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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BEIJO CARMESIM / Lara Adrian
O BEIJO CARMESIM / Lara Adrian

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Ele chega até ela mais morto que vivo, um enorme estranho vestido de negro, crivado de balas e perdendo muito sangue. Enquanto ela luta para salvá-lo, a Veterinaria Tess Culver não faz idéia de que o homem que se chama Dante não é totalmente humano, mas da Raça (Breed), guerreiros vampiros envolvidos numa desesperada batalha. Em um momento único e carregado de erotismo, Tess é lançada no mundo dele – um lugar perigoso e na penumbra onde vampiros Rebeldes vagam na noite trazendo o terror.

Assombrado por visões de um futuro obscuro, Dante vive e luta como se não houvesse amanhã. Tess é uma complicação que ele não precisa – mas agora, com seus irmãos sob ataque, ele deve protegê-la de uma ameaça crescente, que inclui a si mesmo. Por causa de um beijo rápido e irresistível, ela se tornou parte de seu reino subterrâneo... e o toque dele a desperta para dons escondidos, desejos e fomes que ela nem sonhava em possuir. Ligados pelo sangue, Dante e Tess devem trabalhar juntos para acabar com os inimigos mortais, ao mesmo tempo em que descobrem uma paixão que transcende os próprios limites da vida...

 

 

 

 

     Dante passou seu dedo polegar sobre a doce carne da mulher, atrasando-se ao chegar a carótida, onde o pulso dos humanos se faz mais forte. Seu próprio pulso se acelerou também, respondendo a pressa com que o sangue fluía por debaixo dessa superfície de delicada pele branca. Dante inclinou sua escura cabeça e beijou esse tenro lugar, deixando que sua língua jogasse ali onde o coração da mulher batia precipitadamente as asas.

     —Me diga —murmurou ele contra sua pele cálida; sua voz tinha divulgado como um grunhido grave em meio dos palpitantes batimentos do coração do clube de música—, é uma bruxa boa ou uma bruxa má?

     A mulher se retorceu em seu regaço, sentada escarranchada sobre ele, com suas pernas cobertas por umas sugestivas meias de ralo, e vestida com um espartilho negro que realçava seus peitos, os quais chegavam a altura do queixo dele, como se os fosse oferecer em um delicioso banquete. Ela brincou com sua brilhante peruca fúcsia, logo deixou cair o dedo de maneira sensual sobre seu peito, percorrendo uma tatuagem celta que luzia em seu generoso decote.

     —OH, sou uma bruxa muito mas que má.

     Dante grunhiu.

     —Essas são minhas favoritas.

     Ele sorriu ante seu ébrio olhar, sem incomodar-se em ocultar as presas. Era um dos muitos vampiros que havia no clube de dança Boston aquela noite do Halloween, embora a maioria deles eram impostores. Humanos que luziam dentes de plástico, sangue falso e ridícilos disfarces. Outros poucos —ele e uns quantos mais pertencentes a um dos Refúgios Escuros da nação dos vampiros que passavam o momento perto da pista de baile— eram absolutamente genuínos. Dante e os outros eram membros da estirpe, uma raça que se achava a anos luz dos típicos vampiros pálidos e góticos do folclore humano. Não eram nem os não mortos nem esses fetos de maldade. O tipo de vampiros ao que Dante pertencia se tratava de uma classe híbrida, mescla de sangue quente do Homo sapiens e de seres de outro mundo. Os antepassados da estirpe, uma banda de conquistadores alienígenas que tinham aterrissado acidentalmente na Terra fazia milênios e que agora levavam muito tempo virtualmente extinto se alimentaram de mulheres e tinham irradiado a sua descendência a sede —a principal necessidade— de sangue.

     Esses gens alienígenas tinham dado a estirpe poderosas forças e também bastantes debilidades. Só o componente humano dos vampiros da estirpe, cujas qualidades conservavam porque tinham acontecido a eles através de suas mães mortais, mantinha a raça civilizada e capaz de aderir-se a certo tipo de ordem. Mesmo assim, uns poucos da estirpe tinham sucumbido a seu lado selvagem perdendo seus escrúpulos, entrando por uma rua de direção única pavimentada de sangue e loucura. Estes eram os renegados.

     Dante desprezava a esse tipo de elementos, e pertencia a uma estirpe de guerreiros cujo dever era erradicar a esses indesejáveis sem escrúpulos em qualquer lugar que se achassem. Como homem que desfrutava de seus prazeres, Dante não estava muito seguro do que preferia: a cálida e saborosa veia de uma fêmea sob sua boca ou o tato do aço terminado em titânio quando abria em talhos a seus inimigos e os jogava no pó da rua.

     —Posso tocá-los? —A bruxa do cabelo fúcsia que estava em seu regaço olhava fixamente a boca de Dante com total fascinação.

— Essas presas parecem terrivelmente autênticas! Só quero senti-las.

     —Tome cuidado —lhe advertiu ele enquanto ela levava os dedos a seus lábios.

—.Eu mordo.

     —Ah, sim? —Ela soltou uma risada e abriu os olhos com assombro.

— Acredito que sim, carinho.

     Dante se levou um dedo dela a boca e o chupou, contemplando o rápido que poderia ter a essa mulher em posição horizontal. Precisava alimentar-se, mas nunca se opunha a ter um pouco de sexo no processo... como prelúdio ou como sobremesa, não importava. Lhe vinha tudo bem.

     Depois, decidiu em um impulso, deixando que suas presas se cravassem na ponta carnuda de seu dedo quando ela começava a retirá-lo. Ela afogou um grito enquanto ele chupava a pequena ferida, negando-se a soltá-la ainda. O pequeno sabor do sangue o acendeu, afiando suas pupilas, que se converteram em umas fendas verticais em meio de seus dourados olhos. Uma ardente necessidade se apoderou dele, alojando-se na torcida protuberância de seu membro, que se esticou debaixo do couro negro das calças.

     A fêmea gemeu, fechando os olhos enquanto se arqueava como uma gata sobre seu regaço. Dante soltou seu dedo e lhe pôs a mão na nuca para atrai-la para ele. Apropriar-se de uma hóspede em um lugar público não era exatamente seu estilo, mas estava terrivelmente aborrecido e necessitava diversão. Além disso, duvidava de que alguém se inteirasse, tendo em conta que o clube estava cheio de falsos perigos e aberta sensualidade. Quanto a fêmea que tinha em seus joelhos, ela sentiria unicamente prazer quando ele tirasse dela o que necessitava. E mais tarde não recordaria nada, pois apagaria de sua memória toda lembrança dele.

     Dante avançou, moveu a um lado a cabeça da mulher e a boca lhe fez água do apetite tão urgente que sentia. Olhou por cima dela e viu dois vampiros do Refúgio Escuro, os Darkhaven, parte da população geral da estirpe, que o observavam a uns poucos metros de distância. Pareciam guris, da geração atual, sem dúvida. Sussurraram entre eles, estava claro que o reconheciam como um da classe dos guerreiros e tratavam de decidir aproximar-se ou não aproximar-se dele.

     «Sumam», pensou Dante, olhando em sua direção, enquanto separava os lábios e se preparava para cravar suas presas na veia de sua hóspede.

     Mas os jovens vampiros ignoraram seu olhar escuro. O mais alto dos dois, um macho loiro que vestia calças largas com estampado de camuflagem, botas de motociclista e uma camiseta negra, adiantou-se. Seu companheiro, que levava uns jeans, botas altas e um enorme pulôver dos Lakers, avançou pavoneando-se detrás dele.

     —Merda. —a Dante não lhe importava um pouco de indiscrição, mas tinha muito claro que não necessitava o público tão perto olhando-o boquiaberto enquanto se alimentava.

     —O que acontece? —queixou-se sua aspirante a hóspede quando Dante se separou dela.

     —Nada, carinho. —Pôs-lhe a mão na frente, apagando de sua mente a última meia hora.

— Vai com seus amigos.

     Ela se levantou obediente de seus joelhos e se afastou, fundindo-se na multidão de corpos que dançavam na pista. Os dois vampiros Darkhaven lhe dedicaram apenas uma olhada e se aproximaram da mesa de Dante.

     —O que acontece? —Dante soltou a saudação a contra gosto sem nenhum interesse em lhes dar papo.

     —Né! —O loiro de traje militar fez um gesto com a cabeça, exibindo-se com seus braços musculosos cruzados sobre o peito. Não havia nem um só dermoglifo visível nessa jovem pele. Definitivamente se tratava da última geração da raça. Provavelmente nem sequer alcançavam os vinte anos.

— Sinto te interromper, mas tínhamos que te dizer, cara, que... é sobre essa surra que deram nos renegados faz uns meses. Todo mundo fala ainda de como os da Ordem se carregaram uma colônia inteira de vampiros chupadores de sangue em uma noite. Mandaram a esses filhos da puta ao inferno. Foi alucinante, cara.

     —Sim —acrescentou seu companheiro de bairro.

— Por isso nos estávamos perguntando... quero dizer, ouvimos que os da Ordem estão procurando novos recrutas.

     —Ouviu?

     Dante se inclinou para trás em seu assento e soltou um aborrecido suspiro. Aquela não era absolutamente a primeira vez que aproximavam vampiros do Refúgio Escuro com a pretensão de unir-se aos guerreiros. Do ataque a guarida dos renegados, no velho manicômio o verão passado, o reservado quadro de guerreiros da estirpe tinha ganho muita popularidade, de todo indesejada. E celebridade também.

     A verdade é que era condenadamente aborrecido.

     Dante deu um chute a cadeira apartando a da mesa e ficou em pé.

     —Não é comigo com quem têm que falar deste assunto—disse aos esperançados moços.

   — E por outra parte, o recrutamento para formar parte da Ordem se faz só por convite. Sinto muito.

     Afastou-se deles a grandes passos, aliviado ao sentir a vibração de seu telefone celular no bolso de sua jaqueta. Tirou o aparelho e apertou o botão para aceitar a chamada procedente do recinto da estirpe.

     —Sim?

     —Como vai? —Era Gideon, o gênio residente dos guerreiros da raça— Alguma desordem sobre o que informar?

     —Não muito. As coisas estão bastante mortas por aqui agora mesmo. —Dante examinou o clube lotado de gente e advertiu que os dois vampiros tinham decidido mover-se. Encaminhavam-se para a saída, levando a um casal de mulheres humanas com eles.

— Não detectei renegados nos arredores até o momento. Não te parece incrível? Estou desejando um pouco de ação por aqui, Gid.

     —Bom, procura te animar —disse Gideon, com um evidente sorriso aflorando a seus lábios.

— A noite ainda é jovem.

     Dante rio entre dentes.

     —Diga a Lucan que lhe economizei outro casal de aspirantes em busca de ação. Já sabe, eu gostava muito mais das coisas quando eramos temidos que agora que somos venerados. Está fazendo algum progresso com os recrutas, ou nosso menino está muito enganchado a sua companheira de sangue?

     —Sim a ambas as coisas —respondeu Gideon.

— Quanto ao recrutamento, temos a um candidato que virá logo de Nova Iorque, e Nikolai pôs suas antenas sobre alguns de seus contatos em Detroit. Teremos que organizar alguma prova para os novos... já sabe, fazer que demonstrem seus talentos antes de nos comprometer.

     —Refere-te a lhes dar uma patada no traseiro e ver quem voltam procurando mais?

     —Há alguma outra forma?

     —Conta comigo. —Dante arrastou as palavras enquanto avançava pelo clube em direção a porta.

     Entrou na noite, evitando a um grupo de tipos discotequeiros vestidos como zumbis com roupas feitas farrapos e essa pintura facial que parecia tirada de uma tumba. Seu fino ouvido captava centenas de sons; do ruído geral do tráfico aos chiados e risadas de quão bêbados foram de festa no Halloween lotando as ruas e as calçadas.

     Também ouviu algo mais.

     Algo que arrepiou seus cabelos e pôs em alerta seus sentidos de guerreiro.

     —Tenho que deixar-te —disse a Gideon ao outro lado da linha.

— Vou por um vampiro chupador de sangue. Intuo que depois de todo a noite não vai ser uma total perda de tempo.

     —Volta por aqui depois de se carregar disso      

     —Bem. Até mais tarde. —Dante cortou a chamada e guardou o telefone no bolso.

     Entrou por um beco que havia a um lado, seguindo um grunhido profundo e um aroma rançoso, guiando-se pelo fedor de um vampiro renegado rondando à espreita de sua presa. Como os outros guerreiros da Ordem, Dante sentia um enorme desprezo para os membros da raça que se converteram em renegados. Todo vampiro estava sedento, todo vampiro tinha que alimentar-se —e as vezes matar— para sobreviver. Mas todos e cada um deles sabiam que a linha entre a necessidade e a gula era magra, tão somente a uma escassa separação do sangue. Se um vampiro consumia muito, ou se alimentava com muita freqüência, corria o risco de gerar um vício, de cair em um estado permanente de fome conhecida como «a luxúria do sangue». Vencido pela enfermidade, converteria-se então em um renegado, um yonqui violento disposto a fazer algo para conseguir sua próxima dose.

     A ferocidade e indiscrição dos renegados punha em perigo a toda a raça, deixando-a exposta aos humanos, uma ameaça que Dante e o resto da Ordem não podiam suportar. E além disso estava surgindo uma ameaça maior: fazia uns poucos meses, constatou-se que os renegados se estavam organizando, seu número aumentava, suas táticas estavam dirigindo para uma meta que não parecia muito longe da guerra. Se não os detinha, e se não se fazia logo, tanto os humanos como os vampiros da estirpe se veriam em meio de um inferno, de uma batalha empapada de sangue capaz de rivalizar com muito mesmo Apocalipse bíblico.

     Por agora, com a Ordem concentrada em localizar o novo quartel dos renegados, a missão dos guerreiros era simples. Dar caça e eliminar ao máximo número de renegados possível. Exterminá-los como as anomalias doentes que eram. Este era um encargo que entusiasmava a Dante, que nunca se sentia tão em casa como quando entrava em ação, rondando as ruas com as armas na mão, procurando uma briga. Isso o mantinha vivo, estava seguro; ainda mais, isso era o que mantinha os mais escuros de seus demônios a raia.

     Dante girou por uma esquina e logo se deslizou por outro estreito beco entre dois edifícios de velhos tijolos. Em alguma parte de sua cabeça ouviu o grito de uma fêmea na escuridão. Trocando de marcha, dirigiu-se a toda velocidade para o lugar de que parecia provir.

     E chegou apenas com um segundo de antecipação.

     O renegado tinha estado à espreita dos dois vampiros Darkhaven e suas duas companheiras fêmeas. Parecia jovem, vestido com um traje gótico bastante básico sob uma gabardina larga. Mas jovem ou não, era grande e forte, e estava enfurecido por sua fome. Tinha agarrado a uma das mulheres em um abraço mortal. O vampiro sedento de sangue já a tinha sujeita pela garganta enquanto os dois aspirantes a guerreiros permaneciam ali em pé, paralisados e congelados pelo medo.

     Dante extraiu uma adaga da capa sujeita ao seu quadril. A adaga golpeou forte, cravando-se entre os ombros do renegado. A arma estava desenhada especialmente com aço e titânio, este último era extremamente venenoso para o sangue corrupto e os órgãos dos renegados. Um beijo dessa adaga mortal e o vampiro renegado começaria a cozer-se do interior a uma velocidade recorde.

     Só que este não o fez.

     Arrojou um olhar selvagem a Dante, com seus brilhantes olhos de cor âmbar e suas presas sangrentas enquanto cuspia uma desumana advertência. Mas o renegado suportou o assalto da adaga, agarrando rapidamente a sua presa e balançando a cabeça para beber com uma urgência ainda maior. Que diabos era isso?

     Dante se aproximou correndo ao vampiro faminto com outra adaga na mão. Não desperdiçou um segundo, e esta vez foi direto ao pescoço, tentando fazer um corte limpo. A adaga se afundou, fazendo um talho profundo. Mas esse vampiro chupador de sangue se liberou do ataque antes de que Dante o aniquilasse. Com um rugido de dor, soltou a mulher e concentrou toda sua fúria sobre Dante.

     —Tirem as humanas daqui! —gritou Dante aos vampiros Darkhaven enquanto atirava da mulher para apartá-la do combate e empurrá-la para os outros.

— Movam-se, agora! as limpem, apaguem a memória das duas e tirem as deste maldito lugar!

     Os dois jovens ficaram de repente em ação. Agarraram as mulheres, que chiavam histéricas, e as levaram da cena enquanto Dante refletia a respeito da estranheza da que acabava de ser testemunha.

     O vampiro não se desintegrou como teria que ter ocorrido pela dupla dose de titânio que Dante lhe tinha dado. Não era um renegado, embora tivesse caçado a sua presa e se estivesse alimentando como o pior dos viciados no sangue.

     Dante contemplou o rosto transformado, as presas alargando-se e as pupilas elípticas se moviam nas íris alagadas de uma cor acesa. Uma baba rosada e fedorenta tinha formado uma crosta na boca do vampiro, fazendo que Dante lhe retorcesse o estômago com seu fedor.

     Agredido, recuou, advertindo que o vampiro devia ter a mesma idade que os dois jovens Darkhaven. Um maldito pirralho. Ignorando o talho palpitante em seu pescoço, o vampiro se virou para trás e tirou a adaga de Dante do ombro. Grunhiu, alargando os orifícios do nariz como se fora a saltar em qualquer momento.

     Mas então saiu correndo.

     O vampiro chupador de sangue saiu fugindo a toda velocidade, com a prega de sua gabardina agitando-se a sua esteira como uma vela enquanto ele entrava na cidade por um caminho serpenteado. Dante não afrouxou o ritmo nem um segundo. Perseguiu-o pelas ruas, um atrás do outro, através de becos e vizinhanças, e logo mais longe, aos subúrbios, pelos estaleiros próximos a Boston, onde as fábricas vazias e os velhos parques industriais se elevavam como sombrios sentinelas a beira do rio. O intenso barulho da música retumbava desde um dos edifícios, os graves sons de música house e os brilhos intermitentes de luzes estroboscópicas sem dúvida procediam de alguma festa rave que se estava celebrando em algum lugar próximo.

     A uns poucos metros por diante dele, o vampiro diminuiu a velocidade para dirigir-se para um cais que conduzia a um desvencilhado abrigo para botes. Um beco sem saída. Cuspindo fúria de suas faces abertas, o vampiro chupador de sangue se moveu de um lado a outro e ficou ao ataque rugindo a Dante como um lunático. O sangue fresco empapava suas roupas pelo brutal assalto a fêmea humana. O vampiro o golpeou e o arranhou, com suas largas presas jorrando saliva, o focinho aberto gotejando essa espuma rosada de aroma asqueroso. Seus olhos ambarinos brilhavam de pura malícia.

     Dante notou como a mudança também operava nele, a fúria da batalha se abria passo, transformando-o em uma criatura não tão diferente daquela contra a qual lutava. Com um grunhido, lançou ao vampiro chupador de sangue sobre as pranchas de madeira do cais. Com um joelho imposto sobre o peito de seu oponente, Dante tirou rapidamente as duas adagas gemeas e afiada curvatura, essas prolongações diabólicas as que chamava Malebranche. As armas de ameaçadoras folhas brilharam à luz da lua, com uma beleza letal. Embora o titânio tivesse demonstrado ser inútil, havia mais de uma maneira de matar a um vampiro, renegado ou não. Dante abateu as adagas, primeiro uma, logo a outra, abrindo um talho profundo na carnuda garganta do demente vampiro e lhe cortando limpamente a cabeça.

     Dante lançou os restos à água de um chute. O escuro rio ocultaria o cadáver até a manhã, logo os raios UV da luz do sol se encarregariam do resto. Um vento se levantou da água, transmitindo o fedor da poluição industrial e... de algo mais. Dante ouviu movimentos próximos, mas não foi até que sentiu o ardor da carne rasgada em sua perna quando se deu conta de que se achava ante outro ataque. Recebeu outro golpe penetrante, esta vez no torso. Maldita fora.

     Desde algum lugar detrás dele, perto da velha fábrica, alguém lhe estava disparando. A arma tinha um silenciador, mas não havia nenhuma dúvida de que se tratava de um rifle automático.

     Sua aborrecida noite se estava voltando de repente mais interessante do que queria.

     Dante se atirou ao chão enquanto outro tiro passou zumbindo ao lado dele e foi parar ao rio. Rodou, procurando o abrigo para cobrir-se enquanto o franco-atirador fazia voar outro turno de balas. Um tiro deu em uma esquina da estrutura, fazendo pedacinhos a velha madeira e pulverizando-a como confete. Dante tinha um revólver, um imponente 9 mm. Como complemento das adagas que ele preferia usar em combate. Tirou a arma, embora sabia que seria completamente inútil frente ao franco-atirador a essa distância.

 

   Mais balas acertavam o abrigo, uma delas roçou a bochecha de Dante enquanto este esquadrinhava ao redor tentando divisar a seu atacante.

     OH, aquilo não era bom.

     Quatro figuras escuras se moviam enviesado pelo aterro da zona da fábrica, todas armadas até os dentes. Embora os vampiros da estirpe podiam viver centenas de anos e resistir graves feridas físicas, estavam feitos essencialmente de carne e osso. Lhes colocando chumbo suficiente, cortar arterías principais, ou o que é pior, a cabeça... morriam igual a qualquer outro ser vivo.

     Mas não sem sustentar antes uma luta infernal.

     Dante ficou quieto e esperou a que os recém chegados estivessem ao alcance. Quando o estiveram, abriu fogo contra eles, lhe dando a um no joelho e lhe golpeando a outro na cabeça. sentiu-se extranhamente aliviado ao comprovar que eram renegados, e que as balas especiais de titânio tinham acabado com eles lhes provocando rapidamente uma fusão movel .

     Quão renegados ficavam dispararam, e Dante com muita dificuldade pôde evitar as balas, movendo-se rapidamente ao fundo do abrigo para botes. Maldição. Ficar a coberto significava sacrificar a posição da qual atacar. Por não mencionar o fato de que isso impedia sua capacidade de ver por onde se aproximavam seus inimigos. Ouviu-os aproximar-se enquanto voltava a carregar a pistola.

     Logo silêncio.

     Esperou um segundo, atento ao seu redor.

     Algo maior que uma bala voou pelo ar para o abrigo. Fez estrondo ao cair sobre as pranchas de madeira do cais e rodou até deter-se.

     Merda.

     Tinham-lhe arrojado uma pequena granada de grande alcance.

     Dante inspirou profundamente e se jogou no rio apenas um instante antes de que o projétil estalasse, fazendo voar pelos ares o abrigo e a metade do cais com uma gigante explosão de fumaça, chamas e destroços. A percussão foi como um estampido sônico sob a água tenebrosa. Dante sentiu uma chicotada na cabeça, e seu corpo inteiro se sacudiu com uma pressão insuportável. Por cima dele, choviam os escombros sobre a superfície do rio, que estava iluminado por uma cegadora luz alaranjada de fogo.

     Nublou-lhe a vista enquanto a comoção cerebral o arrastava para baixo. Começou a afundar-se, levado a deriva pelo forte empurrão da corrente. Incapaz de mover-se enquanto o rio o arrastava, inconsciente e sangrando, corrente abaixo.

      

     — Uma entrega especial para a doutora Tess Culver.

     Tess levantou o olhar da fila de pacientes e sorriu, apesar do tarde que era e do cansada que se sentia.

     —Um destes dias vou aprender a te dizer não.

     —Crê que precisa praticar muito? O que acontece se volto a pedir que te case comigo?

     Ela suspirou, sacudindo a cabeça ante aqueles brilhantes olhos azuis e esse deslumbrante sorriso completamente americano que de repente se tornou para ela.

     —Não estou falando de nós, Ben. E o que foi que as oito em ponto? Faltam quinze minutos para a meia-noite, pelo amor de Deus.

     —Planeja te converter em uma cabaça ou algo assim? —Ele cruzou a soleira da porta e entrou em seu escritório, inclinou-se e a beijou na bochecha.

— Sinto vir tão tarde. Estas coisas não revistam respeitar o relógio.

     —Bom... do que se trata?

     —Está aí detrás, na caminhonete.

     Tess se levantou, tirou-se uma borracha de cabelo do pulso e rapidamente se fez um acréscimo. O arbusto de cachos de um castanho dourado era rebelde, inclusive quando acabava de estar no cabelereiro.

     Dezesseis horas de volta na clínica a tinham deixado em um estado de total anarquia. Separou-se de seus olhos com um sopro uma mecha de cabelo e passou a grandes pernadas por diante de seu ex-namorado para o caminho de fora.

     —Nora, poderia preparar uma injeção de ketaminexylazine, por favor? E me prepare também a sala de consulta, a grande.

     —Claro —cantou sua ajudante.

— Olá, Ben. Feliz Halloween.

     Lhe piscou um olho e lhe dedicou um sorriso capaz de fazer tremer os joelhos de qualquer mulher com sangue nas veias.

     —Bonito disfarce, Nora. As tranças de senhorita a Suíça e o lederhosen lhe senta muito bem.

     —Danke schón —respondeu ela, satisfeita ante seu completo enquanto rodeava o balcão de recepção e se dirigia À farmácia da clínica.

     —Onde está seu disfarce, Tess?

     —Tenho-o posto. —Tess pôs os olhos em branco enquanto caminhava diante dele, através da zona de barracos de cães onde meia dúzia de cães sonolentos e gatos nervosos os esquadrinhavam desde as grades de suas jaulas.

— Se chama o disfarce de «súper Veterinária que provavelmente vai ser presa por este disfarce do Halloween».

     —Eu nunca permitiria que te metesse em problemas. Não lhe demonstrei isso já?

     —E o que passa contigo? —Empurrou a porta do armazém traseiro da pequena clínica e saiu junto a ele.

— Está metido em um assunto perigoso, Ben. Corre muitos riscos.

     —Está preocupada comigo?

     —É obvio que me preocupo. Eu te quero. Já sabe.

     —Sim —disse ele, um pouco mal-humorado.

—Como a um irmão.

     A porta traseira se abria para um estreito beco onde quase nunca havia ninguém, a exceção de mendigos ocasionais que usavam a parede de sua clínica de animais de renda baixa próxima ao rio para apoiar-se e descansar. Aquela noite, a caminhonete negra do Ben estava estacionada ali. ouviam-se grunhidos graves e bufos procedentes do interior do veículo e se advertia um suave balanço, como se algo grande estivesse caminhando de um lado a outro.

     E isso era exatamente o que estava passando.

     —Está encerrado aí dentro, verdade?

      —Sim. Não se preocupe. Além disso, é tão dócil como um gato, prometo-lhe isso.

     Tess lhe dedicou um olhar cheio de dúvidas enquanto baixava o pórtico de concreto e caminhava para as portas traseiras da caminhonete.

     — Interessa-me saber de onde o tiraste?

     —Provavelmente não.

     Durante os últimos cinco anos, Ben Sullivan tinha estado entregue a defesa pessoal do bem-estar e o amparo de animais exóticos. Primeiro, preparava suas missões de resgate passo por passo, de maneira tão inteligente como os mais secretos espiões do governo. Então, como se fosse um membro da unidade de operações táticas dos SWAT, procedia, liberando aos maltratados, mal nutridos ou as espécies ilegais em perigo de extinção de seus cuidadores abusivos e os devolvia as legítimas reservas equipadas para dar cuidados adequados a essas criaturas. Às vezes, fazia uma parada de emergência na clínica de Tess para dar tratamento a feridas e lesões que requeriam uma atenção imediata.

     De fato era assim como se conheceram fazia dois anos. Ben havia trazido um gato cerval maltratado com uma obstrução intestinal. O pequeno e exótico felino tinha sido resgatado da casa de um traficante de drogas. O animal tinha mastigado e tragado um brinquedo de borracha para cães e necessitava que a obstrução fosse solucionada com cirurgia. Foi um procedimento comprido e meticuloso, mas Ben tinha estado ali todo o tempo. Quão seguinte Tess soube foi que estavam saindo juntos.

     Ela não tinha muito claro como tinham passado de tontear a apaixonar-se, mas em algum momento do caminho tinha acontecido. Ao menos para o Ben. Tess correspondia seu amor, em realidade o adorava... mas não acreditava que pudessem ser mais que bons amigos capazes de dormir juntos de tanto em tanto. Isso tinha terminado esfriando as coisas, por sua própria iniciativa.

     —Você gostaria de fazer as honras? —perguntou-lhe Tess.

     Ele se aproximou e agarrou o atirador das portas duplas, as abrindo cuidadosamente em toda sua extensão.

     —Mas o que lhe passou? —murmurou Tess, completamente aniquilada.

     O tigre de Rojão de luzes estava gasto e sarnento, com uma úlcera aberta dolorosa e gotejante na perna, provocada ao parecer por uns grilhões, mas por muito mau aspecto que tivesse era o mais majestoso que tinha visto em sua vida. O animal os olhou, com a mandíbula frouxa, a língua fora e ofegando e o medo dilatando suas pupilas até que seus olhos se voltaram virtualmente negros. O tigre grunhiu, golpeando a cabeça contra os barrotes de jaula de contenção que tinha usado Ben.

     Com muito cuidado, Tess se aproximou.

     —Já sei, pobre pequeno. Viu melhores dias, verdade?

     Franziu o cenho ao advertir a estranha forma de suas garras dianteiras, a falta de definição que estas tinham perto dos dedos.

     —Extirparam-lhe as unhas? —perguntou a Ben, incapaz de mascarar o desprezo em sua voz. —Sim, e as presas também.

     —Selvagens! Se decidiram que precisavam ter a um animal tão belo como este, por que o mutilaram desta maneira?

     —Poderia permitir que seu mascote de propaganda faça farrapos a seus clientes e a seus pequenos mucosos? Tess o olhou.

     —Mascote de propaganda? Não se refere a loja de armas... —estalou ela, sacudindo a cabeça.

— Não importa. Realmente não quero sabê-lo. Levemos dentro a este enorme gatinho para que possa lhe jogar uma olhada.

     Ben baixou uma rampa feita a medida da parte traseira da caminhonete.

     —Sobe e agarra a jaula por detrás. Eu sujeitarei a parte dianteira, que será mais pesada ao baixá-la.

     Tess seguiu as indicações, ajudando-o a descarregar a jaula com rodas da caminhonete ao meio-fio. Quando chegaram a porta da clínica, Nora estava ali esperando. Afogou um grito e lhe fez arrulhos ao enorme felino e logo lhe dedicou um olhar de adoração a Ben.

     —OH, Meu Deus. É Shiva, verdade? Durante anos estive esperando que escapasse desse lugar. raptaste a Shiva!

   Ben sorriu.

     —Não sei do que está falando, liebchen. É simplesmente um felino extraviado que apareceu na soleira de minha porta esta noite. Disse-me que a doutora Maravilhosa poderia curá-lo antes de que lhe encontre um bom lar.

     —OH, é mau, Ben Sullivan! E a partir de agora te converteste em meu máximo herói.

     Tess fez um gesto a sua entusiasmada ajudante.

     —Nora, pode me ajudar com isto, por favor? Precisamos subi-lo por cima do pórtico.

     Nora acudiu junto a Tess, e os três levantaram a jaula para entrar na habitação traseira da clínica. Empurraram ao tigre dentro da habitação preparada para a consulta, que recentemente tinha sido equipada com um enorme elevador hidráulico em forma de mesa elevadora, cortesia do Ben. Era um luxo que Tess não tinha podido permitir-se. Embora tinha uma pequena clientela devota, não trabalhava precisamente na parte rica da cidade. O preço de seus serviços estava por debaixo de seu valor, inclusive para a zona, pois sentia que era mais importante dar ajuda que tirar um proveito econômico.

     Infelizmente, o proprietário e seus fornecedores não estavam de acordo. Seu escritório estava sobrecarregado de uma pilha de avisos de pagamento que não poderia seguir postergando durante muito mais tempo. Ia ter que recorrer a suas escassas economias pessoais para cobri-los, e quando esses lhe acabassem...

     —O tranqüilizador está no balcão —disse Nora, interrompendo seus pensamentos.

     —Obrigado. —Tess deslizou a seringa com capuz dentro do bolso de sua bata, imaginando que finalmente não ia necessitar, apoiando-se na docilidade e o estado letárgico de seu paciente. Além disso, aquela noite não ia fazer mais que um exame visual, tomar umas poucas notas sobre o estado do animal em conjunto e fazer uma idéia do que terei que fazer para facilitar que fosse transladado a salvo ao seu novo lar.

     —Crê que podemos conseguir que Shiva —ou como é que se chame este animal extraviado— salte em cima da mesa por sua conta, ou teremos que usar o elevador? —perguntou Tess, vendo como Ben abria os ferrolhos da jaula.

     —Vale a pena tentá-lo. Vamos, muchachote.

     O tigre vacilou um momento, com a cabeça baixa enquanto olhava a seu redor, pela habitação de exame, brilhantemente iluminada. Logo, animado pelo Ben, saiu da jaula e saltou com agilidade em cima da mesa de metal. Enquanto Tess lhe falava com suavidade e lhe acariciava a grande cabeça, o animal se sentou, como uma esfinge, mostrando mais paciência que o melhor educado dos gatos domésticos.

     —Necessita algo mais ou já posso ir ? —perguntou Nora.

     Tess negou com a cabeça.

     —Claro, pode ir. Obrigado por ficar até tão tarde. Realmente o valoro.

     —Não há problema. A festa a que vou não começará até depois da meia-noite. —jogou-se as largas tranças loiras por cima dos ombros.

— De acordo, então me parto. Fecharei com chave ao sair. Boa noite, meninos.

     —Boa noite —responderam ao uníssono.

     —É uma menina estupenda —disse Ben depois da saída da Nora.

     —Nora é a melhor —se mostrou de acordo Tess, manuseando a Shiva em busca de lesões na pele, vultos e outros problemas que pudesse haver por debaixo da grossa pelagem.

— E não é tão menina, Ben. Tem vinte e um anos, está a ponto de tirar o título de Veterinária, assim que termine o último semestre na universidade. Será uma doutora extraordinária.

     —Não tão boa como você. Você tem um toque mágico.

     Tess sorriu e pôs os olhos em branco.

     —Vai a casa, Ben. Chamarei-te amanhã.

     Tess não fez caso do completo, mas havia algo de verdade nele. Quanto, duvidava que Ben soubesse realmente. Tess mesma apenas o entendia, e o que sim entendia teria gostado de apagá-lo de tudo de sua mente. Timidamente, cruzou os braços, ocultando suas mãos da vista.

     —Você tampouco tem que ficar, Ben. Eu gostaria de deixar a Shi... —esclareceu-se garganta e arqueou uma sobrancelha.

— A meu paciente, quero dizer, em observação esta noite. Não começarei nenhum procedimento até manhã, e te chamarei para te dizer minhas conclusões antes de fazer uma intervenção.

     —Já me está jogando? Eu que pensava que poderia te levar a jantar.

     —Jantei faz horas.

     —A tomar o café da manhã, então. Em sua casa ou na minha, você escolhe.

     —Ben —disse ela, evadindo-o ao tempo que ele se aproximava e lhe acariciava a bochecha. Suas carícias eram cálidas e tenras, comodamente familiares.

— Já passamos por isso, mais de uma vez. Simplesmente não acredito que seja uma boa idéia...

     Ele grunhiu, com um som claramente muito sexual, grave e rouco. Houve um tempo em que esse som a fazia perder o controle, mas não esta noite. Nunca mais, se é que tinha alguma esperança de manter sua integridade pessoal. Simplesmente lhe parecia um engano ir-se a cama com o Ben, sabendo que ele queria algo que ela não podia lhe dar.

     —Posso ficar até que acabe —sugeriu ele, apartando-se.

— Eu não gosto da idéia de que esteja aqui sozinha. Esta zona da cidade não é precisamente a mais segura.

     —Estarei bem. Simplesmente acabarei de examinar ao animal, logo farei algum trabalho de papelada e fecharei a clínica. Não será muito.

     Ben franziu o cenho, a ponto de discutir até que Tess soltou um suspiro e lhe dedicou esse olhar especial. Ela sabia que ele a interpretava corretamente, já que a tinha visto em mais de uma ocasião durante os dois anos que tinham sido casal.

     —Está bem —aceitou finalmente.

— Mas não fique muito tempo. E que a primeira coisa que faça amanhã pela manhã seja me chamar, promete-me isso?

     —Prometo-lhe isso.

     —Está segura de que lhe poderá arrumar dirigindo a Shiva você sozinha?

     Tess baixou a cabeça para a gasta besta, que imediatamente começou a lamber sua mão outra vez assim que a teve perto.

     —Acredito que estarei a salvo.

     —Não lhe dizia isso? É seu toque mágico. Parece-me que ele já se apaixonou por ti também.

—Ben passou os dedos por seu cabelo loiro dourado e dedicou a Tess um olhar derrotado— Suponho que se quero ganhar seu coração terei que deixar crescer o cabelo e as presas, é isso?

     Tess lhe sorriu e pôs os olhos em branco.

     —Vai a casa, Ben. Chamarei-te amanhã.

    

     Tess despertou sobressaltada.

     Merda. Quanto tempo tinha estado dormindo? achava-se em seu escritório, com o histórico clínico da Shiva aberto sobre o escritório sob sua bochecha. Quão último recordava é que tinha alimentado ao desnutrido animal e o tinha metido na jaula para poder escrever suas conclusões. Isso tinha sido... —consultou seu relógio— fazia duas horas e meia? Faltavam uns minutos para as três da manhã. Teria que estar de volta na clínica as sete em ponto.

     Tess deu um grande bocejo e estirou seus braços duros.

     Menos mal que se despertou antes de que Nora retornasse ao trabalho, ou nunca teria ouvido o final de...

     Um forte golpe soou em algum lugar da parte traseira da clínica.

     Que diabos era isso?

     Teria despertado de seu sono sobressaltada por um som similar um momento antes?

     OH, o som. É obvio. Ben devia ter passado em seu carro e teria visto as luzes da clínica acesas. Não seria a primeira vez que se aproximava até ali conduzindo a altas horas da noite para controlá-la. Realmente não se sentia com vontades de receber um sermão a respeito de seus loucos horários ou sua teimada fixação pela independência.

     O ruído se ouviu de novo, outro golpe tosco, seguido de um brusco estrondo de metal como de algo que golpeava contra uma estante. O qual significava que havia alguém no armazém traseiro.

     Tess se levantou de seu escritório e deu uns passos vacilantes para a porta de seu escritório, afinando o ouvido a qualquer distúrbio. Nos barracos da área de recepção, o punhado de gatos e cães que passavam o pós operatório estavam descansando. Alguns deles se queixavam, outros emitiam graves grunhidos avisando de um perigo.

     —Olá? —disse Tess ao espaço vazio.

— Há alguém aí? Ben, é você? Nora?

     Ninguém respondeu. E agora o ruído de antes já não se ouvia.

     Estupendo. Acabava de anunciar sua presença a um intruso. Brilhante, Culver. Absoluta e rotundamente brilhante.

     Tratou de consolar-se a si mesmo com alguma lógica rápida. Talvez se tratava tão somente de um vagabundo procurando proteção que encontrou a entrada a sua clínica do beco de atrás. Talvez não era um intruso. E não representava nenhum tipo de perigo.

     Ah, sim? Então por que tinha o pêlo da nuca arrepiado pelo medo?

     Tess colocou as mãos nos bolsos da bata, sentindo-se de repente muito vulnerável. Tocou sua caneta com os dedos. E havia algo mais.

     «OH, sim, isso.» A seringa com o sedativo, suficiente para nocautear a um animal de quatrocentos quilogramas.

     —Há alguém aí detrás? —perguntou com insistência, tratando de que sua voz soasse firme e serena. Deteve-se na área de recepção e alcançou o telefone. O maldito objeto não era sem fio —o tinha conseguido muito barato em uma loja de oportunidades— e o auricular com muita dificuldade lhe chegava ao ouvido por cima do balcão. Tess deu a volta em torno do grande escritório com forma de «Ou», olhando nervosa por cima de seu ombro enquanto começava a marcar o 911 no teclado.

— Será melhor que vá daqui agora mesmo, porque estou chamando a polícia.

     —Não... por favor... não tenha medo...

     A profunda voz soou em um tom tão baixo que não deveria nem ter chegado ao seus ouvidos, mas sim o fez. Estava tão segura de havê-la ouvido como se alguém tivesse sussurrado perto dela ou, mais até, no interior de sua cabeça, por muito estranho que parecesse.

     Ouviu-se um pigarro seco e a violenta sacudida de uma tosse que definitivamente procedia do armazém. E a quem quer que seja que pertencesse a voz, era sem dúvida a voz de alguém muito ferido. Uma ferida de alguém que estava entre a vida e a morte.

     —Maldita seja.

     Tess conteve a respiração e pendurou o telefone antes de que se realizasse a conexão. Caminhou devagar para o fundo da clínica, sem saber o que ia encontrar e desejando em realidade não encontrar nada absolutamente.

     —Olá? O que está fazendo aqui? Está ferido?

     Falou com o intruso enquanto abria a porta e entrava. Ouviu uma respiração laboriosa, cheirou fumaça e o fedor salobre do rio. Também cheirou sangue. Muitíssimo .

     Tess acendeu a luz.

     Os fortes tubos fluorescentes deram um zumbido do alto, iluminando a incrível corpulência de um homem empapado e ferido gravemente tendido no chão perto de uma das estanterias. Ia vestido todo de negro, como uma espécie de pesadelo gótico; jaqueta negra de couro, camiseta, traje militar e botas de combate com cordões. Seu cabelo também era negro, e as mechas molhadas se pegavam em sua cabeça, ocultando seu rosto da vista. Um desagradável rastro de sangue e de água de rio corria da porta traseira, entreaberta para o beco, até onde estava o homem jogado, na despensa de Tess. Era evidente que se arrastou até ali, possivelmente incapaz de caminhar.

     Se ela não tivesse estado tão acostumada a ver as horrorosas conseqüências de acidentes de carro, surras e outros traumatismos físicos em seus pacientes animais, a visão daquele homem lhe teria revolto o estômago.

     Em lugar disso, sua mente deixou de sentir esse instinto de lutar ou de fugir ante o perigo que tinha sentido na área de recepção, e voltou a ser a doutora que estava treinada para ser. Clínica, serena e preocupada.

     —O que te passou?

     O homem grunhiu, sacudiu ligeiramente sua negra cabeça como se fosse dizer lhe algo. Talvez não pôde.

     —Está cheio de queimaduras e feridas. Por Deus, deve ter centenas. —Baixou a vista até uma de suas mãos, que descansava no abdômen. O sangue, que brotava de uma profunda espetada recente, penetrava entre seus dedos.

— Te sangue no estômago... e a perna também. Meu Deus, dispararam-lhe?

     —Necessito... sangue.

     Provavelmente tinha razão nisso. Debaixo dele, o chão estava molhado e escuro de todo o sangue que tinha perdido desde sua chegada a clínica. E provavelmente também supôs Tess, teria perdido muita mais antes de entrar ali. Virtualmente cada centímetro da pele que se achava exposta tinha múltiplas lacerações... seu rosto e seu pescoço, suas mãos, por toda parte. Tess o olhou e observou cortes sangrantes e contusões. Suas bochechas e sua boca estavam muito pálidas, tanto que pareciam fantasmas.

     —Necessita uma ambulância —lhe disse. Não é que queria alarmá-lo mas, maldita seja, aquele homem estava muito mal.

— Agora relaxe. Vou chamar o 911.

     —Não! —sacudiu-se do chão, estirando sua mão para ela assustado.

—Nada de hospitais! Não posso... não posso ir ali. Eles não... não poderão me ajudar.

     Apesar de seu protesto, Tess começou a dirigir-se para o telefone, na outra habitação. Mas logo se lembrou do tigre roubado extendido na sala de consulta. Seria difícil explicá-lo ante o Serviço Médico de Urgências (EMT) ou, Deus não o quisesse, a polícia. A loja de armas provavelmente já teria avisado do roubo do animal, ou o faria assim que abrisse pela manhã, ao cabo de umas poucas horas.

     —Por favor —disse com voz entrecortada o enorme homem que estava sangrando por toda a clínica.

— Nada de médicos.

     Tess se deteve, olhando-o em silêncio. Esse homem necessitava muita ajuda, e a necessitava imediatamente. Desgraçadamente, ela parecia ser sua melhor oportunidade naquele momento. Não estava segura do que poderia fazer por ele, mas talvez pudesse lhe fazer algum curativo provisório, conseguir que se mantivera em pé e tirá-lo dali.

     —De acordo —disse—. Por agora não haverá ambulâncias. Me escute... eu, de fato, sou médica. Bom, mais ou menos. Esta clínica Veterinaria é minha. Que tal se me aproximo um pouco e te jogo uma olhada?

     Ela interpretou o estranho gesto de sua boca e um débil suspiro como um sim.

     Tess se ajoelhou no chão a poucos centímetros dele. Tinha-lhe parecido grande do outro extremo da habitação, mas em cocoras junto a ele, deu-se conta de que era imenso, provavelmente medisse mais de um metro noventa e cinco e devia pesar perto de cem quilogramas de duros ossos e sólidos músculos. Seria culturista? Um desses machos imbecis que passam a vida no ginásio? Mas havia algo nele que parecia não encaixar naquele molde. Mesmo assim, com a enorme ferida que tinha no rosto parecia um tipo capaz de fazer pedaços a um rato de ginásio com seus dentes.

     Moveu as mãos brandamente por sua cabeça, em busca de traumatismos. Seu crânio estava intacto, mas sua consulta lhe indicava que tinha sofrido algum tipo de comoção cerebral. Provavelmente ainda se achava em estado de atordoamento.

     —Vou comprovar como estão seus olhos —lhe comunicou com suavidade, antes de lhe levantar uma das pálpebras. «Deus santo.»

     A fenda da pupila estava recortada no centro de uma íris grande e brilhante de cor âmbar que a fez tornar-se atrás desconcertada. Retrocedeu, assustada ante o que acabava de ver.

     —O que é...

     De repente achou a explicação, e imediatamente se sentiu como uma idiota por ter perdido a compostura. Lentes de contato.

     «Tranqüila», disse a si mesmo. Assustou-se por nada. O tipo devia ter estado em uma festa do Halloween onde algo se foi das mãos. Não havia muito que ela pudesse averiguar de seus olhos enquanto levasse essas ridículas lentes de contato.

     Talvez se tinha estado brigando com um grupo de gente; certamente parecia o bastante grande e perigoso para formar parte de algum tipo de grupo. Mas se tivesse estado derrubando-se com alguma turma violenta essa noite, ela tivesse detectado algum rastro de drogas. Não havia aroma de álcool nele. Só um forte aroma de fumaça, mas não a de cigarros.

     Cheirava como se tivesse caminhado através do fogo. Justo antes de ter saltado ao rio Mystic.

     —Pode mover os braços ou as pernas? —perguntou-lhe, movendo-se para inspecionar seus membros.

—Crê que tem algum osso quebrado?

     Ela roçou com as mãos seus largos braços, notando que não havia amostras de fratura. Suas pernas também eram sólidas, sem feridas graves além do orifício de bala na pantorrilha. Pelo aspecto do impacto, a bala parecia ter acontecido limpamente através da carne. E o mesmo ocorria com o disparo do torso. Era uma sorte para ele.

     —Eu gostaria de te levar a sala de consulta. Crê que poderá caminhar se eu te ajudo a te sustentar?

     —Sangue —resmungou com um fio de voz.

— A necessito... agora.

     —Bom, sinto muito, mas nisso não posso te ajudar. Para isso necessitará um hospital. De momento vamos levantar -te do chão e a te tirar essas roupas feitas farrapos. Deus sabe que bactérias haverá na água daí fora.

     Agarrou-o pelas axilas e começou a levantá-lo, ajudando-o a ficar em pé. Ele soltou um grunhido profundo e animal. Quando o som saiu por sua boca, Tess captou o brilho de uns dentes detrás de seu lábio superior.

     «O que... Isso é muito estranho.»

     «Esses monstruosos caninos eram realmente... presas?»

     Ele abriu os olhos como se tivesse advertido seu pensamento. Sua inquietação. Tess sentiu imediatamente uma sacudida ante essa penetrante e brilhante luz ambarina, as deslumbrantes íris lhe fizeram sentir um golpe de pânico diretamente no peito. Por todos os diabos, estava claro que não eram lentes de contato.

     «Deus santo. Havia algo nesse tipo que não pintava nada bem.»

     Ele a agarrou pela parte superior de seus braços. Tess gritou assustada. Tratou de soltar-se, mas ele era muito forte. Umas mãos tão inflexíveis como o aço se afiançaram com força em torno dela e a atraíram para ele. Tess chiou e abriu os olhos enormes, gelada pelo medo enquanto agitava sua mão direita contra ele.

     —OH, Deus. Não!

     Ele voltou seu rosto sangrento e machucado para seu pescoço. Aspirou profundamente enquanto se aproximava e seus lábios roçaram sua pele.

     —Shhh. —Sentiu um ar quente no pescoço enquanto lhe falava com uma voz grave, dolorida e áspera.

— Não vou fazer te danifico... prometo-lhe isso.

     Tess ouviu as palavras.

     Quase as acreditou.

     Até essa arrepiante fração de segundo em que ele separou seus lábios e cravou seus dentes profundamente em sua carne.

    

     O sangue emanou a fervuras até a boca de Dante das duas incisões paralelas realizadas no pescoço da mulher. Ele absorveu o sangue dela com profundas e ansiosas sucções, incapaz de dominar sua parte animal, essa que só conhecia a necessidade e o desespero. Era a mesma vida pulsando sobre sua língua e descendendo tão cálida por sua ressecada e suave garganta, com um intenso sabor a canela.

     Talvez era a intensidade de sua sede o que fazia que aquele sabor lhe resultasse tão incrível, tão indescritivelmente perfeito para ele. Fosse o que fosse, não lhe importava. Bebeu mais dela, necessitava seu calor agora que estava gelado até os ossos.

     —OH, Deus! Não!

—Na voz da mulher se refletia sua comoção.

— Por favor! me solte!

     Ela tratou de aferrar-se a seus ombros, em um ato reflito, afundando os dedos em seus músculos. Mas o resto de seu corpo lentamente se ia entregando a seus braços, adormecendo-se e abrandando-se presa de uma espécie de transe pelo poder hipnótico da dentada de Dante. Ela suspirou e deixou escapar um grito afogado, caindo e afrouxando-se enquanto ele a soltava com cuidado no chão e ficava em cima dela para obter o alimento que tão desesperadamente necessitava.

     Agora ela não sentia dor, só tinha notado uma forte espetada com a inicial penetração de suas presas, mas foi uma pontada fugaz. A única dor aí era a de Dante. Seu corpo se sacudiu do profundo de seu trauma, sentia que lhe partia a cabeça por causa da comoção cerebral, seu torso e seus membros tinham tantos cortes que era impossível contá-los.

     «Está bem. Não tenha medo. Está a salvo. Prometo-lhe isso.»

     Enviou palavras de consolo a sua mente, embora a estivesse abraçando mais forte, apertando-a com mais firmeza na jaula de seus braços, bebendo ainda com ânsia das feridas infligidas em sua garganta.

     Apesar da ferocidade de sua sede, uma necessidade que ficava amplificada pela severidade de suas feridas, as palavras de Dante eram sinceras. Mais à frente do susto da dentada, não pensava fazer mal a essa mulher.

     «Tomarei só o que necessite. Logo irei e me esquecerá para sempre.»

     Já estava recuperando as forças. A carne rasgada se estava recuperando de dentro para fora. As feridas de bala e destroços estavam cicatrizando.

     As queimaduras se esfriavam.

     A dor se extinguia.

     Deixou de sugar com tanta avidez, obrigando-se a ir devagar, embora o sabor dela era mais que tentador. Tinha advertido a exótica fragrância de seu sangue desde o começo, mas agora que seu corpo estava rejuvenescido e tinha recuperado plenamente os sentidos, Dante não podia deixar de saborear a doçura de sua involuntária anfitriã, a que lhe tinha devotado um substancioso gole de vida.

     E seu corpo.

     Sob a bata branca e sem forma, ela tinha uns músculos fortes e magros, e largas e elegantes extremidades. Com curvas nos lugares precisos. Dante sentiu seus peitos apertando-se contra seu torso enquanto a sujeitava contra o chão do armazém, suas pernas enredadas com as dela. Tess ainda mantinha as mãos agarradas a seus ombros, já sem tratar de apartá-lo, a não ser simplesmente sujeitando-se enquanto ele tomava o último sorvo do sangue que lhe devolvia a vida.

     Deus, era tão deliciosa que poderia estar bebendo dela toda a noite.

     Poderia fazer muito mais que isso, pensou, dando-se de repente conta da ereção que apertava firme e exigente contra a pélvis da mulher. Era muito bom senti-la debaixo dele. Ela era seu bendito anjo misericordioso, embora tivesse tido que assumir esse rol a força.

     Dante respirou seu aroma doce e picante, beijando brandamente a ferida que lhe tinha dado uma segunda oportunidade para viver.

     —Obrigado —sussurrou contra seu cálida e aveludada pele.

— Acredito que esta noite me salvaste a vida.

     Passou a língua sobre as pequenas espetadas, fazendo que estas se fechassem e apagando todo rastro de sua dentada. A mulher gemeu, saindo de sua temporária escravidão. Moveu-se debaixo dele, e esse sutil movimento de seu corpo não fez mais que aumentar o desejo que Dante sentia de penetrá-la.

     Mas já tinha tomado bastante dela por essa noite. Apesar de que ela não recordaria nada do ocorrido, parecia-lhe pouco cavalheiresco seduzi-la sobre um atoleiro de água fedorenta do rio e sangue derramado. E sobre tudo depois de ter recorrido a seu pescoço como um animal.

     Apartou-se brandamente dela e lhe pôs a mão direita no rosto. Ela se estremeceu, compreensivelmente assustada. Tinha os olhos abertos, uns olhos fascinantes, de uma perfeita cor aguamarina.

     —Meu Deus, é tão bela... —murmurou ele. Havia dito aquelas palavras despreocupadamente A muitas mulheres no passado, mas surpreendentemente nunca tinham significado tanto como agora.

     —Por favor —sussurrou ela.

— Por favor, não me faça mal.

     —Não —disse Dante com suavidade.

— Não vou fazer te danifico. Só fecha os olhos, anjo. Já quase acabou tudo.

     Uma breve pressão da palma de sua mão contra sua frente e ela teria esquecido tudo.

     —Tudo está bem —lhe disse enquanto ela retrocedia no chão, com os olhos cravados nele como se esperasse que fosse golpeá-la. E desafiantes também. Dante lhe apartou o cabelo da bochecha com a ternura de um amante. Sentiu como ela ficava ainda mais tensa.

— Relaxe. Pode confiar...

     Algo agudo lhe golpeou a coxa.

     Com um brutal rugido, Dante se afastou rodando, caindo de costas.

     —Que demônios...

     O calor se propagou desde esse ponto agudo, ardendo através dele como ácido. Sentiu um gosto amargo ao fundo da garganta, justo antes de que a visão começasse a fazer imprecisa. Dante tratou de incorporar do chão mas caiu de costas de novo, seu corpo cooperava tão pouco como uma laje de chumbo.

     Ofegante, com esses brilhantes olhos azul esverdeados alargados pelo medo, o anjo misericordioso de Dante o esquadrinhou. Seu bonito rosto entrava e saía de seu campo de visão. Com uma mão magra se apertava o pescoço, no lugar onde ele a tinha mordido. Tinha a outra levantada ao nível do ombro, e nela sustentava uma seringa vazia com os nódulos apertados com toda a força do terror.

     Deus santo. Tinha-o drogado.

     Mas por muito aborrecido que fora essa notícia, Dante registrou algo ainda pior enquanto seu olhar impreciso se centrava na pequena mão que tinha conseguido nocautear o de um só golpe. Entre o polegar e o índice, nesse carnudo lugar da suave pele, a mulher tinha uma pequena marca de nascimento.

     De uma cor escarlate intensa, menor que uma moeda, a imagem de uma lágrima caindo na terrina de uma meia lua penetrou no cérebro de Dante.

     Era uma marca pouco comum, um selo genético que proclamava que aquela mulher pertencia a raça de Dante.

     Era uma companheira de raça.

     E agora que o sangue dela pulsava em seu interior, Dante tinha estabelecido a metade de um vínculo solene. Para as leis dos vampiros, ela era dele. Irrevogavelmente. Eternamente.

     Isso era quão último ele desejava ou necessitava.

     No fundo de sua mente, Dante rugiu, mas tudo o que ouviu foi um grunhido quase mudo. Piscou sem forças, estirando a mão para a mulher, sem chegar a aproximar-se de mais de um metro dela. O braço lhe caiu como se fosse de ferro. As pálpebras lhe pesavam muito para poder abri-los mais que uma fração de segundo. Gemeu, observando como as facções da mulher que acabava de salvá-lo-se voltavam imprecisas ante seus olhos.

     Ela o olhou, e sua voz soou cheia de uma fúria desafiante.

     —Durma profundamente, maldito e degenerado bode de merda!

     Tess se separou de um salto de seu atacante, respirando com dificuldade, com um ofego acelerado. Custava-lhe acreditar o que lhe acabava de passar. E que tivesse conseguido escapar desse intruso demente.

     Graças a Deus pelo sedativo, pensou, alegrando-se de ter tido a suficiente lucidez para recordar a seringa que guardava no bolso. Por não mencionar a oportunidade de usá-la. Olhou a agulha usada, que ainda mantinha apertada na mão, e se estremeceu.

     Merda. Tinha-lhe dado a dose inteira.

     Não era estranho que caiu como uma tonelada de tijolos. Não despertaria muito em breve. Oitocentos miligramas de sedativo, a dose necessária para anestesiar a um animal de consideráveis dimensões, eram um comprido beijo de boa noite, inclusive para um tipo tão grande como ele.

     De repente lhe sobreveio uma pontada de preocupação.

     E se o tinha matado?

     Sem ter muito claro por que estava preocupada com alguém que parecia inclinado a lhe rasgar o pescoço com os dentes apenas uns poucos minutos antes, Tess avançou lentamente para onde estava extendido o homem.

     Não se movia.

     Mas respirava, sentiu alívio ao notá-lo.

     Estava convexo no chão, de costas, com seus braços musculosos estendidos ali onde tinham caido. Suas mãos —essas grandes zarpa com uma força brutal que a tinham mantido apertada durante o ataque— estavam agora frouxas e quietas. Seu rosto, que tinha permanecido oculto pela queda de seu escuro cabelo, resultava quase atrativo nesse obrigado descanso.

     Não, não é que fosse bonito, porque inclusive inconsciente, suas facções mantinham esses ângulos duros, de formas afiadas. As sobrancelhas retas e negras formavam escuras linhas sobre seus olhos fechados. Seu quadrado rosto estavam muito marcados, e davam ao contorno de seu rosto um aspecto anguloso e animal. Seu nariz talvez tinha sido perfeita tempo atrás, mas a pronunciada linha de sua ponte tinha a débil marca de uma velha fratura. Talvez mais de uma.

     Havia algo extranhamente atrativo nele, embora certamente não sabia o que era exatamente. Não era o tipo de homem com os que estava acostumada a relacionar-se, e tentar imaginá-lo entrando na clínica para o cuidado de um mascote resultava absurdo.

     Não, não o tinha visto antes dessa noite. Só podia rezar para que, uma vez que tivesse chamado a polícia e o levassem, não voltasse a vê-lo nunca mais.

     Tess baixou o olhar e seus olhos captaram o brilho do metal oculto sob sua jaqueta empapada. Apartou a um lado o couro e conteve a respiração ao ver a curvatura de uma adaga de aço que tinha embainhada sob seu braço. Ao outro lado havia uma capa de pistola vazia que devia ter contido uma. Outros instrumentos para lutar mão a mão podiam ver-se em um largo cinturão negro apertado em torno de seus magros quadris.

     Aquele homem era um perigo, sem dúvida nenhuma. Alguma espécie de valentão, que fazia que os tipos indesejáveis que rondavam perto do rio parecessem de baixa categoria como farsantes da pior índole. Esse homem era duro e letal, tudo nele desprendia um ar de violência.

     Sua boca era a única parte suave dele. Larga e sensual, com os lábios ligeiramente separados nesse estado de embriaguez, sua boca era profanamente bela. O tipo de boca que poderia causar estragos em uma mulher desde uns cem ângulos diferentes.

     Não é que Tess os estivesse contando.

     E tampouco tinha esquecido essas terríveis presas.

     Movendo-se com cautela junto a ele, apesar da enorme dose de sedativo que estaria navegando por seu sistema, Tess lhe levantou o lábio superior para poder olhar.

     Não havia nenhuma presa.

     Tão somente uma fileira de perfeitos dentes brancos. Se tinha usado dentes falsos quando a atacou, tinham sido endemoniadamente convincentes. E agora essas enormes presas pareciam haver-se desvanecido no ar.

     Isso não tinha nenhum sentido.

     Jogou uma olhada rápida ao seu redor mas não viu nada. Não os tinha cuspido a nenhuma parte. E ela estava segura de que não os tinha imaginado.

     Do que outra maneira teria sido capaz de perfurar sua garganta como uma lata de soda? Tess levou a mão a zona do pescoço onde a tinha mordido. Sentiu a pele suave sob a gema de seus dedos. Não havia sangue nem estava pegajoso, não havia nem rastro dos buracos que lhe tinha feito no jugular. Apalpou-se todo esse lado do pescoço com os dedos. A zona estava inclusive mais tenra. —Isto é impossível.

     Tess se levantou e entrou correndo a habitação contigüa a sala de consulta, onde acendeu todas as luzes. Retirando o cabelo do pescoço, aproximou-se até uma máquina dispensadora de toalhas de papel e esquadrinhou seu reflexo na superfície polida de aço inoxidável. A pele de seu pescoço estava poda, intacta.

     Como se o terrível ataque não tivesse tido lugar.

     —Nem rastro — disse com expressão afligida.

— Como pode ser?

     Tess se separou do improvisado espelho, atônita. Totalmente desconcertada.

     Fazia menos de meia hora, estava temendo por sua vida, sentindo como o sangue lhe era extraída do pescoço por aquele estranho vestido de negro e armado até os dentes que agora se achava tendido no chão inconsciente, junto à porta traseira da clínica.

     Isso tinha acontecido.

     Então como era possível que sua pele não mostrasse nenhum sinal do ataque?

     Tess caminhou arrastando os pés da sala de exames até o armazém. Fosse o que fosse o que lhe tinha feito e sem que importasse como tinha conseguido ocultar as feridas que lhe tinha infligido, Tess pretendia vê-lo detido e acusado.

     Cruzou a soleira da porta que ia para a habitação traseira e se deteve em seco.

     O atoleiro de água do rio e sangue derramado que o atacante havia trazido consigo alagava uma grande superfície do chão de linóleo. A Tess lhe retorceu um pouco o estômago ao vê-lo, mas houve algo mais que lhe fez sentir um nó de terror frio no intestino.

     O armazém estava vazio.

      

     Seu atacante partiu.

     A dose era para anestesiar a um gorila, e entretanto ele se levantou e se foi.

     —Está-me procurando, anjo? Tess se girou e deu um grito.

    

     A adrenalina a percorreu, pondo seus pés em movimento. Passou por diante dele esquivando-o e se equilibrou para o corredor, com a cabeça a mil por hora. Tinha que sair dali.

     Tinha que agarrar sua bolsa e seu dinheiro e seu telefone móvel e sair daquele inferno.

     —Temos que falar.

     Ali estava de novo, em pé justo frente a ela, lhe bloqueando o passo ao escritório.

     Parecia que simplesmente se desvaneceu de onde estava antes para materializar-se ante a soleira da porta pela que ela tinha que passar.

     Com um chiado de alarme, Tess fez um rápido giro e se lançou para a zona de recepção. Agarrou o telefone do escritório e pulsou um dos números de chamada rápida.

     —Isto não está passando. Isto não está acontecendo —sussurrou pelo baixo, repetindo aquelas palavras como se de um mantra se tratasse, como se pudesse conseguir que tudo desaparecesse se tinha a suficiente convicção nisso.

     A chamada começou a soar ao outro extremo da linha.

     «Vamos, vamos, responde.»

     —Deixa o telefone, mulher.

     Tess se deu a volta, tremendo de medo. Seu atacante se moveu muito devagar, com a elegância premeditada de um hábil depredador. Aproximou-se. Mostrou os dentes em um duro sorriso.

     —Por favor, deixa-o. Agora.

     Tess negou com a cabeça.

     —Vai ao inferno!

     O auricular lhe caiu da mão sem que mediasse sua vontade. Enquanto caía ao escritório, junto a ela, Tess ouviu a voz do Ben ao outro lado da linha.

     —Tess? Olá... é você, carinho? Deus, são mais das três da manhã. O que está fazendo em...

     Ouviu um forte golpe atrás dela, como se o cabo do telefone tivesse sido arrancado da tira da parede por umas mãos invisíveis. Tess se sobressaltou para ouvir o ruído, e o estômago lhe encolheu ante o silêncio que seguiu.

     —Temos um sério problema, Tess.

     —OH, não, por favor.

     Agora ele estava cheio o saco, e sabia seu nome.

     No fundo de sua mente, Tess registrou o fato de que além de que fora impossível o estado de consciência de seu atacante, também parecia haver-se curado milagrosamente de suas feridas.

     Sob a imundície e as manchas de cinza que estavam na sua pele, todos seus muitos arranhões e lacerações tinham sanado milagrosamente.

     Seu traje de combate negro ainda estava esmigalhado e empapado de sangue pela queimadura de sua perna, mas esta já não sangrava. E tampouco sangrava a ferida, provavelmente de bala, de seu abdômen.

     Tess só pôde ver a lisa contração de músculosse a imaculada pele oliva.

     Seria acaso tudo isto algum tipo de brincadeira doentia do Halloween?

     Não acreditava, e sabia muito bem que seria melhor não baixar a guarda nem um segundo ante esse tipo.

     —Meu namorado sabe que estou aqui. Provavelmente já esteja de caminho. Inclusive deve ter chamado a polícia...

     —Tem uma marca de nascimento na mão.

     —O que?

     Sua voz tinha um tom acusador, e a estava assinalando, indicando sua mão direita, que tremia junto a sua garganta.

     —É uma companheira de raça. Desde esta noite, pertence-me.

     A comissura de seus lábios se torceu ao dizê-lo, como se não gostasse muito daquelas palavras. A Tess tampouco gostou de muito como soavam. Retrocedeu uns passos, sentindo que empalidecia ante cada movimento do homem que a seguia.

     —Olhe, não sei o que está acontecendo aqui. Não sei o que te aconteceu esta noite nem como acabaste em minha clínica. Nem sequer sei como pode estar agora em pé frente a mim, depois de te haver dado o suficiente sedativo para nocautear a dez homens...

     —Eu não sou um homem, Tess. Sou... algo mais.

     Ela podia ter burlado ante isso se não tivesse divulgado tão terrivelmente sério. Tão terrivelmente sereno.

     Estava louco.

     Claro. É obvio que o estava.

     Mal da cabeça, louco de arremate, era um psicopata demente.

     Essa era a única explicação que lhe ocorria, olhando-o com olhos aterrorizados enquanto ele se aproximava e o espaço que os separava-se fazia cada vez menor. O absoluto poder e tamanho dele a obrigaram a retroceder para a parede que tinha a costas.

     —Você me salvou, Tess. Não te dava outra eleição, mas seu sangue me curou.

     Tess negou com a cabeça.

     —Eu não te curei. Nem sequer estou segura de que suas feridas fossem reais. Talvez você acreditava que sim, mas...

     —Eram reais —disse ele, com um seguro e melodioso acento em sua profunda voz.

— Sem seu sangue, eles me teriam matado. Mas ao beber de ti, tenho-te feito algo. Algo que já não posso remediar.

     —OH, Meu Deus. —Tess se sentiu enjoada, alagada por uma súbita quebra de onda de náusea.

— Está falando do HIV? Por favor, não me diga que tem o SIDA...

     —Essas são enfermidades humanas —disse ele com atitude depreciativa.

— Eu sou imune a elas. E você também, Tess.

     Por alguma razão, aquela desatinada declaração não lhe deu muita esperança.

     —Deixa de usar meu nome. Deixa de atuar como se soubesse tudo sobre mim...

     —Não espero que te seja fácil de entender. Eu estou tentando explicar isso da maneira mais suave que posso. Devo-lhe isso. Verá, você é uma companheira de sangue, Tess. Isso é algo muito especial para os de minha raça.

     —Sua raça? —perguntou ela, cada vez mais cansada desse jogo.

— De acordo, renuncio. Qual é sua raça?

     —Sou um guerreiro. Um guerreiro da raça.

     —Bem, um guerreiro. E que quer dizer com isso... que tipo de raça?

     Durante um comprido momento, ele se limitou a olhá-la, como se estivesse pensando sua resposta.

     —Como a dos vampiros, Tess.

     Pelo Moisés, pai dos dementes. Esse tipo estava louco de tudo.

     As pessoas sã não vão por aí fingindo ser viciadas chupadoras de sangue... ou pior ainda, atuando realmente como lhes ditam suas fantasias perversas, como esse tipo tinha feito com ela.

     Exceto aí estava o fato de que o pescoço de Tess não oferecia nem o rastro de uma ferida, Apesar de que estava segura, com uma segurança arrepiante, de que lhe tinha perfurado a garganta com afiadas presas e tinha bebido uma boa quantidade de seu sangue.

     E logo estava o fato incrível de que permanecia ali em pé, caminhando e falando como se o sedativo não lhe tivesse causado nenhum efeito, quando o certo era que deveria havê-lo deixado nocauteado ao menos uma semana.

     Como podia explicar-se isso?

     Longínquas sirenes da polícia rugiram desde alguma parte aí fora, o assobio constante parecia estar aproximando-se da zona da cidade onde se achava a clínica. Tess as ouviu, e as ouviu também o pirado que a mantinha cativa. Inclinou a cabeça ligeiramente, sem que seus olhos de cor uísque a perdessem de vista por um segundo. Sorriu com ironia, curvando apenas as comissuras de sua ampla boca, logo murmurou uma maldição pelo baixo.

     —Parece que seu namorado pediu um pouco de ajuda.

     Tess estava muito ansiosa para responder, insegura do que poderia provocar nele o fato de saber que as autoridades estavam de caminho.

     —Um modo brilhante de foder uma noite —grunhiu ele, aparentemente para si mesmo.

— Esta não é a maneira correta de deixar as coisas entre nós, mas parece que de momento não tenho mais eleição.

     Aproximou a mão ao rosto de Tess. Ela se estremeceu e tratou de evitá-la, esperando receber o golpe de um punho ou qualquer outra brutalidade. Mas unicamente sentiu a cálida pressão de sua ampla palma aberta contra sua frente. Inclinou-se para ela, e ela sentiu o suave toque de seus lábios na bochecha.

     —Fecha os olhos —murmurou.

     E o mundo de Tess sumiu na escuridão.

    

     —Não há sinais de nenhuma atividade suspeita, amigos. Comprovamos todas as entradas ao redor do edifício e tudo parece em ordem.

     —Obrigado oficial —disse Tess, sentindo-se como uma idiota por ter provocado todo aquele escândalo a uma hora tão avançada, ou mas bem tão temprana, da madrugada.

   Ben estava em pé junto a ela em seu escritório, lhe rodeando os ombros com seu braço em atitude protetora e um pouco possessiva. Tinha chegado fazia pouco, não muito depois de que as sirenes da polícia despertassem de um sono inusitadamente profundo.

     Tinha estado trabalhando até muito tarde, evidentemente, e tinha ficado dormida em seu escritório. De algum modo lhe tinha dado ao botão de chamada rápida e tinha chamado ao celular do Ben. Ele tinha visto o número da clínica e teve medo de que ela tivesse algum problema.

     Chamou por isso as três da manhã aos 911 e dois oficiais se aproximaram até a clínica.

     Estes não acharam nenhum sinal para alarmar-se pela entrada de intrusos a altas horas da noite, mas sim encontraram a Shiva. Um dos policiais os interrogou a respeito da procedência do tigre, e quando Ben insistiu em que encontrou ao animal, e que não o tinha roubado, o oficial se mostrou muito cético.

     Foi permissivo porque estavam na noite do Halloween, durante a qual os mascotes publicitárias eram freqüentemente o alvo de travessuras adolescentes. Ben se apressou a assegurar que isso é o que tivesse ocorrido no caso da Shiva.

     Ben teve sorte de não terminar algemado. Recebeu uma advertência e a séria recomendação de que devolvesse Shiva a loja de armas a primeira hora da manhã, antes de que ninguém se fizesse uma idéia equivocada e abrisse uma investigação.

     Tess se escorreu debaixo do braço do Ben e deu a mão ao oficial.

     —Obrigado por vir. Posso lhe oferecer café ou chá? Tenho as duas coisas, e demorarei apenas uns minutos nas preparar.

     —Não, obrigado, senhora. —O aparelho transmissor-receptor do policial emitiu um breve zumbido, seguido por uma série codificada de novas ordens procedentes do posto de mando. Falou com um microfone que tinha a lapela enganchado comunicando que tudo estava em ordem na clínica Veterinária.

— Então, parece que já acabamos. Cuidem-se, família. E, senhor Sullivan, confio em que devolva esse tigre a quem pertence.

     —Sim, senhor. —Ben se mostrou de acordo, exibindo um sorriso tirante enquanto lhe dava um breve apertão de mãos ao oficial.

   Acompanharam aos policiais a porta e observaram como o carro patrulha entrava pela tranqüila rua da cidade. Quando partiram, Ben fechou a porta da clínica e se voltou para Tess.

     —Está segura de que está bem?

     Ela assentiu deixando escapar um comprido suspiro.

     —Sim, encontro-me perfeitamente. Sinto te haver preocupado. Devo haver ficado dormida sobre o escritório e, possivelmente, tenha dado um golpe ao telefone sem querer.

     —Sigo dizendo que não é bom que fique trabalhando até tão tarde. Esta é a pior parte da cidade, sabe.

     —Nunca tive problemas.

     —Sempre há uma primeira vez —disse Ben, com uma expressão sombria.

— Vamos, levarei-te a casa.

     —Todo o caminho até o North End? Não tem que fazer isso. Chamarei um táxi.

     —Esta noite não, eu te levarei. —Ben agarrou a bolsa dela e o entregou.

— Estou completamente acordado, e minha caminhonete está ali fora. Vamos, Bela Adormecida.

    

     Dante saiu do elevador do recinto dos guerreiros da estirpe com um aspecto e um aroma pestilentos que refletiam como se sentia. Tinha estado furioso —sobre tudo consigo mesmo— durante todo o trajeto cem metros além das luxuosas casas de Boston e as mansões com grades e alta segurança ao nível da rua que pertenciam a Ordem. Tinha entrado ali com apenas uns poucos minutos de margem antes de que amanhecesse sobre a cidade e o sol o convertesse em uma bonita torrada por ter uma pele alérgica aos raios UV.

     Isso teria sido o fim perfeito para uma noite que levava o rótulo PIOR IMPOSSÍVEL escrito nela.

     Dante se encaminhou pelo austero corredor branco que girava uma e outra vez através do coração do labiríntico recinto. Necessitava uma ducha quente e jogar um descanço. Estava ansioso por poder passar todas as horas de luz a sós dormindo em seu quarto privado. Inclusive seria capaz de dormir durante os próximos vinte anos, o suficiente para livrar-se de ter que enfrentar-se ao enorme desastre no qual se colocou essa noite.

     —Né, Dante.

     Dante murmurou uma maldição quando ouviu a voz que o chamava do outro extremo do corredor. Era Gideon, o gênio dos computadores e a mão direita de Lucan, o venerável líder da Ordem. Gideon mantinha o recinto fortemente controlado por dentro e por fora; provavelmente estava a par da chegada de Dante do primeiro momento em que tinha posto um pé na propriedade.

     —Onde estiveste, amigo? supõe-se que tinha que ter chamado comunicando sua posição faz horas.

     Dante se voltou lentamente no comprido corredor.

     —Acredito que poderia dizer que minha posição estava um pouco fodida.

     —Não, merda —respondeu o outro vampiro, esquadrinhando-o com o olhar por cima de uns óculos de forma quadrada e lentes azul pálido. Soltou uma risada, sacudindo sua bicuda crista de cabelo loiro.

— Tem uma pinta espantosa. E cheira a resíduos tóxicos. Que diabos te passou?

     —É uma larga história. —Dante assinalou suas roupas feitas farrapos, sangrentas e empapadas, que fediam a salmoura, resíduos e merda das que tinha miserável em sua viagem pelo rio Mystic.

— Me ocuparei de todo mundo mais tarde. Por agora necessito uma ducha.

     —Com um limpador industrial —se mostrou de acordo Gideon.

— Mas a limpeza vai ter que esperar um pouco. Temos companhia no laboratório.

     A Dante o assaltou a preocupação.

     —Que tipo de companhia?

     —OH, te vai encantar. —Gideon lhe fez um gesto com a cabeça—. Vamos. Lucan requer sua presença para uma deliberação.

     Deixando escapar um comprido suspiro, Dante se colocou ao lado do Gideon. Caminharam dando outro giro pelo corredor, em direção ao laboratório técnico, o eixo de vigilância e inteligência onde os guerreiros tinham a maioria de suas reuniões. Quando a parede de vidro do laboratório apareceu a vista, Dante viu os outros três vampiros guerreiros que eram como da família para ele: Lucan, o escuro líder da Ordem; Nikolai, o presunçoso engenheiro do grupo; e Tegan, o maior depois de Lucan e o tipo mais individualista que Dante tinha conhecido nunca.

     Recentemente a Ordem tinha perdido outros dois membros. Rio, que tinha resultado gravemente ferido por um renegado que lhe tinha tendido uma emboscada uns meses atrás e permanecia na enfermaria do recinto, e Conlan, que foi assassinado pelos renegados na mesma época, em uma explosão que teve lugar em uma das linhas de trem da cidade.

     Enquanto Dante esquadrinhava a assembléia de guerreiros, seu olhar se fixou em um rosto familiar. Evidentemente, essa era a companhia que Gideon tinha mencionado. O vampiro varão tinha o bom aspecto de um contador, com seu traje escuro e sua camisa branca, uma gravata cinza que se via muito nova, e uns sapatos de cordões negros e brilhantes. Seu cabelo castanho dourado era curto e com um estilo impecável, sem uma mecha desconjurada. Embora havia um homem de grande tamanho baixo aquele aspecto tão gentil, recordava a esses meninos bonitos que parecem cinzelados que alguém vê nos anúncios das revistas, exibindo roupa de desenho ou perfumes caros.

     Dante franziu o cenho e sacudiu a cabeça.

     —Me diga que esse não é um dos novos candidatos a guerreiro.

     —Esse é o agente Sterling Chase, dos Refúgios Escuros de Boston —disse Gideon.

     Um Darkhaven agente da lei e a ordem. Certamente isso explicava o aspecto reservado e de inútil burocrata.

     —O que quer de nós?

     —Informação. Algum tipo de aliança, conforme tenho entendido. Os Darkhaven o enviaram até aqui com a esperança de obter ajuda da Ordem.

     —Nossa ajuda. —Dante se burlou, com ceticismo.

_ Me está tirando o sarro. Até não faz muito os habitantes dos Refúgios Escuros condenavam a nossos vigilantes rebeldes.

     Enquanto caminhava a seu lado, Gideon lhe lançou um olhar com um sorriso de satisfação.

     —A de dinossauros que sobrevivem a seu tempo e se vêem forçados a extinguir-se é uma das insinuações mais educadas que podem fazer-se.

     Era uma ironia, considerando que as populações desses santuários existiam obrigado a que os guerreiros continuavam lutando contra os renegados. Nas idades escuras da humanidade, muito antes do nascimento de Dante na Itália durante o século XVIII, a Ordem atuava como único amparo da raça dos vampiros. Então eram venerados e tidos como heróis. Nesses tempos em que os guerreiros caçavam e executavam aos renegados por todo o globo, sufocando inclusive as mais pequenas sublevações antes de que estas tivessem tempo de soltar raízes, os Darkhaven se relaxaram e entraram em um estado de arrogante confiança. O número dos renegados tinha diminuído nos tempos modernos, mas agora estava aumentando outra vez. Enquanto isso, os Darkhaven tinham adotado leis e procedimentos para tratar aos renegados como meros criminais, acreditando estupidamente que o encarceramento e a reabilitação eram uma forma viável de solucionar o problema.

     Os guerreiros da raça sabiam que não era assim. Eles viam as matanças de perto, enquanto que o resto da população permanecia escondida em seus santuários, fingindo estar a salvo. Dante e o resto da Ordem eram a única verdadeira defesa da estirpe, e tinham escolhido atuar de forma independente. Alguns argumentavam que em aberto desafio as impotentes leis dos Darkhaven.

     —Agora nos pedem ajuda? —As mãos de Dante, aos lados, fecharam-se em forma de punhos, pois não estava de humor para tratar com políticos Darkhaven nem idiotas que tratavam de vendê-los.

— Espero que Lucan nos chamasse a esta reunião para demonstrar que somos selvagens e capazes de matar a seus malditos mensageiros.

     Gideon soltou uma risada enquanto as portas de cristal do laboratório se abriam ante eles.

     —Tenta não afugentar ao agente Chase antes de que tenha a oportunidade de explicar por que está aqui, de acordo, Dante?

     Gideon entrou na sala. Dante o seguiu, dirigindo um gesto respeitoso a Lucan e seus irmãos ao entrar na espaçosa habitação de controle. Voltou seu olhar para o agente Darkhaven, mantendo o olhar enquanto o vampiro civil se levantava de sua cadeira na mesa de conferências e observava o estado sangrento e machucado de Dante com um desgosto logo que dissimulado.

     Agora ele estava encantado de não ter tido tempo para arrumar-se. Com o desejo de que a ofensa fora maior, Dante se aproximou até o agente e lhe ofereceu sua mão imunda.

     —Você deve ser o guerreiro chamado Dante —disse o representante dos Darkhaven com voz grave e cultivada. Aceitou a mão que Dante lhe oferecia lhe dando um breve apertão. Fez um gesto com o nariz quase imperceptível, seus magros orifícios se agitaram ao notar o fedor de Dante.

— É um privilégio lhe conhecer. Sou o agente de Investigação Especial Sterling Chase, dos Refúgios Escuros de Boston. Agente Superior de Investigação —acrescentou, .

— Mas deixemos de cerimônias. Por favor, desejo que todos vocês se sintam livres de dirigir-se a mim como lhes agrado.

     Dante se limitou a grunhir, reprimindo a forma de dirigir-se a ele que lhe vinha a mente. Em lugar de lhe dizer nada, deixou-se cair no assento mais próximo ao agente, mantendo nele um olhar fixo e frio.

     Lucan se esclareceu garganta, isso indicava que o maior da estirpe ia retomar o mando da reunião.

     —Agora que estamos todos, vamos ocupar- nos de nossos assuntos. O agente Chase trouxe notícias de recentes distúrbios entre os Darkhaven de Boston. Houve uma avalanche de jovens vampiros que desapareceram recentemente. Gostaria de obter ajuda da Ordem para encontrá-los. Eu lhe hei dito que a terá.

     —A busca e o resgate não é exatamente nossa ocupação —disse Dante, com os olhos cravados no civil enquanto se ouvia um murmúrio de acordo na mesa dos guerreiros.

     —Isso é verdade —interveio Nikolai. O vampiro de origem russa sorriu desde debaixo de uma larga meada de cabelo avermelhado que não conseguia tampar por completo seu arrepiante olhar de cor azul gelo.

— Somos mais de atirar a pedra e esconder a mão.

     —Trata-se de algo mais que uns poucos vampiros extraviados que se saltaram o toque de silêncio e necessitam uns puxões de orelhas. —disse Lucan. Seu tom sombrio trocou imediatamente a atitude que havia na habitação.

— Deixarei que o agente Chase explique do que se trata.

     —No mês passado, um grupo de três Darkhaven jovens foram a uma festa rave em algum lugar da cidade e nunca retornaram. Uma semana mais tarde, desapareceram outros dois. Após, cada noite houve mais desaparecimentos na zona dos Refúgios Escuros de Boston. —O agente Chase agarrou uma maleta que havia no chão junto a ele e tirou uma grosa pasta. Colocou-a no centro da mesa de conferências. De seu interior saíram uma dúzia de fotografias: rostos sorridentes de jovens. Estes vampiros são os desaparecimentos das que temos informem. Provavelmente perdemos a outros dois jovens durante o tempo que levamos aqui reunidos.

     Dante examinou cuidadosamente a pilha de fotografias e logo passou a pasta por cima da mesa, dizendo-se que não podiam ser fugitivos. A vida podia resultar aborrecida para os jovens Darkhavens com algo que demonstrar ao mundo, mas não havia nada tão mau como para que grupos deles fugissem ao mesmo tempo.

     —Houve algum resgate? Alguma observação? O desaparecimento de tantas pessoas em um período de tempo tão curto... Parece-me que alguém deveria saber algo sobre isto. —encontraram-se só a uns poucos. Chase tirou outra pasta de sua maleta, esta última grandemente mais magra que a primeira. Extraiu umas poucas fotografias e as pulverizou ante ele sobre a mesa. Eram fotografias do depósito de cadáveres. Três vampiros civis, da geração atual, e provavelmente nenhum tinha mais de trinta e cinco anos. Em cada foto, um par de olhos petrificados olhavam fixos a lente da câmara, com as pupilas alargadas convertidas em fendas famintas e a cor natural da íris saturada de um amarelo âmbar brilhante pela luxúria do sangue.

     —São renegados —disse Niko, virtualmente assobiando a palavra.

     —Não —replicou o agente Chase.

— Morreram em pleno ataque de luxúria do sangue, mas não voltaram para sua condição normal. Não eram renegados.

     Dante se levantou da cadeira e se inclinou sobre a mesa para olhar mais de perto as fotos Seu olhar foi atraído imediatamente pela crosta de espuma rosada seca que se formou em torno das bocas frouxas. Era o mesmo tipo de resíduo de saliva que tinha observado no vampiro que o tinha atacado ao sair do clube aquela noite.

     —Alguma idéia do que foi o que os matou?

     Chase assentiu.

     —Uma overdose de narcóticos.

     —Algum de vocês ouviu falar na cidade de uma nova droga chamada carmesim? —perguntou Lucan ao grupo de guerreiros. Nenhum a tinha ouvido nomear.

— Pelo que me há dito o agente Chase, é um composto químico particularmente perigoso que está circulando ultimamente entre as turmas de jovens da raça. É um estimulante um pouco alucinógeno que também provoca um estalo de enorme força e resistência. Mas esse é só o aperitivo. A verdadeira diversão dá começo uns quinze minutos depois da ingestão.

     —Exato —admitiu o agente Chase.

— Quem ingere ou inalam esses pós vermelhos logo experimentam uma sede extrema e calafrios de febre. Vêem-se arrojados a um estado animal onde perdem o sentido e exibem todos os rasgos da luxúria de sangue, das pupilas fixas e elípticas e as permanentes presas até a insaciável necessidade de sangue. Se se deixar ao indivíduo saciar esta necessidade quase seguro que se transformará em um renegado. Se continua consumindo carmesim este é o resultado —disse Chase assinalando as fotografias do depósito de cadáveres.

     Dante soltou uma maldição, em parte porque a epidemia da histeria estaria a ponto de entrar em erupção entre a população dos Refúgios Escuros, mas também ao dar-se conta de que o jovem vampiro doente da luxúria do sangue ao que tinha matado essa noite era um jovem da raça como esses poluídos pela merda que Chase acabava de descrever. Ainda assim lhe custava lamentar a morte do moço que se arrojou contra Dante como uma tonelada de tijolos.

     —Essa droga, carmesim—disse Dante—, alguém tem alguma idéia de onde procede, quem pode estar fabricando-a ou distribuindo-a?

     —Não temos nada mais que o que tenho exposto aqui.

     Dante viu a grave expressão de Lucan e entendeu para onde apontava aquilo.

     —E aí é onde entramos nós, não?

     —Os Darkhaven pediram nossa ajuda para identificar e, se for factível ou simplesmente possível, recuperar a alguns desses cidadões desaparecidos se nos cruzamos com eles em nossas patrulhas noturnas. Obviamente, a parte disto, compartilhamos o interesse por deter o negócio do carmesim e aos que o dirigem. Acredito que todos estaremos de acordo em que quão último necessitamos os da estirpe é mais vampiros que se convertam em renegados. Dante assentiu junto com os outros.

     —A boa vontade da Ordem para nos ajudar com o problema é altamente apreciada. Dou- as graças a todos —disse Chase, detendo o olhar em cada um dos vampiros guerreiros.

— Mas há algo mais, se me permitirem.

     Lucan fez uma leve inclinação de cabeça, convidando ao agente a continuar.

     Chase se esclareceu garganta.

     —Eu gostaria de participar ativamente na operação.

     Um comprido e tenso silêncio se prolongou enquanto Lucan franzia o cenho e se tornava para trás em sua poltrona na cabeceira da mesa.

     —Ativamente em que sentido?

     —Quero ir junto com um ou mais membros da Ordem, para fiscalizar pessoalmente a operação e ajudar na recuperação desses indivíduos desaparecidos.

     Sentado ao outro lado de Dante, Nikolai rompeu a rir.

     Gideon se passou os dedos pela cabeça raspada e logo deixou seus óculos de sol cor azul pálida sobre a mesa.

     —Não levamos a civis conosco em nossas operações. Nunca o temos feito e nunca o faremos.

     Inclusive Tegan, o estóico, que não tinha pronunciado nenhuma só palavra durante toda a reunião, viu-se finalmente inclinado a expressar seu desacordo.

     —Não sobreviveria você nenhuma noite, agente —disse sem nenhuma inflexão na voz, expondo a crua realidade.

     Dante se guardou para si sua incredulidade, seguro de que Lucan faria calar ao agente com somente o poder de seu olhar. Mas Lucan não rechaçou a idéia abertamente. Ficou em pé, com os punhos preparados ao bordo da mesa de conferências.

     —Nos deixe só —disse a Chase.

— Meus irmãos e eu discutiremos sua petição em privado. De momento nossos negócios acabaram, agente Chase. Pode retornar ao Refúgio Escuro para esperar nossa decisão. Estarei em contato com você.

     Dante e o resto dos guerreiros se levantaram também; logo, depois de um comprido momento, também o fez o agente Darkhaven, recuperando sua elegante mala de couro que se achava no chão junto a ele. Dante se apartou um passo da mesa. Quando Chase tratou de passar junto a ele se encontrou com que o grosso ombro de Dante lhe bloqueava o caminho. Dado que não tinha outra eleição, deteve-se.

     —Os tipos como você nos chamam selvagens —lhe disse Dante com dureza—, e aqui está, todo elegante e brilhante com seu traje e sua gravata, pedindo nossa ajuda. Lucan fala em nome da Ordem, e se ele disser que vamos pôr de nossa parte para salvar seu rabo neste assunto para mim está bem. Mas isso não significa que tenha que gostar disso. E tampouco significa que tenho que gostar de você.

     —Não espero ganhar nenhum concurso de popularidade. E se tiver dúvidas sobre o rol que tenho proposto desempenhar nesta investigação, pois adiante, pode se expressar.

     Dante soltou uma risada, surpreso ante o desafio. Não o esperava desse tipo.

     —Vamos deixar de cerimônias, agente Chase, de Investigação Especial... desculpe... agente Superior de Investigação... mas o que eu faço, o que todos os presentes nesta habitação fazemos, todas e cada uma das noites, é um trabalho tremendamente sujo. Lutamos. Matamos. Asseguro-te que não fazemos nenhum tipo de programa turístico para agentes Darkhaven que procuram construir suas carreiras políticas sobre a base de nosso suor e nosso sangue.

     —Essa não é minha intenção, asseguro-lhe isso. A mim tudo o que me importa é minha tarefa de localizar e recuperar aos indivíduos que desapareceram de minha comunidade. Se a Ordem pode deter a proliferação dessa droga chamada carmesim no processo, muito melhor. E também para todos os da estirpe, é obvio.

     —E como é que se sente remotamente qualificado para sair a patrulhar conosco?

     O agente Chase olhou em volta da habitação, possivelmente procurando ajuda por parte de algum dos guerreiros que se achavam em pé ante a mesa. A habitação permanecia em silêncio. Nem sequer Lucan interveio em seu benefício.

     Dante afiou o olhar e sorriu, com a esperança de que o silêncio fizesse partir ao agente, enviando o de volta a seu tranqüilo e pequeno santuário com orabo entre as pernas.

     Então Dante e o resto da Ordem poderiam voltar para seus assuntos, quer dizer, matar renegados, preferivelmente sem público e sem um maldito cartão de pontuação.

     —Sou licenciado em ciências políticas pela universidade de Columbia —disse finalmente Chase.

— E como meu irmão e como meu pai antes que eu, estudei direito em Harvard, onde me graduei com as qualificações mais altas de minha classe. Além disso, treinei em três escolas de artes marciais e sou um atirador perito, a um alcance de trezentos e cinqüenta metros. Isso sem a ajuda de uma lente telescópica.

     —É isso certo? —O resumo era impressionante, mas Dante apenas se alterou—. Então, me diga, Harvard, quantas vezes puseste em prática seu treinamento, em artes marciais ou com as armas, fora de classe? Quanto sangue teu derramaste? Quanto atirou a seus inimigos no calor da batalha?

    O agente sustentou o olhar fixo de Dante, com o queixo quadrado e barbeada apontando para cima.

     —Não me dá medo me pôr a prova na rua.

     —Isso é bom —disse Dante alargando as palavras.

— É realmente bom, porque se está pensando em sair a dançar com algum de nós, asseguro-te que lhe poremos a prova.

     Chase mostrou seus dentes em um sorriso tenso.

     —Obrigado por avisar.

     Roçou a Dante ao passar junto a ele, murmurou uma saudação a Lucan e aos outros e saiu do laboratório a grandes passos apertando sua maleta na mão.

     Quando as portas de cristal se fecharam depois do agente, Niko soltou uma maldição em sua língua nativa da Siberia.

     —Este é um fodido tipo que está mal da cabeça, um administrativo que se acredita que vai ter os suficientes colhão para sair conosco.

     Dante sacudiu a cabeça, compartilhando a mesma opinião, mas seus pensamentos lhe estavam dando voltas a outra coisa igual de turbadora. Possivelmente mais.

     —Atacaram-me esta noite na cidade —disse, olhando os rostos tensos de seus irmãos—. Pensei que se tratava de um renegado espreitando a sua presa a saída do clube. Lutei com esse maldito bode, mas não foi fácil. Finalmente acabei perseguindo-o até a beira do rio, onde me meti em um novo problema. Um grupo de vampiros chupadores de sangues muito bem armados me deram duro.

     Gideon inclinou a cabeça e lhe dirigiu um olhar afiado.

     —Maldita seja, Dante. Por que não pediu ajuda?

     —Não tive tempo de fazer nada mais que tratar de salvar meu próprio traseiro —disse Dante, recordando a brutalidade do ataque.

— A coisa é que aquele vampiro chupador de sangre ao que persegui lutava como um demônio. Era virtualmente imparavel, como os membros da primeira geração dos renegados, talvez pior. E o titânio não lhe afetava.

     —Se era um renegado —disse Lucan—, o titânio deveria havê-lo matado ali mesmo.

     —Exato —reconheceu Dante.

— Mostrava todos os sintomas de um estado de avançada luxúria de sangue, mas não se converteu realmente em um renegado. E ainda há mais. Essa baba rosada seca que viram nas fotos do depósito de cadáveres que trouxe Chase... Esse vampiro chupador de sangue a tinha.

     —Merda —disse Gideon, agarrando as fotografias e mostrando-lhe aos outros guerreiros.

— Assim além de ter que tratar com os contínuos problemas que temos com os renegados, agora vamos ter que lutar também contra vampiros da estirpe poluídos por essa maldita droga chamada carmesim. No calor da batalha, como vamos ou seja o que temos ante a mira de nossos rifles?

     —Não saberemos —disse Dante.

     Gideon se encolheu de ombros.

     —De repente as coisas já não são brancas ou negras.

     Tegan, com sua plácida e fria expressão habitual, soltou uma risada irônica.

     —Faz uns poucos meses, nosso problema com os renegados se converteu em uma guerra aberta. Não havia muito lugar para o cinza nessa imagem.

     Niko expressou seu assentimento com a cabeça.

     —Se um vampiro chupador de sangue quer ver-se comigo, seja um consumidor de carmesim ou um renegado, só poderá esperar encontrar uma coisa: a morte. Deixemos que os Darkhaven se ocupem dos escombros quando tudo tenha acabado.

     Lucan centrou sua atenção em Dante.

     —E o que passa contigo, Dante? Se preocupa participar disto?

     Dante se cruzou de braços, mais que preparado para essa ducha e para terminar com uma noite que tinha ido rua abaixo desde que começou e ameaçava seguindo assim até que se fosse a cama.

     —O pouco que sabemos dessa droga chamada carmesim não soa bem. Todos esses civis desaparecidos, que com o tempo serão cada vez mais, vão desencadear uma quebra de onda de pânico entre a população dos Refúgios Escuros. Bastante mal o temos já com esta nova complicação dos consumidores de carmesim, mas podem imaginar quão complicada será a situação de ter as ruas infestadas por turmas de agentes Darkhaven tratando de identificar a pessoas desaparecidas e as deter por sua conta?

     Lucan assentiu.

     —O qual nos conduz de novo ao agente Chase e sua petição de participar de nossa operação. Foi a nós com as mesmas preocupações, não quer semear uma quebra de onda de pânico e entretanto precisa recuperar aos desaparecidos e achar uma solução rápida ao problema que o consumo de carmesim parece estar causando entre os vampiros da estirpe. Acredito que ele pode nos beneficiar, não só na operação em si mesmo, mas também também nas ruas. Pode ser bom para a Ordem ter algum aliado entre os Darkhaven.

     Dante não pôde evitar mofar-se com incredulidade.

     —Nunca os necessitamos. Durante séculos estivemos tirando do fogo seus malditos traseiros, Lucan. Não me diga que agora os vamos começar a beijar. Que fodam a esse homem! Se deixarmos que se metam em nossos assuntos, sabe muito bem que quão próximo teremos que fazer será lhes pedir permissão para mijar.

     Tinha ido muito longe. Lucan não disse nada, mas um olhar raivoso aos outros guerreiros bastou para que todos saíssem da habitação e ele pudesse ficar a sós com Dante. Dante olhava fixamente o chão de mármore branco sob suas botas empapadas, tendo a sensação de que acabava de pisar em um fossa de desgraça.

     Ninguém perdia o controle frente a Lucan.

     Era o líder da Ordem, tinha-o sido da formação inicial do quadro de elite dos guerreiros fazia quase setecentos anos, muito antes de que Dante e a maioria dos membros atuais tivessem nascido. Lucan pertencia a primeira geração da estirpe. Por seu sangue corriam os gens dos Antigos, esses desumanos de outro mundo que tinham chegado a este planeta o milênio passado, tinham procriado com fêmeas humanas e tinham dado começo a primeira geração da raça dos vampiros. Os que tinham agora gens como os de Lucan eram muito poucos e continuavam sendo os mais poderosos, embora também os mais imprevisíveis, de toda a raça.

     Ele era o mentor de Dante, um verdadeiro amigo, se Dante tinha a ousadia de chamar assim a um guerreiro tão formidável como ele.

     Mas isso não significava que Lucan não pudesse lhe abrir uma brecha se acreditava que Dante o necessitava.

     —Não daria uma merda pelos relações públicas dos Darkhaven, igual a você —disse Lucan. A cadência de sua profunda voz era mesurada e fria.

— Mas as notícias sobre esta droga me preocupam. Precisamos averiguar quem a está proporcionando e romper esta cadeia. É um assunto muito importante para deixá-lo em mãos dos Darkhaven. Se ter um controle sobre esta operação, de momento e até que possamos dirigi-la em nossos próprios términos, significa permitir que o agente Chase jogue a fazer de guerreiro durante umas poucas noites, esse é o preço que teremos que pagar.

     Quando Dante abriu a boca para esgrimir um argumento mais contra essa idéia, Lucan arqueou uma de suas sobrancelhas negras e o interrompeu antes de que pudesse dizer uma palavra.

     —Decidi que você será o que patrulhe em casal com o agente Chase.

     Dante se mordeu a língua, consciente de que Lucan não permitiria uma discussão.

     —Escolho a você porque você é o melhor para este trabalho, Dante. Tegan provavelmente mataria ao agente, simplesmente porque lhe incomoda. E Niko, embora seja um guerreiro capaz, não tem tantos anos de experiência como você nas ruas. Mantenha ao agente Darkhaven longe de problemas, mas não perca de vista o objetivo principal: exterminar a nossos inimigos. Sei que não me falhará. Nunca o tem feito. Contatarei com o Chase e lhe farei saber que sua visita turística começa amanhã de noite.

     Dante fez um profundo assentimento com a cabeça a modo de aceitação, sem atrever-se a falar enquanto sentia que a indignação ardia em suas veias. Lucan lhe deu uma palmada no ombro, como mostrando que entendia a ira que fervia no interior de Dante, e logo saiu do laboratório. Dante não pôde fazer mais que permanecer ali durante um momento, apertando a mandíbula com tanta força que as demola lhe ardiam pela pressão.

     Realmente tinha entrado no recinto acreditando que a noite não poderia piorar?

     Maldita seja, estava completamente equivocado.

     Depois de tudo o que tinha passado nas últimas doze horas, culminando com esta involuntária tarefa de babá que lhe tinha sido encomendada, teria que reconsiderar seriamente sua idéia do que é considerar algo «pior impossível».

    

     — Já está, senhora Corelli. —Tess levantou uma jaula de plástico para transportar gatos e a colocou sobre o balcão de recepção, devolvendo a sua proprietária o gato persa branco que resmungava.

— Anjo não está muito contente agora mesmo, mas seguro que se sentirá melhor em um par de dias. Embora se eu fosse você não o deixaria sair fora até que lhe tenham caido os pontos. A partir de agora já não voltará a sentir-se nunca mais como um Romeo.

     A mulher maior estalou a língua.

     —Há meses, por minha rua acima e abaixo, o que é o que vejo? Pequenos anjos correndo por toda parte. Já o hei dito, eu não tinha nem idéia! E meu pobre pequeno bichano, voltando cada noite a casa com o aspecto de um boxeador profissional, com essa preciosa carinha sua feita pedaços e sangrando.

     —Bom, a partir de agora já não terá mais interesse em brigar. Nem em seu outro passatempo. Fez você o correto esterilizando-o, senhora Corelli.

     —Meu marido queria saber se faria você o mesmo com o atual namorado de nossa neta. Esse menino é um selvagem. Não faz mais que meter-se em problemas e só tem quinze anos!

     Tess riu.

     —Temo que minha prática se limita aos animais.

     —É uma verdadeira lástima. E agora, o que lhe devo, querida?

     Tess observou a anciã tirando sua caderneta de cheques com mãos gretadas e artríticas. Apesar de que tinha superado com acréscimo a idade de aposentar-se, Tess sabia que a senhora Corelli limpava casas cinco dias da semana. Era um trabalho duro, e o salário era escasso, mas desde que o pagamento de invalidez de seu marido se acabou uns anos atrás, a senhora Corelli se converteu na única fonte de ganhos do lar. Quando Tess sentia tentações de lamentar-se de si mesma por ir tão justa de dinheiro e transbeirada de problemas, pensava nessa mulher que conseguia sair adiante com dignidade e elegância.

     —Atualmente estamos oferecendo uns serviços especiais, senhora Corelli. Assim que o total de sua fatura hoje é de vinte dólares.

     —Está segura, querida? —Ante o firme assentimento de Tess, a mulher pagou os honorários da clínica, logo pegou o trasporte do mascote sob o braço e se dirigiu para a saída.

—Obrigado, doutora Tess.

     —De nada.

     Quando a porta se fechou atrás de sua cliente, Tess olhou o relógio de parede da sala de espera. Era pouco mais das quatro. O dia lhe estava fazendo interminável, sem dúvida devido à estranha noite que tinha tido. Tinha considerado a idéia de anular suas consultas e ficar em casa, mas finalmente obrigou a si mesmo a trabalhar o dia inteiro. Uma consulta mais e já poderia partir.

     Embora, em realidade, não tinha nem idéia de por que estava tão ansiosa por voltar para seu apartamento vazio. Sentia-se nervosa e esgotada ao mesmo tempo, todo seu sistema era presa de um estranho tipo de inquietação.

     —Tem uma mensagem do Ben —anunciou Nora enquanto saía de uma das salas de cuidados para cães.

— Está em uma nota preso a seu telefone. Algo sobre uma exposição de arte luxuosa manhã de noite? Disse que você tinha mencionado que iria com ele faz umas semanas, mas queria assegurar-se de que não tinha esquecido.

     —OH, merda. O jantar e exposição do especialista em belas artes é amanhã de noite?

     Nora lhe dedicou um olhar irônico.

     —Parece que te esqueceste. Bom, sonha bastante divertido. OH, e sua vacina número vinte e quatro acaba de chamar para cancelar. Uma das garotas do restaurante está doente, assim que ela tem que trabalhar duplo turno. Quer trocar a consulta para a próxima semana.

     Tess se recolheu a larga juba por detrás do pescoço e se esfregou os tensos musculos da nuca.

     —Está bem. Pode chamá-la e voltar a fixar a consulta para outro dia?

     —Já o tenho feito. Encontra-te bem?

     —Sim, foi uma noite longa, isso é tudo.

     —Isso ouvi. Ben me contou o que tinha passado. Ficou dormida de novo em seu escritório, é assim? —Nora riu, sacudindo a cabeça.

— E Ben, preocupado, chamou a polícia para te socorrer. Me alegro de que não se colocou em confusões com eles por causa desse «gato extraviado» que recolheu.

     —Eu também.

     Ben tinha prometido ao deixá-la em casa que voltaria a recolher Shiva da clínica para devolvê-lo a seus donos, tal como a polícia lhe tinha ordenado. O que não prometeu é que não fosse haver outro intento de resgate. Já que aquela não era a primeira vez, Tess se perguntava se seu tenaz entusiasmo, por muito bem-intencionado que fosse, não seria algum dia sua perdição.

     —Sabe uma coisa —disse a sua ajudante—, sigo sem entender como pude marcar seu número de chamada rápida estando dormida...

    —Ora. Possivelmente de forma inconsciente desejava chamá-lo. Talvez eu tente fazer isso uma noite. Crê que a mim também viria a me resgatar? —Ante o olhar de Tess, Nora fez um gesto com as mãos em sinal de claudicação.

— Só o dizia... Realmente parece um menino estupendo. Bonito, inteligente, encantador... e não esqueçamos que está louco por ti. Não sei por que não lhe dá uma oportunidade.

     Tess lhe tinha dado já uma oportunidade, mais de uma, em realidade. E embora parecesse que os problemas que tinha tido com ele eram coisa do passado —ele não fazia mais que jurar uma e outra vez que assim era—, ela se mostrava precavida porque não queria ver-se envolta outra vez em nada mais lá de uma amizade. De fato, estava começando a pensar que não estava preparada para uma relação séria com ninguém.

     —Ben é um bom menino —disse finalmente, recolhendo a mensagem e guardando-a no bolso do uniforme de cor verde que levava debaixo da larga bata de laboratório.

—Mas nem todo mundo é sempre o que parece.

     Com o cheque da senhora Corelli rematando os recibos do dia, Tess o selou para o banco e começou a preparar um resguardo de ingresso.

     —Quer que leve isso de caminho a minha casa? —perguntou-lhe Nora.

     —Não, farei-o eu. Já que estamos livres de consultas, acredito que vou a casa. —Tess guardou o resguardo de ingresso na pasta de pele em que arquivava os recibos. Quando levantou a vista, Nora a estava olhando boquiaberta.

— O que? O que acontece?

     —Não sei. Quem demônios é você e o que tem feito com minha chefe viciada no trabalho?

     Tess vacilou, sentindo-se de repente culpada pelos muitos dias que ficavam de arquivar documentos e pensando que era injusta a idéia de sair cedo, ou mas bem, em realidade, a hora oficial.

     —Estou brincando! —disse Nora, correndo em torno do escritório para empurrar a Tess para o pequeno vestíbulo.

— Vai a casa. Te relaxe. Faz algo divertido, pelo amor de Deus.

     Tess assentiu, sentindo-se agradecida de ter a alguém como Nora ao seu lado.

     —Obrigado, não sei o que faria sem você.

     —Simplesmente recorda-o-a próxima vez que revise meu salário.

     A Tess levou tão somente uns poucos minutos desfazer-se de sua bata de laboratório, agarrar sua bolsa e apagar o computador do escritório. Saiu da clínica e caminhou sob o sol da tarde, incapaz de recordar a última vez que tinha conseguido deixar de trabalhar e caminhar até a estação antes de que escurecesse. Desfrutando da repentina liberdade —incluso seus sentidos pareciam mais vivos e sensíveis que nunca—, Tess se tomou as coisas com calma, chegou ao banco justo antes de que fossem fechar e agarrou o metrô até sua casa no North End.

   Seu apartamento era bonito mas nada do outro mundo. Um só dormitório, um banho e o bastante perto da auto-estrada como para que ela tivesse aprendido a considerar o contínuo assobio de tráfico fluido e veloz como um ruído de fundo.

     Nem sequer as freqüentes buzinadas de condutores impaciente ou os chiados dos freios de veiculos nas ruas que havia justo debaixo a incomodavam realmente. Até agora.

     Tess subiu os dois lances de escadas até seu apartamento, enquanto em sua cabeça repicava o ruído da rua como se fosse um estrondo. Encerrou-se dentro da casa e se apoiou contra a porta, deixando cair sua bolsa e suas chaves sobre uma antiga máquina de costurar que tinha comprado para reconvertê-la em um aparador do vestíbulo. Tirou-se seus mocasins de pele marrom e entrou na sala para comprovar sua secretaria de voz e pensar o que jantaria.

     Tinha ali outra mensagem do Ben. Ia estar pelo North End essa noite e esperava que não lhe incomodasse que se aproximasse para ver como estava, e talvez sair a algum dos bares da vizinhança a tomar uma cerveja.

     Soava tão iludido, tão amigavelmente inofensivo, que o dedo de Tess rondou sobre o botão de devolver a chamada durante um comprido momento. Não queria respirá-lo, e já era o bastante mau que tivesse acertado com ele a saída para ir a exposição de arte contemporânea de Boston.

     A inauguração tinha lugar a noite seguinte, voltou a recordar-se a si mesmo, perguntando-se se teria alguma maneira de escapulir-se. Queria fazê-lo, mas não o faria. Ben tinha conseguido os convites precisamente porque sabia que lhe encantava a escultura e os trabalhos de alguns de seus artistas favoritos estariam expostos durante pouco tempo.

     Era um detalhe muito considerado, e rechaçando-o agora só conseguiria ferir Ben. Iria a exposição com ele, mas essa seria a última vez que fariam algo em casal, embora fosse só como amigos.

     Com essa firme decisão em mente, Tess ligou a televisão e encontrou um velho episódio repetido de Friends, logo foi até a cozinha a procurar algo de comer. Dirigiu-se diretamente ao congelador, sua habitual fonte de sustento.

     Qual aborrecida caixa laranja de congelados escolheria esta noite?

     Distraída agarrou a primeira que teve ao alcance e a abriu.

     Quando a cobertura de celofane fez ruído sobre a mesa, franziu o cenho. Realmente era assim como pretendia passar sua insólita noite fora do escritório?

     «Faz algo divertido», havia-lhe dito Nora.

     Tess estava virtualmente segura de que nada do que tinha programado até agora constituía nenhuma diversão. Não para a Nora, certamente, mas nem sequer para ela.

     Estava a ponto de fazer vinte e seis anos e, no que tinha deixado que se convertesse sua vida?

     Embora seus sentimentos amargos não eram simplesmente o resultado da perspectiva do arroz insípido e o frango gomoso, Tess observava o tijolo congelado de comida com desprezo. Quando tinha sido a última vez que tinha cozinhado uma boa comida de maneira improvisada, com suas próprias mãos?

     Quando tinha sido a última vez que tinha feito algo bom simplesmente para si mesmo?

     Fazia muito tempo, concluiu, recolheu aquela coisa da barra e a atirou ao lixo.

    

     Sterling Chase, o agente superior de Investigação Especial, havia retornado rapidamente ao recinto dos guerreiros ao anoitecer. Para maior credibilidade, tirou-se o traje e a gravata, optando por uma camisa de linho cor grafite, calças jeans negras e botas de couro negras com reveste de borracha. Também tinha abafado seu brilhante cabelo com uma boina também escura. Vestido como ia agora, Dante quase esqueceria que era um civil.

     Lástima que nenhuma medida de camuflagem pudesse ocultar o fato de que para Dante Harvard resultava ser, a partir daquele momento, como um aborrecido grão no traseiro.

     —Se algum dia tivermos que atacar um banco, ao menos já sei ao armário de quem posso recorrer —lhe disse ao agente Darkhaven enquanto ficava a trincheira de couro carregada com todo tipo de armas para lutar corpo a corpo, e os dois se dirigiam por volta de um dos parques de veiculos da Ordem na garagem do recinto.

     —Não conterei a respiração esperando a que me chame —lhe soltou Chase divertido, observando uma coleção de aparelhos de primeira.

— Parece que o estão fazendo bastante bem sem recorrer a grandes furtos.

     A enorme garagem, que parecia mas bem um amplo hangar, albergava dúzias de veículos, carros Land Rover e bicicletas, alguns carros de época e alguns atuais, todos eles conformavam uma autêntica explosão de beleza. Dante o conduziu até um flamejante Porche Jacaré S negro basalto e lhe deu ao controle remoto para abri-lo. Os dois subiram ao carro de duas portas, Chase olhou o impecável interior com evidente satisfação enquanto Dante punha em marcha o motor e marcava o código para abrir a porta do hangar. Logo a doce besta negra começou sua sigilosa ronda noturna.

     —A Ordem vive muito bem —comentou Chase junto a Dante na cabine fracamente iluminada. Deixou escapar uma risada divertida.

— Já sabe, uma grande parte da população dos Refúgios Escuros acredita que são credos mercenários, que continuam vivendo sem leis em covas subterrâneas.

     —Isso é —murmurou Dante olhando ferozmente o lance de escura estrada que se estendia ante ele. Com a mão direita, abriu o porta-luvas central e extraiu uma mochila de couro que continha um pequeno contrabando de armas. Deixou cair todas elas: facas embainhadas, uma grosa cadeia e uma pistola semi-automática com sua capa, nos joelhos do agente.

— Vamos, Harvard. Suponho que pode imaginar que extremo dessa Beretta 92FS trucada é o que vais necessitar para apontar aos meninos maus. Sobre tudo, sabendo que vem dos corredores rarefeitos dos Refúgios Escuros e essas coisas.

     Chase sacudiu a cabeça e murmurou um impropério.

     —Olhe, não era isso o que queria dizer...

     —Importa-me uma merda o que queria dizer —replicou Dante, girando bruscamente a esquerda em torno de um armazém e acelerando ao longo de uma rua vazia.

— Me importa uma merda o que pense de mim ou de meus irmãos. Deixemos isso de uma vez, entendido? Vieste comigo só porque Lucan há dito que viria comigo. O melhor que pode fazer é ficar sentado aqui quieto, com a boca fechada e te manter o mais afastado que possa de mim.

     A ira brilhava nos olhos do agente, que podia sentir o calor desta crescendo em longas ondas. Embora Dante pensasse que Chase não estava acostumado a obedecer ordens —e menos de alguém que considerasse por debaixo dele na escala social— o Darkhaven se guardou seu aborrecimento para si. Revisou as armas que Dante lhe tinha dado, comprovou o seguro da pistola e logo a guardou na capa de couro.

     Dante conduziu entrando no North End de Boston, seguindo um aviso que Gideon tinha obtido a respeito de uma possível festa rave que teria lugar em um dos velhos edifícios da zona. Às sete e meia da tarde, ainda tinham cinco horas durante as quais matar o tempo antes de que alguma atividade ao redor do lugar demonstrasse a pertinência ou não pertinência do aviso. Mas Dante nunca tinha podido exercer esse tipo de paciência. Não podia sentar-se e esperar, pois tinha em mente que a morte era mais difícil para um alvo em permanente movimento.

     Apagou as luzes e estacionou o Porche na rua que havia sob o edifício que estavam vigiando. levantou-se uma brisa, enviando um punhado de folhas e pó de cidade ao capô do veículo. Quando a brisa se acalmou, Dante baixou o guichê e deixou que o ar fresco penetrasse dentro. Respirou profundamente, enchendo seus pulmões da ligeira brisa que refrescava já a finais do outono.

     Um aroma doce e picante lhe fez cócegas no nariz, enviando a cada célula de seu corpo mensagens de alerta. O aroma era distante e esquivo, de nada fabricado pelo homem, ou os da estirpe nem nenhum de seus coletivos cientistas. Era de uma calidez escura, como a canela ou a baunilha, embora dizer isso era referir-se tão somente a algumas de seus matizes. Era uma fragrância deliciosa e singular.

     Dante soube imediatamente. Pertencia a fêmea da que se alimentou; a companheira de sangue que tão imprudentemente tinha feito sua fazia menos de vinte e quatro horas.

     «Tess.»

     Dante abriu a porta do carro e saiu.

     —O que vamos fazer?

     —Você ficará aqui —ordenou a Chase, sentindo-se miserável inexoravelmente para ela, avançando pelo pavimento.

     —O que acontece? —O agente tirou sua pistola e começou a sair do Porche como se queria seguir Dante.

— Diga-me o que está passando, maldita seja. Viu algo aí fora?

     —Fique dentro deste maldito carro, Harvard. E mantenha os olhos e os ouvidos colados a esse edifício. Eu vou comprovar algo aí fora.

     Dante não acreditava que fosse ocorrer nada durante os próximos minutos ali onde estavam, mas se ocorria, naquele momento realmente não lhe importava. Tudo o que tinha presente era o aroma desse perfume gasto pelo vento da noite e a consciência de que aquela mulher estava perto.

     Sua mulher, de algum lugar em seu interior lhe chegou essa escura lembrança.

     Dante lhe seguiu a pista como um depredador. Como todos os da estirpe, estava dotado de sentidos superiores e uma velocidade e agilidade animais. Quando queriam, os vampiros podiam mover-se entre os humanos sem ser detectados, e estes não sentiam mais que uma fria brisa na nuca quando passavam por detrás deles. Dante usou agora esta habilidade sobrenatural, navegando pelas ruas entupidas e os becos traseiros, com os sentidos atentos a sua presa.

     Dobrou uma esquina que fazia uma concorrida rua principal e ali estava, na larga calçada do outro lado da via.

     Dante ficou onde estava, observando com Tess fazia umas compras em um mercado ao ar livre, selecionando com cuidado verduras frescas e vegetais. Colocou uma cabaça amarela em sua bolsa de lona, logo examinou com atenção algumas frutas, detendo-se para levantar até seu nariz um pálido melão e comprovar sua maturidade.

     Do primeiro momento em que a tinha visto na clínica, Apesar do que o afetavam suas feridas, Dante se deu conta de que era preciosa. Mas essa noite, sob a fila de pequenas luzes brancas que iluminavam os postos, estava radiante. Tinha as bochechas vermelhas e seus olhos, de um verde azulado, brilhavam quando sorria aos anciões proprietários e os cumprimentava pela qualidade do que lhe ofereciam.

     Dante se transladou ao seu lado da rua, mantendo-se nas sombras, incapaz de separar os olhos dela. A essa distância, seu aroma era embriagador e excitante. Ele se deleitou respirando-o, examinando cuidadosamente sua picante doçura com os dentes, saboreando-o com a língua.

     Deus, queria prová-la outra vez.

     Queria beber dela.

     Queria tomá-la.

     Antes de saber o que estava fazendo, Dante deu um passo para baixar o meio-fio da rua. Podia ter estado a seu lado em menos de um segundo, mas algo estranho lhe chamou a atenção.

     Não era o único homem que observava Tess com evidente interesse.

     Uma pessoa, em pé sob a entrada de um edifício algumas leva mais à frente, esquadrinhava a parada do mercado tratando de não ser visto enquanto observava Tess realizando suas compras. Não parecia um perseguidor, com sua figura alta e magra e seu aspecto de bom menino universitário.

     Tess pagou os comestíveis e deu boa noite a anciã. No instante em que começou a afastar-se dos toldos iluminados onde estavam expostos os produtos, aquele homem saiu cuidadosamente de seu esconderijo.

     Dante se enfureceu ante a idéia de que Tess pudesse resultar ferida. Cruzou a rua em menos de uma piscada, ficando atrás do homem e seguindo-o a poucos passos, preparado para lhe arrancar os braços se fazia algo mais que respirar perto dela.

     —Né, doutora —a chamou o homem, com um tom de familiaridade na voz.

— O que há?

     Tess se deu a volta, e lhe dedicou um débil sorriso surpreendido.

     —Ben! O que está fazendo aqui?

     Ela o conhecia. Dante se tornou para trás imediatamente, penetrando entre a corrente de pedestres que se formavam redemoinhos em torno das lojas e os restaurantes.

     —Não ouviu a mensagem que deixei em sua casa? Tinha coisas que fazer por aqui, e pensei que talvez poderíamos jantar ou tomar algo.

     Dante viu como o humano ia até ela e a abraçava, e logo se inclinou para lhe dar um beijo na bochecha. Era evidente que a adorava; Dante detectou o forte sabor do sentimento de posse que irradiava esse homem.

     —Vamos ficar amanhã para jantar depois da exposição do museu? —perguntou-lhe o homem.

     —Sim, claro. —Tess assentiu, lhe entregando a compra quando ele se ofereceu a levar-lhe. O que me teria que pôr?

     —O que você queira. Sei que estará preciosa.

     É obvio. Dante agora o entendia. Aquele era o namorado que Tess tinha chamado a clínica a passada noite. Aquele a quem ela tinha ido ante o terror que Dante lhe tinha provocado.

     O ciúmes lhe retorceram o estômago... ciúmes que em realidade não tinha direito a sentir.

     Mas seu sangue lhe dizia outra coisa. Suas veias estavam vivas e ardentes. A parte dele que não era humano lhe urgia a cruzar entre a multidão e lhe dizer a essa mulher que pertencia a ele e só a ele. Soubesse ela ou não. Quisessem-no eles ou não

      Mas sua parte mais sensata colocou um colar ao redor do pescoço dessa besta e a reteve. Obrigou-a a deter-se.

     Não queria uma companheira de sangue. Nunca a tinha tido e nunca a teria.

     Dante observou Tess e seu namorado caminhando diante dele, seu bate-papo despreocupado se perdia entre outras conversações e o zumbido geral do ruído da rua que se formava redemoinhos a seu redor. Ficou atrás durante um momento, com o sangue pulsando em suas têmporas e também em outras regiões de sua anatomia.

     Deu-se a volta e se escapuliu com rapidez entre as sombras, de volta ao edifício onde tinha deixado Harvard vigiando. Tinha uns desejos infernais de que o aviso do Gideon a respeito da atividade de renegados ali resultará ser sólido —quanto antes melhor— porque agora mesmo estava ansioso por poder entregar-se a uma boa e sangrenta briga.

    

     Há operação de vigilância do North End foi um desastre. Tinha havido, em efeito, uma festa rave no velho e vazio edifício, mas os participantes eram só humanos. Não havia a vista nem um renegado, nem nenhum sinal de vampiros Darkhaven, nem tampouco nenhum jovem da estirpe vítima dessa droga chamada carmesim. Talvez deveriam tomar-se como um alívio que a cidade estivesse tranqüila durante umas horas, mas depois de ter patrulhado toda a noite sem êxito, Dante estava muito longe de sentir-se aliviado. Estava frustrado, tenso e muito necessitado de alimento.

     A cura para isso era bastante simples. Conhecia uma dúzia de lugares onde poderia encontrar a alguma fêmea voluntariosa com saborosas veias e um par de quentes e acolhedoras coxas. Depois de levar a Chase a sua residência do Refúgio Escuro, Dante conduziu até um clube noturno e estacionou o Porche junto ao meio-fio. Chamou o recinto desde seu telefone móvel e fez a Gideon um rápido resumo dos fiascos da noite.

     —Olha-o pelo lado bom, Dante. passaste sete horas inteiras junto ao agente Darkhaven sem matá-lo —sublinhou com ironia.

— É uma cota impressionante. Aqui tínhamos uma aposta a respeito de quanto ia durar o tipo. Eu apostei que dezenove horas como máximo.

     —Ah, sim? —Dante soltou uma risada.

— Aponte-me. A mim sete horas e meia.

     —Foi mau, né?

     —Suponho que podia ter sido pior. Ao menos Harvard sabe obedecer ordens, embora pareça um tipo que prefere estar ao mando.

     Dante olhou o retrovisor lateral do carro, distraído por uma pálida fêmea que exibia uma porção do ventre, vestida com um traje curto de couro, e se aproximava do veículo. Ascensão a uns saltos de plataforma, dirigiu-se para a janela fechada pavoneando-se com uma prática que fazia ver que se tratava de uma profissional. Quando se inclinou, lhe deixando vislumbrar seus exuberantes peitos, com um sorriso endurecido pela rua e os olhos ausentes pelo efeito da heroína, tirou-o de toda dúvida.

     —Procura companhia, bonito? —soltou ela ante o vidro escurecido, incapaz de ver quem se estava oferecendo e fazendo evidente que não lhe importava, pois só se fixou na qualidade de seu veículo.

     Dante a ignorou. Inclusive um libertino que vivesse o momento como ele tinha suas exigências. Logo que advertiu como a prostituta se encolhia de ombros, desanimada, e se afastava pela rua.

     —Necessito que faça uma busca para mim, Gid.

     —Claro —disse ele, ao tempo que se ouvia de fundo o ruído de um teclado disposto a ficar em ação.

— O que necessita?

     —Pode encontrar alguma espécie de museu onde inauguram uma exposição amanhã de noite? Com um jantar ou algo assim?

     Gideon logo que demorou um segundo em dar uma resposta.

     —Tenho uma lista de páginas de sociedade para elegantes mecenas onde se anuncia um jantar exposição no Museu de Belas artes. Amanhã de noite as sete e meia.

     Esse tinha que ser o ato de que estavam falando Tess e seu namorado. Seu encontro.

     Não é que devesse lhe preocupar o que fizesse essa mulher ou com quem. Não deveria lhe fazer bulir o sangue pensar em outro homem tocando-a, beijando-a. Afundando-se no interior de seu corpo.

     Isso não deveria registrar-se no contador que media sua fúria, mas era impossível que não fora assim.

     —O que acontece o Museu de Belas artes? —perguntou Gideon, interrompendo seus pensamentos.

— Tem uma pista sobre algo ali?

     —Não, não é nada disso. Simples curiosidade.

     —De repente te interessa pela arte? —O guerreiro riu.

— Deus santo, parece que umas poucas horas com o Harvard lhe estão causando uma série de efeitos secundários. Nunca imaginei interessado por essas porcarias mais próprias de intelectuais.

     Dante não era nenhum selvagem completamente inculto, mas nesse momento não estava de humor para dar explicações.

     — Esqueça falou com secura através do telefone móvel.

     Sua irritação só começaria a apaziguar-se quando se sentisse de novo valorado. Esta vez eram duas bonitas fêmeas que tinham pinta de haver-se aproximado dos subúrbios para passar um bom momento. Garotas universitárias, imaginou ele, apoiando-se na frescura de seus rostos, a alegria típica das moças e os desgastados jeans de desenho imitação dos velhos. Riam bobamente e tratavam de atuar de forma acalmada enquanto se aproximavam do carro em seu caminho para a discoteca.

     —Então, onde está agora Dante? Vem de caminho ao recinto?

     —Não —disse ele, baixando a voz enquanto apagava o motor e deixava que seu olhar seguisse o rastro das mulheres ao passar.

— A noite é jovem. Acredito que me deterei tomar um bocado rápido. Talvez dois.

    

     Sterling Chase rondava em sua residência do Refúgio Escuro como um animal enjaulado, crispado e ansioso. Embora a noite não tinha sido exatamente um êxito, em alguma medida, tinha que reconhecer certa alegria por ter tido sua primeira noite de missão. Não se preocupava muito pelo arrogante e hostil guerreiro que lhe havia olhado como casal, pois se recordava a si mesmo que seu objetivo de procurar a ajuda da Ordem pesava mais que todas as estupidezes as que tivesse que ver-se submetido por culpa de Dante ou de seus irmãos durante as próximas semanas.

     Levava em casa um par de horas. Umas horas mais e já seria de dia, mas não se sentia com vontades de dormir.

     Naquele momento sentia vontade de falar com alguém. É obvio, a primeira pessoa que lhe veio a mente foi Elise.

     Mas aquela hora ela já teria se retirado a seu quarto e estaria a ponto de deitar-se. Não lhe custava muito imaginá-la sentada ante sua pequena penteadeira, provavelmente nua baixo grandes quantidades de gaze e seda branca, escovando seu comprido e loiro cabelo. Seus olhos cor lavanda provavelmente estariam fechados enquanto cantarolava ausente para si mesmo; um hábito que tinha observado já a primeira vez que a tinha conhecido, e que só contribuía a fazê-la mais querida para ele.

     Era doce e frágil, e viúva fazia já cinco anos. Elise nunca se emparelharia com outro; e ele, no profundo de seu coração, sabia muito bem. E uma parte dele se alegrava de que ela se negasse a amar outra vez —o direito de toda companheira de sangue que perdesse a seu amado— porque embora isso significasse que ele teria que viver com a tristeza de desejá-la, ao menos não teria que suportar a ferida de vê-la unida a outro homem.

     Mas sem um homem da estirpe que a nutrisse com seu próprio sangue e se nutrisse por sua vez da dela, Elise, nascida humana como todas as outros companheiras de sangue, algum dia envelheceria e morreria. Isso era o que mais o entristecia. Pode que ela nunca fora dele, mas era seguro que algum dia, provavelmente ao cabo de uns sessenta ou setenta anos, apenas um pestanejo para os de sua raça, perderia-a por completo.

     Talvez era essa ideia a que o fazia desejar com todas suas forças lhe evitar qualquer classe de dano. Ele a amava, como sempre.

     Isso o envergonhava, essa maneira em que ela o afetava tanto. Só de pensar nela, sentia a pele tirante e muito quente. O fazia arder por dentro, e ela nunca poderia sabê-lo. Ela o desprezaria por isso, ele estava seguro.

     Mas isso não podia impedir o desejo premente de estar perto dela.

     Estar nu junto a ela, embora só fosse uma vez. Chase deteve seu ir e vir e se deixou cair sobre o grande sofá de seu estudo. Recostou-se, com as coxas estendidas, a cabeça para trás sobre os ombros, contemplando o alto e branco teto uns cinco metros por cima dele.

     Ela estava ali, na habitação de acima sobre aquele mesmo espaço.

     Se respirava profundamente, podia notar seu suave aroma a rosas e urze. Chase inspirou com força. A sede subiu em espiral por ele, alargando as presas em suas gengivas. Lambeu-se os lábios, quase capaz de imaginar seu sabor.

     Aquela era uma doce tortura.

     Imaginou caminhando descalça sobre o tapete da habitação, com os laços de sua ligeira camisola desatadas. Deixando que a seda caísse perto da cama enquanto se recostava sobre os frios lençóis e se tendia ali, sem cobrir-se, desinibida, com seus mamilos como botões de rosas destacando na palidez de seu corpo.

     Chase tinha a garganta seca. O pulso lhe tinha acelerado como um tambor, e o sangue se agitava em suas veias. Seu pênis estava duro e confinado no interior de seus jeans negros. Alcançou com a mão seu ansioso sexo, tocando sua ereção sobre o grosso tecido e liberando-o da pressão dos botões. Acariciando-se como Elise nunca o acariciaria.

     Acariciou-se com mais urgência, mas isso só contribuiu a aumentar sua necessidade.

     Nunca deixaria de desejá-la...

     —Deus santo —murmurou, aborrecido consigo mesmo por sua debilidade.

     Apartou sua mão e se levantou com um vaio de ira, desprezando a si mesmo ainda mais pela fantasia de deitar-se com a inalcançável Elise.

    

   Umas quentes lambidas percorriam a longitude das nuas pernas de Dante. Estes subiram mais acima, sobre seus quadris e seu torso, serpenteando por sua coluna e em torno de seus ombros. Incessante, avassalador, o calor se fez ainda mais profundo, como uma quebra de onda imparavel que o açoitasse em um movimento tormentoso e lento. Crescia cada vez mais, fazendo-se ainda mais ardente, tragando-lhe .

     Não podia mover-se, já não tinha controle sobre seus membros nem sobre seus próprios pensamentos.

    Só era consciente do fogo.

     E do fato de que esse fogo ia mata-lo.

     As chamas se retorciam agora por toda parte ao seu redor, a fumaça se tornava negra, lhe secando os olhos e abrasando sua garganta com cada respiração inútil e ofegante que tratava de fazer.

     Era inútil.

     Estava apanhado.

     Sentia sua pele abrasada. Ouvia o horripilante chiado de sua roupa —também de seu cabelo— destruindo-se pelo fogo enquanto ele o registrava tudo com um horror absoluto e paralisante.

     Não havia maneira de escapar.

     A morte estava a chegar.

     Sentiu sua mão escura descendendo sobre ele, empurrando-o para baixo, para um torvelinho de furioso e interminável vazio...

     —Não!

     Dante despertou de um salto, com todos os músculos tenso pela luta. Tratou de mover-se, mas algo o reteve. Um ligeiro peso que cobria suas coxas. E outro peso extendido sem forças sobre seu corpo. As duas mulheres se removeram sobre a cama, uma delas fez um ronrono enquanto se acurrucava junto a ele e acariciava sua pele úmida e fria.

     —O que acontece, carinho?

     —Me deixe —murmurou ele, com um fio de voz crua em sua garganta ressecada.

     Dante se desenredou do matagal de membros nus e pôs os pés sobre o chão daquele apartamento desconhecido. Ainda lhe custava respirar, e seu coração ainda estava acelerado. Sentiu uns dedos percorrendo suas costas. Irritado por aquelas carícias que não desejava, levantou-se do colchão atirado no chão e começou a procurar suas roupas na escuridão.

     —Não vá —se queixou uma delas.

— Ela e eu ainda não acabamos contigo.

     Ele não respondeu. Tudo o que queria agora era mover-se. Ficou-se ali muito tempo. O suficiente como para que a morte viesse a buscá-lo.

     —Está bem? —perguntou a outra garota.

—Teve um pesadelo?

     «Um pesadelo», pensou ele com ironia. Estava muito longe de ser isso.

     Tinha visto a mesma visão —a tinha vivido com terrível detalhe— muitas vezes, que ele recordasse. Era um brilho do futuro. Sua própria morte.

     Conhecia a cada segundo de sua agonia nos últimos momentos de sua vida; quão único permanecia sem resposta era o porquê, o onde e o quando. Sabia inclusive a quem devia a maldição dessa visão.

     A mulher humana que o trouxe para o mundo na Itália 229 anos atrás havia visionado não só sua própria morte, mas também a de seu companheiro amado, o vampiro Darkhaven, erudito e aristocrata, que tinha sido o pai de Dante.

     Tal como o tinha antecipado, esta doce mulher teve uma trágica morte, afogando-se nas águas revoltas de um oceano depois de ter conseguido pôr a salvo a seu filho do mesmo desastre. O pai de Dante, conforme havia predito, seria assassinado por um ciumento rival político. Uns oito anos depois da morte dela, em uma ocasião em que uma multidão se agrupava junto à entrada ao Refúgio Escuro de Roma, Dante tinha perdido a seu pai tal como sua mãe havia descrito.

     O dom especial que sua mãe teve como companheira de sangue lhe tinha sido transmitido ao seu único filho, como ocorria freqüentemente entre os da estirpe, e agora Dante era o que sofria a maldição de ter visões premonitorias relacionadas com a morte.

     —Volta para a cama —rogou detrás dele uma das jovens.

— Vamos, não resista tanto. —Atirando de suas roupas e de suas botas, Dante se levantou da cama. As mulheres se estiraram para manuseá-lo, com movimentos sonolentos e torpes, suas mentes ainda lentas pela escravidão a que as submetia a dentada que antes lhes tinha dado. Ele tinha fechado suas feridas imediatamente depois de alimentar-se, mas ficava algo por fazer antes de que pudesse escapar. Dante alargou a palma de sua mão até a frente de uma das garotas, logo a outra, apagando de seus pensamentos toda lembrança daquela noite.

     Se ao menos pudesse fazer o mesmo consigo, pensou, enquanto sentia a garganta ainda seca pelo sabor da fumaça, as cinzas e a morte.

    

     —Relaxe, Tess. —A mão de Ben veio a apoiar-se sobre sua região lombar e sua cabeça se inclinou para lhe falar perto do ouvido.

— Se por acaso não o notaste, este é um coquetel de recepção, não um funeral.

     O qual era uma boa coisa, pensou Tess, jogando uma olhada a seu vestido de cor granada. Embora era singelo e um de seus favoritos, era a única que ia vestida de cor no meio do mar de roupa negra. Sentia-se desconjurada, muito chamativa.

     Não é que estivesse acostumada a passar desapercebida entre as outras pessoas. Nunca lhe tinha ocorrido, nem sequer quando era menina. Sempre tinha sido... diferente. Sempre diferente ao resto do mundo de maneira que não acabava de entendê-lo e tinha aprendido que era melhor não explorar. Em lugar disso, tratava de adaptar-se —ou fingia fazê-lo—, como agora, resistindo em uma sala cheia de estranhos. A ansiedade por fugir daquela aglomeração era muito forte.

     Em realidade, cada vez mais e mais, Tess se sentia como se estivesse frente a uma tormenta que moresse. Como se forças invisíveis se reunissem em torno dela, empurrando-a para uma cornija. Pensou que se olhava a seus pés talvez não encontraria baixo eles mais que um abismo. Um passo em falso e não haveria nada ante sua vista.

     Esfregou-se a nuca, pois sentia uma espécie de dor nos músculos próximos a sua orelha.

     —Está bem? —perguntou-lhe Bem.

— Estiveste calada toda a noite.

     —Ah, sim? Sinto muito. Não queria está-lo.

     —Está passando bem?

     Ela assentiu, forçando um sorriso.

     —É uma exposição extraordinária, Ben. O programa diz que é para patrocinadores privados, como conseguiu os convites?

     —Tenho alguns contatos na cidade. —encolheu-se de ombros, logo bebeu o resto de sua taça de um gole.

— Alguém me devia um favor. E não é o que está pensando —disse, com tom de reprimenda enquanto lhe tirava o copo vazio da mão.

— Conheço garçom, e ele conhece uma das garotas que trabalham nos eventos que organizam no museu. Sabendo o muito que desfruta da escultura, faz uns meses estive medindo para ver se me podia conseguir duas entradas extra para esta recepção.

     —E o favor? —apontou Tess, com desconfiança. Ela sabia que Ben freqüentemente se mesclava com gente questionável.

— O que teve que fazer por esse tipo?

     —Seu carro estava na oficina e eu lhe emprestei minha caminhonete uma noite para umas bodas em que tinha que trabalhar. Isso é tudo. Nada turvo. —Ben lhe dedicou um de seus sorrisos capazes de derreter.

—Né, fiz-te uma promessa, não?

     Tess assentiu fracamente.

     —Falando do bar, que tal se renovar nossas bebidas? Outra água mineral com lima para a dama?

     —Sim, obrigado.

     Enquanto Ben se deslocava entre a multidão, Tess reatou seu exame da coleção de arte que se via ao redor do grande salão de baile. Havia centenas de esculturas, em representação de milhares de anos de história, todas colocadas dentro de altas vitrines de vidro.

     Tess se aproximou de um grupo de mulheres loiras, bronzeadas, pertencentes a alta sociedade e cheias de jóias que estavam bloqueando uma vitrine de figuras italianas cor terracota, enquanto conversavam a respeito da recente aventura de não sei que senhora com um profissional do clube de tênis que tinha menos da metade de sua idade. Tess rondou por detrás delas, tratando sinceramente de não escutar enquanto tentava olhar desde mais perto a elegante escultura de Cornacchini, Endimión dormindo.

     Sentia-se como uma impostora, tanto pelo encontro com Ben aquela noite como por estar entre essa gente em uma exposição organizada para mecenas. Aquela gente tinha mais que ver com ele que com ela. Nascido e criado em Boston, Ben tinha crescido muito perto dos museus de arte e do teatro, enquanto que sua bagagem cultural estava limitada ao mercado do condado e cinema local. O que ela sabia a respeito de arte era muito modesta, mas seu amor pela escultura tinha sido sempre uma espécie de escapatória para ela, especialmente nesses dias difíceis de volta a casa na rural Illinois.

     Tempo atrás, ela tinha sido uma pessoa diferente, e Teresa Dawn Culver sabia umas quantas coisas a respeito de impostores. Seu padrasto se encarregou disso. Toda sua aparência era a de um cidadão modelo: bem-sucedido, bom, moral. E não era nenhuma dessas coisas. Mas levava morto quase dez anos, e sua mãe, divorciada, também havia falecido recentemente. Quanto a Tess, tinha deixado atrás seu povo e aquele doloroso passado fazia nove anos.

     Se pudesse deixar atrás também suas lembranças. A horrível conscientização do que tinha feito... Tess voltou a concentrar sua atenção nas belas linhas do Endimión. Enquanto examinava a escultura terracota do século XVIII, o fino pêlo de sua nuca começou a arrepiar-se. Uma quebra de onda de calor a invadiu. Em realidade foi uma sensação das mais breve, mas bastou para fazê-la olhar ao redor em busca da causa. Não achou nada. O grupo de mulheres que fofocavam se moveu e Tess ficou sozinha ante a exposição.

     Esquadrinhou o interior da vitrine uma vez mais, deixando que a beleza da obra do artista a transportasse longe de suas angústias pessoais, a um lugar de paz e consolo.

     —Deliciosa.

     Uma profunda voz rouca de um suave e elegante acento lhe fez endireitar a cabeça de um sobressalto. Ali, ao outro lado da vitrine transparente, achava-se em pé um homem. Tess se surpreendeu a si mesmo olhando seus olhos cor uísque e de grosas pestanas tão negras como a tinta.

     Dois metros de escuridão a contemplavam fixamente e com uma severidade quase ameaçadora por seu ar de confiança. Ia todo de negro: as brilhantes ondas de seu cabelo, as largas linhas de sua jaqueta de couro e sua camisa de ponto rodeada ao corpo, suas largas pernas, que pareciam favorecidas por esse uniforme negro.

     Apesar de seu traje inapropriado e informal, exibia uma confiança em si mesmo que o fazia parecer o amo do lugar, projetando um ar de poder incluso em sua quietude. A gente o contemplava fixamente desde todos os rincões da sala de exposições, não com desprezo nem desaprovação, a não ser com uma deferência —uma respeitosa cautela— que Tess não podia evitar sentir também. Deu-se conta de que estava boquiaberta, e rapidamente voltou a dirigir o olhar a escultura para evitar o calor de seu inquebrável olhar.

     —É... é formosa, sim —gaguejou ela, desejando não parecer tão aturdida como realmente estava.

     O coração lhe pulsava rapidamente, de uma maneira inexplicável, e voltava a sentir esse estranho formigamento na nuca. Tocou o lugar, junto a seu ouvido, onde o pulso lhe pulsava mais forte, tratando de que lhe passasse. A sensação não fez mais que piorar, como se houvesse um zumbido em seu sangue. Sentia-se nervosa e assustada, e necessitava ar. Quando começou a mover-se para outra vitrine, o homem se moveu ao redor da exposição, ficando discretamente em seu caminho.

     —Cornacchini é um professor —disse, com esse sedoso grunhido ao pronunciar o nome que se parecia com o ronrono de um grande felino.

— Não conheço todos seus trabalhos, mas meus pais eram grandes mecenas das artes na Itália.

     Italiano. Então isso explicava seu delicioso acento. Dado que naquele momento não podia escapar facilmente, Tess assentiu com educação.

     —Leva muito tempo nos Estados Unidos?

     —Sim. —Um sorriso moveu as comissuras de seus sensuais lábios—. Levo aqui realmente muito tempo. Meu nome é Dante —acrescentou, estendendo para ela uma mão de tamanho considerável.

     —Tess. —Ela aceitou a saudação, e sentiu que lhe custava respirar quando os dedos dele se envolveram em torno dos seu em um momento de contato que foi nada menos que eletrizante.

     Deus santo, aquele tipo era muito bonito. Não o clássico modelo de beleza, a não ser um homem de rasgos duros e masculinos, com uma mandíbula cinzelada de formas quadradas e rosto marcados. Seus lábios eram o bastante grossos como para que qualquer das celebridades cheias de colágeno que havia na recepção chorassem de inveja. De fato, tinha o tipo de rosto masculino que os artistas tinham estado escolhendo durante séculos para reproduzir no barro e o mármore. Seu único defeito visível era uma marca na ponta de seu nariz, que de outro modo tivesse sido reto.

     Seria um boxeador? Tess se fez essa pergunta, ao tempo que seu interesse perdia intensidade. Não estava acostumada aos homens violentos, nem sequer embora parecessem anjos cansados.

     Lhe ofereceu um agradável sorriso e começou a afastar-se.

     —Desfruta da exposição.

     —Espera. Por que foge? —Pô-lhe a mão sobre o antebraço. Foi um roce do mais ligeiro, mas permaneceu ali.

—Tem medo de mim, Tess?

     —Não. —Que estranho era que fizesse essa pergunta.

— Deveria ter?

     Algo brilhou em seus olhos, e logo desapareceu.

     —Não, eu não quero que seja assim. Quero que fique, Tess.

     Ele continuou dizendo seu nome, e cada vez que o pronunciava com sua língua, ela sentia que parte de sua ansiedade se dissipava.

     —Olhe, eu... né... vim aqui com alguém —deixou escapar, pois essa foi a desculpa mais fácil que lhe veio a mente.

     —Seu namorado? —perguntou ele, e logo voltou seu sagaz olhar de forma infalível para o concorrido bar onde tinha ido Ben.

— Não quer que volte e nos veja falando?

     Soava ridículo e ele sabia. Ben não a reclamaria para si, e inclusive embora estivessem saindo juntos, ela nunca permitiria estar tão dominada que nem sequer pudesse falar com outro homem. Isso era quão único estava fazendo com Dante, embora a experiência parecesse intensamente íntima. Ilícita.

     Perigosa, porque apesar do muito que tinha aprendido a proteger-se a si mesmo, a manter-se em guarda, estava intrigada por aquele homem, aquele estranho. Sentia-se atraída por ele. Mais que atraída, sentia-se conectada ele de uma maneira inexplicável.

     Ele lhe sorriu, logo começou a rondar lentamente em torno da peça do Cornacchini.

     —Endimión dormindo —disse, lendo o rótulo da escultura do mítico moço pastor.

—O que Crê que está sonhando, Tess?

     —Não conhece a história? —Ante a sutil negativa de sua cabeça, Tess se aproximou para ele, quase sem dar-se conta de que se estava movendo. Foi incapaz de deter-se si mesmo até que se achou junto a ele e seus braços se roçaram enquanto os dois contemplavam o interior da vitrine.

— Endimión sonha com Selene.

     —A deusa grega da lua —murmurou Dante perto dela, com uma voz profunda que vibrou em seus ossos.

— E eram amantes, Tess? «Amantes.»

     Uma sensação ardente cresceu em seu interior com apenas lhe ouvir pronunciar a palavra. Havia-a dito com um tom bastante despreocupado, entretanto Tess ouviu a pergunta como se só tivesse estado dedicada a seus ouvidos. O comichão na nuca se intensificou outra vez, palpitando ao mesmo tempo que os batimentos de seu coração. Esclareceu-se a garganta, sentindo-se estranha e desconcertada, com todos seus sentidos agudizando-se.

     —Endimión era um atrativo moço pastor —disse ela finalmente, recorrendo as lembranças que conservava de seu curso de mitologia na universidade.

— Selene, como você há dito, era a deusa da lua.

     —Um humano e um ser imortal —sublinhou Dante. Podia sentir agora seus olhos fixos nela, esse olhar cor uísque observando-a.

— Não é a combinação ideal, verdade? Habitualmente algum acaba morrendo.

     Tess o olhou.

     —Esta é uma das poucas vezes que as coisas chegaram a funcionar. —Olhou fixamente a escultura a fim de evitar olhar de novo a Dante e confirmar que ele continuava observando-a, tão perto que podia notar o calor de seu corpo. Ela começou a falar outra vez, precisando encher o espaço com algo que a distraíra.

— Selene só podia estar com o Endimión pelas noites. Ela queria estar com ele para sempre, por isso rogou a Zeus que concedesse a seu amante a vida eterna. O deus aceitou e provocou no pastor um sono interminável, no qual cada noite espera que sua amada Selene o visite.

     —Feliz depois de tudo —disse Dante alargando as palavras, com uma nota de cinismo em sua voz.

— Algo que só ocorre nos mitos e nos contos de fadas.

     —Não crê no amor?

     —Você sim, Tess?

     Ela o olhou, esquadrinhando-o com um olhar penetrante que foi tão íntima como uma carícia.

     —Eu gostaria de acreditar —disse, não muito segura de por que estava reconhecendo-o agora, ante ele. O fato de lhe haver dito isso a confundiu. De repente, sentiu-se ansiosa e caminhou até uma vitrine contigüa onde se expor peças do Rodin.

— Então, a que se deve seu interesse pela escultura, Dante? É um artista ou um entusiasta?

     —Nenhuma das duas coisas.

     —OH. —Dante caminhou até colocar-se a seu lado, detendo-se junto a ela ante a vitrine. Tess o tinha considerado tão desconjurado ao vê-lo pela primeira vez, mas para ouvi-lo falar tinha que reconhecer que, apesar do fato de que parecesse tirado de um filme de ação dos irmãos Wachowski, havia um inconfundível nível de sofisticação em torno dele. Sob o couro e os músculos, tinha uma sabedoria que a intrigava. Provavelmente mais do devido.

— Então, o que? É um patrocinador do museu?

     Negou com sua escura cabeça.

     —Trabalha como guarda de segurança na exposição?

     Isso certamente explicaria que não levasse uma vestimenta formal e a afiada intensidade que irradiava em torno dele. Talvez pertencia a uma dessas unidades de segurança de alto nível que Freqüentemente contratam os museus a fim de proteger suas coleções em uma exposição pública.

     —Havia aqui algo que queria ver —replicou, com seus fascinantes olhos fixos nela.

— Essa é a única razão pela que vim.

     Algo na forma de olhá-la ao dizer isso —a maneira em que parecia ver em seu interior— transmitiu a seu pulso uma pequena sacudida de eletricidade. Tinham tentado ligar com ela muitos vezes no passado para saber quando um tipo estava tentando algum tipo de aproximação, mas aquilo era distinto.

     Aquele homem a olhava com uma intimidade que parecia afirmar que já lhe pertencia. Não era uma fanfarronice nenhuma ameaça, a não ser um fato, uma constatação.

     Não lhe custava muito imaginar suas grandes mãos sobre seu corpo, lhe acariciando seus ombros nus e seus braços. Seus lábios sensuais apertando-se contra sua boca, seus dentes raspando brandamente seu pescoço.

     «É deliciosa.»

     Tess o olhou, deteve-se na ligeira curva de seus lábios, que não se moveram apesar do fato de que ela acabava de lhe ouvir falar. Moveu-se para ela sem reparar na multidão que se formava redemoinhos —tampouco ninguém parecia reparar neles— e com ternura lhe passou o dedo polegar pela bochecha. Tess não encontrou vontade para mover-se enquanto ele se inclinava e roçava com seus lábios a curva de sua mandíbula.

     O calor se acendeu em seu centro, um lento incêndio que derreteu ainda mais sua razão.

     «Vim aqui esta noite por ti.»

     Não podia ter ouvido corretamente, pelo simples feito de que ele não tinha pronunciado nenhuma só palavra. Entretanto, a voz de Dante soava em sua cabeça, tranqüilizando-a quando em realidade deveria estar alarmada. Fazendo que acreditasse, quando o único razoável era concluir que aquela experiência não era possível.

     «Fecha os olhos, Tess.»

     Suas pálpebras se fecharam e então a boca dele se aproximou até a sua para lhe dar um beijo hipnotico. Aquilo não estava passando, pensou Tess desesperadamente. Ela não estava permitindo que aquele homem a beijasse, verdade? Em meio de uma habitação cheia de gente?

     Mas sentia seus lábios quentes, seus dentes raspando bruscamente enquanto sorvia seu lábio inferior antes de retirar-se. Justo isso, o repentino e surpreendente beijo acabou. E Tess queria mais.

     Deus, quanto queria.

     Não podia abrir os olhos pela maneira em que seu pulso estava pulsando, toda ela ardia de necessidade e desejo impossível. Tess se cambaleou um pouco sobre seus pés, ofegante e sem respiração, atônita ante o que acabava de experimentar. Sentiu uma brisa fria que roçava seu corpo, lhe pondo a carne de galinha.

     —Lamento ter demorado tanto. —A voz de Ben a fez abrir os olhos de repente enquanto se aproximava com as bebidas na mão.

—Este lugar é um zoológico. A fila do bar era eterna.

     Sobressaltada, olhou ao redor procurando Dante. Mas tinha desaparecido. Não havia nem rastro dele, nem perto dela nem entre a multidão que circulava.

     Ben lhe ofereceu um copo de água mineral. Tess o bebeu rapidamente, sentindo a tentação de lhe arrebatar o copo da mão e fazer o mesmo.

     —OH, merda —disse Ben, observando-a com o cenho franzido.

— Deve te haver machucado com o bordo do copo, Tess. Cortaste o lábio.

     Ela levou a mão a boca enquanto Ben tratava de lhe dar um pequeno guardanapo branco. As pontas de seus dedos estavam molhadas e de uma intensa cor escarlate.

     —Deus, sinto muito. Devi me haver fixado...

     —Estou bem, sério. —Não estava segura de que fora de tudo certo, mas nada do que estava sentindo era culpa do Ben. E não tinha que examinar o copo para saber que não havia um bordo afiado que lhe pudesse ter talhado o lábio. Devia-se ter mordido quando ela e Dante... Bom, nem sequer queria pensar sobre o estranho encontro que tinha tido com ele.

— Estou um pouco cansada, Ben. Importa-te se nos retiramos já?

     Ele negou com a cabeça.

     —Não, está bem. Como você queira. Vamos recolher nossos casacos.

     —Obrigado.

     Enquanto ficavam em marcha, Tess lançou um último olhar a vitrine transparente onde se expos Endimión dormindo, esperando a escuridão e a que seu amante de outro mundo se unisse com ele.

    

       Em que demônios estava pensando?

     Dante caminhava acima e abaixo entre as sombras da saída do museu. O engano número um tinha sido em primeiro lugar ir aquele lugar, pensando em lhe jogar outra olhada a mulher que, segundo a lei da estirpe, pertencia-lhe. Engano número dois? Vê-la de braço de seu namorado humano, luzindo como uma esplêndida jóia com seu vestido vermelho escuro e as pequenas sandálias de tiras, e ter acreditado que não precisaria olhá-la desde mais perto.

     Tocá-la.

     Prová-la.

     A partir daí as coisas se aceleraram e podia sentenciar-se que tinham ido parar diretamente ao desastre. Seu sexo estava furioso por relaxar-se, sua visão se feito mais aguda pelo estreitamento de suas pupilas, contraídas até parecer fendas pelo desejo dessa mulher. Seu pulso pulsava com força, suas presas se alargaram ante o anseio da carne. Todo isso não contribuía absolutamente a refrear sua frustração por ter estado a ponto de perder o controle da situação quando se achava com Tess.

     Dante não fazia mais que imaginar o longe que podia ter chegado a situação com Tess, com toda aquela gente olhando-os ou não, se seu namorado não tivesse retornado quando o tinha feito. Tinha havido um momento, quando o macho humano se aproximava deles do bar, em que Dante tinha abrigado pensamentos bastante primitivos. Pensamentos assassinos, levado por seu desejo de Tess.

     Deus santo.

     Nunca deveria ter ido ali essa noite.

     O que estava tratando de demonstrar? Que ele era mais forte que o laço de sangue que agora os unia?

     Quão único tinha demonstrado era sua própria arrogância. Seu corpo acalorado se encarregaria de lhe recordar esse fato durante o resto da noite. Essa sensação de estar amarrado lhe acompanharia agora durante o resto da semana.

     Mesmo assim lhe resultava terrivelmente difícil arrepender-se das sensações tão doces que Tess lhe provocava. O sabor de seu sangue na língua quando lhe tinha mordido o lábio com as presas ainda persistia, conseguindo que o resto de sua tortura parecesse um jogo de meninos.

     O que agora sentia transbeirava qualquer necessidade, carnal ou de outro tipo. Só tinham transcorrido dezesseis horas desde que se alimentou por última vez, e entretanto a sede que sentia pela Tess parecia a de alguém que levasse dezesseis dias sem nutrir-se. Tinha jogado um pó fazia dezesseis horas e entretanto não havia nada que desejasse mais que afundar-se dentro dela.

     Realmente eram más notícias, disso se tratava.

     Precisava pôr sua cabeça em ordem, e rapidamente. Não tinha esquecido que ainda tinha uma missão que cumprir essa noite. Estava mais que preparado para concentrar-se em algo além da furiosa ansiedade de seu libido.

     Pinçando no bolso de sua jaqueta negra, Dante tirou seu telefone móvel e chamou o recinto.

     —Chase apresentou já um relatório da patrulha? —gritou ao aparelho assim que Gideon respondeu a chamada.

     —Ainda não. Não tem a obrigação de fazê-lo até as dez e meia.

     —Que horas são ?

     —Vinte para nove . Onde está você?

     Dante soltou uma risada seca, com todas as células de seu corpo ardendo de desejo pela Tess.

     —Em um lugar onde nunca pensei que fosse estar, irmão.

     E com muito tempo para desperdiçar antes de que se iniciasse sua segunda noite de demonstrações e explicações com o Harvard. Normalmente, Dante não tinha muita paciência; e muito menos agora.

     —Chama o Darkhaven de minha parte —disse a Gideon.—Diga a Harvard que a classe começa antes esta noite. Vou de caminho para lhe recolher.

    

     Ben insistiu em acompanhá-la até seu apartamento depois de que o táxi os deixasse ali. Sua caminhonete se achava estacionada na rua de abaixo, e embora Tess tivesse preferido uma despedida rápida, Ben estava empenhado em fazer o cavalheiro e acompanhá-la até sua porta, no segundo piso. Seus passos faziam um som oco atrás dela enquanto os dois subiam as velhas escadas de madeira, logo se detiveram ante o apartamento 2F. Tess abriu sua bolsa de noite e pinçou nela em busca da chave.

     —Não sei se lhe hei dito isso—disse Ben brandamente detrás dela—, mas está realmente preciosa esta noite, Tess.

     Ela se estremeceu, sentindo-se culpada por ter ido com ele a exposição, especialmente à luz do que acabava de passar de maneira tão inesperada com o homem que tinha conhecido ali.

     Com Dante, pensou, com seu nome deslizando-se em sua mente como um escuro e suave veludo.

     —Obrigado —murmurou ela, e introduziu a chave na fechadura—. E obrigado por me acompanhar esta noite, Ben. Foi muito amável de sua parte.

     Enquanto a porta se abria, ela notou que os dedos dele jogavam com uma mecha solta de seu cabelo.

     —Tess...

     Ela se deu a volta para lhe desejar boa noite, para lhe dizer que essa seria a última vez que saíam juntos como casal, mas logo que se achou de cara a ele, a boca do Ben se aproximou da sua para lhe dar um beijo impulsivo.

     Tess retrocedeu com brutalidade, muito sobressaltada para controlar-se. Não lhe passou desapercebido seu olhar ferido. O espiono de amarga compreensão que se refletia em seus olhos enquanto ela se levava a mão aos lábios e negava com a cabeça.

     —Ben, sinto muito, mas não posso...

     Ele suspirou com aspereza, passando uma mão por seu dourado cabelo.

     —Não, esquece-o. O engano é meu.

     —Eu só... —Tess lutava por encontrar as palavras adequadas.

— Não podemos seguir fazendo isto, sabe. Eu quero ser sua amiga, mas...

     —Hei-te dito que o esqueça. —Sua voz era cortante, ferida.

— Você deixou bem claro seu sentimento. Simplesmente suponho que me custa um pouco aceitá-los.

     —A culpa é minha, Ben. Não devia ter saído contigo esta noite. Eu não queria que pensasse que...

     Lhe dedicou um sorriso tenso.

     —Não penso nada. De todos os modos, já parece. As coisas passadas, passadas estão.

     Começou a retroceder para as escadas. Tess saiu para o corredor, sentindo-se terrivelmente mal pelo rumo que tinham tomado as coisas.

     —Ben, não o deixemos assim. Por que não entra um momento? Falemos.

     Ele nem sequer respondeu, limitou-se a olhá-la durante um momento, logo se deu a volta e baixou rapidamente as escadas. Uns segundos mais tarde, a porta principal do edifício de apartamentos se fechou de uma portada. Tess entrou em sua casa e fechou a porta atrás dela, logo foi até a janela para olhar como Ben subia a sua caminhonete e entrava a toda velocidade na escuridão.

    

     Detrás de seus escuros óculos de sol e através da piscada das luzes estroboscópicas da discoteca, Dante esquadrinhava a multidão de humanos que dançavam agitadamente. Desde que tinha recolhido Chase em sua residência um par de horas antes só se toparam com um renegado, um varão alto e magro que andava farejando presas entre os vagabundos. Dante lhe tinha dado a Harvard uma lição rápida sobre o milagre que faz o titânio quando se encontra com o sistema sangüíneo corrupto de um renegado, deixando ao vampiro chupador de sangue calcinado ali onde o encontraram.

     Era uma pena, porque Dante estava ansioso por poder liberar um combate pessoal. Antes de que acabasse a patrulha da noite queria ver-se machucado e sangrando. Poderia considerar um ajuste de contas, depois da forma em que lhe haviam fodido as coisas essa noite.

     Harvard, por outra parte, tinha aspecto de ser capaz de matar por uma larga ducha. Talvez uma ducha de água fria, pensou Dante, seguindo o olhar do vampiro ao redor do clube até onde havia uma pequena fêmea, com uma larga cascata de cabelo loiro, junto com outros humanos. Cada vez que ela sacudia aquela loira cabeleira de seda sobre seus ombros, o agente Darkhaven se excitava mais. Contemplava-a ofegante, pendente de seus mais ligeiros movimentos e com aspecto de estar a ponto de equilibrar-se sobre ela.

     Talvez ela notou o calor do olhar do vampiro; o sistema nervoso humano tende a responder instintivamente a sensação de estar sendo espreitado pelos olhos de um ser de outro mundo. A loira enrolou uma comprida mecha de cabelo loiro em torno de seu dedo e lançou um olhar de soslaio sobre seu ombro, apontando em direção do agente Darkhaven com olhos escuros e provocadores.

     —Está com sorte, Harvard. Parece que também lhe interessa.

     Chase franziu o cenho, ignorando a loira enquanto ela se separava de sua turma evidentemente para flertar.

     —Ela não tem nada do que quero.

     —Como posso ter sido tão tolo. —Dante riu.

— O que passa, que os Darkhaven como você não lhes põem quentes?

     —A diferencia dos de sua classe, encontro que é pessoalmente degradante ceder a todos meus impulsos, como uma espécie de animal que não pode ser posto em vereda. Procuro manter certo nível de autocontrole.

     Certamente haveria algo que dizer com respeito a isso, pensou Dante irritado.

     —Por que diabos não me deu seu conselho faz umas horas, doutor?

     Chase lhe lançou um olhar interrogante.

     —Perdoa?

     —Não importa.

     Dante assinalou um grupo de discotequeiros ao outro extremo da pista. Entre os humanos havia uns poucos vampiros

     Darkhaven, jovens varões civis que pareciam menos interessados nas mulheres entregues a essas vibrações frenéticas que em um dos varões humanos, que pelo visto estava passando drogas no centro de uma multidão.

     —Naquela esquina está acontecendo algo grande —disse a Chase.

— Parece que estão acontecendo muito bem. Vamos...

     Logo que terminou de dizer aquelas palavras quando se deu conta do que realmente estava vendo. Para então, tudo se tinha ido ao inferno.

     Um dos vampiros tomou uma dose de alguma substância, esnifando com força. A seguir jogou a cabeça para trás sobre seus ombros e deixou escapar um profundo uivo.

     —Carmesim —grunhiu Chase, mas Dante já sabia.

     Quando o jovem Darkhaven baixou de novo o queixo, rugiu, mostrando suas largas presas e uns olhos amarelos, ferozes e brilhantes. Os humanos gritaram. O caos dispersou os pequenos grupos, mas era uma fuga torpe, e uma das mulheres não foi o suficientemente rápida para escapar. O vampiro se equilibrou sobre ela, lhe saltando em cima, fazendo-a cair ao chão debaixo dele. O moço se perdeu muito logo, adoecendo rapidamente da luxúria de sangue, suas afiadas presas se alargaram mais e mais preparando-se para seu assassinato.

     Duzentas pessoas iam ser testemunha do sangrento, violento e público festim de um vampiro.

     Movendo-se muito rápido para os olhos humanos, Dante e Chase se abriram passo entre a pista de baile lotada de gente. Achavam-se perto da catástrofe que tinha lugar na esquina quando Dante lançou uma olhada ao humano que estava ali em pé, que sustentava um pequeno frasco cheio de pó de carmesim, com a mandíbula frouxa pelo horror, justo um segundo antes de fugir pela porta traseira da discoteca.

     Maldita seja.

     Dante conhecia aquele desgraçado.

     Não de nome, mas sim de cara. Tinha-o visto fazia tão somente umas horas, com Tess, no museu de arte. O traficante de carmesim era seu namorado.

    

     —Vá atrás dele —gritou Dante a Chase.

     Embora seu impulso visceral foi equilibrar-se sobre o humano que fugia e despedaçar a esse maldito bastardo antes de que seus pés pisassem na rua, Dante tinha um problema maior com o que lutar ali mesmo no clube. Lançou-se sobre as costas do jovem Darkhaven enlouquecido e lhe arrebatou sua presa humana, que não fazia mais que chiar. Jogou o vampiro contra a parede mais próxima e se agachou para saltar sobre ele outra vez.

     —Vai daqui! —ordenou-lhe a angustiada mulher que jazia a seus pés, imobilizada pela comoção. Tudo acontecia muito rápido como para que sua mente humana pudesse compreendê-lo, a voz de Dante sem dúvida chegava a seus ouvidos como uma ordem que consistia em um grunhido relatório.

— Mova, maldita seja! Agora!

     Dante não esperou a ver se obedecia.

     O consumidor de carmesim se levantou do chão, grunhindo e vaiando, com garras nos dedos. De sua boca ofegante gotejava espuma rosada, e a maior parte desta se acumulava no final de suas enormes presas. Suas pupilas se estreitaram até converter-se em fendas verticais, e ao redor delas só havia uma explosão de fogo amarelo. O vampiro afetado pela luxúria de sangue não sabia onde enfocar sua atenção, movia a cabeça de um lado a outro como se não pudesse decidir o que era o que preferia: se uma carótida humana aberta ou um pedaço daquele imbecil que tinha interrompido sua comida.

   O vampiro grunhiu, e logo arremeteu contra o ser humano que tinha mais perto.

     Dante se lançou sobre ele como um furacão.

 

     Os corpos de ambos se precipitaram a toda velocidade pelo corredor traseiro do clube, atravessando a saída e lançando-se pelo beco. Ali fora não havia ninguém: nem rastro do Chase nem do namorado traficante da Tess. Só o pavimento úmido e escuro e um contêiner de lixo que cheirava a velhos desperdícios da semana.

     Com o consumidor de carmesim lhe golpeando e lhe arranhando em um movimento feroz e caótico, Dante lançou uma ordem mental rápida a porta traseira do clube, fechando a de uma portada e jogando a chave para evitar que os curiosos aparecessem a ver o combate.

     O jovem vampiro Darkhaven lutava como se estivesse louco, rebelando-se e lançando patadas, golpeando e brigando como se tivesse recebido um chute de pura adrenalina. Dante sentiu que algo quente punha freio a seu antebraço e se deu conta com não pouca fúria de que o menino lhe tinha posto as presas no braço.

     Dante rugiu, a pouca paciência que tinha ante a situação se evaporava enquanto agarrava o crânio de seu atacante para tirar-lhe de cima. O jovem Darkhaven se chocou contra um lado do contêiner de aço e logo se deslizou pelo pavimento convertendo-se em um matagal de braços e pernas desajeitados.

     Dante o espreitou, com seus olhos afiados pela ira, com o brilho ambarino da fúria. Podia sentir como suas presas se alargavam; uma reação física ante o calor da batalha.

     —Levante !— disse ao jovem.— Levante antes de que eu te levante pelas Pelotas, idiota.

     O menino grunhia com voz grave e baixa, preparando seus músculos enquanto recuperava o controle de si mesmo. Ficou em pé e tirou uma navalha de um bolso traseiro de seus jeans. Como arma era lamentável, apenas uma pequena folha de ridículo tamanho com uma manga falsa. A faca utilitária tinha o aspecto de ser algo que o menino tinha furtado da caixa de ferramentas de seu pai.

     —Que merda crê que vais fazer com isso? —perguntou-lhe Dante, deslizando tranqüilamente seu Malebranche fora da capa. O arco de aço gentil com seu lustroso fio de titânio brilhava como prata fundida, inclusive na escuridão.

     O jovem Darkhaven olhou a adaga fabricada a medida, logo grunhiu e atirou a Dante um golpe descuidado.

     —Não seja estúpido, mucoso. Essa raiva que sente é só o carmesim falando por ti. Solta sua navalha e acabemos com esta merda. Darei-te a ajuda que necessita para voltar a estar em seus cabais.

     Inclusive se o jovem estivesse escutando a Dante, tudo aquilo devia lhe soar como se procedesse de uma língua estrangeira. Não parecia registrar nada. Os brilhantes olhos amarelos do vampiro permaneciam fixos e surdos, e a respiração saía e entrava de sua boca entre seus dentes expostos. Uma espessa baba rosada se acumulava nas comissuras de seus lábios. Parecia raivoso, completamente fora de controle.

     Soltou um grunhido. Lançou outro golpe a Dante com a navalha. Quando o fio da faca lhe aproximou, Dante moveu sua arma para desviá-lo. O aço com bordo de titânio fez contato, fatiando um pedaço da mão do outro tipo.

     O jovem Darkhaven deixou escapar um assobio de dor, mas o som se alargou como o lento chiado da chuva.

     —Porra! —murmurou Dante, pois conhecia muito bem aquele som dos muitos anos que tinha lutado contra os renegados.

     O consumidor de carmesim não tinha salvação. A droga lhe tinha provocado uma luxúria de sangue muito forte, e aquele jovem vampiro se converteu em renegado. A prova de que se tratava de uma transformação irreversível era o ácido que queimava sua carne ali onde o fio de titânio da arma de Dante lhe tinha talhado.

     A liga do metal atuou rapidamente; a pele da mão do vampiro já estava corroída, dissolvendo-se, caindo. Regueros vermelhos se acumulavam no braço do renegado mostrando a forma em que o veneno se abria passo através de seu sistema sangüíneo. Ao cabo de uns poucos minutos não ficaria dele mais que uma massa de carne e ossos derretidos. Um final infernal.

     —Sinto muito, menino —disse Dante ao renegado de olhos selvagens que tinha ante ele.

     Em um ato de piedade, retirou a adaga arqueada de sua mão e cortou limpamente o pescoço do vampiro.

     —Deus santo, não! —O grito do Chase precedeu suas fortes pisadas sobre o asfalto do beco.

— Não! Que diabos está fazendo?

     Chegou junto a Dante, justo quando o corpo do renegado caía sem vida no chão, com sua dura cabeça rodando para descansar perto. A decomposição foi rápida mas horripilante. Chase retrocedeu, observando o processo com um horror absoluto.

     —Era um... —Dante ouviu que a voz do agente se cortava, como se de repente se engasgou.

— Está louco! Acaba de matar a um Darkhaven civil! Era um maldito pirralho...

     —Não —respondeu Dante com calma enquanto limpava sua adaga e voltava a guardar-lhe O que matei foi a um renegado, já não era um civil nem um menino inocente. O carmesim o transformou, Chase. Observa-o por ti mesmo.

     Na rua frente a eles tudo o que tinha ficado do renegado era uma pilha de cinzas pulverizadas. O pó fino foi transportado por uma ligeira brisa, deixando um rastro através do pavimento. Chase se inclinou para recuperar a tosca faca de entre os restos pulverizados de seu dono.

    —Onde está o traficante? —perguntou Dante, ansiando lhe pôr as mãos em cima.

     Chase negou com a cabeça.

     —Deixou-me atrás. Perdi-o A umas poucas quadras daqui. Acreditei que o tinha, mas então se meteu em um restaurante e eu... perdi-o.

     —Esquece-o. —Dante não ia preocupar se de encontrar a esse tipo; só tinha que vigiar Tess, e cedo ou tarde seu namorado apareceria. E tinha que reconhecer que acabar com esse humano pessoalmente era algo que desejava.

     O agente Darkhaven soltou um taco pelo baixo enquanto contemplava a faca que sustentava nas mãos.

     —Esse pirralho que matou... esse renegado —se corrigiu—, pertencia a minha comunidade. Era um bom menino de uma boa família, maldita seja. Como vou explicar lhes o que aconteceu a seu filho?

     Dante não sabia o que dizer. Não podia desculpar-se por havê-lo matado. Era uma guerra, não importava qual pudesse ser a posição oficial dos Darkhaven em relação a situação. Quando um vampiro da estirpe se convertia em renegado —já fora pelo carmesim ou pela debilidade presente em todos os da raça— não havia volta atrás, não existia esperança de reabilitação. Nada de segundas oportunidades. Se Harvard ia trabalhar com a Ordem durante um tempo, seria melhor que se metesse isso na cabeça quanto antes.

     —Vamos —disse Dante, lhe dando umas palmadas no ombro ao agente de rosto sombrio.

— Aqui já acabamos. Não poderá salvá-los a todos.

    

     Ben Sullivan não deixou de pisar no acelerador até que as luzes da cidade de Boston se converteram em um brilho longínquo no espelho retrovisor. Saiu do itinerário e conduziu o veículo por um dos caminhos industriais que passavam perto do rio. As mãos ao volante lhe tremiam, com as palmas pegajosas pelo suor. O coração lhe pulsava como se tivesse uma metralhadora enjaulada em seu peito. Logo que podia respirar.

     Maldita fora.

     Que caralho acabava de passar no clube?

     Alguma espécie de overdose... tinha que ter sido isso. O menino que tomou uma dose e tinha entrado em convulsões era um cliente habitual. Ben lhe tinha vendido ao menos meia dúzia de vezes nas últimas duas semanas. Levava fabricando e subministrando o ligeiro estimulante no clube e o circuito de festas rave desde fazia meses —do verão—, e, até onde ele sabia, jamais tinha ocorrido nada similar.

     Uma maldita overdose.

     Ben deixou a caminhonete em um pátio de cascalho que havia junto a um velho armazém, tirou as luzes e permaneceu ali sentado com o motor em marcha.

     Alguém o tinha perseguido a pé quando fugiu do clube, um dos dois tipos grandes que estavam ali dentro e evidentemente o teriam visto traficando. Deviam ser policiais secretos, possivelmente inclusive da Brigada Antidroga, mas ambos, tanto o de cabelo negro com óculos de sol como seu igualmente intimidante companheiro, que se lançou sobre o Ben como um trem de mercadoria, pareciam ser desses tipos que primeiro disparam e logo fazem as perguntas.

     Ben não ia ficar ali e descobri-lo. Tinha fugido do clube, em um frenético e descontrolado ir e vir pelas ruas e becos ao redor, obtendo ao fim desfazer-se de seu perseguidor o tempo suficiente para dar volta atrás, chegar até sua caminhonete e sair do inferno do Dodge.

     O sucesso do clube ainda dava voltas em sua cabeça em uma bruma confusa. Tudo tinha ocorrido tão rápido. Aquele pirralho se colocou uma overdose de carmesim. O sinal de que havia um problema, quando seu corpo começou a ter espasmos enquanto a droga entrava em seu sistema. O monstruoso rugido que saiu de sua boca um instante mais tarde. Os gritos de incompreensão das pessoas ao seu redor.

     O caos absoluto que seguiu a tudo aquilo.

     A maioria desses intensos minutos ainda giravam sem cessar na mente do Ben como brilhos em sua memória, algumas imagens eram claras, outras se perdiam na névoa escura de seu pânico. Mas havia algo do que estava completamente seguro...

     «A aquele pirralho tinham crescido umas imensas presas.»

     Caninos afiados que tivessem sido condenadamente difíceis de ocultar, embora o menino não tinha tratado de ocultar nada quando soltou esse horripilante uivo e agarrou a uma das garotas que tinha mais perto.

     «Como queria lhe rasgar a garganta com seus afiados dentes.»

     E seus olhos. Por Deus santo, tinham um intenso brilho ambarino, como se houvesse fogo no meio de sua cabeça. Como se pertencessem a algum tipo de criatura de outro mundo.

     Ben sabia que o que tinha visto não tinha nenhum sentido. Não em seu mundo, não para nenhum ramo da ciência das que conhecia, e não nesta realidade, onde coisas como essa só ocorriam no reino da ficção.

     Francamente, se obedecia a tudo o que sabia a respeito da lógica e a verdade, aquilo do que tinha sido testemunha era simplesmente impossível.

      Mas a lógica tinha pouco que ver com o medo que o atendia naquele momento e com a arrepiante sensação de que seu pequeno e inofensivo intento de mexer com drogas de repente se torcia do atalho. Uma overdose já era algo bastante mau de por si, pior ainda se ocorria em um lugar público com ele ainda no local para ser identificado. Mas o incrível efeito que o carmesim parecia ter tido naquele menino —a monstruosa transformação— era algo que superava todos os critérios do real.

     Ben girou a chave de contato e ficou ali atordoado enquanto o motor estralava para apagar-se. Teria que revisar sua fórmula da droga. Talvez a remessa atual estava em mal estado; pode que tivesse alterado algo acidentalmente. Ou talvez o menino simplesmente tinha tido uma reação alérgica.

     Sim. Uma reação alérgica era o que tinha convertido a um menino normal de apenas vinte anos em um vampiro sedento de sangue.

     —Deus santo —assobiou Ben enquanto saía da caminhonete e dava patadas no cascalho ao trotar ansiosamente.

   Chegou até o velho edifício e pinçou em busca da chave do grande cadeado da porta. Depois de um som metálico e um chiado das dobradiças da porta, entrou em seu laboratório privado. O lugar tinha um aspecto espantoso por fora, mas por dentro, uma vez passava os restos industriais desmoronados e fantasmal da fábrica de papel abandonada, o entorno era em realidade quase agradável; tudo proporcionado por um rico e anônimo patrão que comissionava a Ben para que concentrasse seus esforços de produção exclusivamente no pó vermelho conhecido como carmesim.

     O escritório de Ben se achava localizado detrás de uma cela espaçosa rodeada de um cerco de grades de aço de três metros de altura. Dentro havia uma mesa de aço inoxidável sobre a qual se estendia toda uma coleção de copos de plástico, queimadores, um morteiro e uma moderna báscula digital. Uma parede com armários providos de fechaduras com combinação que albergavam recipientes médicos e todo tipo de drogas farmacêuticas —serotonina, estimulantes, relaxantes musculares e outras substâncias— nenhuma delas muito difícil de obter para um ex-farmacêutico com numerosos contatos em dívida com ele por diversos favores.

     Ele não tinha querido ser um traficante de drogas. Ao princípio, quando o tinham despedido da companhia de cosméticos onde trabalhava como engenheiro químico e diretor de investigação e desenvolvimento, Ben nunca se expôs trabalhar do outro lado da lei. Mas sua firme oposição aos abusos que sofriam os animais —precisamente o que tinha originado sua demissão em primeiro lugar, depois de ser testemunha durante anos das torturas a animais nas provas de laboratório das companhias de maquiagem— acendeu a Ben e o levou a comprometer-se em sua postura reivindicativa.

     Começou a resgatar animais abandonados e desatendidos. Logo começou a roubá-los quando os canais legais e regulares eram muito lentos para resultar eficazes. Passar daí a outras atividades mais questionáveis foi fácil. As drogas nas discotecas eram uma aventura simples e relativamente pouco arriscada. Depois de tudo, que crime havia em proporcionar drogas de prazer virtualmente inofensivas a adultos que davam seu consentimento? Tal como Ben o via, sua operação de resgate necessitava recursos e ele tinha um pouco de valor que oferecer aos discotequeiros das festas raves —algo que se não obtinham dele obteriam de outro em alguma outra parte.

     Infelizmente, Tess não via as coisas da mesma perspectiva. Assim que se inteirou do que estava fazendo rompeu com ele. Ben tinha jurado que o deixaria, só por ela, e assim o tinha feito, até que seu atual patrocinador o tinha visitado o verão passado com um grosso maço de bilhetes na mão.

     Naquele tempo, naquele tempo, Ben não tinha entendido por que concentrava todo seu interesse no carmesim. Que lhe tivesse pago para produzir e distribuir êxtase ou GHB talvez teria tido mais sentido, mas o carmesim —Ben mesmo o tinha provado— era uma das drogas de desenho mais suaves que tinha produzido. Nas primeiras provas do Ben, principalmente realizadas consigo mesmo, pareceu-lhe que a droga gerava um efeito ligeiramente mais intenso que uma bebida energética com cafeína, com um aumento do apetite e uma perda de inibições.

       O carmesim tinha um impacto rápido, mas se extinguia rapidamente também. Seus efeitos desapareciam ao cabo de uma hora. De fato, a Ben o narcótico tinha parecido tão inócuo que encontrava difícil de justificar o generoso pagamento que tinha recebido para sua fabricação e venda.

     Depois do ocorrido aquela noite, imaginava que esses generosos pagamentos foram chegar a um abrupto e compreensível fim.

     Tinha que ficar em contato com seu benfeitor e lhe informar do terrível acidente do qual tinha sido testemunha essa noite na discoteca. Seu patrão devia estar a par dos problemas que pelo visto havia com a droga. Sem dúvida se mostraria de acordo em que o carmesim devia ficar fora de circulação imediatamente.

      

     Dante seguiu o suave murmúrio da conversação que procedia da sala de jantar oficial da mansão do recinto, localizado-se ao nível da rua. Ele e Chase tinham chegado a sede da Ordem fazia uns poucos minutos, depois de ter comprovado a situação na discoteca e ter feito um registro mais amplo da zona procurando sinais de problemas. Agora Chase se achava no laboratório técnico de baixo, acessando ao sistema informático dos Refúgios Escuros, para fazer seu relatório dos sucessos da noite.

     Dante também tinha que fazer seu próprio relatório, que definitivamente não lhe ia reportar nenhum tapinha nas costas por parte do temível líder dos guerreiros.

     Encontrou Lucan sentado a cabeceira da elegante e enorme mesa de refeição, iluminado pela luz das velas. O guerreiro ia vestido para o combate, já que acabava de voltar de sua própria patrulha. Sob sua jaqueta negra de couro, cintilava uma coleção de armas, que lhe dava ao respeitado vampiro de primeira geração uma aura de perigo e de poder ainda major da que normalmente o envolvia.

     A sua companheira de sangue não parecia lhe importar sua dureza. Gabrielle se achava sentada nos joelhos de Lucan, com a cabeça descansando amorosamente sobre seu ombro enquanto ele falava com o Gideon e sua companheira, Savannah, que se achavam ao outro extremo da mesa. Algo que Gabrielle disse fez rir a outros, incluído Lucan, cujo humor tinha sido virtualmente inexistente antes da chegada da bela mulher ao recinto. O guerreiro sorriu, lhe acariciando o cabelo ruivo tão brandamente como se se tratasse de um gatinho, um gesto que parecia haver-se voltado automático nos poucos meses desde que o casal tinha estabelecido um vínculo de sangue e se uniu.

     Lucan estava louco por aquela mulher, e não parecia incomodar-se em fazer nada por aparentar o contrário.

     E também Gideon e Savannah, o outro casal que havia na sala, pareciam estar loucos um pelo outro. Era um fato que Dante não se questionou nos mais de trinta anos que levavam juntos, mas tampouco o tinha advertido realmente até aquele momento. Sentados juntos ante a mesa, Gideon e sua companheira estavam agarrados da mão, e ele acariciava distraídamente com seu polegar a pele morena de seus compridos e afiados dedos. Os olhos cor chocolate escuro da Savannah se suavizavam quando contemplava a seu homem, cheia de uma tranqüila alegria que demonstrava que não havia nenhum outro lugar onde preferisse estar antes que a seu lado.

     Seria isso o que significava estar unido a alguém por um laço de sangue?, perguntou-se Dante.

     Era isso o que tinha estado negando-se a si mesmo durante todos esses anos?

     Um sentimento o golpeou com força, procedente de não se sabe onde. Tinha esquecido o que era o amor verdadeiro, fazia tanto tempo que tinha deixado de pensar nele. Seus pais tinham estado profundamente unidos. Representavam para ele um exemplo que lhe parecia intocável, mais do que podia chegar a esperar nunca. Mais do que ousava imaginar, por que teria que fazê-lo, sabendo que a morte podia levar-lhe tudo em um instante. A morte não os tinha perdoado. Ele não queria sentir essa classe de dor, ou provocar-lhe a outro.

     Dante observou aos dois casais no salão, golpeado pela sensação de intimidade, a profunda e distendida sensação de familiaridade. Era tão assustadora que sentiu a repentina urgência de retirar-se e esquecer que tinha estado ali. Enrugar o relatório do ocorrido essa noite. Este podia esperar a que os outros guerreiros voltassem da patrulha também.

     —Seu plano é ficar no corredor toda a noite ou vai entrar? Merda.

     Muito tarde para largar-se dali sem ter sido visto.

     Lucan, entre os mais capitalistas da estirpe, provavelmente teria advertido a presença de Dante na mansão incluso antes de que tivesse pego o elevador para ir ao recinto de abaixo.

     —Como vai tudo ? —perguntou Lucan enquanto Dante entrava com reticência.— houve problemas aí fora?

     —Infelizmente, não há boas notícias. —Dante colocou as mãos nos bolsos de seu casaco e apoiou um ombro na prancha de madeira que conformava a parede do salão.

     —Esta noite Harvard e eu fomos testemunhas de primeira mão de um desastre com o carmesim. Um menino do bairro dos Refúgios Escuros consumiu um pouco mais do que pôde dirigir, evidentemente. Foi presa de um ataque de luxúria de sangue na discoteca do centro, atacou um humano e quase lhe rasga a garganta diante de umas cem testemunhas.

     —Deus —assobiou Lucan, apertando a mandíbula. Gabrielle se deslizou de seu regaço, deixando livre seu casal para que pudesse ficar em pé e iniciasse um duro ir e vir de um lado a outro.

—Diga-me que foi capaz de evitar esse desastre.

     Dante assentiu.

     —Separei-o da mulher antes de que pudesse feri-la, mas o menino já estava estragado. converteu-se em um renegado, Lucan, isso é tudo. Quando o arrastei fora do lugar já não havia nada que fazer. Levei-o detrás da discoteca e o carbonizei.

     —Que espantoso! —disse Gabrielle, apertando suas finas sobrancelhas.

     A companheira do Gideon assinalou a dentada do braço de Dante, que quase tinha deixado de sangrar.

     —Você está bem? —perguntou Savannah.

— Parece que tanto você como seu casaco necessitam uns poucos pontos.

     Dante se encolheu de ombros, sentindo-se incômodo por toda a preocupação feminina.

     —Não é nada. Estou bem. Harvard está um pouco comocionado. Enviei-o atrás do traficante e voltou justo quando eu estava acabando o trabalho no beco. Pensei que ia economizar se ver a decomposição celular do renegado, mas teve que presenciá-la comigo.

     —E o traficante? —apontou Lucan com gravidade.

     —Nos escapou. Mas o vi bem, e acredito que sei como encontrá-lo.

     —Bem. Essa é agora nossa nova prioridade.

     Um gorjeio digital interrompeu a ordem de Lucan. O som provinha do telefone móvel que estava sobre a mesa perto do Gideon. O vampiro alcançou o aparelho e o abriu.

     —É Niko —disse enquanto respondia a chamada.

— Sim, amigo.

     A conversação foi curta e concisa.

     —Vem de caminho ao recinto —disse Gideon aos outros.

— Também se encontrou com um consumidor de carmesim que se converteu em renegado esta noite. Diz que Tegan já tinha contado a três a última vez que chegaram a base faz um par de horas.

     —Filho da puta —grunhiu Dante.

     —O que está acontecendo aí fora, carinho? —perguntou Savannah a Gideon, com um olhar de preocupação que podia ver-se refletida também nos olhos do Gabrielle.

— Essa droga está convertendo a vampiros em renegados por alguma espécie de acidente ou se trata de algo pior que isso?

     —Ainda não sabemos —respondeu Gideon. Seu tom era grave mas sincero.

     Lucan deteve seu passeio e se cruzou de braços.

     —Mas precisamos averiguá-lo rapidamente, melhor ontem que hoje. Temos que encontrar a esse traficante. Averiguar de onde procede essa merda e cortar o fornecimento de raiz. Gideon se passou os dedos por seu cabelo loiro talhado ao corte de barba.

     —Quer ouvir uma trama desagradável? Digamos que é um vampiro megalômano em busca da dominação do mundo. Começa a formar seu exército de renegados, só para verte frustrado quando seu quartel geral é arrasado no século seguinte por seus inimigos. Foge com o rabo entre as pernas, mas ainda está vivo. Está fodido. E, não o esqueçamos, ainda continua sendo um lunático perigoso.

     Ao outro lado do salão, Lucan soltou uma forte maldição. Todos sabiam que Gideon estava falando de um parente do próprio Lucan. Um vampiro da primeira geração da estirpe que anteriormente tinha sido guerreiro e durante muito tempo foi dado por morto. Não foi até o verão passado, quando a Ordem derrotou a uma crescente facção de renegados, que tirou o chapéu que o irmão de Lucan tinha sobrevivido.

     Seguia vivo e se havia autoproclamado o líder do que prometia ser uma sublevação maciça dos renegados. E ainda podia sê-lo, considerando que Marek tinha conseguido escapar ao assalto que acabou com seu exército em florações e sua base de operações.

     —Meu irmão é muitas coisas —disse Lucan pensativo—, mas lhes asseguro que está totalmente cordato. Marek tem um plano. Em qualquer lugar que se escapou, podemos estar seguros de que se acha trabalhando nesse plano. Seja o que seja o que pretenda, quererá levá-lo adiante.

     —O qual significa que precisa reconstruir seu exército, e fazê-lo rapidamente —disse Gideon.

— E dado que leva tempo e se necessita bastante má fortuna para que um vampiro da estirpe se converta em renegado por sua conta, talvez Marek começou a procurar uma maneira de recrutar reforços estimulando-os um pouco...

     —O carmesim seria uma espécie de maldita cartilha militar —interveio Dante.

     Gideon lhe lançou um grave olhar.

     —Dá-me calafrios pensar o que Marek poderia fazer com essa droga se distribuir a nível mundial. Não seríamos capazes de conter uma epidemia de cidadãos da raça que de repente se convertem em renegados por efeito do carmesim. Reinaria uma completa anarquia em todo mundo.

     Embora Dante odiasse ter que admitir que as especulações do Gideon podiam ser certas, tinha que reconhecer que ele mesmo albergava pensamentos similares. E a idéia de que o namorado da Tess estivesse envolto... de que a própria Tess pudesse ter algo que ver com o problema que o carmesim supunha para a raça, gelava-lhe o sangue nas veias.

     Acaso Tess podia saber algo sobre aquilo? Podia estar envolta de algum jeito, talvez ajudando a seu namorado com fornecimentos farmacêuticos da clínica? Algum dos dois era consciente do que podia fazer o carmesim? Pior ainda, a algum dos dois lhes importaria, uma vez soubessem a verdade: que os vampiros estiveram caminhando junto ao gênero humano durante milhares de anos? Talvez a idéia de uns poucos vampiros chupadores de sangue mortos —ou uma raça inteira— não parecesse algo tão mau de uma perspectiva humana.

     Dante precisava saber qual era o papel de Tess nessa situação, se é que jogava algum, mas não estava disposto a pô-la no ponto de olho de uma guerra da estirpe até que averiguasse a verdade pessoalmente. E havia uma parte de mercenário nele que não se opunha absolutamente a estar perto de Tess para poder aproximar-se também ao idiota de seu namorado. O bastante perto para matar esse bastardo, se era necessário.

     Até então, só esperava que a Ordem pudesse pôr um freio ao problema do carmesim antes de que as coisas escapassem de controle.

    

     —Olá, Ben. Sou eu. —Tess fechou os olhos, apoiou a frente sobre sua mão e deixou escapar um suspiro.

— Olhe, já sei que é tarde para chamar, mas queria que soubesse que realmente odeio a forma em que acabaram as coisas esta noite, bom, faz um momento. Teria gostado que ficasse e me deixasse explicar. Você é meu amigo, Ben, e nunca quis te ferir...

     Um agudo zumbido penetrou pelo ouvido de Tess ao cortar a secretária eletrônica do Ben. Pendurou o telefone e se tornou para trás no sofá.

     Talvez fosse bom que não lhe tivesse dado tempo de terminar. Não parava de caminhar de um lado a outro, muito nervosa para dormir, apesar de que era quase meia-noite e seu trabalho na clínica começaria ao cabo de umas seis horas. Estava acordada e levava toda a noite desconcertada e preocupada com o Ben, que em realidade —voltou a recordar-lhe a si mesmo— era um homem adulto e não sua responsabilidade.

     Ela não deveria preocupar-se, mas o fazia.

     Além da Nora, que nunca se encontrava com desconhecidos, Ben era seu mais íntimo amigo. Eles eram, em realidade, seus únicos amigos. Além deles, não tinha ninguém, embora devia reconhecer que sua maneira solitária de viver tinha sido decisão própria. Ela não era como outras pessoas, em realidade não, e ser consciente disso sempre a tinha feito manter-se separada. Solitária.

     Tess se olhou as mãos, localizando distraídamente a pequena marca de nascimento que havia entre seu dedo polegar e o índice, suas mãos eram seu ofício, e sua fonte de desafogo criativo também. Quando era mais jovem, em seu lar de Illinois, estava acostumada a dedicar-se a esculpir quando não podia conciliar o sono, adorava a sensação da argila fria sob as pontas dos dedos, a suave carícia de sua faca, a beleza emergindo lentamente que podia surgir de um montão de estuque ou de resina sem forma.

     Essa noite tinha tirado e colocado no chão junto a ela alguns de seus antigos instrumentos do armário do corredor; a caixa de ferramentas e peças a meio fazer. Quantas vezes se refugiou na escultura para distanciar-se de sua própria vida? Quantas vezes a argila, as facas e os punções tinham sido seus confidentes, seus melhores amigos, sempre disponíveis para ela quando não podia contar com nada mais?

     Suas mãos lhe tinham concedido uma meta na vida, mas eram de uma vez uma maldição e a razão pela que não podia confiar em que ninguém a conhecesse realmente.

     Ninguém podia inteirar-se do que tinha feito.

     As lembranças açoitaram os borde de sua consciência: os gritos de ira, as lágrimas, o fedor do álcool e uma respiração ofegante e odiosa lançada contra seu rosto. A frenética agitação de seus braços e pernas quando tratava de escapar dessas ásperas mãos que a apertavam. O peso que a esmagava nesses momentos justo antes de que sua vida caísse a um abismo de medo e arrependimento.

     Tess tratou de apartar tudo isso de sua mente, como tinha estado fazendo durante os últimos nove anos, desde que tinha deixado seu povo para começar uma nova vida. Para tratar de ser normal. Encontrar algum modo de adaptar-se, inclusive se isso significava negar quem era realmente

     «Respira? OH, Meu Deus, há-se posto azul! O que lhe tem feito, pequena cadela?»

     As palavras voltavam com tanta facilidade, a furiosa acusação tão cortante agora como então. Nessa época do ano sempre retornavam as lembranças. Amanhã... ou melhor dizendo, hoje, agora que já passava a meia-noite, era o aniversário daquele dia em que todo se tornou um inferno. Tess não queria recordá-lo, mas era difícil que o dia não estivesse marcado, já que era o mesmo de seu aniversário. Vinte e seis anos, mas se seguia sentindo como aquela moça de dezessete aterrorizada.

     « É uma assassina, Teresa Dawn!»

     Levantou-se do sofá e caminhou até a janela em pijama. Levantou o vidro e deixou que entrasse o ar frio da noite. O tráfico zumbia da auto-estrada e a rua de abaixo, com buzinas que soavam de forma intermitente e uma sirene que gemia na distância. O vento frio de novembro entrava cortante através do mosquiteiro, sacudindo o pano das cortinas.

     «Olhe o que tem feito! Acerta isto agora mesmo, maldita seja!»

     Tess abriu a janela de par em par e contemplou fixamente a escuridão, deixando que os ruídos da noite a envolvessem e emudecessem os fantasmas de seu passado.

  

     —Jonás Redmond desapareceu.

     Para ouvir a voz de Elise, Chase apagou a tela de seu computador e elevou a vista. Discretamente, sem permitir que ela advertisse seus movimentos, deslizou a adaga que tinha resgatado fazia umas horas, quando estava de patrulha com Dante, em uma das gavetas de seu escritório.

     —Saiu ontem à noite com um par de amigos, mas não voltou com eles.

     Elise permanecia em pé na soleira de seu estudo, irradiando beleza, inclusive com as roupas de luto brancas e sem forma que levava sempre durante os últimos cinco anos. A túnica com mangas acampanhadas e a saia larga ondeavam em torno de sua pequena figura, e a única nota de cor a dava a bandagem de viúva, em seda vermelha, que ia atada solta a seus quadris.

     Dada a rigidez de seus costumes, Chase nunca tivesse imaginado que seria capaz de entrar em sua propriedade sem ser convidada. Levantou-se da cadeira de seu escritório e lhe ofereceu a mão em sinal de bem-vinda.

     —Por favor —lhe disse, incapaz de apartar os olhos dela enquanto se separava da soleira e ficava em pé junto à parede longínqua.

     —Dizem que tomou algum tipo de droga quando estavam na discoteca e que se voltou louco —disse ela brandamente—. Tratou de atacar a alguém. Seus amigos se assustaram e saíram fugindo. Perderam-no nesse momento de pânico, e não sabem o que lhe ocorreu. Transcorreu o dia inteiro sem que tenhamos nenhuma notícia dele.

     Chase não respondeu. Elise não quereria saber a verdade, e ele seria a última pessoa em submetê-la aos horríveis detalhes que sabia de primeira mão a respeito da agonia final do jovem vampiro.

     —Jonás é um dos melhores amigos do Camden, sabe.

     —Sim —disse Chase com serenidade.

— Sei.

     Elise enrugou sua lisa frente, logo apartou o olhar dele, sem deixar de toquetear seu anel de bodas.

     —Crê que é possível que os encontrem aí fora? Talvez CAM e Jonás se esconderam juntos em alguma parte. Devem estar tão assustados, com necessidade de encontrar proteção para proteger-se do sol. Ao menos escurecerá logo, dentro de tão somente umas horas. Talvez esta noite tenhamos boas notícias.

     Chase não foi consciente de mover-se até que se achou ao outro lado do escritório, tão somente a uns poucos passos do Elise.

     —Encontrarei a Camden. Prometo-lhe isso. Tem meu juramento, Elise: não descansarei até que esteja a salvo contigo de novo em casa.

     Ela sacudiu fracamente a cabeça.

     —Sei que está fazendo tudo o que pode. Mas está fazendo um grande sacrifício para procurar CAM. Sei o muito que desfruta do trabalhar para a agência. E agora te vê envolto com esses perigosos valentões da Ordem...

     —Não tem que preocupar com nada disso —lhe disse com suavidade.

— Minhas decisões tomo eu. Sei o que estou fazendo... e por que.

     Ao elevar o olhar para ele, esta vez lhe sorriu, um presente pouco comum que ele devorou com cobiça.

     —Sterling, eu entendo que você e meu marido tinham suas diferenças. Quentin as vezes podia ser... inflexível. Sei que te apertava muito com os assuntos da agência. Mas ele te respeitava mais que a ninguém. Sempre dizia que foi o melhor, que tinha mais potencial. Você lhe importava, embora freqüentemente lhe custasse demonstrar isso. Inspirou e logo soltou o ar em um rápido suspiro.

— Estou segura de que ele agradeceria muitíssimo tudo o que está fazendo por nós, Sterling. Estaria tão agradecido como eu.

     Olhando os quentes olhos lavanda de Elise, Chase se imaginou trazendo seu filho de volta a casa como um prêmio que ele ganharia só para ela. Haveria lágrimas de alegria e abraços emocionados. Quase podia sentir os braços dela em torno dele em um alívio catártico, com seus olhos úmidos nomeando-o seu herói pessoal. Seu salvador. Ele vivia por essa oportunidade.

     Desejava-a com uma ferocidade que lhe resultava surpreendente.

     —Só quero que seja feliz —disse ele, atrevendo-se a aproximar-se um pouco.

     Em um instante vergonhoso, imaginou uma realidade alternativa, onde Elise lhe pertencia, com seu traje de viúva arrojado longe junto com a lembrança do forte e honorável companheiro que tão profundamente tinha amado e tinha perdido. No sonho íntimo do Chase, o pequeno corpo de Elise cresceria e maturaria com seu próprio filho. Lhe daria um filho que amar e manter perto. Lhe daria o mundo.

     —Você merece ser feliz, Elise.

     Ela fez um pequeno ruído com a parte posterior de sua garganta, como se ele a tivesse feito sentir incômoda.

     —É muito amável por sua parte preocupar-se. Não sei o que faria sem você, especialmente agora.

     Ela deu uns passos para ele e lhe pôs as mãos sobre os ombros. Foi apenas um ligeiro roce, mas suficiente para enviar uma torrente de calor através dele. Ele se conteve, quase sem poder respirar quando ela se elevou nas pontas dos pés e pôs os lábios na comissura de sua boca. Foi um beijo breve, tão casto que lhe rompeu o coração.

     —Obrigado, Sterling. Não poderia pedir um cunhado mais devoto.

      

     Tess examinou os bolos da cafeteria do North End, decidindo-se finalmente por uma deliciosa bolacha de chocolate de sete capas banhado em molho de caramelo. Normalmente não se mimava muito, e provavelmente não tinha direito a fazê-lo agora, dado o precário de suas finanças, mas depois de um comprido dia de trabalho —um dia que, além disso, tinha seguido a uma noite quase sem dormir— pensava desfrutar de seu bolo e seu capuchino sem sentir-se culpada. Bom, talvez teria tão somente um pequeno momento de culpa, que seria esquecido no instante em que esse pegajoso doce tocasse sua língua.

     —Eu o pagarei —disse uma profunda voz masculina detrás dela.

     Tess se sobressaltou. Conhecia essa profunda e bela voz com um ligeiro acento, embora só a tivesse ouvido antes uma vez.

     —Dante —disse ela, voltando o rosto para ele.

— Olá.

     —Olá. —Ele lhe sorriu, e o coração da Tess começou a agitar-se freneticamente em seu peito.

— Eu gostaria de te convidar... Deus, não me diga que esta é sua comida?

     Ela riu e negou com a cabeça.

     —Almocei tarde no trabalho. E não tem por que me convidar...

     —Insisto. —Entregou um bilhete de vinte e não aceitou o troco. Não pareceu advertir o olhar coquete da bonita atendente, pois toda sua atenção se concentrava na Tess. A intensidade de seus preciosos olhos, toda sua presença, pareciam deixar sem ar essa sala muito cálida.

     —Obrigado —disse ela, recolhendo seu bolo de chocolate e a taça de papel do balcão.

—Você não vais tomar nada?

     —Não tomo açúcar nem cafeína. Não vão.

     —Que não vão? Pois são dois de meus vícios favoritos.

     Dante fez um suave som com a garganta, quase um ronrono.

     —Quais são os outros?

     —Basicamente o trabalho —se apressou a dizer ela, sentindo que se ruborizava enquanto se voltava para agarrar um guardanapos da máquina vendedora que havia ao final do balcão. Também sentiu um peculiar calor na nuca, que a fez estremecer-se como se se tratasse de uma descarga elétrica. Chegou-lhe até a medula, em cada uma de suas veias. Estava ansiosa por trocar de tema, muito consciente do calor que surgia dele enquanto a conduzia distraídamente para a porta da cafeteria.

— É uma surpresa te encontrar aqui, Dante. Vive perto?

     —Não muito longe. E você?

     —Apenas a um par de quadras —disse ela, caminhando junto a ele ao ar frio da noite. Agora que voltava a estar a seu lado, não podia deixar de pensar no estranho encontro cheio de carga sexual que tinham tido na exposição. Ela tinha estado pensando nesse breve e incrível momento quase constantemente após, perguntando-se se ele teria sido tão somente um produto de sua imaginação, surto de algum lugar escuro de suas fantasias. Entretanto, aí estava, de carne e osso. Tão real que podia tocá-lo. E lhe surpreendiam as vontades que tinha de fazê-lo.

     Isso a desconcertou, pondo-a nervosa e preocupada. Fazendo-a desejar afastar-se antes de que o desejo se voltasse ainda mais forte.

     —Bom —disse, enquanto inclinava o copo de fumegante capuchino em sua direção.

— Obrigado de novo pelo açúcar e a cafeína. Boa noite.

     Enquanto se girava para subir a calçada, Dante alcançou seu braço. Sua boca se curvou em um divertida e suspicaz sorriso.

     —Sempre está fugindo de mim, Tess.

     Isso fazia? E em realidade, por que deveria fazê-lo? Apenas o conhecia, e o que conhecia dele parecia pôr seus sentidos a toda máquina.

     —Não estou fugindo de você...

     —Então me deixe te acompanhar a casa.

     Ele tirou um pequeno chaveiro do bolso de sua jaqueta, e um Porche negro estacionado junto ao meio-fio fez um chiado, e suas luzes cintilaram em resposta. Bonito carro, pensou ela, sem que lhe surpreendesse realmente que conduzisse um veículo lustroso, rápido e caro.

     —Obrigado, mas... eu estou bem, sério. É uma noite tão bonita que de fato vou caminhar um momento.

     —Posso ir contigo?

     Se ele tivesse insistido dessa maneira tão confiada e dominante, Tess o tivesse rechaçado. Mas o estava pedindo educadamente, como se entendesse até onde podia empurrá-la. E apesar de que Tess tinha desejos de estar sozinha, aquela noite mais que nunca, quando tratava de procurar desculpas para separar-se dele, as palavras simplesmente não lhe saíam.

     —Claro. Suponho que sim. Se você quiser.

     —Nada eu gostaria mais.

     Começaram a passear lentamente pela calçada, simplesmente um casal mais em uma rua cheia de turistas e residentes desfrutando da pitoresca vizinhança do North End. Durante um comprido momento, nenhum dos dois falou. Tess bebia seu capuchino e Dante observava a zona com uma intensidade agressiva que a fazia sentir-se nervosa e de uma vez protegida. Ela não via perigo em nenhum dos rostos que passavam perto, mas Dante tinha um ar de feroz vigilância que indicava que estava preparado para qualquer situação.

     —A outra noite não me disse como ganhava a vida. É polícia ou algo assim?

     Ela olhou com expressão séria enquanto caminhavam.

     —Sou um guerreiro.

     —Guerreiro —disse ela, cética pelo antiquado do término.

— O que significa isso exatamente... um militar? Forças especiais? Vigilante?

     —Em certo sentido, sou todas essas coisas. Mas sou dos bons, Tess, prometo-lhe isso. Meus irmãos e eu fazemos todo o necessário para manter a ordem e nos assegurar de que os fracos e inocentes não sejam vítimas dos fortes e corruptos.

     Ela não riu, embora não estava de todo segura de que falasse a sério. A forma em que se descrevia a si mesmo trazia para sua mente os antigos ideais de justiça e nobreza, como se estivesse assinado A algum tipo de código de honra de cavalheiros.

     —Bom, não posso dizer que tenha visto antes a descrição desse oficio em algum currículo. Quanto a mim, simplesmente pratico a medicina privada como Veterinaria.

     —E o que me diz de seu namorado? O que faz para ganhar a vida?

     —Ex-namorado —se apressou a esclarecer ela.

— Ben e eu rompemos faz um tempo.

     Dante se deteve observá-la, algo escuro aparecia em seus rasgos.

     —Mentiu-me?

     —Não, eu disse que tinha ido na inauguração com o Ben. Você deu é obvio que era meu namorado.

     —E você deixou que acreditasse. Por que?

     Tess se encolheu de ombros, insegura.

     —Talvez não confiava em você para te dizer a verdade.

     —E agora confia?

     —Não sei. Não confio com muita facilidade.

     —Eu tampouco —disse ele, observando-a agora mais perto que nunca. Reataram o passeio.

— Diga-me... como te viu envolta com esse... Ben?

     —Conhecemo-nos faz um par de anos, através de minha profissão. É um bom amigo.

     Dante grunhiu, mas não disse nada mais. A pouco menos de uma quadra se encontrava o rio Charles, um dos lugares favoritos de Tess para passear. Ela abandonou a rua para entrar por um dos atalhos pavimentados que serpenteavam ao longo da beira do rio.

     —Em realidade não crê isso —disse Dante quando estiveram perto da escura e ondulante água do Charles.

— Diz que é um bom amigo, mas não está sendo honesta. Nem comigo, nem contigo mesma.

     Tess franziu o cenho.

     —Como pode saber o que penso? Não sabe nada de mim.

     —Me diga que me equivoco.

     Ela se dispôs a falar, mas seu olhar inquebrável a desarmou. Ele a conhecia. Deus, como era possível que se sentisse tão conectada com ele? Como podia ler nela com essa claridade? Ela tinha tido essa mesma sensação —esse instantâneo e peculiar laço com ele— no museu.

     —Ontem à noite, na exposição —disse ela, com a voz serena no frio da noite—, beijou-me.

     —Sim.

     —E logo desapareceu sem dizer nenhuma palavra.

     —Tive que ir. Se não houvesse feito, não tivesse tido suficiente só te beijando.

     —Em meio de uma sala de baile cheia de gente? —Ele não disse nada que o negasse. E a suave e atrativa curva de seus lábios enviou flechas de fogo como labaredas através de suas veias. Tess sacudiu a cabeça.

— Nem sequer estou segura de por que te permiti que o fizesse.

     —Desejaria que não o tivesse feito?

     —Não importa se o desejava ou não.

     Ela reatou seus passos, adiantando-se a ele pelo atalho.

—Está fugindo outra vez, Tess.

     —Não o faço! —Surpreendeu-lhe o tom assustado de sua própria voz. E estava correndo, seus pés tratavam de afastar-se dele o mais possível, apesar de que todo o resto de seu corpo se sentisse arrastada para ele como se houvesse um campo magnético. Obrigou-se a deter-se. A permanecer quieta enquanto Dante se aproximava dela e a girava para ele para olhá-la ao rosto.

     —Todos fugimos de algo, Tess.

     Ela não pôde evitar burlar-se um pouco.

     —Inclusive você?

     —Sim. Inclusive eu. —Olhou fixamente o rio, logo assentiu com a cabeça enquanto voltava o olhar de novo para ela.

— Quer saber toda a verdade? Eu estive fugindo durante toda minha vida... mais tempo de que pode imaginar.

     Ela o encontrava difícil de acreditar. Era certo que sabia muito pouco dele, mas se tivesse que descrevê-lo em uma palavra, provavelmente esta seria «valente». Tess não podia imaginar o que poderia fazer que esse homem tão imensamente crédulo duvidasse um segundo.

     —Do que, Dante?

     —Da morte. —Permaneceu calado durante um instante, em atitude reflexiva—. Às vezes penso que se simplesmente continúo me movendo, se não permitir ficar ancorado pela esperança ou qualquer outra coisa que possa me levar a dar um passo em falso... —Soltou uma maldição na escuridão.

— Não sei. Não estou seguro de se for possível burlar o destino, por mais rápido ou mais longe que corramos.

     Tess pensou sobre sua própria vida, o maldito passado que a tinha estado afligindo durante tanto tempo. Tinha tentado deixá-lo atrás, mas sempre estava ali. Sempre escurecendo cada decisão que tomava, lhe recordando a maldição que nunca lhe permitiria viver verdadeiramente. Inclusive agora —muitíssimo depois— se perguntava se seria o momento de trocar, de começar de novo.

     —O que pensa, Tess? Do que foge você?

     Ela não respondeu, dividida entre a necessidade de proteger seus segredos e seu desejo de compartilhá-los com alguém que fora capaz de não julgá-la, que pudesse entender o que a tinha levado a essa situação em sua vida, se é que não podia perdoá-la por isso.

 

     —Está bem —disse Dante com suavidade.

— Não tem que me contar isso agora. Vamos, procuremos um banco onde possa te sentar e desfrutar de seu açúcar e sua cafeína. Nunca poderá dizer que sou capaz de lhe negar a uma mulher algum de seus vícios favoritos.

     Dante observava como Tess comia o espesso bolo de chocolate banhado de caramelo, sentindo que seu prazer irradiava através da pequena distância que os separava naquele banco a beira do rio. Lhe ofereceu um bocado, e embora os de sua classe não podiam consumir mais de um bocado de comida humana, ele aceitou provar uma pequena quantidade do doce, embora só fora para compartilhar a descarada alegria de Tess. Tragou o pesado, pastoso e bastante asqueroso bocado de doce com um sorriso tirante.

 

     —Está bom, verdade? —Tess lambia os dedos cobertos de chocolate, deslizando-os um após o outro dentro de sua boca para chupá-los.

     —Delicioso —disse Dante, contemplando-a com ânsia.

     —Dou-te mais se quiser.

     —Não. —tornou-se para trás, negando com a cabeça—. Não, é todo teu. Por favor, desfruta-o.

     Ela o terminou e logo bebeu o último gole de café. Quando se levantou para atirar a bolsinha e o copo vazio em um cesto de papéis do parque, distraiu-se com um homem maior que passeava junto ao rio com um casal de pequenos cães marrons. Tess lhe disse algo, logo ficou de cocoras e deixou que os cães lhe subissem em cima.

     Dante a observou rir enquanto os cães se moviam e dançavam reclamando sua atenção. Essa rígida atitude cautelosa que ele tinha tratado de romper sem êxito, agora tinha desaparecido. Durante uns minutos ele pôde ver Tess tal e como era realmente, sem medo nem desconfiança.

     Era magnífica, e Dante sentiu uma descabelada punhalada de inveja pelos dois vira-latas que se beneficiavam de seu afeto desinibido.

     Ele se aproximou e saudou com a cabeça ao ancião enquanto este e seus cães começavam a apartar-se. Tess se levantou, ainda satisfeita enquanto observava aos animais ir ao trote junto a seu amo.

     —Tem muito talento com os animais.

     —São meu ofício —disse ela, como se precisasse justificar seu prazer.

     —É boa com eles. Isso é óbvio. —Eu gosto de ajudar aos animais. É algo que me faz sentir... útil, suponho.

    —Talvez algum dia poderia me mostrar o que faz. Tess inclinou a cabeça para ele.

     —Tem um mascote?

     Dante deveria haver dito que não, mas ainda tinha a imagem dela com essas duas ridículas bolas de cabelo e desejava poder lhe procurar algum tipo de alegria similar.

     —Tenho um cão. Como esses.

     —Ah, sim? Como se chama?

     Dante se esclareceu garganta, pensando que nome poderia lhe pôr a uma criatura inútil que dependesse dele para sobreviver.

     —Harvard —disse com voz cansada, curvando os lábios em um sorriso privado.

— Se chama Harvard.

     —Bom, eu adoraria conhecê-lo algum dia, Dante. —levantou-se uma brisa fria e Tess tremeu, esfregando-os braços.

— Se está fazendo um pouco tarde. Provavelmente deveria me dirigir a casa.

     —Sim, claro. —Dante assentiu, obrigando-se a si mesmo por haver-se inventado um mascote, por Deus santo, só porque com isso podia ganhar a aceitação de Tess. Por outra parte, essa também podia ser uma maneira conveniente de passar mais tempo com ela, para averiguar quanto sabia sobre o carmesim e da operação em que estava envolto seu ex-namorado.

     —Desfrutei de nosso passeio, Dante.

     —Eu também.

     Tess se olhou os pés, com uma expressão melancólica em seu rosto.

     —O que acontece?

   —Nada. É só que... Não esperava que nada bom pudesse acontecer esta noite. Geralmente este não é um de meus dias favoritos.

     —Por que não?

     Ela levantou o olhar e se encolheu ligeiramente de ombros.

     —É meu aniversário.

     Ele desenhou um sedutor sorriso.

     —Isso é mau?

     —Não estou acostumada a celebrá-lo. Digamos que tive uma educação bastante disfuncional. Não é nada grave, em realidade.

     Em realidade sim o era. Dante não necessitava um laço de sangue com Tess para entender que ainda sentia dor por uma velha ferida. Ele queria saber tudo a respeito dessa dor e de sua fonte, seus instintos protetores se dispararam ao pensar que Tess pudesse estar sofrendo alguma classe de infelicidade. Mas ela já estava se separando dele, avançando lentamente para o atalho que os conduziria a rua de volta ao bairro. Ele alcançou sua mão, demorando sua retirada. Desejava atrai-la para ele e abraçá-la.

     —Deveria ter uma razão para celebrar cada dia, Tess. E especialmente este. Eu adoraria que me deixasse passar algum tempo contigo.

     Ela sorriu, sorriu sinceramente, com seus olhos brilhantes sob o suave resplendor das luzes do parque e sua deliciosa boca estendendo-se em um belo e suave arco. Dante não pôde resistir sua necessidade de senti-la perto. Entrelaçou os dedos com os dela e brandamente a atraiu para si.

     Contemplou seu belo rosto, meio perdido em seu desejo por ela.

     —Nenhum aniversário está completo sem um beijo.

     Como uma porta que se fechasse de repente ante ele, a expressão de Tess trocou. Ficou gelada, logo ficou rígida e se separou dele.

     —Eu não gosto dos beijos de aniversário —soltou ela em um sopro de fôlego.

— Eu... acredito que devemos dar por terminada a noite, Dante.

     —Tess, sinto muito...

     —Tenho que ir. —Ela já estava movendo para o atalho. Logo deu um giro e saiu correndo com um trote rápido, deixando-o em pé somente no parque perguntando-se que diabos acabava de passar.

    

     Chase se afastou do imóvel da Ordem, irritado pela frustração. Aquela noite não patrulharia. Todos os guerreiros faziam missões em solitário, deixando Chase com várias horas de escuridão por diante para matar o tempo por sua conta.

     A morte do amigo de Camden a noite passada ainda o corroia, fazendo-o ainda mais consciente de que o relógio avançaria mais rápido se conservava alguma esperança de devolver a seu sobrinho são e salvo a casa. Chase conduziu por algumas das zonas nas que tinha patrulhado com Dante, tanto pelos lugares conhecidos como pelos menos conhecidos onde os humanos e os vampiros estavam acostumados a mesclar-se.

     Percorreu as ruas e os estaleiros em busca do Camden, de algum sinal dele ou de algum de seus amigos. Várias horas depois ainda não tinha encontrado nada.

     Estava estacionado no bairro chinês, a ponto de retornar ao Refúgio Escuro, quando viu dois jovens da estirpe e um casal de mulheres humanas entrando em um portal sem numerar que estava frente a ele. Chase apagou o motor do Lexus e saiu do veículo. Enquanto se aproximava do lugar onde tinha ido o grupo ouviu música que procedia de algum lugar e chegava até o nível da rua. Abriu a porta e se deslizou no interior.

     Sob um comprido e longo iluminado lance de escadas havia outra porta. Esta tinha a um gorila humano parado junto a ela, mas Chase não teve problema em passar junto ao tipo lhe pondo um bilhete de cem dólares na mão.

     O grave som de um baixo encheu a cabeça de Chase quando entrou no clube cheio de gente. Havia corpos agitando-se em qualquer lugar onde olhava, a dança transbeirava a habitação em uma massa gigante que se sacudia. Esquadrinhou a densa multidão enquanto avançava para o interior, de onde se projetavam luzes estroboscópicas azuis e vermelhas que lhe incomodavam nos olhos.

     Tropeçou-se com uma mulher bebada que estava dançando com alguns amigos. Chase emitiu uma desculpa que provavelmente ela não pôde ouvir por cima do estrépito. Com atraso, ele se deu conta de que lhe tinha posto as mãos sobre a coxa, tratando de sustentá-la para que não caísse.

     Ela sorriu sedutora, lambendo os lábios, manchados de um vermelho brilhante pelo pirulito que estava chupando. Ela dançava agora mais perto dele, descaradamente sexual esfregando seu corpo contra o seu. Chase contemplou sua boca, e logo a magra linha branca de seu pescoço.

     As veias dele começaram a zumbir, enquanto uma febre crescia em seu sangue.

     Deveria partir. Se Camden se encontrava ali, as possibilidades de encontrá-lo eram muito baixas. Muita gente, muito ruído.

     A mulher lhe rodeou os ombros com as mãos, detendo-se frente a ele, com suas coxas roçando os dele. A saia que levava era ridiculamente curta, tão curta que quando se voltou e apertou o traseiro contra sua virilha, Chase viu que não levava nada debaixo.

     Deus santo.

     Realmente tinha que sair dali...

     Outro par de braços o rodearam por detrás, uma das amigas da garota que tinha decidido jogar também. Uma terceira se aproximou e deu a primeira um comprido e úmido beijo. As duas olhavam a Chase enquanto suas, línguas escorregavam juntas como serpentes.

 

     O pênis lhe pôs imediatamente duro dentro das calças. A mulher que tinha detrás alargou a mão para baixo, acariciando o vulto ainda mais dura graças a seus hábeis e desumanos dedos. Chase fechou os olhos, sentindo que a luxúria se enroscava com outra fome diferente, uma que não tinha satisfeito fazia quase tanto tempo como sua urgência sexual. Estava faminto, seu corpo reclamava tanto satisfação como liberação.

       As duas mulheres o beijaram agora a ele, compartilhando sua boca enquanto a multidão ao redor deles seguia dançando, sem lhes importar que a exibição carnal tivesse lugar ali mesmo. Não eram os únicos; Chase viu mais de um casal ocupado, e a mais de um vampiro da estirpe que encontrava uma hóspede em meio da sensualidade explícita do lugar.

     Com um grunhido, Chase deslizou suas mãos por debaixo da saia curta da primeira mulher. Enrugou o tecido com rudeza, deixando-a exposta a seu olhar faminto enquanto sua amiga dava a ele uma quente lambida no pescoço.

     As presas do Chase se alargaram em sua boca enquanto penetrava com a mão a úmida fenda que ficava escarranchado sobre sua coxa. As outras mulheres jogavam com sua cremalheira, baixando-a e colocando as mãos para acariciar seu membro ereto. A necessidade o enrolou, a urgência por foder e alimentar-se era incontivel. Com rudeza agarrou a uma das fêmeas pelos ombros e a empurrou para baixo diante dele. Ela se ajoelhou, lhe liberando o pênis e introduzindo-lhe dentro da boca.

     Enquanto o chupava energicamente, e a outra mulher lhe movia a mão para alcançar seu próprio climax, Chase aproximou a terceira mulher a sua boca. Suas presas palpitavam inclusive mais que seu sexo, sua visão se fazia mais aguda à medida que a fome afiava suas pupilas até as converter em fendas e aumentava todos seus sentidos. Separou os lábios enquanto apertava o pescoço da fêmea contra sua boca. Com um seco empurrão, imobilizou-a, abriu sua veia e deixou que a saborosa e cálido sangue passasse através de seus dentes.

     Chase se alimentou rápido e a fundo, com uma perda de controle nada própria dele e que lhe pareceu repugnante. Mas não podia parar. Bebeu com força, e cada vez que chupava a veia de sua anfitriã, a urgência de liberação crescia mais vertiginosamente entre suas pernas. Moveu seus quadris repetidamente, agarrando com uma mão o cabelo da mulher enquanto perseguia seu orgasmo. Estava a ponto de chegar, rugindo através dele...

     Com um furioso estalo explodiu. Ainda tinha a boca presa com força a sua anfitriã. Passou a língua sobre as espetadas das feridas, fechando-os hermeticamente. Ela ofegava desejando sua própria liberação, as três mulheres o manuseavam miando e gemendo em busca de mais.

     Chase se separou das mãos que o sujeitavam, odiando o que acabava de fazer. Levou a palma da mão até a frente de sua hóspede e limpou sua memória. Logo fez o mesmo com as outras duas. Tinha tantas vontades de sair dali que virtualmente tremia ante a idéia. Grampeou-se as calças e sentiu que uma quebra de onda de inquietação percorria sua espinha dorsal.

     Desde algum lugar da sala uns olhos o estavam olhando. Examinou a multidão em busca do intruso... e se surpreendeu contemplando a um dos vampiros da Ordem.

     Tegan.

     Ao caralho sua idéia de considerar-se superior aos machos da estirpe que escolhiam viver uma vida de violência e uma justiça quase de vigilantes.

     Quanto da degradante falta de controle do Chase teria visto Tegan? Provavelmente toda, embora a expressão do vampiro não traía nada, simplesmente se limitava a sustentar um olhar frio, plaina e cúmplice.

     O guerreiro continuou olhando um momento mais, logo simplesmente se deu a volta e abandonou o lugar.

    

     Um par de brilhantes olhos ambarinos com pupilas chapeadas lhe devolveram o olhar a Dante da tela do computador de seu apartamento. A boca da besta estava aberta, com seus lábios curvados mostrando um jogo de presas bastante impressionante. Tinha um aspecto furioso, mas a nota ao pé da fotografia o descrevia como «uma diva doce e mimosa a quem adoraria ir casa contigo hoje mesmo».

     —Deus —murmurou Dante, com repulsão. Já tinha bastante com as feras babeantes que via cada noite que passava fora caçando renegados.

     Diabos, as vezes via o mesmo ser repugnante refletido em seu próprio espelho, quando a sede de sangue, a luxúria ou a raiva emergiam de sua natureza original. A dor em seus pesadelos premonitorias também provocava o mesmo: as pupilas afiadas, seus olhos de um marrom claro passavam a ser de um feroz âmbar e as presas lhe cresciam nas gengivas.

     Tinha tido outro de seus infernais sonhos precisamente hoje. Um sono mortal despertou ao redor do meio-dia e o deixou suando e tremendo durante várias horas depois. Os malditos pesadelos eram mais freqüentes ultimamente, e mais intensos. E as agudas dores de cabeça que ficavam ao despertar eram pior que um pontapé no traseiro.

     Dante acionou o mouse sem fio que havia junto a seu teclado e passou da categoria de felinos a de caninos. Deu-lhe ao botão para consultar o inventário de animais disponíveis e logo examinou rapidamente as fotos. Uns poucos pareciam adequados para seus propósitos, em particular um cão de caça com rosto triste chamado Barney, que «precisava cuidados especiais e sonhava com um lugar agradável onde passar seus últimos anos dourados».

     Isso podia funcionar. A verdade é que não estava procurando nada que durasse muito.

     Dante ativou seu telefone móvel e marcou o número da protetora de animais. Uma jovem que mastigava chiclete, com um marcado acento de Boston, atendeu o telefone ao quinto timbrazo.

     —Resgate de Pequenos Animais do Eastside, no que posso lhe ajudar?

     —Necessito um de seus animais —lhe disse Dante.

     —Desculpe?

     —Um cão de sua página Web, o velho. Quero-o. Houve um tempo de silêncio, seguido de um comentário todo volume da garota do chiclete.

     —OH! refere-se a Barney?

     —Sim, esse.

     —Bom, sinto muito, mas já foi adotado. Ainda sai na página? Devem ter esquecido de tirar ao dia. Que tipo de cão está procurando? Temos muitos outros que necessitam um bom lar.

     —Necessito um animal esta mesma noite.

     Ela soltou uma pequena risada insegura.

     —Hum, a verdade é que não funcionamos assim. Necessitamos que venha e preencha uma solicitude, e logo se entreviu, com um de nossos...

     —Posso pagar.

     —Bom, isso está bem, porque pedimos uma pequena doação para cobrir o tratamento e...

     —Será suficiente com cem dólares? Ex...

     —Duzentos? —perguntou, sem lhe importar realmente o preço.

— É muito importante para mim.

     —Sim —disse ela—, eu... hum... essa era minha idéia.

     Dante baixou a voz e se concentrou na manejável mente humana que havia ao outro lado do telefone.

     —Me ajude. De verdade necessito um de seus animais. Agora pense um pouco e me diga o que é o que tenho que fazer para consegui-lo.

     Ela vacilou durante uns segundos.

     —Olhe, poderiam me despedir por isso, mas temos um cão que acaba de chegar hoje. Nem sequer foi examinado ainda, mas não parece que esteja nas melhores condições. E para ser honesta com você, tampouco tem bom aspecto. Não temos espaço para ele agora, assim está na lista para ser sacrificado amanhã pela manhã.

     —Levarei-me isso. —Dante comprovou a hora. Eram as cinco passadas, já tinha escurecido, obrigado a que Nova a Inglaterra pertencia à zona horaria do Leste. Harvard não se apresentaria no recinto até dentro de um par de horas. Tempo suficiente para levar a cabo sua pequena transação antes de ter que unir-se com o agente para a patrulha noturna. Ficou em pé, agarrou sua jaqueta e suas chaves.

— Saio agora mesmo. Estarei ali em uns vinte minutos.

     —De acordo. Fechamos as cinco e meia, mas o esperarei. Entre por detrás e pergunte por Rosa. Sou eu. —Fez explodir seu chiclete outra vez, ele podia ouvir funcionar sua mandíbula em um frenesi de rápidos ruídos secos.

— Ah, quanto ao dinheiro... os duzentos... Poderá pagá-los em dinheiro? Dante sorriu enquanto saía pela porta.

     —Feito.

  

     Tess comprovou de novo a última imagem de seu computador, assegurando-se de que a soma era a correta antes de dar ao botão para completar a transferência de recursos. As faturas atrasadas da clínica estariam pagas agora, mas sua conta de economias teria mil dólares a menos. E o mês seguinte as faturas começariam a acumular-se outra vez.

     —Olá, Tess. —Nora apareceu na soleira da porta e deu um golpezinho vacilante no marco.

— Sinto interromper, mas são quase as seis e tenho que ir estudar para um exame que tenho amanhã. Quer que feche?

     —De acordo —disse Tess, esfregando-as têmporas, onde dois nós de tensão tinham começado a assentar-se.

—Obrigado, Nora. Boa noite.

     Nora a olhou durante um comprido momento e logo baixou a vista até a enorme pilha de faturas do escritório.

     —Tudo está em ordem?

     —Sim. —Tess tratou de esboçar um sorriso alentador.

— Sim, tudo está bem.

     —Vi hoje o aviso do proprietário. O aluguel subirá a princípios do ano, não?

     Tess assentiu.

     —Só oito por cento.

     Realmente não era muito, mas ela logo que podia cobrir o aluguel da clínica tal como estava. O aumento provavelmente seria a gota que encheria o copo, a menos que começasse a cobrar mais por seus serviços. Isso certamente lhe faria perder mais da metade dos clientes, o qual a levaria diretamente à quebra. A única alternativa razoável seria então fechar a clínica e dedicar-se a outra coisa.

     Tess não temia essa opção; estava acostumada as mudanças. Às vezes se perguntava se acaso não seria mais fácil para ela começar de novo que aprofundar realmente em algo. Ainda estava procurando um lugar agradável no qual deixar cair. Talvez nunca o encontraria.

     —Olhe, Tess, eu... quero falar de algo contigo. Minhas classes se estão fazendo mais intensas este último semestre, e realmente preciso me dedicar a sério. —Vacilou, movendo os ombros.

—Sabe que eu gosto de trabalhar aqui, mas vou ter que recortar minhas horas.

     Tess assentiu, em sinal de aceitação.

     —De acordo.

     —É só que entre a clínica e os estudos, não tenho tempo de me dar uma pausa, sabe? Meu pai se casa dentro de umas semanas, por isso também estou pensando em ir de sua casa. Por outro lado minha mãe quer que volte com ela para a Califórnia depois de me graduar na primavera...

     —Está bem. De verdade, entendo-o —disse Tess, ligeiramente aliviada.

     Tinha compartilhado com a Nora algumas de suas lutas com os assuntos econômicos, e embora Nora insistia em que agüentassem juntas, Tess se seguia sentindo responsável. De fato, havia vezes em que sentia que estava mantendo a clínica aberta mais por seus clientes e pela Nora que para si mesmo. Era boa em seu trabalho —isso sabia—, mas não podia deixar de sentir que sua nova vida não era mais que outra forma de seguir ocultando-se. De seu passado, certamente, mas também do aqui e o agora. De algo que tinha medo de examinar de perto.

     «Sempre está fugindo, Tess.»

     As palavras de Dante ressonavam em sua mente. Havia-se sentido identificada com o que lhe havia dito, sentia que a observação que lhe tinha feito era acertada. Ao igual que ele, freqüentemente pensava que se continuava movendo-se, se continuava correndo, talvez, só talvez, seria capaz de sobreviver. Entretanto, não temia a morte. Seu demônio estava sempre ao seu lado.

     Tess endireitou a pilha de papéis de seu escritório, obrigando-se a voltar a concentrar-se na conversação.

     —Quando pensa reduzir sua jornada?

     —Bom, logo que me deixe, suponho. Além disso, atormenta-me que esteja financiando meus pagamentos com suas economias pessoais.

     —Deixa que eu me preocupe por isso —lhe disse Tess. Suas palavras foram interrompidas pelo tinido das campainhas da entrada da clínica.

     Nora olhou por cima de seu ombro.

     —Deve ser o serviço de comércio de miudezas do UPS com nosso pedido. Vou recolher o antes de ir.

     Afastou-se ao trote e Tess ouviu uma conversação amortecida na área de recepção. Logo Nora apareceu outra vez, com rubor nas bochechas.

     —Definitivamente o que está no vestíbulo não é ninguém do UPS —disse, baixando a voz como se não quisesse que a ouvissem.

— É todo um deus.

     Tess riu.

     O que?

     —Está preparada para uma visita? Porque esse fascinante tipo está aí fora esperando com um cão em um estado lamentável.

     —É uma emergência?

     Nora se encolheu de ombros.

     —Não acredito. Não há evidência de sangue ou traumatismo, mas o tipo se mostra muito insistente. Perguntou por ti. E te mencionei que está de morte?

     —Sim, tem-no feito —disse Tess, levantando-se de seu escritório para colocar sua bata branca. Sentiu um formigamento perto do ouvido, a mesma estranha sensação que tinha notado na exposição do museu e de novo a noite passada, quando estava perto de Dante na cafeteria.

— Diga que agora saio, por favor.

     —Não há problema. —Nora se enganchou o cabelo detrás da orelha, alisou seu suéter decotado e saiu energicamente.

     Era ele. Tess sabia que era Dante, inclusive antes de ouvir sua voz retumbando no vestíbulo. Surpreendeu a si mesmo tampando a boca ao sorrir, conseguindo controlar uma desenfreada corrente de entusiasmo ao pensar que ele tinha vindo procurá-la depois da maneira embaraçosa em que tinha acabado a noite no parque.

     OH, Deus. Essa sacudida de hormônios era muito mau indício. Ela não era o tipo de mulher que se enjoava ante um homem, mas Dante a fazia sentir algo que nunca antes havia sentido.

     —Contenção — sussurrou a si mesmo enquanto saía de seu escritório e se encaminhava pelo corredor que conduzia até o vestíbulo.

     Dante se achava em pé na zona de recepção, sustentando um pequeno vulto nos braços. Nora se inclinava sobre o balcão para acariciar ao pequeno cão, arrulhando com adoração e mostrando a Dante uma boa porção de seu decote. Tess não podia culpar Nora por mostrar-se coquete. Dante simplesmente provocava esse efeito em uma mulher; nem sequer Tess era imune a seu escuro atrativo.

     Os olhos dele se posaram sobre ela no momento em que entrou na habitação, e se Tess queria parecer fria e não afetada, provavelmente estava falhando miseravelmente. Seu sorriso não se atenuou, e seus dedos tremeram um pouco quando se levou a mão a um lado do pescoço, onde esse estranho formigamento parecia cobrar mais força.

     —Este deve ser Harvard —disse ela, contemplando o exemplar de terrier com alguma mescla que Dante sustentava nos braços, e que parecia bastante gasto.

— Quando disse que queria conhecê-lo não esperava que fosse tão logo.

     Dante franziu o cenho.

     —É mau momento?

     —Não. Não, está bem. Só estou... surpreendida, isso é tudo. Não deixa de me surpreender.

     —Já lhes conhecem? —Nora olhava boquiaberta a Tess como se queria lhe chocar as mãos.

     —Bom, sim... conhecemo-nos faz um par de noites —gaguejou Tess.

— Na recepção do museu. E ontem à noite nos encontramos por acaso outra vez no North End.

     —Fiquei preocupado —disse Dante, olhando-a como se estivessem sozinhos na habitação.

— Não esperava te haver incomodado ontem à noite, Tess.

     Ela fez um gesto com a mão para sossegar sua preocupação, desejando poder esquecê-lo tudo.

     —Não foi nada. Em realidade não estava desgostada. Não fez nada mau. Deveria ser eu quem me desculpasse ante você por sair correndo dessa maneira.

     O olhar da Nora ia do um ao outro, como se a tensão que Tess sentia por estar perto de Dante fora evidente também para ela.

     —Talvez queiram estar sozinhos...

     —Não —respondeu Tess bruscamente ao mesmo tempo que Dante o afirmava com calma.

     Nora vacilou durante um segundo, logo se voltou para agarrar seu casaco e sua bolsa de um cabide que havia depois do escritório.

     —Eu... hum.... verei-te pela manhã, Tess.

     —Sim, de acordo. Que vá bem com o estudo.

     De costas para Dante, Nora olhou Tess e silenciosamente pronunciou só com os lábios as palavras « está muito bom!» enquanto se dirigia para a saída traseira, onde tinha o carro estacionado. Uns segundos mais tarde, retumbou o som de um motor, desvanecendo-se à medida que Nora se afastava.

     Até aquele momento, Tess tinha estado tão distraída pela presença de Dante que apenas se fixou no estado do cão. Agora não pôde evitar sentir uma quebra de onda de pena pelo animal. Seus apagados olhos marrons estavam entrecerrados, e um fraco mas audível fôlego saía de seus pulmões ao respirar. Só vendo-o, Tess podia advertir que o cão precisava cuidados.

     —Importa-te que o examine? —perguntou, alegrando-se de poder concentrar-se em algo além de Dante e a tensão que parecia haver entre eles. Ante seu gesto de consentimento, Tess extraiu um estetoscópio do bolso de sua bata de laboratório e o pendurou em torno do pescoço.

— Quando foi a última vez que o levou a Veterinario ?

     Dante se encolheu vagamente de ombros.

     —Não estou seguro.

     Tess agarrou com suavidade o cão dos braços de Dante.

     —Vamos. Olharemo-lo mais de perto em uma das salas de consulta.

     Dante a seguiu em atento silêncio, colocando-se junto a Tess enquanto ela colocava ao tremente animal sobre a mesa de aço inoxidável. Ela pôs o estetoscópio no peito do cão e escutou os acelerados pulsados de seu coração. Havia um murmúrio bastante significativo e sua respiração estava definitivamente mal, tal como ela suspeitava. Apalpou com cuidado seu tórax ossudo e advertiu a falta de elasticidade de sua pelagem cheia de pulgas.

     —Harvard dormiu muito ultimamente? Esteve letárgico?

     —Não sei.

     Embora Tess logo que notou o movimento de Dante, seus braços se roçaram. Seu corpo musculoso e sólido era como uma cálida parede protetora junto a ela. E cheirava de forma incrível, uma fragrância condimentada e escura que provavelmente custaria uma fortuna. Ela inspirou uma rajada de seu aroma, e logo se inclinou para examinar os ouvidos infectados de ácaros do cão.

     — Notaste uma perda de apetite ou algum problema para reter a comida?

     —Não poderia te dizer.

     Tess levantou os lábios do terrier e comprovou a cor das gengivas doentes.

     —Pode me dizer quando foi a última vez que vacinou a Harvard?

     —Não sei.

     —Sabe algo deste animal? —Soava como uma acusação, mas não pôde conter-se.

     —Não faz muito que o tenho —disse Dante.

— Sei que precisa cuidados. Crê que pode ajudá-lo, Tess?

     Ela franziu o cenho, sabendo que ia custar muito solucionar todas as enfermidades que afligiam ao cão.

     —Farei o que possa, mas não posso te prometer nada.

     Tess alcançou uma caneta que estava sobre o balcão que havia atrás dela. A caneta caiu ao chão a seus pés e antes de que pudesse agachar-se e recolhê-lo Dante já o tinha feito. Colheu-o com seus dedos hábeis e a entregou. Ao aceitá-lo, ela notou que seu polegar lhe roçava a mão. Levou o braço junto a seu corpo com um movimento repentino.

     —Por que fica tão nervosa?

     Lhe lançou um olhar que provavelmente o explicava tudo.

     —Não me põe nervosa.

     —Está segura? Parece... inquieta.

     De fato o estava. Odiava ver animais descuidados como esse, que era digno da foto de um pôster da Protetora de Animais. E a comoção que lhe provocava tudo o que ia mal em sua vida agora lhe estava pesando muito.

     Mas por debaixo de todo isso estava a inquietação que sentia simplesmente por estar na mesma habitação com esse homem. Que Deus a amparasse, mas quando o olhava aos olhos se sentia sacudida pela impressão totalmente real e vivida de que ambos estavam nus juntos, com as pernas entrelaçadas, os corpos úmidos e brilhantes, arqueados o um contra o outro em uma cama com lençóis de seda escarlate.

     Podia sentir suas grandes mãos acariciando-a, e sua boca quente apertada e faminta contra seu pescoço. Podia sentir seu sexo entrando e saindo dela, enquanto seus dentes acariciavam essa sensível zona debaixo de seu ouvido, agora pulsando com o pesado rufo de um tambor.

     Ficou pendurada de seus olhos de uma intensa cor âmbar, vendo tudo isso com tanta claridade como se se tratasse de uma lembrança. Ou de um futuro que dançava além de sua compreensão...

     Com esforços, Tess conseguiu pestanejar, rompendo a estranha conexão.

     —Me desculpe —disse com voz entrecortada, e saiu apressadamente da habitação, alagada de confusão.

     Fechou a porta atrás dela e deu um par de passos rápidos pelo corredor, apoiou-se contra a parede, fechou os olhos e tratou de controlar sua respiração. Seu coração ia aceleradísimo, pulsando com força contra seu esterno. Até seus ossos pareciam vibrar como um diapasão. Sua pele ainda estava cálida pelo contato, o calor transbeirava em seu pescoço e em seus peitos, e mais abaixo, em seu centro. Tudo parecia ter despertado em sua presença, tudo o que era feminino e elementar aparecia de repente conectado, procurando algo. Buscando a ele.

     Deus, o que lhe estava passando?

     Estava-se perdendo. Se fosse inteligente deixaria Dante e a seu doente mascote na sala de consulta e sairia dali apitando.

     OH, claro. Isso seria realmente profissional. Muito adulto. Ele a tinha beijado uma vez. Tudo o que tinha feito agora tinha sido roçá-la com a gema dos dedos; era ela a que estava reagindo de maneira exagerada. Tess tomou ar profundamente, e repetiu o exercício uma vez mais, desejando que sua fisiologia hiperactiva se acalmasse. Quando finalmente conseguiu recuperar o controle, voltou-se e se dirigiu a sala de exame, pensando em uma dúzia de patéticas desculpas que pudessem explicar por que tinha saído correndo.

     —Sinto-o —disse enquanto abria a porta—. Acreditei que tinha ouvido o telefone...

     Cortou em seco a pobre desculpa assim que o viu. Estava sentado no chão como se acabasse de cair, a cabeça agachada e sujeita com as grandes palmas das mãos. As pontas de seus dedos se viam brancas pela força com que as apertava contra o couro cabeludo. Parecia estar suportando uma atroz agonia, a respiração vaiava através de seus dentes e tinha os olhos fechados com força.

     —OH, Meu Deus —sussurrou ela, entrando na habitação.

— Dante, o que te passou? O que te ocorre? Ele não respondeu. Talvez era incapaz. Embora era evidente que estava sofrendo muito dano, Dante irradiava um perigo escuro e selvagem que, de tão poderoso, parecia quase desumano.

     Ao contemplá-lo dolorido no chão, Tess teve uma espécie de déjà vu, uma espécie de pressentimento que lhe provocou um formigamento na espinha dorsal. Começou a retroceder, disposta a chamar o 911 e deixar seu problema —qualquer que fosse— em mãos de alguém mais. Mas então seus grandes ombros se encurvaram sacudindo-se dolorosamente. Deixou escapar um gemido, e esse som grave e angustiado era mais do que ela podia suportar.

     Dante não sabia o que o tinha golpeado.

     A visão mortal lhe sobreveio súbitamente, assaltando-o como uma explosão abrasadora da luz do dia. Estava acordado, ao menos, mas suspenso em um estado de consciência paralisante, com todos seus sentidos agarrados por um assalto de debilidade. A visão não o tinha surpreso nunca antes estando acordado. Nunca tinha sido tão feroz, tão implacavelmente forte.

     Ao minuto seguinte de ter estado em pé junto a Tess, alagado das eróticas imagens do que desejava fazer com ela, achou-se de repente atirado como um burro no chão de linóleo da sala de consulta, sentindo como era engolido pela fumaça e pelas chamas.

     O fogo o rodeava por toda parte, arrojando grosas colunas de fumaça negra e aguda. Não podia mover-se. Sentia-se encadeado, indefeso, assustado.

     A dor era imensa, como também o era o desespero. Envergonhava-lhe quão profundamente sentia ambas as coisas, quão duro era para ele não poder gritar atormentado por aquilo que estava vivendo com sua mente.

     Mas resistia, que era a única coisa que podia fazer quando o golpeava aquela visão, e rezava para que acabasse logo.

     Ouviu que Tess pronunciava seu nome, lhe perguntando o que necessitava. Não podia responder. Tinha a garganta seca, a boca cheia de cinzas. Sentiu a sinceridade de sua preocupação e seu temor, enquanto se aproximava dele. Queria lhe dizer que partisse, para que o deixasse sofrer aquilo a sós, da única maneira que sabia fazê-lo.

     Mas logo sentiu uns dedos frios e suaves que se posavam sobre seu ombro. Sentiu a branca calma do sono flutuando sobre ele como uma manta que o cobria enquanto ela acariciava suas costas tensa e o cabelo de sua nuca, umedecido pelo suor.

     —Porá-te bem —lhe disse com suavidade.

— Deixa que te ajude, Dante. Está a salvo.

     E pela primeira vez em sua vida, ele acreditou que o estava.

      

     Dante levantou as pálpebras, esperando uma dor de cabeça que o cegasse. Não ocorreu nada. Não houve tremores que o deixassem aturdido, não houve suor frio nem um medo que lhe intumescesse os ossos.

     Pestanejou uma vez, dois, olhando fixamente o teto de telhas brancas e um painel de luzes fluorescentes apagadas que havia sobre sua cabeça. Era um lugar desconhecido: as paredes de um marrom apagado, o pequeno sofá estofado debaixo dele, a mesa do escritório de madeira que tinha em frente, com sua organizada superfície iluminada por um abajur de mesa de um vermelho alaranjado junto ao computador de trabalho.

     Inspirou, sem cheirar nada da fumaça familiar ou o fedor de queimado que enchia os orifícios de seu nariz durante a realidade infernal de sua alucinação de morte. Quão único cheirou foi uma fragrância picante e doce que o envolveu de paz. Moveu as mãos para cima por debaixo da manta de lã que cobria só parcialmente seu enorme corpo. A manta felpuda de cor nata cheirava como ela. «Tess.»

     Voltou sua cabeça justo quando ela entrava na habitação. Tirou-se a bata branca; parecia incrivelmente sensual e feminina com uma jaqueta de ponto desabotoada de um verde pálido sobre sua camiseta ajustada de cor bege. Os jeans de cintura baixo deixavam ao descoberto uma pequena porção de suave carne cor nata ali onde a camiseta e a calça não chegavam a encontrar-se. Tirou-se a presilha de plástico que antes lhe recolhia o cabelo. Agora o cabelo de um castanho claro como o mel caía solto sobre seus ombros em brilhantes cachos.

     —Olá —disse, observando como ele se endireitava e se girava para ficar em pé sobre o tapete.

— Se sente melhor?

     —Sim.

     Sua voz soou como um grasnido seco, mas se sentia surpreendentemente bem. Descansado. Tranqüilo, quando devia ter estado tenso e dolorido, com a habitual ressaca que vinha depois de sua visão mortuária. Em um impulso, passou-se a língua pelos dentes em busca de presas, mas os temíveis caninos tinham diminuído. Sua vista também era normal, e não esses agudos raios laser de outro mundo que o caracterizavam como um da estirpe.

     A tormenta de sua transformação, se é que a tinha tido, já tinha passado.

     Apartou a amaciada manta e se deu conta de que lhe faltavam a jaqueta e as botas.

     —Onde estão minhas coisas?

     —Aí —disse ela, assinalando a jaqueta de couro negro e as botas Doc Martens de sola pesada que tinham sido colocadas cuidadosamente em uma cadeira próxima a porta.

— Seu telefone móvel está em meu escritório. Apaguei-o faz umas horas. Espero que não te importasse. Estava soando quase continuamente e não queria que despertasse.

     Faz um par de horas?

     —Que horas são?

     —As quinze para dez.

     Merda. Essas chamadas provavelmente eram do recinto, e estariam perguntando onde diabos estava. Lucy ia ter que explicar muitas coisas.

     —Harvard está descansando. Tem alguns problemas que poderiam ser muito graves. Dei-lhe que comer, e também líquidos e alguns antibióticos, que o ajudarão a dormir. Está nos barracos para cães da entrada.

     Por uns poucos segundos, Dante se sentiu confundido, perguntando-se como era possível que ela conhecesse agente Darkhaven e por que diabos tinha sido medicado e estava dormindo nos barracos para cães de sua clínica. Então seu cérebro caiu na conta e recordou ao pequeno animal sarnento que tinha usado como um meio de congraçar-se com Tess.

     —Eu gostaria que passasse aqui a noite, se não te importa —disse Tess.

— Talvez um par de dias, para poder lhe fazer mais prova e me assegurar de que tem tudo o que necessita.

     Dante assentiu.

     —Sim, de acordo.

     Olhou ao redor do pequeno e confortável escritório, com sua pequena geladeira na esquina e a prancha elétrica que havia ao lado da máquina de café. Era evidente que Tess passava muito tempo naquele lugar.

     —Esta não é a habitação onde estava antes. Como cheguei até aqui?

     —Teve uma espécie de ataque quando te encontrava na sala de consulta. Eu te levantei e te ajudei a caminhar até meu escritório. Pensei que seria mais cômoda. Parecia bastante fora de ti.

     —Sim —disse ele, esfregando-o rosto com as mãos.

     —Foi isso? Um ataque?

     —Algo assim.

     —Ocorre-te com freqüência?

     Encolheu-se de ombros, não vendo nenhuma razão para negá-lo.

     —Sim, suponho que sim.

     Tess se aproximou dele e se sentou no braço do sofá.

     —Esta tomando alguma medicação? Queria comprová-lo, mas eu não gostava da idéia de te revisar os bolsos. Se houver algo que necessite...

     —Estou bem —disse ele, ainda maravilhado pela ausência de dor e de náuseas depois de que tinha sido o pior de seus ataques até a data. O único que lhe tinha sobrevindo estando acordado. Agora, além de estar um pouco atordoado pelo sono profundo, logo que podia assegurar que tivesse tido a maldita visão.

— Me deu você algo... ou me fez alguma coisa? Houve um momento em que senti suas mãos nas costas e movendo-se em minha cabeça...

     No rosto dela apareceu uma expressão estranha, quase um momento de pânico. Logo pestanejou e apartou a vista dele.

     —Se crê que pode te ajudar, tenho tylenol em meu escritório. Darei-te um pouco e um copo de água. Ela começou a levantar-se.

     —Tess. —Dante a agarrou do pulso em um apertão leve.

— Estiveste comigo todo o tempo, todas estas horas?

     —É obvio. Não podia te deixar aqui sozinho.

     Ele teve uma repentina e clara imagem mental do que ela teria visto se esteve ali junto a ele enquanto lutava contra o ataque desses malditos pesadelos premonitorias sobre sua própria morte. Mas não tinha fugido nem gritando e tampouco o olhava com terror. De fato, perguntava-se se talvez o ter estado com ela teria aliviado a pior parte de seu pesadelo antes inclusive de que começasse.

     A maneira em que ela o tocou tinha sido tão suave, tão serena e tão tenra.

     —Ficou comigo —disse ele, assombrado por sua compaixão.

— Me ajudou, Tess. Obrigado.

     Ela podia ter afastado sua mão em qualquer momento, mas vacilou, com um olhar interrogante em seus olhos azul esverdeados.

     —Acredito que... já que parece que agora já está bem... acredito que é hora de dar por acabada a noite. É tarde, e deveria ir a casa.

     Dante reprimiu a urgência de lhe assinalar que estava tentando fugir outra vez. Não queria assustá-la, assim que se levantou lentamente do sofá e ficou em pé junto a ela. Olhou-lhe os dedos, suas pontas ainda se tocavam, pois nenhum dos dois ousava romper o inesperado contato.

     —Tenho que... tenho que ir —disse ela em voz baixa.

— Não acredito que isto... o que seja que esteja passando entre nós... seja uma boa idéia. Não estou procurando me atar contigo.

     —E entretanto estiveste aqui sentada cuidando de mim durante mais de quatro horas.

     Ela franziu o cenho.

     —Não podia te deixar sozinho. Necessitava ajuda.

     —O que necessita, Tess?

     Ele fez um novelo com seus dedos, capturando os seus agora com firmeza. O ar no pequeno escritório parecia oprimi-los e vibrar entre eles. Dante pôde sentir como o pulso da Tess se acelerava até converter-se em um batimento do coração rápido, uma vibração que lhe chegava através dos dedos. Ele podia ver seu interesse, o desejo que tinha estado presente quando a beijou na exposição de arte e tinha estado seriamente tentado de seduzi-la frente a umas centenas de testemunhas. Ela o tinha desejado então, e talvez a passada noite também. Um delicioso rastro de aroma surgia de sua pele enquanto lhe dizia com um olhar eloqüente e o suficientemente clara que ela o estava desejando nesse mesmo momento.

     Dante sorriu, sentindo labaredas de desejo por essa mulher cujo sangue era agora uma parte dele.

     A mulher que podia estar confabulada com seus inimigos, se é que Tess tinha algo que ver com as aventuras farmacêuticas daquele que em outro tempo tinha sido seu namorado.

     Agora ela não estava pensando nele, isso era seguro. Tess tinha os olhos fechados e respirava agitada e levianamente com os lábios ligeiramente separados. Dante flexionou os bíceps, apenas ligeiramente, para atrai-la mais perto dele. Ela não resistiu.

     —Quero voltar a te beijar, Tess.

     —Por que ?

     Ele soltou uma risada pelo baixo.

     —Por que? Porque é preciosa e porque te desejo. E acredito que você me deseja também.

     Dante levou a mão livre até seu rosto e acariciou brandamente a linha de sua mandíbula. Era como seda em contato com as pontas de seus dedos, tão delicada como o cristal. Roçou com seu polegar seus grossos lábios morenos.

     —Deus, Tess. Morro por te provar agora mesmo.

     Ela fechou os olhos, deixando escapar um suspiro.

     —Isto é uma loucura —sussurrou.

— Eu não... isto não é... algo que faça normalmente...

     Dante lhe levantou o queixo e se inclinou para apertar seus lábios contra os dela. Simplesmente queria sentir sua boca na dele, uma urgência que tinha estado albergando desde aqueles quentes e escassos momentos que tinham compartilhado na recepção do museu. Então ele tinha sido uma espécie de fantasma para ela, que lhe tinha roubado o sabor de sua paixão fugindo logo antes de que ela pudesse saber se ele tinha sido real ou imaginário. Agora, por alguma razão que dificilmente podia compreender, ele queria que ela soubesse que era feito de carne e osso.

     Era, evidentemente, um maldito idiota.

     Porque justo agora queria que ela o sentisse, que sentisse a ele em sua totalidade, e que compreendesse que ela era dele.

     Ao princípio só tinha pretendido prová-la, mas ela resultava tão doce a sua língua. Ela estava tão sensível, com suas mãos lhe rodeando o pescoço para atrai-lo mais perto enquanto seus lábios se apertavam juntos em uma união profunda e prolongada. Os segundos se converteram em um minuto, logo em vários minutos mais. Em um esquecimento louco e intemporal.

     Enquanto a beijava, Dante afundou as mãos no luxurioso arbusto de seus cabelos, gozando de sua suavidade e de seu calor. Desejava-a sem roupa. Nua debaixo dele, gritando seu nome enquanto a penetrava.

     Deus, quanto a desejava.

     Seu sangue palpitava, quente e furioso, através de seu corpo. Seu sexo estava duro pela necessidade, rígido em toda sua longitude, completamente excitado, e não tinha feito mais que começar com Tess.

     Tal como agora se sentia, esperava que isso só fosse o princípio.

     Antes de poder deter-se, achou-se guiando-a em direção ao sofá, e a soltou sobre as almofadas.

     Ela se tornou para trás e elevou a vista para ele, com suas espessas pestanas e os olhos de um azul tormentoso. Seus lábios estavam brilhantes e inchados por seu beijo e se tornaram de um rosa escuro e intenso. Seu pescoço estava rosado pelo resplendor de seu desejo, e essa cor se estendia para o decote de sua camiseta rodeada. Seus mamilos estavam duros como pequenos brotos, pressionando contra o tecido cada vez que seu peito se elevava pela respiração. Ela tinha maturado pelo desejo, e ele jamais tinha visto nada tão delicioso.

     —É minha, Tess. —Dante ficou sobre ela, beijando a zona que ia de seus lábios a seu queixo, logo sua garganta, até a suave pele detrás da orelha. Cheirava tão bem. Era tão bom senti-la contra ele.

     Dante gemeu, deixando que o doce perfume de sua excitação penetrasse pelos orifícios de seu nariz. A luxúria fez que lhe doessem as gengivas ao lhe crescer as presas. Podia sentir as afiadas pontas aparecendo, vibrando com o contínuo pulsar de seu pulso.

     —É minha e sabe, verdade?

     Embora sua voz soou muito débil, apenas um sopro de ar saindo de seus pulmões, Dante a ouviu claramente, e a palavra o atravessou como o fogo.

     —Sim —foi tudo que ela posso articular.

     Deus, o que estava dizendo?

     O que estava fazendo, deixando-se beijar e tocar —seduzir— desse modo?

     Era desatinado e nada próprio dela. E provavelmente também perigoso, por uma dúzia de razões que nem sequer podia preocupar-se de formular naquele momento.

     Ela nunca tinha sido fácil —estava muito longe de sê-lo, dada sua desconfiança geral para o gênero masculino— mas algo naquele homem fazia que seu medo e sua inibição se esfumassem pela janela. Sentia-se de algum jeito unida a ele, com um tipo de conexão mais profunda do que nunca tinha conhecido, em um território inexplorado que a fazia pensar em conceitos próprios dos contos de fadas, como a idéia de predestinação e destino. Essas coisas não formavam parte de seu léxico habitual, mas não podia negar que apesar de tudo o que pensava sobre esse momento, sentia... que estava fazendo o correto.

     Era muito bom para duvidá-lo, inclusive embora seu corpo se sentisse inclinado a escutar a sua razão. O qual não ocorria, não quando Dante a estava beijando, tocando, conseguindo que tudo o que nela tinha de feminino despertasse como se tivesse estado dormido durante cem anos.

     Não resistiu enquanto ele, com cuidado, tirava-lhe o suéter, logo lhe levantou a prega de sua camiseta por cima dos peitos. Ele respirava com força ao inclinar-se e beijar seu estômago nu, jogando com suaves dentadas subindo além de seu umbigo até o fechamento frontal de seu sutiens. Desabotoou-o e lentamente retirou o cetim de seus peitos.

—Deus, é preciosa.

     Sua voz soava arruda, e sua respiração resultava cálida sobre sua pele. Seus mamilos ansiavam ser tocados, ser conduzidos dentro de sua boca e chupados com força. Como ele conhecia a direção dos pensamentos dela, sacudiu a língua sobre um dos eretos mamilos. Mordiscou-o e chupou com os dentes e com a língua, enquanto punha a palma da mão sobre o outro, acariciando-o, voltando-a louca de desejo.

     Tess se deu conta de que ele tinha alcançado o botão de seus jeans. Desabotoou-os e logo abriu a cremalheira. Ela sentiu o ar fresco em seu abdômen e logo em seus quadris, enquanto Dante lhe baixava as calças. Atirando longamente de seu mamilo, ele levantou a cabeça e observou sua parcial nudez.

     —Deliciosa —disse. A mesma palavra que tinha pronunciado a outra noite.

     Alargou a mão com ternura, passando a palma brandamente ao longo de sua garganta, e logo em seu centro. O corpo dela se arqueou para ele como se estivessem unidos por uma corda invisível que ele movesse. Quando alcançou seu centro, ele deslizou os dedos por debaixo de suas calcinhas, sem deter-se até encontrar sua úmida fenda. Tess fechou os olhos com um êxtase tormentoso enquanto ele a tocava com sua mão, afundando um dedo comprido entre suas dobras. A ele lhe escapou o fôlego em um assobio.

     —Sinto-te como a seda, Tess. Seda quente e úmida. Ele a penetrava enquanto lhe falava, só com a ponta do dedo, a mais pequena invasão. Ela queria mais. Levantou os quadris, um suave gemido surgiu de sua garganta enquanto ele se retirava, jogando, deslizando as umidades dela em torno de seus clitóris com a ponta de seu hábil dedo.

     —O que? —perguntou-lhe com um rouco sussurro.

— O que quer, Tess?

     Ela se retorcia com suas carícias, buscando a ele. Dante se inclinou e lhe beijou o estômago enquanto lutava com os dois últimos cintos de seus jeans e os tirava. Depois vieram a calcinha. Dante lhe beijou o umbigo, logo riscou com sua língua um caminho descendente para a pequena parcela de cachos entre suas coxas. Com uma mão, levantou-lhe uma coxa, lhe separando as pernas.

     —Quer que te beije aqui? —perguntou-lhe, apertando a boca contra o osso de seus quadris. Descendeu a escura cabeça até a sensível pele da zona interior de sua coxa.

— Que tal aqui?

     —Por favor —ofegou ela, arqueando a coluna enquanto o calor rugia através dela.

     —Acredito —disse ele movendo da poltrona e colocando-se entre suas pernas, que estavam frouxas— que o que você quer é que te beije... aqui.

     O primeiro contato da boca dele em seu sexo a deixou sem respiração. Ele a beijou então de um modo mais profundo, empregando sua língua, fazendo-a enlouquecer. O prazer de Tess se fazia cada vez mais intenso, mais demandante. Ela não sabia que era possível sentir esse tipo de necessidade, mas agora que ardia com ela, havia só uma coisa que podia saciá-la.

     —Por favor —disse, e sua voz soou rota e carnal.

— Dante, por favor...

     —Quer-me ter dentro de ti, Tess? Porque aí é onde desejo estar agora. Quero me afundar dentro de ti, sentindo como todo seu calor úmido extrai de meu pênis até a última gota.

     OH, Deus. Ia fazer que gozasse só de pensá-lo.

     —Sim —conseguiu chiar.

— Por Deus, sim. Isso é o que quero.

     Ele se apartou e tirou a camisa. Tess abriu os olhos, olhando através das pesadas pálpebras como seus músculossse agrupavam em cachos e se flexionavam sob a tênue luz de seu escritório. Seu peito estava nu, esculpido como o de um antigo mito romano e decorado com tatuagens de desenhos extraordinários que descendiam pela crista de seu firme estômago além da cintura de suas calças.

     Ao menos ela acreditou que eram tatuagens. Ante seus olhos alagados pelo desejo, os desenhos geométricos pareciam trocar de cor enquanto o contemplava, as linhas mudavam de um intenso vermelho vinho a um azul arroxeado e um verde oceânico.

     —Sua pele é maravilhosa —disse ela, tão intrigada como assombrada—. Deus, Dante... suas tatuagens... são incríveis.

     Ela elevou a vista até seu rosto e acreditou ver uma espécie de cintilo âmbar em seus olhos. E quando seus lábios se curvaram em um sorriso, parecia ter algo dentro da boca.

     Dante se desabotoou as calças negras e as tirou. Não levava nada debaixo. Seu sexo se liberou, enorme e ereto, tão impressionante como o resto de seu corpo. Para sua surpresa, o belo desenho de tatuagens continuava baixando, formando uma espiral ao redor da raiz de sua ereção como uma multidão de dedos adoradores. Grosas veias rodeavam toda a extensão de seu largo pênis, coroada por uma larga cabeça, tão flexível e escura como uma ameixa.

     Ela podia haver ficado contemplando-o eternamente, mas ele se aproximou da mesa e apagou a luz. Tess lamentou que a escuridão o ocultasse, mas um instante depois ele a cobria com seu calor e ela deixou que suas mãos explorassem todo aquilo que já não podia ver.

     Ele se apertou contra ela, lhe separando as coxas com a pélvis para colocar-se entre suas pernas. Seu sexo estava duro e intensamente quente, enquanto se esfregava contra suas dobras, simplesmente jogando com ela e fazendo que o desejasse cada vez mais.

     —Dante. —A respiração lhe escapava, estava tão preparada para ele, tão cheia de necessidade. Custou-lhe um imenso esforço desviar a atenção dos estragos que ele estava provocando em seus sentidos e pensar racionalmente por um segundo.

— Dante, espera. Eu... tomo a pílula... mas talvez deveríamos...

     —Tudo está bem. —Beijou-a ao tempo que sua ereção se espremia contra seu centro. Lambeu-lhe os lábios, o sabor dos próprios fluidos dela tinham uma doçura de almíscar que permanecia ainda em sua língua.

— Comigo está a salvo, Tess. Prometo-lhe isso.

     Normalmente tivesse sido a última pessoa em confiar-se em alguém, mas algo lhe dizia que podia lhe acreditar. Incrivelmente, sentia-se segura com ele. Protegida.

     Ele a beijou outra vez, empurrando sua língua mais profundamente. Tess o permitiu, lhe devolvendo o beijo ao tempo que arqueava os quadris e se colocava ela mesma na ponta de seu pênis para lhe demonstrar que o desejava. Ele exalou ar bruscamente, movendo a pélvis enquanto seus corpos começavam a unir-se.

     —É minha —ofegou contra sua boca.

     Tess não podia negá-lo.

     Não agora.

     Aferrou-se a ele faminta, e logo ele, com um profundo grunhido empurrou para frente, afundando-se nela mas profundamente.

  

     Em seu laboratório privado ao outro lado da cidade, Ben Sullivan tinha decidido fazer alguns ajustes na fórmula do carmesim. Para começar, nunca tinha guardado a receita final no laboratório, imaginando que era uma medida de segurança prudente levá-la consigo em lugar de deixá-la ali, arriscando-se a que os capangas de seu cliente —ou quem fora— pudessem encontrá-la. Punha-o um pouco paranóico a idéia de ter que interromper sua pequena aventura lucrativa; depois da chamada Telefônica que tinha feito a seu benfeitor fazia um momento aquela mesma noite, tinha a sensação de que sua paranóia era algo mais que uma mera intuição.

     Tinha relatado todo o ocorrido a noite anterior, desde como tinha escapado daqueles tipos que o tinham perseguido ao sair do clube até a incrível ideia de que o carmesim tinha tido um efeito perigoso —se havia sentido inclinado a chamá-lo «vampírico»— em um de seus clientes mais recentes.

     As notícias tinham sido recebidas com a usual serenidade impertérrita de seu patrocinador. Tinha-lhe aconselhado não transmitir nenhum dos detalhes a ninguém e tinham acordado uma reunião ao anoitecer do dia seguinte. Depois dos largos meses de segredo e anonimato, ia encontrar se cara a cara com esse tipo.

     Com menos de quinze horas por diante para a reunião, Ben pensou que seria acertado ocultar a fórmula do carmesim o melhor que pudesse, se por acaso necessitava algum ponto a seu favor quando fosse ao encontro com seu chefe. Depois de tudo, não sabia exatamente com quem estava tratando, e não era tão idiota como para não ter em conta que podia ser alguém com muitas conexões importantes no mundo da vadiagem. Não seria a primeira vez que um guri do sul acreditasse que podia jogar com autênticos valentões e acabasse flutuando no rio Mystic.

     Copiou as duas fórmulas —a original e a nova, modificada pelo que ele considerava sua própria segurança— e retirou o pendrive de seu computador. Apagou todos os rastros de informe de seu disco rígido e logo saiu do laboratório. Tomou estradas secundárias para voltar para a cidade, só se por acaso o estavam seguindo, e acabou no North End, não muito longe do apartamento de Tess.

     Lhe surpreenderia saber com quanta freqüência passava perto dali, só para comprovar se estava. Estaria mais que surpreendida, reconheceu. Sentiria-se um pouco desconcertada se tivesse uma idéia de quão obcecado estava com ela. Odiava não poder liberar-se dela, mas o fato de que ela sempre tivesse insistido em manter as distâncias, particularmente desde que tinham se separado, unicamente contribuía a aumentar seu desejo. Continuava esperando que voltasse com ele, mas depois da outra noite, quando sentiu que ela se encolhia ao beijá-la, algumas dessas esperanças se desvaneceram.

     Ben dobrou uma esquina com sua caminhonete e se dirigiu para a rua da Tess. Talvez aquela seria a última vez que passaria por diante de sua casa. A última vez que se humilharia como um patético olheiro.

     Sim, pensou, pisando no freio ante uma luz vermelha, talvez seja a hora de cortar os laços, avançar. Ter uma maldita vida.

     Enquanto sua caminhonete estava parada, Ben observou o Porche negro que avançava até um semáforo de uma rua lateral e girava a direita frente a ele, circulando pela rua quase vazia do apartamento de Tess. Lhe retorceu o estômago quando jogou uma olhada ao condutor. Era o tipo do clube, não o que tinha deslocado atrás dele, a não ser o outro, aquele grande com o cabelo negro e essa sensação letal que impregnava   ele.

     E maldita a hora em que reconhecia a mulher que ia no outro assento junto ao tipo.

     «Tess.»

     Deus santo. O que estava fazendo com ele? A teria estado interrogando a respeito das atividades do Ben ou algo assim, talvez investigava a seus amigos e conhecidos?

     Sentiu o pânico alagando-o como um ácido no fundo de sua garganta, mas logo Ben se deu conta de que eram quase as três da madrugada, muito tarde para uma entrevista da polícia ou a brigada antidrogas. Não, fora o que fosse o que esse tipo lhe estivesse comunicando a Tess, não tinha nada que ver com uma base oficial.

     Ben golpeou o volante com impaciência enquanto a luz do semáforo seguia em vermelho. Não é que tivesse medo de perder o Porche de vista. Sabia para onde se dirigia. Precisava ver com seus próprios olhos como era realmente Tess.

     Finalmente a luz trocou e Ben ficou em marcha. A caminhonete entrou dando tombos na rua justo quando o carro se detinha junto ao apartamento de Tess. Ben se deteve uns quantos metros e apagou as luzes. Esperou, observando com uma fúria que fervia a fogo lento como o tipo se inclinava sobre o assento que havia ao lado do condutor e dava a Tess um comprido beijo.

     Maldito bode de merda.

     O abraço durou muito tempo. Um tempo condenadamente comprido, pensou Ben, que estava furioso. Pôs em marcha a caminhonete e entrou pela rua. Conduziu devagar, evitando olhar quando passou por diante, e logo, lentamente, continuou seu caminho.

    

     Dante se dirigia de volta ao recinto em um estado de completa distração, tanto que de fato se equivocou de caminho e teve que retroceder várias quadras para recuperar o rumo. Sua cabeça estava cheia com o aroma de Tess, com seu sabor. Ela permanecia em sua pele e em sua língua, e isso lhe trazia a lembrança da sensação de seu esplêndido corpo aferrando-se a ele, envolvendo-o, lhe provocando uma impressionante ereção.

     Maldita seja.

     O que tinha feito essa noite com Tess não tinha sido planejado e era diretamente estúpido. Não é que albergasse muito arrependimento pela forma em que tinha passado as últimas horas. Nunca se havia sentido tão aceso ante uma mulher, e não era porque lhe faltassem elementos para fazer comparações. Jogava a culpa ao feito de que Tess era uma companheira de sangue, o qual significava que o sangue dela estava vivo em seu interior, mas a verdade era ligeiramente pior que essa.

     Essa mulher simplesmente tinha provocado nele algo que não podia explicar, e muito menos negar. E depois de que o tivesse liberado da queda em picado de seu pesadelo sobre sua própria morte, tudo o que queria, tudo o que necessitava, era perder-se ainda mais profundamente em qualquer que fosse o feitiço que lhe estava lançando.

     Ter Tess nua debaixo dele não tinha feito mais que aumentar seu desejo. Agora que a tinha tido, simplesmente queria mais.

     Ao menos com a visita à clínica tinha conseguido alguma boa notícia.

     Enquanto Dante entrava na propriedade do recinto, extraiu um papel enrugado do bolso de sua jaqueta e o colocou sobre a superfície lisa do tabuleiro de mandos. Sob a tênue luz interior do carro, leu a mensagem escrita a mão fazia tão somente um par de dias.

     Tinha-a tirado do caderno de notas que Tess tinha sobre seu escritório: Chamou Ben. Jantar do museu amanhã de noite não esquecer.

     Ben. O nome circulou através da mente de Dante como um agressivo ácido. Ben, o tipo com o que Tess tinha estado na elegante exposição de arte. A escória humana que traficava com o carmesim, provavelmente sob a direção dos renegados.

     Havia um número de telefone na mensagem, de uma central Telefônica da zona sul. Com essa pequena informação ao seu dispor, Dante apostava a que não lhe levaria mais de dois segundos localizar a esse tipo via Internet ou através dos arquivos públicos.

     Dante atravessou uma grade com o Porche para dirigir-se para a mansão da Ordem e logo entrou na espaçosa e segura garagem. Apagou as luzes e o motor, agarrou a parte de papel do tabuleiro e logo desenbaiou uma de seus Malebranche, colocando-a no centro do console ante ele.

      

     O curvo pedaço de metal era frio e implacável em sua mão e assim é como o sentiria o bom do Ben contra sua garganta nua. Logo que podia esperar a que o sol ficasse de novo para poder ir e ter uma apresentação formal.

 

     Tess dormiu bem pela primeira vez em toda a semana apesar de que sua cabeça não parava de girar em torno de Dante. Tinha estado entrando e saindo de seus sonhos toda a noite e era o primeiro que foi a sua mente ao despertar cedo pela manhã, antes de que o despertador de sua mesinha de noite tivesse a oportunidade de soar com seu habitual estrondo das seis da manhã. Dante.

     Seu aroma ainda perdurava em sua pele, inclusive depois de vinte minutos sob o jorro da ducha. Tinha uma agradável sensação de dor entre as pernas. Uma dor que desfrutava porque lhe trazia para a mente tudo o que tinham feito juntos a noite anterior.

     Ainda podia sentir todos os lugares onde ele a havia tocado e a tinha beijado.

     Todos os lugares de seu corpo que ele tinha dominado e reivindicado como deles.

     Tess se vestiu depressa, logo saiu de seu apartamento, detendo-se só para agarrar um copo do Starbucks em seu caminho para o trem da Estação do Norte.

     Foi a primeira a chegar a clínica; Nora provavelmente não chegaria antes das sete e meia. Tess entrou pela porta traseira e a fechou atrás dela, já que a clínica não abriria até ao cabo de duas horas. Logo que entrou na zona dos barracos de cães e ouviu o fôlego dificultoso que provinha de uma das jaulas soube que teria problemas.

     Soltou sua bolsa, as chaves do escritório e o copo de papel meio vazio sobre o balcão próximo ao lavamanos e foi correndo para o pequeno terrier que Dante havia te trazido a noite anterior. Harvard não estava bem. Estava deitado de lado em sua jaula e seu peito subia e baixava a um ritmo lento, enquanto punha os olhos em branco. Tinha a boca ligeiramente aberta e a língua, de uma cor cinza doentia, pendurava-lhe para um lado.

     Sua respiração era um estalo continuado seco, o tipo de som que indicava que a análise de sangue e todas as provas que lhe tinha feito a noite anterior não precisavam ser enviadas ao laboratório. Harvard morreria antes de que saíssem por correio as amostras.

     —Pobre pequeno —disse Tess enquanto abria a jaula e acariciava brandamente a pele do animal. Podia sentir sua debilidade através da ponta dos dedos. Sustentava-o um diminuto hálito de vida, provavelmente já estava condenado a morrer antes de que Dante o trouxesse para que ela o visse.

     A compaixão pelo animal atendeu o coração de Tess como se este estivesse oprimido dentro de um punho. Podia ajudá-lo. Sabia a maneira...

     Tess retirou as mãos e as juntou como em um nó diante dela. Tinha tomado uma decisão sobre isso fazia muito tempo. Prometeu-se a si mesmo que nunca mais o faria.

     Mas aquele era um simples animal indefeso, não um ser humano. Não o homem cruel de seu passado que não merecia nem piedade nem ajuda.

     O que tinha que mau realmente?

     Podia ficar ali olhando como morria o pobre cão, sabendo que ela era quão única possuía um dom para ajudá-lo?

     Não. Não podia.

     —Está bem —disse brandamente enquanto colocava as mãos na jaula.

     Com muito cuidado, Tess tirou fora a Harvard, embalando entre seus braços seu pequeno corpo. Sustentou-o como se fosse um menino, suportando seu ligeiro peso com uma mão enquanto colocava a outra em sua fraca barriga. Tess se concentrou em sua respiração e nos fracos mas rápidos batimentos de seu coração. Podia sentir sua debilidade, a combinação de mantimentos que lentamente tinham debilitado sua vida, provavelmente durante compridos meses.

     E havia mais... as pontas de seus dedos se estremeceram enquanto percorria com elas o abdômen do cão. Sentiu um gosto amargo no fundo da garganta quando pôde notar o câncer com seu tato. O tumor não era muito grande, mas sim letal. Tess podia imaginá-lo em sua mente, vendo a rede de fios fibrosos obstinados ao estômago do cão, a repugnante massa de enfermidade azulada cujo único propósito era lhe arrebatar a vida.

     Tess deixou que a imagem do tumor se formasse em sua mente através das pontas de seus dedos enquanto a vibração de seu sangue começava a ferver a fogo lento com seu poder. concentrou-se no câncer, vendo-o iluminar-se de dentro e logo quebrar-se. Sentindo como se dissolvia enquanto ela sustentava a mão sobre ele desejando destrui-lo.

     O dom retornava a ela tão facilmente, com uma inexplicável habilidade.

     «Minha maldição», pensou, embora era difícil considerá-lo assim agora que o pequeno vulto acurrucado em seus braços gemia brandamente e lhe lambia a mão com gratidão.

     Estava tão absorta no que fazia que quase não ouviu o ruído que vinha de uma das salas de consulta vazias da clínica. Então o ouviu outra vez: um curto chiado metálico.

   Tess ficou em pé bruscamente, com o pêlo da nuca arrepiado em sinal de alarme. Então ouviu outro ruído: umas pegadas fortes sobre o chão. Elevou a vista até o relógio da parede e viu que era muito cedo para que chegasse Nora.

     Não acreditava que tivesse nada que temer, entretanto, enquanto se dirigia para a outra zona da clínica, assaltou-a uma repentina rajada de lembranças: uma luz acendendo-se na despensa e um intruso sangrando e derrotado atirado sobre o chão. Deteve-se, seus pés paralisados enquanto a vívida imagem surgia em sua mente, para depois desvanecer-se a mesma velocidade com a que tinha aparecido.

     —Olá? —chamou, tratando de não assustar ao cão que levava nos braços enquanto caminhava afastando-se dos barracos vazios.

— Há alguém aí?

     Ouviu-se alguém amaldiçoar em voz baixa da sala maior de consulta da área de recepção.

     —Ben? É você?

     Ele saiu da habitação sustentando nas mãos um chave de fenda elétrico.

     —Tess... Deus, assustaste-me. O que faz aqui tão cedo?

     —Bom, estou acostumado a trabalhar aqui —disse ela, franzindo o cenho ao ver o rubor de seu rosto e as olheiras escuras debaixo dos olhos.

— E que explicação me dá você?

     —Eu... bom... —Fez um gesto com o chave de fenda assinalando a sala de consulta.

— O outro dia notei que o elevador hidráulico dessa mesa estava entupido. Como já estava levantado e tinha a chave decidi vir arrumá-lo.

     Era certo, a mesa necessitava algum ajuste, mas havia algo estranho na atitude tão confusa do Ben. Tess se aproximou dele, soltando delicadamente a Harvard quando o cão começou a agitar-se em suas mãos.

     —Não podia esperar a que abríssemos?

     Ele se passou uma mão pelo cabelo, despenteando-se ainda mais.

     —Já te hei dito que estava acordado. Só trato de ajudar no que posso. Quem é seu amigo?

     —Chama-se Harvard.

     —Bonito vira-lata, embora um pouco miúdo, não? Um novo paciente? Tess assentiu.

     —Chegou ontem à noite. Não estava muito bem, mas acredito que logo estará muito melhor.

     Ben sorriu, mas com um sorriso muito tenso.

     —Outra noite mais trabalhando até tarde?

     —Não. A verdade é que não.

     Ele apartou a vista dela, e o sorriso se voltou um pouco amargo.

     —Ben, está... bem? Tentei te chamar a outra noite, depois da recepção do museu. Deixei-te uma mensagem, mas não respondeu.

     —Sim, estive muito ocupado.

     —Parece cansado.

     Ele se encolheu de ombros.

     —Não se preocupe por mim.

     Mais que cansado, pensou Tess. Ben parecia fora de si. Havia nele uma energia ansiosa, como se levasse vários dias sem dormir.

     —Por que levantou tão cedo? Estiveste resgatando outro animal, ou algo assim?

     —Algo assim —disse ele, olhando-a de soslaio.

— Olhe, eu gostaria de ficar e conversar, mas a verdade é que tenho que ir.

     Guardou a chave de fenda em seus jeans e começou a dirigir-se para a porta principal da clínica. Tess foi atrás dele, sentindo um calafrio ao ver que uma distância emocional que antes não tinha existido entre eles agora começava a abrir-se.

     Ben lhe estava mentindo, e não só sobre sua intenção ao ir a clínica.

     —Obrigado por arrumar a mesa —murmurou ante sua rápida retirada.

     Da porta aberta, Ben voltou a cabeça para olhá-la por cima do ombro. Seu olhar transmitia desolação.

     —Sim, claro. ?Te cuide.

    

     Uma garoa gelada repicava contra os cristais da janela do salão de Elise; no alto o céu cinza da tarde resultava inóspito. Abriu as cortinas do segundo piso de sua residência privada e contemplou as ruas frias da cidade, ali abaixo, com grupos de gente precipitando-se de um lado a outro em um esforço por escapar do mau tempo.

     Em alguma parte, seu filho de dezoito anos se achava também ali fora.

     Já levava fora mais de uma semana. Um mais do crescente número de jovens da estirpe que tinham desaparecido dos refúgios da zona. Rogava que CAM estivesse clandestinamente, a salvo sob algum tipo de proteção, com outros como ele que lhe dessem consolo e apoio até que encontrasse seu caminho de volta a casa.

     Esperava que fosse logo.

     Dava graças a Deus pelo Sterling e tudo o que estava fazendo para tratar de encontrar a seu filho. Custava-lhe chegar a entender o altruísmo que movia seu devoto cunhado a envolvesse tão completamente nesse cometido. Tivesse desejado que Quentin pudesse ver tudo o que seu jovem irmão estava fazendo por sua família. Ficaria atônito, e seria para ele uma lição de humildade, estava segura.

     Quanto a como se sentiria Quentin agora em relação a ela, Elise era realista a imaginá-lo.

     Sua decepção seria enorme. Talvez inclusive a odiaria um pouco. Ou muito, se soubesse que tinha sido ela quem impulsionou a seu filho a entrar na noite. Desde não ter sido pela discussão que tinha tido com o Camden, o ridículo intento de controlá-lo, talvez não se teria ido. Culpava-se por isso, e desejava com todas suas forças poder fazer que o tempo voltasse atrás e apagasse essas horas para sempre.

     O arrependimento tinha um sabor amargo em sua garganta enquanto contemplava o mundo que havia ante ela. Sentia-se tão indefesa, tão inútil em seu quente e árido lar.

     Sob as espaçosas habitações no Back Bay do Refúgio Escuro se encontravam os apartamentos privados e o esconderijo subterrâneo de Sterling. Ele formava parte da estirpe, assim enquanto houvesse um pingo de sol sobre sua cabeça estava obrigado a permanecer no interior ao abrigo da luz, como todos os de sua raça. Isso incluía também a Camden, por mais que fora filho dela e tivesse portanto uma metade humana, corria nele o sangue de seu pai. Os poderes de outro mundo de seu pai mas também suas debilidades.

     Até o anoitecer ninguém seguiria procurando CAM, e para Elise, essa espera parecia uma eternidade.

     Deixou de caminhar acima e abaixo ante a janela, desejando que houvesse algo que ela pudesse fazer para ajudar a Sterling para buscar a ele e aos outros jovens Darkhaven desaparecidos.

     Embora fosse uma companheira de sangue, uma das excepcionais mulheres da raça humana capazes de produzir descendência com os vampiros —que eram unicamente machos—, Elise pertencia completamente ao gênero do Homo sapiens. Sua pele podia suportar a luz do sol. Podia caminhar entre outros humanos e passar desapercebida, Apesar de que tinham acontecido muitos anos —mais de cem, de fato— da última vez que o tinha feito.

     Tinha sido uma pupila dos Darkhaven desde que era uma menina. Levaram-na ali por sua própria segurança e bem-estar quando a pobreza deixou a seus pais na indigência em um dos subúrbios de Boston do século XIX. Quando foi maior de idade se converteu na companheira de sangue do Quentin Chase, seu amado. Quanto o sentia falta , tinham transcorrido cinco anos desde sua morte.

      Agora talvez tinha perdido também a Camden. Não. Negou-se a pensá-lo. A dor era muito grande para considerá-lo nem tão somente um segundo.

     E talvez pudesse fazer algo. Elise se deteve ante a janela salpicada pela chuva. Sua respiração empanou o cristal enquanto esquadrinhava o exterior, desesperada por saber onde poderia estar seu filho.

     Em um estalo de resolução, voltou-se e foi até o armário para tirar seu casaco, que levava ali guardado vários invernos. A peça larga de lã azul marinha cobriu o traje branco de viúva, lhe chegando até os tornozelos. Elise colocou umas botas claras de couro e se dispôs a deixar suas habitações antes de que o medo a fizesse voltar atrás.

     Baixou as escadas até a porta da rua. Teve que fazer um par de intentos com o fim de marcar o código de segurança correto que necessitava para abrir a porta, pois não podia nem recordar a última vez que tinha estado fora do Refúgio Escuro. O mundo exterior sempre lhe tinha resultado doloroso, mas talvez agora poderia suportá-lo.

     Pelo Camden, ela era capaz de suportar tudo. Seria-o? Ao abrir a porta um sopro frio golpeou suas bochechas. Elise se protegeu com seus braços, logo saiu, baixando os degraus de tijolos com seu corrimão de ferro forjado. Pela calçada de abaixo passavam pequenos grupos de gente, alguns apinhados, outros caminhavam sozinhos, com guarda-chuva negros que se inclinavam por seu modo de andar apressado.

     Por um momento —a mais pequena suspensão de tempo— houve silêncio. Mas logo, o dom que sempre lhe tinha amargurado a vida, a extraordinária habilidade que possuía de forma exclusiva toda companheira de sangue, caiu sobre ela como um martelo.

     «Deveria lhe haver dito o do bebê...»

     «Não é porque vão perder vinte miseráveis dólares...»

   «Direi a essa velha que matarei a seu maldito cão se ele voltar a cagar em meu pátio...»

     «Ele nunca saberá que fui se simplesmente volto para casa e atuo como se não tivesse passado nada...»

     Elise se levou as mãos aos ouvidos enquanto todos os pensamentos desagradáveis dos transeuntes humanos a bombardeavam. Não podia evitar ouvi-los. Chegavam até ela voando como morcegos, um frenético assalto de mentiras, traições, e todo tipo de pecados.

     Não pôde dar outro passo. Deteve-se ali, empapada pela garoa, com seu corpo gelado em uma passagem entre os apartamentos do Refúgio Escuro, incapaz de obrigar a si mesmo a mover-se.

     Camden estava ali fora em algum lugar, necessitando que ela... ou que alguém o encontrasse. Entretanto lhe estava falhando. Não pôde fazer nada mais que tampar o rosto com as mãos e chorar.

  

     A escuridão chegou cedo essa noite, acompanhada de uma contínua e rude chuva de novembro que provinha de uma espessa névoa de nuvens negras. A seção de apartamentos da vizinhança do sul de Boston —que provavelmente não tem nada especial para ver durante o dia, com seu conjunto de duplex e blocos de moradias de tijolos— se viu reduzida a um subúrbio molhado e sem cor sob um monótono dilúvio.

     Dante e Chase tinham chegado ao bloco desvencilhado do Ben Sullivan fazia aproximadamente uma hora, justo depois do pôr-do-sol, e ali continuavam esperando em um dos carros Land Rover de janelas escuras propriedade da Ordem. Simplesmente o bom aspecto do veículo fazia que desse a nota ali, mas por outro lado transmitia claramente a mensagem de «não te ocorra foder-me», o qual ajudava a que os bandidos e outros valentões das ruas não se aproximassem muito. Os poucos que tinham rondado perto da janela para jogar uma olhada decidiram ir-se rapidamente ao vislumbrar através do vidro as presas de Dante.

     Estava nervoso por todo o tempo de espera, e quase desejava que algum humano estúpido fosse o bastante estúpido para fazer um movimento em falso e assim pudesse dar saída para uma parte de sua energia agora inútil.

     —Está seguro de que esta é a direção do traficante? —perguntou Chase, que se achava junto a ele no escuro assento de em frente.

     Dante assentiu, tamborilando com seus dedos no volante.

     —Sim, estou seguro.

     Tinha considerado a idéia de fazer a sós sua visita ao ex-namorado de Tess e além traficante de carmesim, mas logo acreditou que seria melhor trazer algum apoio no caso. Apoio para o Ben Sullivan, não para ele. Dante não estava seguro de se o homem continuaria respirando quando acabasse com ele no caso de acudir sozinho ao encontro.

     E não só porque Sullivan fosse uma escória que traficava com droga. O fato de que o tipo conhecesse Tess, e não havia dúvida de que a conhecia intimamente, fazia saltar o gatilho que disparava a raiva de Dante. Um sentimento de posse desatado o embargou, uma necessidade de proteger a dos perdedores como esse Ben Sullivan.

     Exato. Como se Dante mesmo fosse uma espécie de prêmio.

     —Como o averiguou? —A pergunta do Chase interrompeu seus pensamentos, provocando que voltasse a concentrar-se na missão.

— Além de ver esse tipo fugir do clube a outra noite, não tínhamos nenhuma pista para chegar até ele.

     Dante nem sequer olhou a Chase, limitou-se a encolher-se de ombros enquanto as lembranças das horas passadas com Tess alagavam seus sentidos.

     —Não importa como consegui a direção —disse depois de um comprido minuto.

— Os Darkhaven têm seus métodos; nós temos os nossos.

     Enquanto outra quebra de onda de nervosa impaciência o invadia, Dante vislumbrou por um momento a sua presa. Endireitou-se no assento de condutor do veículo, olhando para fora na escuridão. O humano se desviou por uma esquina e seguiu adiante, com o rosto parcialmente escondido por um sueter com capuz. Levava as mãos nos bolsos de um volumoso colete acolchoado, e caminhava com rapidez, olhando continuamente por cima de seu ombro como se esperasse que alguém lhe seguisse os talões. Mas era ele, Dante estava seguro.

     —Aí está nosso homem —disse enquanto o humano subia ao trote os degraus de concreto de seu apartamento.

— Vamos, Harvard, te anime.

     Deixaram o veículo com o alarme posto e entraram atrás dele no edifício antes de que a porta se fechasse, pois ambos eram varões da estirpe, capazes de mover-se com a velocidade e agilidade natural própria dos vampiros de sua raça. Quando o humano colocava a chave na fechadura da porta de seu apartamento no terceiro piso para abri-la, Dante o empurrou na escuridão lançando-o ao outro lado de seu espartano salão.

     —Cago-me em... —Sullivan tratou de levantar-se, apoiando um joelho no chão, e de repente ficou gelado. Seu rosto podia ver-se graças à fresta de luz que procedia do foco nu do corredor.

     Houve um brilho nos olhos do humano, algo por debaixo de sua imediata sensação de medo. Reconhecimento, pensou Dante, imaginando-se que provavelmente se lembrava deles por havê-los visto a outra noite na discoteca. Mas também havia ira. Pura animosidade de macho. Dante podia cheirá-la surgindo dos poros do humano.

     Lentamente ficou em pé.

     —Que merda passa?

     _Isso nos diz você? —respondeu Dante, acendendo uma luz enquanto entrava no lugar a grandes passos. Depois dele entrou Chase e fechou a porta com chave.

— Estou muito seguro de que pode imaginar que esta não é uma visita social.

     —O que quer?

     —Para começar, informação. Depende de você como vamos obte-la.

     —Que tipo de informação? —Seu olhar se moveu ansiosamente entre Dante e Chase.

— Não sei quem são e não tenho nem idéia do que estão falando...

     —Verá —disse Dante, interrompendo-o com uma risada—, as perguntas absurdas são realmente um mau começo. —Enquanto a mão direita do humano se deslizava no fundo bolso de seu colete acolchoado, Dante sorriu satisfeito.

— Vai me convencer de que é um idiota, segue adiante e saca esse revólver. Só para ser claros, direi-te que realmente espero que o faça.

     O rosto do Ben Sullivan ficou tão branco como as paredes sem pintar de seu apartamento. Retirou a mão do bolso, muito lentamente.

     —Como...?

     —Além de nós, esperava a alguém mais esta noite? —Dante avançou até ele e lhe tirou do bolso a pistola de calibre 45 sem que ele mostrasse nenhuma resistência. Voltou-se para o Chase e lhe entregou a arma com o fechamento de segurança.

— Uma merda de arma para uma merda de traficante...

—Só a tenho para me proteger, e não sou um traficante...

— Sente-se disse Dante, fazendo-o cair sobre uma poltrona de falso ante. Este era o único móvel da habitação, além da mesa de trabalho com o computador que havia em uma esquina e a estante com o equipamento de estéreo contra a parede. Dante se dirigiu a Chase.

— Da um bom repasse ao lugar, a ver o que pode encontrar.

     —Não sou um traficante de drogas —insistiu Sullivan enquanto Chase saía da habitação para começar a busca.

— Não sei o que é o que pensam...

     —Direi-te o que penso —Dante baixou a cabeça, notando que sua ira estava afiando seus olhos e que as presas começavam a lhe cravar a língua.

— Suponho que não vais ficar aí sentado negando que lhe vimos traficar com carmesim ao fundo daquela discoteca faz três noites. Quanto tempo leva traficando com essa merda? Quando te colocou?

     O humano baixou o olhar, formulando sua mentira. Dante lhe agarrou o queixo com um violento apertão e o obrigou a levantar o olhar.

     —Não quererá morrer por isso, verdade, idiota?

     —O que posso dizer? Estão equivocados. Não tenho nem idéia do que estão falando.

     —Talvez ela possa nos dizer algo —interveio Chase, saindo do dormitório justo quando Dante estava a ponto de nocautear ao tipo para obter um pouco de sinceridade. Chase trazia em suas mãos uma foto emoldurada e a sustentou ante ele. Era uma foto do Ben com Tess. Ela levava o cabelo curto mas continuava estando deslumbrante, e pareciam um feliz casal posando na porta de sua clínica durante o dia da inauguração.

— Parecem íntimos. Arrumado a que ela poderá arrojar um pouco de luz sobre suas atividades noturnas. O humano lançou a Chase um olhar agudo.

     —Manten longe dela, ou te juro que eu...

     —Ela está envolta? —perguntou Dante. A voz lhe raspava a garganta.

     O humano se burlou.

     —Vai perguntar isso a mim? Foi você quem lhe colocou a língua até a garganta a outra noite frente a seu apartamento. Sim, eu estava aí. Vi-te, maldito filho da puta.

     A notícia assaltou a Dante por surpresa, mas certamente isso explicava a ira desse homem, que parecia ferver a fogo lento. Dante pôde sentir os olhos do Chase olhando o de forma interrogante, mas seguiu com a atenção concentrada no ciumento ex-namorado de Tess.

     —Vou perder a paciência contigo —grunhiu. Logo sacudiu a cabeça.

— Não, porra. Já a perdi completamente. —Desenvaiou uma das duas adagas gemeas as de afiadas folhas curvas em menos de uma fração de segundo e pôs seu fio contra a garganta do Ben. Sorriu ligeiramente enquanto os olhos do humano se moviam aterrorizados.

— Sim, agora me sinto muito melhor. Vou deixar a sua laringe um poquinho de espaço para respirar e vais começar a falar. Não mais sandices nem rodeios. Pestaneja uma vez se estiver de acordo comigo, menino.

      O humano baixou as pálpebras e logo voltou a examinar aterrorizado a adaga de Dante.

     —Disseram-me que não contasse nada a ninguém —disse com as palavras saindo a toda pressa de sua boca.

     —Quem são eles?

     —Não sei... quem seja que me estão pagando para que fabrique essa merda.

     Dante franziu o cenho.

     —Fabrica você mesmo o carmesim?

     O humano tentou assentir com a cabeça, embora seu movimento se via restringido pelo aço frio que ainda rondava perto de sua garganta.

     —Sou um cientista... ou ao menos o era. Trabalhava como químico para uma assinatura de cosméticos até que me despediram faz uns poucos anos.

     —Te salte o cilindro do desemprego e me fale do carmesim.

     Sullivan tragou saliva com dificuldade.

     —Fabriquei-o para as discotecas, só para tirar um pouco de dinheiro extra. O verão passado, não muito depois de começar a traficar, esse tipo me ofereceu aumentar a produção.

     Disse que tinha contatos que queriam negociar comigo e que estavam dispostos a pagar muito por isso.

     —E você não sabe quem são seus companheiros de negócios?

     —Não. Não perguntei e não me disseram isso. Em realidade nunca me importou. Sejam quem seja, pagam à vista, e muito. Deixam-me os pagamentos em uma caixa de segurança do banco.

     Dante e Chase intercambiaram um olhar, ambos conscientes de que o humano provavelmente ignorava que estava tratando com renegados, e muito provavelmente relacionando-se com o líder da nova facção de vampiros chupadores de sangue que, desde fazia uns meses, tinha estado organizando-se e preparando-se para o que seu líder pretendia acender entre a raça dos vampiros. Dante e o resto da Ordem tinham posto a sérios apuros esses planos quando fizeram voar pelos ares o quartel geral que tinham como asilo, mas não tinham conseguido eliminar a ameaça completamente. Até que os renegados pudessem conseguir recrutas e incrementar seu número —especialmente com a ajuda do carmesim— a possibilidade de uma guerra era só uma questão de tempo.

     —Mas qual é o maldito grande problema? O carmesim não é uma droga dura. Eu mesmo o provei. É só um estimulante, não muito diferente do X ou do GHB.

     Em pé perto de Dante, Chase se burlou.

     —Não muito diferente. Ao diabo se não é. Você mesmo viu o que passou a outra noite.

     Dante lhe pôs a adaga um pouco mais perto.

     —Tinha um assento em primeira fila para ver esse pequeno espetáculo monstruoso, não é verdade?

     Sullivan apertou a mandíbula e cravou os olhos em Dante com insegurança.

     —Eu... não estou seguro do que vi. Juro-lhe isso.

     Dante o escrutinou com o olhar, suspenso. Podia ver que o homem estava ansioso, mas era um mentiroso? Maldição, desejava que Tegan lhes tivesse acompanhado. Não havia ninguém, nem humano nem animal, que pudesse lhe ocultar a verdade a esse guerreiro. É obvio, conhecendo Tegan, ele tivesse estado tão tentado como Dante de eliminar a esse humano por ter trazido essa desgraça a população de vampiros.

     —Escuta. —Sullivan tentou levantar-se, mas Dante lhe pôs a palma da mão no centro do peito, fazendo-o voltar a cair na cadeira.

— Escutem, por favor. Nunca quis ferir ninguém. As coisas passaram... Deus, agora todo se enredou e se tornou perigoso. Me figiu das mãos, e vou deixar . De fato, esta mesma noite. Chamei ao meu contato, e vou encontrar me com eles para que saibam que acabei com isto. Vão vir a me buscar em uns minutos.

     Chase foi até a janela e pôs um dedo entre as lâminas de alumínio da persiana para examinar a rua.

     —Há um Sedan escuro detido junto ao meio-fio —advertiu. Logo olhou ao humano.

— Parece que chegou a hora de seu passeio.

     —Merda. —Ben Sullivan se encolheu na cadeira, movendo as mãos com nervosismo nos andrajosos braços da poltrona. Dirigiu a Dante um olhar de desconfiança.

— Tenho que ir. Maldita seja, necessito que me devolva meu revólver.

     —Não irá a nenhuma parte. —Dante desencapou seu Malebranche e foi até a janela. Examinou o veículo que estava esperando. Embora era impossível dizer muito sobre o condutor a essa distância, ele estava disposto a apostar a que se tratava de um renegado ou um secuaz, e a que havia outro sentado a seu lado no assento de passageiros. Voltou-se para o humano.

— Se te meter nesse carro, pode te dar por morto. Como te comunica com seu contato? Tem um número para localizá-lo?

     —Não. Deram-me um móvel de um só uso. Há um só número programado para chamar, mas o codificaram, assim em realidade não tenho como saber de onde estou chamando.

     —Me deixe vê-lo.

     Sullivan tirou o aparelho do bolso de seu colete e o entregou a Dante.

     —O que vai fazer?

     —Encarregaremo-nos disto por você. Agora mesmo é necessário que venha conosco para que possamos continuar este pequeno bate-papo em algum outro lugar.

     —O que? Não. —ficou em pé, olhando ao redor com ansiedade.

—Porra. Tampouco estou seguro de poder confiar em vocês, assim obrigado mas não. Cuidarei de mim mesmo...

       Dante cruzou a habitação e agarrou ao humano pela garganta antes de que este tivesse tempo de pestanejar.

—Não era uma petição.

     Soltou ao traficante de carmesim, empurrando-o para o Chase.

     —Tira o daqui. Encontra um caminho seguro até o carro e leva-o ao recinto. Eu vou abaixo a lhes expressar suas desculpas aos idiota que esperam junto ao meio-fio.

     Enquanto Chase agarrava ao humano pelo braço e começava a movê-lo para fora, Dante se deslizou pela porta e chegou até o vestíbulo. Em menos de um segundo se achou na rua chuvosa, deteve-se frente ao Sedam que estava parado e olhou através do pára-brisa aos dois humanos que estavam sentados dentro.

     Como Dante tinha suspeitado, eram secuaces, mente escrava de um vampiro de escala superior que ia consumindo sua parte humana lhes chupando o sangue mas lhes deixando uma fresta de vida. Os secuaces eram seres humanos vivos que respiravam, mas estavam desprovidos de consciência, e só existiam para obedecer as ordens de seu amo.

     E os podia matar.

     Dante lhes sorriu, mais que disposto a acabar com eles.

     O estúpido que havia no assento de passageiros pestanejou um par de vezes como se não estivesse seguro do que via. O que estava ao volante tinha melhores reflexos; enquanto seu companheiro soltava um montão de insultos inúteis, o condutor pôs o carro em marcha e pisou com força o acelerador.

     O motor rugiu e o Sedam deu uma sacudida, mas Dante o viu vir. Plantou as mãos no capô do veículo e o sustentou, mofando-se com desprezo enquanto os pneumáticos escorregavam no pavimento úmido, chiando e tirando fumaça mas sem ir a nenhuma parte.

     Quando o secuaz que estava ao volante deu marcha atrás, Dante saltou sobre o capô. Subiu por cima dele enquanto o carro virava bruscamente em seu esforço por sair da sarjeta.

     Mantendo o equilibro sobre o carro em marcha como se fosse um surfista sobre uma onda, Dante, de um pontapé com a bota quebrou o pára-brisa. O vidro se desabou feito pedacinhos, saindo-se da arreios.

     Os fragmentos voaram em' todas direções enquanto ele saltava dentro do carro e se colocava entre os dois secuaces.

     —Olá, meninos. Onde vamos esta noite? Eles, enlouquecidos, agarraram-no, deram-lhe murros, chegaram inclusive a mordê-lo... mas eram tão somente uma moléstia mínima. Dante deteve o Sedan, com um brusco frenazo de marcha que os fez escorregar na rua.

     Sentiu que um objeto agudo lhe cravava na perna direita, logo sentiu o aroma metálico de seu próprio sangue derramando-se. As presas lhe cresceram com um rugido furioso, sua visão se afiou como os raios laser e suas pupilas se estreitaram com raiva. Agarrou pelo cabelo ao secuaz que havia a seu lado no assento de passageiros. Sacudindo o braço com violência golpeou a cabeça do humano contra o tabuleiro de mandos, matando-o instantaneamente.

     Ao outro lado, o condutor lutava por sair do carro. Manipulou o cabo da porta e conseguiu abri-la, caiu sobre o asfalto molhado e empreendeu a fuga por um dos estreitos becos que havia entre os blocos de três pisos.

     Dante arremeteu contra ele, derrubando-o no chão. Lutou corpo contra corpo, consciente de que não podia matá-lo até que não tivesse obtido algumas respostas a respeito da quem servia e onde o podia encontrar. Dante imaginava que não precisava saber o nome do vampiro superior deste secuaz; depois de tudo o que tinha estado acontecendo os últimos meses, ele e o resto da Ordem eram muito conscientes de que o vampiro que tinham que eliminar não era outro que Marek, o irmão do próprio Lucan. O que não sabiam era onde tinha fugido esse bastardo detrás escapar do ataque dos guerreiros o último verão.

     —Onde está? —perguntou Dante, levantando o secuaz e lhe dando um duro murro no queixo.

—Onde posso encontrar ao proprietário de seu lamentável traseiro?

     —Foda-se —cuspiu o secuaz.

     Dante lhe lançou outro murro, logo tirou sua adaga e a apoiou contra a bochecha do humano.

     —Segue adiante e me mate, vampiro. Não te direi nada.

     A urgência de obedecer essa mente escrava era enormemente tentadora, mas Dante, em lugar de fazê-lo, arrastou-o pelo chão. Golpeou ao secuaz contra uma parede de cimento do bloco de moradias que tinha mais perto, sentindo um escuro prazer para ouvir o som de seu crânio ricocheteando.

      —Que tal se formos passo por passo? —assobiou; sua voz era um grunhido grave que passava por suas presas.

— Não me importa se falas, mas estou condenadamente seguro de que desfrutarei te ouvindo gritar.

     O secuaz grunhiu enquanto Dante apertava a adaga contra seu pescoço carnudo. Dante o sentiu retorcer-se, e ouviu o som do fechamento de segurança de uma pistola abrindo-se. Antes de que pudesse afastar-se dele, o secuaz levantou a arma com o braço.

     Não apontou a Dante a não ser a si mesmo. Em uma fração de segundo, o humano tinha o canhão nas têmporas, logo disparou.

     —Maldita seja!

     A explosão emitiu uns brilhos laranjas na escuridão. A percussão ecoou nos altos edifícios que havia ante eles. O secuaz caiu sobre o chão molhado como uma bigorna, o sangue se derramou envolta dele como uma horripilante auréola.

     Dante olhou as próprias feridas, os arranhões que tinha nas mãos, o corte profundo na coxa direita. Não tinha transcorrido muito tempo da última vez que tinha comido, por isso seu corpo estava forte e não demoraria muito em recuperar-se. Talvez um par de horas, ou possivelmente menos. Mas necessitava um lugar seguro para fazê-lo.

     Por cima dele, viam-se luzes de alguns poucos apartamentos ao redor. Em uma das janelas se abriu uma cortina. Alguém lançou um grito de horror. Não faltaria muito para que alguém chamasse a polícia, e inclusive provavelmente já teria sido avisada.

     Merda.

     Tinha que sair dali, quanto antes. Chase já se teria partido fazia tempo no Land Rover, o qual era bom, considerando como estavam as coisas. Quanto a Dante, não poderia conduzir o destroçado Sedam sem chamar a atenção. Tomou ar com força agüentando a dor de sua perna rasgada, deu-se a volta e começou sua retirada a pé, deixando aos secuaces mortos e o carro abandonado na rua atrás dele.

 

     Tess secou os últimos pratos do jantar e os guardou no armário que havia junto à pia. Enquanto fechava a tampa de plástico do recipiente onde tinha guardado o que lhe tinha sobrado de frango, sentiu um par de olhos cravados em sua nuca.

     —Tem que estar de brincadeira —disse, voltando-se para olhar a pequena besta que gemia a seus pés.

— Harvard, ainda tem fome? Dá-te conta de que estiveste comendo virtualmente sem parar desde que chegou?

     As espessas sobrancelhas do terrier se curvaram sobre seus olhos marrom chocolate e elevou as orelhas ao tempo que inclinava a cabeça em um ângulo adorável. Como ela não se moveu com suficiente rapidez, ele inclinou a cabeça na outra direção e levantou uma pata. Tess riu.

     —De acordo, criatura encantadora e desavergonhada. Darei-te algo disso tão rico.

     Ela recuperou a pequena terrina que já tinha sido fechada de sua segunda ração de latas Iams. Harvard foi atrás de Tess ao trote, seguindo cada um de seus passos. Tinha estado pego a seu lado todo o dia, desde que ela tinha tomado a decisão de levar-lhe a casa para vigiá-lo melhor, converteu-se em sua nova sombra.

     Era algo que nunca tinha feito antes com seus pacientes, mas tampouco tinha usado nunca antes suas mãos para curá-los. Harvard era especial, e ele também parecia sentir-se igual de unido a ela, como se soubesse que o tinha resgatado do bordo da morte. Depois de uma dose de líquidos, um pouco de comida e um banho antipulgas, era um cão novo. Ela não tinha tido coragem para deixá-lo só nos criadouros para cães da clínica vazia depois de tudo pelo que tinha tido que passar. E ele tinha decidido que ela era sua melhor amiga.

     —Aqui tem —lhe disse, cortando umas pequenas peças de frango e colocando-as na terrina. Trata de comer isso pouco a pouco esta vez, de acordo?

     Enquanto Harvard ia entusiasmado para a comida, Tess colocou as últimas sobras na geladeira, logo se voltou e se serviu outra taça do Chardonnay. Entrou em grandes passos no salão, onde tinha deixado sua escultura. Era agradável voltar a trabalhar com a argila, especialmente depois dos dois dias —e duas noites— tão estranhos que tinha tido.

     Embora não se sentou a trabalhar com um plano previsto do que faria, Tess não se surpreendeu quando o úmido bloco de argila marrom claro começou a adquirir uma forma familiar. Era ainda tão preliminar, tão somente o indício de um rosto sob as ondas despenteadas de abundantes cabelos que ela tinha trabalhado com a argila. Tess deu uns sorvos a seu vinho, sabendo que se continuava com a escultura se obcecaria e estaria toda a noite, incapaz de retirar-se até que a peça estivesse acabada.

     Mas acaso ela e Harvard tinham grandes planos para esta noite?

     Deixou a taça de vinho sobre a mesa de trabalho, preparou o tamborete e se sentou. Começou a dar forma ao rosto, usando um arame para esculpir brandamente o pendente da frente e as sobrancelhas, logo o nariz e o magro ângulo das bochechas. Ao cabo de pouco tempo, seus dedos se estavam movendo de forma automática, sua mente ia solta e por sua conta, pois era seu inconsciente o que diretamente ordenava as ações a suas mãos.

     Não sabia quanto tempo levava trabalhando, mas quando soou um forte golpe na porta de seu apartamento um momento mais tarde, Tess se sobressaltou. Dormido junto a seus pés no tapete, Harvard despertou com um grunhido.

     —Espera a alguém? —perguntou ela tranqüilamente enquanto deixava seus instrumentos.

     Deus, devia ter estado realmente absorta enquanto esculpia, porque tinha feito um sério destroço na zona da peça que correspondia a boca. Os lábios estavam curvados para cima em uma espécie de grunhido, e os dentes...

     O golpe se ouviu outra vez, seguido de uma voz grave que chegou até ela como um raio de eletricidade.

     —Tess? Está aí?

     «Dante.»

     Os olhos de Tess se abriram com assombro, logo um estremecimento a percorreu de cima abaixo, e rapidamente fez um repasse mental de seu aspecto. Levava o cabelo recolhido com um coque despenteado, ia sem prendedor com uma camiseta branca de ponta e umas calças de moletom de um vermelho descolorido que tinham mais de uma salpicadura de argila seca. Não era precisamente o traje mais adequado para receber companhia.

     —Dante? —perguntou, tratando de ganhar tempo e querendo assegurar-se de que seu ouvido não lhe tinha jogado uma má passada.

—É você?

     —Sim. Posso entrar?

     —Sim, claro. Espera só um segundo —gritou, tratando de que sua voz soasse despreocupada enquanto cobria a escultura com um tecido e rapidamente examinava seu rosto no reflexo de uma de suas espátulas para massa.

     OH, estupendo. Tinha o aspecto de uma artista morta de fome ligeiramente enlouquecida. Muito glamurosa. «Isto lhe ensinará o que é apresentar-se na casa de alguém de surpresa», pensou, enquanto chegava até a porta e abria o ferrolho.

     —O que está fazendo...?

     Sua pergunta ficou bruscamente interrompida quando abriu a porta e lhe deu uma simples olhada. Estava empapado pela chuva, com o cabelo pego a frente e as bochechas, o casaco de couro gotejando dentro de suas botas militares, e permanecia em pé sobre o tapete que havia na entrada de sua casa.

     Mas isso não era quão único estava gotejando. Manchas de sangue se mesclavam com a água da chuva, caindo continuamente de uma ferida que não se via.

     —OH, Meu Deus! Está bem? —apartou-se a um lado para deixá-lo entrar e fechou a porta atrás dele.

— O que te passou?

     —Não ficarei muito. Provavelmente não deveria ter vindo. Você foi a primeira pessoa em quem pensei...

     —Está bem —disse ela.

— Não fique aí. Entra. Vou te buscar uma toalha.

     Correu até o armário do corredor e tirou duas toalhas, uma para secar o da chuva e outra para sua ferida. Quando retornou ao salão, Dante estava tirando o casaco. Enquanto ele se baixava a cremalheira, Tess viu que tinha os nódulos manchados de sangue. Também tinha salpicaduras em seu rosto, a maioria diluídas pela água que continuava caindo do queixo e o cabelo molhado.

     —Está virtualmente destroçado —disse ela preocupada com ele, além de um pouco desconcertada ao ver que parecia vir de algum tipo de violenta briga de ruas. Ela não via feridas em suas mãos nem em seu rosto, assim que a maior parte do sangue que havia ali não devia ser dele. Mas esse não era o caso em outras zonas.

     Quando abriu a pesada jaqueta de couro, Tess conteve a respiração.

     —OH, Deus...

     Tinha uma grande laceração por todo o largo de sua coxa direita, claramente uma ferida de faca. A ferida ainda estava fresca e empapava de sangue a perna direita de sua calça.

     —Não é grande coisa —disse ele.

— Pode me acreditar, sobreviverei.

     Tirou-se a jaqueta e toda a compaixão que ela sentia por ele se esfumou de repente.

     Dante estava armado como alguém saído de um terrível filme de ação. Tinha em torno de seus quadris um cinturão grosso cheio de diferentes tipos de adagas, entre outras duas enormes adagas curvadas embainhadas a cada um dos lados de seus quadris. Sujeito a seu peito por uma correia sobre sua camisa negra de mangas largas tinha uma pistolera que levava dentro uma mortífera monstruosidade de aço inoxidável; ela não queria nem sequer imaginar o tamanho do buraco que isso podia causar em alguém. E tinha outro revólver sujeito em torno de sua perna esquerda.

     —Que demônios... —Tess, instintivamente, separou-se dele, sujeitando as toalhas contra ela como um escudo.

     Dante se deu conta de sua aflição e seu olhar inseguro e franziu o cenho.

     —Não vou ferir te, Tess. Estes são só meus instrumentos de trabalho.

     —Seu trabalho? —Ela continuava afastando-se centímetro a centímetro, sem ser consciente de seu movimento até que tocou com as pantorrilhas a mesa de café que havia no centro do salão.

— Dante, vai vestido como um assassino.

     —Não tenha medo, Tess.

     Não o tinha. Estava aturdida, preocupada com ele, mas não assustada. Ele começou a tirar as armas, desabotoando a capa de sua perna e sustentando-a como se não soubesse onde deixá-la. Tess fez um gesto assinalando a mesa de café.

     —Pode-me deixar uma dessas toalhas, por favor?

     Ela entregou uma, ao tempo que observava como ele, cuidadosamente, colocava sua arma sobre a mesa como se não queria acrescentar outro entalhe a madeira já muito gasta. Ainda armado até os dentes e sangrando, mostrava-se considerado. Educado, inclusive. Um autêntico cavalheiro, se a gente podia deixar de lado o armamento mortal e o aura de perigo que parecia irradiar de seu enorme corpo em forma de ondas visíveis.

     Ele jogou uma olhada rápida a seu apartamento, incluindo o pequeno cão que, sentado perto de Tess, guardava silêncio. Dante franziu o cenho.

     —É possível que este seja...

     Tess assentiu e sua tensão se reduziu quando Harvard se aproximou de Dante, movendo timidamente a cauda a modo de saudação.

     —Espero que não te importe que haja o trazido para casa comigo. Queria vigiar o de perto, e pensei...

     Sua desculpa se foi apagando enquanto Dante se agachava para o animal, lhe transmitindo unicamente carinho com suas carícias e com sua voz profunda.

     —Né, pequeno —disse, rindo enquanto Harvard lhe lambia a mão e logo se tombava no chão para que lhe acariciasse a barriga.

— Alguém sem dúvida esteve cuidado muito bem. Sim, parece que alguém te deu uma nova força de vida.

     Olhou a Tess com olhos interrogantes, mas antes de que pudesse perguntar a respeito da repentina recuperação do cão, lhe tirou a toalha molhada e fez um gesto em direção ao quarto de banho.

     —Vamos, deixa que te jogue uma olhada.

    

     Detido ante um semáforo em vermelho ao outro extremo do South Boston, Chase lançou um olhar ao passageiro do carro Land Rover virtualmente sem ocultar seu desprezo. Pessoalmente, não via que proveito podiam tirar desse infame traficante de drogas. Uma parte dele desfrutava reconhecendo que podia ter estado de caminho a seu próprio funeral se ele e Dante não se apresentaram em seu apartamento essa noite.

     Não parecia justo. Um tipo sem altura como Ben Sullivan tinha um golpe de sorte, enquanto que jovens inocentes como Camden e os outros desaparecidos acabavam mortos ou algo pior, induzidos a uma luxúria de sangue pelo carmesim e convertidos em renegados pela merda que esse humano lhes vendia.

     A Chase veio a repentina e horripilante lembrança de Dante pondo a adaga na garganta do Jonás Redmond no beco que havia na saída da discoteca. Era um bom menino e estava morto, não por culpa do guerreiro, mas sim por culpa do humano que estava agora sentado apenas a uns centímetros de distância dele. A urgência de lhe fazer um buraco de bala na cabeça o assaltou como um tsunami, com uma raiva que não era freqüente que sentisse.

     Manteve a vista pega ao pára-brisa escuro, com o desejo de vencer a tentação. Matando a Ben Sullivan não solucionaria nada, e sem dúvida não conseguiria que Camden retornasse antes a casa.

     E esse, depois de tudo, era seu principal objetivo.

     —Está-se deitando com ela, verdade? O outro tipo... está-se deitando com Tess. —As palavras do humano tiraram Chase de suas reflexões, mas não compreendeu a pergunta. Ben Sullivan soltou uma maldição, voltando a cabeça para olhar fixamente através do guichê.

— Quando os vi juntos a outra noite junto à casa de Tess, esse filho da puta tinha as mãos em cima dela. Do que vai isto? Esteve-a usando para chegar até mim?

     Chase permaneceu em silêncio. Esteve-se fazendo perguntas sobre isso desde que Sullivan o tinha mencionado pela primeira vez no apartamento. Dante havia dito que ele empregaria seus próprios métodos para encontrar ao traficante de carmesim, e para ouvir que tinha estado com uma mulher ao parecer íntima do Sullivan, Chase inicialmente tinha suposto que se tratava, para Dante, de um meio de chegar a um fim.

     Mas o rosto do guerreiro tinha adquirido uma expressão estranha ante a menção da mulher, algo que parecia indicar que sua implicação ia mais à frente do dever da missão. Estava interessado nela?

     —Merda. Suponho que em realidade não importa —murmurou Sullivan.

— Onde me está levando?

     Chase não se sentiu obrigado a responder. O recinto da Ordem estava justo aos subúrbios da cidade, a pouca distância de onde se achavam agora. Em umas poucas horas, depois de ser interrogado por Dante e outros, Ben Sullivan estaria dormindo em uma cama quente e seca; seria, a todos os efeitos, um prisioneiro, mas ao mesmo tempo estaria protegido atras das seguras portas do quartel dos guerreiros. Enquanto isso, dúzias de jovens Darkhaven estavam aí fora, expostos aos perigos da rua e aos terríveis efeitos da droga destrutiva e mortal do Sullivan. Não era justo, para nada.

     Chase deu uma olhada rápida a luz do semáforo quando esta ficou em verde, mas seu pé não se decidia a pisar no acelerador. Depois dele, alguém tocou a buzina. Ele tamborilou com os dedos sobre o volante durante um segundo pensando no Camden e na Elise, em sua promessa de trazer o menino de volta a casa.

     Não tinha muitas opções. E o tempo seguia passando, podia até senti-lo.

     Quando um segundo toque de buzina soou detrás, Chase pisou no acelerador e girou para a esquerda. Silencioso e sombrio, fez circular o Land Rover em direção ao sul, entrando de volta na cidade, para a velha zona industrial próxima ao rio.

    

     —Deus santo —disse Tess com voz entrecortada, sentindo-se um pouco enjoada ao ajoelhar-se ante Dante para examinar sua ferida. Ele estava sentado no bordo da banheira de porcelana branca, e só levava postos as calças militares feitos farrapos. O corte de sua coxa parecia ter melhorado desde que o tinha visto pela primeira vez no salão, mas sob a intensa luz do quarto de banho, a vista de tanto sangue, sangue de Dante, revolvia-lhe o estômago e lhe provocava dor de cabeça. Teve que apoiar-se sobre o bordo da banheira para poder levantar-se e sustentar-se em pé.

— Eu sinto. Não está acostumado a me afetar assim. Quero dizer, estou acostumada a ver muitas feridas horríveis na clínica, mas...

     —Não é necessário que me ajude com isto, Tess. Estou acostumado a me cuidar sozinho.

     Ela o olhou indecisa.

     —Pela quantidade de sangue que há, eu diria que é uma ferida bastante profunda. Vais necessitar pontos, e muitos. Não acredito que isso seja algo que possa fazer sozinho, não é certo? E precisa tirar as calças. Não posso fazer muito enquanto os siga levando postos.

    Como ele não se moveu, ela franziu o cenho.

     —Pensa ficar aí sentado sangrando sobre meus ladrilhos?

     Ele a olhou, encolheu-se ligeiramente de ombros, logo ficou em pé e se desabotoou o botão da cintura. Quando começou a baixá-la cremalheira deixando ao descoberto sua pele tatuada e o escuro matagal de pêlo sobre sua virilha, Tess se ruborizou. Deus, depois da última noite, deveria ter recordado que não levava cueca nem nenhum tipo de roupa interior.

     —Hum... aqui tem outra toalha —lhe disse, desprendendo a que havia na barra para que se cobrisse.

     Voltou a cabeça enquanto acabava de despir, embora provavelmente era um pouco tarde para mostrar pudor, considerando o que tinham feito juntos a noite anterior. Estar de novo com ele ali, especialmente tendo em conta que ele estava sentado nu apenas coberto com uma toalha, fazia que o pequeno quarto de banho parecesse tão estreito como um armário e tão úmido como uma sauna.

     —Então... vais explicar me o que te passou? —perguntou sem olhá-lo, ocupada com a pequena coleção de instrumentos médicos que tinha tirado da nécessaire do lavabo.

— O que estiveste fazendo esta noite para que lhe tenham acabado dando uma punhalada com uma faca obviamente grande?

     —É do mais normal. Meu companheiro e eu estávamos detendo um traficante de drogas, e me tropecei com um par de obstáculos. Tive que eliminá-los.

     «Eliminá-los», pensou Tess, entendendo instintivamente o que isso significava. Colocou um cilindro de gaze para vendagens sobre o lavabo, ao tempo que sentia um calafrio interno ante o que Dante tinha admitido de maneira tão fria. Não gostava do que estava ouvindo, mas ele jurava que era um bom tipo, e talvez fosse uma loucura, mas o certo é que ela confiava em sua palavra.

     —Muito bem —disse ela—, me deixe lhe jogar uma olhada a sua perna.

     —Já lhe hei isso dito, sobreviverei. —Ela ouviu como suas calças golpeavam o chão ao cair—. Acredito que não está tão mal como você crê.

     Tess se voltou para olhá-lo por cima do ombro, preparada para ver uma espantosa ferida aberta. Mas ele tinha razão, em realidade não estava tão mal. Debaixo do bordo da toalha que cobria suas virilhas e a parte superior de suas coxas, a ferida era um corte limpo mas nada profundo. Estava deixando de sangrar, inclusive enquanto ela o olhava.

     —Bom, isso... é um alívio —disse ela, confundida mas encantada de ver esfumar-se sua preocupação. Encolheu-se de ombros.

— De acordo. Suponho que bastará limpando-a, logo lhe poremos uma atadura e logo estará como novo.

     Tess girou de novo para o lavabo, umedeceu um trapo sob o grifo e pôs umas gotas de anti-séptico na grosa tecido da toalha. Enquanto esfregava para conseguir espuma ouviu que Dante se levantava e ia para ela. No meio passo se achou a suas costas, e lhe tirou a pinça que lhe recolhia o cabelo, deixando que as ondas de seu cabelo lhe caíssem pelas costas.

     —Assim está melhor —disse com suavidade, com algo escuramente sensual em sua voz.

— Seu precioso pescoço nu me estava distraindo. Tanto é assim, que o único que podia pensar é quanto eu gostaria de pôr a boca nele.

     A Tess lhe engasgou a respiração, e por um segundo não estava segura de se devia ficar rígida e simplesmente esperar a que ele se apartasse, ou se devia dar a volta e enfrentar-se a loucura que ia voltar a passar entre eles essa noite, qualquer que esta fosse.

     Moveu-se uns centímetros no breve espaço que havia entre o lavabo e a toalha que tampava o corpo de Dante. Desde tão perto, as tatuagens de seu peito nu resultavam fascinantes, floresciam em símbolos geométricos e se arqueavam formando redemoinhos-se para formar uma cadeia de matizes que foram de um avermelhado intenso ao ouro e ao verde e ao azul pavão.

     —Você gosta? —murmurou, observando que seu olhar percorria os estranhos desenhos entrelaçados e de belas cores.

     —Nunca vi nada igual. Parecem-me impressionantes, Dante. Estão inspirados em alguma tribo? Ele se encolheu vagamente de ombros.

     —Mas bem em uma tradição familiar. Meu pai tinha marca similares, e também as levava seu pai antes que ele e todos outros varões de nossa linhagem.

     Vá! Se os homens da família de Dante se pareciam em algo a ele deviam ter causado estragos nos corações das mulheres de todas partes. Ao recordar que as tatuagens de Dante continuavam por debaixo da toalha que lhe cobria os quadris, Tess se ruborizou.

     Ele se limitou a sorrir, desenhando uma curva de cumplicidade em seus lábios.

     Tess fechou os olhos e se esforçou por controlar sua respiração, logo o olhou uma vez mais enquanto agarrava o pano úmido e morno que havia entre eles para esfregar com cuidado as manchas de sangue de sua frente e suas bochechas. Tinha também um pouco de sangue seco nas mãos e ela a limpou, sustentando com uma mão sua palma derrubada para cima. Seus dedos eram largos e magros e quando se enlaçavam com os dela os diminuíam.

     —Eu gosto de sentir seu contato, Tess. Estive desejando que suas mãos me acariciassem desde a primeira vez que te vi.

     Ela elevou a cabeça para olhá-lo aos olhos, com a mente cheia de lembranças da noite anterior. A cor entre dourado e uísque de seu olhar a atraía, lhe contando o que ia voltar a passar: os dois estariam nus, com seus corpos unidos. Ela estava fazendo idéia definitiva de que com ele sempre haveria essa excitação e essa intensidade. Seu coração se esticou ante essa idéia, um nó e um anseio intenso floresceram em seu centro, lhe afrouxando as pernas.

     —Me deixe... ver sua perna...

     Ajoelhou-se até o bordo da toalha, que tinha uma abertura em seu quadril direito e observou o comprido músculo de sua coxa. A ferida tinha deixado de sangrar e ela limpou a zona brandamente, muito consciente da beleza masculina de suas linhas, do poder de suas firmes pernas, a suavidade de sua pele torrada, que se fazia mais elástica por cima da ligeira protuberância de seu osso pélvico. Enquanto ela apartava o trapo, notou que seu sexo despertava debaixo da toalha; como um mastro rígido roçou seu pulso quando ela a retirava.

     Tess tragou saliva com a garganta seca pela excitação.

     —Agora te porei a vendagem.

     Deixou o pano úmido no lavabo e se voltou para alcançar o cilindro de gaze branca, mas Dante lhe agarrou a mão. A sustentou em um quente apertão, passando brandamente o polegar sobre sua pele como se lhe estivesse pedindo permissão em silêncio. Ela não retirou a mão, mas sim se voltou para ele e observou que seus olhos estavam resplandecentes, o centro deles parecia brilhar dentro do bordo cor bourbon escuro que envolvia suas pupilas.

     —Deveria me apartar de ti —disse ele, com a voz grave e carnuda.

— Deveria, mas não posso.

     Pôs-lhe a palma da mão na nuca e a atraiu para ele, de modo que as poucas polegadas que os separavam despareceram e seus corpos se apertaram um contra o outro. Ele baixou a boca e Tess deixou escapar um comprido suspiro enquanto os lábios dele roçavam os seu em um lento e doce beijo. Uma das mãos dele se passeou por suas costas, deslizando-se por debaixo de sua camiseta de ponto que ficava solta. Suas carícias eram cálidas, as pontas de seus dedos deixavam esteiras de eletricidade por todo o comprido de sua coluna enquanto acariciava sua pele nua.

     O beijo de Dante se fez mais profundo, com a língua colocada dentro de sua boca. Tess se abriu a ele, gemendo enquanto ele apertava a dura ereção contra seu ventre. O desejo se disparou através dela, molhado e derretido. Ele levou as mãos a seus peitos, percorrendo lentamente para baixo a forma de seus seios e logo subindo para seus apertados mamilos. Ela notou como lhe arrepiava o pêlo das pernas, e se estremeceu necessitando que ele a tocasse ainda mais. Durante um comprido momento só se ouviu o som de suas respirações entrelaçadas, as suaves carícias de suas mãos descobrindo o corpo do outro.

     Ela ofegou quando ele interrompeu o beijo, e seu corpo parecia não ter ossos quando ele a levantou e a sentou sobre o balcão do lavabo. Lhe tirou a camiseta branca, suarenta, e a atirou ao chão. Depois se encarregou das calças. As tirou também, deixando-a sentada só com as calcinhas postas. Ela separou as pernas, e Dante colocou seu perfeito e masculino corpo entre o largo v que formavam. A toalha que cobria sua sobressalente ereção acariciou brandamente o interior de suas coxas.

     —Olhe o que me tem feito —disse ele, lhe passando a mão pelo antebraço enquanto guiava seus dedos por debaixo da toalha para o enorme pedaço de carne ereta que a levantava.

     Tess não pôde fingir acanhamento ao tocá-lo. Acariciou seu grosso cabo e a pesada bolsa que havia debaixo, movendo acima e abaixo sua pele aveludada, tomando um doce tempo com seus dedos apenas capazes de abranger todo a envergadura de sua ereção. Enquanto ela apalpava a suave cabeça de seu sexo, inclinou-se para diante para beijar a cúpula de seu ventre, gozando da suavidade com que estava embainhada tanta força viril.

     Dante gemeu enquanto ela jogava com a língua ao longo das intrincadas linhas das tatuagens; o retumbo de sua profunda voz vibrou contra seus lábios. Ele pôs um braço a cada lado dela, os enormes músculossse incharam quando se agarrou aos borde do balcão deixando que ela continuasse o que estava fazendo. Baixou a cabeça sobre o peito; tinha os olhos fechados, mas estes ardiam com uma intensidade que Tess pôde advertir quando se aventurou a olhá-lo. Ela sorriu, logo se inclinou para baixo para fazer girar a língua ao redor do bordo de seu umbigo, incapaz de resistir a urgência de beliscar a suavidade de sua pele.

     Ele deixou escapar uma maldição apertando os dentes ante seu arranhão.

     —Ah... deus... sim. Faz-o mais forte —grunhiu.

— Quero sentir sua pequena dentada, Tess.

     Ela não sabia o que lhe estava passando, mas fez o que lhe pediu, juntando os dentes enquanto agarrava uma parte de sua carne na boca. Não chegou a lhe atravessar a pele, mas a afiada dentada pareceu viajar através do corpo de Dante como uma corrente. Ele deu um forte empurrão com os quadris, fazendo cair a toalha, que levava ali muito tempo e também a estava incomodando . Estremeceu-se enquanto ela percorria com sua língua a zona que acabava de morder.

     —Tenho-te feito mal?

     —Não. Não para. —inclinou-se sobre ela e lhe beijou um ombro nu. Seus músculos estavam apertados e suspensos e sua ereção se feito ainda maior em sua mão.

— Deus, Tess. Surpreende-me tanto. Por favor, não pares.

     Ela não queria parar. Não entendia absolutamente por que sentia uma conexão tão forte com esse homem —uma espécie de feroz necessidade—, mas em realidade havia muitas coisas que não entendia com relação a Dante. Logo que acabava de conhecê-lo e parecia que levasse com ela tanto tempo, como se o destino os tivesse emparelhado anos atrás e agora voltasse a reuni-los.

     Fosse o que fosse, Tess não tinha desejos de questioná-lo.

     Mordiscou-lhe o ventre, descendo por seus estreitos quadris, logo se inclinou para frente e colocou a cabeça de seu membro na boca. Chupou com força, deixando que seus dente raspassem brandamente seu sexo ao retirar-se. Ele gemeu bruscamente, em pé ante ela tão rígido como uma coluna de aço. Ela notou como lhe acelerava o pulso quando tomava em sua boca outra vez, e sentiu os batimentos de seu coração viajando ao longo de seu membro venoso.

     Podia sentir a pressa de seu sangue correndo por seu corpo, feroz e de uma cor escarlate intensa, e durante um momento surpreendente e completamente louco, teve o desejo de saber que sabor teria este em sua língua.

    

     O rio iluminado pela lua era uma ondulante cinta negra que se via através do guichê do assento de passageiros do Land Rover. E estava tranqüilo, não havia nenhum outro carro no lance de concreto vazio e cheio de más ervas que tinha sido antigamente o armazém de uma velha fábrica de papel, fechada fazia já vinte anos. Ben Sullivan supunha que aquele era um bom lugar para um assassinato, e o silêncio de pedra do enorme homem armado até os dentes que havia ao volante não lhe dava muitas razões para esperar outra coisa.

     Enquanto o Land Rover se detinha, Ben se preparou para uma briga, com um desejo infernal de ter podido conservar a pistola do 45 da que tinha tido que desprender-se em seu apartamento. Não é que esperasse ter muitas oportunidades com esse tipo, nem sequer levando uma arma consigo. A diferença de seu companheiro de cabelo escuro, cuja voz e suas ações resultavam ameaçadores, este outro evitava mostrar suas cartas. Tinha uma calma de gelo, mas Ben podia advertir a fúria raivosa que corria por debaixo da superfície do comportamento desse educado senhor Frio, e isso lhe aterrorizava.

     —O que acontece? Por que nos detemos aqui? Esperamos a alguém? —As perguntas saíram dele em turba, mas estava muito ansioso como para que lhe preocupasse parecer um galinha.

— Seu companheiro queria que me levasse ao recinto, não?

     Não houve resposta.

     —Bom, seja o que seja este lugar —disse Ben, olhando o espaço deserto—, não acredito que se trate desse recinto.

     Com o veículo parado, o condutor soltou uma larga baforada de ar e se voltou para ele para olhá-lo com frieza. Os pálidos olhos azuis tinham um marcado ar assassino, cheios de uma fúria quase irreprimível.

     —Você e eu vamos ter uma conversação privada.

     —E vou sobreviver?

     Ele não respondeu, limitou-se a levar a mão ao bolso da jaqueta e tirou uma parte de papel dobrado. Uma fotografia, advertiu Ben, ao vê-la brilhar no tabuleiro de mandos.

     —Viu alguma vez a este indivíduo?

     Ben observou a imagem de um jovem de bom aspecto com o cabelo castanho e despenteado e um sorriso largo e amistoso. Levava um sueter de Harvard e com uma mão fazia ao fotógrafo um gesto com o polegar, enquanto que na outra sustentava um fólio com um cabeçalho da universidade.

     —É um familiar teu?

     A pergunta foi um grunhido em voz baixa, pois embora Ben estava seguro de ter visto o menino, e inclusive de lhe haver vendido carmesim essa mesma semana um par de vezes, não sabia se responder essa pergunta com um sim ou com um não lhe salvaria a vida ou o condenaria. Negou lentamente com a cabeça, encolhendo-se de ombros sem comprometer-se.

     De repente estava a ponto de afogar-se, pois o tipo lhe agarrou o rosto com tanta força que ele acreditou que a mandíbula lhe romperia. Deus, esse tipo o apertava tanto como poderia fazê-lo uma víbora, e era mais rápido, porque Ben nem sequer lhe tinha visto mover a mão.

     —Olhe mais de perto —exigiu o senhor Frio, lhe pondo a foto no rosto.

     —Vale... —balbuciou Ben, sentindo o sabor do sangue na boca enquanto os dentes lhe cortavam o interior das bochechas.

—Está bem, sim! Merda!

     A pressão diminuiu e ele ficou a tossir, esfregando-a mandíbula dolorida.

     —Viu-o?

     —Sim, vi-o. Chama-se Cameron ou algo assim.

     —Camden —lhe corrigiu o outro, com a voz tensa e inexpressiva.

— Quando o viu por última vez? Ben sacudiu a cabeça, tratando de recordar.

     —Não faz muito. Esta semana. Ele estava com outros que foram de farra a uma discoteca tecno do North End, A Notte, acredito que era.

     —Vendeu-lhe? —As palavras saíram lentamente, como sons marcados que pareciam obstruídos por algo que tivesse na boca.

     Ben lhe dirigiu um olhar cauteloso. A tênue luz do carro, os olhos do tipo tinham um brilho intenso, como se suas pupilas tivessem desaparecido, estreitando-se e alargando-se no centro desses seus olhos de um azul glacial. A Ben lhe gelaram os ossos, e esperneou de forma instintiva por seu estado de alerta.

     —Deu-lhe carmesim, pedaço de merda?

     Ben tragou saliva dificultosamente. Moveu a cabeça em sinal de assentimento, com grande insegurança.

     —Sim. Esse cara acredito que me comprou um par de vezes.

     Ouviu um grunhido desumano, viu o brilho de uns dentes brancos e afiados na escuridão, justo a fração de segundo antes de que sua cabeça fora esmagada contra o guichê do assento de passageiros e o tipo se equilibrasse sobre ele em uma explosão de fúria demoníaca.

    

     Ela o estava matando.

     Cada giro da língua de Tess, cada comprido movimento de sua quente boca em seu inchado membro —Deus santo, como o arranhava brincalhona com os dentes—, enviava a Dante cada vez mais longe dentro de um torvelinho de tormentoso prazer. Inclinando-se sobre ela enquanto o chupava, agarrou-se a ambos os lados do balão do banho com um apertão vicioso, seu rosto retorcendo-se e os olhos fechados muito apertados em uma doce agonia.

     Seus quadris começaram a bombear, seu pênis se levantou ainda mais duro, procurando o fundo de sua garganta. Tess o colocou inteiro na boca, gemendo brandamente, fazendo que a vibração de sua voz zumbisse contra a sensível cabeça de seu membro.

     Ele não queria que ela visse seu estado agora, perdido em uma luxúria que quase não podia controlar. Suas presas se alargaram em sua boca, quase impossíveis de ocultar atrás de seus lábios apertados. Por debaixo de suas pálpebras fechadas sua visão ardia vermelha de fome e necessidade.

     Podia sentir também a necessidade de Tess. O doce aroma de sua excitação perfumava o ar úmido que havia entre eles, enchendo os orifícios de seu nariz do mais potente afrodisíaco. E detrás desse perfume que o empapava tudo havia outra necessidade, uma curiosidade que o assombrava.

     Cada tímido arranhão dos dentes dela em sua pele representava uma possibilidade, cada pequeno beliscão e dentada expressava uma fome que provavelmente ela não devia nem entender e nem sequer tinha palavras para expressar. Atravessaria-lhe a pele e provaria seu sangue, levando-a ao interior de seu corpo?

     «Deus, pensar que ela de fato poderia...»

     Isso o aturdia, quanto desejava que ela cravasse seus diminutos e desafilados dente humanos em sua carne. Quando ela se retirou de seu sexo e mordiscou seu ventre, Dante rugiu, o desejo de animá-la a extrair e beber seu sangue quase derrotava seu impulso, muito mais sensato, de protegê-la do laço que a converteria em uma companheira de sangue e a manteria unida a ele durante o resto de suas vidas.

     —Não —grunhiu, com voz áspera. As presas lhe obstruíam as palavras.

     Com mãos trementes, Dante agarrou os quadris de Tess. Levantou-a para ele, embalando seu traseiro com os braços enquanto ela tirava as calcinhas de seda e aproximava as coxas a seu corpo.

     Sua verga brilhava pela umidade de sua boca e por sua própria necessidade, torcida até o ponto de lhe causar dor. Não podia ser suave; com um brusco empurrão, sentou-se até chegar ao fundo.

     Tess respirava agitadamente junto a seu ouvido e arqueava a coluna em suas mãos. Ela cravou os dedos em seus ombros enquanto ele se movia entre suas pernas, com um ritmo urgente, sentindo um alívio que subia em espiral da base de seu membro. Empurrou com força, obtendo que ela sentisse como seu próprio climax crescia rapidamente enquanto seu canal se aferrava a ele apertando-o como um punho úmido e quente.

     —OH, Deus... Dante.

     Ela se desfez um instante depois, contraindo-se em torno dele em deliciosas sacudidas. Dante a seguiu até o final, deixando que seu próprio orgasmo saísse disparado de seu membro e estalasse em uma feroz corrente de calor. Onda detrás onda, enquanto ele se afundava nela como se não queria deter-se nunca.

     Dante abriu os olhos enquanto seu corpo se sacudia com a força de sua liberação. No espelho que havia em cima do lavabo, captou seu reflexo feroz: a verdadeira imagem de quem era e do que era. Suas pupilas eram duas fendas negras no centro de sua brilhante íris de cor âmbar, suas bochechas eram duras e animais.

     Suas presas estavam completamente estendidas, largas pontas brancas que cintilavam com cada respiração ofegante que arrastava a seus pulmões.

     —Foi... incrível —murmurou Tess, enganchando os braços debaixo dos ombros dele para apertá-lo mais contra ela.

     Lhe beijou a pele úmida, passeando os lábios por sua clavícula e pela curva de seu pescoço. Dante a apertou contra ele, com seu sexo ainda dentro. Esperou, imóvel, querendo acalmar sua parte faminta. Jogou de novo uma olhada a seu rosto no espelho, sabendo que faltavam uns poucos minutos para que sua transformação cessasse e pudesse olhar Tess sem aterrorizá-la.

     Não queria que tivesse medo dele. Deus, se o via agora —se soubesse o que lhe tinha feito a primeira noite que a viu, quando lhe tinha mostrado amabilidade e lhe tinha respondido lhe cravando o dente na garganta— o odiaria. E com razão.

     Uma parte dele queria que ela se sentasse e lhe explicar tudo o que tinha esquecido dele. Expô-lo todo a luz. Começar de novo, se é que podiam.

     Sim, imaginava que esse pequeno bate-papo transcorreria sem problemas, seria como lhe pedir que bebesse um copo de tachinhas. E certamente não era uma conversação que ele pretendesse começar enquanto ela estava ainda trespassada sobre sua renovada ereção.

     Enquanto ele deliberava a respeito do muito que se estavam complicando as coisas com Tess, um grunhido retumbou da porta aberta. Era um som pequeno, mas indubitavelmente hostil.

     Tess se moveu, voltando a cabeça.

     —Harvard o que passa contigo? —Ela riu um pouco, soando tímida agora que a intensidade do momento se quebrado.

— Hum, acredito que talvez traumatizamos a seu cão.

     Ela se escapuliu dos braços de Dante e agarrou um penhoar de um cabide próximo a porta. O pôs e logo se agachou para recolher ao terrier. Recebeu imediatamente umas vigorosas lambidas no queixo.

     Dante os observava por debaixo de sua meada de cabelo negro, aliviado ao sentir que seus rasgos recuperavam um aspecto normal.

     —Este cão se recuperou realmente rápido com seus cuidados. —Uma mudança radical, pensava Dante, que parecia muito rápido para ser produto da medicina normal.

     —É um lutador —disse Tess.

— Acredito que ficará bem.

     Embora Dante se preocupou ante a idéia de que ela advertisse seu aspecto feroz, deu-se conta de que não tinha por que preocupar-se. Parecia estar evitando olhá-lo diretamente, como se fosse ela a que tinha algo que ocultar.

     —Sim, é surpreendente como melhorou este animal. Eu o atribuiria a um milagre, se acreditasse nessas coisas. —Dante a observou de perto, com curiosidade e uma boa dose de suspeita.

— O que lhe fez exatamente, Tess?

     Era uma pergunta simples, que ela provavelmente podia satisfazer com um bom número de explicações, entretanto ficou gelada na porta do quarto de banho. Dante advertiu que o pânico começava a crescer nela.

     —Tess —lhe disse.

—É algo tão difícil de responder?

     —Não —se apressou a esclarecer, mas a palavra pareceu engasgar-se na garganta. Lançou-lhe um olhar fugaz e aterrorizado.

—Necessito... deveria...

     Sustentando ao cão apertado com um braço, Tess levou a mão livre a boca, logo se deu a volta e saiu precipitadamente do banho sem acrescentar nenhuma palavra.

     Quando chegou ao salão e deixou o cão sobre o sofá, ficou a caminhar acima e abaixo, sentindo-se apanhada e como se lhe faltasse o ar. Que Deus a ajudasse. Em realidade desejava lhe contar o que tinha feito para salvar a vida do cão. Queria confiar a Dante sua única e maldita habilidade —queria confiar-lhe tudo—, mas de uma vez isso a aterrorizava.

     —Tess? —Dante apareceu atrás dela, com uma toalha envolta e atada em torno de seus quadris.

— O que passa ?

     —Nada. —Ela sacudiu a cabeça e se esforçou por esboçar um sorriso muito tensa.

— Em realidade não passa nada. Quer algo de comer? Se tiver fome, há um pouco de frango. Poderia...

     —Quero que me explique isso. —Pô-lhe as mãos sobre os ombros e a fez estar-se quieta.

— Diga-me o que ocorre. Diga-me do que se trata.

     —Não. —Sacudiu a cabeça, pensando desesperadamente como podia guardar seu segredo e ocultar sua vergonha.

— É só que... Não o entenderia, vale? Não posso esperar que o entenda.

     —Me deixe tentá-lo.

     Tess queria apartar-se de seus penetrantes olhos, mas não podia. Ele tratava de tocá-la, e uma parte dela necessitava desesperadamente abraçar forte à algo sólido e firme. Algo que não a deixasse cair.

     —Jurei que não voltaria a fazê-lo, mas eu...

     «OH, deus. Realmente não queria lhe contar esse horrível capítulo de sua vida.»

     Tinha sido seu segredo durante tanto tempo. Tinha-o protegido ferozmente, tinha aprendido a temê-lo. As únicas duas pessoas que sabiam a verdade a respeito de seu dom —seu padrasto e sua mãe— estavam mortos. Aquela era uma parte de seu passado, e seu passado tinha ficado muito atrás.

     Tinha sido enterrado, ali onde pertencia.

     —Tess. —Dante a ajudou a sentar-se no sofá perto do Harvard, que subiu a seu regaço, agitando a cauda com alegria entusiasta. Dante se sentou junto a ela e lhe acariciou a bochecha. Sua carícia era tão tenra, tão cálida. Ela se acurrucó junto a ele, incapaz de resistir.

— Pode contar isso tudo. Comigo está a salvo, Tess. Prometo-lhe isso.

     Ela ansiava tanto poder acreditá-lo. Lágrimas quentes brotaram de seus olhos.

     —Dante, eu...

     O silêncio se alargou durante uns segundos. Quando as palavras lhe falharam, Tess se aproximou até onde o bordo da toalha deixava ao descoberto o talho de sua perna.

     Elevou o olhar para ele, logo pôs a palma de sua mão sobre a ferida. Então concentrou todos seus pensamentos, toda sua energia, até que sentiu que a ferida começava a curar-se.

     A pele de Dante começou a recuperar-se, a ferida se fechou de forma tão limpa que parecia que nunca tivesse estado ali.

     Depois de uns momentos, ela apartou a mão e embalou a palma formigante contra seu corpo.

     —Deus santo —disse Dante em voz baixa, franzindo suas escuras sobrancelhas.

     Tess o olhava fixamente, sem saber o que dizer nem como explicar o que acabava de fazer. Esperou sua reação em um tenso silêncio, sem saber como interpretar sua tranqüila aceitação do que acabava de presenciar.

     Ele passou os dedos sobre a suave pele onde já não havia ferida e logo a olhou.

     —É assim como faz seu trabalho na clínica, Tess?

     —Não —se apressou a negar ela, movendo vigorosamente a cabeça. A insegurança que sentia um segundo antes começava a converter-se em medo pelo que Dante pensaria dela agora.

— Não, não o faço assim... nunca. Bom... fiz uma exceção ao tratar a Harvard, mas foi a única vez.

     —E o que passa com os humanos?

     —Não —disse ela.

— Eu não...

     —Alguma vez usaste seu talento com outra pessoa?

     Tess ficou em pé, um pânico gelado a alagou ao recordar a última vez —a última e maldita vez— que tinha posto suas mãos em outro ser humano antes da insensata demonstração que lhe tinha feito a Dante.

     —Meu talento é uma maldição. Desejaria não o ter.

     —Não é uma maldição, Tess. É um dom. Um dom extraordinário. Deus, quando penso em tudo o que poderia fazer...

     —Não! —gritou a negação antes de poder conter-se, e seus pés a afastaram uns passos do sofá, onde agora Dante se estava levantando. Olhava-a com uma mescla de confusão e preocupação.

—Nunca devia ter feito isto. Não lhe deveria ter mostrado isso.

     —Bom, tem-no feito, e agora tem que confiar em que eu o entenda. Por que está tão assustada, Tess? Teme-me ou a seu dom?

     —Deixa de chamá-lo assim! —abraçou-se a si mesmo com força, as lembranças a alagavam como uma maré negra.

— Não o chamaria dom se soubesse no que me converteu... se soubesse o que fiz.

     —Conta-me .

     Dante foi para ela, movendo-se devagar, seu imenso corpo enchia a visão dela no pequeno salão. Pensou que deveria sair correndo, esconder-se, como tinha estado fazendo durante os últimos nove anos... mas um impulso mais forte a levava a desejar arrojar-se a seus braços e deixar que tudo emergisse de repente em uma terrível mas purificadora descarga.

     Respirou profunda e pausadamente, e se sentiu envergonhada para ouvir o som de um soluço obstaculizado no fundo de sua garganta.

     —Está bem —lhe disse Dante. Sua voz tão suave e a maneira tão tenra em que a abraçou quase a desfez.

— Vêem aqui. Está bem.

     Tess se aferrou a ele, guardando o equilíbrio ao bordo de um abismo emocional que podia sentir mas que ainda não se atrevia a confrontar. Sabia que a queda seria precipitada e dolorosa, pois havia muitas rochas dentadas esperando cortá-la se se deixava ir. Dante não a empurrou. Limitou-se a sustentá-la com seus quentes braços, deixando-a apoiar-se em sua firme e sólida robustez.

     Finalmente, as palavras acharam o caminho em sua boca. Seu peso era excessivo, seu sabor muito vil, assim que ela as obrigou a sair.

     —Quando tinha quatorze anos, meu pai morreu em um acidente de carro em Chicago. Minha mãe voltou a casar-se ao ano seguinte, com um homem que conheceu em nossa igreja. Ele tinha um negócio próspero na cidade e uma casa grande junto a um lago. Era generoso e amistoso, gostava de todo mundo, inclusive de mim, apesar do muito que sentia falta de meu verdadeiro pai.

     Minha mãe bebia, muito, desde que sou capaz de recordar. Acreditei que estava melhorando quando nos mudamos a casa de seu novo marido, mas ao cabo de pouco tempo voltou a recair. A meu padrasto não importava que ela fosse uma alcólatra. Ele sempre tinha garrafas na adega, inclusive depois de suas maiores bebedeiras. Comecei a me dar conta de que a preferia ébria, sobre tudo se se passava as tardes inteiras inconsciente no sofá e não se inteirava do que ele fazia.

     Tess notou que o corpo de Dante ficava rígido em torno dela. Seus músculos vibravam com uma tensão perigosa que ela sentia como um escudo de força, protegendo-a e lhe dando apoio.

     —Ele... abusou de ti, Tess?

     Ela tragou saliva com dificuldade, assentindo contra seu quente peito nu.

     —Ao princípio, durante quase um ano, foi cuidadoso. Abraçava-me muito momento e muito perto, me olhando de uma forma que me fazia sentir incômoda. Tratou de ganhar minha confiança me trazendo presentes e organizando festas para meus amigos na casa do lago, mas eu não gostava de estar em casa, assim ao fazer dezesseis anos comecei a passar muito tempo fora. Estava fora com amigos, passei o verão de acampamento, fazia tudo o que podia para me afastar. Mas finalmente tive que voltar para casa. As coisas pioraram nos seguintes meses até o dia em que fiz dezessete anos. Ele havia se tornado violento comigo e com minha mãe, golpeava-nos e nos dizia coisas horríveis. E então, uma noite...

     A coragem de Tess fraquejou, em sua cabeça davam voltas as lembranças do estalo de blasfêmias e gritos histéricos, o torpe movimento de seu padrasto bêbado, os cristais quebrados rompendo-se em milhares de pedaços. E ainda era capaz de ouvir o suave chiado da porta de sua habitação a noite em que seu padrasto despertou de um agitado sono, com sua respiração emprestando a álcool e a fumaça de cigarros.

     Sua mão carnuda estava salgada pelo suor quando lhe apertou a boca para evitar que gritasse.

     —Era meu aniversário —sussurrou atordoada.

— Ele entrou em minha habitação ao redor da meia-noite, me dizendo que queria me dar um beijo de aniversário.

     —Esse maldito bode de merda. —A voz de Dante era um grunhido desumano, mas seus dedos lhe acariciavam o cabelo com suavidade.

— Tess... Deus santo. A outra noite junto ao rio, quando eu tratei de fazer o mesmo...

     —Não. Não era o mesmo. Recordou isso , sim, mas não era absolutamente o mesmo.

     —Sinto-o tanto. Lamento-o tudo. Especialmente o que tiveste que acontecer.

     —Não —disse ela, não querendo aceitar sua compaixão quando ainda não lhe tinha contado o pior.

—Depois de que meu padrasto entrasse em minha habitação, meteu-se na cama comigo. Eu lutei contra ele, dava-lhe pontapés, tapas, mas era muito mais forte que eu e me sujeitava com seu peso. Em algum momento durante a luta, ouvi que ele respirava com dificuldade, asfixiava-se um pouco, como se estivesse sofrendo. Deixou de me sujeitar e eu finalmente consegui me liberar dele. Soltou-me porque lhe doía o coração. Estava-se pondo de um vermelho intenso, logo azul... agonizando no chão de minha habitação.

     Dante não disse nada durante o comprido silencio que seguiu. Talvez tivesse idéia de onde se encaminhava sua confissão. Agora ela já não podia deter-se. Respirou profundamente, aproximando-se desse ponto de não retorno.

     —Nesse momento, entrou minha mãe. Bêbada, como de costume. Viu-o e ficou histérica. Estava furiosa, comigo, quero dizer. Gritou-me que o ajudasse, que não o deixasse morrer.

     —Ela sabia o que podia fazer com suas mãos?

     —Sabia. Tinha-o visto de primeira mão, quando eu lhe curava suas contusões e seus ossos quebrados. Estava tão furiosa comigo... culpava-me do ataque de coração de meu padrasto. Eu acredito que me culpava de tudo.

     —Tess —murmurou Dante.

— Ela não tinha direito de te culpar de nada. Sabe, verdade?

     —Sim, agora sei. Mas naquele momento, estava tão assustada. Eu não queria que ela fosse infeliz. Assim que o ajudei, tal como ela me ordenou. Fiz funcionar seu coração e eliminei a obstrução de sua artéria. Ele não sabia o que lhe tinha passado, e o contamos. Não foi até três dias mais tarde quando descobri o tremendo engano que tinha cometido.

     Tess fechou os olhos retrocedendo no tempo, caminhado até o abrigo de ferramentas de seu padrasto para procurar uma faca de massa com o que trabalhar em um de seus projetos de escultura. Tirou a escada de mão e subiu para procurar nas prateleiras superiores do velho abrigo. Não viu a pequena caixa de madeira até que a golpeou com o cotovelo fazendo-a cair ao chão.

     As fotos se pulverizaram, dúzias delas. Fotos instantâneas de meninos de diferentes idades, em vários estados de nudez, alguns sendo tocados pelo fotógrafo enquanto tirava a foto.

       Ela teria reconhecido essas mãos terríveis em qualquer parte.

     Tess se estremeceu nos braços de Dante, gelada até a medula.

     —Eu não era a única vítima de meu padrasto. Descobri que tinha estado abusando de meninos em formas horríveis durante anos, talvez décadas. Era um monstro, e eu lhe tinha dado uma segunda oportunidade para seguir fazendo mal.

     —Deus —soltou Dante, apartando-a um pouco dele, mas sujeitando-a com ternura enquanto a olhava aos olhos com um olhar chateado e furioso.

— Não é tua culpa. Não podia sabê-lo, Tess.

     —Mas uma vez que o tinha feito —disse ela—, tinha que arrumá-lo. Dante franziu o cenho e ela deixou escapar uma suave risada irônica.

— Tinha que lhe tirar o que lhe tinha dado.

     —Lhe tirar ?

     Ela assentiu.

     —Essa mesma noite, deixei a porta de meu dormitório aberta e o esperei. Sabia que viria, porque o pedi. Quando minha mãe dormiu, ele se deslizou no interior de minha habitação e eu o convidei a minha cama... Deus, essa foi a pior parte de todas, fingir que vê-lo não me dava vontade de vomitar. Ele se estirou a meu lado e eu lhe pedi que fechasse os olhos porque queria lhe devolver o beijo de aniversário que me tinha dado fazia umas noites. Disse-lhe que não olhasse e ele me obedeceu. Estava tão asquerosamente entusiasmado.

     Pus-me escarranchada sobre sua cintura e coloquei as mãos sobre seu peito. Toda minha ira se precipitou para as pontas de meus dedos em um segundo, como uma corrente elétrica me atravessando e indo diretamente para ele. Abriu os olhos de repente e entendeu o que estava passando: a expressão de terror e confusão em seus olhos me indicou que sabia exatamente o que eu pretendia fazer. Mas era muito tarde para que tivesse tempo de reagir. Seu corpo se contraiu em violentos espasmos, e seu coração se deteve de repente. Eu resisti com toda a força de minha resolução, sentindo como sua vida escapava. Fiquei ali durante vinte minutos, muito tempo depois de que tivesse morrido, pois tinha que estar segura.

     Tess não se deu conta de que estava chorando até que Dante se aproximou e lhe secou as lágrimas. Ela sacudiu a cabeça, com a voz estrangulada na garganta.

     —Deixei a casa essa mesma noite. Vim aqui, a Nova a Inglaterra e fiquei com uns amigos até que pude terminar os estudos e começar a viver por minha conta.

     —E o que passou com sua mãe?

     Tess se encolheu de ombros.

     —Nunca voltei a falar com ela, mas não é que lhe importasse. Nunca tratou de me encontrar, e Para falar a verdade, eu me alegrava disso. Seja como for, morreu faz uns anos, de cirrose, conforme tenho entendido. Depois dessa noite, depois do que fiz, só queria esquecê-lo tudo.

     Dante a apertou de novo contra ele, e ela não resistiu a seu calor, afundou-se nele, esgotada por ter revivido o pesadelo de seu passado. Dizer as palavras tinha sido duro, mas agora que tinham saído, sentia uma espécie de liberação, como uma sacudida de alívio.

     Deus, estava tão esgotada. Parecia-lhe como se todos esses anos que levava fugindo e ocultando a tivessem alcançado de repente, lhe provocando uma intensa fadiga.

     —Jurei a mim mesma que nunca voltaria a usar minha habilidade, com nada que tivesse vida. É uma maldição, como te disse. Talvez agora o entenda.

     As lágrimas lhe queimavam os olhos e as deixou cair, confiando em que se achava em um refúgio seguro, ao menos por agora. Os fortes braços de Dante a envolviam com atitude protetora. As suaves palavras que murmurava eram um consolo que ela necessitava mais do que nunca tivesse imaginado.

     —Não fez nada mau, Tess. Essa escória humana não tinha direito a viver para fazer o que estava fazendo. Você administrou justiça em seus próprios termos, mas não deixava de ser justiça. Nunca o duvide.

     —Não pensa que sou... uma espécie de monstro? Não crê que não sou muito melhor que ele por havê-lo matado como o fiz, a sangue frio?

     —Absolutamente. —Dante lhe levantou o queixo com o bordo da mão.

— Acredito que é valente, Tess. Um anjo da vingança, isso é o que eu acredito.

     —Sou um monstro.

     —Não, Tess, não. —Beijou-a com ternura.

— É extraordinária.

     —Sou uma covarde. Como você disse, sempre estou fugindo. É verdade, estive atemorizada e fugindo durante tanto tempo, que não estou segura de poder parar.

     —Então foge para mim. —Os olhos de Dante eram ferozes enquanto lhe sustentavam o olhar.

— Eu sei tudo sobre o medo, Tess. Vive também em mim. Recorda esse ataque que tive em sua clínica? Não tem nada que ver com um problema médico.

     —E do que se trata?

     —Da morte —disse inexpressivo.

— Desde que tenho uso de razão, tive esses ataques, essas visões, dos últimos momentos de minha vida. Não se trata mais que de imaginações, mas as vejo como se estivessem ocorrendo. Posso senti-lo, Tess. É meu destino.

     —Não o entendo. Como pode estar seguro disso?

     Ele sorriu com ironia.

     —Estou seguro. Minha mãe teve visões similares de sua própria morte, e também meu pai. E suas mortes ocorreram exatamente como o tinham imaginado. Ela não pôde trocar o que ia passar, nem atrasá-lo. Por isso eu estive tratando de correr mais que meu próprio destino. Sempre estive fugindo dele. Mantive-me isolado de coisas que pudessem me fazer reduzir a velocidade e viver. Nunca me permiti sentir realmente.

     —Sentir é perigoso —murmurou Tess. Embora ainda não era capaz de imaginar que tipo de dor arrastava consigo Dante, sentia que uma espécie de vínculo crescia entre eles. Ambos estavam sozinhos, ambos à deriva em seus próprios mundos.

— Eu não quero sentir nada por ti, Dante.

     —Bem, Tess. Eu tampouco quero sentir nada por ti.

     Lhe sustentou o olhar enquanto seus lábios descendiam lentamente para os dela. Seu beijo foi doce e tenro, de algum modo reverente. E derrubou todos seus muros, os tijolos de seu passado e sua dor se vieram abaixo, deixando-a nua junto a ele e incapaz de ocultar-se. Tess lhe devolveu o beijo com urgência, necessitando mais. Sentia que o frio lhe chegava até os ossos, e necessitava todo o calor que lhe pudesse dar.

     —Me leve a cama —sussurrou junto a sua boca.

— Por favor, Dante...

    

     Chase entrou em sua residência do Refúgio Escuro pela parte traseira, pensando que seria melhor não alarmar toda a casa entrando por diante, furioso como um animal e coberto de sangue. Elise estava levantada; pôde ouvir sua voz suave no salão do primeiro piso, onde se tinha reunido junto com outras mulheres companheiras de sangue da comunidade.

     E também podia cheirá-la. Seus sentidos estavam acentuados por causa da cólera que ainda fervia em seu interior —a violência que tinha cometido— e o aroma feminino da mulher que desejava mais que nenhuma outra era como uma droga que chegava diretamente até suas veias.

     Com um feroz grunhido, Chase se voltou na direção oposta a sua cunhada e se encaminhou para seus quartos privados. Fechou a porta depois de entrar e com dedos furiosos baixou a cremalheira da jaqueta, que se tinha arruinado pelas salpicaduras de sangue humano. A tirou e a jogou no chão, e logo fez o mesmo com a camisa.

     Parecia um desastre, começando pelos arranhões que sangravam e as contusões que tinha nas mãos depois de dar a Ben Sullivan uma tremenda surra, e seguindo por uma sede selvagem e enfebrecida que o fazia desejar destroçar algo, inclusive agora, tempo depois de ter abandonado a cena de sua fúria incontrolável. Tinha sido estúpido atacar ao traficante de carmesim tal como tinha feito, mas a necessidade de aplicar alguma medida de vingança tinha sido entristecedora.

     Chase se tinha entregue a um impulso selvagem, algo que raramente fazia. Diabos, acaso o tinha feito alguma vez? Sempre tinha se orgulhado de seus rígidos e retos ideais. Seu rechaço a permitir que a emoção preponderasse sobre a lógica.

     Agora, em um momento de descuido, havia-o jodido todo.

     Embora não tinha matado ao traficante de carmesim, equilibrou-se sobre ele com toda a intenção de assassiná-lo. Tinha aparecido suas presas na garganta do humano, sem lhe importar que isso o deixasse exposto ante ele como um vampiro. Tinha-o atacado grosseiramente, mas ao final tinha contido sua fúria, permitindo que o humano partisse. Talvez deveria ter apagado sua memória para não deixar expostos aos da estirpe, mas Chase queria que Ben Sullivan recordasse exatamente o que lhe esperava se faltava com sua palavra.

     Toda a situação era uma completa traição do que tinha acordado com Dante e o resto dos guerreiros, mas Chase não podia acreditar que tivesse outra eleição. Necessitava que Ben Sullivan andasse pelas ruas, e não que estivesse oculto sob a custódia protetora da Ordem. Embora a idéia lhe resultasse repugnante, necessitava que o traficante cooperasse ajudando-o a encontrar a Camden. Esse tinha sido o trato que lhe tinha feito jurar a escória humana sobre seu próprio sangue derramado. Sullivan não era um idiota, e depois de ter comprovado o que era a fúria de um vampiro, tinha-lhe implorado a Chase que o deixasse ajudá-lo no que pudesse.

     Agora Chase entendia que se achava sozinho em sua missão. Receberia uma reprimenda feroz por parte de Dante e outros, mas lhe dava igual. Tinha chegado muito longe em sua cruzada pessoal para preocupar-se das conseqüências. Tinha renunciado já a sua posição na agência, a carreira que tinha lutado tanto por construir. Essa noite tinha renunciado a uma parte de sua honra. Tinha abandonado tudo em nome de sua missão.

     À luz de seu quarto de banho, Chase captou repentinamente um duro brilho de seu próprio reflexo. Estava suado e salpicado de sangue, seus olhos brilhavam como duas pedras acesas de âmbar, com as pupilas convertidas ainda em pequenas fendas pelo que ainda ficava de sua ira e seu corpo sedento de alimento. Os dermoglifos de seu peito nu e seus ombros pulsavam com tons entre o escarlate pálido e o dourado apagado, indicando sua necessidade de sangue. A pequena quantidade que tinha consumido ao morder a garganta de Ben Sullivan não tinha ajudado; o amargo sabor de cobre que lhe tinha ficado na boca não fazia mais que aumentar sua necessidade de tomar algo mais doce para apagar esse gosto.

     Algo delicado, como urze e rosas... esse era o aroma do sangue que sentia vir de perto enquanto estava ali em pé, contemplando a imagem da fera criatura que lhe devolvia o espelho.

     O golpe vacilante na porta estremeceu seu corpo como o disparo de um canhão.

     —Sterling? Já retornaste?

     Ele não respondeu. Não pôde, de fato. Tinha a língua pega ao paladar, e a mandíbula lhe pesava detrás da expressão de desprezo de seus lábios pálidos e curvos. Teve que controlar-se muito para não jogar a porta abaixo com a força de sua vontade.

     Se a deixava entrar, transtornado como estava, nada lhe impediria de tomá-la em seus braços e saciar as duas fomes que cresciam furiosas em seu interior. Atravessaria-lhe a veia em um segundo; em menos tempo ainda, e a penetraria, enviando-se a si mesmo definitivamente ao inferno. Com tudo isso, quão único conseguiria seria deixar perseverança de até onde poderia chegar ao ser capaz de arruinar tudo no transcurso de uma só noite.

     Em lugar disso, ordenou toda sua força mental e a usou para apagar as luzes do banho, sumindo o espaço em uma escuridão mais confortável enquanto esperava em silencio o que lhe pareceu uma eternidade. Seus olhos ardiam como brasas. Suas presas lhe rasgavam as gengivas, ecoando À doloroso inchaço de seu membro.

     —Sterling... está em casa? —gritou ela outra vez. Seus ouvidos estavam tão sensibilizados a sua presença que pôde detectar seu débil suspiro atravessando todo o lance de suas habitações e a sólida madeira da porta. Conhecia-a tão bem que podia imaginar a diminuta ruga que se estaria formando em sua frente enquanto esperava sua resposta e até que finalmente concluiria que ele não estava ali.

     Chase permaneceu em pé completamente imóvel, esperando ouvir os passos dela afastando-se pelo corredor. Só quando partiu e seu aroma se extinguiu atrás dela, ele liberou sua respiração reprimida. Deixou-a sair de seus pulmões com um profundo e deprimido uivo, que fez vibrar o espelho escuro que tinha ante ele.

     Chase se soltou, concentrando sua frustração, sua maldita tortura, sobre essa lâmina de cristal gentil que golpeou com força até fazê-la estalar em mil lascas afiadas como navalhas

    

     Dante acariciou com seus dedos a suave pele do ombro nu de Tess enquanto dormia. Jazia na cama junto a ela, embalando as costas de seu corpo nu contra o seu e simplesmente escutando-a respirar. Ao redor deles, a habitação estava silenciosa e escura, com a calma que sobrevém depois da tormenta.

     A persistente tranqüilidade lhe resultava algo estranha, uma sensação de comodidade e satisfação completamente desconhecida para ele.

     Desconhecida mas agradável.

     Dante moveu seu corpo excitado enquanto sustentava a Tess nos braços, mas não tinha a intenção de perturbar seu sono. Faziam o amor meigamente quando ele a levou a cama, com um ritmo que lhe deixou decidir e controlar a ela, lhe permitindo que tirasse dele o que necessitasse. Mas agora, apesar de que seu corpo estava excitado, quão único queria era consolá-la. Simplesmente desejava estar ao seu lado tanto como durasse a noite.

     Era uma revelação surpreendente para um homem que não estava acostumado a negar-se nenhum prazer nem desejo.

     Mas em realidade, tal como estavam transcorrendo as coisas essa noite, as revelações chocantes eram mas bem a norma.

     Não era incomum que uma companheira de sangue tivesse alguma habilidade extrasensorial, um dom que 7 normalmente transmitia a sua própria descendência da estirpe. Qualquer que fosse a anomalia genética que permitia que um útero humano pudesse albergar a semente de um vampiro e que o processo de envelhecimento se detivera com a ingestão regular do sangue deste mesmo vampiro, dita anomalia convertia a uma mulher em algo diferente de suas irmãs Homo sapiens.

     No caso da mãe de Dante, seu talento foi o das terríveis premonições. Para a companheira do Gideon, Savannah, era a psicometría, o talento de ler a história de um objeto; mais especificamente o que podia ler era a história do dono do objeto. Gabrielle, a companheira de sangue que recentemente tinha entrado no redil da Ordem como a mulher de Lucan, tinha uma visão intuitiva que a atraiu as guaridas dos vampiros e uma mente tão forte que ninguém podia controlar seu pensamento, nem sequer os mais capitalistas da estirpe.

     Para Tess era a surpreendente habilidade de sanar com suas mãos a qualquer criatura viva. E o fato de que tivesse sido capaz de curar a ferida da perna de Dante significava que seus talentos curativos serviam também para a estirpe. Ela poderia contribuir com a raça um grande benefício. Deus, quando pensava em todo o bem que podia procurar...

     Dante rechaçou a idéia antes de que esta pudesse tomar forma em sua cabeça. O que tinha ocorrido não trocava o fato de que ele estivesse vivendo de emprestado e de que seu dever fosse em primeiro lugar para com a estirpe. Queria proteger Tess da dor de seu passado, mas lhe parecia injusto lhe pedir que abandonasse a vida que ela estava construindo. Inclusive mais injusto que ter bebido seu sangue a primeira noite, criando entre os dois laços inquebráveis.

     Entretanto, enquanto jazia ali junto a ela, acariciando sua pele, respirando seu aroma de canela, não havia nada que desejasse mais que levantá-la e levar-lhe com ele ao recinto, onde sabia que estaria a salvo de todo o mal que pudesse polui-la.

     De uma maldade como a de seu padrasto, que lhe tinha provocado tanta angústia. A Tess preocupava que matar esse bastardo houvesse a tornado tão má como ele, mas Dante unicamente sentia respeito pelo que tinha feito. Tinha acabado com um monstro, salvando-se a si mesmo e quem sabe quantos meninos mais de seus abusos.

     Para Dante, Tess tinha demonstrado ser uma guerreira a essa tenra idade, e a parte dele mais antiga, que ainda valorava coisas como a honra e a justiça, queria despertar a cidade inteira gritando que aquela era sua verdadeira mulher.

     «É minha», pensou com ferocidade e egoísmo.

     Inclinou-se para beijar seu delicado ombro quando o telefone da cozinha começou a soar. Silenciou o aparelho com uma ordem mental, antes de que despertasse completamente a Tess. Ela se aproximou a ele, gemendo um pouco enquanto murmurava seu nome.

     —Estou aqui —disse ele com serenidade.

— Dorme, anjo. Ainda estou aqui.

     Enquanto ela se afundava de novo no sono, apertando-se mais forte contra ele, Dante se perguntava quanto tempo ficaria antes de que o amanhecer o obrigasse a partir. Não o bastante, pensou, surpreendendo-se de sentir-se assim e sabendo que não podia acusar a seus sentimentos de ser produto do vínculo de sangue que sem querer ele tinha forjado entre eles.

     Não, o que começava a sentir pela Tess ia muito além disso. Percorria todo o caminho até seu coração.

    

     —Maldita seja, Tess. Te levante!

     A voz do Ben Sullivan era aguda, tremente, e todo seu corpo tremia de maneira incontrolável como se acabasse de passar por um intenso trauma.

     —Merda! Vamos, responde.

     Achava-se em um asqueroso telefone público em uma das piores zonas da cidade, agarrando com seus dedos ensangüentados o auricular e mastigado seu próprio sangue com crostas de sujeira. Com a mão que ficava livre e sujeitava um lado do pescoço, pegajoso pela espantosa dentada que tinha recebido. Tinha o rosto torcido pelos selvagens golpes que lhe tinham dado e lhe doía horrivelmente a parte posterior da cabeça, onde tinha um galo do tamanho de um ovo de ganso pelo golpe contra o guichê do Land Rover.

     Não podia acreditar que não tivesse morrido. Estava seguro de que aquele tipo ia mata-lo, apoiando-se na fúria com que o tinha atacado. Sentiu-se aturdido quando o tipo —Deus, acáso era humano?—, ordenou-lhe que saísse do veículo. Pôs-lhe a fotografia do menino que andava procurando na mão, e lhe fez saber que se esse Cameron, ou Camden ou como seja que se chamasse aparecia morto, Ben seria o único responsável.

     Agora Ben devia encarregar-se de lhe ajudar a encontrá-lo, devia assegurar-se de que o menino retornasse a sua casa são e salvo. Sua própria vida dependia disso, e por muito que desejasse sair disparado da cidade e esquecer-se de que alguma vez tinha ouvido falar do carmesim, sabia muito bem que aquele lunático que o tinha atacado o encontraria. O tipo tinha jurado que o faria, e Ben não tinha vontades de pôr a prova sua ira em um segundo assalto.

     —Maldita seja —grunhiu no momento em que saltou a secretária eletrônica de Tess.

     Tão mal como estava agora —tão fundo na merda como tinha ficado esta noite— sentia a obrigação moral de alertar Tess sobre o tipo com quem se estava vendo. Se seu amigo era um monstro lunático, Ben apostava a que o outro tinha que ser igual de perigoso.

     «Deus, Tess.»

     Depois do zumbido que vinha depois da saudação da secretaria de voz, Ben explicou precipitadamente os sucessos da noite, da emboscada surpresa dos dois valentões em sua casa até o ataque de que acabava de ser vítima. Sem pensá-lo, soltou que a tinha visto com um dos tipos a outra noite e que lhe preocupava que estivesse arriscando sua vida se continuava vendo-o.

     Podia ouvir as palavras derramando-se dele em um monólogo ofegante, sua voz com um tom mais alto do normal, o medo bordeando a histeria. No momento em que acabou de dizer tudo e pendurou de um golpe o auricular no banguelo aparelho, logo que podia respirar. Apoiou-se contra o painel da cabine de telefone, coberto de grafiti e dobrou seu corpo para diante, fechando os olhos enquanto tratava de acalmar seu agitado sistema.

     Uma chuva de sensações foi a ele como uma onda gigante: pânico, culpa, impotência, um terror que lhe gelava os ossos. Desejava que o tempo voltasse atrás: os passados meses, tudo o que tinha ocorrido, tudo o que tinha feito. Se pudesse retornar ao passado e apagar as coisas, as fazer bem. Acaso então Tess estaria com ele? Não sabia. E não importava nada, porque simplesmente não havia modo de voltar atrás.

     Quão único podia fazer agora era tentar sobreviver. Ben respirou profundamente e se esforçou por endireitar-se. Saiu da cabine de telefone e começou a caminhar pela escura rua, com um aspecto espantoso. Um vagabundo se separou dele quando cruzou o meio-fio e se dirigiu coxeando para a avenida principal. Enquanto caminhava tirou do bolso a fotografia do menino que supostamente tinha que procurar.

     Olhando a imagem, tratando de concentrar-se no papel manchado de sangue, Ben não ouviu o carro que se aproximava até que quase o atropela. Os freios chiaram e o veículo se deteve bruscamente. As portas se abriram de uma vez e um trio de tipos desconhecidos com aspecto de gorilas saíram do carro.

     —Vai a alguma parte, senhor Sullivan? Ben se preparou para empreender a fuga, mas não pôde nem dar dois passos sobre o pavimento quando o agarraram pelas pernas e os braços. Viu como caía a fotografia aterrissando no asfalto molhado, uma enorme bota a pisoteou enquanto os outros homens o levavam até o carro.

     —Alegra-me lhe haver localizado por fim —disse uma voz que soava humana mas que tinha um toque que não o era.

—Quando vimos que não ia a seu encontro de esta noite, o amo se mostrou muito preocupado. Estará encantado de saber que agora vai de caminho ao seu encontro.

     Ben lutou contra seus seqüestradores, mas era inútil. Meteram-no no porta-malas e fecharam a capota, deixando-o sumido na escuridão.

  

     Os tempranos raios do amanhecer pareceram mais brilhantes a Tess, o ar fresco de novembro resultava tonificante enquanto terminava seu pequeno passeio com o Harvard. Quando subiu, junto ao terrier, as escadas do edifício se sentia mais forte, mais ligeira, sem o peso do horrível segredo que tinha estado escondendo durante todos esses anos.

     Tinha que dar as graças a Dante por isso. Tinha tanto que lhe agradecer, pensou, enquanto seu coração pulsava com força e ainda notava em seu corpo a doce dor de ter feito amor. Havia-se sentido extremamente decepcionada ao despertar e descobrir que ele se foi, mas a nota que ele deixou dobrada na mesinha de noite dissipou a maior parte de sua consternação. Tess tirou o papel do bolso de suas calças de lã enquanto abria a porta de seu apartamento e tirava a correia de Harvard.

     Entrou na cozinha em busca de café lendo a nota escrita a mão pela décima vez, com esse sorriso largo que parecia haver ficado gravado de forma permanente em seu rosto: «Não queria despertar, mas tive que partir. Quer jantar comigo esta noite? Eu gostaria de te mostrar onde vivo. Chamarei-te. Dorme bem, anjo. Teu, Dante.»

     «Teu», tinha assinado.

     Dela.

     Uma quebra de onda de feroz posse a alagou ante aquele pensamento. Tess disse a si mesma que isso não significava nada, que era uma boba querendo ler algo mais nas palavras de Dante ou imaginando que a poderosa conexão que ela sentia para ele tinha que ser mútua, mas o certo é que tinha sentido uma espécie de enjôo ao descobrir a nota.

     Observou ao pequeno cão que dançava a seus pés, em espera do café da manhã.

     —Bom, Harvard, você o que crê? Estou-me implicando muito nisto? Não é que esteja louca por ele... estou-o?

     Deus, acaso estava... apaixonada?

     Fazia uma semana não sabia nem que existia, como podia simplesmente expor que seus sentimentos fossem tão rápidos? Mas algo estava ocorrendo. Estava-se apaixonando por Dante, ou possivelmente já estava apaixonada, a julgar pela força com que lhe pulsava o coração simplesmente ao pensar nele.

     O latido impaciente do Harvard a tirou de seus pensamentos.

     —Está bem —disse, olhando seu rosto peludo.

— Penso para cães e café, mas não necessariamente nessa ordem. Já vou.

     Encheu a cafeteira com café moído do Starbucks e água quente do grifo, apertou ao botão para pô-la em marcha e logo agarrou uma terrina e a ração seco para cães da despensa. Ao passar junto ao telefone da cozinha, viu o indicador de mensagens piscando.

     —Aqui tem, carinho —disse a Harvard, lhe servindo os Iams em seu prato e colocando este no chão.

— Bon appétit.

     Com muitas esperanças de que a mensagem fosse de Dante, já que podia ter chamado enquanto ela estava fora passeando com o cão, Tess apertou ao botão para ouvir a voz gravada. Esperou ansiosamente, enquanto marcava seu código de acesso e escutava a saudação automática que anunciava que tinha uma mensagem nova, gravado a uma hora tardia da noite, e começava a reproduzi-lo para ela.

     «Tess! Deus, por que não agarra o maldito telefone?»

     Era Ben, advertiu. A decepção que apareceu em seu rosto se transformou rapidamente em alarma ao notar o estranho tom de sua voz. Nunca o tinha ouvido tão assustado, tão destroçado. Respirava com dificuldade, ofegando, suas palavras saíam esparramadas inverificado dele. Não estava simplesmente assustado. Estava aterrorizado. Sentiu que a atendia a preocupação, agarrando-a com garras geladas, enquanto escutava o resto da mensagem.

     «...preciso te advertir. O tipo com o que está vendo, não é o que você crê. Entraram em meu apartamento esta noite... ele e outro cara. Acreditei que foram a matar- me, Tess! Mas é por ti por quem agora temo. Tem que se afastar dele. Está metido em não sei que merda de assunto... Sei que parecerá uma loucura, mas o tipo com o que veio esta noite... eu acredito que... OH, Deus, tenho que lhe dizer isso acredito que não é humano. Talvez nenhum dos dois o seja. O outro tipo me levou em um Land Rover, tinha que ter tentado recordar o número da placa ou algo, mas tudo passou tão fodidamente rápido. Levou-me até o rio e me atacou, Tess. O filho de puta tinha uns dentes enormes... eram presas, juro-lhe isso por Deus, e seus olhos estavam iluminados como se fossem de fogo. Não era humano, Tess! Não são humano!»

     Afastou-se da barra enquanto continuava ouvindo a mensagem. A voz do Ben lhe dava tantos calafrios como as coisas que estava dizendo.

     «Esse filho da puta me fez pedaços... esmagou-me a cabeça contra a janela do carro, golpeou-me até me deixar quase inconsciente, e logo... mordeu-me! Ah, Deus, o pescoço ainda sangra. Tenho que ir a um hospital ou algo...»

     Tess se retirou para o salão, como se estar longe da voz do Ben de algum jeito a isolasse do que estava ouvindo. Não sabia como extrair algum sentido de tudo aquilo.

     Como podia estar Dante envolto —nem sequer remotamente— em um ataque como o que descrevia Ben? Era verdade que quando chegou a sua casa ontem à noite carregado com essas armas e sangrando, evidentemente por causa de alguma briga, ele havia dito que perseguia um traficante de drogas. Certamente podia ter estado referindo-se a Ben, Tess tinha que reconhecer, embora com tristeza, que não lhe custava muito imaginar a Ben recaindo em seus velhos vícios.

     Mas o que estava dizendo agora não tinha nenhum sentido. Acaso os homens podiam converter-se em monstros com presas? Comportar-se com uma ferocidade que recordava a dos filmes de terror? Essas coisas não passavam na vida real, nem sequer na mais crua das realidades. Simplesmente era impossível.

     Tess se surpreendeu a si mesmo em pé frente à escultura coberta em que tinha estado trabalhando a noite anterior, essa que se parecia com Dante. Essa que tinha quebrado e que provavelmente teria que jogar. Tinha cometido um engano com sua boca, não era isso? Tinha-lhe dado uma espécie de expressão de desprezo que não ia para nada com ele.

     Agora seus dedos tremiam enquanto retirava a parte de tecido que cobria a peça. Uma sensação de confusão e um estranho e persistente temor se acumularam em seu estômago como formando uma pedra enquanto retirava o tecido do busto. Ficou sem respiração quando viu o que tinha feito: com seu engano tinha dado a Dante um aspecto selvagem e quase animal... diretamente provocado pelos afiados caninos que convertiam seu sorriso em uma feroz expressão de desprezo.

     Inexplicavelmente, tinha posta presas nele.

     «Estou realmente assustado, Tess. Pelos dois», ouviu-se dizer a voz do Ben através do alto-falante da secretária eletrônica. «Seja como for, manten afastada desses tipos.»

    

     Dante tomou suas adagas Malebranche, uma em cada mão, com o aço ainda cintilando sob as luzes fluorescentes das instalações de treinamento do recinto. Fez-a girar a uma velocidade cegadora e as cravou com força no manequim de polímero que empregava como alvo, provocando dois nítidos cortes de faca que atravessaram vários centímetros o grosso amparo de plástico. Com um rugido, deu um giro e se dirigiu para ali para empreender um ataque maior.

     Precisava sentir ao menos a aparência do combate, porque se permanecia sentado durante mais de um segundo, ia matar a alguém. O primeiro da lista naquele momento era o agente Darkhaven Sterling Chase. Ben Sullivan o seguia de perto. Diabos, se pudesse carregar aos dois de uma vez, muito melhor.

     Estava furioso desde que tinha voltado para recinto e se inteirou de que nem o agente nem o traficante de carmesim tinham feito sua aparição. Lucan e outros no momento concediam a Chase o benefício da dúvida, mas Dante tinha nas tripas a sensação de que Chase, pelas razões que fossem, negou-se de maneira completamente voluntária a cumprir sua ordem de pôr a Ben Sullivan sob custódia no recinto.

     Dante queria averiguar o que tinha passado, mas todas as chamadas telefônicas, mensagens e chamadas à busca que se fez ao agente Darkhaven tinham ficado sem resposta. Infelizmente, o interrogatório em pessoa teria que esperar até o anoitecer.

     «E para isso faltam aproximadamente dez malditas horas», pensou Dante, propinando outro brutal ataque ao manequim.

     A espera se fazia ainda mais insuportável pelo fato de que tampouco podia encontrar a Tess. Tinha chamado seu apartamento na primeira hora da manhã, mas pelo visto tinha saído a trabalhar. Esperava que se achasse a salvo. Caso que Chase não tivesse matado a Ben Sullivan, o humano podia estar solto nas ruas, e isso significava que podia encontrar-se com Tess. Dante não acreditava que seu ex-namorado forsse lhe fazer mal, mas não tinha nenhuma vontades de assumir esse risco.

     Precisava trazê-la ali, lhe explicar tudo o que tinha passado, incluindo quem era ele realmente e reconhecendo que a tinha envolto em meio dessa guerra entre a estirpe e seus inimigos.

     Faria-o essa mesma noite. Já tinha preparado o cenário com a nota que tinha deixado junto a sua cama, mas agora sua sensação de urgência não fazia mais que aumentar. Desejava que já parecesse, odiava achar-se tão longe afastado dela e ter que esperar a que chegasse a noite.

     Com um rugido, atacou a seu alvo outra vez, movendo as mãos tão rápido que nem ele mesmo pôde lhes seguir o rastro. A certa distancia atrás dele, ouviu que se abriam as portas de cristal das instalações de treinamento, mas estava tão enfrascado em sua própria raiva e frustração que lhe dava igual se tinha público. Continuou fatiando e atiçando e encetando-se com seu alvo até que acabou ofegando pelo esforço, com um brilho de suor quecobria seu peito nu e sua frente. Finalmente se deteve, assombrado pela intensidade de sua fúria. O manequim de polímero tinha ficado destroçado, com a maior parte dos pedaços feitos migalhas a seus pés.

     —Bonito trabalho —disse Lucan alargando as sílabas do outro extremo das instalações.

— Tem algo pessoal contra do plástico ou é só um aquecimento para esta noite?

     Exalando uma maldição, Dante volteou as adagas entre os dedos, deixando que as curvas de metal dançassem antes de colocar as duas armas nas capas que levava sujeitas aos quadris, deu-se a volta para olhar de frente ao líder da Ordem, que estava apoiado contra uma vitrine cheia de armas e o olhava com um ar sério em suas duras facções.

     —Temos algumas notícias —disse Lucan, obviamente esperando que não as ia tomar muito bem.

— Gideon conseguiu entrar na base de dados do pessoal da agência da Ordem dos Darkhaven. Resulta que o agente Sterling Chase já não trabalha para eles. Suspenderam-no do serviço o mês passado, depois de quase vinte e cinco impecáveis anos de carreira.

     —Despediram-no?

     Lucan assentiu.

     —Por insubordinação e rechaço flagrante a seguir as diretivas da agência, conforme diz o relatório.

     Dante soltou um sorriso diabólico enquanto se secava com uma toalha.

     —Assim que o agente Sterling depois de tudo não resultou ser de confiança. Maldita seja, sabia que havia algo estranho nesse tipo. Esteve jogando conosco todo o tempo. Por que? O que anda procurando?

     Lucan se encolheu de ombros despreocupadamente.

     —Talvez nos necessitava para aproximar-se do traficante de carmesim. Quem nos diz que não se carregou a esse tipo ontem à noite? Talvez perseguia algum tipo de vingança pessoal.

     —Talvez. Não sei, mas tenho que averiguá-lo. —Dante esclareceu garganta, sentindo-se de repente incômodo em presença de um vampiro maior que tinha sido tanto tempo um camarada de armas... um amigo, de fato.

— Escuta, Lucan. Não estive exatamente jogando limpo ultimamente. Ocorreu algo... a noite que esses renegados quase acabaram comigo no rio. Eu... fui parar na habitação traseira de uma clínica de animais. Havia uma mulher, trabalhando até tarde. Necessitava desesperadamente sangue, e ela era a única pessoa que havia ao redor.

     Lucan franziu o cenho.

     —Matou-a ?

     —Não. Estava fora de mim, mas não cheguei tão longe. Embora sim o bastante longe. Não me dava conta do que tinha feito até que já era muito tarde. Quando vi a marca em sua mão...

     —OH, Deus, Dante. —O enorme varão o olhava fixamente, com seus olhos cinzas cravados nele.

— Bebeu de uma companheira de sangue?

     —Sim. chama-se Tess.

     —Ela sabe? O há dito?

     Dante negou com a cabeça.

     —Não sabe nada ainda. Apaguei sua memória essa noite, mas estive... passando tempo com ela. Muito tempo. Tenho que lhe explicar o que lhe tenho feito, Lucan. Ela merece saber a verdade. Inclusive se acaba me odiando, coisa que não me surpreenderia.

     Lucan afiou seu olhar ardiloso.

     —Ela te importa.

     —Deus, sim, muito. —Dante deixou escapar um feliz sorriso.

— Te asseguro que não me esperava isto, pode me acreditar. E para te ser honesto, não sei o que vou fazer. Não sou exatamente o casal ideal.

     —E crê que eu o sou? —perguntou Lucan com ironia.

     Fazia tão somente uns poucos meses Lucan tinha passado por uma batalha similar, ao apaixonar-se por uma mulher que levava a marca de uma companheira de sangue. Dante não sabia exatamente o que tinha feito Lucan para conquistar a Gabrielle, mas uma parte dele invejava o comprido futuro que o casal compartilharia. Quão único Dante podia esperar era uma morte que levava um par de séculos esquivando.

     —Não sei o que vai passar, mas preciso contar-lhe tudo. Eu gostaria de trazê-la aqui esta noite, talvez isso ajude a que tudo cobre sentido. —passou-se uma mão pelo cabelo úmido.

— Diabos, talvez sou tão pouca coisa que preciso saber que tenho —esteve a ponto de dizer a «minha família»— a Ordem me apoiando.

     Lucan sorriu, assentindo lentamente.

     —Sempre a terá —disse, aproximando-se para dar a Dante uma palmada no ombro.

— Tenho que te dizer que estou ansioso por conhecer a mulher capaz de assustar a um dos mais ferozes guerreiros que conheço.

     Dante-riu.

     —Ela é magnífica, Lucan. Maldita seja, é tão incrivelmente magnífica.

     —Quando ficar o sol, leve a Tegan contigo para ir interrogar Chase. Traz o de volta aqui em uma peça, está claro? Logo irás arrumar as coisas com sua companheira de sangue.

     —Eu posso arrumar isso com o Chase —disse Dante.

— É da outra parte do que não estou tão seguro. Não tem nenhum conselho para me dar, Lucan?

     —Claro que sim. —O vampiro grunhiu, e mostrou um sorriso ironico e algo escura.

— Limpe o pó dos joelhos, irmão, porque talvez acabe te arrastando sobre eles antes de que a noite tenha terminado.

 

     Tess teve um dia cheio de consultas e visitas de pacientes na clínica, o qual agradeceu, já que a ajudava a ter outra coisa na mente além da perturbadora mensagem telefônica do Ben. Entretanto, era impossível esquecer completamente sua chamada. Era evidente que se colocou a sérios problemas, estava ferido e sangrando.

     Além disso, ao que parece tinha desaparecido.

     Tinha-o chamado em seu apartamento várias vezes, e também ao seu telefone móvel e aos hospitais da zona, mas não havia seus indícios em nenhuma parte. Se tivesse sabido como ou onde contatar com seus pais, também o teria tentado, embora a probabilidade de que Ben aparecesse por aí era quase nula.

     Tal como estavam as coisas, a única idéia que lhe ocorria era passar por sua casa depois do trabalho e ver se ali encontrava algum rastro dele. Não tinha muitas esperanças a respeito, mas que alternativa ficava?

     —Nora, o paciente da sala dois necessita umas análises completas e também terá que recolher umas amostra de urina —disse Tess ao sair da sala de reconhecimento médico.

— Poderá te encarregar disso enquanto eu examino as radiografias de nosso pastor escocês com as articulações inflamadas?

     —De acordo.

     —Obrigado.

     Enquanto analisava as radiografias do seguinte cão, soou seu móvel no bolso da bata do laboratório. Vibrou contra sua coxa como as asas de um pássaro. Tirou-o e comprovou a identificação para ver se era ser Ben. Tratava-se de uma identidade oculta.

     «Ai, Deus.»

     Sabia quem era, tinha que ser ele. Tinha estado inundada em um estado de ânimo atroz, uma mescla de antecipação e temor, durante toda a manhã, sabendo que Dante ia chamar. Tinha-o feito pela manhã cedo quando estava a ponto de sair de seu apartamento, mas ela deixou que a chamada entrasse diretamente na secretaria de voz. Não estava preparada para falar com ele naquele momento; e tampouco estava muito segura de está-lo agora.

     Tess percorreu o vestíbulo até chegar ao seu escritório e fechou a porta, sentindo o peso da coluna vertebral contra o frio do metal. O telefone tremia em sua mão enquanto soava pela quinta e provavelmente última vez. Fechou os olhos e pulsou o botão para responder.

     —Olá?

     —Olá, meu anjo.

     O som da voz grave e deliciosa de Dante a transpassou, fluindo lentamente. Ela não queria sentir esse calor que se derramava por seus braços e suas pernas e se encharcava no centro de seu ser, mas ali estava, derretendo os borde de sua resolução.

      —Tudo bem? —perguntou ele com atitude preocupada e protetora, ao advertir que ela ficava calada.

— Segue estando comigo ou te perdi?

     Tess suspirou, sem saber o que responder.

     —Tess? O que te passa?

     Durante breves mas eternos segundos, quão único conseguiu foi tomar ar e soltá-lo com força. Não sabia muito bem por onde começar e lhe aterrava pensar como terminaria tudo. Mil perguntas atormentavam sua mente, mil dúvidas curtas a partir do momento em que escutou a estranha mensagem do Ben.

     Uma parte dela desconfiava das coisas tão descabeladas que tinha contado Ben; sua parte racional, essa que sabia que era impossível que houvesse monstros soltos pelas ruas de Boston.

     Não obstante, havia outra parte dela que não estava tão disposta a descartar o inexplicável, essas coisas que existiam com ou sem a pulcra lógica ou a ciência convencional.

     —Tess —disse Dante, interrompendo o silêncio.

— Sabe que pode falar comigo.

     —Sei? —disse, obtendo por fim articular umas palavras.

— Não estou muito segura do que sei nestes momentos, Dante. Não sei o que pensar... sobre nada.

     Dante soltou um suspiro, uma maldição cuspida em italiano.

     —O que passou? Está... ferida? Meu Deus, se te houver tocado...

     Tess soltou uma risada zombadora.

     —Suponho que esse comentário já responde a uma de minhas perguntas. Estamos falando do Ben, não é certo? Era ele o traficante de drogas que procurava ontem à noite?

     Houve um breve momento de vacilação.

     —Viu-o hoje, Tess? Viu-o em algum momento desde que você e eu estivemos juntos ontem à noite?

     —Não —disse ela.

— Não o vi, Dante.

     —Mas falou com ele. Quando?

     —Chamou-me ontem à noite e me deixou uma mensagem na secretária eletrônica, evidentemente enquanto estávamos... —Moveu a cabeça, sem querer recordar o bem que se havia sentido estando na cama entre os braços de Dante, a sensação de paz e amparo que a tinha repleto. Agora o único que sentia era o frio que a impregnava.

— É por isso que estiveste transando comigo, porque me necessitava para poder estar perto dele?

     —Não, por Deus. É muito mais complicado que isso...

     —Mais complicado? Estiveste jogando comigo durante todo este tempo? Ou o jogo de verdade começou a noite em que apareceu aqui com seu cão e nós...? Meu Deus, agora inclusive isso se entende... Em realidade, Harvard não é seu cão, não é assim? O que fez? Encontrou algum cão guia de ruas e o usou como isca para me envolver em seu jogo doentio?

     —Tess, por favor. Eu quero explicar isso      

     —Adiante. Sou toda ouvidos.

     —Assim não —grunhiu Dante.

— Não penso fazê-lo por telefone. —Ela sentiu uma intensa tensão que crescia dentro dele enquanto falava. Quase o via, dando passos ao outro lado da linha, crispado de energia e inquietação, suas negras sobrancelhas franzidas sobre os olhos, seu forte emano obstinada ao crânio.

—Escute-me. Tem que te manter afastada do Ben Sullivan. Está metido em uma coisa muito perigosa. Não quero que te aproxime dele por nenhum motivo. Entende-me?

     —Que curioso. É exatamente o que ele me disse de você. Disse muitas coisas, em realidade. Coisas bastante loucas, como que seu companheiro o assaltou brutalmente ontem de noite.

     —Como?

     —Disse que o tinham mordido, Dante. Pode me explicar isso? Disse-me que o homem com o que andava quando entrou no apartamento do Ben o levou em um carro e depois o atacou com grande violência. Segundo Ben, mordeu-lhe no pescoço.

     —Maldito bode irreverente.

     —Pode ser certo? —perguntou, horrorizada ao ver que não tinha feito nem o intento de negar.

—Sabe onde está Ben? Não sei nada dele desde essa chamada. Têm-lhe feito algo você ou seus amigos? Tenho que vê-lo.

     —Não! Não sei onde está, Tess, mas tem que me prometer que se manterá afastada dele.

     Tess se sentia fatal, assustada e confundida.

     —O que está passando, Dante? No que está metido em realidade?

     —Olhe, Tess. Necessito que vá a algum lugar seguro. Agora mesmo. Vai a um hotel, ou a um edifício público, a qualquer lugar... Simplesmente vai, agora mesmo, e fique ali até que possa ir e te recolher esta mesma noite.

     Tess soltou uma risada, mas era um som sem humor que chiava em seus próprios ouvidos.

     —Estou trabalhando, Dante. E embora não o estivesse fazendo, não acredito que iria a nenhum lugar para te esperar. Não até que compreenda o que está acontecendo aqui.

     —Direi-lhe isso, Tess, prometo-lhe isso. Tinha a intenção de lhe dizer isso embora nada disto tivesse ocorrido.

     —Perfeito. Justamente hoje, tenho o dia apertadíssimo, mas posso escapar durante um par de horas para a comida. Se quer falar comigo, terá que vir então.

     —Eu... Maldita seja. É que não posso ir agora, Tess. Simplesmente... não posso. Tem que ser esta noite. Tem que confiar em mim.

     —Confiar em você —sussurrou, fechando os olhos e deixando cair a cabeça contra a porta de seu escritório.

— Me parece que isso é algo que não posso fazer neste momento, Dante. Tenho que ir. Adeus.

     Cortou a comunicação e apagou o móvel. Não queria falar mais. Com ninguém.

     Enquanto Tess cruzava o despacho para deixar o móvel sobre o escritório, seu olhar se fixou em outra coisa que tinha estado inquietando-a desde que a encontrou essa mesma manhã. Tratava-se de uma memória USB, um pendrive portátil para guardar dados. Tinha-o descoberto sob um envelope da mesa de atenção médica em uma das salas da clínica; a mesma sala onde tinha estado Ben no dia anterior, quando ela o tinha pego de maneira imprevista e ele tinha inventado a desculpa de que devia reparar a mesa com elevador hidráulico.

     Já então Tess tinha suspeitado que não dizia a verdade... sobre muitas coisas. Agora estava totalmente segura disso. Mas a pergunta que se fazia era: Por que?

    

     Em um furioso arrebatamento mental, Dante olhou com raiva seu telefone móvel e o lançou violentamente contra a parede de sua casa. Rompeu-se com o impacto, estalando em uma chuva de faíscas e fumaça ao desintegrar-se em uma centena de pequenos pedaços. A destruição lhe resultou satisfatória, embora de uma satisfação efêmera. Mas não fez nada para acalmar sua ira, toda ela dirigida contra si mesmo.

     Dante voltou a caminhar acima e abaixo pela habitação, como tinha estado fazendo enquanto falava por telefone com Tess. Precisava seguir movendo-se. Só tinha que manter ativos os membros, a mente alerta.

     Nas últimas horas o tinha quebrado tudo espantosamente. Embora nunca havia sentido nem um indício de remorso por pertencer a estirpe, seu sangue de vampiro fervia agora com frustração pelo fato de ver-se apanhado aí dentro. Era incapaz de arrumar as coisas com Tess até que o sol por fim desaparecesse sob o horizonte lhe permitindo mover-se com liberdade pelo mundo.

     Pensou que a espera o ia desenquadrar. Quase o fez.

     À hora em que foi procurar a Tegan nas instalações de treinamento, poucos minutos antes do pôr-do-sol, sentia já o calor e o comichão na pele, esticada por todo o corpo. Sentia um formigamento de desejo de entrar em combate. Havia uma reverberação em seus ouvidos, um zumbido incessante como um enxame de abelhas em seu sangue.

     —Está preparado para um pouco de ação, Tegan?

     O guerreiro de cabelo leonado levantou o olhar da Beretta que estava carregando e lhe dirigiu um gélido sorriso enquanto arrumava o carregador.

     —Vamos.

     Juntos avançaram pelo sinuoso corredor do recinto para o elevador que os levaria a garagem da Ordem, ao nível da rua.

     Enquanto se fechavam as portas, os orifícios do nariz de Dante sentiram o comichão produzido pelo aroma acre da fumaça. Olhou a Tegan, mas o outro macho parecia não dar-se conta, olhava adiante com seus olhos verdes, sempre serenos, sem pestanejar e sem mostrar nenhuma emoção.

     A cabine do elevador começou a subir lentamente. Dante sentiu o intenso calor de uma chama fantasmal, que parecia lambê-lo, só esperando a que deixasse de correr para apanhá-lo definitivamente.

     Ele sabia o que era, é obvio. A visão da morte o tinha estado perseguindo com o passar do dia, mas tinha conseguido rechaçá-la, negando-se a render-se a essa tortura sensorial, já que necessitava sua cabeça plenamente concentrada essa noite.

     Mas agora, enquanto o elevador se aproximava de seu destino, a premonição estalou sobre a cabeça de Dante como um martelo. Caiu sobre um joelho, fundo pelo golpe.

     —Deus —disse Tegan detrás dele, e Dante sentiu como o sujeitava do braço para evitar que se desabasse sobre o chão do elevador.

     —Que diabos passa? Está bem?

     Dante não era capaz de responder. Seu olhar se encheu com negras nuvens de fumaça rasgadas por radiantes chama. Sobre as crepitações e o rugido do fogo que se aproximava, ouvia que alguém lhe falava —se burlava dele, ao parecer—, uma voz inarticulada, quase inaudível. Isto era algo novo, um detalhe mais no escorregadio pesadelo que tinha chegado a conhecer tão bem.

     Pestanejou para tentar sair da névoa, lutando por aferrar-se à presente, por manter-se consciente. Percebeu o rosto do Tegan diante dele. Merda, devia ter mau aspecto, porque o guerreiro, célebre por sua desumana ausência de emoção, de repente se tornou para trás, apartando sua mão do braço de Dante com um vaio de horror. Detrás de sua dolorida careta, as brancas pontas das presas do Tegan brilhavam. As loiras sobrancelhas descendiam sobre seus olhos esmeralda cada vez mais estreitos.

     —Não posso... respirar... —gemeu Dante, com voz ofegante. Cada vez que inalava, arrastava mais fumaça fantasmal para os pulmões. Estava-se asfixiando.

     —Meu Deus... morro...

     Os olhos do Tegan o penetraram, afiados como a pederneira. Seu olhar não delatava simpatia. Tinha uma força que o manteria firme, Dante sabia.

     —Agüenta —exigiu Tegan.

—É uma visão, não é a realidade. Ainda não, ao menos, por agora, fique ali dentro, agüenta-o até o fim. Volta atrás tudo o que possa, e absorve todos os detalhes.

     Dante permitiu que as imagens voltassem a alagá-lo, sabendo que Tegan tinha razão. Tinha que abrir sua mente à dor e ao medo para poder ver mais à frente e chegar a verdade.

     Ofegante, com a pele ardendo do calor do inferno que o rodeava, Dante se empenhou em concentrar-se em seu entorno. Em afundar de tudo no instante. Levou sua mente para trás, do pior da visão, detendo assim o movimento e logo invertendo-o.

     As chamas começaram a afastar-se. As enormes e sujas nuvens de cinza negra se reduziram a finas espirais de fumaça cinza que se atiam ao teto. Dante voltava a respirar, mas o medo seguia lhe bloqueando a garganta. Dava-se conta de que esses iam ser os últimos minutos de sua vida.

     Alguém estava com ele na habitação. Um macho, a julgar pelo aroma. Dante estava convexo sobre algo escorregadio e gélido enquanto seu captor lhe torcia as mãos detrás das costas e lhe atava os pulsos com um fio de arame. Devia ter podido rompê-lo como se se tratasse de barbante, mas não podia mover-se.

     Sua força não lhe servia para nada. Continuando, o captor atou os pés de Dante, e logo atou também suas mãos e o deixou boca baixo sobre um bloco de metal, como se se tratasse de um porco.

     Soou um estrondo desde algum lugar fora da habitação. Ouvia uivos como de bruxas e cheirava muito perto a peste azeda da morte.

     E logo o sussurro de uma brincadeira soou junto a seu ouvido.

     —Sabe uma coisa? Pensava que te matar ia ser difícil. Mas me puseste isso muito fácil.

     A voz se dissolveu em uma risada complacente enquanto o captor de Dante se aproximava aonde sua cabeça se sobressaía do bordo da plataforma metálica onde o tinha colocado. Umas pernas cobertas de tecido de jeans, dobradas ao nível do joelho, e lentamente o torso de que queria matá-lo, entraram em seu campo de visão. Uns dedos ásperos lhe agarraram o cabelo e lhe levantaram o rosto para olhar o de frente no instante antes de que a visão começasse a dissolver de tudo, tão rápido como tinha chegado...

   «Maldita seja.»

     —Ben Sullivan. —Dante cuspiu o nome, como se fosse cinza sobre sua língua. Liberado das garras da premonição, conseguiu sentar-se sobre o chão.

     Limpou-se a pátina de suor da frente enquanto Tegan o olhava atentamente, severo em sua aceitação.

     —Filho da puta. É o traficante de carmesim, Ben Sullivan. Não acredito. Merda. Esse humano é ele quem me vai matar.

     Tegan moveu a cabeça com ar grave.

     —A não ser que o nós matemos primeiro.

     Dante se esforçou por levantar-se, apoiando uma palma contra a parede de concreto ao lado do elevador enquanto lutava por recuperar o fôlego. Por debaixo da fadiga, fervia de raiva, para o Ben Sullivan e para o ex-agente Sterling Chase, que evidentemente tinha posto em liberdade ao bode.

     —Saiamos daqui de uma maldita vez —rugiu, enquanto já cruzava a enorme garagem, acariciando com os dedos uma de seus adagas Malebranche.

  

     Os seqüestradores do Ben o deixaram sentado toda uma eternidade em uma habitação sem iluminação e sem janelas, fechada com chave. Ele continuava esperando que aparecesse aquele ao que chamavam amo; esse indivíduo sem nome e sem rosto que tinha estado financiando a produção e distribuição do carmesim. Tinham transcorrido quase vinte e quatro horas desde que o tinham recolhido e levado até ali. Ninguém tinha acudido ainda, mas o fariam. E em um escuro rincão de sua mente, Ben sabia que quando o fizessem ele não sairia com vida daquela confrontação.

     Levantou-se do chão e caminhou pelo concreto nu até a porta de aço fechada que havia ao outro extremo da habitação. Doía-lhe a cabeça pelos golpes que tinha recebido antes de ser conduzido aquele lugar. As feridas de seu pescoço e de seu nariz quebrado tinham formado uma crosta de sangue seca e lhe doíam horrivelmente. Ben apoiou o ouvido na porta de frio metal e escutou ao outro lado um movimento de alguém que se aproximava. Um ruído de passos pesados se ouvia cada vez mais e mais perto. Eram pisadas resolvidas que pertenciam a mais de um homem, acentuadas com o tinido metálico de cadeias e de armas.

     Ben retrocedeu tanto como pôde na escuridão da cela onde se achava cativo. Ouviu-se o ruído de uma chave na fechadura, logo a porta se abriu de repente e os dois enormes guardas que haviam o trazido até ali entraram na habitação.

     —Já está preparado para te receber —grunhiu um dos dois valentões. Os dois homens atiraram com força dele e o empurraram para frente, fazendo-o sair pela porta e avançar por um corredor sombrio. Ben suspeitava que haviam o trazido para algum tipo de armazém, apoiando-se na tosca habitação onde o tinham tido encerrado até agora. Mas seus seqüestradores lhe fizeram subir um lance de escadas que o conduziram ao que parecia ser uma opulenta mansão do século XIX. A madeira polida brilhava sob uma luz tênue e elegante. Sob seus sapatos enlameados, estendia-se um tapete persa com um adornado desenho em cor dourada, púrpura e vermelho intenso. Por cima de sua cabeça, no vestíbulo onde o tinham levado seus seqüestradores, cintilava um grande lustre de cristal.

     Por um instante, o estado de alarme do Ben diminuiu. Talvez, finalmente, tudo sairia bem. Ultimamente estava fundo até o pescoço, mas esse não parecia ser o pesadelo que estava esperando. Não se tratava de uma câmara de tortura e horrores, como ele tinha temido.

     Ante ele, um conjunto de portas duplas abertas emolduravam outra habitação impressionante. Ben foi conduzido até ali por seus guardas, quem o sujeitou com firmeza nesse salão espaçoso e formal. O mobiliário, os tapetes, as pinturas originais das paredes... tudo era sinal de uma grande riqueza. Uma riqueza antiga, esse tipo de luxo que se obtém só através dos séculos.

    Rodeado de toda essa opulência, sentado como um escuro rei detrás de um enorme escritório de mogno esculpida, havia um homem com um luxuoso traje negro e escuros óculos de sol.

     A Ben começaram a suar as palmas das mãos no instante em que pôs os olhos sobre esse tipo. Era enorme, com largos ombros e tensos debaixo da impecável queda de sua jaqueta. Levava uma camisa branca muito bem engomada com o pescoço desabotoado, mas a Ben pareceu que mais que um sinal de descuido era um sinal de impaciência. Uma espécie de ameaça impregnava o ar como uma espessa nuvem, e uma parte das esperanças do Ben se extinguiram.

     Esclareceu-se garganta.

     —Eu... hum... me alegro de ter por fim a oportunidade de lhe conhecer —disse, odiando o tremor que se notava em sua voz.

— Temos que falar... sobre o carmesim...

     —Efetivamente, assim é. —A resposta profunda e sufocante interrompeu a Ben com uma aparente calma. Mas apesar dos escuros óculos que levava esse homem, podia advertir-se sua fúria.

— Pelo visto eu não sou o único ao que esteve fazendo zangar ultimamente, senhor Sullivan. Tem uma ferida muito desagradável no pescoço.

     —Atacaram-me. Um maldito filho da puta tentou me rachar a garganta.

     O tenebroso chefe do Ben grunhiu com um desinteresse mais que evidente.

     —Quem faria uma coisa assim?

     —Um vampiro —disse Ben, consciente do louco que devia soar. Mas o que tinha ocorrido a ele junto ao rio era só a ponta de um iceberg muito preocupante.

— É disso do que preciso lhe falar. Como lhe disse quando lhe chamei a outra noite, há um problema muito grande com o carmesim. Está... provocando coisas nas pessoas. Coisas más. Converte-os em lunáticos sedentos de sangue.

     —É obvio que isso ocorre, senhor Sullivan. Disso é precisamente do que se trata.

     —Como? —A incredulidade lhe formou um nó de angústia no estômago.

— Do que está você falando? Eu fabriquei o carmesim. Sei o que se supõe que deve provocar. É só um estimulante moderado.

     —Para os humanos, sim. —O homem de cabelo escuro ficou em pé lentamente e logo se moveu para um lado do gigantesco escritório.

— Para outros, tal como você tem descoberto, é muito mais.

     Enquanto falava, olhou para as portas abertas da habitação. Outro casal de guardas, armados até os dentes, permanecia em pé junto à soleira, com o cabelo desgrenhado e despenteado e uns olhos ferozes que pareciam brasas ardentes sob as espessas sobrancelhas. A débil luz das velas da habitação, Ben acreditou ver o brilho de umas presas por detrás dos lábios dos guardas. Voltou a dirigir o olhar com nervosismo a seu chefe.

     —Infelizmente, tenho descoberto algo que me preocupa, senhor Sullivan. Depois de sua chamada a outra noite, alguns de meus sócios visitaram seu laboratório em Boston. Procuraram em seu computador e suas gravações, mas imagine minha decepção para ouvir que não puderam encontrar a fórmula do carmesim. Como o explica você?

     Ben sustentou ao homem esse olhar que se cravava nele através dos óculos de sol, a tão somente uns metro de distância.

     —Nunca guardei a autêntica fórmula no laboratório. Pensei que estaria mais segura no escritório, comigo.

     —Tem que me dar isso. Havia uma pequena inflexão em suas palavras e nenhum movimento no poderoso corpo, que permanecia em pé ante ele como uma parede infranqueável.

—Agora, senhor Sullivan.

     —Não a tenho. É a pura verdade.

     —Onde está?

     A Ben lhe gelava a língua. Precisava negociar um pouco, e a fórmula era tudo o que tinha. Além disso, não ia lançar a esses valentões em cima de Tess lhes dizendo que tinha oculto a fórmula do carmesim em sua clínica. Não pretendia deixá-la aí durante muito tempo, a não ser somente até organizar sua situação em toda aquela confusão. Desgraçadamente, agora era muito tarde para reparar esse engano. Apesar de que salvar sua próprio pele era sua principal preocupação naquele momento, a opção de colocar Tess em meio de todo aquilo estava fora de consideração.

     —Posso conseguir a disse Ben—, mas terá que deixar que me parta. Solucionemos isto como cavalheiros. Cortemos todos nossos laços aqui e agora e separemos nossos caminhos. Esqueçamos que nos conhecemos.

     Uma tirante sorriso apareceu nos lábios de seu chefe.

     —Não trate de negociar comigo. Está você por debaixo de mim... humano.

     Ben tragou saliva com dificuldade. Queria acreditar que esse tipo era tão somente uma espécie de demente que fantasiava sendo um vampiro. Um cara louco que tinha muita massa mas pouca prudência. Exceto ele tinha visto o que o carmesim tinha provocado a esse menino a outra noite. Essa horripilante transformação tinha sido real, por muito duro que fosse aceitá-lo. E o espantoso e abrasador talho de seu pescoço era real também.

     O pânico começou a martelar com força em seu peito.

     —Olhe, não sei o que está acontecendo aqui. E francamente, não quero sabê-lo. Só quero sair daqui de uma vez.

     —Excelente. Então não porá pegas para cooperar. Me dê a fórmula.

     —Já disse. Não a tenho.

     —Então terá que refazê-la, senhor Sullivan. —Fez um gesto com a cabeça para que entrassem os dois guardas armados.

— Me tomei o atrevimento de trazer aqui seu equipamento de laboratório. Tudo o que precisa está aqui, incluindo um sujeito que servirá para provar o produto acabado. Meus sócios lhe mostrarão o caminho.

     —Espere. —Ben lhe lançou um olhar por cima do ombro enquanto os guardas começavam a leva-lo da habitação.

— Você não entende. A fórmula é... complexa. Não a tenho memorizada. Refazê-la poderia me levar vários dias...

     —Não tem mais que duas horas, senhor Sullivan.

     Uma violentas mãos agarraram Ben com firmeza e o arrastaram para uma escada descendente que se abria ante eles, tão negra e interminável como a noite.

    

     Chase se sujeitou com uma correia as últimas armas e logo comprovou as reservas de munição que ficavam. Tinha uma pistola carregada com balas convencionais e outra que continha as especiais de titânio que lhe tinham dado os guerreiros para o propósito rápido de matar renegados. A verdade é que esperava não ter necessidade de usar estas, mas se tinha que abrir fogo contra uma dúzia de ferozes vampiros para encontrar seu sobrinho certamente que o faria.

     Agarrou sua jaqueta de lã verde escura que pendurava de um cabide junto à porta e se dirigiu pelo corredor para suas habitações privadas. Elise estava ali; quase se dispôs a correr para ela pelo desejo de estar a seu lado.

     —Sterling... olá. Estiveste-me evitando? Queria falar contigo. —Seus olhos cor lavanda lhe jogaram uma rápida olhada. Franziu o cenho ao ver a série de armas, munições e facas que rodeavam seus quadris e entrecruzavam seu peito. Ele advertiu sua apreensão, pôde cheirar o repentino matiz amargo de temor que se mesclava com o delicado aroma .

— Quantas armas terríveis. Tanto perigo há fora?

     —Não se preocupe por isso —lhe disse ele.

— Só segue rezando para que Camden retorne logo a casa. Eu me ocuparei do resto.

     Ela recolheu a cauda escarlate de sua faixa de viúva e acariciou distraídamente a seda com os dedos.

     —É disso precisamente do que queria te falar, Sterling. Algumas das outras mulheres e eu estivemos falando a respeito do que podemos fazer por nossos filhos desaparecidos. A união faz a força, por isso pensamos que talvez se nos juntarmos... Nós gostaríamos de participar de buscas diurnas pelo porto e pelos túneis subterrâneos. Poderíamos olhar em lugares onde talvez nossos filhos podem se haver coberto para proteger do sol...

     —Rotundamente não.

    Chase não queria interrompê-la tão bruscamente, mas a idéia de que Elise deixasse o Refúgio Escuro durante o dia para aventurar-se nas piores zonas da cidade lhe gelava o sangue nas veias. De fazê-lo, não contaria com seu amparo nem a dos outros membros da estirpe até que o sol ficasse, e embora os renegados, pela mesma razão, não representariam um perigo, sempre existiria o risco de topar-se com seus secuaces.

     —Sinto muito, mas essa idéia fica descartada.

     Ela, por um momento, abriu os olhos com surpresa. Logo, rapidamente, baixou o olhar, assentindo com educação, embora ele podia ver seu ressentimento por debaixo do verniz de respeito. Como seu familiar mais próximo, embora fora familiar político, a lei da estirpe outorgava a Chase o direito de impor o toque de silêncio a luz do dia. Tratava-se de uma antiga medida que existia da origem dos Refúgios Ocultos, fazia quase mil anos. Chase nunca a tinha imposto, e embora se sentia como um estúpido fazendo-o agora, não podia permitir que ela arriscasse sua vida enquanto ele pudesse ajudá-la e vigiá-la.

     —Crê que meu irmão aprovaria o que desejas fazer? —perguntou Chase, consciente de que Quentin nunca se mostraria de acordo com essa idéia, nem sequer pelo esforço de salvar a seu próprio filho.

— A melhor maneira de ajudar a Camden é ficando aqui, onde eu sei que estará a salvo.

     Elise levantou a cabeça, e esses olhos de um pálido arroxeado brilharam com uma faísca de determinação que ele jamais tinha visto antes neles.

     —Camden não é o único jovem desaparecido. Poderá salvár a todos, Sterling? A ordem dos guerreiros pode salvá-los? —Deixou escapar um débil suspiro.

— Ninguém salvou a Jonás Redmond. Está morto, sabia isso? Sua mãe percebeu que morreu. Cada vez mais nossos filhos estão desaparecendo, morrendo noite detrás noite, e se supõe que não podemos fazer nada mais que ficar aqui sentadas esperando más notícias.

     Chase sentiu que sua mandíbula ficava rígida, —Agora tenho que ir, Elise. Já tem minha resposta sobre este assunto. Sinto muito.

     Passou junto a ela roçando-a, encolhendo-se dentro de sua jaqueta enquanto se afastava. Sabia que ela o estava seguindo; sua saia branca rangia brandamente com cada passo rápido que dava. Mas Chase não se deteve. Tirou as chaves do bolso e abriu a porta principal do Refúgio Escuro, acionando o controle remoto de seu Land Rover prateado Lexus na entrada. O veículo chiou, as luzes se acenderam em resposta mas Chase não pôde ir a nenhuma parte.

     Havia um Range Rover negro bloqueando a avenida, com seu motor parado na escuridão. As janelas estavam defumadas além do legalmente permitido, mas Chase não precisava ver através delas para saber quem havia dentro. Podia sentir a raiva de Dante saindo torrencialmente através do aço e do cristal e chegando até ele como uma fissura no chão causado pelo frio.

     O guerreiro não estava sozinho. Ele e seu companheiro, esse que era frio como uma pedra e se chamava Tegan, saíram do veículo e caminharam sobre a grama. Seus rostos refletiam uma serenidade mortal, mas a ameaça que irradiavam os dois enormes varões era inconfundível.

     Chase ouviu que Elise afogava um grito detrás dele.

—Sterling...

     —Volta dentro —disse ele, mantendo os olhos fixos nos guerreiros.

—Agora, Elise. Tudo está bem.

     —O que ocorre, Sterling? Por que estão aqui?

     —Faz o que te digo, maldita seja! Entra na casa. Tudo irá bem.

     —OH, isso não sei, Harvard. —Dante rondava em torno dele, e essas terríveis e arqueadas adagas em seus quadris brilhavam à luz da lua com cada larga pernada das pernas do guerreiro.

— Eu diria que as coisas foram bem até agora mas vão começar a foder-se. Graças a você. Perdeu a cabeça a outra noite ou o que? Talvez não entendeu o que te disse que fizesse com esse traficante de drogas, é isso? Disse-te que o levasse a patadas até o recinto, mas você creíste que te disse que o deixasse sair caminhando?

     —Não. Não houve nenhum mal-entendido.

     —O que é que estou perdendo, Harvard? —Dante tirou de sua capa uma das adagas e o aço saiu voando com a mesma suavidade que um suspiro. Chase viu aparecer a ponta de suas presas enquanto falava. Um brilhante olhar ambarino se cravou nele como dois raios laser gêmeos.

— Começa a falar rápido, porque não tenho nenhum problema em te arrancar a verdade aqui mesmo diante de uma mulher.

     —Sterling! —gritou Elise.

— Deixa-o em paz!

     Chase voltou a cabeça bem a tempo para vê-la baixar correndo as escadas de tijolo da entrada até o pavimento. Não chegou muito longe. Tegan se moveu como um fantasma, a velocidade de um vampiro era muito superior a dos membros humanos do Elise. O guerreiro a capturou pelo pulso fazendo-a retroceder enquanto ela lutava por liberar-se dele.

     A fúria prendeu no Chase como se um fósforo aceso tivesse caido sobre uma isca seca. Suas presas saíram das gengivas, sua visão se fez mais aguda e suas pupilas se estreitaram com sua transformação. Rugiu, preparado para atacar aos dois guerreiros simplesmente pela ofensa que lhe tinham feito ao tocar a Elise.

     —Solta-a! —grunhiu.

— Maldita seja, ela não tem que ver com isto!

     Empurrou a Dante, mas o vampiro não se moveu.

     —Ao menos agora nos emprestará toda sua atenção, Harvard. —Dante lhe devolveu o empurrão, com a força de um trem de mercadorias a todo vapor. Os pés do Chase deixaram o chão e seu corpo foi impulsionado para trás pela força da raiva de Dante. A fachada de tijolos da residência deteve sua trajetória, lhe golpeando com força a coluna.

     As enormes presas de Dante foram posar se junto ao rosto do Chase, e seus olhos ardiam junto a seu crânio.

     —Onde está Ben Sullivan? E que caralho passa realmente contigo?

     Chase lançou um olhar a Elise, odiando que tivesse que presenciar esse lado tão brutal de seu mundo. Queria-o longe dela. Viu as lágrimas escorregando por suas bochechas, o medo em seus olhos enquanto Tegan a sustentava com tanta frieza contra o aço mortal e o couro que rodeava seu imenso corpo.

     Chase jurou de maneira terminante.

     —Vi-me obrigado a deixar que o humano partisse. Não tive outra eleição.

     —Resposta equivocada —grunhiu Dante, colocando a infernal adaga sob seu queixo.

     —O traficante de carmesim não me servia para nada se ficava encerrado no recinto. Necessitava-o nas ruas, me ajudando a encontrar a alguém... A meu sobrinho. Deixei-o ir para que me ajudasse a encontrar Camden, o filho de meu irmão.

     Dante franziu o cenho, mas baixou um pouco a espada.

     —E o que passa com os outros desaparecidos? Com todos esses meninos aos que Ben Sullivan esteve subministrando droga?

     —Recuperar a Camden é o que me importa. Ele foi minha verdadeira missão do primeiro dia.

     —Maldito desgraçado, mentiu-nos —assobiou o guerreiro.

     Chase enfrentou o olhar ambarino e acusador.

     —Crê que a Ordem se incomodou em me ajudar se tivesse apresentado pedindo ajuda para encontrar a um jovem Darkhaven desaparecido?

     Dante amaldiçoou, em voz baixa e furioso.

     —Alguma vez saberá, verdade?

     Ele agora, tendo entendido algo sobre o código dos guerreiros, tinha a dúvida. Tinha visto de primeira mão que, apesar de seus métodos desumanos e da eficácia que os convertia em uma força letal e misteriosa tanto entre a estirpe como entre os humanos, não careciam de honra. comportavam-se como assassinos implacáveis se era necessário, mas Chase suspeitava que todos, em seu coração, eram homens muito melhores que ele.

     Dante o soltou de repente, logo se deu a volta para dirigir-se com passo irado para o carro, que estava esperando. Ao outro lado da grama, Tegan soltou Elise. O firme olhar do guerreiro permaneceu fixo nela enquanto se afastava tropeçando, ansiosa, e se esfregava as zonas de onde a tinham agarrado.

     —Sobe ao carro, Harvard —disse Dante, assinalando a porta aberta com um olhar que prometia pagar com o inferno se Chase não cooperava.

— Voltará para o recinto. Talvez consiga persuadir a Lucan de que deveríamos te permitir continuar respirando.

    

     Um suor frio se escorria pela nuca do Ben Sullivan ao terminar a primeira amostra de sua nova remessa de carmesim. Não tinha mentido ao dizer que não tinha a fórmula memorizada. Fez tudo o que pôde por recrear a droga no prazo absurdamente curto que lhe tinham dado. Quando ficava apenas meia hora para que expirasse o tempo, recolheu uma dose da substância avermelhada e a levou a sujeito com quem devia prová-la. O jovem, vestido com uns imundos jeans azuis e um sueter de Harvard, estava prisioneiro encadeado a uma cadeira de escritório com rodas, com aspecto fundo, a cabeça baixa e o queixo descansando sobre seu peito.

     Enquanto Ben se aproximava dele, a porta do porão que servia de laboratório improvisado se abriu e entrou seu tenebroso chefe, acompanhado pelos dois guardas armados que tinham estado fiscalizando todo o tempo o progresso do Ben.

     —Não tive tempo de filtrar a mescla —disse Ben, desculpando-se pela taça de substância viscosa que tinha produzido e desejando com todas suas forças não haver-se equivocado com a fórmula.

—O menino não tem muito bom aspecto. E se não puder tragar-lhe .

     Não houve resposta, a não ser só um silêncio mortal e escrutinador.

     Ben soltou o ar com nervosismo e se aproximou do menino. Ajoelhou-se junto à cadeira. Sob um arbusto de cabelo despenteado, uns olhos lânguidos se abriram com dificuldade, logo voltaram a fechar-se. Ben examinou o rosto gasto e amarelado do menino, que provavelmente tinha sido bonito em outro tempo...

     Ah, merda.

     Conhecia aquele menino. Conhecia-o das discotecas... era um cliente habitual... e era também o rosto sorridente que tinha visto na fotografia a noite passada . Qual era seu nome? Cameron ou Camden? Camden, pensou, o menino que se supunha que Ben devia localizar para o psicopata de presas que tinha prometido matá-lo se não lhe agradava. Não é que essa ameaça fora mais séria que aquela a que Ben se enfrentava agora.

     —Passemos a ação, senhor Sullivan.

     Ben agarrou da taça uma colherada de carmesim sem refinar e a pôs na boca ao moço. No instante em que a substância tocou seus lábios, Camden tirou a língua para lamber-se ansiosamente. Fechou a boca em torno da colher e a chupou, parecendo reviver por um instante. Ben se deu conta de que se converteu em um pobre drogado aproximando o focinho a que esperava que fosse sua próxima dose, e uma pontada de remorso o atravessou.

     Ben esperou que o carmesim sortisse efeito.

     Não ocorreu nada.

     Deu a Camden um pouco mais, e logo mais ainda. Continuava sem passar nada. Maldita seja. A fórmula não era correta.

     —Necessito mais tempo —murmurou Ben enquanto a cabeça do menino caía para trás com um gemido.

— Quase a tenho, mas preciso fazer outra prova.

     Levantou-se, deu-se a volta e se sobressaltou ao topar-se com seu perigoso chefe em pé junto a ele olhando-o fixamente. Ben não o tinha ouvido mover-se, entretanto, ali estava, ameaçador. Ben viu seu próprio reflexo gasto nos cristais dos óculos de sol do homem. Parecia desesperado e aterrorizado, um animal esquecido tremendo ante um feroz depredador.

     —Não estamos indo a nenhuma parte, senhor Sullivan. E eu começo a perder a paciência.

     —Disse você duas horas —assinalou Bem.

— Ainda ficam uns minutos...

     —Não há negociação. —A cruel boca se estirou com uma careta de desprezo, revelando as brilhantes pontas de umas afiadas presas.

— O tempo venceu.

     —OH, Deus! —Ben recuou, golpeando a cadeira que havia atrás dele e enviando tanto esta com o menino prisioneiro para trás fazendo um grande estrondo com as rodas giratórias. Tropeçou e caiu com estupidez, só para sentir como uns fortes dedos o agarravam pelos ombros, levantando-o do chão como se não pesasse nada. Ben sentiu que o faziam girar bruscamente e de repente foi arrojado contra a parede mais longínqua. Notou uma dor aguda na parte posterior de seu crânio enquanto se desabava. Aturdido, colocou a mão detrás da cabeça e viu que seus dedos estavam cheios de sangue.

     Quando concentrou seu olhar choroso nas outras pessoas que havia na habitação o coração encolheu de pavor. Os dois guardas o estavam observando, e suas pupilas se estreitaram convertendo-se em duas magras fendas, enquanto que as íris eram de uma cor âmbar brilhante e pareciam focos cravados nele. Um deles abriu a boca deixando escapar um áspero assobio e mostrando umas enormes presas.

     Inclusive Camden, sentado a vários metros, tinha despertado. Os olhos do moço ardiam através de seu arbusto de cabelo e seus lábios se separaram deixando ao descoberto umas compridas e brilhantes presas.

     Mas por muito terríveis que pudessem ser os rostos desses monstros, em realidade não eram nada comparadas com a frieza de gelo com que se aproximava aquele que claramente levava a voz cantante. Caminhou para Ben com passo tranqüilo, os lustrosos sapatos negros avançando silenciosamente sobre o chão de concreto. Elevou a mão e Ben se levantou também, obrigando-se a ficar em pé como se fosse impusionado por umas cordas invisíveis.

     —Por favor —disse Ben com voz entrecortada.

— Seja o que seja o que esteja pensando, não... não o faça, por favor. Posso recuperar a fórmula do carmesim. Eu juro. Farei tudo o que você queira!

     —Sim, senhor Sullivan, assim é.

     Moveu-se tão rápido que Ben não soube o que lhe estava passando até que sentiu a forte dentada de umas presas aferrando-se a seu pescoço. Ben lutou, cheirando seu próprio sangue derramando-se da ferida, ouvindo os sons que fazia a criatura cravada em sua garganta enquanto sorvia profundamente o sangue de sua veia. Ben ia perdendo forças com cada sorvo. Permanecia ali pendurado, suspenso, sentindo como a vida o abandonava, como sua consciência se apagava ao mesmo tempo que sua vontade. Estava agonizando, tudo o que era se afastava dele em um abismo de escuridão.

    

     —Vamos, Harvard, ou como é que te chame em realidade —disse Tess, guiando ao pequeno terrier através da rua ao trocar a luz do semáforo.

     Depois de fechar a clínica as seis em ponto, tinha decidido dar um passeio e passar junto ao apartamento do Ben, no South Sede. Seria um último intento de encontrá-lo por sua conta antes de informar de seu desaparecimento a polícia. Se havia retornado a traficar com narcóticos, provavelmente mereceria ser detido, mas no fundo sentia verdadeiro carinho por ele e queria ver se podia falar com ele e lhe oferecer ajuda antes de que as coisas chegassem mais longe.

     A vizinhança do Ben não era precisamente agradável, especialmente na escuridão da noite, mas Tess não tinha medo. A maioria de seus clientes eram dessa zona: trabalhadores, boa gente. Ironicamente, se havia alguém de quem terei que desconfiar naquele lance de apartamentos apinhados e blocos de três pisos provavelmente era do traficante de droga que vivia no apartamento 3B do edifício onde se deteve Tess.

     Ouvia-se o som de uma televisão a todo volume do primeiro piso, lançando uma assustadora esteira azul sobre a calçada. Tess elevou a cabeça, olhando as janelas do piso do Ben em busca de algum sinal de que pudesse achar-se ali. As andrajosas persianas brancas da janela do balcão estavam fechadas e o mesmo as da habitação do dormitório. O apartamento estava as escuras, não havia luz em nenhuma parte, e tampouco movimento.

     O... sim havia?

     Apesar de que era difícil assegurá-lo, tivesse jurado ver que um dos jogos de persianas se moviam contra a janela... como se alguém dentro da casa os tivesse roçado ao caminhar se chocando com eles sem dar-se conta.

     Seria Ben? Se estava em casa, era evidente que não queria que ninguém soubesse, incluída ela. Não lhe havia devolvido nenhuma de suas chamadas telefônicas nem tampouco as mensagens, assim não havia razão para que ela pretendesse que permitisse subir a sua casa agora.

     E se não estava em casa? E se alguém tinha entrado a força? E se algum de seus contatos com a droga estava esperando sua volta? E se alguém estava ali justo agora, pondo a casa pernas acima em busca do pendrive que ela levava no bolso de sua jaqueta?

     Tess se afastou do edifício, sentindo como a ansiedade percorria sua espinho dorsal. Sujeitava com força a correia do Harvard, apartando-o em silêncio dos arbustos secos que se alinhavam na calçada.

     Então o viu outra vez, um claro movimento nas persianas do piso do Ben. Uma delas começou abrir-se no escuro balcão do terceiro piso. Alguém saiu. Um tipo enorme que definitivamente não era Ben.

     —OH, merda —sussurrou ela, inclinando-se para agarrar ao cão nos braços se por acaso fosse necessário sair dali correndo.

     Afastou-se a passo rápido rua abaixo, lançando tão somente um olhar rápido por cima do ombro. O tipo estava junto ao corrimão do desvencilhado balcão, esquadrinhando a noite da janela. Ela sentiu o calor selvagem de seu olhar como uma lança jogada através da escuridão. Seus olhos tinham um brilho sobrenatural...

     —OH, Meu Deus.

     Tess partiu correndo pela rua. Quando se voltou para olhar de novo ao edifício do Ben, o homem do balcão estava descendo pelo corrimão, e dois mais foram atrás dele. Que levava a dianteira, passou as pernas por cima do bordo e saltou sobre a grama, com a agilidade de um gato. Começou a correr atrás dela, a toda pressa. Como se a velocidade dele tivesse refreado os movimentos de Tess, esta arrastou os pés como se lhe tivessem ficado pegos em areias movediças.

     Tess apertou a Harvard contra seu peito e pôs-se a correr por outra calçada, passando entre os carros estacionados junto a ao meio-fio. Voltou a olhar detrás dela, só para descobrir que seu perseguidor já não estava. Seu alívio durou unicamente uma fração de segundo. Porque quando olhou de novo para frente, comprovou que o tipo estava ali, a menos de cinco metros de distância, lhe bloqueando o passo. Como podia ter chegado tão rápido? Ela nem sequer o tinha visto mover-se, nem tinha ouvido seus passos sobre o pavimento.

     Ele inclinou a cabeça para ela e farejou o ar como um animal. Ele —ou mas bem «esse estranho ser», porque fora o que fosse estava muito longe de ser humano— começou a rir pelo baixo.

     Tess retrocedeu, movendo-se com rigidez e incredulidade. Aquilo não estava ocorrendo. Não era possível. Tinha que tratar-se de algum tipo de brincadeira doentia. Era simplesmente impossível.

     —Não. —Ela retrocedeu, negando com a cabeça.

     O enorme homem começou então a mover-se, avançando para ela. O coração de Tess pulsava aterrorizado, todos seus instintos se agitavam em sinal de alerta. Girou sobre seus talões e pôs-se a correr...

     Só que outro homem com aspecto bestial apareceu entre os carros e a abordou.

     —Olá, preciosa —disse com uma voz que era pura maldade.

     Sob a tênue luz de uma luz, o olhar d Tess se cravou na boca aberta do tipo. Tinha o lábio superior levantado e separado dos dentes, deixando ao descoberto um enorme par de presas.

     Tess deixou cair ao cão de seus braços e lançou um grito aterrorizado que se elevou para o céu noturno.

    

     —Gira a esquerda —disse Dante a Tegan do assento do co-piloto do Range Rover. Chase, sentado na parte traseira, sentia-se como se fosse ser executado, e Dante queria prolongar um pouco mais essa sensação.

—Demos uma volta pelo sul antes de nos dirigir ao recinto.

     Tegan assentiu com a cabeça e fez girar o veículo.

     —Crê que o narcotraficante pode estar em casa?

     —Não sei, mas vamos dar uma olhada.

     Dante se esfregou a zona do esterno. Tinha uma sensação de frio, uma espécie de vazio que lhe oprimia os pulmões e lhe dificultava a respiração. A sensação era mais visceral que física, uma espécie de beliscão forte que despertava seus instintos e punha todos seus sentidos em alerta. apertou ao botão do guichê, deixando que o escuro cristal escuro se abrisse para poder respirar o ar fresco da noite.

     —Tudo sob controle? —perguntou Tegan, com sua voz profunda do assento do condutor.

— Vai ali pensando em repetir o mesmo de antes?

     —Não. —Dante negou fracamente com a cabeça, olhando fixamente através do guichê aberto, contemplando as luzes imprecisas e o tráfico enquanto deixavam atrás os edifícios do centro da cidade e começavam a aparecer os velhos bairros do sul de Boston.

— Não, isto é... algo diferente.

     O maldito nó de frio que sentia no peito era cada vez mais profundo, voltava-se gelado, enquanto que as palmas das mãos começavam a suar. Lhe retorcia o estômago. De forma súbita, sentiu como uma sacudida de adrenalina nas veias.

     «Que diabos lhe estava passando?»

    Deu-se conta de que o medo o invadia. Um terror horripilante. Não propriamente dele, mas sim de outra pessoa.

     «OH, deus.»

     —Para o carro.

     O que estava sentindo era o medo de Tess. Seu terror chegava até ele através da união de sangue que compartilhavam. Ela estava em perigo. Em perigo mortal.

     —Tegan, para o maldito carro!

     O guerreiro pisou nos freios e torceu o volante com força para a direita fazendo patinar o Rover para beira. Não estava longe do apartamento do Sullivan; o edifício não podia estar a mais de meia dúzia de quadras de distância... seria o dobro se tinham que conduzir pelo labirinto de ruas de uma só direção e parar-se ante um montão de semáforos.

     Dante abriu de repente a porta do carro e saltou a calçada. Inspirou profundamente, rogando poder identificar o aroma de Tess.

     E aí estava.

     Captou a doce fragrância a canela trancada entre outros milhares de aromas que se mesclavam e eram levados pela brisa gelada da noite. O aroma do sangue de Tess era um rastro, mas se fazia cada vez mais forte... muito.

     A Dante lhe gelaram as veias.

     Em algum lugar, não muito longínquo, Tess estava sangrando.

     Tegan se inclinou através do assento, com seu grosso antebraço apoiado sobre o volante e seu olhar sagaz.

     —Dante, cara... o que é o que acontece?

     —Não há tempo —disse Dante. Voltou-se para o carro e fechou a porta de um golpe.

— Eu irei a pé. Necessito que vá até a casa do Ben Sullivan. Está...

     —Eu recordo o caminho —interveio Chase do assento traseiro, olhando a Dante aos olhos através da janela aberta do Rover.

— Vai. Iremos atrás de você.

     Dante fez um sinal de assentimento aos rostos que o olhavam com gravidade, logo se voltou e pôs-se a correr a toda velocidade.

     Atravessou pátios, saltou por cima de cercas, correu a toda pressa por estreitos becos, espremendo ao máximo toda a agilidade e velocidade própria de sua raça. Para os humanos que adiantava não era mais que um sopro de ar frio, uma rajada do vento gelado de novembro na nuca quando passava junto a eles com toda sua concentração fixa em um só objetivo: Tess.

     No meio de uma rua lateral que o conduzia para a quadra do Ben Sullivan, Dante viu o pequeno terrier que Tess tinha resgatado da soleira da morte com seu toque curador. O cão andava solto na escuridão da calçada, e sua correia pendurava atrás dele.

     Era um mau sinal, mas ao menos Dante sabia que já estava perto.

     Que Deus tivesse piedade dele, tinha que está-lo.

     —Tess! —gritou, rogando que ela pudesse lhe ouvir.

     Rogando que não fosse muito tarde.

     Dobrou a esquina de um dos blocos de três pisos, saltando por cima dos brinquedos e bicicletas que tinha pulverizados no pátio da fachada. O aroma de seu sangue agora era ainda mais forte, uma injeção de medo que o martelava nas têmporas.

     —Tess!

     Lhe seguiu a pista como se olhasse através de raios laser, correndo no meio do pânico enquanto captava os ruídos e grunhidos de renegados lutando por seu prêmio.

     «Deus santo. Não.»

     Ao outro lado da rua do edifício onde vivia Ben Sullivan, a bolsa de mão de Tess jazia atirada na sarjeta, com todos os conteúdos pulverizados no chão. Dante girou para a direita, correndo por um atalho desgastado que passava duas casas. Havia um abrigo ao final do atalho, e a porta oscilava com as dobradiças frouxas.

     Tess estava dentro. Dante soube com um terror tão intenso que lhe fez falhar os pés e quase cair.

     Depois dele, justo uma fração de segundos antes de que pudesse chegar até o abrigo e jogar a porta abaixo com suas próprias mãos, um renegado saiu de entre as sombras e se equilibrou sobre ele. Dante deu um giro enquanto este caía ao chão, tirou uma de seus adagas e lhe fatiou o rosto ao vampiro chupador de sangue. O renegado soltou um chiado que não era deste mundo, fugindo dele com uma dor aguda enquanto o sangue corrupto de seu sistema recebia o impacto letal do titânio. Dante rodou em cocoras e se atirou a seus pés enquanto o renegado se agitava em meio da morte enquanto sofria uma veloz decomposição.

     Na rua se ouviu o rugido do Range Rover negro, que se deteve bruscamente. Tegan e Chase desceram de um salto com as armas na mão. Outro renegado saiu da escuridão, mas ao ver o olhar glacial do Tegan decidiu pôr-se a correr em direção oposta. O guerreiro saltou como um imponente felino em busca de sua presa.

     Chase viu algum outro problema no apartamento do Ben Sullivan, porque preparou sua pistola e começou a cruzar a rua veloz e sigilosamente.

     Quanto a Dante, logo que era consciente das ações ao seu redor. Suas botas varriam a terra enquanto se dirigia ao abrigo e os terríveis ruídos que saíam dali. Os ruídos que faziam os vampiros ao alimentar-se não eram nada novo para ele, mas a idéia de que pudessem estar fazendo mal a Tess conduzia sua raiva a uma zona nuclear. Atravessou com passo decidido a porta do abrigo que se agitava e a abriu de um golpe com uma mão. Esta saiu despedaçada por cima do pátio vazio e ficou ali, imediatamente esquecida.

     Dois renegados sujeitavam a Tess sobre o chão. Um chupava de seu pulso, e o outro estava pego a sua garganta. Ela jazia imóvel debaixo deles, tão quieta que o coração de Dante se gelou de terror ao ver a cena. Mas ele podia sentir que estava viva. Podia ouvir seu débil pulso pulsando ainda em suas próprias veias. Uns poucos segundos mais e a esvaziariam por completo.

     Dante soltou um bramido que fez tremer o lugar e sua fúria ferveu e saiu dele como um temporal. O renegado que se alimentava do pulso de Tess deu um salto para trás, com o sangue dela na comissura dos lábios e as largas presas manchadas de uma intensa cor escarlate. O vampiro chupador de sangue deu um giro no ar, voando para uma esquina do teto do abrigo e escalando como uma aranha.

     Dante seguiu seus movimentos, enquanto tirava uma de suss adagas Malebranche e ato seguido a lançava pelo ar. A roda de titânio girou e fez contato letal com o pescoço do renegado. Este caiu ao chão com um chiado, e Dante dirigiu seu ódio para o maior, que se tinha movido para desafiá-lo usando sua presa.

     O renegado permanecia em cocoras frente ao corpo sem forças de Tess, enfrentando a Dante com as presas nuas e os ferozes olhos resplandecentes e de uma intensa cor ambarina. O vampiro chupador de sangue parecia um jovem ao que a luxúria do sangue tinha transformado em uma besta, e provavelmente se trataria de um dos cidadãos Darkhaven desaparecidos. Não importava; o único renegado bom era o renegado morto... e especialmente tratando-se deste, que tinha posto as mãos e a boca em cima de Tess, chupando sua preciosa vida.

     Se Dante não tivesse aparecido já a teria matado.

     Com o sangue agitado e esticando todos seus músculos, pela dor de Tess e por sua própria preparação para o combate, Dante tirou suas presas e lhe lançou um rugido ao renegado. Queria uma vingança brutal e infernal, fazer pedaços ao bastardo antes de estripá-lo com uma de seus adagas. Mas havia algo mais urgente. Salvar Tess era o que realmente importava.

     Dante agarrou a mandíbula do renegado, fez alavanca com o braço e o empurrou com força para baixo, lhe rompendo ossos e vários tendões. Enquanto o vampiro chupador de sangue gritava, Dante tirou uma adaga com a mão livre e afundou o aço com o bordo de titânio no peito do vampiro. Apartou o cadáver e acudiu junto a Tess.

     —OH, Deus. —Ajoelhado junto a ela, ouviu sua suave e entrecortada respiração. Era muito superficial. A ferida de seu pulso era grave, mas a do pescoço totalmente selvagem. Estava pálida como a neve, e a notou gelada quando levou sua mão aos lábios e lhe beijou os lânguido dedos.

— Tess... agüenta, pequena. Já te tenho. Tirarei-te daqui.

     Dante a agarrou em seus braços e a levou para fora.

    

     Chase passou por cima do cadáver de um humano que jazia junto à porta do apartamento do primeiro piso. A televisão soava a todo volume no salão do interior. O velho tinha sido atacado e ferido gravemente por renegados, e ao menos um deles permanecia ainda no edifício. Chase subiu as escadas do apartamento do Ben Sullivan em completo silêncio, com todos seus sentidos atentos ao entorno. Sustentava a Beretta com ambas as mãos levantadas perto do ombro direito, sem o seguro posto e o canhão apontando para o teto. Podia conseguir que a arma estivesse a ponto e disparando balas de titânio em uma fração de segundo. Para o renegado que se estava movendo de forma imprudente no apartamento de acima, a morte era iminente.

     Ao alcançar o último degrau, Chase se deteve junto à entrada contigüa à porta entreaberta. Através da fresta, viu que o lugar tinha sido saqueado. Quão renegados tinham entrado ali estavam procurando algo... e decididamente não se tratava do próprio Ben Sullivan, a menos que esperassem que se escondesse em uma das muitos gavetas ou arquivos que tinham sido registrados no apartamento. Viu o brilho de um movimento no interior e retrocedeu justo quando um renegado saía da cozinha com uma faca de açougueiro com o que começou a rasgar as almofadas da poltrona reclinável, destroçando-os.

     Com a ponta de uma bota, Chase abriu a porta o bastante para poder deslizar-se no interior, logo avançou cautelosamente, apontando ao renegado pelas costas com sua arma de nove milímetros. A busca frenética do vampiro lhe impediu de dar-se conta da ameaça que lhe espreitava até que Chase se deteve não mais de dois pés de distância, com o canhão do revólver a altura da cabeça do renegado.

     Chase poderia ter disparado naquele instante, e provavelmente deveria havê-lo feito. Todo seu treinamento e sua lógica o empurravam a apertar o gatilho e liberar uma dessas balas de titânio no crânio do renegado, mas o instinto o fez vacilar.

 

     Em uma fração de segundo, sua mente fez um inventário visual do vampiro que tinha ante ele. Advertiu sua altura e sua figura atlética, as roupas de civil... a sombra de inocente juventude escondida sob seu sueter e seus jeans imundos e seu cabelo gordurento, sujo e despenteado. Tinha o aspecto de um yonqui, disso não cabia dúvida. O renegado cheirava a sangue azedo e a suor... os selos de um vampiro doente de luxúria de sangue.

     Mas aquele viciado não era um desconhecido.

     —Deus —sussurrou Chase.— Camden?

     O renegado ficou completamente imóvel ante o som da voz do Chase. Levantou os ombros, sua cabeça desgrenhada se voltou para um lado, inclinada em um ângulo exagerado. Grunhiu, mostrando os dentes e as presas, cheirando o ar. Seu olhar não estava totalmente visível, mas Chase pôde ver nos olhos de seu sobrinho um inquietante brilho de cor âmbar, resplandecendo em seu rosto amarelado.

     —CAM, sou eu. Seu tio. Baixa a faca, filho.

     Se entendeu algo, Camden não deu nenhum sinal. E tampouco soltou a faca de açougueiro que sustentava em sua mão. Começou a voltar-se, lentamente, como um animal que de repente é consciente de que está encurralado.

     —Tudo terminou —lhe disse Chase.

— Agora está a salvo. Estou aqui para te ajudar.

     Inclusive enquanto dizia as palavras, Chase se perguntou se eram realmente as que queria dizer. Baixou a pistola mas não pôs o fechamento de segurança, cada músculo de seu braço estava tenso e seu dedo seguia perto do gatilho. Uma onda de temor subia por sua coluna, tão fria como a brisa noturna que entrava através da porta aberta e flutuava no apartamento. Chase também se sentia esquecido, inseguro de seu sobrinho e de si mesmo.

     —Camden, sua mãe está muito preocupada com você. Quer que volte para casa. Pode fazer isso por ela, filho?

     Houve um comprido momento de tenso e cauteloso silêncio durante o qual Chase observou como o único filho de seu irmão se dava a volta para olhar o de cara. Mesmo assim, Chase não estava preparado para o que viu. Tratou de aferrar-se a imagem de seu sobrinho quando era estudante, mas a bílis rosada em sua garganta, as manchas de sangue e seu aspecto andrajoso revelavam que já não ficava nada do menino que não fazia nem tão somente um par de semanas estava rindo e brincando com seus amigos, um menino brilhante com um futuro realmente prometedor.

     Chase não pôde achar nenhum sinal dessa esperança no feroz macho que tinha ante ele, com sua roupa manchada pelo açougue do piso de abaixo, em que certamente tinha tomado parte, e a faca de cozinha apertada e preparada para atuar em sua mão. Suas pupilas estavam fixas e estreitas, apenas umas linhas negras no centro de seu olhar vazio de cor âmbar.

     —CAM, por favor... me deixe ver que está em alguma parte.

     As palmas do Chase começaram a suar. Seu braço direito começou a levantar-se como se tivesse vontade própria, elevando lentamente a arma. O renegado grunhiu, movendo as pernas para esconder-se. O olhar feroz ia de um lado a outro, calculando, decidindo. Chase não sabia se o impulso que havia no Camden naquele momento era o de lutar ou o de sair fugindo. Levantou mais alta a arma de nove milímetros, e logo a elevou ainda, com o dedo tremendo sobre o gatilho.

     —Ah, merda... isto não está bem. Nada bem.

     Com um suspiro desolado arqueou o canhão da pistola diretamente para cima e disparou uma bala ao teto. O estalo do disparo fez um forte eco, e Camden se sobressaltou e entrou em ação, saltando através da habitação para escapar. Passou correndo junto ao Chase para as portas trilhos. Sem olhar atrás mais que uma vez saltou por cima do balcão e se perdeu de vista.

     Chase se dobrou sobre seus pés, com uma opressiva mescla de alívio e de arrependimento. Tinha encontrado a seu sobrinho, mas também tinha permitido que um renegado voltasse para as ruas.

     Quando por fim levantou a cabeça e olhou a porta aberta do apartamento viu que Tegan estava ali, observando-o com um olhar penetrante e cúmplice. Pode que o guerreiro não o tivesse visto deixar livre ao renegado, mas sabia o que tinha ocorrido. Esse olhar apagado e inexpressivo parecia sabê-lo tudo.

     —Não pude fazê-lo —murmurou Chase, sacudindo a cabeça enquanto olhava a arma descarregada.

— Ele é de minha família e... simplesmente não pude.

     Durante um comprido momento Tegan não disse nada, medindo-o no silêncio.

     —Agora temos que ir —disse finalmente.

— A mulher está mau. Dante está com ela e nos aguardam no carro.

     Chase assentiu, e logo seguiu ao guerreiro para o exterior do edifício.

    

     Com o pulso ainda pulsando de medo e de raiva, Dante acomodou Tess no assento traseiro do Rover, balançando entre os braços sua cabeça e seus ombros e tampando-a com sua jaqueta para lhe dar calor. Tirou a camisa e a tinha rasgado em tiras para enfaixar de maneira improvisada a ferida de seu pulso e o corte mais grave de seu pescoço.

     Ela permanecia deitada muito quieta contra ele, com um peso muito ligeiro. Ele contemplou seu rosto, agradecendo que o ataque dos renegados não tivesse chegado tão longe para golpeá-la e torturá-la, pois a enfermidade que tinham os levava a fazer isso com suas presas. Não a tinham violado, e isso também era uma enorme bênção, dada sua natureza selvagem e animal. Mas os renegados tinham tirado seu sangue... uma grande quantidade dela. Se Dante não a tivesse encontrado no preciso momento em que o fez, tivessem-na esvaziado por completo.

     Estremeceu-se, gelado até os ossos ante aquele pensamento. Ao vê-la tendida ali, com os olhos fechados e inconsciente, a pele pálida e fria, Dante soube qual era a maneira segura de ajudá-la. Necessitava sangue para substituir a que tinha perdido. Não se tratava das transfusões médicas que suas irmãs humanas necessitariam, mas sim do sangue de um vampiro da estirpe.

     Ele já tinha forjado a metade do laço de sangue com ela a noite que bebeu de seu sangue para salvar-se. Mas como ia ter a crueldade de encadeá-la com esse laço esta vez de maneira completa sem lhe pedir seu consentimento? A única outra alternativa que tinha era ficar ali vendo-a morrer em seus braços.

     Isso era completamente inaceitável, inclusive embora ela pudesse chegar a lhe odiar por lhe dar uma vida que a faria estar sujeita a ele com cadeias inquebráveis. Ela merecia muito mais do que ele tinha para lhe dar.

     —Maldita seja, Tess. Sinto muito. É a única maneira.

     Levou-se seu próprio pulso a boca e fez uma pequena incisão vertical com a afiada ponta de suas largas presas. O sangue saiu a superfície, correndo como um arroio por seu braço nu. Ele era vagamente consciente do ruído de uns passos apressados aproximando-se do Land Rover enquanto levantava a cabeça de Tess preparando-a para lhe dar alimento.

     As portas dianteiras se abriram e entraram Tegan e Chase. Tegan olhou para trás, assinalando com os olhos o braço de Tess, com sua mão direita frouxa, que se tinha deslizado por debaixo da jaqueta de Dante. A mão em que luzia a marca de nascimento que mostrava uma lágrima e uma lua crescente. O guerreiro entrecerrou os olhos, e logo se dirigiu para Dante com um tom de advertência.

     —É uma companheira de sangue.

     —Sei —disse Dante a seu companheiro. Não tentou nem sequer mascarar o tom de grave preocupação que havia em sua voz.

— Conduz, Tegan. Nos leve a recinto o mais rápido que possa.

     Enquanto o guerreiro punha em marcha o Rover, Dante colocou seu pulso contra os lábios flácidos de Tess deixando que seu sangue se derramasse dentro de sua boca.

    

     Tess pensava que estava morrendo. Sentia-se muito leve e de uma vez muito pesada, flutuando em terra de ninguém entre a dor de um mundo e a profundidade desconhecida do seguinte. A escura ressaca de um lugar longínquo e estranho atirava dela, mas não tinha medo. Um relaxante calor a envolveu, como se as asas de um forte anjo se dobrassem em torno dela, sustentando-a no alto, por cima do crescente entorpecimento que lambia brandamente seus membros.

     Afundou-se nesse quente abraço. Necessitava essa força firme e perdurável.

     Ouvia vozes ao seu redor, seu tom era baixo e urgente, mas não podia distinguir as palavras. Seu corpo vibrava com o constante zumbido de um movimento em baixo dela, seus sentidos se voltavam mais lentos com o ocasional movimento de seus membros. Estava sendo transportada a alguma parte? Estava muito esgotada para perguntar-lhe muito reconfortada também como para simplesmente deixar-se levar entregando-se a esse calor protetor que a envolvia.

     Queria dormir. Simplesmente desvanecer-se e dormir, para sempre...

     Uma pequena gota de uma substância quente lhe salpicou os lábios. Como seda, correu pelo canto de sua boca em uma lenta esteira, sua tentadora fragrância se amontoou em seu nariz. Outra gota caiu sobre seus lábios, cálida e úmida e intensa como o vinho, e ela tirou a língua para prová-la.

     Logo que sua boca se abriu, encheu-se de um calor líquido. Gemeu, sem saber o que estava provando mas com a certeza de que necessitava mais. O primeiro gole rugiu através dela como uma gigantesca onda. Havia mais para tomar, um fluxo constante que se derramava em seus lábios e em sua língua, enquanto ela bebia dessa fonte como se estivesse morrendo de sede. Talvez assim era. Tudo o que sabia era que queria aquele líquido, necessitava-o, e não podia obter suficiente.

     Alguém murmurou seu nome, brandamente, profundamente, enquanto ela bebia o estranho elixir. Conhecia a voz. Conhecia a fragrância que parecia florescer ao seu redor e derramar-se dentro de sua boca.

     Sabia que ele a estava salvando, o escuro anjo cujos braços a protegiam agora.

     «Dante.»

     Era Dante quem estava com ela naquele singular vazio; ela sabia com cada partícula de seu ser.

     Tess continuava flutuando, sustentada no alto por cima do revolto mar do desconhecido. Lentamente, a água escura se elevou para que ela se inundasse, espessa como uma nata, quente como um banho. Dante a ajudava, seus braços a sustentavam constantemente, tão fortes e tão delicados. Ela se dissolveu na agitada maré, bebendo-a, sentindo-a penetrar em seus músculos, seus ossos, suas pequenas células.

     Na paz que circulava por cima dela, a consciência de Tess se deslizou no interior de outro mundo, um que vinha para ela em matizes de um intenso tom escarlate, carmesim e de cor vermelha.

    

     O caminho para o recinto durou uma eternidade, apesar de que Tegan tinha circulado todo o tempo a uma velocidade recorde através das concorridas e ventosas ruas de Boston até o caminho privado que conduzia para os quartéis da Ordem. Logo que o Rover se deteve na garagem, Dante abriu a porta traseira do veículo e com cuidado agarrou Tess em seus braços.

     Ela estava ainda meio inconsciente, ainda fraca pela perda de sangue e o trauma, mas ele tinha mais esperanças de que sobrevivesse. Tinha tomado tão somente uma pequena quantidade de seu sangue; agora que já estava a salvo no recinto, ele se asseguraria de que tomasse tanto quanto necessitasse.

     Diabos, estaria disposto a sangrar-se por completo se é que tinha que fazê-lo para salvá-la.

     Deus, não era tão somente uma estúpida idéia nobre; pensava-o de verdade. Estava desesperado porque Tess sobrevivesse, tanto que estaria disposto a morrer por ela. Os laços físicos de sua união de sangue, agora já completamente consumada, asseguravam que ele se sentisse responsável por protegê-la, mas em realidade se tratava de um pouco mais forte. Mais profundo do que nunca teria imaginado.

     Amava-a.

     A ferocidade de sua emoção surpreendeu a Dante enquanto entrava com Tess no elevador da garagem, seguido pelo Tegan e Chase. Alguém apertou ao botão para baixar e começaram o suave e silencioso descida através dos noventa metros de terra e aço que protegiam o recinto da estirpe do resto do mundo.

     Quando se abriram as portas, Lucan estava em pé no corredor junto ao elevador. Gideon se achava a seu lado, e os dois guerreiros armados tinham expressões graves. Sem dúvida Lucan tinha sido alertado da urgente chegada quando o Rover apareceu na câmara de segurança das grades do recinto.

     Lançou um olhar a Dante e a mulher atacada grosseiramente que levava em seus braços e soltou uma maldição.

     —O que passou?

     —Me deixe passar —disse Dante, enquanto avançava entre seus irmãos, com cuidado de não empurrar a Tess.

— Necessita algum lugar quente onde descansar. perdeu muito sangue...

     —Já o vejo. Que diabos aconteceu aí fora?

     —Renegados —interveio Chase, encarregando-se de dar as explicações a Lucan enquanto Dante caminhava pelo corredor, com toda sua atenção concentrada em Tess.

— Um grupo saqueou o apartamento do traficante de carmesim. Não sei o que estavam procurando, mas a mulher deve haver-se topado com eles em alguma parte. Talvez os encontrou por surpresa. Tem feridas de dentadas no braço e na garganta, de mais de um atacante.

     Dante assentiu para ouvir os fatos, agradecido pela ajuda verbal do vampiro Darkhaven, já que sua própria voz parecia haver lhe engasgado na garganta.

     —Deus —disse Lucan, dirigindo um olhar sombrio a Dante.

— É ela a companheira de sangue da que falava? É Tess ?

     —Sim. —ele a olhou, tão imóvel e pálida em seus braços, e sentiu um penetrante calafrio no peito.

— Uns segundos mais e teria sido muito tarde...

     —Malditos vampiros chupadores de sangue —soltou Gideon passando uma mão pelo cabelo.

— vou preparar uma habitação para ela na enfermaria.

     —Não. —A resposta de Dante foi mais arisca do que pretendia, e inflexível. Estendeu o pulso onde se fez o corte, com a pele ainda vermelha e úmida na zona onde ela se alimentou.

— É minha. Fica comigo.

     Os olhos do Gideon se abriram assombrados, mas não disse nada. Ninguém o fez, enquanto Dante se separava do grupo dos guerreiros e se dirigia com Tess para o labirinto de corredores que conduzia a suas habitações privadas. Uma vez ali, levou-a a seu dormitório e a colocou brandamente na imensa cama que enchia o espaço. Deixou as luzes tênues e lhe falou suave e em voz baixa, enquanto tratava de acomodá-la.

     Com uma ordem mental, pôs a funcionar o grifo do lavabo, deixando sair água quente enquanto retirava com cuidado as vendagens que cobriam o pulso e o pescoço de Tess. Graças a Deus tinha deixado de sangrar. Suas feridas eram selvagens e profundas, mas o pior já tinha passado.

     Ao ver as horríveis marcas que os renegados a atacaram lhe tinham deixado, Dante desejou ter o dom curador de Tess. Queria apagar as feridas antes de que ela tivesse a oportunidade de as ver, mas não podia fazer esse tipo de milagres. Seu sangue podia curá-la por dentro, preenchendo seu corpo e lhe dando uma vitalidade sobrenatural desconhecida para ela. Com o tempo, se ela se alimentava com freqüência dele como sua companheira, sua saúde a faria ser eternamente jovem. E com o tempo as cicatrizes também se curariam. Não o bastante logo para ele. Ele queria destroçar a seus atacantes de novo, torturá-los lentamente em lugar de lhes dar a morte rápida que esses renegados tinham recebido.

     A necessidade de violência, de vingança contra todo renegado que pudesse chegar alguma vez a lhe fazer mal se apoderou dele como um ácido. Dante sossegou a urgência de vingança, concentrando toda sua energia em cuidar de Tess com mãos suaves e reverentes. Retirou-lhe a jaqueta manchada de sangue, começando pelas mangas e levantando logo seu flácido corpo para tirar-lhe de tudo. O pulôver que levava debaixo também estava arruinado, com a cor bege da lã impregnado de um vermelho gritão ao redor do pescoço e ao longo da manga.

     Teria que lhe cortar o pulôver para tirar-lhe não pensava tentar tirar-lhe por cima da cabeça afetando a espantosa ferida de dentada de sua garganta. Desencapou uma das adagas de seus quadris, e deslizou a adaga por debaixo da prega, rasgando o objeto com uma poda linha no centro. A suave lã caiu a um lado, deixando exposto o torso cor nata de Tess e o encaixe cor pêssego de seu prendedor.

     Um despertar sexual foi provocado em seu interior, tão automático como sua respiração, ao contemplar a perfeição de sua pele, as femininas curvas de seu corpo. Vê-la sempre o fazia desejá-la, mas vê-la marcada pelas brutais mãos dos renegados o conduziu a uma firme calma que triunfou sobre a força do desejo de possui-la.

     Agora estava a salvo, e isso era tudo o que ele necessitava.

     Dante depositou a adaga sobre a mesinha de noite, logo tirou de Tess o pulôver destroçado e o atirou junto à jaqueta, ao lado da cama. A habitação estava cálida, mas sua pele ainda permanecia fria ao tato. Atirou do bordo do edredom de seda negra da enorme cama e a cobriu com ele, logo se dirigiu ao quarto de banho para procurar um pano coberto de sabão e uma toalha fresca para limpá-la. Enquanto voltava para a habitação, ouviu um golpe suave na porta aberta de suas habitações, muito suave para vir de algum dos guerreiros.

     —Dante? —A voz aveludada de Savannah era ainda mais suave que seu golpe. Entrou trazendo consigo uma série de pomadas e remédios, com seus olhos escuros e amáveis cheios de compaixão. A companheira de Lucan, Gabrielle, também estava com ela, a companheira de sangue de cabelos cor castanha levava uma bata felpuda sobre seu braço.

— Ouvimos o que ocorreu e pensamos trazer algumas poucas coisas que a ajudem a sentir-se mais cômoda.

     —Obrigado.

     Do outro lado da cama, ele olhou distraído as duas mulheres que se aproximavam com suas coisas. Toda sua atenção estava concentrada em Tess. Levantou-lhe a mão e passou com cuidado o bordo do pano molhado sobre a capa de sangue de seu pulso, enquanto a acariciava tão brandamente como podia com suas torpes mãos, mais adequadas para sustentar armas de fogo ou aço.

     —Está bem? —perguntou Gabrielle detrás dele.

— Lucan há dito que lhe deu de seu sangue para salvá-la.

     Dante assentiu, mas não se sentia nada orgulhoso do que tinha feito.

     —Odiará-me por isso quando entender o que significa. Não sabe que é uma companheira de sangue. Não sabe... quem sou eu.

     Surpreendeu-se ao notar uma pequena mão que se apoiava com atitude de consolo sobre seu ombro.

     —Então deveria dizer-lhe Dante. Não o pospor. Confia em que ela compreenderá a verdade, inclusive se ao princípio resiste a aceitá-la.

     —Sim —disse ele.

— Sei que merece saber a verdade.

     Sentia-se agradecido pelo gesto pormenorizado de Gabrielle e por seu conselho prudente. Ao fim e ao cabo, ela falava por experiência própria. Essa mulher tinha recebido de Lucan a assombrosa verdade tão somente fazia uns meses. Apesar de que agora eram inseparáveis e se amavam com autêntico amor, a travessia de Lucan e Gabrielle tinha sido de tudo menos fácil. Nenhum dos guerreiros conhecia todos os detalhes, mas Dante podia adivinhar que Lucan, com sua natureza distante e glacial não tinha contribuído a que as coisas fossem simples para nenhum dos dois.

     Savannah se aproximou uns passos a ele detendo-se junto à cama.

     —Depois de limpar as feridas, ponha um pouco desta pomada. Junto com seu sangue em seu sistema, a medicina ajudará a acelerar a cura e melhorar as cicatrizes.

     —De acordo. —Dante agarrou o pote com o remédio caseiro e o deixou sobre a mesinha de noite.

— Graças as duas.

     As mulheres lhe dedicaram pormenorizados sorrisos, e logo Savannah se inclinou para recolher a jaqueta e o suéter manchados.

     —Não acredito que isto lhe possa servir já para nada.

     No instante em que suas mãos tocaram a roupa, seus suaves rasgos se alteraram. Fechou os olhos, com uma careta de dor. Conteve a respiração, e logo a deixou sair com um tremente suspiro.

     —Deus bendito, pobrezinha. O ataque foi tão... selvagem. Sabia que quase se sangra?

     Dante inclinou a cabeça.

     —Sei.

     —Estava quase morta quando você... bom, você a salvou e isso é o que importa —disse Savannah, adotando um tom sereno que não podia ocultar o mal-estar que sentia depois de conhecer os terríveis detalhes do ataque de Tess.

— Se necessitar algo, Dante, só tem que pedir. Gabrielle e eu faremos tudo o que esteja em nossas mãos para te ajudar.

     Ele assentiu, voltando a limpar as feridas de Tess com o pano úmido. Ouviu sair as mulheres, e o espaço a seu redor ficou em silencio com o peso de seus pensamentos. Não sabia quanto tempo levava junto a Tess... certamente horas. Limpou-a e a secou cuidadosamente com a toalha, logo ficou a seu lado na cama e a apertou contra ele, contemplando-a dormir e rezando para que logo abrisse seus belos olhos para ele.

     Centenas de pensamentos atravessaram sua mente enquanto jazia junto a ela, centenas de promessas que desejava lhe fazer. Desejava que estivesse sempre a salvo, sempre feliz. Desejava que vivesse para sempre. Com ele, se ela queria; sem ele, se essa era a única maneira. Cuidaria dela tanto como pudesse, e se... ou melhor dizendo... embora a morte que o espreitava obtivesse finalmente alcançá-lo, haveria sempre um lugar para Tess entre a estirpe.

     Deus, estava pensando no futuro?

     Fazendo planos?

     Parecia-lhe tão estranho, depois de ter passado toda sua vida vivendo como se não houvesse um manhã, convencido de que em qualquer segundo podia não haver um manhã, só tinha feito falta uma mulher para que jogasse por um precipício todos esses pensamentos fatais. Seguia acreditando que a morte o esperava a volta de uma esquina —sabia com a mesma claridade com que sua mãe conhecia sua própria morte e a de seu companheiro— mas uma mulher extraordinária lhe tinha dado uma esperança infernal de estar equivocado.

     Tess o fazia desejar ter todo o tempo do mundo, para poder passar cada segundo com ela.

     Era necessário que despertasse. Devia recuperar-se, porque ele tinha muitas coisas que fazer com ela. Ela tinha que saber o que ele sentia, o que ela significava para ele... mas também o que tinha feito, unindo aos dois por um laço de sangue.

     Quanto tempo demoraria o sangue em ser absorvido por seu corpo para dar inicio a seu processo de rejuvenescimento? Quanto necessitaria? Tinha tomado tão somente uma quantidade mínima durante o caminho para o recinto, as escassas gotas que ele tinha conseguido lhe pôr na boca para que sua débil garganta as tragasse. Talvez necessitasse mais.

     Empregando a adaga que havia na mesinha de noite, Dante fez um pequeno corte em seu pulso. Apertou a ferida aberta contra os lábios de Tess, esperando sentir sua resposta, dirigindo maldições ao teto ao ver que sua boca permanecia imóvel e seu sangue caía inutilmente sobre seu queixo.

     —Vamos, anjo, bebe. Faz-o por mim. —Acariciou sua bochecha fria se separando de sua frente uma mecha de cabelo enredado.

—Por favor, vive Tess... bebe e vive.

     Da soleira da porta, alguém se esclareceu a garganta para fazer notar sua presença.

     —Sinto muito... a porta estava aberta.

     Chase. Que inoportuno. A Dante não lhe ocorria ninguém que pudesse desejar ver menos nesse momento. Achava-se muito concentrado no que estava fazendo, e no que estava sentindo, para lutar com outra interrupção, e pior ainda se procedia do agente Darkhaven. Esperava que o bastardo sumisse fazia já tempo do recinto, retornando ao lugar ao qual pertencia, e preferivelmente com uma patada de Lucan no traseiro. Uma vez mais, seria Lucan quem teria o privilégio de dar-lhe em seu lugar.

     —Sai daqui—grunhiu.

     —Bebeu algo?

       Dante se burlou pelo baixo.

     —Que parte do «sai daqui» não entendeste, Harvard? Não necessito público precisamente agora, e posso assegurar que o que menos necessito no mundo são suas sandices.

     Apertou de novo seu pulso contra os lábios de Tess, usando sua mão livre para separá-los com a ajuda dos dedos com a esperança de que tomasse um pouco do seu sangue embora fosse forçando-a. Não ocorreu assim. A Dante lhe ardiam os olhos enquanto a contemplava. Sentiu as lágrimas correndo por suas bochechas. Provou seu sabor salgado quando estas se reuniram na comissura de seus lábios.

     —Merda —murmurou, limpando-o rosto contra o ombro em uma estranha mescla de confusão e desespero.

     Ouviu pisadas que se aproximavam da cama. Sentiu que o ar a seu lado se movia e que Chase alargava a mão.

      —Talvez seria melhor que lhe inclinasse a cabeça...

     —Não a toques. —As palavras lhe saíram com uma voz que nem sequer Dante reconheceu como própria, tão cheia de veneno e de ameaça mortal. Voltou a cabeça e olhou ao agente aos olhos, com sua visão incendiada e aguda e suas presas alargando-se em um instante.

     O instinto protetor que fervia através dele era feroz e totalmente letal, e Chase evidentemente soube de repente. Retrocedeu, levantando as mãos diante dele.

     —Sinto muito. Não queria lhe fazer mal. Só desejava ajudar, Dante. E te pedir desculpas.

     —Não volte a me incomodar. —voltou-se para Tess, sentindo-se abatido pela preocupação e desejando estar a sós.

— Não necessito nada de você, Harvard. Exceto que suma.

     Um comprido silencio foi a única resposta, e por um momento Dante se perguntou se o agente partiu, tal como ele desejava. Não houve essa sorte.

     —Sei como se sente, Dante.

     —Ah, sim, claro

     —Eu acredito que sim. Acredito que agora entendo muitas coisas que antes não entendia.

     —Bom, melhor para você. Profundamente brilhante por sua parte, antigo agente Chase. Escreve-o em algum de seus inúteis informe e talvez seus amigões dos Refúgios Escuros lhe condecorem com alguma maldita medalha. Harvard por fim encontra alguma pista.

     O vampiro soltou uma risada irônica, sem rancor.

     —Caguei-a, sei. Menti a você e aos outros, e pus em perigo a missão por motivos pessoais e egoístas. O que tenho feito foi um engano. E quero que saibam, especialmente você saiba, Dante, que o sinto.

     O pulso de Dante pulsava com fúria e também com medo pelo estado de Tess, mas não arremeteu contra Chase como seu impulso o fazia desejar. Ouviu a aflição em sua voz. E ouviu humildade, algo que em geral escasseava, inclusive em Dante mesmo. Até agora. Até que tinha conhecido Tess.

     —Por que me diz isto?

     —Honestamente? Porque vejo o muito que se preocupa por esta mulher. Importa-te, e está terrivelmente assustado. Tem medo de perdê-la, e até agora tem feito tudo o que pudeste por ela.

     —Mataria por ela —se apressou a dizer Dante.

—Morreria por ela.

     —Sim, sei que o faria. Talvez possa ver quão fácil seria mentir, enganar ou inclusive dar sua vida com o propósito de ajudá-la... fazer algo, arriscar tudo, se isso significasse protege-la de mais feridas.

     Franzindo o cenho ante uma nova compreensão e sentindo-se de repente incapaz de seguir desprezando ao agente, Dante se voltou para olhar Chase.

     —Disse que não havia uma mulher em sua vida, nem família nem obrigações além da viúva de seu irmão...

     Chase sorriu vagamente. Cheio de tristeza e de desejo, o rosto do vampiro dizia tudo.

     —Chama-se Elise. Estava esta noite, quando você e Tegan vieram me buscar a minha casa.

     Deveria havê-lo sabido. Embora se fez evidente que de alguma forma já sabia, Dante acabava de dar conta nesse preciso momento. A reação do Chase quando a mulher saiu fora tinha sido virulenta e transtornada. Foi vê-la potencialmente em perigo que perdeu sua habitual calma. Parecia ter vontades de arrancar a cabeça de Tegan por haver tocado a essa mulher, um sentimento possessivo que ia além da necessidade de defender a própria pele.

     E pela expressão do rosto do Chase, via-se que não era correspondido nesse afeto.

     —Em qualquer caso —disse o agente bruscamente.

— Só queria... que soubesse que sinto muito todo o ocorrido. Quero ajudar a você e ao resto da Ordem da maneira que possa, assim se necessitar algo já sabe onde estou.

     —Chase —disse Dante enquanto o homem se voltava para abandonar a habitação.

— Aceito suas desculpas. E por minha parte, também o sinto. Eu tampouco fui justo contigo. Apesar de nossas diferenças, tem que saber que te respeito. A agência perdeu alguém muito valioso o dia que lhe jogaram.

     Chase lhe sorriu inclinando a cabeça e agradeceu o elogio com um pequeno assentimento.

     Dante se esclareceu garganta.

     —E quanto a essa oferta de ajuda...

     —Me diga.

     —Tess estava passeando com um cão quando os renegados a atacaram. Um vira-lata pequeno e feio, que não serve mais que para esquentar os pés, mas é especial para ela. De fato, foi meu presente, mais ou menos. O caso é que o cão se soltou da correia, já que o encontrei a uma quadra da casa do Ben Sullivan.

     —Quer que recupere a um cão feio e rebelde, disso se trata?

     —Bom... você disse que podia te pedir algo.

     —Sim, isso eu disse. —Chase riu.

— Está bem. Farei-o.

     Dante tirou do bolso as chaves do Porche e as entregou ao outro vampiro. Quando Chase se voltou para partir, Dante acrescentou:

     —Por certo, a pequena besta responde pelo nome de Harvard.

     —Harvard —disse Chase alargando as sílabas e sacudindo a cabeça ao tempo que dirigia a Dante um sorriso satisfeito.

— Suponho que não se trata de uma coincidência.

     Dante se encolheu de ombros.

     —É bom comprovar que o pedigree de sua prestigiosa liga acadêmica serve para algo.

     —Deus santo, guerreiro, leva me dando patadas no traseiro do primeiro minuto em que me uni à equipe, não é certo?

     —Em comparação com outros, eu fui amável. Te faça um favor a você mesmo e não olhe muito perto dos alvos aos que dispara Niko, a menos que esteja muito seguro de sua dignidade.

     —Mamões —murmurou Chase, mas seu tom estava carregado de humor.

— Fique aí e estarei de volta dentro de um momento com seu vira-lata. Vai pedir me algo mais agora que proclamei a todos os ventos meu desejo de ajustar as contas contigo?

     —De fato sim há algo mais —respondeu Dante, ficando sério ao pensar na Tess e no futuro que ela merecia.

— Mas poderemos falar disso quando voltar, não?

     Chase assentiu, captando sua mudança de humor.

     —Sim, é obvio que poderemos.

      

     Quando Chase saiu da casa de Dante e entrou no vestíbulo, Gideon o estava esperando ali.

     —Como vão as coisas aí dentro? —perguntou o guerreiro.

     —Ela segue inconsciente, mas acredito que está em boas mãos. Dante está empenhado em que fique bem, e quando se mete uma idéia na cabeça de um guerreiro como ele, não há nada capaz de impedir sua vontade.

     —Isso é certo —riu Gideon. Levava na mão uma pequena câmara de vídeo, que ligou nesse momento.

— Olhe. Esta tarde consegui captar nas escutas de satélite o que estavam fazendo alguns renegados. Mais de um pareceria formar parte da população civil dos Refúgios Escuros. Tem um momento para jogar uma olhada e possivelmente identificar a alguns deles?

     —É obvio.

     Chase olhou a pequena tela do aparelho portátil enquanto Gideon procurava as imagens até chegar a uma em particular. O material, filmado quando já era de noite, enfocava o primeiro plano de um edifício em ruínas de um dos subúrbios industriais da cidade. Mostrava quatro indivíduos saindo de uma porta traseira. Por sua maneira de caminhar e seu tamanho, Chase reconheceu em seguida que eram vampiros. O que não sabia era a que humano estariam espreitando.

     A metragem filmada seguia, e Chase observou, com repugnância, como os quatro jovens Darkhaven se aproximavam de sua presa. Atacaram depressa e com grande violência, fiéis a seu caráter de depredadores ávidos de sangue. Os ataques de turmas a seres humanos eram um pouco desconhecido entre a estirpe; só os vampiros convertidos em renegados caçavam e matavam dessa maneira.

     —Pode conseguir que esta imagem seja mais nítida? — perguntou a Gideon, em realidade sem querer seguir vendo o açougue mas de uma vez incapaz de desviar o olhar.

     —Crê que reconhece a algum deles ?

     —Sim —disse Chase, e suas vísceras se convulsionaram enquanto a imagem cada vez mais nítida mostrava o rosto despenteado e selvagem de Camden. Era a segunda vez que via o jovem nas últimas horas e a prova irrefutável de que era impossível qualquer tipo de recuperação.

— Todos são dos Refúgios Escuros de Boston. Posso-te dar os nomes, se quiser. Aquele se chama Camden. É o filho de meu irmão.

     —Porra —murmurou Gideon.

—Um desses renegados é seu sobrinho?

     —Começou a tomar carmesim e desapareceu faz quase duas semanas. Ele é a verdadeira razão pela que fui a Ordem em busca de ajuda. Queria localizá-lo e trazer o de volta antes de que isto acontecesse.

     O rosto do outro guerreiro expressava gravidade.

     —Sabe que todos os indivíduos nesta metragem de satélite são renegados. Já são viciados, Chase. Casos perdidos...

     —Sei. Vi Camden esta noite, quando Dante, Tegan e eu estivemos na casa do Ben Sullivan. Assim que olhei aos olhos, compreendi no que se converteu. Isto não faz mais que confirmá-lo.

     Gideon se manteve calado durante um comprido momento enquanto desligava o aparelho.

     —Nossa política com os renegados é bastante simples. É necessário que o seja. Sinto muito, Chase, mas se nos topamos com qualquer destes indivíduos em nossas patrulhas, não há nenhuma alternativa possível.

     Chase assentiu. Sabia que a postura da Ordem quando se tratava dos renegados era inquebrável, e depois de acompanhar Dante durante as últimas noites, sabia que tinha que ser assim. Camden estava perdido, e agora era só uma questão de tempo que a quebra ávida de sangue em que se converteu seu sobrinho fosse destruída, em combate com os guerreiros ou como resultado de suas próprias e temerárias ações.

     —Tenho que voltar acima e fazer algo por Dante —disse Chase.

— Mas retornarei dentro de uma hora, e poderei te dar qualquer informação que necessitem para ajudar a limpar as ruas desses renegados.

     —Obrigado. —Gideon lhe deu uma palmada no ombro.

— Chase, sinto-o muito. Oxalá as coisas fossem diferentes. Todos perdemos a seres queridos nesta maldita guerra. Nunca é fácil.

     —Está bem. Vejo-te mais tarde —disse Chase, e se afastou a grandes passos para o elevador que o levaria a garagem dos veiculos da Ordem ao nível da rua.

     Enquanto subia, pensava em Elise. Havia dito toda a verdade sobre o Camden a Dante e aos outros, mas seguia sem dizer a Elise. Ela tinha que sabê-lo. Tinha que estar preparada para aceitar o que tinha passado a seu filho e compreender o que significava. Chase já não ia poder trazer para a casa seu filho. Ninguém poderia fazê-lo. A verdade ia matar Elise, mas tinha que sabê-lo.

     Chase saiu do elevador e tirou o telefone móvel do bolso de seu casaco. Enquanto caminhava para o carro de Dante, tocou o botão para chamar sua casa. Elise respondeu depois do segundo timbre, sua voz soava ansiosa, esperançada.

     —Olá? Sterling, está bem? Encontraste-o?

     Chase deixou de caminhar, amaldiçoando em silêncio. Durante um segundo comprido foi incapaz de falar. Não sabia como expressar o que tinha que dizer.

     —Eu, hum... Sim, Elise, vimos Camden esta mesma noite.

     —OH, Meu Deus. —Emitiu um soluço, logo duvidou.

—Sterling, está... Por favor, me diga que está vivo.

     Merda. Não tinha pretendido fazer isto por telefone. Pensava chamá-la só para lhe dizer que chegaria mais tarde e o explicaria tudo, mas a inquietação maternal do Elise era incapaz de um espiono de paciência. Queria respostas desesperadamente, e Chase não podia seguir ocultando-lhe.

             —Ah, diabos, Elise. As notícias não são boas. —Ante o pesado e total silêncio que lhe chegava do outro lado da linha, Chase se lançou a contar os fatos.

— Viram a Cam esta noite, correndo com uma turma de renegados. Eu mesmo o vi, no apartamento do humano que tinha estado lhe vendendo carmesim. Está muito mal, Elise. Está... Meu Deus, que difícil é dizer isso trocou, Elise. É muito tarde. Camden se converteu em um renegado.

     —Não —disse ela por fim.

— Não te acredito. Está equivocado.

     —Não o estou. Deus, quanto eu gostaria de estar, mas o vi com meus próprios olhos, e também vi umas fita de vídeo dos sistemas de vigilância que têm os guerreiros. Ele e um grupo de outros jovens do Refúgio Escuro —todos eles renegados agora— foram captados por satélite, atacando a um humano em público.

     —Preciso vê-lo.

     —Não, acredite, não...

     —Sterling, me escute. Camden é meu filho. É o único que fica no mundo. Se tiver feito estas coisas, como diz... se se converteu em um animal e você tem provas disso... tenho o direito de vê-lo com meus próprios olhos.

     Chase deu golpes com os dedos sobre o teto do Porsche negro, sabendo que a nenhum dos guerreiros ia gostar de ter a uma civil no recinto.

     —Sterling, está aí?

     —Sim, sigo aqui.

     —Se eu ou a memória de seu irmão lhe importamos, embora só seja um pouco, então te peço, por favor, que me deixe ver meu filho.

     —Está bem —disse, cedendo por fim e consolando-se com a idéia de que se lhe concedia essa duvidosa petição, ao menos estaria presente para sujeitar a Elise quando caísse.

— Tenho algo que fazer acima, mas passarei pelo Refúgio Escuro aproximadamente dentro de uma hora para te recolher.

     —Estarei-te esperando.

    

     Esse incrível calor havia voltado, meditava Tess de dentro do escuro fluxo que a sujeitava. Tendia seus sentidos para a maré de calor, para o maravilhoso aroma e sabor do fogo líquido que a estava nutrindo. Os pensamentos conscientes pareciam bailar ao limite de seu alcance, mas as terminações nervosas se acendiam como réstias de diminutas luzes, como se seu corpo se descongelasse lentamente, voltando para a vida centímetro a centímetro, célula a célula, depois de um comprido e gélido sono.

     —Bebe —lhe assinalou uma voz grave, e ela obedeceu.

     Ingeriu mais calor por sua boca, tragando-o com avidez. Um estranho despertar iniciou em seus adentros enquanto bebia a fonte desse poderoso calor. Começou nos dedos de suas mãos e seus pés, logo se estendeu por seus membros, uma força elétrica que zumbia dentro dela como um fluxo.

     —Assim se faz, Tess. Toma mais. Simplesmente segue bebendo, meu anjo.

     Não teria podido parar embora o desejasse. Era como se cada sorvo aumentasse a sede por outro mais, ou como se cada gole não fizesse mais que acrescentar combustível ao fogo que ardia em suas vísceras. Sentia-se como uma menina de peito, vulnerável e inexperiente, totalmente confiada, necessitada de sua mãe no sentido mais elementar.

     Estava recebendo a vida; sabia na parte mais primitiva de sua mente. Tinha estado ao bordo da morte, o suficientemente perto para tocá-la, possivelmente, mas este calor, este escuro elixir, tinha-a retido.

     —Mais —pigarreou. Tinha, ao menos, a sensação de ter falado. A voz que ouviu soava débil e distante. Tão desesperada.

— Mais.

     Tess se estremeceu quando uma súbita ausência de calor respondeu a sua exigência. Não, pensou, enquanto um pânico sombrio surgia da perda. Estava-a deixando agora. Seu anjo da guarda se foi, levando-a fonte da vida que lhe tinha estado dando. Gemeu fracamente, obrigando a suas mãos inertes a estender-se em busca dele.

     —Dante...

     —Estou aqui a seu lado. Não vou a nenhuma parte.

     O frio se desvaneceu e um grande peso se tendeu ao seu lado. Sentiu o calor ao longo de seu corpo, enquanto ele a apertava contra si. Sentiu uns dedos fortes contra sua nuca, que aproximavam sua cabeça a essa voz, empurrando sua boca a firme coluna do pescoço masculino. A pele úmida e cálida entrou em contato com seus lábios.

     —Vêem aqui, Tess, e bebe de mim. Toma tudo o que necessite.

     Beber dele? Alguma parte cada vez mais imprecisa de sua consciência rechaçava a idéia como absurda, impensável, mas outra parte dela —a parte que seguia dando voltas loucas na maré, lutando por chegar a terra firme— fez que sua boca procurasse o que lhe estava oferecendo de maneira tão aberta.

     Tess abriu os lábios e sorveu intensamente, sedenta, enchendo a boca com a rugiente força do dom de Dante.

     Santo céu.

     Enquanto Tess fechava a boca sobre a veia que ele tinha aberto para ela em seu pescoço, todo o corpo de Dante se esticou como a corda de um arco. A sucção faminta de seus lábios, a sedosa carícia de sua língua enquanto sua boca ingeria e tragava o sangue de Dante, fazia que seu membro endurecesse, com uma ereção tão feroz e pétrea como nunca antes tinha experimentado.

     Não sabia quão intenso seria deixar que ela bebesse dele de maneira tão íntima. Era a primeira vez em toda sua existência que dava seu sangue a outro. Sempre tinha sido o receptor, nutrindo-se por necessidade e freqüentemente por prazer, mas nunca com uma companheira de sangue.

     Nunca com uma mulher que o comovesse tanto como Tess.

     E o fato de que agora ela se nutrisse dele por puro instinto de sobrevivência, porque seu sangue era o único elemento —a única substância— que o corpo dela necessitava nesse momento, só fazia que o ato lhe resultasse ainda mais erótico. Seu sexo vibrava, faminto e exigente, uma pressão pesada que queria ignorar mas não podia.

     Deus santo, era como se lhe estivesse chupando essa mesma parte viril, cada movimento de sua boca excitando-o ainda mais, quase fazendo perder o controle por completo. Com um gemido, Dante afundou as mãos nos lençóis de seda de sua cama, tentando agüentar enquanto Tess se nutria dele por uma questão de necessidade primitiva.

     Seus dedos começavam a mover-se nervosamente na zona do ombro de Dante onde se agarravam, lhe amassando os músculos em um ritmo instintivo enquanto continuava lhe sugando o sangue. Ele sentiu como Tess ia recuperando suas forças com cada minuto que passava. Seu fôlego se fazia mais profundo, deixava de ser essa rápida mas superficial compressão dos pulmões para converter-se em uma cadência de largas e sãs aspirações.

     Sentir a recuperação de sua vitalidade foi o afrodisíaco mais intenso que jamais tinha experimentado. Fazia falta o esforço do Hércules para resistir a tentação de agarrá-la em seus braços e apertá-la sob seu corpo para saciar seu ardente desejo.

     —Segue bebendo —lhe disse, sua boca cheia da presença de suas próprias faces estendidas e uma língua espessa de tanta sede.

— Não pares, Tess. Tudo é para você. Só para você.

     Ela se aproximou dele agora, esmagando os seios contra seu peito, e os quadris... Meu Deus, os quadris de Tess estavam esfregando contra sua pélvis, balançando-se em um movimento sutil e instintivo enquanto a boca seguia exercendo-se febrilmente contra seu pescoço. Dante se tombou de costas e permaneceu tão quieto como podia para ela, fechando os olhos em uma tortura deliciosa, enquanto seu pulso dava saltos.

     Não estava acostumado a controlar-se, mas para Tess era capaz de suportar essa dor toda a noite se fazia nesessário. Gozava fazendo-o, em realidade, por muito que o desejo que sentia o estivesse fazendo migalhas. Estendeu-se sobre o colchão e absorveu cada matiz dos movimentos corporais de Tess, cada suave miado e gemido que fazia contra sua garganta.

     Teria sido capaz de agüentar ainda mais se Tess não se pôs em cima dele, sem apartar a boca de sua veia, com o cabelo caindo solto sobre seu peito. A coluna vertebral de Dante se arqueou debaixo dela, levantando-se da cama enquanto ela seguia sugando, agora com maior profundidade, e seu esbelto corpo ardia ao tato, movendo-se sobre ele em lentas ondas eróticas.

     Começou a cavalgá-lo, suas coxas abertas sobre os quadris dele, seu sexo moendo o seu como se estivessem os dois nus e fazendo o amor. Inclusive através da roupa esportiva de náilon, podia sentir o intenso calor de Tess. Suas calcinhas estavam úmidas do desejo, o doce aroma de sua excitação lhe metia na cabeça como um martelo.

     —Meu Deus —gemeu, levantando as mãos para agarrar-se a cabeceira enquanto o ritmo com o que ela se alimentava aumentou freneticamente.

     Ela se agitava sobre ele, cada vez mais de forma mais rápida, mais enérgica, ao mesmo tempo que seus dente humanos, tão desafilados, atiam-se ao pescoço de Dante e lhe sugavam a veia, cada vez com mais força. Ele sentiu como o climax se elevava nela, desatando-se. O seu próprio lhe vinha em cima também com a mesma rapidez, seu membro levantando-se, saltando, a ponto de estalar. No mesmo segundo em que Tess gozou, Dante se entregou a sua própria liberação. O orgasmo lhe chegou de repente, arrasando-o, espremendo-o. Estava perdido ante sua potência, incapaz de deter as ferozes pulsações que pareciam seguir eternamente enquanto Tess se acomodava sobre ele em um pesado e satisfeito sono.

     Depois de um momento, Dante separou as mãos da cabeceira e as pôs brandamente sobre o descansado corpo de Tess. Queria estar dentro dela, necessitava-o como necessitava o ar para respirar, mas ela estava vulnerável nesse momento e não estava disposto a usá-la. Agora que tinha saído do perigo, haveria outros momentos para que estivessem juntos assim. Viriam tempos melhores.

     Por Deus, teriam que vir.

  

     Tess despertou com calma, seu rosto atravessando a superfície de uma cálida e escura onda que empurrava seu corpo para uma beira acolhedora. Respirou profundamente e sentiu o ar frio e purificador entrar de repente em seus pulmões. Pestanejou uma, duas vezes. As pálpebras lhe pesavam como se tivesse estado dormida durante dias.

     —Olá, anjo —disse uma voz grave e familiar desde muito perto de seu rosto.

     Tess levantou seus olhos até vê-lo: Dante, olhando-a, com o olhar sério mas sorridente. Acariciou-lhe a frente, lhe alisando o cabelo úmido e apartando-se o do rosto.

     —Como te encontra ?

     —Bem. —sentia-se muito mais que bem, com seu corpo convexo sobre um confortável colchão, envolto em negros lençóis de seda e protegido pelos fortes braços de Dante.

—Onde estamos?

     —Em um lugar seguro. É aqui onde vivo, Tess. Nada poderá te fazer mal aqui.

     Ela registrou seu aprumo com uma pontada de confusão, algo sombrio e gélido que se abatia nos borde de sua consciência. Medo. Não o sentia agora, não para ele, mas a sensação permanecia como uma neblina pega a sua pele, gelando-a. Tinha sentido medo fazia pouco tempo: um medo mortífero.

     Tess se tocou o pescoço com uma mão. Os dedos entraram em contato com uma zona de pele que estava tenra e inflamada. Como um raio repentino, uma lembrança estalou em sua mente: um rosto horroroso, com olhos que brilhavam como carvões ardentes, com a boca totalmente aberta que vaiava de um modo aterrador, mostrando seus enormes e agudos dentes.

     —Atacaram-me —murmurou, e as palavras se formavam até antes de que as lembranças arraigassem.

— Vieram para mim na rua e... atacaram-me. Dois deles me arrastaram fora da rua e me...

     —Já sei —disse Dante, lhe apartando cuidadosamente a mão do pescoço.

—Mas agora está bem, Tess. Tudo terminou e não tem nada que temer.

     Em imagens imprecisas, os eventos da noite passaram através de sua mente. Ela voltou a vivê-lo tudo, desde seu passeio por diante do apartamento do Ben e o descobrimento de que alguém que não era Ben estava ali dentro, até a espantosa visão dos dois homens grandes —se é que se tratava de homens em realidade— saltando do balcão até a rua e perseguindo-a.

     Via seus terríveis rostos, sentia a força dolorosa das mãos que a agarraram e a arrastaram para as sombras, onde começou a verdadeira brutalidade.

     Ainda sentia o terror desse instante, quando um deles sujeitou seus braços e o outro a esmagou contra o chão com o peso de seu imenso e musculoso corpo.

     Pensava que a iam violar, e possivelmente a golpeá-la também, mas o propósito dos atacantes era só ligeiramente menos atroz.

     Tinham-na mordido.

     Os dois monstros selvagens a sujeitaram como uma presa vencida sobre o chão das ruínas sombrias de um abrigo. Logo lhe morderam o pescoço e o pulso e começaram a beber de seu sangue.

     Tinha estado segura de que ia morrer ali, mas logo aconteceu algo milagroso. Apareceu Dante. Tinha-os matado aos dois, algo que Tess mais que ver havia sentido. Tendida sobre o incômodo chão de compensado, enquanto o aroma de seu próprio sangue aturdia seus sentidos, sentiu a presença de Dante. Sentiu como sua fúria enchia o pequeno espaço como uma tempestade de negro ardor.

     —Você... você também esteve ali, Dante. —Tess se levantou na cama. Seu corpo parecia milagrosamente forte, sem dores ou agulhadas depois do que tinha passado. Agora que ia limpando a mente, sentia-se refrescada e cheia de energia, como se tivesse despertado de um sono profundo e rejuvenescedor.

—Você me encontrou ali. Você me salvou, Dante.

    O sorriso dele parecia tenso, como se não estivesse totalmente de acordo com o que dizia e como se não se sentisse cômodo com sua gratdão. Mas a envolveu com seus braços e lhe beijou meigamente os lábios.

     —Está viva, e isso é quão único importa.

   Tess o abraçou, sentindo-se quase parte dele de uma maneira estranha. Os batimentos do coração de Dante reverberavam na cadência do seu próprio, e o calor de seu corpo parecia transpassar sua pele e seus ossos, enchendo -a de calor por dentro. Sentia-se conectada a ele agora de um modo muito visceral. Era uma sensação extraordinária, tão potente que a desconcertava.

     —Agora que está acordada —murmurou Dante a seu ouvido— há alguém te esperando na outra habitação que tem vontades de ver-te.

     Antes de que pudesse responder, Dante desceu da cama grande e se aproximou da sala do lado. Detrás, Tess não podia deixar de admirar o movimento viril de seu corpo, e a forma em que a atrativa rede de tatuagens multicoloridas em suas costas e seus ombros se balançavam com tanta graça com cada um de seus oscilantes passos. Desapareceu na outra habitação e Tess ouviu uma pequena queixa animal que reconheceu imediatamente.

     —Harvard —exclamou no instante em que Dante voltou para o dormitório, levando em seus braços ao pequeno e adorável terrier que se agitava freneticamente.

— A ele também o salvou?

     —Não —disse Dante.

— O vi solto e correndo pela rua antes de te encontrar e de te trazer aqui. Assim que esteve a salvo, mandei a alguém para que o buscasse.

     Pôs o cão sobre a cama e Tess foi assaltada imediatamente pela excitada massa de pele. Harvard lhe lambeu as mãos e o rosto enquanto ela o levantava para abraçá-lo, transbordando de alegria por vê-lo depois de acreditá-lo perdido na rua perto do apartamento do Ben.

     —Obrigado —disse, através de uma repentina névoa de lágrimas, enquanto o feliz reencontro prosseguia.

— Devo confessá-lo. Acredito que estou totalmente apaixonada por este pequeno animal.

     —Que sorte tem o cão —comentou Dante. Sentou-se sobre a beira da cama, observando como Harvard lavava a bochecha de Tess com meticuloso entusiasmo. Mas sua expressão era muito controlada, muito séria, quando seus olhares voltaram a cruzar-se.

     —Há... coisas que temos que falar, Tess. Tinha a esperança de que você nunca teria que formar parte de tudo isto, mas estou te envolvendo cada vez mais. Depois de esta noite, precisa compreender o que passou, e por que.

     Assentindo em silêncio, ela soltou Harvard e se enfrentou ao sombrio olhar de Dante.

     Uma parte dela já intuía por onde iria a conversação: territórios ainda desconhecidos, sem dúvida, mas depois do que tinha visto essa noite, Tess sabia que muitas coisas que sempre tinha considerado reais e normais nunca voltariam a ser como antes.

     —Do que se trata, Dante? Esses homens que me atacaram, não eram homens normais. Não é certo ?

     Dante moveu a cabeça vagamente.

     —Não, não eram homens. Eram criaturas perigosas, viciadas no sangue. Chamamo-os renegados.

     —Viciados no sangue —disse ela, sentindo um nó nas vísceras ante a idéia. Olhou o pulso, onde brilhavam os vermelhos rastros de uma dentada, embora em vias de recuperação.

— Meu Deus. Isso é o que estavam fazendo, beber de meu sangue? Não acredito. Só há um nome para esse tipo de comportamento psicótico: vampiro.

     O olhar fixo, firme e incisiva de Dante não fez nenhum intento de refutação.

     —Os vampiros não existem —disse ela, com voz cortante.

— Ao fim e ao cabo, estamos falando do real. Não podem existir de verdade.

     —Sim que existem, Tess. Não da maneira que lhe ensinaram a acreditar. Não como mortos viventes ou demônios sem alma, mas sim como uma espécie diferente e híbrida. Os que lhe atacaram esta noite são o pior tipo. Não têm nem consciência nem capacidade de lógica ou controle. Matam indiscriminadamente e seguirão fazendo-o se ninguém consegue dominá-los logo. É por isso que eu e outros que estão neste recinto... para nos assegurar de que os renegados sejam aniquilados antes de que se convertam em uma pestilência sem comparação em tudo o que viu a humanidade na época moderna.

     —Venha! —burlou-se Tess, com vontades de não acreditar mas sem encontrar a maneira de rechaçar a extravagante idéia de Dante, já que nunca o tinha visto ou o tinha ouvido mais sincero. Mais implacavelmente racional.

— Me está dizendo que é algum tipo de caçador de vampiros?

     —Sou um guerreiro. Estamos em uma guerra, Tess. As coisas não têm feito mais que piorar agora que os renegados se apropriaram do carmesim.

     —Carmesim? O que é isso?

     —A droga com a que Ben Sullivan esteve traficando pela cidade durante os últimos meses. Aumenta o desejo de sangue e reduz as inibições. Está criando a muitos mais destes assassinos.

     —E o que passa com o Ben? Ele sabe? É por isso que esteve em seu apartamento a outra noite?

     Dante assentiu.

     —Ele diz que uma corporação anônima o contratou o verão passado para criar a droga. Suspeitamos que essa corporação pode ter sido uma coberta para os renegados.

     —Onde está Ben agora mesmo?

     —Não sei, mas vou inteirar disso.

     O tom de Dante ao dizer isso soou muito frio, e Tess não pôde menos que sentir-se preocupada com o Ben.

     —Os homens... quer dizer, os renegados que me atacaram tinham estado registrando seu apartamento.

     —Sim. É possível que o estivessem procurando, mas não estamos seguros.

     —Acredito que eu poderia saber algo do que queriam.

     Dante franziu o cenho.

     —Em que sentido?

     —Onde está minha jaqueta? —Tess jogou uma olhada por toda a habitação mas não via sua roupa. Não tinha posto mais que um prendedor e umas calcinhas por debaixo dos lençóis que a cobriam.

— Outro dia encontrei algo na clínica. Um USB. Ben o escondeu em uma de minhas salas de reconhecimento médico.

     —O que havia no USB?

     —Não sei. Não tentei abri-lo. Está no bolso de minha jaqueta...

     —Merda —Dante se levantou de um salto.

— Voltarei em uns minutos. Estará bem aqui sozinha?

     Tess assentiu. Seguia tentando assimilar tudo o que estava ocorrendo, todas as coisas incríveis e perturbadoras que estava aprendendo sobre o mundo que sempre tinha acreditado que conhecia.

     —Dante?

     —Sim?

     —Obrigado... por me salvar a vida.

     Algo escuro cintilou nos olhos cor uísque de Dante, algo que suavizava suas duras mas belas facções. Aproximou-se dela sobre a cama e passou os dedos entre o cabelo de sua nuca, levantando suo rosto. O beijo foi doce, quase reverente.

     —Fique aqui, anjo. Voltarei em seguida.

    

     Elise apoiou a mão contra a lisa parede do corredor e tentou recuperar o fôlego. Apertava a outra mão contra seu ventre, e seus dedos estavam abertos sobre a larga bandagem vermelha de seu luto de viúva.

     Uma onda de náusea fez tremer suas pernas e por um instante pensou que vomitaria ali onde estava. Em qualquer lugar que estivesse.

     Fugiu do laboratório tecnológico do recinto em um estado de revulsão total, enojada pelo que lhe tinham mostrado. Agora, depois de correr cegamente através de um vestíbulo, e logo depois de outro, não tinha em realidade nenhuma idéia de onde tinha chegado. Só sabia que precisava sair dali.

     Seria impossível se afastar o suficiente de toda essa brutalidade que acabava de ver.

     Sterling lhe tinha advertido que as imagens do Camden que tinha conseguido a vigilância de satélite da Ordem eram nítidas e terríveis. Elise acreditava que estava preparada, mas ver seu filho e a vários outros renegados participando do massacre total de um ser humano tinha sido muito pior do imaginável. Sabia que aquele pesadelo a acompanharia durante o resto de seus dias sobre a terra.

     Apoiando as costas contra a parede do corredor, Elise se deixou cair lentamente para o chão. Não podia conter as lágrimas nem as sacudidas de soluços que queimavam sua garganta. No fundo da angústia se sentia culpada, recriminava-se não ter tido mais cuidado com o Camden. Por ter pensado sempre que ele tinha tão bom coração, que era tão forte, que era impossível que lhe acontecesse algo tão terrível.

     Seu filho não podia ser esse monstro ávido de sangue que tinha visto na tela do computador. Ele tinha que estar ali dentro, em algum lugar, ainda recuperável. Ainda salvavel. Ainda Camden, seu adorado e querido filho.

     —Está bem?

     Surpreendida pela grave voz masculina, Elise deu um salto, levantando seus olhos chorosos. Devolveram-lhe o olhar uns olhos de um intenso verde esmeralda detrás de uma cascata descontrolada de cabelo loiro. Era um dos dois guerreiros que tinha chegado ao Refúgio Escuro para procurar Sterling essa noite... o mais frio e imponente dos dois, que tinha pego e retido Elise quando tentava correr para defender Sterling.

     —Está lesada? —perguntou, ao ver que não podia fazer mais que olhá-lo de onde se desabou, em postura humilhante, sobre o chão do corredor.

     Aproximou-se dela, com a expressão impassível, indecifrável. Estava meio nu e levava jeans largos que se penduravam de maneira indecente em torno de seus magros quadris e uma camisa branca, totalmente desabotoada, mostrava os músculos de seu peito e seu torso.

     Uma assombrosa amostra de dermoglifos o cobria do ventre aos ombros, e a densidade e o detalhismo não deixavam nenhuma dúvida de que esse guerreiro pertencia a estirpe da primeira geração. O que queria dizer que era um dos mais poderosos e agressivos da raça dos vampiros. Os da primeira geração eram escassos; Elise, por muitas décadas que tivesse vivido nos Refúgios Escuros, nunca antes tinha chegado a ver um.

     

     —Sou Tegan —lhe disse, e lhe deu a mão para ajudar a levantar-se.

     O contato lhe parecia muito direto, embora não podia esquecer que essas enormes mãos masculinas tinham estado apertadas sobre seus ombros e sua cintura só umas poucas horas antes. Havia sentido o duradouro calor do tato durante muito tempo depois de que a soltasse, e os rastros de seus fortes dedos pareciam queimar sua carne.

     Conseguiu levantar-se sem necessidade de ajuda e secou torpemente as bochechas úmidas.

     —Sou Elise —lhe disse, fazendo uma educada reverência com a cabeça.

—Sou a cunhada do Sterling.

     —Enviuvou recentemente? —perguntou, inclinando a cabeça enquanto seu olhar penetrante a percorria dos pés a cabeça.

     Elise jogava com a bandagem escarlate que rodeava sua cintura.

     —Perdi a meu casal faz cinco anos.

     —Você segue de luto.

     —Sigo lhe amando.

     —Sinto-o —disse ele, de maneira inexpressiva, com o rosto plácido.

— E sinto também o que passou com seu filho.

     Elise baixou o olhar, sem querer ouvir condolências pelo Camden quando ainda se aferrava a esperança de que podia recuperá-lo.

     —Não é culpa sua — disse ele.

— Você não o empurrou a isto , e não teria podido detê-lo.

     —Como? —murmurou, assombrada de que Tegan soubesse algo de sua culpa, de sua vergonha secreta. Alguns da primeira geração tinham o dom de ler as mentes, mas ela não tinha tido consciência de que ele estava examinando seus pensamentos, e só se podia penetrar aos humanos mais fracos sem algum indício de invasão psicótica.

— Como pôde...?

     A resposta lhe chegou imediatamente, a explicação desse estranho zumbido de quão sentidos sentiu quando ele a havia tocado ante essa noite, o ardor de seus dedos que lhe deixou impregnado na pele.

     Tinha adivinhado suas emoções nesse instante. Tinha-a despido sem contar com sua vontade.

     —Sinto-o —disse.

— Não é algo que possa controlar.

     Elise pestanejou para superar seu desconforto. Ela sabia bem o que era ser condenado a uma habilidade como essa. Sua própria destreza psicótica a tinha convertido em uma presa aos Refúgios Escuros, incapaz de suportar o bombardeio de pensamentos negativos de quão humanos a assaltavam cada vez que estava entre eles.

     Mas o fato de compartilhar uma mesma aflição com este guerreiro não fazia que se sentisse mais cômoda em sua presença. E sua preocupação pelo Camden —a intensa dor que sentia quando pensava no que estaria fazendo ali fora, apanhado dentro da violência dos renegados— a encheu da necessidade de estar a sós.

     —Deveria ir —disse, mais a si mesmo que a Tegan.

— Necessito... tenho que sair daqui. Não posso estar aqui nestes momentos.

     —Quer ir a sua casa?

     Encolheu-se de ombros, logo moveu a cabeça, sem saber o que necessitava.

     —A qualquer lugar —sussurrou.

— Quão único preciso é ir.

     Mais perto agora, deslocando-se sem chegar nem a agitar o ar que o rodeava, Tegan disse:

     —Eu a levarei.

     —Não, não queria dizer...

     Olhou para trás pelo corredor, na direção de onde tinha vindo, pensando que talvez deveria tentar encontrar a Sterling.

     Outra parte dela não estava muito segura de que lhe conviesse estar na companhia desse guerreiro naqueles momentos, e muito menos considerar a possibilidade de ir-se com ele sem outra companhia.

     —Tem medo de que a morda , Elise? —perguntou ele. Houve um leve movimento nas comissuras de sua indolente e sensual boca, o primeiro indício que tinha visto nele que transmitia um pouco de emoção.

     —É tarde —assinalou ela, procurando uma desculpa educada para negar o convite.

— Deve estar a ponto de amanhecer. Não queria que se arriscasse a estar exposto...

     —Conduzirei rápido, então. —Agora ele sorriu, um sorriso largo que mostrava que sabia perfeitamente que ela estava tentando evitá-lo e que não estava disposto a aceitá-lo.

— Venha. Saiamos daqui.

     Que Deus a ajudasse, mas quando lhe tendeu a mão, Elise duvidou só um instante antes de tomá-la.

      

     Dante não voltou em poucos minutos e a espera angustiava a Tess. Tinha tantas perguntas, tantas coisas que resolver em sua mente. E apesar do vivo zumbido interno de seu corpo, por fora se sentia drogada, inquieta.

     Uma ducha quente no amplo quarto de banho de Dante a ajudou a tirar-se parte dessa sensação, e a ajudou também colocar roupa limpa que lhe tinha deixado no dormitório. Enquanto Harvard a observava, feito um novelo na cama, Tess colocou as calças de veludo cotelê cor canela e a camisa marrom, e logo se sentou para colocar os sapatos.

     As raspaduras e o sangue salpicada eram vivos avisos do ataque que tinha sofrido. Um ataque, como Dante havia tentando convencê-la, perpetrado por criaturas desumanas com uma sede —um vício— pelo sangue. «Vampiros.»

     Tinha que haver uma explicação mais lógica, um pouco ancorado nos fatos, não no folclore. Tess sabia que era impossível, mas sabia também que era algo que ela mesma tinha experimentado. Sabia o que tinha visto, quando o primeiro assaltante saltou do balcão do apartamento do Ben e se deixou cair sobre o chão com a agilidade de um gato. Sabia o que havia sentido, quando esse homem e o outro que o acompanhava a arrastaram fora da calçada e a meteram nesse velho abrigo. Tinham-na mordido como animais raivosos. Tinham perfurado sua pele com suas imensas faces e tinham sugado seu sangue, enchendo as bocas com ela, nutrindo-se dela como se tivessem saído diretamente de um filme de terror.

     Como se fossem os vampiros que Dante dizia que eram.

       Pelo menos estava a salvo agora, em qualquer lugar que fora que Dante houvesse a trazido. Examinou o grande dormitório, mobiliado de maneira simples e nada pretensiosa. Eram móveis masculinos, com linhas retas e um acabamento escuro. A única nota diferente era a cama. A enorme cama, com baldaquín, dominava a habitação, e seus lençóis de seda negra e brilhante eram tão suaves e radiantes como a asa de um corvo.

     Tess encontrou uma decoração com o mesmo bom gosto no salão do lado. As habitações de Dante eram cômodas e diretas, como o homem mesmo. Em todo o espaço havia uma atmosfera caseira, mas não parecia uma casa. Não havia janelas em nenhuma das paredes, só quadros de arte contemporânea que deviam ser muito caros e fotografias emolduradas. Tinha-lhe comentado que este lugar era um recinto e Tess se perguntava agora onde estava exatamente.

     Saiu do salão e entrou em um saguão com ladrilhos. Cheia de curiosidade, abriu a porta e apareceu um corredor de radiante mármore branco. Olhou pelo comprido vestíbulo e logo na outra direção. Estava todo vazio, não havia nada mais que um túnel em curva feito de pedra polida. Sobre o chão, inserida entre o níveo mármore, havia uma série de símbolos; arcos geométricos entrelaçados com espirais de obsidiana. Eram estranhos e intrigantes, e em algumas parte formavam desenhos similares as formosas tatuagens multicoloridas que levava Dante sobre seu torso e seus braços.

     Tess se agachou para olhar melhor. Absorta no estudo dos símbolos não se deu conta de que Harvard estava ao seu lado até que o terrier saiu correndo pelo corredor.

     —Harvard, volta aqui! —gritou, mas o cão seguiu correndo e desapareceu detrás da curva do vestíbulo.

     Maldita seja.

     Tess levantou, olhou por volta dos dois lados do corredor vazio, e saiu atrás do cão. A perseguição a conduziu por um comprido trecho do corredor, e logo por outro. Cada vez que estava a ponto de apanhar ao terrier, este se voltava a escapar, brincando de correr pelo interminável labirinto do vestíbulo como se estivessem jogando.

     —Harvard, pequeno idiota, para! —sussurrou com raiva, mas não serviu para nada.

     Estava-se impacientando e não sabia se deveria estar percorrendo esse lugar a sós. Embora não as via, estava segura de que deviam haver câmaras de segurança que estariam registrando cada um de seu movimento desde detrás dos opacos círculos vidro que estavam instaladas com intervalos de dois ou três metros no teto do corredor.

     Em nenhum lugar havia sinais que lhe indicassem onde estava ou mostrassem para onde conduziam os labirínticos corredores. Em qualquer lugar que fosse esse lugar que Dante chamava sua casa, tinha toda a pinta de ser uma agência governamental da mais alta tecnologia. O qual só outorgava mais credibilidade a suas escandalosas descrições de uma guerra clandestina e da existência de perigosas criaturas da noite.

     Tess seguiu ao cão por um último giro para a direita que desembocava em outra ala do recinto. Por fim, a fuga do Harvard chegou a seu fim. Umas portas giratórias obstruíam seu caminho ao final do vestíbulo, onde havia umas pequenas janelas quadradas, ao nível do olho, nubladas com cristal esmerilhado.

     Tess se aproximou com cautela, tentando não assustar ao cão, mas ao mesmo tempo insegura do que poderia haver ao outro lado das portas. Reinava uma calma total. Não havia nada mais que o interminável mármore branco em todas as direções. Flutuava no ar um aroma vagamente anti-séptico. De algum lugar próximo, ouvia-se o débil assobio eletrônico de um equipamento de laboratório e o ritmo de outro som metálico que não reconhecia.

     Estava em algum tipo de ala de medicina? Parecia o suficientemente esterilizada, mas não se viam sinais exteriores de que houvesse pacientes. Não havia empregados correndo por toda parte. Nenhum sozinho, ao parecer.

     —Vêem aqui, lindo cachorrinho —murmurou, agachando-se para recolher Harvard, que se tinha convexo perto das portas.

     Sustentando-o com um braço contra seu peito, Tess lentamente entreabriu uma das portas e olhou para fora. Só viu brilhar uma luz tênue, uma semiescuridão que a tranqüilizou. A ambos os lados do vestíbulo interior havia uma série de portas fechadas. Tess passou pelas portas giratórias e avançou alguns passos.

     Descobriu em seguida a fonte dos assobios. Havia um painel digital pendurado da parede a sua esquerda. O conjunto de luzes do monitor estava escuro, com a exceção de um punhado na parte inferior do painel. Parecia ser algum tipo de monitor EKG, embora era totalmente diferente a qualquer que tivesse visto antes. E da habitação mais longínqua do vestíbulo provinha o reiterado som de metal pesado.

     —Olá? —gritou Tess, no espaço vazio.

— Há alguém?

     No mesmo instante em que as palavras saíram de seus lábios, todos outros sons cessaram, incluindo os assobios do monitor. Olhou para o painel a tempo para ver apagar as luzes. Como se alguém as tivesse desligado da habitação do final.

     Um calafrio lhe percorreu a coluna vertebral. Entre seus braços, Harvard começou a retorcer-se e choramingar. Conseguiu escapar, saltou ao chão e voltou correndo pelo corredor. Tess não sabia pôr nome ao medo que a estava atravessando, mas não estava disposta a ficar ali e ponderá-lo.

     Voltou-se para as portas giratórias. Começou a caminhar rapidamente para elas, girando a cabeça para vigiar algum movimento possível. Sentiu uma súbito descida da temperatura; uma brisa gélida na pele, que subiu arrastando-se por detrás de seu pescoço.

     —Merda —sussurrou, feita um molho de nervos.

     Estendeu a mão para empurrar a porta e deu um salto para trás quando sua palma entrou em contato com algo quente e inerte. Tess se deteve de repente e girou a cabeça, aterrada. Seu olhar se encontrou com o rosto espantosamente cicatrizado e com o torso de um homem imenso e musculoso.

     Não, não era um homem.

     Um monstro, com as mesmas faces enormes e os mesmos olhos selvagens de cor âmbar intenso que os que a tinham atacado na rua.

     Um vampiro.

     Em um brilho de lembrança vivida e horrível, Tess foi assaltada por um bombardeio de imagens do ataque anterior: os violentos dedos cravados em seus braços, esmagando-a contra o chão; dente afiados que rasgavam sua pele, tironeando suas veias com intermináveis, febris movimentos; espantosos grunhidos e gemidos animais enquanto essas bestas se alimentavam de seu sangue. Voltava a ver a calçada iluminada pela lua, a ruela escura, o abrigo em ruínas onde tinha acreditado que ia morrer.

     E logo, da mesma maneira repentina e incongruente, voltava a ver o pequeno armazém na parte posterior da clínica. Havia um homem grande de cabelo escuro acurrucado sobre o chão, sangrando. Estava moribundo, crivado por balas e com outras feridas terríveis. Estendeu-lhe a mão...

     Não, isso não pertencia a suas lembranças. Não tinha ocorrido em realidade... Ou sim?

     Não teve a oportunidade de ir encaixando as peças. O vampiro que obstruía sua fuga avançou, espreitando-a, com a cabeça inclinada enquanto a esquadrinhava com fúria incontrolável, suas enormes faces de um branco mortífero, o suficientemente afiadas para destroçá-la em pedaços.

    

     Dante estava em pé no despacho do Gideon e Savannah, esperando o veredicto do USB que Tess tinha levado consigo no bolso de sua jaqueta.

     —Vê-te capaz de decifrá-lo, Gid?

     —Por favor... —O vampiro loiro lhe olhou com desdém.

—Está de brincadeira —disse, fazendo ênfase nos vestígios de seu acento inglês. Já tinha conectado o pendrive a seu computador, e seus dedos voavam sobre o teclado.

— Entrei nas páginas do FBI, da RECUA, de nossa própria IID, e em quase todas as base de dados A prova de hackers que existem. Isto será pão comido.

     —Ah, sim? Me conte o que encontrar. Agora tenho que ir. Deixei Tess esperando...

     —Tranqüilo —disse Gideon.

— Quase o tenho. Confia em mim. Não demorarei muito, possivelmente cinco minutos. Vamos fazer o interessante. Me dê dois minutos e trinta segundos, máximo.

     A seu lado, apoiada contra o antigo escritório de mogno esculpida, vestida com jeans escuros e um suéter negro, Savannah sorriu e pôs os olhos em branco.

     —Vive para impressionar, sabe...

      

     —Seria mais suportável se o bode não tivesse sempre razão —acrescentou Dante. Savannah riu.

     —Bem-vindo a meu mundo.

     —Que pena que não saiba ler arquivos de computador com seu dom —lhe disse.

— Assim não faria falta suportar a este tipo.

     —Ai —suspirou ela, com dramatismo.

— A psicometría não funciona assim, não para mim ao menos. Posso-te dizer o que tinha posto Ben Sullivan quando segurava o USB, ou te descrever a habitação em que estava, ou seu estado de ânimo... mas sou incapaz de penetrar os circuitos eletrônicos.

     Dante se encolheu de ombros.

     —Vá sorte a nossa, não?

     Junto ao computador, Gideon fez uns últimos movimentos sobre o teclado, e se tornou atrás em sua cadeira, juntando as mãos detrás de sua cabeça.

     —Já estou. Demorei um minuto e quarenta e nove segundos, para ser exatos.

     Dante rodeou o escritório para olhar a tela.

     —O que temos?

     —Arquivos de dados. Folhas de cálculo. Diagramas de fluxo. Pranchas farmacêuticas. —Gideon moveu o mouse e abriu um dos arquivos.

— Parece um experimento químico. Alguém quer uma receita para confeccionar carmesim?

     —Meu Deus. É isso ?

     —Eu apostaria que sim. —Gideon fez uma careta, enquanto abria outros arquivos na tela.

— Mas há mais de uma fórmula arquivada no USB. Não saberemos qual é a válida até que obtenhamos os ingredientes e provemos cada um.

     Dante se penteou o cabelo e começou a dar voltas pelo despacho. Tinha curiosidade por saber mais das fórmulas que Ben Sullivan tinha guardado no pendrive, mas ao mesmo tempo estava desejando voltar para sua casa. Podia intuir também a inquietação de Tess, sentindo a conexão que agora compartilhavam pelo vínculo sangüíneo como uma atadura invisível que os unia como se fossem uma só pessoa.

     —Como está ela? —perguntou Savannah, que evidentemente percebia a distração.

     —Melhor —disse ele.

— Já está acordada e se está recuperando. Fisicamente está perfeita. Quanto ao resto, estive tentando explicar-lhe tudo, mas sei que está confundida.

     Savannah assentiu.

     —Quem não o estaria? Eu pensei que Gideon era um demente quando me contou tudo isto pela primeira vez.

     —Ainda crê que estou louco quase todo o tempo, meu amor. É parte de meu encanto. —inclinou-se para ela e fingiu lhe morder a coxa coberta de tecido jeans, distraindo por um momento os dedos sobre o teclado.

     Afastando-o com humor, Savannah se levantou e se aproximou do lugar onde Dante, de tantas idas e voltas, estava imprimindo sua marca no tapete.

     —Crê que Tess estará faminta? Tenho o café da manhã preparado na cozinha para Gabrielle e para mim. Posso preparar uma bandeja para Tess, se quer levar-lhe.

           —Sim. Obrigado, Savannah. Seria estupendo.

     Deus, nem lhe tinha ocorrido que Tess teria que comer. Que bom casal estava sendo do começo. Era apenas capaz de cuidar-se bem de si mesmo e agora tinha que preocupar-se com uma companheira de sangue, com desejos e necessidades humanas das que não tinha nem a mais remota idéia. Extranhamente, enquanto que a idéia tivesse podido encher o de dúvidas em um passado não muito longínquo, agora quase lhe resultava... prazeirosa. Queria manter a Tess, em todos os sentidos. Queria protegê-la e fazê-la feliz, mimá-la como a uma princesa.

     Pela primeira vez em sua larga vida, sentia que tinha encontrado uma meta de verdade. Não a honra e o dever que o levava a ser um guerreiro, mas um pouco igualmente fascinante e digno. Algo que convocava tudo quão viril havia nele.

     Sentia como se esse vínculo que tinha encontrado —esse amor que sentia pela Tess— pudesse ser em realidade o suficientemente forte para lhe fazer esquecer a morte e a angústia que o tinham estado espreitando toda sua vida. Alguma parte esperançosa de seu ser queria acreditar que com Tess a seu lado, talvez encontraria uma forma das superar.

     Dante já estava desfrutando dessa ligeira esperança quando um chiado o atravessou como a ponta de uma faca. Sentiu-o em seu próprio corpo, mas o assalto se dirigia a seus sentidos, algo que reconheceu quando nem Savannah nem Gideon reagiram ao grito de terror que gelava o coração de Dante. Voltou-lhe a sacudir, deixando-o tremente depois de seu passo.

     —Ai, Meu Deus. Tess!

     —O que acontece? —Savannah se deteve em seu caminho para a cozinha.

—Dante ?

     —É Tess —disse, já enfocando sua mente sobre ela, localizando-a-se em algum lugar do recinto.

— Está em algum lugar do recinto... acredito que na enfermaria.

     —Procurarei a imagem. —No computador, Gideon encontrou rapidamente as imagens de um dos monitores de vídeo do corredor.

—Já a tenho, Dante. Merda. Topou-se com Rio. Tem-na abandonada...

     Dante partiu correndo antes de que as palavras saíssem da boca do Gideon. Não precisava ver a tela para confirmar onde estava Tess ou o que a estava assustando tanto. Saiu voando do apartamento de Savannah e Gideon, correndo a todo gás para o coração do recinto. Perito no traçado do recinto, por fora e por dentro, tomou a rota mais curta para a ala sanitária, empregando toda a velocidade preternatural que era capaz de convocar.

     Dante ouviu a voz de Rio até antes de chegar as portas giratórias que conduziam à ala de medicina.

     —Fiz-te uma pergunta, fêmea. Que merda crê que está fazendo por aqui?

     —Se afaste dela! —gritou Dante quando entrou na enfermaria, esperando com todo seu ser não ter que lutar com um dos seus.

— Afaste, Rio. Agora mesmo.

     —Dante! —gritou Tess, ofegando de medo. Seu rosto estava de cor cinza e seu corpo tremia inverificado atrás do imenso muro do corpo de Rio. O guerreiro a tinha apanhada contra a parede do corredor, e irradiava animosidade em pulsações ardentes.

     —Solta-a —ordenou Dante a seu irmão.

     —Tome cuidado, Dante! Matará-te!

     —Não o fará, Tess. Não passa nada.

     —Esta fêmea não pertence a este lugar —ladrou Rio.

     —Digo-te que sim pertence. Agora solta-a e te afaste.

     Rio relaxou um pouco e girou a cabeça para olhar a Dante. Deus, quanto custava recordar ao guerreiro de antes da emboscada que o tinha deixado assim de estragado, tanto física como emocionalmente. O rosto, antes belo do espanhol com o sorriso fácil e o engenho contagioso era agora um matagal de cicatrizes avermelhadas. Fazia muito tempo que seu senso de humor o tinha abandonado, deixando em seu lugar uma fúria que possivelmente nunca se aplacaria.

     Dante se centrou no rosto de Rio, olhando além das cicatrizes das bochechas e a frente do guerreiro até chegar aos olhos quase dementes que pareciam tão próprios de um renegado que até Dante se desconcertou durante um instante.

     —Digo-te que a deixe —rugiu.

—Esta mulher está comigo. É minha. Compreende?

     Um espiono de razão se iluminou nas profundidades de âmbar radiante dos olhos de Rio, um breve raio de consciência, de contrição e de remorso. Voltou-se de novo com um grunhido, o áspero fôlego ainda ressonando em sua boca aberta.

     —Tess, agora está bem. Te aparte dele e vêem para mim.

     Emitiu um fraco gemido mas parecia incapaz de mover-se. Dante lhe tendeu a mão.

     —Vêem, meu anjo. Tudo irá bem. Está a salvo, prometo-lhe isso.

     Como se tivesse que exercer toda a coragem de seu corpo, Tess se separou de Rio e pôs sua mão na palma aberta de Dante. Ele a estreitou contra seu corpo e a beijou, aliviado de estar outra vez junto a ela.

     Enquanto Rio baixava sobre o chão, apoiando-se contra a parede do corredor, o pulso de Dante voltou para algo semelhante a normalidade. Tess seguia afetada e tremente, e enquanto estava seguro de que Rio já não supunha nenhum perigo para ela —sobre tudo agora que Dante tinha esclarecido sua situação— tinha que encarregar-se de limitar o dano causado.

     —Fique aqui. Vou ajudar Rio a voltar para sua cama...

     —Está louco? Dante, temos que sair daqui. Degolará aos dois!

     —Não o fará. —Fixou os olhos no olhar ansioso de Tess enquanto se aproximava de Rio, que estava desabado no chão.

—Não me fará mal. Tampouco lhe teria feito isso. Não sabia quem era, e lhe aconteceu algo muito terrível que lhe tem feito desconfiar das mulheres. Me acredite, não é um monstro.

     Tess olhou a Dante com a boca aberta, como se tivesse perdido a cabeça.

     —Dante, as faces... Esses olhos! É um desses que me atacaram...

     —Não —disse Dante.

—Só lhes parece porque está zangado e porque está sofrendo muito. Seu nome é Rio. É um guerreiro da estirpe, como eu.

     —Vampiro —disse, com a voz quebrada.

— É um vampiro...

     Deus, não queria que se inteirasse da verdade deste modo. Que Deus o amparasse, mas tinha pensado que poderia incorporá-la em seu mundo de uma maneira mais fácil, incorporá-la em um mundo que agora pertencia aos dois, uma vez que tivesse compreendido que a raça dos vampiros não era algo temível, e uma vez que visse que ela também formava parte dessa raça, como uma companheira de sangue.

     Como a única mulher que queria ao seu lado.

     Mas tudo estava evoluindo tão rápido, um fio de verdades Pela metade e segredos que davam voltas em torno de seus pés enquanto ela o olhava, aterrada, lhe pedindo com os olhos que fizesse compreensível essa situação tão insondável.

     —Sim —confessou Dante, já incapaz de lhe mentir mais.

— Rio é um vampiro, Tess. Como eu.

 

     A Tess deu um tombo o coração.

     —O que é o que há dito?

     Dante a olhou, com esses olhos de cor uísque dourado muito sérios e uma expressão muito serena.

     —Pertenço a estirpe. Sou um vampiro.

     —OH, Deus santo —gemeu ela, sentindo toda a pele tensa em sinal de alarme e repulsão.

     Não queria acreditar... ele não se parecia com as criaturas que a tinham assaltado nem a esse outro que agora jazia feito um novelo de angústia no chão da enfermaria. Mas o tom de Dante era tão nivelado, como se anunciasse uma questão de feitos. Ela sabia que estava dizendo a verdade. Talvez pela primeira vez desde que se conheciam, por fim estava sendo honesto com ela.

     —Mentiu-me vilmente. Todo este tempo me estiveste mentindo.

     —Eu queria dizer isso Tess. Estive tentando achar as palavras para lhe dizer isso .

     —O que? Que é uma espécie de monstro doente? Que estiveste me usando só para estar perto do Ben com o objetivo de que você e seus amigos chupadores de sangue pudessem matá-lo?

     —Não matamos a esse humano, juro-lhe isso. Mas isso não significa que não fosse capaz de fazê-lo se desse a ocasião. E sim, ao princípio precisava saber se você estava envolta nesse turvo assunto de tráfico de carmesim, e pensei que podia me ser útil para obter mais informação dessas atividades. Tinha uma missão, Tess. Mas também necessitava sua confiança para poder te proteger.

     —Eu não necessito seu amparo.

—Sim, necessita-a.

     —Não —disse ela, paralisada pelo terror.

— O que preciso é me afastar de você o antes possível.

     —Tess, o lugar mais seguro para você agora mesmo está aqui comigo.

     Quando ele foi para ela, estirando as mãos em um gesto com o qual lhe suplicava confiança, ela se tornou para atrás.

     —Fique longe de mim. Digo-lhe isso a sério, Dante. Fique longe!

     —Não vou fazer te mal. Prometo-lhe isso.

     Uma imagem golpeou o fundo de sua consciência enquanto ele dizia essas palavras. Em sua mente, foi súbitamente transportada ao armazém da clínica, onde viu um homem em cocoras gravemente ferido, como se tivesse tido uma brutal briga nas ruas durante a noite do Halloween. Naquele momento era um estranho para ela, mas agora já não.

     O que viu foi o rosto de Dante, sujo e manchado de sangue, com seu cabelo jorrando sobre sua frente. Seus lábios se moveram, dizendo as mesmas palavras que agora lhe ouvia dizer: «Não vou fazer te mal... prometo-lhe isso...»

     Teve um repentino mas muito nítida lembrança de suas fortes mãos agarrando-a pelos braços, imobilizando-a. Dos lábios de Dante deixando ao descoberto seus dentes... mostrando enormes presas brancas que se dirigiram para sua garganta.

     —Eu não te conhecia —estava dizendo agora Dante, como se pudesse ler seus pensamentos com a mente.

— Estava débil e gravemente ferido. Só ia tomar o que necessitava de você e logo te deixaria. Não te teria causado dor, nem angústia. Não tinha nem idéia do que estava fazendo até que vi sua marca...

     —Mordeu-me... você... OH, deus, bebeu de meu sangue essa noite? Como... por que só o recordo agora?

     Suas severas facções se suavizaram, como se se arrependesse.

     —Apaguei sua memória. Tentei te explicar as coisas, mas a situação foi das mãos. Lutamos e você me injetou um sedativo. Quando recuperei a consciência quase estava amanhecendo e não havia tempo para falar. Acreditei que seria melhor para você não recordar. Então foi quando vi sua marca na mão, e soube que não havia volta atrás depois do que tinha feito contigo.

     Tess não precisava olhar a marca da mão direita para saber do que se referia. A pequena marca de nascimento sempre lhe tinha resultado curiosa, uma lágrima situada sobre a terrina de uma lua crescente. Mas agora não tinha mais significado para ela que antes.

     —Não há muitas mulheres que tenham essa marca, Tess. Só umas poucas. É uma companheira de sangue. Se alguém de minha raça bebe sangue de seu corpo ou dá para você a sua, forja-se um laço. Um laço inquebrável.

     —E você fez isso?

     Outra lembrança a assaltou uma lembrança mais remota de sangue e escuridão. Recordou ter despertado de um sono tenebroso, com a boca cheia de uma quente força de energia, de vida. Tinha estado morta de fome, e Dante a tinha alimentado. De seu pulso, e mais tarde uma veia que abriu para ela em seu pescoço.

     —OH, Deus santo —sussurrou.

— O que me tem feito?

     —Salvei-te a vida te dando meu sangue. Igual a você salvou minha vida com o teu.

     —Não me deu outra eleição —disse com voz entrecortada.

— O que é o que sou agora? Converteste-me na mesma espécie de monstro que você é?

     —Não. Não funciona assim. Nunca te converterá em vampiro. Mas se segue te alimentando de mim como minha companheira, poderá viver muitíssimo tempo. Tanto como eu. Possivelmente mais.

     —Não me acredito. Nego-me a acreditá-lo!

     Tess se voltou para as portas giratórias da enfermaria e empurrou os painéis. Estes não se moveram. Empurrou outra vez, com todas suas forças. Nada. Pareciam fundidos em suas dobradiças, completamente imóveis.

     —Me deixe sair daqui _ pediu a Dante, suspeitando que era sua vontade a que mantinha as portas fechadas para ela.

—Maldito seja, Dante, me deixe partir!

     Logo que a porta se abriu o mínimo, Tess a empurrou e pôs-se a correr com todas suas forças. Não tinha nem idéia de onde ia nem lhe importava, sempre que pudesse pôr uma distância entre ela e Dante, o homem que tinha acreditado conhecer. O homem de que acreditava estar apaixonada. O monstro que a tinha traído mais profundamente que nenhum outro de seu tormentoso passado.

     Doente de medo e zangada por sua própria estupidez, Tess reprimiu as lágrimas que sentia arder em seus olhos. Correu mais rápido, sabendo que Dante poderia alcançá-la. Tinha que sair daquele lugar. Correu para um grupo de elevadores e apertou o botão rogando que as comporta se abrissem. Os segundos transcorriam... muitos para arriscar-se a esperar.

     —Tess. —A voz profunda de Dante a sobressaltou por sua proximidade. Estava justo detrás dela, o bastante perto para tocá-la, embora ela não o tinha ouvido aproximar-se.

     Com um grito, ela se agachou para que não a alcançasse e empreendeu outra fuga enlouquecida por um dos tortuosos corredores. Frente a ela havia uma entrada aberta e abovedada. Talvez poderia esconder-se nessa câmara, pensou, desejando desesperadamente e por todos os meios escapar desse pesadelo que a perseguia. Deslizou-se no interior iluminado com luz tênue... parecia uma espécie de catedral, com paredes de pedra esculpidas iluminadas tão somente por uma só vela vermelha em uma coluna que brilhava perto de um altar sem adornos.

     Não havia nenhum lugar do pequeno santuário onde pudesse esconder-se, só duas filas gemeas de bancos e o pedestal de pedra ao fundo da sala. Ao outro lado havia outra porta em forma de arco, que se haveria a uma escuridão mais profunda; era impossível para ela imaginar onde conduziria. Mas tampouco importava. Dante estava em pé junto à soleira da porta aberta no corredor, e seu musculoso corpo nunca tinha sido tão imponente como agora que entrava na pequena catedral e começava a avançar lentamente para ela.

     —Tess, não temos que fazer isto. Falemos. —Seus poderosos passos vacilaram durante um segundo e franziu o cenho, levando a mão a cabeça como se sentisse dor. Quando falou de novo, sua voz soou uma oitava mais baixa, surgindo dele como um profundo grunhido.

— Deus santo, podemos... Sejamos razoáveis, tratemos de arrumar isto.

     Tess retrocedeu, aproximando-se ainda mais a parede da câmara e ao arco cavado na pedra.

     —Maldita seja, Tess. Me escute. Eu te amo.

     —Não diga isso. Não crê que me há dito já suficientes mentiras?

     —Não é mentira. Desejaria que o fosse, mas...

     Dante deu outro passo, e de repente caiu de joelhos, queixou-se enquanto se sustentava a um dos bancos, cravando os dedos com tanta força na madeira que Tess se perguntou se não a romperia.

     Algo estranho estava ocorrendo a seus rasgos. Inclusive embora tinha deixado cair a cabeça, ela podia ver que seu rosto se voltava mais afiado, suas bochechas se faziam mais magras, mais angulares, e sua pele dourada parecia mais tirante em seus ossos. Cuspiu uma maldição, algo que ela não pôde decifrar através da grave aspereza de sua voz.

     —Tess... tem que confiar em mim.

     Ela se aproximou mais à passagem abovedado, guiando-se com uma mão que apoiava na parede. Quando chegou ao bordo um buraco de escuridão se abriu atrás dela e sentiu uma gelada e leve brisa nas costas. Deu-se a volta para olhar de frente a escuridão.

     —Tess.

     Dante devia advertir seus movimentos, porque quando ela se voltou para olhá-lo, ele levantou a cabeça e se encontrou com seu olhar. A quente cor de seus olhos tinha trocado convertendo-se em um brilho feroz, suas pupilas se estreitaram até parecer apenas duas fendas enquanto ela contemplava sua transformação horrorizada.

     —Não vá —disse ele com voz áspera, suas palavras enredando-se nas impressionantes e afiadas presas.

—Não te farei mal.

     —É muito tarde, Dante. Já me tem feito —disse isso em um sussurro, apartando-se rapidamente dele, retrocedendo na soleira do arco. Na escuridão, distinguiu uns degraus de pedra que conduziam para cima, para a fonte de ar frio que lhe chegava de alguma parte. Em qualquer lugar que levassem, tinha que ir. Pôs o pé no primeiro degrau...

     —Tess!

     Não voltou a olhá-lo. Sabia que não podia, porque de fazê-lo talvez não encontraria a coragem para deixá-lo. Subiu os primeiros degraus com cuidado e logo pôs-se a correr, tão rápido como pôde.

     Abaixo, o angustiante alarido de Dante ecoou nas paredes de pedra da catedral e na escura escada, lhe chegando até a medula dos ossos. Tess não se deteve. Subiu mais e mais rápido o que lhe pareceram centenas de degraus, até chegar a uma sólida porta de aço. Com as palmas das mãos, empurrou-a.

     A cegadora luz do dia a alcançou a torrentes. A fria brisa de novembro removia as folhas secas em espiral. Tess fechou a porta atrás dela com um forte golpe. Logo se envolveu com seus próprios braços e partiu correndo na fresca e brilhante manhã.

    

     Dante se derrubava no chão, apanhado em seu persistente e extenuante pesadelo. A visão de morte tinha aparecido súbitamente, intensificando-se à medida que ele e Tess discutiam.

     Ao partida dela não fez mais que piorar. Dante ouviu o ruído da porta ao fechar-se e soube, pelo breve raio de sol que desceu pelas largas escadas, que embora fosse capaz de liberar-se das invisíveis cadeias que os imobilizavam, os brutais raios do sol lhe proibiriam ir atrás dela.

     Afundou-se ainda mais profundamente no abismo de sua premonição, onde espessas tiras de fumaça negra se enredavam em torno de seus membros e sua garganta, obstruindo o prezado ar. Os restos destroçados de um alarme de fumaça que pendurava do teto, sustentada por cabos também destroçados, permaneciam silenciosos, enquanto a fumaça se acumulava ao seu redor.

     De alguma parte se ouviu o ruído de objetos caindo, como se os móveis e instalações se derrubassem e caíssem ao chão por culpa de um exército intruso. A seu redor, Dante viu armários com gavetas e arquivos, cujos contidos se pulverizavam por toda parte, como se tivessem sido registrados precipitadamente.

     Na visão, ele se estava movendo, caminhando entre os restos para uma porta fechada ao outro extremo da habitação. OH, Deus. Conhecia esse lugar, agora se dava conta.

     Era a clínica da Tess. Mas onde estava ela?

     Dante registrou que lhe doía todo o corpo. Sentia-se machucado e exausto, e lhe custava cada passo. Antes de chegar a porta e poder empurrá-la, esta se abriu do outro lado. Um rosto familiar lhe lançou um olhar através da fumaça.

     —Olhe quem anda aqui —disse Ben Sullivan, saindo do interior com um cabo de telefone nas mãos.

— Morrer queimado é algo espantoso. Claro que se respirar suficiente fumaça, as chamas serão só uma gorjeta.

     Dante sabia que não devia assustar-se, mas o terror o atendia como se seu futuro verdugo tivesse entrado na habitação e o sustentara com força. Tratou de lutar, mas seus membros não pareciam lhe obedecer. Sua resistência só reduzia o ritmo do Sullivan. Até que o humano jogou um braço para trás e deu a Dante um golpe na mandíbula.

     Sua visão começou a dar voltas de maneira enlouquecida. Quando abriu os olhos, achou-se extendido sobre seu estômago, deitado sobre uma prancha de frio aço gentil um pouco elevada enquanto Ben Sullivan lhe atava as mãos a costas, e logo lhe sujeitava os pulsos com o cabo de telefone. Dante devia ter sido capaz de soltar os nós, mas estavam muito apertados. O humano se transladou para seus pés, atando-o como um porco.

     —Já sabe, acreditei que te matar seria difícil —lhe sussurrou ao ouvido o traficante de carmesim. Eram as mesmas palavras que Dante tinha ouvido a última vez que tinha tido a visão de sua própria morte.

— Mas me puseste isso muito fácil.

     Tal como tinha feito antes, Ben Sullivan se dirigiu para a frente da plataforma e se inclinou diante de Dante. Agarrou-o por cabelo e lhe levantou o rosto do frio metal. Além da cabeça do Sullivan, Dante viu um relógio de parede colocado em cima da porta; faltava um minuto para as onze e meia. Lutou por captar mais detalhes, consciente de que poderiam ser necessários para estar preparado e talvez ter a possibilidade de girar as coisas a seu favor. Não sabia se seria impossível enganar o destino, mas valia a pena tentá-lo.

     —Não tinha que ter sido assim —dizia agora Sullivan. O humano se inclinou para aproximar-se... o bastante perto como para que Dante visse o olhar vazio de um secuaz contemplando-o.

—Tem que saber que é você mesmo o que provocou tudo isto. Pode dar obrigado de que não entregue a meu amo.

     Depois de dizer isto, Ben Sullivan o soltou, deixando-o cair cabeça abaixo. Enquanto o secuaz saía a grandes passos da habitação e fechava a porta, Dante abriu os olhos e viu seu reflexo na superfície de aço gentil da mesa onde jazia.

     Não, não era seu reflexo.

     Era o de Tess.

     Não era seu corpo o que estava amarrado na mesa de exame da clínica e ia ser consumido pela fumaça e pelas chamas, a não ser o de Tess.

     OH, Deus santo.

     Não era sua espantosa morte o que tinha experiente em seus pesadelos durante todos estes anos. Era a morte de sua companheira de sangue, a mulher que amava.

  

     Tess abandonou a propriedade do recinto para entrar na cidade em um estado de atordoamento emocional. Sem sua bolsa, seu casaco e seu telefone móvel tinha poucas opções onde ir... nem sequer levava a chave de seu apartamento. Sem fôlego, confundida, totalmente esgotada por tudo o que lhe tinha passado, dirigiu-se a um telefone público, rogando que não estivesse fora de serviço. Comprovou o sinal, marcou o zero e esperou ouvir a voz do operador.

     —Chamada a cobrar, por favor —disse ofegando ao auricular, logo lhe deu ao operador o número da clínica. O telefone soou uma e outra vez. Não houve resposta.

     Quando saltou a secretária eletrônica, o operador desconectou, e lhe disse:

     —Sinto muito, não há ninguém para aceitar a chamada. —Espere —disse Tess, com uma preocupação constante.

— Poderia tentá-lo outra vez? —Um momento.

     Tess esperou ansiosamente enquanto o telefone começava a soar de novo na clínica. Não houve resposta.

    —Sinto-o —disse de novo o operador, desconectando a chamada.

     —Não o entendo —murmurou Tess, mais para si mesmo—.

_Pode me dizer que horas são?

—As dez e meia.

     Nora não fazia a pausa para comer até o meio-dia, e ela alguma vez ficava doente, então por que não agarrava o telefone? Devia estar ocorrendo algo.

     —Poderia tentá-lo com outro número ?

     —Sim, claro.

     Tess lhe deu ao operador o número da Nora, e quando a chamada tampouco obteve resposta lhe deu o número do móvel. Ao ver que seguia sem obter resposta, o coração de Tess se ia afundando em seu peito. Tudo lhe saía mau. Muito mal.

     Com o terror martelando em seu interior, Tess pendurou o telefone e começou a caminhar para a estação de metrô mais próxima. Não tinha o bilhete de um dólar e vinte e cinco centavos que necessitava para chegar a North End, mas uma senhora da rua teve piedade dela e lhe deu um punhado de moedas.

     O trajeto para casa se fez eterno, e cada rosto estranho do vagão parecia contemplá-la como se soubesse que já não pertencia a eles. Como se pudessem advertir algum tipo de câmbio, e ela já não formasse parte do mundo normal. Como se já não pertencesse ao mundo dos humanos.

     E talvez assim fosse, pensou Tess, refletindo a respeito de tudo o que Dante lhe tinha contado e tudo o que tinha visto e vivido durante as últimas horas. Os últimos dias, corrigiu-se, retrocedendo até a noite do Halloween, quando viu pela primeira vez Dante.

     Quando lhe afundou as presas no pescoço acabando com a normalidade de seu mundo.

     Mas talvez não estava sendo de todo justa. Tess não podia recordar haver-se sentido nunca de tudo normal. Sempre tinha sido... diferente. Sua incomum habilidade a tinha mantido sempre separada do resto das pessoas, afetando-a inclusive mais que seu tormentoso passado. Sempre se tinha sentido inadaptada, uma estrangeira, incapaz de confiar a ninguém seus segredos.

     Até que apareceu Dante.

     Ele tinha aberto tanto os olhos. Com ele tinha descoberto novas formas de sentir e desejar, com uma esperança renovada por coisas com as que sempre tinha sonhado. A fazia sentir-se a salvo e compreendida. E ainda mais, a fazia sentir-se amada e desejada.

 

     Mas tudo aquilo tinha estado baseado em mentiras. Agora sabia a verdade —por mais incrível que fosse— e seria capaz de dá-lo tudo por fingir que não era real.

     Vampiros e laços de sangue. Uma guerra organizada entre criaturas que não deveriam existir fora do reino da fantasia, dos pesadelos.

     Entretanto, tudo era certo. Era real.

     Tão real como seus sentimentos por Dante, o qual só fazia que sua decepção fosse ainda mais profunda. Amava-o, e nada a tinha aterrorizado tanto em toda sua vida. Apaixonou-se por um perigoso vigilante. Um vampiro.

     Sentiu o peso desse reconhecimento enquanto descia do metro e se dirigia para sua vizinhança do North End. As lojas estavam cheias com os clientes da manhã e o mercado desfrutava de um fluxo regular de gente. Tess passou junto a um grupo de turistas que se detiveram para jogar uma olhada aos outonais melões e abobrinhas, que pareciam contradizer a descida do ar fresco e a chegada do bom tempo.

     À medida que se aproximava de casa, sua sensação de terror aumentava. Um dos inquilinos saía quando ela chegou a porta principal. Embora não conhecia o ancião por seu nome, este lhe sorriu e sustentou a porta aberta para que entrasse. Tess entrou e subiu o lance de escadas até seu apartamento. Quando estava a dez passos da porta, deu-se conta de que a tinham forçado. A ombreira estava danificada perto da fechadura, como se a tivessem aberto com uma alavanca, fechando-a de novo para aparentar que não tinha ocorrido nada.

     Tess ficou gelada pelo pânico. Retrocedeu uns passos, preparada para dar a volta e fugir. Então sentiu junto às costas uma massa sólida, havia alguém em pé atrás dela. Um braço forte a rodeou pela cintura, fazendo-a perder o equilíbrio, e sentiu o contato do aço frio e bicudo apertado de maneira muito significativa sob sua mandíbula.

     —Bom dia, doutora. A grande maldita hora aparece.

    

     —Não pode falar a sério, Dante.

     Embora todos os guerreiros, incluído Chase, achavam-se reunidos nas instalações de treinamento observando-o preparar-se para uma batalha, Gideon foi o primeiro em desafiá-lo.

     —Tenho pinta de estar brincando? —Dante tirou uma pistola e um punhado de balas de um dos armários.

— Nunca em minha vida falei tão a sério.

     —Deus santo, Dante. Se por acaso não as notado, são só as dez da manhã. Isso significa plena luz do dia.

     —Sei o que significa. Gideon soltou uma lenta maldição.

     —Te vais fritar, meu amigo.

     —Não se posso evitá-lo.

     Considerando que existia do século XVIII, Dante estava muito por cima da meia seguindo critérios humano, mas como vampiro da estirpe pertencia ao tipo médio, pois sua linhagem estava separada dos Antigos por várias gerações e sua pele era diferente a essa pele alienígena hipersensível. Não podia estar muito tempo a luz do dia, mas sim podia receber uma pequena quantidade de raios de sol e viver para contá-lo.

     Pela Tess, seria capaz de caminhar ao coração do sol se isso podia salvar a da morte que a esperava.

     —Me escute —disse Gideon, pondo sua mão no braço de Dante para captar sua atenção.

— Pode que não seja tão vulnerável a luz como os da primeira geração, mas continua sendo um membro da estirpe. Se passas mais de trinta minutos exposto diretamente a luz do sol converterá em uma torrada.

     —Não vou sair aí fora a fazer turismo —disse ele, negando-se a deixar-se influir. Fez caso omisso da prudência de seu irmão e agarrou outra arma do armário.

— Sei o que estou fazendo. E tenho que fazê-lo.

     Tinha contado aos outros o que tinha visto, a visão que lhe tinha esmigalhado o coração. A idéia de ter deixado sair a Tess do recinto sem seu amparo o torturava sem descanso, a impotência de não ter sido capaz de detê-la. A idéia de que pudesse estar em perigo naquele preciso momento, enquanto seus vulneráveis gens de vampiro o obrigavam a ocultar-se clandestinamente.

     —E o que passa se a hora que viu em sua visão, as onze e vinte e nove, era em realidade as onze e vinte e nove da noite? —perguntou Gideon.

— Não pode estar seguro de que o que viu ocorria pela manhã. Talvez te esteja arriscando para nada...

     —E se esperar e resulta que me equivoco? Não posso me arriscar a isso .

—Dante negou com a cabeça. Tinha tratado de ficar em contato com ela por telefone, mas não teve resposta nem em seu apartamento nem na clínica. E a dor que ardia em seu peito lhe dizia que ela não o estava evitando por sua própria vontade. Nem sequer necessitava sua visão clarividente para saber que sua companheira de sangue estava em perigo.

— De maneira nenhuma ficarei aqui esperando até que escureça. Faria-o você, Gideon? Se Savannah te necessitasse, se te necessitasse por uma questão de vida ou morte, consideraria a possibilidade de não te arriscar? Faria-o você, Lucan, se fosse Gabrielle a que estivesse ali fora em perigo?

     Nenhum dos guerreiros lhe respondeu. Não havia nenhum varão unido por um laço de sangue que não fosse capaz de atravessar o oceano pela mulher a que amava.

     Lucan se aproximou dele e lhe tendeu a mão.

     —A honra como se merece.

     Dante estreitou a forte mão de sua líder da primeira geração, a mão de seu amigo, e a sacudiu firmemente.

     —Obrigado. Mas para te ser honesto, estou fazendo isto por mim tanto como pela Tess. Necessito-a em minha vida. Ela... significa-o tudo para mim.

     Lucan assentiu com gravidade.

     —Então vá procura-la, irmão. Celebraremos que lhes tenham emparelhado quando você e Tess voltem a salvo ao recinto.

     Dante lhe sustentou o olhar a Lucan e sacudiu lentamente a cabeça.

     —Isso é algo que preciso falar contigo. Com todos vocês —disse, olhando também aos outros guerreiros.

— Caso que eu sobreviva, que seja capaz de salvar a Tess e ela me aceite como companheiro, pretendo me transladar com ela aos Refúgios Escuros.

     Um comprido silencio foi a resposta, seus irmãos o olhavam fixamente e em silêncio.

     Dante se esclareceu garganta, sabendo que sua decisão podia resultar muito surpreendente para esses guerreiros com os que tinha lutado durante mais de um século.

     —Ela já sofreu o bastante, inclusive antes de conhecê-la e de arrastá-la a nosso mundo contra sua vontade. Merece ser feliz. Merece muito mais do que posso lhe dar. Só quero que a partir de agora esteja a salvo, longe de todo perigo.

     —Deixaria a Ordem por ela? —perguntou Niko, o mais jovem depois de Dante, um guerreiro ao que lhe entusiasmava seu dever possivelmente inclusive mais que ao próprio Dante.

     —Deixaria de respirar por ela se me pedisse —replicou isso ele, surpreendendo-se a si mesmo pela profundidade de sua devoção. Olhou a Chase, que ainda lhe devia esse segundo favor da última noite.

— O que diz você? Fica alguma tomada nos Refúgios Escuros de Boston para me ajudar a me fazer um lugar na agência?

     Chase sorriu satisfeito, encolhendo-se de ombros.

     —Pode que sim. —Caminhou para o armário das armas e tirou uma SIG Sauer.,

— Mas o primeiro é o primeiro. Temos que trazer sua mulher de volta sã e salva para que possa decidir se quiser a um pobre imbecil como você por companheiro.

     —Nós? —disse Dante, vendo o antigo agente Darkhaven colocá-la SIG e outra pistola semiautomática.

     —Sim, nós. Eu vou contigo.

     —Mas o que...

     —Eu também —disse Niko, aproximando-se e agarrando seu próprio contrabando de armas. O russo sorriu enquanto assinalava com a cabeça a Lucan,a Gideon e aTegan.

— Não irias deixar me aqui com estes anciões da primeira geração, verdade?

     —Ninguém vai vir comigo. Eu não pedi...

     —Não tem que fazê-lo —disse Niko.

— Você goste ou não, Dante, terá que carregar com o Chase e comigo nesta missão. Não vai fazer o sozinho.

     Dante soltou um taco, agradecido pela amostra de apoio.

     —Vamos então. Terá que ficar em marcha.

 

     Apertando a faca contra seu pescoço para mantê-la em silêncio, Ben obrigou Tess a sair do edifício e subir a um carro que estava esperando na rua. Ben cheirava mau, como a sangue azedo e a suor e um pouco de podre. Sua roupa estava asquerosa e enrugada, seu cabelo normalmente brilhante e dourado agora estava despenteado e caía murcho e sujo sobre sua frente. Enquanto a empurrava no assento traseiro do carro, Tess pôde vislumbrar seus olhos. Estavam apagados e fixos e a olhavam com uma indiferença fria que lhe pôs a pele de galinha. E Ben não estava sozinho.

     Havia outros dois homens esperando no carro, os dois sentados adiante e com o mesmo ar vazio em seus olhos.

     —Onde está, Tess? —perguntou Ben enquanto fechava a porta conseguindo que no interior do veículo reinasse a escuridão.

— Deixei uma pequena coisa em sua clínica o outro dia, mas agora não está ali. O que fez com ela?

     O pendrive que ele tinha escondido. Agora estava em posse de Dante. Por muito que duvidasse de Dante por quão último tinha sabido dele, o que sentia agora pelo Ben era muito mais forte. Observou seu perturbador olhar sem vida e negou com a cabeça.

   —Não sei do que está falando.

     —Resposta errada, doutora.

     Tess não estava nada preparada para receber o punho que a golpeou na cabeça. Soltou um grito, caindo sobre o assento e agarrando-o rosto pela dor que estalava em seu rosto.

     —Talvez pense com mais claridade na clínica —disse Ben.

     Ante sua indicação, o condutor apertou o acelerador e o carro entrou nas ruas. A visão de Tess se nublava enquanto abandonavam a zona do North End para dirigir-se a clínica, ao leste de Boston. A caminhonete do Ben estava estacionada na parte de atrás, junto ao escaravelho antigo da Nora.

     —OH, Deus —murmurou Tess, sentindo um tombo no coração ao ver o carro de sua ajudante.

—O que lhe tem feito, Ben? Me diga que não tem feito mal a Nora...

     —Vamos, doutora —disse ele, ignorando sua pergunta enquanto abria a porta e a fazia sair do carro ameaçando-a com a faca.

     Tess saiu, seguida do Ben e dos dois estúpidos que o acompanhavam. Conduziram-na para a parte traseira da clínica, fazendo-a atravessar o armazém e o criadero de cães vazio. Ben ia empurrando para diante, até que entraram no vestíbulo da clínica. O lugar estava destroçado, os arquivos atirados no chão e com todos seus conteúdos pulverizados, os móveis quebrados, os produtos químicos e farmacêuticos pulverizados também no chão. A destruição era total, mas foi ver Nora que a Tess lhe cortou a respiração.

     Estava extendida no chão atrás do balcão de recepção, sua cabeça começou a aparecer à medida que Tess se aproximava. Tinha as mãos e os pés atados com um cabo de telefone e a boca amordaçada com uma parte de gaze dos fornecimentos médicos da clínica. Nora chorava, com o rosto pálido e os olhos inchados e vermelhos como se tivesse estado exposta a horas de tortura. Mas estava viva, e isso foi o que evitou que Tess se desesperasse completamente.

     —OH, Nora —disse com a voz rota.

— Eu sinto tanto. Tirarei-te disto, prometo-lhe isso.

     A seu lado, Ben riu.

     —Alegra-me te ouvir dizer isso, doutora. Porque o destino da pequena Nora agora depende exclusivamente de ti.

     —O que? O que quer dizer?

     —Você vais ajudar- nos a encontrar esse pendrive ou se não vais ter que ver como lhe rasgo a garganta a essa cadela diante de você.

     Por detrás da mordaça que tinha na boca, Nora gritou. Começou a lutar grosseiramente por desatar as cordas, tudo em vão. Um dos enormes companheiros do Ben, foi até ela e a agarrou obrigando-a a ficar em pé, apertando-a com força. Arrastou-a mais perto, de maneira que as duas mulheres logo que estavam separadas. Nora suplicava com seus olhos, o puro pânico a fazia tremer como uma folha nas mãos de seu captor.

     —Deixa que se vá, Ben. Por favor.

     —Me entregue o pendrive e a deixarei partir, Tess. Nora gemeu, com um som suplicante e desesperado. Tess sentiu então autêntico terror, um terror que lhe gelava os ossos e que crescia ainda mais em seu interior ao contemplar os olhos de sua amiga e dar-se conta de que Ben e esses homens falavam com uma seriedade mortal. Matariam a Nora —e provavelmente também a ela—, se não lhes dava o que queriam. E não podia fazê-lo, porque não o tinha.

     —Ben, por favor. Deixa que Nora parta, tem-me . Sou eu quem agarrei o pendrive, e não ela. Ela não está envolta nisto...

     —Me diga onde pôs o pendrive e talvez a deixe partir, entende, doutora? Não te parece justo?

     —Não o tenho —murmurou ela.

— O tirei da mesa de exames onde você o escondeu, mas já não o tenho.

     Ele fixou nela esse olhar insensível e um músculo de sua mandíbula se moveu.

—O que fez com ele?

     —Solta-a —respondeu Tess.

— Solta-a e te direi tudo o que queira saber.

     Ben levantou as comissuras dos lábios. Lançou um olhar à faca, jogando com seu fio. Então, fez um movimento rápido e o cravou a Nora no estômago.

—Não! —gritou Tess.

— OH, Deus, não! Ben se voltou para ela, tão frio como podia mostrar-se.

—É tão somente uma ferida no intestino, doutora. Poderá sobreviver se receber ajuda a tempo, mas será melhor que comece a falar rápido.

     A Tess lhe dobraram os joelhos. Nora estava sangrando muito, e tinha os olhos em branco.

     —Maldito seja, Ben. Odeio-te.

     —Já não me importa o que sinta por mim, Tess. O único que me importa é recuperar esse pendrive. Onde demônios está?

     —O entreguei a alguém.

     —A quem?

     —A Dante.

     Isso provocou uma faísca de animosidade no olhar vazio do Ben.

     —Refere a esse tipo que te estiveste atirando? Tem idéia do que tem feito? Tem idéia de quem é?

     Ela não respondeu e Ben sacudiu a cabeça, rindo.

     —Bom, está realmente fodida, Tess. Isto já me escapou das mãos.

     Depois de dizer isto, moveu rapidamente o braço dirigindo seu adaga arqueada diretamente para a Nora, cumprindo com sua ameaça. Tess gemeu enquanto via cair ao chão o corpo sem vida da Nora. Ben e um de seus companheiros a agarraram para impedir que se aproximasse dela... antes disso ela tinha uma remota esperança de poder salvá-la com o dom de suas mãos. Afastaram-na desse açougue, agarrando a dos braços e as pernas enquanto ela lutava em um estalo de desespero animal.

     A luta foi inútil. Ao momento, Tess se achou no chão de uma das habitações de exame, e logo ouviu o ruído metálico da fechadura. Ben a deixou ali encerrada esperando seu destino.

     Nikolai conduzia como levado pelo diabo, dirigindo o Land Rover negro a toda velocidade Através da cidade. A tentação de olhar as ruas e edifícios iluminados pela luz do sol Através das janelas obscurecidas do carro era grande para Dante —se tratava de algo que nunca tinha visto e que esperava não ter que voltar a ver—, mas manteve a cabeça baixa no interior do veículo com seus pensamentos concentrados em Tess.

     Ele e os outros levavam uma roupa de nylon negra que os protegia da cabeça aos pés: traje de trabalho, luvas, uma máscara que lhes cobria o rosto e a cabeça e uns óculos de sol envolventes para proteger seus olhos. Mesmo assim, o caminho do veículo até a porta traseira da clínica de Tess foi intenso.

     Com as armas preparadas, Dante não perdeu o tempo. Carregou a munição e deu um pontapé com a bota no centro da porta do armazém com tanta força que a porta de aço quase sai das dobradiças. Saía fumaça do fogo que Ben Sullivan tinha começado a acender no interior. As colunas de fumaça se fizeram mais densas com o repentino influxo de ar que receberam do exterior. Não tinham muito tempo para acabar com isso.

     —Que diabos está passando?

     Para ouvir o estalo de metal da porta, um secuaz saiu correndo a ver o que acontecia. Nikolai o fez saber imediatamente lhe disparando uma ronda de balas diretamente no crânio.

     Agora que já estavam dentro, Dante cheirava a sangue e a morte através da fumaça... não era a do homem que acabava de morrer a seus pés, e graças a Deus tampouco era de Tess. Ainda seguia com vida. Podia sentir seu medo, seu atual estado de dor e angústia que o rasgava também a ele como um aço ardente.

     —Varram o lugar e acabem com o fogo —ordenou a Niko e a Chase.

— Matem a qualquer que cruze em seu caminho.

    

     Tess tentava desfazer-se das cordas que lhe atavam as mãos e os pés a costas sobre a mesa de exame. Não se moviam. Mas ela não deixava de tentá-lo, Apesar de que sua luta só parecia divertir cada vez mais a seu captor.

     —Ben, por que me faz isto? Por Deus santo, por que mataste a Nora?

     Ben fez um estalo com a língua.

     —Você a matou, Tess, não fui eu. Você me obrigou.

     Sentiu que a afogava a dor enquanto Ben se aproximava da mesa onde estava atada.

     —Sabe, acreditei que te matar seria difícil —lhe sussurrou ao ouvido, com seu fôlego quente e fedorento.

— Mas me puseste isso muito fácil.

     Ela o observava nervosa enquanto ele se dirigia à frente da plataforma e se inclinava até ficar a seu nível. Agarrou-a por cabelo com os dedos e lhe levantou o rosto da fria prancha de metal. Seus olhos pareciam os de um homem morto, apenas o resto dos de um ser humano, já não eram os olhos do Ben Sullivan que ela tinha conhecido

     —Não tinha por que ter sido assim —lhe disse, com um tom só na aparência suave.

— Tem que saber que é você mesma a que provocou isto. Pode te sentir agradecida de que não te leve ante meu amo.

     Acariciou-lhe a bochecha, e o contato lhe resultou asqueroso. Quando se estremeceu, lhe atirou do cabelo com mais força, obrigando-a a lhe olhar. Inclinou-se para beijá-la e Tess lhe cuspiu no rosto, lutando com o único meio que ficava.

     Tess se preparou para receber uma represália enquanto ele levantava sua mão livre para golpeá-la.

     —Fodida cadela...

     Não teve tempo de acabar a frase e tampouco de tocá-la. Uma rajada de ar gélido entrou pela porta aberta um instante antes de que o lugar se enchesse com a enorme silhueta de um homem com um impressionante traje negro e uns óculos de sol envolventes. Armas de fogo e adagas penduravam de seus quadris e das grosas capas de couro entrecruzadas sobre seu musculoso torso.

     Dante.

     Tess o reconheceria em qualquer parte, inclusive sob toda essa cobertura negra. Uma chama de esperança prendeu nela, junto à surpresa. Podia senti-lo aproximar-se com sua mente, lhe prometendo que a tiraria dali. Que agora estava a salvo.

     E ao mesmo tempo podia sentir sua raiva. O calafrio gelado que percorria seu enorme corpo, centrando-se no Ben. Dante baixou a cabeça, e o foco de seu olhar podia ler-se inclusive através das escuras lentes que lhe protegiam os olhos. Um brilho emanava por detrás dessas escuras sombras... um brilho âmbar e letal.

     Em menos de um pestanejo, o corpo do Ben foi levantado do chão e esmagado contra os armários da habitação. Esperneou e se agitou, mas Dante o sustentou no alto simplesmente com o poder de sua vontade. Quando outro guerreiro vestido de negro apareceu ante a porta, Dante grunhiu uma ordem.

     —Leve-lhe a daqui, Chase, não quero que ela veja isto.

     O companheiro de Dante entrou e soltou a Tess, logo a levantou com cuidado em seus braços e a tirou da clínica, levando-a até o Land Rover que esperava fora.

    

     Uma vez Chase teve tirado Tess da habitação, Dante liberou o humano de sua força mental. Sullivan caiu então como um peso morto sobre o chão. Começou a engatinhar para levantar-se, tratando de alcançar uma faca que tinha deixado sobre o balcão. Dante fez voar a arma com uma ordem mental, fazendo que a ponta de aço se cravasse na parede oposta.

     Entrou em grandes passos na habitação, privando-se de suas próprias armas para matar a Ben Sullivan com suas próprias mãos. Agora queria vingança, queria fazer sofrer ao bastardo pelo que pretendia fazer a Tess. Pelo que lhe tinha feito antes de que ele chegasse.

     —Se levante .—ordenou o humano.

— Isto acabou.

     Sullivan riu entre dentes, ficando lentamente em pé. Quando Dante o olhou aos olhos viu no traficante de carmesim o olhar apagado de uma mente escrava. Ben Sullivan se converteu em um secuaz. Isso explicava seu estado. Matá-lo, por qualquer que fora o meio, seria lhe fazer um favor.

     — Onde se esconde seu amo, secuaz ?

     Sullivan se limitou a lhe lançar um olhar de ódio.

     —Contou-te que lhe chutamos o traseiro este verão passado, que preferiu fugir com o rabo entre as pernas antes de enfrentar-se a Ordem? É um covarde e um impostor, e vamos acabar com ele.

     —Foda-se, vampiro.

     —Não, não penso foder-me —disse Dante, notando a contração nervosa dos músculos nas pernas do secuaz, o revelador movimento que lhe indicava que Ben Sullivan estava a ponto de saltar.

— Foda-se você, pedaço de merda. E fode esse desgraçado a quem pertence.

     Um estridente rugido saiu da boca do secuaz enquanto se lançava através da habitação em direção a Dante. Sullivan lhe lançou murros e todo tipo de golpes, movendo os punhos com rapidez, mas não tão rápido que Dante não pudesse bloqueá-los. Na refrega, o tecido que cobria o peito de Dante se rasgou, deixando exposta sua pele. Com um rugido, deu-lhe um murro no rosto ao secuaz, saboreando o ruído de ossos quebrados e o som do golpe contra a carne. Ben Sullivan se derrubou.

     —Só há um verdadeiro amo da raça —vaiou Ben.

— Logo ele será o rei... como lhe corresponde por direito de nascimento!

     —Nem o sonhe! —respondeu Dante, levantando do chão com uma mão o corpo do secuaz e jogando-o depois pelos ares.

     Sullivan se deslizou por cima da superfície polida da mesa onde tinha tido a Tess atada, e logo foi dar contra a parede com janelas, ao outro extremo da habitação. Levantou-se imediatamente de um salto, movendo-se para as persianas, que se balançaram detrás dele. Dante instintivamente se protegeu os olhos da luz que entrava de forma intermitente, levantando o braço para esquivar os raios de sol.

     —O que acontece? Muita luz para você, vampiro?

     Seu sorriso aberto deixava ver seus dentes manchados de sangue. Tinha na mão um pedaço de gaveta quebrada que sustentava ante ele como um pau dentado.

     —O que te parece uma bonita lição sobre uma morte dura?

     Moveu o braço para trás e rompeu em pedaços a janela, dando golpes as persianas torcidas e fazendo voar os pedaços de vidro ao redor. A luz do sol entrou em torrentes ante os olhos de Dante, que lhe queimavam detrás dos óculos. Rugiu ante a repentina agonia de sentir despedaçadas suas córneas, e nesse breve segundo de distração, Ben Sullivan rodou por debaixo dele, tratando de escapar.

     Temporariamente cego, com a pele muito quente através da roupa protetora e lhe queimando na parte de carne que tinha ficado exposta, Dante seguiu o rastro do secuaz com os outros sentidos, todos acentuados agora que sua raiva o transformava. As presas lhe cresceram aparecendo de sua boca e as pupilas lhe estreitaram ao outro lado de suas lentes escuras.

     Elevando-se no ar, saltou através da habitação com um único movimento fluido, equilibrando-se sobre Sullivan desde atrás. O impacto os fez cair aos dois ao chão. Dante não lhe deu ao secuaz a oportunidade de reagir. Agarrou-o pelo queixo e da frente e se inclinou para ele até que suas afiados presas roçaram a orelha do bastardo.

     —Foda-se, pedaço de bode.

     Com um giro brusco, Dante partiu o pescoço ao secuaz com suas próprias mãos.

     Deixou cair o cadáver sem forças ao chão, apenas consciente do aroma acre no ar e o débil chiado que zumbia em seus ouvidos como um enxame de moscas. A dor o invadiu enquanto ficava em pé e se afastava da janela rota. Ouviu as fortes pisadas de umas botas aproximando-se da habitação, mas logo que podia obrigar a seus olhos a concentrar-se no espaço escuro que havia entre as ombreiras da porta.

     —Aqui há luz total... merda —se ouviu amortecida a voz do Niko. Logo o guerreiro se colocou ao lado de Dante, fazendo-o sair com urgência da habitação banhada em luz.

— Deus santo, Dante, quanto tempo estiveste exposto?

     Dante negou com a cabeça.

     —Nem tanto. O bastardo rompeu uma janela.

     —Já —disse Niko, com a voz extranhamente sombria.

— Já o vejo. Temos que te tirar daqui agora mesmo. Vamos, levanta.

    

     —Maldita seja.

     O guerreiro vestido de negro sentado no assento dianteiro do Rover junto a Tess —Chase, tinham-no chamado— abriu a porta do carro e desceu de um salto ao ver Dante e ao outro tipo saindo da clínica.

     Mas Dante não corria muito, mas sim ia tropeçando, enquanto o outro guerreiro o sustentava ajudando-o a avançar. Tinha a cabeça caida sobre o peito, descoberto, e a parte dianteira de seu traje parecia farrapos, deixando exposta a pele morena de seu torso, que brilhava com um vermelho feroz sob a luz da ensolarada manhã.

     Chase abriu a porta de trás do Land Rover e ajudou ao outro homem a entrar com Dante. As presas de Dante tinham crescido, e suas afiadas pontas se mostravam cada vez que respirava pela boca entreaberta. Seu rosto estava contorsionado pela dor, e suas pupilas eram finas fendas negras em meio de sua íris de um brilho ambarino. Estava completamente transformado, era o vampiro ao que Tess devia temer mas do que agora já não podia fugir.

     Seus amigos atuavam com rapidez, seu sombrio silêncio fazia que a Tess lhe gelasse o sangue nas veias. Chase fechou a porta traseira e correu ao assento do condutor. Entrou de um salto, ligou o veículo e ficaram em marcha.

     —O que lhe passou? —perguntou ela ansiosa, pois não podia ver sangue em Dante nem nenhum outro sinal de feridas—.

.Está ferido?

     —Exposição a luz —disse o tipo que ela não conhecia, seu tom urgente tinha um matiz de acento eslavo.

— Esse maldito traficante de carmesim fez estalar uma janela. Dante teve que agarrar ao bastardo expondo-se diretamente a luz do sol.

     —Por que? —perguntou Tess, observando o corpo de Dante no assento de atrás, sentindo sua agonia e a preocupação que se refletia na seriedade de seus companheiros.

—Por que o tem feito? Por que têm feito isto?

     Com movimentos pequenos mas decididos, Dante conseguiu tirar-se uma das luvas. Alargou a mão para ela.

     —Tess...

     Ela tomou a mão entre as suas, vendo como seus dedos se perdiam entre os dele. A emoção que viajou através do contato lhe chegou ao mais fundo, cálida e conhecida, roubou-lhe a respiração.

     Era amor, tão profundo, tão feroz, que a deixou sem fala.

     —Foi você. Não era minha morte... era a tua.

     —O que? —Ela apertou sua mão, com as lágrimas aparecendo em seus olhos.

     —As visões... não eram minhas, a não ser tuas. Não podia deixar... —fez uma pausa para tomar ar, respirando com dificuldade em evidente agonia.

— Tinha que impedi-lo. Não podia permiti-lo... passasse o que acontecesse.

     A Tess lhe derramaram lágrimas, rodando por suas bochechas enquanto sustentava o olhar de Dante.

     —OH, Deus, Dante. Não devia te haver arriscado assim. O que aconteceria se tivesse morrido em meu lugar?

     Levantou ligeiramente o lábio superior, deixando ver o bordo de um brilhante e afiada presa.

     —Vale a pena... te vendo aqui. Vale a pena... qualquer risco.

     Tess lhe apertou a mão com as duas delas, furiosa e agradecida, e bastante aterrada pelo aspecto que tinha tendido na parte traseira do veículo. Sustentou-o sem soltá-lo até que chegaram ao recinto. Chase estacionou o Land Rover no cavernoso hangar cheio de uma dúzia de veículos. Todos desceram do carro e Tess se manteve apartada enquanto os companheiros de Dante o ajudavam a chegar até um conjunto de elevadores.

     O estado de Dante parecia piorar com cada minuto que passava. Quando desceram do elevador logo que podia se ter em pé. Um grupo de outros três homens e duas mulheres se aproximaram pelo corredor, todos dispostos a atuar com rapidez.

     Uma das mulheres se aproximou de Tess e lhe pôs a mão brandamente no ombro.

     —Sou Gabrielle, a companheira de Lucan. Está bem?

     Tess se encolheu de ombros e logo assentiu fracamente.

     —Dante ficará bem ?

     —Acredito que irá melhor se souber que você está perto.

     Gabrielle fez um gesto a Tess para que a seguisse pelo corredor da enfermaria, a mesma ala de onde tinha fugido de Dante aterrorizada aquela mesma manhã.

     Entraram na habitação onde tinham levado a Dante, e Tess viu seus amigos lhe tirando as armas, e logo, com cuidado, o traje e as botas, para colocá-lo em uma cama de hospital.

     A Tess a comoveu a preocupação que mostravam todas as pessoas na habitação. Ali Dante era amado, aceito tal como era. Tinha uma família, um lar, uma vida... e entretanto, tinha-o arriscado tudo para salvá-la. Por muito que desejasse lhe temer, estar ressentida com ele por tudo o que tinha ocorrido entre eles, não podia. Olhava a Dante, sofrendo por haver-se sacrificado por ela, e o único que sentia era amor.

     —Me deixem —disse brandamente, aproximando-se da cama de Dante. Olhou os rostos preocupados das pessoas que cuidavam dele, os guerreiros e as duas mulheres cujos tenros olhares lhe diziam que elas sabiam o que estava sentindo.

— Deixe-me ajudá-lo, por favor.

     Tess tocou a bochecha de Dante, acariciando sua forte mandíbula. Concentrou-se em suas queimaduras, percorrendo com os dedos seu peito nu, por cima das belas marcas que agora estavam cheias de ampolas e em carne viva, ardendo com uma horrível dor. Tão brandamente como pôde, Tess colocou as mãos sobre a carne queimada, usando seu dom para afastar a radiação, para afugentar a dor.

     —OH, Deus santo —sussurrou um dos guerreiros.

—Ela o está curando.

     Tess ouviu os gritos de assombro afogados e as palavras de esperança que circulavam entre os amigos de Dante... sua família. Sentiu que seu afeto chegava também até ela, mas embora agradecia essas amostras de estima, toda sua concentração estava centrada em Dante. Em curá-lo.

     Inclinou-se sobre ele e lhe deu um beijo nos lânguidos lábios, sem que lhe incomodasse sentir a pequena espetada de suas presas nos seus. Amava-o por inteiro, tal como era, e rogava ter a oportunidade de dizer-lhe            

    

     Dante viveria. As queimaduras tinham sido graves, e facilmente poderiam lhe haver tirado a vida, mas o toque curador de sua companheira de sangue tinha demonstrado ser mais capitalista que a morte que o espreitava. Igual aos outros no recinto, Chase tinha ficado atônito ante a habilidade de Tess e a evidente devoção que professava a Dante. Tinha permanecido a seu lado em todo momento, cuidando dele como ele tinha cuidado dela depois de resgatá-la do ataque dos renegados.

     Todo mundo estava de acordo em que fariam um bom casal: os dois eram indivíduos de uma fortaleza invejável; juntos seriam inquebráveis.

     Passado o pior da tormenta e com o recinto voltando para a calma com a chegada da noite, os pensamentos do Chase começaram a centrar-se em sua volta a casa. Sua própria viagem ainda não tinha terminado e o caminho que ficava por diante era tenebroso e incerto. Houve um tempo em que tudo lhe tinha parecido claro, o que lhe aguardava no futuro... aonde pertencia e a quem.

     Agora já não estava seguro de nada.

     Despediu-se dos guerreiros e suas companheiras e logo saiu, afastando do mundo da Ordem e voltando para o dele. Enquanto conduzia pela cidade tudo estava tranqüilo. As rodas do veículo que lhe tinham emprestado giravam e a estrada ia ficando atrás dele, mas aonde estava indo?

     Podia seguir considerando que o Refúgio Escuro era seu lar? Seus sentidos se haviam agudizado durante o pouco tempo que tinha passado com os guerreiros e seu corpo pesava mais por todo o metal que carregava sob seu casaco... as diversas facas, a Beretta de nove milímetros que se converteu em uma presença reconfortante contra seu quadril.

     Como podia pretender voltar a integrar-se na serena vida que conhecia?

     E o que passava com a Elise?

     Não podia retornar a atormentada existência de seguir esperando a uma mulher que talvez nunca seria dele. Tinha que lhe confessar o que sentia e deixar que passasse o que tivesse que acontecer. Ela tinha que saber de tudo. Chase não se enganava a si mesmo com a esperança de que ela pudesse corresponder a seu afeto. De fato, nem sequer estava seguro do que esperava. Só sabia que aquela vida que tinha estado vivendo pela metade se acabou, e que agora começaria outra.

     Chase girou para a grade do Refúgio Escuro alagado por uma sensação de liberdade. As coisas iam trocar para ele. Embora não sabia o que ia ocorrer de agora em diante, sentia-se liberado de saber que tinha alcançado um ponto de giro em sua vida. Entrou pelo caminho de cascalho da entrada e estacionou perto da residência do Refúgio Escuro.

     A casa estava iluminada por dentro, o dormitório de Elise e seus acolhedores salões brilhavam com uma luz tênue. Estaria levantada, provavelmente ansiosa esperando que ele retornasse do recinto com algo que lhe contar.

     Chase desligou o motor e abriu a porta do veículo. No instante em que suas botas pisaram no chão, teve a sensação de que não se encontrava sozinho. Tirou as chaves do bolso e avançou, desabotoando-se discretamente o casaco. Seus olhos esquadrinharam as sombras, observando na escuridão em busca de alguma sinal do inimigo. Seus ouvidos estavam atentos a qualquer ruído sutil ao redor... o rangido dos ramos e da brisa passando através delas, o zumbido amortecido da equipe de música estéreo da casa, a peça de jazz favorita de Elise como música de fundo...

     E então, em meio de todo isso, o áspero fôlego de alguém respirando não muito longe de onde ele se deteve. Houve um rangido do cascalho atrás dele. Os dedos do Chase estavam já preparados sobre o gatilho da nove milímetros e lentamente se girou para enfrentar a ameaça.

     Camden.

     A sensação de deja vu golpeou a Chase com um canhonaço no estômago. Mas seu sobrinho tinha ainda pior aspecto que a vez anterior, se é que era possível. Cobero de sangue seco e de sangue derramado, horripilante evidencia das recentes mortes que não tinham aplacado sua sede, Camden surgiu do sebe onde se esteve ocultando e se aproximou. Suas enormes presas gotejavam saliva enquanto avaliava a Chase como próximo candidato para saciar a luxúria de sangue que capturava seu corpo e sua mente. Tinha sido inalcançável quando Chase se encontrou com ele no apartamento do Ben Sullivan. Agora era perigoso e imprevisível, um cão raivoso que foi feroz durante muito tempo.

     Chase o olhou com tristeza, cheio de remorso por não ter sido capaz de encontrá-lo, de salvá-lo, a tempo de acautelar que se convertesse em renegado de maneira irreversível.

     —Sinto-o tanto, CAM. Isto nunca tinha que ter ocorrido a você. —Por debaixo de seu casaco de lã escuro, Chase tirou o seguro da Beretta e desencapou a arma.

— Se pudesse morrer eu em seu lugar, juro-te que...

     Depois dele, da casa, Chase ouviu o ruído metálico da porta principal ao abrir-se, e logo o repentino e prolongado grito de Elise. O tempo se deteve de repente. Tudo começou a dar voltas, a realidade descendeu com a espessura de um lento sonho, um pesadelo que começou no instante em que Elise saiu da casa.

     —Camden! —Sua voz parecia terrivelmente longínqua, ralentizada como tudo naquele momento.

— OH... Deus... Camden!

     Chase voltou a cabeça para ela. Gritou-lhe que voltasse atrás, mas ela corria, com os braços abertos, seu traje de viúva flutuando em torno dela como as asas de uma delicada mariposa noturna enquanto voava para seu filho. Por volta do encontro de uma morte segura e violenta se Chase lhe permitia aproximá-lo suficiente para tocar ao vampiro renegado que um dia tinha sido seu querido filho.

     —Elise, volta atrás!

     Mas ela o ignorava. Continuou avançando, inclusive quando seus olhos cheios de lágrimas enfocaram o temível e repugnante aspecto do Camden. Afogou-se em soluços, mas seus braços continuavam abertos para ele, e seus pés seguiam avançando através da erva.

     De repente, Chase advertiu que o selvagem olhar cor âmbar do vampiro se dirigia para Elise. Com os olhos fixos nela, o vampiro sedento de sangue proferiu um terrível uivo, ficando em cocoras para atacar. Chase se voltou e se colocou entre a mãe e o filho. Estava apontando com a pistola quase sem dar-se conta.

     Transcorreu outro segundo.

     Elise ainda se aproximava, agora mais rápido, chorando e chamando Camden por seu nome.

     Chase media a distância com seu estômago, sabendo que faltavam apenas segundos antes de que essa confrontação terminasse em tragédia. Não tinha eleição. Devia atuar. Não podia ficar aí e permitir que ela arriscasse sua vida...

     O estalo da bala soou como um trovão em meio da noite.

     Elise gritou.

     —Não! OH, não, Deus... não!

     Chase permaneceu ali em pé, intumescido, apertando ainda o gatilho com os dedos. A bala cheia de titânio tinha alcançado ao renegado diretamente no centro do peito, fazendo-o cair ao chão. O chiado de carne queimada já tinha começado, apagando toda dúvida de que pudesse ter havido alguma oportunidade de salvar a Camden da luxúria de sangue que o possuía. O carmesim o tinha conduzido pelo caminho da morte; agora tinha chegado a seu fim. O sofrimento do Camden tinha acabado.

     Pelo contrário o do Elise, e o do Chase, não tinha feito mais que começar.

     Ela correu até ele e o golpeou com os punhos. Seu rosto, seus ombros, seu peito, tudo o que pudesse golpear. Seus olhos cor lavanda estavam alagados de lágrimas, seu belo rosto pálido e cheio de dor, sua voz se perdia entre os soluços e lamentos que saíam de sua garganta.

     Chase suportou os golpes em silêncio. O que podia fazer? O que ia dizer?

     Deixou que ela descarregasse sobre ele todo seu ódio, e só quando se deteve, voltando-se para afundar-se no chão perto do corpo de seu filho, que o titânio estava reduzindo rapidamente a cinzas, Chase encontrou as forças para mover-se. Contemplou fixamente sua silhueta encurvada e tremente sobre o caminho de cascalho, e lhe apitavam nos ouvidos os lúgubres sons de sua dor. Então, em cansado silêncio, abriu a mão para soltar o revólver.

     Separou-se dela e do Refúgio Escuro que durante tanto tempo tinha sido seu lar, e entrou, solitário, na escuridão.

    

     Dante despertou sobressaltado, abrindo de repente os olhos e respirando agitadamente. Tinha estado apanhado por uma parede de fogo, cegado pelas chamas e a cinza. Incapaz de alcançar a Tess. Sentou-se, ofegando, com a visão ainda dando voltas em sua mente, agitando seu coração.

     OH, Deus, se lhe tivesse falhado...

     Se a tivesse perdido...

     —Dante?

     Um profundo alívio o invadiu para ouvir o som de sua voz, ao dar-se conta de que Tess estava junto a ele, sentada em sua mesma cama. Acabava de despertá-la e ela ainda estava dormitada; levantou a cabeça, com o cabelo despenteado, e seus doces olhos se viam cansados.

     —Dante, está acordado. —de repente o rosto de Tess se iluminou, logo se aproximou mais a ele e lhe acariciou o rosto e o cabelo.

— Estava tão preocupada. Como te encontra?

     Ele pensou que deveria sentir-se muitíssimo pior de como se sentia. Estava o bastante bem para agarrar a Tess entre seus braços. O bastante forte para sentá-la em seu regaço sobre a cama, onde a beijou profundamente.

     Estava o suficientemente vivo para saber que o que necessitava mais que nenhuma outra coisa naquele momento era sentir seu corpo nu apertado contra o seu.

     —Sinto-o —murmurou junto a seus lábios.

— Tess, sinto tudo o que te tenho feito passar...

     —Shh, teremos tempo para isso mais tarde. Poderemos arrumá-lo tudo mais tarde. Agora mesmo precisa descansar.

     —Não —disse ele, muito encantado de estar acordado, de estar com ela, para pensar em esbanjar mais tempo dormindo.

— O que preciso te dizer não pode esperar. Hoje vi algo terrível. Vi o que seria te perder. É algo que não quero voltar a sentir. Preciso saber que está protegida, que está a salvo...

     —Estou aqui. Você me salvou, Dante.

     Ele acariciou a pele aveludada de suas bochechas, agradecido de poder fazê-lo.

     —É você quem me salvou, Tess.

     Ele não estava falando de suas feridas pela exposição solar, que ela tinha curado com seu surpreendente dom. Tampouco estava falando da primeira noite em que a tinha encontrado, quando se achava em uma debilidade extrema e seu sangue o fortaleceu. Tess o tinha salvado de muitas outras formas além dessas. Ele pertencia a essa mulher, pertenciam a ela seu coração e sua alma, e queria que ela soubesse agora.

     —Tudo tem sentido quando estou contigo, Tess. Minha vida tem sentido, depois de tantos anos de estar fugindo assustado na escuridão. Você é a luz, minha razão de viver. Estou profundamente unido a você. Para mim, nunca haverá ninguém mais.

     —Agora temos um laço de sangue —disse ela, mas seu débil sorriso lhe tremeu nos lábios. Baixou a vista, franzindo o cenho.

— O que teria passado se não me tivesse mordido essa noite na clínica? Sem o laço de sangue, você ainda...?

     —Se te amaria ? —acabou ele a frase. Levantou-lhe o queixo para que pudesse ver a verdade refletida em seus olhos.

— Você sempre estiveste, Tess. Só que não o soube até esta noite. Estive te buscando durante toda minha vida, conectado contigo pela visão do que ocorreu hoje.

     Ele alisou seu cabelo despenteado, deixando que uma de suas ondas cor mel se enredasse em seus dedos.

     —Sabe uma coisa? Minha mãe tinha uma confiança cega no destino. Acreditava nele, pesar de saber que seu próprio destino lhe reservava a perda e a amarga dor. Eu nunca quis aceitar essa fé, a crença de que tudo está destinado. Acreditava que eu era mais inteligente, que estava por cima de tudo isso. Mas foi o destino quem nos uniu, Tess. Agora não posso negá-lo. Deus, Tess... tem idéia de quanto tempo te estive esperando?

   —OH, Dante —sussurrou ela, enxugando uma lágrima.

— Eu não estava preparada para nada disto. Estou tão assustada...

     Ele a atraiu para si, aflito por tudo o que ela tinha tido que suportar por sua causa. Sabia que o trauma do que lhe tinha ocorrido permaneceria muito tempo. Tanta morte e destruição. Não queria que ela voltasse a sentir essa classe de dor nunca mais.

     —Preciso saber que te encontra em um lugar onde sempre estará a salvo, Tess. Onde eu possa te proteger melhor. Há lugares onde podemos ir, há lares seguros para a estirpe. Já falei com o Chase para que encontre um lugar seguro para nós na área dos Refúgios Escuros.

     —Não. —lhe deu um tombo o coração quando ela se separou com cuidado de seu abraço e ficou de joelhos sobre a cama a seu lado. Negou com a cabeça lentamente.

—Dante, não...

     Que Deus o ajudasse, mas não podia falar. Esperou em um silêncio agônico, sabendo que merecia sua negativa. Ele deveria compensá-la por tantas razões. Entretanto, estava seguro de que lhe tinha carinho. Rogava para que assim fora, ao menos um pouco.

     —Tess, se você disser que não me ama...

     —Eu te amo —disse ela.

— Te amo com todo meu coração.

     —Então o que é o que acontece?

     Ela o olhou com perspicácia, com seus olhos de cor aguamarina umedecidas mas cheios de resolução.

     —Estou cansada de fugir, estou cansada de me esconder. Você tem aberto meus olhos a um mundo que jamais sonhei que existisse. Seu mundo, Dante.

   Ele sorriu a essa preciosa mulher sentada a seu lado.

     —Meu mundo é teu.

     —E tudo o que abrange também. Este lugar, esta gente. O incrível legado do que forma parte. Seu mundo é escuro e perigoso, Dante, mas de uma vez extraordinário... como você. Como a vida. Não me peça que fuja disto. Quero estar junto a você, mas se for a viver em seu mundo terá que ser aqui, onde você pertence. Onde está sua família.

     —Minha família? Ela assentiu.

     —Os outros guerreiros que vivem aqui e suas companheiras. Eles lhe querem. Hoje pude vê-lo. Talvez com o tempo também me queiram .

     —Tess. —Dante a aproximou dele, abraçando-a com o coração cheio de uma gratidão que remontava o vôo em seu peito como se estivesse sustentada por asas.

— Queria estar aqui comigo, como a companheira de um guerreiro?

     —Como a companheira de meu guerreiro —corrigiu ela, sorrindo com os olhos brilhantes de amor.

— Não pode ser de outra maneira.

     Dante tragou saliva com a garganta seca. Não merecia a essa mulher. Depois de tudo o que tinham passado, depois de sua fuga incessante, seu coração por fim encontrava seu lar. Junto a Tess. Junto a sua amada.

     —O que opina? —perguntou-lhe ela.

— Poderá viver comigo?

     —Eternamente —jurou Dante. Logo, empurrou-a sobre a cama e selou seu pacto com um apaixonado e interminável beijo.

 

 

                                                                                                    Lara Adrian

 

 

 

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