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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BATER DE SUAS ASAS - P.3 / Paul Hoffman
O BATER DE SUAS ASAS - P.3 / Paul Hoffman

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O garoto a olhou de alto a baixo enquanto continuava mastigando devagar, como, ela pensou, uma cabra anormalmente inteligente. — Que nomão pra uma garota tão pequena. — Bem — respondeu ela —, depois que você me disser seu nome, talvez possa me dar uma lista das suas façanhas. Em quase qualquer outra circunstância, isso teria bastado para pôr um zé-ninguém tão óbvio em seu lugar. — Eu sou Thomas Cale — apresentou-se ele e descreveu todos os seus grandes feitos de forma vangloriosamente simples e direta. — Já ouvi falar de você — disse ela. — Todos ouviram falar de mim. — Ouvi que você é um arruaceiro que envenena poços, deixa mulheres e crianças morrerem de fome e leva carnificina e massacre a qualquer lugar aonde vai. — Já envenenei muitos poços e matei muito. Mas não sou completamente ruim. Cale estava acostumado a ouvir esse tipo de insultos, ainda que não diretamente. O que era estranho, desta vez, não era apenas tudo ser dito na sua cara, mas também com um ar levemente distraído, os olhos azuis dela vagando, e num tom que, se ela não o estivesse acusando de infâmias hediondas, seria quase doce de um jeito enjoativo. Artemisia olhava as próprias unhas como se elas fossem o objeto de uma fascinação total. — Também já ouvi falar de você. Artemisia ergueu o olhar para ele, ainda perdido, parecendo alguma fabulosa dondoca da sociedade prestes a receber mais um cumprimento sobre sua beleza esfuziante. Ela sabia, é claro, que um insulto viria. Cale prolongou o momento. — Nada mau — disse Cale, finalmente. — Se o que ouvi é verdade. — É verdade. Ela não pretendia demonstrar que se importava tanto com a opinião positiva dos outros. E de fato não se importava. Ao menos não tanto. Mas se importava. E estava tão contrariada por não ser tratada como merecia que esse surpreendente elogio a desmascarou. — Então me fale a respeito — disse Cale.


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Talvez nem mesmo garotas ou bolo possam se comparar aos prazeres oferecidos por alguém da mais alta reputação dizendo que você é singularmente brilhante. Cale podia ser um assassino envenenador de poços, mas Artemisia viu essas características infelizes ficarem em segundo plano quando duas coisas ficaram claras: ele sabia do que estava falando e a admirava enormemente. Não era só sua lisonja que a conquistava. Suas perguntas, ceticismo e dúvidas, as quais todas ela era capaz de responder, davam tanto prazer quanto ter os músculos doloridos de seu pescoço e ombros delicados massageados por mãos hábeis. Na época, ela tinha quase 30 anos, e embora gostasse de seu falecido marido, que a adorava e aceitava seu peculiar interesse, jamais o tinha amado, nem a ele, nem a qualquer outro homem. Homens a desejavam não por ela ser bonita de qualquer forma convencional, mas exatamente por aquela distração tão transcendental, e pela falta de interesse neles que também os deixava perplexos. Resumindo, eles a achavam enigmática de forma excitante, mas o que não percebiam, ao elogiar esse ar misterioso, era que ela não queria ser misteriosa. Artemisia queria ser admirada por suas habilidades, reconhecida por seu bom juízo, astúcia e inteligência. Cale, sem demonstrar qualquer interesse aparente por ela como mulher, entendia o brilhantismo dela e o descreveu em detalhes adoráveis, e por várias horas. No final da noite, ela já estava — como poderia não estar? — meio apaixonada. Ambos ficaram igualmente assombrados pelo outro não ocupar algum cargo de grande importância, considerando o quanto eram maravilhosos. Nenhum dos dois, talvez por motivos parecidos, fazia ideia de como sua companhia fosse desesperadora e irritante. Eles não compreendiam com facilidade que ninguém, especialmente pessoas sem talento, quisesse ver sua falta de habilidade tornada explícita. Cale combinou de encontrá-la no dia seguinte no vinhedo de Roundhey Park, o que a deixou encantada, e disse que levaria um amigo, se ele estivesse se sentindo bem, o que não a encantou tanto assim. E então ele se foi. Sua partida repentina o fez parecer misterioso para ela, e também a deixou insegura; ele tinha parecido tão fascinado por ela, mas então partiu de repente, e de forma quase displicente. Ela ficou um tanto contrariada por perceber que isso só o tornava mais atraente. Na verdade, ele havia ido embora daquela forma porque sentiu que poderia vomitar. Ansioso para evitar a má impressão que isso poderia causar, ele se fora abruptamente e, mal chegando à rua, o acesso começara. — Artemisia Sei-lá-do-quê? — perguntou IdrisPukke na manhã seguinte. — Eu jamais ia imaginar que ela fazia seu tipo. — Ou seja? — Um pouco coquete. — Croquete? — Afetada. — Afetada? — Representando o papel de encantadora e misteriosa... todo aquele bater de cílios e os olhares perdidos na distância. — Ela não estava representando... só estava entediada. É uma mulher brilhante. — Você não acha que tudo o que falam sobre ela é exagero? — Se digo que não é exagero, é porque não é. Tentei de tudo para destruir sua reputação dos pés à cabeça, mas ela aguentou firme. Na verdade, ela é uma maravilha. — Bem, se o Grande Cabeção a considera tanto, precisamos dar uma olhada nela. — Por quê? — Alguém com tanta capacidade, mas menos convencida do que você, poderia ser muito útil. — IdrisPukke quer conhecer você, e Vipond também. Artemisia ficou empolgada com isso e, como era incapaz de disfarçar sua empolgação, arregalou os olhos, seus cílios, longos como os de um cocker spaniel, tremeram como se estivessem enviando um sinal desesperado a um porto distante. Havia algo nela; talvez o mais importante fosse que ela não era Thomas Cale. Ele estava realmente farto de si mesmo. Estar na companhia de alguém doente o tempo todo é um sacrifício, mesmo quando a pessoa doente é você mesmo: sentir-se sempre péssimo, nunca querer ir a lugar nenhum, dormir o tempo todo ou, quando acordado, querer dormir. Ela gostava muito de Cale, o que ajudava bastante, pois a maioria das garotas parecia ter medo dele ou às vezes, o que era mais preocupante, imaginava que aquela instigante má reputação fosse uma máscara que poderia ser removida por uma mulher sensível para revelar a alma gêmea por baixo dela. Essas garotas não gostavam de descobrir que existem algumas almas, não necessariamente as cruéis ou más, com as quais é melhor não se unir. Outra característica em Artemisia que fascinava Cale era que pela primeira vez ele tinha conhecido alguém cuja história era mais estranha do que a dele. Artemisia sempre foi um mistério porque ela não era masculinizada de forma alguma. De fato, era considerada a mais feminina das menininhas — nem um pouco parecida com a irmã mais velha, famosa por seus hábitos grosseiros e ruidosos. Artemisia gostava de rosa e de cores tão femininas que até doíam nos olhos, usava tantas rendas e brocados que às vezes era difícil encontrar a garotinha escondida dentro deles, e tinha uma coleção de bonecas de lábios vermelhos e roupinhas removíveis que numerava na casa das centenas. A criadagem começou a notar que de manhã ela vestia e despia as bonecas, tagarelando feito uma lunática, como tantas outras criancinhas, dando bronca nas bonecas por se sujarem, brigarem entre si ou usarem as luvas erradas para uma terça-feira — mas à tarde ela as organizava em grandes falanges maricas vestidas de rosa e turquesa e imaginava a melhor maneira de trucidá-las. Soldados de anágua grená lutavam até a morte contra tropas irregulares de touca lavanda e cavalarianas montadas em novelos de algodão usando calçolas azul-bebê. Presumia-se que, com o tempo, seu gosto por essas manobras de guerra petulantemente afeminadas iria perder a força, mas seu interesse por tudo o que era militar só parecia ficar mais intenso à medida que ela ficava mais velha. Artemisia não se interessava por nenhuma forma de violência pessoal. Não queria praticar com espadas ou punhais ou, Deus a livre, lutar com garotos, como a irmã mais velha. Não precisavam proibi-la de lutar boxe — como proibiam a irmã — mais do que precisassem proibi-la de voar. Ela era uma excelente amazona, mas ninguém tentava impedir isso, porque Halicarnassus era famoso por seus cavalos, e a equitação era considerada perfeitamente aceitável para garotas. — Você não sabe lutar? — perguntou Cale. — Não. Meus braços são tão fraquinhos que fico sem fôlego só de levantar uma almofada de pó-de-arroz. — Eu poderia te ensinar — ofereceu ele. — Só se eu puder te ensinar a usar espartilho. — Pra que eu ia querer isso? — Exatamente. — Exatamente coisa nenhuma. Eu não quero ser uma menina. — E eu não quero ser um soldado. Quero ser general. E é isso que sou. Você pode continuar decapitando gente e amontoando entranhas no chão até fazer pilhas de tripas do tamanho do Monte Genebra. Mas não precisa fazer isso... já tem gente suficiente boa nisso.
Cale se perguntou se deveria contar à sua nova amiga que, sem inalar uma dose de droga forte o bastante para matar, seus dias de terror do campo de batalha estavam encerrados. Mas ele achou melhor não contar, por enquanto. Como sabia que podia confiar nela? De qualquer forma, era preciso dizer que algo nele ansiava por lhe contar a verdade. Artemisia terminou sua história. Foi obrigada a casar aos 14 anos, protestando ruidosamente contra a idade do noivo, sua obscuridade, e que onde suas terras eram planas, eram planas demais, e onde eram montanhosas, eram medonhas de tão montanhosas. Além disso, eram quentes demais no verão e muito frias no inverno. Foram quase quatro anos de petulância e antipatia geral até que ela começasse a apreciar a sorte que teve. Daniel, quadragésimo margrave de Halicarnassus, era um homem inteligente, sábio e fora do convencional, embora escondesse cuidadosamente sua falta de convencionalidade, temendo assustar sua família e os vizinhos. Além disso, adorava Artemisia e se divertia com ela em vez de se irritar, quando teria todo o direito a isso, considerando quão desagradável e grosseira ela fora com ele de início. Embora nem sempre fizesse as vontades dela, ele a encorajava em seus interesses peculiares, em parte por afeto e para conquistar seu coração, e em parte por estar curioso para ver no que aquilo iria dar. Ele não estava interessado na guerra, mas reconhecia que sua pequena milícia era quase completamente inútil, portanto não faria mal nenhum deixar que ela fizesse o que quisesse com as tropas. Artemisia conquistou o apoio da milícia e se livrou dos oficiais que por interesse próprio se opunham a ela dividindo as tropas em dois grupos e se oferecendo para lutar em três jogos de guerra. Então apostou 3 mil dólares com os oficiais que ganharia os três. Se eles perdessem, deveriam pedir exoneração. Ela ainda tinha 3 mil dólares do seu dote (Daniel o devolvera a ela no dia do casamento) e usou mil deles para subornar a milícia agora sob seu comando e que, até receber todo aquele dinheiro, também não estava muito feliz. Ela tinha 2.500 homens, a maioria fazendeiros com seus empregados, e um sortimento de cervejeiros, padeiros e ferreiros. E ela tinha três meses. De início, os homens trabalharam duro porque eram pagos para isso — mas só em troca de resultados. A cada semana, os homens ganhavam mais, mas apenas se corressem mais rápido ou carregassem um grande peso por mais tempo. Mas ela também os dividia em grupos com nomes ferozes e os fazia usar coletes de várias cores — embora, sabiamente, não o azul-bebê ou o turquesa de suas bonecas. Quem não conseguisse melhorar perdia o colete publicamente e era expulso. Mas se depois passasse no teste em que havia fracassado e melhorasse suas marcas, era readmitido. Artemisia cometia erros — mas dinheiro e um pedido de desculpas pareciam curar qualquer coisa. Quando o prazo de três meses acabou, os jogos começaram. Eram bastante violentos, ainda que com bastões almofadados em vez de espadas e lanças, e muitos se machucavam. Ela ganhou os três jogos com facilidade por causa de seu talento, mas também porque seus adversários eram oficiais inteligentes, porém complacentes, e oficiais complacentes que ainda por cima eram burros. Ela conservou alguns dos primeiros e começou mais uma série de jogos violentos para corrigir seus próprios erros — que ela sabia serem muitos. Encomendou livros de grandes
autoridades na arte da guerra de todos os lugares possíveis — e descobriu que a maioria deles era irritantemente vaga ao descrever o que ela queria saber: os detalhes de como alguma coisa era feita na prática. Uma autoridade bombástica após a outra contava, digamos, como uma marcha noturna do General A ousadamente cercara e surpreendera o General B — mas os detalhes de como movimentar mil homens por trilhas rochosas e péssimas no escuro, sem que os homens quebrassem as pernas ou despencassem de penhascos — as coisas que você realmente precisava saber —, estavam quase sempre ausentes. O que restava eram apenas histórias para crianças e sonhadores. — Ainda não entendi — falou Cale, rindo — como você conseguiu ficar tão boa. Não me ensinaram nada além disso a vida inteira. — Talvez eu seja mais talentosa e esperta que você. — Duvido — disse ele. — Nunca conheci ninguém mais talentoso do que eu. Artemisia caiu na gargalhada. — Não sei o que é tão engraçado — disse Cale, sorrindo. — Você é. Não admira que ninguém goste de você. — Algumas pessoas gostam de mim. Mas não muitas, é verdade — admitiu. — Então, como conseguiu? — Eu brincava. — Qualquer criança faz isso. Até nós brincávamos. — Eu brincava de um jeito diferente de todos. — Quem está contando vantagem agora? — Não estou contando vantagem. É verdade. — Continue, então. — Eu observava as outras crianças brincando já quando era bem pequena... em suas brincadeiras, as coisas sempre aconteciam do jeito que elas queriam. Mas as coisas nunca são assim... eu já sabia disso aos cinco anos de idade. Por isso peguei um velho baralho da minha mãe e escrevi coisas nas cartas: seu melhor general cai do cavalo e quebra o pescoço, um espião rouba o seu plano de ataque, um trovão provoca um tropel dos cavalos do inimigo, você fica cega de repente. Cale riu de novo. — Retiro o que eu disse. Você é mais esperta do que eu. — Não é uma questão de ser esperta. Eu não deixo passar nada, só isso. Como todos, vejo o que quero ver... só que eu sei que sou assim, então às vezes consigo me obrigar a enxergar as coisas como elas são. Mas só às vezes. Isso seria muita esperteza... ver as coisas como elas são o tempo todo. Mas ela estava enganada quanto a isso, como o tempo revelaria. E assim, aconteceu tudo o que era de se esperar. Ele contou sobre o Santuário e sua vida ali (nem tudo, é claro, certas coisas é melhor não dizer) e ela quase chegou às lágrimas ouvindo-o falar de como tinha sofrido ali, o que foi, naturalmente, muito satisfatório para Cale. Eles conversavam, passeavam e se beijavam — algo que, para surpresa dela, ele fazia misteriosamente bem. Para grande escândalo de seus serviçais, ela o levou para a casinha que alugara perto do Boundary Park e — com um pouco de culpa, ainda que não muita —
passou várias horas fazendo poucas-vergonhas com o corpo de seu jovem amante. Artemisia reconhecia, até certo ponto, que ele tinha muito mais familiaridade com o modo de tocá-la do que sua idade e seu histórico sugeririam. Suas desconfianças foram relegadas ao lugar de todas as desconfianças desconfortáveis — o fundo de sua mente. Ali, se juntaram a todas as suas outras ansiedades e vergonhas, incluindo aquela da qual ela se sentia mais culpada: que a empolgava profundamente a certeza que Cale tinha de que nenhum acordo manteria os Redentores do outro lado do Mississippi em troca de dinheiro e de mais concessões de território. Eles viriam e nada iria detê-los, a não ser a força. A constatação de que ela desejava uma guerra a horrorizava, porque ela sabia muito bem que o confronto traria dor terrível e sofrimento em toda parte, especialmente àqueles para quem havia construído seu exército particular para proteger. Embora fossem durões, os fazendeiros e carpinteiros que formavam sua milícia estavam interessados em vacas e cevada, não na guerra. Aquilo em que ela era mais talentosa, que mais a empolgava, que mais a apaixonava, era um exercício sangrento e sofrido, embora não fosse isso que a levasse a lutar, mas o prazer que ela sentia em tentar controlar o incontrolável. Existem alguns homens e ao menos uma mulher para os quais a vida não tem sentido a menos que o maior prêmio de todos, a própria vida, esteja em jogo. Para que servia o xadrez, ela costumava reclamar com o marido quando ele estava vivo? Ele passava horas diante do tabuleiro e dizia que era um jogo tão cheio de armadilhas e sutilezas que espelhava os níveis mais profundos e complexos da mente humana. — Nem fodendo! — disse ela. Tinha escutado a expressão no domingo no campo de manobras e não tinha consciência completa da força de sua vulgaridade. “Fodendo” não era uma palavra que uma margravina deveria usar com um margrave, e certamente não falando de xadrez. De olhos arregalados, surpreso com sua exclamação, ele fingira apenas uma incerteza comedida. — Suas deliciosas razões, minha cara? — Não tenho nenhuma razão deliciosa. É que o xadrez tem regras, e a vida não tem regras. Você não pode queimar o bispo do adversário, não pode apunhalá-lo, nem derramar um balde d’água no tabuleiro ou jogar sem comer por três dias. Por mais esperto que precise ser para jogar, é só um jogo idiota. Combater numa batalha — disse ela — requer uma mente cem vezes melhor do que qualquer porcaria de jogo. — Ela estava sendo tão grosseira porque se sentia culpada por querer ir para a guerra. Seu marido pensou nisso por um momento. — Vamos torcer, querida, para que em algum momento do futuro você tenha a oportunidade de massacrar nossos amigos e vizinhos em número suficiente para satisfazer sua ambição. Ela ficou sem falar com ele por três dias — mas, estranhamente, não foi ele que cedeu. Secretamente, foi um alívio, quando chegou o momento de jogar de verdade com a morte e a destruição, ela não ter absolutamente nenhuma escolha senão fazer o que ela mais queria fazer no mundo. A natureza radical dos Redentores aliviou-lhe a consciência. Na conferência de guerra na Leeds Espanhola — Cale desdenhava o evento tanto quanto estava desesperado para participar dele — a exigência repentina de uma ação decisiva partiu
do próprio rei. Era intolerável, ele disse, ter perdido tanto para os Redentores, e ele não iria tolerar isso e muito menos seu povo, e sinceramente acreditava que seus aliados iriam assumir a mesma postura. Sinceramente, ele não acreditava em nada disso. Era verdade, declarou Vipond mais tarde, que a sinceridade de qualquer coisa dita em voz alta era inversamente proporcional ao número de pessoas que a ouviam. Como quase todos os reis, em outro mundo Zog teria sido um criador de gado incompetente, um cultivador de nabos acima da média ou um açougueiro passável. O mesmo se aplicaria a muitos dos grandes e bons que o rodeavam. É por isso que o melhor retrato do mundo é um hospício. “Se você soubesse”, IdrisPukke gostava de dizer para Cale, “com quanta estupidez o mundo é governado.” A última coisa que soubemos a respeito da grande tempestade sobre as florestas do Brasil foi que ela havia passado o ápice de sua inimaginável potência apenas por uma fração. Agora, meses depois, ela havia dispersado essa potência num raio de 8 mil quilômetros em todas as direções, para o norte, o sul, o leste e o oeste. Descendo do céu morno sobre a Ponte Aleatoire, que cruza o Rio Imprevu, um grande tributário do Mississippi, ela se aproximava de uma grande buddleja, tão violeta quanto a mitra de um bispo Antagonista, coberta de borboletas que se alimentavam do seu néctar. Ao tocar no arbusto, o último hausto de vento da grande tempestade brasileira finalmente morreu — mas não antes de erguer muito levemente as asas de uma das borboletas, a fazendo voar. O movimento da borboleta azul chamou a atenção de uma andorinha passageira, que mergulhou e num instante a apanhou no bico, assustando a massa do resto das borboletas, que revoou às centenas como uma nuvem tempestuosa e assustou um cavalo que passava puxando uma carroça mal carregada com pedras para o conserto de um muro. O cavalo empinou, virando a carroça de lado e jogando as pedras no Rio Imprevu lá embaixo. Alguns palavrões agrícolas se seguiram a esse acidente, e um pontapé para o azarado cavalo, mas somente algumas pedras se perderam, e nem valiam o esforço de recuperá-las. Assim, a roda foi recolocada na carroça, o cavalo ganhou outro pontapé, e foi só. No rio lá embaixo, o monte de pedras, não especialmente grande, fez a correnteza fluir mais rapidamente pelos lados e apontou o fluxo mais rápido diretamente para a raiz de um dos mais velhos e maiores carvalhos às margens do grande tributário. Naquele mesmo momento, Zog estava propondo que um exército das melhores tropas suíças e de seus aliados deveria ser mandado pela Passagem Schallenberg para lutar com o exército Redentor nas planícies da Mittelland. — Não podemos fazer nada menos do que isso. Ao apresentar este plano, dedico-me novamente ao serviço deste grande país e desta grande aliança. — O orador agradeceu o rei e declarou lacrimosamente: — Vossa Majestade se tornou para nós todos um rei caleidoscópico de nossa caleidoscópica aliança. — Houve fortes aplausos. O orador, então, abriu o plano do rei para discussão com os membros ali reunidos do Eixo — o que equivale a dizer que ele abriu o plano do rei para que eles concordassem, um consenso que já tinha sido garantido por persuasão e ameaças de Bose Ikard, apesar de ele
se opor profundamente a qualquer coisa do tipo. Como não tinha conseguido convencer o rei a ser contra a luta, ele sabia que precisava compensar por ter discordado dele sendo agora profundamente entusiasmado em seu favor. Porém, ele havia se esquecido de falar com Artemisia, pois não a considerava importante o suficiente. Durante 20 minutos, ela ouviu vários discursos em resposta, todos apoiando o rei e todos praticamente iguais. Artemisia tentou chamar a atenção do orador da reunião, mas ele se recusava a reconhecê-la. Por fim, ela simplesmente se levantou, quando um dos discursos de apoio previamente combinados terminou, e começou a falar. — Com todo respeito a Vossa Majestade, embora eu entenda sua impaciência em enfrentar os Redentores, o que está sugerindo é muito arriscado. A única força que impediu os Redentores de entrarem nesta sala não foi nenhum exército, e sim a existência do Mississippi. Se não fosse por um quilômetro e meio de água, nem estaríamos reunidos conversando agora. Essa verdade simples e direta causou um grande e manifesto ressentimento: “Exército”; “Nobres tradições”; “Heroísmo”; “Bravos rapazes”; “Nossos heróis”; “Coragem”; “Inigualáveis”. — Não estou questionando a coragem de ninguém — gritou ela por cima da algazarra de objeções. — Mas os Redentores estão presos onde estão, no Norte, até o início do ano que vem. Eles precisam construir um número incontável de barcos e treinar marinheiros suficientes para cruzar o rio com eles. Posso dizer isso porque sei que leva anos aprender a navegar nas correntezas do Mississippi. Agora é hora de reconstruir o que restou dos exércitos que conseguiram atravessá-lo. — Era um lembrete, um tanto sutil demais, de que tantos ainda estavam vivos por causa dela. — Nós precisamos mandar nossas melhores tropas do Norte para retreinar as que foram resgatadas e usar o maior aliado que temos: o tamanho e as correntezas do Mississippi. Enormes uivos de protesto se ergueram nesse instante, e o orador precisou gritar até se enfurecer para pôr ordem na reunião. — Agradecemos à margravina de Halicarnassus por suas opiniões francas, mas ela, compreensivelmente, não deve saber que neste lugar não se fala com desdém dos bravos heróis que fizeram o sacrifício definitivo pela segurança dos outros. — Sim! Bravo! Muito bem! Apoiado! E foi isso. — Perdoe-me a franqueza, margravina — pediu Ikard em seu escritório, meia hora mais tarde —, mas você se comportou como uma completa beócia. — Infelizmente, não estou familiarizada com o termo. Suponho que não seja um elogio. — Não, não é. Sejam quais forem os méritos das suas opiniões, e sei que há outras pessoas de reputação que concordam com você, você impossibilitou qualquer chance de influenciar as coisas com sua ridícula atitude desafiadora. Artemisia fez um breve som estalando a língua contra os dentes da frente. — Devo interpretar isso como discordância? — perguntou Ikard. — Você não se deu ao trabalho de pedir minha opinião antes, que motivo eu poderia ter para acreditar que você teria me ouvido se eu ficasse de boca fechada? — O rei — mentiu o chanceler —, até agora, falou de você com respeito e admiração.
Agora sua posição aos olhos dele é precária como a de um pingente de gelo na barba de um holandês. — Então — prosseguiu ela — eu devo ser como Cassandra, fadada a sempre dizer a verdade sem nunca ter crédito. — Você se superestima, margravina. Sempre entendi que a história de Cassandra não demonstrava que ela fosse tão esperta, mas que era tola: não adianta contar a verdade às pessoas quando é completamente improvável que elas escutem. Você precisa esperar até que estejam prontas. Essa é a moral da história. Aceite a palavra de alguém que sabe. O caminho que você sugeriu, sejam quais forem seus méritos militares, sob todos os aspectos é social e politicamente impossível. O exército não irá aceitar esse abuso, a aristocracia não o suportará, e as pessoas cujos filhos e maridos morreram aos milhares não vão nem aceitá-lo, nem suportá-lo. Você deve entender alguma coisa de guerra, mas não entende nada de política. Algo precisa ser feito. Então a dispensaram. Passaram-se dez minutos antes que lhe ocorresse uma boa resposta — mas o jovem para o qual ela contou da descompostura que levou não precisava saber dessa demora. — E o que você respondeu? — perguntou Cale. — Eu disse: infelizmente para o senhor, chanceler, os fatos estão pouco se lixando para a política. Cale riu. — Ótima resposta. — Ela ficou um pouco envergonhada, mas não muito. Para Cale e Artemisia, esperar o porco passar pela cobra era, sob certos aspectos, uma experiência frustrante, e sob outros, uma delícia. Grandes acontecimentos que eles queriam influenciar estavam acontecendo sem eles, mas os dois tinham incontáveis horas um para o outro, e embora falassem mais do que dessem prazer, não havia muito mais. Se o Eixo fracassasse (e o que impediria isso?), em breve Cale poderia estar no alto de uma fogueira grande o suficiente para ser vista da lua. Por outro lado, nem Henri Embromador nem Kleist estavam recuperados o suficiente para aguentarem passar pelas montanhas. Além disso, ele estava acostumado a esperar coisas indizivelmente pavorosas, acostumou-se a isso a vida inteira; mas o prazer de estar com a mulher agora adormecida ao seu lado era algo raro, e ele sabia disso. Aquele era o momento para garotas e bolo. Havia um aspecto sob o qual ele estava envolvido no novo plano de ataque aos Redentores. Ele tinha jurado segredo a Vipond, que se havia arriscado muito lhe mostrando uma cópia dos planos traçados por Conn Materazzi para o avanço através de Schallenberg e o ataque aos Redentores. Era uma confiança que Cale logo traiu, discutindo em detalhes com Artemisia o que vira. Os sentimentos de Cale sobre o plano eram curiosamente conflitantes. Não era nada ruim. No lugar de Conn, ele não teria feito muito diferente. No fim das contas, ele não era só um prodígio covarde e privilegiado. Aparentemente, Conn tinha manifestado solidariedade às objeções de Artemisia à ideia do rei (demonstrando ainda mais seu irritante bom senso), mas Cale entendeu que ele não tinha escolha senão atacar, se quisesse continuar sendo comandante em chefe, e portanto se esforçara ao máximo para bolar um plano decente. Ainda
assim, era arriscado demais. — O problema das batalhas decisivas — disse IdrisPukke, não pela primeira vez — é que elas decidem as coisas. — Se você tiver oportunidade — disse Cale —, é bom você sugerir que ele destaque mais alguns milhares de homens adicionais para ficarem em Schallenberg, só para o caso de a coisa ficar feia. Se ele perder, só vai restar isso entre nós e os Redentores, o que vai prevenir muito grito e correria. Mais tarde, voltando para a casa de Artemisia, ele parou para visitar o irmão de Arbell, Simon. Era uma visita que Cale vinha evitando, não por falta de afeição — ele havia salvado o garoto do isolamento e desprezo de ser incapaz de ouvir ou falar — mas porque ao mesmo tempo temia e — horrivelmente, odiosamente — desejava desesperadamente ver a irmã dele. Cale passou várias horas falando com Simon por meio de seu relutante e desagradável auxiliar, Koolhaus. Koolhaus era um funcionário público de baixo escalão numa Memphis obcecada com hierarquia, não por falta de capacidade, mas porque seu pai era um merdapis, um intocável cuja função era retirar os excrementos e a urina dos palácios dos Materazzi. Koolhaus era composto por duas medidas de ressentimento e três de inteligência. Foi ele quem, em questão de dias, desenvolveu uma linguagem expressiva a partir da curta lista de sinais fornecida por Cale, que era baseada no simples sistema de sinais que os Redentores usavam para comandar um ataque quando era preciso fazer silêncio. Cale e Henri Embromador haviam desenvolvido um pouco a linguagem para poder trocar comentários ofensivos sobre os monges que os rodeavam durante as missas solenes de três horas no Santuário, tediosas de explodir o cérebro. — Gostaria de pegar Koolhaus emprestado por uma hora ao dia, mais ou menos. A tentativa de desconcertar Koolhaus sugerindo que ele era uma espécie de utensílio doméstico útil era deliberada. Chateá-lo era algo que sempre divertia os três garotos (“Se você fosse um ovo, Koolhaus, ia preferir ser frito ou fervido?”). Eles poderiam ter sido amigos e aliados — e deveriam ser — mas não eram. Garotos são assim mesmo. Simon podia ver que seu intérprete tinha ficado irritado — não precisava muito. O relacionamento de patrão e serviçal dos dois era complicado, o equilíbrio de poder indo e vindo entre a dependência que Simon tinha de Koolhaus para fazer contato com o mundo — da qual muitas vezes o primeiro se ressentia — e o sentimento totalmente justificado de Koolhaus de que deveria aspirar a coisas maiores do que ser um mero boneco de ventríloquo. A oferta de mais dinheiro amolecia Koolhaus, mas só temporariamente. — Amanhã às 6 horas, então — disse Cale e abriu caminho através dos corredores de pédireito baixo onde ele tinha se desgraçado tanto em sua última visita sem ser convidado. Que confusão horrorosa de sentimentos se agitava em sua alma; terror e esperança, esperança e terror. E então — e ele poderia ter repetido a mesma visita 50 vezes e os dois jamais teriam se encontrado — ela estava diante dele, indo levar seu filho para ver Simon, que adorava o bebê porque este era incapaz de temer Simon ou sentir pena dele. O coração de Cale deu um tranco no peito como se quisesse se desprender do corpo. Por um momento, os dois se encararam — o mar turbulento do Cabo da Ira não chegava nem perto. Não era amor nem
ódio, mas uma emoção que era como uma mula brava, feia e escrachadamente viva. O bebê agitava a mãozinha alegremente, e então tascou de repente a boca na bochecha da mãe e começou a sugá-la com grande ruído. — Isso é saudável pra ele? — perguntou Cale. — Você pode ser contagiosa. — Veio nos ameaçar de novo? — Ela também estava chocada com a mudança em Cale, ossudo quando já fora musculoso, com olheiras que boa noite de sono alguma jamais apagaria. — Você se lembra de todos os meus pecados que foram apenas palavras e se esquece de tudo o que fiz para manter você segura a qualquer custo. Você ainda está viva por minha causa... agora os cachorros latem para mim na rua por sua causa. Ah, autopiedade e acusação, uma mistura para ganhar o coração de qualquer mulher. Mas ele não conseguia evitar. — Abl blab abl baddle de dah — disse o bebê, quase furando o olho da mãe. — Shshshsh. — Ela o ajeitou no colo e começou a balançá-lo de um lado para o outro. — Se houvesse qualquer coisa boa dentro de você, nos deixaria em paz agora. — Ele parece bem contente. — Porque é um bebê, e brincaria até com uma cobra, se eu deixasse. — Está falando de mim... é isso que eu sou pra você? — Você está me assustando... me deixe passar. Mas ele não conseguia. Percebia a inutilidade de falar com ela, mas não conseguia parar. Parte dele queria pedir desculpas e outra parte estava furiosa com ele mesmo por sentir isso. Não havia do que se desculpar — sua alma exigia que ela se jogasse no chão e, chorando, implorasse seu completamente imerecido perdão. Mas nem isso teria sido suficiente, ela precisaria passar o resto da vida de joelhos para impedir o coração dele de torturá-lo com o que ela fizera. Mas nem isso. — O homem para o qual você me vendeu me contou que ele já tinha me comprado antes... por seis centavos. — Então seu preço aumentou, certo? Com raiva e sentindo-se culpada, e portanto com mais raiva, era imprudente dizer algo assim para ele. Mas, como Cale, ela tinha predileção por dizer a última palavra. Por mais que a presença dela fosse como um veneno, ele não suportaria vê-la ir embora. Mas não conseguia pensar em mais nada para dizer. Ela abriu caminho, com o bebê do outro lado do corpo, longe dele. Algo escorria dentro do peito de Cale: óleo de vitríolo. Ácido era suave perto daquilo. — Yaaar! Blah baa! Pluh! — gritava o bebê.
19 A HISTÓRIA NOS ENSINA QUE O NÚMERO DE SAÍDAS MILITARES TRIUNFANTES DE GRANDES CIDADES É APROXIMADAMENTE O DOBRO DO NÚMERO DE VOLTAS TRIUNFANTES. O ÊXODO DA LEEDS ESPANHOLA FOI SUPERIOR À MAIORIA EM NÚMERO DE TROMBETAS, FILEIRAS DE TROPAS BEM TREINADAS, MULTIDÕES EM POLVOROSA E MOÇAS EMOCIONADAS GRITANDO ADEUSES PARA SEUS HOMENS INDESCRITIVELMENTE ALTIVOS. E ENTÃO HAVIA OS CAVALOS — O PODER E A GLÓRIA, OS ELMOS E AS CORES AZUL, AMARELO E VERMELHO — E OS HOMENS LINDOS QUE OS CAVALGAVAM. HAVIA CRIANÇAS PRESENTES QUE LEMBRARIAM O ESPLENDOR, O BARULHO DO METAL NAS PEDRAS E OS GRITOS DE “VIVA” ATÉ MORREREM. A vinte minutos da cidade, todos tiraram as armaduras e a maioria dos cavalos foi enviada de volta aos estábulos. Não só os bichos consumiam forragem com um apetite de urso, mas Conn Materazzi não iria permitir que os arqueiros Redentores destruíssem uma carga de cavalaria a 300 metros de distância, como fizeram em Silbury Hill. A cavalaria era útil sobretudo para coletar informações antes de uma batalha e fugir depois, se tudo desse errado. Embora a vaidade e o orgulho de Conn tivessem cedido lugar, em grande parte, a um juízo notavelmente maduro, ele ainda tinha um ponto cego, compreensivelmente, com relação a Thomas Cale. Embora Cale não tivesse nenhuma intenção de lutar numa batalha na qual não estivesse no comando, ele ficou furioso quando lhe disseram que não poderia nem chegar perto do exército com seus Purgadores. Até a Artemisia, culpada por associação, foi negado um papel na batalha, com a alegação de que suas tropas eram irregulares e inadequadas para o combate corpo a corpo. Seria permitido a ela, de qualquer forma, comandar os aproximadamente sessenta batedores a cavalo que a haviam ajudado a retardar o avanço dos Redentores através de Halicarnassus. Artemisia deixou Cale sofrer por vários dias e então sugeriu que ele a acompanhasse, salientando que, embora não pudesse lutar, ele poderia observar. — Não sei se consigo — admitiu Cale. — Não sei se tenho forças nem para observar. — Ele não tinha lhe contado todos os detalhes de sua doença, mas era bastante óbvio que havia algo de muito errado, se ele não queria dar explicações. Ele dizia que estava sofrendo de malária contraída nas Terras Crestadas. Sabia-se bem que os sintomas eram vagos e recorrentes. Por que ela não iria acreditar? — Tente ir por alguns dias. Você sempre pode voltar. *** DEPOIS DE SEIS DIAS DE MARCHA PARA A FRONTEIRA, CONN FOI ALCANÇADO PELA NOTÍCIA DE QUE UM EXÉRCITO REDENTOR DE CERCA DE 35 MIL HOMENS ESTAVA RUMANDO PARA A MITTELLAND EM DUAS DIVISÕES DE 25 E 10 MIL, RESPECTIVAMENTE, ESTA ÚLTIMA VINDO ATRAVÉS DO VAUD, PROVAVELMENTE NUMA TENTATIVA DE ATACAR O EXÉRCITO DE CONN PELA RETAGUARDA. POR UM ACASO INFELIZ, MAS NEM UM POUCO INCOMUM, PARTE DESSA INFORMAÇÃO
ESTAVA ERRADA. O exército Redentor comandado por Santos Hall havia, ponderando, decidido avançar somente para tomar as terras altas perto da aldeia de Bex, e, também ponderando, dividir o exército para que pudesse se mover mais rapidamente no caminho. Transferir 35 mil homens com todas as suas carroças e bagagens iria gerar facilmente uma fila de 3 quilômetros de largura por 30 de comprimento. A prioridade, no caso, era a velocidade necessária para alcançar a melhor posição perto de Bex. Mas quando os Redentores chegaram, um Conn satisfeito já estava solidamente postado diante de Bex, protegido à esquerda pelo Rio Gar e à direita por uma densa floresta, cheia de dilacerantes roseiras-bravas da grossura de um dedo e espinheiros afiados conhecidos como dentes-de-cão. Isso dava a Conn um espaço de 1,5 quilômetro de largura no qual encaixar 32 mil homens. Pouco antes do anoitecer, os Redentores começaram a se instalar numa posição que eles perceberam ser, na verdade, a segunda melhor, o que era decepcionante. Entre os dois exércitos havia um vale, com uma descida muito suave abaixo da linha de frente dos Redentores e uma subida muito íngreme até o exército suíço. Conn tinha ganhado a primeira batalha: ele controlava a encosta mais íngreme e tinha arqueiros quase tão bons quanto os Redentores, e em maior número. No dia seguinte, a batalha iria começar com um combate de 40 minutos entre os dois. Nesse tempo, mais de meio milhão de flechas seriam trocadas, chegando a 240 quilômetros por hora, 50 toneladas de setas disparadas contra fileiras cerradas. Um dos dois lados não seria capaz de suportar essa chuva assassina e se veria obrigado a atacar. O lado que fizesse isso provavelmente iria perder a batalha, pois a defesa é muito mais fácil do que o ataque. As perspectivas dos Redentores eram muito piores porque eles precisariam avançar subindo uma encosta íngreme, tomando flechadas e com menos homens quando chegassem ao topo, por causa do número de mortos e feridos. Mais alarmante do que isso era que os 10 mil homens que Santos Hall tinha separado do exército principal para dar a volta nas tropas do Eixo se perderam, e agora vagavam pela zona rural suíça. Durante a noite, houve uma mudança que poderia deixar a situação melhor para os Redentores ou muito pior, embora fosse algo que nenhum dos dois lados pudesse evitar. Era uma característica do clima local, graças ao efeito das montanhas próximas, que o tempo podia mudar de forma dramática. O sol anormalmente tórrido, naquele dia, surgiu num céu sem nuvens, o que à noite permitiu que o calor escapasse para o alto em minutos. Por sua vez, o ar frio das montanhas começou a fluir para o vale, de modo que a temperatura caiu rapidamente para o ponto de congelamento em poucas horas e uma espessa geada cobriu tudo. Às duas da manhã, o chão parecia de ferro. Mas então o vento aumentou. Soprava sobre o campo de batalha primeiro num sentido, depois no outro, depois virava de novo. Conn e o Pequeno Fauconberg, que não media mais do que 1,60 metro, estavam de pé no frio massacrante, no alto da colina perto de Bex, e olhavam por cima de suas fogueiras ineficazes para as fogueiras igualmente ineficazes dos Redentores, que não tinham nem o abrigo da floresta para protegê-los do vento gelado. — Vai ser estranho se o vento decidir a batalha — disse Conn. — Não há nada que você possa fazer. Mas ele pode parar de vez agora ou soprar na cara
deles, e aí vai ser melhor ainda pra nós. Um espião a cavalo chegou e correu até os dois homens, escorregando no chão gelado e caindo pesadamente sobre sua pobre bunda. Constrangido e com dor, ele ficou de pé. — Nós avistamos o resto dos Redentores do outro lado do Vaud, indo na direção errada. Agora viraram para cá, mas não vão chegar antes do meio da tarde. — Deveríamos nos dividir e ir ao encontro deles? — disse Fauconberg. — Não precisamos detê-los, só retardá-los. Três mil homens poderiam mantê-los longe até que não tivessem mais nenhuma utilidade aqui. Conn pensou a respeito. — Aquele tonto do Cale está no acampamento? — Fauconberg continuou. — Poderíamos mandá-lo pra espremê-los em Bagpuize... eles precisam passar por lá. A morte gloriosa dele seria útil pra muita gente. — Ele não está aqui. É uma ótima ideia, Fauconberg, mas vamos ficar. Triplique o número de espiões... quero ficar sabendo de cada quilômetro que eles avançarem na nossa direção. Podemos mandar Vennegor ou Waller, se tudo correr bem aqui. — Se o vento soprar daqui pra lá, vamos vencer. — E se não soprar? — perguntou Conn. Conn estava certo em perguntar. Às cinco da manhã, o vento fustigava constantemente seus rostos como o sopro de uma fornalha para forjar gelo. Todas as vantagens conquistadas pela rapidez e esperteza de Conn foram dissipadas por um vento frio da pior geada em trinta anos. — Eles não vão esperar — disse o Pequeno Fauconberg. — Se o vento mudou uma vez, pode mudar duas. Vão aproveitar a vantagem enquanto é tempo. Puta que pariu, que falta de sorte! Não havia nada que Conn pudesse dizer para melhorar a análise de Fauconberg, por isso ele simplesmente ordenou que as tropas se alinhassem. Com um vento tão cortante, Cale costumava mandar os homens da linha de frente trocar de posição com os do fundo, sete fileiras atrás, a cada 10 minutos. O que pode parecer uma manobra complicada era bastante simples: apesar de todos os heróis românticos das histórias épicas de guerra nos folhetins de Genebra, Joannesburgo e Leeds Espanhola, nunca existiu um homem capaz de lutar dez, cinco ou mesmo duas horas sem parar. Os soldados formam várias fileiras para poder substituir os homens da frente não só quando estes morrem ou se ferem, mas sobretudo para que eles possam recuperar o fôlego e depois render seus camaradas novamente. Dependendo das circunstâncias, na batalha corpo a corpo, um homem não pode lutar por mais do que 10 minutos a cada hora. Agora, como os pinguins imperadores do Polo Norte, eles patinavam lado a lado na chuva gelada. O Pequeno Fauconberg estava certo. Santos Hall mandou seus arqueiros se adiantarem. O chão estava tão duro que eles não conseguiam nem pegar uma pitada de terra e comer para deixar claro a Deus que estavam dispostos a ser enterrados em Seu nome. Isso deixou vários Redentores histéricos, de tanto que temiam morrer em pecado, ainda que a morte em si os assustasse pouco ou nada. Um Santos Hall exasperado precisou mandar padres não militantes
percorrer as fileiras expedindo indulgências, o que levou 10 minutos. Uma preocupação mais prática era que a terra estava tão dura que eles não conseguiam espetar as flechas no chão para que ficassem mais à mão. Depois que o perdão do pecado de omissão os acalmou, os arqueiros Redentores puseram-se em posição para atacar. Ao fazer isso, começaram a gritar com seus inimigos. — Baaaa! Baaaa! Baaaa! Baaaa! O vento gelado soprava o som pelos 400 metros que os separavam. — Isso não são ovelhas? — perguntou o Pequeno Fauconberg. — Por que estão imitando ovelhas? — Baaaa! Baaaa! Baaaa! — O som dos gritos aumentava e diminuía ao ritmo do vento. — Estão dizendo que somos ovelhas no matadouro — disse Conn. — Estão? — perguntou Fauconberg. — Distribua talos de menta para os homens; quando os encontrarmos, vamos enfiar no cu deles. — Não deveria ser “cus”, Fauconberg? — disse um dos cavaleiros armados logo atrás. — Feche essa matraca, Rutland, senão vou usar você pra demonstrar como se faz. Todos riram muito. — Se vai enfiar alguma coisa no meu rabo — disse Rutland —, prefiro que seja uma pimenta bem ardida. Talvez ela me esquente um pouco nesta porra de vento. Começou, então, e em poucos segundos a primeira etapa da batalha estava perdida. O vento contra eles soprava com tanta força que as flechas suíças perdiam 50 metros no alcance e as do inimigo ganhavam os 50 metros perdidos. Era a mesma coisa que combater usando palavras duras. Pouco importava que a chuva espessa e gelada os cegasse e que a toda hora perdessem seus oponentes de vista, ora enxergando pouco, ora ficando completamente cegos com a torrencial mistura de neve e chuva, porque todos os seus tiros eram curtos demais. Já a primeira saraivada dos Redentores não caía do céu, mas era empurrada perversamente pelo vento contra joelhos e peitos, bocas e narizes com tamanha velocidade que nem o aço da melhor qualidade podia defendê-los do impacto. Rutland, varado pelo ouvido, não se preocupava mais com o frio. Havia 10 mil arqueiros Redentores atirando, num ritmo pouco abaixo do normal de umas sete flechas por minuto, por causa do chão duro. Os 32 mil suíços na encosta mais íngreme eram atingidos por quase 70 mil flechas a cada 60 segundos. Cada uma das flechas pesava cem gramas e, com o vento ajudando, a quase cem metros por segundo. Nada voltava para os Redentores para assustá-los ou feri-los. Depois de 20 minutos, mais de um milhão de flechas caíram num espaço de 800 metros por dez. Ao todo, 158 toneladas de chuva maligna se precipitaram sobre os homens, todos sem escudos e mais da metade sem nada melhor como armadura do que um casaco pesado com discos de metal costurados nele. Bater em retirada para sair do alcance seria a derrota instantânea — um exército não pode virar de costas e continuar vivo — e ficar era impossível, mas avançar significava muito provavelmente perder a batalha. — Precisamos atacar! — gritou Fauconberg por cima do tamborilar hediondo do ferro sobre o aço. PINGAPINGAPINGAPINGAPINGAPINGAPINGAPING!
O barulho se misturava com gritos de dor e urros dos sargentos tentando impedir que seus homens saíssem correndo. Poucos morrem bem ou rapidamente num campo de batalha. Chocado e mais assombrado pelo colapso de seus planos inteligentes e maravilhosamente executados, Conn olhou para Fauconberg. — Sim, concordo. Mesmo a contragosto, Fauconberg, de 55 anos de idade e mal-humorado, tão displicente quanto qualquer mercenário na ativa há trinta anos, ficou impressionado com Conn: Nada mau, filho, num merdeiro destes. Quantos entre nós têm uma hora de brilho? O momento em que tudo aquilo para que você foi feito, tudo o que você se tornou, chega; o grande acontecimento que escancara você e grita: “Isto é pra você.” Com seus planos tão elaborados literalmente jogados ao vento, Conn Materazzi concentrou suas forças e explodiu. Ele gritou a ordem para avançar e seu tom de poder e convicção foi sentido por cada um dos sargentos ao ecoar pela fileira. O grande exército fustigado pela tempestade de setas avançou para retomar o controle. Um exército se movimentando com cuidado para manter a formação leva mais de três minutos para percorrer 400 metros — uma eternidade debaixo de flechas perfurando pés, joelhos, bocas e gargantas. Mas agora a avalanche de flechas precisaria acabar, porque os suíços estavam se aproximando. Os arqueiros Redentores precisavam voltar e recuar para trás da infantaria imóvel atrás deles, que agora teria que barrar no combate corpo a corpo o caminho dos suíços em marcha. As flechas pararam de cair como um aguaceiro repentino que acaba de uma hora para a outra. Mas o vento de verdade ficava mais forte à medida que eles avançavam, a chuva mais cegante. Com os dois lados se movendo na tempestade, a fraca visibilidade e a confusão dos movimentos de tantos homens com tamanha rapidez fizeram com que o lado esquerdo da linha de ataque de Conn e o lado direito dos Redentores se misturassem ao se encontrar. Percebendo o problema, os centuriões e sargentos dos dois lados mandaram reservas para selar os flancos e evitar que os oponentes dessem a volta para atacá-los por trás. Mas esses empurrões desiguais começaram a inclinar a linha de batalha, de modo que ela começou a rodar lentamente no sentido anti-horário. Medindo quase dois metros, usando uma armadura que custou o preço de uma mansão das boas, Conn era o homem observado por todos, tanto os do Eixo como os Redentores. Ele também era o alvo destes últimos. Arqueiros Redentores de elite, alguns escondidos nas árvores de um dos lados do campo de batalha, atiravam nele sem parar — mas mesmo quando atingiam o alvo, a fortuna gasta em seu fardamento mostrava que, em matéria de armaduras, você recebe pelo que paga. As flechas ricocheteavam, inofensivas, enquanto ele andava por trás da linha de frente, gritando e adiantando-se. Como um enorme inseto elegante, dourado e prateado, ele perfurava, esmagava e socava seus oponentes, cujas armaduras ele parecia abrir como se fossem feitas de lata. Havia poucas espadas ali — Conn preferia a terrível machadinha para lutar naquele aperto, homens tentando atingir uns aos outros com menos de um metro de cada lado. A machadinha era uma arma de bandido usada por cavalheiros. Com pouco mais de um
metro de comprimento, era martelo, machado, taco e lança. De todas as armas assassinas, era a mais honesta, porque qualquer um conseguia ver para que servia só de olhar para ela. Poetas podem tagarelar sobre espadas mágicas ou lanças sagradas, mas nenhum deles jamais tinha usado a machadinha para simbolizar algo: ela era feita para esmagar e rachar e não fingia ser outra coisa. Em períodos de 10 minutos, Conn tirava a vida de todos que se aproximavam dele: a brutalidade nunca foi tão graciosa, o lascar de ossos, tão habilidoso, o estripar e esmagar da carne, tão gentil; seu alcance, o maior, seu coração, o mais forte, músculos e tendões unidos em sua feia perícia e linda violência. A algumas centenas de metros dali, em silêncio nas árvores, Cale observava Conn lutando como um anjo e invejava a sua força. Mas o admirava também. Ele era um espetáculo ali, em meio ao sangue e ao caos. — Precisamos ir embora — sussurrou Artemisia, tão alto quanto se pode sussurrar. Ela estava ao pé da árvore com dois dos seus robustos soldados. Recusara-se a subir com Cale. — O que foi? — perguntou ele. — Ficou preocupada com suas unhas? — Os Batedores Suíços estão vindo para derrubar os arqueiros. Eles não vão saber quem somos... é perigoso demais. Precisamos ir embora. Cale já havia descido quase antes que ela terminasse de falar, ofegante e suando de forma nada saudável. Eles se afastaram, mas não rapidamente; roseiras-bravas demais com espinhos afiados. Tomando cuidado com os espinhos dos dentes-de-cão, abriram caminho até uma clareira. A 10 metros dali, alguém fez o mesmo. Quatro Redentores, os arqueiros que os Batedores estavam procurando. Ninguém fez nada. Ninguém se mexeu. Durante anos, Bosco tinha feito testes com Cale nos quais ele se deparava com algo completamente inesperado e só tinha alguns segundos para resolver o problema antes do soco na nuca que se seguiria se ele fracassasse. Para piorar as coisas, o castigo nem sempre era imediato; às vezes o golpe o atingia algumas horas ou um dia ou uma semana depois. Isso era para ensiná-lo a levar as coisas em consideração antes de agir, independente de quão imediato fosse o perigo. Quatro Redentores contra quatro. Artemisia seria inútil — os dois guardas que a acompanhavam ajudariam, mas não eram páreo. Muito menos Cale. Dar as costas e fugir? Não através dos espinheiros. Enfrentar os Redentores? Sem chance. Nunca espere ajuda, Bosco costumava dizer, porque a ajuda nunca vem. Mas veio para Cale nessa ocasião, e na forma da maior maldição de sua vida. Os quatro Redentores se ajoelharam; um deles — o líder, aparentemente — debulhou-se em lágrimas. — Nos disseram — falou ele, batendo no peito três vezes, com remorso terrível — que a Mão Esquerda de Deus estaria olhando por nós. Mas eu não acreditei. Me perdoe. Por sorte, Artemisia e seus guarda-costas não precisavam que ninguém os avisasse para ficarem parados. Os quatro Redentores olhavam para Cale com medo e devoção. Ele ergueu a mão e fez um círculo no ar. Era o sinal da forca, um gesto permitido apenas ao papa. E agora, ao que parecia, também à encarnação da Ira de Deus. Era como se ele tivesse aberto uma porta para o outro mundo, e através dela passasse a graça eterna, derramando-se sobre
os corações dos quatro homens. Cale não disse nada, mas os mandou embora com um gesto e um sorriso gentil. De boca aberta, fulminados pelo amor de Deus, os quatro Redentores se foram. Depois que eles sumiram, ele se virou para Artemisia. — Talvez, no futuro — falou —, você não irá retrucar tanto. — Eles acham que você é um deus? — perguntou Artemisia, assombrada. — Isso seria blasfêmia. Acham que sou um dos sentimentos de Deus feito carne. — Sério? — Decepção. E raiva, caso você esteja curiosa. — Isso são dois sentimentos. — Pensei que você não fosse mais retrucar. — Eu não acho que você seja um nada feito carne. Acho que é só um garotinho detestável. — Um garotinho detestável que acaba de salvar a sua vida. — Ele está com raiva de que, o seu Deus? — Ele não é meu Deus. Está com raiva e decepcionado porque enviou Seu filho unigênito para a humanidade e eles o enforcaram. — Dá pra entender o motivo, eu acho. No campo de batalha, a crise seguinte estava se aproximando, mas desta vez para os Redentores. A linha dos Redentores começou a ceder e também a girar cada vez mais rápido no sentido anti-horário, de modo que agora a sua frente andava diagonalmente no campo. Entre a violência abrasadora de Conn impelindo os suíços e seus aliados para a frente enquanto percorria a linha de um lado para o outro e Fauconberg, uns 50 metros mais atrás, dispondo e destacando, atribuindo e consertando as coisas. Mas embora chegassem perto disso, eles não capitularam. Ainda não, pelo menos, mas sem os 10 mil Redentores que não apareceram, era só uma questão de tempo. O que tinha acontecido com os Redentores desaparecidos? Continuavam perdidos. Não estavam longe, a uns 3 quilômetros, mas o campo de batalha era, talvez, do tamanho de quatro das maiores plantações que os locais usavam para cultivar trigo. E o vento terrível que mais cedo tinha favorecido os Redentores de forma tão maravilhosa agora agia contra eles. Os gritos de comando e de agonia, de raiva e de esforço compunham uma barulheira das boas. A apenas 3 quilômetros dali, os Redentores que estavam chegando normalmente seguiriam o som, e foi o que eles fizeram. Mas o vento jogava o barulho para o leste, e seguir o som os levava para longe, não na direção da luta. Agora a linha de frente havia virado, de modo que os Redentores estavam sendo empurrados de volta para a floresta, onde as árvores cerradas e os espinheiros afiados formavam uma barreira através da qual só as primeiras centenas de homens conseguiriam escapar. Para o resto, era como se fosse uma muralha de tijolos. Mas as batalhas têm ciclos como o da respiração. Na sexta hora, algo nos suíços começou a desaparecer, e algo nos Redentores a surgir. Na circulação contínua de combatentes, ninguém deveria lutar por mais de meia hora. Mas a mudança destrói o ritmo do lado que está lutando bem, trazendo, talvez, um novo ímpeto para o lado que está indo mal. Conn tinha
lutado por muito tempo; Fauconberg insistia que ele precisava descansar mais, beber e comer algo. Conn tirou o elmo e, para poder beber, também o colar de metal que protegia sua garganta. Três dos seus amigos ao redor dele, Cosmo Materazzi, Otis Manfredi e Valentine Sforza, fizeram o mesmo. Diria a lenda, depois, que os arqueiros Redentores nas árvores estavam esperando essa chance havia horas. Mas lendas costumam estar erradas, ou certas só em parte. Não havia nada apontado para Conn por assassinos habilidosos, foi só falta de sorte, uma ráfica de poucas flechas perdidas, menos de dez. Porém, três delas atingiram Cosmo no rosto, uma acertou Otis no pescoço e outra penetrou na nuca de Valentine. Amigos de uma vida se foram num minuto. Se Conn antes brilhava, agora ele ardia. A ira atiçou seu talento e o concentrou em quebrar, golpear, amassar e aleijar, de modo que a todo lugar que ele ia, a linha Redentora recuava e mandava a mensagem da pressão como uma magia que se esvaía por toda a fileira, que agora perdia seu ritmo pela segunda vez e começava a falhar novamente, recuando para a floresta e para uma derrota sangrenta. Então, desesperados e em pânico, os 10 mil Redentores desaparecidos, encabeçados pelo Sagrado Comandante Jude Stylites, toparam com a luta que estava quase perdida e se viram, como que por obra da inteligência mais afiada, não só no campo de batalha, mas exatamente no lugar certo e exatamente no momento certo para salvar o dia. O que Stylites, sensatamente, estava tentando fazer era alcançar os Redentores que lutaram o dia todo pela retaguarda, num ponto onde seus homens pudessem ser usados como substitutos para os homens exaustos na linha de frente. Em vez disso, a série de acidentes e o movimento antihorário da linha de combate os levou para o lado da linha suíça, forçando-a a se dobrar em L para não ser pega pela retaguarda. Agora a pressão estava sobre os suíços, e aos poucos os Redentores começaram a se afastar do limite das árvores e da certeza da derrota. Então, no fim da tarde, depois do que quer que seja que controla um campo de batalha ajudar primeiro um lado e depois o outro, a linha suíça se partiu — um homem escorregou, talvez, derrubou seu vizinho ao cair, e este, por sua vez, atrapalhou outro. Talvez um Redentor, com uma explosão tardia de força, tenha se embrenhado naquele vão, e outros, vendo o espaço se abrindo, o seguiram — e assim por um escorregão foi perdida uma batalha, uma guerra, um país, as vidas de milhões. Ou talvez a chegada confusa dos reforços Redentores tenha sido demais para os exaustos suíços, e desde o momento em que eles foram parar exatamente no ponto fraco do Eixo, o desfecho foi decidido. Fosse qual fosse a causa, em minutos a linha do Eixo se desfez, e os poucos que fugiam se tornaram muitos — e vendo-os fugir, os muitos se tornaram a massa. Como um grande edifício cujos alicerces tivessem sido demolidos lentamente no subsolo, o colapso foi grande e repentino. Cara a cara, armadura com armadura, lado a lado, não é fácil matar um inimigo. Talvez apenas 3 ou 4 mil tenham morrido nas sete horas de batalha que precederam o colapso. Foi só então que a carnificina começou.
20 OS SUÍÇOS E SEUS ALIADOS SÓ TINHAM DUAS ROTAS DE FUGA: ENCOSTA ACIMA PELO LADO DE ONDE O ATAQUE HAVIA PARTIDO, OU POR UMA DESCIDA LAMACENTA ATÉ UM GRAMADO CONTIDO NA CURVA DE UM RIO COM POUCO MAIS DE TRÊS METROS DE LARGURA, MAS CAUDALOSO POR TER RECEBIDO A CHUVA DA MONTANHA. NÃO SERIA PIOR SE AQUELE REGATO COM MANIA DE GRANDEZA FOSSE O MISSISSIPPI. HOMENS DE ARMADURA PULAVAM EM SUAS ÁGUAS E ERAM ARRASTADOS PARA O FUNDO PELO PESO. OS SOLDADOS RASOS QUE USAVAM CASACOS GROSSOS LUTAVAM, EXAUSTOS, NA CORRENTEZA, ATRAPALHANDO-SE UNS AOS OUTROS. ESCORREGANDO E CAINDO, DESCOBRIAM QUE A ÁGUA ENCHARCAVA A MISTURA DE ALGODÃO PINTADO À MÃO E DISCOS DE METAL, QUE TAMBÉM OS PUXAVA PARA O FUNDO. Enquanto isso, os Redentores estavam em seus calcanhares, rasgando, cortando e matando. Homens com quem haviam combatido o dia inteiro, sem conseguir machucá-los, agora eram mais fáceis de matar do que um bando de cabras assustadas. Do alto da encosta de 12 metros, os arqueiros Redentores formaram uma fileira, e agora, invulneráveis, lançavam dez flechas por minuto contra os milhares espremidos no espaço de um cercado de fazenda. Eles estavam encurralados não só contra o riacho quase impossível de atravessar, mas também uns contra os outros, à medida que mais fugitivos em pânico e aterrorizados se juntavam ao aperto. Aqueles que perceberam o que estava acontecendo e tentaram fugir por outros caminhos não se saíam melhor. A maioria fugia seguindo o rio, rumo à ponte em Glane, mas era facilmente apanhada pela infantaria montada dos Redentores. Vendo que não conseguiriam chegar à ponte, muitos tentavam atravessar nadando. Mas ali o riacho encorpado era ainda mais fundo, e mais uma vez eles se afogavam aos milhares. Percebendo que não havia como fugir cruzando o rio, aqueles que voltavam eram dizimados nas margens. Uns mil, se tantos, chegaram à ponte e atravessaram com segurança. Teriam morrido quando os Redentores a atravessassem, mas estes foram detidos. Alguém friamente precavido ateou fogo na ponte assim que viu os Redentores chegando. A decisão exigiu frieza, porque mil homens ainda estavam tentando cruzar a ponte quando ela começou a queimar. Com o fogo pela frente e os Redentores por trás, os homens, aterrorizados, não tiveram outra escolha senão tentar e não conseguir nadar na parte mais funda do rio. Diz-se que alguns sobreviveram porque o número de afogados amontoados no rio era tão grande que eles conseguiram andar sobre os corpos e escapar. Outros milhares fugiram encosta acima, para a retaguarda da posição de onde estavam quando o dia começou. Se livrando das armaduras pelo caminho, foram seguidos pelos Redentores montados — estavam tão vulneráveis quanto criancinhas. O céu ficara limpo e a lua mais brilhante começou a surgir e cancelar o auxílio que a escuridão traria. Às seis da manhã, quando o sol nasceu, os mortos estavam espalhados por toda parte, a até 15 quilômetros do local da batalha e por 10 de largura. Mais de cem dos maiores e melhores foram capturados, mas não para pedir resgate ou como reféns úteis. Santos Hall
primeiro descobriu quem eram e que nível de poder tinham e em seguida os executou. Pela segunda vez em pouco mais de um ano, os Redentores haviam destruído uma classe dominante num só dia — e também concluído a maior parte do que haviam começado com a destruição dos Materazzi em Silbury Hill. Mas Conn havia sobrevivido, ainda que Fauconberg precisasse praticamente arrastá-lo até um cavalo para que fugisse. — Não há nada que você possa fazer, a não ser sobreviver — gritou o velho para ele. — Viver é a melhor vingança. A maioria dos heróis morre, a maioria dos heróis fracassa. Nem sempre há uma luz no fim do túnel e o sol não surge por trás de toda nuvem. A vida não é uma loteria: numa loteria, no fim das contas, há um vencedor. Mas também é verdade que nenhuma notícia é tão boa ou tão ruim quanto parecia de início. Neste caso, depois da terrível derrota em Bex havia uma luz no fim do túnel, e mais do que isso. Que espécie de desastre tinha sido aquele — e para os envolvidos certamente foi isso — dependia muito de quem você fosse. Para Artemisia Halicarnassus e Thomas Cale, tudo acabou muito bem. Em 16 horas, ficou claro que havia somente 2 mil sobreviventes dos suíços e seus aliados, metade dos quais conseguiu passar pela ponte de Glane antes que ela fosse incendiada. Mas os sobreviventes estavam muito longe da salvação — a maioria desarmada e sem armadura, e ainda bem distantes da proteção da Passagem Schallenberg, que ficava a uns 160 quilômetros dali. A ponte queimada retardara seus perseguidores, mas não os detivera. Em questão de horas, os Redentores haviam atravessado o rio e estavam empenhados em terminar o que começaram. Mas era exatamente nesse tipo de ação de retaguarda que Artemisia se especializara. Juntando sua milícia guerrilheira particular de trezentos homens com um pequeno número de fugitivos ainda em condições de lutar — menos de duzentos — ela dividiu suas forças com Cale, que deixou claro que esperava não receber ordens e fazer o que bem quisesse; ela deixou igualmente claro que ele não faria. — Faça o que eu mando ou você pode voltar pra Leeds com o rabo entre as pernas. Sei o que estou fazendo e estes são meus homens. Cale pensou a respeito. — Não há necessidade — respondeu finalmente — de usar esse linguajar. O terreno entre Bex e a Passagem Schallenberg era todo em subida, e as estradas atravessavam inúmeras florestas e subiam pequenas colinas. Dessas posições, sempre recuando devagar e evitando o confronto direto, Artemisia atormentava os Redentores — que começavam a capturar os exaustos, e muitas vezes feridos, suíços — com saraivadas de flechas e arqueiros individuais em emboscadas, eternamente atacando e fugindo. Embora o sacrifício e o martírio fossem, em geral, desejados pelos Redentores com entusiasmo, até eles tinham limites em seu gosto, por serem alvos de alguém que sequer eram capazes de ver enquanto perseguiam os restos maltrapilhos de um exército derrotado. Eles se afastaram e se contentaram em assassinar algum retardatário ocasional. Em pouco tempo, perderam o entusiasmo até por isso quando Artemisia começou a preparar armadilhas para eles, usando homens cuidadosamente colocados fingindo ser feridos em lugares onde os Redentores poderiam facilmente cair numa emboscada. Nos dois dias seguintes, quase 1.500 homens conseguiram voltar para a Passagem Schallenberg e a segurança. Entre eles estavam
Conn Materazzi e o Pequeno Fauconberg.
21 O RESCALDO DE QUALQUER DESASTRE GERALMENTE EXIGE DUAS COISAS: PRIMEIRO, A PESSOA RESPONSÁVEL PELO DESASTRE PRECISA SER CITADA, HUMILHADA E PUNIDA DA MANEIRA MAIS ELABORADA POSSÍVEL; SEGUNDO, EMBORA MENOS IMPORTANTE, É MUITO DESEJÁVEL ENCONTRAR ALGUÉM QUE DEMONSTRE, POR SUA CORAGEM PESSOAL, INTELIGÊNCIA E HABILIDADE, QUE O PAVOROSO DESASTRE PODERIA E DEVERIA TER SIDO EVITADO. NO CASO DO DESASTRE EM BEX, O FATO DE NÃO HAVER NENHUM CULPADO E TAMPOUCO NINGUÉM EM ESPECIAL PARA SE ELOGIAR NÃO FAZIA DIFERENÇA. EM VIRTUDE DE SUA GRANDE EXPERIÊNCIA COM TRIUNFOS E DESASTRES, O PEQUENO FAUCONBERG JÁ ESTAVA ALERTA PARA UM PROVÁVEL ACERTO DE CONTAS. CERCA DE TRÊS DIAS DEPOIS QUE OS MISERÁVEIS REMANESCENTES DO EXÉRCITO SUÍÇO HAVIAM VOLTADO PARA A LEEDS ESPANHOLA, FAUCONBERG PERCEBEU O RUMO QUE AS COISAS ESTAVAM TOMANDO E ENVIOU UMA MENSAGEM PARA CONN MATERAZZI, DIZENDO QUE ELE FARIA BEM EM TOMAR UM CHÁ DE SUMIÇO. FAUCONBERG SEGUIU SEU PRÓPRIO CONSELHO, E AO ANOITECER ESTAVA BEM ENCAMINHADO PARA UMA PASSAGEM POUCO CONHECIDA NAS MONTANHAS QUE ELE RESERVARA PARA ESSA FINALIDADE ASSIM QUE FORA NOMEADO SEGUNDO EM COMANDO. Àquela altura, Conn já havia sido preso e acusado de ineficiência diante do inimigo e falta de combatividade. Resumindo, foi acusado de não ganhar uma batalha, um crime do qual ele sem sombra de dúvida era culpado. A ira do rei e do povo não permitia que muito tempo passasse, e o julgamento de Conn foi marcado para a quarta-feira seguinte, na Câmara dos Comuns. Assim como Conn era injustificadamente acusado, Cale se viu injustificadamente elogiado, para grande fúria de Artemisia Halicarnassus. Todo o crédito por salvar heroicamente o que restou do exército e levá-lo em segurança para a Passagem Shallenberg fora dado a Cale: a ideia de que o único soldado que demonstrara a bravura e habilidade necessárias fosse uma mulher era não só inaceitável, nua e cruamente, mas também impossível de compreender. — Não adianta me culpar — disse Cale. — Por que não? Era difícil responder a essa pergunta. Ele entendia perfeitamente a raiva dela, mas, como salientou com imprudência, era assim que as coisas funcionavam. — Não adianta choramingar. — Retire o que disse! — Tudo bem. Choramingar vai fazer uma enorme diferença. — Não estou choramingando. Eu mereço o crédito. — Concordo. Você merece o crédito por salvar 1.500 homens. Com certeza. — O que quer dizer? — Não quero dizer nada. — Quer, sim. O que você está insinuando? — Certo. Você merece o crédito por salvar 1.500 homens. Eles o estão dando a mim e eu não mereço... mas o que estão dizendo, na verdade, é que quem foi responsável por isso... ou
seja, você... teria derrotado os Redentores. — E você está dizendo que eu não teria. — Sim. — Como sabe? — Conn fez tudo certo. Eu não teria feito melhor. — Então, claro, isso é prova suficiente. Ninguém poderia fazer melhor do que você. — Não falei isso. — Nem precisou falar. — Eu admiro você. — Não tanto quanto admira a si mesmo. — Isso seria pedir muito — disse ele, sorrindo. — Sei interpretar você direitinho, não se preocupe. Não está brincando, eu sei. — Você poderia repetir aquela batalha cem vezes e Conn iria ganhar 50 delas. O que as pessoas estão gritando é que quem salvou os 1.500 soldados... você... teria ganhado a batalha. Isso é um crédito que você não merece, mesmo sendo dado a alguém que merece menos ainda. — Você, quer dizer? — Sim. — Diga isso. — Eu não mereço o crédito. Você merece. Artemisia não disse nada por um momento. Enquanto isso, mais uma acusação tinha sido acrescentada àquelas apontadas para Conn: que ele, de maneira covarde e pusilânime, havia colocado fogo na ponte em Glane e, para salvar seu próprio couro de traidor, condenara milhares a morrer pelas mãos dos Redentores. De todas as acusações, aquela era a mais prejudicial. Também era a mais injusta. Conn estava a mais de 8 quilômetros da ponte e não poderia, portanto, ter ateado fogo a ela. Mas mesmo se tivesse, aquele fora um ato necessário. Os homens isolados na margem esquerda e mortos teriam atravessado a ponte e sobrevivido somente para serem perseguidos e mortos assim que os Redentores a atravessassem em seu encalço. Aqueles que já estavam na margem direita sobreviveram somente porque alguém tomou a decisão difícil de queimar a ponte. A pessoa que ateara fogo à ponte, disfarçada com um elmo abandonado, era Thomas Cale. Talvez nenhum assunto histórico tenha sido analisado tão exaustivamente em ensaios quanto a ascensão do Quinto Reich sob o comando de Alois Huttler. O fracasso em explicar como um homem com pouca educação, menos inteligência e nenhum talento evidente, exceto o de pronunciar prolixos discursos motivacionais sobre o destino manifesto de seu país para dominar o mundo, possa ter chegado mais perto dessa meta do que qualquer outro homem na História, é óbvio. Ninguém sabe como ele conseguiu se erguer da prisão por mendicância agressiva ao domínio de milhões de vidas por vastos territórios e a causar no mundo um nível de destruição jamais visto na História humana. Nenhum historiador iria concluir um livro dizendo que não há explicação para o que ele descreve. No caso de Alois, não há mesmo. Que aquilo aconteceu é a única razão que jamais se irá descobrir. É bem mais fácil explicar de maneira
satisfatória como, no final da semana que se seguiu ao desastre de Bex, Thomas Cale, garoto lunático, se tornou o segundo comandante militar mais importante da Aliança Suíça. Por causa do seu novo status de herói, ele fora convidado a participar da conferência para discutir o que fazer agora que os Redentores haviam cercado a Suíça pela retaguarda e só precisavam cruzar o Mississippi para esmagar a Leeds Espanhola numa morsa. Não tinha sobrado nenhum exército para os deter e ninguém vivo para comandá-lo, se houvesse um exército. Um bom número de discursos indignados foram proferidos, deixando claro que os oradores jamais foram a favor de atacar os Redentores de maneira tão desastrosa, embora por algum motivo faltassem provas concretas disso. A única pessoa que claramente se declarara contra a ação, Artemisia, não era mencionada, embora tivesse sido, sem alarde, readmitida para assistir à conferência. Antes da conferência, Vipond tentara desarmar tanto ela quanto Cale. — Seja o que for que você fale na conferência, não vai falar “eu avisei”, vai? — Por que não deveria? — perguntou Artemisia. — Ela não vai falar isso — disse Cale. — Vou, sim. Cale olhou para ela. — Ela não vai falar. Não era uma ordem, nem mesmo um pedido. Aliás, era difícil dizer o que era aquilo — a declaração de um fato inevitável, talvez. Com um suspiro, ela aceitou o conselho, sem muita gratidão. Na conferência, Cale fez questão de não dizer nada, de início, para deixar que as acusações e a preocupação continuassem por tempo suficiente para desanimar todos os presentes. Então começaram as lamentações. — Quanto tempo nós temos antes de eles chegarem? — perguntou o Rei. Quem respondeu foi um moroso líder supremo das Forças Aliadas. — Vão levar o verão todo para construir os barcos necessários para cruzar o Mississippi. As enchentes do outono vão deixar o rio traiçoeiro, e o gelo do inverno, mais traiçoeiro ainda. Vai ser no final da primavera do ano que vem. — Nós podemos reconstruir um exército em sete meses e os deter no rio? — perguntou o rei. Essa era a pergunta, ou algo do tipo, que Cale estava esperando. — Não, não podem, Majestade — falou ele, e ficou de pé. Magro e pálido em sua elegante batina preta — ele se sentia bem usando batina depois de tantos anos as usando, embora seu alfaiate tivesse criado um corte mais elegante e feito aquela usando lã Sertsey supermacia —, Cale parecia saído de um conto de fadas para apavorar crianças inteligentes. O rei, indignado, fez um gesto para o lado e recebeu uma explicação cochichada de quem era aquele sujeito e da sua (imensamente imerecida) condição de herói. — Você era um Redentor, pelo que sei. — Fui criado como um deles — disse Cale. — Mas nunca fui. — Mais cochichos no ouvido
do rei. — É verdade que você comandou um exército Redentor? — Sim. — Parece improvável... você é muito jovem. — Sou uma pessoa notável, Majestade. — Você é? — Sim. Eu destruí a Tribo, e depois de destruí-la voltei para Chartres e destruí o exército lacônico em Golan. Vocês não tinham ninguém que rivalizasse comigo, mesmo antes de Bex. Agora sou tudo o que restou. — Você conta muita vantagem. — Não estou contando vantagem, Majestade, estou simplesmente dizendo a verdade. — Está dizendo que você pode deter os Redentores no Mississippi? — Não. Isso é impossível. Vocês não poderiam detê-los nem com um exército, e agora nem têm um exército. Houve uma gritaria geral com essa frase: que os suíços e seus aliados iriam mobilizar milhares para a causa, que podiam tirar a terra deles, mas jamais a liberdade, que o povo os enfrentaria nas florestas, nas planícies e nas ruas, que eles jamais se entregariam, e por aí vai. Zog, uma pessoa muito mais realista do que era apenas uma semana atrás, mandou todos se calarem com um gesto. — Está dizendo que devemos perder? — Estou dizendo que podem vencer. — Sem exército? — Eu vou dar a vocês um novo exército. — É muita bondade sua. — Bondade não tem nada a ver com isso. — Como vai conseguir? — Se me receber amanhã em particular, mostrarei a Vossa Majestade. Dizem que um estelionatário ganha renome não conquistando a confiança daqueles a quem engana, mas dando-lhes um pouco da sua. A verdade era muito simples: eles estavam completamente perdidos, e agora uma pessoa dizia que podia lhes mostrar o caminho. Em tais circunstâncias, a característica implausível era um sinal a seu favor: só algo inacreditavelmente estranho poderia salvá-los. Em Bex, os Redentores agora tinham a pavorosa tarefa de enterrar os 30 mil que haviam matado ali. Uma semana depois da batalha, os dois dias de frio intenso que se seguiram ao combate haviam dado lugar, como muitas vezes acontecia naquela parte do mundo, a um período de calor. Os cadáveres que mais fediam eram aqueles que morreram de ferimentos internos causados pelo peso das machadinhas. O sangue ficou dentro deles e apodreceu, e quando os Redentores transportavam os corpos, ele escorria pelo nariz e pela boca. Então ficou ainda mais quente e os cadáveres começaram a inchar, tanto que nas armaduras mais baratas os rebites rebentavam com um sonoro SNAP! Então os corpos ficavam azuis, depois pretos, a pele descascava, e aqueles que precisavam queimá-los achavam que nunca mais
tirariam o cheiro do fundo da garganta. A maior parte das notícias nunca é tão ruim ou tão boa quanto parece a princípio. Isso certamente era verdade com relação à grande vitória dos Redentores em Bex. O general Redentor Gil ficou impressionado com a habilidade com a qual o Gabinete de Propagação da Fé conseguira viabilizar a contradição envolvida em elogiar a coragem, força e o sacrifício do exército Redentor, ao mesmo tempo em que sugeria que Deus garantira que a vitória fosse inevitável. Como Gil sabia por meio de seus muitos protegidos que estiveram na luta em Bex, aquela porra foi por um triz. A má notícia era que Cale fora visto por um punhado de Redentores, mas Gil não ficara sabendo disso a tempo de colocá-los em quarentena e impedir que a notícia se espalhasse. — Diga exatamente o que você viu... nada a mais nem a menos. Entendeu? — Sim, general Redentor. Ele tinha decidido interrogar os arqueiros que haviam encontrado Cale na floresta um de cada vez, começando pelo sargento. — Prossiga. — Ele tinha mais de 2 metros de altura e uma grande luz brilhava do seu rosto. Em volta de sua cabeça havia um halo de fogo vermelho e a mãe do Redentor Enforcado estava ao lado dele, toda vestida de azul e com sete estrelas na testa, e chorava lágrimas de sofrimento por nossos gloriosos mortos. E havia dois anjos segurando flechas de fogo. — Eles também tinham halos? — Acho que não, general Redentor. Durante meia hora, ele tentou fazer o sargento dizer algo que fizesse sentido, mas alguém que acreditava que Cale tinha mais de 2 metros de altura e que seu rosto brilhava com alguma coisa além de desconfiança e ódio claramente não seria de grande ajuda. Depois de interrogar mais dois do grupo, cujos relatos eram ainda mais ridículos, ele desistiu. Agora ele tinha duas dúvidas. Aquilo era só excesso de fervor religioso ou eles realmente tinham visto Cale? Nesse caso, o que significava? Por que ele estava se esgueirando no mato e não comandando tropas na batalha? Isso nem resolvia o problema do que tinha acontecido com Cale depois que os Dois Trevors foram mortos. Gil esperava que ele tivesse morrido dos ferimentos — certamente os Trevors haviam acertado ao menos um golpe antes que ele os matasse? Eles eram, supostamente, os melhores assassinos dos Quatro Cantos do Mundo, e Cale, supostamente, estava doente. Talvez Cale estivesse morto, e nesse caso os relatos de suas aparições na batalha eram ainda mais preocupantes. Ou não eram? Ele era melhor vivo e sem poder ou morto e aparecendo com mais de 2 metros de altura e um halo, criando sabe Deus que alvoroço entre os fiéis incautos? Se isso parece estranhamente cético para um homem de profundas crenças espirituais na Única e Verdadeira Fé, a verdade dos fatos era que Gil estava mudando na velhice. Enquanto os milagres e as visões envolvessem pessoas ou coisas que ele não tinha experimentado diretamente, Gil estava disposto a aceitá-los sem questionar. Mas a realidade de sua experiência pessoal com Cale e as histórias progressivamente mais absurdas sobre ele ficavam cada vez mais entaladas na sua garganta. Ele conhecia Cale desde que o rapaz era apenas um menininho fedido. Havia o treinado dia após dia sob as instruções de Bosco, o tinha
visto se mijar de medo depois de uma luta, antes que a batida na cabeça lhe desse aquele talento estranho que ninguém era capaz de igualar. Era obra de Deus, dizia Bosco. Mas para Gil era difícil demais pensar em Cale como alguém escolhido pelo Senhor para causar o fim de tudo. No fundo do coração, Gil pensava nele como um garoto do qual não gostava. O que Gil não percebia, ou não queria perceber, era que esse realismo estava envenenando sua fé. Não acreditar em Cale era não acreditar em Bosco: não acreditar em Bosco era não acreditar na necessidade do fim do mundo. Reconhecer isso era questionar seu papel central em causá-lo. Melhor deixar quieto. Mas era mais fácil não fazer do que não pensar a respeito. O problema mais imediato era, no mínimo, avisar Bosco. Se ele contasse aquelas bobagens milagrosas, Bosco com certeza ia ficar inspirado. Se não contasse e Bosco descobrisse, haveria encrenca. Ele decidiu não arriscar, e algumas horas depois estava com o papa Bosco e concluindo seu relatório sobre a peculiar aparição de Thomas Cale. — Você acredita neles? — perguntou Bosco, quando Gil terminou. A pergunta era capciosa. Se Gil protegesse sua resposta com uma dúvida ponderada, talvez conseguisse moldar a reação de Bosco. Mas ele decidiu que era um teste, e estava certo. Porém, até contar o que Bosco queria ouvir apresentava problemas. Entusiasmo demais o deixaria desconfiado, e Gil temia o que poderia acontecer se Bosco esfriasse ainda mais com ele. — Estou razoavelmente convencido, Santidade, de que Cale não cresceu mais de 30 centímetros e que seu rosto não brilha com uma luz sagrada, mas acredito que eles o viram. A questão é: o que ele estava fazendo lá? Bosco olhou para ele, mas também queria que a velha confiança entre eles voltasse. Causar, sozinho, o fim prometido era solitário e estranho. — Seja qual for que Cale ache que seja o seu propósito, ele fará a obra de Deus, sabendo disso ou não. Mas embora Deus não tenha aumentado sua altura ou abençoado seu rosto para iluminar os fiéis, Ele nos deu um sinal. Nós precisamos atacar Arnhemland agora, e não esperar mais um ano, como você tinha aconselhado. E precisamos aumentar a velocidade com a qual mandamos gente para o Oeste. *** O ENCONTRO PARTICULAR COM O REI QUE CALE TEVE NO DIA SEGUINTE NÃO FOI REALMENTE PARTICULAR DO MODO COMO ELE ESPERAVA OU TORCIA PARA QUE FOSSE. DE FATO, O REI NÃO ESTAVA MAIS ACOSTUMADO COM PRIVACIDADE DO QUE CALE, QUE CRESCERA NUM DORMITÓRIO COM CENTENAS DE OUTROS GAROTOS. ESTAR SOZINHO ERA UM PECADO PARA OS REDENTORES, E PODIA-SE DIZER QUE ERA A MESMA COISA PARA O REI, PARA TODOS OS FINS E PROPÓSITOS. DIFERENTE DE CALE, ELE NÃO PARECIA SE IMPORTAR COM ISSO OU MESMO NOTAR, ALGO QUE NÃO ERA DE SE ADMIRAR, TALVEZ, NUM MONARCA QUE TINHA UM LACAIO ESPECIAL DE CONSIDERÁVEL PODER, O GUARDIÃO DO COCÔ REAL, PARA EXAMINAR SEUS EXCREMENTOS DIARIAMENTE. — Você espera que a gente entregue nosso exército a um garoto? — perguntou Bose Ikard. — Não — negou Cale. — Fiquem com seu exército. Façam o que quiserem com ele. Eu vou
criar um Novo Exército Modelo. — Com quê? Não há homens. — Há, sim. — Onde? — Os Campasinos. Todos ficaram surpresos; nem todos riram. — É claro que os nossos camponeses são o sal da terra. Mas não são soldados. — Como sabe, Majestade? — Olhe os modos — disse Bose Ikard. — Mas a verdade é que você não é o primeiro a ter essa ideia. Vinte anos atrás, o conde Bechstein criou uma companhia feita de simplórios e caipirões e os levou para as guerras contra a Falange. Acredito que um ou dois deles, que tiveram o bom senso de desertar na primeira semana, possam ter sobrevivido. — Não quero saber. — Mas nós queremos. Não vai funcionar. — Vai, sim. Vou mostrar como. Com isso, ele começou a trabalhar em seus desenhos e planos. Uma hora depois, ele terminou: — A simples verdade é a seguinte: não há outro jeito. Se eu fracassar, vocês terão a satisfação de ver os Redentores me assando na praça principal. Isso, chanceler, se eles não começarem por vocês. — Ele se virou para o rei. — Eu só preciso de dinheiro. Eles podiam não ter quase nenhum soldado, mas dinheiro era algo que tinham em grande quantidade. Depois da carnificina em Bex, ninguém acreditava, nem mesmo Bose Ikard, que a rendição fosse uma alternativa. Estava claro que os Redentores não reconheciam a ideia de permitir que seus inimigos se entregassem. Cale tinha razão. Não havia outro jeito. — Você consegue fazer isso em sete meses? Parece ter muita certeza. — Eu falei, Majestade. Sou uma pessoa notável. Se Cale não estava tão confiante quanto dizia ser, tampouco estava tão desesperado quanto parecia para Ikard. Ele trabalhava nesse seu Novo Exército Modelo desde os 10 anos de idade (ou nove — ele não sabia ao certo sua data de nascimento). Desde então, sempre que tinha alguns minutos, às vezes somente uma vez por semana ou por mês, desenhava um diagrama ou fazia uma anotação sobre os hábitos de trabalho e os vários tipos de ferramentas que os camponeses ao seu redor estavam acostumados a manusear, os martelos e debulhadoras, a pequena pá afiada usada pela Tribo na batalha do Monte Duffer. Até nos piores dias do Priorado, quando Kevin Meatyard o estava atormentando, ele observava os debulhadores e catadores trabalhando nos campos com suas foices e enxadas e se perguntava o que poderia ser feito deles e de seu modo de vida. Ele se preocuparia em como agir caso não desse certo quando as coisas ficassem claras. Mas aquela era uma chance de trabalhar também num plano de retirada — que provavelmente envolveria ir para uma passagem entre as montanhas com tanto dinheiro vivo quanto possível. Zog era curioso a respeito de Cale da mesma maneira que ficaria curioso sobre um macaco capaz de escrever melhor do que um ser humano ou um cachorro dançarino singularmente elegante. Ele reconhecia que o garoto era alguém excepcional, mas jamais iria lhe passar pela
cabeça que ele fosse algo mais do que uma maravilhosa aberração da natureza. — Me diga, caro rapaz, pelo que sei, você derrotou um exército de lacônicos. — Sim, Majestade. — Oh, muito bem! Fale a respeito... tudo... a história toda. O que Cale pensou foi que aquilo era como pedir para contar a história de uma tempestade. Naturalmente, ele ia começar quando Bose Ikard interrompeu. — Infelizmente, Vossa Majestade tem um encontro importante com o embaixador da Hansa. — Oh. Talvez outra hora — disse para Cale. — Muito interessante. — E se dirigiu para a saída. O próprio Cale também tinha um compromisso. Ele fora intimado a depor no dia seguinte no julgamento de Conn Materazzi, ao qual os suíços haviam devotado quase uma tarde inteira. O compromisso era para deixar claro para Cale o que ele diria no depoimento. *** — VOCÊ É O TRAIDOR MAIS FAMIGERADO QUE JÁ VIVEU! A Casa das Praças iria abrigar quatrocentas pessoas com conforto, espalhadas em bancos em três lados. Hoje havia oitocentas, com milhares aguardando notícias lá fora. Na quarta parede havia uma tribuna ocupada naquele dia pelo juiz Popham, um homem no qual se podia confiar para dar o veredicto correto. Ao lado da tribuna, levemente para o lado, havia um banco dos réus, no qual estava um Conn Materazzi aparentemente pouco impressionado, que olhava com desdém para o advogado de acusação, Sir Edward Coke, o homem que acabava de gritar com ele. — Pode dizer isso, Sir Edward — respondeu Conn —, mas não pode provar. — Em nome de Deus, eu vou provar! — falou Coke, que parecia um touro sem pescoço, todo mau humor e beligerância. — Como se declara o réu? — perguntou o juiz Popham. — Inocente. — Ha! — gritou Coke. — Você é o traidor mais absoluto que já existiu. Conn moveu a mão de leve, como que para espantar uma mutuca. — Não condiz com um cavalheiro me insultar dessa forma. Mas me consolo com sua falta de educação... é tudo o que o senhor pode fazer. — Então enfureci você. — De modo algum — negou Conn. — Por que eu deveria estar furioso? Ainda não ouvi uma só palavra contra mim que possa ser provada. — Fauconberg não fugiu para as montanhas porque nos traiu em Bex? E aquele homem traiçoeiro que só inventa desculpas também não planejava matar o rei e seus filhos? — Ele fungou alto, como se aquilo tudo fosse demais. — Aqueles pobres bebês que nunca fizeram mal a ninguém. — Se o lorde Fauconberg é um traidor, o que isso tem a ver comigo? — Tudo o que ele fez, sua víbora, foi instigado por você! Depois disso, houve grande polvorosa na assistência. TRAIDOR! ASSASSINO! ISSO! MUITO BEM! CONFESSE! OS BEBÊS! COITADINHOS DOS BEBÊS! Popham deixou que vociferassem. Ele queria que Conn entendesse que sua recusa em interpretar o papel de
abjeto penitente, conforme fora instruído, não o favorecia em nada. — Silêncio na corte — ordenou ele. O problema de tentar subornar Conn para que este aceitasse seu papel era que Popham sabia muito bem que sacrificar um bode requeria que o bode entendesse que seria ele, não importava o que dissesse ou deixasse de dizer. Coke, agora com o rosto vermelho de fúria, agitou um pedaço de papel no ar. — Esta é uma carta encontrada escondida numa gaveta secreta na casa daquele renegado do Fauconberg. Ela diz claramente que o vil papa Bosco pretendia pagar 600 mil dólares para Conn Materazzi, e que este daria 200 mil a Fauconberg para ajudá-lo a perder a batalha. — Ele agitou o papel mais uma vez e em seguida o aproximou dos olhos para ler, com uma expressão no rosto como se alguém o tivesse usado para limpar o cu. — Aqui diz: “Conn Materazzi jamais me deixaria sozinho.” — Ele se virou para o meirinho. — Leia essa frase de novo. — Pego de surpresa, o meirinho encarregado dos autos corou de um vermelho vivo. — Ande logo com isso, homem! — gritou Coke. — “Conn Materazzi jamais me deixaria sozinho.” Coke correu os olhos pela sala, balançando a cabeça em sombrio triunfo. VERGONHA! Gritava a multidão. VERGONHA! TRAIDOR! — Essa... — gritou Conn por cima da gritaria — ...essa... essa é a única prova que podem apresentar contra mim? Alguém mais desconfiado do que eu poderia sugerir que sir Edward sabe recitar essa bobagem tão bem porque foi ele que a escreveu. — Você é um sujeito odioso. Faltam-me palavras para expressar sua peçonhenta traição. — Faltam-lhe mesmo palavras, sir Edward... já repetiu a mesma coisa meia dúzia de vezes. Coke o encarou, seu olhar esbugalhado num espasmo de fúria. — Você é o homem mais odiado da Suíça! — Quanto a essa honra, sir Edward, menos que a asa de um inseto me separa do senhor. De um lado da corte, onde estavam aqueles que conheciam bem Coke, e portanto o detestavam, partiram risadas. — Se Fauconberg era um traidor — disse Conn (embora soubesse que ele não era) —, eu não sabia de nada. Confiei nele da mesma forma que o rei e seus conselheiros confiaram quando eles, e não eu, o nomearam meu segundo em comando. — Você é o traidor mais vil que já viveu. — O senhor fica repetindo isso, sir Edward, mas onde está sua prova? A lei diz que deve haver um mínimo de duas testemunhas da traição. Vocês não têm nem uma. Um sorriso bilioso e enorme de Coke, que o fazia parecer um sapo risonho. — Você leu a lei, Conn Materazzi, mas não a entende. Popham pigarreou. — A lei de que você fala, que requeria duas testemunhas nos casos de traição, foi considerada inconveniente. Na segunda-feira, outra lei foi aprovada para repeli-la. Talvez na empolgação de responder aos seus acusadores, Conn tenha se esquecido que o veredito já estava definido. Se havia esquecido, ele lembrou agora. Mas ficou abalado mesmo assim. — Não sei como vocês concebem a lei — disse baixinho. — Nós não concebemos a lei, Conn Materazzi — vangloriou-se um triunfante Coke —, nós
conhecemos a lei. Nas duas horas seguintes, mais provas foram apresentadas à medida que um sortimento de mentirosos, falsários, inventores, atores e faladores de merda foram trazidos para depor sobre os traiçoeiros comentários antes da luta e traiçoeiras táticas em combate que provavam sem sombra de dúvida que Conn deliberadamente perdera a batalha. — Nunca vi caso igual — declamou Coke —, e espero nunca mais ver. Na última hora, passaram à segunda acusação: que Conn havia ateado fogo à ponte em Glane para salvar sua vida, ao preço de milhares de vidas dos seus homens. Seis testemunhas foram chamadas para jurar que o viram, sem elmo, acender o fogo pessoalmente. A sétima testemunha era Thomas Cale. Deixaram claro para ele que as excelentes opiniões que ele tinha atraído tornaram seu testemunho particularmente valioso, e que contar à corte o que ele viu das ações de Conn durante a batalha, e de como este subsequentemente ateara fogo à ponte sobre o rio era essencial para que aqueles que ainda relutavam em dar dinheiro para seu Novo Exército Modelo se convencessem da verdadeira profundidade da devoção de Cale aos interesses do Estado. — Seu nome. — Thomas Cale. — Coloque a mão direita sobre o bom livro e repita comigo: juro que o que vou dizer é a verdade, toda a verdade e nada além da verdade. — É. — Você precisa dizer. — O quê? — Precisa repetir as palavras. Uma pausa. — Juro que o que vou dizer é a verdade, somente a verdade e nada além da verdade. — Com a ajuda de Deus. — Com a ajuda de Deus. A essa altura, ele era quase inaudível. Como haviam ensaiado no dia anterior, Coke fazia as perguntas a Cale e Cale dava as respostas, como se eles fossem um adestrador e seu incrível urso dançarino passando a bola um para o outro. As perguntas e respostas eram projetadas para demonstrar uma coisa: que, mesmo jovem como era, Thomas Cale era um soldado experiente, grande conhecedor das táticas de batalha dos Redentores. Também pediu-se que ele descrevesse em detalhes suas ações heroicas e habilidosas para salvar a vida de 1.500 soldados suíços e seus nobres aliados, tão miseravelmente traídos por Conn Materazzi. — Num dado momento, sr. Cale, pôde observar a batalha de uma árvore na floresta próxima? — Sim. — Isso lhe dava uma visão completa da batalha? — Não sei se completa, mas a melhor que se podia ter. Coke encarou Cale. Essa não era a resposta direta que eles haviam combinado.
— Por que alguém experiente como o senhor não estava diretamente envolvido? — Fui impedido. — Pelo réu? — Não sei. Coke o encarou. Mais uma vez, o urso não estava devolvendo a bola como fora ensinado. — Não se dá o caso — disse Coke, oferecendo-lhe uma oportunidade de melhorar —, que sir Harry Beauchamp, instruído por Conn Materazzi, mandou que o senhor não se envolvesse na batalha diretamente, sob pena de morte? — Ele me disse para ficar fora dela ou sofrer as consequências, sim. Mas não mencionou o nome de ninguém. — Mas foi o que o senhor entendeu? Aquilo era demais, até para Popham. A forma da lei podia ser torcida, mas não quebrada de um jeito tão grosseiro. — Sir Edward, entendo que o senhor fala motivado pelo zelo do dever e pelo horror aos crimes do réu, mas não deve induzir a testemunha a repetir boatos, particularmente quando não há boato nenhum a se repetir. O hábito de Coke de virar o corpo todo para olhar quem lhe dirigisse a palavra parecia confirmar que ele não tinha pescoço, e lhe dava a aparência de uma estátua de aspecto detestável. O observador teria notado um pequeno músculo tremendo em sua têmpora direita. Se ele fosse uma bomba, pensou Hooke, assistindo a tudo do fundo da sala, estaria prestes a explodir. — Minhas desculpas à corte. — Ele se virou novamente para Cale, com o músculo ainda tremendo. — É verdade que na batalha de Silbury Hill o senhor salvou a vida do réu? — Sim. — Uma prova clara, senhoras e senhores do júri, de que a testemunha não sente rancor algum por ele. É verdade? — Não entendo. — Mesmo? — Não. — O senhor — disse Coke, o músculo agora tremendo em sua têmpora esquerda —, sente algum rancor pelo réu? — Não. — Arriscou a vida ao salvá-lo? — Sim. — Alguma vez ele lhe agradeceu por esse ato tão corajoso? — Não lembro, para ser sincero. — Isso não lhe dá raiva? — Não. — Por que não, sr. Cale? Acho que a maioria de nós sentiria raiva de tão miserável ingratidão.
— A ingratidão dos príncipes é proverbial, não é? — Eu nunca soube de príncipes de qualquer tipo neste país que fossem ingratos, mas acredito que isso se aplica a Conn Materazzi. — Bem, por isso não senti raiva. Eu não esperava. Pela primeira vez desde que havia entrado na corte, Cale olhou diretamente para Conn. O que passou entre eles foi estranho. — Pode nos dizer qual sua estimativa da condução da batalha, de seu singular ponto de vista? — perguntou Coke — Quer dizer da árvore ou baseado na minha experiência? — As duas coisas, sr. Cale, as duas coisas. — A batalha já durava três horas, eu diria, talvez mais. Parecia que qualquer lado podia ganhar ou perder. — O senhor viu o réu no campo de batalha? — Por um momento. Mas foi a distância. — O senhor formou uma opinião, baseado — ele se virou para o júri —, baseado em sua considerável experiência, sobre o modo como ele conduziu aquele trágico enfrentamento. Houve uma pausa como se Cale estivesse decidindo alguma coisa. — Sim. Os músculos na testa de Coke pararam de tremer. — E que opinião ponderada foi essa? Se fosse manter seu juramento, algo que não tinha nenhuma intenção de fazer, Cale deveria dizer que Conn demonstrou notável coragem pessoal e tática. Ele próprio não teria feito melhor — nem mesmo igual. Aliás, ele poderia acrescentar que jamais teria combatido naquela batalha, para começar. Mas ninguém queria ouvir isso. A simples verdade — a verdade do tipo a situação é esta, não a verdade do tipo toda a verdade, nada além da verdade — era que Conn era um homem morto. Defendê-lo porque essa era a coisa mais honesta a se fazer seria fútil e inconsequente. Cale acreditava genuinamente ser a única pessoa que poderia deter Bosco, e que, sem seu Novo Exército Modelo, todos na cidade, possivelmente até Cale, estariam mortos dentro de 12 meses. Não era apenas fútil e inconsequente defender Conn; era errado. Portanto, era difícil para Cale explicar por que ele não conseguia mentir de uma vez para garantir uma coisa boa, em vez de ficar enrolando e pôr essa coisa boa em risco. Ele percebia a estupidez do que estava fazendo e, se tivesse alguns minutos para pensar a respeito, teria demonstrado a si mesmo que arriscar as vidas de milhões para salvar a de um monte de merda como Conn Materazzi, por mais admiravelmente que ele tivesse se comportado em Bex, era algo perverso, mau, errado e, pior do que tudo isso, ruim para Thomas Cale. — Ele fez todas as coisas que qualquer comandante numa batalha assim poderia ter considerado, à luz das circunstâncias. Embora ele pudesse ter considerado outras ações. — Ações que poderiam ter sido mais eficazes... é isso que o senhor quer dizer? — Mais eficazes? — Sim... o senhor está dizendo que ele provavelmente poderia ter decidido agir de outra
forma e assim vencer a batalha. Uma pausa. — Hã. Sim. — Sr. Cale — interrompeu o juiz Popham. — Chegamos ao centro da questão aqui. Está dizendo que se o acusado tivesse agido de forma diferente, a derrota teria sido evitada e a vitória alcançada? — Posso definitivamente dizer isso — disse Cale, aliviado. — Sim. Se ele tivesse agido diferente, a batalha poderia ter sido ganha. — Eu quero... — O que Coke queria era obter uma declaração firme, como havia sido combinado, em que Cale dissesse inequivocadamente que Conn perdera a batalha de propósito. Popham percebeu que, fosse por que motivo, a criatura no banco das testemunhas mudara de ideia, e que, tentando extorquir de Cale uma declaração da culpa de Conn, Coke estava piorando as coisas. Havia muito mais gente para dizer que Conn tinha perdido de propósito e havia ateado fogo pessoalmente à ponte. Daquele mato não ia sair coelho. — Acho que incomodamos a testemunha o suficiente. — Mais uma pergunta — exigiu Coke, os músculos nas têmporas tremendo de novo, e fez a pergunta antes que a permissão fosse recusada. — O senhor testemunhou Conn Materazzi ateando fogo à ponte sobre o Rio Gar? — Não. Eu não estava perto dela.
22 AO LONGO DAS MARGENS DO RIO IMPREVU, UM DOS MAIORES CARVALHOS TINHA CAÍDO NO RIO, SUAS RAÍZES SOLAPADAS PELA TURBULÊNCIA CRIADA PELAS PEDRAS QUE CAÍRAM NO RIO ALGUNS MESES ANTES, DO ALTO DA PONTE. DEVIDO AO PERIGO PARA A NAVEGAÇÃO, O PREFEITO LOCAL MANDARA QUE OS GALHOS FOSSEM REMOVIDOS O MÁXIMO POSSÍVEL, PARA QUE O TRONCO PUDESSE SER PUXADO E COLOCADO DE COMPRIDO, PARALELO À MARGEM. ELES TIVERAM SORTE PORQUE, ASSIM QUE OS GALHOS ACIMA DO NÍVEL DA ÁGUA FORAM CORTADOS, UMA ONDA CAUSADA PELA CHUVA NAS MONTANHAS O GIROU, DE MODO QUE OS GALHOS DO OUTRO LADO TAMBÉM PODERIAM SER REMOVIDOS. INFELIZMENTE, QUANDO ESTAVAM QUASE TERMINANDO, UMA SEGUNDA ONDA O LIVROU DE SUAS AMARRAS TEMPORÁRIAS E CARREGOU O GRANDE TRONCO RIO ABAIXO, NA DIREÇÃO DO MISSISSIPPI, ONDE SE TORNARIA O PROBLEMA DE OUTRA PESSOA. Naquela noite, depois do julgamento, IdrisPukke preparou o jantar, uma atividade morosa. Os convidados eram Cale, Artemisia, Henri Embromador, Kleist e Cadbury. — Vipond está bravo comigo? — perguntou Cale. — Você o culparia? — questionou Cadbury. — Conn não é sobrinho-neto dele ou algo assim? — Ele olhou provocativamente para IdrisPukke. — Ele é aparentado até com você, não? Como funciona isso? IdrisPukke o ignorou. — Vipond não é hipócrita. Ele entende por que você se sentiu obrigado a depor. Mas está intrigado. — Inclua a todos nós nisso — disse Henri Embromador. — Nunca vi nada mais idiota em toda a minha vida. Kleist não disse nada. Ele mal parecia estar presente. — Deus — disse Artemisia, claramente chocada pelo comportamento do seu amante — tem um castigo especial para quem jura em falso. Um sinal da diminuição da sua afeição por Cale era que aquela era uma maneira mais grosseira de interpretar os fatos do dia, sobre o que seria estritamente justo. Por que seu afeto estava em declínio, e tão de repente? Por que isso acontece? Talvez ela tivesse ficado impressionada com a coragem solitária de Conn e o tivesse comparado, quando ficaram um diante do outro, com Cale, tão não louro, tão estranho e tão sem nobreza ou graça. — Ele manda essas pessoas pra cama sem que comam a sobremesa? — arriscou Cale. — Não. — Imaginei. Nunca é. Deus sempre tem algo terrível à espera dos maus meninos. — Ele tem um diabo reservado para atormentar você por toda a eternidade enfiando um atiçador em brasa no seu rabo — disse Henri Embromador. — Desculpe — falou Cale. — Esse vai ter que pegar o fim da fila. Além disso, o diabo que reservaram pra mim por envenenar poços vai enfiar um tubo na minha garganta e encher meu estômago com água de privada. Uma coisa vai neutralizar a outra. — Depor sob juramento não é piada. Ele vai morrer por tua causa.
— Ele só está vivo pra ser condenado à morte por minha causa... portanto, estamos quites. — Acho melhor todos nos acalmarmos — disse IdrisPukke. — Alguém quer vinho? Ninguém parecia interessado em vinho, por isso ele começou a distribuir o que pareciam pequenos biscoitos enrolados no formato de um pacotinho do tamanho de um dedo. Havia um para cada um, e todos olharam sem entusiasmo para os doces duros e pouco apetitosos. — Não são para comer, apenas quebrem. Decidi publicar uma breve coleção das minhas ideias, cuidadosamente reduzidas à sua essência em uma frase. Vai se chamar As Máximas de IdrisPukke. Achei que essas iriam divertir vocês. — Ele pediu com um gesto que todos quebrassem os biscoitos. — Agora leiam em voz alta: Cadbury. Cadbury, que estava ficando hipermétrope, teve que segurar o rolinho de papel um pouco longe. — Não depõe contra a maturidade da alma de um homem o fato de ela ter alguns vermes. Cadbury desconfiou, nesse caso, erroneamente, de que essa máxima em particular deveria ser sobre ele. IdrisPukke percebeu que sua tentativa de aliviar o clima da noite começara mal. Ele acenou para Artemisia. Ela abriu o docinho. — Eu só ia acreditar num deus que soubesse dançar. Artemisia sorriu fracamente, mas quando entendeu o que ele queria dizer, seu sorriso se abriu mais um pouco. O coração de IdrisPukke afundou — mas persistiu, como se seu plano não estivesse murchando como um balão de festa. Era a vez de Henri Embromador. — Agir no mundo é a única maneira de entendê-lo. Nesta vida, só a Deus e Seus anjos é dado o direito de serem espectadores. Como Cadbury, Henri Embromador se perguntou se IdrisPukke tinha escolhido essa frase especialmente para ele. Estava acusando-o de alguma coisa? O próximo era Kleist, que esmagou o doce com força desnecessária na palma da mão. — Viver é sofrer, sobreviver é encontrar algum significado no sofrimento. Então foi a vez de Cale. O que ele leu pareceu apenas confirmar que IdrisPukke estava arrogantemente rindo às custas deles. — Quem combate monstros precisa tomar cuidado para que isso não o torne um monstro. Se você olha muito tempo para dentro do abismo, o abismo também começa a olhar dentro de você. Um silêncio se seguiu. — E você? — perguntou Cale. O coração de IdrisPukke afundou só um pouco... depois de ouvir os outros, ele sabia qual o ditado que restara. Ele esmagou o doce e o leu. — Se existe algum homem cujo lado ridículo nunca foi visto, é porque não procuraram direito. — Na mosca — disse Cadbury, mas ele ainda queria se vingar pelo que imaginava ser a crítica do docinho. — E então, IdrisPukke, o infeliz Conn Materazzi é seu parente ou não é? — Daquele dia em diante, Cadbury sempre se referiria ironicamente a ele como “o infeliz Conn Materazzi”.
— De certo modo... meio-sobrinho-neto, suponho. Eu mesmo não o suportava. Embora, justiça seja feita, ele estivesse mudando para melhor. — Então explique por que Vipond não está sedento de vingança — disse Cadbury. — Pensei que os Materazzi fossem loucos por seus parentes. — Meu irmão simplesmente entende a posição impossível na qual Cale se viu. Obviamente, ele gosta de Conn e se esforçou para apoiá-lo... preciso dizer que não com muita gratidão, embora houvesse outros motivos para isso. Mas ele não é nem tolo, nem hipócrita, nem lhe falta afeto. Por motivos óbvios, ele é obrigado a não dar a entender que tem qualquer coisa a ver com Cale, mas sabe muito bem que Conn já era um homem morto quando a linha de frente se partiu em Bex. O que o intriga é que Thomas — e aqui ele olhou fixamente para Cale — tenha se dado ao trabalho de testemunhar sem nem condená-lo nem ajudar a salvá-lo, assim se indispondo com todos os lados sem nenhum benefício óbvio. Todos olharam para Cale. — Foi um erro. Tudo bem. Eu sabia que não ajudaria Conn em nada dizer a verdade, e que se eu concordasse com o julgamento, eles me dariam o que preciso... o que todos precisam. Mas é que quando chegou a hora, perdi a cabeça... por um momento. Tive um ataque inútil de honestidade... admito. — Por que inútil? — perguntou Artemisia. — Porque contar a verdade não vai fazer bem nenhum. Só existe uma coisa entre nós todos e um monte de sangue e gritaria: o Novo Exército Modelo. Não há nada de complicado nisso. — Então por que você não apresentou provas contra ele? — Porque vi que era mais fácil falar do que fazer, tá? — Que a justiça reine... ainda que os céus desabem. IdrisPukke estava caçoando de leve do idealismo de Artemisia, mas agora Cale tinha ficado cauteloso, e interpretou aquilo como uma espécie de crítica. — Pode enfiar essa de volta no seu doce, vovô. O jantar se despedaçou como um dos aforismas de IdrisPukke e todos foram para casa de mau humor. Lá fora, o ar da noite estava pesado e não exatamente morno, mas tépido, vagamente desagradável, como se tivesse sido pulverizado com as almas mortas dos filhos e maridos da Leeds Espanhola, reunidos para assistir à execução de Conn Materazzi dali a dois dias. Cale, Henri Embromador e Kleist, cujo sofrimento crescente fazia os outros dois se sentirem pior, voltaram para sua casa elegante na cidade. Ainda se sentiam um pouco intimidados por morar lá, como se esperassem que alguém importante viesse e os expulsasse por viverem melhor do que sua casta. Àquela altura, já estavam acostumados à criadagem dos outros, mas não à própria. Não que se incomodassem de alguém cozinhar e lavar para eles, mas a capacidade dos serviçais de se aproximarem despercebidos em momentos inesperados lhes lembrava a falta de privacidade do Santuário, com seu horror a portas e suas punições para quem era apanhado sozinho. A criadagem parecia pensar que simplesmente podia aparecer sem aviso, como os Redentores. Levavam a mal quando Cale insistia para que batessem antes de entrar, algo que consideravam a prova de que ele era um simplório. Cale também fazia questão de agradecer quando faziam algo
para ele, um hábito que também o revelava como simplório. O adequado, para qualquer empregador, era tratá-los como se eles não existissem. Antes que os três tocassem a campainha, a porta foi estranhamente aberta por Bechete, o sobrevalete. — O senhor tem visitas — avisou ele, indicando a chambre des visiteurs. — Quem é? — Não quiseram dizer seus nomes, senhor, e eu não iria deixá-las entrar, em circunstâncias normais. Mas as reconheci e pensei... — ele deixou a frase incompleta carregada de significado. — Quem são, então? — A duquesa de Memphis, senhor, e, acredito, a esposa do embaixador da Hansa. — Vou dormir — disse Kleist, como se não tivesse ouvido nada. — Adivinha por que ela trouxe Riba? — perguntou Henri Embromador. — Quer que eu vá com você? — Sim. Arbell acha que vou vê-la sozinho. Entre você primeiro e seja frio com elas. Eu vou daqui a pouco. Deixe a porta aberta. Henri Embromador quase bateu na porta — mas se conteve e a abriu com um pouco de força demais, para compensar. Tanto Arbell quanto Riba ficaram de pé, um pouco assustadas, e ele notou a decepção no rosto de Arbell. Ponto para Cale. — É tarde pra visitas, madames. O que desejam? — Modos, talvez — disse Riba. Mas Henri Embromador não se intimidava facilmente. — Então é uma visita social? Fico surpreso, porque vocês tiveram muito tempo pra nos visitar antes. Obviamente, eu estava enganado em achar que queriam alguma coisa. Peço desculpas. — Não faz assim, Henri. Não é digno de você. — É, sim. — Não. Você é a pessoa mais gentil do mundo. — Dessa vez foi Arbell que falou, mas delicadamente, nem um pouco como a orgulhosa Materazzienne. — Não sou mais tanto. Tive tempo de pensar enquanto estava esperando para ser espancado até a morte... pensar na gentileza, quero dizer. Você é uma pessoa gentil, Riba, mas teria me deixado morrer no porão de Kitty das Lebres. Já Cale não é gentil, mas não deixaria, não me deixou morrer, quero dizer. Portanto, parei com a gentileza. O que vocês querem? Henri Embromador sentiu que havia algo estranho na sua própria indignação, algo que ele só saberia definir muito depois. Ele estava gostando. Cale, cuidadosamente esperando o momento certo para uma entrada dramática, achou que o momento chegara. — Por que não contam pra ele? Eu também gostaria de ouvir. Vê-la o abalou. Estava linda, claro, com aquele desabrochar que tanto o impressionara quando haviam se encontrado no corredor. Mas existe um incontável número de mulheres lindas no mundo, muitas delas com o mesmo lustro de juventude e poder — mas algo nela o tocava, sempre tocara e sempre tocaria, como um gêmeo perverso do acorde perdido, cuja
descoberta o extinto povo da montanha acreditava que geraria uma calma grande e infinita. Ele queria ser amado por ela e torcer seu pescoço em igual medida. — Já fomos todos amigos — disse Riba, e então se virou para Henri Embromador. — Podemos conversar em algum lugar? — perguntou, tão triste e docemente que, coração mole e sentimental como era, ele se envergonhou de seu rompante. Cale fez um movimento de cabeça para ele e Henri levou Riba para fora, mas não antes que ela tomasse a mão de Cale. — Por favor, seja gentil — pediu ela, e se foi. Os dois se entreolharam por algum tempo. — Imagino que você... — O ajude — interrompeu Arbell. — Por favor. Agitado e tentando esconder isso, ele foi até a elegante e desconfortável poltrona e se sentou. — Como? — perguntou ele. — E por quê? — Eles acham... os suíços... que você é o salvador deles. — Não seriam os primeiros a terem essa ideia errada. — Eles ouvirão você. — Não sobre isso, não vão. Foi um desastre e alguém precisa pagar. — Você teria feito melhor? — Eu nem teria ido lá, pra começar. — Ele não merece morrer. — Nem consigo explicar o pouco que isso tem a ver com o que está acontecendo. — Você me odeia tanto que vai deixar um bom homem morrer só pra se vingar? — Já salvei a vida dele uma vez, provavelmente a maior idiotice que já fiz, e se eu quisesse me vingar, sua vaca traidora, você já estaria morta. — Ele não merece morrer. — Não. — Então o ajude. — Não. — Por favor. — Não. Era um prazer raro e intenso vê-la sofrer. Cale sentia que jamais iria se cansar disso. No entanto, também sentia o pavor de perdê-la, um horror que aumentava quanto mais ele se deliciava em ver sua dor. Era como coçar uma comichão, só aumentando a dor, ao mesmo tempo que isso estaticamente aliviava essa mesma dor. Agora ela estava tremendo e pálida de medo. — Eu sei que foi você que colocou fogo na ponte. Isso foi um certo choque. — Fui? — Sim. — E as provas? — Eu te conheço.
— Eles vão querer mais do que isso. — E eu conheço duas testemunhas que também te conhecem. Isso era totalmente possível; havia muita gente perto da ponte, e talvez alguns dos homens de Artemisia tivessem aberto o bico. — Você mudou sua tática — disse Cale. — Primeiro foram lágrimas, e agora, ameaças. — Foi você. — Ninguém se importa. Quem pôs fogo na ponte, seja quem for, é um herói. Só que não fui eu. Mesmo se alguém confessasse, não faria diferença. Alguém precisa levar a culpa. Conn é o cara. Só isso. Agora pegue suas lágrimas e suas ameaças e ponha-se daqui pra fora. Ele se levantou e saiu, metade satisfeito, metade arrasado. Lá fora, no corredor, Riba e Henri Embromador interromperam a conversa franca que estavam tendo. Ela chegou perto de Cale e começou a falar. — Cala a boca! — ordenou, e como uma criança mimada e furiosa, subiu as escadas correndo para ir se deitar.
23 — O QUE ARBELL MATERAZZI QUERIA? — PERGUNTOU BOSE IKARD. A reunião com Cale tinha começado mal, com outra pergunta mal-humorada. — Que diabos o senhor achou que estava fazendo? — Isso era com respeito ao peculiar desempenho de Cale no julgamento de Conn Materazzi. — Explicamos muito bem o que você tinha que dizer. Aquilo era verdade. — Isso foi antes que eu percebesse que vocês tinham uma fila de testemunhas pra contar a mesma história. Não sei por que não jogaram aberto de uma vez e pagaram a cada uma assim que ela descia do banco de testemunhas. Pelo menos eu fiz a coisa toda parecer plausível. Isso era totalmente verdade. A meia-traição de Cale de fato tivera o efeito de tirar a força, ainda que só parcialmente, da alegação dos Materazzi de que o julgamento tinha sido um mero espetáculo. O comportamento impressionante de Conn no julgamento o havia feito conquistar alguma simpatia, e quando, pressionado por Riba, seu marido levantara objeções em nome da Hansa à imparcialidade do julgamento, Ikard pudera apontar o testemunho de Cale como prova de que os depoimentos não haviam sido manipulados antecipadamente. Isso também beneficiou Cale, dando a impressão de que ele era honesto e se recusava a difamar um camarada soldado, mesmo quando seria do seu interesse fazê-lo. Além disso, uma espécie de mania elevara Cale acima do plano dos homens comuns. Em questão de dias, ele se tornara famoso. Não era muito surpreendente, considerando as circunstâncias pavorosas em que o Eixo se encontrava. Se um salvador já fora necessário, era agora. — Está me espionando? — perguntou Cale, sabendo muito bem a resposta. — O senhor é observado por todos os observadores, sr. Cale. Não pode nem fazer xixi sem que o significado disso seja discutido em todas as mesas de jantar da cidade. O que ela queria? — O que você acha? — E? — E nada. — Não vai interceder por ele? — Iria ajudar se eu intercedesse? — Poderia fazer um pedido formal de leniência, se quisesse. Por escrito. Eu entregaria pessoalmente ao rei. Era isso, então. — Não, eu não tenho nada a ver com essa história. Uma pena, pensou Bose. Ele com certeza não teria entregado nada ao rei, se Cale tivesse sido tolo o suficiente para escrever o tal pedido. O rei havia esquecido sua obsessão por Conn — ou melhor, agora achava que fora excessivamente influenciado pelo entusiasmo de Bose Ikard pelo jovem (como se seu chanceler tivesse alguma escolha além de aceitar o favoritismo histérico de seu superior). Por enquanto, Cale era o favorito de todos, inclusive do rei, por isso não seria bom ser visto tramando contra ele. Mas Bose era cético sobre a capacidade do garoto de manter todos felizes por muito tempo. Fossem quais fossem suas habilidades, a
política não era uma delas. E, no fim das contas, a habilidade e o talento não eram nada em face da política. Poderia ter sido útil ter uma carta dele no bolso. — Tem certeza? — Sim — disse Cale, encostando as costas da mão sob o queixo. — Estou até aqui de certeza. — Isso é algum tipo de brincadeira às minhas custas? — Não. — E também tem certeza de que tem os homens para criar seu Novo Exército Modelo? — Sim. — Porque eu tenho conselheiros experientes e conhecedores que dizem não ser possível criar um exército de camponeses, de maneira geral, muito menos um exército capaz de derrotar os Redentores. E não vamos nem falar da falta de tempo. — Eles têm razão. — Entendo. Mas é possível para o senhor? — Sim. — Por quê? — Em Golan, os lacônicos infligiram nos Redentores a maior derrota de sua História. Dez dias depois, os Redentores infligiram nos lacônicos a pior da deles. A diferença fui eu. — Cale estava refestelado de forma insolente em sua poltrona, mas agora se endireitou. — Esse espião atrás da cortina vai aparecer, ou vou ter que ir lá e puxá-lo à força? Bose suspirou. — Apareça. — Um jovem sorrindo amavelmente, de 20 e poucos anos, apareceu. Era Robert Fanshawe, batedor dos lacônicos. Cale tinha visto o homem pela última vez quando fizeram um acordo sobre os prisioneiros, depois da batalha sobre a qual acabava de se vangloriar. — Você não parece bem, Cale, se não se importa que eu diga. — Eu me importo sim. — Não parece bem assim mesmo. — Então — disse Bose Ikard. — Pelo menos isso prova que você realmente o conhece. — Conhecê-lo? — perguntou Fanshawe. — Nós somos amiguinhos. — Não, não somos! — exclamou Cale, deliciando Fanshawe com seu desconforto e o medo de como aquilo poderia ser interpretado. — As alegações do sr. Cale sobre sua importância para a vitória dos Redentores têm mérito? — Eu não estou alegando nada — disse Cale. Fanshawe olhou para ele, calmo, já sem rir. — Sim, esse jovem fez a diferença. — Então por que o senhor tem tanta certeza de que o Novo Exército Modelo dele vai fracassar? — As rebeliões de camponeses existem há tanto tempo quanto os próprios camponeses — disse Fanshawe. — Cite uma que teve êxito? — Ele olhou para os dois, a cabeça virada de um jeito zombeteiro, esperando uma resposta. — Os lacônicos lutaram em seis guerras contra nossos hilotas nos últimos 100 anos... se se pode chamar de guerra a matança de caipiras
sem treinamento. Acaba da mesma forma. Sempre. — Desta vez não — disse Cale. — Por quê? — Prefiro mostrar, não contar. — Excelente. Estou ansioso para ver sua apresentação dos detalhes. — Não. — Como assim? — perguntou Bose Ikard. — Não vou dar um espetáculo para que seus paspalhos possam me oferecer o benefício de sua experiência. Haverá uma luta, e quem estiver de pé no final venceu a discussão. Cem homens pra cada lado. — As regras? — Não existem regras. — Um combate de verdade? — Existe algum outro tipo? Traga quem quiser, como quiser. — E o senhor terá só seus camponeses? — Vou trazer quem eu bem quiser. — Mas era difícil demais resistir. — Vão ser 80 plebeus e 20 dos meus veteranos. — E o senhor? — Vou ficar assistindo Fanshawe apanhar feito um cachorro. — Eu? Eu sou só um conselheiro lacônico. Não poderia tomar parte nisso. Bose Ikard estava desconfiado, como sempre, mas considerou que talvez fosse melhor assim: ele queria saber o que Cale estava tramando, e era difícil pensar numa maneira melhor do que aquela. Havia soldados suíços que achavam que mereciam mais reconhecimento do que um garoto de aspecto lamentável. Agora teriam a chance de provar isso. — Vou te dar um retorno sobre isso — disse ele. — Feche a porta ao sair, sr. Cale. Uma palavrinha, sr. Fanshawe.
24 NA MANHÃ DA EXECUÇÃO DE CONN, O SOL NASCEU COM TANTO CALOR E LUZ COR DE MEL QUANTO SE AQUELA FOSSE A CELEBRAÇÃO DO JUBILEU DE UM MONARCA MUITO AMADO. ÀS DEZ DA MANHÃ, ELE FOI RETIRADO DE SUA CELA EM SWARTHMORE E LEVADO PARA O PORTÃO OESTE E ATRAVÉS DO PARC BEAULIEU PARA O LUGAR DA EXECUÇÃO NA QUAI DES MOULINS. CINCO DE SEUS HOMENS, MAS NÃO VIPOND, NEM SUA ESPOSA, ACOMPANHARAM CONN, DE CABEÇA DESCOBERTA E DESARMADOS. ALI ELE COMEU UM PEDAÇO DE PÃO E TOMOU UMA TAÇA DE VINHO NA GALERIA VETCH. DESDE ANTES DE AMANHECER, UMA IMENSA MULTIDÃO VINHA SE REUNINDO PARA PEGAR OS MELHORES LUGARES DE ONDE ACOMPANHAR TODA A AÇÃO. Junto com a empolgação costumeira de uma plateia que se deliciava com o sofrimento hediondo de outro ser humano, havia o ódio adicional de cidadãos que responsabilizavam Conn Materazzi não só pela derrota em Bex, mas pelo justificado temor de que na primavera do ano seguinte os Redentores estariam fazendo com eles a mesma coisa que eles estavam prestes a fazer com Conn. Uma espécie de banda de metais, patrocinada pelo maior fabricante de tortas da cidade, desferia versões grosseiras de canções populares e rendições esganiçadas de hinos marciais vangloriosos sobre os suíços jamais serem escravos. A multidão era uma mistura peculiar de desiguais: malfeitores, ladrões, vadias e desocupados, carpinteiros e balconistas, comerciantes com suas esposas e filhas e, é claro, um terraço especialmente construído para aqueles que realmente importavam. No geral, era um tal aperto de gente rancorosa que aqueles que não estavam acostumados sofriam demais, mais especificamente, as esposas e filhas da burguesia, que desmaiavam com o calor e precisavam ser carregadas com seus grandes decotes em desalinho, o que instigava os aprendizes bêbados (“MOSTRA OS PEITOS PRA GALERA!”). Como sempre, era um péssimo dia para os gatos: ao menos uma dúzia deles foram lançados ao ar, uivando no grande espaço diante do lugar da execução. Em geral, nos quatro cantos do mundo, a morte judicial acontecia por enforcamento, decapitação com um machado ou na fogueira — às vezes, as três coisas ao mesmo tempo, se você fosse particularmente azarado. Mas na Leeds Espanhola, gente comum e aristocratas eram todos decapitados de uma forma peculiar, e por um carrasco muito incomum. Formalmente, se chamava Patíbulo de Leeds, mas o populacho o chamava de Bob Cortador. Consistia numa estrutura de madeira de uns 5 metros de altura por um de largura, presa a um grande bloco. Era parecida com a guilhotina francesa, só que muito maior e mais tosca. Mas, diferentemente da guilhotina, não havia um só carrasco no Patíbulo de Leeds: havia muitos. Depois que o bloco e o machado eram puxados para o alto da estrutura e presos com um pino, a corda que segurava o pino no lugar era entregue a qualquer pessoa da plateia que pudesse segurá-la. Quem não conseguia segurar estendia as mãos para mostrar que consentia e concordava com a execução. Essa, portanto, era a visão que aguardava Conn quando ele surgiu na plataforma para a sua morte. Sua camisa de seda preta havia sido cortada ao redor do colarinho, sem muita habilidade,
para expor seu pescoço. Camisas pretas de seda, então no auge da moda, ficariam impopulares por muitos anos depois disso. Naturalmente, o patíbulo dominava o local, e se a beleza é a forma que melhor traduz a finalidade de um objeto, então sua feiura era linda. Ele parecia o que era. Era uma pena que nenhum de seus amigos pudesse subir na plataforma com ele: Conn merecia que alguém testemunhasse sua coragem diante daquele dispositivo pavoroso. Talvez houvesse alguns na multidão, não muitos, que sentiam a coragem do jovem. Era verdade que ele tinha demonstrado grande bravura na batalha, mas aquela era uma coragem num lugar onde todos em volta compartilhariam o mesmo destino; onde havia medo, mas também camaradagem e a perspectiva de honra e propósito. Ali, tudo era isolamento, em meio às provocações e à crueldade; dar às pessoas o prazer de assistir a um terrível sofrimento sem correr nenhum risco. Mas havia ao menos uma pessoa em meio à multidão que o admirava, que sabia da injustiça e da ilegalidade, do erro de sua morte. Cale estava na torre do campanário da catedral de Santa Ana, que dominava a praça — a uma distância de uns 50 metros do patíbulo e 9 metros de altura. Estava sozinho e fumando um de seus excelentes charutos suíços, um Diplomata nº 4, nos quais tinha se viciado agora que podia dispor deles todo dia. Ele não saberia dizer como se sentia — não enojado, como se sentiu na morte da donzela de Blackbird Leys, mas com uma espécie de tranquilidade mortal na qual ele parecia, paradoxalmente, vivo para tudo: as obscenidades zombeteiras, os assobios, o homem sorrindo para Conn e tocando dois dedos em sua testa, deliciado pelo horror que se aproximava. Mas Cale também se sentia distante, como se a torre o colocasse acima da névoa de perversidade e prazer lá embaixo. Uma pequena tribo de cachorros se perseguia, latindo alegremente, por entre as pernas dos soldados virados para a multidão na plataforma, desarmados, mas carregando tambores. Conn esperou que lhe dissessem o que fazer. Uma cura se aproximou. — Você foi autorizado a falar, mas eu devo avisar você para não dizer nada contra a coroa ou contra o povo. Conn se adiantou para falar. O barulho da multidão diminuiu um pouco — um bom discurso era motivo para se jantar fora. A 30 metros dali, os apontadores de apostas em seus poleiros anotavam os palpites de quantos esguichos de sangue haveria. — Não vim aqui para falar — disse Conn, surpreso com a firmeza de sua voz, sentindo seu estômago se revirar. — Vim aqui para morrer. — Fala mais alto — gritou alguém na multidão. — Eu quase não seria ouvido, mesmo que gritasse até morrer. Serei breve... preferiria não dizer nada, não fosse pelo fato de que ir ao encontro da morte em silêncio faria alguns pensarem que me submeti à culpa como me submeto à punição. Morro inocente... Do alto da torre, Cale ouviu a palavra “inocente”, mas nada mais, quando o cura fez sinal para que os soldados com os tambores cobrissem as acusações de injustiça de Conn. Se calando por causa dos tambores ou por não ter muito a dizer, Conn terminou e andou para a frente, na direção não exatamente do carrasco, mas ao menos do homem responsável pelo funcionamento do patíbulo.
— Espero que você tenha afiado a lâmina como manda o seu dever. E quero que minha cabeça seja cortada no pescoço, não partida como um ovo, como eu soube que você fez com o lorde cavaleiro de Zurique. Se fizer alguma besteira, não receberá gorjeta. Faça tudo correr bem e ficará feliz por ter matado Conn Materazzi. — Obrigado, senhor — agradeceu o quase-carrasco, que dependia dessas gorjetas como pagamento —, temos um novo mecanismo para evitar que aconteça de novo um infortúnio daqueles. Conn andou até o patíbulo, respirou fundo, como que para engolir de volta seu terror, e se ajoelhou, encaixando o pescoço num semicírculo novinho em folha, claramente escavado na madeira. A nova travessa de cima foi rapidamente colocada no lugar, formando a outra metade do orifício, e travada. Acima dela, a lâmina plana em seu pesado bloco de madeira era sustentada por dois pinos, cada um preso a uma corda. Um dos pinos era travado por um grampo, e foi a corda desse que o executor jogou na multidão. Ele esperou até que a luta para segurá-la terminasse, então subiu numa escada apoiada na estrutura e pôs a mão direita no grampo que segurava o pino para que ninguém da multidão pudesse puxá-lo antes da hora. Ele se dirigiu ao povo. — Vou contar até três... quem estiver segurando a corda e não soltar no três vai levar umas chicotadas. — Satisfeito de que os que seguravam a corda estavam sob controle, ele gritou: — Um! — DOIS! — gritou a multidão. — TRÊS! Ele puxou o grampo com um grande floreio. A corda e o pino ficaram soltas, o bloco e a lâmina sacolejaram trilho abaixo e bateram na base com um barulho medonho. A cabeça de Conn disparou do patíbulo como se tivesse sido lançada de uma funda, voou por cima da plataforma e do povo, desaparecendo em meio aos homens e mulheres mais bem vestidos em seus trajes dominicais. Cale olhou para baixo por um momento. Por que isso? Ele pensou. Por que assim? Então ele se virou de costas, deixou cair o que restava do charuto no chão e foi embora. Mas assim como podia ver o que havia acontecido, Cale também podia ser visto. Depois se espalhou que ele não só tinha fumado durante a morte de Conn, assim como riu do horrível desfecho. Com o tempo, isso causaria grandes danos à sua reputação. Arbell estava de pé do outro lado da sala, olhando pela janela e apertando forte seu bebê, balançando lentamente o corpo para a frente e para trás. Para Riba e seu marido, aquela caminhada pareceu infinitamente longa. Eles pararam a alguns metros dela; ambos comentaram, depois de ir embora, que era como se o próprio ar entre eles e Arbell tremesse de terror e os detivesse. — Acabou? — Sim. — Ele sofreu? — Foi muito rápido, e ele estava calmo e demonstrou grande coragem. — Mas não sofreu? — Não, não sofreu.
Ela se virou para Riba. — Você não estava lá? — Era uma acusação. — Não, não estava — disse Riba. — Eu não deixei que ela fosse. — Arthur Wittenberg achou que estava ajudando. Não estava. — Claro que eu não poderia ir, não poderia — negou Riba, reconfortante. — Eu deveria ter ido — falou Arbell. — Deveria estar com ele. — Ele teria detestado isso — afirmou Riba. — Detestado. — Ele me deixou bem claro — disse Wittenberg —, ontem à noite, quando conversamos, que não suportaria sua presença lá... sob qualquer circunstância. Poucas vezes uma mentira foi contada de uma maneira tão desajeitada. Mas Arbell não estava em condições de perceber muita coisa. O bebê, que estava até então muito calmo porque gostava de ser abraçado forte, começou a se contorcer. —Yaaaaaaaaach! — gritou o bebê. — Bleeuch! — Finalmente, conseguiu soltar o braço direito e começou a puxar um cacho do cabelo de Arbell. Arranca. Arranca. Puxa. Puxa. Ela não pareceu notar. — Quer que eu fique com ele? Arbell se afastou de Riba como se ela tivesse se oferecido para tirar a criança dela permanentemente. Com delicadeza, ela soltou as mãozinhas do bebê do seu cabelo. Na porta, uma criada gritou: — Lady Satchell veio... Mas o final da frase foi afogado pela dramática comoção e barulheira da mulher anunciada. — Minha querida — choramingou do outro lado da sala. — Minha querida... que cauchemor, que nagmerrie, que kosmorro! — Um idioma só era insuficiente para o desempenho de lady Satchell. Ela era conhecida, até entre as Materazzienne, como a Grande Surtadora. Não havia situação que, com sua aparição instantânea, ela não pudesse piorar com histeria. Nem mesmo aquela. — Eu lamento tanto, querida — disse ela, apertando Arbell contra o peito. Nenhum escudo trêmulo de dor desencorajava lady Satchell. Para ela, a dor de Arbell era tão invisível quanto uma teia de aranha para um touro. — Foi pavoroso, strasny! Terribile! O pobre rapaz... ver aquela cabeça linda fazer um weerkats pela Quai des Moulins. Por sorte, a força bruta da capacidade histérica de Satchell de dramatizar a fez descambar para o africâner, de modo que Arbell mal entendia o que ela estava dizendo. — E aquele mostruoso Thomas Cale... ouvi uma pessoa que estava com ele dizer que o infeliz riu do Misero Conn quando ele morreu, e fumou um charuto e soprou anéis de fumaça no cadáver do disgraziafo. Arbell ficou olhando para ela. Era difícil imaginar que alguém pudesse ficar tão branca e continuar viva. Riba a pegou pelo cotovelo e a puxou para longe à força, cochichando: — Cale essa boca, sua vaca sem coração! — E fez um sinal para os dois criados na porta. — O que está fazendo? Sou a prima querida dela. Quem você pensa que é, sua vadia limpadora de privadas, para... — Tirem ela daqui — ordenou Riba aos criados. — E se eu a vir aqui de novo, vocês dois
vão se arrepender de ter nascido. Lady Satchell ficou tão surpresa por ser agarrada pelos criados, agora alegremente autorizados a maltratar alguém de estirpe superior, que já estava fora antes de conseguir abrir a bocarra novamente. Riba voltou para sua ex-patroa, traduzindo a história. — É verdade? — Sua voz era tão baixa que Riba mal conseguia ouvi-la. — Eu não acredito. — Mas você também ouviu isso? — Sim. Mas não acredito numa palavra. Não é do feitio dele. — É exatamente do feitio dele. — Ele salvou a minha vida. Também salvou a de Conn, por amor a você. — E cometeu perjúrio contra Conn porque acha que eu o traí. Eu não poderia ter feito outra coisa. Mas você não sabe como ele é quando está contra você... o que ele é capaz de fazer. Dividida entre os dois como Riba estava, seus primeiros pensamentos não foram generosos com sua ex-patroa. Se você não tivesse traído Cale, Conn ainda estaria vivo. Tudo teria sido diferente. Naturalmente, parte dela sabia que isso era injusto, mas mesmo assim não deixava de ser verdade. — Eu falei. Não acredito numa palavra. Mas isso não era completamente verdade. Quem entre nós, ao ouvir que nosso melhor amigo foi preso por um crime hediondo, não pensaria, lá nos cantos mais recônditos da alma, nas sombras ocultas do alçapão mais crepuscular do coração, que aquilo poderia ser verdade? Quão mais fácil, então, para Arbell, acreditar que Cale rira de seu amado marido quando ele morreu. Ela não deveria ser acusada por essa falta de fé em Cale — é da natureza humana odiar a pessoa que magoamos. — É verdade? — Parece ruim, portanto, provavelmente é — disse Cale. Não havia como confundir o tom desconfiado e furioso de Artemisia. — Responda. Você riu de Conn Materazzi quando ele morreu? Ele tivera muitos anos de prática ocultando seus sentimentos — o controle das emoções espontâneas era uma questão de sobrevivência no Santuário — mas uma pessoa menos furiosa do que Artemisia poderia ter notado que ele arregalou os olhos ao ser acusado. Não muito e não por muito tempo. — O que você acha? — perguntou ele, displicente. — Não sei o que pensar, por isso estou perguntando. — A questão é: eu estava na torre, sozinho. Poderia ter sacrificado um bode ali e ninguém ia saber. — Você ainda não respondeu a pergunta. — Não. — Não o quê? — Não, eu não ri de Conn Materazzi quando ele morreu. E com isso, ele se levantou e foi embora.
— Estou impressionado — falou IdrisPukke. — Por quê? — Pouco tempo atrás, você teria dito a ela que riu de Conn, só para puni-la por perguntar. — Pensei em fazer isso. — Claro que pensou. — Por que ela ia acreditar em algo assim? — Todos se referem a você como o Anjo Exterminador. Não é tão surpreendente que as pessoas não lhe deem o benefício da dúvida. Além disso, os tempos que correm pedem um homem com reputação de crueldade incontida... as pessoas querem sentir que, com uma criatura assim do seu lado, terão uma chance de sobreviver até o ano que vem. — Mas elas não me conhecem. — Justiça seja feita, não é algo fácil... conhecer você, quero dizer. — Ela já deveria. — Mesmo? O que ela sabe é que você mentiu sob juramento com tanta facilidade quanto se estivesse dizendo a uma senhora que gostou do chapéu dela. — Isso de novo não. O que eu podia fazer? Se confessasse, seriam duas cabeças quicando na praça. — Concordo. Mas mesmo com todas as suas habilidades excêntricas, Artemisia não entende as coisas como realmente são. Ela é um deles. Quanto mais dinheiro você tem, mais legal é o mundo; se você tem dinheiro e poder, o mundo é legal a ponto de ser quase celestial. Para essas pessoas, a crueldade do mundo é uma aberração, não o estado normal das coisas. Você teve a sorte de nunca acreditar que qualquer coisa fosse justa. Precisa dar tempo para que ela aprenda que está morando em outro mundo, agora. Ela não teve as tuas desvantagens. O espírito da época costumava passar por ela, Conn e o rei... agora passa por você. Este é o seu momento, pelo tempo que durar. — Significando? — Chegará um momento em que não será. — Quando? — Difícil dizer. A questão é que, sempre que chega ao fim, a pessoa que era a dona daquele momento geralmente é a última a perceber.
25 NÃO HÁ MUITAS VANTAGENS EM SE FICAR DOENTE, EXCETO QUE FICAR DOENTE POR MUITO TEMPO PROPORCIONA INFINITAS OPORTUNIDADES PARA PENSAR. PARA OS PERMANENTEMENTE DOENTES, NÃO EXISTEM DISTRAÇÕES SUFICIENTES PARA PREENCHER OS DIAS INTERMINÁVEIS E, ALÉM DISSO, A DOENÇA PODE FACILMENTE DRENAR A ENERGIA NECESSÁRIA PARA LER OU JOGAR. ENTÃO VOCÊ É OBRIGADO A PENSAR, MESMO QUE SEJA O TIPO DE PENSAMENTO VAGABUNDO, QUE FLUTUA SEM RUMO DO PASSADO AO PRESENTE, SOBRE REFEIÇÕES CONSUMIDAS, AMANTES BEIJADOS, NOITES DE HUMILHAÇÃO, ARREPENDIMENTOS AMARGOS. CALE TINHA UM TALENTO PARA ESSE TIPO DE COISA. NO MANICÔMIO DIRIGIDO POR KEVIN MEATYARD, ELE CONSEGUIRA USAR AS HABILIDADES APERFEIÇOADAS NO SANTUÁRIO DURANTE TODOS AQUELES ANOS PARA SE ESCONDER EM ALGUM LUGAR DE SUA CABEÇA. MAS NAQUELA ÉPOCA, ELE ERA TÃO IGNORANTE DO MUNDO QUANTO UMA PEDRA: HAVIA SUA HORROROSA VIDA REAL E SEU MUNDO IMAGINÁRIO, ONDE TUDO ERA MARAVILHOSO. AGORA, OS DEVANEIOS FLUTUANTES ESTAVAM TODOS MISTURADOS COM AS INÚMERAS COISAS QUE HAVIAM ACONTECIDO COM ELE DESDE ENTÃO. SONHAR ACORDADO NÃO ERA MAIS TÃO PRAZEROSO. POR ISSO, ELE TENTAVA PENSAR EM COISAS ÚTEIS — RUMINANDO IDEIAS, MARTELANDO PLANOS E ELABORANDO CONCEITOS QUE, SE ELE ESTIVESSE SAUDÁVEL, TERIA RELEGADO AO FUNDO DE SUA MENTE PARA JUNTAR PÓ. A religião das classes superiores dos suíços e de seus aliados era um negócio esquisito. Foi com considerável surpresa que Cale descobriu que eles também veneravam o Redentor Enforcado — mas enquanto os Redentores propriamente ditos haviam criado uma religião cheia de pecados, castigos e inferno, de coisas que preenchiam cada momento do dia, a religião dos aristocratas e comerciantes suíços se desenvolvera mais ou menos exatamente na outra direção: à parte a missa aos domingos, os casamentos e os funerais, parecia não haver nenhuma exigência específica nem referência às terríveis consequências resultantes de não se cumprirem essas sugestões fracamente insinuadas. Mas não era assim para os trabalhadores e camponeses. Estes últimos, em particular, eram extremamente religiosos, tanto que tinham um grande número de credos a seu dispor, mas na base de todos eles estava o Redentor Enforcado. Embora cada seita acreditasse a única verdadeira herdeira de suas crenças, todas reconheciam, com maior ou menor ênfase, que pertenciam a uma mesma família. Mas uma coisa que as unia era seu ódio universal pelos próprios Redentores, considerados corruptos, idólatras, usurpadores hereges homicidas. Fossem quais fossem as diferenças entre o povo das planícies e os milleritas, os Dois por Dois e as Jennifers Gnósticas, Cale conversara com um número suficiente dessas seitas para saber que o empenho delas em destruir os Redentores era de um tipo para o qual a morte seria um privilégio mais do que um preço. Independente de seus sentimentos pessoais acerca de mártires, ele estava acostumado a fazê-los trabalhar a seu favor. Aquela era uma moeda de troca que ele entendia. Já haviam se passado quase três semanas desde a morte de Conn Materazzi, e ele usara esse tempo para convencer os vários líderes das importantes facções religiosas (moderadores, pastores,
arquimandritas, apóstolos) de que ele estava profundamente empenhado em destruir os Redentores e suas perversões hediondas dos verdadeiros ensinamentos do Redentor Enforcado, como somente alguém que sofrera pessoalmente sob o jugo deles poderia estar. Por sorte, isso não requeria habilidades diplomáticas hanseáticas: todos estavam mais do que dispostos a acreditar nele. Por isso todos estavam presentes no Campo de Prata às dez da manhã para testemunhar a batalha muito pouco de mentira entre o Novo Exército Modelo em botão de Cale e os suíços. Também presentes estavam Henri Embromador, IdrisPukke, Kleist e uma ainda gélida Artemisia Halicarnassus. Isolados e de lado, com ar desconfiado, estavam Bose Ikard e um sortimento de generais suíços recém-nomeados, elevados às suas novas posições graças ao sumiço de seus antigos oficiais superiores, agora apodrecendo suavemente nas valas comuns em Bex. No dia seguinte ao da reunião com Bose Ikard e Fanshawe, Cale escrevera para exigir, já que o destino de várias nações dependia do êxito de sua tentativa de criar esse Novo Exército Modelo, que o combate de seus cem homens contra os dos Cavaleiros Suíços fosse realizado com armas afiadas e sem regras, exceto uma que permitia a rendição. Como era a intenção, isso alarmou os suíços, os quais, acertadamente desconfiados, exigiram que somente armas de manobra, sem ponta, fossem usadas. Cale recusou. No fim, um meio-termo foi alcançado: armas sem fio, nada de farpas ou pontas, e bestas e flechas com pontas arredondadas e barras para evitar que penetrassem fundo. O dia começou com um estranho incidente envolvendo Cale que, de tanto ser contado e recontado, fez surgir uma lenda peculiar. A pessoa envolvida era apenas um membro de pouca monta da aristocracia rural, que chegara à Leeds Espanhola na noite anterior, tentara seguir o rastro de um ou outro príncipe e estava desfrutando da atenção dos vários lacaios que atendiam às necessidades da nobreza reunida. Sem perceber que o garoto pálido ao seu lado, em sua simples batina preta, era a personificação da Ira de Deus e anjo exterminador superpoderoso, ele o confundiu com um serviçal e educadamente, é bom que se diga, pediu um copo d’água com uma rodela de limão. O serviçal o ignorou. — Olhe aqui — ele disse com mais energia para Cale. — Me traga um copo d’água com uma rodela de limão, e já. Não vou pedir de novo. — O serviçal fitou-o com os olhos inflamados por uma incredulidade e um desdém que o homem confundiu com o pior tipo de insolência atoleimada. — Quê? — disse Cale. O recém-chegado grã-fino rural estava ansioso para não ser percebido como um mocorongo do tipo que se deixa intimidar por um lacaio, e interpretou o silêncio estarrecido de todos ao redor como um sinal de que eles estavam esperando para ver se ele estava à altura de lidar com a insolência de um serviçal. Ele tascou um enorme tabefe no rosto de Cale. Seguiu-se um silêncio paralisado que fez o silêncio anterior parecer uma algazarra. Foi o príncipe que convidara o sujeito quem deu a notícia. — Meu Deus, homem, esse aí é Thomas Cale. Não existe em nenhum idioma um adjetivo adequado para descrever a palidez do rosto do cavalheiro caipira quando todo o seu sangue foi para as botas. Sua boca se abriu. Os outros esperaram que algo horrível acontecesse.
Cale olhou para o homem. Houve uma longa pausa, um silêncio aterrador, repentinamente interrompido quando Cale deu uma risada curta de diversão. Então ele se afastou. Cada lado podia trazer trinta cavalos, e quando os suíços entraram no campo, certamente pareciam impressionantes, com os cavalos mordendo os freios, ansiosos para avançar, e ao lado deles, os setenta cavaleiros a pé, com as carapaças das armaduras brilhando ao sol da manhã. Lindo. Formidável. Eles formaram uma fileira e esperaram. Não por muito tempo. Do outro lado do parque, o que parecia uma carroça de camponeses apareceu, e outra atrás dela, e mais outra — quinze ao todo. Cada uma era puxada por dois imensos cavalos Shire, uma vez e meia o tamanho das montarias de caça usadas pelos cavaleiros. Quando se aproximaram, ficou claro que aquelas não eram as costumeiras carroças para carregar feno ou porcos — eram menores, com os lados inclinados, e tinham tetos. Contrastando, as quinze carroças eram ladeadas por dez dos batedores a cavalo de Artemisia, homens leves montando velozes pôneis Manipur, famosos por sua agilidade. Eles empunhavam bestas, uma arma pouco usada em Halicarnassus. As bestas haviam sido projetadas por Henri Embromador para serem usadas a cavalo — leves, nada tão potente quanto a super-retesada que ele também projetara, mas muito mais fáceis de armar e carregar. As carroças chegaram ao lugar definido e formaram um círculo. Os condutores saltaram para o chão e desatrelaram os cavalos, levando-os para o meio do círculo. Os vãos entre as carroças não eram muito grandes, pois os cavalos haviam sido meticulosamente treinados para posicioná-las antes de serem soltos. Os condutores removeram depressa escudos destacáveis de madeira presos à traseira das carroças, encaixando-os entre elas, de modo que agora carroças e escudos formavam um círculo contínuo, sem nenhum vão. Os suíços olhavam, alguns divertidos, os mais inteligentes ressabiados. O único jeito de passar pelas carroças era pelos espaços por baixo delas, mas estes logo foram fechados, quando mais quatro pranchas de madeira foram baixadas por fendas no fundo de cada carroça. Por um momento, nada aconteceu. Então ouviu-se um grito de dentro do círculo e os batedores começaram a disparar suas bestas contra as fileiras suíças. O projeto de Henri Embromador podia ser menos potente, mas a uma distância de 100 metros as flechas sem ponta atingiam a fileira cerrada de homens de armadura fazendo uma barulheira feroz. Os suíços só haviam trazido dez arqueiros, e eles eram treinados para alvejar fileiras compactas, não dez homens sobre montarias ágeis. Num embate de cinco minutos, só dois cavaleiros do Novo Exército Modelo foram atingidos, dolorosamente e sangrando, mas eles, por sua vez, atingiram mais de vinte suíços. As armaduras e as flechas sem ponta evitavam ferimentos profundos, mas ficou claro que uma flecha de verdade teria matado ou ferido gravemente quase todos eles. Depois de cinco minutos, uma trombeta soou das carroças e os batedores voltaram para o círculo. Um escudo de madeira foi removido para que entrassem, e eles desapareceram. Então três outros escudos foram retirados, e cerca de vinte homens com marretas e estacas saíram correndo e começaram a plantá-las no chão. Isso estava mais ao gosto dos arqueiros suíços, mas antes que estes pudessem começar a atirar, rajadas e mais rajadas de flechas partiram do meio das carroças, causando muita confusão e ferimentos ainda mais
consideráveis nos arqueiros suíços, que usavam armaduras leves. Sob aquela temível cobertura de proteção, os camponeses que batiam as estacas terminaram o serviço e correram de volta para a segurança das carroças, deixando para trás as estacas de madeira, unidas por cordas finas com farpas afiadas de metal de 15 em 15 centímetros. O estranho nisso era que as estacas e cordas com farpas só protegiam mais ou menos um oitavo do círculo, deixando o resto livre para que se contornasse o desagradável obstáculo. Era difícil entender a utilidade daquilo. Com as flechas ainda chovendo-lhes em cima, os suíços não tinham outra escolha senão avançar e tomar as carroças no combate corpo a corpo. As flechas sem ponta não seriam mais do que um incômodo para homens usando armaduras de tão alta qualidade, e a luta corporal era a especialidade deles. Evitando as cordas com farpas — vários cavaleiros desferiram golpes de espada ao passar perto delas, mas as cordas haviam sido trançadas com fios de aço para evitar uma solução tão simples —, eles se aproximaram das carroças, determinados a forçar a passagem e dar uma surra daquelas nos ocupantes. Embora as carroças não fossem particularmente grandes ou altas, quando eles se aproximaram, não viram nenhuma maneira óbvia ou fácil de passar. De perto, notaram pequenos orifícios quadrados nas laterais das carroças — seis em cada uma. Desses orifícios, flechas de besta eram atiradas, com efeito devastador tão de perto, apesar de serem sem ponta. E rápidas também — uma flecha a cada três ou quatro segundos. Eles eram obrigados a encostarem nas laterais das carroças, tentando erguê-las pelas rodas e virá-las. Mas as rodas haviam sido presas no chão com ganchos de aço. Então os tetos das carroças foram levantados, viraram e bateram nas laterais, com uma articulação e farpas sem ponta na borda de fora, projetadas não para perfurar a armadura de quem atingiam, mas para um impacto esmagador. Dezenas de braços e cabeças foram quebrados nessa manobra. E o motivo da pouca altura das carroças ficou mais claro. Dentro de cada uma havia seis camponeses, armados com as debulhadoras de madeira que se acostumaram a usar toda a vida, tanto quanto os soldados profissionais suíços haviam usado espadas e machadinhas. Mesmo sem pregos nas pontas, que estariam presentes numa batalha de verdade, as debulhadoras se moviam com uma velocidade tão feroz que esmagavam mãos, peitos e cabeças, com ou sem armadura. E as flechas continuavam vindo. Podiam não ser capazes de matar, mas causavam dor terrível e hematomas profundos. Os suíços, por sua vez, mal conseguiam acertar um golpe. O alcance mortal de pouco mais de um metro a que estavam acostumados, determinado pelo comprimento de uma espada ou machadinha, havia sido estendido por Cale em pouco mais de um metro adicional — mas isso fazia toda a diferença. Homens que os suíços teriam esquartejado em poucos segundos em campo aberto tornavam-se intocáveis graças a madeira forte e alguns palmos a mais de altura. E agora os suíços estavam vulneráveis a uma insultuosa coleção de implementos agrícolas modificados, empunhados com confiança e familiaridade por meros camponeses. Depois de quinze minutos de dor e danos, os suíços recuaram — furiosos e frustrados, venenosamente impotentes. Sua retirada foi acompanhada por uma zombeteira, mas mesmo assim dolorosa, ráfica de flechas sem ponta lançadas por uma dúzia dos Purgadores de Cale, até que, com um sinal, ele mandou que parassem. Ele observou com grande prazer quando os generais suíços foram inspecionar os danos para o
pasmado alto comando. Cale, misericordiosamente, não os acompanhou; até de 40 metros de distância, os efeitos das debulhadoras de metal, porretes, martelos, machados sem fio e pedras estavam claros. Depois de dez minutos de inspeção, foi Fanshawe quem voltou para onde estava Cale, aparentemente displicente e frívolo como sempre; mas a verdade era que ele estava abalado pelos desdobramentos do que vira. — Eu estava enganado — ele disse a Bose Ikard. — Poderia funcionar. Mas tenho perguntas. — E eu tenho respostas — disse Cale. Eles combinaram se reunir mais tarde no mesmo dia. Quando deixavam o campo, Bose Ikard alcançou Fanshawe e falou baixinho. — Isso pode mesmo funcionar? — O senhor viu. — E podemos ganhar? — Possivelmente. Mas e se ganharem? O que vai acontecer? — Não estou entendendo. — Vocês mostraram aos seus pobretões que eles são tão bons quanto seus senhores. Eles vão lutar e morrer aos milhares... pois vão morrer... e depois simplesmente devolver esse poder? O senhor faria isso? Na reunião, naquela tarde, houve muitas perguntas mal-humoradas, todas respondidas com facilidade por Cale. No lugar deles, ele teria dificultado mais as coisas — sabia que existiam falhas, embora eles não tivessem percebido. As perguntas de Fanshawe não se concretizaram: ele também podia ver as falhas, mas sabia que poderiam ser resolvidas. Cale respondia calma e amigavelmente, até o último comentário — que insinuou que quando fosse uma questão de vida ou morte, os camponeses desmoronariam diante do sangue e das mutilações. — Então tragam seus homens amanhã de novo e vamos lutar com armas afiadas e sem compaixão — disse Cale, ainda calmo. — Vocês não vão voltar pela terceira vez. Bose Ikard, no entanto, embora ruminasse as consequências a longo prazo apontadas por Fanshawe, viu que eles não tinham escolha senão apoiar Cale: de nada adiantava pensar a longo prazo se não haveria um longo prazo. Ele dispensou seu novo alto comando e cuidou dos detalhes do dinheiro e dos poderes de requisição que Cale exigia. Isso não foi fácil para o chanceler: conceder dinheiro e poder era fisicamente doloroso para ele. Mas ele se preocuparia com a forma de tomá-los de volta, bem como com o perigo dos camponeses armados e treinados, quando tudo aquilo terminasse. No final da reunião, Thomas Cale era o garotinho mais poderoso da História dos quatro cantos do mundo. Ele sentia, quando a carta foi assinada, como se nas profundezas de sua alma peculiar uma pequena nascente de água fresca tivesse começado a fluir. Lá fora, Fanshawe o chamou para um lado. — Você ficou muito quieto — disse Cale. — Cortesia profissional — disse Fanshawe. — Não queria estragar a sua festa.
— E você acha que conseguiria? — Como vai abastecê-los? — Oh, não! Você percebeu o ponto mais fraco... não há como enganar você. Fanshawe sorriu. — Então não terá problemas em me responder, certo? Dez minutos depois, eles estavam numa velha oficina em meio aos cortiços da Leeds Espanhola, e Michael Nevin, puxador e inventor, exibia orgulhosamente uma de suas novas carroças de suprimentos. Agora que tinha dinheiro para financiar sua engenhosidade, o resultado, embora ainda tivesse um parentesco distante com seu carrinho de puxador, era um objeto de elegância e estilo. — Tente puxar — disse Cale. Fanshawe pegou um carrinho de duas rodas pelas barras da frente. Era muito maior do que o original no qual se baseava, e ele ficou assombrado com sua leveza. Nevin parecia um pavão, estufado de orgulho. — Anda quatro vezes mais rápido que as carroças de suprimentos das porcarias dos Redentores, faz bem as curvas e pesa menos da metade. Se não encher demais, só precisa de um cavalo, em vez de seis bois. No aperto, não precisa de bicho nenhum; dá pra usar com quatro homens puxando e metade da carga, e mesmo assim reabastecer quase tão rápido quanto os Redentores. Eu estou babando. Não é que fiz um negócio que é bom pra tudo e pra todos. — Era uma afirmação, não uma pergunta. Cale estava quase tão encantado com Nevin quanto Nevin estava encantado consigo mesmo. — O sr. Nevin também trabalhou comigo no desenvolvimento da carroça de guerra. Foi ideia dele reduzir o tamanho para que elas pudessem ter o dobro da velocidade, talvez, das carroças de suprimentos dos Redentores. A única maneira de eles se moverem com velocidade suficiente para nos seguir e nos atacar seria mandando a infantaria montada atrás de nós, mas sem carroças de suprimentos. Mesmo se nos alcançarem, os batedores de Artemisia terão nos avisado horas antes da chegada. Formamos o círculo, cavamos uma trincheira de dois metros em volta, e o que eles vão fazer? Se nos atacarem, faremos picadinho deles, pior do que foi hoje. Se esperarem, os batedores chamarão mais tropas para substituí-los. Lembre-se, haverá duzentos desses fortes em movimento a cada dia de cada semana. Mesmo se eles conseguirem isolar um e destruí-lo, vamos matar dez homens deles para cada um nosso. — Fácil assim? — Não — respondeu Cale. — Mas eles vão perder dois homens para cada um que perdermos. — Mesmo se você estiver certo, e admito que pode estar, os Redentores estão preparados para morrer aos milhares... seus caipiras também estão? Cale sorriu de novo. — Acho que vamos descobrir. — Acha mesmo que pode vencer uma batalha com suas carroças?
— Isso eu também não sei, mas não pretendo tentar. É como IdrisPukke diz: o problema das batalhas decisivas é que elas decidem as coisas. Eu não vou esmagar os Redentores, vou fazê-los sangrar.
26 DE ACORDO COM O GRANDE LUDWIG, O CORPO HUMANO É O MELHOR RETRATO DA ALMA, E PORTANTO, COMO O CORPO, O ESPÍRITO HUMANO TEM OS SEUS CÂNCERES, TUMORES E ÓRGÃOS INFECTADOS. ASSIM COMO A FUNÇÃO DO FÍGADO É A DE ESGOTO PARA OS VENENOS DO CORPO, A ALMA TEM OS SEUS ÓRGÃOS PARA CONTER E ISOLAR AS EMISSÕES TÓXICAS DO SOFRIMENTO HUMANO. É um axioma dos esperançosos que aquilo que não mata fortalece. Mas a verdade é que um sofrimento tão mortal só pode ser contido no isolamento desse reservatório de veneno por algum tempo: como o fígado, ele só consegue lidar com uma certa quantidade de veneno antes de começar a apodrecer. Sobreviventes do Santuário já haviam passado por mais do que seu quinhão de agonia. Some-se a isso a perda da esposa e do filho e o horror dos acontecimentos no porão de Kitty, e Kleist estava a um passo de se afogar no seu passado. No dia seguinte à batalha de mentira no Campo de Prata, ele ia entregar um par de botas que estava desenvolvendo para a campanha iminente (artigos de couro eram uma das habilidades que Kleist aprendera no Santuário), por isso estava a caminho dos fabricantes de botas da New York Road. Bosco incutira em Cale a ideia de que botas boas só vinham depois da comida e das armas em matéria de importância para um exército. Kleist ia passando pelo mercado, lotado porque estava acontecendo a feira semanal de cavalos, quando roçou em Daisy carregando seu filho. Ele andou por mais alguns metros e então parou. Mal observara o rosto da jovem — não a estava olhando diretamente, e passou por ela numa fração de segundo —, mas algo estremeceu dentro dele, embora ela fosse mais velha e mais magra que sua falecida esposa, muito mais acabada. Ele sabia que não podia ser ela — o pó de Daisy era soprado pelo vento numa campina a quinhentos quilometros dali — e não queria olhar de novo e resgatar seu sofrimento das profundezas, mas não conseguiu evitar. Virou-se para vê-la se afastando em meio à multidão, com o bebê no colo. Mas ela rapidamente foi escondida pelo vaivém de compradores e vendedores. Ele ficou parado como um tronco de árvore e disse a si mesmo para ir atrás dela, mas depois disse a si mesmo que não adiantaria nada. Um calafrio de desolação percorreu seu corpo, sua dor agora impossível de conter, espalhando-se lentamente, um vazamento lento e maligno. Ficou ali por mais um momento, mas tinha coisas a fazer e voltou a rumar para os fabricantes de botas. Mas daquele momento no mercado em diante, Kleist já estava na sobrevida. — Então, o que você acha? Por dez minutos, Cale observara Robert Hooke examinando um tubo de um metro de ferrogusa. — Já tentou usá-lo? — perguntou Hooke. — Eu? Não. Vi um como esse em Bex. Na primeira vez que disparou, varou três Redentores de uma só vez; na segunda, explodiu e matou meia dúzia de suíços. Mas se você conseguisse fazê-lo funcionar, seria sensacional. Hooke olhou a feia geringonça. — Estou surpreso que tenha funcionado uma vez.
— Claro que está. — Vou precisar de muito dinheiro. — Claro que vai. Mas eu não sou idiota. Sei que você estava desenvolvendo um tubo para o seu acelerador de partículas. Não vou pagar pra você pesquisar a natureza das coisas. — O senhor acha que todo conhecimento precisa ser prático. — Não acho nem uma coisa nem outra do conhecimento... só me preocupo em não ir parar no alto de uma fogueira, e você estará lá comigo se não encontrarmos uma maneira de deter Bosco. Entende? — Claro que entendo, sr. Cale. — E então, é possível? — Não é impossível. — Então me passe a conta e ponha mãos à obra. — Cale se encaminhou para a porta. — A propósito — exclamou Hooke. — Sim? — É verdade que cortou a cabeça de um homem porque ele mandou o senhor trazer um copo d’água? Até para alguém com a saúde de uma barata, a carga de trabalho de Cale teria sido mortal, e ele estava bem longe de ser saudável. A necessidade o obrigava a delegar. Candidatos não faltavam: IdrisPukke e um relutante Cadbury (“preciso cuidar dos negócios criminosos”) eram de confiança, e até Kleist, silencioso e soturno como estava, parecia querer trabalhar para ocupar a mente. Henri Embromador estava em toda parte, fazendo tudo. Mesmo assim, não bastava. Ele foi com IdrisPukke pedir ajuda a Vipond. — Sinto muito por Conn. — Estou perfeitamente convencido de que você não precisa se desculpar. Não havia escolha — respondeu Vipond. — Eu não ri dele. — Eu sei. Mas, infelizmente, isso não importa. Você precisa trazer Bose Ikard. — Como? — Sim... não é fácil. É um homem capaz, à sua maneira, mas tem a fraqueza recorrente dos poderosos: o poder se tornou um fim em si mesmo. E Ikard é viciado em conspirações. Se ficar sozinho por cinco minutos, vai começar a conspirar contra si mesmo. — Preciso controlar o exército regular — disse Cale. — Achei que conseguiria criar minha própria força separadamente. Mas ela não vai funcionar sozinha. Preciso de tropas capazes de lutar fora dos fortes. — Pelo que sei, você prometeu outra coisa a ele. — Bem, eu estava errado. Os caipiras são ótimos, desde que estejam protegidos atrás das paredes e fora do alcance. Mas fora das carroças, eles são tão perigosos quanto um porcoespinho careca. Vipond não disse nada por um momento. — Situações desesperadoras exigem medidas desesperadas — ele disse finalmente. — Experimente contar a verdade.
— Ou seja? — O que isso sugere. Seja franco com ele. Ikard sabe o quanto a situação é desesperadora, senão você não estaria onde está agora. Explique-lhe que vocês dois terão sucesso juntos ou morrerão juntos. Ou pode tentar chantageá-lo, se o tal de Cadbury souber de algum segredo dele. — Não basta — disse IdrisPukke. — Então só resta a sinceridade. — E se a sinceridade não funcionar? — Assassinato. — Pensei que você tivesse dito que isso nunca funcionava. — Eu disse isso? — Sim. — Extraordinário. Para surpresa de Cale, sua reunião seguinte com Bose Ikard não só foi bem-sucedida, mas também agradável. Mentiras precisavam ser elaboradas, e sempre havia algo que você negligenciava e que revelava tudo. Era tenso, mentir. Contar a verdade, por outro lado, era fácil. Era tão verdadeiro. Ele gostou tanto de contar a verdade que decidiu que um dia gostaria de fazê-lo de novo. E assim, tudo saiu como Vipond esperava: a falta de alternativas impeliria Bose Ikard para a simplicidade. — Posso dizer que o alto comando não vai se convencer. Eles não querem nada com você. — Terão que ser substituídos. — Mas acabaram de ser nomeados. — Isso se aplica a todos eles ou só a alguns? — perguntou IdrisPukke. — Se fosse possível remover a tríade, isso bastaria. Se. — Tem algo contra meios especiais? — Especiais? — Você sabe: momentos desesperadores exigem medidas desesperadas. Nos dez dias seguintes, duas renúncias e um suicídio cuidaram da tríade, por meio dos livros vermelhos de Kitty das Lebres. Por questão de cortesia e como um sinal de boa fé, um dos livros foi entregue a Bose Ikard, aquele que continha algumas transações financeiras pouco ortodoxas envolvendo o próprio Ikard. IdrisPukke, é claro, fizera uma cópia. Por motivos diferentes, lacônicos e Redentores eram sociedades construídas com base na ideia de que a guerra era uma constante inevitável da existência humana. Já os exércitos do Eixo eram apenas exércitos. Cale foi auxiliado em suas reformas, no entanto, pela consciência crescente de que não era a derrota que estava em jogo na guerra, mas a aniquilação. Essa consciência era muito alimentada por reimpressões de sermões ministrados na Grande Catedral de Chartres pelo próprio papa Bosco. Neles, Bosco, citando em detalhes exatos o Bom Livro, convocava seus seguidores a cumprir o mandamento explícito de Deus: “Não deixarás vivo nada que respire. Destrói completamente Maquedá e todas as almas nela. Destrói Libna e todas as almas nela; e em Laquis, Eglom, Hebrom e Debir, destruíram tudo o que respirava e não pouparam ninguém, matando homens, mulheres, crianças e recém
nascidos, gado, ovelhas, camelos e burros.” Houve insinuações, totalmente acertadas, aliás, de que esses sermões de gelar o sangue fossem falsos. Mas embora fosse verdade que eles haviam sido escritos por Cale e Henri Embromador e impressos em segredo, a maioria se convenceu, com relutância, de que eles eram reais, e por dois motivos. Os poucos refugiados que recentemente conseguiram atravessar o Mississippi vindo do território agora ocupado pelos Redentores traziam numerosos relatos da evacuação em massa de cidades inteiras, rumo ao Norte e depois ao Oeste. Mas também havia a verdade perturbadora de que todas as religiões dos Quatro Cantos do Mundo compartilhavam uma crença no mesmo Bom Livro, e embora a maioria preferisse ignorar as muitas ocasiões em que Deus ordenara o massacre divino de países inteiros, até o último cachorro, não era mais possível fazer isso exatamente da mesma forma. A verdade inconveniente era que a promessa de um apocalipse, fosse ele local (Man Hattan, Sodoma) ou universal (o fim dos tempos de Gedom), estava impregnada na própria trama de suas crenças estranhamente compartilhadas. Pelas seis semanas seguintes, foi sopa no mel para todo lado quando o novo departamento do governo comandado por Cale, a Agência de Combate aos Redentores (ACR), encontrou portas abertas em todo lugar. Em parte isso se devia ao medo dos Redentores, e também medo de Thomas Cale: a história de como ele cortara a cabeça de um homem que mandara que ele trouxesse um copo d’água agora se tornara uma verdade aceita. — Você tem talento para ser lendário — disse IdrisPukke. — Eu me pergunto se isso é tão bom assim. — Seu acesso aos livros-caixa de Kitty das Lebres também encorajava a cooperação. Depois da substituição da tríade, todos, no momento, dependiam de Thomas para continuarem em suas posições, com o resultado de que um novo entusiasmo por seus planos sobre qualquer coisa começou a permear os salões do poder. Muito se fez, e muito mais rapidamente do que a ACR poderia esperar. Mas todas essas boas notícias não poderiam durar, nem duraram. Porém o golpe, quando veio, foi imprevisto em sua previsibilidade. Depois de dois meses de preparativos, eles haviam se planejado para a primeira entrega de suprimentos de comida, uniformes, armas e as carroças tão vitais para a campanha. As botas, projetadas sobretudo por Cale e Kleist, haviam sido encomendadas nos mínimos detalhes de acordo com um modelo rígido — à moda dos Redentores. O mesmo com a comida. O mesmo com as armas — desde as debulhadoras simples, mas de alta qualidade, até os novos modelos de besta projetados para carregamento rápido e combate aproximado em vez de potência. De pé no depósito de comida, onde o primeiro lote de rações fora entregue, Cale viu caixa após caixa ser aberta e revelar biscoitos contaminados por larvas e besouros. Os que não estavam contaminados, estavam estragados por banha podre ou adulterados com sabe Deus o que para ficarem não apenas intragáveis (soldados aguentariam se alimentar do meramente intragável, caso precisassem), mas inúteis para fornecer energia aos homens em combate. Nas quatro horas anteriores, ele passara pela mesma situação com todos os outros suprimentos: as botas já chegavam caindo aos pedaços, as bestas não disparariam uma flecha com força suficiente para ferir uma criança raquítica. As carroças pareciam ter sido construídas de acordo com as especificações, mas uma viagem de trinta minutos com meia
dúzia delas provou que não durariam uma semana, se usadas intensamente. — Quero os responsáveis — disse Cale, frio como jamais ninguém o viu. Mas isso resultou bem mais complicado do que parecia. A corrupção na área de suprimentos militares estava arraigada não só nos fornecedores, mas nas pessoas que os fornecedores corrompiam para obter os contratos. Estava tão incorporada no ofício dos compradores que os envolvidos não a consideravam uma fraude. Pior ainda era o fato de ser um hábito aceito o controle das compras estar exclusivamente nas mãos de membros da família real. Ninguém deveria pensar que eles faziam alguma coisa, em troca do que ganhavam, além de suportar o esforço de enfiar a mão no bolso, mas a quantia que esperavam para fazer esse nada era tão alta que simplesmente não sobrava dinheiro suficiente para fornecer armas e comida decentes e ter algum lucro. A guerra parecia quase fácil, comparada com aquilo. Se a ACR não conseguisse se reabastecer logo, e com os equipamentos certos, para a probabilidade de uma travessia dos Redentores no início da primavera, estaria tudo acabado. No entanto, as pessoas responsáveis por esse desastre estavam fora do alcance de Cale. — Não posso fazer nada — disse Bose Ikard, o qual, justiça seja feita, entendia o problema muito claramente. — Isso precisa parar. Temos que tirar esse negócio das mãos deles. É loucura. Eles não entendem que os Redentores vão destruí-los também? — Eles são a realeza. A própria vida deles é uma forma de insanidade. São príncipes da linhagem... um poder real, ungido, criado por Deus corre em suas veias. Eles não são como você e eu. — E eu pensei que os Redentores fossem doidos. — Bem-vindo ao resto do mundo — disse Ikard. — Se eu intervier, serei trancado numa cela em menos de uma hora. Que bem isso faria a você? Deve haver outra solução. — Ou seja? — Depende de você. Está no comando agora. — Eu tenho o seu apoio? — Não. Mas, faça o que fizer, capriche. Gil já sabia havia algum tempo que Cale conseguira se cobrir sobretudo com a glória roubada da grande vitória dos Redentores em Bex, mas tudo o que ele descobria era vago e generalizado, nada muito melhor do que os mexericos que as pessoas repetiam na rua. Ele também tinha um relato de terceira mão do julgamento de Conn e um de primeira mão de sua execução, junto com o amplamente aceito boato de que Cale rira e fumara enquanto a cabeça de Conn quicava pela Quai des Moulins. Se apenas, ele pensou, o que se falava na Leeds Espanhola sobre os espiões Redentores fosse verdade — as únicas pessoas a seu soldo eram criminosos, os únicos simpatizantes, párias e desajustados. Mas Gil começava a perceber que com Cale o negócio não era mais separar os fatos da ficção — tornara-se importante não ignorar, por mais ridículas que fossem, as histórias dele com mais de dois metros de altura ou cegando um assassino apenas levantando a mão (embora a história de ele ter cortado a cabeça de alguém porque a pessoa pedira um copo d’água lhe parecesse
totalmente plausível). Algo em Cale fazia com que as pessoas o vestissem com suas esperanças e medos — o fato de que tinham medo dele e mesmo assim alimentavam expectativas ridículas em sua capacidade de salvá-los era um todo interligado. E não faziam isso só os tolos e desesperados — veja Bosco. Ele era o homem mais inteligente que Gil conhecia; no entanto, nada abalava sua crença em Cale. Mas isso não impedia Gil de tentar. — Ele está ficando poderoso, Santidade. — Então — disse Bosco — isso prova que Ikard e Zog são mais inteligentes do que eu imaginava. — Ele sabe ou consegue adivinhar o que pretendemos fazer. Isso é uma grande ameaça para nós. — Eu acho que não. Sua ciência do nosso plano de atacar através de Arnhemland poderia ter sido grave, mas na época ele não conseguiu convencer ninguém a lhe dar ouvidos. Agora que estamos à beira do Mississippi no Norte e trancamos a Passagem Brunner para Leeds no Sul, é perfeitamente óbvio o que vamos fazer. O que ele sabe ou consegue adivinhar não importa. — Só que desta vez não enfrentaremos nenhum prodígio covarde de Zog. Cale sabe o que faz. — Claro. O que mais você esperaria da Mão Esquerda de Deus? — Ele sorria, mas Gil não sabia ao certo que tipo de sorriso era aquele. — O que o fato de ele estar diretamente contra nós diz sobre o plano de Vossa Santidade de causar o prometido fim do mundo? — Pensei que fosse nosso plano... e o plano de Deus. — Ainda o mesmo sorriso. — Mereço coisa melhor, Santidade, do que ser ridicularizado por uma palavra mal colocada. — É claro, Gil. Aceito a correção. O papa implora o seu perdão. Você sempre foi o melhor dos servos para a mais dura de todas as causas. O sorriso desaparecera, mas o tom de seu pedido de desculpas era errado mesmo assim. — O que significa, Santidade, isso de Cale estar contra nós? — Significa que o Senhor está nos enviando uma mensagem. — Que é? — Não sei. É culpa minha não entender o que Ele está me dizendo... mas, afinal, eu sou um dos Seus erros. — Por que Ele não conta e pronto? — Isso era perigoso, e assim que falou, Gil desejou ter ficado de boca fechada. — Porque meu Deus é um Deus sutil. Ele nos fez porque não queria ficar sozinho... se Ele precisa ficar nos dizendo o que fazer e intervindo por nós, então não somos mais do que bichos de estimação, como os cãezinhos de colo das putas ricas da Leeds Espanhola. Deus insinua porque nos ama. — Então por que vai nos destruir? Por que não, pensou Gil assim que disse isso, emendar uma blasfêmia com outra ainda maior? Mas ele não levara em conta quão inteligente seu estranho comandante era. — Eu mesmo pensei muito nisso. Por que, Senhor, me pedir para fazer algo tão terrível? — E?
— Os caminhos de Deus são misteriosos. Acho que talvez Ele seja mais misericordioso e amoroso do que eu pensava. Fui arrogante — ele acrescentou com amargura — por estar tão furioso com o que a humanidade fizera com Seu filho unigênito. Agora acredito que, assim que todas as nossas almas estiverem reunidas, Ele irá nos refazer, mas desta vez à Sua imagem. Acho que é isso. Acho que é por isso que precisamos fazer essa coisa revoltante. — Mas não tem certeza? Bosco sorriu, mas esse sorriso foi mais fácil de interpretar — era de simples humildade. — Peço que lembre minha resposta anterior. Ficou claro que a audiência estava encerrada, e seria melhor ir embora antes de dizer algo ainda mais idiota. Gil fez uma reverência. — Santidade. Ele já estava com a mão na maçaneta quando Bosco falou novamente. — Vou lhe mandar alguns planos hoje à tarde. — Sim, Santidade. — Vai dar um pouco de trabalho, mas tenho certeza de que é necessário... seguro morreu de velho e tudo mais. Quero que você recue os canteiros navais do Mississippi uns 150 quilômetros. — Posso perguntar por que, Santidade? — Sua voz demonstrava claramente que ele achara a ideia absurda, mas Bosco não pareceu notar. Ou decidira não notar. — Se eu fosse Cale, tentaria destruí-los. É sábio se acautelar, eu acho. Lá fora, andando pelo corredor, uma ideia se repetia na mente de Gil: Preciso pensar num jeito de abandoná-lo.
27 — O QUE VOCÊ VAI FAZER? — PERGUNTOU IDRISPUKKE. — Você não iria querer saber. — Não pensou em nada ainda, certo? — Não, mas vou pensar. — Tome cuidado. — Eu queria perguntar — disse Cale — se você concluiu o plano de como passar pelas montanhas? — Quase. — Podemos precisar dele antes do que você imagina. — Obviamente, ele estava pensando em outra coisa. — Esse plano inclui os Purgadores? — Não. — Deveria. — Você ficou muito sentimental. — Sentimento não tem nada a ver com isso, a não ser no sentido que meu ódio por eles atrapalhou meu julgamento anterior. É hora de ficar grato pelo que tenho. Duzentos homens que fazem tudo o que você quer sem perguntar nada valem a pena, não acha? — Você não vai gostar disto — disse Cale para Henri Embromador. — Não me diga que não tem sanduíches de pepino. — Henri Embromador estava brincando só em parte. Ele tinha uma predileção incomum por sanduíches de pepino, inventados apenas dez anos antes pelo dândi Materazzi lorde “Pepino” Harris quando essa hortaliça foi importada pela primeira vez para Memphis e ninguém sabia o que fazer com ela. Sempre que não estava por aí cuidando dos negócios da ACR, Henri Embromador tomava seu chá às quatro da tarde (sanduíches de pepino, bolos de creme, brioches) e fingia fazê-lo em arremedo aos seus antigos superiores. Na verdade, ele não via a hora de tomar o chá da tarde, que era o maior prazer de sua vida, depois de suas muito frequentes visitas ao Império Do Sabonete, na Rue De Confort Sensuelle. — Os príncipes da linhagem... eles vão ficar impunes. Os três haviam discutido a vingança contra os príncipes (Cale e Henri Embromador sempre incluíam Kleist, embora ele parecesse indiferente a qualquer coisa que não fosse especificamente tarefa sua), bem como os fabricantes que os subornaram, falando do que deveria acontecer e quão extremos e públicos os atos de violência contra eles precisariam ser. — Por quê? — Henri Embromador não estava mais de bom humor. Sua fúria pelo péssimo material que havia sido entregue era tão intensa quanto a de Cale. — Porque eles são bons exatamente em ficar impunes fazendo coisas que outras pessoas não conseguiriam fazer impunemente. — Então não vai cortar as cabeças deles e espetar em lanças? — Essa fora a solução preferida por Henri Embromador. — Pior do que isso. — Prossiga. — Vamos ter que recompensá-los — disse Cale.
— Quer dar uma propina pra eles? — Sim. — Por quê? — Não somos fortes o suficiente pra agir contra eles. Falei com IdrisPukke e Vipond e eles me abriram os olhos. Não temos tempo de começar uma revolução. Bosco levou vinte anos para derrubar seus inimigos em Chartres, e mesmo assim precisou agir mais rapidamente do que queria. Não podemos matar uma dúzia de membros da família real, não podemos nem nos dar ao luxo de irritá-los demais. Precisamos suborná-los para tirá-los do caminho. Precisamos deixá-los ansiosos e aí oferecer uma saída. Não muito ansiosos, e uma saída generosa. Complicado, mas possível. — E os donos de fábricas? — Podemos fazer o que quisermos com eles. Houve um breve silêncio. — Caralho! — gritou Henri Embromador, verdadeiramente frustrado e furioso. — Prometa que se ainda estivermos vivos quando isto acabar, vamos voltar e foder esses caras. Diga que vamos fazer isso. — Ponha o nome deles na lista — disse Cale, rindo. — Junto com todos os outros. Vamos considerar as ações de Thomas Cale e como elas aconteceram: o salvamento de Riba de uma morte terrível, embora apenas depois que ele fugiu; sua volta um tanto relutante para salvar seus não exatamente amigos; o vandalismo de quebrar a linda Espada de Danzig; a matança de homens que dormiam; o resgate de Arbell Materazzi; a execução impiedosa de Solomon Solomon na Ópera Vermelha; a recuperação do bobo da corte, Simon Materazzi; Arbell salva de novo; a libertação de Conn em Silbury Hill, causa de muito arrependimento; a assinatura do mandato da execução da donzela de Blackbird Leys; o envenenamento das águas nas montanhas Golan; a destruição e invenção dos campos, nos quais 5 mil mulheres e crianças morreram de fome e doenças; o estrangulamento de Kitty das Lebres; a queima da ponte depois de Bex e o perjúrio no julgamento de Conn Materazzi. A essas ele agora acrescentava o rapto e assassinato dos vinte comerciantes que considerava responsáveis pelo lixo entregue aos seus depósitos na semana anterior. Nus como vermes, os homens foram pendurados em frente aos palácios dos príncipes reais da linhagem que aceitaram suas propinas. Seus corpos foram horrivelmente mutilados, narizes e orelhas decepados, lábios e dedos costurados segurando moedas em suas bocas sem língua e mãos fechadas. Seus olhos esquerdos foram arrancados, suas vesículas — consideradas a sede da ganância — removidas. Em volta dos pescoços, folhas de papel, mais tarde distribuídas às centenas pela cidade, revelavam a terrível natureza de seus crimes contra cada homem, mulher e criança cujas vidas eles estavam dispostos a vender para ganhar dinheiro. O panfleto estava assinado: os Cavaleiros da Mão Esquerda. Para ser estritamente justo com Cale e Henri Embromador, os homens haviam sido assassinados de forma tão rápida e indolor quanto o tempo e as circunstâncias permitiam. A terrível tortura infligida neles como lição para o resto fora executada depois que já estavam mortos. A História não pode julgar: ela é escrita pelos historiadores. Somente o leitor, de
posse dos fatos, pode decidir se teria agido de forma diferente naquelas circunstâncias, ou previsto adequadamente as consequências de seus atos. Nas paredes dos palácios onde os corpos foram pendurados, uma sentença fora escrita em espanhol arcaico, por ser uma afetação da aristocracia usar entre eles um idioma que já não era falado na Espanha havia várias centenas de anos. Pesado has sido en balanza, y fuiste hallado falto. Uma tradução ampla disso poderia ser “Foste pesado na balança e descoberto em falta” — uma observação que não faria sentido para o populacho, mas era bastante ameaçadora para os doze príncipes da linhagem envolvidos em aceitar dinheiro dos mortos pendurados de ponta-cabeça diante de suas mansões. Cale deixou que se preocupassem por 24 horas, e então IdrisPukke, em nome da ACR, entregou um grande saco de dinheiro para compensá-los pela perda dos rendimentos dos seus contratos totalmente legítimos com os falecidos donos das fábricas, que agora a ACR se via obrigada, em face da grave emergência nacional, a controlar, no interesse de todos. Os doze príncipes da linhagem consentiram porque não sabiam ao certo o que mais fazer: já haviam sido ameaçados, embora não soubessem exatamente como, e recompensados, embora não soubessem exatamente por quê. Não apenas houve muito pouco alarde com relação ao rapto, tortura e assassinato dos homens, que não haviam pisado em nenhum tribunal, muito menos seus acusadores; ao contrário, houve um clamor para extirpar qualquer outra pessoa envolvida, e muito apoio, dos cortiços para cima, aos Cavaleiros da Mão Esquerda e seus métodos. Uma semana depois que a Leeds Espanhola fora abrasada pelos assassinatos, Robert Hooke recebeu uma visita de Cale, que vinha ouvir seu relatório inicial sobre a possibilidade de fabricar armas. — Não há nada de errado com a ideia das armas — disse Hooke, enquanto eles examinavam o ferro de atirar que custara tão caro. — É a prática que é o problema. O salitre perverso comprimido nesta ponta é demais para o ferro. Por isso ele explode. É simples assim, na verdade. — Então arranje ferro melhor. — Não existe. Ainda não. — Quanto tempo? — Não faço ideia... meses, anos. O tempo é insuficiente, de qualquer forma. — Então é só isso? — Hãã... não... talvez não. Eu estava conversando com Henri Embromador. Ele me disse que tornou suas bestas muito mais fáceis de carregar, mas isso significa que elas são muito menos potentes. — Não precisamos que sejam potentes, elas são para o combate aproximado, a um metro e pouco. — O senhor nunca me disse isso. — E daí? — E daí? Faz toda a diferença. Qual a distância máxima a que vocês combaterão?
— Alguns metros, na maior parte dos casos; nossos homens estarão atrás de paredes de madeira... o mínimo possível de combate corpo a corpo. — Os Redentores usarão armaduras? — Sim, mas nada muito pesado. Mas imagino que começarão a se proteger mais. Hooke baixou o olhar para o ferro de atirar. — Então não precisa disto. — Ele mostrou um grande projétil de chumbo, do tamanho de um ovo de galinha. — Também não precisa disto. — Ele indicou para Cale uma mesa coberta com um pano, e o puxou como um prestidigitador revelando um bolo mágico numa festa infantil. — É só uma maquete de madeira, mas o senhor entende o princípio. Era parecido com o ferro de atirar — um tubo fechado numa ponta e aberto na outra — mas cortado na metade para mostrar o mecanismo interno. — O segredo — disse Hooke — é não sobrecarregá-lo. É preciso usar a quantidade certa de salitre perverso — o mínimo possível — e algo leve para ser disparado pela outra ponta. — Quão leve? Hooke abriu um saquinho de lona e espalhou o conteúdo sobre a mesa. Era só uma coleção de pregos, pequenos estilhaços e pelotas de metal — até algumas pedras. Era difícil ficar impressionado. — O principal é acertar o tamanho da carga de salitre. Toda vez. Sem querer ofender, mas seus homens exageram. Então pensei: por que não pôr uma carga padronizada num saquinho de lona, fácil de usar, sempre a mesma carga? Então pensei: por que não fazer o mesmo com os projéteis de metal e pedra? Então — ele disse, empolgando-se com a própria genialidade — eu pensei: por que não pôr os dois dentro de outro saquinho? Fácil de carregar e rápido pra cacete. Brilhante. — Vai funcionar? — Venha ver. Hooke levou Cale para fora, onde dois de seus assistentes estavam perto de um cano de ferro muito parecido com o ferro de atirar, preso numa morsa de madeira. A uns 10 metros dali havia um cachorro morto amarrado numa tábua. Hooke, Cale e os assistentes se abrigaram atrás de um pavês. Um dos assistentes acendeu um pavio na ponta de uma longa vareta e o estendeu cuidadosamente até o ferro de atirar. Como ele estava tentando se expor o mínimo possível, foram necessárias algumas tentativas para acender o tambor. Olhando através de orifícios no escudo, Cale viu o salitre perverso no tambor se acender num clarão, seguido alguns segundos depois por um BANG! — alto, mas não tão alto quanto ele esperava. Eles aguardaram alguns segundos e então Hooke andou em meio à fumaça densa, seguido por Cale, até o cachorro morto. Ele esperava ver algo terrível, mas de início pensou que o tiro devesse ter errado o alvo. Não errara — ao menos não completamente. Quando Hooke apontou os ferimentos, viam-se claramente meia dúzia de fragmentos de prego e pedra incrustados bem fundo na carne do animal. — Pode não matar. Mas leve um tiro desses e não fará nada além de gemer de agonia por algum tempo. E o melhor é: se só for usado contra fileiras cerradas e de perto, cada tiro ferirá
mais dois ou três de uma vez. — Quantas vezes por minuto dá pra carregar e atirar? — Conseguimos três. Mas não estamos em condições de batalha. Eu diria, com pessimismo, duas. Eles passaram mais uma hora discutindo os homens e materiais de que Hooke precisava e onde os novos ferros de atirar poderiam ser forjados, e quão confiável seria a produção. — Acho que não haverá problemas. A pressão destes vai ser muito mais baixa, então não deve ser muito difícil conseguir a qualidade de que precisamos. Além disso, imagino que já ficou bastante claro o que vai acontecer se eles entregarem algum artigo de segunda. Ele olhou para Cale, pensativo. — Todos sabem que foi o senhor. Cale devolveu o olhar. — Todos sabem que fui eu que ri de Conn quando ele morreu. Todos sabem que fui eu que cortei a cabeça de um homem que me mandou trazer água. Hooke sorriu. — Todos sabem que foi o senhor. — Todos — disse Bose Ikard — sabem que foi ele. — Era uma vez uma velha — disse Fanshawe em resposta — que engoliu um pássaro. — Não entendi. — Veja bem, ela engoliu o pássaro para pegar a aranha que engoliu para pegar a mosca que engoliu. — Você quer dizer alguma coisa, mas estou irritado demais para as suas bravatas. — Eu só estava sugerindo que mesmo que a cura não seja tão ruim quanto a doença, Thomas Cale pode fazer muito mal ao senhor. — Mas não a você? — Pode, sim. Nós temos quatro servos para cada lacônico. — Nossos camponeses são o sal da terra, não escravos. Não os matamos sem compaixão. Por isso não temos medo de que venham nos cortar a garganta enquanto dormimos. Nós somos uma nação. — Realmente duvido disso. Mas é claro que vocês estão no meio de um maravilhoso experimento para testar sua confiança. Vai ser tão interessante, se Cale tiver êxito, verificar se sua plebe voltará alegremente à vida de trepar com ovelhas e mascar capim. — Aonde quer chegar, se é que quer chegar a algum lugar? — Quero dizer que é preciso saber a hora de parar de engolir. Quer saber como a canção termina? — Não particularmente — disse Bose Ikard. — Mas é encantadora. “Era uma vez uma velha que engoliu um cavalo. Ela está morta, é claro.”
28 — FANSHAWE OFERECEU CEM LACÔNICOS PARA TREINAR O NOVO EXÉRCITO MODELO. Os três garotos, Kleist cada vez mais silencioso, estavam com IdrisPukke, comendo ostras com suco de limão acompanhadas por um Sancerre duro e seco para cortar o sal. — Obviamente, não pode confiar nele — disse IdrisPukke, apreciando tanto o mistério do que Fanshawe estaria tramando quanto as ostras e o vinho. — Mas de que forma não pode confiar nele? — Ele não espera que eu acredite que ele vai fazer isso por ter um coração bom. Ele não acha que sou tão idiota. — Então quão idiota ele acha que você é? Ao ouvir isso, Henri Embromador deu uma gargalhada deliciosa. Kleist, nada. Nem parecia estar ouvindo. — Acho que Fanshawe percebeu que podemos derrotar Bosco, e eles querem estar... do lado que não vai perder. Nesse momento, Artemisia se juntou a eles. — Ostras, querida? — perguntou IdrisPukke. — Não, obrigada — ela disse docemente. — Na minha terra isso é comida de porco. Ele se divertiu muito com isso, o que a surpreendeu bastante, pois sua intenção era colocálo no seu lugar: por alguma razão, ela desconfiava erroneamente de que ele a considerasse inferior. Ele se voltou para Cale. — Como Fanshawe pretende explicar aos Redentores a presença de tantos lacônicos? — São só cem. Ele vai dizer que são renegados. — Tudo bem. Você não acredita nele. Mais uma vez, como você não acredita nele? — Não sei. Ainda. Mas preciso dos instrutores dele, sejam quais forem seus motivos. As baixas serão numerosas. Precisaremos repor 5 mil soldados por mês. E isso é o mínimo. Vai ser por um triz essa porra. — É uma ideia — disse Kleist — que vale a pena discutir, eu acho. — Quando ele falava, naqueles dias, o que acontecia raramente, era sobre detalhes. Ele parecia encontrar alguma paz nas particularidades do salto de uma bota ou no modo como o couro era costurado para torná-la impermeável. — Estamos presumindo que eles não irão tentar cruzar o Mississippi no inverno. Artemisia gemeu de irritação. — Já falei, o Mississippi não congela como outros rios, não completamente. Ele vira uma massa de blocos de gelo se partindo e batendo uns nos outros. Traiçoeiro não é nem de longe o termo adequado. Eles não chegarão em grande número até que a primavera esteja bem adiantada. — Acredito em você — disse Kleist baixinho. — Mas você disse que eles não podem chegar em grande número. — E daí? — Então seria possível atravessar...
— Não com um exército ou qualquer coisa do tipo. Kleist não reagiu à interrupção irritada, apenas continuou em seu tom monótono. — Mas seria possível atravessar com uma pequena tropa. — De que isso adiantaria? — Não estou falando dos Redentores atravessarem com uma pequena tropa, estou falando de nós atravessarmos para o lado deles. Houve um breve silêncio. — Pra fazer o quê? — perguntou Cale. — Você disse que vai ser por um triz. — Vai. — E se você tivesse mais tempo... meses, talvez um ano inteiro? — Continue. — Os Redentores estão construindo barcos no inverno para uma invasão na primavera. Sabe onde os estão construindo? — Não vejo... — disse Artemisia. — Sabe onde os estão construindo? — Agora era Kleist que a interrompia. — Sim — ela disse. — A parte da margem norte entre Atenas e Austerlitz está lotada de estaleiros, mas os Redentores recuaram os canteiros, junto com os construtores, até Lucknow, para poderem controlar a construção da frota. — Quer dizer que todos os barcos deles estão num só lugar? — A maioria, até onde sei. — Então, se pudéssemos passar com uma tropa de, digamos, mil homens para o outro lado do rio, no início da primavera, talvez, poderíamos atacar Lucknow e incendiar a frota deles? — Eu não conseguiria atravessar com mil — disse Artemisia. — Ou nada perto disso. — Quantos, então? — perguntou Cale, claramente empolgado. — Não sei. Eu precisaria falar com os barqueiros. Não sei. — Duzentos? — Não sei. Talvez. — Valeria o risco — disse Cale. — Meu povo é que iria se arriscar — disse Artemisia. — Desculpe — disse Cale. — É verdade. Mas se pudesse ser feito. — Eu teria que comandá-los — ela disse. Cale não ficou feliz com aquilo. — Preciso de você aqui e viva. Seus batedores são os olhos e ouvidos das carroças-fortes. — Era verdade, mas não era o único, nem mesmo o principal motivo. — Além disso — ele mentiu —, dita a regra que o homem... a pessoa que inventa o plano tem o direito de colocá-lo em prática. Artemisia olhou para Kleist. — Você tem grande experiência fluvial e conhece a margem norte do Mississippi em Halicarnassus? — Não.
— Eu tenho grande experiência fluvial e, por acaso, a margem norte do Mississippi em Halicarnassus é minha. Isso fez até Kleist sorrir. — Eu abro mão — ele disse. Cale olhou para ele de forma pouco agradável. — Há outro problema — disse IdrisPukke. — Você é especialista em assuntos fluviais e em Halicarnassus, além de todas as suas outras realizações? — Não, querida, não sei nada sobre isso. É mais política. — O que a política tem a ver com isso? — Tudo acaba desaguando na política, de uma forma ou de outra. Você diria que essa é uma empreitada arriscada? — Claro. — Você poderia facilmente fracassar, então? — Cale tem razão — disse Artemisia. — Se há uma chance, mesmo que limitada, de causar tantos danos, precisamos aproveitar. É a minha vida e a da minha gente. — Eu não estava, infelizmente, me preocupando tanto com a vida de duzentas pessoas... muitas vezes duzentos vão morrer antes que isto acabe. Me preocupo mais com os desdobramentos para todo o resto se você falhar. — Admito que não estou entendendo, mas a finalidade é essa mesmo, não? Você quer que eu pareça uma garota burra. — De modo algum — respondeu IdrisPukke. — Mas pense nisso. Se você atacar no fim da primavera, essa vai ser a primeira ação do Novo Exército Modelo contra os Redentores. Certo? — Ele tem razão — disse Cale, vendo uma esperança de impedi-la. — O resto do exército não precisa saber de nada, a não ser que nós vençamos — disse Artemisia. — Eu estava falando de política — disse IdrisPukke. — Você pode esconder isso do exército e do povo, se tomar cuidado, mas consegue esconder de Bose Ikard e do alto comando? — Vou convencê-los de que vale a pena correr o risco. — Mas políticos não gostam de riscos, eles gostam de acordos. Lembre-se, eles têm tanto medo dos Redentores que estão dispostos a pôr um garoto maluco no comando. — Ele está falando de você — disse Henri Embromador para Cale —, caso não tenha entendido. — Estão no fio da navalha, todos eles. Aí, a primeira coisa que você lhes oferece é uma derrota vergonhosa; eles vão implorar para que Bosco negocie enquanto as cinzas da fogueira desta jovem ainda estiverem quentes. Vocês podem viver sem essa vitória, mas talvez não consigam conviver com uma derrota. — Vale a pena correr o risco — disse Artemisia. — Não sei ao certo se vale — retrucou IdrisPukke. Cale teve a sua chance e tratou de não desperdiçá-la.
— É uma ideia nova. Precisamos pensar a respeito. — Pensar a respeito e dizer não, é isso que você quer dizer — retrucou Artemisia. — Não é verdade. Fale com seus barqueiros. Veja o que eles acham. Trace um plano. Quando estiver pronto, falaremos de novo a respeito. Depois que Artemisia saiu, Cale se virou para Kleist. — Você não dá um pio há meses, e de repente não quer mais calar a boca! — Você deveria ter avisado que ela estava aqui só como enfeite; até agora, só ouvimos você falar do gênio militar que ela é. Isso era verdade e ele não conseguiu pensar numa última palavra. Disse-a assim mesmo. — Caralho! Algumas horas depois, Cale sofreu outro ataque — mais longo e violento na ânsia de vômito do que de costume. O demônio, ou demônios, que habitavam seu peito pareciam viver em seu próprio mundo, acordavam e dormiam em horários próprios, não importava o que Cale estivesse ou não estivesse fazendo. Eles não tinham consciência do dia a dia do garoto que habitavam, eram indiferentes às coisas estarem boas ou ruins, se ele era amado ou odiado, se era compassivo ou impiedoso. As ervas funcionavam até certo ponto, como ele descobriu quando tentou parar de tomá-las e os demônios do peito passaram a se manifestar pela ânsia duas ou três vezes ao dia, em vez de três ou quatro por semana, o que já era ruim. Quanto à Fedra e Morfina, ele não tivera nenhum motivo para tomá-la de novo e não estava procurando um. A horrível depressão depois do uso durara duas semanas e lhe fizera sentir que ele havia tomado um gole de morte engarrafada. Ele tentou oferecer as ervas a Kleist, mas este recusou, irritado, dizendo que não tinha nenhum problema e não precisava do ajudante da Velha A Fiar para ficar bem. Até nos melhores dias, Cale só conseguia trabalhar em períodos curtos e frenéticos, parando sempre para descansar e dormindo doze horas ou mais ao dia. Por mais que isso fosse uma desvantagem sob alguns aspectos — ele se sentia péssimo quase o tempo todo —, também produziu alguns efeitos úteis. Ele não podia ficar em nenhuma reunião por mais do que alguns minutos, e havia uma abundância delas para drenar a vitalidade de qualquer ação que precisasse ser empreendida. Nunca uma presença amigável para a maioria das pessoas, o comparecimento de Cale a qualquer reunião era tenso a ponto de ele parecer quase à beira da violência furiosa. Como ele não tinha escolha, seu caráter, que já era determinado, desabalava por decisões complexas e perigosas, tomando-as como se estivesse encomendando carne para os guardas da casa de Arbell em Memphis. Estranhamente, em algum lugar de sua mente danificada, às vezes, era onde ele ficava mais alerta e afiado: havia um lugar ali, isolado do mundo exterior, que ele vinha construindo desde o primeiro momento em que chegara ao Santuário. Depois de tantos anos de uso prolongado, esse lugar de recolhimento era mais forte que a pele de uma pata de elefante — e necessário para afastar a loucura que estava destruindo o resto do seu ser. Faça isto. Dê-lhe aquilo. Tome isto. Ponha ali. Faça de novo. Solte estes. Enforque-os. Nada disso minimizava o quanto ele dependia dos seus amigos. Ele sorria ao dizer: — Me tragam soluções, não problemas. Resolvam vocês. Cada vez que preciso responder
a uma pergunta idiota, pensem que estão batendo mais um prego no meu caixão. E naquele momento, funcionava. Cada um deles podia se valer do medo, do terror e da esperança que a reputação de Cale inspirava. Até Vipond, homem poderoso como poucos, e que agora conhecia até melhor a natureza do poder, tendo perdido tanto dele, ficava assombrado com o que só podia descrever como a magia que os outros investiam em Cale. — Eu já falei — disse IdrisPukke, que se deliciava a cada oportunidade de se mostrar superior ao meio-irmão. — O espírito da época o permeia. Ele tem grandes habilidades, mas não é por isso, ou não é principalmente por isso que está em ascensão. Olhe para Alois Huttler. Você poderia encontrar mil tontos como ele despejando opiniões medíocres em qualquer cervejaria do país. Mas Alois tinha em si o espírito da época. Até que não o teve mais. — Quando as pessoas estão ameaçadas de aniquilação — observou IdrisPukke —, não é difícil entender por que queriam acreditar que a Mão Esquerda de Deus está do seu lado. Nessa ocasião, ele estava tagarelando sobre Cale em sua presença. Henri Embromador projetou o queixo para o seu amigo. — Que pena que elas só têm você, então. — Sua doença — disse IdrisPukke — está se tornando uma espécie de bênção. — Que bom que você acha isso. — Não para você pessoalmente, é claro. Mas Bosco não disse que Thomas Cale não é uma pessoa? — Sim, mas ele também é doido. — Mas não burro. Estou certo? — Você pode não estar sempre certo, mas concordo que nunca está errado. Todos riram com isso. IdrisPukke deu de ombros. — Talvez, em sua loucura, ele reconhecesse algo que nós só estamos começando a ver. As pessoas acham fácil projetar suas esperanças pavorosas sobre você, a mão esquerda da morte, de fato, mas que está do lado deles. Pode ser que quanto menos você seja visto agindo, quanto menos for uma pessoa como eles, mais poderoso você fique. — Ele suspirou com enorme satisfação. — Eu fico impressionado comigo mesmo. — Mais risadas. — Nós podemos usar isso. Contra o cansaço da doença, havia o prazer de trabalhar nas táticas do Novo Exército Modelo. O treinamento ia melhor do que Cale imaginara. Protegidos pelas carroças, e usando armas baseadas em ferramentas que estavam acostumados a usar no trabalho, horas a fio, todos os dias de suas vidas, a confiança dos soldados camponeses aumentava. A mais eficaz dessas armas caipiras era a debulhadora — um bastão de um metro a um metro e meio de comprimento ligado por uma corrente a outro bastão de uns 50 centímetros. Esses homens estavam acostumados a usá-los dez horas ao dia depois da colheita, e os bastões curtos, girando, geravam uma força tão poderosa que poderiam ferir gravemente até um cavaleiro com armadura completa, quanto mais os combatentes Redentores, menos protegidos. Mas, acima de tudo, eles trabalhavam para descobrir todos os pontos fracos das carroças de guerra. Henri Embromador mandava os arqueiros Purgadores atirarem, em fileiras concentradas, contra os fortes de carroças para descobrir como proteger os ocupantes, e
inventou passarelas cobertas com bambus e pequenos abrigos para os quais qualquer um apanhado do lado de fora durante um ataque podia correr para se proteger. Os Redentores não demorariam muito para tentar usar algo como flechas em chamas para incendiar as carroças, por isso ele mandava os soldados suíços — que seriam usados sobretudo para o combate fora do forte, e portanto não estavam sendo muito utilizados durante os ataques — treinar em equipes para apagar as chamas antes que elas se espalhassem, usando principalmente baldes cheios de terra, e água apenas quando fosse indispensável. Eles se opunham a isso com uma veemência intrigante. Eram soldados e cavalheiros — era degradante cavar terra, por isso os camponeses deveriam fazê-lo. Todos os seus ressentimentos pelas mudanças assombrosas que haviam sido obrigados a suportar se manifestaram nessa única questão da extinção das chamas. Do nada, Henri Embromador descobriu que estava com um motim nas mãos. Cale sempre zombava dele, dizendo que ele era tão bom menino. Até certo ponto isso era verdade, mas como todos estavam acostumados com Cale, o contraste produzia um mal-entendido geral a respeito de Henri Embromador e do que ele era capaz. Ele parecia muito normal, de um jeito que Cale claramente não era, mas experimentara a mesma brutalidade e mortalidade corrosivas da vida Redentora. Aquilo fazia parte dele também. Percebendo que estava à beira de um desastre, seu primeiro instinto foi lidar com o problema à maneira dos Redentores: matando alguns dos revoltosos mais barulhentos e deixando-os apodrecer onde todos pudessem ver o quanto eles estavam errados. Se ele estaria disposto a fazer isso e conseguiria dormir bem depois, por sorte, foi algo não verificado. Um pouco de boa índole, mas também um pouco de cálculo o motivaram a buscar outra solução primeiro. Henri Embromador, Cale e Kleist tiveram longas conversas sobre quão realístico o treinamento de combate deveria ser. Os Redentores levavam o lema “Treine duro, lute fácil” a extremos. As batalhas Redentoras de mentira nem sempre eram facilmente diferenciadas das verdadeiras, a não ser pelo fato de que nas primeiras eles não matavam os sobreviventes. Os três temiam que o resultado de tornar violentas demais as batalhas de treinamento fosse criar mais problemas do que resolvê-los, e pelo mesmo motivo da execução sumária: as almas dos suíços, camponeses ou nobres, não estavam acostumadas, por longo convívio, à brutalidade. Mas os soldados suíços precisavam aprender respeito de um jeito ou de outro. — Tudo bem — disse Henri Embromador para seus soldados nobres. — Vocês acham que são tão melhores do que eles. Provem. Em seguida, ele foi até os camponeses do Novo Exército Modelo e lhes contou que havia quem duvidasse, na Leeds Espanhola, de que eles estivessem à altura de uma batalha de verdade — eram, afinal de contas, camponeses, e certamente fugiriam quando a coisa ficasse feia. Ele evitava dizer que essa era a opinião dos soldados suíços porque logo os dois grupos teriam que lutar lado a lado. Foi o suficiente: eles ficaram exaltados. Mas havia mais em jogo do que simplesmente repetir a batalha e a lição do Campo de Prata: os dois lados precisavam perder, desta vez. Três dias depois, com Cale — um espectador fascinado — eles assistiram ao ataque sem luvas de pelica dos combatentes e cavaleiros suíços contra os caipirões. Foi um horror, mas
os suíços, mesmo com toda a sua habilidade e determinação, estavam em grande desvantagem, porque levavam dez vezes mais golpes do que conseguiam acertar. Depois de uma hora sanguinolenta, eles recuaram e Henri Embromador mostrou seu último e mui convincente argumento. Ele chamou quatrocentos arqueiros com flechas de fogo e fez cada um lançar três ou quatro por minuto durante dez minutos. No final, os camponeses foram obrigados a fugir, enquanto as trinta carroças ardiam como o sétimo círculo do inferno. Foi uma demonstração brutal e cara, mas bem-feita — os dois lados entenderam que viveriam ou morreriam juntos. — Procurei IdrisPukke pra falar disso duas vezes, mas ele continua me enrolando — disse Fanshawe. — Quero que eles sejam reunidos e enviados de volta. — Por quê? — perguntou um exausto Cale, sem muita disposição para nada além de dormir. — Como se você se importasse com motivos. — Agora me importo... então qual é o motivo? — Aqueles 250 hilotas pertencem ao Estado. — Esse seria o Estado que assinou um tratado com os Redentores. — Estamos ajudando no treinamento, não estamos? — Acho melhor não começarmos a falar das suas boas intenções. Mas podemos, se você quiser. — Os hilotas ameaçam nossa existência tanto quanto os Redentores ameaçam a de vocês. Há quatro deles para cada um de nós na Lacônia. Eles estão aqui para aprender com você como destruir o Estado que os possui. Se você não quiser ser visto trabalhando contra nós, me deixe cuidar deles. — Vamos deixar clara uma coisa. Quem cuida de tudo aqui sou eu. Se você chegar perto deles, mando pendurá-lo no mastro mais próximo de cabeça pra baixo, e seu nariz estará no meu bolso. Houve um silêncio — não muito agradável. — Então nós vamos embora. Outro silêncio. — Não vou mandar 250 homens de volta para serem executados — disse Cale. — Por que se importa? — Deixe pra lá o que me importa. Não vou fazer isso. — Fanshawe, no entanto, sentia que uma concessão estava a caminho. — Vou mandá-los embora. — Ou seja? — Vou pedir que um pessoal desagradável que conheço os acompanhe até o outro lado das montanhas e mande que caiam fora. — E se eles se recusarem? — Não seja ridículo. — Posso confiar em você quanto a isso? — Pra mim sua confiança ou a falta dela não valem um saco de tripas podres de texugo. Quero que vocês fiquem e prometo que vou me livrar deles. É pegar ou largar. E é só.
Fazia sentido para Fanshawe pensar que seus instrutores eram muito mais valiosos do que umas centenas de camponeses sem treinamento, por isso ele decidiu ceder — mas da forma menos grata possível, para deixar Cale com a impressão de que ele estava profundamente infeliz com o acordo. Na verdade, não estava tanto assim. No dia seguinte, Cale acordou depois de 16 horas de sono, ainda cansado, e soube que IdrisPukke havia chegado para uma breve reunião. — Você deveria ter me contado que Fanshawe esperneava por causa dos hilotas — disse Cale. — Na minha opinião, não deveria — disse IdrisPukke. — Você deixou claro que nós, pelo que quero dizer eu, devemos trazer soluções, e não problemas. Você deveria ter recusado a visita dele. De fato, deveria recusar qualquer visita... cultive o seu mistério. Quanto mais você fala com as pessoas, mais humano parece, portanto mais compreensível e por isso mais fraco. Você não é a encarnação da Ira de Deus, é um garoto doente. — Não precisa me elogiar tanto. — Já que insiste: você é um garoto muito notável e muito doente. — Eu acho que deveríamos ajudar os hilotas. — Por quê? — Se derrotarmos os Redentores, isso vai ter um preço. Ficaremos mais fracos. É muito provável que os lacônicos queiram se aproveitar disso. Portanto, se tiverem que enfrentar os escravos, escravos recém-treinados, a probabilidade de que os lacônicos nos incomodem será menor. — E é só? — Como assim? — Você não cedeu a um daqueles impulsos generosos que o afetam de vez em quando? — Por exemplo? — Você simpatiza com eles, se identifica porque são um povo lutando para se livrar de um opressor detestável. — Isso seria tão ruim? — Com essa, são três perguntas em resposta às minhas três perguntas: grosseiro, mas revelador. — Detesto ser grosseiro. — Você está andando no fio de uma navalha, garoto, todos estamos... não pode se dar ao luxo de assumir uma causa que não tem poder para apoiar. — Não vou fazer isso. Mas não vejo por que não podemos mandar os hilotas para o Leste, para treinarem com os Purgadores ali. — Concordo. Uma pausa. — Então vai mandá-los? — Já mandei. — Grandes mentes pensam parecido. — Se você gosta de acreditar nisso.
Cale tocou um sininho de prata para indicar que queria seu chá. Ele se sentia absurdamente presunçoso fazendo algo tão elaborado, mas economizava o esforço de ir até a porta e dar um berro. O chá chegou imediatamente, pois o mordomo estava apenas esperando o toque do sino. IdrisPukke olhou com apetite para o sortimento de sanduíches na sua frente, sem casca e cortados em delicados triângulos: queijo, ovo e carne de cavalo com pepino. Havia doces da Patisserie Valerie, na Mott Street: mil-folhas de creme selva com morangos silvestres e frangipana de amêndoas, com seu intoxicante aroma doce de cianureto. — Procurando jeitos de gastar o seu dinheiro? — perguntou IdrisPukke. Cale sorriu. — Come e bebe; amanhã morrerás — ele disse —, uma frase que ouvia três vezes ao dia antes das refeições no Santuário. — Isso não se discute — disse IdrisPukke, dando uma grande mordida numa torta de vitela com um ovo cozido no meio. — Koolhaus veio me ver, procurando emprego. — Ele já tem um emprego — disse Cale. — Ele é um jovem capaz, muito capaz. Sabemos disso e ele sabe também. É um desperdício. Ele poderia se tornar útil. — Não vou deixar Simon surdo e mudo de novo. Ofereça-lhe mais dinheiro. — Ele é ambicioso. Podemos perdê-lo, e seria melhor manter entre nós alguém que conhece tantos dos nossos segredos. Ele também poderia ser um grande incômodo. Cale mordiscava distraidamente um cupcake de creme vermelho aveludado. — Tudo bem. Faça-o trabalhar com Kleist ou Henri Embromador por um mês. Vamos ver como ele se sai. Se for bom mesmo, mande-o ficar de olho nas coisas no Treze Oeste. Mas ele precisa levar Simon junto. — Arbell vai tentar impedi-lo. — Se Simon der ouvidos a ela, ficará de fora. Mande Koolhaus sozinho. Eles mantiveram um silêncio agradável por alguns minutos, apreciando o chá. — Você deveria ir ver Riba — disse IdrisPukke finalmente. — Por quê? — Precisamos fazer mais uso dela. — Já tentei isso. Ela aprendeu gratidão com sua ex-patroa. Para sua grande irritação, IdrisPukke riu. — Você tem uma expectativa muito elevada da capacidade alheia de sentir gratidão. — Não, já não tenho mais. — Discordo; você pediu que ela traísse o marido, marido dela há pouco tempo, aliás. Não lhe deu nem tempo de se desiludir com ele. — Bem, fico feliz que você ache engraçado. Eu evitei que aquela vaca ingrata fosse estripada ainda viva por aquele louco filho da puta do Picarbo. IdrisPukke continuou comendo um bolo durante essa diatribe e, quando terminou, pôs o prato na bandeja e disse: — Sabe, eu tinha esquecido como você pode ser um pé no saco. — Cale ficou surpreso, mas não pela recusa em reconhecer que seu ressentimento era totalmente justificado. — Você
se acha tão superior a todos... não negue. — Eu não ia negar. — Então por que fica tão espantado quando os outros não satisfazem suas expectativas? Não dá pra ter as duas coisas, filho. Você precisa se decidir. Ou então, futuramente, limite-se a realizar seus atos magnânimos de sacrifício somente para pessoas heroicas e excepcionalmente virtuosas. IdrisPukke encheu uma xícara de chá para Cale e tocou a sineta. Ela fora um presente zombeteiro de Cadbury para Henri Embromador, comprado quando ele descobrira que Henri pedia chá toda tarde. — O senhor tocou — disse o mordomo. — Mais chá, Lascelles — disse IdrisPukke. — Muito bem, senhor — disse Lascelles e saiu. — Você diz não esperar nada dos outros, no entanto claramente espera que alguns abram mão de tudo. Por quê? — Só as pessoas que arrisquei a vida para salvar. — Há uma diferença entre o que as pessoas deveriam fazer e o que elas são capazes de fazer. Você nunca teve uma esposa ou um pai que dividisse a sua lealdade. Tenho certeza de que foi muito difícil, para ela, recusar um pedido seu, e é por isso que você deveria demonstrar um pouco de hombridade e fazer uso do remorso dela. Riba vai querer ajudar para provar que não é tão ingrata. — Elas deveriam ter confiado em mim. — Sem dúvida. Mas estavam com medo. — Eu sei o que significa estar com medo. — Sabe mesmo? Olhe, não tenho certeza de que isso seja verdade... ou totalmente verdade. Lascelles voltou com o chá, e depois disso IdrisPukke mudou de assunto.
29 — VOCÊ AINDA ESTÁ BRAVO COMIGO — DISSE RIBA, MAIS UMA AFIRMAÇÃO DO QUE UMA PERGUNTA. — Não. Tive muito tempo pra esfriar a cabeça. Me dei conta de que pedi demais de você. Ela não acreditou em sua alegação de perdão, mas era igualmente necessário, para ela, agir como se acreditasse. O remorso e a política assim exigiam — seu marido queria estabelecer boas relações com o agora poderoso Cale. — Como você está? — Como você está vendo — disse Cale sorrindo. Mais tarde, ela diria ao marido: “Ele estava tão pálido que parecia amarelo-esverdeado.” — E você? — Muito bem. — Houve uma pausa, e ela lutou para decidir se lhe contaria. Mas ela queria contar... desesperadamente. — Eu vou ter um bebê. — Oh. — Você deve dizer: “Que maravilha, querida, fico tão feliz por você.” — Eu estou... estou feliz por você. — Ele riu. — O negócio é que não consigo acreditar, na verdade, que uma pessoinha possa crescer dentro de outra pessoa. Não parece possível que isso realmente aconteça. — É verdade — disse Riba, rindo também. — Quando uma das criadas me mostrou sua barriga de sete meses, gritei quando vi o bebê virando e a barriga se mexendo; era como ver um gato dentro de um saco. — Os dois sorriram um para o outro — afeto, cálculo e ressentimento dispostos em camadas. — Agora deve me perguntar pra quando é. — Não sei o que isso significa. — Quando eu vou ter o bebê. — Quando vai ter o bebê? — Daqui a seis meses. — Mais uma pausa. — Agora pergunte se quero um menino ou uma menina. — Eu não estou nem aí. Ela riu de novo — mas nada, é claro, poderia ser como antes. — Quero a ajuda do seu marido. — Então vou providenciar que ele vá ver você. — Não estou dizendo isso como um insulto, mas quero ajuda de verdade, não o que a Hansa ofereceu até agora. — Ou seja? — Diga você. Algo melhor do que aquilo... me mostrem. — Sou só a esposa dele. Não posso falar por ele, muito menos pela Hansa. — Não, mas pode falar com ele. Pode convencê-lo a não ficar malhando o ferro frio comigo. Não temos tempo. Estou falando sério. Se ele ficar de fora e eu vencer, não vou esquecer. Quero dizer que vou fechar a Hansa pra nunca mais reabrir. — E se você não vencer?
— Nesse caso, ele não terá com que se preocupar, certo? Ela não sabia o que dizer. — A questão não é só no que ele acredita ou o que ele quer. A Liga Hanseática não tem muita experiência com os Redentores. Eles acham que a reputação dos Redentores é só para assustar. É nisso que querem acreditar. Não diga que eu contei, mas eles não enviarão tropas, de jeito nenhum. Não há nada que ele possa fazer a respeito disso, e se você solicitá-los, a Hansa fará você aguardar a resposta por meses. — O que eu posso pedir? — Dinheiro, talvez. — Não preciso de dinheiro, preciso de administradores, pessoas que saibam fazer pedidos e abastecer, estocar, entregar, todas essas coisas que a Hansa sabe fazer. Não preciso de dinheiro, quinhentas pessoas boas bastarão. — Foi um número pensado na hora. — Já que é tão pouca gente, não precisa ser nada oficial. A Hansa não precisa ser vista fazendo isso. Mas quero essas pessoas, e quero agora. — Ele olhou para ela e sorriu. — Menti sobre o dinheiro. Quero dinheiro também. Quando Riba entrou em sua carruagem para partir, foi observada do segundo andar por Henri Embromador. Ele estava lembrando o dia em que se escondeu atrás de um morrinho no mato e a viu tomando banho nua num laguinho, toda curvas lindamente balofas, mas musculosamente volumosas, macias e molhadas, e lembrava também o formigamento no peito quando ela distraidamente abriu as dobras no meio de suas pernas. Mas isso acontecera em outro mundo. Dois minutos depois, Henri Embromador se juntou a Cale para tomar o que restara do chá da tarde. — Como foi? — ele perguntou. — Ninguém ama a gente — disse Cale. — Nós nem ligamos — respondeu Henri Embromador. Naquela noite, Cale teve Artemisia em seus braços pela última vez. Se a nudez e o abraço dos dois sugeria calor, havia uma grande e fria distância entre eles, por mais que as peles se tocassem. Cale, sem experiência nos motivos pelos quais ela não fechava mais os olhos quando ele beijava seu rosto, não sabia como se sentia ou o que fazer a respeito: ele jamais gostara de alguém e parara de gostar antes. Como algo tão próximo como estar dentro de alguém — que estranho era isso, que estranho — podia se transformar numa distância tão grande, tão de repente? — Quero atravessar o rio — ela disse. — É complicado. — Isso é o que as pessoas dizem quando estão para negar algo... a uma criança, quero dizer. Ele se afastou dela e se sentou na cama, procurando seus charutos. Só restava metade de um. Ele o acendeu. — Precisa fumar agora? — Preocupada com minha saúde?
— Eu não gosto. Ele não respondeu, mas continuou fumando. — Eu quero ir. — Ele continuou sem dizer nada. — Eu vou. — Ele se virou para olhá-la. — Eu vou, não importa o que você diga. — Talvez você tenha notado — ele disse finalmente, soprando um longo penacho de fumaça no quarto — que sou eu quem diz às pessoas o que elas vão fazer. — Ah, então é isso que vai fazer, Vossa Enormidade, mandar me prender? Vai me enforcar na porta do Prada pra servir de exemplo? — Você está delirando. Precisa tomar alguma coisa. — Eu vou. Ele olhou para ela. — Então vá. Isso tirou um pouco do ímpeto dela. — É alguma das suas pequenas trapaças? — ela disse finalmente. — Não. Ela se levantou, totalmente nua, quase uma miniatura de mulher, comparada com Riba. — Entendo. Consigo enxergar através de você até o outro lado. É um bom jeito de se livrar de mim. Certamente dava-se o caso que, imediatamente antes de ele dizer que ela podia ir, a ideia de que essa decisão resolveria dois problemas estava em sua mente. — Então sou um vilão se deixo você ir e sou um vilão se impeço você de ir. — Você está disposto a me deixar arriscar a minha vida e as vidas de centenas de pessoas porque não tem coragem de terminar comigo. Me deixe poupar o seu trabalho: não quero mais nada com você. Você é um mentiroso e um assassino. Os insultos livraram a cara dele. Ela tomara a decisão por ele, e uma sensação maravilhosa de alívio o inundou. — E então? — ele disse, enquanto ela se vestia. — Eu vou. — Quer dizer que está indo embora ou que vai cruzar o Mississippi? — As duas coisas. — Ela se levantou, calçou os sapatos, saiu pela porta e tomou cuidado para não batê-la. — O que você quer que eu faça? — Cale perguntou a IdrisPukke, depois de contar que dera permissão a Artemisia para cruzar o Mississippi. — Devo mandar matá-la? — Você teve uma péssima educação. Por que sua mente sempre se volta tão rapidamente para o assassinato? Cale riu. — Tive, sim. Mas agora tenho você pra me dizer o que é certo e o que é errado. — Você me entende mal, se acha mesmo isso. É verdade que às vezes, não muito frequentemente, as regras morais colidem e você ofende alguém, independente da decisão que toma. Mas o mundo não é um lugar perverso porque as pessoas não conhecem a diferença entre certo e errado. Nove em cada dez vezes, o caminho certo está bastante claro,
a não ser por uma coisa. — Que seria? — Que não é do interesse ou desejo das pessoas fazer o que é certo. Claro, elas têm maneiras impressionantes de lidar com a ansiedade resultante, enterrando-a no fundo de suas mentes, ou melhor ainda, dizendo a si mesmas que o mau caminho que estão para escolher na verdade é o melhor caminho. Nunca houve um moralista que pudesse dizer qualquer coisa mais clara do que a Regra de Ouro. — Existe uma Regra de Ouro? — zombou Cale. — Existe, sim, garoto sarcástico: trate os outros como você gostaria de ser tratado. Tudo mais na moralidade são só firulas ou mentiras. Cale não disse nada por algum tempo. — Como — ele disse finalmente — devo aplicar isso ao ato de mandar dezenas de milhares de pessoas morrerem ou matarem outras dezenas de milhares de pessoas? Para sobreviver, precisei mentir, trapacear, matar e destruir. Agora preciso fazer a mesma coisa para que milhões de outras pessoas possam sobreviver comigo. Como sua Regra de Ouro me ajuda nisso? Me diga, porque eu gostaria de saber. — Mas eu admito que há outros momentos em que a moralidade é muito complicada. Por isso temos tantos moralistas para nos dizer o que fazer. — De qualquer forma — disse Cale —, eu tenho minha própria Regra de Ouro. — Que seria? — perguntou IdrisPukke, sorrindo e também curioso. — Trate os outros como você espera ser tratado por eles. Funciona sempre pra mim. — Ele se serviu de mais uma xícara de chá. — Então, por que você se opõe ao ataque pelo Mississippi? — Não diria que me oponho. Para ser sincero, não tenho certeza. O negócio é que se ela fracassar... — E ela pode não fracassar. — Pode. Mas se isso acontecer, seu fracasso enfraquecerá você exatamente quando a última coisa de que você precisa é um fracasso. — Mas e se ela conseguir? — Isso pode não ser uma notícia tão boa quanto parece inicialmente. — Um golpe terrível nos Redentores e mais um ano para nos prepararmos é uma boa notícia? — Ninguém gosta de você. Concorda? — Vão gostar de mim se eu for um sucesso. — Vão? Colocaram você numa posição tão poderosa porque estão com medo... — Apavorados. — Sim. Apavorados é melhor. Enquanto estiverem mortos de medo, vão aturar você. Mas agora Artemisia está com eles, não está mais do seu lado. — Será? Eles não pensaram assim quando ela foi a única a deter os Redentores, seis meses atrás. — Isso foi quando a alternativa eram eles mesmos... agora a alternativa é você. — Ele riu. — Você acha que vão colocá-la no comando?
— Não. Mas vão começar a achar que superestimaram você. Eles adorariam isso. Não esqueça, já estão pensando no que fazer com você, não só se você fracassar, mas também se tiver êxito. Quando um homem ameaça o Estado, mate o homem. — Isso também funciona ao contrário: quando o Estado ameaça o homem, mate o Estado. — Exatamente... é exatamente isso que eles temem.... que você mate o Estado, caso fique poderoso demais. Assim, um grande sucesso de Artemisia, que lhes dá mais um ano para a preparação... eles terão tempo para ficarem muito menos apavorados com os Redentores, que agora podem ser derrotados por alguém que não é Thomas Cale, podem ser derrotados por uma simples mulher, de fato. Para você, a vitória dela seria tão boa quanto um buraco na cabeça. Cale suspirou. — Tem certeza de que não está tornando isso mais complicado do que é? IdrisPukke riu. — Não, não tenho certeza nenhuma. Quando eu soube que Richelieu morreu — aquela era uma mente sutil — não pensei: Oh, Richelieu morreu. O que pensei foi: O que será que ele pretendia com isso? Ser político é ver uma desvantagem no fato de o sol nascer de manhã. Você se importa se eu comer o último bolo Eccles? Cale pretendia comê-lo. IdrisPukke já havia comido um. — Não — ele disse. IdrisPukke, como todos os grandes diplomatas, entendeu que isso significava Não, pode comer o último bolo, e não algo diferente. Ele deu uma grande mordida. Os dois ficaram em silêncio por um momento. — Kant — disse IdrisPukke. — Quê? — Imamuel Kant. Filósofo. Já morreu. Ele dizia que se você quiser saber se suas ações são morais, deve universalizá-las. — Não sei o que isso significa. — Se quiser saber se uma ação que você está para empreender é errada, deve se perguntar: e se todos se comportassem assim? Isso pareceu intrigar Cale. IdrisPukke podia vê-lo pensando no seu passado: nos homens que matou enquanto dormiam, nos poços envenenados, nas execuções de prisioneiros, na assinatura da sentença de morte da donzela de Blackbird Leys, matar Kitty das Lebres, a morte dos donos de fábricas pendurados diante das casas dos aristocratas. Levou algum tempo. — E então? — IdrisPukke finalmente perguntou. — A donzela de Blackbird Leys era uma boa pessoa... corajosa, mas tonta como Imamuel Kant. E se você fizer a mesma pergunta sobre as suas boas ações? E se todos se comportassem assim? E se todos enfrentassem os Redentores como ela, colando cartazes e discursando? Acabariam exatamente como ela: num monte de cinzas. Se você combater a crueldade com gentileza, o que desaparece é a gentileza, não a crueldade. Lamento muito pelos campos e pelo que aconteceu com as mulheres e as crianças da Tribo. Tenho pesadelos. Mas eu não fiz aquilo por querer.
— Tradicionalmente, o inferno está cheio de boas intenções. — Bem, não era exatamente uma boa intenção. Se eu precisasse fazer de novo, faria diferente, mas não tenho essa oportunidade. Em vez disso, tenho pesadelos. Mas não toda noite. Quando você faz algo terrível, ou se joga do alto de um penhasco ou segue em frente. Eles ficaram em silêncio por um tempo. — A não ser no caso daquele monte de merda do Solomon Solomon, nunca agi por malícia. Bem, tirando ele e algumas outras pessoas. — Você riu quando mataram Conn Materazzi; e cortou a cabeça de um homem porque ele mandou você trazer um copo d’água. Cale sorriu, sem precisar salientar que nenhuma das duas coisas era verdade. — É justo lhe avisar — acrescentou IdrisPukke depois de um curto silêncio — que Imamuel Kant também dizia que é errado contar mentiras. Ele dizia que se você decidisse esconder um amigo que apareceu na sua casa dizendo que um assassino estava atrás dele, e depois o assassino batesse na porta e perguntasse se o seu amigo estava lá, pois precisava matá-lo... bem, que seria errado contar uma mentira. Você teria que fazer a coisa certa e entregar seu amigo. — Você está brincando. — Não estou, juro. Ele disse isso mesmo. — Me diga, IdrisPukke, se você se visse diante da sua morte e da morte de sua família pela mão dos Redentores, ou de alguém como eles, quem você iria querer que ficasse entre vocês e eles: eu ou Imamuel Kant? A maioria de nós experimenta dias assim: do momento em que a primeira nesga de sol nasce até que ele se põe, envolto em rosa, tudo vai maravilhosamente bem, exceto as coisas que vão ainda melhor — o dinheiro chega inesperadamente em grandes quantidades, lindas mulheres afagam seu braço como se não achassem nada mais maravilhoso do que o toque da sua pele, um comentário casual demonstra que todos os que não amam você mesmo assim o têm em alta conta. Quem é tão desventurado que já não teve dias assim? Cale era tão bemaventurado que teve dias assim por três meses, praticamente, a fio — e isso para alguém que diziam ter bandos de aves de mau agouro sempre pairando sobre sua cabeça. Não só funerais, mas o desastre parecia normalmente segui-lo por toda parte. Mas não durante os gloriosos noventa dias nos quais tudo o que ele tentava quase sempre funcionava. Os administradores da Hansa chegaram em três semanas, junto com os gênios do bloco de pedidos, das entregas por frete, dos esquemas de incentivo ao trabalho de qualidade (reforçados por ameaças de violência de Thomas Cale). Eles centralizaram o planejamento de transporte para que o toucinho chegasse sem larvas, os biscoitos livres de besouros, e criaram trâmites burocráticos para garantir que quando carroças, armas ou cobertores precisassem ser substituídos, sempre houvesse algo disponível nos armazéns para abastecer essas necessidades. O treinamento dos camponeses nos seus fortes de madeira superava as esperanças de todos, à medida que eles absorviam com sofreguidão a sua dura preparação pela mão dos lacônicos e Purgadores. Nada de reclamações amotinadas, somente firmeza e vontade de trabalhar. Henri Embromador e o arrasado Kleist cuidavam de cada ponto fraco
que os Redentores poderiam encontrar no projeto e nas táticas de Cale e pareciam especialmente inspirados ao criar soluções para as limitações que encontravam. O clima de ruptura com o passado, de revolução e metamorfose, parecia estar no próprio ar. Ainda sem saber que Cale mentira sobre a ajuda aos hilotas, Fanshawe, um renegado pelo sistema do tipo que toda sociedade rígida de bom senso tenta enquadrar, descobriu que gostava muito de destruir rebeliões entrincheiradas, contanto que não fossem as suas. Toda decisão parecia trazer resultados melhores do que o esperado: o talento do malhumorado Koolhaus era proporcional à sua enorme ambição; ele parecia ter a campanha toda, até a última porção de queijo, esquematizada no cérebro. Dentro de um mês, ele estava de volta com Cale e IdrisPukke. Ou Koolhaus sabia de tudo, ou sabia como descobrir. Mal parecia humano, como se possuísse um dispositivo mágico, capaz de pesquisar uma memória imensa e fornecer uma resposta instantânea. Koolhaus era irritante, condenável e tinha tanta imaginação quanto um tijolo, mas como burocrata era uma espécie de gênio. Quanto a Simon Materazzi, ele descobriu que a guerra era uma mãe generosa para aqueles que eram desprezados em tempos mais pacíficos. Ansioso para se livrar do seu aristocrático fardo, Koolhaus passara muitas horas desmamando Simon da linguagem de sinais e criando um sistema para que ele aprendesse leitura labial. Novamente motivado pelo interesse próprio, Koolhaus dedicou seu cérebro formidável à invenção de uma habilidade inédita. Tão ansioso para se ver livre de Koolhaus quanto Koolhaus queria se ver livre dele, Simon trabalhava por horas ao dia aperfeiçoando essa habilidade. Os dois já estavam planejando o seu divórcio quando a proposta de Cale chegara e revelara que aquelas eram suas últimas semanas juntos. Mas enquanto Koolhaus finalmente podia esfregar na cara dos outros a sua superioridade em quase tudo (exceto lidar com pessoas ou fazer qualquer coisa original), Simon descobriu o imenso prazer e a utilidade ainda maior de ser ignorado enquanto ouvia tudo o que as pessoas diziam. Os lacônicos tinham o costume de jogar os bebês que nasciam aleijados ou cegos numa vala perto da capital, por isso alguém como Simon era uma novidade, e eles o tratavam como se fosse um macaco divertido. Simon se vingava fazendo uso da completa descontração com a qual eles conversavam na sua frente para manter Cale informado com detalhes surpreendentes sobre tudo o que eles estivessem tramando. O interessante era que mesmo se Simon tivesse nascido entre os lacônicos, teria sobrevivido. Havia uma exceção em sua regra, tão férrea para todos os outros casos: um filho da família real lacônica, por pouco saudável que fosse, jamais enfrentaria a longa queda até os rochedos daquele lugar terrível. Assim era e assim sempre seria. Os lacônicos se divertiam vendo Simon e Koolhaus tagarelando silenciosamente, de mãos dadas, na forma lindamente fluente que eles tinham de conversar. Eles chamavam Simon com gestos à noite e escreviam palavras, pedindo que este lhes ensinasse os sinais correspondentes. Gostavam de tratá-lo com condescendente espalhafato e não faziam ideia de que quase tudo o que falassem com os lábios à mostra podia ser lido por ele — inclusive as bem-humoradas ofensas a ele dirigidas. Quando Koolhaus foi chamado de volta à Leeds Espanhola, Simon fez um acordo com ele para ocupar seu cargo, enquanto um antigo colega de escola de Koolhaus ficaria e se fingiria de intérprete, para que os lacônicos não suspeitassem de nada. — Tem certeza que ele consegue fazer o trabalho? — disse Cale, quando Koolhaus voltou.
— Pensei que você fosse amigo dele? — respondeu Koolhaus. — Ele consegue fazer o trabalho? — Sim, ele consegue fazer o trabalho. Koolhaus decidiu que a nova habilidade de leitura labial — conquistada com tanto esforço seu quanto de Simon — teria mais serventia se mantida em segredo. As coisas úteis que ele poderia descobrir, e de fato já estava descobrindo, aumentariam a reputação de Koolhaus como um homem com todo tipo de coisa na ponta dos dedos. Os preparativos para a travessia do Mississippi também estavam indo bem, e esperavam apenas pelo clima e pela autorização final de Cale. Havia alguns espinhos nas roseiras de Cale, mas aquele que mais diretamente o afetava era a introdução do racionamento, uma manobra exigida pelos burocratas da Hansa para evitar o pânico das compras, a acumulação e a escassez dos bens vitais para o Novo Exército Modelo. Os argumentos deles haviam sido analisados, a mando de Cale, por Koolhaus, e este concluíra que o pedido era irrefutável — o racionamento era tão vital para a derrota dos Redentores quanto o fornecimento de armas. — Será, é claro — disse Koolhaus, fazendo seu relatório à ACR —, necessário para o bem do moral público que essas restrições se apliquem a todos. Não pode haver exceções — ele declarou piamente —, a não ser, naturalmente, no caso da família real. Por coincidência, Koolhaus fizera essa declaração enquanto Henri Embromador estava presente, tendo ele voltado brevemente à Leeds Espanhola para discutir com Cale os preparativos no Oeste. Nem bem as palavras “família real” saíram de seus lábios, Koolhaus, ainda inexperiente, mas rápido no aprendizado, se deu conta de que cometera um erro grave. Talvez pior do que grave. — A temperatura caiu tão rapidamente — contou mais tarde IdrisPukke, deliciado, ao seu irmão — que pensei que o Polo Norte havia aparecido para tomar um chá. Meu Deus, aquele Koolhaus é um babaquinha corajoso. Cale encarou Koolhaus, enquanto Henri Embromador puxou uma adaga que mandara fazer especialmente para seu uso pessoal, baseada na Espada de Danzig e entalhada, por motivos que ele se recusava a explicar, com a palavra “se” de cada lado do cabo. Ele ergueu a adaga como se fosse cortar a cabeça de Koolhaus, mas apenas a fincou no meio da mesa de nogueira lindamente entalhada à qual estavam sentados. O ódio de Henri Embromador pelos aristocratas da Leeds Espanhola havia supurado de um desdém generalizado, resultante do ressentimento natural do zé-ninguém com os privilegiados, para uma particular ojeriza baseada na forma como ele havia sido tratado enquanto Cale estava no manicômio do Priorado. A ideia de que ele teria que passar sem seus adorados sanduíches de pepino enquanto a família real não seria afetada era mais do que ele podia suportar. Por isso, ele fez pé firme. Houve uma breve pausa. — Então — disse IdrisPukke — estamos de acordo: racionamento para todos, exceto para a família real e os aqui presentes. Depois que Koolhaus e IdrisPukke saíram, o que aconteceu quase em seguida, Cale se virou para Henri Embromador e acenou para o punhal cravado fundo no meio da mesa.
— Eu não vou pagar isso — disse Cale. — Ninguém te pediu pra pagar — respondeu Henri Embromador. Houve um silêncio despeitado. — Por que — perguntou Cale — você não pode simplesmente dar um soco na mesa? Olha só, está arruinada. — Já falei que vou pagar. Mais um silêncio. — Arruaceiro do cacete.
30 NAS ENCOSTAS MAIS ALTAS DO GÉLIDO MISSISSIPPI, ALGO SE MOVIA. MAIS RIO ABAIXO, ALGO SE MOVIA TAMBÉM. ARTEMISIA HALICARNASSUS ESTAVA AMALDIÇOANDO O BOM TEMPO, QUE ERA UMA BÊNÇÃO TÃO GRANDE PARA CALE DURANTE O TREINAMENTO DO NOVO EXÉRCITO MODELO. NUM INVERNO NORMAL, QUANDO A TEMPERATURA IA E VINHA ENTRE O PONTO DE CONGELAMENTO E POUCO ACIMA DELE, O RIO ERA DIFÍCIL DE INTERPRETAR ATÉ PARA OS MAIS EXPERIENTES: OS BLOCOS DE GELO DERRETIDOS, MAS AINDA ENORMES, QUE SE DESTACAVAM RIO ACIMA SE AMONTOAVAM FORMANDO GRANDES REPRESAS QUE PODIAM RESISTIR POR SEMANAS, E ENTÃO, COM UM DIA DE TEMPERATURAS MAIS AMENAS, ABRUPTAMENTE CEDER E FLUIR COMO UMA AVALANCHE LENTA, ÀS VEZES POR QUILÔMETROS, ATÉ ATINGIREM MAIS GELO REPRESADO, ONDE PODIAM TRAVAR DE NOVO OU CAUSAR UM GRANDE COLAPSO E COMEÇAR UM FLUXO AINDA MAIOR. PORÉM, O CALOR FORA DE ÉPOCA DAQUELE ANO TORNARA ESSE PROCESSO AINDA MAIS TRAIÇOEIRO E INSTÁVEL DO QUE O NORMAL. Mas Artemisia tinha homens ao seu redor que viveram no rio por sessenta anos ou mais. Havia um grande campo de gelo instável travado uns 8 quilômetros rio acima, mas a temperatura caíra para perto do ponto de congelamento, diminuindo a probabilidade de uma quebra. O perigo era que grandes icebergs fluviais descendo o rio batessem na instável represa de gelo, que gemia e estalava. Mas por 15 quilômetros rio acima da represa, homens habilidosos e experientes estavam espalhados pela margem, cada homem amarrado a uma corda e sinalizando com diferentes tipos de puxões para o próximo o tamanho dos icebergs, assim que eles passavam. Sobre a própria represa de gelo, homens estavam posicionados para vigiar a correnteza e sondar a estabilidade do gelo que os sustentava. Depois que escurecera, os soldados que fariam a travessia, embrulhados contra o frio como caros presentes, suportavam um êxtase de tensa espera. Então a ordem para arriscar chegou. Vinte barcos, carregando setecentos homens armados feito porcos-do-mato, foram lançados no ponto de travessia mais estreito por muitos quilômetros em ambas as direções. Mas nem o barqueiro fluvial mais esperto, com a barba mais grisalha, poderia enxergar sob o gelo, onde os grandes icebergs afundavam no leito arenoso e criavam perigosos refluxos na correnteza, que abriam grandes fendas no fundo do rio. Essas turbulentas e incansáveis ressacas iam e vinham com o movimento do gelo lá em cima. O carvalho, inchado pela água, passou sem ser detectado pelos observadores de icebergs da margem, aflorando à superfície, em seu enorme volume, menos que um crocodilo em caça. Então ele bateu na represa de gelo com um barulho como o baixo profundo da nota mais grave de um órgão de catedral. Foi sentido pelos sentinelas postados em cima do gelo tanto nas entranhas quanto nos ouvidos. Os homens esperaram pela grande rachadura que poderia partir o campo e liberar a represa de icebergs, matando a maioria deles. Ela não veio. Empurrado para baixo do gelo pela correnteza, o carvalho começou a rolar — lá se ia ele, como Moby Dick, para o fundo da represa, onde algumas horas antes duas grandes garras de gelo haviam se formado. Ao redor delas, a correnteza, potente porém lenta, tornou-se num momento frenética,
irresistível e louca, impelindo o grande tronco, encharcado e com três vezes seu peso original, cada vez mais rápido à medida que o fluxo era comprimido mais e mais entre o gelo irregular e o leito do rio. De lado, o tronco arremeteu entre as duas grandes pontas de gelo voltadas para o fundo, mandando tremores estranhos, mas incompreensíveis, para os cegos observadores lá em cima, enquanto ribombava e quebrava tudo bem abaixo deles. E então se soltou, a correnteza, agora em disparada, carregando o peso supersaturado da árvore numa rápida porém breve subida para a superfície, conservando o impulso das correntes que saíam em altíssima velocidade de baixo do gelo. A 13 quilômetros por hora, até um corredor comum poderia acompanhá-lo enquanto ele rumava para a frota de barcos — mas não era a velocidade que importava, e sim seu tamanho e seu terrível peso ensopado. Mesmo assim, teria causado danos limitados se não tivesse batido de ponta numa rocha no meio do rio; o grande leviatã de madeira começou a virar de lado na direção da frota em lenta travessia. Apesar de todos os esforços para evitar isto, os vinte barcos haviam sido acumulados pelas estranhas correntes do dia, e não eram barcos pequenos — 35 homens em cada um. O carvalho nem bateu neles, na verdade, mas rolou por cima deles como se nem estivessem lá — mal se ouviu um grito antes que cada barco afundasse na água e virasse de lado. Por causa da lotação, onze barcos afundaram em menos de 15 segundos. A árvore sumiu na escuridão fria e úmida, deixando para trás, afogados, 384 homens e uma mulher. Quando IdrisPukke terminou de dar a Cale a terrível notícia, o sol nasceu e um feixe quente de luz atravessou as janelas de vidro parcialmente translúcido, projetando delicados azuis e vermelhos sobre a mesa e iluminando a poeira brilhante no ar. — Tem certeza? — perguntou Henri Embromador. — Como sempre, nesses casos. Meu homem é confiável e disse que viu o corpo dela antes de voltar. — Qual foi a causa? — Imagina-se que tenha sido uma parede de gelo que se partiu de um campo maior rio acima. Azar, só isso. — Mas você previu — disse Cale baixinho. — Para ser injusto com meus prodigiosos poderes proféticos, devo dizer que faço questão de prever mais ou menos todos os resultados possíveis. Poderia ter dado certo tão facilmente quanto deu errado. — Podemos guardar segredo? — perguntou Henri Embromador. — Se todos tivessem sobrevivido ou todos se afogado, talvez. Agora não... eu diria que... — Ela vai fazer muita falta — interrompeu Cale, num tom de voz constrangido e estranho. — Sim — disse IdrisPukke. — Era uma jovem notável. Ninguém disse nada. Alguém bateu na porta e Lascelles, o mordomo, se esgueirou para dentro da sala. — Uma carta para o senhor — ele disse a IdrisPukke, que a pegou e dispensou Lascelles com um gesto, esperando que ele saísse da sala antes de falar. — Tem alguma coisa estranha nesse homem. Ele tem os olhos próximos demais. — Ele abriu a carta. — Aparentemente, Bose Ikard sabe sobre a travessia e Artemisia.
— Como? — disse Henri Embromador. — Da mesma forma que eu fiquei sabendo, imagino. — Não... como você sabe que Bose Ikard sabe? — Os livros vermelhos de Kitty das Lebres são como janelas para as almas dos grandes e bons da Leeds Espanhola. Passarinhos cantam em toda parte. — O que ele vai fazer? — perguntou Cale. — Ele tem duas opções, eu diria: aceitar o que dissermos até ter uma oportunidade de usar isso quando as coisas ficarem feias de verdade ou usá-lo para nos prender agora e negociar a paz com os Redentores. Isso assustou Henri Embromador, que planejava ser o galo do terreiro pelo menos por mais seis meses. — Você acha que ele faria mesmo isso? — Depois de refletir? Não. Não é o suficiente para assegurar a vitória. Ele sabe das consequências, se errar. Vai guardar isso no porão até poder usar. Mas precisamos sair rapidamente da mira dele, apresentar isso como um esforço heroico perversamente traído... uma mulher nobre, um ataque ousado e heroico. Últimas palavras. — Cale olhou para ele. — Desculpe — disse IdrisPukke. — Vivi tempo demais e tenho maus hábitos demais. Mas não honraremos a memória dela deixando que isso seja visto como um desastre total. Precisa parecer um fracasso heroico. — Foi um fracasso heroico. — Somente se o apresentarmos como tal. As pessoas precisam de histórias de ousadia individual, de coragem e sacrifício altruísta, de quase vitória e punhaladas traiçoeiras pelas costas. — Vamos esperar que haja dessas histórias, então — disse Henri Embromador. — A esperança não tem nada a ver com isso — disse IdrisPukke. — Meu pessoal as está escrevendo agora mesmo. Estarão afixadas por toda a cidade amanhã de manhã. — Ele se virou para Cale, sentindo-se malvado e cínico. — Lamento pela sua perda. É uma pena que a morte a tenha levado tão cedo. IdrisPukke deixou os dois garotos, o sol suave raiando através das janelas como se a casa fosse uma catedral doméstica abençoada por anjos. — Quando você vai partir? — Cale disse finalmente. — Amanhã. Cedo. Mais um longo silêncio. — Também lamento por sua perda — disse Henri Embromador. — Não sei o que mais poderia dizer. Eu gostava dela. — Ela não gostava de mim. Não no fim. Mais um silêncio. — Bem — disse Henri Embromador —, é fácil interpretar você mal. — Uma risadinha sardônica de Cale. Henri Embromador continuou tentando reconfortá-lo. — Não foi culpa sua. As coisas são assim e pronto. — Não sei — disse Cale, depois de um momento. — Não sei o que sinto por ela, agora que
está morta. Não estou sentindo o que deveria, isso é certeza.
Parte Quatro
Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos. 1 Samuel 15:3
31 OS REDENTORES CRUZARAM O MISSISSIPPI EM ABRIL E CHEGARAM À OUTRA MARGEM PRATICAMENTE SEM ENFRENTAR RESISTÊNCIA. OS BATEDORES QUE ELES MANDARAM PELAS PLANÍCIES SUAVES, QUE SE ESTENDIAM POR 500 QUILÔMETROS DESDE A MARGEM SUL DO RIO, VOLTARAM COM A NOTÍCIA DE QUE QUASE TODA ALDEIA, VILA E CIDADE ESTAVAM DESERTAS, E NÃO SÓ DE PESSOAS. TODOS OS ANIMAIS, DE PORCOS A VACAS E COELHOS, SUMIRAM JUNTO COM A POPULAÇÃO. OS CAMPOS NÃO HAVIAM SIDO SEMEADOS COM TRIGO OU CEVADA E ESTAVAM ENTREGUES ÀS PAPOULAS, QUE BROTARAM CEDO DEVIDO AO CALOR FORA DE ÉPOCA. — É lindo — disse um dos batedores ao voltar. — Duvido que até os jardins do céu possam se igualar a isso: quilômetros e quilômetros de papoulas e eufrásias, heléboros e diantos, nãome-toques e ervilhaca de folhas finas. Mas porra nenhuma pra comer por quinze dias de viagem em qualquer direção. A não ser que você seja uma vaca ou um cavalo. O batedor esperava demais da generosidade de Cale. Este não tinha nenhuma intenção de permitir que os Redentores alimentassem seus animais. Assim que o solo ficara mole o suficiente, ele mandara mulheres e crianças para os campos, e em vez de semear trigo e cevada, ele os fez plantar Charlie Doido, chapéu-de-corda e erva-de-santiago — todas venenosas para os ruminantes. Isso causou considerável furor: — O que vai acontecer — eles gritavam — com os nossos animais quando voltarmos? — Eu me preocuparia com isso — disse Cale — se vocês voltarem. No entanto, ele mapeara cuidadosamente as áreas envenenadas, o que os tranquilizou, embora a intenção não fosse essa — ele só queria saber onde era seguro alimentar os cavalos que puxavam as carroças de guerra. Foram o general Redentor Princeps e seu Quarto Exército que cruzaram o Mississippi primeiro, veteranos da destruição dos Materazzi em Silbury Hill. Princeps sabia muito bem do que Cale era capaz, tendo acompanhado cuidadosamente boa parte do plano do garoto para a invasão do território Materazzi quando Cale ainda estava no Santuário. Ele sabia que assim que eles atravessassem o Mississippi haveria coisas medonhas esperando por ele e seus homens. Não esperava uma chegada sem resistência, mas já previa a decisão de não semear. Porém, ele não antecipou o plantio de ervas tóxicas para envenenar seus cavalos e ovelhas. Levou várias semanas trazer ração de fora, e mais tempo ainda encontrar alguém capaz de identificar as plantas que estavam causando o problema. Ele esperava ter que defender uma cabeça de ponte na margem sul enquanto o Eixo tentava repeli-los de volta para o Mississippi. Em vez disso, ele tinha 500 quilômetros para usar, ao que parecia, como bem entendesse. Cale havia transformado a pradaria numa desolação florida. Abastecer um grande exército naquele deserto vermelho, amarelo e cor-de-rosa iria exigir uma mudança de estratégia significativa, e também mais tempo. Por enquanto, Princeps ficou perto do rio e organizou os meios de apoiar um novo plano para avançar sobre a Suíça. Foi depois de uma semana nesse hiato que uma força de quinhentos Redentores da infantaria montada — seus cavalos agora com focinheiras para não comer os venenos que os esperavam na grama — encontrou uma
visão muito peculiar: uma espécie de forte redondo de madeira, não grande, fechando uma área de aproximadamente um hectare e com um fosso cavado ao redor. Quando o Redentor Partiger acompanhou seus batedores para dar uma olhada, fez uma prece silenciosa para Santa Marta de Lesbos, a santa protetora daqueles que precisam de ajuda contra o inesperado. Ela conquistara seu lugar em meio à lista dos santos por causa da estranha natureza do seu martírio — fora obrigada a engolir um gancho de seis lados preso a um fio, com articulações em cada gancho para que o dispositivo pudesse percorrer seu sistema digestivo sem enroscar. Umas doze horas depois, quando seus carrascos sentiram que o gancho viajara o suficiente, puxaram o fio e viraram a mulher do avesso. No dogma Redentor, a engenhosidade era sempre retratada como uma ameaça, por isso a necessidade de uma santa com a responsabilidade específica de interceder para proteger os fiéis de seus perigos. — Mande alguém se adiantar com uma bandeira branca — disse Partiger. Alguns minutos depois, um cavaleiro com a bandeira da paz chegou a 50 metros das carroças de guerra. — Em... O que quer que ele fosse dizer foi interrompido por um tiro de besta no meio do peito. — Por que ele parou? — perguntou Partiger. Então, muito lentamente, o mensageiro tombou para um lado do cavalo e caiu. Os Redentores que estavam vendo aquilo ficaram ultrajados com essa transgressão das regras da guerra, apesar de eles mesmos jamais terem seguido tais leis. Levando isso em conta, certamente não havia nenhuma grande desvantagem em matar o mensageiro, mas aquilo fora, na verdade, um acidente. O arqueiro que acertou o mensageiro estava apenas mirando no homem por precaução — mas na carroça lotada, um ex-colhedor de lúpulo, nervoso, se mexeu e esbarrou no braço dele. — Acho que ele só queria perguntar o caminho de casa — alguém exclamou, e todos caíram numa gargalhada nervosa. Partiger pensou no que fazer a seguir. Os Redentores eram bastante experientes na guerra de assédio, mas as catapultas que eles usavam eram extremamente pesadas, e as poucas que trouxeram ficaram todas do outro lado do Mississippi, porque não havia nenhuma cidade fortificada importante a menos de 560 quilômetros do rio. Levaria várias semanas carregar uma até lá. Além disso, o forte não era muito grande, e era de madeira, não de pedra. Apesar de seu compreensível desconforto com a novidade do que tinha diante de si, Partiger sabia que todos esperavam que ele descobrisse que tipo de novidade era aquela, por isso não podia simplesmente dar a volta nela. Por mais estranho que fosse, o forte não parecia particularmente formidável. Ele ordenou um ataque com trezentos homens. Cinquenta deles eram cavalarianos em armaduras — uma inovação dos próprios Redentores — e o resto era infantaria montada, com proteções mais leves. Partiger viu seus homens se espalharem em volta das carroças, com a intenção de atacar de quatro lados. Enquanto eles esperavam, Partiger puxou conversa com seu recém-nomeado segundo em comando, o Redentor George Blair. Ele não confiava nem gostava de Blair, que fazia parte de uma nova ordem de Santuarinos, estabelecida pelo próprio papa Bosco para
“auxiliar a fé em todas as unidades Redentoras e assegurar ações livres de erros doutrinários ou morais”. Em outras palavras, ele era um espião cuja tarefa era garantir que as novas atitudes religiosas de Bosco e as técnicas marciais que as acompanhavam fossem obedecidas sem questionamento. Partiger surpreendeu um pouco Blair começando uma conversa que não tinha nada a ver com o ataque ao forte de madeira. — Eu estava pensando — disse Partiger — em começar os Setenta e Quatro Atos de Vilificação. — Quê? — Os setenta e quatro atos de homenagem à autoridade do papa. — Eu sei o que são — disse Blair, irritado. — Não entendo a relevância... uma batalha está para começar. Estou sendo testado para ver se digo a coisa errada?, pensou Partiger. Ele decidiu que estava. — Precisamos manter os olhos na vida eterna, mesmo em meio à morte. — Existe o tempo certo para tudo. Agora não é hora. — Mas certamente — continuou Partiger —, se eu pusesse ervilhas secas nos meus sapatos, me abstivesse de beber água em dias quentes e me chicoteasse com urtigas, num ato de mortificação do tipo que os santos suportavam, e que nos deixam assombrados de admiração — ele aprendera de cor a frase sobre estar assombrado de admiração numa bula papal —, então eu não estaria mais aberto à sabedoria de Deus e seria um líder melhor para meus homens? Finalmente Blair se virou para olhá-lo, ele mesmo assombrado, mas não de admiração. — Sim, você está correto, naturalmente. Eu diria que quanto mais dor você causar em si mesmo, melhor. — Sério? — Sim. Pelo que sei, a autoflagelação com um açoite feito de caudas de escorpião é especialmente eficaz, nesse contexto. — Ele se virou novamente para a batalha, deixando Partiger a pensar em caudas de escorpião. Parecia doloroso. No entanto, ele se lembrou das palavras do padre Pio: Quando for mortificar a carne, certifique-se de que vai doer. A 800 metros dali, a batalha havia começado. De início, houve apenas fintas de três grupos de dez cavalarianos, cuja intenção era desencadear uma reação para que eles pudessem avaliar a força dos ocupantes. Nada aconteceu. De perto, podiam ver que o fosso ao redor das carroças não era particularmente fundo, mas estava cheio de varas afiadas. Um deles arremessou sua lança mais pesada contra uma das carroças para ver o quanto ela era estável e bem construída. Nada do outro mundo, ele disse ao voltar. Por isso, decidiram atacar pelos quatro lados, sendo o sinal uma rajada de umas quarenta flechas apontadas para o meio do forte. As flechas foram lançadas, os homens atacaram as carroças, e o Novo Exército Modelo de Cale e seu jeito de fazer guerra tiveram o seu primeiro grande teste. O problema, para os Redentores, era que faltavam todas as ferramentas básicas — nada de escadas, nada de aríetes e somente algumas cordas. Quando entraram no fosso, ficaram
apenas um metro e pouco mais baixos, mas com as laterais das carroças, de dois metros de altura, estavam a três metros de seus oponentes protegidos pelas paredes. Assim que os Redentores atacaram, as janelinhas foram parcialmente abertas e as bestas leves de Henri Embromador entraram em ação. As flechas eram lançadas a distância de pouco mais de um metro — estavam tão perto de seus oponentes que não importava que fossem muito menos poderosas. Num espaço tão pequeno, arcos eram inúteis, mas as bestas eram devastadoras, especialmente agora, que podiam ser recarregadas tão rápido. O teto da carroça tinha articulações duplas, por isso podia ser empurrado para cima e virado para qualquer lado, dependendo das circunstâncias. Desta vez, os tetos foram jogados com estrondo para dentro do forte. Imediatamente, meia dúzia de camponeses e um Purgador ficaram de pé e, com a maior parte do corpo protegido pela parede da carroça, começaram a apunhalar e golpear a massa de Redentores de pé no fosso. As debulhadoras com bolas de chumbo e farpas causavam grandes danos, esmagando a carne por baixo da armadura leve dos Redentores, embora também pudessem penetrá-la. Empolgados com o sucesso e inexperientes, alguns dos camponeses se debruçavam e expunham demais o tronco, e um ou dois foram abatidos pelos arqueiros. — Protejam-se! Pra dentro! Pra dentro! Os Purgadores em cada carroça precisavam ficar puxando de volta os afoitos camponeses, que se deliciavam com a emoção de machucar oponentes sem que estes pudessem revidar. Os Redentores, dez vezes mais preparados do que os homens que os feriam a cada golpe, estavam impotentes. O inimigo estava pouco mais de um metro fora do alcance deles. Tampouco podiam entrar embaixo das carroças, e as rodas estavam cobertas com terra para impedir que se amarrassem cordas nos raios. A posição deles era desesperadora. Depois de cinco minutos, eles recuaram — mas não sem serem alvejados pelos arqueiros, agora em condições de ficar de pé e mirar melhor nos padres batendo em retirada, muitos deles andando devagar por causa dos golpes que levaram nas coxas e nos joelhos. Os camponeses ficaram de pé e comemoraram. Os Purgadores mandaram que calassem a boca. — Eles vão ficar melhores em nos enfrentar a cada dia. Vocês podem dizer o mesmo? Isso os aquietou, mas eles estavam encantados com seu primeiro bocado de matança. Os Redentores voltaram para Partiger, que estava intrigado, além de furioso. Ele descompunha os homens, enquanto Blair andava entre eles e examinava os feridos. — Vocês não causaram dano nenhum? — Acho que pegamos alguns — disse um dos centuriões. — Alguns? Tivemos trinta mortos. E para quê? De qualquer forma, quem pegou alguns foram os arqueiros, não vocês. Quantos vocês mataram? — Não dá pra matar alguém sem alcançar. — Não responda! — gritou Partiger. — E o gancho de escalada? — perguntou Blair. Só havia um em toda a unidade. Ninguém achou que precisariam de mais. — Só ficou preso na lateral por trinta segundos, aí eles cortaram — disse o sargento que o usara. — Mas com o cavalo, consegui puxar bem. Mais ganchos poderiam funcionar, só que a
carroça estava bem presa no chão. Vamos ter que desmanchá-las, elas não viram. Cavalos mais fortes, ganchos maiores e correntes em vez de cordas podem funcionar. Mas eles conseguem flechar os cavalos bem fácil. — E fogo? É tudo feito de madeira, certo? — Pode funcionar, senhor, mas a madeira só queima com muito fogo. — Flechas? — Muito fáceis de apagar. Em Salerno vi umas que tinham óleo e estopa pra espalhar. Mas eu nunca usei. — Uma palavrinha — disse Blair para Partiger. Eles se afastaram. — Alguma ideia? — Um cerco, talvez? — Eles devem ter mais comida do que nós. Além disso, por que estão aqui? Não tem nada que valha a pena proteger. — Olhe, Redentor — disse Partiger. — Não estamos bem equipados, como você diz. Deveríamos recuar e fazer um relatório. Isso é trabalho pra tropas de assédio, não pra infantaria montada. Era um bom argumento. — Você notou uma coisa nos feridos? — disse Blair, sabendo que ele não notara. — Nos feridos? — Sim. Os ferimentos deles... a maioria foi por esmagamento: cabeça, mãos, cotovelos. — Sim? — Não vão sarar rapidamente, ou nem vão sarar, a maioria deles. — Aonde quer chegar, Redentor? — E se isso for de propósito? Eles não tiveram tempo de continuar a discussão. Cinquenta cavalarianos suíços saíram do forte e varreram o acampamento despreparado dos Redentores, matando cem deles e dispersando o resto. Dentro de quinze minutos, estavam de volta ao círculo protetor das carroças, enquanto o sol se punha. Os traumatizados Redentores recuaram de sua posição durante a noite, mas menos de uma hora depois do amanhecer, os suíços estavam de volta, enquanto eles tentavam bater em retirada. Foram bastante atrapalhados em seus esforços para recuar pelos numerosos feridos no ataque ao bastião, que produziu muito mais braços quebrados e joelhos esmagados do que as fatalidades do ataque suíço inesperado pouco antes de escurecer. Os mortos podiam simplesmente ser deixados para trás. Os suíços mantinham um ataque contínuo de longa distância com a dúzia de bestas mais potentes que Henri Embromador fornecera para cada forte. A cada poucos minutos, havia enfrentamentos com a cavalaria suíça, mais experiente, que saía a galope, atacava retardatários e fugia antes que os vigias Redentores mais saudáveis pudessem reagir. Quando os suíços foram embora e voltaram para o bastião, o número de Redentores era metade do que era quando estes viram o forte pela primeira vez, três dias antes. O Novo Exército Modelo contabilizara dez mortos e onze feridos. Blair, mas não Partiger, sobreviveu para fazer um relatório e sugerir uma reação rápida. Mas era uma história esquisita e totalmente isolada, por isso ninguém nos níveis mais baixos
de autoridade, os únicos aos quais Blair tinha acesso, o levou a sério. Mas nas semanas seguintes, o quartel-general do Quarto Exército Redentor foi obrigado a mudar de opinião. Os Bastiões começaram a aparecer em número cada vez maior, causando baixas terríveis. Agora alertas para o perigo, os Redentores mandaram tropas fortemente armadas, equipadas com escadas, ganchos de escalada e tochas para o cerco, mas quando elas chegaram, os Bastiões já tinham ido embora faz tempo. Quando ficou sabendo do problema, Princeps, furioso com a demora, duplicou o número de suas patrulhas para identificar as localizações dos Bastiões rapidamente e mandar tropas maiores para enfrentá-los. Mas era aí que os batedores de Artemisia entravam em ação: operando especialmente sozinhos, eles eram capazes de fornecer informações constantes sobre a movimentação dos Redentores. De fato, cada forte-carroça operava no centro de uma rede de informações que se estendia por até 80 quilômetros em todas as direções. Qualquer força Redentora pequena podia ser ignorada, qualquer uma maior, enfrentada, e se houvesse alguma maior ainda, eles podiam se mudar no máximo meia hora depois do aviso, e já teriam desaparecido quando uma grande força Redentora conseguisse chegar. Tampouco era possível alcançá-los — as carroças de Michael Nevin eram muito mais rápidas do que qualquer exército Redentor. Os Redentores haviam caído numa armadilha: unidades pequenas e leves podiam alcançar os Bastiões, mas não eram fortes o suficiente para penetrá-los; unidades pesadas que poderiam conseguir eram lerdas demais. Passou-se um mês de combates assim antes que os Redentores conseguissem retardar um Bastião por tempo suficiente para alcançá-lo com 3 mil homens da infantaria pesada, providos de armas de assédio. Levou quatro dias invadir o acampamento e aniquilar os ocupantes. Foi um golpe para o Novo Exército Modelo, empolgado por um mês de vitórias fáceis, apesar dos avisos dos treinadores Purgadores e lacônicos de que uma derrota seria inevitável. Houve uma grande alegria correspondente pela vitória quando Princeps recebeu a notícia — mas que não durou muito quando ele ficou sabendo dos detalhes: as vidas de 32 camponeses suíços haviam custado quase setecentas vidas Redentoras, e mais trezentos feridos com os esmagamentos que levavam tanto tempo para sarar e consumiam tantos recursos. Igualmente preocupante era o relato de um dos centuriões pessoais de Princeps, que ele mandara tomar parte no cerco para ter um entendimento adequado da batalha e dos soldados que nela combateram. — Foi um massacre entrar lá, Redentor, a luta mais dura que já enfrentei. Eles arranjaram tudo para que fosse fácil nos atingir, e revidar, quase impossível. Mas quando conseguimos entrar, aí foi o choque; eles tinham uns poucos soldados, uns cinquenta, talvez, que sabiam o que estavam fazendo e davam trabalho, mas aqueles que estavam matando a gente há três dias, depois que invadimos e partimos pro corpo a corpo, eram fáceis de derrubar feito crianças grandes. Desde então, o problema que Princeps enfrentava era como quebrar a casca para chegar ao recheio macio. O problema de Cale era que a criação das carroças de guerra dera certo demais para o seu próprio bem. Os êxitos haviam sido tão fáceis e tão abrangentes que o Novo Exército Modelo estava caindo de bêbado com os seus triunfos. As derrotas, quando começaram a acontecer, o desgastaram muito — afinal, não havia sobreviventes. A distância
da arrogância eufórica para o fracasso desmoralizado era um passo tão curto, e representaria uma queda tão grande que uma reunião de emergência (poderia quase se dizer de pânico) foi marcada a meio caminho entre as planícies do Mississippi e a Leeds Espanhola. Cale estava pior do que de costume, as últimas semanas haviam sido péssimas, mas ele foi obrigado a entrar numa carroça de guerra cheia de almofadas e, junto com IdrisPukke e Vipond, tentar dormir no caminho para Potsdam, onde a reunião fora combinada com Fanshawe, Henri Embromador e o Comitê das Dez Igrejas Antagonistas. A caminho de lá, ele decidiu descer e cavalgar. Mesmo com todo o acolchoamento, a carroça de guerra modificada era desconfortável quando ele não conseguia dormir, e naquele dia todos os seus antigos ferimentos — dedo, cabeça e ombro — estavam latejando e berrando seus pedidos de atenção (Eu também!, eles gritavam, E a gente?!). Para aumentar seu sofrimento, seu ouvido direito estava doendo. Ele vestiu um casaco e puxou o capuz para cima para se proteger do frio e manter o vento longe do seu ouvido doente. Não era algo que ele fazia normalmente, porque só os Lordes Redentores Disciplinadores usavam capuzes, e aquela não era um lembrança que ele queria revisitar. Cale agora estava, é claro, mais experiente na estranheza do mundo do que muita gente prática com o triplo da idade dele, mas ficava assombrado com o efeito eletrizante que o mínimo boato da sua presença causava nos soldados acampados ao longo do seu trajeto até a cidade. A força misteriosa que move os rumores com velocidade estarrecedora mesmo através da maior e mais dispersa força militar fazia o Novo Exército Modelo comparecer em massa por onde quer que ele passasse. À primeira vista, ele era recebido com um silêncio de adoração que rapidamente explodia em vivas extáticos, como se ele fosse o Redentor Enforcado entrando em Salém. Intrigava Cale que tanta gente pudesse receber tanta energia de um fracote doentinho com o dedo podre, o ouvido latejando, o ombro estalando como ele. Sem saber ao certo como reagir, achava que talvez devesse falar com eles; mas quando tentou, a ânsia de vômito, uma hora adiantada, o silenciou, e o máximo que ele conseguiu fazer foi controlá-la um pouco. Assim ele ficou, mareado feito um cão, sobre seu cavalo, olhando os homens, às centenas e depois aos milhares, inspirados por sua simples presença. Para eles, seu silêncio pálido e cadavérico era bem mais poderoso do que qualquer coisa que ele pudesse dizer, embora ele tivesse estudado uma dúzia de discursos motivacionais do escritor cujas peças ele encontrara na biblioteca do Santuário, que pareciam abordar todas as possíveis maneiras de manipular uma multidão: Amigos, camaradas, compatriotas, emprestem-me os seus ouvidos; ou: Mais uma vez para a brecha, caros chapas; e o infalível: Nós, os poucos, os poucos felizes, o bando de irmãos. Mas nem uma língua tocada pela brasa do próprio Criador poderia ter-se saído melhor do que seu silêncio forçado. Ninguém queria nada tão falível quanto um ser humano capaz de falar com eles pessoalmente — queriam ser comandados por um anjo exterminador, não por um sujeito aí. Ele podia estar se sentindo à beira da morte, mas agora tinha o physique du rôle. E era isso que importava: ele era algo fatal vindo de outro mundo, algo, e não alguém, que os tornara poderosos e conquistadores absolutos no passado e agora estava ali para fazer a mesma coisa de novo. Eles precisavam que ele fosse inumano, a essência da morte e da peste, acabado, pálido e esquelético, porque ele era aquelas coisas, e estava do lado deles.
O grito se ergueu — uma ou duas vozes de início, depois dezenas, depois centenas e então um rugido. — ANJO! ANJO! ANJO! ANJO! ANJO! Vipond e IdrisPukke, vindo logo atrás, de forma alguma principiantes no jogo do já-vi-detudo e do nada-me-surpreende, ficaram maravilhados e até abalados com o que viam e ouviam e, acima de tudo, o que sentiam: até eles eram arrebatados, querendo ou não, pelo poder da multidão. Mas os pregadores e padres e moderadores do Comitê das Dez Igrejas também ouviram, e reconheceram a idolatria ao demônio que aquilo era. — Eu esperava perdas mais pesadas, e desde o início, piorando à medida que os Redentores entendessem como nos enfrentar. Esses mortos. Eles podem ser substituídos. Fiz planos pra isso. Um Cale exausto e irritado estava numa reunião furtiva marcada antes que a oficial, com o Comitê das Dez Igrejas, começasse — eles achavam necessário combinar o que iriam falar para minimizar quaisquer sugestões religiosas. — Mas Thomas, querido — disse Fanshawe —, o que você esperava? Matar e ser morto é uma profissão. Essas pessoas são camponeses, o sal da terra, é claro, sem dúvida, mas moldadas por uma vida amontoando bosta e colhendo nabos, seja lá o que for isso... não é a preparação adequada para lidar com o derramamento daquele precioso líquido vermelho. Você não pode esperar que seja. — Precisamos — disse Cale — planejar pensando na perda de um forte a cada três. Eu sempre esperei perdas assim. — Você pode esperar o que quiser. É impossível — disse Fanshawe. — Não é da alma deles morrer em tal número, assim como não é da sua alma colher repolhos e ter relações carnais com suas ovelhas mais atraentes. Quando Fanshawe se foi, deixou para trás uma cúpula arrasada. — Você acha que ele está certo? — perguntou IdrisPukke a Henri Embromador. — Filtrando todos os desaforos? Com certeza. Na batalha de Finnsburgh, os Redentores quase conseguiram invadir nosso forte. Eu estava me cagando todo, se quer saber. Agora todos sabem o que acontece quando os Redentores ganham a parada. Ninguém se acostuma com isso. — Alguma ideia? — Não. Houve um silêncio deprimente. — Eu tenho uma sugestão. — Era Vipond. — Graças a Deus alguém tem — disse Henri Embromador. — Eu esperaria — disse IdrisPukke — até ouvir o que é, antes de ficar todo esperançoso. — Apesar da zombaria do meu irmão — continuou Vipond —, acho que presenciamos algo notável hoje. A visão convencional de pessoas como eu é que um líder precisa ser amado ou temido para ser eficaz em tempos de crise; e como o amor é complicado e o temor, nem tanto, então que seja o temor. — Quer que eu os deixe com mais pavor de mim do que eles sentem pelos Redentores?
— Em outras circunstâncias, eu não veria escolha para você. — Eu consigo fazer isso. — Tenho certeza de que consegue. Mas talvez haja outra maneira, menos prejudicial para a sua alma. — Meus ouvidos — disse Cale — estão escancarados como a porta de uma igreja. — Ótimo. Viu o efeito que você produziu hoje exatamente no tipo de homens que Fanshawe diz estarem à beira do colapso? — Sim, vi. — Seja o que for que os acometeu, não era amor nem medo. — O que era, então? — Não sei. Não importa o que é, mas dava até para sentir com os dedos. Não sei... fé, talvez. Não importa de que tipo; aos olhos dessa gente, onde quer que você esteja, os portões do inferno estão do lado deles. — Obrigado. — Por isso esses santarrões torcem tanto o nariz. Eles sabem o tipo de poder que se move em meio ao seu rebanho. Mas é preciso ver para crer. Cale, você precisa estar presente, no meio deles, todo dia e em toda parte. Eles precisam do anjo exterminador onde possam vê-lo. Olhando por eles, trabalhando com eles. Cale o encarou. — Isso é como me pedir pra voar. Quanto ao que aconteceu hoje, eu senti, sim, mas pode procurar o motivo daquilo nas estrelas. Eles viram um anjo mau olhando por eles, concordo, mas precisei de todas as minhas forças pra não cair do cavalo ou vomitar em cima deles. — Ele sorriu, um dos seus sorrisos não muito agradáveis. — Eu não conseguiria nem mesmo se minha vida e a de todos ao meu redor dependessem disso. Nesse momento — e de uma maneira que em outras circunstâncias poderia ser considerada teatral — Cale vomitou no chão. Na verdade, ele se sentiu um pouco melhor depois de parar de vomitar, mas a reunião estava acabando, e assim, cansado feito um trapo, Cale deixou o Cecilienhoft, onde a reunião acontecera, e se encaminhou para uma noite de sono no Palácio Sans Souci. Como todos sabiam onde ele estava, uma imensa multidão se reunira do lado de fora, e quando ele foi visto houve muita gritaria. Apesar do raro entusiasmo de Bosco por informação e de seu desejo de melhorar a qualidade dela entre aqueles que serviam à sua causa, não era fácil para um Redentor fingir ser algo que ele não era. Eles pagaram somente informantes pouco confiáveis e também simpatizantes — convertidos extraoficiais à Única e Verdadeira Fé cujo desejo de se tornarem Redentores era tão intenso quanto seus motivos eram vagos. Eles tendiam a ser os desprezados, os fracassados, os feridos, os ligeiramente loucos, os profundamente rancorosos — e muitas vezes por razões válidas. Mas suas limitações eram bastante evidentes: não eram disciplinados nem muito competentes, por mais zelosos que pudessem ser. Se fossem capazes e estáveis, era pouco provável que tivessem sido um terreno tão fértil para a insurreição. Mas foi um dos mais equilibrados e capazes desses convertidos que
conseguiu entrar no Cecilienhoft, onde todos sabiam que Cale estava planejando a destruição do papa. Certamente havia guardas ali, mas ninguém esperava ou se preparara para o tumulto dos soldados do Novo Exército Modelo, desesperados para vê-lo, junto com o povo da cidade apertado com a massa de refugiados evacuados da planície do Mississippi. De fato, a confusão quase salvou Cale do seu ataque — não havia nenhuma rota planejada, e portanto nenhuma maneira de estar em algum lugar por onde se esperava que Cale passasse. Tão esmagado pela multidão estava o assassino que ele também se via à deriva, compelido a seguir o fluxo e refluxo do rio de gente, quando ele se movia para a frente e para trás. Às vezes Cale se afastava dele, às vezes voltava a se aproximar. Num momento, enquanto a multidão tentava tocar em suas roupas ou pedia uma bênção, uma velha que devia ser mais forte do que parecia o obrigou a pegar um pequeno pote: — As cinzas de Santa Deidre dos Sofrimentos, abençoe-as, por favor! — Na algazarra generalizada, ele não conseguiu ouvir direito o que ela estava dizendo; achou que as cinzas fossem um presente e não quis ser indelicado. Pelo estado em que ele se encontrava, a força dela provavelmente bastaria para tomá-las de volta, mas a multidão decidiu arrastá-la para longe enquanto ela gritava pela terrivel perda. Com Henri Embromador e IdrisPukke uns dez metros atrás, o exausto Cale foi jogado numa clareira na multidão formada pelos poucos guardas que conseguiram acompanhá-lo, mas onde seu assassino finalmente também poderia alcançá-lo. O pretenso assassino não era um matador habilidoso, e é difícil disfarçar a expressão de alguém que está pensando em matar. Foi faltando um segundo ou menos que Cale o viu chegando, e foram os olhos do homem que o denunciaram. Fraco como um gatinho e esgotado como estava, milhões de nervos vieram em auxílio de Cale como anjos e, quando o homem ia empurrar o punhal na direção do seu peito, Cale tirou a tampa do pote das cinzas de Deidre e jogou-as na cara dele. Como sabe quem já olhou de perto as cinzas de um morto, elas não são exatamente cinzas, parecem mais brita, e não algo fino suficiente para cegar facilmente alguém. Mas a sorte de Cale é que essas relíquias eram falsas e consistiam nos resíduos da lareira do falsário. O efeito foi instantâneo: em terrível agonia, o assassino gritou e soltou o punhal para tentar limpar as cinzas abrasivas dos olhos. Os poucos guardas ao redor agarraram rapidamente o assassino e já o haviam apunhalado três vezes, no calor do pânico, antes de perceberem que Cale estava gritando para que parassem. Qualquer possibilidade de obter alguma informação útil do homem se fora. Cale ficou olhando enquanto Henri Embromador e Kleist se aproximavam. Talvez fosse a mistura do susto repentino com a exaustão, mas ele pensou nunca ter visto sangue tão vermelho ou cinzas tão brancas. O assassino balbuciou alguma coisa antes de revirar os olhos para trás. — O que ele disse? — perguntou Cale. O guarda que estava mais próximo do morto olhou para Cale, chocado e confuso pelo que acontecera. — Não sei... não tenho certeza, senhor. Parecia: “Você tem?” O Anjo da Morte? — questionou Henri Embromador. — Você parece mais a morte requentada.
Cale voltara para o quarto depois de vomitar as tripas no banheiro de seu apartamento no Palácio Sans Souci, um refúgio recém-construído com todas as mais recentes inovações em encanamento. Felizmente, ele contivera o vômito diante da multidão; sua partida lenta e frágil foi interpretada por todos que a testemunharam — e com mais convicção ainda por quem não estava lá — como um sinal de seu distanciamento etéreo até dos acontecimentos mais apavorantes. Ele se deitou na cama e estava com um aspecto tão terrível que Henri Embromador se arrependeu de sua falta de compaixão. Na verdade, estava furioso com Cale por ele ter quase morrido. — Quer que eu traga alguma coisa? — Uma xícara de chá — disse Cale. — Com torrões de açúcar. Quando Henri Embromador saiu, Cale ficou a sós com IdrisPukke. — Pensei que você estivesse se sentindo melhor. — Eu também... mas cometi o erro de tentar fazer alguma coisa. IdrisPukke foi até a janela e ficou olhando para o recém-instalado labirinto de alfazema no jardim. — Acontece — ele disse — que Vipond tem razão. Sem você para motivá-los, só consigo prever um resultado, para ser franco. — Cale não respondeu. — Suponho que tomar aquele negócio que sua curandeira deu não ajudaria? — Me ajudaria a ir pra sete palmos abaixo da terra. — Que pena. Cale teve uma ideia, mesmo cansado como estava. — Aquela mulher que me deu as cinzas da Santa sei lá o quê. Pensei que os Antagonistas não acreditassem em relíquias nem em santos. — O antagonismo é uma religião muito ampla, o que equivale a dizer que eles têm inúmeras formas de detestar uns aos outros. Ela devia ser uma Episcopal; eles são bem parecidos com os Redentores nas crenças, só não aceitam a autoridade do papa. Os outros não os suportam por causa de todos os rituais e culto aos santos, mas sobretudo porque eles acreditam no Apocalipse Glacial: acham que o mundo já foi quase destruído por gelo uma vez como um castigo de Deus, e que acabará em gelo. — E daí? — Os outros insistem que Deus usa água para disciplinar a humanidade... o gelo é uma invenção blasfema dos hereges. — Preciso dormir. Alguns segundos depois, ele ouviu a porta se fechando, e em mais alguns segundos, estava dormindo. Ele estava num vale rodeado por montanhas altas e irregulares, fustigadas pelo vento e por relâmpagos. Estava amarrado a uma estaca, preso pelos braços e pernas, e um gatinho comia seus dedos do pé. Ele só podia cuspir para espantá-lo. De início o gato se afastava, mas quando seu cuspe acabou, o felino lentamente voltou para seus pés e começou a comêlos de novo. Ele olhou para cima, e a distância pôde ver uma enorme Poll rindo e levantando um pé descalço, mexendo os dedos para mostrar que ela ainda os tinha, e gritando: “Come,
gatinho, gatinho!” Ao lado dela, no alto de cada uma das outras montanhas ao redor do vale, ele via três versões de si mesmo fazendo poses teatrais. Numa ele segurava sua espada com a ponta para o chão, em outra ele estava ajoelhado num rochedo alto, com uma espada muito decorada erguida diante do peito. A versão final de Cale estava na mais alta de todas as montanhas, com as pernas flexionadas e as costas arqueadas, como se estivesse prestes a alçar voo, com sua capa agitada atrás de si, como uma asa esfarrapada. Mas o que mais o impressionava era que ele estava encapuzado em todas elas, seu rosto completamente escondido nas sombras. Eu nunca uso o capuz, ele pensou consigo mesmo, e então o gato começou a comer seus dedos de novo e ele acordou. — Tive um sonho — ele disse para IdrisPukke e Henri Embromador algumas horas depois. — O que você quer — disse IdrisPukke — para não me contar? — Tinha três réplicas suas? — disse Henri Embromador quando Cale terminou. — Eu chamo isso de pesadelo. — Pode ficar com esse sorrisinho aí o tempo que quiser — disse Cale, e ele mesmo sorriu. — Nunca vi a mão de Deus mais claramente em alguma coisa. — Não posso dizer que acho o mesmo — disse IdrisPukke. — Talvez você queira explicar, para aqueles entre nós que não têm uma linha direta com o Altíssimo. — Imaginem que houvesse trinta réplicas minhas. Sem piadinhas, por favor. — Tá. — Vocês viram o que aconteceu hoje. Eu não fiz nada... só estava lá. Eles fizeram tudo; eu não fiz nada. Eles precisavam de alguém que os salvasse. — Não há nada de tão especial nisso — disse Henri Embromador. — Você já os salvou. Eles querem que você faça de novo, só isso. Não tem magia nenhuma. — Você está enganado — disse IdrisPukke. — Já vi generais idolatrados pela multidão depois de uma grande vitória. Mas eles não querem um homem agora, querem um deus, porque só o que não é deste mundo pode salvá-los. Henri Embromador olhou para Cale. — Não era isso que Bosco queria que você fosse? — Bem, se você tem alguma ideia melhor, seu merdinha, fique à vontade. — Crianças! — exclamou IdrisPukke. — Brinquem bonitinho juntas. — Ele se virou para Cale. — Continue. — Eles não precisam de mim, precisam da Mão Esquerda de Deus. Então vamos dar isso a eles. Era o que o sonho estava me dizendo, isso de ficar no alto de uma montanha, de capa, agitando uma espada. Seja visto!, o sonho dizia, mas onde você não possa ser tocado; mostre que está olhando por eles. Onde quer que eles lutem, lá estarei; onde quer que eles morram, lá estarei. Percam... lá estarei. Ganhem... lá estarei. Na noite mais escura... ou no dia mais ensolarado. — Mas você não estará, certo? — disse Henri Embromador. — Tá, é mentira. E daí? É pro bem deles mesmo. IdrisPukke riu. — Henri Embromador está completamente errado — ele disse. — Não pense nisso como uma mentira, mas como a verdade sob circunstâncias imaginárias.
— E o gatinho comendo seu pé? — perguntou Henri Embromador. — O que significa? — É só um sonho, porra. Cale deveria ter descansado por uma semana, mas não havia tempo, e em três dias ele estava de volta à Leeds Espanhola, depois de combinar os detalhes de suas réplicas. — Número. — Vinte. — Demais. — Não precisam fazer nada... não vão me imitar. Só precisam ser bons em fazer poses. Uma pantomima é tudo de que precisamos. Os teatros estão fechados, por isso teremos uma ampla escolha. — E se eles abrirem o bico? — Incutiremos o medo de Deus neles. E pagaremos salários decentes. E os manteremos isolados e vigiados. Quatro guardas, 24 horas por dia. Quando eles voltaram, encontraram notícias perturbadores para Cale. — Ouvimos que você tinha morrido. O estranho era que, apesar de não ser verdade, a confirmação formal de que Cale estava, de fato, vivo não adiantou muito para evitar que o boato de sua morte se espalhasse. Desmentidos oficiais mais veementes foram expedidos. — Nunca acredite em nada — disse IdrisPukke — enquanto não houver um desmentido oficial. Você foi convidado para uma recepção no palácio, com o rei. Ele acha que pode ser verdade. — Ele quer que seja verdade — disse Cale. — Estou indeciso sobre o que está por trás de tudo isso... a tentativa de matar você em Potsdam, obviamente. Mas não acho que queiram você morto; ainda não. Sem dúvida, no momento certo, se você despencasse de um penhasco, isso seria muito aceitável. Mas não agora. No momento, estão mais preocupados com os Redentores do que com você. — Devo ir? — Acho que sim. Essa é uma mentira que não fará bem a você... melhor acabar com ela já. Se pudermos. — Mas eu não estou morto — disse um Cale exasperado. — É ridículo. — Só que provar isso não é tão fácil. — Mas eu estarei lá. Todos poderão me ver. — E se você for um impostor? Alguém que não tinha nenhum sentimento conflitante sobre a possibilidade de Cale estar morto era Bose Ikard. Ele pediu prioridade nos convites para aqueles que já haviam encontrado Cale pessoalmente. Mas Cale mantinha seu pequeno círculo de amigos bem próximo — e eles não eram vulneráveis às promessas ou ameaças de Ikard. Ele decidiu adotar outra tática: o sexo. Não era sutil, mas Bose era velho e experiente demais para acreditar que houvesse qualquer virtude particular na sutileza. As paredes de seus aposentos estavam, por assim dizer, abarrotadas com troféus das cabeças de oponentes
sofisticados que menosprezavam os poderes de discriminação dele como um tanto grosseiros, e pensaram assim até o exato momento em que Ikard mandou matá-los. Uma vez, ele sentenciara IdrisPukke à morte — um engano, ele agora admitia; trocou-o por alguém cuja morte, na época, parecia mais urgente. A verdade era que Bose tinha medo de IdrisPukke porque ele era um homem ardiloso, com um entendimento penetrante de assuntos complexos, capaz de sujar as mãos quando isso fosse necessário. Era esse ódio respeitoso que alimentava sua crença nos boatos sobre Cale estar morto. Era o tipo de coisa que ele temia que IdrisPukke fosse capaz de fazer. Por isso ele estava falando com Dorothy Rothschild. Ela certamente não era uma prostituta, mas era algo parecido: tranquilizadoramente cara, embora nenhum preço jamais fosse negociado, na verdade. Sua recompensa vinha na forma de acesso ao poder, contatos relacionados a vultosos contratos para isto e aquilo — ela se deitava numa cama forrada pelos caros lençóis de seda de uma enorme influência. Na verdade, Dorothy era uma mulher profundamente interessante, mas não parecia: ela parecia sexo. Se dois jovens frustrados com alguns dotes artísticos tivessem imaginado a mulher dos seus sonhos e a tivessem desenhado, ela poderia se parecer com Dorothy: cabelo longo e louro a ponto de ser branco, estatura mediana, uma cintura mais fina que a de um rapazinho, seios maiores do que pareceria plausível numa compleição tão diminuta, pernas improvavelmente compridas para alguém com menos de 1,85 m. Ela não deveria ser possível, mas ali estava. Tinha uma presença de espírito corrosiva, mantida a maior parte do tempo sob controle, resultante de sua sensibilidade, que era considerável. Sua inteligência e intuição emocional haviam sido postas no mau caminho por um acontecimento terrível, quando ela tinha 9 anos. Sua irmã mais velha, adorada por todos, fora fazer um piquenique num lago próximo com amigos da família e se afogara quando um dos barcos virou. Ao receber a notícia, a mãe da criança morta, sem perceber que a filha mais nova estava atrás dela, exclamou: “Por que não podia ter sido Dorothy?” Até um paspalhão emocional ficaria marcado pelo resto da vida pelo fato, e Dorothy estava muito longe disso. Mas a argúcia que ela desenvolvera para se defender do mundo muitas vezes o ultrajava, e ela estava sempre precisando se desculpar por este ou aquele comentário ofensivo. Casara-se jovem, mas dois anos depois seu marido morrera numa guerra vital para a sobrevivência da nação por motivos que agora ninguém mais conseguiria lembrar. Como membro de uma família de menor importância, naturalmente, ela fora visitada pela baixa realeza; uma matriarca reservada para condolências de Estado. A nobre visitante perguntara se haveria algo que pudesse fazer por ela — e a resposta adequada seria não. — Me arranje outro marido. — Saiu antes que ela se desse conta. Isso resultou numa furiosa descompostura da matriarca por ela fazer pouco caso do trágico sacrifício do seu falecido marido. — Nesse caso — disse Dorothy, sem arrependimento —, que tal me trazer uma torta de toucinho da quitanda da esquina? Foi esse ultraje que levou Dorothy a ser relegada às margens da sociedade e se tornar, depois de muitas aventuras nas plagas mais selvagens do amor, a maior e menos perpendicular de todas as grandes damas horizontais dos quatro cantos do mundo. Foi essa
reputação que a trouxe para a poltrona diante de Bose Ikard. — Então quero que você seduza o monstrinho. — Não vai ser óbvio demais? — Isso, na verdade, é problema seu. Posso fazer com que você seja apresentada de maneira bastante inocente, depois vai depender de você. — Ele lhe entregou uma pasta. — Leia isso. Ele começou a dar suas opiniões, mas ela estava mais preocupada em como guardar a pasta em sua bolsa de maquiagem, esvaziando devagar seu conteúdo sobre a escrivaninha para abrir espaço. Por fim, a pasta foi espremida dentro da bolsa e ela começou a devolver os objetos que deixara sobre a mesa. O último era uma maçã muito velha e seca que se escondera, invisível, no fundo da bolsa por mais de uma semana. Bose Ikard olhava para a maçã com desaprovação: não dizia muito sobre a reputação da moça na área da sedução sofisticada. — Não ligue pra isso — ela disse, agarrando a maçã velha com falsa alegria. — Minha babá me deu quando eu era menina e não consigo me desfazer dela. *** A VISITA DE CALE A POTSDAM PRODUZIRA UMA ELEVAÇÃO DO MORAL ENTRE AS TROPAS E UMA RENOVADA DETERMINAÇÃO PARA LUTAR QUE DIMINUÍA DE POTÊNCIA DE FORMA DIRETAMENTE PROPORCIONAL À DISTÂNCIA DE POTSDAM. ISSO DEU TEMPO A IDRISPUKKE PARA CRIAR SUA TRUPE DE IMPOSTORES, MAS ERA SÓ ISSO. CONSEGUIR ATORES NÃO ERA DIFÍCIL, MAS CONSEGUIR ALGUNS NOS QUAIS SE PUDESSE CONFIAR PARA FICAREM DE BOCA FECHADA ERA MAIS PROBLEMÁTICO, E HAVIA TAMBÉM OS FIGURINOS. DEPOIS DO PRIMEIRO DIA DE TESTES, FICOU CLARO QUE ELES TINHAM UMA GRANDE DIFICULDADE: OS ATORES ERAM BAIXINHOS DEMAIS, O QUE SIGNIFICAVA QUE SUA ALTURA ERA NORMAL, MAS O SONHO DE CALE DE UMA FIGURA PODEROSA DE CAPA, DE PÉ NUM ROCHEDO SOLITÁRIO PARA ENCORAJAR OS MAIS FRACOS, ESBARRAVA NUM OBSTÁCULO PRÁTICO: ASSIM QUE OS ATORES FANTASIADOS SE PUNHAM A QUALQUER DISTÂNCIA — UMA PRECAUÇÃO NECESSÁRIA PARA NÃO REVELAR A FRAUDE —, NENHUM DETALHE NELES PODIA SER RECONHECIDO: NEM OS GESTOS GRANDIOSOS, NEM O CAPUZ AMEAÇADOR, NÃO DAVA PARA VER NEM SE ESTAVAM AJOELHADOS OU DE PÉ. ERAM SÓ PONTINHOS PRETOS E, PIOR, PONTINHOS PRETOS NUM FUNDO PRETO. — Precisamos fazer tudo grande — disse IdrisPukke. — Roupa grande, gestos grandes, tudo grande. Uma pantomima ampliada. Uma semana depois, ele havia contratado todos os carpinteiros teatrais da Leeds Espanhola e num raio de 300 quilômetros ao redor, e eles construíram várias fantasias gigantes com pernas de pau, extensões para os braços, ombros imensos e cabeças enormes. — A cabeça está do tamanho certo — disse Henri Embromador para Kleist, quando eles viram o resultado. — O resto, já não tenho certeza. — Pega na minha orelha — respondeu Cale.
— Precisa ser assim, senão vamos ter que planejar tudo de novo. De fato, IdrisPukke fez as duas coisas. O boneco de Cale podia ser usado no lugar certo, com fogueiras por trás para iluminar o suficiente para vê-lo, e com titereiros para agitar sua batina de 3 metros de altura, para parecer que ele estava enfrentando ventos fortes. Mas eles também tiveram que voltar para uma versão do seu primeiro modelo, com enchimento nos ombros e braços falsos, feita por um homem que normalmente construía os manequins para o truque mágico de serrar a mulher ao meio usando pernas falsas. — Na pantomima — ele dizia — tudo precisa ser grande, é verdade, mas tem que ser o tipo certo de grande. Essa segunda versão precisava ser exibida numa proximidade muito maior, mas no crepúsculo, quando não podia ser vista tão bem. O melhor momento para exibi-la era a hora mágica, quando, antes que a noite caia, a luz dá até às formas mais grosseiras o brilho e o poder de outro mundo. — Por que — disse Cale — tudo é sempre mais difícil do que a gente imagina? Por que as coisas nunca são menos difíceis? Sentindo-se mal e irritado, ele chegou à Recepion de Roayal daquela noite de péssimo humor. O fato de o evento todo ter sido armado para tentar descobrir se ele estava morto ou não o deixava ainda mais peçonhento. — Se estão procurando um pretexto pra me pegar, que tentem. — Recentemente, ele começara a resmungar para si mesmo. Dessa vez, foi alto o suficiente para chamar a atenção de Henri Embromador, que estava na sala ao lado, escrevendo uma carta sobre botas. Henri Embromador pôs a cabeça para fora da porta. — Você disse alguma coisa? — Não. — Eu ouvi você falar. — Vai ver que eu estava cantando. O que é que tem? — Não estava cantando, estava falando. Estava falando sozinho de novo. É o primeiro sintoma de loucura, meu chapa. Naquela noite, Bose Ikard fez questão de reapresentar Cale para as relativamente poucas pessoas que já haviam falado pessoalmente com ele, as quais haviam sido todas instruídas para lhe fazer o maior número possível de perguntas complicadas. Seu sucesso em fazer Cale falar atingiu o ápice quando ele foi apresentado ao rei — sua resposta mais longa para o chefe supremo do Estado foi “Majestade”. De resto, era sempre uma só palavra ou um dar de ombros. Desesperado, Bose Ikard apresentou Dorothy. Ela entrou na sala e não é exagero dizer que houve algo como um gemido de assombro com sua aparência. Ela usava um vestido de veludo vermelho desavergonhadamente decotado e luvas vermelhas que cobriam seus braços bem mais do que o vestido cobria os seios. Sua cintura, de tão apertada, parecia a de um garoto magrinho, e a saia do vestido era até decorosa quando ela estava parada, mas quando andava, revelava sua perna esquerda quase até o quadril. Com seus lábios escarlates e cabelo platinado, ela poderia parecer uma rameira de luxo — mas conseguia se portar de uma maneira que simplesmente causava um aperto no peito e um estertor de desejo. E esse
efeito de modo algum se limitava aos homens. Ela parou e conversou com algumas das pessoas presentes mais importantes, seu sorriso adorável revelando dentes que pareciam pequenas pérolas, todos, exceto um que era um pouco quebrado, fora de proporção, o que só a fazia parecer mais linda. Ela parou um pouco para conversar com Bose Ikard e se posicionou para que Cale pudesse ver e apreciar sua beleza estonteante. Então, depois de notar que ele a observara duas ou três vezes enquanto fingia correr os olhos com indiferença pela sala, ela andou diretamente até ele. Decidira que a ousadia funcionaria melhor com ele, ousadia e beleza. — Você é Thomas Cale. O chanceler Bose Ikard apostou cinquenta dólares comigo como não consigo arrancar mais de duas palavras de você. Claro que a aposta não existia, tampouco ela esperava que ele acreditasse. Cale olhou para Dorothy por um momento, pensativo. — Você perdeu.
32 TALVEZ UM DIA UM GRANDE PENSADOR DESCUBRA O PONTO EXATO, EM QUALQUER SITUAÇÃO, EM QUE A PESSOA QUE PRECISA TOMAR UMA DECISÃO DEVE PARAR DE OUVIR OS OUTROS. ATÉ ESSE DIA, NÃO É DE SE ADMIRAR QUE ORAÇÕES, ADIVINHAÇÕES OU A LEITURA DAS VÍSCERAS DE GATOS SEJAM CONSIDERADAS ESTRATÉGIAS ÚTEIS. CONSELHOS IDIOTAS ÀS VEZES FUNCIONAM; CONSELHOS INTELIGENTES ÀS VEZES FALHAM. A APARIÇÃO DOS BONECOS DE CALE FOI UM SUCESSO SURPREENDENTE. TODOS CONCORDARAM QUE A VONTADE DE LUTAR DO NOVO EXÉRCITO MODELO MELHORARA DESMEDIDAMENTE — UMA VONTADE TÃO IMPORTANTE, TALVEZ, QUANTO AS ARMAS, A COMIDA OU O NÚMERO DE TROPAS. O SUCESSO FOI TÃO GRANDE QUE SE DECIDIU QUE AS TROPAS PRECISAVAM DE UMA DOSE AINDA MAIOR. O PROBLEMA ERA QUE OS REDENTORES TAMBÉM TINHAM UMA VONTADE DE LUTAR QUE SE BASEAVA EM MAIS DO QUE ILUSÕES ENGENHOSAS: A MORTE, PARA ELES, ERA APENAS UMA PORTA PARA UMA VIDA MELHOR. ASSIM, ARGUMENTOU-SE — NÃO IRREFLETIDAMENTE — QUE SE CALES FALSOS PODIAM FAZER TÃO BEM, QUANTO MAIS AS TROPAS SE BENEFICIARIAM DA PRESENÇA DO VERDADEIRO. MISTERIOSAMENTE, O MORAL DO NOVO EXÉRCITO MODELO MELHORARA TANTO EM ÁREAS ONDE OS BONECOS NÃO HAVIAM SIDO VISTOS QUANTO ONDE ELES FORAM VISTOS. ESTAVA CLARO, ENTÃO, QUE APENAS ALGUMAS BREVES APARIÇÕES DO PRÓPRIO CALE ALTERARIAM ESSE EQUILÍBRIO. Henri Embromador foi implorado, bajulado e atormentado até que chegou a notícia de outra vitória terrível dos Redentores em Maldon. Todos ficaram abalados com essa derrota, até Henri Embromador, por isso ele concordou em abordar Cale. Se ele soubesse todos os detalhes da derrota em Maldon, não teria feito isso. Algumas semanas depois, ficou claro que o fracasso não resultara da superioridade Redentora, mas devia-se inteiramente à burrice do comandante do Novo Exército Modelo, que permitira que os Redentores alcançassem terras altas e assegurassem a derrota de uma posição na qual sua vitória seria inevitável. De fato, no mínimo, o ritmo das vitórias aos poucos começava a favorecer o Novo Exército Modelo, só que ninguém sabia disso. Foi assim que, baseado numa proposta falsa, obtida de modo racional a partir de evidências instigantes que estavam completamente erradas, Henri Embromador convenceu Cale a visitar pessoalmente o campo de batalha. Cale estava profundamente relutante, mas Henri Embromador disse que não seria por muito tempo, e que eles viajariam em carroças muito maiores do que o padrão. Cale estava se sentindo um pouco melhor, e sua carruagem pessoal recebera molas, o que tornava muito mais fácil, para ele, descansar durante a viagem. A situação era crítica, aparentemente. Era uma crise. Que escolha ele tinha? Os primeiros cinco dias da turnê de sete correram bem. A presença de Cale — longe de qualquer coisa perigosa — era um tônico para as tropas muito além das expectativas. Continuou a ser um grande sucesso até o exato momento em que se transformou num desastre assombroso — capaz de entregar a vitória absoluta nas mãos dos Redentores por meio da morte de Cale e Henri Embromador no mesmo dia.
Para evitar uma forte tempestade fora de época que descia do Norte, Henri Embromador havia parado a caravana. Infelizmente, a mesma tempestade também ameaçara uma grande coluna expedicionária de Redentores, que decidiram evitá-la voltando para a segurança de suas próprias linhas. Foi essa coincidência de circunstâncias que levou uma força de uns 1.500 Redentores, escolhidos para ir tão longe por sua habilidade e experiência, a topar com a despreparada caravana de Henri Embromador, que, por maior que fosse, só tinha uns seiscentos soldados. Pior, muitos deles não eram tão hábeis e experientes: Henri Embromador cometera o erro, por estar com seu tempo sempre a prêmio, de delegar a escolha dos soldados a alguém fácil demais de subornar, permitindo que pessoas poderosas e influentes (o Novo Exército Modelo já estava adquirindo os velhos vícios) comprassem o grande status de poderem se vangloriar de ter servido ao lado do Anjo Exterminador em pessoa. Henri Embromador imediatamente ordenou que as carroças formassem um círculo. Assim que Cale apareceu para investigar o barulho, passou cinco minutos olhando para os Redentores, que estavam se organizando a cerca de 800 metros, e mandou Henri parar. — Por quê? — Aquele laguinho ali. — Era um lago de montanha a cerca de 300 metros. — Forme um semicírculo na margem, do mesmo tamanho deste; com as carroças restantes, forme outro semicírculo dentro dele. Henri Embromador conseguiu pegar as carroças ainda em movimento, por isso não houve a demora de atrelar novamente os cavalos ou arrancar os ganchos usados para prender firmemente as rodas no chão. O Redentor no comando percebeu que aquele seria um bom momento para atacar, mas ele era cauteloso e demorou demais, temendo ser atraído para alguma armadilha misteriosamente engenhosa. Quando decidiu se mexer, a formação do Novo Exército Modelo já estava pronta, os cavalos estavam sendo desatrelados, e as rodas, marteladas. A pergunta central para os dois lados era a mesma, e nenhum dos dois sabia a resposta. A ajuda estava vindo? Henri Embromador enviara quatro cavaleiros pedindo ajuda assim que vira os Redentores. Para os Redentores, a questão era se haviam capturado todos eles. Sem ajuda ou sorte extraordinária, era só uma questão de tempo até penetrarem na barreira — a menos que não tivessem conseguido pegar todos os cavaleiros do Novo Exército Modelo. Nesse caso, a ajuda poderia estar vindo, no fim das contas. Mesmo assim, eles estavam numa boa posição, com probabilidades melhores do que duas para uma a seu favor. Também estavam numa posição melhor do que imaginavam, considerando que metade dos soldados da caravana era formada por administradores inexperientes de um ou outro tipo. Cale, mais do que ninguém, acreditava na importância de bons administradores, mas não ali e não naquele momento. Cale e Henri Embromador levaram uns vinte minutos para se dar conta de que não estavam protegidos pela máquina de violência que haviam se esforçado tanto para criar. — Isto é culpa sua — disse Cale. — Me processe quando tudo acabar. — Você só está dizendo isso porque sabe que vai morrer aqui. — E você não vai?
— Agora está preocupado comigo? É meio tarde. — Pare de choramingar. Houve um silêncio mal-humorado — e então eles puseram mãos à obra. — Precisamos de altura — disse Cale. — Quê? — Precisamos de uma plataforma ali no meio — ele disse, apontando para o pequeno semicírculo de carroças. — Não precisa estar a mais do que 2 metros de altura, mas deve ter espaço pra vinte arqueiros e tantos carregadores quanto possível. Os Redentores vão passar pela primeira parede, por isso precisamos transformar o espaço entre as duas paredes num matadouro — é a única ideia que consegui ter para segurá-los. Henri Embromador olhou ao seu redor, pensando no que poderia usar para construir a torre e protegê-la. Funcionaria até certo ponto. Se todos os seus cavaleiros tivessem sido apanhados, não faria muita diferença. — Você está péssimo — ele disse para Cale. De fato, Cale mal se aguentava em pé. — Preciso dormir. — E aquele negócio que a Irmã Wray te deu? — Ela disse que pode me matar. — O quê? E eles não vão te matar? Cale riu. — Não se souberem que sou eu. Acho que estou a salvo. — Mas eles não sabem que é você. — Se soubessem, poderíamos ganhar tempo. — Engenhoso demais. — Provavelmente. Vou dormir pra ver se decido. Separe os homens experientes e divida-os entre bons e melhores. Dos melhores, vou precisar de dez grupos de sete. Ponha os mais fracos no primeiro grupo de carroças e me acorde quando achar que falta uma hora pros Redentores invadirem. Agora me leve devagar até a minha carruagem, para que eles não vejam seu Anjo Exterminador caindo de cara no chão. No caminho, um intendente de aspecto aterrorizado os alcançou e relatou que houvera um equívoco nas caixas de salitre perverso usado para carregar as armas de mão. Descobriu-se que três quartos do estoque eram de toucinho, que estava embalado em caixas idênticas. O intendente ficou surpreso ao ser calmamente dispensado. Havia um motivo. — Isso é culpa sua — disse Henri Embromador para Cale. Era verdade, era culpa de Cale — meses antes, ele percebera que estavam gastando uma fortuna e um tempo enorme fabricando caixas de tamanhos e formatos diferentes para os suprimentos, por isso as padronizara. Uma ideia simples, porém engenhosa, prometia destruílos a todos. Cale esperava poder conseguir, com sorte, duas ou três horas de sono. Henri Embromador o acordou depois de sete. Ele sempre levava uns minutos para ficar um pouco alerta, mas percebeu imediatamente que havia algo diferente em Henri Embromador. Mais do que Kleist, e
muito mais do que Cale, ele sempre conservara algo do menino. Mas não agora. Era inútil fazer rodeios, por isso ele pegou o pacotinho de Fedra e Morfina da gaveta e derramou a dose direto na boca. Os avisos ameaçadores da Irmã Wray ciciavam em seu ouvido. Mas ela lhe dera aquilo porque sabia que haveria dias assim. Cale seguiu Henri Embromador para fora. Durante as horas em que ele dormira, o inferno havia chegado. Todas as carroças da primeira barreira estavam em terrível estado — paredes quebradas, rodas esmagadas; metade delas puxada para o chão pelas cordas dos Redentores e seis delas em chamas. No semicírculo interno, os mortos e feridos jaziam em fileiras irregulares de aproximadamente duzentos — e embora se ouvissem gritos, a maioria guardava o silêncio horrível de quem sentia o tipo de dor que matava. No entanto, Cale podia ver que Henri Embromador havia preservado a fileira sem usar duzentos dos mais hábeis e experientes. Cale olhou diretamente para ele e Henri Embromador o encarou de volta: algo, algo havia mudado. — O que você conseguiu aqui — Cale disse —, nem eu teria conseguido. — Se alguma vez eles trocavam elogios, o que era raro, era sempre com um leve tom de troça. Mas não desta vez. Henri Embromador sentiu o efeito desse elogio tão profundamente quanto era possível ser afetado pela profunda admiração de alguém amado. Um breve silêncio. — Mas é uma pena — disse Cale — que você tenha deixado isso acontecer. — Bem, é uma pena — respondeu Henri Embromador — que por causa das suas caixas ridículas vamos todos morrer. A primeira barreira de carroças ainda estava aguentando, ainda que não por muito mais tempo — os Redentores já estavam puxando os destroços em chamas. Cale calculou que tinha uns dez minutos. Ele mandou que as tropas descansadas avançassem e as dividiu nos grupos combinados de sete homens. Ele fez, é claro, o discurso que roubara da biblioteca do Santuário. — Qual o nome deste lugar? — ele perguntou. — Lago de São Crispim — disse um dos soldados. — Bem, quem sobreviver a este dia e voltar são e salvo para casa vai arregaçar as mangas, mostrar as cicatrizes e dizer: “Estes ferimentos eu ganhei no Lago Crispim.” E então vai contar as façanhas deste dia. Então nossos nomes serão tão familiares nas bocas de todos quanto palavras do cotidiano, a partir de hoje e até o fim do mundo. Nós, os poucos, os poucos felizes, o bando de irmãos; pois aquele que derramar seu sangue comigo será meu irmão. Cale não fez sua costumeira oferta de dispensar qualquer um que não quisesse lutar — hoje ninguém iria a lugar nenhum. Um dia seu truque do discurso deixaria de funcionar, mas não hoje. — Cada um de vocês — ele gritou, e a droga estava começando a fazer efeito, sua voz era forte e cobria o barulho que vinha de trás — pertence a um grupo de sete com o nome de um dia da semana, porque não tive o tempo e o privilégio de conhecê-los melhor. Se o líder morrer, o seguinte, por ordem de idade, assume seu lugar. Mas cada um de vocês é agora responsável pela sobrevivência ou morte do futuro. Mantenham os escudos encostados. Quero que estejam próximos o suficiente para cheirarem o hálito uns dos outros. Não fiquem para
trás, não se adiantem: esse é o estilo que eu quero, e o espírito. Vocês conhecem os sinais; ouçam tão bem quanto sei que lutam e vocês se triunfarão. Ele se adiantou e apontou para os dois lados do semicírculo. — Segunda-feira ali. Domingo na outra ponta. Todos os outros no meio, pela ordem. — Ele indicou que se mexessem com um gesto. Henri Embromador, enquanto isso, reunira os soldados mais fracos restantes e agora os fazia avançar para reforçar as carroças que não estavam em chamas. Alguns minutos mais de cabo de guerra com as carroças em chamas, e elas desabaram; os Redentores puxaram os pedaços enganchados em suas correntes para trás, deixando o que pareciam falhas numa arcada de dentes quebrados. Henri Embromador só teve tempo de voltar, entrar no pequeno semicírculo diante do lago e organizar seus arqueiros sobre a atarracada torre irregular feita de terra, pedras e madeira. Cinco minutos, e então os primeiros Redentores entraram pelo maior vão, à esquerda de Cale. Agora ele podia sentir o veneno correndo em suas veias — não força ou coragem de verdade, mas sobressalto, tensão e sangue nos olhos. Mas teria que bastar. Ele se deu conta de que seu juízo também estava distorcido; parte dele queria correr para cima dos Redentores no vão e lutar. Henri Embromador havia sido instruído para poupar o que restava de seu deficiente estoque de flechas e tentar acertar somente os centuriões. Os centuriões se vestiam exatamente como os outros Redentores precisamente por esse motivo, mas Henri Embromador conseguia distingui-los mesmo em meio à fumaça. Um tombou, atingido no estômago, e depois outro. — Quarta! — gritou Cale. — Avançar! — Eles avançaram em fila; os Redentores esperavam; estava claro para eles, agora, qual a atitude a ser tomada. — Aí está bom! — gritou Cale, e os Quartas-feiras pararam, deixando os Redentores confusos. Eles esperavam ter que defender o vão, mas estavam sendo encorajados a entrar. Aquilo não estava certo. Cale ergueu a mão esquerda para Henri Embromador e cinco setas de suas hiper-retesadas encorajaram os Redentores a fazer a coisa certa, ou errada, e avançarem. Por mais feia que a situação parecesse para a caravana, os Redentores também estavam preocupados. Eles demoraram demais para chegar até ali. Com aquelas probabilidades, imaginavam que arrasariam as carroças e estariam a caminho antes que os reforços chegassem. Eles sabiam que, se haviam capturado todos os cavaleiros do Novo Exército Modelo, tinham todo o tempo do mundo. Mas não tinham certeza. Assim, temendo ter pouco tempo, passaram pelas carroças e entraram no semicírculo. — Terças! — gritou Cale. — Venham! Venham! Rápido. Rápido. — Os Terças-feiras se adiantaram, mas com o lado esquerdo um pouco mais veloz, fazendo o grupo girar no sentido anti-horário para fechar o espaço à direita dos Redentores. — Quintas! Aqui comigo! Rápido! — Os Quintas-feiras se moveram, mas no sentido anti-horário, impedindo que os Redentores em movimento se espalhassem à sua direita. Com isso, os centuriões substitutos teriam recuado para o vão, mas haviam sido instruídos a seguir avançando. — Aleluia! Aleluia! — eles gritavam, e atingiam as fileiras de escudos do Novo Exército
Modelo com os seus; ali eram sobretudo estocadas, empurrões e o estrondo de espadas e marretas contra os escudos, todos tentando acertar um golpe sem levar nenhum. Mas o problema era que os Redentores eram de longe os melhores na luta em campo aberto, e isso estava ficando claro muito antes do que Cale esperava. Mas ele planejara prevendo isso — esperando retardá-los ali para dar tempo de os reforços chegarem, se é que estavam a caminho. Só que seus homens começaram a recuar cedo demais. Cale, em sua pompa adolescente, teria usado o resto dos dias da semana para apoiar a retirada de volta ao semicírculo à margem do lago. Ele teria notado seu erro e recuado da forma mais organizada possível. O único motivo de ele ser capaz de participar da luta era a droga da Irmã Wray — mas ela teria notado quase imediatamente que ele estava reagindo mal: seu rosto estava vermelho, seu pulso acelerado e suas pupilas pareciam pontos. Vendo que os três dias da semana estavam sendo empurrados para trás e prestes a ceder, ele correu para a frente, pegou uma machadinha de aspecto horripilante de um soldado ferido e agarrou uma marreta curta abandonada no chão, então irrompeu através da linha dos Quartas-Feiras e se atirou contra os estarrecidos Redentores. O tubarão adora nadar de boca aberta Todo peixe tem medo e já fica alerta Cheio de raiva e enlouquecido pela droga, Cale atacou os Redentores ao seu redor com a machadinha de pontas cegas — uma arma de bandido empunhada por um bandido com destreza selvagem e loucura total: brutais as injúrias esmagadoras em dentes e rostos, contundente a quebra de escalpos e dedos, o estraçalhar de joelhos e cotovelos. Seu martelo nos peitos deles fazia corações pararem nos homens ainda de pé, destroçava espinhas e maçãs do rosto, ele martelava costelas, fraturava ossos, pernas se rasgavam, narizes estouravam. Até os Redentores estavam atordoados com a violência — e então, os desencorajados do Novo Exército Modelo, vendo o louco que chegara para salvá-los, correram em seu auxílio e surpreenderam seus algozes como se estivessem contaminados pelo veneno delirante de Cale, tresloucados pelo cheiro de sangue e de merda e pelo horror. Agora mais Redentores se derramavam vindo da retaguarda, mas pioravam a situação quando seus camaradas em pânico tentavam escapar do contra-ataque infectado de loucura. Cale pisava nos feridos vivos para acertar seus golpes no inimigo que recuava. Estava tão maníaco que teria causado terror mesmo empunhando um chocalho de bebê em cada mão. A droga liberou numa enchente a raiva acumulada contra os homens que recuavam à sua frente — os gemidos e as súplicas de homens que estavam morrendo e os urros e o gozo de seus soldados em volta — esses são os sinais e sons de uma batalha, o terror, a dor e o singular arrebatamento. O avanço Redentor desmoronou, e se não fosse por um centurião, que se manteve lúcido e puxava os homens que ficavam parados como troncos para serem abatidos, eles poderiam ter sofrido um golpe duro o suficiente para fazer com que fossem embora. Enquanto se retiravam, Cale teve que ser segurado para não segui-los — para sua sorte, pois em campo aberto, fora do círculo exterior de carroças, ele teria morrido. Nenhuma droga iria ajudá-lo ali. O líder dos
Sextas-feiras conseguiu segurar Cale com a força que só um ex-ferreiro de dois metros de altura possuía. Ele o conteve tempo suficiente para que Henri Embromador chegasse e o convencesse a voltar para o semicírculo à margem do lago. Agora estava escuro, e depois de entregar Cale a um médico, sussurrando avisos sobre um remédio que fizera mal, Henri Embromador tentou pensar em como fechar o vão. Se os Redentores tivessem atacado o mesmo ponto novamente, teriam passado em alguns minutos, mas estavam, compreensivelmente, intrigados com o que acontecera, e acreditando que o Novo Exército Modelo encontrara alguns mercenários lunáticos, decidiram que deveriam partir para uma abordagem diferente. Nas duas horas seguintes, tentaram um ataque ao perímetro exterior com a intenção de atear fogo a todas as carroças e então tirar os restos queimados do caminho para terem uma linha clara de ataque até o semicírculo encostado no lago. Henri Embromador os conteve até as duas da manhã, e então mandou os sobreviventes recuarem para o lago e observar os engenheiros Redentores destruindo o perímetro exterior. Às quatro da manhã, o último ataque começou. Os Redentores se reuniram no interior do perímetro e cantaram: Aleeeeluuuuiiiiaaaa! Aleeeeluuuuiiiiaaaa! Iluminados por trás pelas brasas vermelhas das carroças queimadas, pareciam uma espécie de coro monstruosamente armado do inferno. À esquerda, outros soldados Redentores começaram a cantar. Morte e julgamento, céu e inferno. As últimas quatro coisas a que me apego. À direita: Fé dos nossos pais, ainda viva, até a morte seremos leais a ti. De uma maneira torturante, era lindo — embora esse pensamento não ocorresse às mentes apavoradas daqueles que viam e ouviam. Trazido de volta para as carroças diante do lago, Cale fora levado para a barraca dos feridos atrás da torre atarracada construída por Henri Embromador. Sua mente parecia um pouco mais clara, mas seu corpo, abaixo da cintura, tremia incontrolavelmente, de uma forma que era levemente ridícula. Henri Embromador contou ao médico o que ele havia tomado. — Dê alguma coisa para ele se acalmar. — Não é tão fácil assim — disse o médico. — Não se devem misturar essas drogas... não é seguro. Como pode ver, é impossível prever o que vai acontecer. — Bem — disse Henri Embromador —, eu posso prever o que vai acontecer se você não o deixar em condições de lutar. Era difícil discordar disso, então o médico lhe deu Valeriana e Piper numa dose forte o suficiente para derrubar o ex-ferreiro, parado atrás de Cale para o caso de ele tentar fugir. — Quanto tempo vai levar pra sabermos se funciona?
— Se eu dissesse, estaria mentindo — disse o médico. Henri Embromador se agachou na frente de Cale, que estava tremendo todo e com a respiração curta e ofegante. — Só lute quando estiver pronto. Entendeu? Cale balançou a cabeça em meio aos tremores e Henri Embromador saiu da barraca sabendo que provavelmente aquela seria sua última noite na Terra e se sentindo com dois anos de idade. Ele subiu no calombo improvisado no meio do semicírculo — torre era um nome grandioso demais para aquilo — e trocou algumas palavras com os quinze arqueiros e seus carregadores. Então ele se virou para o resto dos homens — seus homens — nas barricadas. Ele achava que naquele momento, mais do que nunca, eles mereciam a verdade. — Primeiro — ele mentiu —, ouvi dizer que reforços estão a caminho. Só precisamos resistir até o meio da manhã, e aí vamos fazê-los cantar uma música diferente. — Houve uma algazarra de vivas que colidiu de forma estranha com a música dos Redentores. Será que eles acreditaram? Que escolha havia? IdrisPukke contara uma vez a Henri Embromador que, embora as pessoas falem tanto que a verdade liberta, há uma hora e um lugar para tudo, inclusive para a sinceridade. Nunca subestime o valor moral de uma boa mentira no lugar certo... ou até uma mentira ruim, se a situação estiver muito desesperadora. Tudo, para Henri Embromador, agora, dependia da arte do retardamento. Ele decidiu oferecer aos Redentores uma rendição negociada, sem muita convicção de que valeria o risco. Quando o mensageiro não voltou, ele ficou furioso consigo mesmo por ter desperdiçado a vida de um homem, quando sabia, no fundo, qual seria a resposta. Você é fraco e inútil, disse a si mesmo. Ele se concentrou no problema mais imediato: a escassez de flechas. Ele destacara os carregadores o dia todo para fazer novas, por isso havia um bom estoque, mas manter os Redentores longe por tempo suficiente iria provavelmente requerer mais do que havia acumulado. Se os reforços chegassem, seria bom que fosse até as nove da manhã. Depois disso, nem precisariam se preocupar mais. O plano que ele preparara era bem simples: a plataforma elevada lhes dava uma linha de visão de toda a frente, menos uma zona de sombra para as flechas de uns 2 metros à frente das carroças. Quaisquer Redentores que conseguissem chegar à zona de sombra poderiam lutar com os defensores sem serem atingidos pelas bestas da torre. A missão de Henri Embromador era manter os Redentores afastados das carroças, de modo que só um número comparativamente pequeno na sombra protetora pudesse lutar corpo a corpo com os defensores. Mas esse plano, ele tinha certeza, dependia mais de Cale do que dele: os defensores nas carroças precisavam de um anjo exterminador do seu lado para resistirem durante a noite. Ainda cantando, chegou a primeira linha de Redentores, batendo nos escudos com as espadas em lento acompanhamento às ladainhas que Henri Embromador fora obrigado a ouvir, quando menino, de manhã, ao meio-dia e à noite. Por um golpe de sorte, ele descobrira uma segunda caixa de super-retesadas, quando deveriam ser só três para todo o acampamento: o combate aproximado não exigia tanto poder de longo alcance, por isso elas eram usadas somente em emboscadas, quase nunca. Em outra ocasião, esse erro poderia ter sido um
desastre, mas hoje a incompetência foi um presente glorioso. Com dez daquelas bestas contra eles, os Redentores levariam um susto feio no caminho para a barreira de carroças. E foi assim. Os Redentores estavam esperando flechadas das bestas muito mais fracas que Henri Embromador projetara para o combate aproximado, contra as quais seus escudos eram uma ótima defesa. Eles mal haviam começado a avançar quando oito setas das superretesadas derrubaram quatro centuriões, quatro soldados e feriram mais dois. O pior estava por vir. Quase imediatamente, outra saraivada de cinco flechas das outras super-retesadas, entregues aos arqueiros pelos seus carregadores, mais uma vez atingiram as fileiras cerradas dos Redentores, com o mesmo resultado. Com a surpresa, houve enorme confusão sobre o que fazer, e por um momento Henri Embromador achou que eles fossem recuar para fora do alcance. Ele estava quase certo, mas então um dos centuriões, correndo de um lado para o outro e berrando feito um doido, barrou a passagem e os empurrou para a frente. — Corram! Corram! Corram! Protejam-se perto das carroças! Quando os oitocentos e tantos Redentores começaram uma corrida caótica até a zona de sombra das carroças, onde as flechas não podiam alcançá-los, sofreram pesadas perdas para as bestas na plataforma, e quando chegaram mais perto, as bestas menos potentes nas carroças fizeram mais efeito. Pior ainda para os Redentores foi que gente demais atacara as carroças — não havia espaço na zona de sombra para todos os padres que conseguiram chegar. Mais de duzentos sobraram diretamente na linha de tiro da plataforma. Depois de um curto período de carnificina no qual mais de cinquenta Redentores foram mortos, os centuriões conseguiram entender o erro e mandaram recuar só três quartos dos homens que haviam mandado avançar minutos antes. Os Redentores perto das carroças continuavam lutando, protegidos de Henri Embromador, mas não dos defensores dentro das carroças, agora sob uma pressão intensa e mortal. Mesmo assim, os defensores estavam bem protegidos e morriam numa razão de um para cada seis Redentores. Era Henri Embromador quem fazia a contabilidade. À medida que Redentores morriam aos poucos diante das carroças, precisavam ser substituídos por Redentores agora se escondendo na escuridão, para lá do antigo perímetro. Depois que Redentores suficientes morreram nas carroças, os centuriões correram para a frente, vindos da escuridão, em grupos de uns trinta, para substituí-los. A vida e a morte, para os defensores, dependiam do ritmo das flechas da plataforma atarracada, e de quantos Redentores os arqueiros conseguiam matar quando eles corriam da escuridão, em campo aberto, para a relativa segurança das carroças. Um ritmo assassino estava sendo controlado por Henri Embromador e pelos defensores, e eles sobreviveriam somente enquanto o ritmo se mantivesse uniforme. Se as flechas acabassem ou as carroças fossem superadas, a luta estaria acabada. Henri Embromador agora acreditava que já estava acabada mesmo. Se apenas Cale estivesse aqui, ficava pensando. Ele saberia o que fazer. Àquela altura, o anjo exterminador estava roncando em sua carruagem, vigiado pelo exferreiro, o subsargento Demsky. Visitado rapidamente pelo médico algumas horas depois do início desse segundo combate, Demsky ouviu que Cale ficaria desacordado por horas, e que ele, Demsky, seria muito mais útil lá fora.
— Preciso vigiá-lo — disse Demsky. — Se aqueles vermes papistas passarem pelas carroças — disse o médico —, você só vai vigiar a morte dele, e depois a sua. — Cale continuava roncando. O argumento do médico era irrefutável, e depois de uma breve verificação, eles deixaram Cale sozinho no escuro. Meia hora depois, Cale acordou, passado o efeito da mistura de Valeriana e Piper. O mesmo não se podia dizer da Fedra e Morfina que a Irmã Wray tão temerosamente lhe dera. Até mais demente do que antes de pegar no sono induzido pelas ervas, ele agarrou uma machadinha e correu para fora. Sua carruagem havia sido levada para o lugar mais seguro, do outro lado da pequena plataforma, e a uns dez metros da água do lago. Em circunstâncias normais, ele teria sido visto a poucos passos até no escuro, mas a batalha já durava duas horas e todos estavam envolvidos na luta pela sobrevivência que acontecia diante deles. Foi por isso que somente Cale viu a fileira de Redentores no lago, chafurdando na direção da retaguarda completamente exposta do acampamento, andando sobre alguma espécie de banco de areia elevado, da largura de dois homens, que eles haviam descoberto. A água ainda lhes ia pela cintura e seu progresso era lento, mas eles eram em número suficiente para virar a batalha em questão de minutos. Rugindo por ajuda, o que ninguém ouviu por causa do grande ruído da batalha, um Cale nu — o médico havia arrancado suas roupas encharcadas de sangue — correu para dentro do lago e avançou na direção dos surpresos Redentores; um garoto solitário, completamente despido e gritando com eles. Nem mesmo a mais delicada e amorosa pomba da paz deixaria de se empolgar com a majestade de sua violência angelical — nenhum herói jamais lutou com tal força e graciosa habilidade, tal divina ira e cruel magnificência. Contra cada Redentor que se aproximava, ele desferia tamanha selvageria nos braços, pernas e cabeças que logo a água rasa do lago estava cheia de cabeças, dedos, calcanhares e pés — todo o lago gelado avermelhado pelo sangue Redentor enquanto eles o atacavam incansavelmente para serem martirizados na água fria e negra. Se alguém, na batalha atrás dele, tivesse tempo de olhar para o lago, certamente teria visto algo que não esqueceria tão cedo. Por uma hora, agitando-se na água, o alucinado Cale lutou loucamente contra uma fila interminável de Redentores que não existiam, inimigos mortais magnificamente vencidos que eram total produto da sua intoxicada imaginação. Depois de uma hora de heroísmo ilusório, todos os seus inimigos mentais estavam mortos. E assim, exausto mas triunfante, ele seguiu de volta para a sua carruagem enquanto a batalha de verdade continuava indefinida, e pegou num sono tranquilo. Na plataforma, Henri Embromador podia sentir o suor escorrendo pelas suas costas como se, quando ele percebeu que iria morrer, besouros de medo tivessem eclodido de sua espinha e estivessem em fuga. A batalha continuava e continuava, e a pilha de flechas que os separava de uma morte horrível diminuía como areia numa ampulheta que jamais seria virada. Então, de início sem ninguém notar, o céu começou a clarear e o vermelho pálido da aurora começou a banhar as carroças lá embaixo num delicado rosa, e o sol surgiu no horizonte e uma brisa soprou, dispersando um pouco a fumaça que pairava sobre a luta. Então o combate parou e
um silêncio peculiar se fez entre os homens, tanto entre os Redentores como no Novo Exército Modelo. Cercando-os na baixa encosta que se elevava além do lago, a uma distância de mais ou menos um quilômetro e meio, estavam uns 5 mil soldados que marcharam a noite inteira para salvarem seu anjo exterminador. O próprio anjo da morte dormia profundamente, e ainda estava dormindo meia hora depois, quando Henri Embromador foi ver como ele estava, junto com o médico e o subsargento Demsky. Eles o olharam por um ou dois minutos. — Por que ele está tão molhado? — perguntou Henri Embromador. — Todas aquelas ervas, provavelmente — disse o médico. — É o jeito de o corpo tentar se livrar de todos os venenos. Ele é nosso salvador; o que pode ser dito para louvá-lo que seja suficiente? Seria difícil dizer se a reputação sobrenatural de Cale inchou mais pela maneira (como agora todos acreditavam) em que ele destruíra sozinho os Redentores quando estes estavam prestes a cantar vitória ou pelo fato de que, depois de completar essa façanha extraordinária, ele tivesse se recolhido para dormir pelo resto da batalha, como se soubesse, aliás, tivesse de alguma forma garantido com sua única intervenção, que a vitória seria certa, independente do que os Redentores fizessem ou deixassem de fazer. Era um tributo à maturidade e fibra moral de Henri Embromador ele ter conseguido encontrar um compartimento suficientemente reforçado em seu coração para trancar para sempre sua fúria incandescente por todo o crédito pelo sucesso daquela noite tão crucial ter ficado com Cale. A maior parte da fúria, pelo menos. — Eu venci a batalha do Lago Crispim. — Se você está dizendo — respondia Cale sempre que Henri Embromador abordava o assunto em particular, o que acontecia muito. — Eu não me lembro de muita coisa. — Você disse que nem você poderia ter detido os Redentores. — É mesmo? Não parece algo que eu diria. Do verdadeiro ataque que Cale lançara contra os Redentores, ele só conseguia lembrar uma ou outra imagem fugaz. Por algum tempo depois, tudo o que restou de seu ataque heroico aos Redentores inexistentes no lago foi um estranho sonho ocasional. Mas logo, até isso sumiu. Henri Embromador se vingou por terem roubado seu crédito de uma maneira que teria sido aplaudida por todos os garotos de 15 anos, de todas as épocas e lugares. O povo da Leeds Espanhola estava tão impressionado e grato que uma lista pública arrecadou dez vezes o valor necessário para providenciar um memorial adequado da heroica vitória no Lago Crispim. No local da batalha, uma estátua de pedra foi erguida, na qual um Cale de 2,5m de altura pisava nos corpos de Redentores mortos, enquanto aqueles que estavam para ser horrivelmente massacrados se encolhiam diante de sua imponência sobrenatural. Henri Embromador subornou o escultor para que ele alterasse uma letra na inscrição ao pé da estátua, que agora dizia: Em eterna memória das façanhas heroicas de Thomas Cake.
33 NAS DUAS SEMANAS QUE SE SEGUIRAM À BATALHA DO LAGO, CALE SE SENTIU PÉSSIMO E DORMIA E ACORDAVA QUASE CONTINUAMENTE. QUANDO ESTAVA ACORDADO, OU TINHA UMA DOR DE CABEÇA TERRÍVEL OU SENTIA VONTADE DE VOMITAR, E MUITAS VEZES VOMITAVA. UMA DAS MANEIRAS QUE ELE ENCONTROU PARA DEIXAR DE PENSAR EM SEU SOFRIMENTO FOI DEITAR NUM QUARTO ESCURO E LEMBRAR TODAS AS REFEIÇÕES MARAVILHOSAS QUE COMERA COM IDRISPUKKE: LEITÃO AGRIDOCE, ALETRIA COM SETE CARNES, TORTA DE AMORA DE MASSA PODRE FEITA DE AMORAS RECÉM-COLHIDAS E SERVIDA COM UMA CAMADA DUPLA DE CREME. ENTÃO, UM PRAZER EM DOSE DUPLA, ELE PENSAVA NAS DUAS GAROTAS NUAS E EM COMO ERA TOCÁ-LAS E ESTAR DENTRO DELAS (UM CONCEITO QUE AINDA O ASSOMBRAVA SEMPRE QUE PENSAVA A RESPEITO — QUE IDEIA!). CONTANTO QUE ELE CONSEGUISSE EVITAR O ÓDIO QUE SENTIA POR ARBELL E O REMORSO — E QUE REMORSO COMPLICADO — POR ARTEMISIA, ISSO PARECIA AJUDÁ-LO A FUGIR PARA UM LUGAR ONDE TODAS AS OUTRAS DORES ERAM ABRANDADAS, INCLUSIVE ESSAS. DEPOIS DE DUAS SEMANAS, ELE ACORDOU UMA MANHÃ E SE SENTIU MUITO MELHOR. ISSO ACONTECIA DE VEZ EM QUANDO, A CHEGADA REPENTINA DE VÁRIOS DIAS SE SENTINDO QUASE NORMAL, CONTANTO QUE ELE NÃO FIZESSE MUITA COISA. ALGUMAS HORAS DEPOIS DE ENTRAR NESSE OÁSIS, ELE COMEÇOU A SE SENTIR MUITO ESTRANHO; UM DESEJO INTENSO NÃO O DEIXAVA EM PAZ. ERA TÃO FORTE QUE ELE SENTIA QUE ERA IMPOSSÍVEL RESISTIR. PROVAVELMENTE, PENSOU, ERA CAUSADO POR TER QUASE MORRIDO NO LAGO CRISPIM. FOSSE QUAL FOSSE O MOTIVO, AQUILO O ESTAVA DEIXANDO LOUCO, E ELE NÃO PODERIA RESISTIR. — O senhor tem bilha pendente? — Não. — Já teve trades? — Não. — Algum caso de chuviscos? — Não. — Quer um pombo? Será cobrado à parte, é claro. — Não. — Um huguenote? — Não. — Um loló-de-boca? Como todos os garotos de mente suja da sua idade, Cale sempre temia ser feito de tolo. — Você tá inventando isso? O alcoviteiro ficou indignado. — Nós somos aclamados, senhor, por nossos lolós-de-boca. — Eu só quero... — Cale hesitou, irritado e constrangido — ...o normal. — Ah — disse o alcoviteiro —, aqui na Casa de Conforto da Ruby nos especializamos no
anormal. Somos famosos sobretudo pelo não convencional. — Bom, mas eu não quero. — Entendo — disse o alcoviteiro, desdenhoso. — O cavalheiro solicita o mode ordinaire. — Se você está dizendo. — Quer lançar mão do nosso serviço de beijos? — Quê? — Beijos são cobrados à parte. — Por quê? — Cale estava mais intrigado do que indignado. — As filles de joie da Ruby são mulheres de qualidade e veem o beijo como, de todos os atos, o mais íntimo. São, portanto, obrigadas a cobrá-lo à parte. — Quanto? — Quarenta dólares, senhor. — Por um beijo? Não, obrigado. Na vida profissional de um alcoviteiro, clientes atrapalhados eram a regra, mas o jovem pálido com olheiras (embora os termos “pálido” e “olheiras” não fizessem jus à sua aparência doentia) agora estava realmente dando nos nervos. — Só resta ao jovem cavalheiro apresentar um comprovante de idade. — Quê? — Aqui na Casa de Conforto da Ruby, somos inflexíveis com esses assuntos. É a lei. — Isso é uma brincadeira? — De modo algum, senhor. Não podemos abrir exceções. — Como é que eu vou provar a minha idade? — Um passaporte seria aceitável. — Me esqueci de trazer. — Então temo estar de mãos atadas, senhor. — Isso é cobrado à parte também? — Muito engraçado, senhor. Agora suma daqui! Os clientes à espera e as rameiras que chegavam para levá-los ao seu êxtase alugado riram disso. Cale estava acostumado a ser denunciado, estava acostumado a ser espancado, mas não a ser motivo de risos. Ninguém ria do Anjo da Morte, da personificação da ira de Deus. Mas agora ele era só um garotinho doente, e como ardia pela falta do seu antigo poder enquanto gargalhavam. Se ele não estivesse tão fraco, seria difícil imaginar que se controlaria sob tamanha provocação — eles veriam os terrores do mundo e calariam a boca. Mas a observá-lo do outro lado da sala estava um homem muito corpulento, com um olhar duro. Apesar do ácido da troça corroendo sua alma, Cale foi obrigado a se afastar, já pensando num plano para fazer algo horrível e punir a Casa de Conforto da Ruby no momento certo. Por isso, foi sorte da própria Ruby, ao ouvir seu alcoviteiro levantando a voz, ela ter descido para ver o que estava acontecendo. Foi mais sorte ainda ela reconhecer Thomas Cale. — Por favor! — ela exclamou, quando Cale ia abrir a porta. — Lamento profundamente. Meu funcionário aqui — ela gesticulou na direção do alcoviteiro como se ele fosse alguma coisa que tivessem demorado demais para pôr na lixeira — é um idiota. Sua estupidez vai lhe custar uma semana de salário. Minhas sinceras desculpas. — Cale se virou, deleitando-se com
a expressão de magoada injustiça no rosto do alcoviteiro. — Duas semanas de salário — disse Cale. — Três, e não se fala mais nisso — disse Ruby, sorrindo. — Por favor, entre no privatorium. Somente nossos convidados mais ilustres são levados para lá. E tudo esta noite, claro, é cortesia da casa. — Até os beijos? Ela riu. O garoto, ao que parecia, queria ser paparicado. — Vamos descobrir lugares que o senhor nem imagina que podem ser beijados. Embora o alcoviteiro ainda não soubesse a identidade do garoto, ele jamais vira Ruby tratar alguém com tanta deferência. Mas era mais do que deferência, ela estava com medo. Ao menos ele se deu conta de que três semanas de salário eram o menor de seus problemas. O privatorium era um panorama que faria qualquer garoto, por mais safado que fosse, arregalar os olhos. Havia mulheres por toda parte, aninhadas em poltronas de pelica de goya, sofás de veludo amarelo e espreguiçadeiras cobertas de vicunha doce-amarga dos Amerigos. Mulheres altas, baixas, minúsculas, enormes — mulatas, brancas, amarelas e negras, uma delas coberta dos pés a cabeça, exceto por um seio com o mamilo pintado de vermelho papoula. Outra, vestida como a filha inocente de um puritano, usava trajes modestos, roupas brancas de baixo e um vestido preto — só que ela vertia lágrimas de sofrimento e segurava um cartaz: Fui raptada. Me ajude, por favor! Outras estavam nuas e pareciam adormecidas. Uma jovenzinha, com as mãos e os pés presos numa armação de madeira, estava sendo atormentada por uma mulher, que lhe fazia cócegas no meio das pernas abertas com uma pena de cisne. — Champagne holandês! — exclamou Ruby para um pajem usando um antolho de couro. Ela se virou para Cale. — É a melhor safra dos últimos cem anos. Ela pediu, com um gesto, que ele escolhesse uma das mulheres na sala, tentando dar a Cale a impressão de estar à vontade, mas algo a apavorava no garoto de rosto pálido, e ela torcia para que ele decidisse logo. Ficou estupefacta com o que ele disse a seguir. — Eu quero você. Ruby tinha 50 e poucos anos e se aposentara da prostituição havia mais de vinte. Durante esse tempo, pedidos assim foram feitos, mas ela os rejeitava delicada ou firmemente, de acordo com o caso. — Mas aqui tem algumas das mulheres mais bonitas do país. — Não estou interessado. Só em você. Ruby sabia como dar o melhor de si mesma, era verdade. Tinha um talento considerável para a maquiagem — o suficiente, sem excessos — e podia pagar os melhores esforços dos estilistas da cidade. De modo algum se descuidara, mas adorava comer e era agradavelmente preguiçosa. E a verdade era que ela jamais fora bonita. Ascendera ao topo de um ofício que cobrava um preço terrível da maioria das mulheres levada por sua ternura e inteligência. Seu pescoço era comprido demais para o gosto da maioria, ela tinha nariz pequeno, mas não de um formato estranho, e lábios tão carnudos que por pouco não eram peculiares. “Quando estou cansada”, brincava, “pareço uma tartaruga”.
Mas Cale a achava deslumbrante. Ela era uma mulher de mentalidade forte, e ríspida quando precisava ser, mas o que podia fazer? Aquele garoto pálido não podia ser contrariado. Confrontada, então, com o inevitável, ela vestiu o sorriso fácil que desenvolvera em trinta anos trabalhando deitada e apontou a porta, observada pelas rameiras boquiabertas e alvoroçadas. — Quem diabos era aquele molequinho esquisito? — perguntou a donzela puritana, que até parara de chorar. — Puta burra! — disse a garota que agora parara de atormentar sua companheira com a pena de cisne. — Aquele é Thomas Cale. A puritana arregalou os olhos num horror deliciado. — Ouvi dizer que ele voltou dos mortos e mantém a alma presa num postigo de carvão. Ruby Eversoll podia não acreditar em zumbis ou almas aprisionadas, mas sabia fatos concretos suficientes sobre Cale para ter medo. Ela já fora propriedade de Kitty das Lebres, e embora tivesse comemorado a notícia de sua morte, e de como sua agonia fora longa e horrível, fazia ideia de que tipo de criatura alguém teria que ser para conseguir assassinar Kitty em sua própria casa. O fato de ele não passar de um garoto de aspecto doentio só o tornava mais perturbador. Ao destrancar a porta do seu apartamento, ela percebeu que estava tremendo. Ruby Eversoll não tremia de medo havia muito tempo. Cale teria ficado assombrado se soubesse o que Ruby estava sentindo. Se ele não estava, talvez, tão apreensivo quanto a maioria dos garotos de 15 ou 16 anos estariam nas mesmas circunstâncias, ainda assim estava nervoso — um pouco fora de seu ambiente, um pouco envergonhado por pagar a alguém por sexo, mas também agitado, imaginando os prazeres pouco familiares de uma mulher tão diferente de Arbell ou Artemisia. Ao pensar em sua falecida amante, ele sentiu uma pontada de algo — algo como perda, algo como remorso. Mas tudo aquilo o confundia muito, por isso ele guardou esses sentimentos e se concentrou na escultural Ruby. — Devo me despir? — perguntou Ruby. — Hã... sim, por favor. — Certamente não parecia muito autoritário, mas Ruby estava agitada demais para notar. Ruby era uma profissional; Ruby conhecia o seu trabalho. Muito devagar, começou a soltar os ganchos e ilhoses na frente do seu vestido, de alto a baixo. Enquanto ela os abria um a um, Cale ficava hipnotizado pelos seus seios. Contidos e forçados para cima pelos talentos de engenharia de seu estilista, à medida que iam sendo soltos, sua redondez macia, sustentada pelo vestido, parecia inchar como se eles estivessem desesperados para finalmente ficarem livres. Ele não notou que parara de respirar. Ela jogou o espartilho no chão, abriu a saia e saiu de dentro dela. Agora estava coberta apenas por uma combinação de seda branca. Estranhamente, e algo incompreensível para Ruby, ela se sentiu profundamente constrangida ao soltar os lacinhos na parte da frente da combinação leve como gaze, deixá-la cair com um movimento dos ombros e sair do meio dela. Os pulmões de Cale, se não o próprio Cale, decidiram que estava na hora de respirar — e foi o arfar dele que começou a revelar a Ruby que talvez ela tivesse entendido mal alguma coisa.
Acima da cintura, estava nua, agora. Até quando era uma jovem magrinha, ela já se orgulhava dos seus seios. Ela não era mais magrinha, nem nada parecido, mas mesmo com aquilo que sua predileção por manteiga, ovos e vinho acrescentara, e era muito, seus seios haviam conservado algo da firmeza da juventude. Eles eram, resumindo, muito grandes, com enormes mamilos rosados. Cale, acostumado apenas a ver a esbelta Arbell e a minúscula Artemisia, que seria grosseiro até chamar de delicada, olhava como se estivesse vendo uma mulher nua pela primeira vez de novo. Como era possível, ele pensou (embora seu pensamento estivesse quase paralisado), a mesma criatura ser tão diferente? Ele não havia, é claro, partilhado da epifania esbugalhada de Henri Embromador quando este espiou a opulenta Riba se banhando nas Terras Crestadas. Pondo a mão no flanco, Ruby desamarrou os cordões na lateral de sua calçola azul-bebê e a deixou cair no chão. Era sorte Cale ter passado um período se sentindo mais forte naquela semana, senão poderia ter caído morto ali mesmo, e o futuro do mundo teria seguido um caminho bem diferente. Havia uma intensa imobilidade no quarto enquanto Cale, completamente fulminado, olhava para Ruby. Ela começou a sentir seu pavor pelo garoto se esvair, e o prazer quase esquecido de intoxicar alguém com o poder do seu corpo fazer-se presente de novo. Devagar, gostando mais a cada passo, ela se aproximou dele e, estendendo os braços — não havia nenhum outro mundo —, absorveu Cale no seu corpo. Aquele momento, a sensação de ser envolvido num paraíso que se podia cheirar e tocar, ficaria com ele até o dia de sua morte, para ser lembrado nos seus piores momentos, um refúgio contra o desespero. Mas agora ele estava ardendo de volúpia. Arrastou-a para a cama e começou, como se quisesse devorá-la. Sua boca e suas mãos estavam em toda parte, fascinadas por tudo nela. Sua barriga era gorda, nada parecida com os abdomes retos de menino de Arbell e Artemisia. O ventre de Ruby era redondo, macio como um travesseiro e ondulava quando ele o tocava, como uma das gelatinas dos banquetes dos Materazzi. Ela era toda curvas e dobras e ele a tocava em toda parte, seu prazer tão grande que ela começou a rir. — Paciência — Ruby disse e ficou de joelhos. Ele se ajoelhou atrás dela, os lábios devorando seu pescoço, e experimentou, de acordo com os hunterianos, um dos sete grandes prazeres que o mundo tem para oferecer: segurar um par de seios fartos com as palmas de ambas as mãos. Como que desesperado para descobrir os outros seis, ele empurrou Ruby de volta para a cama e começou a beijar seus mamilos com uma fome tão incontida que foi longe demais. — Ai! — ela gritou. Ele se sentou, chocado e alarmado. — Desculpa. Desculpa. Não queria te machucar. A mordiscada fora realmente dolorosa, mas ele estava tão cheio de remorso e Ruby tão surpresa com a intensidade do seu desejo por ela que não pôde evitar afagar seu rosto e sorrir. — Tudo bem — ela disse, e se abanou com a outra mão. — Mas vá um pouco mais devagar. — Me diga o que fazer — ele disse docemente. Agora ela percebia o quanto fora histérica
ao sentir tanto pavor de alguém com tanto doce remorso e inocência. — Bem, não quero esfriar seu entusiasmo, apenas tente não arrancar pedaço. Nas horas que se seguiram, Cale experimentou mais três dos seis grandes prazeres que faltavam (sobre dois deles é, muito acertadamente, contra a lei do país romper o silêncio). A observação de Kleist de que onde quer que Cale fosse um funeral certamente aconteceria havia se tornado lugar-comum. Com certeza, a análise geral dos terríveis acontecimentos ocorridos na Casa de Conforto da Ruby mais tarde naquela noite diria que eles eram a prova de que obviedades se tornam obviedades por serem óbvias. Era, naturalmente, injusto sugerir que Cale tivesse sido responsável pelo que aconteceu, e absurdo dizer que aquilo fosse uma prova clara de sua condição sobrenatural de substituto terreno da própria morte. Mas, como Vipond depois observaria para seu irmão, se Cale não tivesse insistido em discutir com o alcoviteiro, tudo teria terminado apenas com a imagem que Cale fazia da sua própria importância levemente arranhada. — Então foi culpa dele — disse IdrisPukke — um catador de bosta de cachorro qualquer ter cortado a garganta de uma puta de luxo porque achou que ela estava rindo do tamanho do seu pênis? — Claro que não. Mas tampouco é coincidência... ele pode não ser o Anjo da Morte, mas algumas pessoas nasceram para causar problemas no mundo. E Cale é uma delas. Pouco depois das dez daquela noite, quando Cale se espalhava, agradavelmente exausto, na cama de Ruby (cobertores de caxemira Linton, lençóis de seda de aranha Eri), um homem de 30 e poucos anos chegou à recepção da Casa de Conforto da Ruby para uma experiência, única em sua vida, de beleza. Ele era um purista — o que significava que ele passava os dias coletando pura nas ruas da Leeds Espanhola. Pura era como os curtidores locais, que precisavam de seus ingredientes nauseabundos para amaciar o couro, chamavam a merda de cachorro. Se o alcoviteiro soubesse da sua profissão, o homem não teria nem passado pela porta, mas o purista sabia muito bem que não devia se apresentar num lugar tão especial usando as roupas da mais baixa das castas. Ele alugara um terno, se lavara na casa de banhos municipal e fora ao barbeiro. Estava com tanto medo de ser rejeitado que havia também bebido mais do que pretendia. Mas se não fosse por sua rusga com Cale mais cedo naquela noite, o alcoviteiro provavelmente teria decidido que havia algo de errado com o purista e que ele havia bebido um pouco além da conta. Era uma questão de imagem: a casa de Ruby era um lugar de classe, e o purista não passaria no teste. Mas naquela noite ele passou. O alcoviteiro estava despeitado; mais do que isso, estava puto da vida. Fora humilhado por causa de Cale, e por isso decidiu ir à forra com a puta gorda da chefe e deixar o purista entrar. O grito que se ouviu quando Cale descansava a cabeça sobre o seio esquerdo de Ruby, ele conhecia horrivelmente bem: o terror de alguém que se dá conta de que vai morrer. — Meu Deus! — Ruby saltou de pé e começou a se vestir, mas Cale já estava na porta, tentando trancá-la, quando ela se escancarou, jogando-o para trás. Depois de matar uma das putas, o purista entrara em pânico e correra na direção errada, para o beco sem saída do
apartamento de Ruby. Os gritos dos guarda-costas — Ruby tinha quatro — já deixavam claro que ele não poderia recuar. Ele entrou no quarto, trancou a porta e agarrou Ruby pelo pescoço, puxando-a para a janela. Apavorado como estava, viu que estava no terceiro andar e não poderia fugir por ali. Cale, que batera com força a cabeça, se levantou lentamente. — Isso doeu — ele disse ao purista. — Me tira daqui, ou corto a garganta desta vaca também. As provas do crime estavam nele todo — cobriam seu rosto, o terno alugado e a faca estranhamente pequena que ele segurava no pescoço de Ruby. — Posso vestir minha calça? — Você fica onde está. Mexa um músculo e ela morre. — Como é que vou te tirar daqui se não posso me mexer? Cale podia ouvir vozes lá fora. Então um dos guarda-costas gritou. — Os Badiels estão vindo! Você não tem saída. Solte a mulher e não vai se machucar. O purista empurrou Ruby (que estava assombrosamente calma, considerando as circunstâncias, pensou Cale) para a porta. — Digam pros Badiels me deixarem passar. Se tentarem entrar, corto a garganta dela. Depois corto a do garoto também. — Posso falar com eles? — Cale perguntou. — Você cala essa boca, ou corto a garganta dela. — Acho que você não corta. — Fica olhando. — Por que desperdiçar uma refém, se falando com eles eu posso te ajudar a sair? — Como é que um merdinha magricela feito você vai me ajudar? — Me deixe falar com eles e vai descobrir. O que tem a perder? O purista pensou por um momento, mas pensar não estava nada fácil. O desespero da situação estava fechando o cerco. — Tudo bem. Mas veja lá o que vai dizer, ou corto a garganta dela. Cale andou até a porta. — Aí está bom — disse o purista. — Quem está no comando aí? — perguntou Cale. Um breve silêncio. — Eu. — Pode me dizer seu nome? Mais um silêncio. — Albert Frey. — Certo, sr. Frey, quero que diga a este cavalheiro quem eu sou. — Estou pouco me fodendo pra quem você é — disse o purista. Frey tinha um problema. Sendo inteligente, decidira não seguir as ordens de Cale, baseando-se na ideia de que estaria entregando ao assassino um refém que lhe daria ainda mais poder. Era isso que Cale realmente queria? — Está tudo bem, sr. Frey — disse Cale. — Pode dizer.
Mais uma pausa. — O jovem que está com você no quarto é Thomas Cale. O purista olhou para o garoto nu, pálido e magrelo diante dele e comparou o que via com as lendas que ouvira, fossem elas quais fossem. A discrepância era fácil de perceber. — É mentira! — disse o purista. — Não é mentira — disse Cale. — Prove, então. — Não vejo como eu poderia provar. Ele apontou para a virilha de Cale. — Podia mijar veneno em cima de mim. Você consegue? — Infelizmente, tirei água do joelho pouco antes de você chegar. Vai demorar. — Ouvi dizer que Thomas Cale prende sua alma no postigo do carvão. É verdade? — Eu nem sei o que é o postigo do carvão. Alguém bateu com estrondo na porta. O purista, assustado, puxou Ruby para trás e apertou a faca em sua garganta com mais força. — Sr. Cale! — uma voz ecoou. — Sim! — Cala essa boca! — gritou o purista. — O senhor está bem? Cale ergueu a mão esquerda aberta para pedir permissão ao purista. Apavorado demais para falar, o homem balançou a cabeça. — Sou o Suprabadiel Ganz — disse o homem. — Diga a esse malfeitor que se ele se entregar, terá um julgamento justo. O purista soltou uma risada assustada e sarcástica. — E depois vão me levar direto pro Bob Cortador e cortar minha cabeça. — Está me ouvindo! — gritou Ganz. — Saia daí e ninguém vai machucar você. Cale ergueu a voz. — Suprabadiel Ganz, quem fala é Thomas Cale. Houve um silêncio — um silêncio nervoso. — Sim, senhor. — Se você disser mais uma palavra antes que eu permita, vai se arrepender. Entendeu? Mais uma pausa. — Sim, senhor. — Desta vez foi quase inaudível. Cale olhou para o purista. — Você está completamente errado, sabe, sobre cortarem sua cabeça. — Como assim? — Há mais ou menos oito meses, eu assinei a ordem de execução de uma jovem de 16 ou 17 anos, e no dia seguinte ela foi levada para a Praça dos Mártires em Chartres e lá a enforcaram, depois a tiraram da forca e a reanimaram, e em seguida o carrasco a abriu, e enquanto ela ainda estava consciente, cozinhou suas tripas na sua frente. Veja bem, acontece que eu gostava dela. Gostava muito. — Ele falou com Ganz. — Ouviu isso, Suprabadiel? É
assim que este homem deve morrer, entendeu? — Sim, senhor. Cale olhou novamente para o purista. — Agora, embora eu não goste de você, vou propor um acordo. — Eu corto a garganta dela... esse é o acordo. — Vá em frente — disse Cale. — Estou pelas tampas de ouvir você dizer o que vai fazer. Ela é só uma puta. — Depois de cortar a garganta dela, vou fazer o mesmo com você. — Não, não vai. — Ele sorriu. — Tudo bem, provavelmente não vai. Estar nu e tudo mais é uma desvantagem, é verdade. Mas eu não sou uma garota indefesa. Sei o que estou fazendo. — Ele estava blefando. Podia se sentir bem o suficiente, para variar, para experimentar quatro dos sete prazeres com Ruby, mas sem a Fedra e Morfina, qualquer coisa mais árdua estava muito além de suas possibilidades. — Sou eu que estou com a faca. — Tudo bem, então você me mata. Eles vão cortar seu pau e cozinhá-lo na sua frente mesmo assim. Com toda a conversa, e ainda mais uma conversa daquelas, o purista teve tempo para que os horríveis acontecimentos e a horrível situação na qual eles o deixaram fizessem efeito. Estava tremendo visivelmente. — Qual é o acordo? — perguntou, sua voz falhando. — O acordo é que você larga a vadia e eu mato você. Ruby manteve uma calma impressionante até então, e a verdade é que arregalou os olhos só um pouquinho. — Tá de brincadeira? Corto a garganta dela. — É o que você fica repetindo. Você sabe tão bem quanto eu que sua vida acabou no momento em que matou aquela garota. Não pode voltar atrás nisso. Ou me deixa cuidar de você agora e vai ser rápido e indolor, ou espera mais alguns dias e se torna uma lenda do sofrimento. Daqui a cinquenta anos, as pessoas ainda vão dizer: “Eu estava lá.” Agora o purista começou a chorar. Então parou, o terror virou raiva e ele apertou mais Ruby. Então começou a chorar de novo. — Vai ser rápido — disse Cale. — Serei o melhor amigo que você já teve. Houve mais choro e mais pânico, mas então ele afrouxou a presa sobre Ruby e ela se desvencilhou calmamente. O purista, agora chorando descontroladamente, ficou de pé com os braços caídos. Cale foi até ele e lentamente tirou-lhe a faca das mãos. — De joelhos — ele disse baixinho. — Por favor — disse o purista, embora não fosse claro por quê. — Por favor. — Cale lembrou que Kitty das Lebres também dissera isso antes de morrer. Cale pôs a mão no ombro dele e o fez abaixar. — Faça uma prece. — Não conheço nenhuma. — Repita comigo: Em Tuas mãos, Senhor, entrego meu espírito. — Em Tuas mãos, Senhor...
Uma estocada repentina de Cale abaixo do ouvido esquerdo. O purista tombou para a frente e ficou absolutamente imóvel. Então começou a se agitar. Depois parou. Depois se agitou, depois parou. — Pelo amor de Deus, acabe com ele — Ruby gritou. — Ele já morreu — disse Cale. — Seu corpo só está se acostumando com isso. Uma hora depois, pouco antes que Cale saísse da Casa de Conforto, enquanto os dois tomavam um drinque juntos, Ruby lhe disse: — Mais cedo, senti que havia alguma coisa pavorosa em você. Depois achei que você era adorável. Agora não sei mais o que pensar. Ela estava cansada, claro, e embora já tivesse visto algumas coisas ruins, aquela fora a pior noite de sua vida. Mesmo assim, não era o que Cale queria ouvir, e ele foi embora sem dizer mais nada.
Parte Cinco
O Anjo da Morte vagou por esta terra; pode-se quase ouvir o bater de suas asas. John Bright, parlamentar britânico (1855)
34 FORAM TRAVADAS SEIS BATALHAS EM BLOTHIM GOR. NINGUÉM LEMBRA NENHUM DESSES COMBATES, A NÃO SER PELO NOME: “BLOT” É SANGUE EM PITTANO ARCAICO, ASSIM COMO “HIM” NO IDIOMA DOS GALTAS, QUE OS ANIQUILARAM E ROUBARAM SUAS TERRAS. “GOR” SIGNIFICA O MESMO EM SUÍÇO ANTIGO. SANGUE, SANGUE, SANGUE — UM LUGAR ADEQUADO PARA O PRIMEIRO USO DAS ARMAS DE MÃO DE ROBERT HOOKE. A GUERRA NAS PLANÍCIES DO MISSISSIPPI JÁ DURAVA SEIS MESES QUANDO ELE ACERTOU O EQUILÍBRIO DE METAIS, PÓLVORA E FACILIDADE DE USO. ATÉ ENTÃO, A LUTA PODERIA TER QUALQUER RESULTADO. A CARNIFICINA ERA MONSTRUOSA, A DISPOSIÇÃO DOS REDENTORES DE MORRER AOS MILHARES COMEÇAVA A SOLAPAR A VANTAGEM DAS CARROÇAS DE GUERRA E DOS EXAUSTOS SOLDADOS DENTRO DELAS, CRIADOS PARA CORTAR LENHA, ORDENHAR VACAS E COLHER BATATAS. O QUE OS MANTINHA LUTANDO ERA A VISÃO, E BOATOS DA VISÃO, DE THOMAS CALE. NA ÚLTIMA LUZ DO CREPÚSCULO, ELE APARECIA SOBRE PENHASCOS, DESFILADEIROS E MORROS ROCHOSOS, IMÓVEL, A NÃO SER QUANDO O VENTO SOPRAVA SUA CAPA ATRÁS DELE COMO UMA ASA, OLHANDO POR ELES: GUIA, TEMIDO GUARDIÃO AGACHADO OU AJOELHADO, VIGIANDO COM A ESPADA SOBRE OS JOELHOS, PREDADOR DAS SOMBRAS, TENEBROSO PROTETOR. E ENTÃO AS HISTÓRIAS COMEÇARAM A CORRER DE BASTIÃO EM BASTIÃO SOBRE UM MISTERIOSO JOVEM PÁLIDO, NÃO MAIS QUE UM GAROTO, QUE APARECIA ONDE QUER QUE A LUTA ESTIVESSE QUASE PERDIDA E COMBATIA LADO A LADO COM OS FERIDOS E PERDIDOS, SUA PRESENÇA ACALMANDO O MEDO E IRRADIANDO-O DE VOLTA PARA OS CORAÇÕES DE SEUS QUASE TRIUNFANTES INIMIGOS. E QUANDO TUDO ACABAVA, E IMPOSSIVELMENTE ELES VENCIAM, ELE PENSAVA NAS FERIDAS DOS SOBREVIVENTES E ORAVA, COM LÁGRIMAS NOS OLHOS, PELOS MORTOS. MAS QUANDO O PROCURAVAM DE NOVO, ELE JÁ HAVIA SUMIDO. BATEDORES VOLTAVAM COM HISTÓRIAS DE TEREM SIDO CAPTURADOS PELOS REDENTORES, QUANDO TODA ESPERANÇA ESTAVA PERDIDA, E QUE JÁ HAVIAM SE RESIGNADO A UM PAVOROSO DESTINO QUANDO UM JOVEM CINZENTO SURGIA DO NADA, ENCAPUZADO E MAGRO, E LUTAVA AO LADO DELES EM SITUAÇÕES IMPOSSÍVEIS, PREVALECENDO NO FINAL. MAS QUANDO A LUTA ACABAVA, ELE SUMIA, E ÀS VEZES ERA VISTO OBSERVANDO DE UMA COLINA PRÓXIMA. Baladas foram compostas e divulgadas em menos de uma semana para todas as carroças da planície do Mississippi. Muitas foram compostas pelo próprio IdrisPukke, depois que essas histórias voltaram para a Leeds Espanhola. Ele contratou dezenas de trovadores ambulantes para ir de carroça em carroça cantando suas canções populares. Mas eles também aprendiam aquelas compostas pelos próprios homens do Novo Exército Modelo, mais desajeitadas e sentimentais do que as de IdrisPukke, mas principalmente mais fortes, tanto que quando os cantores voltavam e as tocavam para ele, IdrisPukke podia sentir os arrepios em seu pescoço e braços, flagrando-se comovido e abalado, mesmo sabendo que eram só um instrumento de divulgação.
— O que é a verdade? — disse Cale, quando IdrisPukke lhe contou, envergonhado, como se sentia ao ouvi-las. Cale, fosse por que motivo fosse, talvez vergonha ou uma cabeça mais fria até que a de IdrisPukke, dizia que embora o circo, como ele se referia aos vinte bonecos feitos à sua imagem, tinha lá seu efeito em evitar que o Novo Exército Modelo se desintegrasse durante a campanha de primavera e verão, sua resistência se devia igualmente, ou mais, à capacidade de Cale de manter as carroças abastecidas com comida e armas decentes e novos soldados com botas boas e roupas quentes — tudo entregue pelos carros leves que Nevin fizera para ele e que viajavam tão rápido, até em terreno ruim, que os Redentores raramente conseguiam interceptá-los. Ninguém, ele disse a IdrisPukke, quer cantar uma canção heroica sobre um bom par de botas e carroças leves de abastecimento. Mesmo assim, foi por muito pouco. Foram as máquinas de matar de Hooke que puseram os Redentores de joelhos na planície do Mississippi. Até então, eles estavam usando novas táticas contra as carroças, fogo grego e um aríete mais leve debaixo de um teto de bambu para proteger os homens dos golpes e das setas dos Bastiões. Os Redentores também levavam vantagem graças à sua crença de que a morte era apenas a passagem para uma vida melhor e, claro, que a vida que deixavam para trás era um deserto. Mas as armas de Hooke ofereceram não só mais mortes do que até os Redentores podiam suportar, mas também feridas horríveis, cada tiro atingindo até seis homens de uma vez, produzindo cortes rasgados que não podiam ser suturados nem limpos facilmente, causando sépsis e não cicatrizando mais. E a de Hooke não era a única mente engenhosa preocupada em espalhar dor e feridas: os camponeses perceberam que se misturassem um pouco de bosta de cachorro ao conteúdo das armas, garantiriam que os terríveis ferimentos que elas causavam infeccionassem mais dolorosamente ainda. Depois de três meses, o Novo Exército Modelo voltou a cruzar o Mississippi, e estabelecendo uma cabeça de ponte em Halicarnassus que eles conseguiam defender — apesar dos letais contra-ataques dos Redentores — pelo mesmo motivo que aquele fora o último lugar a cair. Até Bex, a guerra contra os Redentores só trouxera derrotas; depois das armas de mão de Hooke, foram só vitórias. Mas não havia um triunfo fácil em nenhuma batalha, do embate em Finnsburgh entre tropas que mal lotariam uma cervejaria (e onde um único membro da família real suíça morreu durante uma infeliz visita para melhorar o moral das tropas) até os 500 mil que ficaram frente a frente na batalha por Chartres. Quem se lembra das batalhas individuais em qualquer guerra, mais do que ocasionalmente, só de nome; quem dirá o que aconteceu ali ou por que foi importante — ou até a própria guerra? Qual de vocês esqueceu as batalhas que levaram Thomas Cale às muralhas do próprio Santuário? Onde estão os cenotáfios em memória da Ponte de Dessau ou da batalha de Dogger Bank? Onde os memoriais da Primeira Fitna, do cerco a Belgrado, da Rebelião Hvar ou da Guerra dos Oranges? Quem pode falar sobre os Strellus e sua defesa sem par do silo de grãos de Tannenberg, ou da chacina de Winnebago, ou da derrota em Kadesh, onde 20 mil homens morreram congelados numa só noite? Onde estão os henges de Pearl Harbour ou
Ladysmith? Onde os santuários, as lápides até onde a vista alcança, por Dunquerque ou pela queda de Hatusha, por Ain Jalut e Siracusa ou pelo massacre de Tutosburg? E por que lembrar o primeiro dia do Somme com tantas lágrimas, quando mais gente morreu de forma mais horrível em Towton numa só tarde? Depois de um cerco de três meses à Cidade Santa, qual foi o número total de mortes? Ninguém mais estava contando. Mais tarde naquele mesmo dia, depois que a cidade caiu, Cale e Henri Embromador estavam na Capela Sistina, sob o glorioso teto retratando Deus criando o homem — de mãos estendidas um para o outro em eterno amor. — Linda, não? — indagou Henri Embromador. — É, sim — disse Cale, e falou a sério. — Mande pintar de branco. As batidas na porta de Gil pareciam imediatamente dizer: “Sou uma pessoa tímida e culpada.” — Entre. Era uma pessoa tímida e culpada: Strickland, criado particular de Bosco, um homem cuja noção de sua miserável inadequação e inata insignificância pairavam ao seu redor como uma névoa pessoal. — Não havia ninguém na antecâmara — disse Strickland. — Por isso bati na porta. O que Gil queria dizer era: E daí? Desembucha logo. O que ele realmente disse foi: — Em que posso ajudar, Redentor? — De fato, ele estava extremamente curioso. Nem mesmo Strickland pareceria tão culpado se tivessem mandado que ele viesse. Algo estava acontecendo. Ele enrolou, gaguejou e finalmente falou. — Sua Santidade está em seu quarto há seis dias e seis noites sem comida e só com um copo d’água por dia, que ele me instruiu a deixar do lado de fora da porta trancada. Embora a abstenção do prazer fosse mais ou menos um estado permanente para os Redentores, jejuar por mais de um dia era algo visto com desconfiança. Jejuar por seis dias era proibido: tais extremos produziam resultados estranhos. A maioria das heresias Redentoras, incluindo o antagonismo, começara com visões tresloucadas provocadas pela fome. Mas Gil não estava exatamente surpreso. Os intervalos entre audiências com Bosco se tornavam cada vez mais longos — três semanas não era uma demora incomum. Quanto mais vitórias de Cale, e por aqueles dias só havia vitórias, mais ele se isolava, porque mais incompreensível ficava o plano de Deus para produzir a recriação da alma humana. Para Bosco, Cale não era o executor do plano, e sim a personificação do plano na terra. Agora que essa personificação estava nos arredores de Chartres e certamente a conquistaria, Bosco e 10 mil Redentores haviam se retirado para o Santuário. — Deus quer dizer algo com isso — Bosco refletira. — Ele está me dizendo, mas não consigo ouvir. A decisão de Gil de partir esbarrara no problema de todas as decisões assim: era mais fácil falar do que fazer. Aonde ele iria? O que faria? Como viveria? A retirada para o Santuário ajudara. Nem mesmo Cale poderia invadir aquele lugar — nem mil como ele. Dois mil homens, imagine 10 mil, então, poderiam defender o lugar para sempre — e ainda não existia exército que conseguisse ficar lá fora por mais de alguns meses. Assim, Gil decidiu esperar para ver e
pôr um ou dois dispositivos em operação. Talvez Bosco jejuasse até morrer, mas ele duvidava disso. Algo lhe dizia que aquilo traria problemas. Ele se levantou. — Vamos até os aposentos dele. Levando vários homens consigo, ele foi ver Bosco, tentando imaginar o que faria ao chegar lá, mas quando chegou ao estreito corredor que levava aos aposentos de Bosco, o papa estava de pé na porta e sorrindo. — Gil, meu caro! — ele disse. — Quando eu contar o que tudo isto significa, você vai rir de mim por não ter enxergado algo tão óbvio. Procurei tanto e não vi. Venha, caro camarada. Entre. — E nesse humor jubilante, Bosco levou um Gil alarmado para os aposentos mais privativos. Então os exércitos do Eixo se voltaram para o Sul, rumo ao grande barbacã e contraforte da fé Redentora, à fonte e origem de tudo: a grande catástrofe propriamente dita. Não havia uma intensa sensação de triunfo quando a tropa de assédio acampou do lado de fora do imponente volume do platô montanhoso sobre o qual o Santuário fora construído. Chartres não fora construída para resistir a um exército, no entanto foram necessários três meses de sangue e sofrimento para que o Novo Exército Modelo pudesse penetrar suas defesas. O Santuário era um problema de outra magnitude. Ninguém havia chegado perto de tomá-lo em seiscentos anos. Era difícil imaginar como alguém poderia: ele era vasto o suficiente para se alimentar do solo milagrosamente fértil transportado do oásis do Voynich e tinha tanques para estocar água suficiente para dois anos ou mais. Já na estepe árida que o rodeava, até gramade-ponta e limpa-bunda lutavam para sobreviver. No verão, o calor era insuportável, embora as noites fossem gélidas, e no inverno, dali apenas quatro meses, ficava tão frio que se dizia que pássaros caíam do céu congelados. Isso era exagero, claro, entre outras coisas porque não havia muito que pudesse alimentar pássaros. Dava-se o caso também, por motivos que ninguém compreendia, que os invernos eram às vezes quase amenos. Amenos ou não, as estepes diante do Santuário não eram adequadas para serem habitadas pelo homem, especialmente em tão grande número. Mas havia muitas outras dificuldades além de apenas alimentar 20 mil soldados em circunstâncias hostis a quilômetros de qualquer lugar, numa paisagem que, por 300 quilômetros em qualquer direção, havia sido varrida de qualquer fonte de alimento, com todos os poços envenenados e todas as construções queimadas. Cale estava bem cuidado, é preciso dizer, em carroças confortavelmente mobiliadas com suspensão de lâminas e um colchão decente para mantê-lo confortável em longas viagens, e outra carroça maior para trabalhar e se reunir com poderosos. Mesmo com todo o sucesso, as forças reunidas ao redor do Santuário representavam, em parte, facções tão hostis a Cale quanto os Redentores que o olhavam do alto das muralhas da fortaleza. Quando se deram conta de que os Redentores certamente perderiam, os lacônicos mudaram de lado e contribuíram para o Eixo com um exército de 3 mil homens, agora acampado ao lado do Novo Exército Modelo. O general lacônico teoricamente no comando, David Ormsby-Gore, reportava-se na verdade a Fanshawe, cujo problema central era decidir se devia atacar Cale agora, quando haveria muitas oportunidades, ou esperar até o Santuário cair e então livrar-se dele. O problema de esperar era que agora estava claro que conquistar o Santuário poderia
levar muito tempo, facilmente o suficiente para que os Quinto, Sétimo e Oitavo Exércitos Redentores, que haviam recuado para seus vastos territórios no Oeste para se reorganizar depois de terem sido esmagados em Chartres, contra-atacassem. Os éforos lacônicos queriam Cale morto para vingar a derrota em Golan, mas Fanshawe estava muito mais preocupado com o futuro. Havia muito tempo ele já descobrira que Cale não só se recusara a expulsar os hilotas, mas garantira seu treinamento para criar uma insurgência contra os lacônicos. Depois que Cale derrotasse os Redentores, ou ao menos os forçasse a recuar para além da Paliçada, ele temia que Cale tivesse suficiente poder e simpatia pelos hilotas para treiná-los e abastecê-los. Ele poderia até intervir diretamente para apoiar uma rebelião. Na verdade, procurar qualquer tipo de causa além da sua própria sobrevivência nem passava pela cabeça de Cale. — Quando tudo acabar, podemos comprar uma boa casinha — disse Henri Embromador. — Que tal aquela tal de Treetops que você vive falando? Cale pensou naquela ideia agradável. — Difícil de defender. Treetops. Fica um pouco perto demais de muita gente com ideias pouco generosas. Precisamos atravessar o mar. — E a Hansa? Aposto que, com todo o dinheiro que tem, possui casas legais. Uma com um lago ou um rio. — Melhor ir pra onde não somos conhecidos. Ouvi coisas boas sobre Caracas. — Poderíamos levar as garotas conosco. — As garotas do Santuário eram um assunto difícil entre os dois. — Elas podem já estar mortas. — Mas podem não estar. — Tudo bem. Eu concordo: uma bela casa com muitas garotas em Caracas, então. — Tem bolo em Caracas? — Caracas é famosa por seus bolos. Não havia mais tempo para pensar no futuro, porque IdrisPukke chegara inesperadamente com más notícias da Leeds Espanhola. — Estão planejando seu impeachment — ele disse. — Suponho — disse Cale — que impeachment não seja uma coisa boa... nada de medalhas e desfile em carro aberto e tudo mais? — Não. Está mais para um julgamento secreto na Câmara Estrelada, seguido de um encontro em particular com Bob Cortador. — O que estão dizendo que ele fez? — perguntou Henri Embromador. — Importa? — Pra mim, sim — disse Cale. — Pôs fogo na ponte depois de Bex. — Não podem provar que fui eu. — Não precisam. Além disso, você pôs fogo nela. E perjúrio é um crime capital. — Eles me mandaram mentir. — Mesmo assim, foi você. Execução sumária de cidadãos suíços. Ele não disse nada em resposta a essa acusação porque também era verdade.
— Aumento ilegal de impostos. — Eles concordaram com isso. — Você tem algo por escrito? — Não. O que mais? — Não basta? Só pôr fogo na ponte já faria toda a população da Suíça brigar para pôr as mãos na corda. — Que escolha eu tenho? — Não me pergunte, pergunte a eles. Um impeachment na Câmara Estrelada não requer de modo algum que as acusações sejam verdadeiras para um veredito de culpa, mas o fato de você ter feito mesmo todas essas coisas não ajuda. — Você mesmo poderia invadir a Leeds Espanhola. — Henri Embromador disse isso. — Não sem tomar o Santuário primeiro. Cale se virou para IdrisPukke. — Por que não querem esperar até invadirmos? — Eles temem que possa levar tempo demais ou que, se o Santuário não cair, o Novo Exército Modelo faça exatamente o que Henri Embromador disse. — Mas o Novo Exército Modelo é suíço, afinal, e o rei governa pela vontade de Deus. O mesmo Deus no qual os soldados acreditam. — Eles são camponeses, não cidadãos suíços, e não são mais camponeses. A guerra muda as pessoas. — É pedir muito — disse Cale. — Experimente pedir. — Não antes de tomar o Santuário. Depois veremos. — E seu convite para Leeds? — Sei que você encontrará as palavras certas. Além disso, pode não demorar tanto quanto esses reclamões pensam... tomar o Santuário. Hooke estará aqui amanhã com uma nova máquina. — E se der certo, como vai ser? — Vou me preocupar com isso quando acontecer. — Para ser sincero, acho que você não pode se dar a esse luxo. Precisa começar a fazer planos já. — Estávamos pensando — disse Henri Embromador — em ir pra Caracas. — Infelizmente, acho que este não é o momento para piadinhas imbecis. Eu diria que as chances de eles deixarem você se aposentar num retiro pacífico são aproximadamente zero. — Nenhum descanso para os maus? — Algo assim. Você tem muitos talentos, Thomas, e fazer inimigos é um deles. — Ninguém gosta da gente — disse Henri Embromador. — Nós nem ligamos. IdrisPukke olhou para ele. — Você está sendo mais irritante do que o normal, Henri. Eu me pergunto se talvez você não gostaria de parar com isso. — Ele voltou sua atenção para Cale. — Você demonstrou ser um grande tático, mas a hora das táticas está acabando. Aonde você vai? Essa é a questão
para você, agora. Mas Cale era só um garoto, no fim das contas, nem imaginava aonde estava indo e jamais imaginou. No dia seguinte, Hooke chegou com três dos seus novos canhões: grandes cilindros espessos de aço, em princípio iguais às suas invencíveis armas de mão, mas tão resistentes que podiam disparar uma bola de ferro do tamanho de um melão pequeno. Demorou várias horas montar os canhões em suas feias armações de madeira e calcular o ângulo para o primeiro ataque às muralhas do Santuário, que eram tão fortes porque as pedras haviam sido cimentadas com uma mistura feita de farinha de arroz, que endurecia como o chão do inferno. Confiante no êxito, Hooke providenciara para que os três canhões fossem disparados por homens usando armaduras especialmente acolchoadas. O exército que se reunira para assistir se aproximou tanto que a ignição teve que ser adiada enquanto eles eram empurrados para trás, um processo tão trabalhoso que Cale decidiu permitir que ficassem. A mente mais sábia de Hooke prevaleceu, e finalmente os soldados da assistência recuaram o suficiente para que ele se satisfizesse de que a ignição poderia prosseguir. Os três homens em suas armaduras especiais avançaram, pesadões, com suas tochas na direção dos canhões e acenderam os pavios. Houve um curto chiado de pólvora, e então uma explosão monumental e quase simultânea, que estourou dois dos canhões em doze pedaços, matando os três homens nas armaduras e atingindo a multidão de soldados, ceifando mais oito. O terceiro canhão disparou como deveria e atirou a bola, que bateu na muralha do Santuário e simplesmente ricocheteou, deixando uma marquinha. O cerco ao Santuário não teria um final rápido. Mas se o cerco não tivesse um final rápido ou mesmo num tempo razoável, era difícil ver como Cale poderia evitar seu colapso. Com o inverno chegando, ele teria que dispersar o exército antes que este desmoronasse pela falta de comida, de água e do ímpeto necessário para manter grupos tão disparatados — previsivelmente, o Novo Exército Modelo e os lacônicos já se odiavam — no campo de batalha em condições tão hostis. Até Cale ficou surpreso ao perceber a pouca segurança que seus grandes triunfos dos últimos meses trouxeram. Em muitos aspectos, ele não estava muito mais a salvo do que, por exemplo, depois que Deidre matara os Dois Trevors. Ele esperava atingir uma posição de poder que oferecesse um descanso, uma defesa, um abrigo, mas podia ver que, embora tivesse mesmo poder, muito poder, ele não era feito do material sólido que Cale imaginava. Ele achava que o poder seria como uma muralha, mas não era: era como alguma outra coisa, que ele não saberia descrever. Mas por mais fugidia que fosse a questão de quão poderoso o poder realmente era, Cale tinha claramente muito, e por isso foi capaz de fazer uma grande bobagem. Ele se tornara obcecado por conhecimento e temia nunca tê-lo em medida suficiente. Para ele, era como a chupeta que via na boca dos bebês. Cale percebera desde o início que a informação era uma coisa estranha: facilmente você poderia acumulá-la em demasia, ou a maior parte dela estaria errada, ou, até pior, correta, mas de forma incompleta ou enganosa. Mesmo assim, ele se considerava, por alguma razão, um bom peneirador desse material e aprendera a jamais confiar numa única fonte, nem mesmo aquela que ele mais valorizava no mundo: IdrisPukke.
Era verdade que ele sentia certa vergonha por isso, mas não o suficiente para mudar. A mais importante dessas alternativas era Koolhaus, que ficava ainda mais desdenhoso e desagradável quanto mais conseguia demonstrar seus dotes intelectuais superiores para o mundo. Para Koolhaus, não bastava estar certo, alguém também tinha que estar errado — e ele queria que a pessoa soubesse. Era uma fraqueza, talvez muito prejudicial, além do seu entendimento emocional de o mundo ser um tanto tosco. Apesar disso, como fonte e avaliador de informações, ele era inestimável. Também havia Kleist. A espionagem era o tipo de trabalho no qual ele era bom e que o mantinha ocupado: era o suficiente para distraí-lo, até certo ponto, do fato de que ele estava perigosamente perto do punhal afiado ou do caro narcótico que o faria dormir para sempre. Kleist ainda não estava pronto, mas pensava muito nisso. Aguentou muitas noites amargas se consolando com a ideia de que podia pôr um fim em tudo. E havia Simon Materazzi. Cale lhe dera a liberdade de ir aonde quisesse. Simon podia lhe contar o que acontecia nos acampamentos e nas ruas. Foi Simon o primeiro a lhe comunicar que os bonecos de Cale estavam funcionando para elevar o moral, e o primeiro a avisá-lo quando as incontáveis derrotas e a carnificina que se seguia desmoralizaram as tropas a tal ponto que elas não conseguiam mais trabalhar. Mas a essa altura Hooke já havia aperfeiçoado e fabricado centenas das armas que iriam mudar tudo e dar aos homens a única coisa que tornaria desnecessária a manipulação de sua confiança: o sucesso. Foi tanto de Koolhaus quanto de Kleist que Cale recebeu a mesma informação quase ao mesmo tempo, e de IdrisPukke pouco depois: Arbell Materazzi recebera permissão para partir rumo à proteção da Hansa. Ele ficou revoltado e chocado em sentir o quanto doía ler que ela estava indo embora. Até ele se dava conta da imbecilidade que era achar que ela o estava traindo novamente. Ele nunca havia parado, na verdade, de pensar nela. Cale percebeu, e essa era a prova, que ela nunca pensava nele, a não ser como alguém a ser evitado. Nenhum volume de raiva de si mesmo pela imensidade da sua estupidez conseguia impedir seu coração infantil e inútil de gritar, encobrindo sua fúria: Como ela pôde? Como ela pôde? Se você o despreza ou acha sua fraqueza detestável, ou mesmo apenas irritante, não sente mais do que ele mesmo sentia. Ela era uma infecção em sua alma, assunto encerrado. A idiotice do que ele fez em seguida era óbvia, para ele, já enquanto o fazia: escreveu para Kleist e mandou que ele convocasse quantas tropas da guarnição do Novo Exército Modelo na Leeds Espanhola fossem necessárias para prender Arbell e trazê-la de volta para o Santuário. — Idiota do caralho! — disse Kleist ao ler a ordem. Mas pelo menos isso lhe dava algo interessante para fazer. — Windsor tem um caranguejo. — É mesmo? Que azar — disse Fanshawe. — Tem certeza? — Pediu que um dos charlatães o examinasse. É um homem morto. — Suponho que seja uma maré de azar — disse Fanshawe. — Talvez Windsor visse isso de outra forma — disse Ormsby-Gore, que não gostava de Fanshawe. Ele falava demais e tinha um jeito diplomático de lhe dizer o que fazer que, Ormsby-Gore desconfiava, não era tão diplomático quanto parecia. O que na verdade eram ordens vinham fantasiadas de “Eu me pergunto se não seria boa ideia se...” ou “Posso estar
enganado, mas talvez valesse a pena tentar...” e assim por diante. Os lacônicos diziam o que precisavam dizer com o menor número possível de palavras, um hábito que Ormsby-Gore levava a extremos. O jeito reticente de Fanshawe de dar ordens dava a impressão de que ele estava se divertindo à sua custa. — Mesmo assim, você precisa admitir — disse Fanshawe — que é conveniente, e ele se ofereceu como voluntário. O caranguejo, um tumor que crescia no pescoço e que diziam se assemelhar a esse crustáceo, era uma doença que afligia os lacônicos do sexo masculino. Cerca de um em cada cinquenta desenvolvia essa condição, que seus inimigos atribuíam a todo tipo de costume lacônico, desde a horrorosa sopa — feita de sangue e vinagre — até enrabar garotinhos em excesso. Como a doença era invariavelmente fatal, e enfermidades demoradas, na sociedade lacônica, eram notáveis por sua inexistência, mandava a tradição que qualquer um que a contraísse se oferecesse para uma missão suicida, como um meio de tornar-se útil. — É muito grave? — Grave. — Mas temos algum tempo? — Acho. — Talvez não seja necessário esperar tanto. — Ele se calou, esperando que Ormsby-Gore fosse obrigado a falar. Fanshawe reconhecia que isso era infantil, mas lhe proporcionava um prazer considerável. — O que você acha? Uma pausa. — Seu território. — Mesmo assim, estou muito interessado em ouvir sua opinião. — Aja — disse Ormsby-Gore, não porque acreditava que eles deveriam assassinar Cale imediatamente, mas porque isso lhe oferecia a chance de usar o menor número possível de palavras. — Sabe, Ormsby-Gore, você pode ter razão. Aqueles canhões dele eram uma bela duma porcaria. Que cauchemar! Você não acha? — Não falo francês — disse Ormsby-Gore. — Entendo o que quer dizer — concordou Fanshawe. — Muitas vezes já lamentei saber falar. Ele não tinha o mínimo interesse pela opinião de Ormsby-Gore, mas a questão de quando matar Thomas Cale era um problema mesmo assim. Ao ouvir rumores sobre a chegada de Hooke, ele teve praticamente certeza de que algo como os canhões seria apresentado. Se eles tivessem funcionado e o Santuário caísse rapidamente, na confusão poderia ser possível, até provável, que uma flechada nas costas disparada por um Redentor não despertasse suspeitas. Os suíços não procurariam uma explicação e, com Cale morto, voltariam a dar as ordens no Eixo. Só havia o Novo Exército Modelo para se preocupar — eles odiavam os lacônicos, e se houvesse qualquer pista do envolvimento deles na morte de Cale, haveria problemas, especialmente se eles fossem instigados por IdrisPukke e aquele garoto gostosinho, o tal do Henri. Mas, se planejadas com cuidado, as circunstâncias poderiam não despertar suspeita nenhuma. Que azar, lencinhos para todos. O problema dos cercos era que,
quando você se via envolvido num daqueles, o que acontecia a maior parte do tempo era rigorosamente nada. Matar Cale e tentar fazer com que parecesse outra coisa era quase impossível de se fazer impunemente quando quase nada estava acontecendo. O surgimento de Windsor e seu caranguejo eram um benefício inesperado, porque Windsor não esperaria sobreviver à ação — mas aquele era um risco maior do que Fanshawe estava disposto a correr. Uma oportunidade poderia surgir, mas ele decidiu esperar.
35 — VOCÊ ESTÁ PRESA. Kleist ficou bastante satisfeito com o modo como usou a ponte sobre o Rio Chess para dividir a escolta de Arbell Materazzi em duas. Não que tivesse feito muita diferença se eles os tivessem abordado armados só com toalhas molhadas. Aqueles eram garotos. O filé dos Materazzi morrera quase todo em Bex. Os poucos que restaram foram rejeitados por Cale e enviados para vigiar Redentores no campo de concentração de Tewksbury a fim de evitar qualquer possibilidade de algum deles se distinguir em combate. Por mais que Cale devesse a Vipond, ajudar a promover um ressurgimento dos Materazzi não seria parte do pagamento. — Pela autoridade de quem? — Arbell estava com um jovem de fala mansa. — É o sr. Kleist, certo? — E você é? — Henry Lubeck, cônsul da Hansa. — Você pode ir, Lubeck. — Sinto muito, sr. Kleist, mas não respondeu a minha pergunta. — Seja um bom menino, não se meta e caia fora daqui. — Tudo bem, sr. Lubeck — disse Arbell. — Essa pessoa é uma das criaturas de Thomas Cale. Tem um mandado judicial, naturalmente? Kleist pegou um pedaço de papel e um lápis — naqueles dias, ele sempre precisava anotar as coisas —, escreveu “Você está presa” e assinou. Quando ia entregar para ela, parou. — Preciso de uma acusação. — Ele pensou por um momento e escreveu: “Por evasão fiscal.” — E a minha escolta? O que vai acontecer com eles? — Serão desarmados e virão conosco. Vamos soltá-los daqui a alguns dias. — Aonde vão me levar? — É surpresa. Mas não se preocupe, vai achar interessante. Pode aprender alguma coisa. Peça ao seu pessoal pra não fazer nenhuma bobagem. Daqui a cinco minutos partimos. Uma coincidência é algo peculiar. Todos sabemos que, para cada vez que encontramos algum conhecido num lugar inesperado, deve ter havido cem desses encontros em nossa vida que não aconteceram por pouco — aquele amor perdido passou a 20 metros em vez de dois; ou passou a dois metros, mas por acaso estávamos olhando para o outro lado. E por aí vai. Cada coincidência implica centenas de quase-coincidências quase acontecendo, só que não. Há algo desagradável na perda de todas essas oportunidades de algo maravilhoso que poderia ter mudado nossa vida, não fosse por alguns metros ou um olhar distraído. O acontecimento quase maravilhoso de Kleist naquele dia foi que sua esposa Daisy e seu filho estavam na caravana de Arbell, onde agora teriam que ficar por no mínimo três dias. Não era, no entanto, um acaso totalmente formidável ela estar ali. Daisy havia sido recentemente dispensada como faxineira da cozinha de uma família de comerciantes por roubar hortaliças — não uma ou duas cenouras e alguma batata, mas sacos delas. Depois que ela se fora, eles descobriram que seus furtos se estendiam a pequenos, porém valiosos, itens de joalheria. Por causa disso, a Hermandad começou a procurar Daisy e ela percebeu que era hora de sumir. O
problema era que ela não tinha nenhuma habilidade útil — era uma faxineira inútil — e tinha um bebê, e ninguém estava saindo da Leeds Espanhola; com o front da guerra indo cada vez mais para o oeste, todos estavam só voltando. Depois de vários dias de ansiedade, sem querer correr o risco de topar com a Hermandad nas portas da cidade, ela se viu obrigada a subornar a cozinheira do séquito de Arbell para empregá-la como lavadeira sem salário. Isso ao menos as tirou da cidade, e depois que elas saíram, fazia sentido continuar sob a proteção da caravana. Havia boatos totalmente falsos sobre quintas-colunas Redentoras. Farta de trabalhar sem salário, ela estava planejando desaparecer do séquito de Arbell no meio da noite, levando todo item valioso no qual pudesse pôr as mãos, mas a chegada do Novo Exército Modelo pusera um fim nisso. Agora era perigoso demais tentar fugir. Alguém poderia achar inevitável que numa caravana de somente duzentas e poucas pessoas, a maioria delas soldados, um encontro com seu marido que ela imaginava falecido acabasse acontecendo. Mas ela fazia questão de ficar na moita (só por segurança), e até quando foi obrigada a sair da carroça das lavadeiras, ela estava no fim da fila, para que ninguém tivesse que ver os serviçais mais humildes cumprindo suas tarefas nojentas. Façam suas apostas, então, no grande jogo sempre sendo jogado pelas nossas costas — para Daisy, uma vida de sombria incerteza, para Kleist, uma morte solitária. Lancem os dados, girem a roleta, embaralhem as cartas. Joguem. Kleist passara o primeiro dia cavalgando na dianteira, confortavelmente entorpecido, o tempo quente, a mudança constante de cenário um narcótico para sua cancerosa agonia. O desespero, com seus cinquenta tons de cinza, pode dar à alma dias desolados como aquele. Ele só foi para o fim da fila uma vez, quando Arbell estava terminando seu jantar. Deixou de ver Daisy tirando a louça suja por menos de dois minutos. No dia seguinte, alguém gritou a ordem de parar e ele percorreu a fila para ver o que estava causando o atraso — um raio quebrado numa velha roda de carroça. Daisy havia sido enviada para trazer água para os nobres, e ela chegou exatamente quando Kleist, vendo que teria que esperar até a roda ser consertada, se virava para voltar para a dianteira. Ela teve um breve, porém bem claro vislumbre dele. Mas ele mudara; estava magro, quando já fora atraente e vigoroso, à sua maneira tranquila. E, claro, estava morto havia muito tempo nas ravinas e nos barrancos das colinas Quantock. Como ele podia ser esse figurão a cavalo, com o poder de fazer até os aristocratas se calarem, para variar? No terceiro e último dia, os acompanhantes de Arbell foram autorizados a ir embora. Kleist, depois de uma noite ruim, percorreu a caravana para verificar se ninguém que pudesse causar problemas estava ficando com Arbell. Ela tentava levar cinco pessoas do seu séquito, inclusive dois homens que claramente estavam acostumados a se defender. — Você pode ficar com duas criadas. Isso basta. — E quem vai me proteger? — Oh, nós faremos isso, Alteza. Com a gente, está tão segura quanto Memphis. — Você acha isso engraçado? — Na verdade, não, mas está calor, e é o melhor que posso fazer, no momento. Duas criadas. — Três.
— Que tal uma? Para demonstrar que a conversa havia terminado, ele virou seu cavalo e seguiu caravana abaixo, como se quisesse verificar se suas ordens estavam sendo cumpridas. Daisy estava a uns 15 metros dali, de lado e se abaixando para pegar a filha no colo, pois ela ficava tentando fugir e se meter embaixo das rodas das carroças em movimento. Desta vez, ele viu o rosto de Daisy muito bem, mas um ano pode ser muito tempo para alguém da idade dela, que havia encorpado, não era mais uma garota magrelinha, mas uma mulher jovem. Algo no modo como ela andava trazia agora lembranças desagradáveis, e se ela tivesse rido em vez de apenas sorrir para os esforços desesperados da garotinha de se livrar de seu abraço protetor, ele teria reconhecido o som em qualquer lugar. E então ela pôs firmemente encaixada em sua anca a criança, que agora esticava as mãozinhas roliças para puxar o cabelo de Daisy, que estava muito mais comprido, passou por uma carroça coberta e sumiu de vista. Não havia entorpecimento agora, e sim uma onda terrível de perda e sofrimento. Ele queria sair dali, esporeou o cavalo para voltar para a frente da caravana e fez um sinal ao cavalariço para que pusesse o comboio em movimento. Era o momento da entrada final de Kleist no lugar negro onde as portas estão fechadas e as janelas têm grades. Exceto por uma coisa. Enquanto ele se afastava cada vez mais de milhões de alegrias nas quais quase tropeçara, não conseguia esquecer completamente a imagem da jovem que lhe causara uma dor tão terrível: a familiaridade fácil de ignorar o modo como ela andava. Fazia sentido se afastar da causa de tamanha agonia. Voltar e olhar para ela só pioraria as coisas. Mas mesmo assim ele se virou para voltar. Então parou. Era bobagem. Inútil. Ridículo. Ele se virou de novo e cavalgou para longe da mulher por vários minutos, tornando impossível voltar para se machucar mais sem nenhum motivo. Longe demais agora. Então uma esperança inútil de alguma coisa, de ao menos ver um eco de tudo o que ele perdera, o fez virar-se de novo. Ele queria fugir e não fugir. Mas uma certa compostura voltou a ele, uma sensação de que estava indo ver um último e diáfano fantasma de uma lembrança da presença dela. Não se poderia chamar isso de esperança, pois Daisy estava morta, mas era um passo para longe da sala negra. Impaciente, ele galopou, agora que tomara a decisão, ansioso para ver o fim daquilo. Olhar para ela, tirar isso da cabeça e parar com essa idiotice. Ele passou a galope pelo final de sua própria caravana e seguiu para o disperso resto do desfeito séquito de Arbell. Quando ele chegou, todos o olharam desconfiados — qual era a novidade agora? Ele os ignorou e começou lentamente a procurar em meio à fila irregular. Então a viu logo à frente. Com quadris que Daisy nunca tivera, ele quase não disse nada — não era nem um simulacro distante da garota que ele perdera. Algo terrível desmoronou em seu coração. Ele virou o cavalo para longe da inutilidade — mas o animal, tendo sido virado mais vezes do que achava aceitável, empacou com mais aquele puxão desajeitado e relinchou, furioso. Daisy olhou para trás, por causa da intensidade inesperada do som, preocupada com algo que pudesse machucar a menina. Kleist a encarou. Ainda ignorante, ela o encarou de volta, desconfiada daquele jovem de aspecto peculiar, e em seguida alarmada, ao ver o rosto já pálido do rapaz ficar branco. Ele soltou um grito horripilante, como se estivesse morrendo. Então ela entendeu. Inspirou tão profundamente que parecia querer puxar ar para durar pelo
resto de sua vida. Ele já descera do cavalo e tentava alcançá-la tão rapidamente que escorregou e caiu na lama, depois levantou e escorregou de novo, totalmente ridículo. — Daisy! Daisy! Daisy! — gritava, e então a agarrou junto com a criança num abraço tresloucado. Mas ela não conseguia falar, só podia olhar. Observados pelos estarrecidos espectadores, os dois ajoelharam na lama, incapazes de chorar, e simplesmente gemeram. A menininha descobriu um brinquedo novo, puxando o cabelo do pai, casualmente aceitando a agonia feliz com que ele a apertava em seus braços. — Honra! — gritou o bebê. Embora ela não pudesse ter realmente dito isso, foi o que pareceu para os serviçais que a ouviram. — Honra! Honra! Imagine, então, a mixórdia confusa de emoções misturadas e dolorosas que chegaram ao acampamento do cerco em frente ao Santuário alguns dias depois, a alegria traumatizada de Kleist e Daisy e a raiva e o medo abrasadores de Arbell Materazzi. Cale já havia preparado instalações cercadas para Arbell, bem guardadas e longe dos enxeridos, na cidade de barracas que se formara perto das muralhas do Santuário. Ele ponderara cuidadosamente se deveria chafurdar na mesquinhez de exigir que as instalações fossem tão desconfortáveis quanto possível, ou mostrar a Arbell que ele era de confiança, por meio de sua capacidade de proporcionar luxo até num merdeiro como a estepe em frente ao Santuário. Para sorte de Arbell, ele escolhera a segunda opção. Ele também se arrependia, sem muita convicção, de sua decisão de trazê-la — poucas pessoas têm a oportunidade de fazer o que quiserem, e ele estava descobrindo outra faceta desse imenso privilégio: o poder absoluto tende a confundir absolutamente. Arbell e suas duas criadas foram recebidas por seus novos guardas a alguns quilômetros do acampamento e levadas para a sua confortável prisão de modo que ninguém as visse. Kleist nem notou: mal conseguia se conter ao levar sua esposa e filha para verem Cale e Henri Embromador. Assim que ele chegou ao posto de comando, onde os dois não conseguiam encontrar uma solução para a impenetrabilidade do Santuário, eles puderam notar uma mudança milagrosa em sua atitude, não só por ele estar feliz, depois de ficar arrasado por tanto tempo, mas porque tinha uma intensidade que quase o fazia parecer louco. Com ele vinha Daisy, de olhos arregalados, segurando o bebê sobre a anca. Em borbotões confusos de fala arrebatada, a história fluiu de dentro dele, desconjuntada e difícil de entender. Mas o básico estava bem claro: aquelas eram sua esposa e sua filha que voltavam dos mortos. Uma coisa unia os três rapazes — o assombro pelo modo como a vida podia ser loucamente generosa. Eles não cabiam em si; surpresos, não, chocados pela felicidade. Abraçaram Daisy, abraçaram o bebê, depois abraçaram Daisy de novo e exigiram a repetição de toda a história, cheios de perguntas sobre por onde ela andara e com quem. E embora ela morresse de vergonha quando Kleist contou por que ela estava fugindo de Leeds, eles ficaram encantados, em especial Henri Embromador, cujo ódio pela classe dominante da cidade só havia aumentado com sua ausência. Eles pediram comida, bebida e deram a ela um perdão oficial por todos os crimes do passado e, de tão felizes que estavam, do futuro também. E então Daisy notou que Kleist ficara completamente branco. Quando tentou segurá-lo, ele caiu da cadeira, bateu a cabeça — uma pancada feia na perna da mesa — e vomitou. Os charlatães foram chamados
e ele foi carregado cuidadosamente pelos guardas e deitado na luxuosa carroça de Cale. — Ele só está esgotado — disse o médico. — Não é surpreendente, na verdade... eu teria um troço se acontecesse comigo. Só precisa de um pouco de paz e sossego com a esposa e a filha. Vai ficar bem. — Vou deixar meu mordomo com vocês — disse Cale a Daisy. — Qualquer coisa que quiserem, basta pedir pra ele. Voltaremos mais tarde. — Melhor amanhã — interrompeu o médico. — ...voltaremos amanhã. Qualquer coisa. Eles voltaram para o centro de comando, tomaram vários drinques e fumaram. — Ele tem um bebê. Inacreditável — disse Henri Embromador. — Você acha que ele vai ficar bem? — Vai. Foi emoção demais, só isso. Mas ele não estava bem. Claro que se recuperou, por assim dizer, mas estava mexido, como dizem os irlandeses. E pelos dias seguintes continuou mexido, sempre tremendo um pouco e com a postura de alguém que acabava de levar um golpe, um olhar oprimido, atordoado. Durante uma breve visita no dia seguinte, os dois, intrigados porque não parecia fazer sentido que ele estivesse pior, começaram a perceber que podiam estar enganados: a experiência de sofrimento dos dois (brutalidade, morte, violência) podia ter sido de uma intensidade fora do comum, mas não fora necessariamente ampla. A caminho de uma reunião com o médico, o outro infeliz assunto relativo à volta de Kleist os levou a uma discussão amarga: Henri Embromador, até que Kleist mencionasse o fato superficialmente, não fazia ideia de que ele voltara para o Santuário arrastando Arbell Materazzi. — Você é um idiota do cacete. — Sim. — E agora? Cale não disse nada. — Isso pode alvoroçar muitas daquelas cobras de que você sempre fala. — Não acho. Ninguém ama a gente, mas ninguém a ama também. Os Materazzi não são nada, só um incômodo. Eles andaram em silêncio por um instante. — O que IdrisPukke acha disso? — IdrisPukke não sabe e não quer saber. — E você tem certeza disso porque...? — Ele me contou. — E o que você vai fazer com ela? — Deixá-la cozinhar delicadamente em seu próprio caldo. De fato, ele descobriu que manter Arbell detida ali perto sem precisar vê-la lhe dava uma certa calma. Ele controlava uma coisa que perdera: sabia exatamente onde ela estava. Aquilo era outra coisa no poder que ele notara, mas uma coisa boa, dessa vez: ele era como a bebida — fazia o mundo brilhar. Jantando com Henri Embromador naquela noite, Cale estava anormalmente silencioso. Depois de meia hora sem falar, olhou para Henri Embromador e
perguntou casualmente: — Você acha que eu sou louco? — Sim — disse Henri Embromador. Mas era uma pergunta esquisita, feita de forma esquisita, e ele sentiu um calafrio. A cada dia que o Eixo ficava do lado de fora do Santuário, olhando para as muralhas, o poder de Cale diminuía. Cada vez mais, a única opção era dissolver o exército, deixando um contingente para impedir que os Redentores saíssem. Mas aí os Redentores só precisariam esperar que as forças no Oeste contra-atacassem e acabassem com o cerco no ano seguinte, ou até no outro. Então poderiam reabastecer o acampamento e usá-lo como base para avançar contra o próprio Eixo. A Hansa já estava reclamando do preço de seus mercenários, a maioria de Hesse, os lacônicos não eram de confiança, e agora novas escaramuças religiosas brotavam para todo lado. Cale sabia que os Redentores tinham recursos para se reorganizar, e que Bosco canalizaria toda a sua energia para a aquisição dos meios de copiarem as armas de mão de Hooke. Se ele conseguisse, a maior vantagem de Cale estaria perdida. Para piorar as coisas, as venenosas, porém incompreensíveis diferenças religiosas que fizeram as dez igrejas da Suíça se dividirem estavam ressurgindo, agora que a ameaça dos Redentores ficava mais fraca. Evitar que esses cismas religiosos contaminassem a união do Novo Exército Modelo era uma dor de cabeça cada vez maior. Cale precisava acabar com a guerra logo, e isso significava tomar o Santuário. Mas o Santuário não queria ser tomado. Ele tinha certeza de que deveria haver um jeito, porque sempre havia um jeito. Sob a disciplina brutal de Bosco, ele fora forçado a ficar de pé por horas diante de mapas e de um tabuleiro cheio de pedaços de madeira representando tropas, cidades, rios e dificuldades impossíveis, e precisava encontrar uma saída para problemas insolúveis. Se não conseguisse, levava uma surra. Se demorasse demais, levava uma surra. Às vezes levava uma surra até quando conseguia. — Isso é para ensinar a lição mais importante de todas — dizia Bosco. Quando ele perguntava qual era, Bosco batia nele de novo. — E se eu te der umas porradas? — ofereceu-se Henri Embromador. Cale decidiu, em vez disso, que eles deviam contornar o problema. Naqueles dias, sua segurança significava ter pessoas ao seu redor o tempo todo, algo que ele odiava, por isso, levando um guarda robusto, eles saíram para cavalgar ao redor das muralhas do Santuário, tomando o cuidado de ficar bem longe delas. Ele parava e olhava, parava e olhava. Havia uma solução. Sempre havia uma solução. Ele a encontrou no Irmão Menor. — Agora que você mostrou — disse Henri Embromador —, é óbvio. E era. Era tão óbvio que estava claro que o Santuário cairia. Nada poderia impedir. Em dois meses, eles estariam dentro das muralhas. No dia seguinte, ele reuniu o número considerável de partes interessadas, cuja hostilidade mútua ficava cada vez mais exacerbada, e explicou seu plano a elas. Primeiro, sem grande habilidade, ele desenhou o contorno do platô montanhoso sobre o qual o Santuário fora construído. Seu desenho não precisava ser muito bom para que os presentes reconhecessem o que era: aquela forma assombrava os sonhos de todos.
— Está faltando algo — disse Cale. — Alguém quer arriscar? — O Santuário. — Sim, mas não isso. Outra coisa. Silêncio. Cale voltou para o desenho e acrescentou um rochedo uns 15 metros mais alto que o platô e com uma encosta do lado oposto, mas com um espaço de aproximadamente 80 metros entre o rochedo e a montanha propriamente dita. — Este pico é chamado de Irmão Menor. Este espaço entre ele e as muralhas do Santuário, nós vamos preenchê-lo. — Ele desenhou uma linha entre os dois, terminando no alto da muralha do Santuário. Salas gemem? Aquela gemeu. Como Henri Embromador dissera, depois de mostrado, ficava óbvio. — O espaço é enorme. Vai levar anos — disse alguém. — Vai levar um mês — disse Cale. — Pedi que o sr. Hooke calculasse. — Esse seria o sr. Hooke que matou oito dos meus homens com seu monte de merda explosivo? — Sem Hooke — disse Cale —, a maioria das pessoas nesta sala estaria apodrecendo silenciosamente na lama do Mississippi. Por isso cale essa boca. — Então ele deu os detalhes dos cálculos de Hooke: o volume de carrinhos de terra e o número de homens que eles tinham para carregá-la. — Os arqueiros deles vão nos alvejar às centenas. — Vamos construir tetos de proteção para que eles trabalhem embaixo. — Vão jogar pedras do alto da muralha também; os tetos vão ter que ser fortes pra cacete. — Se você está me dizendo que soldados morrerão, concordo, morrerão. Mas podemos trabalhar do alto do Irmão Menor também, se for preciso. No fim das contas, é só encher um buraco. Quando terminarmos, eles estão acabados. Mais tarde, Ormsby-Gore e Fanshawe discutiram os acontecimentos do dia. — Meus homens são soldados, não operários, cacete. — Não seja tão chato, querido — disse Fanshawe. — Estou feliz como em todos os meus aniversários somados. Ele realmente é uma coisinha esperta. Pena que tem que morrer. O problema dos pessimistas apocalípticos é que cedo ou tarde eles acabam tendo razão. Não importa qual grande empreitada você comece, as coisas sempre vão dar errado. Foi assim com a tentativa de preencher o espaço entre o Irmão Menor e o Santuário. A prevista chuva de flechas podia ser neutralizada com passarelas cobertas, mas elas eram facilmente esmagadas com pedras que eram muito mais pesadas do que o esperado, porque os Redentores, assim que viram o que se pretendia fazer, criaram um dispositivo de lançamento, baseado na catapulta, capaz de arremessar rochas de várias toneladas a 60 metros das muralhas. Nada que o Eixo pudesse construir aguentaria um peso daqueles caindo daquela altura. Ninguém, é claro, era tolo o suficiente para dizer “eu avisei” na cara de Cale, mas se palavras fossem neblina, ninguém conseguiria enxergar nada no acampamento. O problema foi resolvido em poucos dias e envolveu simplesmente mais esforço. Barris de pedras e cascalhos eram levados até o alto do Irmão Menor e jogados lá de cima. Era uma
suadeira desgraçada, de desancar e causar estiramentos, mas funcionou. Quando Hooke inventou um trilho sobre o qual vagões podiam ser puxados morro acima usando contrapesos, a velocidade nem aumentou muito. Dia após dia, dia após dia, o espaço se enchia. Mesmo que fosse lento, cada membro do fracionado Eixo podia ver o progresso e também o inevitável resultado ao qual esse progresso estava levando. A promessa de sucesso trouxe a harmonia, de certo modo. Os suíços ficaram mais pacientes e adiaram seus planos de impeachment e evacuação rápida até depois que o Santuário caísse. Até os lacônicos começaram a fingir que tratavam seus aliados como iguais: Fanshawe queria ver o Santuário derrotado, e com isso ter a oportunidade de acabar com Cale sem ninguém fazer muitas perguntas. Toda noite, Cale andava até as instalações onde mantinha Arbell. Às vezes, a tentação de entrar era quase insuportável, mas os sonhos que tinha com ela o impediam. Eles se passavam em vários lugares diferentes que ele não reconhecia (Por quê?, ele pensava. Por que não lugares conhecidos?), mas eram sempre com ele andando, se esgueirando como o comerciante de tecidos lunático da ala psiquiátrica do Priorado, que fora abandonado no altar pela mulher que adorava e passava os dias chorando e perguntando a todos se a viram. Mas a única coisa constante em seus sonhos era a expressão no rosto dela quando, com o coração cheio de esperança temerosa, ele se aproximava. O modo como ela o olhava já era ruim o suficiente nos sonhos, sem ser visto na vida real. Por isso ele observava a luz quente dentro da tenda e as sombras se alongando e diminuindo com os movimentos dela — embora ele soubesse que também podiam ser só as criadas cuidando do menino ou penteando o cabelo dela. Ele tentava evitar ir lá, claro, e às vezes conseguia, mas com uma raridade patética. Ele se acostumara muito, de fato, com o conforto e o isolamento de sua aconchegante carroça, e para substituí-la destacara vários carpinteiros experientes e ex-tapeceiros transformados em soldados, que teriam sido mais bem aproveitados no cerco, para criar algo ainda mais luxuoso. Kleist causava preocupação. Ele estava ao mesmo tempo indizivelmente feliz com a volta à vida de sua esposa e filha, e também despedaçado pelas crueldades que a precederam. O ímpeto de uma coisa não conseguia afetar o peso da outra. — O que ele tem? O médico deu de ombros, como que para indicar que era óbvio. — Ele foi criado nesse lugar horrível. — Nós dois também — disse Henri Embromador. — Deem tempo ao tempo — disse o médico. Houve um silêncio difícil. — Desculpem, falei demais. Não queria... hã... ser indevidamente alarmista. — Mas ele quase falara a sério, só não queria ter se expressado tão sem rodeios. “Da madeira cheia de nós da humanidade, nada reto jamais foi feito” era a sua filosofia; se você entortasse uma muda ainda jovem, era óbvio que ela cresceria ainda mais deformada. Por mais que ele ficasse encantado com suas metáforas florestais, teve bom senso suficiente para podar aquela. — O que eu... quis dizer é que, obviamente, as pessoas são afetadas pelo passado, mas é igualmente importante reconhecer que até as mesmas doenças físicas afetam pessoas diferentes de maneira diferente; muito mais, então, as doenças mentais. — Os dois garotos só olhavam para ele. — Quero dizer, até as pessoas mentalmente mais fortes têm um limite para o número de choques
que podem sofrer. O sr. Kleist sofreu o choque de ser criado nesse lugar, depois o choque delicioso, mas mesmo assim um choque, de se apaixonar, se casar e ser pai. Então o choque de descobrir que as duas morreram e foram queimadas. Depois a tortura que vocês me contaram, e ser levado às raias da morte da forma mais dolorosa e revoltante. — Mas agora ele as tem de volta — disse Henri Embromador, desesperado para que Kleist ficasse bem. — Mas foi apenas mais um choque, entende? — Não, não entendo — disse Henri Embromador. — Eu também fui criado aqui. Estava na cela com ele na casa de Kitty das Lebres. Tudo bem, não perdi esposa e filha, mas... — Mas o quê? Ele não conseguia pensar numa objeção — veja o que aconteceu, até com Cale. O médico ia sugerir que Henri Embromador tentasse, no futuro, levar uma vida mais tranquila, só por segurança, mas teve a sabedoria de guardar o comentário para si, dessa vez. — O que devemos fazer com Kleist? — perguntou Cale. — Ele precisa de calma. Tirem-no daqui, para começar, e levem-no para algum lugar sem nenhuma tensão ou desarmonia. Cale sorriu. — Se eu conhecesse um lugar assim, eu mesmo iria. — Isso provavelmente seria boa ideia — o médico não conseguiu deixar de dizer. — Aquele monte de bosta do Bose Ikard e seus amiguinhos querem pegar a gente — disse Cale para Kleist e Daisy. — É hora de alguns de nós não estarem aqui. Nenhum dos dois, cautelosamente, disse nada. — Tem sempre alguém querendo pegar você, não tem? — disse Daisy. — Oh, de fato, sempre tem, sra. Kleist. Mas os suíços controlam todo o nosso dinheiro. Queremos que Kleist pegue tudo o que ele possa carregar e ponha fora de alcance... vá para algum lugar onde possamos nos aposentar quando o balão subir. — O balão, ou balon, era uma bandeira vermelha usada pelos Redentores para sinalizar que um ataque era iminente. — Onde? — perguntou Kleist. — Estávamos pensando em algum lugar perto do mar. A Hansa é bem acolhedora com os ricos. E Riba está em dívida conosco. — Ela sabe disso? — indagou Daisy. — Meu marido me contou que, quando vocês estavam no deserto, ele sugeriu que vocês a deixassem lá. — Ela tem razão, ele sugeriu — disse Henri Embromador. — Mas nós nunca contamos isso pra ela — disse Cale. — Além disso, Riba foi a causa de tudo. Ela sabe que nos abandonou com Kitty, então esta é a chance de ela se redimir. — Por que não mandar Henri Embromador? — disse Kleist. — Ela não vai se importar em ajudá-lo. — Eu preciso ficar aqui. — É? — disse Kleist. — Por quê? Não houve a menor hesitação. — Uma noite antes de atacarmos o Santuário, eu vou entrar à força para tomar os aposentos onde as garotas são mantidas. Portanto, você é realmente a única pessoa que
pode fazer isso. Além disso, você é o único de nós três que tem esposa e família. E assim, ficou decidido. Kleist voltaria para a Leeds Espanhola e, com a ajuda de Cadbury — Cadbury também não via a hora de pôr algum dinheiro a salvo do perigo —, sairia da Suíça levando todo o dinheiro dos três e tudo o que eles pudessem vender até lá. — Você foi meio duro com Riba — disse Henri Embromador depois que Kleist e Daisy saíram. — Vou espremer Riba até a última gota, se precisar, e ainda não seria o suficiente. Houve um silêncio mal-humorado. Foi Cale que decidiu ser apaziguador. — Gostei do raciocínio rápido quando ele perguntou por que você não ia. — Não, não foi. — Quê? — Não, não foi raciocínio rápido — disse Henri Embromador. — É o que vou fazer mesmo. — Não seja imbecil. Ele já deve ter matado todas há meses, anos até. — Não acho. — Baseado em? — Baseado em que eu não acho. — Não. — Como assim? — Não não está claro o suficiente? — Não estou pedindo sua permissão. — Olhe aqui, eu posso ter deixado passar alguma ideia idiota sua de que nós estamos em pé de igualdade... ninguém mais acha isso. Você vai fazer o que eu mandar e pronto, cacete. — Não, não vou. — Vai, sim. — Não, não vou. Esse bate-boca continuou por algum tempo. Houve ameaças de Cale de mandar prendê-lo até o assédio terminar e convites de Henri Embromador para Cale socar as ameaças no olho do cu. Mas o que desfez o impasse foi um apelo ao coração de Cale, aquele objeto tão peculiar. — Annunziata, a garota de que te falei... eu a amo. — Não era verdade. Ele gostava imensamente dela, mais do que das outras garotas, embora gostasse imensamente delas também. Por que o desejo de salvá-las era tão intenso, ele não saberia dizer. Mas existia. Ele entendia melhor a alma de Cale do que a própria. Todos têm um fraco sentimental por alguma coisa, até, ou especialmente, os perversos. Dizem que Alois Huttler tinha dificuldade para não chorar quando via um filhotinho de cachorro, e que tinha em seu quarto um retrato de uma menininha dando leite a um carneiro por um chifre. De qualquer forma, Cale é que não podia negar o poder do amor, considerando o quanto esse sentimento possuía sua própria alma. Afinal, a fonte de muita da sua autopiedade era ele ter arriscado a vida tão loucamente para salvar Arbell. Dois dias depois, Kleist e Daisy estavam perfilados em seu comboio fortemente protegido, com Cale e Henri Embromador se despedindo deles.
— O que me impede de sumir no mundo com o dinheiro? — perguntou Kleist, com as mãos trêmulas como um velho. — Porque — disse Cale — você pode confiar na gente. — Confiar em vocês? — disse Kleist. — Ah, é. Confiar em vocês. — Do que vocês estão falando? — perguntou Daisy. — Não entendo. — Depois eu conto. — Escrevi para Riba — disse Henri Embromador. — Ela vai ajudar. — E se não ajudar? — A sra. Kleist parece ter a cabeça no lugar. Vocês têm dinheiro, darão um jeito. — Obrigado — disse Kleist, e parecia estar agradecendo algo em particular, mas Cale não sabia ao certo o quê. Ele deu de ombros, sem jeito. Segurando a garotinha no colo, Daisy beijou os dois no rosto, mas não disse nada. Então Cale e Henri Embromador os viram ir embora, uma experiência estranhamente desoladora para ambos.
36 NAS DUAS SEMANAS SEGUINTES, O ISTMO ARTIFICIAL QUE PARTIRA DO IRMÃO MENOR SE APROXIMOU DO ALTO DAS MURALHAS DO SANTUÁRIO, ENQUANTO HENRI EMBROMADOR PRATICAVA ESCALADAS NO ESCURO COM SEUS CEM VOLUNTÁRIOS. UM HOMEM MORREU NA PRIMEIRA NOITE, GRITANDO AO CAIR, UM ACIDENTE BARULHENTO QUE SIGNIFICARIA A MORTE PARA TODOS ELES, SE AQUELA FOSSE A MISSÃO REAL. UMA ESCALADA DAQUELE TIPO SÓ SERIA POSSÍVEL NA FASE DA LUA CERTA — SE ELES PUDESSEM ENXERGAR BEM DEMAIS, TAMBÉM PODERIAM SER VISTOS BEM DEMAIS. POR SORTE, A LUA CERTA COINCIDIRIA COM O FIM DA CONSTRUÇÃO DA RAMPA. DECIDIU-SE ESCALAR EM PEQUENOS GRUPOS DE DEZ, MAIS PARA A LATERAL DO SANTUÁRIO, ONDE OS ESCALADORES FICARIAM ESCONDIDOS DE QUAISQUER VIGIAS. ELES SE REUNIRIAM NA MONTANHA, AO PÉ DAS MURALHAS, E SUBIRIAM QUANDO ESCURECESSE; UM DOS ALPINISTAS DE ARTEMISIA LEVARIA UMA CORDA ATÉ O TOPO E PUXARIA UMA ESCADA DE CORDA CRIADA POR HOOKE. — É a coisa mais idiota que eu já vi — disse Cale. — Cuida da sua vinha — respondeu Henri Embromador. À medida que a rampa se aproximava, novamente os construtores ficavam mais vulneráveis às flechas, setas, pedras e rochas lançadas pelos Redentores — um ataque tão terrível quanto era desesperado. Retardava o avanço, mas não era o suficiente, como os Redentores deviam saber. Então, a seis metros da muralha, a construção parou. Completá-la iria permitir que os Redentores a atravessassem para atacar. Hooke providenciara uma espécie de ponte de madeira, com teto e laterais cobertas, de uns 12 metros de comprimento. Quando Cale decidisse atacar, a ponte seria empurrada pela rampa para fechar o vão, como uma prancha sobre um rio. Era larga o bastante para comportar oito soldados ombro a ombro. Hooke também providenciara uma maneira desagradável de expulsar quem ficasse na frente da ponte, uma variação do fogo grego. Ele construíra várias grandes bombas que borrifariam uma grande área à frente dos soldados que atravessavam, atingindo todo Redentor num raio de cinquenta metros com fogo líquido. — Deus me perdoe — disse Hooke. — É só lembrar que eles fariam alegremente a mesma coisa com você... já teriam feito, se eu não tivesse salvo o seu pescoço. — Devo me sentir melhor por isso, por não ser pior do que eles? — Sinta-se como quiser. Eu não estou nem aí. Os últimos dias antes do ataque por cima da rampa passaram num ritmo febril, uma sensação desagradável para Cale e Henri Embromador, como se eles estivessem desabalando rumo a algo fora do seu controle. Agora que estava para acontecer, o que eles iam fazer lhes parecia inacreditável. Iam voltar para o lugar que mais odiavam em todo o mundo, mas que os criara, e varreriam tudo lá dentro. Faltando dois dias, estavam enlouquecidos de agitação — porém, estranhamente, também controlados e silenciosos. IdrisPukke, que voltara para testemunhar a tomada do Santuário, ficava nervoso perto dos
dois garotos, embora por si só já estivesse bastante tenso. — Eles lembravam o velho adágio — ele disse mais tarde a Vipond. — As casas assombradas são as mais silenciosas, até que o demônio se levanta. Se houvesse alguma umidade no ar, diriam que uma tempestade estava a caminho. À noite, os gafanhotos calaram seu costumeiro zumbido pulsante. Parecia haver menos moscas tentando chegar à saliva da boca dos soldados. As pessoas que podem se dar ao luxo de levar vidas sossegadas desdenham o melodrama, a ação sensacional, os acontecimentos exagerados destinados a emoções mais grosseiras do que as suas. A vida que elas levam, essas pessoas pensam, é real: a normalidade do dia a dia é como as coisas realmente são. Mas é evidente para qualquer um com um mínimo de bom senso que para a maioria de nós, a vida, se ela se parece com alguma coisa, é com uma pantomima em que o sangue e o sofrimento são reais, uma ópera na qual os cantores cantam fora do tom, uivando sobre dor, amor e morte, enquanto a plateia joga pedras em vez de frutas podres. A delicadeza e a sutileza são o grande escapismo fantástico. Era fim de tarde quando Henri Embromador foi ver Cale, antes de começar a escalada da muralha do Santuário. — Não consigo acreditar — ele disse — que vou tentar entrar de volta naquela merda. — Cale olhou para ele. — Eu queria acertar os detalhes do seu funeral. — Ah, é? — Pensei em embrulhá-lo num cobertor de cachorro e jogá-lo no esgoto da Parede Oeste. Se a gente conseguir uma banda, vamos tocar “Eu Tenho um Belo Monte de Cocos”. Você vai gostar. — Você não é — disse Henri Embromador — uma pessoa muito legal. — Estou dizendo pra você não fazer essa porra desse resgate da porra, não estou? Aquelas garotas estão mortas, e se você for pra lá, vai ficar tão morto quanto elas. — Fico comovido com sua preocupação. — Não me preocupo. Nem pense nisso. Só sinto pena de você, por isso suportei você todo esse tempo. — Se eu não for, não vou conseguir dormir à noite. É a mais pura verdade. Tenho medo de não ir. — Você se acostuma. Pode se acostumar com qualquer coisa. E tem coisa pior do que não conseguir dormir. — Não posso desistir agora, ia pegar mal. — Eu mando prender você. — Não era uma ameaça, mas uma súplica. — Não. Não faça isso. Se depois eu descobrir que elas estavam vivas, vou odiar você. — Por quê? — Vou odiar e pronto. — Henri Embromador sorriu. — Me dá um beijinho. — Não. — Um aperto de mão, então. — E se a burrice for contagiosa?
— Em você não pega. Você vai ficar bem. — Mas você não vai. — Ele estava com raiva, agora, vendo que sua persuasão não funcionaria. — Você ainda é um Redentor, é isso. — Quê? — Oh, não é um porco imundo, não você, mas mal pode esperar pra se sacrificar por alguma coisa. Mexeram com sua cabeça, todas aquelas merdas sobre... — Ele parou, incapaz de encontrar as palavras certas. — Você é só mais um mártir, e não se preocupe, tenho um funeral de mártir preparado pra você —, vamos cantar “Fé dos Nossos Pais”... Até a morte seremos leais a ti... Você se lembra dessa porra? Quer que venha antes ou depois da canção dos cocos? — Você ensaiou esse discurso, não ensaiou? — Vá embora logo, não quero mais saber de você. — Eu vou ficar bem. Estou sentindo. — É? Tá. Tchau. — Acho que você iria comigo, se pudesse. — Não, não iria. — Você diz isso porque precisa dizer, por ser você. — Não é isso. Na mesma situação, e se não envolvesse um terrível risco pra minha própria vida, então sim, eu ajudaria você. Gosto de ver coisas boas sendo feitas, de verdade, mas seu preço é alto demais. Posso ver que sou uma decepção pra você, mas a pura verdade é que prefiro viver do que ver a justiça ser feita. E isso é verdade. Henri Embromador deu de ombros e partiu para entrar de volta no Santuário. Cale já se sentia exausto antes que Henri Embromador viesse dizer o que quer que ele tinha vindo dizer. Agora se sentia um trapo torcido. Depois de tomar a Fedra e Morfina para enfrentar Kitty das Lebres, ele começara a levar mais a sério o conselho da Irmã Wray de não usá-la. Às vezes se sentia tão fraco que parecia que ia parar de respirar. Quando eles eram mais jovens, Henri Embromador ouvira um dos Redentores dizer que um barulho alto e repentino poderia matar um gafanhoto. Eles tentaram, dezenas de vezes, mas nunca funcionou. Agora ele sentia que um barulho alto e repentino poderia facilmente fazê-lo bater as botas. Mais motivo ainda, então, para ficar longe da Fedra e Morfina. Mas ele sabia que não conseguiria passar pelas próximas 24 horas sem ela. Só mais uma vez, ele pensou. Limpe o Santuário, depois é só ir pra Hansa com toda a bufunfa, e serão sanduíches de pepino e bolo pra todo o sempre. Ele dormiu um par de horas, embora seu guarda tivesse que acordá-lo, e então tomou exatamente a dose da droga que a Irmã Wray o instruiu a tomar. Àquela altura, ele se dava conta de que ela não exagerara ao dizer que suas toxinas se acumulavam — a cada semana, agora, às vezes por meia hora seguida, ele tinha a sensação de que alguém estava fritando alguma coisa na sua cabeça. Meia hora depois, ele estava no alto do Irmão Menor, enquanto Hooke terminava de preparar seu enorme túnel de madeira para a manobra final até as muralhas do Santuário. O topo do Irmão Menor havia sido elevado em 12 metros, para que o túnel pudesse ser
empurrado morro abaixo sobre o vão entre a rampa e as muralhas que ele atravessaria, permitindo que as tropas do Novo Exército Modelo se espalhassem rapidamente e em grande número. Não havia como esconder o plano dos Redentores, então não era preciso ser adivinho para ver que eles fariam de tudo para impedir o ataque assim que começasse. Estabelecer aquela cabeça de ponte seria um negócio massacrante. Era o único ponto fraco do ataque — e Bosco não deixaria de perceber isso. O ataque começou assim que o dia clareou, para que os invasores tivessem toda a luz do dia possível. Cale esperava algum tipo de desastre, mas, embora houvesse mil decisões a serem tomadas, não haveria nenhum terremoto ou peste repentina, nenhum paraélio misterioso para perturbar os supersticiosos. Havia só um terror crescente pelo que estava por vir. Pouco antes das cinco, Hooke veio avisar que eles estavam prontos. Cale andou os últimos metros até o topo do Irmão Menor e olhou para o Santuário do outro lado. Seu coração bateu mais forte, sua cabeça parecia estar explodindo enquanto ele contemplava seu antigo lar, vendo os lugares ainda sombrios onde ele passara tantos milhares de dias com medo, horror e desolação. Tanto frio, tanta fome, tanta solidão. Ele olhou por muito tempo. Um momento tão arrasador pedia um grande grito. Mas algo chamou sua atenção dentro do Santuário, à direita. Era a ala onde as garotas eram mantidas. De sua ponta mais distante, um fio tênue de fumaça subia suavemente no ar. Ele fez um aceno mínimo para Hooke e começou. — Preparar! — exclamou um dos centuriões. — Levantar! — Agora! — Um enorme grito de FORÇA! se espalhou. A imensa estrutura tremeu, mas não se mexeu. FORÇA! Novamente se agitou, mas novamente nada. FORÇA! Dessa vez, avançou alguns centímetros. FORÇA! Agora, um palmo. FORÇA! Agora, meio metro. Já colocado sobre a encosta reforçada, o túnel deslizou com o próprio peso. Mas o que preocupava era a estabilidade, não a velocidade. Homens corriam de um lado para o outro entre a frente e as laterais do túnel, gritando uns com os outros e com Hooke, vigiando para que a brita não cedesse e o túnel afundasse ou acontecesse algum outro desastre no qual não haviam pensado. Algumas vezes precisaram parar, e alavancas de 9 metros de comprimento às dúzias foram trazidas para levantar a estrutura nos pontos em que ela afundara no chão ainda fofo. Mas não havia nenhum ataque vindo da muralha. No lugar deles, Cale estaria jogando tudo o que pudesse na cabeça dos invasores. E o tempo todo, um após o outro, incêndios começavam nas laterais do gueto onde as garotas eram mantidas. — Onde estão os Redentores? — perguntou Fanshawe quando eles foram para a cabana onde guardavam os mapas do Santuário. Lá dentro estavam meia dúzia de oficiais do Novo Exército Modelo e três lacônicos, liderados por Ormsby-Gore. IdrisPukke também estava. — Não sei, mas eles não vão fazer nada agradável, tenho certeza. — Ele decidiu mudar seu plano. — Quero que quinhentos homens seus entrem logo depois do primeiro avanço. Fanshawe olhou para Ormsby-Gore. — Você concorda? — Não foi o que combinamos — disse Ormsby-Gore. Num sentido formal, não havia soldados menos covardes do que os lacônicos. Mas em
termos práticos, era como se eles fossem um tanto pusilânimes. O problema era que requeria tanto esforço, tempo e dinheiro construir uma dessas horríveis máquinas de matar, e elas eram tão poucas, que embora ficassem felizes em morrer, não tinham tanta vontade de lutar. Cada um desses monstros era tão valioso quanto um vaso raro. Cale, ainda mais mal-humorado que de costume por causa das drogas e do que poderia estar acontecendo com Henri Embromador, fitou Ormsby-Gore diretamente nos olhos, algo pouco prudente até nas melhores circunstâncias. — Não tem acordo nenhum aqui — disse Cale. — Você faz o que eu mando, senão corto sua cabeça e a chuto do alto da montanha. Existem pessoas para as quais você pode dizer algo assim, e pessoas para as quais não pode. Lacônicos em geral, e Ormsby-Gore em particular, pertenciam à categoria daqueles que você não pode. A última sílaba da última palavra mal havia saído da boca de Cale quando Ormsby-Gore, exaltado em meio a uma já exaltada sociedade de aberrações homicidas, puxou um punhal e o cravou no coração de Cale.
Ou teria feito isso se fosse qualquer outra pessoa e não Thomas Cale, tornado ferozmente hiperativo por uma droga que tinha uma boa probabilidade de matá-lo em algum momento das próximas 24 horas. A velocidade e a força do golpe foram a desgraça de Ormsby-Gore. Errando o peito de Cale por um triz, foi virado por ele, que o puxou para si e pôs seu próprio punhal no pescoço dele. Os espectadores poderiam ter ficado petrificados pela velocidade do que acabara de acontecer, mas o que os mantinha em absoluto silêncio era a expressão tresloucada no olhar do garoto. Até IdrisPukke ficou calado, temendo que qualquer movimento ou som fizesse Cale explodir. Lá fora, havia silêncio pela primeira vez em horas. Quanto demora um segundo quando a vida ou a morte estão no recinto. Então veio um enorme SNAP! de fora, seguido por um estrondo e o grito de um engenheiro furioso. — Esses porras da porra foderam tudo, porra! Ninguém na tenda disse nada e ninguém se mexeu. Exceto Cale. Incapaz de se conter ao ouvir a exasperação dilacerante do engenheiro, ele começou a rir — não a insana gargalhada histérica do lunático surtado, mas a risada comum de alguém que percebe o absurdo de tudo o que está acontecendo. Fanshawe se arriscou. — Eu só vou tirar o punhal da mão de Ormsby-Gore — ele disse baixinho, levantando as mãos. — Você entende isso, caro colega, não entende? Ormsby-Gore olhou para Fanshawe de uma maneira que indicava que ele não entendia coisíssima nenhuma. O problema das pessoas que não têm medo da morte, pensou Fanshawe, é que elas não têm medo da morte. Portanto, ele precisava encontrar outro meio. — Acontece, querido — ele disse —, que se você não soltar o punhal, eu mesmo vou, com a permissão de Thomas Cale, puxar o meu, cortar a sua cabeça e chutá-la do alto da montanha. Para Ormsby-Gore, aquilo era bem diferente: ser executado no campo de batalha por desobedecer a uma ordem significaria uma desgraça imperdoável e infâmia sem fim para ele e sua família. Ele soltou o punhal quase tão rapidamente quanto o havia sacado. — Posso? — perguntou Fanshawe, tomando as duas mãos de Ormsby-Gore nas suas para mostrar a Cale que ele estava sob seu controle. Cale o soltou e Fanshawe ajudou OrmsbyGore a recuperar o equilíbrio, levou-o para fora e discretamente mandou quatro de seus homens prendê-lo e levá-lo embora. Ele voltou para dentro da tenda. — Posso sugerir que ele seja punido da forma que você escolher depois que o Santuário cair? Seria uma pena distrair as tropas, não acha? — Fanshawe não gostava de imaginar como os soldados lacônicos ou os éforos na sua terra reagiriam à execução de Ormsby-Gore, mas esperava alegremente que Cale estivesse morto antes que esse problema surgisse. Cale não disse nada, mal balançando a cabeça para indicar sua anuência, e então saiu para descobrir o que causara o barulho de ruptura e a queixa do engenheiro. Um grande recipiente cheio de fogo grego gelatinoso havia sido trazido para ser carregado no túnel, para o empurrão final sobre as muralhas do Santuário. O negócio era volátil e não gostava muito de ser chacoalhado. Infelizmente, ele descarrilara de um trilho no alto da rampa. Eles tentaram ajeitar o recipiente de volta no trilho usando uma alavanca de carvalho. O barulho fora causado
pela alavanca se partindo. O recipiente rolando encosta abaixo e se espatifando num monte de rochas ocasionara o xingamento desolado do engenheiro. Hooke, agora acostumado com a diferença entre um campo de batalha e um laboratório químico, já havia solicitado outro recipiente, que só precisava de alguns minutos de trabalho antes de estar rapidamente a caminho do túnel. — Você está bem? — perguntou IdrisPukke, que o acompanhara para fora. — Não vai acontecer de novo — Cale respondeu. — Provavelmente. É melhor você avisar às pessoas que seria bom não discordar de mim por alguns dias. — Não sei se isso será necessário. Não ficou claro se Cale o ouviu. — Deixei de ver alguma coisa... alguma coisa importante. — Como assim? — IdrisPukke ficou alarmado. Como todos, ele via a queda do Santuário como inevitável, por mais caro que custasse. — Por que eles não estão atacando? Já deveriam estar nos atacando. Bosco sabe de alguma coisa que eu não sei. — Então pare. — Não. — Por quê? — Mas era uma pergunta para a qual IdrisPukke sabia a resposta. — Você pediu que Henri Embromador não fosse. Eu mesmo pedi que ele não fosse, se serve de alguma coisa. Cale olhou para ele. — Se não entrarmos logo, vão fazê-lo prisioneiro. Sabe o que vão fazer com ele? — Posso imaginar. — Tenho certeza de que pode. Mas eu não preciso imaginar, porque já vi. Só que desta vez vai ser pior. Vão queimá-lo vivo. In minimus via. Um sargento o interrompeu. — Senhor, o sr. Hooke disse que o túnel está pronto para a travessia. — Espere um momento, sargento. — Ele se virou novamente para IdrisPukke. — Você é estudado. Sabe o que isso significa? — Não, não me é familiar. — Significa “Da mínima maneira”, significa que vão queimá-lo sobre um monte de varetas insuficiente pra levantar fervura numa lata d’água. Eu nunca vi isso pessoalmente. Bosco me contou. Ele disse que levou doze horas. Portanto, não, não posso parar. — Você não sabe ao certo que é isso que eles vão fazer. — Eu não sei ao certo que Bosco sabe algo que eu não sei. Ninguém sabe nada. — Se Henri Embromador estivesse aqui conosco, você pararia. — Mas ele não está. — Você sabe que se não tomarmos o Santuário antes do inverno, chegarão reforços dos Redentores antes que possamos voltar. Alguns membros do Eixo já estão voando nos pescoços uns dos outros. Os suíços querem sua cabeça quicando pelas ruas. Só Deus sabe o que vai acontecer se você fracassar aqui. — Quem disse que eu vou fracassar?
— Você. — Eu disse que não sei o que está acontecendo. — Então espere. — E se eu esperar? Imagine que agora é a hora certa. Imagine que se eu esperar, estarei lhes dando a chance de... não sei... alguma coisa que eu não pensei. E se Bosco estiver doente e esta for minha melhor chance? Ninguém sabe nada. — Você sabe o que faria se Henri estivesse aqui e não ali. — Sei? — Sim. — Pensei que você fosse avisar as pessoas pra não discutir comigo? — Não achei que eu estivesse incluído. — Bem, você está enganado. — Ele disse para o sargento: — Dê o sinal ao sr. Hooke para começar. Com alguns gritos, começou.
37 — QUERO UM FAVOR — DISSE CALE. Fanshawe trouxe os quinhentos lacônicos que Cale pedira e soube que eles entrariam imediatamente após a primeira onda do Novo Exército Modelo. Não se esperava que sobrevivessem muitos. — Um favor? Claro. Provavelmente. — Quero que cem dos seus homens substituam Henri Embromador, assim que ficar claro o que está acontecendo. — É um grande favor, um risco considerável. — Sim. Fanshawe olhou para o mapa do Santuário e seus prédios internos. — É meio que um labirinto aquilo, garoto. Se perder seria fácil e custaria caro. Mas se você os comandasse e os guiasse... Cale tinha bastante certeza de que Fanshawe andara pensando muito sobre o que faria com ele. Ele não precisava refletir muito sobre quais as probabilidades dele ou Henri Embromador saírem vivos da névoa da batalha. — Infelizmente, precisam de mim aqui, mas providenciei que três dos meus Purgadores, que conhecem o gueto melhor do que eu, levem vocês. Fanshawe pensou em recusar, não que ele esperasse que Cale fosse idiota o suficiente para concordar, mas isso pegaria mal. Se houvesse quaisquer perguntas sobre quem fora responsável pela morte trágica de Cale em algum momento das próximas 24 horas, não faria mal nenhum demonstrar para o Novo Exército Modelo que os lacônicos apoiaram seu líder numa empreitada arriscada para salvar seu melhor amigo. Fanshawe foi embora fazer os preparativos, e Cale, recolhendo IdrisPukke no caminho, voltou para o alto do Irmão Menor e para uma pequena torre que havia sido erguida no alto, para lhe dar a mais clara visão possível. Então começou. As cordas que seguravam a frente do túnel foram baixadas lentamente, e ele se transformou numa enorme ponte para cobrir o vão de 9 metros até o topo das muralhas do Santuário. Ainda não aconteceu nada. Houve uma pausa de mais ou menos um minuto, uma série de gritos indistintos, e as bombas manuais, acionadas por vinte soldados para produzir a pressão, foram preparadas para esguichar por dois minutos. Mais gritos. Uma pausa. Então as bombas foram abertas por Hooke e o líquido dos recipientes explodiu de um conjunto de oito canos, como o repuxo do maior chafariz do mundo. Hooke acendeu as oito tochas por baixo dos canos e houve um rugido explosivo, como o do juízo final, e os esguichos se acenderam num imenso arco de chamas, alcançando as paredes à frente e cem metros em cada direção. Por vinte segundos, esse pavoroso dispositivo ensurdeceu todos atrás dele — então Hooke, temendo que ele explodisse, o desligou. Por mais um minuto o líquido ardeu como o lago de fogo no meio do inferno, e então, quase como se tivesse sido soprado, o fogo desapareceu. Não houve demora; o Novo Exército Modelo, com as canelas protegidas do calor, atravessou o túnel e saiu do outro lado tão rapidamente quanto podia para tirar vantagem da devastação antes que os Redentores pudessem reagir.
— VAI DAR TUDO CERTO! DAQUI PRA FRENTE É SOPA! — FIQUEM DE OLHO, DE OLHO! — VALLON PARA O FLANCO! VALLON... ISSO! PRO FLANCO, SEU CABEÇA DE MERDA! — VOCÊS AÍ! VOCÊS! OLHEM ONDE PISAM, CARALHO! — ARMADILHA! ARMADILHA! — AQUI, IRMÃO! AQUI! Mas não havia nenhum corpo horrivelmente queimado. Não havia sobreviventes do fogo prontos para repeli-los. Os gritos pararam. Então não houve nada a não ser uma medonha solidão silenciosa para todo lado. Isso só aumentou a horrível tensão, o medo terrível dos soldados do pior e inesperado: quando, e de que maneira, viria o golpe? Eles se moviam em grupo, apertados uns contra os outros para enfrentar a luta sangrenta que viria. — DEVAGAR! DEVAGAR! DE OLHO! PRESTEM ATENÇÃO! PRESTEM ATENÇÃO! Juntando-se ao seu medo, havia a fumaça preta do fogo grego, que cobria tudo diante deles numa neblina espessa. À medida que eles avançavam, todo objeto comum assumia a obscuridade sombria de alguma ameaça hedionda, somente para se revelar uma pilha de barris ou uma estátua oferecendo bênçãos aos salvos. Por isso, uma parada foi ordenada. Dois mil homens, ombro a ombro, até os lacônicos esperando atrás deles, assustados e abalados pela terrível incerteza de algo horripilante que viria. Muito lentamente — era um dia quase sem vento — a fumaça começou a se abrir e clarear, cada nesga parecendo revelar uma ameaça que nunca vinha. Então uma pequena lufada e depois outra mais forte rodopiaram e giraram a fumaça em lindos vórtices e rolos. O vento soprou de vez e o que eles viram foi a imagem que definia as vidas que a maioria deles esperava perder naquele dia. Em todo lugar, de toda estaca, todo sarrafo em cada uma das passarelas cobertas, de traves de madeira fincadas nos pátios às centenas, para todo lugar que eles olhassem, havia milhares de Redentores pendurados pelo pescoço.
38 O NOVO EXÉRCITO MODELO JÁ ESTAVA BEM ACOSTUMADO COM MATANÇAS, ÀQUELA ALTURA, E OS LACÔNICOS ERAM, NATURALMENTE, UMA SOCIEDADE TOTALMENTE DEDICADA AOS SEUS REQUISITOS. MAS AQUILO NÃO ERA A MORTE COMO A CONHECIAM, E ASSIM, APESAR DO FATO DE QUE AQUELE ESPETÁCULO SIGNIFICAVA QUE ELES SOBREVIVERIAM ÀQUELE DIA, E AQUELA MULTIDÃO DE ENFORCADOS SEREM OS SEUS PIORES INIMIGOS, UM CLIMA DE DESCONFORTO ASSOMBRADO TOMOU CONTA DELES ENQUANTO ANDAVAM LENTAMENTE PELO SANTUÁRIO. CADA NOVO ÂNGULO, CADA PRAÇA, CADA PÁTIO, CADA PASSARELA COBERTA, CADA JARDIM DE ORAÇÕES CONTINHA SOMENTE FILEIRAS E MAIS FILEIRAS DE CADÁVERES ENFORCADOS. O ÚNICO SOM ERA O DE CORDAS RANGENDO, O ÚNICO MOVIMENTO, O LEVE BALANÇAR DOS CORPOS TANGIDOS PELA LEVE BRISA. Aos poucos eles foram entrando nos prédios do Santuário; não podiam fazer outra coisa. Em cada corredor, a intervalos de um metro na largura e no comprimento, Redentores estavam enforcados no teto, onde ganchos haviam sido incrustados no concreto. Em cada sala. Em cada escritório. Cada alcova. Cada capela. Nas seis grandes igrejas, devia haver uns mil em cada uma, numa dúzia de alturas diferentes, tão silenciosos como os enfeites pendurados na árvore da mortalidade no Dia dos Mortos. Chegou a ordem para parar, e os lacônicos e seus guias Purgadores rumaram para os recessos do Santuário, atrapalhados a cada passo pelos corpos que eles faziam balançar ao abrir caminho para o gueto e para Henri Embromador. Contra os mais veementes conselhos para ficar fora do Santuário até que ele fosse completamente vasculhado (“É óbvio, eles vão se esconder e esperar que o senhor apareça”), Cale chegou, de olhos esbugalhados pelo assombro e horror. Eles tinham razão, mas ele não aguentou esperar e, rodeado de perto pelos Purgadores (o que será que eles estariam pensando?), ele andou pelos velhos espaços, agora bizarramente transformados num abatedouro sacerdotal. Como sua alma reagiu estranhamente ao voltar ali. Não era como voltar a um antigo lar, porque ele percebeu que uma coisa que a Irmã Wray dissera estava certa: ele estivera ali no passado, estava ali agora, estaria sempre ali. Os Purgadores o levaram para um ambulacro onde haviam desocupado um espaço, tirando os Redentores enforcados, e onde ele ficaria longe dos olhos de todos. Em poucos minutos, trouxeram um garoto que um soldado do Novo Exército Modelo havia encontrado escondido numa caixa. — Ele quis dizer um confessionário, senhor — disse um Purgador. — O que você é? — perguntou Cale. — Um acólito, senhor. — Eu também era. Está tudo bem, não se preocupe. Ninguém vai machucar você. O que aconteceu aqui? O relato foi compreensivelmente atrapalhado, mas bastante simples. Bosco discursara para quinhentos de seus seguidores mais próximos e anunciara que, por causa da traição de
Thomas Cale, ele decidira remover os fiéis da face da Terra e nunca mais pensar na humanidade. Como recompensa por sua fidelidade, eles teriam licença para se unir a Deus em eterno êxtase pelo mesmo meio que o próprio Redentor. — E todos eles foram nessa conversa? — Nem todos, senhor. Mas o papa criou um grupo de conselheiros para assistir aqueles que precisavam de apoio espiritual. — Mas não você. — Eu fiquei com medo. — Agora você está a salvo. — Cale se virou para um dos sargentos do Novo Exército Modelo. — Tire-o daqui. Dê-lhe roupas novas e peça que meu cozinheiro o alimente. Mantenha-o em segurança. Pelo amor de Deus, por que não temos notícias de Henri? — Ele mandou mais dois dos seus Purgadores. Cinco minutos depois, quando decidira ir pessoalmente, por mais perigoso que fosse, Fanshawe apareceu, parecendo pouco à vontade. — O que foi? — disse Cale. — Recebi umas notícias, mas é a confusão de sempre. — Mas você soube de alguma coisa? — Você sabe tão bem quanto eu que as primeiras notícias nunca valem bosta nenhuma. — Entendo. O que é? Me diga o que você ouviu. — Como quiser. A notícia é que seu amigo está morto. Falei com alguém que disse tê-lo visto. — Ele o conhecia? Quanto? — Já o tinha visto andando por aí. Quem não viu? O lugar, aparentemente, está um inferno... você sabe como é: nada faz sentido, no início. Ele provavelmente ouviu a mesma coisa sobre você. Cale chamou seus Purgadores e estava indo para o gueto quando, de uma porta que soltava uma fumaça cinza-clara no pátio, saiu uma figura. Embora a fumaça o cobrisse e seu rosto estivesse preto, seus movimentos o revelaram imediatamente. Então Henri Embromador reconheceu Cale — e também que ele o estava olhando de um jeito peculiar. — Que foi? — perguntou ele, na defensiva. Cale olhou para ele por algum tempo. — Havia um boato de que você tinha morrido. Surpreso com isso, Henri dava a impressão de estar ponderando quão confiável fosse o boato. — Não — ele disse finalmente. Cale continuou olhando para ele. — O que aconteceu? Henri Embromador sorriu. — Pouca coisa. A gente entrou numa boa. Só matamos meia dúzia até chegar nas garotas. Agora vejo por quê. — Eles não atacaram? — Não. — E aqueles incêndios?
— A gente matou as freiras de susto. Uma delas derramou uma frigideira de gordura fervendo. O lugar pegou fogo feito um monte de feno... chamas por baixo das tábuas do assoalho e tudo. Por isso começaram a aparecer focos de incêndio por toda parte. Ficou meio assustador. — As garotas estão bem? — Ótimas. Todas elas. — Ele riu. — Bosco as mantinha com metade da ração dos acólitos. Estão magrelinhas feito palitos. — Palmitos? — É, de dentes. — Ah, achei que você tivesse dito, sabe, palmitos, de comer. Não faz sentido, palmitos, faz? — Não. — Por que será que ele não as matou? — Acho — disse Henri Embromador — que todo mundo tem um lado bom. Os dois sorriram. Cale acenou para os corpos pendurados por todo o pátio. — O que você acha de tudo isso? — Eu não acho nada — ele disse, com raiva de repente. — Já vão tarde, puta que pariu. — Então ele riu; achando graça, certamente, mas horrorizado também. — Mas eu jamais poderia prever. Bosco disse que assim eles iriam para o céu. Henri Embromador balançou a cabeça. — Já achou Bosco? — Não. Você quer achar? — De um jeito ou de outro. Talvez ele esteja no quarto. — Não é — disse Henri Embromador — uma boa ideia sair andando por aí sem se garantir. — Estou impaciente. Mesmo, não consigo esperar. Windsor, o lacônico canceroso incumbido de matar Thomas Cale naquele dia, estava se sentindo particularmente pouco apto. Ele não iria durar muito, de qualquer jeito. Vira Cale falando com Henri Embromador e tentara chegar a um lugar elevado de onde pudesse mirar direito. Vestia uma batina arrancada de um dos Redentores. Ele esperava bem mais confusão e dias de luta que lhe dessem uma oportunidade, mas agora tudo estava imóvel, e soldados zanzavam por aí aos milhares, soturnos e deprimidos com aqueles mortos pendurados; depois de toda a tensão e de tudo acabar de repente, não havia outro destino para horrível mistura de sentimentos deles, a não ser para dentro. Pouco familiarizado com o Santuário e seus truques, Windsor se perdera a caminho de um balcão com amurada que avistara, e quando chegou lá, foi só para ver Cale e Henri Embromador saindo da praça para uma incursão de reconhecimento que só podia ser considerada gravemente irrefletida. Embora, é claro, se eles tivessem sido prudentes e ficado onde estavam, Cale só teria vivido mais alguns segundos. Windsor se livrou da batina — havia muitas outras à disposição — e saiu no encalço dos dois garotos, embora não muito otimista sobre encontrá-los na imensa confusão daquele lugar. Por outro lado, agora lacônicos vagavam por todo o Santuário, então não haveria problema em
segui-los. Windsor parou só para vomitar, algo que agora estava fazendo três vezes ao dia. Não era um progresso fácil para Cale e Henri Embromador — embora os pisos estivessem desimpedidos, todo o espaço a partir de meio metro do chão estava lotado de padres pendurados, e seu avanço era lento e peculiar à medida que eles iam empurrando e se embrenhando na cerrada floresta de corpos pendentes. Como esperava, Windsor logo se perdeu, mas ao olhar por uma janela notou que, embora ele não conseguisse ver os dois garotos, eles denunciavam sua passagem com o movimento dos corpos balançando em seu rastro. Ele decidiu que seria mais rápido, mesmo fazendo várias paradas para verificar o avanço dos dois, rastejar por baixo dos padres em vez de abrir caminho empurrando-os. Isso também ocorrera a Cale e Henri Embromador, mas não só eles tinham objeções à ideia de rastejar sob os pés de seus antigos senhores, mas a verdade é que estavam gostando daquilo. A soldadesca em geral podia ter ficado intimidada pela macabra disposição dos Redentores de aceitar a morte daquela maneira tão terrível e determinada, mas Cale e Henri Embromador eram feitos de material mais resistente — aquele fim hediondo lhes parecia totalmente merecido, e melhor do que qualquer coisa em que eles mesmos pudessem ter pensado. Não era exagero dizer que, depois de superar o choque inicial, eles estavam encantados com o que acontecera, um êxtase de satisfação em saber que toda a sua dor havia de alguma forma sido retribuída. Aquelas mortes eram muito doces para ambos, uma doçura que precisava ser completada com um confronto com o próprio Bosco, vivo ou morto. Num certo momento, Windsor ficou a quarenta metros dos dois, mas a escuridão e a complexidade do lugar o derrotaram de novo: ele virou na direção errada e se arrastou, sob a abóbada de pés suspensos, cada vez mais para dentro do Santuário. Quando Cale e Henri Embromador chegavam ao final do maior dos corredores, eles ouviram um som. De início era difícil de discernir, parando e recomeçando — um som raspante e irregular, como o de um animal preso, um animal pequeno tentando escapar. Era um som desesperado: arranha e raspa, silêncio, arranha e raspa. Na escuridão e no silêncio cada vez mais profundos, aquilo retesava a pele de suas nucas. Arranha e raspa, silêncio, arranha e raspa. Então, um estranho farfalhar agitado. Devagar, eles chegaram ao fim do corredor, onde este virava à direita e também se abria num espaço do tamanho de um grande quarto. Inquietos, eles deitaram no chão e viram o que estava causando o ruído: pés enlouquecidos com sandálias, batendo e raspando no chão e desesperadamente tentando fazer contato com algo sólido para sustentar o peso do corpo. O nó devia ter cedido, ou a corda esticado. No canto do corredor havia espaço suficiente para que os dois se sentassem apoiados à parede sem ficar com as fileiras de pés mortos na cara. — Está ficando escuro demais pra enxergar — disse Henri Embromador. Mexe, mexe, mexe. — É bem perto daqui, do outro lado desta ala. Raspa, raspa, raspa. — Esse som está me dando nos nervos. — Então vamos sair daqui. Mantendo-se perto da pedra, eles foram andando ao lado da parede da ala. Mexe, raspa,
mexe, raspa. Então, de repente, um arranhar louco e desesperado e sons de afogamento quando o homem estrangulado, lutando para respirar, se esticou para tentar alcançar o chão. — Ah, pelo amor de Deus! — disse Henri Embromador, empurrou os mortos enforcados e segurou o Redentor agonizante pela cintura para sustentar seu peso e cortar a corda com sua faca. O Redentor moribundo, quase morto, encheu os pulmões de ar e recobrou a consciência — mas só de certo modo. Supervisor dos outros enforcamentos, ele fora um dos últimos a se enforcar. A corda parecia boa, mas provara ser de qualidade inferior e esticara, permitindo que as pontas dos seus dedos dos pés sustentassem seu peso o suficiente para mantê-lo vivo por horas. Quando Henri Embromador o segurou pela cintura, ele conseguiu respirar e começou a acordar do pesadelo da morte do qual tentava fugir: um demônio estava vindo pegá-lo, gordo, de olhos esbugalhados e falhas nos dentes, todo rosado e branco, com uma melecosa, gotejante ereção vermelha, rindo loucamente, como um porco riria. Não era Henri Embromador, mas esse horrível demônio que o segurava nos braços — tentando pegar qualquer coisa para se salvar, o homem puxou um lápis apontado que usara para ticar sua lista daqueles que deveria enforcar e, com a força conferida pelo terror extremo, apunhalou a criatura que o segurava, que gritou e se afastou, largando o Redentor e finalmente quebrando o seu pescoço. — Ai! Ai! — O que foi? — O filho da puta me apunhalou. Cale começou a abrir caminho entre os corpos pendurados, que zombavam de Cale batendo nele e uns nos outros. Havia um pouco mais de espaço ao redor do Redentor agora morto — ele fora o último a se enforcar e sobrara lugar. Henri Embromador estava apalpando a axila e as costas. — Me apunhalou — ele disse, indignado. — Me apunhalou com uma porra dum lápis. O Redentor, sua alma agora em êxtase eterno ou não, segurava de fato um lápis na mão direita. — Ainda bem que era só isso. Que coisa mais idiota, porra. — Cala a boca, deixa ver. Ele levantou o braço esquerdo e virou de costas. Levou tempo achar o buraco na lã — Cale precisou cortá-la para ver direito. Havia, de fato, um buraco do tamanho de um lápis — sem muito sangue, embora estivesse saindo um pouco. — Como está? — Bem, eu não queria um pra mim, aposto que dói um pouco. — Dói. — Não é muito grave. Vamos voltar e cuidar disso. — Está tudo bem. Já chegamos até aqui. Me dá uns minutos. Ele respirou fundo algumas vezes e começou a se sentir melhor. — Quanto falta? — Só mais um pouco por este corredor.
— Você acha que ele pode estar vivo? Pode estar esperando pra levar você junto. — Provavelmente nem está mais aqui. — Aposto um dólar. — Não. — Por que não? — Pra que fazer isso? — Estou me sentindo meio zonzo — disse Henri Embromador. Parecia, também. Gotas de suor, pequenas, começaram a cobrir seu rosto, e ele estava pálido. Ele se sentou, usando a parede para sustentar seu peso. Cale não gostou nada da sua aparência. — Me deixa ver o ferimento de novo. Henri Embromador virou para a direita. Agora estava saindo mais sangue, não muito, porém mais do que ele esperava. Devia ter sido um pouco mais fundo do que ele pensara. Mas enquanto Cale olhava, o sangue parou de fluir. Ele apoiou Henri Embromador contra a parede para descansar, mas àquela altura ele já estava morto.
39 IDRISPUKKE ESTAVA DE PÉ NA PRAÇA PRINCIPAL DO SANTUÁRIO, CONVERSANDO COM FANSHAWE, CUJA MENTE ESTAVA EM OUTRO LUGAR, PERGUNTANDO-SE SE WINDSOR TERIA CONSEGUIDO MATAR THOMAS CALE. ELE ESTAVA TÃO ABSORTO QUE NÃO PERCEBEU, A PRINCÍPIO, QUE IDRISPUKKE PARARA DE FALAR. ENTÃO TODOS AO REDOR DELE FIZERAM SILÊNCIO TAMBÉM. DO OUTRO LADO DA GRANDE PRAÇA, CALE ESTAVA ANDANDO LENTAMENTE NA DIREÇÃO DELES, CARREGANDO HENRI EMBROMADOR DE CAVALINHO, COMO SE ELE FOSSE UMA CRIANÇA QUE TIVESSE PEGADO NO SONO DEPOIS DE UM DIA AGITADO. POR UM MOMENTO, NINGUÉM SE MEXEU, TODOS INCAPAZES DE ENTENDER O QUE ESTAVAM VENDO. ESTARIAM BRINCANDO? JÁ BRINCARAM ASSIM MUITAS VEZES. CALE PAROU E O AJEITOU MAIS PARA CIMA NAS COSTAS, COMO SE ELE FOSSE CAIR. ENTÃO UMA DÚZIA DE HOMENS CORRERAM NA SUA DIREÇÃO E ELE DEIXOU QUE TOMASSEM HENRI EMBROMADOR NOS BRAÇOS. IDRISPUKKE E FANSHAWE ANDARAM LENTAMENTE ATÉ ELE. HENRI EMBROMADOR ESTAVA MORTO — ELES ERAM EXPERIENTES DEMAIS PARA NÃO RECONHECER A TERRÍVEL AUSÊNCIA. — O que aconteceu? — perguntou IdrisPukke. Cale pareceu não ouvir. — Ele não vai voltar pra nenhuma sala deste lugar. Tragam uma das mesas do refeitório pra cá. São grandes, vão precisar de uma dúzia de homens. Estava claro que Cale não queria falar, por isso eles ficaram por cinco minutos com ele, que olhava ao seu redor pelo Santuário, como se estivesse tentando lembrar onde deixara alguma coisa, com Henri Embromador sendo segurado com cuidado nos braços de quatro pessoas do seu povo. Então a mesa, claramente tão pesada quanto Cale dissera e com uns 9 metros de comprimento, foi trazida para o meio da praça. Cale pegou Henri Embromador dos homens e o deitou cuidadosamente no meio, depois arrumou o corpo, primeiro com as mãos dos lados e depois cruzadas sobre o peito. A morte já contraíra seu lábio superior sobre os dentes da frente, zombando dele com o sorriso leporino dos mortos. Foi com alguma dificuldade que Cale o puxou de volta no lugar. Então suas pálpebras começaram a se abrir e Cale não conseguia fazê-las ficar fechadas. Ele pediu que um dos sargentos lhe desse o lenço branco que estava usando; dobrou-o algumas vezes e o pôs sobre os olhos de Henri Embromador, como uma venda. Ninguém ainda havia dito nada, até que um dos soldados exclamou: — Meu Deus! Todos olharam, exceto Cale, perdido num mundo só seu, olhando para o seu amigo. Ao redor dele, um silêncio tão intenso que finalmente perfurou a névoa de sua descrença de que Henri Embromador se fora de vez. Ele ergueu os olhos. Do outro lado da praça, descalço, vestido em linho branco e com o nó de forca do penitente no pescoço, o papa Bosco XVI andava na direção deles com um sorriso gentil no rosto. Estava muito mais magro do que quando Cale o vira pela última vez, e a túnica de linho era grande demais, o que, junto com a boca aberta pelo esforço para andar, dava ao seu rosto o aspecto de um pinto ainda despreparado para deixar o ninho. O velho levou quase um minuto para alcançar o grupo de pé
perto da grande mesa, e cujos olhos se moviam silenciosamente, indo e voltando entre Cale e o velho cambaleando em sua direção. Cale não se movia nem piscava, mas olhava para Bosco, completamente hipnotizado. Parecia, para quem estava olhando, que o velho e Cale tivessem se tornado as únicas pessoas existentes na praça. Bosco parou, ainda sorrindo amorosamente para o garoto. — Esperei pacientemente sua chegada para explicar tudo e pedir seu perdão pelo terrível sofrimento que causei a você. Cale continuou sem se mexer nem dizer nada. Parecia que ele nunca mais iria falar. — Eu não conseguia entender como Deus estava falando comigo através de todas as suas muitas vitórias sobre nós. Sem água e comida, rezei dia após dia. Eu podia ver, mas não perceber, ouvir, mas não entender. Então, em Sua compaixão por minha estupidez, Ele cortou a pele da frente dos meus olhos. Quando você chegou aqui, um menino, vi imediatamente o que você era, mas achei que você precisava de mim pra lhe ensinar como varrer da face da Terra Seu maior erro. Toda noite eu chorava pela dor e pelo sofrimento que eu precisava causar para que você tivesse a força espiritual e física necessária para um trabalho tão inominável. Todas as coisas que fiz para fortalecer você só geravam ódio, quando deveria ter havido amor. A morte do mundo era um ato de sagrada ternura com a humanidade, e não um castigo — era para ser feito como um presente, para que Ele pudesse recomeçar. Pensei que você fosse a personificação da ira de Deus, mas você era Seu amor feito carne, não Sua raiva. Em minha incompetência, tornei você louco e odioso, quando tudo o que eu deveria ter feito era tratá-lo com a bondade que você demonstraria pelo mundo, ajudando todas as suas almas a irem para o outro mundo para começar de novo. Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa. Bosco se ajoelhou diante de Cale. — Me perdoe, Thomas. Deus estava me avisando, através de todas as suas vitórias contra nós, que os danos que causei à sua alma precisavam ser desfeitos pelo homem que causara aqueles danos. Pensei que eu e meus camaradas seríamos os últimos a unir-nos a Deus para a grande renovação das almas, mas agora é necessário que sejamos os primeiros, para que você possa fazer o trabalho do Senhor com o espírito em paz. Somente com o nosso singelo sacrifício o ódio da sua alma pode ser apagado. Bosco, com lágrimas de gratidão escorrendo dos olhos, estendeu as mãos e começou a rezar. — Purga-me com hissopo, Senhor, e ficarei limpo: lava-me, e ficarei mais branco que a neve. Livra-me de minha culpa para que o espírito e o coração de Thomas Cale, que eu despedacei, possam se rejubilar. Enquanto Bosco rezava, Cale começou a olhar ao seu redor, como se estivesse procurando uma chave esquecida em algum lugar. Todos os outros o olhavam, horrivelmente empolgados pelo que estava acontecendo. Fanshawe falou baixinho com IdrisPukke quando Cale foi até a outra ponta da mesa sobre a qual o corpo de Henri Embromador estava deitado e começou a puxar um pequeno sarrafo que fora pregado na parede do refeitório e na mesa para que ela não se movesse. — Pense nas informações que podemos obter de Bosco — disse Fanshawe. — Precisamos
dele vivo. — Concordo. Fique à vontade. — Fanshawe não se mexeu. A tentativa de Cale de arrancar o bloco de madeira, de uns 20 centímetros de comprimento, foi infrutífera, pois os pregos ainda estavam fundos demais. Então ele deu um puxão poderoso no bloco e este se soltou. Quando ele voltou para perto de Bosco, o velho ainda estava rezando. — Com este sacrifício de Teus padres, enxuga todas as lágrimas de seus olhos para que não haja mais sofrimento, tampouco haja mais dor. Devagar, Cale começou a dar a volta nele — algo claramente sendo ponderado em sua mente. — Assim como o Redentor Enforcado ofereceu seu pescoço quebrado pela nossa salvação, com os estertores do sacrifício de Teus Redentores, limpa os desnecessários insultos à sua alma, para que ele fique livre, finalmente, para fazer sua terrível gentileza ao mundo. Livre, finalme... Cale deu dois passos para a frente e desceu o bloco de madeira no alto da cabeça do velho. Mas não era um golpe especialmente forte, nem o pedaço de madeira era especialmente pesado. A cabeça de Bosco balançou de leve para a frente, não muito, e um fio fino de sangue escorreu pelo seu rosto. Ele abriu a boca como que para continuar, mas nenhum som saiu. Tentou falar de novo, mas imediatamente houve outro golpe e novamente sua cabeça foi para a frente, mas outra vez o golpe era muito mais fraco do que poderia ser. Os homens ao redor não eram nada leigos em matéria de horrores, mas alguns já estavam desviando o olhar. Então, outro golpe. Mais um fio de sangue. Bosco agitava a cabeça e suas mãos baixaram para as laterais do corpo. Ele gemeu. — Em... Tuas... mã... Mais um golpe calou sua boca, mas ele ainda era forte demais para cair, ou os golpes eram propositalmente insuficientes. Então, outro estalo da madeira no crânio, e mais outro. Desta vez ele quase caiu de cara no chão, mas algo o fez ficar quase na vertical de novo. Outro golpe, e desta vez um grito de Bosco, quando meia dúzia de fios de sangue fluíram de seu crânio raspado e cobriram seu rosto. — Pelo amor de Deus, Thomas, chega — disse IdrisPukke. Cale olhou diretamente para ele, como uma raposa sentindo o cheiro tênue de algo no vento: importante? Nem um pouco. Então a interrupção foi totalmente ignorada, como se jamais tivesse acontecido. Ele se virou para se concentrar em Bosco de novo. Largou o bloco ensanguentado de madeira e então, com grande cuidado, segurou o laço de penitente ao redor do pescoço de Bosco e começou a balançá-lo suavemente de um lado para outro, sustentando seu pescoço para que ele não se machucasse, como uma mãe segura a cabeça do bebê ao lhe dar banho. — Thomas! — exclamou IdrisPukke. Mas não adiantava: ele estava em algum lugar bem além do alcance da piedade. Cale puxou Bosco para perto do seu rosto e o esbofeteou com uma mão para que acordasse. Lentamente, Bosco abriu os olhos. Ao reconhecer Cale, começou a sorrir de maneira amorosa para o garoto.
— Eu quero... Mas o que Bosco queria foi interrompido em um segundo quando Cale, com a ira de uma hiena, puxou a corda para cima e depois para baixo, com um movimento tão furioso que quebrou o pescoço do velho com um sonoro estalo. Um ruído se ergueu dos homens ao redor, uma inspiração coletiva de ar. Cale puxou o rosto de Bosco para perto do seu, até que estivessem quase se tocando, fixando sua morte na mente para nunca mais esquecer — então, muito cuidadosamente, deitou o morto no chão e se afastou. As testemunhas estavam tremendo, todas elas, até Fanshawe. Eles já viram mortes difíceis antes, e raiva, mas nada assim, não de alguém que ainda era, na verdade, um garoto.
40 O INCÊNDIO QUE QUASE SUFOCARA HENRI EMBROMADOR NO DIA ANTERIOR AINDA NÃO HAVIA SIDO APAGADO COMPLETAMENTE E, DEPOIS DE ALGUMAS HORAS, VOLTOU A GANHAR FORÇA, EMBORA APENAS NO GUETO ONDE AS GAROTAS ERAM MANTIDAS. MESMO ASSIM, ERA O SUFICIENTE PARA PRODUZIR UM BRILHO LARANJA QUE ILUMINAVA A PARTE DE BAIXO DAS NUVENS CINZENTAS E BAIXAS QUE PAIRAVAM SOBRE O SANTUÁRIO E PERMITIR A IDRISPUKKE ENCONTRAR CALE, A UNS 800 METROS DO PORTÃO, CERCA DE QUATRO HORAS DEPOIS QUE ELE MATARA BOSCO. — Lamento muito por Henri Embromador — disse IdrisPukke. Não houve resposta, de início. — Como você sabia que eu estaria aqui? — Não sabia. Mandei gente te procurar, mas achei que por aqui seria uma possibilidade. Cale estava sentado numa pedra a uns 100 metros da instalação isolada onde Arbell Materazzi estava sendo mantida. — Você estava pensando em entrar? — Estava ruminando isso, sim. — Você se importaria se eu pedisse para não fazer isso? Mais uma vez, não houve uma resposta imediata. — Pensei em enterrar Henri Embromador no oásis de Voynich — ele disse finalmente. — Não conheço. — Não fica longe daqui. Um lago. Belas árvores, pássaros cantando, e tal. Ele iria gostar. — Iria, sim. — Quero que as garotas vão. Acho que elas vão chorar. Ele iria gostar disso também. Uma bobagem, realmente. Que diferença faz? — Estive num bom número de funerais. Eles fazem diferença, às vezes. — Não para ele. — Não, não para ele. Mais alguns minutos de silêncio. Então Cale riu. — Já te contei sobre Henri Embromador e o livro de orações de cabeça pra baixo? — Acho que não. — Na verdade, ele contara a história a IdrisPukke quando eles estavam em Treetops. — Não sei de onde Henri tirou a ideia, mas ele arrancou a capa do missal que tínhamos que ler por uma hora ao dia e a colou de cabeça pra baixo. Pegava o livro, sempre que encontrava um porco que não o conhecia, e começava a ler. Eles ficavam loucos quando viam aquilo — fingindo ler o santo missal... blasfêmia! Iam correndo até ele, arrancavam o livro de suas mãos e lhe davam um pé de ouvido. Mas ele não ligava. Aí mostrava pra eles que a capa havia sido colada de cabeça pra baixo, e dizia que estava esperando receber um novo. Até os porcos dos Redentores precisavam se humilhar, depois disso. Alguns até pediam desculpas. Ele ganhou uma fortuna apostando com os acólitos como conseguia fazer um Redentor pedir perdão.
Mais um silêncio. — Eu a odeio. — Sim. — Nunca a odiei antes. Fingia odiar, mas não odiava. Sentia vergonha por ela não me amar mais, ter me vendido, e mesmo assim eu não parar de amá-la, nem por um momento. — Outro silêncio. — Sabe o que é mortificação? — Não. — Bosco dizia que significa que você pode morrer de vergonha... sabe, vergonha pelos seus pecados. Eu sentia mortificação amando-a. Tão fraco, fraco e envergonhado. — Pela primeira vez, ele olhou para IdrisPukke. — Sabe por que Henri morreu? — Não. — Por causa dela. — Não entendo. — Veja bem, eu voltei pra cá por causa dela. Eu a trouxe aqui pra mostrar a ela. Quero dizer, não planejei isso nem nada, não na minha cabeça. Mas agora consigo entender. Agora que ele está morto. — Entender o quê? — Eu queria que ela visse o Santuário pra que ela entendesse por que eu era tão esquisito e me amasse de novo. E depois queria mostrar pra ela que eu era capaz de destruí-lo, que ela não precisava ter me entregado a Bosco, porque eu poderia tê-los derrotado. Eu teria derrotado. Eu derrotei. Eu queria que ela visse a coisa horrorosa que ela fez, sem nenhuma razão válida. Mas tudo o que fiz foi trazer Henri Embromador de volta pra morrer nesse monte de merda. Logo aqui. Pra morrer aqui. Ele começou a apertar os punhos na cabeça, esmagando as têmporas com os nós dos dedos, como se quisesse abrir um buraco para alguma coisa sair. — Não vá lá — IdrisPukke disse. — Acho que eu deveria. — Cale ficou de pé. — Bosco tinha razão, ou você mata o passado ou ele mata você. — Não vá. Com você nesse estado de espírito, algo ruim poderia acontecer. — Tem razão, isso é verdade... tenho coisas indizíveis em mente. — O que Henri Embromador diria? — Ele estava ficando desesperado, para tentar algo assim. — Henri Embromador está morto. Ele não tem direito a voto. — Eu não sei o quanto ela é boa ou má. Mal conheço a garota. O que sei é que ela é uma maldição para você. Você só vai conseguir piorar as coisas, se chegar perto dela. Vocês dois sofrem de uma mesma loucura que vai parti-los ao meio. Afaste-a de você. Mais um silêncio breve. — Quando assassinei Kitty das Lebres, teve uma coisa que não contei pra você. Sobre o olhar dele, imagino que ele também estivesse apavorado, mas não foi seu medo que grudou na minha mente, foi o choque. Isto não pode estar acontecendo comigo, ele estava pensando, enquanto eu o estrangulava, não comigo. Dia após dia, Kitty era culpado de todo tipo de
crueldade e violência; no entanto, quando a violência o atingiu em sua própria casa, ele ficou embasbacado. Não consigo tirar aquela expressão intrigada da mente. — Ele se virou novamente para IdrisPukke. — Sabe por quê? — Não. — Eu mesmo acabo de descobrir. Porque quero ver aquela expressão de novo, quero mesmo. Quero vê-la nos olhos daquele monte de merda do Zog, de Bose Ikard, de Robert Fanshawe e seus éforos e todas as pessoas como eles em qualquer parte do mundo. Quero ver aquele choque em seus olhos: Eu? Eu não. Isto não pode estar acontecendo. O mundo está cheio de gente que precisa morrer assim. — Então, a Mão Esquerda de Deus, no fim das contas. Cale riu. — Quem falou alguma coisa sobre Deus? — E as pessoas que você vai ter que matar para chegar até eles? — Darei a todos a chance de sair do caminho. — E se eles não concordarem? — Então terão o que os espera. — Bem como os milhares e milhares que não conseguirão sair do caminho, mesmo que queiram. Bosco achava que você poderia dominar o mundo, mas ele era louco. Qual é a sua desculpa? — Que escolha eu tenho? — Sempre temos escolha. — Sabe, nunca ouvi você dizer nenhuma idiotice antes. Está realmente me dizendo que posso parar? Nem se eu quisesse. Ninguém vai me deixar em paz, ninguém vai deixar que eu me recolha a algum lugar com bolos e garotas, em paz e sossego. Já tentei isso. Eu não duraria seis meses se me afastasse agora. — Ele olhou para IdrisPukke. — Diga que estou errado. — Sua alegria está toda em arrasar coisas... desgraça e desolação deixam a sua alma contente. — Quê? — Por alguma razão, Cale ficou furioso. — Não foi isso que aquela boneca te disse? — Ah, aquela coisa. Sim. — Eu não concordo, só para constar. — Obrigado... estou comovido. — Mas se você descer lá e matar Arbell Materazzi, esse é o primeiro passo. Você não consegue voltar atrás depois de algo assim. — Sabe o que aprendi matando Bosco? Não há nada como uma coceira que você possa finalmente coçar. Chega de conversa, agora. A gente se fala de novo amanhã. — Você vem comigo? — perguntou IdrisPukke. — Dormir em cima desse dilema? — Não. O que IdrisPukke podia fazer? Nada. Ele voltou para o acampamento principal, tropeçando nas pedras e nas raízes de limpabunda no caminho.
Durante aquela noite toda, padres caíram pelo ar. Bandos, passaredos, grupos, ninhais e revoadas de recém-enforcados estavam sendo carregados às centenas até a Parede Oeste do Santuário e jogados por cima da muralha para despencar 90 metros até Ginky’s Field, onde os corpos dos Redentores eram dispensados havia seiscentos anos. Como eles caíam? Diferente de tudo que você já viu. Três horas depois do início do macabro ritual — conhecido como a primeira defenestração dos enforcados, porque o buraco na parede pelo qual os corpos eram jogados parecia uma janela —, Windsor finalmente conseguiu fugir dos recessos do Santuário e foi ter, doente e exausto, com Fanshawe. — Tarde demais agora, querido — ele disse. — Melhor você ir dormir e tentar amanhã. Mas não haveria outra chance para Windsor. Quando o sol nasceu, Thomas Cale estava a quilômetros dali, sentado numa carroça a caminho do depósito de materiais de Snow Hill. IdrisPukke mandou homens procurarem por meses, mas não havia sinal do garoto. Ele não desistiu, naturalmente: pagou altas quantias a espiões que sabiam ficar de boca fechada para que relatassem todo boato até do mais fugaz vislumbre de Thomas Cale. Houve muitos assim. Não era difícil duvidar da história de que ele fora visto na proa de um grande navio, partindo para cruzar o Mar de Madeira, acompanhado por oito donzelas vestidas de seda branca, a caminho da Ilha de Avalon, de onde voltaria depois de um longo sono para salvar o mundo da próxima vez que este fosse ameaçado de destruição. Então se falou que ele estaria ganhando a vida como malabarista em Berlim, ou vendendo chapéus nos mercados de Siracusa. Alarmantemente plausível fora a notícia, mais de um ano depois, de que ele fora morto no Líbano tentando interromper o casamento de Arbell Materazzi com o Aga Khan, duque de Malfi, um homem tão extravagante que era conhecido como Imperador do Sorvete, porque sua fortuna estava derretendo. Mas IdrisPukke rapidamente confirmou, ouvindo um convidado que estivera na cerimônia, que as bodas haviam acontecido de forma impecável. Mais tarde ainda, houve o boato de que ele se afogara, junto com Wat Tyler, no Grande Fiasco da Ilha dos Cães; depois, que ele fora crucificado ao lado de Buffellow Bill durante as guerras religiosas em Troia. Mas embora os avistamentos fossem tão numerosos quanto suspeitos, uma espécie de padrão emergia de alguns relatos, bem raros, que IdrisPukke torcia para que fossem verdade. Havia vários boatos de que ele fora visto em Emmaeus, em cidadezinhas minúsculas, comprando pregos, serrotes e azeite de oliva. A normalidade disso tranquilizava IdrisPukke: lá era quente, até no inverno, e o campo era coberto por quilômetros e quilômetros de florestas de olmos e freixos, bem como centenas de pequenos lagos onde era bem difícil encontrar alguém que não queria ser encontrado. Ele gostava de pensar em Cale mantendo-se ocupado martelando e serrando coisas e comendo bem — embora não conseguisse descobrir nada de muito concreto sobre esses relatos, mesmo depois de mandar pessoas de confiança lá para baixo para investigar. Mas ele esperava que Cale estivesse por ali, de qualquer forma, e em segurança.

 

 

                                                                                                    Paul Hoffman

 

 

 

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