rasgaram o ar, e os seis navios de guerra formaram uma linha lado a lado. Enquanto eu me apressava para o meu posto lá em cima no castelo vi outros navios espanhóis a navegarem em força para nos apanharem. Mais navios de guerra apareceram para flanquear a linha, e as embarcações mais fracas ficaram para trás. Espantosamente, os capitães tinham recriado uma réplica - se bem que diminuída - da formação em crescente original.

 

Os ingleses vinham com o vento e depressa. Um belo navio almirante apressou-se em direcção ao San Martín. Sustivemos ofogo - estávamos no nosso último dia da nossa provisão de balas de artilharia pesada e não nos podíamos dar ao luxo de falhar - até o navio estar tão perto que consegui ler o seu nome, Revenge. Apeteceu-me dar vivas. Era Drake, eu sabia que era!

 

Ele abríufogo e nós também. Foi uma salva de canhões que abanou os céus! Explosões trovejantes. Balas de canhão a voar e a cair despedaçando o cordame e o convés, fazendo buracos nos lados de ambos os navios. A barreira de artilharia ligeira fazia um barulho tenebroso e neste confronto eu disparei loucamente, ou disparei para baixo para o convés do San Martín, apanhando todos os soldados e marinheiros que consegui sem ser apanhado. Uma vez liberto da sua carga, o Revenge afastou-se e outro navio ocupou o seu lugar. E mais outro. A formação de ataque em fila trouxe consequências formidáveis sobre nós, os homens da Armada reconhecendo agora com alarme crescente que isto, a mais original e arrojada manobra dos capitães ingleses, seria utilizado uma vez após outra enquanto a manhã se arrastava até à tarde.

 

O nosso navio era um destroço, e os ingleses tinham uma clara vantagem, no entanto dei por mim a pensar com urgência que havia mais para eu fazer! A artilharia pesada do San Martín estava ainda a funcionar eficientemente, e eu preocupei-me com os danos que ela estava a provocar nos navios ingleses. Vários arcabuzeiros à minha volta estavam moribundos ou já mortos. Com um grito estridente caí para trás, e mergulhando a minha mão no sangue de outro homem, espalhei-o abundantemente na minha testa. Ninguém viu ou se importou, mas assim disfarçado como um homem gravemente ferido, desci aos tropeções as escadas do castelo e percorri o caminho - desviando-me de balas e de detritos em queda - até ao convés inferior da artilharia.

 

Aquele sítio escuro e ensurdecedor era um inferno, mas eu almejava transformá-lo num ainda pior. Todos os canhoneiros estavam firmes nos seus postos, mortos ou feridos. Um homem estava deitado meio fora dum grande buraco no casco onde uma bala de cinquenta libras tinha aterrado. Outro estava sentado, costas contra a parede, vivo mas enlouquecido pelo barulho e completamente paralisado exceptuando o seu queixo tremente. Agarrei numa mão-cheia de pólvora e, ajoelhando-me, espalhei-a por trás dos canhoneiros. Outra mão-cheia e outra. Ví-me obrigado a lançar-me subitamente contra a parede efingír de morto quando vários novos canhoneiros chegaram para substituir os que tinham morrido. Afastaram os caídos, começaram as suas tarefas, e eu renovei os meus esforços sub-reptícios. Agora encontrei lascas de madeira, bocados de tela e corda seca, e lancei-as no meio da pólvora. Depois peguei-lhe fogo e rebentou numa chama fumarenta.

 

- Fogo, fogo no convés da artilharia! - gritei. Os canhoneiros viraram-se para ver uma parede de chamas atrás deles, não sabendo o quão breve seria a deflagração, e correram para salvarem as suas vidas. Eu não tinha tempo a perder. Agarrando num martelo e numa dúzia de postes de ferro corri até à colubrina mais próxima e enterrei o poste na sua culatra. Quando estava firmemente cravado quebrei-o e segui para o canhão seguinte. O seguinte e o seguinte. Tinha assim destruído cinco grandes canhões inutilizando-os quando ouvi gritos furiosos atrás de mim. O fogo apagado, os canhoneiros tinham regressado para encontrar o seu companheiro numa acção de escandalosa sabotagem.

 

Correram para mim guinchando pragas espanholas. Eu fujo, a porta abençoadamente livre. Voo pelas escadas acima até ao convés. Fumo espesso. Gritos. Uma bala perdida divide-me o cabelo, o sibilar de uma bala de ferro. Não há tempo para parar, pensar, planear. Os canhoneiros estão no meu encalço. Corro para a popa, desvio-me duma vela em queda, pedaços da parede do castelo. Abrando para agarrar uma corda que se desenrola à medida que eu corro pelo convés, repleto de sons e fúria. Reteso a corda. Ouço os resmungos furiosos dos canhoneiros a tropeçar, praguejando. "Traidor!", gritam eles. "Matem-no!" Fico face a face com Jorge, os olhos magoados e incrédulos. Afasto-o. Fico gelado, as costas contra a amurada. Vejo-os a vir através do fumo, a vir. A morte às mãos do meu inimigo... ou então o mar.

 

Uma escolha do inferno. Não é o meu momento de morrer. Salto a amurada, estou de repente no ar. A voar. Uma cambalhota. A cair no meio do estômago da grande besta espumosa dos meus mais negros pesadelos.

 

Quanto tempo estive a flutuar aterrorizado, o centro da batalha enfurecida a toda a minha volta e em cima de mim? Meio afogado, agarrando-me a um destroço dum casco partido, ensurdecido pelo rugido dos canhões. Desesperado, a rezar para não ser esmagado entre as galés, despedaçado pelos remos, bombardeado pelos canhões e tiros da artilharia ligeira inglesa.

 

Pareceu uma eternidade, aquele cerco no oceano. Flutuei para longe do San Martín, pelo meio de outras lutas. Vejo

embornais a escorrerem sangue. Corpos às dúzias lançados borda fora para o mar. Dois navios, um espanhol e outro inglês, navegam tão perto um do outro que colidem, dois monstros horrendos de madeira. já sem artilharia pesada, apenas os seus arcabuzeiros e mosqueteiros podem continuar. Vejo um inglês, inchado de fanfarronice insana, a saltar mesmo para o convés do galeão espanhol, apenas para ser rebentado e morto num ápice.

 

Será uma ilusão? Os navios ingleses parecem de algumaforma menos danificados. Como pode isso ser, tendo-se disparado sobre eles a tão curta distância? A Armada está despedaçada. Todas as velas emfarrapos. Os mastros tombados, os lemes esmagados. Fortemente esburacados entre o vento e a água. Chamo um marinheiro inglês "Ajuda-me! Sou inglês!", ele não me consegue ouvir por cima do barulho. Mas vê o meu uniforme. Um momento depois um mosqueteiro aparece na amurada. Dispara sobre mim. Despedaça o canto da minha bóia de improviso.

 

Então de repente o tempo muda. Uma tempestade. Violenta. Vento feroz. O marulho a transformar-se em ondas agitadas. Mais espaçadas, mais barulhentas. Os ingleses viram e navegam para longe. "Não, não me deixem!", grito eu mas eles não me conseguem ouvir, desaparecendo na distância e deixando-me agarrado à minha rude arca, a subir nas cristas e a cair nas depressões. As ondas rebentam nas minhas costas. Sufoco e cuspo. As minhas mãos sangram enquanto eu me agarro à madeira escorregadia efalhada. ó meu Deus, é assim que eu vou morrer? É assim que eu vou morrer!

 

De repente, acaba como começou. O mar achata-se. É ainda noite. A Lua aparece e desaparece por entre as nuvens. Estou morto de exaustão. De cara para cima a olhar para as estrelas. As estrelas. Aquelas esferas celestes que governam o nosso destino. Elas cintilam sobre mim, um pobre moribundo.

 

Algo bate no destroço, arrasta para baixo um canto. Viro-me para afastá-lo. Mas o que vejo detém-me. É um uniforme inglês! Um corpo sem cabeça vestindo um uniforme inglês!

 

De alguma forma puxo o cadáver macabro para bordo. Dispo-me. Tiro as roupas do inglês. Luto para entrar na sua camisa, calções, casaco. Digo uma oração pela sua alma. Empurro-o para fora do destroço. Estou doente de dores e fadiga. Mas envergo novamente o unifórme dum soldado inglês e estou satisfeito com essa bênção.

 

Quando o dia rompe sou cumprimentado por uma visão mais bela do que poderia esperar sonhar. Os navios da Armada Espanhola, mutilados e vacilantes, estão espalhados ao longo das costas flamengas. Cada vez mais perto são levados para o seufim nos baixios arenosos. Melhor ainda é a visão dafrota inglesa, bela, arrumada, completamente intacta. Agora com o vento atrás deles dirigem-se para os espanhóis para os expulsar das suas águas de uma vez por todas. Deus seja louvado, na sua rota presente eles facilmente me interceptarão. Sinto o meu salvamento à mão de semear.

 

Mas estou fraco, abatido e em circunstâncias precárias. Não conheço pormenores acerca dafrota inglesa excepto o que vi à distância, nem quem devo alegar ser. Receio cometer um erro estúpido na minha fraqueza. Ainda assim, não vim até tão longe e não sofri tanto' para me ser negada a aceitação dos meus.

 

Quando me parece que eles estão a uma distância em que me ouvem, grito na minha língua nativa, abano os braços, determino quefui localizado, e depois finjo um desmaio para a inconsciência. A bom tempo sinto o meu corpo a ser gentilmente erguido para bordo do navio, e ainda fingindo estar morto para o mundo, celebro o som das vozes dos meus conterrâneos. juro, o desfalecimento é meio verdade, tão exaltado que estou com o agradecido alívio por ir viver para ver uma vez mais a Inglaterra. Vou para casa. Vou para casa.

 

À medida que a sua carruagem percorria as ruas de Londres repletas de celebrantes a ovacioná-la, Isabel deu por si assolada por uma agradável e vertiginosa leveza de espírito. O seu regresso a Londres no rescaldo da derrota da Armada foi de todas as formas triunfante, cumprimentada como ela tinha sido pelas manifestações loucas de alegria e alívio do seu povo.

 

Os relatórios da frota inglesa tinham chegado lentamente. Drake e Lord Howard ficaram primeiro sem ter a certeza de que tinham tido uma vitória sequer com os seus navios em chamas, e no dia seguinte nas Gravelines. Mas a confiança deles aumentara quando perseguiram os navios devastados de Filipe até ao mar do Norte, auxiliados pelas súbitas tempestades profetizadas pelo doutor Dee e por Regiomontanus cem anos antes.

 

Isabel pensou, tenho o direito de ter vertigens, pois enfrentei o Dragão no campo de batalha e derrotei-o, - eu, uma mulher. Recostou-se nas almofadas suaves de cetim e sorriu com satisfação. A mãe dela teria ficado orgulhosa. Não tinha morrido em vão. "Umfilho Tudor virá da tua barriga e brilhará sobre Inglaterra durante quarenta e quatro anos", dissera a Dama de Kent. Isabel fez contas. Ainda só tinha governado trinta anos e iria portanto viver para ver a dinastia do seu avô entrar no novo século. Cem anos de governo Tudor. Uma realização verdadeiramente brilhante. Apenas um filho do corpo dela, um herdeiro, fazia falta para ser perfeito. Mas na verdade, pensou ela com um sorriso perverso, a vida é ela própria imperfeita. Sempre imperfeita.

 

Do lado de fora da janela da sua carruagem um grupo de dançarinos da mourisca dançavam, os sinos das suas pernas a badalar alegremente, e de repente Isabel estava fora daquela carruagem, do ano de 1588, regressada a outro tempo. Era uma pequena criança levada nos braços do seu pai, vestindo cetim amarelo para combinar com o dele. Segurava-a junto dele enquanto observavam dançarinos da mourisca a realizar as suas tropelias entre uma grande celebração, bem perto da sua larga e bela cara, tão bela quando ele sorria. Ela puxava a sua barba vermelho-ouro. Ele ria-se numa gargalhada que lhe abanava a barriga e ela soltava guinchos de prazer, pois tinha-lhe agradado. ó, ela amava o pai! Adorava-o. Ele era o herói da sua jovem vida. E a besta da vida da sua mãe.

 

O pensamento lúgubre trouxe Isabel de volta ao presente, embora não a tenha arrancado aos pensamentos sobre o pai. Desejava perdoar-lhe pelas suas raivas vis e assassinas, e rezava diariamente para que a loucura do sangue dele não afectasse o dela. Como tinha ele conseguido ordenar a prisão de uma mulher que amara tão desesperadamente? Ordenar a sua decapitação? E como tinha ele sido capaz de deixar àquela pequena rapariga de amarelo um legado tão terrível? O conhecimento de que a suamãe tinha morrido porque Isabel nascera uma rapariga.

 

- Bem, pai - surgiu a resposta em jeito de desafio -, essa rapariga cresceu e salvou Inglaterra. - Permitiu-se um sorriso. Ela iria perdoar a Henrique e iria honrar Ana. juntos tinham-na gerado, e dos seus lugares no Céu e no Inferno estavam agora a observá-la. Ela não permitiria mais memórias dolorosas nem arrependimentos desejando que o passado tivesse sido diferente. Pois era sem dúvida o dia mais orgulhoso da sua vida, e ela tinha intenção de saborear cada momento dele.

 

- O conde de Leicester, Majestade.

 

Isabel não conseguiu evitar um estremecimento à medida que o seu velho amigo atravessava a Sala do Trono até junto dela. O coxear dele tinha piorado consideravelmente desde aquele dia em Tilbury, e a sua pele normalmente florida parecia mais cinzenta do que cor-de-rosa.

 

- Robin, não - ordenou ela quando ele começou a ajoelhar-se. - Vem só sentar-te ao meu lado. - Fez sinal a um pajem para trazer uma cadeira e colocá-la ao lado da dela. Ambos ignoraram os olhares e murmúrios dos cortesãos. O que os outros pensavam do comportamento deles há muito que deixara de importar.

 

- Ouvi dizer que o teu cortejo de entrada em Londres foi verdadeiramente grande - disse ela. - Digno de um rei.

 

- Eu sou o rei - disse ele, com um sorriso perverso. - já te esqueceste? Isabel riu-se.

 

- E onde está a tua boa mulher?

 

- Com o amante dela em Wanstead - respondeu ele calmamente. Mas asseguro-te que vai aparecer de imediato para recolher as honrarias devidas ao seu famoso marido.

 

- Infame marido - corrigiu Isabel.

- É verdade.

 

Ela reparou num sorriso bizarro às voltas nos lábios de Leicester.

- O que é que te diverte tanto, meu senhor?

 

- Como eles vêm e vão. Os cortesãos. As belas damas... - Acenou com a cabeça para os pequenos grupos de homens e mulheres embrenhados nas suas conversas e mexericos. Havia o filho da mulher dele, o bem-parecido e eminentemente encantador conde de Essex pelo qual Isabel nutria bastante simpatia. E o filho de William Cecil, Robert, pequeno e deformado mas extremamente brilhante, que tinha ultimamente assumido o papel do seu pai como secretário de Isabel. - E como nós os dois nos aguentamos, apesar das intrigas e romances, doenças, guerras, fúrias.

 

- Janta comigo hoje à noite, Robin - disse Isabel subitamente.

- Claro que sim.

 

- E amanhã à noite. E na noite seguinte. Ele olhou para ela com curiosidade.

 

- Então ainda desejas a companhia deste velho emperrado?

 

- Mais do que de qualquer outra pessoa em todo o mundo, meu amor. Ela passou os seus dedos longos gentilmente pela bochecha dele, pelo queixo outrora angular e agora mole em baixo, e fez-lhe cócegas na base do pescoço. Mais do que nunca.

 

Eu sempre me tinha visto como sendo razoavelmente corajoso. Não um herói, mas um homem que conseguia enfrentar o que a vida lhe oferecia como um desafio, recusando-se a viver com medo do futuro, ou do desconhecido, ou dos que eram diferentes de mim. Mas no dia em que fui levado à força de remos pelo Tamisa abaixo para Londres, ainda fraco da minha longa imersão no mar e ainda mais pela disentería que atingiu quase todos os membros da tripulação inglesa do barco que me resgatou, dei por mim assolado por um medo quase paralisador.

 

Tinha vindo a Londres com um propósito apenas - reunir-me com os meus pais. Abraçar o meu pai uma vez mais e humildemente prostrar-me aos pés da minha mãe. Era na verdade uma coisa simples, e eu tinha a obrigação por amor da verdade e honestidade de o fazer. Mas apesar destes últimos anos a sonhar e a ensaiar esse momento, à medida que ele se aproximava sentia-me não preparado e, pior do que isso, um charlatão. Tinha convencido Lord Leicester da minha história; sem dúvida que ele convenceria a Rainha da sua veracidade. Mas nos meus momentos de maior fraqueza - que me surgiam com uma terrível frequência - eu mal acreditava em mim próprio. Eu, o filho de Isabel. Eu, um Príncipe de Sangue Real. Era de rir. O meu verdadeiro pai, Robert Southem, deveria ter de alguma forma sabido do rapto de Fulham House e fabricara e distorcera a história na sua mente para fazer de mim o filho da Rainha.

 

Mesmo que fosse verdade, que palavras podia eu conceber para me introduzir na vida de Sua Majestade? Ela iria desfazer-me em papas. Preso por traição. Torturado. Executado!

 

Muitas vezes naquele barco a remos quando tocava em docas e atracagens a caminho de Londres eu considerei de facto saltar para fora e esperar que a maré mudasse, fazendo o caminho de volta para o sítio de onde tinha vindo. Mas algo me impedia. As memórias do profundo e inexplicável amor que tinha por Isabel e Leicester desde a primeira vez em que nos tínhamos encontrado e, igualmente, aquele estranho conhecimento do meu próprio destino que, mesmo enquanto jovem, percebi ser grande.

 

Agora conseguia ver a Catedral de São Paulo a aparecer por trás da Ponte de Londres, e sabia que o meu destino era o Palácio de Saint James onde a Rainha presidia à corte. Apenas podia rezar para que Lord Leicester estivesse por perto para as celebrações. Assim, erguendo-me contra o medo, coloquei-me de pé, direito, e obriguei-me a um porte real na minha postura. Obriguei-me a lembrar-me de tudo o que tinha realizado na minha vida, aquelas grandes pessoas e príncipes que haviam reconhecido as minhas qualidades, e assim pela altura em que assentei o pé no cais de Three Cranes e comecei a subir o caminho até Saint James, quase me convencera outra vez de que era de facto ofilho único da rainha de Inglaterra.

 

Isabel e Leicester tinham sido acometidos de um acesso incontrolável de gargalhadas infantis. Desta vez, na sua terceira noite consecutiva fechados juntos nos aposentos privados, ambos alegrados por um vinho francês, ela tinha-lhe receitado uma poção malcheirosa para aquilo que se tornara um fluxo crónico. Ele cheirou-a desconfiado.

 

- Toma - disse ele. - Estás com um ar pálido, Bess. Toma um bocadinho tu também. - Empurrou a garrafa para debaixo do seu nariz e ela apanhou uma boa lufada daquilo.

 

- Biherg! - gritou ela enojada.

 

- Acho que tens uma má vontade quanto a mim que não admitiste, pois isto matar-me-á mais seguramente do que o fluxo. Vá lá, um pequeno gole...

- Robin, tira isso daqui, estou-te a avisar!

 

- Só um gole pequenino!

 

Quando começou, o riso deles rapidamente cresceu muito para além da brincadeira original. Ainda estavam agarrados à barriga e a respirar com dificuldade quando a porta se abriu e Lady Hunsdon entrou. Com os olhos colados ao chão, fez uma vénia e entregou a Leicester uma carta dobrada e depois saiu rapidamente. Isabel viu o sorriso de Leicester desaparecer enquanto ele lia o conteúdo.

 

- Robin, o que é? Alguém morreu?

 

Ele estava muito quieto. Uma mão dirigiu-se ao peito e a sua respiração tornou-se uma série de suspiros superficiais.

 

- Tens que me contar, por favor!

 

Mas ele não conseguia falar. Não conseguia encontrar as palavras para explicar. Tudo o que podia fazer era erguer Isabel e envolvê-la num longo e forte abraço.

 

Perguntara vezes sem conta a Robin quem é que ele ia trazer para a conhecer, mas ele tinha-se recusado a responder. Agora em vez disso estava um homem alto, de ombros largos mas bastante magro ajoelhado aos pés dela. Quando ele se aproximara, ela tinha podido ver que a pele do rosto e mãos estava queimada do sol e gasta, e supôs que era de alguma forma mais novo do que parecia. Ainda assim era bastante bem-parecido, pensou ela, de queixo quadrado com uma testa alta e imaculada e traços fortes e simples. O cabelo era castanho-avermelhado e os olhos muito escuros, quase pretos. Ela conseguia sentir Leicester ao seu lado a tremer de emoção.

 

- Pareceis doente - ouviu-o dizer ao homem mais novo, que olhava para Leicester com o que parecia a Isabel ser um olhar de ansiedade, embora ela não conseguisse adivinhar porquê.

 

- Estou a recuperar de algumas feridas que recebi a lutar no Canal disse ele.

 

- Estiveste onde? A bordo de um dos meus navios? - disse Isabel.

 

O jovem não respondeu de imediato, mas pareceu relativamente confuso. Isabel estava a ficar irritada. Olhava de um lado para o outro para ele e Leicester. Os dois homens não conseguiam arrancar os olhos um do outro.

 

- Porque é que me pareces tão familiar? - perguntou ela de repente ao estranho.

 

- Encontrámo-nos uma vez, Majestade. Na Coutada de Enfield.

- Enfield? Enfield...

 

- No Surrey, Madame. Há muitos anos atrás. Eu tinha oito anos. Ela olhou mais de perto para ele.

 

- Fizemos uma caçada desenfreada juntos pela mata do teu pai?

- Fizemos.

 

- Robin, este é o rapazinho que fez a demonstração de picadeiro para nós tão bem naquele dia! - Mas quando se virou para Leicester encontrou a cara dele encharcada de lágrimas. Então de repente os dois homens caíram nos braços um do outro com gritos e abraços.

 

- Exijo saber o que se está a passar aqui! - trovejou Isabel. - Ordeno-vos que vos afasteis de Lord Leicester, jovem, e me digais quem sois! Observou os dois a separarem-se e viu o homem colocar-se em sentido perante ela. Com um último olhar para Robin ele dirigiu o olhar para a frente e fixou a Rainha nos olhos.

 

- O meu nome é Arthur Dudley, Majestade. Sou o filho natural de Lord Leicester... e vosso também.

 

Isabel abriu instantaneamente a boca para objectar, mas fechou-a outra vez quando se apercebeu de que não tinha palavras sensatas para proferir. Pensou em virar a cabeça e olhar para Robin em busca de aconselhamento, mas percebeu que toda ela estava congelada.

 

- Isabel... - Ouviu a voz meiga de Robin na sua cabeça e rezou para que ele dissesse qualquer coisa que lhe limpasse a confusão na cabeça, destrancasse os seus membros paralisados, soltasse o seu maxilar para ela poder falar, responder a este... este...

 

- Ele é o nosso filho. É da tua própria carne e sangue.

 

- O nosso filho morreu - murmurou ela com uma voz rouca.

 

- O nosso filho foi-nos roubado. Aquela pobre criança morta que tivemos entre nós era o bebé de outra mulher. Kat Ashley e William Cecil...

 

- Não! Eles não podem! Não se teriam atrevido!

- Mas atreveram-se.

 

Isabel olhou o estranho, com a fúria a escurecer-lhe os olhos.

- Prova-o! - gritou ela estridentemente.

 

- Provou-o, Isabel. A mim - disse Leicester calmamente. - Ele sabe de mais acerca daquela noite terrível em Fulham House para ser um impostor. O pai adoptivo dele e Kat eram amigos de longa data...

 

- Eu pensei que ela era minha amiga! - gritou Isabel, com a cara contorcida de raiva.

 

- Kat está morta agora. Mas o teu filho está vivo e à tua frente.

- Não é ele. Não é ele.

 

- Mostra-lhe, Arthur.

 

Lentamente o homem ergueu a sua mão esquerda e colocou-a perante a cara de Isabel. Ali em frente aos olhos dela estava o pequeno naco de carne e unha. Ela apenas conseguia olhar fixamente para o dedo extra e depois para a cara dele. Os olhos. Os olhos pretos e insondáveis. Os olhos da mãe dela.

 

- Meu Deus, meu Deus! - gemeu e subitamente os seus braços rodearam o jovem, e chorou. De raiva, de amor e pelos sonhos perdidos reencontrados. Depois riu-se. E com a sensação dos braços hesitantes do seu filho finalmente em volta da sua cintura, chorou outra vez. Leicester abraçou-os aos dois, beijando primeiro a cara de Isabel e depois a do seu filho. E ali ficaram por um bom tempo, sussurrando e trauteando confortavelmente uns com os outros, e por fim buscando palavras para começar a sarar a grande ferida da sua terrível separação.

 

Fiquei fechado com os meus pais durante vários dias, as refeições entregues por criados abelhudos desesperados por saber quem era este estranho entre eles. Leicester e eu dormíamos nos apartamentos dele contíguos aos da Rainha. Acho que exceptuando enquanto dormíamos nunca cessámos de nos presentear uns aos outros com as histórias das nossas vidas, pormenores de aventuras, verdades aprendidas e contos exagerados. Diz-se que o tempo perdido nunca pode ser encontrado, mas nós fizemos um esforço valente. Eles os dois ficavam sentados e presos às minhas explorações enquanto rapaz, soldado e espião, a minha mãe apreciava especialmente ouvir tudo acerca do rei Filipe, o seu pior inimigo, que ela não via há trinta anos.

 

E eu implorei para ouvir as histórias deles. A terrível infância da minha mãe, o seu aterrorizador percurso até ao trono, as suas alegrias e temores enquanto governante de Inglaterra. Mas estava sobretudo ansioso para ouvir contar acerca do amor deles um pelo outro, do seu namoro de infância, da paixão que me tinha criado, da triste realidade da vida de casado sem amor do meu pai. Embora não se tenha falado nisso, eu sabia que a minha mãe tinha de todas as formas implorado o perdão do meu pai por nunca se ter casado com ele. Encontrei alegria na sua amizade indelével e no serviço de Leicester à Coroa, dos quais ambos tinham suportado todas as atribulações. Vi que tinham ainda ternos segredos entre eles e até, para minha surpresa, uma chama de amor sexual.

 

Mas, no fim, de todas as histórias contadas nada se comparava com a minha saga de navegar incógnito com a Armada Espanhola. Eles ficavam sentados como que enfeitiçados enquanto eu relatava as terríveis privações, o fanatismo religioso. A vil traição de Parma a um Medina Sidónia de bom coração, e o terror dos navios em chamas ingleses, a batalha que durara todo o dia nas Gravelines. Relatei o meu encontro de perto com a morte naquela noite tempestuosa no Canal na minha jangada solitária, o corpo sem cabeça e a minha farsa final que me conseguiu o salvamento pelo navio inglês.

 

Mas enquanto via a minha mãe a ficar mais forte e feliz a cada hora que passava, o meu pai, apesar de um esforço heróico para escondêlo, estava a ficar cada vez mais pálido e doente. Por fim a Rainha ordenou-lhe que partísse e descansasse. Ele concordou, dizendo que iria para Buxton a banhos. Abraçou-me com força, e com promessas de nos encontrarmos outra vez um mês depois, foi até junto da minha mãe que estava de pé à janela a olhar para o Tamisa. Vi tanto amor e tanto carinho entre eles que, se não tivessem sido já derramadas tantas lágrimas nos dias anteriores, teria chorado. Quando, contudo, a Rainha firmemente empurrou uma garrafa de boticário para as mãos de Leicester os dois começaram subitamente a rír-se ruidosamente o que eu não compreendi, e que eles nunca explicaram. Com um beijo final e as mais profundas das vénias cortesãs que o seu pobre e velho corpo permitia, o meu pai partiu.

 

Estava sozinho com a Rainha. Do outro lado do quarto ví-a a fixar-me com um olhar calmo que era ao mesmo tempo completamente descrente e totalmente aceitador.

 

- Vem cá até junto de mim, Arthur.

 

Obedeci e fiquei de pé com ela à janela durante um longo momento, a olhar silenciosamente para o tráfego do rio lá em baixo. Finalmente ela falou com uma voz íntima e suavizada.

 

- Desde que entraste pela minha porta não parei de pensar em ti. Ouvi-te, questionei-me a teu respeito. Até sonhei contigo. - Baixou-se para se sentar no banco da janela e fez-me sinal para fazer o mesmo. - Quando eu estava grávida de ti era uma mulher completamente feita no meu corpo, mas na minha mente era pouco mais do que uma rapariguinha. Tinha acabado de assumir o trono, vês, e achava que podia fazer exactamente o que desejava em todas as coisas. Acreditava que te podia levar para um retiro, ocultar a tua existência inteiramente até ao momento em que decidisse que era seguro revelar a tua existência ao mundo.

 

Riu-se, acho que da sua própria ingenuidade.

 

- Sabendo o que sei agora acerca da minha corte traiçoeira e vil, é certo que o meu filho bastardo não teria permanecido por muito tempo um segredo. O meu nome estava já manchado. Teria descido tão baixo como a rainha da Escócia, e ambos conhecemos o castigo rápido e brutal que o povo de Maria lhe conferiu pelas suas indiscrições amorosas. Acho que me arriscava e muito a perder completamente o trono. Mesmo que conseguisse manter a coroa, tu próprio ter-te-ias sem dúvida tornado num peão. Rebeliões sangrentas para determinar a sucessão teriam sido travadas em teu nome, tanto para te erguer ao trono como para te desacreditar. Demasiados homens desejavam um soberano macho e ainda desejam. Ter-me-iam assediado constantemente para abdicar a teu favor, abrindo uma terrível distância entre nós.

- Ela tocou então na minha cara, e eu pensei ver um laivo daquela beleza que fora outrora a dela. - Podias até ter sido assassinado como o teu amigo, o príncipe Guilherme, foi.

 

Suspirou profundamente. - ó, eu amaldiçoei Kat Ashley e William Cecil por me terem tirado a minha carne e sangue, mas olho para ti, Arthur, e vejo um homem tão bom como eu nunca conheci. Foste criado e educado como um homem vulgar e acho que se tivesses sido criado como um príncipe de Inglaterra agora não serias tão bom como és. As crianças reais são mimadas e mal habituadas, arruinados os seus corações e almas, como eu fui. Até podias ter vindo a odiar-me.

 

- Eu nunca poderia ter-vos odiado - disse eu, pegando-lhe na mão. Nós perdemos muito tempo, mas quero que saibas, mãe... - A palavra ficou-me presa na garganta. - Que saibas que daqui em diante serás sempre, mas sempre amada por mim até morrer.

 

Abraçámo-nos uma vez mais, mas depois ela empurrou-me à distância dos braços e disse:

 

- Há algo de que temos que falar agora, algo urgente. - Olhou para o outro lado como se, apesar de tudo o que se tinha passado entre nós, não conseguisse olhar-me nos olhos. - Eu nunca cheguei a nomear o meu sucessor...

 

- Majestade - comecei eu como que para silencíá-la, pois de repente fui acometido do mais terrível dos pressentimentos. Eu tinha vindo aqui em busca dos meus pais e nunca em busca da Coroa.

 

- Tu és o único filho natural do meu corpo - continuou ela, ignorando a minha interrupção - e, consequentemente, o herdeiro legítimo do trono de Inglaterra.

 

Eu não queria que continuasse, mas agora ela virava-se, encorajada pelas suas próprias palavras, e silenciou-me com os olhos.

 

- Eu sou a Rainha e assim continuarei enquanto tiver fôlego no meu corpo. Mas estou preparada para reconhecer-te como meu sucessor, aconteça o que acontecer, e deste dia em diante começar a educação que precisarás para te preparares para governar.

 

Fiquei absolutamente silencioso, sem sequer tentar responder. Pois se essa ideia me tinha, naturalmente, ocorrido desde que conhecera a minha linhagem, nunca me parecera sequer remotamente plausível. Eu, rei de Inglaterra...

 

Ela deve ter interpretado o meu silêncio como um assentimento porque começou então a enumerar o percurso dos meus estudos - a compreensão da guerra numa grande escala, diplomacia, moeda e questões de impostos, os trabalhos do Parlamento, o problema da religião de Estado, as personalidades de cada um dos seus conselheiros privados, a manutenção das suas muitas casas.

 

Mas enquanto continuava a descrever as míríades de aptidões que eu tinha de dominar, as etiquetas e protocolos que tinha de aprender e os limites - não, a obliteração - da minha própria privacidade, senti o sangue a latejar na minha cabeça até que por fim já não conseguia ficar silencioso.

- Perdoai-me, mãe! - disse.

 

A Rainha, a meio da frase, ficou surpreendida por ser interrompida tão abruptamente, mas parou e esperou que eu continuasse, com um ar de indulgência paternal que raiava o assombro.

 

- Eu... eu não quero... o trono.

 

- Tu não queres o trono - repetiu ela calmamente, como se o significado daquelas palavras ainda não se tivesse imprimido nela. Então, na sua cara branca, as sobrancelhas Pintadas uníram-se num olhar carregado. Estás a dizer que não desejas suceder-me, tornares-te rei de Inglaterra?

- Estou.

 

A gargalhada dela foi estridente. Então ficou em silêncio enquanto procurava compreender a ideia. Por fim disse:

 

- Por favor explica-te, Arthur, pois eu não tenho maneira de compreender isto.

 

- Nestes últimos dias - comecei eu - ouvi a história da vossa vida e da do pai, da corte e especialmente da vossa subida ao trono e as suas circunstâncias. Revi também a minha própria vida. E não consigo impedir-me de pensar, com todo o devido respeito, Madame, que prefiro a minha.

 

As sobrancelhas arqueadas dela ergueram-se ainda mais, mas eu continuei:

 

- Desde o meu tempo de rapaz que adoro aventuras. Sonhava com isso quando era demasiado pequeno para sair de casa, mas rapidamente pude ir em busca delas. E se as encontrei! Em cidades. Em bosques. Em navios assolados por tempestades, em terras estranhas, em campos de batalha. Na companhia de grandes homens, mulheres corajosas, cavalos inigualáveis. Vi maravilhas e mistérios, beleza, miséria. Fui testado uma vez atrás da outra. Conheci a liberdade, mãe...

 

Conseguia ver que ela estava a escutar atentamente, mas ainda não parecia estar convencida. Continuei:

 

- Então olhei à minha volta para esta vida de corte. Parece-me tão pequena, no entanto perigosa de umaforma que sinto que não aguentaria. Vós nascestes princesa, e isso rebaixou-vos imenso. Quando vos tornastes Rainha, as pessoas desejavam assassinar-vos.

 

Ela começou a assentir com a cabeça às minhas palavras, os olhos distantes, como a recordar-se dessas ocasiões.

 

- E esta vida tem sido cruel para o meu pai igualmente. Eu sei que não é um homem sem culpas. Ele admite livremente o pecado da ambição. Os trabalhos a que se deu para conquistar a vossa mão... mesmo eu lhes podia chamar torpes. Mas ambos sabemos que Lord Leicester é um bom homem e vos amou fielmente, mãe.

 

Isso é verdade - concordou ela com um pequeno sorriso,

 

É minha crença que ele foi prejudicado apenas pelo amor fiel que lhe haveis retribuído e pelas recompensas que lhe haveis dado, e não por uma qualquer maldade real nele. Não havia limites para o ciúme que aqueles cortesãos mesquinhos sentiam, sabendo que o amáveis mais, sabendo que nunca poderieis ser afastada do vosso caminho de devoção para com ele.

 

Os lábios da minha mãe começaram então a tremer e os olhos encheram-se-lhe subitamente de lágrimas. Pousei a minha mão na dela.

 

- Recordo-me - disse ela - de outro monarca e do amor pelo qual ele moveu montanhas. E do ciúme que rebaixou a sua amante. Mas contínua. Acho que ainda não ouvi a melhor parte desta explicação.

 

- Se eu fosse reconhecido amanhã como príncipe de Gales - disse eu então todas as minhas errâncias rapidamente encontrariam o seu fim. Seria empalado nas roupas de um dândi e esperariam que assumisse uma série infindável de maneiras finas. A minha pessoa seria diligentemente guardada, qualquer dor e aflição discutidas. Nunca mais seria livre para me disfarçar, assumir nomes falsos, nem simplesmente cavalgar até ao campo sozinho pelo simples prazer disso. Teria o destino de nações a pairar sobre mim! Vós haveis sido criada de acordo com tais responsabilidades e desejáveis ardentemente governar. Eu desejo ardentemente aventuras!

 

Detive-me então, pois perguntava-me se o que iria dizer a seguir iria cair bem ou mal junto da Rainha. Ela perscrutou-me com os olhos, sem me permitir qualquer fuga para acabar o que tinha começado.

 

- Existe uma mulher... - comecei eu.

 

- Ah! - Foi tudo o que a minha mãe disse, embora todas as linhas duras da sua face se tivessem subitamente suavizado.

 

- Eu procurei-a toda a minha vida. Encontrei-a não há muito tempo. Ela ocupa todos os meus pensamentos e emoções.

 

- Então deves tê-la - disse rapidamente a Rainha. - Eu, de todas as pessoas, nunca te poderia pedir para sacrificares o amor por um casamento político.

 

- Não percebes, mãe. Ela é espanhola. Uma viúva com dois filhos. Esta vida, a vida da corte, iria apenas destruí-a.

 

O sorriso da Rainha começou a desvanecer-se.

- E é judia.

 

- Judia! - gritou ela. Esta última revelação tinha sido totalmente inesperada.-Olhou para mim com um ar tal, de confusão que eu pensei que ela tinha finalmente atingido os limites da sua paciência e compreensão. Depois disse: - Bom Deus, Arthur, deste-te a grandes trabalhos para te dispensares de aceitar este trono.

 

Eu descontrai-me de alívio.

 

- Então... então compreendeis?

 

- Parece-me que não tenho escolha. Tens a certeza de que não consegues viver sem ela?

 

Eu ri-me desconsolado.

 

- Nem tenho a certeza de que conseguirei alguma vez voltar a encontrá-la. Ela e a família estão em fuga da Inquisição, ainda um passo à frente, espero eu.

 

- Então - disse a minha mãe com um tom de remate - o meu único filho de boa vontade abdicaria da Coroa de Inglaterra por uma mulher e uma vida de aventuras.

 

- Perdoais-me?

 

- Não, não te perdoo. Isto desagrada-me ao extremo. Mas tu és ainda jovem. E eu não sou muito velha. Reinarei ainda por alguns bons anos, e entretanto podes vir a cansar-te das tuas aventuras, embora se fores só um bocadinho que seja parecido com o teu pai - acrescentou ela com um sorriso de viés - podes nunca te cansar da tua mulher. Eu não vou desistir de ter esperança de que possas mudar de ideias. Vou portanto continuar a recusar-me a nomear o meu sucessor. Acho que os meus homens já deixaram de contar com isso, de qualquer forma.

 

Com isto deu-me a sua bênção, uma boa bolsa para eu me aguentar e a promessa de todo o dinheiro de que eu alguma vez precisasse em toda a minha vida. Antes deu-me licença para me levantar e dirigiu-se a uma enorme arca talhada aos pés da sua cama. Ajoelhando-se perante ela vasculhou no fundo e tirou um livro velho e gasto. A capa de couro vermelho dele estava desbotada e a borda em ouro nos seus cantos tinha quase desaparecido. Segurou-o junto ao seu coração por um longo momento antes de o depositar nas minhas mãos.

 

- Isto é para os teus olhos apenas, Arthur. E tens que o guardar diligentemente. Promete-me.

 

- Prometo, pela minha honra.

 

- Vai agora - disse ela com uma agudez que gostaria de cobrir o coração mais terno. - Vai à procura do o teu amor.

 

Ajoelhei-me e beijei-lhe a mão, segurando-a junto à minha face. Ela não disse mais nada, nem sequer adeus.

 

Assim que tive um momento de privacidade abri o livro na primeira página. Não era um volume impresso como eu pensara, mas, em lugar disso, estava escrito com uma caligrafia antiquada. O título "O Diário de Ana Bolena" espantou-me completamente. Nunca antes tinha lido um diário, embora soubesse que existiam tais coisas. Estar na posse da história da minha ancestral excitava-me incomensuravelmente.

 

Assim, matutei, eu tinha sido presenteado com os livros de maior importância tanto pela minha mãe como pelo meu pai. Talvez fosse aquele pensamento que me levou à escrita da minha própria vida. De qualquer forma, naquela mesma noite, à luz da vela, comecei a ler o diário secreto da minha avó.

 

Robin Dudley olhava através da corrente borbulhenta para o irmão a debater-se com os seus dedos artríticos para pôr isco na sua linha, e pensou com mais resignação do que amargura que o envelhecimento do corpo era talvez a mais irredutível maldição da vida. Havia algumas alegrias em envelhecer, e a morte era muitas vezes uma bênção. Mas a marcha inexorável da decrepitude da forma humana parecia-lhe absolutamente cruel. O seu irmão, outrora belo e vigoroso, estava agora corcovado e arfava quando caminhava. A ferida de guerra dos seus tempos de juventude nunca tinha deixado de o incomodar e, nos últimos anos, tinha-lhe dado dores martirizantes no frio do Inverno. Leicester não estava ele próprio muito melhor, com as suas febres e a dispepsia constante. E depois havia a vaidade. Mentiria se não admitisse que a visão da sua carne flácida e descorada lhe repugnava. Mal conseguia olhar para os seus retratos enquanto jovem vivaz que estavam pendurados nas suas muitas residências. Talvez, considerou ele, devesse mandá-los tirar a todos.

 

- Já pensaste melhor acerca de falar com a Rainha em favor de James Croft? - perguntou Ambrose ao mesmo tempo que lançava a sua linha num gracioso arco para a água. Os salmões tinham até agora escapado aos dois neste dia.

 

- Ele é um velho pederasta perverso e intriguista - respondeu Leicester. - Na lista de pagamentos do rei Filipe em oitenta e dois. No ano passado fez ofertas a Parma para lhe devolver as cidades holandesas sem nenhuma autoridade a não ser a sua... E quando Isabel o atira para a Torre pelos seus actos, ele grita loucura.

 

- Pois grita. E culpa-te a ti.

 

- Como toda a gente, por tudo. já me habituei a isso.

 

- O filho dele, Edward devia ser amarrado. Assassino contra ti. Promete vingança.

 

- Ah, bem, o que é que ele me pode fazer que o tempo não tenha já começado a fazer? Ouve, conheces algum advogado em Buxton?

 

- Há um homem chamado Doughtry - respondeu Ambrose. - Para quê?

 

- Estou a pensar em alterar o meu testamento.

- Para me excluíres dele, é isso?

 

Leicester riu-se agradavelmente. Não tinha contado nada acerca de Arthur ao seu irmão. Ele e Isabel tinham chegado à conclusão de que revelar a existência do filho de ambos neste momento não traria qualquer vantagem. Mas certificar-se-ia de que o rapaz seria lembrado no seu testamento. Podia alegar que a mãe estava morta. Arthur seria apenas mais um bastardo reconhecido, como era o seu filho Robert.

 

Dudley lançou a sua própria linha para a água agitada com uma oração de pescador. Iria saborear um belo salmão nessa noite ao jantar. O sol quente a bater-lhe nos ombros, e o som da água corrente como um bálsamo para a sua alma, de repente apercebeu-se que apesar desta aborrecedora e inalterável decrepitude, sentia-se mais satisfeito com a vida do que alguma vez estivera. Este Verão dourado tinha assistido à vitória gloriosa da Inglaterra, tinha-o visto regressar ao calor do amor de Isabel e tinha-lhes entregue o filho de ambos há muito perdido.

 

Ele estava tão orgulhoso do rapaz, tinha visto quanto ele agradara à mãe. Certamente que iriam passar bom tempo juntos nos anos vindouros. Leicester sorriu um sorriso interior, Arthur seria um conforto para ele na velhice. Não apenas pela beleza e plenitude da sua pessoa, mas como uma doce e constante lembrança da sua longa e abençoada presença na vida de uma grande rainha.

 

Sentiu o salmão picar e gritou de excitação. Ambrose virou-se para ver o irmão puxar para pousar o gancho e começar a luta. De repente o grande peixe disparou para o céu, torcendo-se energicamente, as suas escamas prateadas a cintilar ao sol. Os dois homens gritaram quando lhe viram o tamanho, o seu poder, e pela alegria da luta. E nesse momento pareceu a Robin Dudley que nenhuma vida de homem poderia alguma vez ter sido tão boa.

 

O jovem Essex deu à Rainha uma ajuda para ela subir para o cavalo castanho. Nada lhe dava mais satisfação, pensou Isabel instalando-se na sela fora dos estábulos reais, do que encontrar um novo parceiro de cavalgadas bem-parecido. Embora odiasse a mãe, Lady Leicester, a Rainha não podia deixar de apreciar sem reservas o filho. Ela tinha-o mudado para os apartamentos do padrasto contíguos aos seus, e as línguas tinham começado imediatamente a badalar. Ela não se importava nada. Simplesmente desejava que o homem alto e de cabelo escuro a assistisse, e frequentemente. Essex. Iria providenciar quanto ao seu futuro.

 

- Perdoai-me, Majestade - disse ele, mas o meu cavalo parece estar coxo. Vou demorar mais uns minutos. - Fez uma vénia com uma combinação especial de graça e masculinidade, que ela achava profundamente irresistível, e dirigiu-se aos estábulos.

 

Alguns momentos para gastar. Ela tinha enfiado a nota de Robin no seu corpete e tirou-a agora para relê-la. À luz forte de Setembro as palavras eram nítidas, mesmo sem os óculos. Era uma nota curta, escrita no quarto de Robin em Rycote quando ele se dirigia às Termas de Buxton, inquirindo-a acerca das suas próprias dores e aflições no seu jeito familiar e afectivo, e rezando pela boa saúde e longa vida dela. Continuo ainda o remédio que tão gentilmente me ofereceste no nosso último encontro, e parece-me que me faz muito melhor do que qualquer dos outros que os médicos me receitaram. Aquela poção malcheirosa!, pensou Isabel, divertida. A tintura revoltante que tinha desencadeado tantas brincadeiras e risos. Assim esperando encontrar uma cura perfeita nos banhos, e pronto a continuar a minha viagem até lá, rezo continuamente pela tua feliz preservação, e muito humildemente beijo-te o pé. Do fiel e obediente servo de Vossa Majestade. R. Leicester.

 

- Humildemente beijo-te o pé - repetiu ela num sussurro. Querido Robin. Não havia nenhum como ele. Nem Raleigh, nem Drake, nem este jovem garanhão.

 

Um pajem apressou-se a atravessar o pátio de gravilha no momento em que Essex regressava com um cavalo bom. O rapaz olhou para a Rainha e depois para o jovem senhor como se não soubesse a quem se devia dirigir.

- Sim, o que é? - perguntou Isabel impaciente.

 

- Lord... Lord... - gaguejou ele. - Lord Leicester morreu. Em Combury.

- Ele não está morto - disse Isabel com ar decidido. - Tenho uma carta dele. - Abanou a nota no ar como prova.

 

O pajem mudava desconfortavelmente de pé para pé.

 

- Com todo o respeito, Majestade. Foi uma febre súbita que o acometeu, embora haja alguma conversa acerca de... assassinato.

 

Isabel ficara muito quieta. Essex, que não tinha ainda falado, puxou o mensageiro para lhe perguntar.

 

- Onde está a minha mãe?

 

- Com o marido, meu senhor. Estava com ele quando ele... - o rapaz olhou rapidamente para a Rainha e depois para o outro lado - morreu.

 

- Madame. - Essex virou-se para Isabel confuso. Durante um momento nenhum dos dois falou.

 

- As minhas condolências sentidas, Lord Essex - proferiu ela por fim. Nada a não ser os seus lábios se movia.

 

- E as minhas para vós, Majestade. Posso... poderíeis...?

 

- Estás dispensado para ires ter com a tua mãe imediatamente. Completamente abalado, Essex correu. Isabel acenou ao pajem para que o seguisse. Ela ficou sentada imóvel na sela, olhando em volta para os seus estábulos, o Palácio de Saint James, o rio ao fundo.

 

O mundo de repente mudou, pensou ela simplesmente. Mudou completamente.

 

O cavalo mexeu-se sob ela, ávido de começar a cavalgada. Se alguém lhe tivesse tocado agora, pensou ela, podia ter retinido como um sino dissonante. Ele estava morto. Acabara.

 

Humildemente beijo-te o pé.

 

Isabel enganchou o joelho em volta do arção e bateu no lado do cavalo com a bota. Ele sabia de alguma forma ser gentil com a mulher em cima dele. Ela percorreu lentamente o caminho do pátio de gravilha até ao brejo amarelecido. As costas estavam direitas como uma vara, o queixo alto, olhos secos.

 

Robin.

 

Christopher Hatton e Robert Cecil tinham mandado arrombar a porta do quarto de dormir da Rainha no terceiro dia após a morte do conde de Leicester. Ela estava imóvel na cama, totalmente vestida, embora tivesse desapertado o espartilho, e com uma manga dependurada do seu corpete por uma única renda. Não tinha peruca e o seu cabelo cinzento-avermelhado colava-se-lhe ao seu crânio fantasmagórico. Na mão dela estava um pequeno pergaminho dobrado no qual ela tinha escrito na sua própria caligrafia as palavras "A última carta dele". Olhou com olhos vidrados para os homens que se atarefavam e preocupavam com ela, mas não os viu bem, pois estava noutro lugar.

 

Fulham House numa noite de tempestade no fim do Verão. Ela tinha dado à luz e deitava-se aninhada nos braços fortes de Robin Dudley. O recém-nascido estava aninhado entre eles, a gemer e a contorcer-se, a sua cara neste momento a perder o vermelho vivo para um doce e pálido rosa. O filho deles, Arthur, vivia. Ele vivia! Robin inclinou-se para baixo e beijou o rapaz, olhou para cima, beijou a bochecha húmida de Isabel. Ela sorriu para o amante e o seu filho lindo com uma serenidade incomensurável, pois aqui estava um filho do seu corpo, de sangue Tudor. O mundo, finalmente, era pleno e completamente perfeito.

 

Poucos choraram a morte solitária do meu pai. A mulher dele não perdeu tempo a casar-se com o seu jovem amante, e até os escritores e poetas aos quais tinha atribuído o seufiel patrocínio e que o adularam em vida, ficaram silenciosos. Apenas um, Edimund Spenser, lhe dedicou estes versos.

 

Agora ele está morto e toda a sua glória se foi E toda a sua grandeza se evaporou em nada, Como um vidro à tona da água

 

Que desapareceu depressa enquanto era procurado O nome dele caiu já no esquecimento.

 

A minha mãe, que o chorou profundamente, foi depressa chamada de volta aos seus deveres e não os pôde recusar. A ameaça espanhola à Inglaterra tinha terminado, mas por breves momentos, pois era evidente que não haveria paz verdadeira enquanto Filipe vivesse.

 

Regressei ao Sul de Espanha em busca de Constanza, para a encontrar, com o seu pai e filhos, ausente. A oficina de selas tinha sido entaipada, a residência dos Lorca habitada por um bispo local. A família, contou-me ele, tinha decidido emigrar para o Novo Mundo. Os ricos conquistadores, soldados e cavaleiros eram numerosos, e Dom Ramón acreditava que podia tornar-se muito rico. Tinham ido com uma concessão do rei Filipe para Nuevo Léon, uma grande extensão de terra no Norte do México, sendo o seu governador-geral um distinto fidalgo chamado Carvajal. Nada mais se sabia.

 

Em Lisboa havia dificuldade em encontrar um navio com destino ao Novo Mundo, tantos tinham sido confiscados para a Armada. Todos os dias reminiscências andrajosas daquela outrora orgulhosa frota surgiam a coxear regressadas da sua viagem infernal em torno da Escócia e da Irlanda. Mas eu percorri as docas diariamente até encontrar um barco mercante remendado e bom para o mar - assim diziam eles - e com destino ao Novo Mundo. Aquela terra de promessa. A terra Atlântida do doutor Dee. E é nessa viagem, em busca do meu amor e do meu destino, que escrevo.

 

O tempo está a ficar feio, e em breve arrumarei a minha tinta, a pena e o diário e irei lá para baixo. Gostaria de poder dizer que venci o meu medo do mar, mas seria uma mentira. Porém, apenas encontrei formas de me reconfortar, quando as vagas ameaçam levar-me. Dírijo-me ao estábulo onde a minha doce Mirage está acomodada, e sento-me junto dela. Os Lorca tinham-na deixado com o bispo, dizendo que um dia um italiano chamado Reggio iria regressar em busca dela. O soar da minha voz parece acalmar a Mirage, como o odor, a força e a beleza dela me acalmam. juntos, assim, livrámo-nos de muitas tempestades e banimos o medo, nem que apenas por um momento.

 

Embora tenha sofrido as dores gémeas de perda e separação, ainda assim há um agradecimento no meu coração todos os dias pelo amor e muitas bênçãos com que fui presenteado. O mundo e meu para explorar e a esperança é a minha companheira constante.

 

O meu pai está morto, mas nunca na minha vida esquecido. E a minha mãe é a rainha de Inglaterra.

Arthur Dudley Uma perspectiva histórica

 

Fue um homem que se chamava a si próprio Arthur Dudley e alegava ser filho de Isabel e Leicester viveu no século XVI é um facto indisputável. Se ele era quem dizia ser é uma questão de conjectura.

 

Apesar deste problema ser, a meu ver, um dos grandes mistérios não resolvidos da Renascença e de haver numerosas referências a filhos ilegítimos nascidos de Isabel e do seu mestre-de-picadeiro, Robin Dudley, conde de Leicester, durante os primeiros anos do seu reinado quando o caso amoroso com Dudley era um facto genericamente aceite, as menções específicas a Arthur Dudley são escassas.

 

As explicações contemporâneas de como uma rainha vigiada tão de perto podia escapar com um tal acto são as seguintes: todos os verões Isabel partia na sua viagem oficial de Verão, que podia durar até cinco meses. Durante esse tempo, sugere-se, e utilizando procuradores, fingindo doenças e roupas desenhadas especialmente, ela "desaparecia no campo" nos meses finais de gravidez e parto.

 

Tais rumores podem naturalmente não ser mais do que indolentes mexericos de bastidores, mas eu descobri enquanto investigava para escrever O Bastardo da Rainha que, embora a história de Arthur Dudley tivesse muitas lacunas na sua cronologia, o cenário era inteiramente plausível. De facto, nada nesta história entrava em conflito com qualquer parte das vidas documentadas ao pormenor de Isabel e Leicester. Comecei a perguntar-me porque é que os biógrafos de Isabel, com raríssimas excepções, tinham ignorado um personagem tão interessante, ou pelo menos o tinham relegado para uma nota de rodapé na história.

 

Calculei que a maioria dos escritores aceitavam a hipótese de Isabel ser, no sentido mais estrito, a Rainha Virgem que afirmava ser. Se isso era verdade, qualquer pessoa que alegasse ser seu filho teria, naturalmente, de considerar um impostor. Mas, mais recentemente, diversos biógrafos dos Tudor examinaram a possibilidade da relação Isabel-Dudley ser de facto carnal. A minha opinião pessoal é de que os dois eram íntimos no sentido absoluto do termo. É um facto que durante o primeiro ano do seu reinado, quando William Cecil estava na Escócia a negociar o Tratado de Edimburgo, Isabel e Dudley ficaram fechados juntos dia e noite semanas inteiras. Este comportamento foi tão escandaloso que quando Cecil regressou repreendeu-a severamente por isso.

 

Se considerarmos a hereditariedade como um factor, deve ser recordado que Isabel era filha de dois pais extravagantes e apaixonados, Henrique e Ana, e ela própria era uma jovem mulher vigorosa e saudável com um grande apetite por muitos prazeres físicos incluindo a dança, montar e caçar. Era decididamente voluntariosa. Era rainha e revoltava-se contra o facto de não poder fazer o que bem queria. E estava profundamente apaixonada pelo seu amigo de infância Robin Dudley. Mesmo depois do escândalo da morte suspeita da mulher dele, Isabel teve a audácia de o mudar para apartamentos no Castelo de Greenwich contíguos aos seus. Estas não me parecem as acções ou os atributos de uma mulher casta.

 

A minha investigação para a história do filho ilegítimo de Isabel e Dudley começou quando deparei com uma referência a ele em The First Elizabeth de Carolly Erickson que era tão breve e diminuta que mal se regista: "... nos anos de 1580 um rapaz dizendo-se filho de ambos andava a apresentar-se pelas cortes católicas no estrangeiro." Umas quantas alusões a Arthur Dudley noutros livros eram similarmente breves, com uma a ocupar um parágrafo, e todas elas repetindo a ideia de que ele não poderia ser senão um impostor.

 

Imaginem o meu prazer ao encontrar uma página inteira que lhe era dedicada no que se tornara a minha famíilia acerca da relação entre a Rainha e o seu mestre-de-picadeiro, Elizabeth and Leicester, de Elizabeth Jenkins. Enquanto admitia que a parte inicial da história de Arthur Dudley, que assentava "inteiramente na sua própria asserção... tinha sido levantada por alguém com conhecimentos consideráveis sobre os acontecimentos dos vinte e cinco anos anteriores", acabava por rejeitar a sua pretensão a ser de sangue real com base na idade dele. "Diz-se que Dudley teria vinte e cinco anos de idade, e 1562 foi o ano em que Isabel quase morrera de varíola; isso não foi um disfarce para ela poder dar luz a uma criança." Concordo com isso, mas na minha leitura, a idade dele ser vinte e cinco anos é aproximativo. Muitas das datas dessa parte da história são imprecisas. Não nos consegue dizer, por exemplo, o ano exacto do nascimento da rainha Ana Bolena. Se, de facto, Arthur Dudley tivesse vinte e seis anos de idade no momento da sua prisão em Espanha, o ano do seu nascimento teria sido 1561, e durante esse ano a viagem oficial de Verão de Isabel está completamente indocumentada desde meados do mês de junho até ao fim de Outubro - um enorme buraco na história. Tempo mais que suficiente para ela "desaparecer no campo".

 

O essencial do que sabemos acerca do jovem Dudley vem de um testemunho que ele deu a Francis Englefield, o secretário inglês de Filipe II em

1587, no ano em que Arthur, disfarçado de peregrino, foi preso no Norte de Espanha por espiar a favor da Inglaterra, o ano antes da Invencível Armada. O documento, feito a partir de cinco dias de interrogatório por Englefield, completado com os comentários manuscritos de Filipe na sua caligrafia extravagante, sobrevive entre os seus Documentos de Estado nos arquivos de Salamanca. Englefield acreditou claramente na história de Dudley.

 

Certamente que a história é rebuscada, mas era o suficiente para servir de esqueleto à intriga de O Bastardo da Rainha. Arthur alegava ser filho natural da Rainha, e que tinha sido entregue enquanto bebé por Kat Ashley a Robert Southem, que se tornou encarregado da Coutada de Enfield. Foi criado por Southem na ignorância da sua verdadeira linhagem. Com quinze anos fugiu de casa e foi inexplicavelmente trazido de volta de Milford Haven por mandado do Conselho Privado. Mais tarde lutou pelos protestantes na guerra da Holanda até ser chamado a Inglaterra quando o seu pai estava a morrer. No seu leito de morte Southem revelou a Arthur a sua verdadeira identidade, depois do que o jovem confrontou o seu pai natural, Lord Leicester. Arthur alega que Leicester o reconheceu como seu filho, e que depois o enviou com o seu secretário, Mr. Fludd, à casa de Walsingham para este lhe passar um passaporte. Não desejando ser interrogado pelo chefe dos serviços secretos de Isabel, Arthur escapou para o continente. Diz-se que Leicester terá feito a seguinte observação acerca do filho: "És como um navio a toda a vela no mar. Bonito de ver, mas perigoso no lidar". Uma afirmação que David Howarth em The Voyage of the Armada alega "ter uma ponta de verdade". Uma vez sob custódia espanhola Arthur terá aparentemente sugerido assassinar o rei escocês Jaime, e terá deixado implícito que ele era o verdadeiro sucessor ao trono inglês.

 

Outro soberbo "buraco na história" que eu descobri foi a explosão a bordo do navio espanhol San Salvador durante a viagem da Armada. Acreditou-se, naquela altura, tratar-se de um acto de sabotagem cometido por um mercenário estrangeiro descontente, mas a identidade do sabotador permaneceu um mistério e eu usei isso, felizmente para meu proveito, na história de Arthur.

 

A descrição de Howarth da Armada da perspectiva espanhola foi a última peça acerca de Arthur que encontrei, já a meio da escrita de O Bastardo. A análise que o autor faz das motivações e comportamento de Filipe em torno da sua Grande Empresa era mais detalhada e melhor observada do que qualquer outra que eu tenha lido, e fiquei grato pela seriedade com que o autor considerava a pessoa de Arthur Dudley. O rei de Espanha, escreveu ele, tinha - embora ninguém o soubesse - planos de assumir ele próprio a coroa da Inglaterra conquistada através da sua filha a infanta Isabella. Quando foi confrontado com Arthur, Filipe levou-o suficientemente a sério para considerar que ele tinha "uma pretensão mais forte ao trono do que qualquer outra pessoa". O rei via-o, consequentemente, como um potencial rival e alguém que, por razões de segurança nacional, precisava de ficar preso. "Será certamente o mais seguro", escreveu Filipe nas margens do relatório de Englefield, "assegurarmo-nos da sua identidade até sabermos mais sobre o assunto." Arthur foi fechado numa prisão espanhola e a partir desse momento perdeu-se na história.

 

Fiquei impressionado quando me apercebi de que se o rei de Espanha bem como Francis Englefield, cada um dos quais conhecendo pessoalmente ambos os pais, consideraram que o jovem podia estar a dizer a verdade, então talvez os leitores de história bem como de ficção histórica devessem finalmente ser avisados da existência de Arthur Dudley de forma a que pudessem decidir por si próprios se ele era, de facto, o filho bastardo de Lord Leicester e da Rainha Virgem.

 

                                                                                Robin Maxwell  

 

                      

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