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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BEIJO DA MORTE / Ira Levin
O BEIJO DA MORTE / Ira Levin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A aventura de uma garota que procura o assassino de sua irmã serve para revelar um processo assustador de transformação: o de um aluno da faculdade que se transformou em um criminoso brutal e ambicioso. A mentalidade dos protagonistas é fundamental para o esclarecimento da intriga, descobrir que impulsos psicológicos movem a um deles a violência. Uma família de enorme riqueza e desavenças é vítima de um "caçador de dotes" que mata friamente suas eventuais vítimas quando elas começam a complicar-lhe a vida. E assim, os problemas familiares vão-se somando um ao outro, até que o sangue das vítimas incentiva um comentarista escuro a procurar os culpados, contra o ceticismo da polícia local e até mesmo o pai do seu amigo. Neste extraordinário romance de Levin, incidentes de duas universidades orientam ao investigador — e também ao leitor — na pista do assassino.

 

 

 

 

 

 

Primeira parte

 

 

DOROTHY


1

 

 

SEUS PLANOS CORRIAM muito bem, muito bem mesmo, e agora ela ia despedaçá-los todos. Sentiu o ódio brotar dentro de si e inundá-lo, contraindo o rosto com uma pressão que fez doer-lhe o maxilar. Mas não tinha problema; as luzes estavam apagadas.

E ela, ela continuava soluçando baixinho no escuro, o rosto comprimido contra seu peito nu, as lágrimas e a respiração ardentes. Ele gostaria de empurrá-la para longe.

Finalmente, seu rosto descontraiu-se. Passou o braço em torno dela e alisou-lhe as costas. Estavam quentes; ou, antes, eram suas mãos que estavam frias. Constatou que todo ele estava frio; suas axilas pingavam suor e as pernas tremiam, como sempre acontecia quando algo saía errado e o apanhava indefeso e despreparado. Permaneceu imóvel por algum tempo, esperando passar o tremor. Com a mão livre, puxou o lençol para cima dos ombros dela.

— Não adianta chorar — disse-lhe, com toda a delicadeza.

Obedientemente, ela tentou parar, prendendo a respiração em longos e sufocantes arquejos. Esfregou os olhos com a puída barra do lençol.

— É apenas... guardar isso tanto tempo. Já sabia há dias... semanas. Não queria dizer nada até ter certeza...

A mão dele, nas costas dela, estava mais quente.

— Não há possibilidade de engano? — Ele falava num sussurro, embora a casa estivesse vazia.

— Não.

— Quanto tempo?

— Quase dois meses. — Ela ergueu a face do seu peito, e no escuro ele podia sentir os olhos dela observando-o. — Que vamos fazer? — perguntou.

— Você não deu ao médico seu verdadeiro nome, deu?

— Não. Mas ele sabia que eu estava mentindo. Foi horrível...

— Se seu pai vier a descobrir...

Ela baixou a cabeça de novo e repetiu a pergunta, falando colada a seu peito:

— Que vamos fazer? — E ficou esperando a resposta.

 

Ele mudou um pouco de posição, em parte para dar força ao que ia dizer e em parte na esperança de encorajá-la a mover-se, porque o peso dela em seu peito o incomodava.

— Ouga, Dorrie — disse. — Sei que você quer que eu diga que nos casaremos imediatamente, amanhã. E quero me casar com você. Mais do que qualquer outra coisa neste mundo. Juro por Deus que quero. — Fez uma pausa, planejando as palavras com cuidado. O corpo dela, enroscado no seu, estava imóvel, à escuta. — Mas se nos casarmos assim, sem eu sequer conhecer seu pai, e então nascer um filho sete meses depois... Você sabe o que ele faria.

— Ele não poderia fazer nada — ela protestou. — Tenho mais de dezoito anos. É a idade que a gente precisa ter aqui. Que poderia ele fazer?

— Não estou falando de uma anulação, ou algo assim.

— Então o que é? O que e que você quer dizer?

— O dinheiro — ele disse. — Dorrie, que tipo de homem é ele? Que foi que você me disse sobre ele, ele e sua santa moral? Sua mãe comete um simples deslize, ele descobre oito anos depois e divorcia-se dela, divorcia-se dela sem dar a mínima para você e suas irmãs, sem dar a mínima para a péssima saúde dela. Bem, que acha que ele faria com você? Esqueceria até que você existe. Você Não veria um centavo.

— Não dou a mínima — ela disse com ardor. — Você pensa que eu ligaria?

— Mas eu ligo, Dorrie. — Sua mão começou a movimentar-se carinhosamente, de novo, nas costas dela. — Não por mim. Juro por Deus que não por mim. Mas por você. Que vai nos acontecer? Teremos ambos de abandonar os estudos; você por causa do bebê, e eu para trabalhar. E que farei eu?... Outro cara com dois anos de faculdade e sem diploma. Que serei eu? Um escriturário? Ou o cara que lubrifica as máquinas numa fábrica de tecidos ou algo assim?

— Não importa.

— Importa! Você não sabe o quanto importa. Tem apenas dezenove anos e teve dinheiro toda a sua vida. Não sabe o que significa Não tê-lo. Eu sei. Estaríamos nos agredindo dentro de um ano.

— Não... Não... nós não!

— Esta bem! Nós nos amamos tanto, que jamais brigaremos. Mas aonde isso nos leva? A quarto alugado com... com cortinas de papel? Comendo espaguete sete noites por semana? Se eu a visse vivendo desse jeito e soubesse que era por minha culpa... — ele parou um instante, e depois concluiu, bem baixinho — eu faria um seguro de vida e me jogaria na frente de um carro.

Ela começou a soluçar de novo.

Ele fechou os olhos e falou sonhadoramente, dando as palavras um tom de acalanto.

— Eu tinha planejado tudo muito bem. Iria a Nova York este verão e você me apresentaria a ele. Assim, eu poderia conquistá- lo. Você me diria as coisas pelas quais ele se interessa, as coisas de que ele gosta, as de que não gosta... — Parou, e depois continuou. — E apos a formatura nós nos casaríamos. Ou mesmo neste verão. Poderíamos retornar aqui em setembro para os dois últimos anos de faculdade. Um apartamentozinho nosso, vizinho ao campus...

Ela ergueu a cabeça sobre o peito dele,

— Que esta tentando fazer? — perguntou. — Por que diz essas coisas?

— Quero que você veja como poderia ser belo, maravilhoso.

— Estou vendo. Acha que não estou? — Os soluços torciam a voz dela. — Mas estou grávida. Estou grávida de dois meses. — Fez-se silencio, como se motores até então despercebidos houvessem parado. — Você... você está tentando dar o fora? Fugir? E isso que esta tentando fazer?

— Não! Por Deus, não, Dorrie! — Ele agarrou-a pelos ombros e puxou-a até trazer o rosto dela junto do seu. — Não!

— Então o que esta fazendo comigo? Nos temos de nos casar já! Não temos escolha.

— Nos temos uma escolha, Dorrie — ele disse.

 

Sentiu o corpo dela enrijecer-se contra o seu.

Ela emitiu um sussurro abafado e aterrorizado:

— Não! — E começou a balançar violentamente a cabeça de um lado para outro.

— Escute, Dorrie — ele pediu, agarrando-a pelos ombros com firmeza. — Não será uma operação. Nada disso. — Segurou o queixo dela, os dedos comprimindo suas bochechas, mantendo a cabeça firme. — Escute! — Esperou até que o descompasso da respiração dela diminuísse. — Há um cara no campus, Hermy Godsen... O tio dele é dono de uma farmácia na esquina da universidade com a Rua 34. Hermy vende uma porção de coisas. Ele podia conseguir algumas pílulas.

Soltou o queixo dela. A moça ficou calada.

— Será que você não vê, benzinho? Temos de tentar! Isso significa tanta coisa!

— Pílulas... — ela disse, insegura, como se fosse uma palavra nova.

— Nos temos de tentar. Poderia ser maravilhoso.

Ela balançou a cabeça, em desesperada confusão.

— Oh, Deus, eu não sei.

Ele passou os braços em torno dela.

— Benzinho, eu a amo. Não a deixaria tomar nada que lhe fizesse mal.

Ela deixou-se cair em cima dele, o lado da cabeça atingindo o seu ombro.

— Não sei... Não sei...

— Seria tão maravilhoso... — A mão acariciando. — Um apar- tamentozinho nosso... nada de esperar a maldita senhoria ir ao cinema... — ele disse.

— Como... como você sabe se elas funcionarão? E se não funcionarem? — ela disse, finalmente.

Ele inspirou profundamente.

— Se não funcionarem... — beijou a testa dela, e a face, e o canto de sua boca — se não funcionarem, nós nos casaremos imediatamente, e ao diabo com seu pai e a Kingship Copper Incorporated. Juro que nos casaremos, benzinho.

Descobrira que ela gostava de ser chamada de benzinho. Quando a chamava assim e a tinha em seus bravos, podia conseguir que ela fizesse praticamente qualquer coisa. Pensara nisso, e concluíra que devia ter alguma coisa a ver com a frieza que ela sentia em relação ao pai.

 

Continuou beijando-a suavemente, falando com palavras cálidas e em voz baixa, e dentro em pouco ela estava calma e a vontade.

Os dois dividiram um cigarro, Dorothy levando-o primeiro aos lábios dele e depois aos dela, onde o fulgor róseo de cada baforada tocava momentaneamente seus cabelos loiros escorridos e os grandes olhos castanhos.

Ela virava a ponta da brasa para eles e movimentava-a para lá e para cá, traçando círculos e linhas de vivido laranja na escuridão.

— Aposto que se poderia hipnotizar alguém assim — ela disse. Depois, ficou passando lentamente o cigarro diante dos olhos dele. Naquele pálido fulgor, sua mão, de dedos esguios, movia-se sinuosamente. — Você é meu escravo — murmurou. — Você é meu escravo e está inteiramente sob meu domínio. Deve obedecer a todas as minhas ordens! — Era tão bonita, que ele não pode deixar de sorrir.

Quando acabaram o cigarro, ele olhou o mostrador luminoso de seu relógio. Balançando a mão diante dela, murmurou também, como ela:

— Você deve se vestir. Deve se vestir, porque são dez e vinte e precisa estar de volta ao dormitório às onze.


2

 

 

ELE NASCERA EM MENASSET, nos arredores de Fall River, Massachusetts, único filho de um operário encarregado de lubrificar as máquinas de uma fábrica de tecidos da cidade, e de uma mulher que às vezes tinha de costurar para fora quando o dinheiro escasseava. Eram de origem inglesa, com algum sangue francês, e moravam num bairro povoado em grande parte por portugueses. Seu pai não via nisso motivo para preocupações, mas a mãe via. Era uma mulher amarga e infeliz, que se casara cedo, esperando que o marido chegasse a algo mais que um simples operário.

Desde cedo, ele tomara consciência de que era bonito. Aos domingos, as visitas apareciam e soltavam exclamações a seu respeito — o loiro de seus cabelos, o límpido azul de seus olhos —, mas o pai estava sempre lá, abanando a cabeça em advertência para os hóspedes. Os pais discutiam muito, geralmente por causa do tempo e dinheiro que a mãe despendia para vesti-lo.

Como a mãe nunca o encorajara a brincar com as crianças das vizinhanças, seus primeiros dias de escola haviam sido uma agonia de insegurança. De repente, ele era um membro anônimo de um grande grupo de garotos, alguns dos quais gozavam o apuro de suas roupas e o ostensivo cuidado que ele tomava para evitar as poças d’agua no pátio da escola. Um dia, não podendo mais suportar, dirigiu-se ao líder de seus atormentadores e cuspiu nos sapatos dele. A briga que se seguiu foi breve mas feroz, e no fim ele manteve as costas do líder coladas ao chão e sentou-se em seu peito, batendo a cabeça do outro no chão, sem parar. Um professor veio correndo e apartou a briga. Depois disso, tudo ficou bem. Afinal, ele acabou aceitando o líder como um de seus amigos.

Suas notas na escola eram boas, o que deixava a mãe radiante e até arrancava um ou outro elogio relutante do pai. Tornaram-se ainda melhores quando ele passou a sentar-se junto de uma garota feinha mas brilhante, e tão enfeitiçada por ele, depois de alguns desajeitados beijos no vestiário, que não se dava ao trabalho de cobrir as provas durante os exames.

Os dias de escola tinham sido os mais felizes de sua vida; as garotas gostavam dele por sua beleza e fascínio; os professores, porque era educado e atencioso, assentindo com a cabeça quando declaravam coisas importantes, sorrindo quando soltavam piadas fracas; e, aos garotos, demonstrava suficiente antipatia por garotas e professores para que também gostassem dele. Em casa, era um deus. O pai acabara cedendo e juntara-se a mãe em reverente admiração.

Quando começou a namorar, escolheu as garotas da melhor parte da cidade. Os pais haviam começado a discutir de novo sobre sua mesada e o dinheiro gasto com suas roupas. Mas as discussões eram breves, o velho brigando apenas para constar, sem muito empenho. A mãe começara a falar no casamento dele com a filha de um rico. Falava brincando, claro, mas repetira isso mais de uma vez.

No último ano de colégio, foi eleito presidente da classe, e diplomou-se em terceiro lugar, com distinção em matemática e ciências. No anuário da escola, foi qualificado como o melhor dançarino, o mais popular e o mais provável candidate ao sucesso. Seus pais lhe ofereceram uma festa, a qual compareceram muitos jovens da melhor parte da cidade.

Duas semanas depois, foi convocado para o serviço militar.

 

Durante os primeiros dias do treinamento básico, repousou na gloria que deixara para trás. Mas depois a realidade penetrou em seu isolamento, e ele acabou descobrindo que a autoridade impessoal do Exercito era mil vezes mais degradante que seus primeiros dias de escola. E ali, se se dirigisse ao sargento e cuspisse nos sapatos dele, provavelmente passaria o resto de seus dias no xadrez. Amaldiçoou o cego sistema que o jogara na infantaria, onde se via cercado por idiotas grosseiros, que passavam o tempo lendo historias em quadrinhos. Depois de algum tempo, estava lendo-as também, mas apenas porque era impossível concentrar-se no exemplar de Anna Karenina que trouxera consigo. Fizera algumas amizades com os rapazes, pagando-lhes cervejas na cantina e inventando biografias obscenas e fantasticamente engraçadas de todos os oficiais. Desprezava tudo o que tinha de aprender a fazer.

Quando o embarcaram em San Francisco, vomitou durante toda a viagem pelo Pacifico, e sabia que aquilo se devia em parte ao jogo do navio. Tinha certeza de que ia ser morto.

 

Numa ilha ainda parcialmente ocupada pelos japoneses, perdeu-se dos outros membros de sua companhia e ficou aterrorizado no meio de uma selva silenciosa, dirigindo-se desesperadamente de um lado para outro, sem saber que rumo seguro tomar. Ouviu então um tiro de fuzil: a bala passou zunindo junto a sua orelha. Gritos agudos de pássaros vararam o ar. Ele se jogou de barriga no chão e rolou para baixo de uma moita, nauseado com a certeza de que havia soado a hora de sua morte.

Os sons dos pássaros reduziram-se, aos poucos, até recompor- se o silencio. Ele viu um brilho numa árvore a frente e percebeu que era ali que o atirador estava, a sua espera. Rastejou então para a frente sob o mato, arrastando o fuzil com a mão. Sentia o corpo pegajoso de suor frio; as pernas tremiam tanto, que ele tinha certeza de que o japonês ouvira as folhas estalando debaixo delas. O fuzil pesava uma tonelada.

Finalmente achou-se a apenas uns cinco metros da árvore e, olhando para cima, pode distinguir a figura agachada entre os galhos. Ergueu o fuzil, apontou, disparou. O coro de pássaros explodiu. A árvore permaneceu imóvel. Então, de repente, caiu um fuzil, e ele viu o franco-atirador deslizar desajeitadamente por uma trepadeira abaixo e despencar no chão, as mãos erguidas no ar; um homenzinho amarelo, grotescamente enfeitado com folhas e galhos, os lábios emitindo uma aterrorizada algaravia, meio cantada.

Mantendo o fuzil apontado para o japonês, ele se levantou. O homenzinho estava tão amedrontado quanto ele; o rosto amarelo contorcia-se descontroladamente e os joelhos tremiam; mais amedrontado, na verdade, pois na parte da frente de suas calças uma mancha escura se expandia.

Ele observou a infeliz figura com desprezo. Suas pernas haviam se firmado, parara de suar. O fuzil não pesava mais, era como uma extensão de seus braços, imóvel, apontado para a trêmula criatura a sua frente. A algaravia do japonês diminuiu até um tom de súplica. Os escuros dedos amarelos faziam pequenos movimentos de pedido no ar.

Muito lentamente, apertou o gatilho. Não se moveu com o recuo da arma. Insensível ao coice da coronha no ombro, observou atentamente o rombo vermelho-escuro brotar e ampliar-se no peito do japonês. O homenzinho arriou, tentando agarrar-se a alguma coisa, no chão da selva. Os gritos dos pássaros eram como um punhado de cartas coloridas lançadas no ar.

Apos olhar por um minuto ou dois o inimigo assassinado, voltou-se e afastou-se. Seus passos eram tão fáceis e seguros como quando atravessara o palco do auditório, depois de receber seu diploma.

Em janeiro de 1947 foi dispensado honrosamente do serviço militar, deixando o Exercito com duas condecorações, a Estrela de Bronze e o Coração Púrpuro, além da marca de um estilhaço de granada riscada sobre as costelas direitas. Ao voltar para casa, soube que seu pai tinha morrido num acidente de automóvel quando ele estava no além-mar.

Ofereceram-lhe vários empregos em Menasset, mas ele os recusou, por serem pouco promissores. O dinheiro do seguro de seu pai era suficiente para sustentar a mãe, e ela recomeçara a costurar para fora. Assim, depois de desfrutar a admiração do pessoal da cidade por dois meses e os vinte dólares semanais do governo federal, decidiu ir para Nova York. A mãe se opôs, mas ele era maior de idade, se bem que só havia muito pouco tempo, e assim fez como queria. Alguns dos vizinhos manifestaram surpresa por ele Não querer ir para alguma faculdade, especialmente quando era o governo que pagaria. Mas ele achou que a faculdade seria apenas uma etapa desnecessária na estrada para o sucesso que, tinha certeza, estava a sua espera.

 

Seu primeiro emprego em Nova York foi numa editora, onde o chefe de pessoal lhe garantiu que havia um excelente futuro para o homem certo. Mas só conseguiu suportar duas semanas na seção de remessas.

O emprego seguinte foi numa loja, onde o colocaram como vendedor na seção de roupas masculinas. A única razão pela qual permaneceu ali todo um mês foi que, assim, pode comprar roupas com vinte por cento de desconto.

Em fins de agosto, depois de estar em Nova York há cinco meses e passar por seis empregos, viu-se novamente presa da terrível insegurança de ser apenas uma pessoa em meio a muitas outras mais ou menos solitárias, sem ninguém para admirá-lo e nenhum sinal de sucesso. Sentou-se em seu quarto mobiliado e dedicou certo tempo a uma seria auto-análise. Se não encontrara o que procurava naqueles seis empregos, não era provável que encontrasse nos seis seguintes, concluiu. Pegou então a caneta e fez o que considerou uma lista objetiva de suas qualidades, capacidades e talentos.

Em setembro, matriculou-se numa escola de arte dramática valendo-se da lei que garantia educação paga pelo governo aos ex-combatentes. A princípio, os professores depositaram grandes esperanças nele; era bonito, inteligente e tinha uma voz excelente, embora fosse necessário eliminar o sotaque da Nova Inglaterra. Ele também tivera grandes esperanças, a principio. Depois descobriu quanto trabalho e estudo implicava tornar-se ator. Os exercícios que os professores passavam (olhe esta foto e expresse as emoções que ela lhe traz a mente) pareciam-lhe ridículos, embora os outros estudantes aparentemente os levassem a sério. O único estudo ao qual se aplicou fora o de dicção; ficou consternado ao ouvir a palavra “sotaque” aplicada a si mesmo, uma vez que sempre pensara nisso como algo que os outros tinham.

Em dezembro, no seu vigésimo segundo aniversário, conheceu uma viúva bastante atraente. Ela estava na casa dos quarenta e tinha um bocado de dinheiro. Haviam se encontrado na esquina da Quinta Avenida com a Rua 55 — bem romanticamente, como concordaram depois. Recuando para o meio-fio a fim de evitar um ônibus, ela tropeçou e caiu em seus braços. Ficou meio confusa e terrivelmente assustada. Ele fez alguns comentários engraçados sobre a habilidade e a consciência dos motoristas de ônibus da Quinta Avenida, e desceram a rua até um bar distinto, onde tomaram dois martinis cada, que ele pagou com cheque. Nas semanas seguintes, frequentaram pequenos cinemas de arte do East Side e jantaram em restaurantes em que se dava gorjeta a três ou quatro pessoas. Ele pagou com muitos outros cheques, embora Não mais com o seu dinheiro.

Essa ligação durou vários meses, durante os quais ele foi se desligando da escola de arte dramática — um processo indolor — e dedicando suas tardes a acompanhar a viúva em excursões de compras, algumas das quais para ele próprio. A principio, sentia-se um pouco envergonhado por ser visto com ela, devido a obvia discrepância de idades, mas logo superou isso. Contudo, estava insatisfeito com a ligação por dois motivos: primeiro porque, embora o rosto dela fosse atraente, o corpo infelizmente não era; segundo, e mais importante ainda, porque soubera, pelo ascenso- rista do prédio dela, que era apenas um numa série de rapazes, todos substituídos com invariável regularidade ao cabo de seis meses. Refletiu, não de muito bom humor, que aquela era outra posição sem futuro. Ao fim de cinco meses, quando a viúva começou a demonstrar menos curiosidade sobre como ele passava as noites em que não estavam juntos, antecipou-se a ela e disse- lhe que tinha de voltar para casa, porque sua mãe estava mortal- mente enferma.

E retornou, apos retirar relutantemente as etiquetas de seus ternos feitos sob encomenda e empenhar um relógio de pulso Patek Philippe. Passou a primeira parte do mês de junho rondando pela casa, lamentando em silencio o fato de a viúva não ser mais jovem, mais bonita e chegada a um tipo mais permanente de aliança.

Foi quando começou a fazer seus pianos. Decidiu ir para a faculdade, afinal. Arrumou um emprego de verão num armazém de secos e molhados da cidade, porque, embora a lei dos ex- combatentes cobrisse seus estudos, os gastos consigo mesmo seriam bastante elevados; ia frequentar uma boa escola.

Finalmente, escolheu a Universidade Stoddard, em Blue River, Iowa, que era tida como uma espécie de clube de campo para os filhos dos ricos do Meio-Oeste. Não houve dificuldades para a admissão. Ele tinha um currículo escolar excelente.

Em seu primeiro ano, conheceu uma garota adorável, da última série, filha do vice-presidente de uma empresa de equipamentos agrícolas com filiais no exterior. Os dois passeavam juntos, faltavam às aulas juntos e dormiam juntos. Em maio, ela lhe disse que estava noiva de um rapaz de sua terra, e esperava que ele não tivesse levado aquilo muito a serio.

Em seu segundo ano, conheceu Dorothy Kingship.


3

 

 

ELE OBTEVE AS PÍLULAS, duas cápsulas de um branco- acinzentado, com Hermy Godsen. Custaram-lhe cinco dólares.

As oito horas, encontrou-se com Dorothy no lugar de sempre, um banco cercado de arvores no centro do vasto gramado entre os prédios de Belas-Artes e de Farmácia. Quando deixou a branca pista de concreto e atravessou a escuridão do gramado, viu que ela já estava lá, sentada ereta com os dedos trançados no colo, uma capa escura protegendo seus ombros do frio de abril. A luz da lâmpada de um poste ao lado lançava sombras de folhagens em seu rosto.

Ele sentou-se ao lado dela e beijou-lhe a face. Ela cumpri- mentou-o baixinho. Do retângulo de janelas iluminadas no prédio de Belas-Artes vinham, confusos, os temas de uma dezena de pianos. Apos um instante, ele disse:

— Arranjei-as.

Um casal atravessava o gramado em direção a eles, mas, vendo o banco ocupado, retornou a pista branca.

— Deus do céu, estão todos tomados — a garota disse.

Ele retirou o envelope do bolso e colocou-o na mão de Dorothy. Os dedos dela apalparam as cápsulas através do papel.

— Você deve tomar as duas juntas — ele disse. — Vai ficar um pouco febril, e provavelmente sentirá náuseas.

Ela pôs o envelope no bolso do casaco.

— Que é que elas contêm? — perguntou.

— Quinino e mais umas coisas. Não sei ao certo. — Ele parou. — Não vão lhe fazer mal.

Olhou o rosto dela e viu que a moça fitava algum ponto distante, além do prédio de Belas-Artes. Ele voltou-se e, seguindo o olhar de Dorothy, viu uma luz vermelha piscando a quilômetros de distancia. Era a torre de transmissão da estação de rádio local, que ficava sobre a mais alta construção de Blue River, a Prefeitura Municipal, onde se tiravam as licenças de casamento. Ele imaginou se ela olhava a luz por causa disso ou apenas porque era uma luz vermelha piscando num céu escuro. Tocou as mãos dela e sentiu-as frias.

— Não se preocupe, Dorrie. Vai dar tudo certo.

Ficaram em silencio por alguns minutos, e depois ela disse:

— Eu gostaria de ir a um cinema esta noite. Há um filme de Joan Fontaine no Uptown.

— Sinto muito — ele disse —, mas tenho uma tonelada de deveres de casa do curso de espanhol.

— Vamos para o grêmio. Eu o ajudarei.

— O que e que você esta tentando fazer? Corromper-me?

 

Ele acompanhou-a de volta ao campus. Defronte as formas modernas e baixas do dormitório feminino, deram-se um beijo de boa-noite.

— Eu a vejo amanhã na aula — ele disse. Ela assentiu com a cabeça e beijou-o de novo. Tremia. — Escute, benzinho, não há com que se preocupar. Se as pílulas não funcionarem, nós nos casaremos. Você sabe: o amor vence tudo. — Ela estava a espera de que ele falasse mais. — E eu a amo muito — ele disse, e beijou-a.

Quando seus lábios se desprenderam, os dela estavam comprimidos num sorriso inseguro.

— Boa noite, benzinho — ele disse.

 

Voltou ao seu quarto, mas não pode fazer os deveres de espanhol. Ficou sentado com os cotovelos fincados na mesa de bridge, a cabeça nas mãos, pensando nas pílulas. Oh, Deus, tem de funcionar. Vão funcionar.

Mas Hermy Godsen havia dito: “Não posso lhe dar garantia por escrito. Se essa sua namorada já passou dos dois meses...”

Tentou não pensar no assunto. Levantou-se, foi até a escrivaninha e abriu a gaveta de baixo. De sob os pijamas cuidadosamente dobrados, retirou dois folhetos cujas capas moles reluziam com um acabamento acobreado.

Ao encontrar Dorothy pela primeira vez e descobrir, através de uma das estudantes-secretárias do escritório de Registros, que ela não era apenas ligada a Kingship Copper, mas na verdade filha do presidente da corporação, escrevera uma carta comercial ao escritório da organização em Nova York. Apresentou-se como uma pessoa interessada em investir na Kingship Copper (o que não era inteiramente falso), e pediu brochuras descritivas de seus bens.

Duas semanas depois, quando ele lia Rebecca e fingia adora- lo, por ser o livro favorito de Dorothy, e ela tricotava obstinada- mente grandes meias de lá para ele, porque um antigo namorado gostava delas e tricotá-las se tornara o símbolo de sua dedicação, os folhetos chegaram. Revelaram-se maravilhosos: Informações Técnicas sobre a Kingship Copper e Ligas de Cobre e Kingship Coppery Pioneira na Paz e na Guerra, cheios de fotografias: minas e fornos, concentradores e conversores, usinas de reversão, de enrolamento, de tubos e cabos. Ele os leu centenas de vezes, e sabia cada legenda de foto de cor, Voltava a eles nos momentos de lazer, um sorriso feliz nos lábios, como uma mulher com uma carta de amor.

Essa noite, porém, os folhetos não ajudavam. “Mina de corte aberto em Londres, Michigan. Desta única mina, a produção anual...”

O que o deixava mais furioso era que, em certo sentido, a responsabilidade por toda a situação recaia sobre Dorothy. Ele só quisera levá-la a seu quarto uma vez — o pagamento de um sinal para garantir o cumprimento de um contrato. Fora ela, com seus olhos delicadamente cerrados, sua fome passiva, de órfã, quem quisera as outras visitas. Esmurrou a mesa. Era realmente culpa dela! Maldita!

Forçou o pensamento a retornar aos folhetos, mas não adiantava; um minuto depois, empurrou-os para longe e apoiou novamente a cabeça nas mãos. Se as pílulas Não funcionassem... Deixar a escola? Dar o fora nela? Seria inútil; ela sabia o seu endereço em Menasset. Mesmo que relutasse em procurá-lo, o pai a obrigaria a fazê-lo. Claro, não podia haver ação legal (ou será que podia?), mas Kingship ainda tinha condições de causar-lhe sérios problemas. Ele imaginava os ricos como um clã fechadíssimo, protegendo-se uns aos outros, e podia ouvir Leo Kingship dizendo: “Cuidado com esse rapaz. Não serve para nada. Sinto que é meu dever, como pai, adverti-la...” E que lhe restaria então? Alguma seção o de remessas.

Ou então casar-se com ela. Aí ela teria o bebê e eles jamais poriam as mãos num centavo de Kingship. Novamente a seção de remessas, só que desta vez amarrado com mulher e filho. Oh, Deus!

As pílulas tinham de funcionar. Era só o que se podia fazer. Se falhassem, ele Não saberia que atitude tomar.

 

A carteirinha de fósforos era branca, com o nome ‘‘Dorothy Kingship” gravado em cobre. Todo Natal, a Kingship Copper distribuía carteirinhas de fósforos personalizadas a seus executivos, clientes e amigos. Ela precisou riscar quatro vezes para acender o fósforo, e quando o levou ao cigarro a chama tremia como se soprada por uma brisa. Recostou-se, tentando descontrair-se, mas não podia despregar os olhos da porta do banheiro, o envelope branco a espera na beira da pia, o copo d’agua...

Fechou os olhos. Se pelo menos pudesse falar sobre o assunto com Ellen. Havia chegado uma carta naquela manha: “O tempo tem estado maravilhoso... presidente do comitê de refrescos do baile de calouros... você leu o ultimo romance de Mar- quand?...”, outra daquelas cartas mecânicas, sem sentido, que vinham sendo trocadas entre as duas desde o Natal e a discussão. Se pelo menos pudesse obter a opinião de Ellen, falar com ela como costumavam falar antes...

Dorothy tinha cinco anos e Ellen seis quando Leo Kingship se divorciara da esposa. Uma terceira irmã, Marion, estava com dez anos. Quando as três meninas perderam a mãe, primeiro pelo divórcio, e depois pela morte dela um ano mais tarde, Marion foi a que sentiu mais profundamente a perda, Lembrando claramente as acusações e denúncias que haviam precedido o divórcio, contou-as em amargos detalhes as irmãs, quando elas foram crescendo. Exagerou, em certa medida, a crueldade de Kingship. Com o passar dos anos, afastou-se, tornou-se solitária e reservada.

Dorothy e Ellen, porém, haviam se voltado uma para a outra em busca de afeto, que não recebiam nem do pai, que enfrentava com frieza a frieza delas, nem da série de governantas inodoras e precisas a quem ele transferira a custódia que os tribunais lhe haviam concedido. As duas irmãs tinham frequentado as mesmas escolas e acampamentos, tinham se associado aos mesmos clubes e cursado as mesmas escolas de dança (tendo o cuidado de voltar para casa na hora designada pelo pai). Aonde Ellen ia, Dorothy ia atrás.

Mas, quando Ellen entrou no Caldwell College, em Caldwell, Wisconsin, e Dorothy fez planos para juntar-se a ela no ano seguinte, a irmã disse “Não”; ela devia crescer e tornar-se auto- suficiente. O pai concordou, pois a auto-suficiência era uma característica que ele valorizava muito em si mesmo e nos outros. Chegou-se a um certo acordo e Dorothy foi enviada para Stoddard, a pouco mais de cento e cinquenta quilômetros de Caldwell, com a condição de que as irmãs se visitassem nos fins de semana. Algumas visitas foram feitas, a intervalos cada vez mais longos, até que Dorothy anunciou austeramente que seu primeiro ano de faculdade a tinha tornado inteiramente auto-suficiente, e as visitas cessaram totalmente. Por fim, naquele último Natal, houve uma discussão. Começou com uma bobagem: “Se você queria pegar minha blusa, podia pelo menos ter me pedido”, e evoluiu porque Dorothy esteve deprimida durante as férias inteiras. Quando as duas voltaram a escola, as cartas entre elas dissolveram-se em bilhetes curtos, raros...

Sempre havia o telefone. Dorothy viu-se olhando-o. Podia ter Ellen na linha num instante... Mas não; por que deveria ser a primeira a ceder e arriscar-se a uma rejeição? Esmagou o cigarro no cinzeiro. Além disso, agora que se acalmara, por que toda essa hesitação? Tomaria as pílulas; se funcionassem, tudo bem. Senão, casamento. Pensou em como isso seria maravilhoso, mesmo que seu pai tivesse um faniquito. Não queria nada com o dinheiro dele, de qualquer modo.

Foi até a porta da sala e fechou-a, sentindo um ligeiro arrepio naquele ato incomum e um tanto dramático.

No banheiro, pegou o envelope na beira da pia e despejou as cápsulas na palma da mão. Eram como pérolas de um branco- acinzentado, involucres de gelatina lustrosa, alongados. Depois, ao jogar o envelope na cesta de lixo, um pensamento luziu em sua mente: “E se eu não as tomasse?”

Eles se casariam no dia seguinte! Em vez de esperar até o verão, ou mais provavelmente até depois da formatura — mais de dois anos estariam casados no dia seguinte, a noite!

Mas não seria justo. Ela prometera que tentaria. Contudo, no dia seguinte...

Pegou o copo, pôs as pílulas na boca e sorveu a agua de uma só vez.


4

 

 

A SALA DE AULA, num dos novos prédios de Stoddard, era um retângulo perfeito, com uma parede de vidro em esquadrias de alumínio. Oito filas de cadeiras voltadas para a plataforma do professor. Dez cadeiras de metal cinza em cada fila, cada qual com um braço direito que se curvava para dentro e ampliava-se de modo a formar uma superfície onde se podia escrever.

Ele estava sentado no fundo da sala, na segunda cadeira a partir da janela. O assento a seu lado, o da janela, o assento vazio, era o dela. Era a primeira aula da manhã, uma aula diária de ciências sociais, o único curso que os dois tinham juntos nesse semestre. A voz do professor zumbia no ar ensolarado.

Nesse dia, pelo menos, ela podia ter se esforçado para chegar a tempo. Não saberia por acaso que ele estava congelado numa agonia de suspense? Céu ou inferno. Felicidade total ou a terrível confusão, na qual nem queria pensar. Olhou o relógio: 9h08. Maldita.

Mexeu-se na cadeira, brincando nervosamente com o molho de chaves. Olhava as costas da garota em frente, e começou a contar os pontinhos de sua blusa,

A porta ao lado da sala abriu-se em silencio. Sua cabeça voltou-se rapidamente.

Ela estava com uma aparência horrorosa, o rosto de um branco pastoso, fazendo o ruge parecer tinta. Olhou para ele no momento em que a porta se abriu, e com um movimento quase imperceptível balançou a cabeça.

Oh, Deus! Ele se voltou para o molho de chaves em seus dedos e ficou fitando-o, atormentado. Ouviu-a aproximar-se por trás e deslizar para a cadeira ao lado. Ouviu quando ela colocou seus livros no chão, e depois o ranger de uma caneta no papel, e finalmente o som de uma página sendo arrancada de um caderno de espiral.

Voltou-se. A mão dela estendia-se para ele, segurando um pedaço de papel pautado, dobrado. Ela o observava, os grandes olhos cheios de ansiedade.

Ele pegou o papel e abriu-o no colo:

Tive uma febre terrível e vomitei.

Mas não aconteceu nada.

 

Fechou os olhos por um momento, depois tornou a abri-los e voltou-se para ela, sem qualquer expressão no rosto. Os lábios da moça abriram-se, num constrito sorriso nervoso. Ele tentou forçar-se a corresponder ao sorriso, mas não pode. Dobrou o papel ao meio, depois repetiu a operação outras vezes, até formar um pacotinho compacto, que colocou no bolso. E ficou com os dedos firmemente trançados, olhando o professor.

Apos alguns minutos, conseguiu voltar-se para Dorothy, dar- lhe um sorriso tranquilizador e formar as palavras “Não se preocupe”, sem emitir um som.

 

Quando a sineta tocou, as nove e cinquenta e cinco, eles deixaram a sala com os outros estudantes, que riam e se empurravam, queixavam-se dos exames próximos, de trabalhos não feitos e compromissos rompidos. Lá fora, afastaram-se da turma e ficaram a sombra do prédio de concreto.

A cor começava a retornar as faces de Dorothy. Ela falou rapidamente:

— Vai dar tudo certo. Eu sei que vai. Você não terá de deixar a escola. Receberá uma pensão maior do governo, Não receberá? Com uma mulher?

— Cento e cinco por mês. — Ele não pode suprimir o azedume de sua voz.

— Outros conseguem viver com isso... os que moram no acampamento de trailers. Nós conseguiremos.

Ele pôs os livros na grama. O importante era ganhar tempo, tempo para pensar. Temia que seus joelhos começassem a tremer. Tomou-a pelos ombros, sorrindo.

— Isso, menina! Não se preocupe com nada. — Inspirou. — sexta-feira a tarde iremos a prefeitura...

— Sexta?

— Benzinho, hoje e terça. Três dias Não farão diferença agora.

— Eu pensava que íamos hoje.

Ele passou o dedo pela gola do casaco dela.

— Dorrie, Não podemos. Seja pratica. Ha tantas coisas a ver. Acho que terei de fazer um exame de sangue primeiro. Preciso conferir isso. E depois, se nos casarmos na sexta, teremos o fim de semana para a lua-de-mel. Vou fazer uma reserva para nós na New Washington House...

Ela franziu o cenho, indecisa.

— Que diferença farão três dias? — ele repetiu.

— Acho que você tem razão — suspirou ela.

— Agora você esta sendo o meu benzinho.

Ela tocou a mão dele.

— Eu... eu sei que Não é o que queríamos, mas... você esta feliz, Não está?

— Bem, o que e que você acha? Escute, o dinheiro não e tão importante assim. Só pensei nisso por sua causa...

Os olhos dela estavam cálidos, súplices.

Ele olhou o relógio.

— Você tem aula as dez, Não?

— Solamente el español. Posso faltar.

— Não falte. Vamos ter melhores razões para faltar as nossas aulas matinais. — Ela apertou a mão dele. — Eu a verei as oito — ele disse. — No banco. — Com alguma relutância, ela deixou-o afastar-se. — Ah, Dorrie.

— Sim?

— Você não falou nada a sua irmã, falou?

— A Ellen? Não.

— Bem, é melhor não falar. Até estarmos casados.

— Pensei em dizer a ela antes. Sempre fomos tão chegadas. Eu odiaria fazer isso sem dizer a ela.

— Se ela foi tão mesquinha com você nos últimos dois anos...

— Mesquinha, Não.

— Foi a palavra que você usou. De qualquer modo, ela é capaz de dizer a seu pai. Ele poderia fazer alguma coisa para nos deter.

— Que poderia ele fazer?

— Não sei. Mas de qualquer modo ele tentaria, não tentaria?

— Muito bem. Seja como você quiser.

— Depois você telefonara para ela, imediatamente. Diremos a todos.

— Muito bem.

Um sorriso final e ela caminhava pela pista ensolarada, seus cabelos reluzindo como ouro. Ele olhou-a até que ela desapareceu na esquina de um prédio. Então pegou os seus livros e caminhou na direção oposta. A freada de um carro soou em alguma parte. Pareceu-lhe um pássaro na selva.

 

Sem que o decidisse conscientemente, ia faltar ao resto das aulas do dia. Cruzou a cidade a pé até o rio, que não era azul, mas de um opaco marrom-lamacento. Apoiado no parapeito da Ponte da Rua Morton, ficou olhando a agua lá embaixo, fumando um cigarro.

Ali estava. O dilema finalmente o apanhara e envolvera como a água suja que batia nos suportes da ponte. Casar-se com ela ou abandoná-la. Mulher e filho, e sem dinheiro, ou ser caçado e chantageado pelo pai dela. O senhor não me conhece. Meu nome e Leo Kingship. Eu gostaria de falar-lhe sobre o jovem que o senhor acaba de empregar... O jovem com quem sua filha está saindo... Acho que o senhor deve saber... E depois? Não haveria lugar aonde ir, a não ser para casa. Pensou na mãe. Anos de orgulho complacente, sorrisinhos superiores para os filhos dos vizinhos, e depois vê-lo como empregado de um armazém de secos e molhados Não apenas por um verão, mas para toda a vida. Ou mesmo de alguma fábrica imunda! Seu pai Não correspondera às expectativas dela, e ele vira o amor que ela sentia pelo velho consumir-se em amargura e desprezo. Era isso que o aguardava também? As pessoas falando pelas suas costas. Oh, Deus! Por que as malditas pílulas Não a tinham matado?

Se pelo menos conseguisse fazê-la submeter-se a uma operação. Mas, não, ela estava decidida a casar-se, e mesmo que ele pedisse e argumentasse e a chamasse de “benzinho” de hoje até o Juízo Final, ela ainda quereria consultar Ellen antes de tomar uma medida tão drástica. De qualquer modo, onde iam obter dinheiro? E se alguma coisa acontecesse, se ela morresse? Ele seria envolvido, pois teria sido quem arranjara a operação. Estaria exatamente onde começara: com o pai dela em seu encalço, para pegá-lo. A morte da moça Não lhe serviria de nada.

Não se ela morresse desse jeito,

Havia um coração riscado na tinta preta do parapeito, com iniciais de cada lado da seta que o perfurava. Ele concentrou-se no desenho, descascando-o com a unha, tentando esvaziar a mente do que finalmente subira à superfície. Os arranhões haviam revelado camadas de tinta: preta, laranja, preta, laranja, preta, laranja. Lembravam-lhe os desenhos de estratos de rocha em textos de geologia. Registros de épocas mortas.

Mortas.

Depois de algum tempo, pegou os livros e afastou-se lentamente da ponte. Carros voavam em sua direção e passavam zunindo.

 

Foi a um sujo restaurante da beira do rio e pediu um sanduiche de presunto e um café. Comeu o sanduiche numa mesinha de canto. Enquanto bebia o café, pegou seu caderno de notas e a caneta.

A primeira coisa que lhe veio a mente foi o Colt .45 que trouxera consigo ao deixar o Exército. Podia conseguir as balas quase sem dificuldade. Mas, mesmo supondo que quisesse fazê-lo, um revólver Não adiantaria. Teria de parecer um acidente, ou suicídio. O revólver complicaria tudo.

Pensou em veneno. Mas onde poderia consegui-lo? Hermy Godsen? Não. Talvez na Escola de Farmácia. Não devia ser muito difícil entrar no depósito de lá. Precisaria fazer uma pesquisa na biblioteca, ver que veneno...

Teria de parecer um acidente ou suicídio, porque, se parecesse qualquer outra coisa, ele seria o primeiro suspeito para a polícia.

Havia muitos detalhes... supondo-se que quisesse fazê-lo. Era terça-feira; o casamento Não podia ser adiado para além da sexta- feira, senão ela ficaria preocupada e telefonaria para Ellen. Sexta- feira era o prazo final. Seria necessário um planejamento rápido e cuidadoso.

Olhou as notas que tinha tornado:

1. Revolver (n. s.)

2. Veneno

a) Escolha

b) Obtenção

c) Aplicação

d) Aparência de (1) acidente

ou (2) suicídio

 

Supondo-se, e claro, que quisesse fazê-lo. No momento, não passava de especulação; examinaria os detalhes. Um exercício mental.

Mas seu passo, quando deixou o restaurante e retornou a cidade, estava calmo e seguro, firme.


5

 

 

CHEGOU AO CAMPUS às três horas e foi diretamente para a biblioteca. No fichário, encontrou uma relação de seis livros que provavelmente conteriam a informação de que precisava; quatro deles eram obras gerais sobre toxicologia; os outros dois, manuais de investigação criminal cujas fichas incluíam, nos índices, capítulos sobre venenos. Em vez de pedir a um bibliotecário que pegasse os livros para ele, registrou-se na secretaria e foi pessoal- mente as estantes.

Jamais estivera ali antes. Havia três andares cheios de estantes, e uma escada em espiral ligava uns aos outros. Um dos livros de sua lista estava fora, mas descobriu os outros cinco sem dificuldade nas prateleiras do terceiro andar. Sentando-se a uma das pequenas mesas de estudo ao lado de uma das paredes da sala, acendeu a lâmpada, deixou a caneta e o caderno de notas a mão e começou a ler.

Ao cabo de uma hora, tinha uma lista de cinco produtos químicos tóxicos que provavelmente podiam ser encontrados no depósito da Escola de Farmácia. Qualquer um, pelo tempo de reação e os sintomas que causavam antes da morte, serviria para o piano, cujas linhas gerais ele já formulara, de modo rudimentar, na caminhada do rio até ali.

 

Deixou a biblioteca e a universidade e caminhou em direção a casa onde alugava seu quarto. Quando já tinha andado uns dois quarteirões, deparou-se com uma loja de roupas cujas vitrinas estavam cheias de cartazes com grandes letras anunciando vendas. Um dos anúncios tinha o desenho de uma ampulheta com a legenda ÚLTIMOS DIAS DE VENDA.

Ficou olhando a ampulheta por um momento. Depois, deu meia-volta e retornou a universidade.

 

Foi a livraria da universidade. Após consultar a lista de livros mimeografados pregada no quadro de avisos, pediu ao funcionário um exemplar de Técnicas Farmacêuticas, o manual de laboratório usado pelos estudantes dos últimos anos de farmácia.

— Bastante tarde para o semestre — comentou o funcionário, voltando do fundo da livraria com o manual na mão. Era um livro grande e fino, com uma vistosa capa de cartolina verde. — Perdeu o seu?

— Não. Foi roubado.

— Oh! Algo mais?

— Sim. Quero alguns envelopes também.

— De que tamanho?

— Envelopes comuns. Para cartas.

O funcionário pôs um pacote de envelopes brancos sobre o livro.

— Um dólar e cinquenta cents, mais vinte e cinco cents, mais o imposto: um dólar e setenta e nove.

 

A Escola de Farmácia ocupava um dos velhos prédios de Stoddard, três andares de tijolos cobertos de hera. Na frente, havia largos degraus de pedra, que conduziam a entrada principal. De cada lado do prédio, outros degraus levavam a dois longos corre- dores que seguiam direto para o porão, onde se localizava o depósito. Havia uma fechadura Yale na porta do depósito. As chaves estavam com os costumeiros funcionários da universidade, com o corpo docente da Escola de Farmácia e com os estudantes adiantados, que tinham permissão para trabalhar sem supervisão. Essa era a regra geral seguida em todo departamento da universidade que usasse equipamento suficiente para necessitar a manutenção de um depósito de abastecimento. Era uma norma que quase todos no campus conheciam.

 

Ele entrou pela porta principal e atravessou o saguão até a sala de lazer. Dois jogos de bridge estavam em andamento, e alguns outros estudantes sentavam-se pelas mesas, lendo e conversando. Alguns ergueram o olhar quando ele entrou. Foi diretamente ao comprido cabide de roupas no centro e pôs seus livros na prateleira acima dele. Tirando a jaqueta de veludo cotelê, pendurou-a num dos ganchos. Pegou o pacote de envelopes de entre seus livros, separou três deles, dobrou-os e colocou-os no bolso de trás da calça. O resto, tornou a por junto aos livros, apanhou o manual de laboratório e deixou a sala.

A porta do depósito ficava a meio caminho entre a escada central e a extremidade do corredor. Na parede, mais ou menos meio metro depois da porta, havia um quadro de avisos. Ele se encaminhou até o quadro e ficou diante dele olhando os avisos ali pregados. Tinha as costas ligeiramente voltadas para o fim do corredor, de modo que, pelo canto dos olhos, podia ver a escada. Mantinha o manual debaixo do braço esquerdo. O braço direito pendia solto, os dedos no molho de chaves.

Uma garota deixou o depósito, fechando a porta atrás de si. Trazia um dos manuais verdes e um frasco de laboratório até a metade com um liquido leitoso. Observou-a descer o corredor e virar para subir a escada.

Algumas pessoas saíram da sala as suas costas e passaram por ele, conversando. Três homens. Desceram o corredor e saíram por uma porta na outra extremidade. Ele continuava olhando o quadro de avisos.

Às cinco horas soou a sineta e por alguns minutos houve grande atividade no corredor. Mas logo foi diminuindo, e ele ficou novamente sozinho. Um dos avisos no quadro era um folheto ilustrado sobre cursos de verão na Universidade de Zurique. Ele começou a lê-lo.

Um homem calvo emergiu da escada. Não trazia manual, mas era visível, pela direção em que vinha e o movimento de sua mão para pegar as chaves, que ia ao depósito. Tinha a aparência de um professor... Dando as costas para o homem que se aproximava, ele virou uma página do prospecto sobre Zurique. Ouviu o som da chave na fechadura e, depois, a porta abrindo-se e fechando-se. Um minuto depois, ela foi aberta e fechada de novo, e o som dos passos do homem diminuiu e mudou para o ritmo de quem sobe uma escada.

Ele reassumiu sua posição anterior e acendeu um cigarro. Apos uma baforada, jogou-o no chão e o esmagou com o pé; aparecera uma garota, vindo em sua direção. Trazia o manual verde na mão. Tinha cabelos castanhos escorridos e usava óculos de aros de tartaruga. Estava tirando uma chave amarela do bolso de seu jaleco.

Ele afrouxou a pressão sobre o manual debaixo do braço, deixando-o cair na mão esquerda, bem visível por sua capa verde. Com uma folheada casual no prospecto sobre Zurique, adiantou-se para a porta do depósito, sem olhar a garota que se aproximava. Mexeu em seu molho de chaves, como se estivesse enganchado no forro do bolso da calça. Quando finalmente o retirou, a moça já estava na porta. A atenção dele estava nas chaves, escolhendo-as, aparentemente em busca da chave certa. Procedeu como se não tivesse tomado consciência da presença da garota até que ela enfiou a chave na fechadura, girou-a e empurrou parcialmente a porta, sorrindo para ele.

— Oh, obrigado — ele disse, passando por ela para abrir inteiramente a porta, enfiando com a outra mão o molho de chaves no bolso. Seguiu-a e fechou a porta.

Era um aposento pequeno, com balcões e prateleiras cheias de garrafas rotuladas, caixas e aparelhos de aparência curiosa. A garota tocou um interruptor na parede, fazendo tubos fluorescentes piscarem e acenderem, deslocados entre os acessórios anacrônicos da sala. Ela foi para um lado do depósito e ali abriu seu manual em cima de um balcão.

— Você e aluno de Abelson? — ela perguntou.

Ele se dirigiu ao lado oposto. Estava de costas para a garota, de frente para uma fileira de garrafas.

— Sim — disse.

Fracos ruídos de vidro e metal soaram na sala.

— Como vai o braço dele?

— Mais ou menos na mesma, acho — ele disse. Tocava as garrafas, empurrando-as umas contra as outras, para não despertar a curiosidade dela.

— Não e a coisa mais maluca? — ela disse. — Ouvi dizer que ele fica praticamente cego sem os óculos. — E recaiu no silencio.

Cada garrafa tinha um rotulo branco com letras negras. Algumas traziam um rotulo extra que berrava VENENO, em vermelho. Ele percorreu as fileiras com rapidez, sua mente registrando apenas as de rótulos vermelhos. A lista estava em seu bolso, mas os nomes que escrevera nela luziam no ar diante dele, como se impressos numa tela de nevoa.

Encontrou uma. A garrafa achava-se um pouco acima do nível de seus olhos, a menos de meio metro dele. ARSÊNICO BRANCO — AS4 06 — VENENO. Estava cheia até a metade com um pó branco. Suas mãos adiantaram-se para ela, pararam.

Ele voltou-se lentamente, até poder ver a garota pelo canto dos olhos, Ela derramava um pó amarelo do prato de uma balança num copo de vidro. Ele voltou-se para a parede e abriu seu manual no balcão. Olhou as páginas sem sentido de diagramas e instruções.

Afinal os movimentos da garota assumiram um tom de finalização; a balança foi guardada, a gaveta fechada. Ele se curvou mais sobre o manual, seguindo cuidadosamente as linhas impressas com um dedo.

Os passos dela encaminharam-se para a porta.

— Até logo — ela disse.

— Até logo.

A porta abriu-se e fechou-se. Ele olhou em volta. Estava sozinho.

Tirou o lenço e os envelopes do bolso. Com o lenço envolvendo a mão direita, pegou a garrafa de arsênico na prateleira, colocou-a no balcão e destapou-a. O pó parecia farinha. Derramou cerca de uma colher de sopa num dos envelopes. Depois dobrou-o num pacote firme, colocou-o num segundo envelope e guardou-o no bolso. Havendo tapado e reposto a garrafa no lugar, andou lentamente pela sala, lendo os rótulos das gavetas e caixas, o terceiro envelope na mão.

Descobriu o que procurava em poucos minutos: uma caixa cheia de cápsulas de gelatina vazias, reluzindo como bolhas ovais. Pegou seis delas, para ter segurança. Colocou-as no terceiro envelope e enfiou-o delicadamente no bolso, de modo a não as esmagar. Depois de deixar tudo como encontrara, apanhou o manual em cima do balcão, apagou as luzes e saiu do depósito.

Após pegar seus livros e sua jaqueta, deixou novamente o campus. Sentia-se maravilhosamente seguro; planejara um curso de ação e executara seus passos iniciais com rapidez e precisão. Claro, era ainda apenas um plano experimental, e não tinha nenhuma obrigação de levá-lo até o fim. Veria como os próximos passos se desenrolariam. A policia jamais acreditaria que Dorrie tomara uma dose letal de arsênico por acidente. Teria de parecer suicídio, um óbvio e indiscutível suicídio. Era preciso haver um bilhete ou algo igualmente convincente. Porque, se chegassem a desconfiar de que não fora suicídio e iniciassem uma investigação, a garota que o deixara entrar no depósito sempre poderia identificá-lo.

Caminhava lentamente, consciente das frágeis cápsulas no bolso traseiro esquerdo de sua calça.

 

Encontrou-se com Dorothy as oito. Foram ao Uptown, onde ainda estava passando o filme de Joan Fontaine.

Na noite anterior, ela mostrara-se ansiosa para ir; seu mundo estava então tão cinza quanto as pílulas que ele lhe dera. Mas nessa noite — nessa noite tudo estava radiante. A promessa de casamento imediato tinha levado seus problemas como um vento fresco leva as folhas mortas; não apenas o problema crescente de sua gravidez, mas todos os outros que ela já tivera; a solidão, a insegurança. A única insinuação de cinza que restava seria o dia inevitável em que seu pai, já alarmado por um rápido e inquestionável casamento, soubesse a verdade sobre o caso. Mas mesmo isso parecia de escassa importância nessa noite. Ela sempre odiara seu inflexível moralismo, e só o tinha desafiado em segredo e com sentimento de culpa. Agora poderia exibir sua contestação abertamente, da segurança proporcionada pelos braços de um marido. O pai faria uma cena feia, mas no fundo de seu coração ela ansiava um pouco por isso.

Previa uma vida cálida e feliz no acampamento de trailers, uma vida ainda mais cálida e feliz quando chegasse o bebê. Estava impaciente com o filme, que a distraia de uma realidade mais bela que a oferecida por qualquer filme.

Ele, por outro lado, Não quisera ver o filme na noite anterior. Não gostava de cinema e antipatizava em especial com os filmes baseados em emoções exageradas. Nessa noite, porém, no conforto e na escuridão, o braço passado sobre os ombros de Dorothy e a mão levemente pousada em seu seio, gozava os primeiros momentos de descontração desde a noite de domingo, quando ela lhe dissera que estava grávida.

Entregou toda a sua atenção ao filme, como se respostas a mistérios eternos estivessem ocultas no desenrolar da trama. Gostou imensamente.

 

Depois, foi para casa e preparou as cápsulas.

Com uma folha de papel dobrada de modo a formar um funil, despejou o pó branco dentro dos minúsculos recipientes de gela- tina, fechando-os em seguida com as outras metades, ligeiramente mais largas. Isso levou quase uma hora, pois ele estragou duas cápsulas, uma amassada e a outra amolecida pela umidade de seus dedos, antes de poder encher duas corretamente.

Quando terminou, pegou as cápsulas estragadas e as duas restantes, juntamente com o pó, e jogou-os na privada, dando descarga. Fez o mesmo com o papel que usara para despejar o arsênico e os envelopes em que o transportara rasgando-os primeiro em pedacinhos. Depois, colocou as duas cápsulas de arsênico dentro de um novo envelope e escondeu-o na gaveta de baixo de sua mesa, sob os pijamas e os folhetos da Kingship Copper, cuja visão trouxe um sorriso obliquo ao seu rosto.

Um dos livros que lera nessa tarde relacionava a dose letal de arsênico entre um décimo e metade de um grama. Por um cálculo aproximado, ele estimava que as duas cápsulas continham um total de cinco gramas.


6

 

 

SEGUIU SUA ROTINA COMUM na quarta-feira, assistindo a todas as aulas, mas agora participava tão pouco da vida e das ativi- dades em redor quanto um mergulhador em seu batiscafo é parte do alheio mundo onde está submerso. Todas as suas energias estavam voltadas para dentro, concentradas no problema de levar Dorothy a escrever um bilhete de suicídio ou, se não pudesse conseguir isso, encontrar outro meio de fazer sua morte parecer fruto de sua própria vontade. Nesse estado de laboriosa concentração, abandonou inconscientemente a farsa da indecisão quanto a seguir ou não adiante com seu plano, ia matá-la; tinha o veneno e já sabia como ia aplicá-lo; só restava esse problema, e estava decidido a resolvê-lo. Quando, durante esse dia, uma voz alta ou o ranger do giz no quadro o tornava momentaneamente cônscio do que se passava a sua volta, olhava os colegas com um leve ar de surpresa. Vendo suas expressões concentradas sobre uma stanza de Browning ou uma frase de Kant, tinha a sensação de encontrar-se de repente em meio a um grupo de adultos saltando amarelinha.

A última metade da aula de espanhol, a última do dia, foi dedicada a uma curta prova, não anunciada. Como era a matéria na qual ele se mostrava mais fraco, obrigou-se a baixar o foco de sua concentração para a tradução de uma página do exuberante romance espanhol que a classe estava estudando.

Se o estimulo vinha do trabalho real que fazia ou da relativa descontração que isso lhe proporcionava, apos um dia de pensa- mento mais rigoroso, não saberia dizer. Mas no meio da escrita ocorreu-lhe a ideia. Surgiu inteiramente pronta, um piano per- feito, improvável de falhar e de despertar as suspeitas de Dorothy. A contemplação do projeto ocupou de tal modo sua mente que, quando o tempo se esgotou, ele só concluirá metade da página designada. A inevitável nota baixa na prova perturbou-o muito pouco. Às dez horas da manhã seguinte, Dorothy teria escrito seu bilhete de suicídio.

Nessa noite, tendo a senhoria ido a uma reunião da Estrela do Oriente, ele levou Dorothy ao seu quarto. Durante as duas horas que passaram ali, foi tão cálido e terno quanto ela sempre desejara que ele fosse. Sob muitos aspectos, ele gostava um bocado dela, e tinha consciência de que aquela seria a última experiência desse tipo que ela teria.

Dorothy, percebendo sua nova suavidade e dedicarão, atribuía-as a proximidade de seu casamento. Não era uma garota religiosa, mas acreditava piamente que a condição de casado trazia algo de santo.

Depois foram a um pequeno restaurante perto do campus. Era um lugarzinho tranquilo e não muito frequentado pelos estudantes; o velho proprietário, apesar dos esforços que fazia para decorar as janelas com papel azul e branco e flâmulas de Stoddard, era irascível com a turma barulhenta e um tanto predatória da universidade.

Sentados num dos reservados de paredes azuis e brancas, comeram cheeseburgers e tomaram chocolate maltado. Dorothy tagarelava sobre um novo tipo de estante de livros que se abria para formar uma mesa de refeições em tamanho normal. Ele assentia sem muito entusiasmo, esperando uma pausa no monólogo.

— Oh, a propósito — disse. — Você ainda tem aquele retrato que eu lhe dei? Aquele meu?

— Claro que tenho.

— Bem, preciso que me empreste por alguns dias. Quero mandar fazer uma cópia e enviar para mamãe. E mais barato que tirar outro no estúdio.

Ela retirou uma carteira verde do bolso do casaco dobrado no assento ao lado.

— Você falou a sua mãe sobre nós?

— Não, não falei.

— Por que não?

Ele pensou por um momento.

— Bem, uma vez que você não pode dizer a sua família senão depois, achei que não devia dizer a minha mãe. Estou guardando o nosso segredo. Sorriu. — Você não disse a ninguém, disse?

— Não — ela respondeu. Segurava alguns instantâneos que tirara da carteira. Ele olhou o de cima, do outro lado da mesa. Era Dorothy com duas outras garotas — as irmãs, ele supunha. Vendo seu olhar, ela passou-lhe o retrato. — A do meio e Ellen, e Marion esta na outra ponta.

As três moças estavam diante de um carro, um Cadillac, o sol por trás, os rostos ensombrecidos. Mas ele ainda podia distinguir uma certa semelhança entre elas. Os cabelos de Ellen pareciam ter um tom entre o loiro de Dorothy e o negro de Marion.

— Quem é a mais bonita? — ele perguntou. — Depois de você, e claro.

— Ellen — disse Dorothy. — E antes de mim. Marion também podia ser muito bonita, se não usasse os cabelos desse jeito. — Puxou os cabelos severamente para trás e fechou a cara. — É a intelectual. Lembra-se?

— Oh, a fanática por Proust.

Ela entregou-lhe o retrato seguinte, que era de seu pai.

— Grrrr — ele rosnou, e ambos riram.

— E este é o meu noivo — disse logo depois, passando-lhe o seu próprio retrato.

Ele olhou-o especulativamente, vendo a simetria das linhas nítidas,

— Não sei — disse, arrastado. — Parece-me um tanto dissoluto.

— Mas é muito bonito — ela observou. — Tão bonito! — Ele sorriu e pôs o retrato no bolso. — Não o perca — ela advertiu, seriamente.

— Não vou perdê-lo. — Ele olhou em volta, os olhos reluzindo. Na parede ao lado deles, havia uma relação das musicas da vitrola automática que ficava no fundo do restaurante. — Música — anunciou, pegando uma moeda e enfiando-a na fenda. Correu o dedo pelas duas fileiras de botões vermelhos. Parou no botão defronte a Some Enchanted Evening, que era uma das favoritas de Dorothy, mas depois viu On Top of Old Smoky mais adiante, na mesma fileira, pensou um momento e escolheu essa. Comprimiu o botão. A vitrola automática acendeu-se, lançando uma luz rósea sobre o rosto da moça.

Ela olhou o relógio de pulso, depois recostou-se, os olhos fechados, arrebatadamente.

— Puxa, pense só... — murmurou, sorrindo. — Na próxima semana, nada de sair correndo para o dormitório! — Os acordes de introdução de um violão brotaram da vitrola. — Não devíamos entrar com um pedido para um dos trailers?

— Estive lá hoje de tarde — ele disse —, talvez demore duas semanas. Podemos ficar em meu quarto. Vou falar com minha senhoria. — Ele pegou um guardanapo de papel e começou a cortar pedacinhos dos cantos dobrados.

Uma voz feminina cantava:

 

“No cimo do velho Smoky,

Todo coberto de neve,

Perdi meu verdadeiro amor,

Por fazer a corte sem ardor...”

 

— Canções folclóricas — disse Dorothy, acendendo um cigarro. A chama reluziu sobre a carteirinha de fósforos gravada em cobre.

— O seu problema — ele disse — e que você e uma vitima de sua formação aristocrática.

 

“Fazer a corte é um prazer,

Mas a partida é um sofrimento.

E um amor de falso coração

É pior que um ladrão...”

 

— Você fez o exame de sangue?

— Sim. Esta tarde, também.

— Eu Não preciso fazer?

— Não.

— Olhei no almanaque. Dizia: “Exige-se o exame de sangue”, em Iowa. Isso não quer dizer para ambos?

“Eu perguntei. Você Não precisa fazer. — Os dedos dele rasgavam o guardanapo com precisão.

 

“Um ladrão rouba a gente

E leva o que a gente tem,

Mas um amor de falso coração

Nos leva pra baixo do chão.”

 

— Está ficando tarde...

— Vamos ficar até o fim do disco, esta bem? Eu gosto dele. — O rapaz abriu o guardanapo; os pontos rasgados multiplicavam-se simetricamente, e o papel era agora uma rede de elaborada renda. Ele colocou sua obra na mesa, com admiração.

 

“A tumba nos decompõe

E nos reduz a pó;

Em nem um homem num milhar

Pode uma pobre moça confiar.”

 

— Vê o que nos, mulheres, temos de enfrentar?

— Uma pena. Uma pena mesmo. Meu coração esta sangrando.

 

De volta ao seu quarto, ele segurou a foto sobre um cinzeiro e encostou um fósforo aceso ao canto de baixo. Era do armário da escola, e um bom retrato seu; odiava ter de queimá-lo, mas nas costas estava escrito: “A Dorrie, com todo o meu amor”.


7

 

 

COMO SEMPRE, ELA ESTAVA atrasada para a aula das nove. Sentado na fila de trás, ele observava as filas da frente encherem-se de estudantes. Chovia lá fora, e a agua escorria pela parede das janelas. A cadeira a seu lado ainda estava vazia quando o professor subiu na plataforma e começou a falar sobre a forma de governo municipal.

Estava tudo pronto. A caneta repousava sobre o caderno de notas a sua frente, e ele equilibrava sobre o joelho o romance espanhol La Casa de las Flores Negras. Um súbito pensamento, que lhe fez parar o coração, ocorreu-lhe; e se ela faltasse exatamente aquele dia? O dia seguinte era sexta-feira, o prazo final. Essa era a única chance que ele teria de obter o bilhete, e precisava tê-lo a noite. Que faria se ela faltasse?

As nove e dez, no entanto, ela apareceu; esbaforida, os livros debaixo de um braço, a capa de chuva sobre o outro, um sorriso para ele iluminando-lhe o rosto, no momento em que passou pela porta. Andando nas pontas dos pês até atrás dele, colocou a capa no encosto da cadeira e sentou-se. Ainda sorria, enquanto escolhia os livros, mantendo um caderno de notas e uma pequena prancha de escrever a sua frente e pondo o resto no chão, entre as duas cadeiras.

Ai viu o livro que ele mantinha aberto sobre o joelho, e suas sobrancelhas arquearam-se interrogadoramente. Ele fechou o livro, mantendo o dedo entre as páginas, e virou-o para ela, a fim de que pudesse ver o título. Depois abriu-o e, com a caneta, indicou, meio aborrecido, as duas páginas expostas e seu caderno, querendo dizer que aquele era o tanto de tradução que tinha de fazer. Dorothy balançou a cabeça condoidamente. Ele indicou o professor e o caderno dela: a moça tomaria as notas, e ele as copiaria depois. Ela assentiu.

 

Depois de haver trabalhado com toda a aplicação durante uns quinze minutos, seguindo as palavras do romance e escrevendo lentamente em seu caderno, ele olhou cautelosamente a moça e viu que ela estava concentrada em sua própria tarefa. Ele rasgou um pedaço de papel de cerca de cinco centímetros quadrados da beira de uma das páginas do caderno. Cobriu um dos lados com rabiscos; palavras escritas e riscadas, linhas em espiral e em ziguezague. Virou esse lado para baixo. Apontando com o dedo o texto do romance, começou a balançar a cabeça e a bater o pé com impaciente perplexidade.

 

Dorothy percebeu. Voltou-se para ele, querendo saber do que se tratava. Ele olhou-a e emitiu um perturbado suspiro. Depois, fez com o dedo um gesto pedindo-lhe que esperasse um momento, antes de voltar a prestar atenção ao professor. Começou a escrever, espremendo as palavras no minúsculo pedaço de papel, palavras que aparentemente copiava do romance. Quando acabou, passou-o para ela.

Traducción, por favor, escrevera em cima.

Querida,

Espero que me perdonarés por la infelicidad

que causaré. No hay ninguna otra cosa que

puedo hacer.

 

Ela enviou-lhe um olhar levemente intrigado, porque as frases eram bastante simples. O rosto dele Não tinha nenhuma expressão; apenas esperava. Ela pegou a pena e virou o papel, mas as costas estavam cobertas de rabiscos. Assim, rasgou uma folha de seu caderno de notas e fez a tradução nela.

Entregou-lhe a tradução. Ele a leu e balançou a cabeça.

— Muchas gracias — murmurou.

Curvou-se para a frente e escreveu em seu caderno. Dorothy amassou o papel no qual ele escrevera o texto espanhol e jogou-o no chão. Pelo canto dos olhos, ele viu-o cair. Havia outro pedaço de papel junto, e algumas pontas de cigarro. No fim do dia, seriam todos varridos e queimados.

Ele olhou novamente o papel com a letrinha inclinada de Dorothy:

 

Querida,

Espero que me perdoe pela infelicidade que lhe causarei.

Não há nada mais que eu possa fazer.

 

Guardou cuidadosamente o papel dentro do caderno de notas e fechou-o. Fechou também o romance e colocou-o em cima do caderno. Dorothy voltou-se, olhou os livros e depois para ele. Seu olhar interrogador perguntava-lhe se havia acabado.

Ele balançou a cabeça e sorriu.

 

Não deviam ver-se nessa noite. Dorothy precisava lavar e arrumar os cabelos, e aprontar uma pequena mala para a sua viagem de lua-de-mel na New Washington House. Mas às oito e meia o telefone em sua mesa tocou.

— Escute, Dorrie. Surgiu uma coisa. Uma coisa importante.

— Que e que você quer dizer?

— Preciso ver você imediatamente.

— Mas eu não posso. Não posso sair. Acabei de lavar meus cabelos.

— Dorrie, é importante.

— Você não pode me dizer agora?

— Não. Preciso vê-la. Encontre-se comigo no banco em meia hora.

— Esta chovendo. Você não pode vir ao parlatório?

— Não. Escute, lembra-se daquele lugar onde comemos os cheeseburgers a noite passada? O Gideon’s? Bem, encontre-me lá. Às nove.

— Não vejo por que você não pode vir ao parlatório...

— Benzinho, por favor...

— É... tem algo a ver com amanhã?

— Eu explico tudo no Gideon’s.

— É?

— Bem, sim e não. Escute, tudo vai sair bem. Eu explico tudo. Esteja lá as nove.

— Está bem.

Aos dez minutos para as nove, ele abriu a gaveta de baixo de sua mesa e pegou os dois envelopes sob os pijamas. Um estava lacrado, selado e endereçado:

 

Srta. Ellen Kingship

Dormitório Norte

Caldwell College

Caldwell, Wisconsin

 

Datilografara-o naquela tarde, no grêmio, numa das máquinas a disposição dos estudantes. No envelope estava a nota que Dorothy escrevera na aula pela manhã. O outro continha as duas cápsulas.

Ele pôs um envelope em cada bolso interno do paletó, tomando cuidado para lembrar-se de que lado estava cada um. Depois, vestiu sua capa de chuva, afivelou o cinto e, com uma olhada final no espelho, deixou o quarto.

Quando abriu a porta da frente da casa, teve o cuidado de sair com o pé direito na frente, sorrindo indulgentemente consigo mesmo ao fazer isso.


8

 

 

O GIDEON’S ESTAVA praticamente vazio quando ele chegou. Só dois reservados estavam ocupados; num deles, dois homens idosos pareciam petrificados, diante de um tabuleiro de xadrez; no outro, do lado oposto da sala, estava Dorothy, com as mãos trançadas em torno de uma xicara de café, fitando-a como se fosse uma bola de cristal. Tinha um lenço branco amarrado em volta da cabeça. Os cabelos que apareciam na frente eram uma serie de anéis escuros de umidade, cada um deles fixado em torno de um bob.

Só o viu quando ele já estava na entrada do reservado, tirando a capa. Ai, ergueu o rosto, os olhos castanhos preocupados. Estava sem maquilagem. Sua palidez e os cabelos emplastrados faziam-na parecer mais jovem. Ele pôs a capa num gancho ao lado da dela e sentou-se no lugar a sua frente.

— O que é? — ela perguntou, ansiosamente.

Gideon, um velho de faces chupadas, veio até a mesa.

— O que vai ser?

— Café.

— Só café?

— Sim.

Gideon afastou-se, os pês metidos em chinelos que ele arrastava audivelmente. Dorothy inclinou-se para a frente.

— O que e?

Ele manteve a voz baixa, adotando um tom prático.

— Quando voltei ao meu quarto esta tarde, havia um recado para mim. Hermy Godsen tinha telefonado.

As mãos dela comprimiram-se mais em torno da xicara de café.

— Hermy Godsen...

— Eu telefonei para ele. — Parou um momento, riscando com a unha o tampo da mesa. — Ele cometeu um erro com aquelas pílulas, outro dia. O tio dele... — interrompeu-se, pois Gideon se aproximava com a xícara de café chocalhando nas mãos. Os dois ficaram imóveis, olhos fixos um no outro, até que o velho se foi. — O tio dele trocou as coisas de lugar na farmácia, uma coisa assim. Aquelas pílulas não eram as que ele julgava ser.

— O que eram? — Ela parecia assustada.

— Um certo tipo de emético. Você disse que vomitou. — Levantando a xícara, ele pós um guardanapo de papel no pires, para absorver o café que as trêmulas mãos de Gideon derramaram. Comprimiu a base da xícara no guardanapo, para enxugá-la.

Ela suspirou de alívio.

— Bem, está tudo acabado. Não me fizeram mal. O modo como você falou ao telefone deixou-me preocupada...

— O problema Não e esse, benzinho. — Ele pôs o guardanapo ensopado de lado. — Eu estive com Hermy pouco antes de chama- lá. Ele me deu as pílulas certas, as que devíamos ter recebido da primeira vez.

O rosto dela se contraiu.

— Não...

— Bem, não há nada de trágico nisso. Estamos exatamente onde estávamos segunda-feira, e tudo. É uma segunda chance. Se elas fizerem efeito tudo sairá bem. Senão, ainda poderemos nos casar amanhã. — Ele mexeu o café lentamente, olhando-o redemoi- nhar. — Eu as tenho aqui comigo. Você pode tomá-las esta noite,

— Mas...

— Mas o que?

— Eu não quero uma segunda chance. Não quero mais nenhuma pílula... — Curvou-se para a frente, as mãos sobre a mesa, fechadas com tanta força que estavam brancas. — A única coisa em que estive pensando foi em amanhã, como seria maravilhoso, que felicidade... — Ela fechou os olhos, as lágrimas rolando.

Sua voz elevara-se. Ele olhou em volta da sala e para o local onde os jogadores de xadrez permaneciam imóveis, com Gideon observando-os. Tirando uma moeda do bolso, enfiou-a na vitrola automática e apertou um dos botões. Depois pegou as mãos fechadas dela, abriu-as a força, segurou-as:

— Benzinho, benzinho — disse, carinhosamente. — Vamos ter de passar por tudo isso de novo? E em você que estou pensando. Em você, Não em mim.

— Não. — Ela abriu os olhos, fitando-o. — Se você estivesse pensando em mim, quereria o que eu quero. — A música explodiu, um berrante jazz metálico.

— Que e que você quer, benzinho? Morrer de fome? Isto não é filme; é real.

— Nós não morreríamos de fome. Você está pintando as coisas piores do que seriam. Você conseguiria um bom emprego, mesmo que não concluísse a faculdade. E inteligente, e...

— Você não sabe — ele disse, sem rodeios. — Simplesmente não sabe. E uma menininha que toda a vida foi rica.

As mãos dela tentaram fechar-se dentro das dele.

— Por que todos precisam estar sempre jogando isso em minha cara? Por que você precisa? Por que acha que isso é importante?

— É importante, Dorrie, quer você goste quer não. Veja só você, um par de sapatos para combinar com cada traje, uma bolsa para combinar com cada par de sapatos. Você foi criada assim. Não pode...

— Você acha que isso importa? Acha que eu ligo? — Parou. Suas mãos descontraíram-se, e, quando tomou a falar, a ira em sua voz reduzira-se a uma tensa ansiedade. — Eu sei que você ri de mim às vezes, dos filmes de que gosto... por eu ser romântica... Talvez seja porque e cinco anos mais velho que eu, ou talvez porque esteve no Exército, ou porque é homem... não sei... Mas creio, creio realmente, que se duas pessoas se amam de verdade... do modo como eu o amo... do modo como você diz que me ama... então nada mais importa muito... dinheiro, essas coisas, simplesmente, não importam. Eu creio nisso... creio realmente... — Suas mãos haviam se retirado de dentro das dele e voado para seu rosto.

Ele tirou um lenço do bolso e tocou com ele as costas da mão de Dorothy. Ela o pegou e comprimiu-o contra os olhos.

— Benzinho, eu também acredito nisso. Você sabe que acredito — disse, delicadamente. — Sabe o que fiz hoje? — Deteve-se. — Duas coisas. Comprei um anel de casamento para você e pus um anúncio classificado no Clarion de domingo. Um anuncio pedindo emprego. Trabalho noturno. — Ela enxugava os olhos com o lenço. — Talvez eu tenha pintado as coisas negras demais. Claro, conseguiremos nos manter, e seremos felizes. Mas sejamos só um pouco realistas, Dorrie. Seremos ainda mais felizes se pudermos nos casar este verão com a aprovação de seu pai. Você não pode negar isso. E a única coisa que precisa fazer para termos a chance dessa maior felicidade e simplesmente tomar estas pílulas. — Enfiou a mão no bolso interno e tirou o envelope, apalpando-o para assegurar-se de que era o certo. — Não há nenhum motivo lógico pelo qual você deva recusar.

Ela dobrou o lenço e revirou-o nas mãos, olhando-o.

— Desde terça-feira de manhã eu tenho sonhado com amanhã. Mudava tudo... o mundo todo. — Estendeu-lhe o lenço. — Passei toda a minha vida dando um jeito nas coisas para agradar a meu pai.

— Eu sei que você esta decepcionada, Dorrie. Mas precisa pensar no futuro. — Estendeu-lhe o envelope. As mãos dela, fechadas sobre a mesa, não fizeram nenhum movimento para pegá-lo. Ele o pós na mesa, entre os dois, um retângulo branco ligeira- mente estufado pelas cápsulas. — Estou disposto a aceitar um emprego noturno agora, a deixar a faculdade no fim deste ano letivo. Só peço que você tome duas pílulas.

As mãos dela permaneciam fechadas, os olhos na estéril brancura do envelope.

— Se você se recusar a tomá-las, Dorothy, estará sendo teimosa, irrealista e injusta. Injusta mais consigo própria do que comigo — ele falou com fria autoridade.

O disco de jazz terminou, as luzes coloridas apagaram-se e fez-se silencio.

Os dois permaneceram com o envelope entre eles.

Do outro lado da sala veio o rumor de uma peça de xadrez sendo jogada e a voz de um velho dizendo:

— Xeque.

As mãos dela separaram-se lentamente, e ele viu o brilho do suor nas palmas. Compreendeu que suas próprias mãos também suavam. Os olhos dela ergueram-se do envelope para enfrentar os dele.

— Por favor, benzinho...

Ela baixou novamente o olhar, o rosto rígido.

Pegou o envelope. Enfiou-o na bolsa, no assento a seu lado, e depois ficou fitando as próprias mãos em cima da mesa.

Ele estendeu a mão e tocou a dela, acariciando-a, pegando-a. Com a outra mão, empurrou seu café intocado para ela. Observou- a erguer a xicara e beber. Encontrou outra moeda no bolso e, ainda segurando a mão dela, enfiou o níquel no seletor e apertou o botão diante de Some Enchanted Evening.

 

Caminhavam em silencio pelas pistas de cimento molhadas, apartados pela intimidade de seus próprios pensamentos, as mãos dadas pela força do hábito. A chuva parara, mas o ar estava carregado de umidade, delineando a forma de cada poste numa névoa cinza.

Do outro lado da rua, defronte do dormitório, beijaram-se. Os lábios dela, colados aos dele, estavam frios e cerrados. Quando ele tentou separá-los, ela balançou a cabeça. Ele ficou abraçando-a por alguns minutos, murmurando persuasivamente, e depois se despediram. Ele observou-a atravessar a rua e passar pelo saguão iluminado do prédio.

 

Dirigiu-se a um bar próximo, onde bebeu dois copos de cerveja e picotou um guardanapo de papel num delicado quadrado de admirável filigrana. Meia hora depois, entrou na cabine telefônica e discou o numero do dormitório. Pediu a telefonista o quarto de Dorothy.

Ela respondeu após dois chamados.

— Alô?

— Alô, Dorrie? — Silêncio na outra extremidade. — Dorrie, você tomou?

Uma pausa.

— Sim.

— Quando?

— Há alguns minutos.

Ele inspirou profundamente.

— Benzinho, a garota da mesa telefônica costuma ouvir?

— Não. Demitiram a última por...

— Bem, escute. Eu Não queria dizer-lhe isso antes, mas... elas podem doer um pouco. — Ela não disse nada. Ele continuou: — Hermy disse que você provavelmente vomitaria, como antes. E pode sentir uma espécie de queimação na garganta e algumas dores no estômago. Aconteça o que acontecer, não se assuste. Significa simplesmente que as pílulas estão fazendo efeito. Não chame ninguém. — Parou, esperando que ela dissesse alguma coisa, mas ela continuou calada. — Sinto muito não lhe ter dito antes, mas, bem, não doera muito. E estará acabado num instante.

— Uma pausa. — Você não está aborrecida, comigo, está, Dorrie?

— Não.

— Você vai ver, e tudo para o nosso bem.

— Eu sei. Sinto muito ter sido teimosa.

— Tudo bem, benzinho. Não se desculpe.

— Vejo você amanhã.

— Sim.

Houve silencio por um momento, e depois ela disse:

— Bem, boa noite.

— Adeus, Dorothy — ele disse.


9

 

 

AO ENTRAR NA SALA DE AULA, na manhã de sexta-feira, ele sentia-se leve, grandioso, maravilhoso. Era um belo dia; a luz do sol inundava a sala e refletia-se nas cadeiras metálicas, lançando manchas douradas nas paredes e no teto. Ocupando sua cadeira no fundo, estirou as pernas inteiramente e cruzou os braços sobre o peito, observando os outros estudantes entrarem em grupos. A radiância da manhã inflamara-os a todos, e no dia seguinte seria o primeiro jogo de beisebol universitário, com o Baile da Primavera à noite; ouviam-se conversas, gritos, sorrisos e risadas.

Três garotas mantinham-se afastadas e sussurravam excitada- mente. Ele imaginou se eram do dormitório, se poderiam estar falando de Dorothy. Ela ainda Não poderia ter sido descoberta. Por que alguém iria entrar em seu quarto? Pensariam que ela desejava dormir até tarde. Contava com a possibilidade de não a descobrirem por várias horas; manteve a respiração presa até que os sussurros das garotas explodiram numa gargalhada.

Não, não era provável que a descobrissem antes da uma hora da tarde, mais ou menos. “Dorothy Kingship não apareceu para o café da manhã nem para o almoço.” Aí bateriam em sua porta e não obteriam resposta. Provavelmente iriam chamar a diretora da casa ou alguém que tivesse uma chave. Ou podia nem acontecer assim. Muitas das garotas do dormitório dormiam até depois do café da manhã, e algumas delas almoçavam fora de vez em quando. Dorrie não tinha nenhuma amiga intima que sentisse sua falta imediatamente. Não, se sua sorte se mantivesse, poderiam não descobri-la até vir o telefonema de Ellen.

Na noite anterior, apos despedir-se de Dorothy no telefone, ele retornara ao dormitório. Na caixa do correio da esquina, colocara o envelope endereçado a Ellen Kingship, o envelope contendo o bilhete de suicídio de Dorothy. A primeira coleta de cartas da manhã era as seis; Caldwell ficava a apenas uns cento e cinquenta quilômetros de distância, e assim a carta seria entregue naquela tarde. Se Dorothy fosse descoberta pela manhã, Ellen, avisada pelo pai, poderia sair de Caldwell para Blue River antes de a carta chegar, o que significaria que quase certamente se iniciaria algum tipo de investigação, porque o bilhete de suicídios só seria encontrado quando a irmã retornasse a sua escola. Era o único risco, mas um risco pequeno e inevitável; fora-lhe impossível infiltrar-se no dormitório feminino e colocar o bilhete no quarto de Dorothy, e não seria prático enfiá-lo as escondidas no bolso de seu casaco ou em um de seus livros antes de dar-lhe as pílulas, pois haveria o risco muito maior de a própria Dorothy o descobrir e jogá-lo fora; ou, pior ainda, tirar suas conclusões.

Ele se decidira pelo meio-dia como sendo o prazo de segurança. Se ela fosse descoberta antes disso, Ellen teria recebido o bilhete no momento em que as autoridades universitárias entras- sem em contato com Leo Kingship e este, por sua vez, entrasse em contato com ela. Se a sorte realmente se mantivesse do seu lado, Dorothy só seria descoberta no fim da tarde, através de um frenético telefonema de Ellen. Ai tudo ficaria em perfeita ordem.

Haveria uma autopsia, e claro. Revelaria a presença de grande quantidade de arsênico e um feto de dois meses — o meio e o motivo de seu suicídio. Isso e o bilhete mais do que satisfariam a policia. Oh, eles fariam uma investigação pró-forma nas farmácias locais, mas não descobririam nada. Poderiam até pensar no depósito de suprimentos da Escola de Farmácia. Fariam perguntas aos estudantes: “Você viu essa garota no depósito ou em alguma parte da Escola de Farmácia?”, exibindo a fotografia da morta, o que tampouco os levaria a lugar algum. Seria um mistério, mas dificilmente um mistério importante; mesmo que não se descobrisse a origem do arsênico, a morte dela ainda seria um incontestável suicídio.

Será que procurariam o homem envolvido, o amante? Achava isso improvável. Para eles, ela seria tão promíscua quanto uma lebre. Isso dificilmente lhes interessaria. Mas... e Kingship? O moralismo ultrajado Não iniciaria uma investigação particular? “Descubram o homem que arruinou minha filha!” Embora, pela descrição do pai que Dorothy pintara, fosse mais provável que Kingship pensasse: “Ah, ah, ela se lascou inteiramente. Tal mãe, tal filha”. Contudo, sempre poderia haver uma investigação...

Ele certamente seria arrolado no caso. Tinham sido vistos juntos, embora não com tanta frequência quanto seria de esperar. No início, quando o sucesso junto a ela ainda estava em questão, não a levara a lugares muito frequentados; tinha havido aquela outra garota rica no ano anterior, e, se Dorothy não desse certo como ele queria, haveria outras no futuro; não desejava ficar com fama de caça-dotes. Depois, quando a coisa dera certo, tinham ido a cinemas, a seu quarto e a locais discretos como o Gideon’s. Os encontros no banco, em vez de no parlatório do dormitório, haviam se tornado um costume.

Muito bem, seria envolvido em qualquer investigação, mas Dorothy não dissera a ninguém que estavam namorando firme, e por isso outros homens também seriam envolvidos. Havia o ruivo com o qual ela batia papo, diante da sala de aula, no dia em que ele a vira pela primeira vez e notara a marca Kingship Copper gravada em sua carteirinha de fósforos, e o outro para o qual ela começara a tricotar meias de lá, e todo rapaz com quem safra uma ou duas vezes — eles também seriam arrolados, e assim ficaria a critério de qualquer um imaginar quem a “arruinara”, porque todos negariam. E, por mais completa que pudesse ser a investigação, Kingship jamais poderia ter certeza de que não deixara escapar completamente o “culpado”. As suspeitas seriam dirigidas a todos os homens, e não haveria provas contra nenhum.

Não, tudo sairia perfeito. Nada de deixar a escola, de empregos em seções de remessas, de esposa e filho opressivos, de Kingships vingativos. Só uma minúscula sombra... E se ele fosse apontado no campus como um dos homens que tinham saído com Dorothy? E se a garota que o deixara entrar no depósito de suprimentos o visse de novo, soubesse quem ele era, soubesse que não era estudante de farmácia de modo algum...? Mas mesmo isso era improvável, em meio a doze mil estudantes. E se ela o visse, se se lembrasse dele e fosse a policia? Mesmo assim, Não seria uma prova. Esta bem, estivera no depósito. Daria algum tipo de desculpa e teriam de acreditar nele, porque ainda haveria o bilhete, o bilhete com a letra de Dorothy. Como podiam eles explicar...

A porta ao lado da sala abriu-se, criando uma corrente de ar que levantou as páginas de seu caderno. Ele voltou-se para ver quem era. Era Dorothy.

 

O choque explodiu em todo o seu corpo, quente como uma onda de lava. Chegou a levantar-se um pouco, o sangue afluindo ao rosto, o peito um bloco de gelo. O suor porejou em seu corpo e escorreu por ele como milhões de insetos. Sabia que estava escrito em seu rosto, em seus olhos inchados e em suas faces ardentes, escrito para ela ver, mas não podia conter-se. Ela o olhava interrogativamente, a porta fechando-se as suas costas. Como em qualquer outro dia; livros sob o braço, suéter verde, saia plissada. Dorothy. Dirigindo-se para ele, ansiosa pela expressão em seu rosto.

O caderno dele caiu no chão, Ele curvou-se, aproveitando a momentânea ocasião. Ficou com o rosto colado ao lado da cadeira, tentando respirar. Que acontecera? Oh, Deus! Ela não tomara as pílulas! Não podia ter tomado! Mentira! A cadela! Maldita cadela mentirosa! O bilhete a caminho para Ellen... Oh, Deus, Deus!...

Ouviu-a deslizar para o assento ao lado. Seu assustado murmúrio:

— O que há de errado? O que e que há?

Ele pegou o caderno e sentou-se ereto, sentindo o sangue escoar-se de seu rosto, de todo o seu corpo, deixando-o frio como morto, as gotas de suor escorrendo.

— O que há de errado?

Olhou-a. Como em qualquer outro dia. Tinha uma fita verde nos cabelos. Ele tentou falar, mas era como se estivesse vazio por dentro, sem nada com que pudesse emitir um som.

— O que é? — Estudantes voltavam-se para olhar.

Finalmente ele conseguiu murmurar:

— Nada... estou bem.

— Você esta doente. Seu rosto esta tão cinza quanto...

— Estou bem. É... e essa... — Tocando o lado onde ela sabia que ele tinha a cicatriz do Exército. — Dá-me umas agulhadas de vez em quando...

— Deus, pensei que você ia ter um ataque cardíaco ou algo assim — ela sussurrou.

— Não, estou bem. — continuava olhando-a, tentando conseguir uma boa inspirada, as mãos agarradas aos joelhos em rígida contenção. Oh, Deus, que podia fazer? A cadela! Ela também fizera seus planos, planos para casar-se!

Viu a ansiedade por ele dissolver-se no rosto dela e ser substituída por um rubor de tensão. Ela arrancou uma página de sua prancheta, rabiscou alguma coisa e passou-a para ele:

 

As pílulas Não fizeram efeito.

 

Mentirosa! Maldita mentirosa! Ele embolou o papel e apertou-o na mão, as unhas enterrando-se na carne. Pense! Pense! O perigo em que estava era tão enorme, que não conseguia compreendê-lo completamente e de uma vez. Ellen receberia o bilhete... quando? As três horas? Quatro? Chamaria Dorothy: “Que significa isso? Por que você escreveu isso?” Aí leria o bilhete, e Dorothy o reconheceria... Viria fazer-lhe perguntas. Que explicação poderia inventar? Ou perceberia a verdade... despejaria toda a história em cima de Ellen... chamaria seu pai. Se houvesse guardado as pílulas... se não as houvesse jogado fora, haveria uma prova! Tentativa de assassinato. Ela as levaria a uma farmácia, mandaria analisá-las? Não havia como predizer o que ela faria agora. Era uma incógnita. Ele pensara que podia prever cada mínima volta do maldito cérebro dela, e agora...

Podia senti-la olhando-o, esperando algum tipo de reação as palavras que escrevera. Ele rasgou uma folha de seu caderno e pegou a caneta. Cobriu a mão, para ela não ver como tremia. Não conseguia escrever. Teve de fazê-lo com letras de forma, compri- mindo tanto a ponta da caneta que rasgou o papel. Precisava parecer natural.

 

Muito bem. Tentamos, é tudo.

Agora nos casaremos, segundo o programa.

 

Entregou-lhe o bilhete. Ela o leu e olhou-o, o rosto cálido e radiante como a luz do sol. Ele forçou um sorriso, rezando para que ela não notasse a rigidez do gesto.

Não era tarde demais ainda. As pessoas escreviam bilhetes de suicídio e depois demoravam para realmente cometê-lo. Olhou o relógio: nove e vinte. O mais cedo que Ellen podia receber o bilhete seria... três horas. Tinha cinco horas e quarenta minutos. Nada de planejamento vagaroso agora. Teria de ser rápido, positivo. Sem truques que contassem com o fato de ela fazer alguma coisa num determinado momento. Nada de veneno. De que outro modo as pessoas se matam? Em cinco horas e quarenta minutos ela teria de estar morta.


10

 

 

AS DEZ HORAS ELES DEIXARAM o prédio, de braços dados, saindo para o ar cristalino, que vibrava com os gritos dos estu- dantes entre uma aula e outra. Três garotas com uniformes de animadoras de torcidas passaram, uma batendo numa panela de metal com uma colher de pau, as outras duas trazendo um cartaz que anunciava a grande reunião daquela noite, de preparação para o jogo de beisebol.

— Sua cicatriz ainda dói? — perguntou Dorothy, preocupada com a sombria expressão dele.

— Um pouco — respondeu.

— Você sente essas pontadas muitas vezes?

— Não. Não se preocupe. — Ele olhou o relógio. — Você não vai se casar com nenhum inválido.

Os dois passaram da pista para o gramado.

— Quando nos casaremos? — Ela apertou a mão dele.

— Esta tarde. Lá pelas quatro.

— Não devíamos ir mais cedo?

— Por que?

— Bem, levara tempo, e eles provavelmente fecham lá pelas cinco.

— Não demorará muito. Simplesmente preencheremos o formulário do pedido de licença, e depois alguém, ali mesmo, no mesmo andar, nos casará.

— Seria melhor eu levar uma prova de que tenho mais de dezoito anos.

— É.

Ela voltou-se para ele, subitamente seria, o remorso fazendo arder as suas faces. Não era nem mesmo uma boa mentirosa, ele pensou.

— Você está muito chateado porque as pílulas não fizeram efeito? — ela perguntou, ansiosamente.

— Não, não muito.

— Você estava exagerando, não estava? Sobre como tudo vai ser?

— Sim, daremos um jeito. Eu simplesmente queria que você tentasse as pílulas. Por você mesma.

Ela ficou mais ruborizada ainda. Ele virou o rosto, atrapalha- do pela indissimulabilidade dela. Quando voltou a olhá-la, a alegria do momento superara os escrúpulos de Dorothy, e ela cruzava os braços, abraçando-se a si mesma; sorria.

— Não posso ir as aulas! Vou faltar.

— Boa, Eu também. Fique comigo.

— O que e que você quer dizer?

— Até irmos a prefeitura. Passaremos o dia juntos.

— Não posso, querido. Não o dia todo. Tenho de voltar ao dormitório, acabar de arrumar a mala, vestir-me... Você não vai arrumar sua mala?

— Deixei uma valise no hotel, quando fiz a reserva.

— Ah. Bem, você terá de se vestir, não? Espero vê-lo em seu terno azul.

Ele sorriu.

— Sim. De qualquer modo, você pode me dedicar um pouco de seu tempo, Não? Até a hora do almoço.

— Que faremos? — Eles atravessavam o gramado.

— Não sei — ele disse. — Talvez um passeio. Até o rio.

— Com estes sapatos? — Ela ergueu um pé, exibindo um mocassim de couro mole. — Eu cairia. Não há firmeza nestas coisas.

— Muito bem — ele disse. — O rio, não.

— Tenho uma ideia. — Ela apontou a Escola de Belas-Artes em frente. — Vamos para a sala de discos na Belas-Artes ouvir algumas músicas.

— Não sei, está um dia tão lindo, que eu gostaria de ficar... — Ele parou, vendo o sorriso dela desaparecer.

Ela olhava, além da Escola de Belas-Artes, a torre de transmissão da estação KBRI, apontada para o céu.

— A última vez em que fui a prefeitura, foi para ver aquele medico — disse, ajuizadamente.

— Será diferente agora — ele disse. E depois parou de andar.

— O que é?

— Dorrie, você tem razão. Por que esperar até as quatro da tarde? Vamos agora!

— Casar-nos agora?

— Bem, depois de você fazer as malas e se vestir e essa coisa toda. Escute, volte ao dormitório agora e se apronte. Eu a pego. Que me diz disso?

— Oh, sim! Oh, eu queria ir agora!

— Eu telefono para você daqui a pouco e lhe digo quando passo para apanhá-la.

— Sim. Sim. — Ela esticou-se nas pontas dos pês e beijou-lhe o rosto excitadamente. — Eu o amo tanto! — murmurou.

Ele deu-lhe um sorriso contido.

Ela afastou-se apressada, enviando-lhe um sorriso sobre o ombro, andando o mais rápido que podia.

Ele observou-a afastar-se. Depois, voltou-se e olhou outra vez a torre da KBRI, que assinalava o prédio da Prefeitura Municipal, o mais alto da cidade — catorze andares acima das duras lajes da calçada.


11

 

 

ELE ENTROU NA Escola de Belas-Artes, onde havia uma cabine telefônica enfumada debaixo da rampa da escada principal. Chamando Informações, obteve o numero do Departamento de Licenças para Casamento.

— Departamento de Licenças para Casamento.

— Alô. Estou chamando para saber o horário em que o departamento estará aberto hoje.

— Até meio-dia, e da uma às cinco e meia.

— Fechado entre meio-dia e uma?

— Certo.

— Obrigado.

Desligou, pôs outra ficha no telefone e discou o numero do dormitório. Quando chamaram o quarto de Dorothy, Não houve resposta. Ele repôs o telefone no gancho, imaginando o que poderia tê-la detido. Com a rapidez com que ela sairá, já deveria estar em seu quarto.

Não tinha mais fichas, e por isso atravessou o campus e foi até uma lanchonete, onde trocou uma nota de um dólar e ficou olhando de cara fechada a garota que ocupava a cabine telefônica. Quando ela finalmente terminou, ele entrou na cabine cheirando a perfume e fechou a porta. Dessa vez Dorothy atendeu.

— Alô?

— Alô. Por que demorou tanto? Chamei há alguns minutos.

— Parei no caminho. Precisei comprar umas luvas. — Parecia sem folego e feliz.

— Oh. Escute, são... dez e vinte e cinco agora. Você pode estar pronta ao meio-dia?

— Meio-dia e quinze?

— Está bem.

— Escute, você não vai comunicar a saída do fim de semana, vai?

— Tenho de comunicar. Você conhece as regras.

— Se você comunicar, terá de anotar aonde está indo, Não é?

— É.

— Bem...

— Eu porei “New Washington House”. Se a diretora do dormitório fizer perguntas, eu direi.

— Escute, você pode anotar isso mais tarde. Teremos de voltar aqui de qualquer modo. Para tratar do trailer. Teremos de voltar para isso.

— Teremos?

— Claro. Disseram que eu não podia fazer um pedido formal antes de estarmos casados.

— Oh! Bem, se vamos voltar depois, não levarei minha valise agora.

— Não. Traga-a. Assim que terminar a cerimonia, iremos ao hotel e almoçaremos. Fica só a uma quadra da prefeitura.

— Então podia também comunicar a saída agora. Não vejo que diferença isso fará.

— Escute, Dorrie, Não creio que a escola esteja exatamente ávida por que garotas de fora da cidade saiam por ai se casando. A diretora de seu internato certamente nos fará perder tempo por algum motivo. Quererá saber se seu pai sabe. Passará um sermão, tentara convencê-la a esperar até o fim do ano letivo. E para isso que ela esta aí.

— Muito bem. Comunicarei depois.

— Isso é que e uma boa garota. Estarei a sua espera defronte do dormitório, ao meio-dia e quinze. Na Avenida University.

— Na University?

— Bem, você vai sair pela porta lateral, Não vai? Saindo com uma valise sem comunicar a ausência, Não é?

— Tem razão. Eu não tinha pensado nisso. Puxa, estamos praticamente fugindo.

— Como num filme.

Ela sorriu calidamente.

— Meio-dia e quinze.

— Certo. Estaremos no centro ao meio-dia e meia.

— Adeus, noivo.

— Até logo, noiva.

 

Ele se vestiu meticulosamente, com seu terno azul-marinho, meias e sapatos pretos, camisa branca e uma gravata azul-pálida de pesada seda italiana com o desenho de uma flor-de-lis em negro e prata. Ao examinar-se no espelho, entretanto, achou que a beleza da gravata era conspícua demais, e por isso trocou-a por uma mais simples, de tricô, cinza. Olhando-se novamente enquanto reajeitava o paletó, desejou poder mudar de rosto com a mesma facilidade, substituindo-o temporariamente por um de linhas menos marcadas. Havia momentos, pensou, em que ser tão bonito era definitivamente uma desvantagem. No intuito de pelo menos parecer mais comum, pôs seu único chapéu, cinza, equilibrando-o com cuidado para não desmanchar os cabelos.

Ao meio-dia e cinco, estava na Avenida University, do outro lado da porta lateral do dormitório. O sol estava quase a pino, quente e luminoso. No ar abafado, os ocasionais sons de pássaros, passos e bondes tinham uma qualidade rara, como se viessem todos de trás de uma parede de vidro. Ele ficou de costas para o dormitório, olhando a vitrina de uma loja de ferragens.

Ao meio-dia e quinze, refletida na vitrina, ele viu a porta do outro lado da rua abrir-se e aparecer a figura de Dorothy, vestida de verde. Uma vez na vida ela estava sendo pontual. Ele voltou-se. Ela olhava a direita e a esquerda, Não o vendo de forma alguma. Numa das mãos, de luva branca, segurava uma bolsa, e na outra uma pequena valise de lona marrom com listas vermelhas. Ele ergueu o braço, e num momento ela o viu. Com um sorriso ansioso, ela deixou o meio-fio, esperou uma folga no tráfego e veio em sua direção.

Estava linda. Seu vestido era verde-escuro, com um laço de seda branca reluzindo no pescoço. Os sapatos e a bolsa eram de crocodilo marrom, e havia uma aura de véu verde flutuando em seus dourados cabelos escorridos. Quando se aproximou, ele sorriu e tomou a valise de sua mão.

— Todas as noivas são lindas — disse —, mas você espe- cialmente.

— Gracias, señor. — Parecia querer beijá-lo,

Um táxi aproximou-se e diminuiu a velocidade ao passar. Dorothy olhou-o inquisitivamente, mas ele balançou a cabeça.

— Se vamos economizar, e melhor começarmos a praticar.

Olhou a extremidade da avenida. Através do ar luminoso, um bonde aproximava-se.

Dorothy sorvia o mundo, como se houvesse estado trancada durante meses. O céu era uma concha de perfeito azul. O campus, estendendo-se diante do dormitório por seis quadras, pela Avenida University, estava tranquilo, sombreado por árvores de um verde novo. Alguns estudantes andavam pelas pistas; outros estendiam-se no gramado.

— Pense só — ela maravilhava-se. — Quando voltarmos, esta tarde, estaremos casados.

O bonde, com seu clangor, gemeu e parou. Eles subiram.

Sentaram-se voltados para o fundo, falando pouco, cada um imerso em seus próprios pensamentos. Um observador casual Não teria certeza se os dois viajavam juntos ou não.

 

Os primeiros oito andares do prédio da Prefeitura Municipal destinavam-se aos escritórios dos distritos da cidade e do muni- cipio de Rockwell, do qual Blue River era a sede. Os outros seis andares eram alugados a particulares, em sua maioria advogados, médicos e dentistas. O próprio prédio era uma mistura de arquitetura clássica e moderna, uma combinação entre a tendência funcional da década de 30 e o decidido conservadorismo de Iowa. Os professores que ensinavam nos cursos de introdução a arquitetura na Escola de Belas-Artes de Stoddard referiam-se a ele como um aborto arquitetônico, fazendo os calouros rirem compenetradamente.

Visto de cima, o prédio era um quadrado oco, com uma área interna de ventilação aberta no centro. De lado, recuos no oitavo e no décimo segundo andares davam-lhe a aparência de três blocos de tamanho decrescente empilhados uns em cima dos outros. Suas linhas eram sem graça e áridas. Os dintéis das janelas seguiam desenhos gregos convencionais, e suas três portas giratórias de bronze e vidro, em forma de borboleta, espremiam-se entre colunas gigantescas, com capitéis esculpidos na forma de palha de milho. Era uma monstruosidade, mas ao descer do bonde Dorothy parou e olhou-o até em cima, como se fosse a catedral de Chartres.

 

Era meio-dia e meia quando eles atravessaram a rua, subiram os degraus e passaram pela porta giratória central. O saguão, com piso de mármore, estava cheio de gente que ia e vinha do almoço, pessoas apressando-se para comparecer a encontros, outras paradas, esperando. O som das vozes e o arrastar de sapatos sobre o mármore pairavam como um rumor sob o teto abobadado.

Ele ficou para trás de Dorothy, deixando-a seguir na frente, até o painel indicador de salas e andares, a um lado do saguão.

— Será na letra “R”, de Rockwell, ou “C”, de casamento? — ela perguntou, os olhos fixos no quadro, quando ele se aproximou. Ele olhou o painel como se estivesse esquecido da presença dela. — Ali está — ela disse triunfante: — Departamento de Licenças de Casamento. Seis-zero-quatro.

Ele voltou-se para os elevadores, que ficavam em frente as portas giratórias. Dorothy apressou-se a segui-lo. Buscou a sua mão, mas ele estava segurando a valise, e aparentemente Não notou o gesto, pois não fez nenhum movimento para trocá-la de mão.

Um dos quatro elevadores estava aberto, meio cheio de passa- geiros. Quando se aproximaram, ele recuou um pouco, deixando Dorothy entrar primeiro. Depois apareceu uma velha e ele esperou até que também ela houvesse entrado. A mulher sorriu-lhe, satisfeita com seu ar de cavalheiro, duplamente inesperado num jovem e num prédio executivo movimentadíssimo. Pareceu um pouco decepcionada porque ele não tirou o chapéu. Dorothy também sorriu para ele, por cima da cabeça da mulher, que se postara entre eles. Ele devolveu o sorriso com uma curvatura quase imperceptível dos lábios.

Deixaram o elevador no sexto andar, junto com dois homens que levavam maletas e dobraram a direita, caminhando apressa- damente pelo corredor.

— Ei, espere por mim — protestou Dorothy num sussurro alegre, quando as portas do elevador se fecharam com um clangor. Ela fora a última a deixar o carro, e ele o primeiro. Ele dobrara a esquerda e andara uns cinco metros, para todos os efeitos como se estivesse sozinho. Voltou-se, aparentemente ruborizado, quando ela o alcançou e tomou alegremente o seu braço. Por sobre a cabeça da moça, ele viu os homens com as maletas alcançarem a outra extremidade do corredor, dobrarem a direita e desaparecerem na ala lateral do quadrado.

— Você estava fugindo? — brincou Dorothy.

— Desculpe — ele sorriu. — Nervosismo de noivo.

Puseram-se a andar de braços dados, seguindo a virada a esquerda que o corredor fazia. Dorothy recitava os números pintados nas portas a medida que passavam por elas.

— Seiscentos e vinte, seiscentos e dezoito, seiscentos e dezesseis...

Tiveram de dobrar outra vez a esquerda do quadrado, no lado oposto ao dos elevadores. Ele experimentou abrir a porta. Estava fechada. Leram os horários relacionados no painel de vidro fosco e Dorothy gemeu, desconsoladamente.

— Diabos — ele disse. — Eu devia ter telefonado para saber. — Arriou a valise no chão e olhou o relógio. Vinte e cinco para uma.

— Vinte e cinco minutos — disse Dorothy. — Acho que podíamos descer.

— Aquela multidão... — ele murmurou, e depois parou. — Opa, tenho uma ideia.

— Qual e?

— O terraço. Vamos ao terraço. Esta um dia tão bonito, que aposto que poderemos ver por quilômetros e quilômetros.

— Podemos ir?

— Se ninguém nos detiver, podemos. — Ele pegou a valise. — Vamos, dê sua ultima olhada ao mundo como solteira.

Ela sorriu e começaram a andar, retornando ao redor do quadrado até o conjunto de elevadores, onde em poucos minutos se acendeu acima de uma das portas a seta branca apontando para cima.

Quando deixaram o elevador no décimo quarto andar, ocorreu novamente serem separados por outros passageiros que saiam. No corredor, esperaram até que os outros dobrassem as esquinas do corredor ou entrassem em escritórios, e então Dorothy disse:

— Vamos — num sussurro de conspiradora. Estava transfor- mando o passeio numa aventura.

Tiveram de fazer novamente um meio circuito do prédio, até que, junto a sala 1402, encontraram uma porta com a palavra “Escada” Ele empurrou-a, abrindo-a, e entraram. A porta fechou-se com um ruído atrás deles. Estavam num patamar, com escadas de metal negro que levavam para cima e para baixo. Uma fraca luz atravessava a suja claraboia. Subiram; oito degraus, uma curva, mais oito degraus. Estavam diante de uma porta de maciço metal marrom-avermelhado. Ele experimentou a maçaneta.

— Esta trancada?

— Acho que Não.

Ele encostou o ombro e empurrou.

— Vai sujar seu terno.

A porta apoiava-se num batente, uma espécie de gigantesco umbral cuja parte de baixo se elevava cerca de um palmo acima do nível do andar. O rebordo projetava-se para fora tornando difícil para ele aplicar seu peso diretamente. Ele arriou a valise, forçou o ombro contra a porta e tentou novamente.

— Podemos descer e esperar — disse Dorothy. — Essa porta provavelmente Não e aberta há...

Ele cerrou os dentes. Com o lado de seu pé esquerdo forçando a base do umbral, recuou e lançou-se contra a porta com toda a sua força. Ela cedeu, abrindo-se com um rangido. A corrente de um contrapeso rangeu também. Uma faixa de céu azul-elétrico feriu seus olhos, cegando-o após a escuridão da escada. Houve um rápido adejar de asas de pombos.

Ele apanhou a valise, passou pelo rebordo do umbral e tornou a pô-la no chão, onde ela ficaria fora do alcance da porta. Empurrando mais ainda a porta, ficou com as costas contra ela. Estendeu uma das mãos para Dorothy. Com a outra, indicou o trecho de espaço aberto no terras como um maitre indica sua melhor mesa. Fez-lhe uma mesura de brincadeira e ofereceu-lhe seu melhor sorriso.

— Entre, mademoiselle — disse.

Tomando sua mão, ela passou graciosamente por sobre a parte de baixo do umbral e pisou o chão negro do terraço.


12

 

 

ELE NÃO ESTAVA ABSOLUTAMENTE nervoso. Houvera um momento de quase pânico, quando não conseguira abrir a porta, mas isso se dissolvera no instante em que ela cedera sob a força de seu ombro, e agora estava calmo e seguro. Tudo sairia perfeito. Sem erros, sem intrusos. Ele sabia, simplesmente. Não se sentia tão bem desde... Meu Deus, desde o ginásio!

Fechou parcialmente a porta, deixando alguns centímetros entre ela e o umbral, para que não lhe causasse problemas quando voltasse. Estaria com muita pressa então. Curvando-se, moveu a valise de modo a poder pegá-la com uma das mãos enquanto abria a porta com a outra. Ao se levantar, sentiu o chapéu mudar ligeiramente de posição com o movimento. Tirou-o, olhou-o e colocou-o sobre a valise. Meu Deus, estava pensando em tudo! Uma coisinha como um chapéu provavelmente arruinaria qualquer outra pessoa, que empurraria Dorothy por sobre a amurada, e ai um vento ou a força do movimento arrancaria o chapéu e o mandaria voando até cair ao lado do corpo. Bam! Essa pessoa podia muito bem atirar-se junto. Mas não ele: previra, estava preparado. Um ato de Deus, o tipo maluco de coisinha que sempre estragava planos perfeitos — e ele previra! Deus! Passou a mão pelos cabelos, desejando ter um espelho.

— Venha ver isso.

Voltou-se. Dorothy estava a pouca distancia, de costas para ele, a bolsa de crocodilo enfiada sob um braço. As mãos dela repousavam sobre o parapeito, que lhe chegava a cintura, a beira do terraço.

— Não e uma beleza? — ela disse.

Estavam na parte de trás do prédio, voltados para o sul. A cidade estendia-se a seus pês, branca e límpida na luminosa claridade do sol.

— Veja! — Dorothy apontou um trecho verde, distante. — Acho que e o campus.

Ele pôs as mãos nos ombros dela. Dorothy ergueu a mão enluvada para tocar uma delas.

Ele planejara fazer tudo rapidamente, assim que a tivesse lá em cima, mas agora decidira agir com calma, sem pressa, adiando até onde pudesse, com segurança. Tinha direito a isso, após uma semana de tensão que deixara os seus nervos cansados. Não apenas uma semana... anos. Desde o ginásio, só conhecera tensão, preocupação e dúvidas. Não havia necessidade de apressar aquilo. Olhou o alto da cabeça dela contra seu peito, o véu verde-escuro esvoaçando nos cabelos loiros. Soprou, fazendo tremer a uma rede. Ela jogou a cabeça para trás e sorriu-lhe.

Quando os olhos dela voltaram ao panorama, ele passou para o seu lado, mantendo um braço sobre seus ombros. Curvou-se sobre o parapeito. Dois andares abaixo, o solo de ladrilhos vermelhos de uma ampla sacada estendia-se como uma prateleira por toda a largura do edifício. O recuo do décimo segundo andar. Devia continuar pelos quatro lados do prédio. Isso era mal; uma queda de dois andares Não era o que ele pretendia. Voltou-se e examinou o terraço.

Tinha talvez uns cinquenta metros quadrados, cercados pelo parapeito de tijolos cuja parte de cima era de pedra branca lisa, com uns trinta centímetros de largura. Um muro idêntico cercava a área interna, um buraco quadrado com uns dez metros de largura, no centra do terraço. Do lado esquerdo, havia uma caixa-d’agua apoiada sobre colunas. A esquerda, a torre da KBRI projetava-se como uma Eiffel menor, sua silhueta negra recortada contra o céu. A entrada para a escada, um abrigo de teto inclinado, ficava a frente dele, um pouco a esquerda. Além da área interna, do lado norte do edifício, havia uma grande estrutura retangular, a casa das máquinas dos elevadores. Todo o terraço era pontilhado de chaminés e canos de ventilação, que se erguiam como píeres num mar de pedra preta.

Deixando Dorothy, ele caminhou até o parapeito da área interna. Curvou-se. As quatro paredes afunilavam-se até uma minúscula área catorze andares abaixo, os cantos cheios de latas de lixo e caixotes vazios. Ele olhou por um momento, depois abaixou-se e apanhou uma caixa de fósforos desbotada pela chuva no piso mole do terraço. Segurou-a além do parapeito e largou-a, observando-a cair, cair, até finalmente tornar-se invisível. Olhou as paredes da área. Três delas tinham fileiras de janelas. A quarta, defronte dele e evidentemente a dos poços dos elevadores, era lisa, sem janelas. Era aquele o local. O lado sul da área interna. Perto da escada também. Ele deu um tapa no parapeito, os lábios comprimidos pensativamente. A altura era maior do que pensara.

Dorothy veio atrás dele e pegou o seu braço.

— É então silencioso — disse.

Ele ficou a escuta. A principio, parecia haver absoluto silêncio, mas logo os sons do terraço se faziam ouvir: o pulsar das maquinas dos elevadores, um vento suave bordejando os cabos que fixavam a torre de radio, o ranger de um ventilador vagaroso...

Começaram a andar lentamente. Ele a conduziu, em volta do poço, para a casa dos elevadores. Enquanto caminhavam, ele limpava do ombro a poeira da porta. Quando chegaram ao lado norte do terraço, viram o rio, e com o reflexo do céu ele era realmente azul, tão azul quanto os rios pintados em mapas.

— Você tem um cigarro? — ela perguntou.

Ele enfiou a mão no bolso e tocou um maço de Chesterfield. Mas retirou-a vazia.

— Não, não tenho. Você tem?

— Estão enfiados aqui em alguma parte.

Ela mexeu dentro de sua bolsa, pondo de lado uma caixa metálica de pó compacto e um lenço turquesa, e finalmente retirou um mago de Herbert Tareyton. Cada um pegou um. Ele os acendeu e ela devolveu os cigarros a sua bolsa.

— Dorrie, há uma coisa que eu quero dizer a você... — Ela soprava uma coluna de fumaça para o céu, quase sem ouvi-lo. — Sobre as pílulas.

O rosto da moça voltou-se abruptamente, ficando pálido. Ela engoliu em seco.

— Que e?

— Ainda bem que elas Não fizeram efeito — ele disse, sorrindo. — Sinto-me feliz.

Ela olhou-o sem compreender.

— Está feliz?

— Sim. Quando eu lhe telefonei a noite passada, ia dizer-lhe para não tomá-las, mas você já tinha tomado. — E pensou: “Vamos, confesse. Desabafe. Isso deve estar matando você”.

A voz dela estava tremula.

— Por que? Você estava tão... o que o fez mudar de ideia?

— Não sei. Pensei melhor. Creio que estou tão ansioso para me casar quanto você. — Examinou o cigarro dela. — Além disso, acho que é realmente um pecado fazer uma coisa dessas. — Quando tornou a erguer os olhos, as faces dela estavam ruborizadas e seus olhos brilhavam.

— Você fala sério? — perguntou, sem folego. — Está realmente feliz?

— Claro que estou. Não diria se Não estivesse.

— Oh, graças a Deus!

— O que é que há, Dorrie?

— Por favor... Não fique zangado. Eu... eu não as tomei. — Ele tentou parecer surpreso. As palavras jorraram dos lábios dela: — Você disse que ia arranjar um trabalho noturno, e eu sabia que nós podíamos dar um jeito, tudo daria certo, e eu contava tanto com isso, tanto. Sabia que estava certa. — Parou. — Você Não esta zangado, está? — implorou. — Você compreende?

— Claro, benzinho. Não estou zangado. Não lhe disse que fiquei feliz?

Os lábios da moça formaram um tremulo sorriso de alívio.

— Eu me senti como uma criminosa, mentindo a você. Pensei que jamais ia poder lhe dizer. Eu... eu nem posso acreditar!

Ele retirou o lenço muito bem dobrado do bolso do paletó e levou-o aos olhos dela.

— Dorrie, que foi que você fez com as pílulas?

— Joguei fora. — Ela sorriu, envergonhada.

— Onde? — ele perguntou sem muito interesse, tornando a guardar o lenço.

— Na privada.

Era o que ele queria ouvir. Não haveria perguntas sobre o motivo de ela ter se dado aquele trabalho, quando já se esforçara tanto para obter veneno. Ele jogou o cigarro no chão e pisou-o.

Dorothy, tirando uma tragada final, fez o mesmo com o dela.

— Puxa — disse, maravilhada. — Está tudo perfeito agora. Perfeito.

Ele pôs as mãos em seus ombros e beijou-a delicadamente.

— Perfeito — disse.

Olhou as duas pontas de cigarro, a dela manchada de batom, a dele limpa. Pegou a sua. Abrindo-a ao meio com as unhas, deixou o tabaco voar ao vento e enrolou o papel até fazer uma bolinha. Lançou-a sobre o parapeito.

— E como fazíamos no Exército — disse.

Ela consultou o relógio.

— São dez para uma.

— Você está com pressa — ele disse, olhando o seu. — Ainda temos quinze minutos. — Tomou o braço dela. Voltaram-se e afastaram-se sem pressa da beira do terraço.

— Você falou com sua senhoria?

— O que? Ah, sim. Está tudo arranjado. — Passaram pela casa das máquinas dos elevadores. — Segunda-feira transportaremos suas coisas do dormitório.

Dorothy sorriu.

— Como ficarão surpresas as garotas lá do dormitório. — Passeavam em torno do parapeito da área interna. — Você acha que sua senhoria poderá nos dar mais espaço no armário?

— Acho que sim.

— Posso deixar algumas de minhas coisas, as de inverno, no sótão do dormitório. Não haverá muita coisa.

Chegaram ao lado sul da área interna. Ele deu as costas para o parapeito, firmou as mãos sobre ele e ergueu-se. Ficou sentado, com os calcanhares batendo no muro.

— Não se sente aí — disse Dorothy apreensivamente.

— Por que não? — ele perguntou, olhando a branca cobertura de pedra do parapeito. — Tem mais ou menos um palmo de largura. A gente se senta num banco de um palmo e não cai. — Bateu na pedra a seu lado. — Venha.

— Não.

— Medrosa.

Ela tocou a orelha.

— Minha roupa...

Ele tirou o lenço, abriu-o com um safanão e estendeu-o sobre a pedra a seu lado.

— Sir Walter Raleigh — disse.

Ela hesitou um momento, depois entregou-lhe a bolsa. Voltando-se de costas para o parapeito, firmou-se em ambos os lados do lenço e ergueu-se. Ele ajudou-a.

— Isso — disse, passando o braço em torno da cintura da moça. Ela voltou a cabeça lentamente, olhando por sobre os ombros. — Não olhe para baixo — ele avisou. — Vai ficar tonta.

Ele pôs a bolsa na pedra a sua direita e ficaram em silencio um instante, as mãos dela ainda agarrando-se a beirada do parapeito. Dois pombos surgiram de trás do abrigo da escada e passaram a frente deles, olhando-os cuidadosamente, as garras arranhando a pedra.

— Você vai telefonar ou escrever, quando disser a sua mãe? — ela perguntou.

— Não sei.

— Eu acho que vou escrever para Ellen e papai. Uma coisa terrível para se dizer simplesmente ao telefone.

Um respiradouro de ventilador rangeu. Um minuto depois, ele retirou o braço da cintura da moça e pós a mão sobre a dela, que se agarrava ao parapeito entre eles. Firmou a outra mão e desceu. Antes que ela pudesse fazer o mesmo, ele virou-se e estava a sua frente, a cintura contra os joelhos dela. Sorriu-lhe, e ela devolveu- lhe o sorriso. O olhar dele caiu para a barriga da moça.

— Mãezinha — disse. Ela deu uma risadinha.

As mãos dele pousaram em seus joelhos, empalmando-os, as pontas dos dedos acariciaram as pernas sob a barra da saia.

— E melhor irmos, não, querido?

— Num minuto, benzinho. Ainda temos tempo.

Fixou os olhos nos dela, enquanto suas mãos desciam e passavam para trás, parando na curva da barriga das pernas da moça. Na periferia de sua visão, podia ver as mãos dela enluvadas de branco; ainda se agarravam firmemente a frente do parapeito.

— Uma blusa bonita — ele disse, olhando o laço de seda no pescoço dela. — E nova?

— Nova? E tão velha quanto as montanhas.

O olhar dele tornou-se critico.

— O laço está mais para um lado.

Uma das mãos deixou a borda do parapeito e ergueu-se para tocar o laço.

— Não — ele disse. — Agora ficou pior. — A outra mão dela desprendeu-se do parapeito.

Ele desceu as mãos pelas barrigas das pernas dela, metidas em meias de seda, até onde podia, sem precisar abaixar-se. Seu pé direito recuou, pousando sobre a ponta para firmar-se. Ele prendeu a respiração.

Ela ajustava o lago com ambas as mãos.

— Assim esta melh...

Com a rapidez de uma serpente, ele se abaixara — as mãos descendo para pegar os calcanhares dela —, recuara e erguera-se, jogando as pernas da moça para cima. Por um instante que pareceu eterno, quando suas mãos passavam dos saltos dos sapatos para empurrar as solas, seus olhos se encontraram, um terror estupefato explodindo nos dela, um grito brotando de sua garganta. Aí, com toda a sua força, ele empurrou as pernas rígidas de medo.

O grito de angustia petrificado que ela soltou acompanhou-a poço abaixo como um arame em brasa. Ele fechou os olhos. O grito morreu. Silencio, depois um terrível impacto de coisas que- bradas. Piscando, ele lembrou-se das latas e caixas empilhadas lá embaixo.

 

Abriu os olhos a tempo de ver seu lenço enfunando-se ao vento que o levantava do parapeito. Agarrou-o. Correu para a escada, agarrou o chapéu e a valise com uma das mãos e puxou a porta com a outra, limpando a maçaneta com o lenço enquanto fazia isso. Passou rapidamente por sobre o rebordo do umbral, fechou a porta e limpou a maçaneta do lado de dentro.

Desceu às carreiras, lance após lance, os negros degraus metálicos, a valise batendo contra suas pernas, a mão direita queimando no corrimão. Seu coração galopava, e a imagem das paredes passando deixava-o tonto. Quando finalmente parou, estava no patamar do sétimo andar.

Agarrou-se ao pilar, arquejando. A frase “alivio físico da tensão” dançou em sua mente. Por isso correra tanto... O alivio físico da tensão... Não o pânico, Não o pânico. Recuperou o folego. Arriando a valise, ajeitou o chapéu, que esmagara na mão, e o pós na cabeça, as mãos ligeiramente trêmulas. Olhou-as. As palmas estavam sujas das solas dos sapatos de... Limpou-as e enfiou o lenço no bolso. Apos uma ajeitada em seu paletó, pegou a valise, abriu a porta e saiu para o corredor.

Todas as portas estavam abertas. As pessoas corriam pelo corredor, saindo dos escritórios da parte de fora para os da parte interna, onde as janelas davam para a área. Homens de terno, estenógrafas com punhos de papel presos com clipes as suas blusas, homens em mangas de camisa com palas verdes na testa; todos de maxilares cerrados, olhos arregalados, rostos exangues. Ele encaminhou-se para os elevadores em passo moderado, parando quando alguém disparava a sua frente, depois continuando seu caminho. Passando a porta de cada escritório, olhava para dentro e via as costas das pessoas amontoadas em torno das janelas abertas, as vozes, um murmúrio de excitação e tensa especulação.

Pouco depois de alcançar o bloco de elevadores, um deles parou, descendo. Ele espremeu-se dentro do carro e ficou na frente. Atrás, os outros passageiros trocavam avidamente fragmentos de informações, a costumeira frieza do elevador despedaçada pela violência as suas costas.

A atividade normal continuava no saguão. A maioria das pessoas ali, tendo acabado de entrar, não sabia de nenhuma perturbação. Balançando ligeiramente a valise, ele atravessou o piso de mármore do saguão e saiu para a tarde ruidosa e ensolarada. Quando descia, saltando, os degraus da frente do edifício, dois policiais passaram por ele, subindo. Voltou-se e viu os uniformes azuis desaparecerem numa porta giratória. Ao fim dos degraus, parou e examinou mais uma vez suas mãos. Estavam firmes como rochas. Nem o mínimo tremor. Sorriu. Voltando-se, olhou as portas giratórias, imaginando até onde seria perigoso retornar, misturar-se com a multidão, vê-la... Decidiu Não o fazer.

Um bonde para a universidade passava. Ele apressou-se até a esquina, onde o veículo fora detido por um sinal vermelho. Saltando para dentro, pós uma moeda na caixa coletora e encaminhou-se para a parte de trás. Ficou olhando para fora da janela. Quando o bonde já tinha percorrido umas quatro quadras, uma ambulância passou com estrépito, o gemido de sua sirene morrendo ao afastar-se. Ele olhou-a ficar cada vez menor e finalmente cortar o trafego para deter-se diante da Prefeitura Municipal. Depois, o bonde entrou na Avenida University e ele não pode mais vê-la.


13

 

 

A REUNIÃO FESTIVA de preparação para o jogo de beisebol começou às nove daquela noite, num terreno baldio próximo ao estádio, mas as noticias sobre o suicídio de uma estudante (pois como poderia ter ela caído, se o Clarion afirmava categoricamente que havia uma amurada de um metro?) esfriaram o entusiasmo de todos. Ao fulgor alaranjado da fogueira, os estudantes, as moças especialmente, estenderam suas toalhas e ficaram conversando em grupos. O administrador comercial do time de beisebol e os membros da torcida organizada tentaram inutilmente fazer o encontro ser o que devia, Estimularam os rapazes a arranjar mais e mais combustível para a fogueira, lançando nela caixotes e caixas até que a coluna em chamas ficou tão alta que ameaçou cair, mas isso não adiantou nada. Os gritos tremulavam e morriam antes que metade do nome da escola fosse dito.

 

Ele não assistira a muitas dessas reuniões antes, mas foi a essa. Saiu de sua casa de cômodos e caminhou pelas ruas escuras em lento passo litúrgico, levando uma caixa.

À tarde, havia esvaziado a valise de Dorothy, escondendo as roupas debaixo do colchão. Depois, embora fosse um dia quente, pusera sua capa, e, após encher os bolsos com os vidros e pequenos recipientes de cosméticos que estavam entre as roupas, deixara a casa com a valise, da qual tirara os cartões com os endereços de Dorothy em Nova York e em Blue River. Fora ao centro da cidade e guardara-a num cofre da estação rodoviária. De lá, caminhara até a Ponte da Rua Morton, onde jogara as chaves do cofre e os vidros, um a um, na água castanho-escura, abrindo-os primeiro para que o ar dentro deles não os fizesse boiar. Estrias de loção rósea coloriam a água e depois dissolviam-se e desapareciam. Ao voltar da ponte, parou num armazém, onde arranjou uma caixa de papelão ondulado, que servira antes para o transporte de latas de suco de abacaxi.

Levou a caixa para a reunião e abriu caminho entre a massa de figuras agachadas e deitadas, desenhadas em laranja na escuridão. Pisando cuidadosamente entre bordas de lençóis e pernas metidas em jeans, adiantou-se para o centro luminoso do terreno.

O calor e o brilho eram intensos, na clareira que rodeava a fogueira de quatro metros. Ficou ali um momento, de pé, olhando as chamas. De repente, o administrador e um líder de torcida surgiram correndo do outro lado da clareira.

— Isso, rapaz! Isto e que e um bom rapaz! — gritaram, e tomaram a caixa de suas mãos.

— Ei — disse o administrador. — Não está vazia.

— Livros... velhos cadernos.

— Ah! Magnifico — O administrador dirigiu-se a multidão em volta. — Atenção! Atenção! A queima dos livros! — Algumas pessoas olharam, interrompendo suas conversas. O administrador e o líder de torcida pegaram a caixa, balançando-a para diante e para trás, em direção as chamas. — Direto ao topo! — gritou o administrador.

— Não se preocupe. Nunca erramos. A queima de livros e uma especialidade!

Balançavam a caixa; um... dois,.. três! Ela voou reto para a pira em forma de cone, descreveu um arco e aterrizou com um espalhar de fagulhas bem no topo. Oscilou um momento, mas ficou lá. Houve alguns aplausos dos espectadores.

— Ei, aí vem Al com uma mala — gritou o líder. Disparou para o outro lado da fogueira, o administrador correndo atrás dele.

Ele viu a caixa empretecer-se, as línguas de chama lambendo seus lados. De repente, a base da fogueira se moveu, espirrando fagulhas para todos os lados. Um tição atingiu o seu pé Ele saltou para trás. Fagulhas refulgiram em toda a frente de sua calça. Nervosamente, bateu com as mãos, acobreadas a luz da fogueira.

Quando as últimas fagulhas se extinguiram, olhou para ver se a caixa ainda estava em cima. Estava. As chamas chegavam até a parte superior dela. Todo o seu conteúdo, pensou, já estaria provavelmente queimado.

Era o manual de laboratório de farmácia, os folhetos da Kingship Copper, os cartões da valise e algumas peças de roupa que Dorothy arrumara para sua breve lua-de-mel; um vestido de tafetá cinza, um par de sapatos de camurça preta, meias, um meio corpete, sutiãs e calcinhas, dois lenços, um par de chinelos de cetim rosa, um negligé rosa e uma camisola; sedas e rendas, delicadas, perfumadas, brancas...


14

 

 

Do Clarion-Ledger; de Blue River.

Sexta-feira. 28 de abril de 1950:

 

Alima de Stoddard

Morre em Queda

Tragédia na Prefeitura Municipal

Vítima filha do Magnata do Cobre

 

Dorothy Kingship, segundanista de 19 anos da Universidade de Stoddard, morreu hoje ao cair ou saltar do terraço do prédio de catorze andares da Prefeitura Municipal de Blue River. A bonita loira, que morava na cidade de Nova York, era filha de Leo Kingship, presidente da Kingship Copper, Inc.

As12h58, as pessoas que trabalhavam no prédio foram atraídas por um terrível grito e um impacto vindos da ampla área interna no meio do edifício. Correndo para suas janelas, viram a figura contorcida de uma jovem. O dr. Harvey C. Hess, de Woodbridge Circle, 57, que estava no saguão no momento, chegou ao local da cena segundos depois e declarou que a garota estava morta.

A polícia, chegando pouco depois, encontrou uma bolsa sobre a amurada de um metro que cerca a área interna. Na bolsa havia uma certidão de nascimento e uma carteira de registro da Universidade de Stoddard, que serviram para identificar a moça.

A polícia também descobriu uma ponta de cigarro no terraço, manchada com batom da cor que a srta. Kingship estava usando, o que levou a conclusão de que ela estivera no terraço durante vários minutos, antes da queda que encerrou sua vida.

Rex Cargill, um ascensorista, disse a polícia que levara a srta. Kingship ao 6° e ao 7° andares meia hora antes da tragédia.

Outro ascensorista, Andrew Vecci, acredita ter levado uma jovem vestida como a srta. Kingship ao 14° andar, pouco depois das 12h30, mas Não tem certeza do andar em que ela tomou o elevador.

Segundo o deão de estudantes de Stoddard, Clark D. Welch, a srta. Kingship estava indo satisfatoriamente em seus estudos. Residentes chocadas do dormitório onde ela morava Não puderam apresentar nenhum motivo pelo qual ela pudesse ter tirado a própria vida. Descreveram-na como calada e reservada. “Ninguém a conhecia muito bem”, disse uma das moças.

 

Do Clarion-Ledger, de Blue River.

Sábado, 29 de abril de 1950:

 

Morte da Estudante

Foi Suicídio

Irma recebe bilhete pelo correio

 

A morte de Dorothy Kingship, aluna de Stoddard, que saltou do terraço da Prefeitura Municipal ontem a tarde, foi suicídio, disse aos repórteres o chefe de polícia Eldon Chesser na noite passada. Um bilhete não assinado, mas escrito com uma letra definitivamente reconhecida como a da morta, foi recebido pelo correio, no fim da tarde de ontem, por sua irmã, Ellen Kingship, estudante em Caldwell, Wisconsin. Embora o texto exato do bilhete não tenha sido dado a público, o chefe Chesser caracterizou-o como “uma nítida manifestação de intenção suicida”. A correspondência foi expedida desta cidade, com carimbo do correio das 6h30 de ontem.

Ao receber o bilhete, Ellen Kingship tentou entrar em contato com a irmã pelo telefone. A chamada foi transferida para o quarto do deão de estudantes de Stoddards, Clark D. Welch, que informou a srta. Kingship sobre a morte da garota de 19 anos. A srta. Kingship partiu imediatamente para Blue River, chegando aqui na noite de ontem. O pai das moças, Leo Kingship, presidente da Kingship Copper, Inc., e esperado hoje a qualquer momento, pois seu avião não pode levantar voo de Chicago devido ao mau tempo.

 

Ultima Pessoa a Falar

Com a Suicida Descreve-a

Como Tensa e Nervosa

por Lá Verne Breen

 

“Ela ria muito, e sorriu o tempo todo em que esteve em meu quarto. E não parava de andar de um lado para outro. Achei, no momento, que ela estava muito feliz com alguma coisa, mas compreendo agora que tudo isso eram sintomas da terrível tensão nervosa em que estava. Seus risos eram risos tensos, Não eram felizes. Eu devia ter reconhecido imediatamente, sendo estudante de psicologia.” Assim Annabelle Koch, segundanista de Stoddard, descreve o comportamento de Dorothy Kingship duas horas antes de seu suicídio.

A srta. Koch, de Boston, é uma jovem pequena e encantadora. Ontem, estava confinada ao dormitório devido a um forte resfriado. “Dorothy bateu a porta por volta das onze e quinze”, diz. “Eu estava na cama. Ela entrou, e eu fiquei um tanto surpresa, porque quase não nos conhecíamos. Como eu disse, ela estava sorrindo muito e andando de um lado para outro. Usava um roupão de banho. Perguntou-me se lhe emprestaria o cinto de meu vestido verde. Devo dizer que ambas tínhamos vestidos verdes iguais. Eu comprei o meu em Boston, ela comprou o dela em Nova York, mas são exatamente iguais. Nós os usamos no jantar de sábado último, e foi realmente embaraçoso. De qualquer modo, ela me pediu que lhe emprestasse o cinto porque a fivela do dela estava quebrada. A princípio, hesitei, porque se trata de meu traje novo de primavera, mas ela parecia querê-lo tanto, que eu finalmente lhe disse em que gaveta estava e ela o apanhou. Agradeceu- me muito e saiu.”

A srta. Koch deteve-se e retirou os óculos. “Mas o estranho vem agora. Mais tarde, quando a policia veio revistar o seu quarto, em busca de algum bilhete, encontrou meu cinto na mesa dela! Reconheci-o pelo modo como o dourado tinha saído do dente da fivela. Eu ficara muito decepcionada com isso, porque era um cinto caro. A policia ficou com ele.

“Fiquei muito intrigada com os atos de Dorothy. Ela dissera querer o meu cinto, mas nem o usara. Estava usando o vestido verde quando... quando aconteceu. A policia verificou, e a fivela de seu cinto Não estava quebrada coisa nenhuma. Tudo parecia muito misterioso. Depois entendi que o cinto fora apenas um pretexto para falar comigo. Ao ver o vestido, provavelmente ela se lembrara de mim, e todas sabiam que eu estava de cama, com um resfriado. Assim, veio aqui e fingiu que precisava do cinto. Devia estar desesperada para falar com alguém. Se pelo menos eu tivesse reconhecido os sintomas no momento. Não posso deixar de pensar que, se conseguisse fazê-la falar de seus problemas, fossem eles quais fossem, talvez nada disso houvesse acontecido.”

Quando deixávamos o quarto de Annabelle Koch, ela acrescentou uma palavra final: “Mesmo quando a polícia devolver meu cinto”, disse, “sei que nunca mais poderei usar meu traje verde”.


15

 

 

ELE ACHOU AS ÚLTIMAS semanas do ano letivo decepcionan- temente chatas. Esperara que a sensação causada pela morte de Dorothy permanecesse no ar, como o fulgor de um foguete; em vez disso, a coisa se desvanecera quase imediatamente. Tinha previsto mais conversas no campus e artigos de jornal, que lhe dariam a luxuriante superioridade dos oniscientes; em vez disso... nada. Três dias apos a morte de Dorothy, a fofoca no campus desviou-se para uma dúzia de cigarros de maconha que haviam sido descobertos num dos dormitórios menores. Quanto aos jornais, um curto parágrafo anunciando a chegada de Leo Kingship a Blue River marcou a última vez em que o nome Kingship apareceu no Clarion-Ledgef. Nenhuma palavra sobre autópsia ou gravidez, embora, sem dúvida, quando uma moça solteira cometia suicídio sem declarar os motivos, essa fosse a primeira coisa que procurassem saber. Manter a coisa fora dos jornais devia ter custado bastante dinheiro a Kingship.

Ele disse a si mesmo que devia estar exultando. Se houvesse algum tipo de investigação, ele certamente seria procurado para interrogatório. Mas não houve perguntas, suspeitas, e por conseguinte tampouco investigação. Tudo se encaixara perfeitamente. Exceto o negócio do cinto. Isso o intrigava. Por que diabos Dorothy tomara o cinto de Koch, quando Não precisava dele? Talvez realmente quisesse conversar com alguém — sobre o casamento — e depois reconsiderasse. E ainda bem. Ou talvez a fivela de seu cinto estivesse realmente quebrada, e ela só conseguisse consertá-la depois de já ter pedido o cinto de Koch. Mas, de qualquer modo, era um incidente sem importância. A interpretação que Koch dera só fortalecera a versão do suicídio, acrescentada ao sucesso imaculado de seus planos. Ele devia estar nas nuvens, falando com estranhos, brindando a si próprio com champanha, em segredo, Em vez disso, havia aquela sensação chata, pesada, depressiva. Não podia compreender.

Sua depressão ficou pior quando retornou a Menasset, em princípios de junho. Ali estava ele, no mesmo ponto de onde partira no verão passado, quando a filha do fabricante de implementos agrícolas lhe falara do rapaz em sua terra, e no verão anterior, apos ter deixado a viúva. A morte de Dorothy fora uma medida de defesa; todo o seu planejamento não o levara nem um pouco a frente.

 

Tornou-se impaciente com a mãe. Sua correspondência da escola limitara-se a um cartão-postal por semana, e agora ela o perseguia querendo detalhes. Tinha retratos das moças com quem saia? — esperando que fossem as mais lindas, as mais disputadas. Pertencia a esse clube, aquele clube? — esperando que ele fosse presidente de um deles. Como ia em filosofia, em inglês, em espanhol? — esperando que ele fosse o primeiro em tudo. Um dia ele perdeu a paciência.

— Já era tempo de você compreender que eu não sou o rei do mundo! — gritou, saindo ruidosamente do quarto.

Pegou um emprego para o verão; em parte porque precisava de dinheiro, e em parte porque, ficando em casa o dia todo, sua mãe não o deixava tranquilo. Mas o emprego não conseguiu desviar sua mente para outras coisas; era um armarinho com móveis de desenho moderno, anguloso; os balcões com vitrinas eram emoldurados por lâminas de uns três centímetros de cobre envernizado.

 

Lá por meados de julho, porém, começou a livrar-se da depressão. Ainda tinha os recortes de jornal sobre a morte de Dorothy trancados numa pequena caixa-forte cinza que mantinha no armário de seu quarto. Começou a tirá-los de vez em quando, folheando-os, sorrindo da certeza oficiosa do chefe de polícia Eldon Chesser e da teoria meio crua de Annabelle Koch.

Encontrou seu cartão da biblioteca, renovou-o e começou a retirar livros regularmente: Estudos sobre o Assassinato, de Pearson, Assassinato por Dinheiro, de Bolitho, volumes da “Serie Assassinato Regional”. Leu sobre Landru, Smith, Pritchard, Crippen; homens que haviam fracassado onde ele conseguira êxito. Claro, só os fracassos tinham suas histórias escritas — e Deus sabia quantos bem-sucedidos havia. Contudo, era lisonjeiro pensar em quantos tinham fracassado.

Até agora, sempre pensara no que tinha acontecido como “a morte de Dorrie” Agora, começava a pensar no caso como “o assassinato de Dorrie”.

Às vezes, quando já estava na cama havia algum tempo e tinha lido varias narrativas num dos livros, a enorme audácia do que fizera o assoberbava. Levantava-se e olhava-se no espelho do armário. Assassinei e me sai bem, pensava. Certa vez, pensou em voz alta: “Assassinei e me sai bem”.

Por isso, que importava Não ser rico ainda? Diabos, tinha só vinte e quatro anos!


Segunda parte

 

 

ELLEN


1

 

 

Carta de Annabelle a Leo Kingship:

DORMITÓRIO FEMININO

UNIVERSIDADE DE STODDARD

BLUE RIVER, IOWA

 

5 de março de 1951

Caro sr. Kingship,

 

Suponho que o senhor esteja se perguntando quem sou eu, a menos que se lembre de meu nome nos jornais. Sou a moça que emprestou o cinto a sua filha Dorothy em abril passado. Fui a ultima pessoa a falar com ela. Eu não traria esse assunto de volta, pois sei que deve ser muito doloroso para o senhor, se não tivesse um bom motivo.

Como deve se lembrar, Dorothy e eu tínhamos vestidos verdes iguais. Ela veio ao meu quarto e pediu meu cinto emprestado. Emprestei-o, e depois a policia o encontrou (ou assim eu pensei) no quarto dela. Ficaram com ele por mais de um mês, até que decidiram devolver-me, e a essa altura já era muito tarde para a temporada e não usei o vestido verde outra vez no ano passado.

Agora a primavera se aproxima de novo, e a noite passada estive experimentando minhas roupas para a estação. Pus o vestido verde, e me caiu muito bem. Mas, quando pus o cinto, verifiquei, para minha surpresa, que era o de Dorothy. Sabe, a marca da fivela está com dois furos a mais para minha cintura. Dorothy era muito esbelta, mas eu sou mais. Na verdade, para ser franca com o senhor, eu sou muito magra. Eu sei que certamente não perdi peso algum, porque o vestido ainda me assenta perfeitamente, como disse acima. Assim, o cinto deve ser o de Dorothy. Quando a policia o mostrou pela primeira vez, pensei que fosse o meu porque o dourado da fivela estava descascado. Devia ter concluído que, como os dois vestidos tinham sido feitos pelo mesmo fabricante, o dourado teria saído em ambas as fivelas.

Assim agora parece que Dorothy não pode usar o cinto dela por algum motivo, mesmo não estando quebrado, e pediu o meu por isso. Na época, pensei que ela apenas dissera precisar do meu cinto porque desejava falar comigo.

Agora que sei que o cinto é dela, Não me sentiria bem usando-o. Não sou supersticiosa, mas afinal ele não me pertence, e pertencia a pobre Dorothy. Pensei em jogá-lo fora, mas também não me sentiria bem fazendo isso. Assim, estou enviando-o ao senhor, num pacote separado, e pode ficar com ele ou fazer o que quiser.

Ainda posso usar o vestido porque todas as moças aqui estão usando largos cintos de couro este ano.

Atenciosamente,

Annabelle Koch

 

Carta de Leo Kingship para Ellen Kingship:

 

8 de março de 1951

 

Minha querida Ellen,

 

Recebi sua última carta e sinto muito não ter respondido antes, mas as exigências de trabalho tem sido especialmente prementes nos últimos dias.

Como ontem era quarta-feira, Marion veio jantar aqui.

Não está com boa aparência. Mostrei a ela uma carta que recebi ontem, e ela sugeriu que a enviasse a você. Segue junto com esta. Leia-a agora, e depois continue com a minha.

Agora, que você leu a carta da srta. Koch, explicarei por que a enviei a você.

Marion diz que, desde a morte de Dorothy, você tem estado se censurando por sua imaginada grosseria com ela. A infeliz história que a srta. Koch contou sobre a desesperada necessidade de falar com alguém que Dorothy sentia fez você achar, segundo Marion, que esse alguém devia ser você, e teria sido você, se não a houvesse deixado por sua própria conta cedo demais. Você acredita, embora isso seja algo que Marion apenas deduziu de suas cartas, que, se tivesse havido alguma diferença em sua atitude com relação a Dorothy, ela talvez não escolhesse o caminho que escolheu.

Acredito no que Marion diz, pois explica a sua atitude de interpretar as coisas como gostaria que fossem — só posso qualificá-la assim —, desde abril passado, quando se recusou obstinadamente a acreditar que a morte de Dorothy tinha sido suicídio, apesar da incontestável evidencia do bilhete que você mesma recebeu. Você achava que, se ela se suicidara, a responsabilidade era de certo modo sua, e assim foram necessárias semanas para você poder aceitar a morte dela como o que realmente fora, e também o fardo de uma responsabilidade imaginária.

Essa carta da srta. Koch deixa claro que Dorothy foi procurá-la porque, devido a algum motivo, queria o cinto dela; não estava em desesperada necessidade de alguém com quem falar. Decidira fazer o que ia fazer, e não há absolutamente motivo algum para você acreditar que ela teria vindo vê-la primeiro, se as duas não tivessem tido aquela discussão no Natal anterior. (E não esqueça que era ela quem estava de mau humor e iniciou a discussão.) Quanto a frieza inicial da parte de Dorothy, lembre-se de que eu concordei com você em que ela devia ir para Stoddard, e não para Caldwell, onde apenas se tornaria mais dependente de você. Clara, se ela a houvesse acompanhado a Caldwell, a tragédia não teria ocorrido, mas “se” e a maior palavra do mundo. O castigo de Dorothy pode ter sido severo demais, mas ela o escolheu. Não sou eu o responsável; nem você; só a própria Dorothy.

O conhecimento de que a interpretação original dada pela srta. Koch sobre o comportamento de Dorothy foi errônea a livrara, creio, de quaisquer sentimentos de auto-recriminação que possam ter ficado.

 

Seu amado pai

 

P.S. Por favor, desculpe minha letra indecifrável. Achei esta carta pessoal demais para ditá-la a srta. Richardson.

 

Carta de Ellen Kingship a Bud Corliss:

 

12 de março de 1951

8h35

 

Caro Bud,

Aqui estou eu, sentada no vagão-restaurante com uma Coca (a esta hora — ugh!), uma caneta e um papel, tentando manter a mão com que escrevo firme contra o movimento do trem e procurando dar uma explicação “lúcida, se não brilhante” — como diria o professor Mulholland — do motivo desta minha viagem a Blue River.

Sinto muito sobre o jogo de basquetebol desta noite, mas estou certa de que Connie ou Jane terão todo o prazer de ir em meu lugar, e você pode pensar em mim nos intervalos.

Agora, antes de mais nada, esta viagem Não é impulsiva; pensei nela toda a noite passada. Era como se estivesse fugindo para o Cairo. Segundo, não abandonarei o trabalho, porque você tomara apontamentos completos de cada aula, e de qualquer modo duvido que fique ausente por mais de uma semana. E, além disso, desde quando reprovam ultimanistas por faltas? Terceiro, Não vou desperdiçar meu tempo, porque jamais saberei sem ter tentado, e enquanto não tentar não terei um momento de paz.

Agora que as objeções foram rebatidas, deixe-me explicar por que estou indo. Primeiro, farei um pequeno histórico.

Pela carta que recebi de meu pai sábado de manhã, você sabe que Dorothy planejava originalmente vir para Caldwell e eu me opus, para o próprio bem dela, ou pelo menos assim me convenci na época. Desde sua morte, venho pensando se não foi puro egoísmo de minha parte. Minha vida em casa tinha sido limitada tanto pela severidade de meu pai quanto pela dependência de Dorothy em relação a mim, embora eu não compreendesse isso naquele tempo. Assim, quando cheguei a Caldwell realmente me soltei. Durante meus primeiros três anos, era a garota irresponsável: festinhas a base de cervejas, encontros com os garotões etc. Você Não me reconheceria. Assim, como dizia, Não estou certa se impedi Dorothy de vir para encorajar sua indepen- dencia ou para evitar perder a minha, sendo Caldwell o tipo de lugar onde todos sabem o que todos fazem.

A análise de meu pai (provavelmente de segunda mão, via Marion) quanto a minha reação a morte de Dorothy e provavelmente correta. Eu não quis admitir que foi suicídio porque isso significava que eu era em parte responsável. Achava que tinha outras razoes para dúvidas, além das emocionais. O bilhete que ela me mandou, por exemplo. Era a letra dela — Não posso negar isso —, mas não soava como ela. Soava um tanto pomposo, e ela se dirigia a mim como “Querida”, quando antes era sempre “Cara Ellen” ou “Caríssima Ellen”. Falei disso a policia, mas disseram que naturalmente ela estava sob tensão quando escreveu o bilhete, e não se podia esperar que soasse como usualmente, o que tive de admitir que parecia lógico. O fato de que ela levava sua certidão de nascimento também me preocupou, mas explicaram isso inclusive. Um suicida muitas vezes não mede esforços para ser imediatamente identificado, disseram. O fato de que outras coisas que ela sempre levava em sua carteira (o cartão de registro de Stoddard etc.) teriam sido identificação suficiente não pareceu impressioná-los. E quando eu lhes disse que ela simplesmente não era do tipo suicida, nem se deram ao trabalho de responder-me. Liquidaram com todos os pontos que levantei.

E, assim, lá estava eu. Claro que finalmente tive de aceitar o fato de que Dorothy cometera suicídio — e que a culpa era em parte minha. A história de Annabelle Koch foi apenas o argumento decisivo, O motivo para o suicídio de Dorothy tornava-me ainda mais responsável, pois as garotas ajuizadas hoje não se matam por ficarem grávidas... Não, pensei, a menos que tenham sido educadas para depender de outra pessoa, e depois esse alguém não esteja mais ali.

Mas a gravidez de Dorothy significava que também outra pessoa a tinha abandonado: o homem. Se eu sabia alguma coisa a respeito de Dorothy, era que ela não encarava o sexo levianamente. Não era do tipo de encontros fugazes. O fato de estar grávida significava que havia um homem a quem ela amara e com o qual pretendera casar-se algum dia.

Ora, no inicio de dezembro, antes de sua morte, Dorothy me escreveu sobre um homem que conhecera na turma de inglês. Estava saindo com ele havia bastante tempo, e a coisa era para valer, Disse que me daria todos os detalhes nas férias de Natal. Mas tivemos uma discussão no Natal, e depois disso ela não me dizia nem as horas. E, quando retornamos a escola, nossas cartas eram quase cartas comerciais. Assim, jamais fiquei sabendo o nome dele. Só sabia a seu respeito o que ela mencionara naquela carta; que estivera em sua turma de inglês no outono, era bonito e mais ou menos parecido com Len Vernon — o marido de uma prima nossa —, o que significa que o homem de Dorothy era alto, loiro e de olhos azuis.

Falei a meu pai sobre esse homem, pedindo-lhe para descobrir quem era e puni-lo de algum modo. Ele recusou-se, dizendo que seria impossível provar ter sido ele quem pusera Dorothy em apuros; e inútil, mesmo que pudesse fazê-lo; era um caso encerrado, no que lhe dizia respeito.

Assim estavam as coisas até sábado, quando recebi a carta de meu pai com a de Annabelle dentro. O que nos traz a minha grande cena.

As cartas não tiveram o efeito que meu pai esperava — não a principio — porque, como eu disse, a historia de Annabelle Koch estava longe de ser a minha única causa de melancolia. Mas depois comecei a pensar; se o cinto de Dorothy se achava em perfeitas condições, por que ela mentira sobre ele e tomara emprestado o de Annabelle? Por que Dorothy Não pudera usar seu próprio cinto? Meu pai se contentou em deixar isso passar, dizendo que ela devia ter “algum motivo” mas eu queria saber que motivo era esse, porque havia três outras coisas aparentemente sem importância, que Dorothy fez no dia de sua morte, que me intrigavam então e ainda me intrigam agora. São as seguintes:

1. As dez e cinquenta daquela manha, ela comprou um caro par de luvas brancas numa loja defronte a seu dormitório. (O dono informou isso a policia, depois de ver o retrato dela nos jornais.) Primeiro ela pedira um par de meias, mas devido a corrida as lojas para o Baile da Primavera, programado para a noite seguinte, não tinham o seu numero. Ela então pediu as luvas, e comprou um par por um dólar e cinquenta. Estava usando-as quando morreu, e, no entanto, na cômoda de seu quarto havia um belo par de luvas brancas feitas a mão, perfeitamente imaculadas, que Marion lhe tinha dado no Natal anterior. Por que ela não usou essas?

 

2. Dorothy vestia-se com muito cuidado. Estava com o vestido verde quando morreu. Com ele, usava uma blusa de seda branca barata, cujo laço frouxo, fora de moda, não combinava de modo algum com as linhas do vestido. Contudo, em seu armário havia uma blusa de seda branca, também perfeitamente imaculada, que fora especialmente feita para usar com o traje. Por que ela não usou essa blusa?

 

3. Dorothy estava usando verde-escuro com acessórios marrons e brancos. Contudo, o lencinho em sua bolsa era turquesa-brilhante, inteiramente destoante do resto das coisas que usava. No quarto dela, havia pelo menos uma dúzia de lenços que teriam combinado perfeitamente com seu traje. Por que ela não levou um desses?

Na época de sua morte, eu mencionei esses fatos a policia. Eles os afastaram tão rapidamente quanto tinham afastado os outros que eu levantara. Ela estava alheada, disseram. Era ridículo esperar que se vestisse com o mesmo cuidado de sempre. Observei que o incidente das luvas era o contrário do descuido; ela se dera ao trabalho de comprá-las. Se havia preparação consciente por trás de um incidente, Não era irracional supor que os três tinham algum tipo de objetivo. A resposta deles foi: “Ninguém pode entender um suicida”.

A carta de Annabelle Koch acrescentou um quarto incidente, que segue a linha dos outros três, O cinto de Dorothy estava perfeito, mas ela usou o de Annabelle. Em cada caso, rejeitou uma peça adequada por uma menos adequada. Por que?

Debati esse problema em minha cabeça durante todo o sábado, e a noite também. Não me pergunte o que esperava provar. Eu senti que tinha de haver algum tipo de significado nisso tudo, e queria descobrir o máximo que pudesse sobre o estado mental de Dorothy na época. Era como cutucar um dente cariado com a língua, creio.

Eu teria de escrever resmas de papel para contar-lhe todas as etapas mentais pelas quais passei, buscando alguma relação entre as quatro peças rejeitadas. Preço, origem, e mil outros pensamentos, mas nada tinha sentido. O mesmo acontecia quando tentava perceber características comuns nas coisas erradas que ela usou. Cheguei mesmo a pegar folhas de papel e por em cima de cada uma: luvas, lenço, blusa, cinto, anotando tudo o que sabia sobre cada um, em busca de um sentido. Tamanho, idade, a quem pertencia, custo, cor, qualidade, local de compra — nenhuma das características significativas aparecia em todas as listas. Rasguei os papéis e fui para a cama. Ninguém pode entender um suicida.

A coisa me ocorreu cerca de meia hora depois, tão espantosamente que saltei de pé na cama, subitamente gelada. A blusa fora de moda, as luvas que comprara naquela manha, o cinto de Annabelle Koch, o lenço turquesa... Uma coisa velha, outra nova, outra emprestada e outra azul.

Podia — eu continuava a dizer a mim mesma — ser uma coincidência. Mas eu não acredito nisso.

Dorothy foi a Prefeitura Municipal não porque e o edifício mais alto de Blue River, mas porque e lá que a gente vai quando quer se casar. Ela usava uma coisa velha, uma coisa nova, uma coisa emprestada e uma coisa azul — pobre Dorothy romântica —, e levava sua certidão de nascimento para provar que tinha mais de dezoito anos. E não se faz um passeio desses sozinha. Ela só pode ter ido com uma pessoa — o homem que a engravidara, o homem com quem estava saindo havia muito tempo, o homem a quem amava — o bonito loiro de sua turma de inglês no outono. Ele conseguiu que ela subisse até o terraço. Estou quase certa de que foi assim...

O bilhete? Tudo o que ele dizia era: “Espero que me perdoe pela infelicidade que lhe causarei. Não há nada mais que eu possa fazer”. Onde há ai menção de suicídio? Ela estava se referindo ao casamento! Sabia que papai desaprovaria um passo apressado desses, porém Não havia mais nada que ela pudesse fazer, porque estava grávida. A polícia estava certa quando disse que o tom pomposo era resultado de tensão. Apenas, era a tensão de uma noiva em fuga, não de uma pessoa pensando em suicídio.

Uma coisa velha, uma coisa nova, foi o bastante para me por em marcha, porém jamais seria o bastante para fazer a polícia reclassificar um suicídio com bilhete como um assassinato não- solucionado, especialmente quando teria preconceitos sobre mim — a biruta que os enchera no ano anterior. Você sabe que é verdade. Assim, eu vou descobrir esse homem e ser uma Sherlock muito cautelosa. Tão logo descubra qualquer coisa que apoie minhas suspeitas, qualquer coisa suficientemente concreta para impressionar a policia, prometo ir direto a ela. Já vi muitos filmes em que a heroína acusa o assassino em sua mansão a prova de som e ele diz: “Sim, fui eu, mas você jamais viverá para contar a historia”. Assim, Não se preocupe comigo, e não fique impaciente nem escreva a meu pai, pois ele provavelmente explodiria. Talvez seja “louco e impulsivo” precipitar-me nisso dessa forma, mas como posso ficar sentada esperando, quando sei o que deve ser feito e não há ninguém mais para fazê-lo?

Cronometragem perfeita. Acabamos de entrar em Blue River agora. Posso ver a Prefeitura Municipal pela janela.

Terminarei esta carta mais tarde, hoje, quando puder lhe dizer onde estou hospedada e que progressos fiz, se fizer algum. Mesmo sendo Stoddard dez vezes maior que Caldwell, tenho uma bela ideia de como começar. Deseje-me sorte...


2

 

 

O DEÃO WELCH ERA GORDUCHO e tinha olhos azuis, redondos como botões, pregados no reluzente barro róseo de seu rosto. Usava sempre ternos de flanela, negros como os de um padre e com uma única fileira de botões, para deixar à mostra sua chave Phi Beta Kappa. O gabinete era escuro, com um ar de igreja, com painéis e cortinas escuros e, no centro, um largo tampo de carteira meticulosamente guarnecido.

Após soltar o botão do interfone, o deão ergueu-se e ficou de frente para a porta, o costumeiro sorriso de lábios úmidos substituído por uma expressão de solenidade, própria para receber uma moça cuja irmã tinha tirado a própria vida quando estava, nominalmente, sob seus cuidados. As pesadas notas do carrilhão, marcando o meio-dia, pairaram dentro do aposento, abafadas pela distancia e os cortinados. A porta abriu-se, e entrou Ellen Kingship.

Quando ela fechou a porta e se aproximou de sua mesa, o deão já a tinha medido e avaliado com a complacente segurança de uma pessoa acostumada a tratar com gente jovem há anos e anos. A moça era elegante; gostou disso. E muito bonita. Cabelos castanho-arruivados em franjas espessas, olhos castanhos, um sorriso cuja contensão mostrava o passado infeliz... Olhar decidido. Provavelmente não era brilhante, mas esforçada... atuação regular na escola. O casaco e o vestido eram nuanças de azul-escuro, um agradável contraste com a policromia comum dos estudantes. Parecia um pouco nervosa, mas assim não eram todos?

— Senhorita Kingship... — ele murmurou com um aceno, indicando a cadeira das visitas. Sentaram-se. O deão cruzou as mãos róseas. — Seu pai está bem, espero.

— Muito bem, obrigada, — Sua voz tinha um tom baixo e quente.

— Tive o prazer de conhecê-lo... no ano passado. — Houve um momento de silencio. — Se há alguma coisa que eu possa fazer pela senhorita...

Ela mexeu-se na cadeira de encosto reto.

— Nós... meu pai e eu... estamos tentando localizar um certo homem, estudante daqui. — As sobrancelhas do deão arquearam- se em polida curiosidade. — Ele emprestou a minha irmã uma grande soma em dinheiro poucas semanas antes da morte dela. Ela me escreveu sobre isso. Na semana passada, encontrei por acaso o talão de cheques de Dorothy, e isso me lembrou do incidente. Não há nada no talão que indique que ela tenha pago a dívida, e achamos que ele talvez tenha se sentido sem jeito para cobrá-la.

O deão assentiu com a cabeça.

— O único problema — disse Ellen — e que não me lembro do nome dele. Mas lembro-me de que Dorothy mencionou que ele estava em sua turma de inglês durante o semestre do outono e que era loiro. Achamos que talvez o senhor pudesse nos ajudar a localizá-lo. Era uma quantia bem grande em dinheiro. — Ela inspirou profundamente.

— Compreendo... — disse o deão. Juntou as mãos, como se comparasse seu tamanho. Os lábios sorriram para Ellen. — Pode ser —·acrescentou, com rigidez militar. Manteve a pose por um instante, depois comprimiu um dos botões do interfone. — Senhorita Platt — chamou, e soltou o botão.

Pôs a sua poltrona em alinhamento mais correto com a mesa, como se se preparasse para uma longa campanha.

A porta abriu-se, e uma mulher pálida, com aparência de eficiente, entrou no escritório. O deão acenou com a cabeça para ela e depois recostou-se em sua poltrona e olhou a parede além da cabeça de Ellen, mapeando sua estratégia. Vários momentos se passaram, antes de ele falar.

— Pegue a ficha de Kingship, Dorothy, no semestre de outono, 1949. Veja que turma de inglês ela frequentou e confira a lista de matrícula dessa turma. Traga-me as pastas de todos os estudantes homens da lista. — Olhou a secretária. — Entendeu?

— Sim, senhor.

Ele a fez repetir as instruções.

— Ótimo — disse. Ela saiu, — Rápido — ele disse a porta fechada. Voltou-se para Ellen e sorriu complacentemente. Ela retribuiu o sorriso.

Aos poucos, o ar de eficiência militar foi se dissolvendo, dando lugar a uma solicitude avoenga. O deão curvou-se para a frente, os dedos suavemente cruzados sobre a mesa.

— Certamente a senhorita não veio a Blue River só para isso — disse.

— Estou visitando amigos.

— Ahhh!

Ellen abriu a bolsa.

— Posso fumar?

— Por favor. — Ele empurrou um cinzeiro de cristal em sua direção. — Eu mesmo fumo —· admitiu, graciosamente. Ellen ofereceu-lhe um cigarro, mas ele recusou. Ela acendeu o dela com uma carteirinha na qual se via estampado, em letras de cobre, o nome “Ellen Kingship”.

O deão olhou pensativamente a carteirinha.

— Sua consciência em questões financeiras e admirável — disse, sorrindo. — Se pelo menos todos com quem tratamos tivessem tal consciência... — Examinou um abridor de cartas em bronze. — Estamos atualmente começando a construção de uma nova sala de esportes e um campo de atletismo. Várias pessoas que prometeram contribuições Não cumpriram sua palavra.

Ellen balançou a cabeça, numa atitude de solidariedade.

— Talvez seu pai estivesse interessado em dar uma contribuição — especulou o deão. — Um memorial para a sua irmã...

— Terei prazer em falar com ele.

— Falará? Eu sem dúvida gostaria disso. — Ele repôs a espátula no lugar. — Essas contribuições são dedutíveis do imposto de renda — acrescentou.

Poucos minutos depois, a secretária entrou com uma pilha de pastas pardas no braço. Colocou-as diante do deão.

— Inglês, 1951 — disse. — Seção seis. Dezessete estudantes homens.

— Ótimo — disse o deão. Quando a secretária saiu, ele aprumou sua poltrona e esfregou as mãos, mais uma vez o militar. Abriu a pasta de cima e folheou o seu conteúdo até chegar a uma ficha de matricula. Havia uma fotografia colada no canto. — Cabelos escuros — disse, e pôs a pasta a esquerda.

Depois de percorrer todos eles, havia duas pilhas desiguais.

— Doze com cabelos escuros e cinco loiros — disse o deão.

Ellen curvou-se para a frente.

— Dorothy certa vez me disse que ele era muito bonito...

O deão puxou a pilha de cinco pastas para o centro de seu borrador e abriu a primeira.

— George Speiser — disse, pensativamente. — Dúvido que alguém achasse Speiser bonito. — Ergueu a ficha de matricula e virou-a para Ellen. O rosto na fotografia não tinha queixo, e pertencia a um adolescente com olhos de verruma. Ela balançou a cabeça.

O segundo era um jovem emaciado com óculos de lentes grossas.

O terceiro era um homem de trinta e três anos, e tinha cabelos brancos, não loiros.

As mãos de Ellen estavam úmidas sobre a bolsa.

O deão abriu a quarta pasta.

— Gordon Gant — disse. — Soa-lhe como o nome do rapaz? — Virou a ficha de matricula para ela.

Era loiro e indiscutivelmente bonito; olhos claros, sob sobran- celhas grossas, um maxilar longo e forte e um sorriso arrogante.

— Creio que sim... — ela disse. — Sim, creio que ele...

— Ou seria Dwight Powell? — perguntou o deão, exibindo a quinta ficha de matricula na outra mão.

A quinta fotografia mostrava um jovem de queixo quadrado e aparência muito seria, com uma covinha no queixo e olhos claros.

— Qual dos nomes lhe soa familiar? — perguntou o deão.

Ellen olhou impotentemente de um retrato para outro.

Eram ambos loiros, ambos tinham olhos azuis, ambos bonitos.

 

Ela deixou o prédio da Administração e ficou parada no alto dos degraus de pedra, examinando o campus, imerso num cinza esbatido sob o céu de nuvens. Tinha a bolsa numa mão e uma tira de papel do caderno de notas do deão na outra.

Dois... Isso a atrasaria um pouco, era tudo. Devia ser simples descobrir qual dos dois era ele... e depois o observaria, talvez até se encontrasse com ele — embora não com o nome de Ellen King- ship. Atenta para uma olhada rápida, uma resposta contida. O assassinato deve deixar marcas. (Era assassinato. Tinha de ser assassinato.)

Estava se adiantando. Olhou o papel em sua mão:

 

GORDON C. GANT

Rua 26 Oeste, 1312.

DWIGHT POWELL

Rua 35 Oeste, 1520.


3

 

 

O ALMOÇO, COMIDO NUM pequeno restaurante defronte ao campus, foi apressado e mecânico, a mente disparando em rápidos pensamentos. Como começar? Fazer algumas perguntas discretas aos amigos deles? Mas por onde começar? Seguir cada homem, descobrir seus amigos, travar conhecimento com eles, achar os que o tinham conhecido no ano passado? Tempo, tempo, tempo... Se se demorasse muito em Blue River, Bud poderia telefonar para o velho Kingship. Os dedos tamborilavam impacientemente. Quem conheceria com certeza Gordon Gant e Dwight Powell? A família deles. Ou, se fossem de fora da cidade, uma senhoria ou colega de quarto. Seria impetuosidade ir direto ao centro das coisas, as pessoas mais chegadas a eles, porém assim não perderia tempo... Mordeu o lábio inferior, os dedos ainda tamborilando na mesa.

Após um minuto, depôs sua xicara de café pela metade, ergueu-se da mesa e encaminhou-se para a cabine telefônica. Hesitantemente, folheou as páginas da fina lista de Blue River. Não havia nenhum Gant, nenhum Powell na Rua 35. Isso significava que nenhum deles tinha telefone, o que parecia improvável, ou que moravam com famílias que não as suas.

Chamou Informações e obteve o telefone da Rua 26 Oeste, 1312; 2-2014:

— Alô? — A voz era de uma mulher; seca, de meia-idade.

— Alo. — Ellen engoliu em seco. — Gordon Gant está?

Uma pausa.

— Quem deseja falar?

— Uma amiga dele. Ele esta?

— Não — cortou sumariamente a voz.

— Quem esta falando?

— A senhoria dele.

— Quando a senhora acha que ele estará de volta?

— Só tarde da noite. — A voz da mulher era rápida, impa- ciente. Houve um clique, quando ela desligou.

Ellen olhou o fone mudo e colocou-o no gancho. Quando retornou a mesa, o café estava frio.

Ele podia ficar fora o dia todo. Ir lá... Uma única conversa com a senhoria podia estabelecer se Gant era o homem que saíra com Dorothy. Ou, por eliminação, provar que era Powell o tal. Falar com a senhoria... mas com que pretexto?

Ora, qualquer pretexto! Contanto que a mulher acreditasse, que mal podia causar a história mais disparatada? — mesmo que sua falsidade fosse inteiramente óbvia para Gant quando a senhoria lhe contasse. Ou ele não era o homem, caso em que não fazia mal deixá-lo intrigado com uma misteriosa visitante que se apresentava como amiga ou parente, ou era o homem, caso em que: A) Não matara Dorothy — e também aqui Não havia mal em deixá-lo imaginando quem seria a misteriosa visitante, ou B) Ele matara Dorothy — e a historia de uma garota a sua procura o deixaria inquieto. Contudo, sua inquietude Não interferiria nos pianos dela, pois, se posteriormente viesse a conhecê-lo, ele não teria motivos para associá-la com a moça que fizera perguntas a sua senhoria. A inquietação dele poderia até ajudá-la, deixando-o tenso, mais propenso a se trair. Ora, ele poderia até decidir Não correr riscos e deixar a cidade — e ela só precisava disso para convencer a policia de que havia uma base segura para suas suspeitas. Investigariam, encontrariam provas...

Ir direto ao centra das coisas. Impetuosidade? Quando se pensava bem, era realmente o mais lógico a fazer.

Ela olhou o relógio. Uma e cinco. A visita não devia ser feita logo após o telefonema, pois a senhoria podia relacionar as duas coisas e ficar desconfiada. Obrigando-se a permanecer sentada na cadeira, Ellen chamou a garçonete e pediu outro café.

 

Aos quinze minutos para as duas, ela entrou na quadra 1300 da Rua 26 Oeste. Era uma rua silenciosa, de aparência cansada, com pálidas casas de madeira, de dois andares, por trás de ramados esburacados, ainda duros do inverno. Velhos Fords e Chevrolets achavam-se estacionados junto ao meio-fio, alguns tentando continuar jovens com pinturas não profissionais, de cores vivas mas sem polimento. Ellen caminhava com a forçada lentidão de quem tenta parecer despreocupada; o som de seus saltos altos era o único que ecoava no ar parado.

A casa onde Gordon Gant morava, a 1312, era a terceira a partir da esquina, cor de mostarda, com arremates cor de chocolate. Após olhá-la um momento, Ellen subiu a pista de concreto rachado que dividia a grama morta e levava a entrada. Ali, leu a placa na caixa do Correio, pregada a uma das colunas: “Sra. Minna Arquette”. Adiantou-se até a porta. A campainha era antiga; uma lingueta de metal em forma de leque que se projetava do centra da porta. Preparando-se com uma profunda inspiração, ela torceu ligeiramente a lingueta. A sineta lá dentro tocou asperamente. Ellen esperou.

Pouco depois, passos ressoaram no interior da casa, e afinal a porta abriu-se. A mulher era alta e magra, os cabelos crespos, brancos, arrepanhados sobre o longo rosto equino. Olhos avermelhados; reumática. Um vestido de casa barato pendia de seus ombros angulosos. Olhou Ellen de cima a baixo.

— Sim? —· A seca voz do Meio-Oeste ao telefone.

— A senhora deve ser a senhora Arquette — declarou.

— Certo. — A mulher espremeu um súbito sorriso, exibindo dentes de uma perfeição artificial.

Ellen retribuiu-lhe o sorriso.

— Eu sou prima de Gordon.

A sra. Arquette arqueou as sobrancelhas.

— Prima de Gordon?

— Ele não disse que eu viria aqui hoje?

— Ora, não. Não falou nada sobre nenhuma prima. Nem uma palavra.

— Engraçado. Escrevi dizendo que passaria por aqui. Estou indo para Chicago, e vim de propósito por estes lados para poder vê-lo. Ele deve ter esquecido...

— Quando você escreveu?

Ellen hesitou.

— Anteontem. Sábado.

— Oh. — O sorriso reluziu de novo. — Gordon sai de casa de manhã cedo, e o primeiro correio não chega antes das dez. Sua carta deve estar no quarto dele neste minuto.

— Ohh...

— Ele não está no momento...

— Não posso entrar por alguns minutos? — Ellen interrom- peu rapidamente. — Tomei um bonde errado na rodoviária e tive de andar umas dez quadras.

A sra. Arquette recuou um passo.

— Claro. Entre.

— Muito obrigada. — Ellen cruzou o umbral, entrando num corredor de cheiro rançoso e, assim que a porta se fechou, pouco iluminado. Um lance de escada subia ao lado da parede a direita. A esquerda, um arco abria-se para uma sala de visitas que tinha o ar severo dos aposentos raramente usados.

— Senhora Arquette? — uma voz chamou do fundo da casa.

— Já vou! — ela respondeu. Voltou-se para Ellen. — Você se incomoda de sentar-se na cozinha?

— De modo algum — disse Ellen. Os dentes da sra. Arquette reluziram novamente, e a moça seguiu a alta figura pelo corredor afora, imaginando por que a mulher, tão agradável agora, tinha se mostrado tão irritável ao telefone.

A cozinha era pintada da mesma cor de mostarda do exterior da casa. Havia uma mesa de tampo branco aporcelanado no meio do aposento, com um conjunto de anagramas espalhado por cima. Um velho calvo, com óculos de lentes grossas, estava sentado a mesa, derramando o resto da garrafa de Dr. Pepper num copo florido que outrora contivera queijo.

— O senhor Fishback, vizinho do lado — disse a sra. Arquette. — Jogamos anagramas.

— Cinco centavos a palavra — acrescentou o velho, erguendo os óculos a fim de olhar Ellen.

— Esta e a senhorita... — a sra. Arquette ficou a espera.

— Gant — disse Ellen.

— Senhorita Gant, prima de Gordon.

— Como vai? — disse o sr. Fishback. — Gordon e um bom rapaz. — Deixou cair os óculos de volta ao lugar, os olhos crescendo por trás deles. — E sua vez — disse a sra. Arquette.

Ela sentou-se defronte ao sr. Fishback.

— Sente-se — disse a Ellen. — Quer um refrigerante?

— Não, obrigada — respondeu Ellen, sentando-se. Retirou o casaco e colocou-o no encosto da cadeira.

A sra. Arquette olhou para uma dúzia de letras viradas para cima, no circulo de cubos voltados para baixo.

— De onde você esta vindo?

— Califórnia.

— Eu não sabia que Gordon tinha parentes no Oeste.

— Não tem. Eu estava apenas fazendo visitas lá. Sou do Leste.

— Oh. — A sra. Arquette olhou o sr. Fishback. — Va. Eu desisto. Não posso fazer quase nada sem vogais.

— E minha vez? — ele perguntou. Ela assentiu com a cabeça. O sr. Fishback agarrou as letras viradas para cima. — Perdeu! Perdeu ! — cacarejou. — C-R-I-P-T-A. Cripta. Onde enterram as pessoas. — Juntou as letras e acrescentou a palavra as outras que já tinha a sua frente.

— Isso não é justo — protestou a sra. Arquette. — Você teve todo o tempo para pensar, enquanto eu estava na porta.

— Justo é justo — declarou o sr. Fishback. Virou mais duas letras e colocou-as no centro do circulo.

— Oh, mande — murmurou a sra. Arquette, recostando-se em sua cadeira.

— Como está indo Gordon?

— Oh, muito bem — disse a Sra. Arquette. — Atarefado como uma abelha, em parte com o programa.

— Programa?

— Quer dizer que Não sabe sobre o programa de Gordon?

— Bem, Não tenho notícias dele há bastante tempo...

— Bem, ele está nisso há uns três meses! — A sra. Arquette recompôs-se, com ar importante. — Ele toca discos e fala. É disc- jockey. O Lançador de Disco e o nome do programa. Toda noite, menos nos domingos, na KBRI.

— Que maravilha! — exclamou Ellen.

— Ora, e uma verdadeira celebridade — continuou a senho- ria, virando uma letra, enquanto o sr. Fishback assentia com a cabeça. — Publicaram uma entrevista com ele no jornal alguns domingos atrás. O repórter veio aqui e tudo. E garotas que ele nem conhece telefonam para ele a qualquer hora. Garotas de Stoddard. Pegam o número dele na Lista de Estudantes e chamam apenas para ouvir sua voz ao telefone. Ele não quer nada com elas, e por isso sou eu quem tem de responder. Só isso basta para deixar uma pessoa louca. — A sra. Arquette franziu o cenho sobre os anagramas. — Va, senhor Fishback.

Ellen correu o dedo pela borda da mesa.

— Gordon ainda esta saindo com aquela garota sobre a qual me escreveu no ano passado? — perguntou.

— Qual?

— Uma loira, pequena, bonita. Gordon falou dela em algumas cartas no ano passado... outubro, novembro, até abril. Achei que ele estava realmente interessado nela. Mas parou de escrever sobre a garota em abril.

— Bem, vou lhe dizer uma coisa — disse a sra. Arquette. — Nunca vejo as garotas de Gordon. Antes de ter o programa, ele costumava sair três ou quatro vezes por semana, mas nunca trouxe nenhuma das moças aqui. Não que eu esperasse que trouxesse. Sou apenas a senhoria dele. Nunca me fala sobre elas. Outros rapazes que tive aqui antes costumavam me falar de suas garotas, mas os estudantes das faculdades eram mais jovens então. Hoje eles são, em sua maioria, veteranos da guerra, e creio que, quando ficam um pouco mais velhos, Não são de conversar muito, Pelo menos Gordon Não é. Não que eu queira bisbilhotar, mas me interesso pelas pessoas. — Ela virou uma letra. — Qual era o nome dessa garota? Se me disser o nome, eu provavelmente poderei dizer se ele ainda está saindo com ela, porque as vezes, quando usa o telefone ali ao lado da escada, eu estou na sala de visitas e não posso deixar de ouvir parte da conversa.

— Não me lembro do nome da moça — disse Ellen —, mas ele estava saindo com ela no ano passado. Assim, se a senhora se lembrar do nome de algumas com quem ele falava, talvez eu consiga reconhecer.

— Vejamos — considerou a sra. Arquette, arranjando meca- nicamente os anagramas, em busca de uma palavra. — Havia uma Louella. Lembro-me dessa porque eu tinha uma cunhada com esse nome. E também havia uma... — seus olhos aguados fecharam-se, com a concentração — Bárbara. Não, essa foi no ano anterior. Vejamos, Louella... — Balançou a cabeça. — Havia outras, mas macacos me mordam se consigo me lembrar delas.

O jogo de anagramas prosseguiu em silencio durante um minuto. Finalmente, Ellen disse:

— Acho que o nome da garota era Dorothy.

A sra. Arquette fez um sinal com a cabeça para o sr. Fishback prosseguir.

— Dorothy... — Seus olhos estreitaram-se. — Não, se o nome e Dorothy, Não creio que ele ainda esteja saindo com ela. Não o ouvi falando com nenhuma Dorothy ultimamente, tenho certeza. Claro que ele se esconde nos cantos, algumas vezes, para fazer um chamado realmente pessoal ou um interurbano.

— Mas ele saía com Dorothy no ano passado?

A sra. Arquette olhou o teto.

— Não sei... Não me lembro de nenhuma Dorothy, mas tampouco me lembro de nenhuma outra, se você entende o que quero dizer.

— Dottie? — tentou Ellen.

A sra. Arquette pensou por um momento e depois deu de ombros negligentemente.

— Va — disse o sr. Fishback, petulantemente.

Os cubos de madeira estalaram abafadamente quando a sra. Arquette os manobrou.

— Acho — disse Ellen — que ele deve ter rompido com essa Dorothy em abril, quando parou de escrever sobre ela. Ele devia estar de mau humor por volta de abril. Preocupado, nervoso... — Olhou para a sra. Arquette, inquisitivamente.

— Então não é o Gordon — ela disse. — Ele teve uma verda- deira febre primaveril o ano passado. Andava por ai cantarolando. Eu brincava com ele por isso. — O sr. Fishback se mexeu impacientemente. — Oh, vá — disse a sra. Arquette.

Emborcando seu Dr. Pepper, o sr. Fishback bateu nos anagramas.

— Você perdeu outra! — exclamou, agarrando as letras. — F-A-N-A-L. Fanal!

— De que e que você esta falando: fanal? Não existe essa palavra! — A sra. Arquette voltou-se para Ellen. — Você já ouviu falar de algum “fanal”?

— Você devia saber que não deve discutir comigo! — estrilou o sr. Fishback. — Eu não sei o que significa, mas sei que é uma palavra. Já a vi! — Voltou-se para Ellen. — Eu leio três livros por semana, regularmente, como um relógio.

— Fanal — disse a sra. Arquette com desprezo.

— Bem, procure no dicionário!

— Aquele pequeno, de bolso, sem nada dentro? Toda vez que procuro uma de suas palavras e Não acho, você culpa o dicionário!

Ellen olhava as duas figuras fuzilando-se com os olhos.

— Gordon deve ter um dicionário — disse, levantando-se. — Terei todo o prazer de ir apanhá-lo, se a senhora me disser qual e o quarto.

— Certo — disse a Sra. Arquette decididamente. — Ele tem um. — Levantou-se. — Sente-se, querida. Eu sei exatamente onde esta.

— Posso ir junto então? Gostaria de ver o quarto de Gordon. Ele me disse que e um belo lugar e...

— Venha — disse a sra. Arquette, saindo da cozinha e pisando forte. Ellen apressou-se a segui-la.

— Você vai ver. — A voz do sr. Fishback perseguiu-as. — Eu conheço mais palavras do que você algum dia conhecerá, mesmo que viva cem anos!

Elas subiram apressadas a escada de madeira escura, a sra. Arquette na frente, murmurando indignadamente. Ellen entrou atrás dela por uma porta junto ao alto da escada.

O quarto era claro, com um papel de parede florido. Havia uma cama coberta de verde, um aparador, uma espreguiçadeira, uma mesa... A sra. Arquette, tendo agarrado o livro em cima do aparador, foi para junto da janela folhear as páginas. Ellen aproximou-se do aparador e ficou olhando os títulos dos livros arrumados de pé em cima dele. Talvez houvesse algum diário. Qualquer tipo de caderno de anotações. Contos Premiados de 1950, Um Esboço de História, Manual de Pronuncia do Locutor de Rádio, Touros Bravos, Uma História do Jazz Americano, O Caminho de Swann, Elementos de Psicologia, Três Romances Policiais Famosos, e Um Tesouro do Humor Americano.

— Oh, diabos — disse a sra. Arquette. Tinha o indicador espetado no dicionário aberto. — “Fanal” — leu. — “Farol, facho”. — Fechou o livro violentamente. — Onde ele encontra palavras como essa?

Ellen apoiou-se na mesa, onde três envelopes estavam dispostos em forma de leque. A sra. Arquette, pondo o dicionário em cima do aparador, olhou-a.

— Esse sem o remetente deve ser o seu, creio.

— Sim, e — disse Ellen. As duas cartas com o remetente eram da revista Newsweek e da National Broadcasting Company.

A sra. Arquette estava na porta.

— Vamos?

— Vamos — disse Ellen.

Desceram a escada e encaminharam-se lentamente para a cozinha, onde o sr. Fishback esperava. Assim que observou o desânimo da sra. Arquette, ele explodiu numa risadinha cacarejada. Ela lançou-lhe um olhar irado.

— Significa farol — disse, desabando na cadeira. Ele sorriu mais ainda. — Oh, cale a boca e continue com o jogo — resmungou a sra. Arquette. O sr. Fishback virou duas letras.

Ellen pegou sua bolsa da cadeira forrada onde se sentara.

— Acho que vou indo — disse, desanimadamente.

— Indo? — A sra. Arquette ergueu o olhar, arqueando as finas sobrancelhas.

Ellen balançou a cabeça.

— Ora, por Deus, Não vai esperar por Gordon? — Ellen sentiu um calafrio. A sra. Arquette olhou o relógio sobre a geladeira junto a porta. — São duas e dez. Ele deve chegar a qualquer minuto.

Ela nem podia falar. A imagem do rosto da sra. Arquette, voltado para cima, oscilou em seu mal-estar.

— A senhora... a senhora me disse que ele ficaria fora o dia todo — conseguiu forçar-se a dizer, finalmente.

A sra. Arquette pareceu ofendida.

— Ora, eu nunca lhe disse tal coisa! Por que diabos você está sentada ai, se não está esperando por ele?

— O telefone...

O queixo da senhoria caiu.

— Era você? Por volta da uma hora?

Ellen assentiu, desvalidamente.

— Bem, por que não me disse que era você? Pensei que era uma dessas garotas idiotas. Sempre que alguém chama e não dá o nome, digo que ele ficará fora o dia todo. Mesmo que ele esteja aqui. Foi ele quem me mandou fazer isso. Ele... — A expressão de avidez abandonou o rosto da sra. Arquette. Os olhos opacos, a boca de lábios finos, tornaram-se sombrios, desconfiados. — Se você achava que ele ia ficar fora o dia todo, então por que veio aqui?

— Eu... eu queria conhecer a senhora. Gordon escreveu tanto...

— Por que fez aquelas perguntas todas? — A sra. Arquette levantou-se.

Ellen estendeu a mão para o casaco. De repente, a senhoria estava segurando seu braço, os longos dedos ossudos apertando-o dolorosamente.

— Solte-me... Por favor...

— Por que estava bisbilhotando o quarto dele? — A cara de cavalo aproximou-se da de Ellen, os olhos saltados de raiva, a pele áspera vermelha. — O que você queria aqui? Pegou alguma coisa quando eu estava de costas?

Atrás de Ellen, a cadeira do sr. Fishback foi arrastada, e sua voz soou assustadamente.

— Por que ela quereria roubar alguma coisa de seu próprio primo?

— Quem disse que ela é prima dele? — cortou a sra. Arquette.

Ellen esforçava-se inutilmente para livrar-se de suas garras.

— Por favor, a senhora esta me machucando...

Os olhos claros estreitaram-se.

— E não creio que ela seja uma dessas malditas garotas em busca de uma lembrança ou algo assim. Por que estava fazendo todas aquelas perguntas?

— Eu sou prima dele! Sou! — Ellen tentava firmar a voz. — Quero ir-me embora. A senhora não pode me manter aqui. Eu o verei depois.

— Você vai vê-lo agora — disse a sra. Arquette. — Vai ficar aqui até Gordon chegar. — Olhou por cima dos ombros de Ellen. — Senhor Fishback, cuide da porta de trás. — Esperou, os olhos seguindo o lento caminhar do velho, e depois soltou Ellen. Movendo-se rapidamente para a saída da frente, bloqueou-a, os braços cruzados sobre o peito. — Vamos descobrir o que está acontecendo.

Ellen esfregava os braços, onde os dedos da sra. Arquette se haviam cravado. Olhou o homem e a mulher bloqueando as portas de ambas as extremidades da cozinha; o sr. Fishback, com suas grossas lentes, piscava nervosamente; a sra. Arquette postava-se parada, monolítica.

— A senhora não pode fazer isso. — Pegou a bolsa no chão, o casaco na cadeira e o pôs sobre o braço. — Deixe-me sair — disse, firmemente.

Nenhum dos dois se moveu.

 

Ouviram a porta da frente bater e passos na escada.

— Gordon — gritou a sra. Arquette. — Gordon!

Os passos detiveram-se.

— O que e, senhora Arquette? — A senhoria voltou-se e correu pelo corredor.

Ellen olhou para o sr. Fishback.

— Por favor — implorou-lhe. — Deixe-me sair. Eu não quis fazer mal a ninguém.

Ele balançou a cabeça lentamente.

Ela permaneceu imóvel, ouvindo a excitada aspereza da voz da sra. Arquette, distante, as suas costas. Passos aproximavam- se, e a voz tornava-se mais alta.

— Ela ficou o tempo todo fazendo perguntas sobre as garotas com quem você saiu no ano passado, e até me tapeou para levá-la ao seu quarto. Estava olhando seus livros e as cartas em sua mesa.

A voz da sra. Arquette finalmente inundou a cozinha.

— Lá esta ela.

Ellen virou-se. A sra. Arquette estava a esquerda da mesa, o braço erguido, apontando-a. Gant, no umbral da porta, encostado na ombreira, era alto e esbelto, de casaco curto azul-claro e livros na mão. Olhou-a um momento, depois seus lábios se curvaram num sorriso sobre a comprida mandíbula, e uma sobrancelha arqueou-se levemente.

Afastou-se da ombreira e entrou no aposento, pondo os livros sobre a geladeira, sem tirar os olhos dela.

— Ora, prima Hester — disse, maravilhado, em voz baixa, os olhos baixando de novo em demorada apreciação. — Você saiu magnificamente da adolescência...

Contornou a mesa, pôs as mãos nos ombros de Ellen e beijou-a carinhosamente na face.


4

 

 

— VOCÊ... VOCÊ QUER DIZER que ela e realmente sua prima? — A sra. Arquette estava de queixo caído.

— Arquette, meu amor — disse Gant, passando para a esquerda de Ellen —, o nosso era um círculo comunal. — Bateu no ombro de Ellen. — Não era, Hester?

Ela olhou-o idiotamente, o rosto ruborizado, a boca mole. Seu olhar passou para a sra. Arquette à esquerda da mesa, para o corredor além dela, para o casaco e a bolsa em suas mãos... Disparou para a direita, contornou rapidamente a mesa, cruzou a porta e saiu pelo corredor, ouvindo a exclamação de Arquette:

— Fugindo!

E o grito de Gant:

— Ela pertence ao lado psicótico da família!

Abrindo com esforço a pesada porta da rua, ela deixou a casa quase correndo, sobre a pista de concreto. Na calçada dobrou a direita e reduziu a marcha para rápidas passadas, lutando com o casaco, que se embaraçava em suas pernas. Oh, Deus, tudo atrapalhado! Cerrou os dentes, sentindo a quente pressão das lágrimas por trás dos olhos. Gant alcançou-a e emparelhou-se com ela. Ellen lançou um olhar feroz ao seu rosto sorridente e depois olhou firmemente em frente, todo o seu ser comprimido com uma raiva irracional de si mesma e dele.

— Não há uma senha? — ele perguntou. — Você não deve por uma mensagem em minha mão e murmurar: “Conforto sulista”, ou algo assim? Ou e aquele caso em que o brutamontes de terno escuro esteve seguindo-a o dia todo e você procurou abrigo na casa mais próxima? Eu gosto das duas igualmente, assim, seja qual for...

Ela seguia adiante, em ácido silencio.

— Você já leu as historias de santo? O velho Simon Templar estava sempre esbarrando em mulheres bonitas com estranhas formas de comportamento. Uma vez uma delas nadou para o iate dele no meio da noite. Disse que era uma nadadora do canal que se perdera, creio. No fim, era uma investigadora de uma companhia de seguros. — Ele pegou o braço dela. — Prima Hester, eu tenho a mais insaciável curiosidade...

Ela libertou o braço com um safanão. Tinham chegado a uma avenida transversal, do outro lado da qual passava um taxi. Ela acenou e o veiculo começou a fazer uma curva em U.

— Foi uma brincadeira — ela disse, tensamente. — Sinto muito. Fiz isso para ganhar uma aposta.

— Isso foi o que a garota disse ao santo no iate. — O rosto dele tornou-se sério. — Chega de brincadeiras. Por que todas aquelas perguntas sobre meu sórdido passado?

O taxi parou ao lado. Ela tentou abrir a porta, mas ele pôs a mão na porta do veiculo.

— Escute aqui, prima, Não se engane com meu dialogo de disc- jockey. Eu não estou brincando...

— Por favor — ela gemeu, exausta, forçando a maçaneta da porta. O motorista pôs o rosto na janela da frente, olhando-os e estudando a situação.

— Ei, senhor... — disse. Sua voz era um rumor ameaçador.

Com um suspiro, Gant soltou a porta. Ellen abriu-a, entrou e bateu-a. Afundou no macio couro desgastado. Do lado de fora, Gant debruçava-se, as mãos na porta, fitando-a através do vidro, como se tentando memorizar os detalhes de seu rosto. Ela olhou para o outro lado.

Esperou até o táxi dobrar a esquina para dar o endereço ao motorista.

Levou dez minutos para chegar a New Washington House, onde se registrara antes de visitar o deão — dez minutos mordendo os lábios, fumando em rápidas tragadas e acusando-se iradamente, a liberação da tensão que se acumulara antes da chegada de Gant e que permanecera suspensa, sem desfazer-se, com o seu monótono gracejo asinino. Prima Hester! Oh, ela realmente embrulhara tudo! Apostara metade de suas fichas, e não obtivera nada em troca. Ainda no escuro, sem saber se ele era ou não o homem, tornara completamente impossível quaisquer outras perguntas a ele ou a sua senhoria. Se a investigação de Powell demonstrasse que ele não era o homem, provando que era Gant, ela podia muito bem desistir e retornar a Caldwell, porque se — sempre o segundo, o grande “se” — Gant matara Dorothy, estaria em guarda, conhecendo-a e sabendo o que ela queria, pelas perguntas que fizera a sra. Arquette. Um assassino em guarda, pronto talvez para matar novamente. Ela não se arriscaria a se meter nisso... uma vez que ele a conhecia. Melhor viver na dúvida do que morrer na certeza. Sua única outra escolha seria ir a policia, e ainda não teria nada para oferecer além de “uma coisa nova, uma coisa velha”, o que significava que eles assentiriam solenemente, e a poriam delicadamente para fora da delegacia.

Oh, fizera uma bela entrada!

 

O quarto do hotel tinha paredes beges e deselegantes móveis marrons, e o mesmo ar limpo, impessoal e transitório da minia- tura de sabonete envolta em papel no banheiro ao lado. O único sinal de ocupação era a valise com etiquetas de Caldwell na prateleira ao pé da cama.

Após pendurar o casaco no armário, Ellen sentou-se à escriva- ninha ao lado da janela. Pegou a caneta e a carta para Bud em sua bolsa. Olhando o envelope endereçado mas ainda aberto, ficou indecisa sobre se devia ou não mencionar, além de um esboço da entrevista com o deão Welch, a história do fiasco com Gant. Não... se Dwight Powell se revelasse o homem a quem procurava, o negocio com Gant não significaria nada. Tinha de ser Powell. Gant não, dizia a si mesma... Não com aquela conversa descontraída. Mas que dissera ele? “Não se engane com meu diálogo de disc-jockey. Eu não estou brincando...”

Bateram a porta. Ela pôs-se de pé num salto.

— Quem é?

— Toalhas — respondeu uma voz feminina.

Ellen atravessou o quarto e pegou na maçaneta da porta.

— Eu... não estou vestida. Pode deixá-las aí, por favor?

— Pois não — disse a voz.

Ela permaneceu parada por dois minutos, ouvindo passos ocasionais e o som abafado do elevador no saguão, a maçaneta ficando úmida em sua mão. Finalmente, sorriu do próprio nervosismo, vendo-se a olhar debaixo da cama, como uma solteirona antes de ir dormir. Abriu a porta.

Gant apoiava-se contra o batente, a mão alisando a cabeça loira.

— Old, prima Hester — disse. — Creio que falei de minha insaciável curiosidade. — Ela tentou fechar a porta, mas o pé dele estava no caminho, irremovível. Ele sorriu. — Muito engraçado. Siga aquele táxi! — Sua mão descreveu um curso em ziguezague. — Sombras da Warner Brothers. O motorista se divertiu tanto, que quase recusou a gorjeta. Eu disse a ele que você estava fugindo de minha cama e mesa.

— Va embora! — ela murmurou, ferozmente. — Ou vou chamar o gerente!

— Escute, Hester — o sorriso desapareceu —, acho que poderia mandar prendê-la por entrada ilegal, ou falsa identidade como minha prima, ou algo assim. Portanto, por que não me convida para uma conversinha? Se esta preocupada com o que os empregados vão pensar, pode deixar a porta aberta. — Empurrou suavemente a porta, obrigando Ellen a recuar um passo. — Isso é que é uma boa garota — disse, passando pela abertura. Olhou seu vestido com exagerada decepção. — “Não estou vestida”, ela disse. Eu devia imaginar que você é uma mentirosa contumaz. — Dirigiu-se a cama e sentou-se na borda. — Ora, por piedade, prima, pare de tremer. Não vou devorá-la.

— O que... que quer você?

— Uma explicação.

Ellen abriu inteiramente a porta e ficou parada na entrada, como se aquele fosse o quarto dele, e ela a visitante.

— É... muito simples. Eu ouço sempre o seu programa...

Ele olhou a valise.

— Em Wisconsin?

— Fica a apenas cento e cinquenta quilômetros. Pegamos a KBRI lá. É verdade!

— Prossiga.

— Eu sempre ouço você, e gosto muito de seu programa. Estou em Blue River, e por isso pensei em tentar conhecê-lo.

— E, quando me conheceu, fugiu.

— Bem, que faria você? Não planejei a coisa daquele jeito. Me fiz passar por sua prima porque eu... eu queria informações a seu respeito... de que tipo de garotas você gosta...

Esfregando o queixo, com um ar de dúvida, ele levantou-se.

— Como conseguiu o número de meu telefone?

— Na Lista dos Estudantes.

Ele andou até o pé da cama e tocou a valise.

— Se você estuda em Caldwell, como conseguiu uma lista de Stoddard?

— De uma das garotas daqui.

— Qual?

— Annabelle Koch. É uma amiga minha.

— Annabelle... — Ele reconhecia o nome. Olhou enviesado para Ellen. — Ei, isso é realmente verdade?

— É. — Ela olhou as próprias mãos. — Sei que foi uma maluquice, mas gosto tanto de seu programa... — Quando tornou a erguer o olhar, ele estava ao lado da janela.

— Não há coisa mais estúpida, idiota... — E, de repente, olhava o corredor além dela, um ar espantado no rosto. Ela voltou-se. Não havia nada de extraordinário a vista. Tornou a olhá-lo, e ele se voltara para a janela, de costas para ela. — Bem, Hester — disse —, foi uma explicação lisonjeira. — Virou-se, tirando a mão de dentro do paletó. — E uma explicação de que me lembrarei durante muito tempo. — Olhou a porta do banheiro, meio aberta. — Você se incomoda se eu usar seu banheiro? — perguntou. E, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele já tinha se curvado e entrado no banheiro, fechando a porta. Ela ouviu o clique da chave na fechadura.

Ellen ficou olhando alheiamente a porta, imaginando se ele acreditara em sua história. Sentia os joelhos cedendo. Inspirando profundamente, para firmar-se, atravessou o quarto até a escrivaninha e pegou um cigarro em sua bolsa. Quebrou dois palitos de fósforo para acendê-lo, e depois ficou olhando para fora da janela, rolando nervosamente a caneta para a frente e para trás sobre o tampo da escrivaninha, vazio a não ser pela bolsa. Vazio... a carta... A carta a Bud! Gant estivera perto da mesa, e enganara-a fazendo-a virar-se para o corredor. Depois, voltara-se para a janela e tornara a voltar-se tirando a mão de dentro do paletó!

Freneticamente, ela começou a esmurrar a porta do banheiro.

— Dê-me essa carta! Dê-me!

Vários segundos passaram-se, até que a voz profunda de Gant disse:

— Minha curiosidade e especialmente insaciável quando se trata de falsas primas e histórias mal contadas.

Ela estava de pé na entrada, uma mão no batente e o casaco na outra, olhando a porta ainda fechada do banheiro e dando um sorriso amarelo aos passantes ocasionais. Um criado perguntou se desejava alguma coisa. Ela balançou a cabeça, negativamente.

Gant finalmente saiu. Estava enfiando cuidadosamente a carta no envelope. Colocou-a na escrivaninha.

— Bem — disse. Examinou a atitude de quem está pronta para fugir de Ellen. — Bem — sorriu um tanto desconfortavelmente —, como dizia minha avó, quando o homem ao telefone pediu para falar com Lana Tumer: “Rapaz, deram-lhe o número errado”.

Ellen Não se moveu.

— Escute — ele disse. — Nem cheguei a conhecê-la. Cumprimentei-a uma ou duas vezes. Havia outros caras loiros na classe. Não sabia nem o nome dela, até sair o retrato nos jornais. O professor anotava a presença dos alunos pelos números das cadeiras, nunca fazia chamada nominalmente. Eu nem sabia o nome dela.

Ellen não se moveu.

— Ora, por Deus, se você quer bater um recorde de velocidade esse casaco vai atrapalhá-la.

Ela não se moveu.

Em duas passadas rápidas, ele estava ao lado da mesa, agarrando uma Bíblia. Ergueu a mão direita.

— Juro sobre esta Bíblia que nunca sai com sua irmã, nem disse mais que umas duas palavras a ela... ou fiz qualquer outra coisa... — Depôs a Bíblia. — Bem?

— Se Dorothy foi assassinada — disse Ellen —, o homem que a matou juraria sobre uma dúzia de Bíblias. E, se ela achava que ele a amava, então também era um bom ator.

Gant ergueu o olhar para os céus e estendeu os pulsos para as algemas.

— Muito bem — disse. — Eu vou sem criar caso.

— É uma satisfação ver que você acha isso motivo de piada.

Ele baixou as mãos.

— Sinto muito — disse, sinceramente. — Mas como diabos devo convencê-la de que...

— Não pode — disse Ellen. — Mas pode ir.

— Havia outros caras loiros na classe — ele insistiu. — Havia um com o qual ela sempre costumava chegar. Um com um queixo de Cary Grant, alto...

— Dwight Powell?

— Exato! — Ele parou logo. — Ele está em sua lista?

Ela hesitou um momento, depois assentiu.

— É ele!

Ellen olhou-o desconfiadamente. Ele ergueu as mãos.

— Muito bem. Eu desisto. Você vai ver, foi Powell. — Adiantou- se para a porta; Ellen recuou para o corredor. — Eu simplesmente gostaria de ir embora, como você sugeriu — disse Gant, altivamente.

Saiu para o corredor.

— A menos que você queira que eu continue chamando-a de Hester, e melhor me dizer qual e seu verdadeiro nome.

— Ellen.

Gant parecia relutar em ir embora.

— Que vai fazer agora?

Após um momento, ela disse:

— Não sei.

— Se você invadir a casa de Powell, não cometa o fiasco que cometeu esta tarde. Talvez ele não seja de brincadeiras.

Ellen balançou a cabeça.

Gant olhou-a de cima a baixo.

— Uma garota numa missão — disse, divertido. — Nunca pensei que chegasse o dia em que eu veria uma coisa dessas. — Começou a afastar-se, mas voltou. — Você Não estaria procurando um Watson, estaria?

— Não, obrigada — ela disse, na entrada. — Sinto muito, mas...

Ele deu de ombros e sorriu.

— Eu calculava que minhas credenciais não estariam em ordem. Bem, boa sorte... — Voltou-se e afastou-se pelo corredor.

Ellen recuou para o seu quarto e fechou lentamente a porta.

 

... São sete e trinta agora, Bud, e estou confortavelmente instalada num ótimo quarto da New Washington House — acabei de jantar e estou pronta para tomar um banho e me recolher após um dia cheio.

Passei a maior parte da tarde na sala de espera do deão. Quando finalmente consegui vê-lo, contei-lhe uma história mirabolante sobre uma dívida não paga de Dorothy a um loiro bonitão de sua turma de inglês do outono passado. Após muitas buscas em registros e examinar fotos de suspeitos em fichas de matrículas, descobrimos o homem — Dwight Powell, da Rua 35 Oeste, 1520, cuja temporada de caça começa amanha de manhã.

Que tal isso como um início eficiente? Nunca subestime o poder de uma mulher.

Amor, Ellen

 

As oito horas, ela parou de despir-se e pôs vinte e cinco centavos na fenda do rádio operado à base de moedas ao lado da cama. Comprimiu o botão marcado KBRI. Houve um baixo zum- bido, e depois, suave e sonora, a voz de Gant encheu o quarto.

“...outra sessão com Lançador de Discos, ou, como diz o nosso operador, ‘Arqueje e Se Canse com Gordon Gant’, o que mostra as limitações de uma educação puramente científica. Passemos a agenda. O primeiro disco da noite e um velho sucesso, dedicado a senhorita Hester Holmes, de Wisconsin...”

Uma sacudida introdução orquestral, de tempos nostálgicos, jorrou do rádio e baixou sob o canto de uma voz adocicada, de menininha:

“Abotoe seu casaco

Quando o vento e frio

Cuide-se bem, meu amor,

Só de você eu sou...”

 

Sorrindo, Ellen foi para o banheiro. As paredes ladrilhadas res- soavam com o som da agua jorrando na banheira. Ela chutou os chinelos e pendurou o roupão num gancho ao lado da porta. Estendeu o braço e fechou a torneira. No súbito silencio que se fez, a transparente voz penetrou no aposento, vinda da sala ao lado:

“Não se sente em ferrão de marimbondo, ooh-ooh

Nem em pregos, ooh-ooh

Nem em trilhos, ooh-ooh...”


5

 

 

— ALÔ! — A VOZ ERA de uma mulher.

— Alô! — disse Ellen. — Dwight Powell está?

— Não, Não esta.

— Quando acha que ele volta?

— Não sei dizer ao certo. Ele trabalha no Folger’s entre as aulas e depois.

— A senhora não e a senhoria dele?

— Não. Sou a nora dela, e vim para fazer a limpeza. A sra. Honig esta na cidade de Iowa, com um problema no pé Cortou o pé na semana passada e infeccionou. Meu marido teve de levá-la a Iowa...

— Oh, sinto muito.

— Se tem algum recado para Dwight, posso deixar-lhe um bilhete.

— Não, obrigada. Tenho aula com ele daqui a pouco, e o verei então. Não era nada importante.

— Muito bem. Até logo.

— Até logo.

Ellen desligou. Certamente não iria esperar a senhoria. Já estava mais ou menos convencida de que Powell era o homem que estivera saindo com Dorothy; a checagem com a senhoria seria apenas uma espécie de formalidade; podia verificar isso com a mesma facilidade junto aos amigos de Powell. Ou junto a ele próprio...

Imaginou que tipo de lugar seria aquele onde ele trabalhava. Folger’s. Teria de ser perto do campus, se ele ia lá nas horas livres entre as aulas. Se fosse alguma espécie de loja, onde ele atendesse aos clientes...

Pegou a lista telefônica, procurou a letra F e correu as fileiras de nomes.

Folger Drogaria Av. Univ., 1448 — 2-3800

 

Ficava entre a Rua 28 e a 29, defronte do campus; um prédio de tijolos, quadrado, baixo, com uma longa tabuleta verde de um lado a outro do frontão: FOLGER DROGARIA, e em letras menores: RECEITAS, e menor ainda: SERVIÇO DE LANCHONETE. Ellen deteve-se diante da porta de vidro e alisou os cabelos. Ajeitando-se, como se entrasse num palco, empurrou a porta e entrou.

A lanchonete era a esquerda: espelhos, cromo, mármore cinza; na frente, uma fileira de banquinhos redondos. Não era meio-dia ainda, de modo que só umas poucas pessoas estavam sentadas na outra extremidade.

Dwight Powell, de pé atrás do balcão, usava um alinhado jaleco branco e um boné também branco, que pousava nas ondas de seus belos cabelos loiros como um navio emborcado. O rosto, de queixo quadrado, era magro, e ele usava bigode; uma fina linha, cuidadosamente aparada, de pelos quase incolores, visíveis apenas quando a luz se refletia neles, feições as quais evidentemente se acrescentara algum tempo desde que ele tirara a foto mostrada pelo deão. Powell despejava creme batido de um copo de liquidificador num sundae de aparência consistente. Havia um ar amargo em seus lábios que deixava claro que ele não gostava do emprego.

Ellen encaminhou-se para a extremidade oposta do balcão. Ao passar por Powell, que punha o sundae diante de um cliente, sentiu que ele erguia o olhar. Mas prosseguiu, olhando diretamente em frente, até a parte vazia. Tirando o casaco, dobrou-o e o colocou, juntamente com a bolsa, numa das filas de bancos desocupados. Sentou-se no banco ao lado. Com as mãos espalmadas sobre o mármore frio, examinou sua imagem no espelho da parede em frente. Suas mãos deixaram o mármore, desceram até a base do suéter azul e puxaram-no para baixo.

Powell aproximou-se, por trás do balcão. Pôs um copo d’agua e um guardanapo diante dela. Seus olhos eram de um azul profundo, a pele imediatamente abaixo meio cinza.

— Sim, senhorita? — disse numa voz de tom grave. Os olhos encontraram os dela, e depois baixaram imediatamente.

Ela olhou a parede espelhada, os desenhos de sanduiches afixados nela. A grelha ficava diretamente a sua frente.

— Um cheeseburger — disse, tornando a olhá-lo. Os olhos dele estavam nos seus novamente. — E uma xícara de café.

— Cheeseburger e café — ele disse, e sorriu.

Era um sorriso rígido, que desapareceu rapidamente, como se seus músculos faciais não estivessem acostumados ao exercício. Ele voltou-se e abriu um armário sob o forno, tirando uma pasta de carne colada a um papel encerado. Fechando o armário com o pé, jogou a carne sobre a chapa e retirou o papel de cima. A carne chiou, Ele tirou um pão de uma lata e começou a abri-lo ao meio com uma longa faca. Ellen observava o rosto dele pelo espelho. O rapaz ergueu o olhar e sorriu de novo. Ela retribuiu levemente o sorriso; não estou interessada, mas tampouco estou inteiramente desinteressada. Ele colocou as duas metades do pão ao lado do hambúrguer, voltadas para baixo, e voltou-se para Ellen.

— Quer o café agora ou depois?

— Agora, por favor.

Ele retirou uma xícara e um pires marrons e uma colherinha de sob o balcão. Arrumou-os diante dela, e depois afastou-se alguns passos, para voltar com um bule de vidro de café. Despejou lentamente o líquido fervente na xicara.

— Estuda em Stoddard? — perguntou.

— Não, não estudo.

Ele pousou o bule no mármore e, com a mão livre, pegou um pote de creme de baixo do balcão.

— E você? — perguntou Ellen.

Na outra ponta do balcão, uma colher bateu num vidro. Powell atendeu ao chamado com um ar amargo novamente nos lábios.

Um minuto depois estava de volta, pegando uma espátula e virando o hambúrguer. Abriu o armário de novo e tirou uma talhada de queijo americano, que pôs em cima da carne. Os dois olharam-se pelo espelho enquanto ele arrumava o pão e algumas fatias de picles num prato.

— Não esteve aqui antes, esteve? — ele perguntou.

— Não, só estou em Blue River há uns dois dias.

— Oh. Vai ficar ou só está de passagem? — Ele falava lentamente, como um caçador em círculos.

— Vou ficar. Se conseguir arranjar emprego.

— De que?

— Secretária.

Ele voltou-se, a espátula na mão, o prato na outra.

— Deve ser fácil encontrar.

— Ah, ah — ela disse.

Houve uma pausa.

— De onde você é?

— Des Moines.

— Deve ser mais fácil encontrar trabalho lá do que aqui.

Ela balançou a cabeça.

— Todas as garotas em busca de trabalho vão para Des Moines.

Retornando ao fogão, ele ergueu o cheeseburger com a espátula e enfiou-o no pão. Pôs o prato diante dela e também uma garrafa de ketchup, apanhada embaixo do balcão.

— Tem parentes aqui?

Ela balançou a cabeça.

— Não conheço vivalma na cidade. Só a mulher da agência de empregos.

Uma colher bateu no vidro de novo, na outra ponta do balcão.

— Diabo — ele murmurou. — Talvez você queira o meu emprego. — E afastou-se, aborrecido.

Em alguns minutos, estava de volta. Começou a raspar a chapa com o fio da espátula.

— Que tal o cheeseburger?

— Ótimo.

— Deseja mais alguma coisa? Mais um pouco de café?

— Não, obrigada.

A chapa estava completamente limpa, mas ele continuava raspando-a, olhando para Ellen pelo espelho. Ela limpou os lábios com o guardanapo.

— A conta, por favor — ela disse.

Ele voltou-se, tirando um lápis e um bloco verde presos a cintura.

— Escute — disse, sem levantar a vista da escrita —, há uma boa reprise no Paramount hoje a noite. Horizonte Perdido. Quer ir ver?

— Eu...

— Você disse que não conhecia ninguém na cidade.

Ela pareceu hesitar por um momento.

— Está bem — disse, finalmente.

Ele ergueu o olhar e sorriu, dessa vez sem fazer força.

— Ótimo. Onde posso encontrá-la?

— Na New Washington House. No saguão.

— Às oito está bem? — ele perguntou. Destacou a nota do bloco. — Meu nome e Dwight Powell — disse. — Como o de Eisenhower. Dwight Powell. — Olhou para ela, a espera.

— O meu e Evelyn Kittredge.

— Olá — ele disse, sorrindo. Ela deu um largo sorriso de retribuição. Alguma coisa reluziu no rosto de Powell; surpresa?... lembrança?

— Que e que há — perguntou Ellen. — Por que me olhou assim?

— Seu sorriso — ele disse, pouco a vontade. — Exatamente como o de uma garota que eu conhecia...

Houve uma pausa, e depois Ellen disse decididamente:

— Joan Bacon, ou Bascomb, ou algo assim. Estou nesta cidade há apenas dois dias, e duas pessoas já me disseram que pareço com essa Joan...

— Não — disse Powell. — O nome da garota era Dorothy. — Dobrou o bloco. — O lanche é por minha conta. — Acenou com o braço, tentando chamar a atenção do caixa lá na frente. Esticando o pescoço, apontou para a conta, para Ellen e para si mesmo, e depois enfiou a nota no bolso. — Tudo certo — disse.

Ellen estava de pé, pondo o casaco.

— Oito horas no saguão da New Washington House — Powell confirmou. — E onde você estará?

— Sim. — Ela obrigou-se a dar um sorriso. Podia ver a mente dele trabalhando; garota fácil, estranha na cidade, hospedada num hotel... — Obrigada pelo lanche.

— Nem fale nisso.

Ela pegou a bolsa.

— Vejo-a a noite, Evelyn.

— As oito horas — ela disse. Voltou-se e dirigiu-se para a frente do estabelecimento, mantendo o passo lento, sentindo os olhos dele em suas costas. A porta, voltou-se. Ele ergueu a mão e sorriu. Ela retribuiu o gesto.

Fora, descobriu que seus joelhos tremiam.


6

 

 

ELLEN ESTAVA NO saguão às sete e meia, para que Powell não tivesse oportunidade de pedir ao recepcionista que chamasse o quarto da srta. Kittredge. Ele chegou às cinco para as oito, a fina linha de seu bigode reluzindo sobre um sorriso nervoso. (Garota fácil... estranha na cidade...) Verificara que Horizonte Perdido começava as oito e seis, e assim tomaram um táxi para o cinema, embora ele ficasse a apenas cinco quadras de distância. Na metade do filme, Powell pôs o braço em torno de Ellen, pousando a mão em seu ombro. Ela via pelo canto do olho a mão que acariciara o corpo de Dorothy, empurrara com toda a força... talvez...

A Prefeitura Municipal ficava a três quadras do cinema, e a menos de duas da New Washington House. Passaram por ela na volta ao hotel. Algumas janelas estavam iluminadas nos andares superiores da alta fachada do outro lado da rua.

— É esse o maior prédio da cidade? — perguntou Ellen, olhando para Powell.

— É. — Os olhos dele estavam fixos num ponto a uns cinco metros a frente, na calçada.

— Qual e a altura?

— Catorze andares. — A direção de seu olhar Não se alterara. Ellen pensou: “Quando se pergunta a alguém a altura de alguma coisa que está a sua frente, a pessoa instintivamente se volta para olhar, mesmo já sabendo a resposta. A menos que tenha algum motivo para não querer fazê-lo”.

 

Sentaram-se num reservado, no bar de paredes escuras do hotel, com um piano de som discreto, e beberam uísque sour. A conversa era intermitente, Ellen forçando-a contra a fala lenta e decidida de Powell. A tensa exuberância com que ele iniciara a noite fenecera ao passarem pela Prefeitura Municipal, renascera outra vez ao entrarem no hotel e agora esmorecia cada vez mais, quanto mais permaneciam ali, no reservado acolchoado de vermelho.

Falaram de empregos. Powell detestava o seu. Estava nele há dois meses e planejava deixá-lo assim que arranjasse coisa melhor. Estava economizando seu dinheiro para uma viagem de estudos à Europa, no verão.

O que estudava? Inglês. O que planejava fazer depois de formar-se? Não sabia ao certo. Publicidade, talvez, ou entrar para a indústria editorial. Seus planos para o futuro pareciam vagos.

Falaram de garotas.

— Estou cheio dessas garotas da faculdade — ele disse. — Imaturas... levam tudo a sério demais. — Ellen calculou que aquilo era o início de uma tática, a que leva direto a “Você dá muita importância ao sexo. Contanto que gostemos um do outro, que mal há em irmos para a cama?” Mas não era isso. Parecia ser algo que o estava perturbando. Ele media as palavras cuidadosamente, girando o copo do terceiro drinque entre os dedos longos e inquietos. — Elas se agarram ao pescoço da gente — disse, os olhos azuis enevoados — e não há como fazê-las largar. — Olhou as mãos. — A não ser que se faça uma confusão...

Ellen fechou os olhos, as mãos úmidas sobre o liso tampo da mesa.

— A gente não pode deixar de sentir pena de pessoas assim — ele prosseguiu —, mas tem de pensar primeiro em si mesmo.

— Pessoas como? — ela perguntou, sem abrir os olhos.

— Pessoas que se lançam em cima de outras... — Houve um alto estalo de sua mão batendo no tampo da mesa. Ellen abriu os olhos. Ele tirava cigarros de um maço sobre a mesa, sorrindo. — Meu problema e uísque sour demais — disse. Sua mão, segurando um fósforo na ponta do cigarro, estava insegura. — Falemos de você.

Ela inventou uma história sobre uma escola de secretarias em Des Moines, dirigida por um velho francês que lançava cusparadas nas garotas quando elas não estavam olhando. Ao terminar, Powell disse:

— Escute, vamos sair daqui.

— Quer dizer, ir para outro lugar?

— Se você quiser — ele disse, sem muito entusiasmo.

Ellen estendeu a mão para o casaco a seu lado.

— Se você não se incomoda, eu preferia não ir. Acordei muito cedo esta manhã.

— Muito bem — disse Powell. — Eu a levarei até sua porta. O sorriso nervoso, com o qual começara a noite, retornara.

 

Ela estava de costas para a porta do quarto, a chave com a chapa do número na mão.

— Muito obrigada — disse. — Foi realmente uma bela noite.

Os braços dele, dos quais pendiam os casacos dos dois, envolveram-na. Seus lábios aproximaram-se dos dela, mas ela desviou-se, recebendo o beijo na face.

— Não seja pudica — ele disse sem rodeios. Pegou o queixo dela com a mão e beijou-a fortemente na boca. — Entremos... fumemos um último cigarrinho — disse.

Ela balançou a cabeça.

— Ewie... — A mão dele estava no ombro dela.

Ela balançou a cabeça de novo.

— Honestamente, estou morta de cansaço. — Era uma recusa, mas o modesto meneio de sua voz insinuava que as coisas podiam ser diferentes numa outra noite.

Ele beijou-a uma segunda vez. Ela retirou a mão dele de seu ombro.

— Por favor... alguém pode...

Ainda segurando-a, ele recuou um pouco e sorriu-lhe. Ela retribuiu, tentando dar-lhe o mesmo sorriso largo que lhe dera na lanchonete.

Funcionou. Era como encostar um fio elétrico carregado num nervo exposto. Uma sombra adejou no rosto do rapaz.

Ele puxou-a para si, ambos os braços a sua volta, o queixo sobre o ombro de Ellen, como para evitar vê-la sorrir.

— Ainda lhe lembro aquela garota? — ela perguntou. E depois: — Aposto que foi outra garota com quem você só saiu uma vez.

— Não — ele disse. — Saí com ela bastante tempo. — Deteve- se. — Quem disse que só vou sair com você uma vez? Tem alguma coisa para fazer amanhã a noite?

— Não.

— Mesma hora, mesmo lugar?

— Se você quiser.

Ele beijou-a na face e abraçou-a de novo.

— Que aconteceu? — ela perguntou.

— O que quer dizer? — A voz dele vibrou contra sua têmpora.

— Com a tal garota. Por que deixou de sair com ela? — Tentava parecer simples, casual. — Tal vez eu possa aprender com os erros dela.

— Oh! — Houve uma pausa. Ellen olhava o tecido da lapela dele, vendo a precisa trama dos fios azuis. — Foi como eu disse lá embaixo. Nós nos envolvemos muito. Tive de romper. — Ela ouviu-o inspirar profundamente. — Era muito imatura — ele acrescentou.

Após um momento, Ellen fez um movimento para recuar.

— Acho melhor...

Ele beijou-a novamente, um longo beijo. Ela fechou os olhos, nauseada.

Desprendendo-se dos braços dele, voltou-se e enfiou a chave na fechadura.

— Amanhã a noite, às oito — disse. Teve de voltar-se para pegar seu casaco, e não havia como evitar os olhos dele.

— Boa noite, Ewie.

Ela abriu a porta as suas costas e entrou recuando, forçando um sorriso nos lábios.

— Boa noite. — Fechou a porta.

Estava sentada, imóvel, na cama, o casaco ainda nas mãos, quando o telefone tocou, cinco minutos depois. Era Gant.

— Recolhendo-se tarde, pelo que vejo.

Ela suspirou.

— E um alívio falar com você...

— Bem! — ele disse, estendendo a palavra. — Bem, bem, bem! Calculo que minha inocência foi clara e decisivamente estabelecida.

— Foi. Powell é o homem que saía com ela. E estou certa quanto a não ter sido suicídio. Sei que estou. Ele fala o tempo todo em garotas que ficam se jogando sobre os outros e levam as coisas a sério demais, envolvem-se, e coisas assim. — As palavras embolavam-se rapidamente, livres da tensão da conversa cautelosa.

— Deus do céu, sua eficiência me assusta. Onde obteve suas informações?

— Dele mesmo.

— O que?

— Peguei-o na drogaria onde ele trabalha. Sou Evelyn Kittredge, secretária desempregada, de Des Moines, Iowa. Acabo de andar no arame, por toda a noite, com ele.

Houve um longo silencio no outro lado da linha.

— Conte tudo — ele disse finalmente, cansado. — Quando planeja arrancar a confissão dele, escrita?

Ela falou-lhe da súbita depressão de Powell quando passavam pela Prefeitura Municipal, repetindo com toda a precisão possível as observações que ele fizera sob a influencia da depressão e dos uísques sour.

Quando Gant tornou a falar, estava sério.

— Escute, Ellen, isso não parece coisa com que se deva andar brincando por aí.

— Por que? Enquanto ele pensar que eu sou Evelyn Kittredge...

— Como você pode saber se ele pensa? E se Dorothy houvesse mostrado um retrato seu a ele?

— Ela só tinha um, e era um instantâneo de grupo, desfocado, nossos rostos imersos em sombra. Se ele o viu, foi há quase um ano. Não poderia evidentemente me reconhecer. Além disso, se desconfiasse de quem eu sou, não diria as coisas que disse.

— É, acho que não — admitiu Gant, relutantemente. — Que planeja fazer agora?

— Esta tarde eu fui a biblioteca e li todas as notícias de jornais sobre a morte de Dorothy. Há alguns detalhes que nunca foram mencionados, coisinhas como a cor do chapéu dela, e que estava usando luvas. Tenho outro encontro com ele amanhã a noite. Se conseguir fazê-lo falar do “suicídio” talvez ele deixe escapar uma coisa dessas, que não poderia saber se não houvesse estado com ela.

— Isso não seria prova conclusiva — disse Gant. — Ele alega- ria que estava no prédio na hora e a viu depois de...

— Eu não estou procurando prova conclusiva. Só quero algo que impeça a polícia de pensar que eu sou apenas uma maluca com uma imaginação superativa. Se eu puder provar que ele estava nas proximidades no momento, será o bastante para fazê-los iniciar uma investigação.

— Bem, você pode me fazer o favor de dizer como diabos espera fazê-lo falar em tais detalhes sem deixá-lo desconfiado? Ele não é idiota, é?

— Tenho de tentar — ela argumentou. — Que mais posso fazer?

Gant pensou por um momento.

— Tenho um velho martelo de cabeça redonda — disse. — Podíamos dar uma martelada na cabeça dele, arrastá-lo para a cena do crime e arrancar a confissão.

— Está vendo? — disse Ellen, seriamente. — Não há outra forma de... — Sua voz sumiu.

— Alô?

— Ainda estou aqui.

— Que aconteceu? Pensei que a linha tinha caído.

— Eu estava apenas pensando.

— Oh! Escute, seriamente... tenha cuidado, está bem? E, se for realmente possível, chame-me amanhã a noite, só para me dizer onde está e como estão indo as coisas.

— Por quê?

— Só para ter segurança.

— Ele pensa que eu sou Evelyn Kittredge.

— Bem, chame-me de qualquer modo. Não fará mal. Além disso, meus cabelos embranquecem facilmente.

— Esta bem.

— Boa noite, Ellen.

— Boa noite, Gordon.

Ela repôs o fone no gancho e ficou sentada na cama, mordendo o lábio inferior e tamborilando com os dedos, como sempre fazia quando brincava com uma ideia.


7

 

 

FECHANDO A BOLSA com um estalido do fecho, Ellen ergueu o olhar e sorriu para a figura de Powell, que se aproximava da outra extremidade do saguão. Ele usava um sobretudo cinza e um terno azul-marinho, o mesmo que usara na noite anterior.

— Olá — disse, arriando-se ao lado dela, no divã de couro. — Você certamente não deixa ninguém esperando.

— A alguns eu deixo.

O sorriso dele alargou-se.

— Como vai a procura de emprego?

— Muito bem — ela disse. — Creio que arranjei alguma coisa. Com um advogado.

— Que ótimo. Vai ficar em Blue River, então, não é?

— Parece que sim.

— Que ótimo... — ele disse as palavras descuidadamente. Depois, seus olhos desviaram-se para o relógio de pulso. — E melhor pegarmos nossos cavalos. Passei pelo Salão de Baile Glo-Ray na vinda para cá e havia uma fila...

— Oohh — ela lamentou.

— O que e que há?

O rosto dela era um pedido de desculpas.

— Tenho uma missão a cumprir primeiro. O advogado. Preciso levar-lhe uma carta... uma referência. — Bateu na bolsa.

— Eu não sabia que secretarias precisavam de referências. Achava que apenas faziam testes de taquigrafia ou algo assim.

— É, mas eu disse que tinha essa carta de meu último empre- gador, e ele disse que gostaria de vê-la. Estará no escritório às oito e meia. — Suspirou. — Sinto muitíssimo.

— Esta tudo bem.

Ellen tocou a mão dele.

— Eu preferia não ir dançar — confiou. — Podemos ir a algum lugar, tomar uns drinques...

— Certo — ele disse, mais animado. Levantaram-se. — Onde é o advogado? — perguntou Powell, de pé atrás dela, ajudando-a com o casaco.

— Não muito longe daqui — disse Ellen. — No prédio da prefeitura.

No alto dos degraus em frente a Prefeitura Municipal, Powell estacou. Ellen, num dos vãos de uma porta giratória, deteve a mão com que a empurrava e olhou-o. Ele estava pálido, mas podia ser a luz cinza que se filtrava do saguão.

— Espero-a aqui embaixo, Ewie. — Sua mandíbula estava cerrada, as palavras saindo rigidamente.

— Eu queria que você viesse comigo — ela disse. — Eu não podia trazer a carta antes das oito, mas achei que era um tanto estranho ele me pedir que a trouxesse a noite. E um tipo de aparência pegajosa. — Sorriu. — Você e minha proteção.

— Oh — disse Powell.

Ellen empurrou a porta, e um momento depois Powell seguiu- a. Ela se voltou e olhou-o, quando ele transpôs a porta. O rapaz respirava por entre os lábios meio fechados, o rosto despido de qualquer expressão.

O vasto saguão de mármore estava silencioso e vazio. Três dos quatro elevadores estavam escuros, por trás de portas metálicas com gelosias. O quarto era uma cabine de luz amarela, com paredes de madeira cor de mel. Encaminharam-se para ele lado a lado, seus passos produzindo ecos abafados no teto abobadado.

No elevador, um ascensorista negro uniformizado de marrom lia de pé um exemplar de Look. Enfiou a revista debaixo do braço, pisou no chão o botão que soltava a grande porta deslizante e puxou a grade em seguida.

— Andar, por favor — disse.

— Décimo quarto — disse Ellen.

Ficaram em silencio, observando o avanço uniforme dos números iluminados acima da porta: 7... 8... 9... Powell alisava o bigode com o indicador.

Quando a luz pulou de 13 para 14, o carro fez uma suave parada automática de último andar. O ascensorista puxou a grade e girou a barra que abria a porta externa.

Ellen saiu para o corredor deserto, seguida por Powell. Atrás deles, a porta fechou-se com um clangor oco. Ouviram a grade correr, e depois o zumbido decrescente do carro.

— E por aqui — disse Ellen, movendo-se para a direita. — Sala catorze-zero-cinco.

Dirigiram-se para a curva do corredor e a acompanharam para a direita. Só há via luz por trás de dois dos painéis de vidro fosco das portas na fileira do corredor reto a frente. Não se ouvia um som, além do de seus pês nos lisos mosaicos de borracha. Ellen buscava algo para dizer.

— Não... Não demorara muito. Só tenho de entregar a carta a ele.

— Você acha que conseguirá o emprego?

— Acho que sim. É uma boa carta.

Chegaram ao fim do corredor e viraram a direita de novo. Uma porta estava iluminada, a frente, do lado esquerdo, e Powell dirigiu-se para ela.

— Não, Não é essa — disse Ellen. Encaminhou-se para uma porta sem luz a direita. O painel de vidro fosco tinha uma inscrição: Frederic H. Clausen, advogado. Powell aproximou-se por trás dela, que tentava inutilmente girar a maçaneta e olhava o relógio.

— E essa agora? — disse, raivosa. — Nem quinze minutos depois, e ele disse que estaria aqui até as oito e meia. — A secretária ao telefone dissera: “O escritório fecha as cinco”.

— E agora? — perguntou Powell.

— Creio que a colocarei por baixo da porta — ela disse, abrindo a bolsa. Retirou um grande envelope branco e uma caneta. Tirando a tampa da caneta, apoiou o envelope sobre a bolsa e começou a escrever.

— É uma pena ter perdido o baile — disse.

— Está tudo bem — disse Powell. — Eu também não estava muito interessado.

Ele respirava com mais facilidade agora, como um acrobata novato depois de percorrer a metade do trajeto sobre o arame esticado e ficar menos inseguro sobre seu equilíbrio.

— Pensando melhor — disse Ellen, olhando-o —, se deixar a carta agora, terei de vir aqui buscá-la amanhã, de qualquer modo. Podia muito bem trazê-la pela manhã.

Tomou a fechar a caneta e a pô-la em sua bolsa. Olhou o envelope a luz, viu que a tinta ainda estava fresca e começou a abaná-lo com rápidos movimentos de leque. Desviou o olhar para o outro lado do corredor, para a porta com o aviso “Escadas”. Seus olhos se iluminaram.

— Sabe o que eu gostaria de fazer? — perguntou.

— O que?

— ...antes de voltarmos para os drinques...

— O que? — Ele sorria.

Ela retribuiu-lhe o sorriso, agitando o envelope.

— Ir até o terraço.

O acrobata olhou para baixo e viu a rede sendo retirada de sob o arame.

— Para que quer fazer isso?

— Você não viu a lua? E as estrelas? Está uma noite perfeita. A vista deve ser incrível.

— Talvez ainda possamos entrar no Glo-Ray — ele disse.

— Oh, nenhum de nos está morrendo de vontade de ir. — Ela enfiou o envelope na bolsa e fechou-a com um estalido. — Vamos — disse alegremente, afastando-se dele e atravessando o corredor. — Que aconteceu com todo aquele romantismo que você demonstrou no saguão a noite passada? — A mão dele estendeu- se para pegar o braço dela e não encontrou nada.

Ela empurrou a porta, abrindo-a, e olhou para trás, a espera de que ele a seguisse.

— Evvie, eu... As alturas me deixam tonto. — Deu um fraco sorriso forçado.

— Não precisa olhar para baixo — ela disse, alegremente. — Não precisa nem se aproximar da borda.

— A porta provavelmente estará fechada...

— Não creio que possam fechar uma porta para um terraço. Leis de incêndio. — Ela franziu o cenho em fingido desgosto. — Oh, vamos! Parece até que estou pedindo para você se lançar das cataratas do Niágara dentro de um barril ou algo assim.

Ela recuou até o patamar, segurando a porta aberta, sorrindo, a espera dele.

Ele seguiu-a em lenta desvalidez, como em transe, como se houvesse uma parte sua que quisesse perversamente acompanhá-la. Quando chegou ao patamar, ela soltou a porta, que se fechou com um abafado chiado pneumático, cortando a luz do corredor e deixando apenas uma lâmpada de dez watts para travar uma batalha perdida contra as trevas da escada.

Subiram oito degraus, dobraram e subiram mais oito. Havia uma negra porta de metal com um aviso pintado em letras grandes: Entrada estritamente proibida, exceto em caso de emergência. Powell leu-o em voz alta, acentuando as palavras “estritamente proibida”.

— Avisos — disse Ellen desdenhosamente. Experimentou a maçaneta.

— Deve estar fechada — disse Powell.

— Se estivesse fechada, eles não poriam o aviso — disse Ellen. — Tente você.

Ele pegou a maçaneta, forçou.

— Está emperrada, então.

— Oh, vamos. Tente com vontade.

— Muito bem — ele disse. — Muito bem, muito bem. — Era como se dissesse: ao diabo com as consequências. Recuou e arremeteu com o ombro contra a porta, com toda a força. Ela abriu-se de vez, quase levando-o junto. Ele tropeçou no rebordo de baixo e caiu no terraço. — Muito bem, Evvie — disse, levantando-se, de cara amarrada, mantendo a porta aberta, — Venha olhar sua bela lua.

 

— Desmancha-prazeres — disse Ellen, o tom alegre de sua voz tirando o significado do aborrecimento dele. Passou por cima do rebordo e adiantou-se alguns passos à frente de Powell, saindo da sombra do abrigo da escada para o terraço aberto como uma patinadora fingindo não se preocupar com o gelo fino. Ouviu a porta fechar-se as suas costas, e depois Powell veio para o seu lado, a esquerda.

— Sinto muito — ele disse. — É que eu quase quebrei meu ombro na maldita porta. Só isso. — Conseguiu dar um sorriso duro.

Estavam voltados para a torre da KBRI, estreita, negra contra o céu azul-escuro estrelado; no topo, uma luz vermelha piscava lentamente, colorindo o terraço de um rosa intermitente. Atrás dele, ela via a amurada que cercava a área interna, a parte de pedra branca em cima destacando-se na noite. Lembrou-se de um diagrama que um dos jornais publicara; o X no lado sul do quadrado — o lado mais perto deles. De repente, sentiu-se tomada por um louco desejo de ir lá, olhar sobre a amurada, ver onde Dorothy... Uma onda de náusea apoderou-se dela. O foco de sua visão reajustou-se no amplo perfil de Powell, e involuntariamente ela recuou.

Está tudo bem, disse a si mesma, estou em segurança — mais em segurança do que forçando uma conversa num bar. Estou bem, sou Evelyn Kittredge...

Ele tomou consciência de seu olhar.

— Pensei que você queria olhar o céu — disse, sem baixar o rosto, voltado para cima. Ela ergueu também a cabeça, e esse súbito movimento aumentou o mal-estar. As estrelas rodavam.

Ela correu para a direita, para a borda externa do terraço. Machucando as mãos contra a áspera superfície da amurada, aspirou grandes haustos de ar noturno... Foi aqui que ele a matou. Está para se trair... o suficiente para eu ir a polícia. Estou segura... Finalmente, sua mente clareou. Olhou o panorama embaixo, a miríade de luzes piscando na escuridão.

— Dwight, venha dar uma olhada.

Ele voltou-se e encaminhou-se para o parapeito, mas parou a alguns palmos de distancia.

— Não é lindo? — Ela falava sem olhar para trás.

— É — ele disse.

Ele olhou por um momento, a brisa fazendo vibrar suavemente os cabos da torre, e depois voltou-se lentamente, até ficar de frente para a área interna. Fixava o parapeito. Depois, adiantou o pé direito, e suas pernas puseram-se a andar, levando-o para a frente com incansável eficiência, como as pernas de um alcoólatra reabilitado o conduzem ao bar só para um golezinho. Levavam-no diretamente para o parapeito da área interna, e suas mãos ergueram-se e pousaram espalmadas sobre a pedra fria. Ele curvou-se e olhou para baixo.

Ellen sentiu a sua ausência. Voltou-se e sondou a escuridão do quarto crescente. Então a luz da torre acendeu-se, seu fulgor róseo mostrando-o na amurada da área interna, e o coração dela deu um salto, sufocando-a. O fulgor vermelho desapareceu, mas, sabendo onde ele estava, ela ainda podia distingui-lo a débil luz da lua. Começou a adiantar-se para ele, seus passos silenciosos no ar maleável.

Ele olhava para baixo. Alguns raios amarelos de janelas iluminadas cruzavam o funil quadrado da área. Uma das luzes era bem embaixo, iluminando o pequeno quadrado de concreto cinza para onde convergiam as paredes.

— Pensei que a altura o deixasse tonto.

Ele girou.

Havia gotas de suor em sua testa e sobre o seu bigode. Um sorriso nervoso brotou em seus lábios.

— E deixa — disse —, mas não posso deixar de olhar. Auto- tortura... — O sorriso desvaneceu-se. — Essa é a minha especialidade. — Inspirou profundamente. — Pronta para ir agora? — perguntou.

— Acabamos de chegar — Ellen protestou, levemente. Voltou-se e dirigiu-se para a borda oriental do terraço, abrindo caminho entre as sombrias formas dos canos de ventiladores. Powell seguiu- a relutantemente. Ao chegar a borda, Ellen ficou de costas para o parapeito e olhou a torre ao lado deles. — É lindo aqui em cima — disse. Powell, olhando a cidade, as mãos fechadas sobre o parapeito, não respondeu nada. — Já esteve aqui a noite? — perguntou Ellen.

— Não — ele disse. — Nunca estive aqui em hora nenhuma.

Ela voltou-se para o parapeito e curvou-se, olhando a plataforma do recuo dois andares abaixo. Ela franziu o cenho pensativamente.

— No ano passado — disse lentamente —, creio ter lido sobre uma garota que caiu daqui...

Um respiradouro de ventilador rangeu.

— Sim — disse Powell. Sua voz estava seca, — Um suicídio. Ela não caiu.

— Oh! — Ellen continuava olhando o recuo. — Não vejo como ela poderia ter morrido — disse. — São apenas dois andares.

Ele ergueu a mão, o polegar apontando as costas, por cima do ombro.

— Foi lá... na área.

— Oh, claro. — Ela endireitou-se. — Lembro-me agora. Os jornais de Des Moines deram uma grande cobertura. — Pôs a bolsa no parapeito e segurou-a firme com ambas as mãos, como se testasse a rigidez de sua armação. — Era uma garota de Stoddard, não era?

— Era — ele disse. Apontou para o distante horizonte. — Está vendo aquele edifício arredondado lá, com as luzes acesas? É o observatório de Stoddard. Tive de ir lá para um projeto de ciência física uma vez. Eles tem um...

— Você a conhecia?

A luz vermelha iluminou o rosto dele.

— Por que você pergunta?

— Apenas pensei que pudesse conhecê-la. E natural, uma vez que os dois estavam em Stoddard...

— Sim — ele disse, incisivamente. — Eu a conhecia, e era uma garota muito boa. Agora falemos de outra coisa.

— O único motivo pelo qual a história ficou em minha mente — ela disse — foi por causa do chapéu.

Powell deu um suspiro de exasperação. Cansadamente, perguntou:

— Que chapéu?

— Ela estava usando um chapéu vermelho com um laço, e eu acabara de comprar um chapéu vermelho com um laço no dia em que a coisa aconteceu.

— Quem disse que ela estava usando um chapéu vermelho? — perguntou Powell.

— Não estava? Os jornais de Des Moines disseram... — Diga que estavam errados, ela implorava, diga que era verde...

Houve silencio por um momento.

— O Clarion não falou de nenhum chapéu vermelho — disse Powell. — Li as matérias cuidadosamente, pois a conhecia...

— Só porque o jornal de Blue River não falou, não significa que não seja verdade — disse Ellen.

Ele não respondeu nada. Ela olhou-o e viu-o consultando o relógio.

— Escute — ele disse, bruscamente. — São vinte e cinco para as nove. Já estou cheio desta vista magnifica. — Voltou-se abrup- tamente, dirigindo-se para o abrigo da escada.

Ellen correu atrás dele.

— Não podemos ir ainda — disse, pegando-o pelo braço pouco antes do abrigo.

— Por que não?

Por trás do sorriso, a mente dela corria.

— Eu... quero um cigarro.

— Oh, não... — As mãos dele procuraram o bolso, depois detiveram-se. — Não tenho. Vamos, arranjaremos lá embaixo.

— Eu tenho — ela disse rapidamente, mostrando sua bolsa. Recuou, a posição da área interna atrás dela tão nítida em sua mente como se olhasse o diagrama no jornal. O X marcando o local. Virando-se lentamente, dirigiu-se para lá, abrindo a bolsa, sorrindo para Powell, dizendo sem graça: — Será ótimo fumar um cigarro aqui em cima. — O parapeito encostou em seu quadril. X. Ela mexia dentro da bolsa. — Aqui. — Ofereceu: — Quer um?

Ele foi até ela resignado e com uma raiva que lhe comprimia os lábios. Ela sacudiu o mago de cigarros amassado até um cilindro branco se projetar e pensou: “Tem de ser esta noite, porque ele não convidara Evelyn Kittredge para outro encontro”

— Tome — ela ofereceu. Ele pegou o cigarro, aborrecido.

Os dedos dela buscavam outro, e enquanto faziam isso seus olhos vagueavam e aparentemente tomavam consciência da área pela primeira vez. Ela voltou-se ligeiramente para lá.

— Foi aqui que...? — Voltou-se para ele.

Os olhos dele haviam se estreitado, o queixo se enrijecera nos últimos fiapos de paciência que lhe restavam.

— Escute, Evvie — disse. — Eu lhe pedi para não falar disso. Será que você me fara só esse favor? Por favor? — Enfiou o cigarro entre os lábios.

Ela não desviou os olhos do rosto dele. Tirando um cigarro do maço, levou-o calmamente aos lábios e deixou o maço cair dentro da bolsa.

— Sinto muito — disse friamente, enfiando a bolsa sob o braço esquerdo. — Não sei por que você esta tão suscetível.

— Será que não consegue compreender? Eu conhecia a garota!

Ela acendeu um fósforo e levou-o até o cigarro, o fulgor laranja iluminando o rosto dele, mostrando os olhos azuis a luzir com uma tensão a ponto de explodir, os músculos do maxilar esticados como cordas de piano... Mais uma ferroada, mais uma ferroada... Ela afastou o fósforo do cigarro aceso, mantendo-o diante do rosto dele.

— Nunca disseram por que ela fez aquilo, disseram? — Os olhos dele fecharam-se dolorosamente. — Aposto que estava grávida — ela disse.

O rosto dele passou do laranja da chama para vermelho bruto enquanto o fósforo morria e a luz da torre se acendia. Os músculos esticados explodiam e os olhos azuis abriram-se como barragens ruindo... Agora!, Ellen pensou triunfantemente. Agora! Que venha algo bom, algo dos diabos!

— Muito bem — ele detonou. — Muito bem! Você sabe por que eu não quero falar nisso? Você sabe por que eu não queria vir aqui em cima de modo algum? Por que eu nem queria entrar neste maldito prédio? — Ele jogou fora o cigarro. — Porque a garota que cometeu suicídio aqui foi a garota de quem lhe falei na noite passada! Aquela que tinha um sorriso igual ao seu! — Seus olhos deixaram o rosto dela, baixando-se. — A garota que eu...

As palavras cortavam como uma guilhotina. Ela viu os olhos baixos dele dilatarem-se com o choque, e depois a luz da torre dissolveu-se e ela só pode vê-lo como uma sombria forma a sua frente. De repente, a mão dele pegou o seu pulso esquerdo, apertando-o com uma pressão paralisante. Um grito fez o cigarro sair voando dos lábios de Ellen. Ele torcia os dedos de sua mão presa, afundando os seus nos dela. A bolsa deslizou de baixo do braço dela e caiu a seus pês. Inutilmente, seu braço direito açoitava a cabeça do rapaz. Ele apertava os músculos da mão dela, forçando-a a abrir os dedos... Soltando-a, ele recuou e tornou-se novamente uma sombra difusa.

— O que e que você fez? — ela gritou. — O que foi que tirou? — Estonteadamente, abaixou-se e pegou a bolsa.

Flexionou a mão esquerda, seus sentidos embotados tentando lembrar a forma do objeto que estivera segurando.

Então a luz vermelha acendeu-se novamente, e ela o viu na palma da mão dele, como se ele o estivesse examinando mesmo no escuro. A carteirinha de fósforos. Com as letras acobreadas reluzindo, nítidas e claras: Ellen Kingship.

Sentiu-se gelar. Fechou os olhos, nauseada, um bolo de medo avolumando-se em seu estômago. Oscilou, sentindo nas costas a dura quina do parapeito da área interna.


8

 

 

— A IRMÃ DELA... — ele gaguejava. — A irmã dela... — Ellen abriu os olhos. Ele fitava a carteirinha de fósforos com um olhar de vítrea incompreensão. Ergueu o olhar para ela. — O que é isso? — perguntou, abobadamente. De repente, lançou a carteirinha aos pês dela e sua voz tonitruou de novo: — O que e que você quer de mim?

— Nada, nada — ela apressou-se a dizer. — Nada.

Os olhos dele movimentavam-se de um lado para outro, deses- peradamente. Estava entre ela e o abrigo da escada. Se pelo menos ela pudesse passar por ele... Começou a insinuar-se para a esquerda, as costas comprimidas contra o parapeito.

Ele esfregou a testa.

— Você... você me traiu... me fez perguntas sobre ela... me fez subir até aqui... — Agora sua voz era aliciante: — O que e que você quer de mim?

— Nada... nada — ela repetiu, esquivando-se cuidadosamente.

— Então por que fez isso? — O corpo dele curvou-se para avançar.

— Pare! — ela gritou.

O pé meio erguido tornou a cair, gelado.

— Se alguma coisa me acontecer — ela disse, obrigando-se a falar lentamente, sem alterar a voz —, há alguém que sabe tudo a seu respeito. Sabe que estou com você esta noite, e sabe tudo a seu respeito. Assim, se qualquer coisa me acontecer, qualquer coisa...

— Se qualquer coisa...? — Ele franziu o cenho. — De que e que você esta falando?

— Você sabe o que eu quero dizer. Se eu cair...

— E por que cairia? — Ele fixava-a sem acreditar. — Você pensa que eu...? — Sua mão procurou debilmente o parapeito. — Deus! — murmurou. — O que e que você é, alguma maluca?

Ela estava a meio metro dele. Começou a esgueirar-se do parapeito, encaminhando-se para ficar diante da porta da escada, que estava atrás dele e a sua direita. Powell girou lentamente, acompanhando o cuidadoso roteiro enviesado de Ellen.

— O que quer dizer com esse “sabe tudo a seu respeito”? — perguntou. — Sabe o quê?

— Tudo — ela disse. — Tudo. E esta esperando lá embaixo. Se eu não descer dentro de cinco minutos, ele chamará a policia.

Ele deu um tapa na própria testa, exausto.

— Desisto — gemeu. — Você quer descer? Você quer ir embora? Bem, vá! — Voltou-se e recuou até o parapeito, ao lugar onde Ellen tinha estado antes, deixando-lhe o caminho livre para a porta. Apoiou os cotovelos no parapeito de pedra as suas costas. — Vá em frente! Vá!

Ela dirigiu-se para a porta lenta, desconfiadamente, sabendo que ele ainda podia alcançá-la ali, cortar sua saída. Mas ele não se moveu.

— Se devo ser preso — ele disse —, apenas gostaria de saber o motivo. Ou será demais perguntar?

Ela não deu resposta alguma até ter a porta aberta em sua mão. Então, disse:

— Eu esperava que você fosse um ator convincente. Tinha de ser, para convencer Dorothy de que ia se casar com ela.

— O quê? — Desta vez a surpresa dele pareceu mais profunda, dolorosa. — Agora escute, eu nunca disse coisa alguma para fazê-la crer que ia casar com ela. Foi tudo dedução dela, tudo ideia dela.

— Mentiroso — ela retrucou com ódio. — Seu imundo mentiroso. — Curvou-se por trás do escudo da porta aberta e passou pelo rebordo.

— Espere! — Como se sentisse que qualquer movimento em frente a poria em fuga, ele recostou-se de volta no parapeito e depois saiu dali, seguindo a mesma rota traçada por Ellen antes. Parou diante da porta, a mais de meio metro dela. Dentro do abrigo, Ellen voltou-se para vê-lo, a mão na maçaneta, pronta para fechar a porta.

— Pelo amor de Deus — ele disse, ansiosamente. — Você quer me dizer o que é isso tudo? Por favor?

— Você acha que estou blefando? Acha que realmente não sabemos?

— Deus... — ele murmurou, violentamente.

— Muito bem. — Ela fuzilava-o com o olhar. — Eu vou dividir a coisa em partes para você. Um, ela estava grávida. Dois, você não queria...

— Grávida? — A palavra atingiu-o como uma pedrada no estomago. Ele curvou se. — Dorothy estava grávida? Foi por isso que ela fez aquilo? Foi por isso que ela se matou?

— Ela não se matou! — gritou Ellen. — Você a matou. — Bateu a porta, fechando-a, voltou-se e correu.

Correu desabaladamente pelos degraus metálicos abaixo, os saltos dos sapatos ressoando, ela agarrando-se ao corrimão e rodo- piando em cada curva, e ouvindo, antes de ter descido dois lances e meio, os pesados passos dele atrás, a sua voz gritando: “Evvie! Ellen! Espere!”, e aí já era tarde demais para pegar o elevador, porque, no momento em que contornasse todo o corredor e o carro chegasse, ele já estaria lá a sua espera, de modo que só lhe restava continuar descendo na carreira, o coração aos pulos e as pernas doendo, os catorze andares do terraço ao saguão, que perfaziam na realidade vinte e oito meios lances na espiral sombria da escada, com vinte e sete patamares para dobrar, segurando-se com os bravos, batendo-se nas paredes, ele trovejando atrás, até que ela chegou embaixo, a entrada principal, os malditos saltos dos sapatos deslizando, e ela saindo do corredor de mármore e correndo em volta, matraqueando, ecoando no saguão que mais parecia uma catedral de mármore escorregadio onde a espantada cabeça do negro despontou no elevador, e ela depois empurrava exausta a pesada porta giratória e descia mais degraus de mármore traiçoeiro e quase esbarrava numa mulher gorda na calçada e corria para a esquerda em direção a Avenida Washington até a deserta rua noturna de cidadezinha, para finalmente, reduzida a marcha, com o coração aos baques, arriscar uma olhada por cima do ombro antes de dobrar a esquina e vê-lo lá correndo pelos degraus de mármore abaixo acenando a mão e gritando “Espere! Espere!” Ela dobrou a esquina correndo novamente, ignorando o casal que se voltou para olhar e os rapazes no carro gritando “Quer uma carona?” e vendo aproximar-se cada vez mais o hotel no fim da quadra com suas portas de vidro iluminadas parecendo anúncio de hotel: “Ele também se aproxima, não olhe para trás, continue correndo”, até finalmente alcançar as belas portas de vidro e um homem sorridente abrir-lhe uma delas, divertido, “Obrigada, obrigada”, e afinal ver-se no saguão, o saguão, o seguro e cálido saguão, com criados e pessoas e homens por trás de seus jornais... Ela morria de vontade de derrear-se numa das poltronas, mas foi diretamente as cabines telefônicas do canto, porque se Gant fosse a polícia com ela, Gant, que era uma celebridade local, eles se mostrariam mais inclinados a ouvi-la, a acreditar nela, a investigar. Arquejando, pegou a lista telefônica e folheou-a até a letra “K” — eram cinco para as nove, de modo que ele ainda estaria no estúdio. Virou as páginas, apressada, contendo a respiração ofegante. Lá estava: KBRI — 5-1000. Abriu a bolsa e procurou fichas. Cinco - um mil, cinco - um mil, dizia, ao deixar a lista telefônica e erguer o olhar.

Powell estava a sua frente. Corado e arquejante, os cabelos loiros desgrenhados. Ela não teve medo; havia luzes e gente. O ódio aplainou sua pesada respiração como uma geleira.

— Você devia ter corrido na direção oposta. Não vai adiantar nada, mas eu começaria a correr, se fosse você.

E ele olhou-a com uma expressão de cão doente, suplicante, a beira das lagrimas, tão pateticamente triste que tinha de ser verdadeira, e disse baixinho, ferido:

— Ellen, eu a amava.

 

— Eu preciso dar um telefonema — ela disse —, se você não atrapalhar.

— Por favor, eu preciso falar com você — ele suplicou. — Ela estava? Ela estava realmente grávida?

— Eu preciso dar um telefonema.

— Estava? — ele exigiu.

— Você sabe que sim!

— Os jornais não disseram nada! Nada... — De repente, sua testa franziu-se e sua voz tornou-se baixa, intensa. — De quantos meses ela estava?

— Quer fazer o favor de não me atrapalhar?

— De quantos meses ela estava? — A voz dele era exigente de novo.

— Oh, Deus. De dois.

Ele emitiu um tremendo suspiro de alivio.

— Agora quer fazer o favor de sair do caminho?

— Não enquanto você não me explicar o que está acontecendo. Esse negócio de Evelyn Kittredge...

O olhar dela era ácido.

— Quer dizer que você acha mesmo que eu a matei? — ele murmurou confusamente, e não viu nenhuma mudança nos olhos estreitados, dardejantes, dela. — Eu estava em Nova York — protestou. — Posso provar isso. Passei toda a última primavera em Nova York.

Isso a abalou, mas apenas por um momento. Depois ela disse:

— Calculo que você arrumaria um jeito de provar até que estava no Cairo, se quisesse.

— Deus... — ele chiou, exasperado. — Você quer me ouvir por cinco minutos? Cinco minutos? — Olhou em torno e viu de relance a cabeça de um homem desaparecendo por trás de um jornal. — As pessoas estão ouvindo — disse. — Venha ao bar por cinco minutos. Que mal isso poderá lhe fazer? Eu não poderia lhe “fazer qualquer coisa” lá, se é isso que a preocupa.

— De que adiantará? — ela argumentou. — Se você estava em Nova York e não a matou, por que evitou olhar o prédio da prefeitura quando passamos por ele a noite passada? E por que Não queria subir ao terraço esta noite? E por que ficou olhando para o fundo da área interna daquele jeito?

Ele olhou-a desajeitadamente, sofridamente.

— Eu posso explicar — disse em voz pausada. — Apenas não sei se você poderá entender. Sabe, eu me sentia... — procurou a palavra — eu me sentia responsável pelo suicídio dela.

 

A maioria dos reservados, no bar de paredes escuras, estava sem ninguém. Copos tilintavam, e o suave piano brincava com temas de Gershwin. Sentaram-se nos mesmos lugares que haviam ocupado na noite anterior, Ellen recostando-se rigidamente contra a divisória acolchoada, como para repelir qualquer insinuação de intimidade. Quando o garçom apareceu, pediram uísques sour, e só depois de os drinques chegarem e Powell tomar o primeiro gole do seu foi que, compreendendo a intenção de Ellen de manter um silencio não comprometedor, ele começou a falar. As palavras brotaram lentamente, a princípio, e com algum embaraço.

— Eu a conheci umas duas semanas após o inicio das aulas, no ano passado — ele disse. — No ano escolar, quero dizer. Fins de setembro. Tinha-a visto antes, ela fazia duas de minhas matérias, no primeiro ano, mas só falei com ela naquele dia, porque geralmente eu ficava numa cadeira, na primeira ou segunda fila, e ela sempre se sentava no fundo, a um canto. Bem, na noite anterior a esse dia em que falei com ela, eu estivera conversando com alguns caras, e um deles comentara que as garotas caladas eram as que... — Parou, passando os dedos pelo copo e olhando-o. — E mais provável a gente se divertir com uma garota calada. Assim, quando a vi no dia seguinte, sentada no fundo, a um canto, onde sempre ficava, lembrei-me do que o cara tinha dito.

“Iniciei uma conversa com ela”, prosseguiu, “ao sairmos da sala no fim da aula. Disse que tinha esquecido de anotar a tarefa e perguntei-lhe se ela podia me dizer, e ela o fez. Creio que sabia que era só uma desculpa para puxar conversa, mas mesmo assim correspondeu tão... tão avidamente que me deixou surpreso. Quer dizer, geralmente uma garota bonita encara essas coisas superfi- cialmente, dá respostas vivas, sabe... Mas ela era tão... simples, que fez com que eu me sentisse um pouco culpado.

“Bem, de qualquer modo, saímos naquele sábado a noite, fomos a um cinema e ao Salão Florentino, do Frank’s, e realmente nos divertimos muito. Não me refiro a abraços e essas coisas. Apenas diversão. Saímos de novo no sábado seguinte, e duas vezes na outra semana e depois mais três vezes, até que finalmente, pouco antes de rompermos, estávamos nos vendo quase todas as noites. Assim que passamos a nos conhecer melhor, ela se revelou muito bacana. Inteiramente diferente do que era na aula. Feliz, Eu gostava dela.

“No início de novembro, descobri que o cara tinha razão, no que dissera sobre garotas caladas. Quanto a Dorothy, pelo menos.” Ele ergueu o olhar, seus olhos enfrentando os de Ellen frontalmente. “Você sabe o que estou querendo dizer.”

— Sim — ela disse friamente, impassível como um juiz.

— Isso é chato como o diabo para dizer a irmã de uma garota.

— Prossiga.

— Ela era uma ótima garota — ele disse, ainda encarando-a. — Apenas era... tinha uma verdadeira fome de amor. Não de sexo. De amor. — Seu olhar caiu. — Ela me falou sobre as coisas em casa, sobre a mãe, disse que queria ir à escola com você.

Um tremor percorreu-a; ela disse a si mesma que era apenas a vibração causada por alguém que se sentara no reservado atrás.

— As coisas continuaram nesse pé por algum tempo — continuou Powell, falando mais rapidamente agora, a vergonha derretendo-se em satisfação de confessionário. — Estava realmente apaixonada, pendurada em meu braço e sorrindo para mim o tempo todo. Eu disse uma vez que gostava de meias de lá; ela tricotou três pares delas. — Ele riscou o tampo da mesa com a unha, cuidadosamente. — Eu também a amava, apenas não era a mesma coisa. Era... amor-simpatia. Sentia pena dela. Foi grande bondade minha.

“Em meados de dezembro, ela começou a falar em casamento. Muito indiretamente. Foi pouco antes das ferias de Natal, e eu ia ficar aqui em Blue River. Não tenho família, só uns dois primos em Chicago e amigos da Marinha. Por isso, ela queria que eu fosse a Nova York com ela. Conhecer a família. Eu disse que não, mas ela continuou trazendo o assunto de volta, até que finalmente houve um acerto de contas.

Eu disse que ainda não estava pronto para me amarrar, e ela respondeu que muitos homens ficavam noivos e até se casavam aos vinte e dois anos, e que, se era quanto ao futuro que eu me preocupava, o pai dela arranjaria um lugar para mim. Mas eu não queria isso. Tinha minhas ambições. Um dia eu lhe falarei de minhas ambições. Eu pretendia revolucionar a publicidade americana. Bem, de qualquer modo, ela disse que ambos podíamos arranjar emprego quando deixássemos a escola, e eu disse que ela jamais poderia viver dessa forma, tendo sido rica toda a vida. Ela disse que eu não a amava, e eu respondi! que achava que ela estava certa. Claro que foi isso, mais que qualquer outra coisa.

Houve uma cena. Foi terrível. Ela chorou e disse que eu me arrependeria e todas essas coisas que uma garota diz. Depois; após algum tempo, ela mudou de tática e disse que estava errada; esperaríamos e continuaríamos como estávamos. Mas eu estivera me sentindo culpado todo aquele tempo, e assim calculei que, como já tínhamos tido aquele meio rompimento, podíamos muito bem torná-lo definitivo, e as férias eram o melhor momento para isso. Eu disse a ela que estava tudo acabado, e houve mais choros e mais ‘Você vai se arrepender’, e foi assim que acabou. Uns dois dias depois, ela partia para Nova York”.

— Durante as ferias todas ela estava de muito mau humor. Acabrunhada... buscando discussões. — Ellen disse.

Powell desenhava círculos líquidos na mesa com a base do copo.

— Apos as férias — disse — foi ruim. Ainda tínhamos aquelas duas matérias juntos. Eu me sentava na frente da sala, sem ousar olhar para trás. Ficávamos esbarrando um no outro em toda parte do campus. Por isso, decidi que estava cheio de Stoddard e pedi transferência para a Universidade de Nova York. — Ele percebeu a expressão deprimida no rosto de Ellen. — Que é que há? — disse. — Não acredita em mim? Posso provar tudo isso. Tenho uma ficha da Universidade de Nova York, e creio que ainda guardo um bilhete que Dorothy enviou para lá, quando devolveu um bracelete que eu lhe tinha dado.

— Não — disse Ellen numa voz sem expressão. — Acredito em você. Esse e o problema.

Ele dirigiu-lhe um olhar espantado, e depois continuou:

— Pouco antes de eu partir, lá pelo fim de janeiro, ela estava começando com outro cara. Eu vi...

— Outro homem? — Ellen curvou-se num gesto rápido para a frente.

— Eu os vi juntos umas duas vezes. O rompimento não fora um golpe tão duro para ela, afinal, pensei. Parti com a consciência limpa, sentindo-me até um tanto nobre.

— Quem era ele? — perguntou Ellen.

— Quem?

— O outro homem?

— Não sei. Um homem. Acho que estava numa de minhas classes. Deixe-me acabar. Li sobre o suicídio dela a 1° de maio, apenas um parágrafo nos jornais de Nova York. Corri a Times Square e arranjei um Clarion-Ledger na banca de jornais dos Estados. Comprei o Clarion todos os dias naquela semana, esperando que dissessem o que estava na nota que ela enviou a você. Não disseram. Tampouco disseram por que ela fez aquilo.

“Você pode imaginar como me senti?”, ele prosseguiu. “Não achava que ela houvesse feito aquilo por minha causa, mas pensava que era uma espécie de... de abatimento geral. Do qual eu era uma causa importante. Minha produção caiu depois disso. Estava reagindo com muita dureza. Creio que achei que devia ter notas pavorosas, para justificar o que fizera a ela. Comecei a suar frio antes de cada exame, e minhas notas eram muito baixas. Disse a mim mesmo que era por causa da transferência; na Universidade de Nova York tive de fazer um bocado de cursos que não eram exigidos em Stoddard, e perdera dezesseis créditos além disso. Assim, decidi retornar a Stoddard em setembro, para me recompor” Ele sorriu enviesadamente. “Talvez, talvez, para tentar me convencer de que não me sentia culpado”.

 

“De qualquer modo”, continuou, “foi um erro. Toda vez que via um dos lugares a que costumávamos ir, ou a Prefeitura Municipal...” Ele franziu o cenho. “Ficava dizendo a mim mesmo que tinha sido culpa dela mesma, que qualquer outra garota teria maturidade suficiente para dar de ombros... mas não adiantava muito. Cheguei a um ponto em que me vi desviando-me de meu caminho para passar pelo prédio, ferindo-me, como quando olhei a área interna esta noite, visualizando-a...”

— Eu sei — disse Ellen, apressando-o. — Eu também queria olhar. Creio que é uma reação natural.

— Não — disse Powell. — Você não sabe o que significa sentir- se responsável... — Parou, vendo o sorriso triste de Ellen. — De que está sorrindo?

— Nada.

— Bem, é isso. Agora você me diz que ela fez aquilo porque estava grávida... dois meses. E uma história podre, mas faz com que eu me sinta muito melhor. Acho que ela não estaria morta se eu não a houvesse deixado na mão, mas não se poderia esperar que eu soubesse como as coisas se desenrolariam, poderia? Quer dizer, há um limite para a responsabilidade. Se se continua a recuar, pode-se culpar qualquer um. — Ele bebeu o resto de seu drinque. — Estou satisfeito por ver que você parou em sua corrida a polícia — disse. — Não sei de onde lhe saiu a ideia de que eu a matara.

— Alguém a matou — disse Ellen.

Ele olhou-a sem dizer nada. O piano parou, entre duas seleções, e no súbito silencio ela podia ouvir o leve roçagar da roupa da pessoa no reservado as suas costas.

Inclinando-se para a frente, ela começou a falar, contando a Powell sobre o ambíguo bilhete, a certidão de nascimento, a combinação de uma coisa velha, uma coisa nova, uma coisa emprestada e uma coisa azul.

Ele ficou calado até ela terminar. Depois disse:

— Meu Deus... Não pode ser uma coincidência... — Tão ansioso quanto ela para desfazer a ideia de suicídio.

— Esse homem com quem você a viu — disse Ellen. — Tem certeza de que não sabe quem e?

— Acho que estava numa de minhas classes naquele semestre, mas as duas vezes em que os vi juntos foram bem no fim de janeiro, quando já haviam começado os exames e não havia mais aulas. Assim, não pude ter certeza nem descobrir o nome dele. E logo depois parti para Nova York.

— Não o viu de novo?

— Não sei — disse Powell. — Não tenho certeza. Stoddard e uma universidade grande.

— E está absolutamente certo de que não sabe o nome dele?

— Não sei agora — disse Powell —, mas posso descobri-lo dentro de uma hora. — Sorriu. — Sabe, eu tenho o endereço dele.


9

 

 

— EU LHE FALEI QUE os vi juntos umas duas vezes — ele disse. — Bem, a segunda vez foi uma tarde, numa lanchonete defronte do campus. Eu jamais esperava encontrar Dorothy ali; não era um lugar muito frequentado. Por isso eu estava lá. Não os vi até que me sentei ao balcão, e aí não quis me levantar e sair, porque ela já tinha me visto pelo espelho. Eu estava sentado no fim do balcão, depois havia duas garotas, e depois Dorothy e esse cara. Estavam bebendo chocolate.

“No momento em que ela me viu”, prosseguiu Powell, “começou a falar com ele e tocá-lo um bocado; você sabe, tentando me mostrar que tinha um novo namorado. Isso fez com que eu me sentisse mal, o fato de ela fazer isso. Fiquei envergonhado por ela. Depois, quando eles estavam para sair, ela deu um aceno para as duas garotas entre nós, virou-se para ele e disse numa voz mais alta que o necessário: “Vamos, podemos deixar os livros em sua casa”. Para me mostrar como eram íntimos, calculei.

“Assim que eles saíram, uma das garotas comentou com a outra como ele era bonito. A outra concordou, e depois disse alguma coisa como ‘Ele estava namorando fulana no ano passado. Parece que só se interessa pelas que tem dinheiro’. Bem, calculei que, se Dorothy estava caindo como um patinho por despeito de mim, eu devia fazer alguma coisa para que ela não se envolvesse com nenhum caça-dotes. Assim, deixei a lanchonete e os segui. Eles foram a uma casa a algumas quadras do campus. Ele tocou a campainha algumas vezes, depois retirou umas chaves do bolso, abriu a porta e entraram. Eu passei pelo outro lado da rua e anotei o endereço num de meus cadernos, Pensei em telefonar depois, quando houvesse alguém lá, e descobrir o nome dele. Tinha uma vaga ideia de falar com algumas das garotas da escola sobre ele.

“Mas não fiz isso. Na volta ao campus, a... presunção daquela coisa toda me ocorreu de repente. Quer dizer, aquilo de sair fazendo perguntas sobre o cara apenas com base numa observação feita por uma garota que provavelmente se sentira preterida. Era claro que ele não podia tratar Dorothy pior do que eu. E aquilo de ‘despeito de mim’; como eu poderia saber se eles não eram ótimos um para o outro?”

— Mas ainda tem o endereço? — perguntou Ellen ansiosamente.

— Estou certo de que sim. Tenho todas as minhas velhas anotações numa valise em meu quarto. Podemos ir lá e pegá-lo imediatamente, se você quiser.

— Sim — ela respondeu, rapidamente. — Depois, só precisamos telefonar e descobrir quem é.

— Não será necessariamente o nosso homem — disse Powell, tirando sua carteira.

— Tem de ser. Não pode ser ninguém com quem ela tenha saído muito depois disso. — Ellen levantou-se. — Ainda há um telefonema que eu gostaria de dar antes de ir.

— A seu assistente? O que estava esperando lá embaixo, pronto para chamar a policia se você não aparecesse em cinco minutos?

— Certo — ela admitiu, sorrindo. — Ele não estava esperando lá embaixo, mas há mesmo alguém.

Ela dirigiu-se ao fundo do aposento pouco iluminado, onde uma cabine telefônica pintada de negro, para combinar com as paredes do bar, se projetava para fora como um caixão de defunto de cabeça para baixo. Discou 5-1000.

— KBRI, boa noite — disse uma voz adocicada de mulher.

— Boa noite. Posso falar com Gordon Gant, por favor?

— Sinto muito, mas o programa do senhor Gant está no ar agora. Se a senhorita chamar de novo as dez horas, poderá pegá-lo antes de ele deixar o prédio.

— Eu não poderia falar com ele enquanto toca um disco?

— Sinto muito, mas não se pode telefonar para um estúdio de onde um programa está sendo irradiado.

— Bem, você poderia dar-lhe um recado?

A mulher disse numa voz cantada que teria todo o prazer em fazer isso, e Ellen disse-lhe que a srta. Ellen Kingship — soletrou o nome — mandava dizer que Powell — soletrou o nome — Não era o homem, mas tinha ideia de quem era e estava indo para a casa de Powell, e estaria de volta as dez horas, quando ele, Gant, poderia chamá-la.

— Algum número de telefone?

— Diabos — disse Ellen, abrindo a bolsa no colo. — Não tenho o número, mas o endereço — conseguiu desdobrar a folha de papel sem deixar cair a bolsa — e Rua Oeste 35, 1520.

A mulher leu o recado.

— E isso — disse Ellen. — Por favor, faça com que ele o receba.

— Clara que farei — disse a mulher, gelidamente.

— Muito obrigada.

Powell depunha moedas numa pequena bandeja de prata nas mãos do garçom, quando Ellen voltou ao reservado. Um sorriso apareceu momentaneamente no rosto do garçom, e logo desapa- receu, acompanhando um murmurado “obrigado”.

— Tudo certo — disse Ellen. Pegou o casaco, que estava dobrado sobre o encosto do banco onde ela se sentara. — A propósito, que aparência tem ele, o nosso homem? Além de ser tão bonito que provoca comentários das garotas.

— Loiro, alto... — disse Powell, pondo a carteira no bolso.

— Outro loiro — suspirou Ellen.

— Dorothy gostava de tipos nórdicos como nós.

Ellen sorriu, vestindo o casaco.

— Nosso pai é loiro, ou era, antes de perder os cabelos. Nós três.— A manga vazia do casaco de Ellen passou por cima da divisão do reservado, quando ela tentava enfiar o braço. — Des- culpe — ela disse, olhando para trás, por cima do ombro, e então viu que o reservado havia sido abandonado. Havia um cálice de coquetel e uma nota de um dólar na mesa, e um guardanapo de papel cuidadosamente esburacado de modo a formar uma delicada renda.

Powell ajudou-a com a obstinada manga.

— Pronta? — perguntou, pondo o seu casaco.

— Pronta — ela disse.

 

Eram nove e cinquenta quando o taxi parou em frente a casa de Powell. A Rua Oeste 35 estava silenciosa, fracamente iluminada por postes cujos raios tinham de vencer galhos de árvores. Casas de janelas amarelas defrontavam-se de cada lado, como tímidos exércitos exibindo bandeiras de ambos os lados da terra de ninguém.

Enquanto diminuía o ruído do táxi, que se afastava, Ellen e Powell subiram os degraus de uma varanda escura, de piso rangente. Após tentar sem sucesso enfiar a chave no buraco da fechadura, Powell finalmente conseguiu e abriu a porta. Deixou Ellen entrar na frente e acompanhou-a, fechando a porta com uma das mãos e tocando um interruptor com a outra.

Estavam numa sala de visitas de aparência agradável, cheia de volumosos móveis revestidos de chita.

— E melhor você ficar aqui embaixo — disse Powell, dirigindo- se para a escada a esquerda da sala. — Está tudo uma bagunça lá em cima. Minha senhoria está no hospital, e eu não esperava companhia. — Parou no primeiro degrau. — Provavelmente levarei alguns minutos para encontrar o caderno. Ha café solúvel na cozinha lá atrás. Quer preparar um pouco?

— Está bem — disse Ellen, despindo o casaco.

Powell subiu as escadas correndo e girou o corpo, agarrando- se a coluna. A porta de seu quarto ficava defronte, ao lado da escada. Ele entrou, acendendo a luz, e tirou o casaco. A cama desfeita, a direita das janelas, estava atulhada de pijamas e roupas sujas. Ele atirou o casaco em cima da pilha e agachou-se para puxar uma valise de baixo da cama, mas, com um sonoro estalar de dedos, levantou-se, voltou-se e dirigiu-se até a escrivaninha, que ficava imprensada entre a porta de um armário e uma cadeira de braços. Abriu a gaveta de cima e remexeu em papeis e caixinhas e echarpes e isqueiros quebrados. Encontrou o papel que queria no fundo da gaveta. Puxando-o com um floreado, foi ao patamar e inclinou-se sobre o corrimão da escada.

— Ellen! — chamou.

Na cozinha, Ellen ajustou a chama de gás sob a panela.

— Já vou! — respondeu. Atravessou depressa a sala de jantar e entrou na de visitas. — Já achou? — perguntou, dirigindo-se para a escada, de rosto erguido.

A cabeça e os ombros de Powell assomavam no alto da escada.

— Ainda não — disse. — Mas achei que você gostaria de ver isso. — Soltou uma folha de papel, que desceu ondeando. — Apenas para o caso de ainda ter alguma dúvida.

O papel pousou nos degraus diante dela. Apanhando-o, ela viu que era uma fotocopia do registro de Powell na Universidade de Nova York, com as palavras “Copia do estudante” carimbadas no documento.

— Se eu ainda tivesse alguma dúvida, não estaria aqui — disse.

— E verdade — disse Powell. — É verdade. — E desapareceu do alto da escada.

Ellen deu outra olhada no documento e notou que suas notas tinham sido na verdade bastante ruins. Pondo o papel sobre a mesa, retornou através da sala de jantar até a cozinha, que era um ambiente deprimente, com utensílios antiquados e paredes de cor creme amarronzadas nos cantos e atrás do fogão. Contudo, soprava uma brisa agradável dos fundos.

Ela encontrou xícaras e pires e uma lata de Nescafé nos vários armários, e, enquanto punha colherinhas de pó nas xícaras, notou um rádio com a caixa rachada no balcão perto do fogão. Ligou-o e, assim que ele esquentou, girou lentamente o seletor até sintonizar a KBRI. Quase passou adiante porque o pequeno aparelho de celuloide fazia a voz de Gant soar diferente, fina...

“...e chega de coisas políticas”, ele dizia. “Assim, voltemos a música. Temos o tempo exato para mais um disco, e será o falecido Buddy Clark cantando If This Isn’t Love.”

 

Tendo jogado o documento para Ellen, Powell voltou ao quarto. Agachando-se diante da cama, enfiou a mão lá embaixo, batendo os dedos dolorosamente na valise, que tinha sido puxada para a frente, fora de sua posição usual. Sacudiu a mão, mexendo os dedos e soprando-os, e amaldiçoando a nora da senhoria, que aparentemente não se satisfizera em apenas esconder os sapatos embaixo da escrivaninha.

Enfiou a mão debaixo da cama de novo, com mais cuidado dessa vez, e puxou a valise, pesada como chumbo, para fora. Pegou um molho de chaves no bolso, encontrou a chave certa e abriu-a. Tornando a guardar as chaves, suspendeu a tampa. A valise estava cheia de livros didáticos, uma raquete de tênis, uma garrafa de Canadian Club, sapatos de golfe... Ele retirou os objetos maiores e os pôs no chão, para poder chegar com mais facilidade aos cadernos, embaixo.

Havia nove cadernos de espiral, verde-pálidos. Ele os juntou numa pilha, levantou-se com eles no braço e começou a inspecionar um a um, examinando ambas as capas e deixando-os cair na mala.

Estava no sétimo, na capa de trás. O endereço, escrito a lápis, fora apagado e borrado, mas ainda era legível. Ele jogou os outros dois cadernos dentro da mala e voltou-se, a boca abrindo-se para formar o nome de Ellen num grito triunfante.

O grito não chegou a sair, porém. A expressão exultante permaneceu em seu rosto por um momento, como um filme parado, e depois rachou-se e desfez-se lentamente, como neve compacta estalando e deslizando de um telhado inclinado.

A porta do armário estava aberta, e um homem com uma capa de chuva olhava-o lá de dentro. Era alto e loiro, e um revólver avolumava-se em sua mão direita enluvada.


10

 

 

ELE SUAVA. MAS não era suor frio; eram saudáveis gotas quentes, por ter estado trancado no suadouro de um armário fechado, com uma capa de chuva impermeável. As mãos também; as luvas eram de pelica marram, com forro felpudo e punhos elásticos que mantinham ainda mais o calor; as mãos suavam tanto, que o forro estava encharcado e pastoso.

Mas a automática (sem peso, agora, como parte dele mesmo, após pesar-lhe no bolso a noite toda) estava imóvel, a inevitável trajetória da bala tão palpável no ar como uma linha pontilhada num diagrama. Ponto A: o cano, firme como uma rocha; Ponto B: o coração sob a lapela de um terno chique, provavelmente comprado em Iowa. Ele baixou o olhar para o Colt .45, como para confirmar sua existência em aço azul, tão leve lhe parecia, e depois deu um passo a frente, deixando o armário, reduzindo de pouco mais de um palmo o comprimento da linha pontilhada AB.

Ora, diga alguma coisa, pensou, desfrutando o lento e estúpido derretimento do rosto do sr. Dwight Powell. Comece a falar. Comece a implorar. Provavelmente nem pode. Provavelmente está esgotado de palavras após a — como e a palavra? — logorreia do bar do hotel. Boa palavra.

— Aposto como você sabe o que significa logorreia — ele disse, ali de pé, poderosamente, com o revolver na mão.

Powell olhava o revolver.

— Você é o tal... com Dorothy — disse.

— Significa o que você pegou. Diarreia da boca. As palavras não paravam de sair. Pensei que minha orelha ia cair, naquele bar do hotel. — Ele sorriu ao ver Powell arregalar os olhos. — Eu fui responsável pela morte da pobre Dorothy. — Ele caricaturou a expressão. — Uma pena. Uma pena mesmo. — Adiantou- se mais. — O caderno, por favor — disse a última expressão em espanhol, estendendo a mão esquerda. — E não tente correr.

Lá de baixo, vinha um canto baixinho:

 

“Se isto não e amor,

Então o inverno e verão...”

 

Pegou o caderno que Powell lhe estendeu, recuou um passo e comprimiu-o contra o seu flanco, dobrando-o pela metade, estalando a capa, sem tirar os olhos ou o revólver da mira de Powell.

— Sinto muitíssimo que você tenha encontrado isso. Eu estava ali esperando que não encontrasse. — Enfiou o caderno dobrado no bolso da capa.

— Você a matou mesmo... — disse Powell.

— Falemos baixo. — Moveu o revólver em advertência. — Não queremos perturbar a detetive, queremos? — Aborrecia-o o modo como o sr. Dwight Powell permanecia ali, tão imóvel. Talvez ele fosse estúpido demais para compreender. — Talvez você não compreenda, mas isto e um revólver de verdade, e está carregado!

Powell não disse nada. Apenas continuou olhando o revólver, nem mesmo com espanto agora — apenas olhando-o com um interesse levemente desgostoso, como se fosse a primeira joaninha do ano.

— Escute, eu vou matá-lo.

Powell não disse nada.

— Você e tão bacana para se analisar a si mesmo... diga-me, como se sente agora? Aposto que seus joelhos estão tremendo, não estão? Está coberto de suor frio?

— Ela pensava que estava indo lá para casar-se... — Powell disse.

 

— Esqueça-a! Você tem a si mesmo para se preocupar. — Por que ele não tremia? Não teria suficiente massa cinzenta?

— Por que você a matou? — Os olhos de Powell finalmente se desligaram do revólver. — Se não queria se casar com ela, podia abandoná-la. Seria melhor do que matá-la.

— Não fale dela! O que é que há com você? Pensa que estou blefando? E isso? Pensa...

Powell saltou sobre ele.

Antes de adiantar-se dez centímetros, uma grande explosão ressoou: a linha pontilhada AB se solidificara, percorrida por chumbo despedaçante.

 

Ellen estava de pé na cozinha, olhando através da janela fechada e ouvindo o prefixo do programa de Gordon Gant, que ia chegando ao fim, quando de repente compreendeu: com a janela fechada, de onde vinha aquela brisa agradável?

Havia um vão escuro num canto traseiro do aposento, Ela foi até lá e viu a porta de trás, com o painel de vidro quebrado perto da maçaneta, e fragmentos de vidro espalhados pelo chão. Imaginou se Dwight sabia daquilo. Era de esperar que houvesse varrido...

Foi quando ouviu o tiro, que ressoou alto em toda a casa, e, ao morrer a sua repercussão, houve uma leve vibração no teto, como se algo lá em cima tivesse caído. Depois, silêncio.

O rádio disse: “Ao baterem os sinos, serão dez horas da noite, horário central padrão”, e um sino tocou.

— Dwight? — disse Ellen.

Não houve resposta.

Ela foi até a sala de jantar. Chamou mais alto:

— Dwight!

Na sala de jantar, dirigiu-se hesitantemente para a escada. Nenhum som vinha lá de cima. Dessa vez ela disse o nome com uma apreensão que lhe deixava a garganta seca:

— Dwight!

O silêncio manteve-se por um momento. Depois, uma voz disse:

— Tudo bem, Ellen, Suba.

Ela correu escada acima com o coração batendo.

— Aqui — disse a voz, a direita.

Ela rodopiou em torno da coluna e ficou de frente para o quarto iluminado.

A primeira coisa que viu foi Powell caído de costas no meio do quarto, as pernas abertas molemente. O casaco aberto descobria o seu peito. Na camisa branca, o sangue desenhava uma flor em torno de um buraco escuro no coração.

Ela apoiou-se no batente da porta. Depois, ergueu o olhar para o homem de pé além de Powell, o homem com o revólver na mão.

Os olhos dela arregalaram-se, seu rosto ficou rígido, com perguntas que não podiam deixar os seus lábios.

Ele mudou o revolver de posição e ficou como se avaliasse o seu peso na mão enluvada,

— Eu estava no armário — disse, olhando-a dentro dos olhos, respondendo às perguntas não feitas. — Ele abriu aquela mala e retirou este revólver. Ia matar você. Saltei sobre ele e o revólver disparou.

— Não... Oh, Deus... — Ela esfregou a testa, estonteada. — Mas como... como você...?

Ele guardou o revólver no bolso do casaco.

— Eu estava no bar do hotel — disse. — Bem atrás de você. Ouvi-o convencendo-a a vir até aqui. Saí quando você estava na cabine telefônica.

— Ele me disse que...

— Eu ouvi o que ele lhe disse. Era um bom mentiroso.

— Oh, Deus, e eu acreditei nele... Eu acreditei nele...

— É esse exatamente o seu problema — ele disse, com um sorriso de perdão. — Você acredita em todo o mundo.

— Oh, Deus... — Ela teve um calafrio.

Ele aproximou-se dela, pisando entre as pernas abertas de Powell.

— Mas ainda não entendo... Como você estava lá, no bar? — ela disse.

— Eu estava esperando por você no saguão. Não a vi quando saiu com ele. Cheguei atrasado. Fiquei danado com isso. Mas esperei. Que mais poderia ter feito?

— Mas como... como...?

Ele estava diante dela com os bravos abertos, como um soldado de volta ao lar.

— Escute, uma heroína não deve questionar o homem que a salvou por um triz. Simplesmente dê graças a Deus por ter me dado o endereço dele. Eu podia pensar que você estava bancando a tola, mas não ia comer nenhum risco de vê-la com os miolos estourados.

Ela lançou-se nos braços dele, soluçando de alivio e medo retardado. A mão enluvada em couro bateu em suas costas, confortadoramente.

— Tudo bem, Ellen — ele disse baixinho. — Está tudo bem agora.

Ela enterrou a cabeça no ombro dele.

— Oh, Bud — soluçou. — Gramas a Deus por você. Graças a Deus por você, Bud.


11

 

 

O TELEFONE TOCOU lá embaixo.

— Não atenda — ele disse, quando ela começou a afastar-se.

Havia um brilho sem vida na voz dela:

— Eu sei quem é.

— Não, não atenda. Escute. — As mãos eram sólidas e convincentes em seus ombros. — Alguém certamente ouviu o tiro. A polícia provavelmente estará aqui em alguns minutos. Os repórteres também. — Deixou a informação penetrar na consciência dela. — Você não quer que os jornais façam um escarcéu com isso, quer? Desenterrando tudo sobre Dorothy, retratos seus...

— Não há como detê-los...

— Há. Estou com um carro lá embaixo. Levo-a de volta ao hotel e depois retorno aqui. — Apagou a luz. — Se a polícia não tiver aparecido ainda, eu a chamarei. Então você não estará aqui, para os repórteres lhe saltarem em cima. E eu me recusarei a falar até ficar a sós com os policiais. Eles a interrogarão depois, mas os jornais não saberão que você está envolvida. — Conduziu-a para o corredor. — A essa altura, você já terá chamado seu pai; ele tem influência suficiente para impedir a policia de deixar transpirar qualquer coisa sobre você ou Dorothy. Podem dizer que Powell estava bêbado e iniciou uma briga comigo, ou alguma coisa assim.

O telefone parou de tocar.

— Eu não me sentiria bem saindo assim... — ela disse, quando começavam a descer as escadas.

— Por que não? Fui eu quem fez a coisa, não você. Não que eu vá mentir sobre sua presença aqui; preciso de você para confirmar minha historia. Só quero é impedir os jornais de ganharem o dia com isso, — Voltou-se para ela, quando chegaram a sala de jantar. — Confie em mim, Ellen — disse, tocando a mão dela.

Ela deu um profundo suspiro, liberando agradecidamente a tensão e a responsabilidade de cima de seus ombros.

— Está bem — disse. — Mas você não precisa me levar de carro. Posso pegar um táxi.

— Não a esta hora, não sem telefonar. E acho que os bondes param de funcionar às dez. — Ele pegou o casaco dela e ajudou-a a vesti-lo.

— Onde você arranjou um carro? — ela perguntou.

— Tomei emprestado. — Ele deu-lhe a bolsa. — De um amigo. — Apagando as luzes, abriu a porta para a varanda. — Vamos — disse. — Não temos muito tempo.

Ele estacionara o carro do outro lado da rua, uns quinze metros abaixo. Era um Buick preto, sedã, de dois ou três anos antes. Abriu a porta para Ellen, depois contornou o carro até o outro lado e enfiou-se atrás do volante. Mexeu na chave de ignição. Ellen estava calada, as mãos cruzadas no colo.

— Está se sentindo bem? — ele perguntou.

— Estou — ela disse, a voz débil e cansada. — Apenas... ele ia me matar... — Suspirou. — Pelo menos, eu estava certa quanto a Dorothy. Sabia que ela não cometera suicídio. — Conseguiu externar um sorriso de reprovação. — E você tentou me convencer a não fazer esta viagem...

Ele deu partida ao motor.

— É — disse. — Você estava certa.

Ela ficou silenciosa por um momento.

— De qualquer forma, há um arremate perfeito para isso tudo.

— O que é? — Ele engatou a marcha e o carro deslizou para a frente.

— Você, você salvou minha vida — ela disse. — Realmente salvou minha vida. Isso deve liquidar qualquer objeção que meu pai possa ter, quando você o conhecer e falarmos sobre nós.

 

Depois de percorrerem a Avenida Washington por alguns minutos, ela aproximou-se dele e, hesitantemente, pegou o seu braço, esperando que isso não interferisse na direção. Sentiu algo duro pressionar seu quadril e compreendeu que era o revólver no bolso dele, mas não se afastou.

— Escute, Ellen —· ele disse. — Vai ser um negócio sujo, você sabe.

— Como assim?

— Bem, eu serei acusado de assassinato.

— Mas você não pretendia matá-lo! Estava tentando tomar o revolver dele.

— Eu sei, mas mesmo assim terão de me prender... todo tipo de burocracia... — Deu uma rápida olhada a figura abatida a seu lado, e depois voltou a olhar em frente. — Ellen... quando voltarmos ao hotel, você poderia simplesmente pegar suas coisas e pedir a conta. Poderíamos estar de volta a Caldwell em umas duas horas.

— Bud! — A voz dela saiu aguda, numa surpresa reprovação. — Não podemos fazer uma coisa dessas!

— Por que não? Ele matou sua irmã, não matou? Recebeu o que merecia. Por que nós devemos nos envolver...?

— Não podemos fazer isso — ela protestou. — Além de ser uma coisa... errada, o que acontecerá se descobrirem, de algum modo, que você... o matou? Aí jamais acreditariam na verdade, porque você fugiu.

— Não vejo como poderiam descobrir que fui eu — ele disse. — Estou de luvas, de modo que não haverá impressões digitais. E ninguém me viu, a não ser você e ele.

— Mas suponhamos que descubram! Ou que culpem outra pessoa por isso! Como você se sentiria então? — Ele ficou calado. — Assim que chegar ao hotel, vou chamar meu pai. Quando ele ouvir a história, tenho certeza de que cuidará dos advogados e tudo o mais. Creio que vai ser uma coisa terrível! Mas fugir...

— Foi uma sugestão tola — ele disse. — Na verdade, eu não esperava que você concordasse.

— Não, Bud, você não iria fazer uma coisa dessas, iria?

— Pensei nisso apenas como um último recurso — disse. E, de repente, girou o carro numa ampla volta a esquerda, deixando a órbita iluminada da Avenida Washington para as trevas de uma estrada em direção ao norte.

— Você não devia continuar pela Washington? — perguntou Ellen.

— Chegamos mais rápido por aqui. Menos trafego.

— O que não consigo entender — ela disse, batendo a cinza do cigarro na borda do cinzeiro, no painel do carro — é por que ele não me fez nada lá em cima, no terraço. — Estava conforta- velmente instalada, voltada para Bud, sentada sobre a perna esquerda, o cigarro proporcionando-lhe uma sedativa calidez.

— Vocês devem ter dado muito na vista, indo lá à noite — ele disse. — Provavelmente, ele teve medo de que o ascensorista ou alguém mais se lembrasse do rosto dele.

— É, acho que foi isso. Mas não teria sido menos arriscado do que me levar para a casa dele e... fazer aquilo lá?

— Talvez ele não pretendesse faze-lo lá. Talvez obrigasse você a entrar num carro e a levasse para algum lugar no campo.

— Ele não tinha carro.

— Poderia ter roubado um. Não é tão difícil roubar um carro. — A luz de um poste pelo qual passavam iluminou o rosto dele, que depois mergulhou nas trevas, as feições bem delineadas tocadas apenas pelo verde nebuloso dos painéis.

— As mentiras que ele me contou! “Eu a amava. Eu estava em Nova York.” — Ela esmagou o cigarro no cinzeiro, balançando a cabeça com raiva. — Oh, meu Deus! — arquejou.

Ele lançou-lhe uma olhada.

— O que é?

A voz dela assumira sua frieza doentia outra vez.

— Ele me mostrou a cópia de sua inscrição... na Universidade de Nova York. Ele estava em Nova York.

— Provavelmente era falsificada. Ele devia conhecer alguém da seção de matrículas lá. Pode-se falsificar uma coisa dessas.

— Mas, e se não fosse... E se ele estivesse falando a verdade?

— Ele ia atrás de você com um revólver. Não será isso prova suficiente de que estava mentindo?

— Você tem certeza, Bud? Tem certeza de que ele não... tal- vez ele tirasse o revólver para fora a fim de pegar outra coisa. O caderno de que falara.

— Ele se dirigia para a porta com o revólver.

— Oh, Deus, se ele realmente não matou Dorothy... — Ela ficou em silêncio por um momento. — A polícia investigará — disse positivamente. — Vão provar que ele estava exatamente aqui, em Blue River. Vão provar que ele matou Dorothy!

— Correto — ele disse.

— Mas mesmo que ele não o tenha feito, Bud, mesmo que tenha sido um... um terrível engano... Não o culparão por isso. Você não tinha meios de saber, viu-o com o revólver. Jamais poderiam culpar você de nada.

— Correto — ele disse.

Mudando intranquilamente de posição, ela retirou a perna esquerda de baixo da outra. Deu uma olhada em seu relógio a luz dos painéis. — São dez e vinte e cinco. Não devíamos ter chegado, já?

Ele não respondeu.

Ela olhou pela janela. Não havia mais postes nem prédios. Havia apenas a escuridão dos campos, sob o negrume pontilhado de estrelas do céu.

— Bud, este não e o caminho para a cidade.

Ele não respondeu.

A frente do carro, a brancura da estrada estreitava-se até o suposto infinito, além do alcance dos faróis.


12

 

 

— O QUE É QUE VOCÊ quer de mim? — o chefe de polícia Eldon Chesser perguntou em voz baixa. Estava deitado de costas, as longas pernas com os calcanhares apoiados num dos braços do sofá revestido de chita, a mão frouxamente metida na frente de sua camisa de flanela vermelha, os grandes olhos castanhos fitando vagamente o teto.

— Que vá atrás do carro. É isso o que eu quero — disse Gordon Gant, fuzilando-o com os olhos, do meio da sala.

— Ah, ah — disse Chesser. — Ah, ah. Um carro escuro, e tudo o que o vizinho sabe; após o que disse ter sido um tiro, viu um homem e uma mulher descerem a quadra e entrarem num carro escuro. Um carro escuro com um homem e uma mulher. Você sabe quantos carros escuros há rodando pela cidade com um homem e uma mulher? Não obtivemos nenhuma descrição da garota até que você entrou aqui como uma bala. A esta altura, eles podem estar a meio caminho de Cedar Rapids. Ou estacionados em alguma garagem há duas quadras daqui, pelo que sabemos.

Gant andava de um lado para outro, enfurecido.

— Então o que devemos fazer?

— Esperar, é tudo. Avisei aos rapazes da policia rodoviária, não avisei? Talvez esta seja uma noite de vigília. Por que não se senta?

— Claro, sentar! — cortou Gant. — Ela pode ser assassinada! — Chesser ficou calado. — No ano passado, a irmã... e agora ela.

— Lá vamos nós de novo — disse Chesser. Os olhos castanhos fecharam-se, cansados. — A irmã dela se suicidou — explicou lentamente. — Eu mesmo vi o bilhete. Um especialista em caligrafia... — Gant emitiu um ruído. — E quem a matou? — perguntou Chesser. — Você disse que devia ter sido Powell, só que agora não pode ser ele, porque a garota lhe deixou um recado dizendo isso, e você descobriu este documento aí, da Universidade de Nova York, que faz parecer que ele não estava por estes lados na última primavera. Assim, se o principal suspeito não é o homem, quem é? Resposta: ninguém.

Com a voz tensa de repetir sempre a mesma coisa, Gant disse:

— O recado dela dizia que Powell tinha uma ideia de quem era. O assassino deve ter sabido que Powell...

— Não houve assassinato, até esta noite — disse Chesser, sem rodeios. — A irmã se suicidou. — Piscou os olhos, abrindo-os, e fitou o teto.

Gant fuzilou-o com o olhar e continuou seu irado passeio para um lado e para outro.

Após alguns minutos, Chesser disse:

— Bem, acho que tenho tudo reconstituído agora.

— É... — disse Gant.

— É... Você não acha que eu estava deitado aqui apenas por pura preguiça, acha? Este é o modo de pensar, com os pês mais altos que a cabeça. O sangue desce para o cérebro. — Limpou a garganta. — O homem invade a casa por volta de quinze para as dez... o vizinho ouviu o vidro sendo quebrado, mas achou que não era nada, não há sinal de que qualquer dos outros quartos tenha sido visitado. Assim, o de Powell deve ter sido o primeiro que ele encontrou. Alguns minutos depois, chegam Powell e a garota. O cara está escondido lá em cima. Esconde-se no armário de Powell... as roupas estão todas empurradas para um lado. Powell e a garota vão para a cozinha. Ela começa a fazer café, liga o radio. Powell sobe para pendurar seu casaco, ou talvez por ter ouvido algum barulho. Surge o cara. Já tentou abrir a mala... encontramos pelos de luvas nela. Faz Powell abri-la. Material espalhado por todo o chão. Talvez encontre alguma coisa, algum dinheiro. De qualquer modo, Powell salta sobre ele. O cara fuzila-o. Provavelmente em pânico, provavelmente não pretendia atirar nele... nunca pretendem; só andam armados para amedrontar as vitimas. E sempre acabam atirando nelas. Calibre 45. Provavelmente um Colt do Exército. Ha milhões deles por aí. Em seguida, vê a garota correndo para cima... As mesmas impressões no batente da porta e nas xícaras e utensílios da cozinha. O cara está em pânico, não tem tempo para... Obriga-a a partir com ele.

— Por que? Por que não a deixaria lá... como deixou Powell?

— Não me pergunte. Talvez não tivesse coragem. Ou talvez tivesse alguma ideia. As vezes eles tem certas ideias quando estão com um revólver na mão e uma garota bonita na frente.

— Obrigado — disse Gant. — Isso me fez sentir-me muito melhor. Muito obrigado.

Chesser suspirou.

— É melhor você se sentar — disse. — Não há absolutamente nada que possamos fazer, senão esperar.

Gant sentou-se. Começou a esfregar a testa com a palma da mão.

Chesser finalmente desviou os olhos do teto. Observou Gant sentado do outro lado da sala.

— Quem é ela? Sua namorada? — perguntou.

— Não — disse Gant, Lembrou-se da carta que lera no quarto de Ellen. — Ela tem um cara lá em Wisconsin.


13

 

 

ATRÁS DA VELOZ ILHA de luz criada pelos faróis, o carro disparava sobre a linha reta da rodovia, as falhas tapadas com piche entre as placas de concreto provocando um ritmo regular sob os pneus. A agulha do velocímetro, de um verde luminoso, passava dos setenta e cinco quilômetros. O pé no acelerador era firme como o pé de uma estatua.

Ele dirigia com a mão esquerda, dando ocasionalmente ao volante um leve toque para a direita ou esquerda, para aliviar a hipnótica monotonia da estrada. Ellen encolhia-se contra a porta, o corpo enroscado, os olhos fitando desoladamente as mãos, que torciam um lenço, no colo. No espaço entre eles, como uma serpente, a mão direita dele apontava-lhe o revolver, a boca do cano colada contra o seu quadril.

Ela havia chorado; longos gemidos guturais arrastados, como os de um animal; mais soluços e convulsões do que lágrimas.

Ele lhe contara tudo, numa voz irada, olhando frequentemente seu rosto iluminado de verde nas trevas. Houve momentos de desajeitada hesitação em sua narração, como um soldado de licença, que conta como ganhou suas medalhas, hesita antes de descrever para o pessoal da cidade como a baioneta rasgou o estômago de um inimigo, mas prossegue porque lhe perguntaram por que conquistara as medalhas, não perguntaram? — e descreve a coisa com irritação e um leve desprezo pela delicada gente da cidade, que nunca teve de rasgar o ventre de ninguém. Assim, ele falou a Ellen sobre as pílulas e o terraço, e por que fora então o curso mais lógico transferir-se para Caldwell e procurá-la, a Ellen, sabendo de seus gostos e antipatias através das conversas de Dorothy, e como se apresentar de modo a parecer o homem por quem ela estivera esperando — Não apenas a coisa mais lógica e inevitável a fazer, ir atrás da garota com a qual tinha tal vantagem, mas também o curso mais ironicamente satisfatório, o curso mais recompensador pela má sorte passada (o curso mais desafiador da lei, mais escarninho, mais satisfatório para o seu ego); disse-lhe essas coisas com irritação e desprezo; a garota com as mãos sobre a boca, horrorizada, teve tudo numa bandeja de prata; não sabia o que era viver numa corda bamba sobre o pantanal do fracasso, esgueirando-se perigosamente centímetro por centímetro em direção ao sólido terreno do êxito, a tantos quilômetros de distancia.

Ela ouvia com o cano do revólver pressionando dolorosamente seu quadril; dolorosamente só a princípio, depois dormentemente, como se aquela parte dela já estivesse morta, como se a morte viesse do revólver, não numa rápida bala, mas em lenta radiação do ponto de contato. Ela ouvia, e depois chorava, pois estava tão nauseada, abatida e chocada que nada mais havia que pudesse fazer para expressar isso tudo. Seu choro eram longos gemidos guturais arrastados; mais som e convulsão do que lágrimas.

E ficava olhando abatida as mãos que torciam o lenço no colo.

— Eu disse a você para não vir — disse ele rabugentamente. — Eu pedi a você para ficar em Caldwell, não pedi? — Olhava-a de relance, como se esperasse confirmação. — Mas não. Não, você tinha de bancar a detetive! Bem, é isso que acontece a garotas detetives. — Seus olhos retornaram a rodovia. — Se pelo menos você soubesse o que tenho passado desde segunda-feira — continuou, lembrando como o mundo desabara sobre ele quando Ellen telefonara: “Dorothy não se suicidou! Estou indo para Blue River”, a corrida até a estação, quase não a alcançando, a desesperada e inútil tentativa de impedi-la de partir, mas ela subira no trem: “Eu lhe escreverei neste minuto! Explicarei toda a coisa!”, deixando-o parado lá, olhando-a deslizar para longe, suando, aterrorizado. Ficava doente, só de pensar nisso.

Ellen disse algo inaudível.

— O que?

— Eles o pegarão...

Apos um momento de silencio, ele disse:

— Sabe quantos não são apanhados? Mais de cinquenta por cento, eis quantos. Talvez muito mais. — Após outro momento, perguntou: — Como irão me pegar? Impressões digitais? Nenhuma. Testemunhas? Nenhuma. Motivo? Nenhum que saibam. Nem sequer pensarão em mim. O revólver? Eu tenho de atravessar o Mississippi para voltar a Caldwell; adeus, revólver. Este carro? As duas ou três da manhã eu o deixo a umas duas quadras de onde o peguei; pensarão que foram alguns ginasianos malucos. Delinquentes juvenis. — Sorriu. — Fiz isso a noite passada também. Sentei-me duas filas atrás de você e Powell no cinema, e estava logo além da esquina quando ele lhe deu um beijo de boa-noite. — Olhou-a, para ver sua reação; nenhuma visível. Seu olhar retornou a estrada e seu rosto anuviou-se outra vez.

— Aquela carta sua; como suei até recebê-la! Quando comecei a lê-la, pensei que estava seguro; você buscava alguém que ela conhecera no curso de inglês, no outono; eu só a conheci em janeiro; e foi no de filosofia. Mas depois compreendi quem era o cara atrás do qual você estava. O velho Meias de Lá, meu predecessor. Tínhamos tido matemática juntos, e ele me vira com Dorothy. Pensei que talvez soubesse meu nome. Eu sabia que, se ele a convencesse de que nada tivera com o assassinato de Dorothy... se mencionasse meu nome a você...

De repente, comprimiu o pedal do freio e o carro chiou até parar. Passando a mão esquerda por cima do volante, ele mudou a marcha. Quando pisou no acelerador de novo, o carro rolou lentamente para trás. À direita, apareceu a escura forma de uma casa pequena por trás de um amplo pátio de estacionamento. Os faróis do carro, que recuava, mostraram um grande anuncio vertical a beira da estrada: LILLIE E DOAN’S — O BIFE SUPREMO. Um cartaz menor pendia do maior: REABRE A 15 DE ABRIL.

Ele engatou a primeira, girou o volante para a direita e acelerou. Atravessou o estacionamento e parou ao lado da baixa construção, deixando o motor ligado. Tocou alto a buzina; uma longa clarinada dentro da noite. Esperou um minuto, e depois tocou novamente. Nada aconteceu. Nenhuma janela se abriu, nenhuma luz se acendeu.

— Parece que não há ninguém — disse, desligando os faróis.

— Por favor... — ela disse. — Por favor...

Na escuridão, o carro rolou para a frente, dobrou a esquerda, passou por trás da casa, onde o asfalto do estacionamento dava numa pequena área pavimentada. O carro rodopiou numa curva perigosa, quase saindo da beira do asfalto para a terra de um campo que se estendia até encontrar-se com a escuridão do céu. Girou completamente, até ficar de frente para a direção de onde vinha.

Ele puxou o freio de mão e deixou o motor funcionando.

— Por favor... — ela disse.

Ele olhou-a.

— Você acha que eu quero fazer isso? Acha que me agrada a ideia? Estávamos quase noivos! — Abriu a porta a esquerda. — Mas você tinha de bancar a espertinha... — Saiu para o asfalto, mantendo-a sob a mira do revólver. — Venha cá — disse. — Saia por este lado.

— Por favor...

— Bem, que devo fazer, Ellen? Não posso deixá-la ir, posso? Eu lhe pedi que retornasse a Caldwell sem dizer nada, não pedi? — Movimentou o revólver num gesto irritado. — Saia.

Ela passou por cima dos assentos, agarrando a bolsa. Desceu ao asfalto.

O revolver orientava-a, num percurso semicircular, até que ela ficou de costas para o campo, a arma entre ela e o carro.

— Por favor... — ela disse, agarrando a bolsa como um inútil escudo — por favor...


14

 

 

Do Clarion-Ledger, de Blue River.

Quinta-feira, 15 de março de 1951:

 

Duplo Assassinato na Cidade

Policia procura pistoleiro misterioso

 

Num período de duas horas, na noite passada, um pistoleiro desconhecido cometeu dois assassinatos brutais. As vitimas foram Ellen Kingship, de 21 anos, da cidade de Nova York, e Dwight Powell, de 23 anos, de Chicago, estudante da Universidade de Stoddard...

O assassinato de Powell ocorreu às 10 horas da noite, na casa da sra. Elizabeth Honig, West 35th Street, 1520, onde o rapaz alugava um quarto. Segundo a reconstituição que a polícia pode fazer, Powell, ao entrar em casa acompanhado da srta. Kingship, foi ao segundo andar, onde encontrou um arrombador armado, que antes invadira a casa pela porta dos fundos...

O exame médico estabeleceu a hora da morte da srta. Kingship mais ou menos a meia-noite. Seu corpo, no entanto, só foi encontrado as 7h20 da manhã, quando Willard Herne, de 11 anos, da vizinha cidade de Randalia, atravessou um campo próximo do restaurante... A polícia soube por Gordon Gant, locutor da KBRI e amigo da srta. Kingship, que ela era irmã de Dorothy Kingship, que se suicidou em abril passado saltando do terraço da Prefeitura Municipal de Blue River...

Leo Kingship, presidente da Kingship Copper Inc. e pai da garota assassinada, e esperado em Blue River esta tarde, acompanhado de sua filha Marion Kingship.

 

Editorial do Clarion-Lelger:

Quinta-feira, 19 de abril de 1951:

 

Demissão de Gordon Gant

Ao demitir Gordon Gant de seu emprego (ver pág. 5), a direção da KBRI observa que, “apesar de frequentes avisos, ele insistiu em usar os microfones (da KBRI) para atacar e denegrir o Departamento de Polícia, de uma maneira que beirava a calunia”. A questão em pauta eram os assassinatos Kingship e Powell, de um mês atrás, nos quais o sr. Gant tinha um interesse pessoal um tanto áspero. Suas críticas públicas a polícia eram, para dizer o mínimo, indiscretas, mas, considerando-se que não se fez nenhum progresso para solucionar o caso, vemo-nos obrigados a concordar com a procedência de suas observações, se não com sua validade.


15

 

 

NO FIM DO ANO LETIVO, ele retornou a Menasset e ficou rondando pela casa em sombria depressão. A mãe tentou combater seu mau humor, e depois começou a refletir sobre o assunto. Discutiam, como brasas alimentando-se uma a outra. Para sair de casa e de si mesmo, ele retornou o antigo trabalho no armarinho. Das nove às cinco e meia, ficava atrás de um balcão com mostruário de vidro, sem olhar as laminas de cobre envernizado.

 

Certo dia, em julho, ele tirou a pequena caixa-forte cinza de seu armário. Abrindo-a sobre a escrivaninha, retirou os recortes de jornais sobre o assassinato de Dorothy. Rasgou-os em pedacinhos e jogou-os na cesta de lixo. Fez o mesmo com os recortes de Ellen e Powell. Depois, pegou os folhetos da Kingship; escrevera pedindo-os uma segunda vez, quando começara a sair com Ellen. Segurando-os, pronto para rasgá-los, sorriu tristemente. Dorothy, Ellen...

Era como pensar: “Fé, Esperança...”; “Caridade” brota na mente para preencher a sequência.

Dorothy, Ellen... Marion.

Sorriu consigo mesmo e amassou os folhetos.

Mas descobriu que não podia rasgá-los. Lentamente, colocou- os sobre a escrivaninha, alisando com gestos mecânicos as rugas deixadas por sua mão.

Empurrou a caixa-forte e os folhetos para o fundo da escrivaninha e sentou-se. Escreveu no alto de uma folha de papel: “Marion”, e dividiu-a em duas colunas com uma linha vertical. Em cima de uma coluna escreveu: “Pros”, e na outra: “Contras”.

Havia muitas coisas a relacionar sob “Pros”: meses de conversas com Dorothy, meses de conversas com Ellen, todas recheadas de referências de passagem a Marion: seus gostos, antipatias, opiniões, seu passado. Conhecia-a como um livro, sem jamais tê-la encontrado: solitária, amarga, vivendo sozinha... Um alvo perfeito.

Também a emoção estava do lado dos “Pros”. Outro risco. Marque um tento, e os dois perdidos antes desaparecem. E havia o número de sorte... terceira vez, sorte... todos os contos de fadas infantis com a terceira tentativa, o terceiro desejo e o terceiro candidato a mão da princesa...

Não conseguiu pensar em nada para por sob os “Contras”.

Naquela noite, rasgou a lista de Pros e Contras e iniciou outra, das características de Marion Kingship, suas opiniões, gostos e antipatias. Fez várias anotações, e nas semanas que se seguiram aumentava regularmente a lista. Em todo momento livre, recuava a mente para as conversas com Dorothy e Ellen; conversas em lanchonetes, entre aulas, passeando, dançando; dragando palavras, frases e sentenças do fundo da memoria. Às vezes passava noites inteiras deitado de costas, lembrando, uma pequena parte de sua mente sonhando, a parte maior, menos consciente, como um contador Geiger que acusasse a presença de Marion.

À medida que a lista crescia, sua disposição melhorava. Às vezes, tirava o papel da caixa-forte mesmo quando nada tinha a acrescentar — apenas para admirá-lo; a argucia, o planejamento, o poder que ele exibia. Era quase tão bom quanto ter os recortes sobre Dorothy e Ellen.

— Você está louco — disse a si mesmo, em voz alta, um dia, olhando a lista. — Você é um biruta louco — disse com afeição; achava-se ousado, audaz, brilhante, intrépido e corajoso.

— Não vou voltar à escola — disse a mãe um dia, em agosto.

— O quê? — Ela estava de pé, pequena e mirrada, na entrada do quarto dele, uma mão paralisada no ato de ajeitar os cabelos grisalhos.

— Vou para Nova York dentro de algumas semanas.

— Você precisa concluir a escola — ela disse, queixosamente.

Ele ficou calado.

— O que é, arranjou emprego em Nova York?

— Não, mas vou arranjar um. Tenho uma ideia e quero trabalhar em cima dela. Um... um projeto, mais ou menos.

— Mas você precisa acabar a escola, Bud — ela disse, hesitan- temente.

— Eu não “preciso” fazer coisa alguma! — ele cortou. Houve um silencio. — Se essa ideia falhar, o que não creio que aconteça, sempre posso concluir a escola no ano que vem.

As mãos dela limparam nervosamente a frente do vestido caseiro.

— Mas você já passou dos vinte e cinco. Você precisa... acabar a escola e iniciar-se em alguma coisa. Não pode ficar...

— Escute, quer me deixar viver minha própria vida?

Ela olhava-o incredulamente.

— Era o que o seu pai me dizia sempre — disse calmamente, e afastou-se.

Ele permaneceu ao lado da escrivaninha por alguns momentos, ouvindo o irado bater dos talheres na pia da cozinha. Pegou uma revista e olhou-a, fingindo não se importar.

Poucos minutos depois, porem, foi à cozinha. A mãe estava a pia, de costas para ele.

— Mãe — disse suplicante—, você sabe que estou tão ansioso quanto você para chegar a algum lugar. — Ela não se voltou.

— Sabe que eu não deixaria a escola se essa ideia não fosse uma coisa importante. — Passou para o outro lado e sentou-se a mesa, olhando as costas dela. — Se não der certo, eu concluirei a faculdade no próximo ano. Prometo que concluo, mãe.

Relutantemente, ela se voltou.

— Que tipo de ideia é essa? — perguntou, lentamente. — Alguma invenção?

— Não, não posso lhe dizer — ele respondeu, constrangido. — Esta apenas na fase de planejamento. Sinto muito...

Ela suspirou e enxugou as mãos numa toalha.

— E não pode esperar até o ano que vem? Quando você concluísse a faculdade?

— No ano que vem seria tarde demais, mãe.

Ela depôs a toalha.

— Bem, eu gostaria que você me dissesse do que se trata.

— Sinto muito, mãe. Eu também gostaria de poder dizer. Mas é uma dessas coisas que simplesmente não se podem explicar.

Ela foi para trás dele e pôs as mãos em seus ombros. Ficou ali por um momento, olhando o ansioso rosto dele voltado para cima.

— Bem — disse, apertando os seus ombros —, creio que deve ser uma boa ideia.

Ele sorriu para ela, feliz.


Terceira parte

 

 

MARION


1

 

 

QUANDO MARION KINGSHIP se diplomara na faculdade (Universidade de Columbia, instituição que exigia longas horas de árduos estudos, muito diferente daquele parque de diversões estilo Twentieth Century Fox do Meio-Oeste no qual Ellen entrara), o pai mencionara discretamente o fato ao chefe da agenda de publicidade que tratava da conta da Kingship Copper, e ofereceram-lhe um emprego como redatora. Embora ela ansiasse por escrever anúncios, recusara a oferta. Afinal, conseguira encontrar colocação numa pequena agência onde Kingship era apenas um nome estampado nos canos do banheiro, e onde lhe asseguraram que, num futuro não muito distante, ela poderia apresentar anúncios para algumas das contas menores, contanto que a elaboração desse material não interferisse em suas obrigações de secretária.

Um ano depois, tendo Dorothy seguido inevitavelmente as pegadas de Ellen e partido para as torcidas de futebol e beijos no campus, Marion viu-se sozinha num apartamento de oito quartos com o pai, os dois como bolas metálicas carregadas de eletri- cidade que oscilam e passam uma pela outra sem nunca se tocar. Decidiu então, contra a desaprovação obvia mas muda do pai, encontrar um lugar para si mesma.

Alugou um apartamento de duas peças no terraço de uma mansão convertida em prédio de apartamentos no East Side, na Rua 50. Mobiliou-o com grande cuidado. Como as duas peças eram menores que as que ela ocupava na casa do pai, não pode levar todas as suas coisas consigo. As que levou, portanto, foram fruto de considerada seleção. Disse a si mesma que estava escolhendo as coisas de que mais gostava, as que maior significado tinham para ela, o que era verdade; mas enquanto pendurava cada quadro e colocava cada livro na estante, via-os não só pelos seus próprios olhos, mas também pelos olhos de um visitante que viesse algum dia ao seu apartamento, um visitante ainda não identificado, a não ser quanto ao sexo. Cada artigo revestia-se de significado, um indicador do seu ego; os móveis, abajures e cinzeiros (modernos, mas não modernosos), a reprodução de sua pintura favorita (Meu Egito, de Charles Demuth; não exatamente realista, os pianos acentuados e enriquecidos pelos olhos do pintor), os discos (alguns de jazz e alguns de Stravinsky e Bartok, mas sobretudo os de temas melódicos, para ouvir na penumbra, de Grieg, Brahms e Rachmaninov) e os livros — especialmente os livros, pois que melhor indicador da personalidade existe? (romances e peças, ensaios e versos, tudo escolhido na proporção e representação de seu gosto). Era como a abreviação concentrada de um anuncio pedindo um auxiliar. A egocentricidade que motivava isso não era a das pessoas mimadas, mas a das muito pouco mimadas; as solitárias. Fosse ela uma pintora, teria pintado um auto-retrato; em lugar disso, decorara dois quartos, cobrindo-os com objetos que algum visitante, algum dia, reconheceria e entenderia. E através desse entendimento adivinharia todas as capacidades e anseios que ela descobrira em si mesma e era incapaz de comunicar.

O roteiro de sua semana centrava-se em torno de dois pontos- chave: nas noites de quarta-feira jantava com o pai, e no sábado fazia uma limpeza completa das duas peças. O primeiro era uma questão de dever; o segundo, de amor. Ela encerava as madeiras e polia os vidros, espanava e recolocava os objetos no lugar com cuidado sacramental.

Houve visitantes. Dorothy e Ellen tinham vindo, quando estavam de ferias em casa, invejando-a não muito convenientemente como mulher do mundo. O pai também vinha, arquejante após os três lances de escada, olhando duvidosamente a pequena sala de visitas, o quarto de dormir, a cozinha ainda menor, e balançando a cabeça. Vinham algumas garotas do escritório, que jogavam canastra como se estivessem em causa a vida e a honra. E uma vez viera um homem; o jovem e brilhante executivo da contadoria; muito bonito, muito inteligente. Seu interesse pelo apartamento manifestara-se em olhares de esguelha ao sofá.

Quando Dorothy se suicidou, Marion retornou ao apartamento do pai durante duas semanas, e quando Ellen morreu, ficou com ele um mês. Mas os dois não podiam aproximar-se mais um do outro do que bolinhas de eletricidade, por mais que tentassem. No fim do mês, ele sugeriu com uma humildade incomum que ela voltasse permanentemente. Marion não podia; a ideia de deixar seu próprio apartamento era inimaginável, como se ela houvesse guardado nele uma parte muito grande de si mesma. Mas depois disso passou a jantar três vezes por semana com o pai, em vez de apenas uma.

No sábado limpava os quartos, e uma vez por mês abria todos os livros, para impedir que as lombadas endurecessem.

 

Numa manhã de sábado, em setembro, o telefone tocou. Marion, de joelhos, polindo a parte de baixo do tampo de vidro de uma mesa de café, sentiu-se gelar ao som da campainha. Olhou através do vidro azulado, o pano de limpeza estendido, esperando que fosse um engano, que alguém houvesse discado o número errado, percebesse isso no último momento e desligasse. O telefone tocou de novo. Relutantemente, ela ergueu-se e foi até a mesa ao lado do sofá, ainda com o pano de limpeza na mão.

— Alô — disse, sem nenhuma expressão.

— Alô. — A voz era de homem, desconhecida. — E Marion Kingship?

— Sim.

— Você não me conhece. Eu era... um amigo de Ellen. — Marion sentiu-se de repente sem jeito; um amigo de Ellen; alguém bonito, inteligente e convincente... Alguém chato no fundo, alguém a quem ela não ligaria, de qualquer modo. Seu desconcerto desapareceu.

— Meu nome — disse o homem — e Burton Corliss... Bud Corliss.

— Oh, sim. Ellen me falou de você...

“Eu o amo tanto”, ela dissera na visita que acabara sendo a última, “e ele também me ama” — e Marion, apesar de sentir-se feliz por ela, ficara por algum motivo sombria o resto da noite.

— Imaginei se podia conhecer você — disse ele. — Tenho uma coisa que pertenceu a Ellen. Um livro dela. Ela me emprestou pouco antes... antes de ir para Blue River, e pensei que você gostaria de tê-lo.

Provavelmente algum romance do Livro do Mês, pensou Marion, e depois, odiando-se por sua mesquinharia, disse:

— Sim, eu gostaria muito de tê-lo. Sim, gostaria.

Por um momento, fez-se silencio do outro lado da linha.

— Eu poderia levá-lo agora — ele disse. — Estou aqui perto.

— Não — ela disse, rapidamente. — Vou sair.

— Bem, então, alguma hora amanhã...

— Eu... Não estarei aqui amanhã também. — Ela mudou incomodamente de posição, envergonhada de estar mentindo, envergonhada por não o querer em seu apartamento. Provavelmente seria amável, e amara Ellen, e Ellen estava morta, e ele dava-se ao trabalho de dar-lhe o livro de Ellen... — Podíamos nos encontrar em algum lugar esta tarde — propôs.

— Ótimo — ele disse. — Isso seria ótimo.

— Eu estarei... pela Quinta Avenida.

— Então vamos nos encontrar em frente a estatua do Rockefeller Center, a de Atlas sustentando o mundo.

— Está certo.

— Às três da tarde?

— Sim. Às três da tarde. Muito obrigada por telefonar. É muita bondade sua.

— Nem diga isso — ele respondeu. — Até logo, Marion. — Houve uma pausa. — Eu me sentiria estranho chamando-a de senhorita Kingship. Ellen falava muito de você.

— Está bem... — Ela sentia-se sem jeito de novo, e constrangida. — Até logo... — disse, incapaz de decidir se o chamava de Bud ou sr. Corliss.

— Até logo — ele repetiu.

Ela repôs o telefone no gancho e ficou olhando-o um momento. Depois, voltou-se e foi para a mesa de café. Ajoelhando-se, retomou o trabalho, passando o pano de limpeza em arcos incomumente apressados, porque agora toda a tarde estava compro- metida.


2

 

 

À SOMBRA DA IMENSA ESTÁTUA de bronze, ele dava as costas para o pedestal, imaculado num terno cinza, um embrulho embaixo do braço. A sua frente, passavam rios de gente apressada, para um lado e para outro, movendo-se lentamente em relação ao pano de fundo de ônibus e táxis tonitruantes. Ele olhava os rostos cuidadosamente, O cenário da Quinta Avenida; homens sem ombreiras e com gravatas de laços finos; mulheres constran- gidamente elegantes em trajes feitos sob encomenda, lenços engomados no pescoço, as belas cabeças erguidas, como se houvesse fotógrafos a espera mais adiante. E, como pardais de passagem num aviário, os róseos rostos rurais olhando embasbacados a estátua e as espirais da Catedral de São Patrício do outro lado da rua. Observava-os todos cuidadosamente, tentando lembrar o instantâneo que Dorothy lhe mostrara havia tanto tempo. “Marion podia ser muito bonita, apenas usa os cabelos assim.” Sorriu, lembrando o feroz franzir de cenho de Dorrie ao arrepanhar os cabelos para trás, empertigadamente. Seus dedos brincaram com uma dobra no papel do embrulho.

Ela veio do lado norte, e ele a reconheceu quando ainda estava a uns trinta metros. Era alta e esbelta, um pouco esbelta demais, e vestia-se quase como as mulheres em torno dela; um traje marrom, um lenço dourado, um pequeno chapéu de feltro estilo Vogue, uma bolsa de alga passada sobre o ombro. Parecia rígida e desconfortável no traje, porém, como se as roupas houvessem sido feitas segundo as medidas de outra pessoa. Os cabelos arrepanhados para trás eram castanhos. Tinha os grandes olhos castanhos de Dorothy, mas em seu rosto tenso eles eram grandes demais, e os altos pômulos tão bonitos nas irmãs eram em Marion definidos demais. Ao se aproximar, ela o viu. Com um sorriso inseguro, interrogador, chegou mais perto, parecendo pouco a vontade sob o holofote do olhar dele. Ele notou que o batom era daquele rosa-pálido associado com tímidas adolescentes, que ainda estão fazendo experiências.

— Marion?

— Sim. — Ela ofereceu a mão hesitantemente. — Como vai? — disse, dirigindo um sorriso rápido demais a um ponto mais ou menos abaixo dos olhos dele.

A mão que estendia tinha dedos longos e era fria.

— Alô — ele disse. — Eu estava ansioso para conhecê-la.

 

Foram a um bar decididamente em estilo colonial americano, do outro lado da esquina. Marion, após alguma indecisão, pediu um daiquiri.

— Eu... eu não posso demorar muito, lamento — ela disse, sentada ereta na borda de sua cadeira, os dedos rígidos em torno do cálice.

— Para onde estão sempre correndo essas lindas mulheres? — ele perguntou com um sorriso, e imediatamente percebeu que era a abordagem errada; ela sorriu tensamente, e pareceu tornar-se mais desconfortável. Ele olhou-a curiosamente, deixando morrer o eco de suas palavras. Após um momento, começou de novo. — Você trabalha numa agenda de publicidade, não?

— Camden and Galbraith — ela disse. — Você ainda está em Caldwell?

— Não.

— Julguei ter ouvido Ellen dizer que você era terceiranista.

— Estava, mas tive de deixar a escola. — Ele bebericou seu martini. — Meu pai morreu. Eu não queria que minha mãe trabalhasse mais.

— Oh, sinto muito.

— Talvez eu possa concluir o curso no próximo ano. Ou talvez vá para uma escola noturna. Que escola você frequentou?

— Columbia. Você é de Nova York?

— Massachusetts.

Toda vez que ele tentava orientar a conversa em torno dela, ela a desviava para ele. Ou para o tempo. Ou para um garçom que tinha notável semelhança com Claude Rains.

Afinal, ela perguntou:

— É esse o livro?

— Sim. Jantar no Antoine’s. Ellen queria que eu o lesse. Há algumas anotações pessoais feitas por ela na sobrecapa, de modo que achei que você gostaria de tê-lo. — Passou-lhe o embrulho.

— Pessoalmente — ela disse —, prefiro livros que tenham um pouco mais de significado.

Marion levantou-se.

— Tenho de ir agora — disse, como um pedido de desculpas.

— Mas você nem acabou a sua bebida.

— Sinto muito — ela disse apressadamente, olhando o embrulho em suas mãos. — Tenho um compromisso. Um compromisso comercial. Não posso me atrasar.

Ele levantou-se.

— Mas...

— Sinto muito. — Ela olhava-o desconfortavelmente.

Ele pôs o dinheiro na mesa.

Retornaram a Quinta Avenida. Na esquina, ela ofereceu-lhe novamente a mão. Ainda estava fria.

— Foi um prazer conhecê-lo, senhor Corliss — disse. — Obrigada pela bebida. E pelo livro. Aprecio isso... muita consideração... — Voltou-se e fundiu-se no mar de gente.

Ele ficou, vazio, parado na esquina por um momento. Depois cerrou os lábios e começou a andar,

Seguiu-a. O chapéu marrom tinha um enfeite dourado que brilhava intensamente. Ele ficou uns dez metros atrás dela.

Marion subiu até a Rua 54, onde atravessou a avenida, dirigindo-se para leste, para a Madison. Ele sabia aonde ela estava indo; lembrava-se do endereço na lista telefônica. Ela atravessou a Madison e a Park. Ele parou na esquina e observou-a subir os degraus da mansão.

— Compromisso comercial — murmurou. Esperou por ali alguns minutos, sem saber exatamente o que esperava, e depois caminhou lentamente de volta a Quinta Avenida.


3

 

 

DOMINGO À TARDE, Marion foi ao Museu de Arte Moderna. O andar principal ainda estava ocupado por uma exposição de automóveis que ela vira antes e achara desinteressante, e o segundo andar achava-se incomumente cheio, de modo que continuou a subir a escada em espiral até o terceiro, para passear por lá, entre pinturas e esculturas agradavelmente conhecidas, a branca suavidade arqueada da Moça Lavando o Cabelo, a lança perfeita do Pássaro no Espaço.

Dois homens estavam na sala que apresentava as esculturas de Lehmbruck, mas saíram logo depois que ela entrou, deixando-a sozinha no frio cubo cinza com as duas estátuas, a masculina e a feminina, ele de pé e ela ajoelhada, em cantos opostos do aposento, os corpos alongados e melancolicamente belos. A atenuação das estátuas dava-lhes um ar celestial, quase como a arte religiosa, de modo que Marion sempre pudera olhá-las sem nada do embaraço que geralmente sentia ao ver esculturas de nus. Rodeou lentamente a figura do jovem.

— Alô. — A voz soou atrás dela, agradavelmente surpresa.

Deve ser comigo, ela pensou, não há mais ninguém aqui.

Voltou-se.

Bud Corliss sorria na entrada da sala.

— Alô — ela disse, confusamente.

— Este é realmente um mundo pequeno — ele disse, aproximando-se. — Entrei logo atrás de você, lá embaixo, apenas Não tinha certeza se era você. Como vai?

Bem, obrigada. — Houve uma pausa incomoda. — E você? — ela acrescentou.

— Bem, obrigado.

Voltaram-se para a estátua. Por que ela se sentia tão pouco a vontade? Porque ele era bonito? Porque fizera parte do circulo de Ellen? Haviam partilhado das torcidas de futebol, dos beijos no campus e do amor...

— Você costuma vir aqui com frequência? — ele perguntou.

— Sim.

— Eu também,

A estátua constrangia-a agora, porque Bud Corliss estava a seu lado. Ela voltou-se e dirigiu-se para a figura da mulher ajoelhada. Ele continuou a seu lado.

— Você chegou a tempo aquele encontro?

— Cheguei — ela disse. O que o trouxera ali? Seria de esperar que estivesse passeando pelo Central Park com alguma imaculada e emproada Ellen pendurada no braço...

Olhavam a estátua. Após um momento, ele disse:

— Eu realmente achei que não era você, lá embaixo.

— Por que não?

— Bem, Ellen não era do tipo que vai a museus...

— Irmãs não são exatamente iguais — ela disse.

— Não, acho que não. — Ele começou a contornar a figura ajoelhada. — O Departamento de Belas-Artes de Caldwell tinha um pequeno museu — disse. — A maioria, reproduções e cópias. Arrastei Ellen para lá uma ou duas vezes. Pensei em doutriná-la. — Balançou a cabeça. — Não tive sorte.

— Ela não se interessava por arte.

— Não — ele disse. — É engraçado o modo como tentamos impor nossos gostos as pessoas de quem gostamos.

Marion olhou-o, parado diante dela, do outro lado da estatua.

— Certa vez eu trouxe Ellen e Dorothy... Dorothy era nossa irmã caçula...

— Eu sei...

— Eu as trouxe aqui uma vez, quando entravam na adolescência. Mas elas ficaram entediadas. Creio que eram novas demais.

— Não sei — ele disse, refazendo seu caminho circular em direção a ela. — Se houvesse um museu em minha cidade quando eu tinha essa idade... Você vinha aqui quando tinha doze ou treze anos?

— Vinha.

— Está vendo? — ele disse. Seu sorriso tornava-os companheiros num grupo ao qual Ellen e Dorothy nunca haviam pertencido.

Um homem e uma mulher com duas crianças atrás irromperam pela sala adentro.

— Passemos adiante — ele sugeriu, novamente ao lado dela.

— Eu...

— É domingo — ele disse. — Não há compromissos comerciais. — Sorriu para ela; um sorriso muito bonito, suave e apaziguante. — Eu estou sozinho; você está sozinha... — Pegou-a delicadamente pelo braço, — Vamos — disse, com um sorriso persuasivo.

Atravessaram o terceiro andar e metade do segundo, comentando as obras que viam, e depois desceram para o térreo, passando pelos automóveis, absurdos dentro de um prédio, e saindo pelas portas de vidro para o jardim atrás do museu. Andaram de estátua em estátua, parando diante de cada uma. Chegaram a mulher de Maillol, de corpo inteiro, estridente.

— A última das mamães em brasa — disse Bud.

Marion sorriu.

— Vou lhe dizer uma coisa... — disse.

— Sempre fico um tanto constrangida olhando... estátuas como esta.

— Esta constrange até a mim, um pouco — ele disse, sorri- dente. — Não é um nu; é uma nua. — Riram ambos.

Depois de olharem todas as estátuas, sentaram-se num dos bancos no fundo do jardim e acenderam cigarros.

— Você e Ellen estavam namorando firme, não estavam?

— Não exatamente.

— Eu pensava...

— Não oficialmente, quero dizer. De qualquer modo, namorar firme na faculdade nem sempre significa a mesma coisa que fora da faculdade.

Marion fumava em silêncio.

— Nós tínhamos um bocado de coisas em comum, mas eram principalmente coisas superficiais; as mesmas aulas, os mesmos conhecidos... coisas que se relacionavam com Caldwell. Mas, assim que deixássemos a escola, não creio que fossemos... Não creio que nos casássemos. — Ele fitava o cigarro. — Eu gostava de Ellen. Gostava mais dela do que de qualquer outra garota que conheci antes. Fiquei arrasado quando ela morreu. Mas... Não sei... Não era uma pessoa muito profunda. — Fez uma pausa. — Espero não estar ofendendo você.

Marion balançou a cabeça, olhando-o.

— Era tudo como esse negócio de museus. Pensei que podia pelo menos interessá-la em alguns dos artistas mais simples, como Hopper ou Wood. Mas não funcionou. Ela não se interessava mesmo. E era a mesma coisa com livros ou política; qualquer coisa séria. Ela queria sempre estar fazendo alguma coisa.

— Tinha vivido uma vida restrita em casa. Creio que procurava compensar.

E ele disse:

— E, depois, era quatro anos mais jovem que eu. — Ele apagou seu cigarro. — Mas foi a garota mais doce que já conheci.

Houve uma pausa.

— Nunca descobriram nada sobre quem fez aquilo? — ele perguntou, incredulamente.

— Nada. Não é terrível?...

Ficaram em silêncio por um momento. Depois, recomeçaram a conversar; sobre quantas coisas interessantes para se fazer em Nova York, e como o museu era um lugar.., agradável; sobre a exposição de Matisse que se realizaria em breve.

— Sabe de quem eu gosto? — ele perguntou.

— Quem?

— Não sei se você conhece a obra dele — ele disse. — Charles Demuth.


4

 

 

LEO KINGSHIP ESTAVA sentado com os cotovelos fincados na mesa, os dedos trançados em torno de um copo de leite gelado, que examinava como se fosse um belo vinho tinto.

— Você o tem visto frequentemente, não tem? — perguntou, tentando parecer casual.

Com elaborado cuidado, Marion colocou sua xicara de café no circulo interno do pires Aynsley azul e ouro, e depois olhou o pai, do outro lado dos cristais e pratas e damascos da mesa. O rosto vermelhão dele estava plácido. O reflexo das luzes embranquecia as lentes de seus óculos, ocultando os olhos.

— Bud? — ela perguntou, sabendo que era a ele que o pai se referia.

Kingship assentiu com a cabeça.

— Sim — Marion disse, sem rodeios, — Tenho-o visto frequentemente. — Fez uma pausa. — Ele vem aqui esta noite, dentro de uns quinze minutos. — Olhou o rosto sem expressão do pai com olhos ansiosos, esperando que não houvesse nenhuma discussão, porque isso estragaria toda a noite, e ao mesmo tempo esperando que houvesse, pois isso poria a prova a força do que ela sentia por Bud.

— Esse emprego dele — disse Kingship, depondo o copo de leite. — Quais são as perspectivas?

Após um frio momento, Marion disse:

— Está na equipe de treinamento de executivos. Deve ser gerente de seção dentro de poucos meses. Por que todas essas perguntas? — Sorria apenas com os lábios.

Kingship retirou os óculos. Seus olhos azuis chocavam-se incomodamente com o frio olhar de Marion.

— Você o trouxe aqui ontem para jantar, Marion — ele disse. — Você nunca trouxe ninguém para jantar antes. Isso não me dá direito a lhe fazer algumas perguntas?

— Ele mora numa pensão — disse Marion. — Quando não come comigo, come sozinho. Por isso eu o trouxe para jantar uma noite.

— Nas noites em que você não janta aqui, janta com ele?

— Sim, quase sempre. Por que devemos ambos comer sozinhos? Trabalhamos a apenas cinco quadras um do outro. — Perguntava-se por que estava sendo tão evasiva; não fora surpreendida fazendo nada errado. — Comemos juntos porque gostamos da companhia um do outro — disse firmemente. — Gostamos muito um do outro.

— Então eu tenho direito a fazer algumas perguntas, não tenho? — Kingship observou, calmamente.

— É alguém de quem eu gosto. Não é nenhum candidato a um emprego na Kingship Copper.

— Marion...

Ela pegou um cigarro num copo de prata e acendeu-o com um isqueiro de mesa, também de prata.

— Você não gosta dele, gosta?

— Eu não disse isso.

— Porque ele é pobre — ela disse.

— Não é verdade, Marion, e você sabe disso.

Houve silêncio por um momento.

— Oh, sim — disse Kingship —, ele é pobre mesmo. Deu-se ao trabalho de mencionar isso exatamente três vezes ontem a noite. E aquela história que enfiou na conversa da mulher para a qual a mãe dele costurava.

— Que mal há no fato de a mãe dele costurar para fora?

— Nenhum, Marion, nenhum. Foi o modo como ele se referiu a isso tão casualmente. Sabe quem ele me lembrou? Lá no clube há um homem com uma perna ruim, um pouco capenga. Toda vez que jogamos golfe, ele diz: “Vão na frente, rapazes. O velho Perna de Pau os alcançará”. Assim, todo o mundo anda mais devagar, e a gente se sente mal pra burro se o vence.

— Receio não perceber a semelhança — disse Marion. Levantou-se da mesa e foi para a sala de visitas, deixando Kingship a esfregar a mão desesperadamente nos poucos cabelos branco-amarelados que atravessavam escassamente a sua cabeça.

Na sala, havia uma grande janela que dava para o rio East. Marion ficou parada diante dela, a mão no grosso tecido da cortina. Ouviu o pai entrar, as suas costas.

— Marion, creia-me, eu só quero a sua felicidade. — Ele falava desajeitadamente. — Sei que nem sempre fui tão... preocupado, mas eu não... tenho sido melhor desde que Dorothy e Ellen...?

— Eu sei — ela admitiu relutantemente. Correu os dedos pela cortina. — Mas já tenho quase vinte e cinco... uma mulher adulta. Não precisa me tratar como se...

— Simplesmente não quero que você se precipite sobre alguma coisa, Marion.

— Não estou me precipitando — ela disse baixinho.

— E só o que eu quero.

Marion tinha os olhos fixos num ponto além da janela.

— Por que você não gosta dele? — perguntou.

— Não desgosto. Ele... eu não sei, eu...

— Tem medo de que eu me distancie de você? — Ela fez a pergunta lentamente, como se a ideia a surpreendesse.

— Você já esta distante de mim, não está? Naquele apartamento. Ela voltou-se da janela e ficou de frente para Kingship, ao lado da sala.

— Sabe, na verdade você devia ser grato a Bud — ela disse. — Vou lhe dizer uma coisa. Eu não queria trazê-lo para jantar aqui. Assim que sugeri a ideia, me arrependi. Mas ele insistiu. “E seu pai”, disse. “Pense nos sentimentos dele.” Está vendo, ele e sensível a esses laços de família, mesmo eu não sendo. Assim, você devia ser grato a ele, e não antagonizá-lo. Porque, se ele fizer alguma coisa, será para nos aproximar mais. — Voltou-se de novo para a janela.

— Está bem — disse Kingship. — Ele é provavelmente um rapaz maravilhoso. Só quero ter certeza de que você não cometera nenhum erro.

— Que quer dizer? — Ela voltou-se da janela novamente, desta vez mais devagar, o corpo enrijecendo-se.

— Simplesmente não quero que você cometa erros, só isso — disse Kingship, inseguramente.

— Vai fazer mais perguntas sobre ele? — quis saber Marion.

— A outras pessoas? Mandou alguém fazer investigação sobre ele?

— Não!

— Como fez com Ellen?

— Ellen tinha dezessete anos na época! E eu estava certo, não estava? Aquele rapaz valia alguma coisa?

— Bem, eu tenho vinte e cinco, e sei o que quero! Se você mandar alguém fazer investigações sobre Bud...

— Essa ideia jamais passou pela minha mente!

Os olhos de Marion atravessavam-no.

— Eu gosto de Bud — ela disse lentamente, a voz contida. — Gosto muito dele. Você sabe o que significa isso, encontrar finalmente alguém de quem a gente gosta?

— Marion, eu...

— Assim, se você fizer qualquer coisa, qualquer coisa que seja, para fazer com que ele se sinta mal recebido ou indesejável, para fazê-lo sentir que não é suficientemente bom para mim... eu jamais o perdoarei. Juro por Deus que jamais falarei com você, enquanto eu viver.

Voltou-se para a janela.

— A ideia jamais passou pela minha mente, Marion, eu juro... — Ele olhava inutilmente as costas rígidas dela, e depois afundou-se numa poltrona com um suspiro de cansaço.

Poucos minutos depois, a campainha da porta da frente soou. Marion deixou a janela e atravessou a sala em direção a dupla porta que levava ao saguão.

— Marion. — Kingship levantou-se.

Ela parou e olhou-o. Do saguão vinha o som da porta abrindo-se e um murmúrio de vozes.

— Peça a ele para ficar alguns minutos... tomar um drinque.

Passou-se um momento.

— Está certo — ela disse. — Na porta, hesitou por um segundo. — Sinto ter falado do jeito que falei. — Saiu.

Kingship observou-a deixar a sala. Depois, virou-se e ficou olhando a lareira. Recuou um passo e olhou-se no espelho inclinado sobre a borda da lareira. Olhou o homem bem alimentado, no terno de trezentos e quarenta dólares, na sala de visitas de setecentos dólares por mês.

Depois, empertigou-se, pôs um sorriso no rosto e encaminhou- se para a porta, estendendo a mão direita.

— Boa noite, Bud — disse.


5

 

 

O ANIVERSARIO DE MARION caiu num sábado, no início de novembro. Pela manhã, ela fez às pressas a faxina do apartamento. À uma da tarde, foi a um pequeno prédio numa tranquila travessa da Park Avenue, onde uma discreta placa ao lado de uma porta informava que as instalações eram ocupadas não por um psiquiatra ou um decorador de interiores, mas por um restaurante. Leo Kingship estava a espera além da porta branca, sentado rigidamente num sofá Luís XV e examinando um exemplar de Gourmet, da casa. Depôs a revista, levantou-se, beijou o rosto de Marion e desejou-lhe feliz aniversario. Um maitre d’hotel, com dedos adejantes e dentes de neon, conduziu-os a sua mesa, esca- moteou o cartão de “Reservada” e ajudou-os a sentar-se com efusão gaulesa. Havia um buque de rosas no centro da mesa, e no lugar de Marion uma pequena caixa embrulhada em papel branco e nuvens de fita dourada. Kingship fingiu não notá-la. Enquanto se ocupava com a carta de vinhos e o “Se posso fazer uma sugestão, monsieur”, Marion livrou a caixa de seu dourado emaranhado, a excitação colorindo suas faces e fazendo luzirem os seus olhos. Aninhado entre camadas de algodão, havia um disco de ouro, a superfície constelada de minúsculas perolas. Ela soltou uma exclamação pelo broche e, depois que o maitre se afastou, agradeceu feliz ao pai, apertando a mão dele, que jazia como que por acaso perto da sua, sobre a mesa.

Não era um broche que ela própria escolheria; tinha um desenho elaborado demais para o seu gosto. A felicidade, no entanto, era autêntica, inspirada pelo presentear, embora não pelo presente. No passado, a lembrança de aniversario padrão de Leo Kingship as filhas era sempre um cartão de presente no valor de cem dólares, cobrável numa loja da Quinta Avenida, assunto automaticamente resolvido por sua secretaria.

 

Após deixar o pai, Marion passou algum tempo num salão de beleza, e depois voltou a seu apartamento. No fim da tarde, a campainha soou. Ela comprimiu o botão que abria a entrada lá embaixo. Poucos minutos depois, apareceu um mensageiro a sua porta, arquejando dramaticamente, como se viesse carregando algo muito mais pesado que uma caixa de florista. A gorjeta de vinte e cinco centavos suavizou sua respiração.

Dentro da caixa, envolta em papel lustroso verde, estava uma orquídea branca, arranjada num ramalhete. O cartão que a acom- panhava dizia simplesmente: “Bud”. Defronte a um espelho, ela experimentou a flor nos cabelos, na cintura, no ombro. Depois, foi até a cozinha e colocou a flor, dentro da caixa, na pequena geladeira, borrifando primeiro algumas gotas de agua nas pétalas tropicais, de grossas ranhuras.

Ele chegou pontualmente às seis. Deu dois toques rápidos no botão junto à placa com o nome de Marion e ficou a espera no apertado corredor, retirando uma luva de camurça cinza para pegar um fio de linha na lapela de seu casaco azul-marinho. Em breve, soaram passos na escada. A porta com cortina abriu-se, e ela apareceu radiante, a orquídea explodindo brancamente em seu casaco negro. Tomaram-se as mãos. Desejando-lhe o mais feliz dos aniversários, ele beijou-a na face, para não borrar o seu batom, que notou ser de um tom mais escuro que o que ela usava quando o encontrou a primeira vez.

Foram a uma churrascaria na Rua 52. Os preços do cardápio, apesar de consideravelmente mais baixos que os do lugar que Marion escolhera para almoçar, pareceram-lhe exorbitantes, porque os via pelos olhos de Bud. Ela sugeriu que ele fizesse um pedido para os dois. Comeram sopa de cebola preta e bifes de lombo, precedidos por coquetel de champanha.

— A você, Marion.

Ao final da refeição, colocando dezoito dólares na bandeja do garçom, ele surpreendeu uma leve ruga no rosto dela.

— Bem, e o seu aniversario, não é? — ele disse, sorrindo.

Do restaurante, eles tomaram um taxi até o teatro onde encenavam Santa Joana. Sentaram-se na plateia, na sexta fila do centro. Durante o intervalo, Marion estava extraordinariamente volúvel, seus olhos de corça reluzindo com um intenso brilho quando falava de Shaw, da interpretação e de uma celebridade que se sentava na fila a frente deles. Durante a peça, as mãos dos dois estavam cálidas, uma na outra.

Depois — porque, como ela disse a si mesma, Bud já gastara muito dinheiro naquela noite — Marion sugeriu que fossem ao apartamento dela.

— Sinto-me como um peregrino que finalmente tem permissão de entrar no santuário — ele disse, quando enfiava a chave na fechadura. Girou-a, e também a maçaneta, simultaneamente.

— Não é nada sensacional — disse Marion, as palavras saindo rápidas. — Realmente. Chamam a isso duas peças, porém mais parece uma; a cozinha e tão minúscula!

Ele empurrou a porta, retirando a chave, que entregou a ela. Marion entrou no apartamento e estendeu a mão até um interruptor ao lado da porta. Lâmpadas encheram o aposento de uma luz difusa. Ele entrou, fechando a porta atrás de si. Ela virou-se para olhar o rosto dele. Os olhos de Bud corriam as paredes cinza-escuras, as cortinas de listras azuis e brancas, os móveis de carvalho. Ele emitiu um murmúrio de apreciação.

— É muito pequeno — disse Marion.

— Mas lindo — ele disse. — Muito lindo.

— Obrigada. — Ela afastou-se, tirando a orquídea do casaco, subitamente tão pouco à vontade quanto ao conhecê-lo. Pôs o ramalhete na penteadeira e começou a despir o casaco. As mãos dele ajudaram-na.

— Belos móveis — ele disse, sobre o ombro dela.

Marion pendurou mecanicamente os casacos dos dois no armário, e depois voltou-se para o espelho em cima da penteadeira. Com dedos desajeitados, prendeu a orquídea no ombro do vestido castanho-avermelhado, os olhos fixos, além do seu próprio reflexo, na imagem de Bud. Ele caminhara até o centro do aposento. Diante da mesa de café, tinha nas mãos um prato de cobre, quadrado. Seu rosto, de perfil, não tinha expressão alguma, não indicando se gostava ou não da peça. Marion sentiu-se paralisada.

— Hum — ele disse finalmente, gostando. — Presente de seu pai, aposto.

— Não — ela disse para o espelho. — Foi Ellen quem me deu.

— Oh! — Ele olhou o prato por mais um momento e depois o recolocou no lugar.

Correndo o dedo pela gola do vestido, Marion voltou-se do espelho e observou-o cruzar o aposento com três passadas descontraídas. Ficou diante da baixa estante e olhou o quadro na parede, acima. Marion observava-o.

— Nosso velho amigo Demuth — ele disse.

Olhou-a, sorrindo. Ela retribuiu o sorriso. Ele olhou o quadro de novo. Após um momento, Marion adiantou-se e foi para o lado dele.

— Nunca pude compreender por que ele intitulou um quadro de um elevador de cereais Meu Egito — disse Bud.

— É isso que é? Nunca soube ao certo.

— Mas é um belo quadro. — Ele voltou-se para ela. — O que é que há? Tenho alguma sujeira no nariz ou algo assim?

— O que?

— Você estava olhando...

— Oh, não! Gostaria de beber alguma coisa?

— Hum-hum.

— Só tenho vinho.

— Perfeito.

Marion voltou-se em direção a cozinha.

— Antes de ir... — Ele tirou uma caixinha embrulhada do bolso. — Feliz aniversário.

— Oh, Bud, você não devia!

— Eu não devia — ele imitou-a simultaneamente. — Mas não está feliz por eu tê-lo feito?

Havia brincos de prata na caixa, simples triângulos polidos.

— Oh, obrigada! São adoráveis! — Marion exclamou, e beijou-o.

Ela correu a penteadeira para experimentá-los. Ele veio para trás dela, olhando-a no espelho. Depois de ela prender ambos os brincos, ele virou-a para si.

— “Adorável” é a palavra certa — disse ele.

Depois do beijo ele disse:

— Agora, onde está aquele vinho de que falávamos?

Marion veio da cozinha com uma garrafa de Bardolino envolta em ráfia e dois copos numa bandeja. Bud, sem paletó, estava sentado de pernas cruzadas no chão, em frente a estante, com um livro aberto no colo.

— Não sabia que você gostava de Proust — disse.

— Oh, gosto! — Ela pôs a bandeja na mesa de café.

— Aqui — ele disse, indicando a estante. Marion transferiu a bandeja para lá. Encheu dois copos e entregou um a ele. Segurando o outro, descalçou os sapatos e sentou-se no chão ao lado dele. Ele folheava as páginas do livro. — Vou lhe mostrar a parte pela qual sou louco — disse.

 

Apertou o botão. O braço levantou-se lentamente e mergulhou sua cabeça de serpente na borda externa do disco. Fechando a tampa do fonógrafo, ele atravessou o quarto e sentou-se ao lado de Marion, no sofá de capa azul. Ressoaram as primeiras notas do piano, profundas, do Concerto n° 2 de Rachmaninov.

— Exatamente o disco certo — disse Marion.

Recostando-se contra o grosso almofadão que corria ao longo de toda a parede, Bud percorreu o aposento com o olhar, agora a luz de uma única lâmpada.

— E tudo tão perfeito aqui! — disse. — Por que não me convidou antes?

Ela pegou um fio de ráfia que se agarrara a um dos botões da frente de seu vestido.

— Não sei... — disse. — Eu... pensei que talvez você não gostasse.

— Como poderia deixar de gostar? — ele perguntou.

 

Os dedos dele agiam com destreza, descendo a fila de botões. As mãos dela, quentes, fecharam-se sobre a sua, contendo-a sobre seus seios.

— Bud, eu nunca... fiz nada antes.

— Sei disso, querida. Não precisa me dizer.

— Nunca amei ninguém antes.

— Nem eu, tampouco. Nunca amei ninguém. Até conhecê-la.

— Você esta falando a verdade? Está?

— Só você.

— Nem mesmo Ellen?

— Só você. Juro.

Beijou-a outra vez.

A mão dela soltou a sua e ergueu-se para as faces dele.


6

 

 

Do New York Times.

Segunda-feira, 24 de dezembro de 1951:

 

Marion J. Kingship

Casa-se Sábado

A srta. Marion Joyce Kingship, filha do sr. Leo Kingship, de Manhattan, e da falecida Phyllis Hatcher, casa-se com o sr. Burton Corliss, filho da Sra. Joseph Corliss, de Menasset, Mass., e do falecido sr. Corliss, sábado a tarde, 29 de dezembro, na casa do pai da noiva.

A srta. Kingship diplomou-se na Spence School, de Nova York, e na Universidade de Columbia. Até a semana passada, trabalhava na agenda de publicidade de Camden and Galbraith.

O noivo, que serviu no Exército durante a Segunda Guerra Mundial e frequentou o Caldwell College, em Caldwell, Wis., juntou-se recentemente ao Departamento de Vendas da Kingship Copper Incorporated.)


7

 

 

SENTADA A SUA MESA, a srta. Richardson estendeu a mão direita, num gesto que considerava muito gracioso, e olhou de viés o bracelete de ouro que comprimia seu pulso gordo. Parecia decididamente jovem demais para a mãe, concluiu. Arranjaria outra coisa para ela e ficaria com o bracelete para si mesma.

Além de sua mão, o fundo tornou-se de repente azul. Com listras brancas. Ela ergueu o olhar, começando a sorrir, mas deteve-se quando viu que era aquela praga de novo.

— Alô — ele disse, animado.

A srta. Richardson abriu uma gaveta e apressadamente passou os dedos pelas bordas de uma resma de papel oficio.

— O senhor Kingship ainda está no almoço — disse, friamente.

— Cara senhora, ele estava no almoço ao meio-dia. São três horas agora. Ele e o que? Algum rinoceronte?

— Se o senhor deseja marcar um encontro para daqui a alguns dias...

— Eu gostaria de uma audiência com Sua Eminencia esta tarde.

A srta. Richardson fechou a gaveta, de cenho fechado.

— Amanha é Natal — ela disse. — O senhor Kingship inter- rompeu um fim de semana de quatro dias para vir aqui hoje. Não faria isso se não estivesse muito ocupado. Deu-me ordens estritas para eu não o perturbar por coisa alguma. Por coisíssima alguma.

— Então não está no almoço,

— Ele me deu ordens estritas...

O homem suspirou. Jogando o casaco dobrado sobre o ombro, retirou uma tira de papel do porta-papéis junto ao telefone da srta. Richardson.

— Posso? — perguntou, já tendo tirado o papel.

Colocando-o num grande livro azul, que apoiou na dobra de um braço, tirou a caneta da srta. Richardson de sua base de ônix e começou a escrever.

— Ora, eu nunca... — disse a srta. Richardson. — Honestamente!

Acabando de escrever, o homem recolocou a caneta e soprou o papel. Dobrou-o cuidadosamente em quatro partes e entregou-o a srta. Richardson.

— Dê-lhe isso — disse. — Enfie por baixo da porta, caso seja necessário.

A srta. Richardson fuzilou-o com o olhar. Depois, desdobrou calmamente o papel e leu-o.

Constrangidamente, ergueu o olhar.

— Dorothy e Ellen...?

O rosto dele não tinha a mínima expressão.

Ela ergueu-se na poltrona.

— Ele me disse para não o perturbar por coisa alguma — repetiu baixinho, como se fosse uma fórmula mágica. — Como e o seu nome?

— Apenas dê isso a ele, por favor, como o anjo que você é.

— Agora olhe aqui...

Ele fazia exatamente isso; olhava-a muito seriamente, apesar da leveza de sua voz. A srta. Richardson enrugou a testa, olhou outra vez o papel e tornou a dobrá-lo. Adiantou-se para uma porta maciçamente apainelada.

— Está bem — disse sombriamente —, mas você vai ver. Ele me deu ordens estritas.

Contrafeita, bateu a porta. Abrindo-a, esgueirou-se lá para dentro com a tira de papel estendida como desculpa.

Reapareceu um minuto depois, com uma expressão traída no rosto.

— Entre — disse secamente, mantendo a porta aberta.

O homem passou rápido por ela, o casaco sobre o ombro, o livro sob o braço.

— Continue sorrindo — murmurou.

Ao abafado som da porta fechando-se, Leo Kingship ergueu o olhar da tira de papel que tinha nas mãos. Estava de pé atrás de sua mesa, em mangas de camisa, o paletó pendurado no encosto da poltrona atrás dele. Os óculos encarapitavam-se no alto da testa rósea. A luz do sol, reduzida a tiras pelas venezianas, listrava sua figura atarracada. Ele olhou de esguelha, ansiosamente, para o homem que se aproximava, atravessando o aposento apainelado e atapetado.

— Oh — disse, quando o homem chegou bastante perto para cortar a luz do sol, permitindo a Kingship reconhecê-lo. — O senhor? — Olhou a tira de papel e amassou-a, a expressão de ansiedade transformando-se em alivio, e depois em aborrecimento.

— Alô, senhor Kingship — disse o homem, estendendo-lhe a mão.

Kingship apertou-a, contrafeito.

— Não admira que não tenha dado seu nome a senhorita Richardson.

Sorrindo, o homem deixou-se cair na poltrona destinada aos visitantes. Ajeitou o casaco e o livro no colo.

— Mas temo tê-lo esquecido — disse Kingship. — Grant? — aventurou.

— Gant. — As compridas pernas cruzaram-se confortavelmente. — Gordon Gant.

Kingship permaneceu de pé.

— Estou extremamente ocupado, senhor Gant — disse com firmeza, indicando a mesa cheia de papéis. — Assim, se essa “informação sobre Dorothy e Ellen” — pegou a tira de papel amassada — contém as mesmas “teorias” que o senhor expunha em Blue River...”

— Em parte — disse Gant.

— Bem, sinto muito. Não quero ouvir.

— Calculei que não fosse o número um em sua parada de sucessos.

— Quer dizer que não gostei do senhor? Não é verdade. De modo algum. Compreendi que seus motivos eram os melhores; afeiçoara-se a Ellen; mostrou um... um entusiasmo juvenil... Mas era numa direção de tal modo errada que chegava a ser doloroso para mim. Invadindo meu hotel logo após a morte de Ellen... trazendo de volta o passado naquele momento... — Ele olhou Gant com um ar de súplica. — O senhor acha que eu não gostaria de acreditar que Dorothy não tirou sua própria vida?

— Ela não tirou.

— O bilhete... — ele disse, cansadamente — o bilhete...

— Algumas frases ambíguas, que poderiam se referir a uma dezena de coisas além de suicídio. Ou que alguém podia, ardilosamente, tê-la feito escrever. — Gant curvou-se para a frente. — Dorothy foi a Prefeitura Municipal para casar-se. A teoria de Ellen estava certa; o fato de que ela foi assassinada prova isso.

— Não prova nada — cortou Kingship. — Não houve relação. O senhor ouviu o que a policia disse.

— Um arrombador!

— Por que não? Por que não um arrombador?

— Porque eu não acredito em coincidências. Não desse tipo.

— Um sinal de imaturidade, senhor Gant.

Após um momento, Gant disse, sem rodeios:

— Foi a mesma pessoa, em ambas as vezes.

Kingship apoiou as mãos cansadamente na mesa, olhando os papéis em cima dela.

— Por que o senhor tem de ressuscitar tudo isso — suspirou —, intrometendo-se nos assuntos dos outros? Como acha que me sinto? — Ele puxou os óculos para o lugar certo e folheou as páginas de um livro de contabilidade. — Quer fazer o favor de sair agora?

Gant não fez nenhuma menção de levantar-se.

— Estou em casa de férias. Minha casa e em White Plains. Não passei uma hora na Central de Nova York apenas para repetir o que já tinha dito em março passado.

— O que é então? — Kingship olhou desconfiado para o rosto de maxilar quadrado.

— Saiu uma nota no Times desta manhã... na coluna social.

— Minha filha?

Gant assentiu com a cabeça. Tirou um mago de cigarros do bolso de cima do paletó.

— O que e que o senhor sabe sobre Bud Corliss? — perguntou.

Kingship espreitava-o em silencio.

— O que sei sobre ele? — disse, lentamente. — Vai ser meu genro. O que quer dizer com o que sei sobre ele?

— Sabia que ele e Ellen saíam juntos?

— Claro — Kingship empertigou-se. — Aonde o senhor quer chegar?

— É uma longa história — disse Gant. Os olhos azuis eram penetrantes e firmes sob as espessas sobrancelhas loiras. Ele fez um gesto indicando a poltrona de Kingship. — E minha narrativa será prejudicada se o senhor ficar me olhando de cima.

Kingship sentou-se. Manteve as mãos sobre a mesa, como se estivesse preparado para tornar a levantar-se.

Gant acendeu seu cigarro e ficou calado um momento, olhando-o pensativamente e mordendo o lábio inferior, como se esperasse um sinal para o momento próprio. Depois começou a falar com sua voz tranquila e fluida de locutor:

— Quando deixou Caldwell — disse —, Ellen escreveu uma carta a Bud Corliss. Por acaso, eu li a carta depois que ela chegou a Blue River. Fiquei muito impressionado, porque descrevia um suspeito de assassinato que se assemelhava demasiado a mim para me deixar a vontade. — Sorriu. — Li a carta duas vezes, e cuidadosamente, como o senhor pode imaginar.

“Na noite em que Ellen foi assassinada”, continuou, “Eldon Chesser, aquele maníaco por provas evidentes, perguntou-me se ela era minha namorada. Foi provavelmente a única coisa cons- trutiva que fez em toda a sua carreira de detetive, porque isso me deixou pensando sobre o amigo Corliss. Em parte para desviar minha mente de Ellen, que estava sabe Deus onde com seu provável assassino, e em parte porque eu gostava dela e imaginava de que tipo de homem ela gostava, pensei na carta, ainda fresquinha em minha mente e a única fonte de informação sobre meu ‘rival’, Bud Corliss.”

Gant calou-se por um segundo, e depois continuou:

— A principio, parecia não conter nada; um nome: “Querido Bud”, e um endereço no envelope: “Burton Corliss, Rua Roosevelt, número tal, Caldwell, Wisconsin”. Nenhuma outra pista. Mas, pensando mais, encontrei vários pedaços de informação na carta de Ellen, e consegui armá-los até obter uma informação maior sobre Bud Corliss; parecia insignificante na época; um fato puramente externo sobre ele, em vez de uma indicação sobre sua personalidade, que era o que eu realmente buscava. Mas esse fato ficou em minha mente, e hoje me parece deveras significativo.

— Prossiga — disse Kingship, quando Gant sorveu seu cigarro.

Gant recostou-se confortavelmente.

— Primeiro de tudo: Ellen escreveu a Bud que não se atrasaria em seu trabalho, enquanto estivesse afastada de Caldwell, porque poderia obter todas as anotações dele. Ora, Ellen era uma terceiranista, o que significava que estava em cursos avançados. Em todas as faculdades, os cursos para os últimos anos não aceitam calouros e muitas vezes nem segundanistas. Se Bud frequentava todos os cursos de Ellen — provavelmente faziam seus programas juntos —, isso significava que ele era no mínimo um segundanista, e com toda a probabilidade um terceiranista ou quartanista.

“Segundo: num determinado ponto da carta, Ellen descrevia seu comportamento durante os primeiros três anos em Caldwell, que aparentemente diferia daquele que passou a ter após a morte de Dorothy. Descreveu como era uma garota levada, e depois dizia, pelo que me lembro, textualmente: ‘Você não me reconheceria’. O que queria dizer, tão claramente quanto possível, que Bud não a tinha visto durante esses três primeiros anos. Isso seria muito concebível numa grande universidade como Stoddard, mas chegamos ao terceiro ponto.

“Terceiro: Caldwell e um campus muito pequeno; um décimo do tamanho de Stoddard, segundo Ellen escreveu, e ainda lhe dava o beneficio da dúvida; procurei no almanaque esta manhã; Stoddard tem mais de doze mil estudantes; Caldwell, nem oitocentos. Além disso, Ellen dizia na carta que não quisera que Dorothy fosse para Caldwell porque era o tipo de lugar onde todos sabiam o que todos faziam.

“Assim, somamos um mais dois mais três: Bud Corliss, que estava pelo menos no terceiro ano da faculdade, era um estranho para Ellen no início do quarto ano dela, apesar de ambos frequentarem uma universidade bem pequena, onde, segundo entendo, a vida social se mistura com a escolar. Tudo isso só pode ser explicado de um modo e condensado numa simples afirmação, fato que me parecia sem importância em março passado, mas que hoje me parece o mais importante da carta de Ellen: Bud Corliss era um estudante transferido, e transferira-se para Caldwell em setembro de 1950, no inicio do quarto ano de Ellen e após a morte de Dorothy

Kingship franziu o cenho:

— Não vejo o que...

— Chegamos agora a hoje, 24 de dezembro de 1951 — disse Gant, esmagando o cigarro no cinzeiro —, no momento em que minha mãe, abençoada seja, traz ao filho pródigo o desjejum na cama, juntamente com um exemplar do New York Times. E ali, na coluna social, está o nome de Kingship. A senhorita Marion Kingship se casará com o senhor Bud Corliss. Imagine só a minha surpresa. Ora, minha mente, além de ser insaciavelmente curiosa e altamente analítica, e também muito suja. Parece-me, digo-me então, que o novo membro do Departamento de Vendas Internas estava decidido a não ser desqualificado na Kingship Copper.

— Agora escute aqui, senhor Gant...

— Fiquei pensando — prosseguiu Gant — como, à medida que uma irmã morria, ele passava para a seguinte, diretamente. Amado por duas filhas de Kingship. Duas em três. Um escore nada mau. E aí o lado analítico e o lado sujo de meu cérebro se misturaram, e pensei: três em três seria um escore ainda melhor para o senhor Burton Corliss, que se transferiu para Caldwell em setembro de 1950.

Kingship levantou-se, fuzilando Gant com o olhar.

— Um pensamento casual — disse Gant. — Pouquíssimo provável. Mas facilmente removível do domínio da dúvida, Uma simples questão de deslizar de baixo da bandeja do desjejum, ir à estante e pegar lá A chama de Stoddard, o livro do ano de 1950. — Exibiu o grande livro forrado de pano azul, com letras brancas na capa. — Na parte de segundanistas — disse — há várias fotos interessantes. Uma de Dorothy Kingship e uma de Dwight Powell, ambos mortos hoje. Nenhuma de Gordon Gant; não tinha cinco cents sobrando para mandar gravar seu rosto para a posteridade. Mas muitos segundanistas tiveram, entre eles... — Abriu o livro numa página marcada com uma tira de jornal, virou o volume ao contrário e o depôs sobre a mesa, o dedo espetando uma das fotos dispostas em forma de xadrez. Recitou a legenda ao lado de memoria: — Corliss, Burton, aspas Bud fecha aspas, Menasset, Mass., artes liberais.

 

Kingship tornou a sentar-se. Olhou a foto, pouco maior que um selo, e depois para Gant. Este estendeu o braço, virou algumas páginas e apontou outra foto. Era Dorothy. Kingship olhou-a também. Depois, tornou a erguer o olhar.

— Pareceu-me extremamente estranho. Achei que o senhor devia saber — Gant disse.

— Por quê? — perguntou Kingship, apaticamente. — A que o senhor acha que isso conduz?

— Posso fazer-lhe uma pergunta, senhor Kingship, antes de responder a sua?

— Faça.

— Ele nunca lhe disse que frequentou Stoddard, disse?

— Não. Mas nunca conversamos sobre essas coisas — apressou-se a explicar. — Deve ter dito a Marion. Marion deve saber.

— Não creio que ela saiba.

— Por que não? — perguntou Kingship.

— O Times. Marion deu a informação a eles para aquela nota, não deu? Em geral e a noiva quem o faz.

— E então?

— Bem, não há referencias a Stoddard. E nas outras notas sobre casamentos e noivados sempre se diz quando alguém frequentou mais de uma universidade.

— Talvez ela simplesmente não se tenha dado ao trabalho de dizer a eles.

— Talvez. Ou talvez não saiba. Talvez Ellen tampouco soubesse.

— Muito bem, aonde o senhor quer chegar?

— Não se aborreça comigo, senhor Kingship. Os fatos falam por si; eu não os inventei. — Gant fechou o livro do ano e o pôs no colo. — Ha duas possibilidades — disse. — Ou Corliss disse a Marion que frequentou Stoddard, caso em que poderia ser uma coincidência; ele foi para Stoddard e transferiu-se para Caldwell; poderia não ter conhecido Dorothy, como não me conheceu. — Fez uma pausa. — Ou então, ele não disse a Marion que esteve lá.

— O que significa? — desafiou Kingship.

— O que significa que deve ter se envolvido de algum modo com Dorothy. Por que outro motivo esconderia isso? — Gant olhou o livro em seu colo. — Havia um homem que queria tirar Dorothy de seu caminho porque a engravidara...

Kingship fuzilou-o novamente.

— O senhor está retornando a mesma coisa! Alguém matou Dorothy, depois matou Ellen... Encasquetou com essa... essa teoria de filme e não quer admitir,.. — Gant permaneceu calado.

— Bud? — Kingship perguntou, incredulamente. Balançou a cabeça, sorrindo penosamente. — Vamos, vamos — disse. — Isso e loucura. Simples loucura. — Continuava balançando a cabeça.

— O que pensa que o rapaz é? Um maníaco? — E sorrindo: — O senhor encasquetou com essa ideia maluca...

— Muito bem — disse Gant —, e maluca. Por enquanto. Mas se ele não disse a Marion que frequentou Stoddard, então, de algum modo, deve ter se envolvido com Dorothy. E se ele se envolveu com Dorothy, depois com Ellen, e agora com Marion... e que era bom pra burro e estava decidido a casar com uma de suas filhas. Qualquer uma!

O sorriso abandonou lentamente o rosto de Kingship, deixando-o sem expressão. Suas mãos estavam imóveis na borda da mesa.

— Isto não e tão maluco, admito.

Kingship retirou os óculos. Piscou umas duas vezes e emper- tigou-se,

— Preciso falar com Marion — disse.

Gant olhou o telefone.

— Não — disse Kingship, como se estivesse vazio. — Ela mandou desligar seu telefone. Vai entregar o apartamento, ficando comigo até o casamento. — A voz falhou. — Apos a lua-de-mel, vão morar num apartamento que estou montando para eles... Sutton Terrace... Marion não quis aceitá-lo a principio, mas ele a convenceu. É tão bom para ela... fez com que nós nos entendes- semos melhor.— Os dois se olharam por um momento; os olhos de Gant firmes e desafiadores, os de Kingship apreensivos.

Kingship levantou-se.

— O senhor sabe onde ela está?

— Na casa dela... arrumando as coisas. — Pôs o paletó. — Ele deve ter falado a ela sobre Stoddard...

Quando deixaram o gabinete, a srta. Richardson ergueu o olhar da revista.

— E tudo por hoje, senhorita Richardson. Basta arrumar minha mesa.

Ela franziu o cenho, em frustrada curiosidade.

— Sim, senhor Kingship. Feliz Natal.

— Feliz Natal, senhorita Richardson.

Os dois percorreram o longo corredor, em cujas paredes havia fotos em preto-e-branco, combinadas e montadas entre lâminas de vidro fixas por tiras de cobre em cima e embaixo. Eram fotos de minas subterrâneas e a céu aberto, fundições, refinarias, fornos, fabricas e close-ups artísticos de tubos e fios de cobre.

Enquanto esperavam o elevador, Kingship disse:

— Tenho certeza de que ele falou a ela.


8

 

 

— GORDON Gant? — perguntou Marion, pensando no nome, quando se apertaram as mãos. — Não conheço esse nome. — Ela recuou para dentro da sala, sorrindo, uma das mãos buscando a de Kingship e puxando-a, a outra erguendo-se para a gola de sua blusa e alisando o broche dourado, estrelado de perolas.

— Blue River. — A voz de Kingship era pétrea como quando ele fizera a apresentação, e seus olhos não estavam exatamente em Marion. — Creio que lhe falei dele.

— Oh, sim. Você conheceu Ellen, não foi?

— Certo — disse Gant. Desceu a mão pela lombada do livro a seu lado, até um ponto onde o pano não estava úmido, desejando não ter se mostrado tão ansioso quando Kingship o convidara a vir; a foto de Marion no Times não fornecia nenhuma insinuação, em seu cinza reticulado, de como os olhos dela eram translúcidos, suas faces radiantes, da aura de vou casar sábado que a envolvia toda.

Ela indicou a sala com um gesto desesperado.

— Receio que não haja nem onde sentar. — Adiantou-se para uma cadeira sobre a qual se amontoava uma pilha de caixas de sapatos.

— Não se preocupe — disse Kingship. — Estamos apenas de passagem. Só por um minuto. Há um monte de trabalho a minha espera no escritório.

— Não esqueceu a noite de hoje, esqueceu? — perguntou Marion. — Pode nos esperar as sete, mais ou menos. Ela vai chegar as cinco, e creio que desejara passar no hotel primeiro. — Voltou-se para Gant. — Minha futura sogra — disse, com importância.

Oh, Senhor, pensou Gant, eu devo perguntar: “Você vai se casar?” “Sim, sábado”. “Meus parabéns”. Sorriu vagamente e não disse nada. Ninguém disse nada.

— A que devo o prazer desta visita? — perguntou Marion, um cumprimento na voz.

Gant olhou para Kingship, esperando que ele falasse. Marion olhou os dois.

— Alguma coisa especial?

Apos um momento Gant disse:

— Eu também conheci Dorothy. Muito ligeiramente.

— Oh! — disse Marion. Olhou as mãos.

— Ela frequentava um de meus cursos. Estou em Stoddard. — Fez uma pausa. — Não creio que Bud estivesse em nenhuma de minhas classes.

Ela ergueu o olhar.

— Bud?

— Bud Corliss. Seu...

Ela balançou a cabeça, sorrindo.

— Bud nunca frequentou Stoddard — corrigiu-o.

— Frequentou, senhorita Kingship.

— Não — ela insistiu, divertidamente. — Estava em Caldwell.

— Ele foi para Stoddard, e depois para Caldwell.

Marion sorriu zombeteiramente para Kingship, como esperando que ele desse alguma explicação para a teimosia do visitante que havia trazido.

— Ele frequentou Stoddard, Marion — disse Kingship com peso na voz. — Mostre o livro a ela.

Gant abriu o livro do ano e entregou-o a Marion, indicando a foto.

— Ora, por Deus — ela disse. — Tenho de pedir desculpas. Eu nunca soube... — Olhou a capa do livro. — 1950.

— Está no livro de 49 também — disse Gant. — Frequentou Stoddard durante dois anos, e depois transferiu-se para Caldwell.

— Por Deus — repetiu ela. — Não é engraçado? Talvez tivesse conhecido Dorothy. — Parecia alegre, como se esse fosse outro laço entre ela e seu noivo. Os olhos retornaram a foto.

— Ele nunca falou disso a você? — perguntou Gant, apesar dos sinais de Kingship.

— Ora, não, nunca disse uma...

Lentamente, tirou os olhos do livro, tomando consciência pela primeira vez da tensão e desconforto entre os dois homens.

— O que é que há?

— Nada — disse Kingship. Olhou para Gant, buscando corroboração.

— Então por que vocês dois estão ai parados, como se... — Olhou novamente o livro, e depois o pai. Houve um movimento de aperto em sua garganta. — Foi por isso que vieram aqui, para me dizer isso? — perguntou.

— Nós... nós apenas imaginamos se você sabia, é tudo.

— Por quê? — ela perguntou.

— Apenas imaginamos, e tudo.

O olhar dela passou para Gant.

— Por quê?

— Por que Bud ocultaria isso? — perguntou Gant. — A não ser...

— Gant!— Kingship disse.

— Ocultaria? — perguntou Marion. — Que espécie de palavra e essa? Ele não ocultou nada; nunca falamos muito sobre escola, por causa de Ellen; simplesmente o assunto não surgiu.

— Por que a garota com quem ele vai casar não deveria saber que ele passou dois anos em Stoddard — Gant refez a pergunta, implacavelmente —, se ele não tivesse se envolvido com Dorothy?

— Envolvido? Com Dorothy? — Os olhos da moça, arregala- dos de incredulidade, sondavam os de Gant, e depois voltavam-se, entrecerrando-se, para Kingship. — O que é isso?

O rosto de Kingship tremulou com pequenos movimentos de inquietação, como se houvesse poeira soprando contra ele.

— Quanto você está pagando a ele? — Marion perguntou, friamente.

— Pagando a ele?

— Para xeretar! — ela explodiu. — Para desencavar sujeira! Para inventar sujeira!

— Ele me procurou por sua própria conta, Marion!

— Oh, sim, ele simplesmente brotou do chão!

— Eu vi a nota no Times — Gant disse.

Marion fixava o pai, furiosa.

— Você jurou que não faria isso — disse, iradamente. — Jurou! Jamais passaria por sua mente fazer perguntas, investigar, tratá-lo como um criminoso. Oh, não, não muito!

— Eu não andei fazendo perguntas — protestou Kingship.

Marion deu-lhe as costas.

— Eu pensava que você tinha mudado — disse. — Pensava mesmo. Pensava que você gostava de Bud. Pensava que você gostava de mim. Mas você não pode...

— Marion!

— Não, não, se está fazendo isso! O apartamento, o emprego... e todo o tempo isso acontecendo.

— Nada estava acontecendo, Marion. Eu juro...

— Nada? Vou lhe dizer exatamente o que está acontecendo.

— Ela tornou a voltar-se para ele. — Você pensa que eu não sei? Ele se “envolveu” com Dorothy... Não estará sob suspeita de ser o homem que a meteu em encrenca? E se “envolveu” com Ellen, e agora esta ‘‘envolvido’’ comigo... tudo por dinheiro, tudo pelo seu precioso dinheiro. E isso o que está acontecendo em sua mente! — Ela empurrou o livro do ano nas mãos dele.

— Entendeu a coisa errado, senhorita Kingship — disse Gant.

— Isso é o que está acontecendo em minha mente, não na de seu pai.

— Está vendo? — disse Kingship. — Ele veio me procurar por sua própria conta.

Marion fuzilou Gant com o olhar.

— E o senhor quem é? Que é que o leva a intrometer-se nisso?

— Eu conheci Ellen.

— Então agora eu entendo — ela cortou. — Conhece Bud?

— Não tive o prazer.

— Então quer fazer o favor de me explicar o que está fazendo aqui, com essas acusações contra ele pelas suas costas?

— E uma história bastante...

— Já falou o suficiente, Gant — interrompeu Kingship.

— O senhor tem ciúmes de Bud? E isso? Porque Ellen o preferiu a você? — Marion disse.

— E isso — disse Gant, secamente. — Estou roído de ciúmes.

— E já ouviu falar das leis contra difamação? — ela perguntou. Kingship esgueirou-se para a porta, fazendo sinal a Gant com os olhos.

— Sim — disse Marion —, é melhor você ir.

— Espere um minuto — ela disse, quando Gant abriu a porta. — Vão parar com isso?

— Não há nada a parar, Marion — Kingship disse.

— Quem quer que esteja por trás disso — ela olhou para Gant — tem de parar. Nunca falamos sobre escola. Por que devemos fazer isso, depois de Ellen? Simplesmente a coisa nunca surgiu.

— Esta bem, Marion — disse Kingship. — Está bem. — Ele saiu atrás de Gant para o saguão e voltou-se para puxar a porta.

— Tem de parar — ela disse.

— Está bem. — Ele hesitou, e sua voz baixou de tom. — Você ainda virá esta noite, não virá, Marion?

Os lábios dela cerraram-se. Ela ficou pensando um momento.

— Só porque não quero ferir os sentimentos da mãe de Bud — disse, finalmente.

Kingship fechou a porta.

Foram a uma lanchonete na Avenida Lexington, onde Gant pediu café e torta de morango, e Kingship, um copo de leite.

— Até agora, tudo bem — disse Gant.

Kingship olhava alheiamente o guardanapo de papel que segurava.

— Que quer dizer?

— Pelo menos sabemos em que pé estamos. Ele não falou a ela sobre Stoddard. Isso torna praticamente certo que...

— O senhor ouviu o que ela disse — interrompeu Kingship.

— Eles não falam da escola por causa de Ellen.

Gant olhou-o, as sobrancelhas ligeiramente arqueadas.

— Vamos — disse lentamente. — Isso talvez satisfaça Marion; está apaixonada por ele. Mas um homem não dizer a sua noiva que universidade frequentou...

— Não é o mesmo que se ele mentisse — protestou Kingship.

— Eles simplesmente não falam sobre escola — Gant disse, sarcasticamente.

— Considerando as circunstâncias, acho isso compreensível.

— Claro. Sendo as circunstâncias o fato de que ele estava envolvido com Dorothy.

— Está é uma suposição que o senhor não tem o direito de fazer.

Gant mexeu seu café lentamente e tomou uns goles. Pôs mais creme e tornou a mexer.

— O senhor tem medo dela, não tem? — perguntou.

— De Marion? Não seja ridículo. — Kingship depôs firme- mente seu copo de leite, — Um homem e inocente até que se prove a sua culpa.

— Então temos de descobrir provas, não é?

— Está vendo? O senhor está supondo que ele é um caça-dotes antes de começar.

— Eu estou supondo coisas pra burro, muito mais que isso — disse Gant, levando uma garfada de torta a boca. Depois de engoli-la, continuou: — O que é que o senhor vai fazer?

Kingship fitava novamente o guardanapo.

— Nada.

— Vai deixar ela se casar?

— Não poderia detê-los, mesmo que quisesse. Ambos tem mais de vinte e um anos, não tem?

— Podia contratar detetives. Ainda temos quatro dias. Eles poderiam descobrir alguma coisa.

— Poderiam — disse Kingship. — Se houver alguma coisa a descobrir. Ou então Bud pode farejar alguma coisa e dizer a Marion.

Gant sorriu.

— Pensei que estava sendo ridículo sobre o senhor e Marion.

Kingship suspirou.

— Deixe-me dizer-lhe uma coisa — falou, sem olhar para Gant. — Eu tinha uma mulher e três filhas. Duas filhas me foram tiradas. Minha esposa eu mesmo expulsei. Talvez tenha expulsado uma das filhas também. Assim, agora tenho só uma filha. Estou com cinquenta e sete anos, tenho uma filha e alguns homens com quem jogo golfe e falo de negócios. Isso e tudo.

Apos um momento, ele voltou-se para Gant, o rosto endurecido.

— E o senhor? — perguntou. — Quais são seus verdadeiros interesses neste caso? Talvez apenas goste de tagarelar sobre o seu cérebro analítico e mostrar aos outros como é um cara esperto. Não tinha necessidade de passar por todo esse quebra-cabeça, sabe? Em meu escritório, sobre a carta de Ellen. Podia simplesmente ter posto o livro sobre a mesa e dito: “Bud Corliss frequentou Stoddard”. Talvez simplesmente goste de se exibir.

— Talvez — disse Gant, sem muita convicção. — Mas talvez eu também ache que ele matou suas duas filhas, e tenho essa ideia quixotesca de que os assassinos devem ser punidos.

Kingship acabou o seu leite.

— Acho que seria melhor o senhor simplesmente retornar a Yonkers e desfrutar suas férias.

— White Plains. — Gant raspou os restos da torta com o lado do garfo. — O senhor tem úlcera? — perguntou, olhando o copo de leite vazio.

Kingship assentiu com a cabeça.

Gant recostou-se em seu banquinho e examinou o homem a seu lado.

— E uns quinze quilos a mais, eu diria. — Levou o garfo a boca e retirou-o limpo. — Eu calcularia que Bud lhe dá mais uns dez anos, no máximo. Ou talvez fique impaciente dentro de três ou quatro anos e tente apressá-lo.

Kingship desceu do banquinho. Tirou um dólar de um rolo de notas preso com um clipe especial e o pôs sobre o balcão.

— Adeus, senhor Gant — disse, e afastou-se.

O balconista veio e pegou o dólar.

— Mais alguma coisa? — perguntou.

Gant balançou a cabeça.

Pegou o trem das cinco e dezenove para White Plains.


9

 

 

AO ESCREVER A SUA MÃE, Bud fizera apenas as mais vagas alusões ao dinheiro de Kingship. Uma ou duas vezes mencionara a Kingship Copper, mas nunca com qualquer frase esclarecedora, e estava certo de que ela, cuja concepção da riqueza, formada na pobreza, era tão diáfana e inexata quanto as visões de orgias de um pubescente, não tinha a mais leve ideia da vida de luxo que a presidência de uma corporação como aquela poderia proporcionar. Assim, esperara avidamente o momento de apresentá-la a Marion e ao pai, e ao magnífico ambiente do duplex de Kingship, sabendo que, em vista do casamento próximo, os olhos arregalados de espanto dela encarariam cada mesa incrustada e cada reluzente candelabro como prova, não dos poderes de Kingship, mas dele próprio.

A noite, porém, foi uma decepção.

Não que a reação de sua mãe não fosse a que ele esperava; com a boca meio aberta e os dentes tocando levemente o lábio inferior, ela inspirou com suave sibilância, como se visse não um, mas uma série de milagres; o criado formalmente trajado — um mordomo! —, a aveludada densidade dos tapetes, o papel de parede que não era papel, mas um tecido de rica textura, os livros encadernados em couro, o relógio de ouro, a bandeja de prata na qual o mordomo servia champanha — champanha! — em taças de cristal... Em voz alta, ela conteve sua admiração num “adorável, adorável”, dito com um sorriso delicado e um ligeiro aceno de cabeça, os cabelos recém-submetidos a uma permanente, dando a impressão de que tais ambientes não lhe eram de modo algum estranhos — mas, quando seus olhos encontraram os de Bud, ao beberem o brinde, o orgulho incontido que ela sentia saltou para ele como um beijo jogado, enquanto a mão áspera de trabalhadora se maravilhava sub-repticiamente com o tecido do sofá onde estava sentada.

Não, a reação de sua mãe fora cálida e maravilhosa. O que tornara a noite uma decepção fora o fato de Marion e Leo terem, aparentemente, tido uma briga; ela só falava com o pai quando as aparências tornavam isso inevitável. E, além disso, a briga devia ter sido por sua causa, uma vez que Leo se dirigia a ele com olhos vagos e hesitantes, enquanto Marion estava decididamente, desafiadoramente efusiva, grudada a ele e chamando-o “querido”, “meu bem”, o que nunca fizera antes em presença de outros. A primeira preocupação, fraca, começou a ferroá-lo como uma pedra no sapato.

O jantar, então, fora sombrio. Com Leo e Marion as cabeceiras da mesa, e sua mãe e ele aos lados, a conversa se passava apenas lateralmente; pai e filha não se falavam, mãe e filho não podiam se falar, pois qualquer coisa que tivessem a dizer seria pessoal e soaria muito mais pessoal em meio aquela gente que ainda era, em certo sentido, estranha. Assim, Marion chamava-o de “querido” e falava a mãe dele sobre o apartamento no Sutton Terrace, e a mãe falava a Leo sobre as crianças, e Leo pedia a ele que passasse o pão, por favor, sem olhá-lo de frente.

E ele ficara calado, erguendo cada garfo e colher lentamente, escolhendo-os, para que a mãe pudesse fazer o mesmo; uma conspiração afetiva formara-se sem uma palavra ou sinal, dramatizando a ligação entre eles e constituindo o único aspecto desfrutável da refeição — isso e os sorrisos que passavam de um lado a outro da mesa, quando Marion e Leo olhavam seus pratos, sorrisos orgulhosos e amorosos, e tanto mais agradáveis para ele devido as cabeças que de nada suspeitavam e cujo trajeto eles cortavam.

Ao fim do jantar, embora houvesse um isqueiro de prata na mesa, ele acendeu o cigarro de Marion e o seu com seus fósforos, batendo depois alheiamente na carteirinha sobre a toalha até que a mãe notasse a capa branca com “Bud Corliss” estampado em cobre.

Mas todo o tempo houvera a pedra em seu sapato.

Mais tarde, sendo véspera de Natal, tinham ido a igreja, e depois Bud esperara para conduzir sua mãe ao hotel, enquanto Marion retornaria a casa com Leo. Mas a moça, para seu constran- gimento, assumira um coquetismo incomum e insistira em acompanhá-los ao hotel, de modo que Leo partira sozinho, enquanto Bud introduzia as duas mulheres num taxi. Sentou-se entre elas, recitando para a mãe os nomes dos pontos principais pelos quais passavam. O táxi, por sua orientação, desviara-se de seu curso para que a sra. Corliss, que jamais estivera em Nova York antes, pudesse ver a Times Square a noite.

Ele deixou-a no saguão do hotel, diante de elevador.

— Está muito cansada? — perguntou. E quando ela disse que estava, ele pareceu decepcionado, — Não vá dormir logo — disse. — Eu telefono para você mais tarde. — Deram-se um beijo de boa-noite e, ainda segurando a mão dele, a sra. Corliss beijara Marion no rosto, cheia de contentamento.

No táxi, de volta a casa de Leo, Marion permaneceu calada.

— O que e que há, querida?

— Nada — ela disse, sorrindo sem muita convicção.

— Por quê?

Ele encolheu os ombros.

Ele pretendia deixá-la na porta do apartamento, mas a pedra da preocupação assumia as proporções de uma pedra cortante; entrou com ela. Kingship já se recolhera. Foram para a sala de visitas, onde Bud acendeu cigarros, enquanto Marion ligava o rádio. Sentaram-se no sofá.

Ela disse que gostara muito da mãe dele. Ele disse que ficava feliz com isso, e podia afirmar que a mãe também gostara dela. Começaram a falar do futuro, e ele sentiu, pela rígida casualidade da voz dela, que Marion elaborava alguma coisa. Reclinou-se, com os olhos meios cerrados, um braço passado sobre os ombros dela, ouvindo como nunca ouvira antes, medindo cada pausa e inflexão, temendo o tempo todo o ponto aonde ela queria chegar. Não podia ser nada importante! Não podia ser! Ele a melindrara de algum modo, esquecera algo que prometera fazer, isso. Que mais poderia ser? Ele detinha-se antes de cada resposta, examinando as palavras antes de externá-las, tentando determinar que reação elas causariam, como um jogador de xadrez tocando nas peças antes de movê-las.

Ela levou a conversa para o lado dos filhos.

— Dois — disse.

A mão esquerda dele, em seu joelho, comprimiu o vinco da calça. Ele sorriu.

— Três — disse. — Ou quatro.

— Dois — ela disse. — Assim, um pode ir para Columbia e outro para Caldwell.

Caldwell. Alguma coisa a respeito de Caldwell. Ellen?

— Eles provavelmente terminarão no Michigan, ou em outro lugar — ele disse.

— Oh, se tivermos só um — prosseguiu Marion —, ele pode ir para Columbia e depois transferir-se para Caldwell. Ou vice-versa. — Ela inclinou-se para a frente, sorridente, e esmagou o cigarro no cinzeiro. Com muito mais cuidado do que geralmente os apagava, ele percebeu. Transferência para Caldwell. Transferência para Caldwell... Esperou em silencio. — Não — ela disse. — Na verdade, eu não gostaria que ele fizesse isso. — E, dando sequência a sua afirmação com uma tenacidade que jamais emprestaria a uma simples conversa comum: — Porque ele perderia créditos. As transferências são muito complicadas.

Sentados lado a lado, ficaram em silencio por um momento.

— Não, não são — ele disse.

— Não?

— Não — ele disse. — Eu não perdi créditos.

— Você não se transferiu, transferiu-se? — Ela parecia surpresa.

— Claro — ele disse. — Eu lhe falei.

— Não, não falou. Nunca disse...

— Disse, benzinho. Tenho certeza de que disse. Fui para a Universidade de Stoddard, e depois para Caldwell.

— Ora, era onde minha irmã Dorothy estudava, Stoddard!

— Eu sei. Ellen me disse.

— Não me diga que você não a conheceu,

— Não. Mas Ellen me mostrou uma foto dela, e me lembro de tê-la visto por lá. Estou certo de que lhe disse naquele primeiro dia, no museu.

— Não, não disse. Tenho certeza.

— Bem, claro, estive em Stoddard durante dois anos. E você pretende dizer que não... — Os lábios de Marion detiveram o resto da frase, beijando-o ardentemente, expiando sua culpa.

Poucos minutos depois, ele olhou o relógio.

— E melhor eu ir andando — disse. — Quero dormir o máximo possível esta semana, porque tenho a impressão de que não vou dormir muito toda a semana que vem.

Significava apenas que Leo soubera, de algum modo, que ele estivera em Stoddard. Não havia nenhum perigo real. Não havia! Encrenca, talvez; os planos de casamento poderiam ir pelos ares — oh, Deus! —, mas não havia perigo, nenhum perigo de polícia. Não há lei contra correr atrás de uma garota rica, há?

Mas por que tão tarde? Se Leo queria investigá-lo, por que não o fizera antes? Por que hoje? A nota no Times... claro! Alguém a vira, alguém que estivera em Stoddard. O filho de um dos amigos de Leo ou alguém assim. “Meu filho e seu futuro genro estiveram juntos em Stoddard.” Aí, Leo somou dois e dois; Dorothy, Ellen, Marion: caça-dotes. Disse a Marion, e aí estava a discussão deles.

Diabos, se pelo menos tivesse sido possível falar em Stoddard no início! Mas isso teria sido maluquice; Leo teria suspeitado imediatamente, e Marion o teria ouvido então. Mas por que tinha de vir a tona logo agora?

Contudo, o que podia Leo fazer, com simples suspeitas? Deviam ser apenas suspeitas; o velho não poderia saber ao certo se ele conhecera Dorothy, senão Marion não se mostraria tão feliz quando ele lhe disse que não a conhecera. Ou teria Leo ocultado de Marion parte da informação? Não, ele tentaria convencê-la, dando-lhe todas as provas que tivesse. Isso queria dizer que ele não tinha certeza. Podia adquirir essa certeza? Como? Os garotos de Stoddard, a maioria terceiranistas hoje, lembrar-se-iam com quem Dorothy saia? Podiam se lembrar. Mas é Natal! Férias. Estão espalhados por todo o pais. Apenas quatro dias para o casamento. Leo jamais convenceria Marion a adiar.

Ele só tinha de ficar firme e cruzar os dedos. Terça, quarta, quinta, sexta... sábado. Na pior das hipóteses, muito bem, estava interessado no dinheiro, e dai? Era só o que Leo poderia provar. Não poderia provar que Dorothy não se suicidara. Não poderia abraçar o Mississipi em busca de um revolver provavelmente enterrado sob uns cinco metros de lama.

E, na melhor das hipóteses, o casamento se realizaria segundo os pianos. Aí, que poderia Leo fazer, mesmo que os garotos de Stoddard se lembrassem? Divórcio? Anulação? Não havia muita base para nenhuma das soluções, mesmo que Marion pudesse ser convencida a buscar uma delas, o que provavelmente não aconteceria. E então? Leo tentaria comprá-lo...

Agora, sim, essa era uma ideia... Quanto Leo estaria disposto a pagar para livrar a filha de um grande e mau caça-dotes? Um bocado, provavelmente.

Mas nem perto do que Marion teria algum dia.

Pão agora ou bolo mais tarde?

Quando voltou à pensão, telefonou para a mãe.

— Espero não a ter acordado. Vim caminhando da casa de Marion.

— Está bem, querido. Oh, Bud, e uma garota adorável. Adorável! Tão meiga... Estou tão feliz por você!

— Obrigado, mãe.

— E o senhor Kingship, um homem tão bom! Você notou as mãos dele?

— Que há com elas?

— Tão limpas! — Ele sorriu. — Bud — a voz dela abaixou eles devem ser ricos, muito ricos...

— Acho que são, mãe...

— Aquele apartamento... como num filme! Meu Deus!...

Ele lhe falou do apartamento do Sutton Terrace.

— Espere até vê-lo, mãe! — E sobre a visita a fundição: — Ele vai me levar lá quinta-feira, Quer que eu conheça todo o conjunto!

No fim da conversa, ela disse:

— Bud, que aconteceu com aquela sua ideia?

— Que ideia?

— Aquela pela qual você não retornou a escola.

— Oh, aquela — ele disse. — Não deu certo.

— Oh... — Ela estava desapontada.

— Sabe aquele creme de barbear? — ele perguntou. — A gente aperta um botão e ele sai da lata como creme batido...?

— Sim?

— Bem, era isso. Só que passaram a minha frente.

Ela suspirou um arrastado “Oh!” de comiseração.

— Ora, se isso não é uma pena... Você não falou a ninguém sobre ele, falou?

— Não. Simplesmente chegaram na minha frente.

— Bem — ela disse, com um suspiro —, essas coisas acontecem. Mas não deixa de ser uma pena. Uma ideia dessas...

Quando acabou de falar com ela, ele foi para o seu quarto e estendeu-se na cama, sentindo-se absolutamente bem. Leo e suas suspeitas, bolas para ele! Tudo ia sair perfeito!

Deus, essa era uma coisa que ia fazer: cuidar para que ela obtivesse parte do dinheiro.


10

 

 

O TREM; TENDO PASSADO por Stamford, Bridgeport, New Haven e New London, continuava resfolegando em direção ao leste, margeando a fronteira sul de Connecticut, cruzando neve plana a esquerda e água plana a direita; uma serpente fragmentada, de cujo corpo pessoas confinadas olhavam enfadadas. Dentro, corredores e vestíbulos estavam apinhados com a superlotação do dia de Natal.

Num dos vestíbulos, diante de uma janela suja, Gordon Gant ocupava-se contando os anúncios de óleo de fígado de bacalhau. Era, pensava, uma maneira dos diabos de passar o dia de Natal.

Pouco depois das seis horas, o trem chegou a Providence.

Na estação, Gant fez várias perguntas ao entediado oráculo do escritório de informações. Depois, olhando seu relógio, deixou o prédio. Já estava escuro lá fora. Atravessando uma avenida ampla e lamacenta, entrou num estabelecimento que se chamava “lanchonete”, onde comeu rapidamente um churrasquinho, um bolinho de carne e tomou café. Ceia de Natal. Deixou a lanchonete e foi a uma mercearia duas portas adiante, onde comprou um rolo de fita Scotch. Retornou a estação. Sentou-se num banco desconfortável e leu um tabloide de Boston. Aos dez minutos para as sete, deixou novamente a estação, seguindo para uma praça próxima, onde três ônibus esperavam. Entrou num azul e amarelo, com a placa “Menasset-Somerset-Fall River”.

As sete e vinte, o ônibus parou no meio da Rua Main, de quatro quadras, de Menasset, desembarcando vários passageiros, inclusive Gant. Apos um breve olhar de aclimatação, ele entrou numa farmácia com aparência de 1910, onde consultou uma fina lista telefônica, da qual copiou um endereço e um número. Tentou o número na cabine, e, depois que o telefone tocou do outro lado da linha dez vezes, sem resposta, desligou.

A casa era uma desengonçada caixa cinza, de um andar, com os batentes das janelas escuras cobertos de neve. Gant olhou-a meticulosamente ao passar. Era recuada alguns metros da calçada; a neve entre a porta e a calçada estava imaculada.

Ele caminhou até o fim da quadra deserta e voltou, passando pela casa cinza de novo, dessa vez prestando mais atenção as casas vizinhas de ambos os lados. Numa, emoldurada pelos enfeites caseiros de Natal na janela, uma família de aparência espanhola jantava, numa atmosfera de calidez de capa de revista. Na casa do outro lado, um homem solitário segurava um globo do mundo no colo, olhando para ver que pais seu dedo escolhera. Gant passou, caminhou até a outra extremidade da quadra e voltou. Dessa vez, ao passar pela casa cinza, dobrou diretamente, partindo para o espaço entre ela e a casa da família espanhola. Foi até o fundo.

Havia um pequeno alpendre. Diante dele, do outro lado de um quintal cheio de cordas de pendurar roupas, uma alta cerca de tábuas. Havia uma porta e uma janela, uma lata de lixo e uma cesta de pregadores de roupa. Experimentou a porta: estava fechada. A janela também estava fechada. De pé no batente, por dentro, havia uma nota da companhia de gelo, um cartão quadrado com “5, 10, 25 e X” impressos em torno dos quatro lados. O lado do X estava para cima. Gant pegou o rolo de fita Scotch no bolso. Cortando um pedaço de trinta centímetros, comprimiu-o sobre um dos inúmeros vidros pequenos. Pregou as extremidades da fita sobre a moldura do vidro e cortou outro pedaço de trinta centímetros,

Em poucos minutos, tinha quadriculado o vidro retangular com tiras de celofane. Bateu nele com a mão enluvada. Houve um som de vidro despedaçando-se, mas nenhum pedaço caiu, todos grudados pelas fitas. Gant começou a puxar da moldura as pontas da fita. Feito isso, recolheu o retângulo de celofane e vidros quebrados da janela e colocou-o, sem fazer barulho, no fundo da lata de lixo. Enfiando o braço pela janela, destrancou-a e levantou a parte de baixo. O cartão da companhia caiu na escuridão.

Ele tirou uma pequena lanterna do bolso e curvou-se sobre a janela aberta. Havia uma cadeira com uma pilha de jornais, a frente. Ele a empurrou para um lado e entrou, fechando a janela.

O facho de luz pálida deslizava rapidamente sobre uma cozinha apertada e esquálida. Gant adiantou-se, pisando maciamente no gasto linóleo.

Chegou a sala de visitas. As cadeiras eram fofas, cobertas de veludo, gasto pelo uso nos braços. Venezianas de cor creme estavam baixadas nas janelas, ladeadas por cortinas de papel com desenhos florais Havia retratos de Bud por toda parte; quando criança, de calças curtas, na formatura do ginásio, no uniforme de soldado raso, num terno escuro, sorrindo. Havia instantâneos enfiados nas molduras dos retratos, cercando os grandes rostos sorridentes com rostos menores também sorridentes.

Gant atravessou a sala de visitas e chegou a um corredor. O primeiro cômodo ali era um quarto de dormir; um vidro de loção na penteadeira, uma caixa de roupa vazia e um lenço de papel na cama, um retrato de casamento e outro de Bud na mesa-de-cabeceira. O segundo cômodo era o banheiro; a luz da lanterna captou decalques de cisnes nas paredes, desbotadas pela umidade.

O terceiro era o quarto de Bud. Poderia ser um quarto de um hotel de segunda classe; além do diploma do ginásio acima da cama, era despido de qualquer coisa que sugerisse a individualidade do ocupante. Gant entrou.

Inspecionou os títulos de algumas obras numa estante; eram quase apenas livros didáticos e alguns romances clássicos. Nenhum diário, nenhuma agenda de compromissos. Sentou-se atrás da escrivaninha e examinou as gavetas uma a uma. Havia papel de carta e pranchetas vazias, números velhos da Life e do New Yorker, documentos da faculdade, mapas de estradas da Nova Inglaterra. Nenhuma carta, nenhum calendário com compromissos anotados, nenhuma caderneta de endereços com nomes riscados. Ele levantou-se da escrivaninha e foi ao aparador. Metade das gavetas estava vazia. A outra metade continha camisas de verão e calções de banho, uns dois pares de meias de lá, roupa de baixo, abotoaduras oxidadas, barbatanas para colarinhos, gravatas- borboleta com prendedores quebrados. Nenhum papel perdido pelos cantos, nenhum retrato esquecido.

Por descargo de consciência, abriu o armário. Embaixo, no canto, viu uma pequena caixa-forte cinza.

Retirou-a e colocou-a na escrivaninha. Estava fechada. Ele ergueu-a e sacudiu-a, ouvindo algo balançar lá dentro, com o som de folhas de papel. Depôs novamente a caixa, forçou a fechadura com a lâmina de uma faquinha que trazia no chaveiro. Depois, levou-a para a cozinha. Encontrou um saca-rolhas numa das gavetas e tentou abri-la com ele. Finalmente, embrulhou a caixa em jornal, pedindo a Deus que ela não contivesse as economias da sra. Corliss.

Abriu a janela, pegou o cartão da companhia de gelo do chão e saiu para o alpendre. Depois de ter descido e fechado a janela, rasgou o cartão na medida exata e ajeitou-o no lugar do vidro quebrado, o lado não-impresso para fora. Com o cofre debaixo do braço, esgueirou-se silenciosamente entre as casas e chegou a calçada.


11

 

 

LEO KINGSHIP RETORNOU ao seu apartamento às dez horas da noite de quarta-feira, tendo trabalhado até tarde para compensar algumas das horas perdidas no Natal.

— Marion está? — ele perguntou ao mordomo, entregando-lhe o casaco.

— Saiu com o senhor Corliss. Mas disse que voltaria cedo. Há um senhor Dettweiler esperando na sala de visitas.

— Dettweiler?

— Disse que a senhorita Richardson o enviou, a respeito dos seguros. Tem uma pequena caixa-forte consigo.

— Dettweiler. — Kingship franziu o cenho.

Entrou na sala de visitas.

Gordon Gant levantou-se de uma confortável poltrona junto a lareira.

— Alô — disse, alegremente.

Kingship olhou-o por um momento.

— A senhorita Kingship não esclareceu aquela tarde que eu não queria... — As mãos fecharam-se a seu lado. — Saia daqui — disse. — Se Marion chegar...

— Prova A — declarou Gant, erguendo um folheto em cada mão — na acusação contra Bud Corliss.

— Eu não quero... — A frase ficou suspensa, inacabada. Apreensivamente, Kingship adiantou-se. Tomou os folhetos das mãos de Gant. — Nossas publicações...

— Em poder de Bud Corliss — disse Gant. — Mantidas numa caixa-forte que até a noite passada repousava num armário em Menasset, Massachusetts, — Deu um pequeno chute na caixa a seus pês, no chão. A tampa, aberta, estava retorcida. Havia envelopes pardos retangulares lá dentro. — Eu a roubei — disse Gant.

— Roubou?

Ele sorriu.

— Deve-se combater o fogo com o fogo. Não sei onde ele está hospedado em Nova York, por isso decidi dar um pulinho a Menasset.

— Você é louco... — Kingship sentou-se pesadamente no sofá. Olhava os folhetos. — Oh, Deus — disse,

Gant retornou a poltrona junto ao sofá.

— Observe as condições da prova A, por favor. Puídas nas bordas, com muitas marcas de dedos, as páginas do centra soltas dos grampos. Eu diria que ele as tem há muito tempo. Diria que as manuseou consideravelmente.

— Aquele... aquele filho da puta... — Kingship disse a frase claramente, como se não estivesse acostumado a empregá-la.

Gant tocou a caixa-forte com o bico do sapato.

— A história de Bud Corliss, um drama em quatro envelopes — disse. — Envelope 1: recortes de jornal sobre o herói ginasiano, presidente da classe, presidente do conselho de festas, candidato mais provável ao sucesso, e assim por diante. Envelope 2: dispensa com honra do Exército, Estrela de Bronze, Coração Púrpura, várias fotos interessantes, apesar de obscenas, e um recibo de loja de penhores que descobri equivaler a um relógio de pulso, que se pode retirar por uns duzentos dólares. Envelope 3: tempo passado na universidade; transcrições de Stoddard e Caldwell. Envelope 4: duas brochuras muito lidas descrevendo a magnitude da Kingship Copper Incorporated, e isto... — sacou uma folha dobrada de papel amarelo com linhas azuis e passou-a a Kingship — que não sei o que significa.

Kingship desdobrou o papel. Leu até a metade.

— O que é?

— E o que eu lhe pergunto.

Ele balançou a cabeça.

— Deve ter alguma coisa a ver com o caso — disse Gant. — Estava junto dos folhetos.

Kingship balançou a cabeça e devolveu o papel a Gant, que tornou a pô-lo no bolso. O olhar do velho baixou para os folhetos. A força com que os segurava amassava o papel grosso.

— Como vou dizer a Marion? — disse. — Ela o ama... — Olhou para Gant sombriamente. Depois, aos poucos, seu rosto se desenrugou. Olhou os folhetos e novamente Gant, estreitando os olhos. — Como vou saber se estavam na caixa-forte? Como vou saber se o senhor mesmo não os pôs ai?

Gant deixou cair o queixo.

— Oh, por...

Kingship contornou a extremidade do sofá e atravessou a sala. Havia um telefone numa mesa esculpida. Ele discou um numero.

— Vamos — disse Gant.

No silêncio da sala, o zumbido e os cliques do telefone eram bem audíveis.

— Alo? Senhorita Richardson? Aqui e o senhor Kingship. Eu gostaria de pedir-lhe um favor. Um grande favor, receio. E abso- lutamente confidencial. — Um cacarejo ininteligível brotou do fone. — A senhorita me faria o favor de ir até o escritório... sim, agora. Eu não lhe pediria se não fosse extremamente importante, e eu... — Houve mais cacarejos. — Vá ao Departamento de Relações Públicas — disse Kingship. — Percorra os arquivos e veja se mandamos algum dia publicações promocionais a... Bud Corliss.

— Burton Corliss — disse Gant.

— Ou Burton Corliss. Sim, isso mesmo: o senhor Corliss. Estou em casa, senhorita Richardson. Chame-me assim que descobrir. Obrigado. Muito obrigado, senhorita Richardson. Eu sei dar valor a isso... — Desligou.

Gant balançou a cabeça ironicamente.

— Estamos mesmo nos agarrando a palhas, não?

— Preciso ter certeza — disse Kingship. — A gente tem de ter certeza sobre as provas num caso destes. — Ele retornou e ficou atrás do sofá.

— O senhor já tem certeza, e sabe muito bem que tem — disse Gant.

Kingship apoiou as mãos no sofá, olhando os folhetos na depressão onde estivera sentado.

— O senhor sabe muito bem que tem — repetiu Gant.

Apos um momento, Kingship suspirou, cansado. Contornou novamente o sofá, pegou os folhetos e sentou-se.

— Como devo dizer a Marion? — perguntou. Esfregou os joelhos. — Aquele filho da puta... maldito filho da puta...

Gant curvou-se para ele, os cotovelos nos joelhos.

— Senhor Kingship, eu estava certo até agora. Será que o senhor pode admitir que eu esteja certo até o fim?

— Que significa “até o fim”?

— Sobre Dorothy e Ellen. — Kingship inspirou, irritadamente.

Gant falou rápido: — Ele não disse a Marion que esteve em Stoddard. Deve ter se envolvido com Dorothy. Deve ser o homem que a engravidou. Ele a matou, e Powell e Ellen de algum modo descobriram, e ele teve de matá-los também.

— O bilhete...

— Ele pode ter enganado Dorothy, levando-a a escrevê-lo! Já se fez isso antes. Os jornais contaram uma história, ainda o mês passado, sobre um cara que fez isso, e pelo mesmo motivo: a moça estava grávida.

Kingship balançou a cabeça.

— Eu o julgaria capaz disso — disse. — Depois do que fez com Marion, acreditaria em qualquer coisa sobre ele. Mas há uma falha em sua teoria, uma falha grande.

— Qual? — perguntou Gant.

— Ele quer o dinheiro, não é? — Gant assentiu com a cabeça.

— E o senhor “sabe” que Dorothy foi assassinada porque usava uma coisa velha, uma coisa nova, uma coisa emprestada, uma coisa azul. — Gant assentiu de novo. — Bem — disse Kingship.

— Se foi ele que a meteu em encrenca, e se ela estava disposta a casar-se com ele naquele dia, por que a mataria? Teria ido em frente e casado, não? Teria casado com ela e conseguido o dinheiro.

Gant olhou-o, sem palavras.

— O senhor estava certo quanto a isto — disse Kingship, erguendo os folhetos. — Mas esta errado quanto a Dorothy. Inteiramente errado.

Um momento depois, Gant levantou-se. Voltou-se e dirigiu-se a janela. Ficou olhando para fora alheiamente, mordendo o lábio inferior.

— Posso saltar — anunciou.

 

Quando as sinetas da porta tocaram, Gant voltou-se da janela. Kingship levantara-se e estava de pé diante da lareira, fitando os troncos de bétula arrumados numa pirâmide. Voltou-se relutan- temente, segurando os folhetos enrolados ao lado do corpo, o rosto evitando os olhos vigilantes de Gant.

Ouviram a porta da frente abrir-se, e depois, vozes:

— ... Entre um instante.

— Não creio que deva, Marion. Precisamos nos levantar cedo amanhã. — Houve um longo silencio, — Estarei defronte de minha casa às sete e trinta.

— E melhor usar um terno escuro. A fundição deve ser um lugar sujo. — Outro silencio. — Boa noite, Bud...

— Boa noite.

A porta fechou-se.

Kingship enrolou os folhetos mais ainda, fazendo um fino canudo.

— Marion — chamou, mas a voz saiu baixa demais. — Marion — chamou de novo, mais alto.

— Já vou — respondeu a voz dela, animadamente.

Os dois homens esperaram, de repente cônscios do tique-taque de um relógio.

Ela surgiu na ampla entrada, erguendo a gola de sua blusa branca, de mangas compridas, rígida de goma. O rosto estava radiante.

— Olá — disse. — Tivemos uma...

Viu Gant. Suas mãos petrificaram-se e caíram.

— Marion, nos...

Ela girou e saiu.

— Marion! — Kingship correu para a saída e o saguão. — Marion! — Ela estava na metade da escadaria branca e curva, as pernas movendo-se furiosamente. — Marion! — ele gritou firmemente, como uma ordem,

Ela parou, sem se voltar, segurando o corrimão.

— Então?

— Desça aqui — ele disse. — Preciso falar com você. Isto e extremamente importante. — Passou-se um momento. — Desça aqui — ele disse.

— Muito bem. — Ela voltou-se e desceu as escadas com frieza aristocrática. — Pode falar comigo. Antes de eu subir, arrumar minhas coisas e ir embora.

Kingship voltou a sala de visitas. Gant estava de pé, desconfortavelmente, no meio da sala, a mão no encosto do sofá. Kingship, balançando a cabeça sofridamente, foi para o lado dele.

Ela entrou na sala. Os olhos dos dois homens seguiram-na quando ela, sem olhá-los, veio até a poltrona defronte daquela onde Gant estivera sentado, na outra extremidade do sofá. Sentou-se. Cruzou as pernas cuidadosamente, alisando a lã vermelha da saia. Pôs as mãos nos braços da poltrona. Olhou-os, aos dois, de pé atrás do sofá a sua esquerda.

— Então? — disse.

Kingship moveu-se incomodamente, encolhendo-se sob o olhar dela.

— O senhor Gant foi a... Ontem ele...

— Sim?

Kingship voltou-se para Gant, sem saber o que fazer.

— Ontem a tarde, absolutamente sem o conhecimento de seu pai, eu fui a Menasset. Arrombei a casa de seu noivo... — Gant disse.

— Não!

— ... e tirei de lá uma caixa-forte que encontrei no armário do quarto dele...

Marion recostou-se mais na poltrona, forçando as costas contra ela, as mãos apertadas até os nós dos dedos tornarem-se brancos, a boca cerrada reduzida a uma linha sem lábios, os olhos fechados.

— Levei-a para casa e forcei a tampa...

Os olhos dela abriram-se numa explosão, reluzindo.

— O que encontrou? Os planos da bomba atômica?

Os dois ficaram calados.

— O que encontrou? — ela repetiu, baixando a voz e tornando- se cautelosa.

Kingship foi até a extremidade do sofá e entregou-lhe os folhetos, desdobrando-os desajeitadamente.

Ela os pegou com gestos vagarosos e olhou-os.

— São antigos — disse Gant. — Ele os tem há algum tempo.

— Ele não voltou a Menasset desde que você começou a sair com ele. Tinha isso antes de conhecê-la — Kingship disse.

Ela alisou cuidadosamente os folhetos no colo. Algumas das pontas estavam dobradas. Ela as endireitou.

— Ellen deve tê-los dado a ele.

— Ellen nunca teve nenhuma de nossas publicações, Marion. Você sabe disso. Ela sentia tão pouco interesse quanto você.

Ela virou os folhetos e examinou as capas de trás.

— Você estava lá quando ele arrombou a caixa? Tem certeza de que estavam na caixa?

— Estou verificando isso — disse Kingship. — Mas que motivos teria o senhor Gant para...?

Ela começou a virar as páginas de um dos folhetos; casualmente, como se fosse uma revista numa sala de espera.

— Muito bem — disse rigidamente, um momento depois —, talvez tenha sido o dinheiro que o atraiu a principio. — Seus lábios formaram um tenso sorriso. — Uma vez na vida eu sou grata ao seu dinheiro. — Virou a página. — Como e que se diz? É tão fácil se apaixonar por uma moça rica quanto por uma pobre. — Outra página. — Na verdade, não se pode censurá-lo muito, tendo vindo, como veio, de uma família pobre. Influencia do ambiente... — Levantou-se e jogou os folhetos no sofá. — Mais alguma coisa? — As mãos tremiam ligeiramente.

— Mais alguma coisa? — Kingship olhava-a, sem acreditar.

— Não é o bastante?

— Bastante? — ela perguntou. — Bastante para que? Bastante para acabar com o casamento? Não. — Balançou a cabeça. — Não, não é o bastante.

— Você ainda quer...

— Ele me ama — ela disse. — Talvez meu dinheiro o tenha atraído a principio, mas... bem, suponhamos que eu fosse uma garota bonita; não iria acabar com o casamento se descobrisse que era minha beleza que o atraia, iria?

— A principio? — disse Kingship. — Ainda e o dinheiro que o atrai.

— Você não tem o direito de dizer isso!

— Marion, você não pode se casar com ele agora...

— Não? Va até a prefeitura sábado de manha!

“ Ele e um imprestável calculista...

— Oh, sim! Você sempre sabe exatamente quem presta e quem não presta, não sabe? Sabia que mamãe não prestava e livrou-se dela, e que Dorothy não prestava e por isso se matou, porque você a educou com seu presta e não presta, seu certo e errado! Já não fez o bastante com seu presta e não presta?

— Você não vai se casar com um homem que só esta atrás de seu dinheiro!

— Ele me ama. Será que você não entende? Ele me ama! Eu o amo! Não me importa o que nos aproximou! Pensamos do mesmo modo! Sentimos do mesmo modo! Gostamos dos mesmos livros, das mesmas peças, da mesma música, da mesma...

— Da mesma comida — Gant interrompeu. — Os dois gostam de comida italiana ou armênia? — Ela voltou-se para ele, a boca aberta. Ele desenrolava uma folha de papel amarela com riscas azuis que tirara do bolso. — E desses livros — disse, olhando o papel. — Não seriam por acaso as obras de Proust, Thomas Wolfe, Carson McCullers?

Os olhos dela arregalaram-se.

— Como o senhor...? Que é isso?

Ele contornou o sofá, aproximando-se dela. Marion virou-se de frente para ele.

— Sente-se — ele disse.

— Que está...? — Ela recuou. A borda do sofá tocou-lhe a barriga das pernas.

— Sente-se, por favor — ele disse.

Ela sentou-se.

— Que é isso?

— Estava na caixa-forte, junto com os folhetos — ele respondeu — No mesmo envelope. A letra é dele, presumo. — Entregou-lhe o papel amarelo. — Sinto muito — disse.

Ela olhou-o confusamente e depois baixou os olhos para o papel.

Proust, T. Wolfe, C. McCullers, Madame Bovary, Alice no País das Maravilhas, Eliz. B. Browning.

— LER!

ARTE (sobretudo moderna) — Hopley ou Hopper, De Meuth (esp.?) — LER livros gerais sobre arte mod.

Fase rósea no ginásio.

Ciúmes de E.?

Renoir, Van Gogh.

Comida italiana & armênia — PROCURAR restaurant.es em N.Y.

Teatro: Shaw, T. Williams — coisa seria...

 

Ela mal leu um quarto da página coberta de uma letra miúda, a cor esvaindo-se de suas faces. Depois, dobrou o papel com trémulo cuidado.

— Bem — disse, dobrando-o de novo, — Estou vendo que fui a... alma crédula... — Sorriu alheiamente para o pai, que vinha delicadamente postar-se a seu lado. — Eu devia ter adivinhado, Não devia? — O sangue retornou de súbito as suas faces. Os olhos boiavam em lágrimas, e seus dedos amassavam e torciam o papel com força de aço. — Era bom demais para ser verdade. — Sorriu, as lágrimas escorrendo pelo rosto, os dedos despedaçando o papel. — Eu realmente devia ter adivinhado... — As mãos soltaram os fragmentos amarelos e voaram para o rosto. Ela começou a soluçar.

Kingship sentou-se a seu lado, o braço sobre seus ombros curvados.

— Marion... Marion... Você devia estar contente por não ter descoberto tarde demais...

As costas da filha tremiam sob o seu braço.

— Você não compreende — ela soluçou através das mãos —, você não pode compreender...

 

Depois que as lágrimas cessaram, ela ficou sentada sem vida, os dedos trançados em torno do lenço que Kingship lhe dera, os olhos fixos nos pedaços de papel amarelo sobre o tapete.

— Quer que eu a leve lá para cima? — perguntou-lhe o pai.

— Não. Por favor... só... só me deixe ficar sentada aqui...

Kingship levantou-se e foi até Gant, na janela. Quedaram-se calados por algum tempo, olhando as luzes além do rio. Finalmente, Kingship disse:

— Eu farei alguma coisa a ele. Juro por Deus que farei alguma coisa.

Passou-se um minuto. Gant disse:

— Ela falou sobre “presta e não presta”. O senhor era muito severo com suas filhas?

Kingship pensou por um momento.

— Não muito — disse.

— Eu acho que era, do modo como ela falou.

— Estava enraivecida — disse Kingship.

Gant olhava um luminoso da Pepsi do outro lado do rio.

— Na mercearia, outro dia, depois de deixarmos o apartamento de Marion, o senhor falou alguma coisa sobre talvez ter expulsado uma de suas filhas. Que queria dizer?

— Dorothy — disse Kingship. — Talvez, se eu não tivesse sido tão...

— Tão severo? — sugeriu Gant.

— Não. Eu não era severo demais. Ensinei-lhes a distinguir o certo e o errado. Talvez tenha... enfatizado um pouco demais, por causa da mãe delas... — Suspirou. — Dorothy não devia ter pensado que o suicídio era a única saída.

Gant pegou o maço de cigarros e tirou um. Girou-o entre os dedos.

— Senhor Kingship, que teria feito o senhor se Dorothy se casasse sem consultá-lo primeiro, e depois tivesse um filho... cedo demais?

Apos um momento, Kingship disse:

— Não sei.

— Ele a expulsaria — disse Marion em voz baixa. Os dois homens voltaram-se. Ela permanecia imóvel no sofá como antes. Podiam ver o rosto dela refletido no espelho sobre a lareira. Ainda olhava os papéis no chão.

— Bem? — disse Gant a Kingship.

— Não creio que a houvesse expulsado — protestou.

— Expulsaria — disse Marion, sem nenhum tom na voz.

Kingship tornou a voltar-se para a janela.

— Bem — disse, finalmente —, em tais circunstancias, não se devia esperar que um casal assumisse as responsabilidades do casamento, e também da... — Não acabou a frase.

Gant acendeu seu cigarro.

— Aí tem o senhor — disse. — Eis o motivo pelo qual ele a matou. Ela devia ter falado a ele sobre o senhor. Ele sabia que não chegaria nem perto do dinheiro mesmo que casasse com ela, e se não casasse teria problemas também, por isso... Depois tentou uma segunda vez, com Ellen, mas ela começou a investigar a morte de Dorothy e chegou perto demais da verdade. Tão perto que ele teve de matá-la, e matar Powell também. E depois tentou a terceira vez.

— Bud? — perguntou Marion. Disse o nome sem emoção, o rosto no espelho demonstrando apenas um fraquíssimo piscar de surpresa, como se o noivo tivesse sido acusado de não saber se comportar a mesa.

Kingship olhava para fora da janela, os olhos entrecerrados.

— Eu acreditaria nisso — disse com decisão. — Eu acreditaria... — Mas, ao voltar-se para Gant, a decisão se dissolvera em seus olhos. — O senhor baseia tudo isso no fato de ele não ter falado a Marion sobre Stoddard. Nem sabemos ao certo se ele conheceu Dorothy, quanto mais se foi o homem com quem ela estava... saindo. Precisamos ter certeza.

— As moças do dormitório — disse Gant. — Algumas delas devem ter conhecido o homem com quem ela saia.

Kingship assentiu com a cabeça.

— Eu podia contratar alguém para ir lá, falar com elas...

Gant pensou um pouco e balançou a cabeça...

— Não adianta. E o período de férias. Quando se conseguisse encontrar alguma, seria tarde demais.

— Tarde demais?

— Tão logo ele saiba que não haverá casamento — olhou para Marion; ela permanecia calada —, não vai ficar por ai para descobrir o motivo, vai?

— Nós o encontraríamos — disse Kingship.

— Talvez. Talvez não. As pessoas desaparecem. — Gant fumava, pensativamente. — Dorothy não mantinha um diário, ou alguma coisa assim?

O telefone tocou.

Kingship foi a mesa esculpida e pegou-o.

— Alo, — Houve uma longa pausa. Gant olhou para Marion; ela curvava-se para a frente, catando os pedaços de papel do chão. — Quando? — perguntou Kingship. Ela pôs os pedaços de papel na mão esquerda e amassou-os. Olhou-os, sem saber o que fazer com eles. Colocou-os no sofá a seu lado, em cima dos dois folhetos. — Obrigado — disse Kingship. — Muito obrigado. — Ouviu-se o som do aparelho sendo desligado, e depois silencio. Gant voltou-se para Kingship.

Ele estava parado ao lado da mesa, o rosto róseo rígido.

— A senhorita Richardson — disse. — Enviamos literatura promocional a Burton Corliss, em Caldwell, Wisconsin, a 16 de outubro de 1950.

— Exatamente quando ele deve ter iniciado sua campanha com Ellen — disse Gant.

Kingship assentiu.

— Mas essa foi a segunda vez — disse lentamente. — Também enviamos literatura promocional a Burton Corliss a 6 de fevereiro de 1950, em Blue River, Iowa.

— Dorothy... — Gant disse.

Marion gemeu

Gant ficou, depois que ela foi para cima.

— Ainda estamos no mesmo barco em que Ellen estava — ele disse. — A policia tem o “bilhete de suicídio” de Dorothy, e nos só temos suspeitas e um punhado de provas circunstanciais.

Kingship ergueu um dos folhetos.

— Eu cuidarei disso — ele disse.

— Não encontraram nada na casa de Powell? Uma impressão digital, um fio de tecido... ?

— Nada — disse Kingship — Nada na casa de Powell, nada no restaurante onde Ellen...

Gant suspirou.

— Mesmo que a gente fizesse com que a policia o prendesse, um primeiranista de direito pode libertá-lo em cinco minutos.

— Eu o pegarei, de algum modo — disse Kingship. — Cuidarei disso, e o pegarei.

— Precisamos descobrir como ele conseguiu fazê-la escrever o bilhete, ou então descobrir o revólver que usou para matar Powell e Ellen. E antes de sábado — Gant disse.

Kingship olhou a foto na capa do folheto.

— A fundição... — Em tom de lamento, ele disse: — Devemos voar para lá amanhã. Queria mostrar-lhe a firma. Marion também. Ela nunca se interessou antes.

— E melhor cuidar para que ela não o deixe saber sobre o cancelamento do casamento até o ultimo momento possível.

— Oh! — disse Kingship, Seus olhos voltaram ao folheto. Passou-se um momento. — ele escolheu o homem errado — disse baixinho, ainda olhando a fotografia da fundição. — Ele devia ter escolhido as filhas de outro.


12

 

 

TERIA HAVIDO, ALGUMA VEZ, um dia tão perfeito? Era só o que queria saber... teria havido? Sorriu para o avião; parecia tão impaciente quanto ele; embicava para a frente na pista, seu corpo compacto reluzindo, o nome KINGSHIP em cobre e a marca da coroa do lado, parecendo arder com a luz do sol da manhã. Sorriu da cena de agitação mais adiante no campo, onde ficavam os aviões comerciais, os passageiros a espera, arrebanhados atrás da cerca de arame como animais. Bem, não podemos todos ter aviões particulares a nossa disposição! Sorriu para o azul de cerâmica do céu, depois espreguiçou-se e bateu no peito alegremente, observando o vapor de sua respiração subir no ar. Não, decidiu judiciosamente, jamais houvera realmente um dia tão perfeito. Nunca? Não, nunca. Bem... quase nunca! Voltou-se e retornou ao hangar, trauteando uma melodia de Gilbert e Sullivan.

Marion e Leo estavam parados a sombra, tendo uma de suas discussões de lábios cerrados.

— Eu vou! — insistia Marion.

— Qual e o problema? — Ele sorriu, aproximando-se.

Leo voltou-se e afastou-se.

— O que é que há? — ele perguntou a Marion.

— Nada. Não me sinto bem, e por isso ele não quer que eu vá. — Os olhos estavam no avião atrás dele.

— Nervosismo de noiva?

— Não. Simplesmente não me sinto bem, só isso.

— Oh! — ele disse, como quem imaginava o que era.

Ficaram em silencio por um minuto, observando dois mecânicos lidarem com o tanque de combustível do avião, e depois ele se dirigiu para Leo. Só Marion mesmo para não aproveitar um dia como esse. Bem, era tudo provavelmente para melhor; talvez ficasse calada para variar.

— Tudo pronto para a partida?

— Dentro de poucos minutos — disse Leo. — Estamos esperando o senhor Dettweiler.

— Quem?

— O senhor Dettweiler. O pai dele fez parte do conselho diretor.

Poucos minutos depois um homem loiro, de casaco cinza, aproximou-se, vindo da direção do local de passageiros, Tinha um maxilar longo e grossas sobrancelhas.

— Bom dia, senhor Kingship.

— Bom dia, senhor Dettweiler. — Apertaram-se as mãos. — Gostaria que o senhor conhecesse meu futuro genro, Bud Corliss, Bud, este e Gordon Dettweiler.

— Como vai?

— Bem — disse Dettweiler; seu aperto de mão era como uma calandra, — Eu ansiava realmente por conhecê-lo. Sim, senhor, ansiava mesmo.

Um tipo, pensou Bud, ou talvez estivesse tentando cair nas boas graças de Leo.

— Pronto, senhor? — perguntou um homem de dentro do avião.

— Pronto — disse Leo. Marion adiantou-se. — Marion, eu realmente desejaria que você não... — Mas ela passou direto por ele, subiu a plataforma de três degraus e entrou no avião. Leo deu de ombros e balançou a cabeça. Dettweiler seguiu Marion. O velho disse: — Você primeiro, Bud.

Ele subiu correndo os três degraus e entrou no avião. Era um aparelho de seis lugares, o interior pintado de azul-pálido. Ele tomou o último lugar a direita, atrás da asa. Marion sentou-se do outro lado do corredor. Leo sentou-se na frente, ao lado de Dettweiler.

Quando o motor tossiu e pegou, Bud apertou seu cinto de segurança. Diabos, se não era uma fivela de cobre! Ele balançou a cabeça, sorrindo. Olhou para fora da janela, as pessoas esperando por trás da cerca, e imaginou se poderiam vê-lo...

O avião começou a rolar na pista. A caminho... Leo o levaria a fundição se ainda estivesse desconfiado? Nunca! Que? Nunca! Não, nunca! Inclinou-se, tocou o cotovelo de Marion e sorriu- lhe. Ela retribuiu-lhe o sorriso, parecendo pouco a vontade, e retomou a sua janela. Leo e Dettweiler falavam baixo um com o outro na frente.

— Quanto tempo leva, Leo? — ele perguntou, animado.

Leo voltou-se.

— Três horas. Menos, se o vento estiver bom. — E tornou a voltar-se para Dettweiler.

Bem, não queria conversar com ninguém, de qualquer modo.

Retornou a sua janela e ficou olhando o chão deslizar embaixo.

No fim do campo, o avião virou lentamente. O motor roncou mais alto, pegando força...

Ele olhava para fora da janela, manuseando a fivela de cobre. A caminho da fundição... A fundição! A fonte da fortuna!

Por que diabos tinha sua mãe de ter medo de voar? Deus, teria sido incrível tê-la consigo!

O avião roncou e partiu.

 

Ele foi o primeiro a localizá-la; bem adiante e abaixo, um pequeno conjunto geométrico negro no lençol de neve; um pequeno conglomerado como um ramo no fim do curvo tronco de trilhos de ferro.

— Ali está — ouviu Leo dizer, e teve uma vaga consciência de Marion atravessando o corredor, sentando-se a sua frente. Sua respiração embagava a janela; limpou-a.

O ramo sumiu sob a asa. Ele esperou. Engoliu saliva e as membranas de seus ouvidos retornaram ao lugar, quando o avião baixou.

A fundição apareceu bem em frente. Era meia dúzia de tetos marrons, retilíneos, com grossos rolos de fumaça brotando de seus centros. Pareciam amontoados, imensos e sem sombras sob sol a pino, ao lado do reluzente pedaço de cota de malha de um estacionamento cheio. Trilhos ferroviários volteavam e contornavam o conjunto, fundindo-se abaixo num tronco cheio de veios, onde um trem de carga se arrastava, sua mancha de fumaça insignificante em comparação com os gigantescos rolos negros atrás, a cadeia de vagões cintilantes com brilho cor de salmão.

Voltou a cabeça lentamente, os olhos grudados a fundição que deslizava para a cauda do avião. Seguiam-se campos nevados. Casas espalhadas apareceram. A fundição passara. Havia mais casas, depois estradas separando-as em dois blocos. Ainda outras casas, mais perto agora, e armazéns e cartazes, carros e pessoas reduzidos a pontinhos, um jardim, o desenho cubista de um projeto habitacional...

O avião inclinou-se, circulando. O solo desapareceu, depois nivelou-se, aproximou-se, e finalmente surgiu sob a asa do avião. Um impacto; a fivela do cinto de segurança apertou sua barriga. Depois o aparelho deslizou suavemente.

Havia uma limusine a espera quando desceram do avião; um Packard feito sob encomenda, negro e brilhante. Ele sentou-se junto a Dettweiler. Curvou-se para a frente, olhando sobre os ombros do chofer. Examinava a longa perspectiva da rua principal da cidadezinha até um monte branco no horizonte distante. Do outro lado do cume subiam colunas de fumaça. Eram curvas e negras contra o céu, como os dedos de nuvens da mão de um gênio.

 

A rua principal tornou-se uma estrada de duas pistas que varava os campos nevados, e a estrada tornou-se uma rodovia asfaltada que contornava a base do monte, e a rodovia asfaltada tornou-se uma estrada de cascalho que passava sobre os trilhos ferroviários e dobrava a esquerda, subindo a encosta, paralela aos trilhos. Primeiro alcançaram um trem que subia lentamente, depois outro. Brilhos de metal oculto faiscavam nos vagões de carga cheios de minério.

À frente, assomou a fundição. Prédios marrons empilhados numa imensa pirâmide, suas chaminés ordenadas em torno da maior. Aproximando-se, os prédios cresciam e tornavam-se mais nítidos; suas paredes, como penhascos, eram raias de metal marrom, entrançadas em alguns pontos com ornatos que os circundavam, e irregularmente remendadas com vidros sujos de fuligem; as formas das construções eram duras, geométricas, ligadas umas as outras por tubos e passadiços. De mais perto ainda, os prédios tornavam a fundir-se, o céu além deles oculto atrás de ângulos salientes. Tornavam-se uma única forma maciça, grandes volumes escorando outros maiores, para delinear uma imensa catedral industrial com espirais de fumaça. Assomava como uma montanha, subitamente deixada para um lado pela limusine que se desviava.

O carro parou diante de uma baixa construção de tijolos, a cu- já porta esperava um homem grisalho e magro, de sorriso untuoso, vestindo um terno cinza-escuro.

 

Ele esqueceu o que comia, tão interessado estava no almoço. Conseguiu tirar os olhos da janela do outro lado da sala, a janela pela qual se podiam ver os prédios onde montes de terra marrom- acinzentada eram purificados até tornar-se cobre reluzente, e olhou o seu prato. Creme de frango. Começou a comer mais rapida- mente, esperando que os outros o imitassem.

O homem grisalho, vestido com apuro, era um certo sr. Otto, o administrador da fundição. Tendo Leo feito as apresentações, o sr. Otto conduzira-os a uma sala de reuniões e começara a desculpar-se por isso e aquilo. Desculpa pela toalha, que deixava um canto da mesa descoberto: “Não estamos no escritório de Nova York, os senhores sabem”; e pela comida fria e o vinho quente: “Receio que não tenhamos as instalações de nossa grande irmã urbana”. O sr. Otto ansiava visivelmente pelo escritório de Nova York. Enquanto tomavam a sopa, ele falara da escassez de cobre e condenara as sugestões do Departamento Nacional de Produção por sua mitigação. De vez em quando, referia-se ao cobre como “o metal vermelho”.

— Senhor Corliss. — Ele ergueu o olhar. Dettweiler sorria-lhe do outro lado da mesa. — E melhor ter cuidado — disse Dettweiler. — Encontrei um osso em meu prato.

Bud olhou o seu prato quase vazio e retribuiu o sorriso de Dettweiler.

— Estou ansioso para ver a fundição.

— E não estamos todos? — observou Dettweiler, ainda sorrindo.

— O senhor encontrou um osso? — perguntou o sr. Otto. — Essa mulher! Eu lhe disse que tomasse cuidado. Essa gente não sabe sequer cortar um frango corretamente.

 

Agora, que haviam finalmente deixado o edifício de tijolos e atravessavam o pátio asfaltado em direção ao prédio da própria fundição, ele andava lentamente. Os outros, sem os casacos, apressavam-se na frente, mas ele deixou-se ficar para trás, saboreando bem o momento. Olhava o trem carregado de minério desaparecer atrás de uma parede de aço à esquerda dos prédios. A direita, um trem estava sendo carregado; guindastes despejavam cobre nos vagões; grandes lousas quadradas como chama solidificada, que deviam pesar de duzentos e cinquenta a trezentos quilos cada. Um coração!, ele pensou, olhando a monstruosa forma marrom que tomava uma parte cada vez maior do céu — um gigantesco coração da indústria americana, absorvendo sangue ruim e bombeando sangue bom! De pé, tão perto dele, quase a entrar nele, era impossível não partilhar do palpitar de sua energia!

Os outros haviam desaparecido numa entrada na base da poderosa massa de aço. Agora o sr. Otto sorria de dentro da entrada, chamando-o.

Ele adiantou-se lentamente, como um amante dirigindo-se a um encontro há muito ansiado. Plenamente recompensado! Promessa cumprida! Devia haver uma fanfarra!, ele pensou. Devia haver uma fanfarra.

Soou um apito.

Obrigado. Muchas gracias.

Penetrou na escuridão da entrada. A porta fechou-se as suas costas.

O apito soou novamente, penetrante, como um pássaro na selva.


13

 

 

ESTAVA NUM PASSADIÇO protegido por correntes, olhando, fascinado, um exército de imensos fornos cilíndricos formado a sua frente em ordem decrescente, como uma ordenada floresta de gigantescos troncos de cedro. Na base deles, homens movimentavam-se metodicamente, regulando controles incom- preensiveis. O ar era quente e sulfuroso.

— Ha cinco cadinhos, um acima do outro, em cada forno — dizia doutoralmente o sr. Otto. — O minério e metido lá em cima, e vai descendo de cadinho em cadinho trazido por braços rotativos ligados a um eixo central. O cozimento remove o excesso de enxofre do minério.

Ele ouvia atentamente, assentindo. Voltou-se para os outros, a fim de demonstrar sua admiração, mas apenas Marion estava a sua direita, com o mesmo rosto inexpressivo que apresentara durante todo o dia. Leo e Dettweiler haviam desaparecido.

— Aonde foram seu pai e Dettweiler? — ele perguntou.

— Não sei. Papai disse que queria mostrar alguma coisa a ele.

— Oh! — Ele voltou-se para os fornos. O que quereria Leo mostrar a Dettweiler? Bem... — Quantos há?

— Fornos? — O sr. Otto limpou o suor acima de seu lábio superior com um lenço dobrado. — Cinquenta e quatro.

Cinquenta e quatro! Deus do céu!

— Que quantidade de minério e processada por dia? — perguntou.

 

Era maravilhoso! Jamais estivera tão interessado por alguma coisa em toda a sua vida! Fez mil perguntas, e o sr. Otto, reagindo visivelmente ao seu fascínio, respondeu a elas com detalhes, falando só para ele, enquanto Marion ficava atrás, sem receber nenhuma atenção.

Em outro prédio, havia mais fornos; paredes de tijolos, baixas, quase uns trinta e cinco metros de comprimento.

— Fornos de revérbero — disse o sr. Otto. — O minério que sai dos fornos de cozimento tem quase dez por cento de cobre. Aqui, ele e derretido. Os minérios mais leves escoam para fora como escória. O que fica é ferro e cobre, o que chamamos “mate”, quarenta por cento cobre.

— O que usam como combustível?

— Carvão pulverizado. O calor excedente e usado na geração de vapor para produzir energia.

Ele balançou a cabeça, assobiando entre dentes. O sr. Otto sorriu.

— Impressionado?

— E maravilhoso — disse Bud. — Maravilhoso. — Fitou a interminável fila de fornos. — Faz a gente compreender o grande pais que é a América.

 

— Esta — disse o sr. Otto, elevando a voz acima de uma maré montante de barulho — é provavelmente a parte mais espetacular de todo o processo de fundição.

— Deus!

— Os conversores — disse o sr. Otto, gritando.

O prédio era uma imensa concha de aço, ressoando com o constante trovejar de máquinas e homens. Uma névoa verde ocultava seus pontos mais distantes, boiando em torno dos raios de sol amarelo-esverdeados, colunas de luz que desciam das claraboias do teto, afunilado e sombrio lá em cima, através de trilhos de guindastes e passadiços.

 

Na extremidade mais próxima do prédio, de cada lado, havia seis recipientes cilíndricos escuros, como gigantescos barris de aço deitados, fazendo os homens que trabalhavam nas plataformas entre eles parecerem anões. Cada recipiente tinha uma abertura na parte de cima. Chamas brotavam dessas bocas, amarelas, vermelhas, laranja, azuis, crepitando para dentro de funis semelhantes a capuzes, que as engoliam.

Um dos conversores estava virado para a frente, sobre as engrenagens que o sustentavam, e a boca, escabrosa com o metal coagulado, voltava-se para o lado; fogo liquido despejava-se da goela em brasa, caindo num imenso cadinho no chão. O fluxo de matéria derretida, pesado e fumegante, encheu o recipiente de aço. O conversor rolou, rangendo, para a posição inicial, a boca pingando. O cadinho ergueu-se, guindado por um grande gancho do qual partia uma dúzia de cabos, em firme ascensão, até um ponto acima dos conversores, mais alto que a coluna central de passadiços — o bojo de uma fuliginosa cabine que pendia de um trilho abaixo da escuridão do teto. Os cabos puxaram; o cadinho ergueu-se em lenta e imponderável levitação. Ergueu-se acima dos conversores, mais de três metros acima do solo, e, ai, cabine, cabos e cadinho começaram a afastar-se, retirando-se em direção a nevoa cuprosa na extremidade norte do prédio.

O centra daquilo tudo! O coração do coração! Com olhos extasiados, Bud acompanhava a coluna de ar quente fumegando sobre o cadinho que se afastava.

— Escória! — disse o sr. Otto. Estavam numa ilha de plata- forma gradeada, pegada a parede sul, alguns centímetros acima do solo e entre as duas filas de conversores. O sr. Otto levou o lenço a testa. — O mate derretido dos fornos de reverbera e derramado nesses conversores. Adiciona-se sílica, e depois ar comprimido, através de tubos atrás. As impurezas se oxidam; forma-se a escoria, que e retirada, como o senhor acabou de ver. Acrescenta- se mais mate, forma-se mais escoria, e assim por diante. O cobre vai ficando cada vez mais puro, até que, após cerca de cinco horas, esta noventa por cento puro. Então, e derramado do mesmo modo que a escoria.

— Vão despejar cobre, logo?

O sr. Otto assentiu com a cabeça.

— Os conversores são operados a base de decalagem, de modo que a produção e continua.

— Eu gostaria de vê-los despejar cobre — disse Bud. Olhava um dos conversores a direita, despejando escória. — Por que as chamas tem cores diferentes?

— A cor muda a medida que o processo avança. E como o operador sabe o que está acontecendo lá dentro.

Atrás deles, uma porta fechou-se. Bud voltou-se. Leo estava ao lado de Marion, Dettweiler recostava-se contra uma escada que subia pela parede ao lado da porta.

— Está gostando da excursão? — perguntou Leo, acima do barulho.

— E maravilhoso, Leo. Impressionante!

— Vão despejar cobre lá — disse o sr. Otto aos gritos.

Diante de um dos conversores à esquerda, um guindaste baixara uma cuba de aço, maior que o cadinho no qual se retirava a escoria. Os lados do recipiente, inclinados, tinham uns dez centímetros de grossura, da altura de um homem; a boca, mais de dois metros de diâmetro.

O gigantesco cilindro do conversor começou a virar ruidosa- mente, rolando de seu lugar. Uma aura e chama azul pairavam sobre sua boca. Virou mais um pouco, e uma radiação vulcânica irrompeu lá de dentro, desprendendo rolos de fumaça branca. Uma onda de rápida incandescência jorrou para fora, caindo na gigantesca concha. O fluxo de metal derretido parecia imóvel, uma coluna sólida, rubra, entre o conversor e as profundezas da cuba. O conversor inclinou-se mais; novas ondas desceram fluidamente pela coluna, e outra vez ela pareceu imóvel. Dentro da cuba, surgiu a superfície liquida, subindo lentamente, coberta de espirais de fumaça. O cheiro acre de cobre pairava no ar. A coluna afirmou-se, torcendo-se, quando o conversor começou a virar para a sua posição anterior. O fino fluxo diminuiu, as últimas gotas rolando sobre a beira do cilindro e estalando no piso de cimento.

A fumaça acima da cuba dissolveu-se em farrapos vaporosos. A superfície do cobre derretido, uns poucos centímetros abaixo da beira do recipiente, era um disco obliquo de reluzente verde- oceânico.

— E verde — disse Bud, surpreso,

— Quando esfriar, ficara com a cor comum — disse o sr. Otto.

Bud olhava a massa móvel. Formavam-se bolhas, que inchavam e explodiam viscosamente na superfície.

— O que e que há, Marion? — ouviu Leo perguntar. O ar quente acima da cuba tremelicava, como se sacudissem folhas de celofane.

— O que? — disse Marion.

— Você parece pálida.

Bud voltou-se. Marion não parecia mais pálida do que de costume.

— Estou bem — ela dizia.

— Mas você esta pálida — insistiu Leo, e Dettweiler assentiu, concordando.

— Deve ser o calor, ou algo assim — disse Marion.

— A fumaça — disse Leo. — Algumas pessoas não conseguem suportar a fumaça. Senhor Otto, por que o senhor não leva minha filha de volta para o prédio da administração? Estaremos lá em alguns minutos.

— Honestamente, papai — ela disse, cansada. — Eu me sinto...

— Nada disso — disse Leo, sorrindo rigidamente. — Estaremos com você dentro de alguns minutos.

— Mas... — Ela ainda hesitou, parecendo aborrecida, e depois deu de ombros e voltou-se para a porta. Dettweiler abriu-a para ela.

O sr. Otto seguiu-a. Parou na porta e voltou-se para Leo.

— Espero que o senhor mostre ao senhor Corliss como moldamos os ânodos. — Voltou-se para Bud. — Muito impressionante — disse, e saiu. Dettweiler fechou a porta.

— Ânodos? — disse Bud.

— As chapas que estão carregando no trem lá fora — disse Leo. Voltou-se para os conversores a esquerda. A cuba de cobre, a alça angular presa pelo guindaste lá em cima, estava para ser erguida. Os cabos ficaram tensos, vibraram e depois se enrijeceram. A cuba deixou o solo.

Atrás dele, Leo disse:

— O senhor Otto levou-o ao passadiço?

Bud voltou-se.

— Temos tempo?

— Claro — disse Leo.

Dettweiler, encostado na escada, afastou-se para um lado.

— O senhor primeiro — sorriu.

Bud subiu a escada. Pegou num dos degraus de metal e olhou para cima. As barras, como enormes grampos de papel, subiam a pequenos espaços pela parede marrom. Iam dar num alçapão no piso do passadiço, que se projetava perpendicularmente da parede, mais de quinze metros acima.

— Alçapão — Dettweiler murmurou a seu lado.

Ele começou a subir. Os degraus estavam quentes, as partes de cima, polidas pelo uso. Subia num ritmo uniforme, mantendo os olhos na parede em frente. Ouvia Dettweiler e Leo subindo atrás. Tentou visualizar o panorama que o passadio ofereceria. Olhar de cima aquela cena de poderio industrial.

Transpôs o alçapão e passou para o piso metálico do passadiço. O trovejar das máquinas era menos barulhento ali em cima, mas o ar era mais quente, e o cheiro do cobre, mais forte. A estreita plataforma, protegida por pesadas cadeias entre barras de ferro, estendia-se em linha reta até a coluna do prédio, onde a interrompia uma larga divisória de aço, que descia do teto ao chão, uns quatro metros mais larga que o passadiço. Acima, de cada lado, trilhos de guindastes corriam paralelos a plataforma. Eles passaram por uma pequena divisória no passadiço e continuaram até a metade norte do prédio.

Ele olhou por cima do lado esquerdo do passadiço, as mãos dobradas sobre uma das barras, que lhe chegavam a cintura. Via de cima os seis conversores, os homens movendo-se entre eles...

Desviou os olhos. A sua direita, uns seis metros abaixo e uns três metros distante do passadiço, pendia a cuba de cobre, um poço verde com bordas de aço, em sua lenta rota para o outro extremo do prédio. Auras de fumaça subiam do líquido brilhante na superfície.

Acompanhou-a, caminhando lentamente, a mão esquerda percorrendo as curvas da corrente de proteção. Ficou bem atrás da cuba, de modo a sentir apenas as emanações de seu calor. Ouvia Leo e Dettweiler seguindo-o. Seus olhos subiram pelos cabos da cuba, seis de cada lado do gancho, até a cabine uns quatro metros acima. Podia ver o ombro do operador lá dentro. Baixou o olhar para o cobre. Que quantidade haveria ali? Quantas toneladas? Quanto valia? Um mil? Dois mil? Três? Quatro? Cinco?...

Aproximava-se da divisória de aço, e agora via que o passadiço não terminava ali, afinal; em vez disso, dobrava uns dois metros para a direita e a esquerda, seguindo as bordas da divisória, como a parte de cima de um T de perna comprida. A cuba de cobre desapareceu além da divisória. Ele tomou a ala esquerda do T. Uma corrente de um metro barrava o fim do passadiço. Ele pôs a mão esquerda na barra e a direita na borda da divisória, que estava bastante quente. Curvou-se um pouco para fora, para ver a cuba, que se afastava.

— Para onde vai? — gritou.

As suas costas, Leo respondeu:

— Para os fornos de refinação. Depois, será despejado nos moldes.

Ele voltou-se. Leo e Dettweiler estavam a sua frente ombro a ombro, bloqueando a perna do T. Seus rostos pareciam curiosa- mente inflexíveis. Ele bateu na divisória a sua esquerda.

— Que há por trás disso? — perguntou.

— Os fornos de refinação — disse Leo. — Mais alguma pergunta?

Ele balançou a cabeça, intrigado com a seriedade dos dois homens.

— Então eu tenho uma para você — disse Leo. Seus olhos eram como bolas de gude azuis por trás dos óculos. — Como fez Dorothy escrever aquele bilhete de suicídio?


14

 

 

TUDO DESMORONOU: o passadiço, a fundição, o mundo inteiro; tudo se dissolveu como castelos de areia sugados para dentro do mar, deixando-o suspenso no vazio com duas bolas de gude azuis fitando-o e o som da pergunta de Leo crescendo e repercutindo dentro dele como num sino de ferro.

Depois, viu-se de novo diante de Leo e Dettweiler; o rumor da fundição avolumou-se; as laminas da divisória materializaram-se, escorregadias, contra sua mão esquerda, o topo da barra úmida sob a sua direita, o piso do passadiço... mas o piso não retornara completamente, oscilava, sem ancora e ondulante sob seus pês, porque os joelhos — oh, Deus! — estavam como geleia, tremendo e cedendo.

— O que é que você... — começou a dizer, mas nada saiu. — De que é que você esta falando...

— Dorothy — disse-lhe Dettweiler. Bem devagar, explicou: — Você queria se casar com ela. Pelo dinheiro. Mas ai ela ficou grávida. Você sabia que não poria as mãos no dinheiro. Você a matou.

Ele balançou a cabeça, em confuso protesto.

— Não — disse. — Não! Ela se suicidou! Mandou um bilhete para Ellen! Você sabe disso, Leo!

— Você a enganou, levando-a a escrevê-lo — disse Leo.

— Como... Leo, como eu poderia fazer isso? Como diabos podia fazer isso?

— E o que vai nos dizer agora — disse Dettweiler.

— Eu mal a conheci!

— Você não a conheceu — disse Leo. — Foi o que disse a Marion.

— Certo! Eu não a conheci, de modo algum!

— Acabou de dizer que mal a conheceu.

— Não a conheci, de modo algum!

Leo cerrou os punhos,

— Você escreveu pedindo nossas publicações em fevereiro de 1950.

Bud olhava fixamente, a mão agarrando com firmeza a divisória.

— Que publicações? — Era um murmúrio; ele teve de dizer de novo: — Que publicações?

— Os folhetos que encontrei na caixa-forte em seu quarto, em Menasset — Dettweiler disse.

O passadiço cedeu. A caixa-forte! Oh, Deus! Os folhetos e que mais? Os recortes? Ele os jogara fora gramas a Deus! Os folhetos... e a lista sobre Marion! Oh Deus!

— Quem e você? — explodiu. — Como diabos vem arrombando a casa de uma...

— Para trás! — advertiu Dettweiler.

Recuando o passo que dera a frente, Bud agarrou-se novamente a barra.

— Quem é você? — gritou.

— Gordon Gant.

Gant! O do rádio, o que ficara o tempo todo espetando a policia! Como diabos ele...

— Eu conheci Ellen — disse Gant. — Conheci-a alguns dias antes de você a matar.

— Eu... — Sentia o suor escorrendo. — Maluco! — gritou. — Você e maluco! Quem mais eu matei? — E, para Leo: — Você da ouvidos a ele? Então é maluco também! Eu nunca matei ninguém!

— Você matou Dorothy, Ellen e Dwight Powell! — Gant disse.

— E quase matou Marion — disse Leo. — Quando ela viu a lista...

Ela viu a lista? Oh, Deus todo-poderoso!

— Eu nunca matei ninguém! Dorrie se suicidou e Ellen e Powell foram mortos por um arrombador!

— Dorrie! — interrompeu Gant.

— Eu... todo o mundo a chamava de Dorrie! Eu... eu nunca matei ninguém! Só um japonês, e isso foi no Exército!

— Então por que suas pernas estão tremendo? — perguntou Gant. — Por que o suor está pingando de seu rosto?

Ele limpou o rosto. Controle! Autocontrole! Inspirou profun- damente. Devagar... devagar... Não podem provar coisa alguma, não podem provar coisíssima nenhuma. Sabem a respeito da lista, a respeito de Marion, a respeito dos folhetos... muito bem... mas não podem provar nada a respeito de... Inspirou novamente.

— Vocês não podem provar nada — disse. — Porque nada há a provar. Vocês estão loucos, os dois! — Limpou as mãos contra as coxas. — Muito bem — disse. — Eu conheci Dorrie, como a conheceram uns dez outros caras. E eu tinha os olhos no dinheiro todo esse tempo. Há alguma lei contra isso? Não haverá casamento sábado. Muito bem. — Ele endireitou o paletó com dedos rígidos. — Provavelmente estarei mais bem servido sendo pobre do que tendo um bastardo de seu tipo como sogro. Agora afastem-se e deixem-me passar. Não gosto de ficar por aí conversando com uma dupla de lunáticos furiosos.

Eles não se moveram. Continuaram ombro a ombro a uns dois metros.

— Saiam — ele disse.

— Toque a corrente as suas costas — disse Leo.

— Saiam do caminho e deixem-me passar!

— Toque a corrente atrás de você!

Ele olhou o rosto pétreo de Leo por um momento, e depois voltou-se lentamente,

Não precisava tocar a corrente, bastava olhá-la. A argola metálica da barra estava aberta num frouxo o que mal segurava o primeiro dos pesados elos.

— Nos estivemos aqui em cima, quando Otto mostrava as instalações a você — disse Leo. — Toque-a.

As mãos dele adiantaram-se, rogaram a corrente. Ela caiu. A ponta solta bateu no piso, deslizou ruidosamente e oscilou, atingindo a divisória com um clangor.

Uns quinze metros abaixo, abria-se o piso de cimento, pare- cendo oscilar...

— Não é o mesmo que Dorothy teve — dizia Gant. — Mas é o bastante.

Ele voltou-se para olhá-los, agarrando a barra na beira da divisória, tentando não pensar no vácuo atrás de seus calcanhares.

— Vocês não... ousariam... — ouviu-se dizendo.

— Não tenho motivos suficientes? — perguntou Leo. — Você matou minhas filhas!

— Não matei, Leo! Juro por Deus que não matei!

— Foi por isso que começou a suar e tremer no momento em que falei o nome de Dorothy? Foi por isso que você não achou que era uma piada de mau gosto, não reagiu como uma pessoa inocente reagiria?

— Leo, eu juro pela alma de meu pai morto...

Leo fixava-o friamente,

Ele mudou o apoio da mão na barra. Estava escorregadia de suor.

— Você não faria isso... — ele disse. — Jamais se safaria...

— Não? — disse Leo. — Você pensa que é o único capaz de planejar uma coisa dessas? — Ele indicou a barra. — As presas do alicate estavam envoltas em pano; não há marcas nessa argola. Um acidente, um terrível acidente; um pedaço de ferro, velho, continuamente sujeito a calor intenso, enfraquece e se abre quando um homem de um metro e noventa tropeça contra a corrente presa a ele. Um terrível acidente. Como você pode impedir isso? Gritando? Ninguém o ouvira neste barulho. Agitando os braços? Os homens lá embaixo tem o que fazer, e mesmo que olhassem para cima, há a fumaça e a distancia. Atacando-nos? Um empurrão, e você está liquidado. — Fez uma pausa. — Assim, diga-me por que eu não me safarei. Por quê?

“Claro”, continuou, apôs um momento, “eu preferiria não fazer isso. Preferiria entregá-lo a polícia.” Olhou o relógio. “Por isso lhe darei três minutos. A partir de agora. Quero alguma coisa que convença um júri, um júri que não esteja em condições de surpreendê-lo, e que veja a culpa escrita no seu rosto.”

— Diga-nos onde está o revólver — disse Gant.

Os dois permaneciam lado a lado; Leo com o braço esquerdo erguido e a mão direita segurando o punho da camisa, para ver o relógio; Gant com os braços caldos.

— Como conseguiu que Dorothy escrevesse o bilhete? — perguntou Gant.

As mãos dele estavam tão comprimidas contra a divisória e a barra, que pulsavam com uma dormência de chumbo.

— Vocês estão blefando — ele disse. Os dois curvaram-se para ouvi-lo. — Estão tentando me apavorar até admitir... uma coisa que não fiz.

Leo balançou a cabeça lentamente. Olhava o relógio. Passou- se um momento.

— Dois minutos e trinta segundos — disse.

Bud girou para a direita, agarrando-se a barra com a mão esquerda e gritando para os homens nos conversores.

— Socorro! — gritou. — Socorro! Socorro! — Berrava o mais alto que podia, agitando o braço direito furiosamente, o outro agarrado a barra. — Socorro!

Os homens lá embaixo poderiam ser figuras numa pintura; sua atenção concentrava-se num conversor que despejava cobre. Ele voltou-se para Leo e Gant.

— Está vendo? — disse Leo.

— Vocês vão matar um homem inocente, e isso o que vão fazer!

— Onde está o revolver? — perguntou Gant.

— Não existe revólver! Eu nunca tive um revólver!

— Dois minutos — Leo disse.

Estavam blefando! Tinham de estar! Ele olhou em torno desesperadamente; a coluna central do passadiço, o teto, os trilhos dos guindastes, as poucas janelas, a... Os trilhos dos guindastes.

Lentamente, tentando não fazê-lo óbvio demais olhou de novo para a direita. O conversor rolava de volta. A cuba diante dele estava cheia e fumegante, os cabos erguendo-se frouxamente até a cabine lá em cima. A cuba seria erguida; a cabine, agora a uns sessenta metros de distancia, a traria para a frente, aproximando-se pelo trilho que passava por trás e acima dele; e o homem na cabine — uns quatro, cinco metros acima? — poderia ouvir! E ver!

Se pelo menos pudesse contê-los! Se pelo menos pudesse contê-los até que a cabine chegasse suficientemente perto!

A cuba foi erguida...

— Um minuto e trinta segundos — disse Leo.

Os olhos de Bud retornaram aos dois homens. Fixaram-se nos deles por alguns segundos, e depois arriscaram outra olhada a direita, cuidadosamente, para que eles não percebessem o seu plano. (Sim, um plano! Mesmo agora, nesse momento, um plano!) A cuba distante pendia entre o solo e o passadiço, o conjunto de cabos parecendo tremer no ar vibrante de calor. A cabine, em forma de caixa, permanecia imóvel sob o trilho — e então começou a adiantar-se trazendo a cuba, tornando-se imperceptivelmente maior. Tão lentamente! “Oh, Deus, faça-a vir mais depressa!”

Voltou-se para eles.

— Não estamos blefando, Bud — disse Leo. E, após um momento: — Um minuto.

Ele olhou de novo; a cabine estava mais próxima — uns quarenta metros? Trinta e sete? Podia distinguir uma pálida forma por trás do quadrado escuro da janela.

— Trinta segundos.

Como podia o tempo passar tão rápido?

— Escutem — ele disse, finalmente. — Escutem. Quero dizer uma coisa a vocês... uma coisa sobre Dorrie. Ela... — Procurou algo para dizer, e então parou, de olhos arregalados; vira um vago movimento na escuridão no outro extremo do passadiço. Outra pessoa estava ali em cima. Salvação!

— Socorro! — ele gritou, agitando o braço. — Você! Venha cá!

O vago movimento tornou-se uma figura correndo pelo passadiço, na direção deles.

Leo e Gant olharam por cima dos ombros, confusos.

Oh, Deus querido, obrigado!

Então viu que era uma mulher.

Marion.

 

— O que você está... Saia daqui! Por Deus, Marion, volte! — Leo gritou.

Ela pareceu não ouvi-lo. Veio por trás deles, o rosto corado e os olhos arregalados, acima dos ombros cerrados deles.

Bud sentiu o olhar dela examinar seu rosto, e depois descer até suas pernas, que tremiam novamente... Se pelo menos tivesse um revólver...

— Marion — pediu —, detenha-os! Estão loucos! Estão tentando me matar! Detenha-os! Eles a ouvirão! Eu posso explicar aquela lista, posso explicar tudo! Juro que não estava mentindo...

Ela continuava olhando-o. Finalmente, disse:

— Do modo como explicou por que não me falou de Stoddard?

— Eu a amo! Juro por Deus que a amo! Comecei pensando no dinheiro, admito, mas agora eu a amo! Não estava mentindo sobre isso!

— Como posso saber? — ela perguntou.

— Eu juro!

— Você jurou por muitas coisas... — Os dedos dela apareceram, curvados, sobre os ombros dos dois homens; longos, brancos, de unhas róseas; pareciam empurrar.

— Marion! Você não faria isso! Não quando nós... depois que nós...

Os dedos dela empurravam, afundando-se no tecido dos ombros, forçando...

— Marion — ele implorou, inutilmente.

De repente, tomou consciência de um aumento no rumor da fundição, de um outro rumor. Uma onda de calor irradiava-se de sua direita. A cabine! Ele girou, agarrando-se com ambas as mãos a barra. Lá estava ela — a menos de seis metros, aproximando-se pesadamente no trilho acima, os cabos partindo de seu bojo. Pela abertura da frente, ele podia ver a cabeça curvada, com um capacete cinza de visor!

— Você! — ele gritou, os músculos do maxilar tensos como cordas. — Ei, você da cabine! Socorro! Você! — O calor da cuba que se aproximava bateu em seu peito. — Socorro! Você! Da cabine! — O capacete cinza, aproximando-se, não se moveu. Surdo? Seria surdo, o estúpido? — Socorro! — continuou repetindo, sufocando, mas inutilmente.

Deu as costas ao calor crescente, querendo chorar de desespero.

— O lugar mais barulhento da fundição, lá dentro das cabines. — Dizendo isso, Leo deu um passo a frente. Gant moveu-se a seu lado. Marion acompanhou-os.

— Olhe — disse Bud, apaziguadoramente, agarrando-se a barra com a mão esquerda de novo. — Por favor... — Fitava os rostos deles, imóveis como máscaras, a não ser pelos olhos.

Eles deram outro passo.

O passadiço oscilava e afundava como um lençol agitado. O calor do forno a direita começou a espalhar-se por suas costas. Eles falavam sério! Não estavam blefando! Iam matá-lo! O suor inundou-o todo.

— Muito bem — gritou. — Muito bem! Ela achava que estava fazendo uma tradução do espanhol. Eu escrevi o bilhete em espanhol!

Que havia com eles? Seus rostos... a impassividade de máscaras se fora, transformada em... em embaraço e nauseado desprezo, e olhavam para baixo, para...

Ele baixou o olhar. A frente de sua calça estava escura, com uma mancha que se espraiava e descia numa serie de outras manchas pela perna direita abaixo. Oh, Deus! O japonês... o japonês que matara — aquela caricatura de homem desgraçada, tremula, cacarejante, molhando a calça —, era ele aquele? Era ele próprio?

A resposta estava no rosto dos outros.

— Não — ele gritou. Levou as mãos aos olhos, mas continuava a ver os rostos deles. — Não! Eu não sou como ele! — Recuou com um rodopio. Seu pé escorregou no molhado e perdeu o apoio. As mãos voaram do rosto e espadanaram o ar. O calor atingiu-o. Caindo, ele viu o gigantesco disco verde-reluzente deslizando no espago abaixo; cheio de gases, borbulhante, fervente...

Algo duro em suas mãos! Os cabos! O peso de seu corpo oscilou para um lado e para outro, e para baixo, forçando as axilas e rasgando as mãos nos fios de aço soltos. Ficou pendurado, as pernas batendo contra os cabos tensos e os olhos fixos num deles, vendo as fibras soltas que se enfiavam como agulhas em suas mãos lá em cima. Um caos de barulho; um apito soando, uma mulher gritando, vozes em cima, vozes embaixo... Olhou as mãos... o sangue começava a pingar, escorrendo pelos seus pulsos abaixo... o calor do forno sufocando-o, estonteando-o, envolvendo-o com o venenoso fedor do cobre... vozes gritavam-lhe... viu as mãos começarem a abrir-se... soltava porque queria, não era a ardente sufocação ou as agulhas nas mãos, soltava porque queria, do mesmo modo como Sahara do passadiço, embora o instinto o fizesse agarrar-se aos cabos, mas agora vencia o instinto... a mão esquerda abriu-se e tombou... havia óleo nas costas da mão, óleo da barra, da corrente ou de outra coisa... e eles não teriam empurrado... pensam que e qualquer um que pode matar?... Sahara e agora soltava-se porque queria, só isso, e estava tudo bem e seus joelhos não tremiam mais, não que houvessem tremido tanto, na verdade, não tremiam mais porque ele readquirira autocontrole... Não notara a mão direita abrir-se, mas devia ter-se aberto, porque estava caindo, os cabos correndo céleres para cima, alguém gritava como Dorrie ao mergulhar na área de ventilação, e como Ellen depois de levar o primeiro tiro, que não fora suficiente... a pessoa gritava, aquele grito terrível, e de repente era ele próprio e não podia conter-se! Por que gritava? Por que? Por que diabos tinha de...

 

O grito, que varara o súbito silêncio da fundição, foi interrom- pido por um viscoso espadanar. Do outro lado da cuba, uma onda saltou e, transbordando, derramou-se no chão, onde se desfez, estalando em um milhão de poças e gotas, que chiaram baixinho no cimento e foram passando lentamente do verde ao cobre.


15

 

 

KINGSHIP FICOU NA FUNDIÇÃO. Gant acompanhou Marion de volta a Nova York. No avião, ficaram calados e imóveis, com o corredor separando-os.

Após algum tempo, Marion tirou um lenço e levou-o aos olhos.

Gant voltou-se para ela, o rosto pálido.

— Só queríamos que ele confessasse — disse, defensivamente. — Não íamos fazer aquilo. E ele confessou. Por que teve de rodopiar daquele jeito?

As palavras levaram um longo tempo para alcançá-la. Quase inaudivelmente, ela disse:

— Não...

Ele olhou o rosto curvado da moça.

— Está chorando — disse, delicadamente.

Ela fitou o lenço nas mãos, viu as manchas de umidade nele. Dobrou-o e voltou-se para a janela a seu lado. Bem baixinho, disse:

— Não é por ele.

 

Foram para o apartamento de Kingship. Quando o mordomo recebeu o casaco de Marion — Gant ficou com o seu —, disse:

— A senhora Corliss esta na sala de visitas.

— Oh, Deus — disse Marion.

Encaminharam-se para a sala de visitas. A luz do fim da tarde, a sra. Corliss estava de pé ao lado de uma vitrina de curiosidades, olhando a parte de baixo de uma figurinha de porcelana. Recolocou-a no lugar e voltou-se para eles.

— Já? — sorriu. — Gostaram... — Cerrou os olhos contra a luz para poder ver Gant. — Oh, pensei que o senhor fosse... — Atravessou a sala, olhando o corredor vazio além deles.

Seus olhos retornaram a Marion. Ela ergueu as sobrancelhas e sorriu.

— Onde está Bud? — perguntou.

 

 

                                                                  Ira Levin

 

 

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