Horácio Nunes
DRAMA ORIGINAL EM QUATRO ATOS
PERSONAGENS: MANOEL (70 anos) ANTÔNIO (30 anos) PEDRO (24 anos) JOSÉ (30 anos) ANSELMO (45 anos) JOÃO (18 anos) MARIA (22 anos) OPERÁRIOS DOIS SOLDADOS
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ATO I Sala pobre — À direita, em uma pequena mesa, o necessário para se escrever. À esquerda uma janela. Ao fundo, porta larga de arcada, dando para uma oficina de marceneiro, onde se veem os operários trabalhando. À direita, duas portas, uma acima e outra abaixo da mesa. À esquerda, abaixo da janela, uma porta. O pano sobe depois de ter principiado o coro, durante o qual, José, sombrio e concentrado, entra pelo fundo e para junto da mesa. — Algumas cadeiras toscas encostadas às paredes. Junto da mesa, uma cadeira. — É dia.
CENA I JOSÉ (entrando, sombrio e concentrado, pelo fundo, e parando junto da mesa, depois de ter começado o coro seguinte) Do trabalho ressalta a alegria, o sossego do bom coração, a ditosa, feliz harmonia, a amizade de irmão para irmão.
Ou hoje, ou nunca!... Ah! já estou cansado de suportar-lhe os desdéns, a indiferença... Prefiro antes o seu ódio... (Pausa) Por que não me ama ela? Por quê?... (Pausa) O mestre sempre diz que sou vadio, que sou mau. Muitas vezes me tem repreendido diante de todos... e eu não sei o que me tem impedido de obrigá-lo a calar-se... Ah! mas de repente... cuidado!... (Pausa) E ela... por que me despreza?... por que se esquiva quando vou falar-lhe?... (Pausa) Mas é necessário que isto tenha um fim, e há de ter... Vou pedir-lhe a última palavra. Se essa palavra for de encontro às minhas esperanças... ah! então cuidado comigo!... O mestre diz que sou mau, e eu não quero desmenti-lo!...
CENA II José e Pedro. PEDRO (entrando a cantarolar, pelo fundo) Ah! estás aqui? JOSÉ (à parte) Não sei porque, tenho um ódio de morte a este homem... Nunca me fez mal, e no entretanto odeio-o! (Alto) Estou aqui, sim. Por que não havia de estar? PEDRO Parece que estás apaixonado, José, ou então meditas alguma coisa má. Foges dos companheiros e do trabalho, para andares pelos cantos, falando só... Estás doente?... Tens emagrecido ultimamente e perdido a cor... Por que não consultas um médico?... JOSÉ Estou doente, é verdade; mas a minha doença não é dessas que os médicos curam com quatro tisanas... Mas que te importa que eu fuja dos companheiros e do trabalho?... Por ventura precisam vocês de mim? preciso eu de vocês? Cuide de cada um na sua vida, que não faz tão pouco. Ou queres ser meu conselheiro?...
PEDRO Não quero ser teu conselheiro, não só porque és mais velho do que eu, como mesmo porque não posso sê-lo. O que quero é evitar que o mestre te repreenda outra vez, porque, embora não me mostres muita amizade, eu sou teu amigo... JOSÉ Agradeço a honra; mas não a pedi. PEDRO Há bem poucos dias ainda, deves lembrar-te, o mestre chamou-te de vadio e mau, porque abandonas o trabalho e não te ligar com companheiro algum. A solidão é má conselheira, José. Por que não te ligas conosco?... Ao menos distrais-te. Fica certo que em cada operário encontrarás um amigo dedicado... JOSÉ O mestre chamou-me vadio e mau, não é verdade? PEDRO Tu bem ouviste. JOSÉ Pois sim... sou vadio, porque não quero que ele enriqueça com o meu trabalho; sou mau, porque não consinto que me dominem. E se eu sou vadio e mau, por que não me despedem?... por que me conservam aqui?... PEDRO Se és conservado aqui, não é por ti, fica certo, mas por tua mãe, pobre e doente, a quem sustentas. Isto disse o mestre. JOSÉ Ah! o mestre é muito caritativo! Hipócrita! Que lhe importa que minha mãe morra de fome?... Pensas que ele deixaria de comer e de dormir se minha mãe morresse?... Estás enganado... Mas, por falar em minha mãe... Olha que aquilo é uma carga bem pesada que tenho às costas! PEDRO (recuando) José! JOSÉ Então, o que é isso? PEDRO Pois dizes isso de tua mãe, José, de tua mãe?... JOSÉ E por que não? Quem diz a verdade não merece castigo. PEDRO Agora fico convencido de que és verdadeiramente mau! JOSÉ (com furor concentrado) Também tu, Pedro?... PEDRO (tranquilo) Também eu, sim. Tivesse eu mãe, fosse ela velha e doente, e eu me julgaria o mais feliz dos homens por poder trabalhar para sustentála, para que nada lhe faltasse... JOSÉ Há mais de uma hora que estás a pregar-me sermões, que não encomendei. Quem sabe se foste mandado pelo mestre?... Todos sabem que és o seu querido... PEDRO Eu não sou querido do mestre. Ele me trata como trata a todos, e como te trataria, se fosses como nós. JOSÉ Olha, Pedro: antes de te lembrares de ser conselheiro, devias lembrar-te do que foste. Aposto que já não te lembras de tempo em que andavas maltrapilho, imundo, morrendo de fome, sentado nas pedras das ruas... Provavelmente, já não te lembras... Estás um grande! O mestre trata-te como um rei, e o Sr. Manoel chama-te filho... PEDRO Não é necessário que me lembres o passado, porque nunca dele me esqueço... JOSÉ É natural. Há misérias que nunca se esquecem. PEDRO Se eu andava maltrapilho, imundo, morrendo de fome, a culpa não era minha, mas do destino, que me foi algoz, que não quis que eu conhecesse pai nem mãe... Disseste que eu sou tratado como um rei pelo mestre, que o Sr. Manoel chama-me filho... Que há nisso para admirar?... Bem pequeno fui recolhido nesta casa; aqui cresci, fui educado e ensinaram-me a trabalhar. O pai que conheço é o mestre. Grato a tantos benefícios, procuro cumprir o melhor que posso os meus deveres: trabalhando e obedecendo... JOSÉ Basta! Já estou cansado de suportar-te. Não posso admitir que um miserável bastardo venha dar-me conselhos! PEDRO (com um movimento de contrariedade, avançando um passo) José! JOSÉ Tenho dito! PEDRO (encarando-o) És... um desgraçado! (Sai)
CENA III
JOSÉ Hei de vingar-me!... Pisem, firam... mas eu hei de pisá-los mais, hei de feri-los mais fundo!... CENA IV José e Antônio. JOSÉ Bom dia, mestre... ANTÔNIO Sempre na ociosidade, José! Enquanto os teus companheiros ali trabalham como mouros para ganharam o pão da vida, estás tu aqui, com as mãos nas algibeiras, sem nada fazer... JOSÉ (à parte) Começa novo sermão... Mas a última palavra será minha! (Alto) Não sou eu só que vadio, mestre... ANTÔNIO Quem é mais?... JOSÉ Ainda há pouco o Pedro. ANTÔNIO O Pedro! Proíbo-te que fales nele. O Pedro é um rapaz honrado e trabalhador. Além disso, é meu filho, porque fui eu que o criei e o eduquei. É meu filho pelo amor e pela gratidão. Depois, é teu superior... JOSÉ Ora! O Pedro meu superior, mestre! ANTÔNIO Sem dúvida. O contramestre de uma oficina é um superior. JOSÉ Mas o Pedro não tem idade para ser contramestre. Havia outros mais velhos na casa... ANTÔNIO Quando tive a ideia de fazê-lo contramestre, reuni todos os operários e expus-lhes o meu desejo. Sabes como foi ele aceito: com um grito de alegria partido de cinquenta bocas... Só tu permaneceste calado. Pedro é um amigo dedicado até ao sacrifício, um operário zeloso e ativo como poucos, um homem honrado. A minha escolha não podia ser melhor. Sei que todos os meus empregados são bons e inteligentes; mas Pedro tem sobre todos a vantagem da instrução. Todos são bons, menos tu... JOSÉ Mestre! ANTÔNIO Tu és madraço, desobediente e mau. Vens sempre tarde para a oficina, quando vens. Passas os dias andando de um lado para o outro. Se te repreendo, tens sempre uma resposta má para dar-me. Pois olha: se te repreendo, é para teu bem, é porque não posso ver-te viver assim, quando tens tua mãe doente, que precisa de certas comodidades, e que não as tem por causa da tua má cabeça. JOSÉ Mas eu não tenho que dar contas das minhas ações a pessoa alguma. Se há quem suponha que sou escravo, está enganado! ANTÔNIO José!
JOSÉ Basta, mestre! Ainda há pouco, o seu querido contramestre matoume o bicho do ouvido com um sermão da moral, mais incômodo do que uma chaga. Agora vem o mestre continuar o mesmo sermão. Eu não sou uma criança; tenho trinta anos. Creio que já não estou em idade de receber conselhos, que não peço e de que não preciso! ANTÔNIO José, tu abusas da minha paciência... JOSÉ E o mestre não tem abusado da minha, repreendendo-me, todos os dias, diante de todos, sem refletir que sou um homem e que posso reagir?... ANTÔNIO Se te repreendo é porque mereces, porque és um insolente, que podes deitar a perder todos os outros operários. JOSÉ Tome cuidado, mestre! Olhe que o cão tem o seu dia de raiva, e morde a mão que lhe bate! ANTÔNIO Ameaças-me?... JOSÉ Se o ameaçasse, estava no meu direito, porque também tenho sido ameaçado... ANTÔNIO Acho melhor que vás trabalhar, José. Não me incomodes. JOSÉ Ah! manda-me trabalhar! Então tem medo de ouvir-me... tem medo das consequências!...
ANTÔNIO (avançando) Medo! quem fala em medo? JOSÉ (pondo a mão no espaldar de uma cadeira, em atitude agressiva) Não se aproxime, mestre! não se aproxime, porque pode arrepender-se!... ANTÔNIO Miserável!... JOSÉ E o mestre é um... ladrão, que quer enriquecer à custa do nosso suor! ANTÔNIO (precipitando-se) Ah! é demais!... JOSÉ (erguendo a cadeira) Até que enfim, deixou de ser covarde, mestre! CENA V Os mesmos e Pedro. PEDRO (aparece ao fundo, vê a luta que se prepara e atira-se entre os dois) O que é isto? JOSÉ Arreda-te, intrigante, ou esmago-te! PEDRO Esmagar-me! a mim! Isso é o que nós vamos ver! ANTÔNIO (segurando Pedro) Deixa-o, Pedro... Não te desonres lutando com esse infame. PEDRO (calmo) Não luto, não, mestre, porque tenho pena dele.
JOSÉ Guarda a tua compaixão para ti mesmo, que bem precisas dela, bastardo! PEDRO Bastardo! Sempre esta palavra! JOSÉ E o que és tu? ANTÔNIO Retira-te, Pedro. JOSÉ Não, mestre. Retiro-me eu. Agora vou trabalhar satisfeito. (Sai pelo fundo) CENA VI Antônio e Pedro. ANTÔNIO Pedro, desde hoje este homem deixa de fazer parte das minhas oficinas. PEDRO (tomando-lhe a mão) Mestre, peço-lhe que o deixe ficar. ANTÔNIO Como, se ousou levantar a mão para mim?... PEDRO Perdoe-lhe, mestre, perdoe-lhe em nome da pobre velha, que lá está enferma, em casa, sem poder trabalhar, e que vive do pouco que o filho ganha. A má ação fica com quem a pratica.
ANTÔNIO Não, Pedro. PEDRO José é um louco, mestre, e para todo o louco deve haver compaixão, deve haver misericórdia. Deixe-o ficar. Espero em Deus trazê-lo em pouco tempo ao bom caminho. ANTÔNIO Mas tens ânimo de pedir por ele, que a cada momento te insulta com a palavra — bastardo, — uma palavra que fere tanto?... PEDRO Tenho, mestre. Deixe-o ficar. Peço-lhe em nome da compaixão com que me tem tratado. ANTÔNIO (abraçando-o) Vem cá, meu filho... Tu és o homem mais honrado, mais generoso e mais nobre que conheço. Deus não quis dar-te a suprema consolação de conheceres pai nem mãe, mas deu-te o melhor coração do mundo. José está perdoado. PEDRO (apertando-lhe as mãos) Obrigado, mestre! muito obrigado! ANTÔNIO Agora vai ver como anda o trabalho aí por dentro. Preciso ficar só. PEDRO Sim, mestre. (Sai pelo fundo) CENA VII ANTÔNIO (senta-se perto da mesa. Pausa) Quando eu pensava vir encontrar aqui a tranquilidade de espírito de que eu tanto careço... encontro mais um espinho para juntar-se aos tantos que já me rasgam o coração! (Pausa) Depois de quarenta longos anos de trabalho e privações, eis que venho esbarrar-me com a desonra, no último quartel da vida... (Pausa) Onde ir buscar dinheiro para pagar essa letra fatal? Onde? Três contos de réis seriam hoje para mim a riqueza... (Pausa) Fui ontem ameaçado de uma penhora se não satisfizesse o pagamento dessa letra no devido tempo. Procurei contrair um novo empréstimo, mas foram baldados todos os meus passos... (Pausa) Pois hei de ver-me despojado de tudo que com tanto trabalho adquiri, assim, de um momento para outro?... Pois hei de consentir que me salpiquem de lama estes cabelos que ficaram brancos com cinquenta anos de honra, esta fronte que nunca corou de uma ação má? Oh! o golpe é tremendo!... (Pausa) Escrevi há pouco ao meu implacável credor pedindo uma demora de alguns dias para o pagamento... mas não tenho esperança alguma de ser atendido... Enfim, esperemos... Se for atendido, terei alguns dias de avanço, e poderei talvez pôr em melhor ordem os meus negócios... Três contos!... miserável quantia que tantas vezes me tem passado pelas mãos, e que seria hoje para mim a salvação! (Descansa os braços sobre a mesa e deixa cair a fronte nas mãos, com profundo abatimento. Momento de silêncio) CENA VIII Antônio e Maria. MARIA (entrando pela esquerda) Ah! já veio?... Como se demorou hoje... ANTÔNIO (levantando-se e beijando-a na fronte) Sim... demorei-me... Tinha tantos negócios a tratar... MARIA E que negócios são esses que o demoram tanto tempo por fora, não me diria? ANTÔNIO (fingindo-se alegre)
Ora, que negócios!... Compras de materiais... transações... e muitas outras coisas... MARIA Eu já estava com cuidado... ANTÔNIO Louquinha! Cuidado, por quê?... MARIA Pensei que lhe tivesse sucedido alguma coisa... Então não era possível? ANTÔNIO Sem dúvida, porque ninguém tem a saúde fechada na mão. De um momento para outro adoece-se ou morre-se, sem se saber porque, nem de que... (Reparando) Mas como estás catita hoje! Sim, senhora! Vais passear?...
(José aparece ao fundo) MARIA Vou coser, e depois pretendo fazer uma visitinha à pobre Andreza, se meu pai der licença. JOSÉ (à parte) Vai à casa de minha mãe... (Batendo na fronte) Ah! (Desaparece) ANTÔNIO Concedo-te com a melhor vontade. Mas não tens medo de ir só? MARIA Medo do quê? É alto dia, e a viagem não é grande. ANTÔNIO (rindo) E o bosque?... Cuidado com as onças! MARIA Ora! O bosque é de laranjeiras, e as onças ainda estão para nascer... Dizem que a pobre velha está mal, e eu não quero deixar de vê-la. ANTÔNIO Pobre velha! Dizes bem. A mãe que tem um filho como ela tem, é muito desgraçada. MARIA Mas o que tem o José? ANTÔNIO O José é um mau homem... MARIA Sim, já o tenho ouvido, por mais de uma vez, dizer isso, mas não posso saber em que é que ele é mau? ANTÔNIO Porque não quer trabalhar, é desobediente, e foge dos companheiros, como se os temesse... MARIA Mas por que foge dos companheiros? ANTÔNIO Só ele o sabe. É porque talvez se reconhece pior do que eles, ou porque tem muito orgulho. MARIA Desgraçado do homem que se julga inferior aos outros homens. Quanto ao orgulho... não vejo motivo para tê-lo: é um operário como os outros. ANTÔNIO Cada um pensa a seu modo. Deixá-lo pensar como lhe parecer. Se já o não despedi, tem sido unicamente em atenção à pobre mãe, que lá está no fundo de uma cama, e que não tem culpa da má cabeça do filho. MARIA Peço-lhe que não o despeça, meu pai, pelo menos enquanto ela viver. Seria um golpe bem doloroso para a infeliz. ANTÔNIO Não o despeço, não. Descansa. MARIA É uma obra de caridade que pratica para com uma moribunda. ANTÔNIO Mas onde está teu avô, que ainda não o vi, depois que cheguei? MARIA Deixei-o no jardim. ANTÔNIO Vou lá. (Sai) CENA IX MARIA (toma uma costura que está em cima de uma cadeira e senta-se) Ora, vamos a ver se acabo com esta tarefa antes de sair. Quero que o altar de nossa Senhora das Dores tenha amanhã a sua toalha nova... (Começa a trabalhar) CENA X Maria e José. JOSÉ (ao fundo, à parte) Está só. Aproveitemos a ocasião. (Descendo) Menina Maria...
MARIA Ah! É o Sr. José? JOSÉ Pode prestar-me um momento de atenção? MARIA Com muito gosto. Mas há de permitir que vá trabalhando enquanto fala. JOSÉ Pode trabalhar. O que tenho a dizer não levará muito tempo. Peçolhe que não se constranja. MARIA Mas antes de principiar, desejava que me dissesse como está sua mãe. JOSÉ Minha mãe está mal. Já não se levanta, tem falta de apetite e queixase de grandes dores de cabeça. Está em uma contínua sonolência e tem repetidas agitações nervosas. MARIA É preciso haver todo o cuidado com ela, Sr. José: satisfazer-lhe todos os desejos e tratá-la com o maior carinho. JOSÉ Trato-a como posso, e quem faz o que pode não é a mais obrigado. Todos os dias, antes de vir para a oficina, deixo-lhe em uma mesa, perto da cama — um pão e uma bilha com água. MARIA (à parte) Perverso! (Alto) E o tratamento médico? JOSÉ O tratamento médico... Eu não tenho dinheiro para pagar as visitas do facultativo e as drogas da botica... MARIA Mas quando não se dispões de meios, recorre-se aos amigos... JOSÉ Eu não tenho amigos. MARIA Lastimo-o... E quer que sua mãe fique boa?... JOSÉ Eu... eu não tenho a sua saúde fechada na mão. Ficará boa, se for o seu destino não morrer desta vez. MARIA (depois de um momento de silêncio) E se ela morrer? JOSÉ Se morrer... tenho de enterrá-la, e está tudo acabado... MARIA Ah! JOSÉ Mas quando lhe pedi um momento de atenção, não foi para tratar de minha mãe, foi para tratar de mim. MARIA Do senhor? Então queira aflar. Eu vou trabalhando. Quero acabar esta toalha antes de ir ver sua mãe. JOSÉ Como não ignora, eu vivo isolado na oficina. Seu pai repreende-me todos os dias. Ainda há pouco, nesta sala, chamou-me de vadio e mau.
MARIA Meu pai é incapaz de repreendê-lo injustamente, Sr. José. Se o repreende, é porque o senhor merece. JOSÉ Como? MARIA Por que razão nunca se alterou ele com os outros operários? Por que são trabalhadores, zelosos e obedientes... JOSÉ E eu então? MARIA Como eu tenho visto, o senhor abandona o trabalho a cada momento, e sai, voltando muitas vezes para a oficina duas e três horas depois. Passa dias e dias que não vem cá, não por estar doente, mas por não querer trabalhar... JOSÉ Mas... MARIA E meu pai nunca descontou um real do seu salário. É preciso mudar de vida. Seja assíduo, venha cedo, como os seus companheiros, trabalhe tanto como eles, seja obediente, como eles são, e garanto-lhe que meu pai nunca mais o repreenderá. JOSÉ Pelas suas palavras, vejo que também está prevenida contra mim. MARIA Eu não estou prevenida contra pessoa alguma, Sr. José, porque, graças a Deus, a ninguém odeio nem ofendi.
JOSÉ Está prevenida, sim; por isso, julgo desnecessário dizer-lhe o motivo que me trouxe aqui. MARIA Pode dizer. Se estiver em minhas mãos fazer o que deseja, creia que o farei de todo o coração. (Momento de silêncio) Vamos, Sr. José; fale. JOSÉ Receio ofendê-la. MARIA Não me ofenderá. Diga. JOSÉ Então... eu... amo-a! MARIA (erguendo-se) Ama-me!... O senhor?... JOSÉ Sim... amo-a! O que quer?... A gente, por fim de contas, há de amar alguém... MARIA (sentando-se) Disse-lhe que não me ofendia, e não me ofendi. JOSÉ Não se ofendeu? MARIA Sei que o amor nasce espontâneo no coração, que é poderoso, que domina, que escraviza, que arrasta muitas vezes as maiores loucuras... Por isso, perdoo-lhe... JOSÉ Perdoar-me!... O quê?... Toma por acaso o meu amor como um insulto?... MARIA Não tomo como um insulto, porque estou certa que o senhor é incapaz de insultar-me... Tomo simplesmente como uma loucura. JOSÉ Uma loucura! MARIA (levantando-se) Sim. Procure esquecer esse amor, José. Trabalhe, junte-se com os seus companheiros, divirta-se, folgue e seja feliz, porque eu não posso amá-lo. JOSÉ Não pode amar-me!... Por quê?... MARIA Porque não há quem possa dizer: — “Eu quero amar!” — porque, como já disse, o amor nasce espontâneo no coração... e eu amo... JOSÉ (à parte) Ah! eu bem suspeitava! MARIA Peço-lhe perdão se o faço sofrer com esta revelação; mas sou franca, e não quero iludi-lo nem dar-lhe esperanças que nunca hão de realizar-se. JOSÉ Que importa uma dor de mais ou de menos?... (À parte) Mas hei de vingar-me!... MARIA Perdoe-me, sim? JOSÉ (apertando-lhe o pulso, com voz rouca)
Perdoar-lhe! MARIA (recuando assustada, e depois encarando-o com supremo desprezo) Desgraçado!...
(Neste momento os operários repelem o coro, na oficina. — José entra na oficina. — O pano desce antes de expirar o canto)
ATO II A mesma vista do 1º Ato.
CENA I Maria e Pedro.
PEDRO (entrando) Chamou-me? MARIA Chamei. Quero merecer-lhe um favor, Pedro. PEDRO Eu, nesta casa, não faço favores, Maria: cumpro ordens. MARIA Não as cumpre, porque ninguém lhe as dá; nem meu pai, nem meu avô, nem eu. Todos aqui amam-no muito para lhe darem ordens. PEDRO Obrigado, Maria. Faço o que posso, não para pagar a minha enorme dívida de gratidão, porque as dívidas de gratidão não se pagam, mas... MARIA Falemos de outra coisa. Queria pedir-lhe que fosse procurar um médico e que o levasse à casa da velha Andreza. Pode? PEDRO Por que não? MARIA Queria também que comprasse alguns biscoitos, um pouco de chá e mais algumas coisas para a pobre velha, que morre de debilidade... (Dá-lhe dinheiro, que tira da gaveta) PEDRO (recusando) Não, Maria. Há de permitir que me associe à sua obra de caridade. Essa despesa, quero eu fazê-la. MARIA Tens um nobre coração, Pedro. Assim o tivesse José. Sabes o que me disse ele há pouco? PEDRO O que foi? MARIA Disse-me que quando vinha para a oficina, deixava sobre uma mesa, perto da cama da enferma, uma bilha com água e um pão... PEDRO José é um desgraçado. Há de acabar mal. Tenho empregado todas as minhas forças para trazê-lo ao bom caminho, mas em vão. José está irremediavelmente perdido. Contudo, hei de lutar sempre contra os seus maus instintos. MARIA Deus te pagará o sacrifício, Pedro. PEDRO Não é sacrifício, Maria. O meu coração manda que eu assim faça; hei de fazer. Mas estou aqui perdendo tempo. Vou procurar o médico e ao mesmo tempo comprar o mais necessário para a doente. Até já. (Sai) CENA II MARIA Este é o anjo bom dos que padecem, o manto dos que têm frio, o pão dos que têm fome, a consolação dos aflitos. Alma grande, não pode ver o sofrimento alheio, sem que chore com o desgraçado, sem que lhe dê crença, sem que lhe mostre o céu... Ainda ontem, vi-o esconder-se, como um malvado que medita uma ação má, para dar esmola a um pobre. Não pude conter-me: corri a ele e apertei-lhe as mãos: “— Assim, Pedro! assim!” exclamei. — “Assim, o quê? O que fiz eu?...” — perguntou ele. Apontei para o pobre, que desaparecia na estrada, e respondi: — “Olha: Deus te pagará!” — Fez um movimento de contrariedade, e entrou na oficina. E pode-se deixar de amá-lo? Oh! não! Ali está a caridade, o trabalho, o amor, a dedicação e a honra... E eu amo-o... amo-o muito... Que importa que ele seja pobre, que fosse recolhido por caridade, que não conheça pai nem mãe? Por ventura é a riqueza que faz a felicidade? Minha mãe dizia: — “Pedro é a gratidão!” — Meu pai diz: — “Pedro é o modelo da honra e do trabalho!” — Todos os operários estimam-no como a um irmão... Quando ele entra na oficina, é sempre recebido com um grito de alegria!... (Continua a costura, que tem tomado de sobre a mesa) CENA III Manoel e Maria. MANOEL Ah! estás aqui? MARIA E trabalhando, como vê, com toda a vontade, para acabar hoje este bordado. Amanhã é sábado, e eu quero que o altar de Nossa Senhora das Dores tenha uma toalha nova. MANOEL Pois trabalha, filha. O fim para que trabalhas é tão bonito, que se eu ainda tivesse os olhos dos vinte anos e entendesse disso, ajudava-te de coração. MARIA Sei que a vontade é boa, meu querido avô. MANOEL (sentando-se) Onde está Pedro? MARIA (trabalhando) Saiu. MANOEL Sabes onde foi? MARIA Pedi-lhe para... ir comprar-me linha, porque a que tenho está quase acabada. Mas não pode demorar-se. MANOEL Para que faltas à verdade, filha?... MARIA Como? MANOEL Ainda ontem teu pai comprou linha mais que suficiente para dois bordados como esse... MARIA Mas...
MANOEL Queres que te diga o que foi Pedro fazer? Foi, a teu pedido, à casa da velha Andreza... MARIA Meu avô! MANOEL Adivinhei?... MARIA Sim... adivinhou. MANOEL Tu és um anjo, Maria. Não há pobre que a ti se chegue e que saia com as mãos vazias. Para que ocultar as boas ações, se as más não encontram abrigo em nossos corações?... MARIA A mão esquerda deve sempre ignorar o que dá a direita: é o que Deus manda, foi o que minha mãe me ensinou. E depois, se há aqui quem seja caritativo, não sou eu por certo... MANOEL Quem é mais caritativo do que tu? MARIA Pedro, que se esconde, como um criminoso, para socorrer a pobreza. MANOEL Viste? MARIA Vi. Agradeci-lhe em nome da humanidade sofredora, mas ele voltou o rosto e retirou-se contrariado.
MANOEL Pedro também já sentiu frio, já teve fome, e sabe quanto é doloroso o sofrimento da fome e do frio. Tem um coração de ouro, que a miséria não conseguiu corromper. Em seu coração levantou ele dois altares: — um para a gratidão, o outro para o amor... MARIA (às últimas palavras de Manoel, levanta-se e abraça-o) Oh! meu avô, nem sabe quanto as suas palavras me fazem feliz! MANOEL Olha que me afogas, rapariga!... Mas feliz, por quê? MARIA Porque eu... MANOEL Fala, filha. Por que hesitas? MARIA (ocultando o rosto do peito de Manoel) Eu... amo-o! MANOEL E envergonhas-te disso? Para o dizeres, é necessário ocultares o rosto? Para eu saber que o amavas, não era preciso que m’o dissesses... MARIA Como? MANOEL Adivinhei. MARIA Meu avô! MANOEL De certo tempo a esta parte, a amizade de vocês não é tão franca, como era antigamente. Primeiro sintoma. Quando estão juntos, faltam-se com acanhamento, coram, tremem. Segundo sintoma. Por quê? Pois não é tão natural o amor nos moços?... Amem-se. Melhor escolha não podias tu fazer. Quanto eu nascimento, que importa? Tem ele culpa de haver nascido assim? MARIA Tens razão, meu avô. Que culpa têm os filhos dos crimes dos pais?... MANOEL Amem-se. Por teu pai respondo eu. Ele louvará o teu são juízo. Vamos. Nada de corar. Praticaste alguma ação má?... Levanta a cabeça e enxuga os olhos... Chorar... Por quê? No meu tempo também se amava, e as moças não choravam por isso. MARIA A felicidade também faz chorar. MANOEL Sim; não duvido. Mas o caso não é para lágrimas. Pedro é um excelente rapaz... Se a escolha não tivesse sido acertada, seria eu o primeiro a aconselhar-te que procurasses esquecer... Vamos... Dá-me um abraço e está tudo acabado. Não falemos mais nisto. MARIA (abraçando-o) Meu avô!... CENA IV Os mesmos e Antônio.
ANTÔNIO (à parte, pensativo) Ainda nada... E esta demora dá-me que pensar... O golpe demora-se, mas há de ser fatal...
(José aparece ao fundo) MANOEL Ora, venha cá o senhor. Deixe-se de estar aí ruminando como um malfeitor, e ouça-me. Tenho uma notícia a dar-lhe... ANTÔNIO (sorrindo contrafeito) Que notícia? MANOEL Sabe que brevemente temos casamento por cá?... JOSÉ (à parte) Casamento! ANTÔNIO Que casamento? MANOEL Ora! que casamento! MARIA Meu avô! MANOEL A companhia de Pedro havia de dar algum resultado. JOSÉ (à parte) Pedro! Ah! (Desaparece) ANTÔNIO Ah! sim? Então a minha sensitiva, que se retraía toda à vista dos outros rapazes... MANOEL Ora, vamos lá, homem! O que tem de ser, há de ser.
ANTÔNIO (a Maria) Pois bem: nesse caso, Deus os abençoe. MARIA (abraçando-o) Meu pai! MANOEL E os faça muito felizes. CENA V Os mesmos e Pedro. PEDRO Maria! Maria! (Vendo o grupo) Ah!
(José aparece ao fundo) ANTÔNIO Chegou a propósito, senhor galã marceneiro... Então é bonito o seu procedimento?... PEDRO Que procedimento, mestre?... ANTÔNIO Ora, que procedimento! Faça-se agora de inocente... PEDRO Não o compreendo... ANTÔNIO O seu procedimento de andar transtornando o juízo das raparigas. PEDRO (recuando) Transtornando o juízo das raparigas!... Mestre, essas coisas nem brincando se dizem...
ANTÔNIO Está bom. Deixemo-nos de preâmbulos. Amas minha filha? PEDRO Amo-a, mestre, amo-a; mas juro pela minha honra que nunca lhe dirigi uma palavra de amor. ANTÔNIO Acredito, e por isso dou-te. Amem-se, meus filhos. Pedro, conheçote desde a infância, e sei que entregou minha filha a um homem de bem. JOSÉ (à parte) Malditos! (Desaparece) PEDRO Mestre... mestre... mas eu não mereço... ANTÔNIO A prova de que mereces, é que exijo que me dês um abraço. (Abraçam-se) PEDRO (cheio de prazer e ao mesmo tempo de confusão) Obrigado, mestre... obrigado! MANOEL (a Maria) Estás contente? MARIA Se estou! (Abraçando o pai) Meu pai! ANTÔNIO Está bom... está bom... Não me sufoques... MARIA Como sou feliz agora, vou visitar a pobre Andreza.
MANOEL Pois vai, filha, vai. MARIA (apresentando a fronte ao pai, que a beija) Mau pai... meu avô... Até logo, Pedro... (Sai) CENA VI Antônio, Pedro e Manoel. PEDRO Mestre, o ato que acaba de praticar confunde-me... Eu não mereço tanta honra nem tanta felicidade... ANTÔNIO Olha: Bocage, que foi um grande homem, disse: “O prêmio da virtude — é a virtude “É castigo do vício — o próprio vício.” Tu és bom, grato e virtuoso. A recompensa das tuas virtudes, dou-te em minha filha. Tu a conheces, sabes quem ela é: — quais os seus defeitos, quais as suas boas qualidades. Amem-se como devem amar-se dois corações bem formados. MANOEL E eu vou descansar um pouco. A minha idade já não é para estas coisas. (Sai) CENA VII Antônio e Pedro. ANTÔNIO Onde está José?
PEDRO Creio que trabalhando. ANTÔNIO Duvido. José nunca trabalha por sua vontade. Aquele rapaz há de acabar mal. Ainda o outro dia vi-lo praticar um ato que revoltou-me. PEDRO O que foi? ANTÔNIO Conseguiu, não sei como, apanhar uma andorinha. Quebrou-lhe as pernas, arrancou-lhe as asas e acabou por vazar-lhe os olhos... PEDRO Ah! ANTÔNIO Revolta-te isto, não é verdade? PEDRO Revolta, mestre. Se eu fizesse semelhante coisa, creio que morreria de remorso. ANTÔNIO José não é uma criança inconsciente; é um homem... Repito: — o fim de José há de ser desgraçado. Quem viver, verá. PEDRO Mestre, se me dá licença, vou mandar os operários embora. É meio dia. ANTÔNIO Pois manda-os.
(Pedro entra na oficina. — Ouve-se tocar uma sineta. — Pouco depois, vêse, pela porta do fundo, os empregados desfilarem da esquerda para a direita, repelindo o coro do 1º ato) CENA VIII ANTÔNIO (que, a meio da cena, com os braços cruzados, tem acompanhado com a vista a saída dos operários) Vão, meus filhos. Talvez que breve fechem-se sobre todos as portas desta casa, onde, durante dez anos, ganharam com honra o pão de cada dia... Vão... Quem sabe se será esta a última vez que os vejo?... Quisera abraçá-los todos, agradecer-lhes a sua lealdade, a santa amizade que sempre me tiveram... Mas para que entristecer ainda mais o quadro?
(Senta-se, pensativo. — Momento de silêncio — Ouve-se ao longe dar meio dia. — Antônio levanta a cabeça, prestando atenção, até extinguir-se no espaço a vibração da última badalada. — Ergue-se vagarosamente, vai ao fundo e, cruzando os braços sobre o peito, contempla, com profunda tristeza, a oficina deserta) CENA IX Antônio e João. JOÃO (da esquerda, com uma carta) Mestre! (Silêncio) Mestre! (Silêncio) Oh! (Avançando até meio da cena) Mestre!... ANTÔNIO (voltando a cabeça) O que queres? JOÃO Aqui está uma carta que trouxeram agora mesmo para o mestre. ANTÔNIO (descendo rápido)
Uma carta!... Dá-me. (À parte, recebendo a carta) Oh! aqui está a salvação ou o inferno! (João Sai). CENA X ANTÔNIO Tenho medo de abrir esta carta. Parece-me que aqui dentro está a minha sentença de morte! (Abre a carta e lê, agitado e trêmulo. — Deixa cair o papel das mãos hirtas. — Dá, vacilando, alguns passos e cai, pesadamente, na cadeira perto da mesa, dando um grito de desespero) Ah! CENA XI Antônio e Manoel. MANOEL (indo a ele) O que é isso, Antônio? ANTÔNIO Ah! o coração bem me adivinhava!... MANOEL Mas o que é?... que sucedeu?... ANTÔNIO Não sei... aí pelo chão deve estar um papel... Leia... MANOEL (apanha o papel e lê) “É impossível a demora que pede. O homem que não satisfaz os seus compromissos no devido tempo, ou está arruinado ou é um ladrão.” — (Amarrotando, convulso, o papel) Um ladrão!... Tu, Antônio!... ANTÔNIO É assim perder em um momento quarenta anos de honra, meu pai!... Que quer? Como não pude, pela primeira vez na minha vida, satisfazer um compromisso no devido tempo, chamam-me ladrão!... Ah! estão no seu direito... O meu passado nada vale... é um passado de ladrão! MANOEL Coragem, meu filho! Deus é grande! CENA XII Os mesmos e Pedro. PEDRO Mas o que é isto?... que abatimento é esse, meu pai?... o que sucedeu?... Ah! sim... já sei... Mas não se aflijam. A sua honra continua intacta, meu pai... A letra está paga. ANTÔNIO Paga!... Como?... PEDRO O portador da carta que há pouco recebeu, contou-me tudo... Eu tinha umas economiazinhas e... Com a fortuna! Para que serve o dinheiro senão para enxugar as lágrimas dos que sofrem?... Vamos, mestre! nada de tristezas!... O temporal já vai longe... Agora ao trabalho, e viva a Providência!... MANOEL Obrigado, Pedro!... Obrigado por mim e por ele! ANTÔNIO Pedro, agora repito o que sempre dizes: — “As dívidas de gratidão não se pagam!” — Dá-me um abraço. Quando dois homens honrados abraçam-se, Deus sorri-se no céu! (Rumor fora) O que é isto? MANOEL Parece muita gente a lamentar-se...
(O rumor aproxima-se. — Entram dois operários conduzindo Maria desmaiada, com os vestidos rotos e os cabelos em desordem, e a sentam em uma cadeira. — Os operários, em não pequeno número, ficam no fundo. — José entra pela esquerda, e para à rampa, contemplando o quadro) CENA XIII Antônio, Manoel, Maria, Pedro, João, José e Operários. ANTÔNIO (correndo a Maria) Minha filha! MANOEL (idem) Meu Deus! PEDRO (idem) Maria!... ANTÔNIO (aos operários) Mas o que aconteceu? JOÃO Não sabemos, mestre. Quando passávamos pelo bosque das laranjeiras, ouvimos uns gemidos como de quem agonizava. Corremos ao lugar de onde partiam os gemidos, e encontramos a nossa pobre menina no estado em que a vê, com este papel pregado no vestido. (Mostra uma tira de papel) ANTÔNIO Um papel!... Dá-me!... (Lendo) “Saiu pura de casa, mas voltará desonrada.” — (Rasgando o papel) Ah! o miserável!... Quem foi... (Indo a Maria) Maria! minha filha!... (Cai soluçando, em uma cadeira) MANOEL Meu Deus!
PEDRO Coragem, meu pai! JOSÉ (à parte) É preciso que os anjos chorem, para que Satanás possa folgar algumas vezes! Caluniei-a, mas vinguei-me!...
(Antônio soluça, em uma cadeira. — Pedro e Manoel socorrem Maria. — Os operários, ao fundo, mostram-se comovidos. — José, à boca da cena, contempla, sorrindo, o quadro)
ATO III A mesma vista.
CENA I
PEDRO (sentado perto da janela, pensativo. — Depois de um momento de silêncio) E assim perder em um momento uma esperança alagada há tantos anos!... E não saber quem foi o miserável!... Oh! com que satisfação calcá-lo-ia aos pés, cuspir-lhe-ia na face, matá-lo-ia aos poucos, lentamente, sem piedade, sem compaixão!... (Pausa) O meu coração nunca abrigou ódios nem rancores, nunca em minha alma pode palpitar o sentimento da vingança... Sempre fui bom... Chorei com os que choravam, animei aos que perdiam a coragem, levei a luz da fé aos que descriam, dei pão aos que tinham fome, cobri a nudez dos que tinham frio... E que recompensa tive eu por ser assim? Rasgarem-me o coração, envenenarem-me a alma, roubarem-me a minha única felicidade, tornarem-me descrente!... Descrente!... Oh! não!... Eu não descreio... Deus há de proteger-me, há de mostrar-me o infame!... (Deixa cair a fronte nas mãos, com profundo desânimo)
CENA II
Pedro e José.
JOSÉ Bom dia, Pedro. PEDRO (erguendo a cabeça) Bom dia, José. JOSÉ Então, o que é isso?... Que cisma é essa em que estás tão abismado? Olha: — quem cisma não casa. — Não queiras agora iludir o mestre... PEDRO É uma ironia, José? JOSÉ És desconfiado, meu companheiro. Pois não estavas para casar com a filha do mestre? PEDRO (contrariado) É certo. JOSÉ E então... PEDRO Mas esse casamento não pode mais ter lugar... JOSÉ Por quê? PEDRO Porque... não pode. JOSÉ Sim; depois do que houve, eu disse logo com os meus botões: — Pedro é um rapaz honrado, e não casará mais. — Um homem de bem não pratica o triste ato de casar com uma rapariga sobre quem recai a certeza de uma falta... PEDRO E se essa falta foi cometida involuntariamente, por meio da violência?... JOSÉ Nem por isso deixa de ser uma falta, e uma falta gravíssima... (Pausa) Pedro, chegou a ocasião de dar-te uma prova de gratidão pela amizade que sempre me mostraste... PEDRO Como? JOSÉ No dia em que ficou decidido o teu casamento com a filha do mestre, tive compaixão de ti, meu companheiro, porque abusaram miseravelmente da tua boa fé... PEDRO Não te compreendo. JOSÉ Compreender-me-ás. Lembras-te quando o mestre deu um jantar aos anos de sua filha, jantar que terminou por um baile? PEDRO Lembro-me. JOSÉ Lembras-te que a esse jantar e a esse baile assistiu o Sr. Jorge de Castro, filho do comendador Castro?... PEDRO Lembro-me. JOSÉ Lembras-te que ao jantar o Sr. Jorge de Castro esteve sentado ao lado da filha do mestre e que lhe fez cinco ou seis saúdes? PEDRO Lembro-me. JOSÉ Lembras-te que à noite o Sr. Jorge de Castro dançou quase sempre com a filha do mestre? PEDRO Lembro-me. JOSÉ Pois bem. Durante o jantar o Sr. Jorge de Castro não deixou um só momento de olhar para Maria, e enquanto dançaram, conversaram e conversaram muito. Eu ouvi. PEDRO Ouviste? O que ouviste? JOSÉ Não digo porque não quero afligir-te. Para que hei de lançar mais fel no teu coração, já tão cheio dele? (À parte) Vou bem! (Alto) Embora mau, embora perverso, como diz o mestre que sou, não quero acabar de acabrunhar-te com uma revelação dolorosa... PEDRO Não! Hás de dizer-me o que ouviste. Não suponhas que com essa revelação abres-me uma nova chaga ao coração... O meu coração é uma chaga só, viva, gotejando de sangue... Sabes que eu amava Maria com todas as forças da minha alma, com toda a veemência do primeiro amor. Maria era para mim a única ambição, a única felicidade... Mas depois do que se deu, afaste-me dela, não com ódio, porque o meu coração não pode ter ódio a ninguém... Fiquei só, inteiramente só... Dize-me o que ouviste, José... JOSÉ Já que assim o queres, vou dizer o que ouvi... e o que vi também... PEDRO Viste também? JOSÉ Ah! meu companheiro, muito enganado tens vivido! Não admira. Qualquer deixar-se-ia arrastar pelos sorrisos fagueiros e pelas palavras doces dessa moça. Vi e ouvi, Pedro. O que ouvi é mau, o que vi é horrível... PEDRO Fala, José, fala! JOSÉ Não; não quero magoar-te mais... PEDRO Não me magoas. Fala. JOSÉ O Sr. Jorge de Castro disse à filha do mestre: — “É um anjo. Feliz o homem que merecer o seu amor. Creia. Há corações que amam ou odeiam ao primeiro impulso... O primeiro impulso do meu coração foi amá-la... e eu amo-a...” PEDRO E ela... ela... o que respondeu?... JOSÉ Corou, baixou os olhos e balbuciou: — “Quem sabe?...” PEDRO Oh! mas isso é uma confissão!... JOSÉ Assim penso eu também. Uma confissão claríssima. Ele insistiu: disse que a amava loucamente, que por ela sacrificaria até a própria vida, e ela respondeu... PEDRO O quê?... o quê?... JOSÉ Respondeu: — “Creio!” PEDRO Ah!... Mas isso é verdade, José?... isso é verdade? JOSÉ Se é verdade?... A pergunta é ofensiva, meu camarada. É verdade, sim: juro-o pela salvação da minha alma. PEDRO Ah! e assim abusavam da minha credulidade... e assim escarneciam da minha boa fé!... Por quê? E... o que viste? JOSÉ Não sei se deva dizer-te. Estás tão agitado, que me metes dó. Outro dia contar-te-ei tudo... PEDRO Não!... Há de ser já, agora... Quero saber até que ponto zombaram de mim!... JOSÉ Mas temos muito tempo, muito tempo, Pedro. Amanhã... PEDRO Já disse que há de ser hoje, agora. Fala!
JOSÉ Vou satisfazer-te, mas bem contra a minha vontade. Há dois meses, pouco mais ou menos, ia eu passando pelo bosque das laranjeiras, para levar um pouco de pão à minha mãe. Ouvi um murmúrio de vozes, abafado e confuso. Curioso por saber o que aquilo era, entre sutilmente no bosque, e, oculto pelas árvores... PEDRO O que viste? JOSÉ Vi a filha do mestre sentada na relva, e o Sr. Jorge de Castro de joelhos, em atitude suplicante. PEDRO Ah! JOSÉ (ferindo as palavras) Depois, as cabeças dos dois aproximaram-se... um beijo longo uniulhes os lábios... o Sr. Jorge enlaçou Maria pela cintura... conchegou-a a si... afagou-a com mão trêmula os cabelos soltos... e um novo beijo fez-se ouvir. PEDRO (recuando, com explosão) Ah! miseráveis!... miseráveis!... JOSÉ Retrocedi. Aquilo era uma infâmia, uma dupla infâmia, porque ela perdia-se, iludindo-te vergonhosamente. PEDRO Mas o que fiz eu para ser tratado assim? JOSÉ Tu, nada; mas tudo a tua boa fé.
PEDRO Meu Deus! JOSÉ Eu tinha pena de ti. Mais de uma vez quis dizer-te tudo; mas recuava sempre, porque temia que não me acreditasses... PEDRO Acreditava, sim. Que necessidade tinhas tu de levantar uma calúnia? JOSÉ Pedro, agora tenho um pedido a fazer-te. PEDRO O que é? JOSÉ Peço-te que não me odeies. PEDRO Odiar-te, por quê? JOSÉ Pelo que acabei de dizer-te... Embora a minha consciência tranquila diga que cumpri o meu dever, sei que te ofendi. PEDRO Não te odeio por isso, José. Agradeço-te até, do íntimo da alma, o serviço que me prestaste. Se não foras tu, eu continuaria a viver iludido. Tu me abriste os olhos, salvaste-me talvez de um abismo, e eu te agradeço. JOSÉ Coragem! Coração à larga, meu amigo!... Mulheres não faltam. Mostra-te alegre, feliz, satisfeito...
PEDRO (pensativo) Sim... é isso... JOSÉ Bem. Agora deixo-te. Vou trabalhar. Não quero que o mestre torne a chamar-me vadio. Hei de evitar o mais possível as suas repreensões. PEDRO Até logo, José. JOSÉ (à parte) Veremos quem vence! (Alto) Vamos para a oficina, Pedro. O trabalho e os nossos companheiros farão com que esqueças as tuas mágoas. Não quero ver-te assim... Nunca me esquecerei que foram os teus conselhos que me arredaram do mau caminho que eu seguia... Se Maria te vir com essa tristeza estampada no rosto, há de rir-se à tua custa, e com razão. Vamos. PEDRO Vai. Já te sigo. JOSÉ Lá te espero. Coração à larga. O tempo fará o resto. (Sai) CENA III PEDRO Que esperança me resta agora?... Esperança!... Castelo de areia, o vento da adversidade fê-lo cair em ruínas!... Pobre filho da desgraça, volto de novo ao pó de onde um momento me ergui, querendo ser um homem um momento... Foi um sonho que passou... Está acabado!... Vamos trabalhar!... (Maria entra pela direita) Ah! (Vai sair pelo fundo) CENA IV
Pedro e Maria.
MARIA (parando à porta, com profunda tristeza) Retira-se? PEDRO Sou necessário na oficina, e não posso demorar-me. (Saída falsa) MARIA Ou é a minha presença que o torna necessário na oficina? É injusto para comigo, Pedro. Que lhe fiz eu, para proceder assim? PEDRO (descendo) Nada... O que podia fazer... O que se pode fazer a um desgraçado como eu?... Ludibriá-lo, escarnecê-lo, desprezá-lo?... É tão natural!... O que sou eu?... O que fui?... Um miserável que dormia nas pedras das ruas e pedia uma esmola para comer... uma pobre criatura, sem pai, sem mãe, sem irmãos, sem amigos... um átomo de areia, sobre quem todos assentavam o pé para esmagar... um lázaro, de quem todos fugiam com horror... MARIA Mas... PEDRO Um dia, houve um homem que teve compaixão do desgraçado, que se finava à míngua de carinhos e afeições. Esse homem levou-o para sua casa. Deu-lhe pão, agasalhou-o muito amor. O mísero pária encontrou uma família. Teve pai, teve mãe, teve irmã. Criou-se feliz e descuidoso no meio da abastança e da honra. Por se ver assim amado de todos, julgou-se um homem e cometeu a ousadia de amar a filha do seu protetor. Ela aceitou o seu amor e disse: — “Sou feliz!” — Mas, depois, sucedeu o que tinha de suceder. Em seu coração, o orgulho falou mais alto do que o amor, e ela, não querendo dizer ao desgraçado que já não o amava, valeu-se da hipocrisia, enganou-o, abusou vilmente da sua boa fé, do seu amor, da sua gratidão...
MARIA Pedro! PEDRO E julgava a senhora que podia abusar da minha boa fé, que podia fazer um brinco do meu amor, sem que eu me revoltasse, sem que o meu brio reagisse?... Oh! não!... Na minha face ainda há pejo, ainda aqui palpita um coração!... MARIA Pedro!... PEDRO O que poderá dizer-me?... Que é falso o que avancei?... que nunca me iludiu?... que sempre me amou?... MARIA E então?... PEDRO E então... é que eu não a acredito... MARIA Não me acredita!... PEDRO Não... porque se acreditasse seria mais uma vez iludido, mais uma vez ludibriado pela sua hipocrisia!... MARIA Mas eu juro... PEDRO Oh! não jura! De que serviria jurar?... Seria um juramento falso como todos os outros... Supunha talvez a senhora que eu havia de ser cego toda a vida, mas enganou-se... Hoje vejo, vejo até de mais... Quer uma prova... duas... três? (Apontando pela janela) Olhe: estou vendo daqui o bosque das Laranjeiras... MARIA (à parte) Enlouqueceria ele? PEDRO No mais recôndito do bosque estão duas pessoas. Vejo-as daqui... Uma mulher e um homem... Ela está sentada na relva, com o olhar lânguido, o cabelo solto, o sorriso nos lábios trêmulos... Ele está de joelhos, com o olhar chamejante de paixão, os lábios sequiosos e ardentes... As cabeças dos dois aproximam-se... suspiraram... acariciam-se... Veja!... São dois amantes felizes aqueles!... MARIA (ofegante) O que quer dizer, Pedro? PEDRO Nada... Quer saber os nomes daqueles dois amantes felizes?... (Segurando-lhe nervosamente a mão) Ele chama-se Jorge de Castro... ela... MARIA (ansiosa) Ela... PEDRO Ela chama-se... Maria... MARIA (recuando) Eu!... Ah! quem lhe disse?... (Altiva) E pôde acreditar que eu praticasse semelhante infâmia? PEDRO Acreditei. Se durante tantos anos acreditei no bem, por que não hei de agora acreditar no mal?... (Pausa) O Sr. Jorge de Castro é rico, tem uma família ilustre. Eu sou pobre, e não conheci pai nem mãe... Quem foi meu pai? Quem foi minha mãe?... Talvez duas opulências... talvez duas infâmias! Quem sabe?... Agora volto ao que fui: à lama de onde saí. A minha presença nesta casa é talvez um estorvo aos seus novos amores... Parto hoje... Não sei para onde... Mas em toda parte há um palmo de terra para o verme se arrastar! MARIA Deixa-nos... e meu pai? PEDRO Oh! não me fale nele, que me tira toda a coragem!... Seu pai é a única cadeia que me prende a esta casa... (À parte) A única! (Alto) Sinto rasgar-me o coração ao deixá-lo, talvez para nunca mais tornar a vêlo... Mas o que hei de fazer? Ficar?... Não! nunca! Partir? É o meu dever, é o único recurso que me resta... MARIA E partirá? PEDRO Partirei! (Sai) CENA V MARIA (segue Pedro com a vista; depois, deixa-se cair numa cadeira, soluçando) E não posso justificar-me... e não posso dizer-lhe: — “É falso! É uma calúnia infame que me levantam!” — Oh! mas isto é um inferno! Pois eu hei de consentir que pese sobre mim uma suspeita terrível, sem proferir uma palavra?... Hei de deixar que me apontem como uma mulher sem honra, sem brio, sem provar a minha inocência?... (Pausa) Oh! mas ele... ele... — “Segredo sobre o que acabo de fazer, — disse-me ele; se proferir uma palavra, juro que a vida de seu pai pagará a revelação!” — Oh! meu Deus! meu Deus! O que devo fazer?... Calar-me? E a minha honra de que duvidam?... Falar?... E a vida de meu pai?... (Pausa) Calar-me-ei... Que importa que duvidem da minha honra, que me condenem, se salvo meu pai à vingança daquele miserável? Oh! mas tudo quanto tenho sofrido... todas as amarguras que me despedaçam a alma, ele há de sofrê-las também... hei de vê-lo... Oh! não! não, meu Deus! Perdoo-lhe... É o seu destino: nasceu para o mal, há de cumprir a sorte... E contudo, tenho pena dele... Estar só no mundo, sem pai, sem mãe, abandonado de todos como um maldito... deve ser... é horrível! Sim: que Deus se compadeça dele, e lhe dê de felicidades o que me tem ele dado de amarguras!... (Senta-se, chorando) CENA VI Maria e José. JOSÉ (à parte, ao fundo) Chora!... É bem que pagues com lágrimas o que me tens feito sofrer!... MARIA (sem vê-lo) E ele duvidou do meu amor! JOSÉ (à parte) E há de duvidar sempre, porque eu assim o quero! (Descendo) Chora! MARIA (erguendo-se) Ah! o senhor!... JOSÉ (sorrindo) Sou eu. Assusta-a por acaso a minha presença?... MARIA Saia! O senhor é um miserável! JOSÉ Para que esses palavrões inúteis!... Sou infame?... Embora! Mas tenho-a fechada na mão. Se proferir uma palavra, cuidado com o miserável! Lembra-se do que eu disse: — “Se proferir uma palavra, a vida de seu pai pagará a revelação!” — Experimente. Diga uma palavra, uma só, e verá se eu sei ou não cumprir os meus juramentos! MARIA Mas que mal lhe fez meu pai, que mal lhe fiz eu, para tratar-nos assim? JOSÉ Que mal? Como! Pois já se esqueceu das repreensões, dos insultos que de seu pai sofri? Já se não lembra do desprezo que mostrou quando lhe declarei que a amava! E não queria que me vingasse?... Oh! seria preciso que eu não tivesse coração! Tenho sofrido muito; mas hei de fazê-los sofrer dobradamente. Dirá que sou mau, que sou perverso. Podia ser bom, se me tivesse atendido, se me tivesse amado... Eu vivia em um inferno: o seu amor ter-me-ia sido a salvação. Compreende? MARIA Mas eu não podia amá-lo... JOSÉ Porque amava outro. Mas esse outro não precisava do seu amor, porque era feliz, enquanto que eu... MARIA O ódio cega-o, José. Quando me declarou o seu amor, lembre-se que eu lhe disse: — “Não há quem possa dizer: — eu quero amar — porque o amor nasce espontâneo no coração” — Como podia eu amá-lo, se o meu coração amava Pedro? JOSÉ Não vim aqui para movê-la à compaixão, para que tivesse piedade de mim; vim simplesmente para lembrar-lhe o meu juramento. Sei que está pura e virgem, mas para a minha vingança é necessário que não o esteja. MARIA Oh! mas isso é uma calúnia! uma calúnia infame! JOSÉ Que importa? Quando um homem como eu quer vingar-se, lança mão de todos os meios, mesmo os mais ignóbeis... MARIA Miserável! JOSÉ Sabe que lutamos como dois leões no bosque das Laranjeiras; que mais de uma vez a tive subjugada e que mais de uma vez a senhora começou a luta. Por fim, faltaram-lhe as forças: tentou ainda um momento repelir-me, mas em vão... Desmaiou... MARIA Oh! cale-se! cale-se! JOSÉ O mau triunfava finalmente! Ia ser minha!... De repente ouço vozes na estrada... tenho medo que ouçam os seus gemidos... Vejo perdido o meu triunfo... Escrevo a lápis em uma tira de papel as seguintes palavras: — “Saiu pura de casa, mas voltará desonrada.” — Prego com um espinho a tira de papel ao seu vestido, para que o vento não a levasse, e oculto-me... MARIA Basta! JOSÉ Um momento depois estava a senhora rodeada de homens, atraídos pelos seus gemidos; — eram os operários da oficina de seu pai. Conduziam-na nos braços para a casa. Saí do lugar onde me ocultara e segui-os de longe. Assisti ao desespero de seu pai, à dor de Pedro, à mágoa desoladora dos operários. E eu sorria à vista daquele sofrimento todo. Estava vingado. Agora, de novo imponholhe silêncio, lembrando-lhe que a vida de seu pai está nas minhas mãos. Se quiser falar, pode falar, mas fique convencida de que o resultado da sua indiscrição o ser-lhe-á fatal... MARIA Ah! que se não fosse meu pai, eu apontá-lo-ia como um miserável, indigno de compaixão! JOSÉ (frio) E o que lucraria com isso? MARIA Calar-me-ei, mas não suponha que o domínio que sobre mim exerce fará com que eu o ame, não, porque lhe tenho ódio de morte... JOSÉ Muitas vezes os grandes ódios transformam-se em grandes amores. Tem-se visto disso. Além de que, eu não tenho pressa. Esperarei. O que não pode ser hoje, será amanhã... MARIA Miserável! Nunca! JOSÉ Quem sabe?... Pode a senhora adivinhar o futuro?... MARIA Nunca, repito! Antes mil vezes a morte, do que amá-lo um momento só! JOSÉ Não me ofende a sua franqueza, pelo contrário: dá-me grandes esperanças... MARIA Continue a vingar-se, a desesperar-me, a acabrunhar meu pai... Mas olhe: Deus, que nos vê, não há de deixar impune o mau!
JOSÉ Ora! Deus! Deus não se ocupa com as misérias deste mundo! Vou trabalhar. Quero ser um operário exemplar, porque estou com as minhas tensões ao lugar de contramestre. Reflita e depois proceda. MARIA Não tenho que refletir, e o meu procedimento já está traçado: hei de odiá-lo sempre! JOSÉ Odeie. Já disse que os grandes ódios transformam-se muitas vezes em grandes amores. O seu ódio não me fere. Prefiro ser odiado a ser desprezado. O desprezo esmaga: o ódio excita à vingança, e a vingança é um prazer para maus, como eu sou. Odeie. Algum dia amar-me-á. (Sai) CENA VII MARIA (levando as mãos à fronte e caindo numa cadeira, afogada em soluços) Oh! Meu Deus! meu Deus!... CENA VIII Maria e Manoel. MANOEL Sempre assim; minha filha! sempre assim! MARIA (abraçando-o) Meu avô! MANOEL Minha pobre filha, por que te obstinas em guardar silêncio?... Por que não dizes o nome do miserável, Maria?...
MARIA Meu avô... MANOEL Não foste tu que erraste; foi a violência que te fez errar. Para mim, és sempre a minha neta querida, a minha neta virgem e pura de outros tempos... MARIA (à parte) E ele acreditou também!... Que suplício, meu Deus! MANOEL Teu pai ama-te como teu amou sempre; Pedro... MARIA Pedro odeia-me, meu avô!... MANOEL Odiar-te? Por quê? MARIA E não tem ele razão? Não era eu a sua noiva? Não era eu o seu único amor neste mundo? Veja como ele anda: — triste, pensativo, acabrunhado, pálido... Quem sabe que abismo de amarguras lhe não vai pelo coração!... Oh! meu querido avô, para que viver assim? Antes Deus se compadecesse da desgraça levando-a para si... MANOEL (recebendo-a nos braços) Cala-te! Coragem, filha!... Estava-te reservado este martírio: sofre-o com resignação!
(Ficam abraçados)
CENA IX Os mesmos, e Antônio.
ANTÔNIO (aparece ao fundo e para ao ver o grupo) Pobre filha!... Ah! se eu conhecesse miserável!... (Desce) MARIA Meu pai! ANTÔNIO Ora vamos... Para que lágrimas, Maria? Coração à larga, minha filha. Está lá em cima quem nos há de vingar... Olha: agora, quando vinha passando pelo bosque das laranjeiras, sabes que ideia tive?
(José aparece ao fundo) MARIA Que ideia, meu pai?... ANTÔNIO Que o homem que te reduziu a este estado foi José... JOSÉ (à parte) Ah! MARIA (estremecendo) Oh! não, não, meu pai! MANOEL (à parte, pensativo) José... Quem sabe? ANTÔNIO Como afirmas que não foi José, se sempre disseste que não tinhas visto esse homem? MARIA Mas... sim... mas garanto que não foi ele... ANTÔNIO Quem foi então?...
MARIA Não sei... Meu avô, peça-lhe que não me faça mais perguntas. ANTÔNIO Que interesse tens em ocultar um segredo que tanto mal te faz? Quem foi esse?... CENA X Os mesmos e José. JOSÉ (descendo) Mestre!... MARIA (estremecendo e abraçando-se com o pai) Meu pai!...
ATO IV A mesma vista.
CENA I
JOSÉ (entra, cautelosamente, pelo fundo, vai a todas as portas, olha para dentro e dirige-se depois para a janela) Psiu! psiu!... (Desce) Tenho esta ideia a fervilhar-me na cabeça há mais de quinze dias. Sempre desconfiei que o bastardo tinha dinheiro guardado... Ora, um homem que paga uma dívida alheia de três contos de réis, é porque tem dinheiro... CENA II José e Anselmo.
ANSELMO (à porta, misterioso) Pode-se entrar? JOSÉ Entre. A ocasião é ótima. Estão jantando. ANSELMO (sempre misterioso) Muito bem! muito bem! Então podemos falar. JOSÉ Sim; mas baixo, para não sermos ouvidos. ANSELMO Está claro. Eu cá sou muito prudente. JOSÉ Sei disso, porque não é de hoje que o conheço como um grandíssimo velhaco. ANSELMO Bondade... bondade... (Batendo-lhe no ventre) Ah! maganão! Chama, chama, antes que te chamem... (Outro tom) Pois, meu amiguinho, estamos servidos. JOSÉ Estamos? ANSELMO Sem dúvida, sem dúvida. Eu cá não meto prego sem estopa. Com franqueza: o amiguinho não goza de muito boa fama aqui... e em toda parte... Não me agradeça. Isto não é elogio, não; é a verdade. Ora, quando À outra noite foi procurar-me e me apresentou um molde de fechadura, pedindo-me que lhe arranjasse uma chave, eu disse logo com os meus botões: — “O marreco quer fazer alguma brejeirada”... – JOSÉ Mas... ANSELMO Vamos lá, vamos lá... E continuei: — “A tal chavezinha há de ser provavelmente para abrir alguma gaveta do patrão, ou coisa assim”... – JOSÉ Senhor Anselmo! ANSELMO Não me agradeça o bom juízo que faço da sua honrada pessoa... E conclui o meu raciocínio: — “Ora, desde que eu empresto a ferramenta para a operação, é bem que...” JOSÉ A chave é para abrir um baú meu. ANSELMO Hein?... Não pega! Ora, se a chave fosse para abrir um baú seu, não iria pedir-me, mas compraria uma fechadura nova e quebraria a velha. É natural... é natural... Sabe o que eu sou de segredo. Por que não me conta tudo?... JOSÉ Porque nada tenho a contar-lhe. Creio que é também natural. ANSELMO Não é natural, não... Está bom: não vai a zangar. Olhe: com mentiras não arranja nada... O amiguinho não ignora que eu não sou ferreiro nem ferragista... Vivo das minhas economiazinhas e dos miseráveis juros de um dinheirinho que empresto... JOSÉ Miseráveis juros! Eu que o diga. Cinquenta por cento de desconto sobre cada empréstimo! Uma ladroeira!
ANSELMO Seja. Isso são contas do meu rosário, e não do seu. Se quer iniciar-me no segredo, muito bem; sine qua, non... (Mostrando uma chave) A chave está aqui. JOSÉ Mas eu não tenho segredos... ANSELMO Continua a negar?... Adeusinho. Nada temos feito. (Saída falsa) JOSÉ Pois bem... sim... essa chave é para abrir um baú... o baú de Pedro... Desconfio que lá dentro há dinheiro... ANSELMO (descendo) Hein?... Mas por que é que desconfia?... JOSÉ Porque Pedro pagou há dias uma dívida do mestre na importância de três contos de réis... ANSELMO Upa!... Três contos de réis! Mas então o ninho deve estar vazio... O credor do mestre comeu os ovos que lá estavam em choco... JOSÉ Não. Está enganado... Sei que ainda há dinheiro. ANSELMO Tem certeza? JOSÉ Tenho. ANSELMO Pois bem: cedo-lhe a chave, mas com a condição de dar-me metade... JOSÉ Mas isso... é um roubo! ANSELMO He! he! he! Que ingenuidade!... Ora, um roubo! E o que vai o amiguinho fazer?... JOSÉ Pode guardar a sua chave... guarde-a. Arranjarei outra. ANSELMO Hein?... Mais devagar... Se o baú não foi aberto com a minha chave, não será com outra. JOSÉ Denuncia-me, não? ANSELMO Está claro... Eu cá sou um homem honrado, e não quero ser cúmplice de ladroeiros... JOSÉ (à parte) Ah! se eu pudesse estrangular-te! ANSELMO E é decidir; porque estou com pressa. JOSÉ Dê-me a chave, Sr. Anselmo. Terá a metade... ANSELMO Muito bem. Assim é que se trata entre gente honesta como nós nos prezamos ser. Mas quem me garante que o amigo me dará a metade, se eu não assistir à extração?
JOSÉ Pode assistir. ANSELMO Quando? JOSÉ Já. ANSELMO Hein?... De dia? E não há perigo? JOSÉ Não. ANSELMO Onde é o quarto? JOSÉ Na oficina. ANSELMO E os operários? JOSÉ Foram jantar. ANSELMO Mas não há perigo? JOSÉ Já disse que não. Dê-me a chave. ANSELMO Enfim... Mas olhe: traga-me outra vez... Esta chave é do meu cofrezinho e... (Mostrando) Tem aqui deste lado gravado o meu nome. Veja...
JOSÉ É verdade... (Lendo) “Anselmo Gil.” — Para que mandou gravar o seu nome nesta chave? ANSELMO Para, dado o caso de perdê-la, saberem logo a quem pertence, e entregarem-me. JOSÉ Tive uma ideia luminosa, muito luminosa. (Tomando-lhe a chave, à parte) Muito luminosa... para mim!... (Alto) Vamos! (Entra na oficina) CENA III ANSELMO (ao fundo, falando para dentro) Vamos... mais ligeiro... Dessa maneira, apanham o amiguinho com o focinho na botija... (Pausa) Serve?... Ande... Ao menor rumor, safome e deixo-o nos apuros... (Pausa) Entrou? Muito bem! muito bem! Parece que foi feita de propósito... Bravo!... Não acha nada? Uma carteira! Esplêndido! Ligeiro... ligeiro! CENA IV Anselmo e José. JOSÉ (com uma carteira) Ei-la! (Desce) ANSELMO (seguindo-o) E terá miolo? JOSÉ (abrindo a carteira) Veja! ANSELMO Muito bem! Não fomos mal sucedidos. JOSÉ Vamos fazer a divisão. Mova-se! ANSELMO Aqui? JOSÉ Em sua casa. (Sobe) ANSELMO Pois vamos, vamos... (Parando) E a minha chave? JOSÉ (sorrindo) Esqueci-me de trazê-la. ANSELMO (com as mãos na cabeça) Ai! ai! ai! Agora como há de ser? JOSÉ Não sei... Arranje-se! (Sai correndo) CENA V ANSELMO Estou perdido... Uma chave com o meu nome, a chave do meu cofre. Ora, um homem honrado como eu, estar metido nestas coisas! Vou buscá-la. Se me pilham, estou morto... (Dirige-se, cauteloso, para o fundo) PEDRO (dentro) Vou ao meu quarto e já volto, mestre. ANSELMO (recuando, a tremer) Ah! fujamos... Não há tempo a perder!... (Sai correndo pela esquerda)
CENA VI
PEDRO (entrando pela direita) Não posso mais viver nesta casa... É um martírio contínuo, sem tréguas... Vê-la todas as horas... a todos os instantes... E apesar de tudo, amo-a... Cada lágrima sua é uma tortura que sofro, cada soluço uma agonia que me dilacera a alma!... Vamos!... Irei para bem longe... para onde nunca mais possa vê-la... CENA VII Antônio e Pedro. ANTÔNIO Uma palavra, Pedro. PEDRO Estou às suas ordens, mestre. ANTÔNIO Pedro, o teu casamento com Maria tornou-se impossível... PEDRO Mestre... ANTÔNIO Esse casamento prometia ser por demais feliz, para realizar-se. Criei-te como filho, e conheço-te. PEDRO Mestre, a minha continuação nesta casa, bem deve compreender, tornou-se impossível também... ANTÔNIO Impossível! Por quê?
PEDRO Porque a minha presença é um martírio para Maria. Já sofre tanto, a infeliz, que é bem que lhe evitemos mais essa tortura... Fazia tenção de despedir-me hoje... ANTÔNIO Como! E para onde vais?... PEDRO Não sei ainda... Para qualquer parte. O destino me levará... ANTÔNIO Para que isso, Pedro?... (Comovido) Para quê? Pois não és tu meu filho? Onde devem estar os filhos senão na casa de seus pais? A tua presença não será um martírio para Maria; pelo contrário: ser-lhe-á uma consolação. Fica. PEDRO Não, mestre. Partirei. ANTÔNIO E eu então? E meu pai? Queres abandonar-nos na nossa velhice? queres deixar-nos entregues ao desespero? queres abrir-nos mais uma chaga no coração? PEDRO (comovido) Mestre!... ANTÔNIO Oh! como são ingratos estes filhos! Justamente quando mais deles precisamos para nos consolarem no último quartel da vida, para nos darem alguns momentos de alegria nos últimos dias, deixam-nos sós, sem se compadecerem das nossas lágrimas, da nossa solidão... Para que queres partir, Pedro?... PEDRO Mas é necessário, mestre... é necessário. ANTÔNIO Pois bem; parte! (Senta-se à mesa e escreve, entregando depois o papel a Pedro) Toma... vai... Tu és um ingrato!... (Chorando) Um ingrato! PEDRO (sem ler) Mas para que é este papel, mestre? ANTÔNIO É um documento. Já não te lembras que te devo três contos de réis? PEDRO Ah! mestre, nem sabe o mal que me faz! (Atirando o papel sobre a mesa) Por acaso pedi eu este papel? Exigi alguma clareza? ANTÔNIO Não. Mas desde que tens coragem para deixar-nos, terás coragem para um dia nos vires tirar o pão... E para isso é necessário que tenhas um documento qualquer... Agora, vai... Tu já não és meu filho: és um ingrato! PEDRO O mestre nada me deve. Os três contos que lhe emprestei são o dote de Maria. ANTÔNIO Estou pobre, mas agradeço a esmola. Aceitá-la-ia, se ficasses aqui... Mas não queres ficar... A nossa companhia já te aborrece... PEDRO (à parte) O que fazer, meu Deus! ANTÔNIO Vai. O que esperas ainda? Cravaste-me o punhal no coração... agora queres assistir até à minha derradeira agonia?... não é assim?... Vai... vai, ingrato!... (Caindo numa cadeira) Ingrato!...
PEDRO Mestre!...
CENA VIII Os mesmos, e Manoel.
MANOEL Mas o que é isto?... Por que choras, Pedro?... E tu, Antônio? ANTÔNIO Aborreceu-se de nós, o ingrato, e agora veio dizer-me que quer partir... MANOEL Por quê? PEDRO Porque assim é preciso... porque eu não posso mais viver aqui... MANOEL Mas o que te fizemos nós? Em que te ofendemos? PEDRO Ofensas!... Eu aqui só tenho recebido benefícios, Sr. Manoel... Quero partir porque... porque não posso ver Maria sofrer... porque amo-a muito! CENA IX Os mesmos e Maria. MARIA (que pouco antes tem aparecido à direita, à parte) Meu Deus! E não pode falar... (Descendo) Obrigada, Pedro, obrigada!... Faz bem em compadecer-se de mim!...
MANOEL Mas ele quer partir, filha... quer deixar-nos... MARIA (recuando) Quer deixar-nos!... (Naturalmente) Está no seu direito. ANTÔNIO Mas é um ingrato, Maria!... MARIA Os ingratos são tantos, meu pai! MANOEL (em tom súplice) Pedro! PEDRO (olha para todos os lados, vai à mesa, toma o papel, desce ao meio da cena e rompe-o. Com explosão) Oh! não! não partirei!... Maria é minha irmã, e eu devo ficar para vingá-la!... Dá-me um abraço, minha irmã!... Coragem!... Juro pelos martírios que tens sofrido, que hei de vingar-te! ANTÔNIO Então, ficas? PEDRO Fico, meu pai. ANTÔNIO Mas guarda o documento. PEDRO (mostrando os pedaços do papel) Olhe! ANTÔNIO Rompeste? PEDRO Rompi, porque nada me deve. ANTÔNIO (abraçando-o) Tu tens um grande coração, meu filho! Serás feliz! PEDRO Então, já não me chama ingrato? MANOEL Ingrato? Tu és a pérola dos homens de bem... CENA X Os mesmos e João. JOSÉ Boa tarde, mestre. ANTÔNIO Boa tarde, José. O que queres? JOSÉ Venho dizer ao mestre que conclui antes de ir jantar a tarefa que me distribuiu. Espero que o mestre mande Pedro distribuir-me outra. ANTÔNIO Estás de uma atividade espantosa, José! JOSÉ O que quer o mestre?... Nem sempre se há de ser vadio. Jurei corrigir-me, e creio que... ANTÔNIO És um operário exemplar, não há dúvida. Bem. Podes retirar-te. Pedro já lá vai. JOSÉ Sim, mestre. (Saindo, à parte) É preciso iludi-los... (Entra na oficina) CENA XI Antônio, Pedro, Maria e Manoel. ANTÔNIO Causa-me admiração esta súbita mudança de José. MANOEL O arrependimento salva. MARIA E crê que ele esteja arrependido, meu avô? MANOEL Creio. Por que não hei de crer? ANTÔNIO Quem sabe? José era um mau homem, desrespeitoso, vadio. Não posso compreender como de um momento para outro transformouse a tal ponto. Pedro, creio que é necessário estar prevenido. PEDRO Estarei, mestre. Se o seu arrependimento é verdadeiro, Deus nos perdoará o mau juízo. Se é um meio de que se serve para enganarnos... MARIA (à parte) Medita algum novo crime... PEDRO Com licença, mestre. (Sai) CENA XII Antônio, Maria e Manoel.
ANTÔNIO Vamos nós trabalhar também. A ociosidade é mãe de todos os vícios. MARIA E eu que ainda não conclui a toalha para o altar de Nossa Senhora das Dores... MANOEL Concluirás quando puderes. No teu estado de saúde, deves ter descanso, minha filha. MARIA Mas se eu nada sinto, meu avô. Estou perfeitamente boa. MANOEL E essa palidez... essa tristeza? MARIA Esta palidez... esta tristeza... ANTÔNIO Ora vamos. Para que toldar mais o céu, quando podemos tirar-lhe algumas nuvens?... O passado, passado. O que de melhor podemos fazer, é esquecê-lo... MARIA Esquecê-lo! ANTÔNIO Pois então?... MARIA Mas é que eu não posso esquecer, meu pai! ANTÔNIO Ora, é um esforço, e basta. Vamos trabalhar. O trabalho é uma consolação. MARIA Fica, meu avô? MANOEL Nada. Vou também. MARIA (sorrindo) Trabalhar? MANOEL Ah! se eu pudesse...
(Saem)
CENA XIII
JOSÉ (entrando pelo fundo) Preparei tudo com mão de mestre. A chave lá está ainda, e aquela chave é a minha salvação. Deixei-a propositalmente. (Tirando a carteira do bolso e batendo-lhe em cima) Dois contos e quinhentos mil réis... Para uma primeira experiência, já é alguma coisa... (Guarda a carteira) Tremi ao abrir o baú... tremi ao tirar a carteira... tremi ao sair do quarto... Tive medo... Se era a primeira vez!... Estes receios estúpidos perdem-se com a continuação... Hei de perdê-los... E queria aquele idiota que eu dividisse o dinheiro! Que venha para cá!... CENA XIV José e Anselmo. ANSELMO (que, sem ser visto por José, tem entrado cautelosamente a olhar para todos os lados, batendo-lhe no ombro)
O meu dinheiro! JOSÉ (dando um salto) Hein?... (À parte) Temo-lo outra vez! (Alto) Que dinheiro? ANSELMO O dinheiro do roubo. JOSÉ O senhor está sonhando! Pois eu sei lá disso? ANSELMO Vamos: nada de hipocrisias nem de subterfúgios. Quero já e já o meu dinheiro! JOSÉ (rindo) E a chave... Não a quer também?... ANSELMO A chave! A minha rica chavezinha!... Oh! perdoo-lhe tudo, com tanto que m’a restitua. JOSÉ E pensa o amiguinho que a deixei no baú por esquecimento? ANSELMO Então por que foi? JOSÉ Deixei-a muito propositalmente. Aquela chave tem o seu nome e serve otimamente para afastar suspeitas... ANSELMO (avançando) Ah! miserável! Quer perder-me! JOSÉ (recuando)
Morrer por morrer — morra o senhor que é mais velho. Agora, é deixar que as coisas sigam o seu curso. Se o amigo for falado, prometo ir todos os dias visitá-lo à cadeia. ANSELMO (com as mãos na cabeça) Estou perdido! Estou perdido! JOSÉ Aguente-se! (Rumor na oficina) ANSELMO O que é isso? JOSÉ Pouca coisa. É o dono do baú que... achou a sua chave. ANSELMO (caindo numa cadeira) Ah! o meu nome! o meu nome! PEDRO (dentro) Roubado! Roubado! JOSÉ Fuja! Se Pedro o encontra aqui, esmaga-o!... ANSELMO (erguendo-se) Mas eu não sou o verdadeiro culpado!... JOSÉ Não sei. O que fala a verdade é a chave. ANSELMO Perdido! perdido!... Ah! quisesse perder-me, miserável!... Mas hei de vingar-me! (Sai)
CENA XV
JOSÉ (indo até a porta por onde Anselmo saiu e voltando) Estou salvo! Digam, se são capazes, que o ladrão sou eu!... CENA XVI José e Pedro. PEDRO Roubado! Estou roubado! (Atira a chave ao chão) JOSÉ Roubado? Como? (Apanha a chave e examina-a) Coragem, Pedro. Eu conheço o ladrão. PEDRO Conheces?... Quem é?... JOSÉ O Anselmo Gil. PEDRO Anselmo? Como sabes?... JOSÉ (mostrando a chave) Eis a prova. Além de que, vi-o entrar e sair daqui há talvez meia hora. PEDRO Mas como podia ele saber? JOSÉ Isso é que eu não sei... PEDRO Não, não é possível. Anselmo é um agiota, mas não é um ladrão... Sem dúvida, roubaram-lhe a chave... Não, o ladrão não é ele.
JOSÉ Quem é então?
CENA XVII Os mesmos, Anselmo e dois polícias.
ANSELMO (aparece à porta, onde deixa os polícias, desce e bate no ombro de José) Ladrão! JOSÉ (recuando assustado) O que diz? PEDRO Ele? ANSELMO Onde é que está a minha chave, a chave que me roubaste? Vamos? responde?... Se queres guardar silêncio, está ali à porta quem pode obrigar-te a falar. JOSÉ (aniquilado, à parte) Maldito! PEDRO Então foste tu, miserável! E andavas aqui fazendo de homem de bem! JOSÉ O Senhor está louco? ANSELMO (a Pedro) Quanto tinha o senhor? PEDRO Dois contos e quinhentos mil réis em uma carteira preta. ANSELMO (aos soldados) Revistem este homem. (Os soldados avançam) JOSÉ (recuando) Revistar-me! a mim!... Não consinto!... É uma infâmia!... Eu não roubei coisa alguma!... CENA XVIII Os mesmos e João. JOÃO (vai entrar pelo fundo, mas, ao ouvir as palavras de José e ao ver os soldados, volta-se para dentro, gritando) Rapazes! rapazes!... Depressa! Temos ladrão em casa! ANSELMO Esse medo depõe contra a sua inocência. Se nada roubou, deixe-se revistar. (Aos soldados) Revistem-no!
(Os soldados seguram José. — Entram todos os operários e formam grupo) CENA XIX Os mesmos e operários. JOSÉ (lutando) Deixem-me!... Deixem-me!...
(Trava-se a luta. — Um dos soldados tira do bolso de José a carteira, que entrega a Anselmo) TODOS Ah! JOÃO (aos operários)
Um ladrão! Estão vendo?... ANSELMO (dando a carteira a Pedro) É esta? PEDRO (abrindo para verificar) É. ANSELMO (aos soldados) Levem-no. Cadeia com o marreco!
(Os soldados conduzem José) JOSÉ (lutando) Miseráveis! miseráveis!... Hei de vingar-me!... (Sai. — Anselmo segueo) CENA XX Pedro, João e operários, PEDRO Viram, meus amigos?... Era um ladrão! E eu que pensava tê-lo salvo do abismo!... JOÃO O mestre sempre dizia que aquele canalha havia de acabar mal! CENA XXI Os mesmos, Antônio, Manoel e Maria. ANTÔNIO José! José!... JOÃO É inútil chamá-lo, mestre. O canalha do José está preso.
ANTÔNIO Preso! MANOEL (ao mesmo tempo) Preso! MARIA (ao mesmo tempo) Preso! JOÃO E preso por ladrão! (Aos operários) Não é verdade, rapazes? OS OPERÁRIOS (à uma voz) Sim, sim! por ladrão! MARIA (adiantando-se, com um grito de alegria) Ah! então posso falar! ANTÔNIO O que tens a dizer?... MARIA Tenho a dizer, meu pai, que estou inocente, que estou pura... que esse miserável caluniou-me infamemente!... ANTÔNIO Que dizes?... MANOEL Minha filha! PEDRO Ah! MARIA Se há mais tempo não fiz esta revelação, foi porque José jurou que o mataria se eu dissesse uma palavra, meu pai!... (Ajoelhando ante o pai) Meu pai, juro pela memória de minha mãe, que fui caluniada! ANTÔNIO Basta, filha! Creio. (Recebe-a nos braços) MANOEL Dá-me um beijo, filha! (Beija-a) MARIA (timidamente) E tu, Pedro?... PEDRO (beijando-lhe a mão) Eu... adoro-te! JOÃO Mestre, os operários honrados saúdam o mestre honrado, e não tendo mais para oferecer-lhe no dia em que foi desta casa expulso o infame, e nela entrou de novo a felicidade, cantam em seu louvor o hino do trabalho!
(Os operários, em duas alas, cantam o coro do 1º ato. — Todos repetem o canto. — Desce o pano)
Horácio Nunes
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