Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O BIGAMO ASSASSINADO
Della Street, secretária particular de Perry Mason, tinha os olhos brilhantes de malícia e a mão direita oculta atrás das costas.
- Bons dias, Mr. Mason - cumprimentou.
O advogado levantou a cabeça da secretária, apercebeu-se do brilho do olhar da empregada, recostou-se na cadeira giratória e perguntou:
- Que temos agora?
- Preciso de umas informações.
- Dispare.
- Pode explicar-me o princípio em que se baseia o telefone e como é possível uma voz transformar-se em impulsos eléctricos, ser transmitida por um fio e voltar a transformar-se em sons audíveis, dando a impressão de chegar através do auscultador?
- Com certeza. Basta introduzir uma moeda na ranhura a isso destinada.
- Pode explicar-me porque é meio-dia em Nova Iorque quando são apenas nove horas em Los Angeles? - prosseguiu Della Street.
- Fácil! Os nova-iorquinos levantam-se três horas mais cedo.
- Vejamos se é capaz de responder, agora, a esta: como explica que, num dia quente, no deserto da Califórnia, seja possível olhar para as altas montanhas e vê-las cobertas de neve?
A testa de Mason começou a franzir-se...
- -Você é muito crescida para levar açoites e muito útil para ser despedida, mas se tiver a bondade de me dizer a que vem...
- Ainda há pouco o senhor se queixava de que a prática da lei tende a tornar-se rotina; de que, assim como os jornais publicam, dia após dia, notícias de assassínios, roubos e violências em que a única diferença são os nomes das pessoas neles envolvidas, assim a prática da lei tende a generalizar-se de acordo com um padrão. Ora eu pensei que podia convencê-lo, Mr. Mason, de que temos aqui algo de novo.
- E qual é a relação existente entre a neve das montanhas da Califórnia e uma novidade no negócio de leis?
Della Street tirou a mão de trás das costas e apresentou ao advogado uma brochura primorosamente impressa.
- Nesta página estão “trinta e sete perguntas que o seu filho pode fazer”. Sabe as respostas? - Virou a página e continuou: - Nesta, “quinze fenómenos físicos frequentemente mal interpretados” e nesta outra “cinquenta factos interessantes que poucas pessoas compreendem”.
- Depreendo que na última página vem um contrato, com um espaço em branco para a assinatura e um vale para o pagamento? - indagou Mason.
- Não traz contrato nenhum, mas, sim um cupão, graças ao qual a pessoa que o assinar receberá informações pormenorizadas acerca de um livrinho intitulado Factos Físicos Práticos para os Pais. Nesse mesmo cupão lê-se o nome de Gwynn Elston, a morada e o respectivo número do telefone.
- E você acha que devo assinar esse cupão, a fim de estar convenientemente habilitado a ser pai? - perguntou o advogado, em tom grave.
- Escusa de assinar, pois Miss Elston está sentada na sala de espera, a aguardar pacientemente que a receba - respondeu-lhe a secretária. - Deu-me esta brochurazinha por nela estarem indicados o seu nome e a sua morada e por não ter um cartão, quando lho pedi.
- Bom, creio que terá de dizer a Miss Elston que não estou interessado em... Deixe ver... - Pegou na brochura e leu algumas das interessantes perguntas.- Diga-lhe que pouco se me dá saber por que motivo as baleias esguicham ao vir à superfície, certos animais hibernam e os dias são maiores no Verão do que no Inverno, assim como não me interessam as razões pelas quais a água guardada numa bilha de barro poroso é mais fresca que a conservada numa simples garrafa de vidro.
- Não se trata disso, Mr. Mason. Miss Elston não pretende vender-lhe um dos seus livrinhos; quer apenas saber se o senhor é capaz de lhe traduzir certos caracteres chineses e se um pedaço de papel amarrotado contém estricnina.
- Só isso?
- Parece que sim, de momento, embora eu creia que surgirão, possivelmente, outras coisas. Achei-a muito inquieta e enervada e, apesar da chuva, está seca como uma batatinha frita. Deve ter deixado o impermeável no automóvel... e tem umas pernas!...
- Idade?
- Na casa dos vinte e, para sua informação particular e confidencial, é um mimo! Não se trata do género espalhafatoso ou provocante, note, mas não lhe falta isto e aquilo em abundância, tem grandes olhos expressivos e uma voz que seria sedutora se não estivesse um nadinha assustada.
- E aqui estava eu, ainda não há uma hora, a queixar-me de que a prática da lei começava a descambar em rotina! Faça favor, Miss Della, mande entrar Miss Elston! É verdade, onde está o tal papel amarrotado?
- Tem-no ela na mala.
- E quer saber se contém estricnina?
Della Street acenou afirmativamente.
- Porquê?
- Alguém a tentou envenenar.
- Uma esposa ciumenta, talvez?
- Aparentemente, foi o marido da sua melhor amiga.
- Supõe que existe alguma possibilidade de esse caso possuir a décima parte do interesse de que o tenta revestir? - perguntou Mason, muito sério.
- Não sei porquê, tenho o pressentimento de que ainda é mais interessante, embora confesse que tentei enfeitá-lo um bocadinho.
- Vejamos, então, Miss Elston.
Della Street acenou com a cabeça e dirigiu-se tranquilamente para a sala de espera.
Depois de Della Street proceder às apresentações, Gwynn Elston sentou-se, endireitou a saia, fingiu que a puxava para cima dos joelhos, sorriu ao advogado e declarou:
- Mr. Mason, a fim de compreender o meu problema torna-se necessário que saiba alguma coisa acerca do meu trabalho.
Perry Mason acenou com a cabeça, gravemente.
- Distribuo uma série de livros destinados a ensinar aos pais as respostas a perguntas que os filhos costumam fazer. Os livros são tão inteligentemente concebidos que não existe, na realidade, uma idade limite; contêm não só respostas a perguntas próprias das crianças pequenas, como também informações que até os adultos...
Interrompeu-se, com uma gargalhadinha, e prosseguiu:
- Desculpe-me, Mr. Mason, mas já repeti isto tantas vezes que quando começo a falar no assunto não sou capaz de resumir... Estava a impingir-lhe aquilo que, no comércio, é conhecido pela “introdução enlatada”... Enfim, de qualquer modo, já pode fazer uma ideia.
- Lamento, Miss Elston, mas não estou comprador de...
- Meu Deus, nem eu pretendo vender-lhe nada! Eu... receio ver-me envolvida num homicídio.
- Isto é diferente. E qual vai ser o seu papel no homicídio?
- Suponho estar destinada ao que poderíamos chamar, por exemplo, pièce de résistance.
- A vítima, portanto?
Miss Elston acenou afirmativamente.
- Continue - pediu Mason.
- Lamento ter de o incomodar com tantos pormenores, mas é imprescindível que compreenda os antecedentes, pois de contrário o que tenho para lhe contar parecer-lhe-á tão tremendamente absurdo que me julgará vítima de excesso de imaginação.
O advogado inclinou a cabeça e convidou-a muda-mente a prosseguir.
- A sede proporciona-nos todo o auxílio possível para nos facilitar as vendas, encarrega-se da publicidade e obtém listas de prováveis interessados, evitando assim que desperdicemos tempo em infrutífera angariação de porta em porta. Estas listas de prováveis são-nos remetidas numa média de dez por dia, umas vezes peio correio e outras pelo telefone, e a nós compete efectuar igual número de visitas novas diárias, além de dar seguimento às negociações já iniciadas.
- Que é um provável interessado?
- Uma família com o rendimento de cerca de seis mil dólares por ano, dois ou mais filhos e pais geralmente muito jovens. São mais... enfim, mais progressistas.
Mason acenou, novamente.
- Nell Arlington é a minha melhor amiga - prosseguiu Gwynn Elston. - Casou com Felting Grimes e veio viver aqui, na cidade. Têm uma bela casa, com um quarto independente e instalações para hóspedes. Creio que o primeiro se destinava, inicialmente, a quarto de criada, pois tem lavatório e comunicação com a casa de banho do rés-do-chão. Peço-lhe que tenha paciência comigo, Mr. Mason, porque todos estes pormenores são importantes.
Perry Mason fez um gesto de assentimento e Miss Elston continuou:
- Há cerca de um ano aconteceu uma fatalidade na minha vida e fiquei sentimentalmente desequilibrada e financeiramente falida... A Nell insistiu em que fosse para sua casa umas semanas, até as coisas se recomporem, e ainda hoje lá estou. A minha amiga é uma rapariga cheia de ideias e de iniciativa e foi graças a ela que respondi a um anúncio e me tornei vendedora desta companhia livreira.
- Como se entendeu com o marido de Nell? - perguntou o advogado.
- Aí é que bate o ponto, Mr. Mason... Ao princípio tolerou-me, evidentemente, mas depois começou a perseguir-me com olho guloso. Como compreende, na intimidade de uma casa daquelas não lhe faltaram oportunidades de me ver quando... bem, quando não estava completamente vestida.
- Ajudou a criar essas oportunidades?
- Meu Deus, não!- protestou, escandalizada.- Detesto o indivíduo.
- Mas as coisas não ficaram por aí, pois não?
- Não.
- Que aconteceu?
- Teve atrevimentos.
- E a senhora quis vir-se embora?
- Quis.
- E depois?
- A Nell riu-se de mim. Disse saber muito bem que o marido tomara liberdades, mas todos os homens faziam o mesmo com as mulheres atraentes e ela confiava na minha amizade e estava certa de que eu o saberia pôr no seu lugar.
- E pôs?
- Pus, mas fui talvez demasiado brusca, o egozinho de Felting Grimes sentiu-se ofendido e o cavalheiro amuou e iniciou uma série de perseguiçõezinhas mesquinhas, para se ver livre de mim.
- E agora, suponho, está prestes a ser bem sucedido e...
- Não, Mr. Mason, não! Nem em cem anos lhe passaria pela cabeça a verdade.
- Como não disponho de cem anos e tenho outra entrevista daqui a meia hora, agradeço-lhe que me esclareça.
- Felting Grimes passa muito tempo fora de casa, pois tem uns negócios quaisquer. A Nell foi sempre muito vaga a esse respeito, creio que pela simples razão de ele também nunca lhe ter dito ao certo em que se ocupa. Seja como for, viaja muito, faz investimentos e parece ter sempre muito dinheiro, mas ignoro em que trabalha, exactamente.
- Perguntou-lhe?
- Não, mas perguntei à Nell.
- E que lhe respondeu ela?
- Riu-se e disse-me não estar para se ralar com minúcias dessas, pois quando Felt estava em casa só queria companhia feminina, torta de maçã com muito açúcar e canela e não se preocupar com negócios.
- A sua amiga Nell parece muito original - comentou Mason.
- E é. Creio ter-lhe dado pormenores suficientes para lhe permitir compreender o que lhe vou dizer... Na lista dos “prováveis” que ontem me mandaram vinha o nome de Frankline Gillett... Sabe onde fica a propriedade de George Belding Baxter, perto de Vista dei Mesa?
- Mais ou menos.
- Frankline Gillett mora em Tribly Way, cerca de um quarto de milha depois da propriedade de Baxter, num novo bairro suburbano.
- Foi, pois, visitar Frankline Gillett...
- Mrs. Gillett - corrigiu Miss Elston. - Tentamos orientar os nossos horários de maneira a falarmos primeiro com a dona da casa e, frequentemente, nunca chegamos, sequer, a ver o chefe da família. Compreende, um dos requisitos do nosso emprego é possuir personalidade e... bem, excelente figura. Às vezes a dona da casa gosta de nos apresentar ao marido, quando a transacção está prestes a concluir-se, mas muitas vezes prefere expor-lhe ela própria o assunto e dar-nos a resposta no dia seguinte. Desta maneira nunca conhecemos o marido.
- E a mulher não corre o perigo de arranjar uma rival - comentou Mason, prazenteiro.
- De certo modo... - admitiu Gwynn Elston, com um sorriso de constrangimento. - Na realidade, temos instruções para nos vestirmos com mais modéstia quando temos uma entrevista à noite, na presença do marido. De dia devemos vestir-nos... bem, vistosamente, pois, na opinião da companhia, as mulheres gostam de falar com outras mulheres que possuem aquilo a que se chama personalidade brilhante, encanto e pernas bonitas... Mas, Mr. Mason, estou a ser demasiado minuciosa e sei que tem muito mais que fazer. Eis, portanto, o que interessa: Frankline Gillett é, na verdade, Felting Grimes.
Mason ergueu as sobrancelhas, surpreendido, e perguntou:
- Como sabe?
- Para começar, no meio da minha conversa com Mrs. Gillett a porta abriu-se e o filho dela entrou a correr na sala...
- Que idade tem o garoto?
- Sete anos.
- Continue.
- O rapaz era a imagem perfeita de Feiting Grimes. Nunca me senti tão surpreendida na minha vida. Tentei falar e não consegui e, por fim, tive a presença de espírito suficiente para improvisar um ataque de tosse.
- Muitas vezes as semelhanças surpreendentes não passam de pura coincidência - lembrou Mason.
- Compreendo, Mr. Mason, mas acredite que não o incomodaria se não tivesse a certeza do que digo e se não tivessem surgido outras complicações.
- Muito bem; ouçamos então o resto da história.
- Vencido o ataque de tosse, insinuei-me nas boas graças do pequeno Frankline e comecei a fazer-lhe perguntas. Interroguei-o acerca do pai e perguntei-lhe se fora soldado... Compreende, Felt - isto é, Feiting Grimes- esteve na Força Aérea e serviu na China Nacionalista, e o pequeno confirmou-me exactamente o que eu já sabia a esse respeito. Perguntei-lhe, depois, se tinha uma fotografia do paizinho, o garoto foi buscá-la... e era, de facto, uma fotografia de Feiting Grimes, tirada na China. Creio que tive pouco tacto e fiz demasiadas perguntas, pois Mrs. Giilett mandou o filho embora, dizendo-lhe que fosse brincar.
- Disse a Mrs. Gillett alguma coisa que a levasse a crer que reconhecera a fotografia?
- Evidentemente que não! Mudei de assunto e dediquei toda a minha atenção à venda, e em boa hora, pois ela mandou-me voltar esta noite. No entanto, na fotografia que o petiz me mostrou via-se um hangar com alguns caracteres chineses. Fixei os quatro maiores e, mais tarde, consegui reproduzi-los, creio que aproximadamente. Aqui estão. Como Feiting Grimes esteve na China ao serviço da Força Aérea, se conseguir traduzir esses caracteres talvez fiquemos a saber o nome da base, o que me dará provas suficientes para apresentar à Nell, se a isso me vir obrigada.
- Quando entrevistou Mrs. Gillett?
- Ontem à tarde.
- E ela mandou-a voltar esta noite, em virtude de o marido estar em casa?
- Não sei, Mr. Mason. Perguntou-me apenas se podia voltar hoje, às oito e meia da noite.
- Muito bem. Falemos agora do veneno.
- Ontem à noite voltei para casa da Nell e percebi logo que o marido estava desconfiado. Perguntou-me como iam os negócios, quantas visitas fizera, que tais os “prováveis” e, por fim, perguntou-me os nomes deles.
- Mas não precisava de lhe dizer que visitou os Gilletts - observou o advogado.
- O mal é que... disse, Mr. Mason. Como já expliquei, umas vezes a companhia manda pelo correio a lista dos “prováveis” e outras enumera-os pelo telefone. Costumo telefonar à minha amiga quando acabo uma lista, para saber se chegou outra, e, em caso afirmativo, ela lê-me os nomes. Quando a companhia telefona e pergunta por mim, ela limita-se a dizer que é Miss Elston e aponta a lista que lhe transmitem.
- Que aconteceu desta vez?
- Deve ter deixado a lista em qualquer lado onde Felt a viu, de maneira que ele sabia, ou podia saber, que eu estivera em casa dos Gilletts. Compreende agora os apuros em que me encontrei? Se mentisse e dissesse que não fora lá, perceberia que estava desconfiada. Só me restava, por isso, proceder como se o nome de Frankline Gillett significasse tanto para mim como os dos outros “prováveis”.
- E foi o que fez?
Acenou afirmativamente.
- E depois?
- Parece tudo muito bem, mas quando, à noite, ele me preparou o habitual gim com água tónica, achei-o tão amargo que inventei um pretexto para ir ao quarto, deitei o líquido no lavatório, lavei o copo e enchi-o até meio de água simples. Depois voltei para a sala e bebi a água como se fosse gim. Mais tarde, quando me fui deitar, estava tão preocupada com o caso que passei o dedo pelo lavatório, provei e achei o líquido amargo como da primeira vez. Peguei então num bocado de papel e limpei a bacia. Queria saber... queria saber se tem estricnina.
- E se se verificar que tem, de facto?
- Ficarei a saber que... Meu Deus, Mr. Mason, o senhor está a perceber tão bem como eu o que isso significará! O homem está desesperado; não quer que Nell descubra a sua vida dupla e não hesitará em matar-me para não ser desmascarado. Há um não sei quê de sinistro em Felting Grimes... A Nell ama-o ou, pelo menos, pensa que o ama, e é feliz. Suponho que se entendem bem, sexualmente, e a Nell é uma rapariga tolerante, não faz perguntas, não é ciumenta e não tem nenhum... enfim, nenhum sintoma de frustração.
- Filhos? - inquiriu Mason.
- Não têm, mas... Numa situação daquelas, pode imaginar o que aconteceria. A Nell podia arruiná-lo por completo. Na realidade, se se descobrisse... bem, suponho que seria preso, não é verdade?
- Qual seria a esposa número um e qual seria a esposa bígama?
- Não sei.
- Mas sabe que o pequeno Frankline Gillett tem sete anos e...
- Isso não quer dizer nada, Mr. Mason. Creio até ser essa uma das razões que levou Mrs. Gillett a mandá-lo sair da sala quando comecei a fazer perguntas. Podia ter havido um romance entre eles e o Frankie ser... enfim, ser ilegítimo. Depois talvez ela convencesse Felting a casar... Oh, meu Deus, tudo isto me parece tão confuso!
- Dadas as circunstâncias, acho que devemos esclarecer tudo muito bem e, entretanto, aconselho-a a não voltar para o seu quarto, enquanto...
- Mas tenho de voltar, Mr. Mason, pois de contrário a Nell teria algum ataque. Chamaria a Polícia e... Não, creia que não me acontecerá nada. Felting Grimes partiu esta manhã para uma das suas viagens de negócios e só voltará daqui a uma semana. Ficaremos só as duas, a Nell e eu.
- Quer dizer que, esta noite, Frankline Gillett pode regressar de uma das suas viagens de negócios - comentou Mason.
Miss Elston fez um gesto afirmativo.
- Tenciona ir a casa dos Gilletts?
- Tenho de ir, Mr. Mason, tenho de levar tudo até ao fim e... Não compreende que é a minha única possibilidade? Se proceder exactamente como procederia se não desconfiasse de nada, talvez beneficie de uma espécie de adiamento.
- Não crê, então, que encontrará o marido esta noite?
- Não. Se ele regressar a casa e Mrs. Gillett lhe disser que espera a minha visita, inventará uma desculpa para sair. Não permitirá, com certeza, que o veja e reconheça, a não ser que esteja decidido a matar-me ali mesmo.
- O que é muitíssimo improvável - declarou Mason.
- Exactamente, Mr. Mason. Estou convencida de que não existe a mínima possibilidade de ele estar presente. Se for boa actriz e conseguir proceder como se se tratasse apenas de uma entrevista de negócios, de um “provável” que não resultou, estarei salva.
- Mas não quer, por certo, que a sua amiga continue a viver como até agora?
- Oh, não! Nem quero continuar a viver em sua casa muito tempo depois do regresso de Felting Gri-mes... a não ser que a estricnina seja imaginação minha.
- Assim que tiver a certeza informará a sua amiga?
- Informarei, mas tenho de ter a certeza absoluta, Mr. Mason.
O advogado aquiesceu, com um aceno de cabeça.
- Nessa altura não terei outro remédio senão dizer à Nell - prosseguiu Gwynn Elston-; mas sabe Deus o que ela fará. É muito capaz de se calar e de continuar a viver com ele como sua mulher das horas vagas. Mrs. Gillett é que pintará a manta.
- Sim?
- Tenho a certeza. É uma daquelas pessoas obstinadas, de lábios finos, que se mostram delicadas e corteses de uma maneira fria e formal. Não se parece nada com a Nell; a minha amiga é uma rapariga tolerante e despreocupada, que tem ideias. Diz, por exemplo, que se uma mulher não é capaz de satisfazer o marido, outra qualquer o fará.
- E Mrs. Gillett não pertence a esse tipo?
- Nada mesmo! - redarguiu Gwynn, abanando veementemente a cabeça. - Creia, depois de uma pessoa bater a tantas portas como eu tenho batido, aprende a conhecer as mulheres, a avaliá-las.
- Muito bem, se está disposta a comparecer à entrevista desta noite, compareça, mas lembre-se disto: não coma nem beba nada enquanto estiver nessa casa. Se o marido estiver presente e for, de facto, Felting Grimes, não faça cenas nem acusações, não diga nada que leve Mrs. Gillett a saber que é mulher de um bígamo. Quando ela a apresentar ao marido, não deixe transparecer que já o conhece. No entanto, entregue-lhe este cartão meu e diga-lhe: “Conhece Perry Mason, o advogado? Estive a falar com ele esta manhã e julga conhecê-lo. Disse-me que talvez fosse boa ideia o senhor comunicar com ele.”
- Acha que ele fará isso?
- Talvez sim, talvez não, mas dar-lhe-á a perceber, pelo menos, que a senhora me disse tudo e que não ganhará nada em tentar liquidá-la.
- Oh, sim, compreendo! Parece tudo tão terrivelmente teatral e impossível, dito assim, no ambiente seguro de um escritório de advogado, entre livros de leis - sorriu a Della Street-, uma secretária simpática e todas as coisas inerentes à administração da justiça! Até sinto vontade de me beliscar, para ver se não estou a sonhar, e sinto-me idiota por o ter incomodado com toda esta história.
- Não me incomoda nada - afirmou Mason. - Ficaria surpreendida se conhecesse as estranhas histórias que têm sido contadas entre as quatro paredes deste escritório! Algumas pareciam absolutamente fantásticas. Tem a certeza de que quer comparecer à entrevista desta noite?
- Tenho de comparecer, Mr. Mason, pois de contrário Felting Grimes perceberia que suspeitei de qualquer coisa. Aliás tenho a certeza de que nada me acontecerá, pelo menos enquanto Felting Grimes não regressar a casa. E, depois, também estarei em segurança, se souber representar esta noite. No entanto, não é a minha segurança que me preocupa. Sou amiga da Nell e... bem, fará o que entender, mas tem de tomar conhecimento dos factos. Sinto-me hipócrita por viver com ela e não lhe dizer a verdade, guardar segredo.
- Têm sido muito íntimas?
- Muito. Vivemos no mesmo quarto e costumávamos contar tudo uma à outra, acerca dos diversos rapazes que se mostravam interessados.
- E dos que não se mostravam?
Gwynn Elston deu uma gargalhadinha gutural e afirmou:
- Não houve nenhum que não se interessasse!
- Muito bem, deixe a morada e o número do telefone a Della Street e leve o meu cartão. No caso de desejar comunicar comigo esta noite, tem aqui também o número do telefone da Agência de Detectives Drake, que fica no mesmo andar deste escritório. Paul Drake encarrega-se de todo o meu trabalho de investigação e a sua agência está aberta vinte e quatro horas por dia. Deixarei instruções para comunicarem comigo, se a senhora telefonar esta noite.
- É muito amável. A respeito... a respeito de sinal?
Mason apontou a pasta que Miss Elston trazia consigo e perguntou-lhe:
- Quanto ganha com isso?
- Muito, às vezes. Tiro uma média de seiscentos a setecentos dólares por mês, estou a pagar algumas dívidas antigas - dei um grande trambolhão, financeiramente, como já disse - e tenho cerca de setecentos dólares no banco. Acha bem cem dólares como sinal?
- Cinco chegam-respondeu o advogado, sorridente - e pode pagar com um cheque. Ficará automaticamente minha cliente e poderemos falar da questão dos honorários depois, quando soubermos alguma coisa de positivo. Entretanto, deixe-me ficar o tal bocado de papel. Meta-o num sobrescrito, feche-o e escreva o seu nome por fora, para ficar identificado.
Della Street estendeu a Gwynn Elston um sobrescrito e esta seguiu as instruções de Mason.
- Assine também no verso, por cima do fecho - recomendou-lhe o advogado.
Miss Elston obedeceu, mais uma vez, e depois comentou: - Meu Deus, Mr. Mason, está a proceder como se isto fosse prova de um caso criminal!
- Pode vir a ser.
A rapariga abanou a cabeça e declarou:
- Não intentarei nenhuma acção contra ele, mesmo que tenha procurado assassinar-me. Quero apenas... bem, quero saber o que me ameaça.
- É uma rapariga corajosa, Miss Elston.
Gwynn abriu o livro de cheques, preencheu um de cinco dólares e estendeu-o a Della Street. Em seguida levantou-se, endireitou cuidadosamente a saia nos quadris, sorriu ao advogado e afirmou:
- Temos de ser corajosas na minha profissão, Mr. Mason. Mantê-lo-ei ao corrente do que se passar.
Della Street conduziu-a à porta do escritório e voltou para junto do advogado.
- Telefonemos ao Paul Drake e alertemo-lo, Della - disse-lhe Perry Mason. - Pediremos a John Downey, o toxicólogo, que dê uma vista de olhos a esse papel, para sabermos se o gosto amargo foi, ou não, imaginação. O Paul que mande um empregado ao laboratório do Downey.
- Acha que Felting Grimes seria capaz de uma tentativa tão grosseira?
- Nunca se sabe - redarguiu o advogado. - Encon-tramo-nos perante um indivíduo que representa uma incógnita. Temos de descobrir muitas coisas acerca dessa incógnita, e de as descobrir depressa.
- Quer que o Paul Drake inicie investigações acerca de Frankline Gillett?
- Isso equivaleria a comprometer a nossa cliente, Della; o Paul correria o risco de denunciar a sua pista. Limitar-nos-emos a deixar correr o marfim, até esta noite. Não sei porquê, tenho a impressão de que Gwynn Elston é muito competente de olhar por si. Acho que é... bem, que sabe o que faz.
- E - redarguiu Della Street, a sorrir - não censura Felting Grimes por ter sido atrevido...
- Sou uma pessoa tolerante, como a Nell - afirmou o advogado, também sorridente.
- Reparei na maneira como a olhou, quando ela saiu - comentou Della Street.
- Você tinha de reparar! Bem, mas ligue para o Drake e veja se o Downey arranja um relatório rápido, acerca do conteúdo de estricnina. Convém recomendar-lhe que não gaste a amostra toda, pois precisamos de parte dela como prova.
Às quatro e meia Della Street atendeu o telefone e pediu:
- Um momento, por favor. - Depois arqueou as sobrancelhas e dirigiu-se a Perry Mason: - O Dr. Dow-ney quer falar consigo.
O advogado levantou o auscultador do seu telefone e disse:
- Olá, John. Aqui Perry Mason. Que encontrou?
- Recebi do Paul Drake um sobrescrito com o nome de Gwynn Elston escrito na face e no verso, por cima do fecho. Abri o sobrescrito e encontrei um pedaço de papel amarrotado, do qual retirei cerca de um terço, que submeti a exame de pesquisa de estricnina.
- Que encontrou? - repetiu o advogado.
- Estricnina.
- Em que dose?
- Um pouco mais que vestígios. Não chega para uma medição exacta, mas o papel contém, efectivamente, estricnina.
- Muito bem. Tenha o cuidado de conservar o resto do papel no sobrescrito original, de meter este noutro sobrescrito fechado, de guardar tudo no cofre e de estar pronto a depor, se for preciso.
- Mas que se passa? - perguntou Downey.
- Ainda não sei - confessou Mason.
- Receava dar-lhe más notícias, pois você, geralmente, actua como advogado de defesa.
- Este caso é um pouco diferente; tento proteger alguém.
- Se se tratar de Gwynn Elston aconselho-o a protegê-la bem, pois não há dúvida de que alguém utilizou estricnina, onde quer que ela arranjou a amostra.
- Obrigado - agradeceu Mason.- Não se esqueça de guardar essa prova em local onde não possa ser contaminada e de maneira a poder identificá-la, se for preciso.
Mason desligou e disse à secretária:
- Pronto, Della, não restam dúvidas. Temos de estar a postos, esta noite. Telefone ao Paul e peça-lhe que venha cá.
Pouco depois Drake batia de maneira especial à porta do escritório de Perry Mason e Della Street conduzia-o à presença do advogado.
- Olá, beleza - cumprimentou-a o detective, que a envolveu num olhar apreciador e, depois, se refestelou na poltrona, na sua posição favorita, sorriu a Perry Mason e disse: - Dispare.
- Esta noite espero uma chamada de emergência, Paul.
- Faz alguma ideia acerca da hora?
- Suponho que será entre as oito e meia e as nove e meia e que a fará uma jovem chamada Gwynn Elston.
- Esse era o nome escrito no sobrescrito que o meu empregado levou ao laboratório do Dr. Downey - comentou Drake.
- Para sua informação, Drake, o sobrescrito continha um pedaço de papel no qual foram encontrados vestígios muito definidos de estricnina.
- Ah! - exclamou Paul, que após um momento indagou:- Que tal a pequena, Perry?
Della Street levantou as mãos à altura dos ombros, com as palmas viradas uma para a outra, e desceu-as em seguida numa série de curvas ondulantes.
- Nada menos, hem? - comentou o detective.
- Mais ainda! - redarguiu Della.
- Com os diabos, Perry, calham-lhe sempre exemplares de categoria! - lamentou-se Drake. - A mim, se uma mulher me chama para seguir alguém ou investigar aiguma coisa, é sempre uma esgrouviada de peito chato, com alucinações, ilusões e frustrações, ou então uma saca de batatas. Mas as garotas que você representa têm estofo, são agradáveis à vista e...
- E você acaba sempre por entrar em cena. Por isso, acabe com a lamúria - interrompeu-o Mason.- Eis o que pretendo de si: que esteja no escritório das oito em diante, que tenha o depósito do carro cheio de gasolina e que mantenha de prevenção pelo menos um homem que seja bom detective, desempenado e vigoroso, com força nos punhos e experiência, capaz de se haver com uma situação se ela se tornar feia e formos obrigados a recorrer a meios violentos.
- E teremos de recorrer a meios violentos? - inquiriu Drake.
- Não sei.
- Onde o encontrarei, se for preciso?
- Exactamente às oito e meia estarei a jantar com Della no Hollywood Brown Derby - respondeu-lhe Mason. - Poderá encontrar-nos lá.
- A história repete-se! - exclamou o detective, sorrindo à secretária.-Eu terei de estar no escritório, a fim de atender o telefone, e se a fome apertar serei obrigado a contentar-me com sanduíches e café; você e o Perry estarão no Brown Derby, a debicar uma das especialidades da casa.
- A estratégia justifica-se por me colocar, e à Della, algumas milhas mais perto do local da possível actividade. Pode tornar-se necessário chegar depressa à cena da acção e, nessa eventualidade, queremos estar certos de que nos seguirá, com reforços. Parou de chover, mas as ruas continuam molhadas, estão previstos mais aguaceiros e não gosto de conduzir depressa em estradas húmidas.
- Parece-me tudo muito misterioso - comentou Drake.
- E é.
- Não tenciona dizer-me mais nada?
- Não posso. Pelo menos por agora, Paul.
- Está bem - redarguiu o detective, resignado.- Actuarei às cegas. Mas tenho de conhecer essa Gwynn Elston, Perry.
- Conhecerá - prometeu-lhe Mason.
Drake levantou-se sem esforço da cadeira, piscou o olho a Della Street e saiu do escritório.
- Não crê que aconteça alguma coisa antes das oito e meia? - perguntou Della ao advogado.
Perry Mason abanou a cabeça, num gesto negativo.
- É para essa hora que está marcada a entrevista com Mrs. Gillett e Felting Grimes partiu esta manhã e não estará em casa.
- Deve admitir que a pequena tem muita coragem, Perry.
O advogado aquiesceu.
- Além disso, tenho, não sei porquê, o pressentimento de que, se as coisas se puserem feias, Gwynn Elston se pode tornar uma adversária perigosa...
- Que quer dizer? - indagou Mason.
- Bem, ela não nasceu ontem.
- Que idade tem?
- Vinte e quatro ou vinte e cinco anos, mas já ouviu muitas perguntas e sabe as respostas.
- Hoje em dia, todas as sabem.
- Mas aquela rapariga é bonita e tem um não sei quê, uma espécie de... Enfim, você ouviu ela própria dizer que todos se mostram interessados por ela.
- O que aliás eu já pensava e não me admirou.
Della Street riu-se e comentou:
- Julga todos pela craveira do Paul Drake, Perry... Presumo que trabalhamos até às oito e meia?
- Até às oito. Depois saímos com bastante antecedência, para estarmos a horas no Brown Derby, à espera de uma chamada.
- Bem, se tenciona trabalhar depois de fecharmos o escritório, acho melhor tratarmos agora da contestação do processo Nelson.
Mason consultou o relógio e redarguiu:
- Encerramos agora o escritório por meia hora, para irmos beber um café, e depois tratamos da contestação.
Mason e Della Street trabalharam até às sete e quarenta e cinco. Depois o advogado fechou a pasta do volumoso processo e afastou-a de si. Della Street arrumou também o livro de apontamentos, viu as horas e disse:
- Dez minutos para empoar o nariz e tirar os impermeáveis.
Exactamente às sete horas e cinquenta e cinco minutos encerraram o escritório, dirigiram-se para o elevador e, ao passarem pelo escritório de Drake, Mason pediu à telefonista:
- Diga ao Paul que vamos a caminho do Brown Derby e que estaremos lá a partir das oito e meia.
- Deseja falar com Mr. Drake? - perguntou-lhe a empregada.
- Não é preciso, obrigado. Ficaria cheio de inveja! Diga-lhe que não se esqueça das minhas recomendações.
Ao entrar no Brown Derby às oito e vinte e cinco, em ponto, Mason disse ao maitre:
- Espero alguns telefonemas importantes, Gus. Pode mandar-me chamar depressa, assim que chegarem?
- Farei ainda melhor, Mr. Mason. Mandarei colocar um telefone na sua mesa e a telefonista fará imediatamente a ligação.
- Óptimo, Gus, obrigado.
O advogado e a secretária sentaram-se a uma mesa num dos compartimentos junto da parede, Mason de costas viradas para a sala de jantar e Della de maneira a observar quem entrava e saía. Bebeu cada um o seu cocktail e depois jantaram tranquilamente.
Eram nove horas e quinze minutos quando Mason levantou o auscultador e pediu que ligassem a Paul Drake.
- Aconteceu alguma coisa, Paul? - perguntou, assim que o detective atendeu.
- Nada. Continue à espera.
- Demorar-nos-emos aqui ainda uns vinte minutos, com os licores, e depois telefono-lhe outra vez.
Às nove horas e quarenta minutos o criado fez sinal a Perry Mason para atender o telefone.
O advogado levantou o auscultador e a telefonista perguntou-lhe:
- Mr. Mason?
- Sim.
- Tenho uma chamada para si.
Um momento depois Paul Drake informava:
- Acabo de ter notícias da sua pequena, Perry.
- Algum sarilho? - inquiriu Mason, inquieto.
- Pareceu-me alegre como uma cotovia e interessada apenas numa cavaqueira comigo. Perguntou-me onde você estava, e eu informei-a e acrescentei que podia ligar para o Derby e falar directamente consigo, se fosse preciso. Depois conversou ainda alguns minutos, acerca disto e daquilo... Homem, que voz sedutora aquela pequena tem!
- Espero que não tenha tentado marcar-lhe um encontro para mais tarde...
- Não sou assim tão grosseiro - protestou Drake - e trabalho é trabalho. Mas creio que a decepcionei, sabe? Tem aquele tipo de voz de quem está acostumada a que lhe façam a corte pelo telefone...
- Está bem, mas agora desligue - pediu o advogado.- É provável que esteja a tentar telefonar-me.
- Depois ligue para cá e diga-me se é preciso continuar à espera.
- Ligarei, mas provavelmente não será preciso. Mason desligou e, não decorrera ainda um minuto, o criado fez-lhe novamente sinal.
- É Mr. Perry Mason, o advogado? - perguntou-lhe a voz de Gwynn Elston, mal levantou o auscultador.
- Exactamente.
- Fala Gwynn, Mr. Mason.
- Onde está?
- Estou numa estação de serviço do cruzamento entre Burbank e Chatsworth. Há aqui uma pequena povoação, chamada Vista dei Mesa. Posso indicar-lhe o número, se quiser.
- Isso agora não importa, o que me interessa saber é como correram as coisas.
- Correu tudo bem - afirmou, triunfante. - Saí-me às mil maravilhas e ninguém suspeita de nada.
- O marido não estava?
- Claro que não. Mrs. Gillett disse-me que ele se demorara e que não me podia atender, mas que tinham chegado à conclusão de que lhes era impossível ser-me agradáveis, nesta altura, em virtude de terem feito certas despesas. Respondi-lhe que lamentava muito, não tentei bisbilhotar mais, saí e ela não ficou nada desconfiada. Tenho a certeza de que representei muito bem o meu papel. Demorei-me quase uma hora, a tentar convencê-la da utilidade de me consultar se, mais tarde, decidissem que podiam suportar a despesa; é o que costumamos fazer em tais casos. Foi muito simpática comigo.
- Não desconfiou?
- Absolutamente nada. Sabe o que acontece quando impingimos uma grande mentirola, não sabe? Há qualquer coisa que nos diz quando a engolem, com isca, anzol e linha, e sentimos uma estranha sensação quando não pega. É nessas alturas que o mentiroso amador tenta falar depressa, para disfarçar os pontos fracos, e se mete em sarilhos por falar de mais...
- Pelo que diz, deve ser uma mentirosa consumada - observou Mason.
- E sou! - redarguiu, com uma das suas gargalha-dinhas guturais. - Ficaria surpreendido se soubesse quantas vezes uma rapariga tem de mentir neste mundo, Mr. Mason.
- Seja. Tem a certeza de que não há novidade? Volta para o seu quarto?
- Volto.
- Tenho uma notícia a dar-lhe: a amostra de papel que me deixou deu reacção positiva.
Gwynn Elston esteve calada durante longos segundos e por fim confessou:
- Tinha quase a certeza de que daria. Já traduziu os caracteres chineses?
- Ainda não. A estricnina modifica os seus planos?
- Assusta-me. Agora sei que espécie de indivíduo é Felting Grimes. Alguém devia matá-lo, a e/e; seria uma boa obra.
- Não fale assim - aconselhou-lhe o advogado.
- Não posso deixar de falar, e com sinceridade. Ouça, Mr. Perry Mason, tenho umas continhas a ajustar consigo...
- De que se trata?
- Julgava que combináramos que deixaria o assunto inteiramente entregue a mim...
- E então?
- Então, não é responsável pelo polícia que estava à minha espera ao portão da propriedade de Baxter?
- Não. Diga-me o que se passou.
- Ora, deixe-se disso! Escusa de fingir, comigo; o indivíduo era da Agência de Detectives Drake e estava lá para me proteger.
- Descreva-mo - pediu Mason, olhando para Della e afastando um pouco o auscultador do ouvido, para que a secretária se inclinasse para a frente e pudesse ouvir também.
- É um homem muito atraente e muito, muito simpático. Confesso que não me custaria muito deixar-me enfeitiçar... Fingiu que precisava de ajuda, mas não me enganou, claro; percebi que o seu objectivo era proteger-me. Quis convencer-me de que estivera à chuva, mas não estava nada molhada.
- Onde o encontrou? Na residência dos Gilletts?
- Não; encontrei-o junto do portão da propriedade de Baxter, com um pneu furado. O singular é que o sobressalente estava nas mesmas condições... Queria chegar a uma estação de serviço, para mandar reparar o furo.
- E você parou e falou com ele?
- Obrigou-me a parar, com uma lanterna eléctrica, e depois mostrou-me o distintivo e disse-me que era polícia, estava em apuros e queria que o levasse à povoação de Vista dei Mesa. É donde estou a telefonar, como já expliquei.
- Deu-lhe uma boleia? - indagou Mason.
- Dei, até à estação de serviço, donde estou a falar. Ele está a combinar com o empregado, para lhe irem buscar o automóvel.
- E você, que tenciona fazer?
- A não ser que me decida a consentir que este simpático detective me leve a qualquer lado, vou para casa. Digo à Nell que me dói a cabeça e meto-me na cama. Se amanhã de manhã dispuser de alguns momentos para me atender, gostava de discutir toda esta história consigo.
- Combinado, falaremos amanhã - concordou o advogado. - Mas agora está bem, não se sente preocupada?
- Estou perfeitamente.
- Permita-me um conselho, Gwynn: não saia esta noite com ninguém. Quando chegar a casa, converse com a sua amiga e deite-se. Se Felting Grimes lá estiver quando você chegar, ou se aparecer depois, saia imediatamente. Meta-se no automóvel, dirija-se para um motel qualquer e telefone para a Agência de Detectives Drake assim que se instalar. Compreendeu bem?
- Compreendi, Mr. Mason. Aliás já decidira proceder exactamente assim, se fosse necessário. Mas não será, pois o Felt não estará em casa.
- Como sabe que não estará?
- Tenho a certeza; partiu para uma das suas viagens.
- Quanto tempo costumam durar?
- Em geral, cerca de uma semana, mas nunca se sabe. Às vezes regressa inesperadamente.
- Esta noite pode ser uma das vezes em que regresse inesperadamente - lembrou Mason. - Espero-a amanhã de manhã no meu escritório.
- A que horas?
Mason consultou Della Street com a vista e esta franziu a testa e tentou recordar as entrevistas marcadas para a manhã seguinte. Por fim escreveu na toalha da mesa, com o indicador, dez e meia.
- Convém-lhe às dez e meia? - perguntou Mason a Gwynn Elston.
- Dez e meia? Pois sim, Mr. Mason, lá estarei.
- Óptimo. Esperarei por si e discutiremos o caso. Depois de a rapariga desligar, o advogado pediu à telefonista o número do escritório de Paul Drake.
- Paul - perguntou, mal o detective atendeu -, não mandou um dos seus homens para lá, a fim de não perder de vista a minha cliente, pois não?
- Para lá? Para onde?
- Para a propriedade de George Belding Baxter, em Vista dei Mesa.
- Não, homem, nunca ouvi sequer falar nessa terra! Limitei-me a seguir as suas instruções e tenho aqui no escritório um homem armado e equipado, à espera do que der e vier. Porquê?
- Suponho que se trata de simples coincidência - murmurou Mason. - Está bem, Paul, pode dar a noite por finda. Mas remomende à sua telefonista que me informe imediatamente se Gwynn Elston telefonar. Creio que não há novidade, mas nunca fiando.
- Combinado. Posso mandar embora o detective?
- Pois sim, mande-o para casa não precisamos de valentões...
Desligou e disse a Della Street:
- Parece-me que podemos também dar por findo o dia. Creio que a nossa pequena está em segurança, por esta noite.
- Não sei porquê, mas tenho o pressentimento de que a nossa pequena saberia defender-se muito bem, se fosse preciso - comentou Della Street.
- Provavelmente, mas suponho que não será preciso. Vamos.
- A vendedora de livros, de personalidade esfusiante, parece estar cinco minutos atrasada - observou Della Street às dez horas e trinta e cinco minutos.
- Já cá devia estar, já - redarguiu Mason, de testa franzida.-Mas creio que não se sente tão preocupada, agora que o pior já passou.
- Podia aproveitar o tempo ditando-me a resposta àquelas duas cartas que chegaram esta manhã - sugeriu a secretária.
- Boa ideia.
As cartas estavam respondidas às dez horas e quarenta e cinco minutos. O advogado consultou o relógio, olhou para a secretária e franziu novamente a testa.
- Qual é o endereço da casa onde ela mora, Della?
- Felting Grimes, 367 Mandale Drive.
- Têm telefone?
- Têm e eu anotei o número.
- Ligue para lá - pediu Mason. - Vejamos qual é a história, desta vez.
Della efectuou a ligação e, passado um momento, perguntou:
- Posso falar com Gwynn Elston? Suponho que mora aí, não mora?... Ah, obrigada!... Quem fala, por favor?... Mais uma vez muito obrigada, Mrs. Grimes... Não, não tem importância, não vale a pena deixar recado. Sou uma amiga, apenas... Sim, tentarei falar com ela mais tarde. Obrigada.
Della Street desligou antes que Mrs. Grimes dissesse mais alguma coisa, voltou-se para Mason e informou:
- Era Nella Grimes. Queria que deixasse recado e pareceu-me muito curiosa e um bocadinho insistente. Segundo me informou, Gwynn Elston saiu de casa um pouco antes das nove da manhã, mas Mrs. Grimes não sabe ao certo para onde, embora suponha que Miss Elston lhe telefonará, ainda de manhã. Acrescentou que, se quisesse deixar o número do meu telefone...
- Com mil demónios, Della, se aconteceu alguma coisa à rapariga sou capaz de bater com a cabeça pelas paredes! - exclamou Perry Mason, preocupado. - No fim de contas, pôr estricnina numa bebida...
- Lembre-se de que ela esteve em casa até às nove da manhã, ou pouco antes.
- Isso foi o que Mrs. Grimes disse. Eu...
O telefone interno tocou, na secretária de Della Street, que atendeu:
- Sim, Gertie. Está?... Só um momento. - Voltou-se para o advogado e anunciou:-A sua cliente está no escritório, sã e salva e - Della consultou o relógio - exactamente vinte minutos atrasada.
- Diga-lhe que entre... Ou melhor, vá buscá-la e diga-lhe que tenho de distribuir o meu tempo com muito cuidado e quando marco uma entrevista para determinada hora espero...
- Está bem, dar-lhe-ei a tareia verbal - interrompeu-o a secretária. - As pernas dela não me impressionarão, a mim!
Saiu do gabinete e voltou três minutos depois, com Gwynn Elston a reboque.
Mason levantou a cabeça e apercebeu-se de que Della lhe fazia qualquer sinal, pestanejando rapidamente.
- Bem - começou o advogado, voltando-se para a cliente-, para que nós...
- Miss Elston está em maus lençóis - interveio Della Street.
Mason arqueou as sobrancelhas, surpreendido, e Della continuou:
- Faça favor de se sentar, Miss Elston, e de contar a Mr. Mason o que me disse.
Ao ver o rosto pálido e transtornado de Gwynn Elston, o advogado observou:
- Presumo que Mr. Grimes regessou inesperadamente a casa.
A rapariga abanou a cabeça, tentou dizer qualquer coisa, calou-se, olhou para Della Street e murmurou:
- Nunca mais regressará a casa. Morreu.
- Morreu quem? Grimes?
Acenou afirmativamente.
- Como sabe? - indagou o advogado.
- Vi o corpo.
- Quando?
- Há cerca... há cerca de três quartos de hora.
- Um momento! Estive a falar com a mulher dele, pelo telefone, ainda não há dez minutos e ela...
- Ela não sabe nada - interrompeu-o Gwynn Elston. -Ninguém sabe. Foi assassinado.
- Matou-o você?
Gwynn abanou a cabeça.
- É melhor contar-me tudo. E não perca tempo com histerismos nem com soluços nem espere que seja eu a puxar-lhe pela língua; fale, informe-me dos factos. Onde o viu?
- Na propriedade de George Belding Baxter.
- Que foi lá fazer?
- Fui ver se descobria o polícia què me deu a arma, a noite passada.
- A arma! - exclamou Mason, perplexo. - Continue.
- Quer que lhe fale da arma ou que comece do princípio e...
- Comece do princípio e não perca tempo. Foi visitar os Gilletts; Mr. Gillett não estava em casa; Mrs. Gillett disse-lhe que nesta altura não podiam comprar os livros, por via de outras despesas que tinham; demorou-se quase uma hora... Que fez depois?
- Vim-me embora.
- Muito bem, e que aconteceu então?
- Como se deve lembrar, choveu todo o dia, choveu muito ao escurecer e depois os aguaceiros deram lugar a uma morrinha fria. Eu conduzia devagar, por esse motivo, e quando cheguei aos portões da propriedade de Baxter vi uma lanterna eléctrica a acender-se e a apagar-se, mesmo em cima dos meus olhos.
- Que fez?
- Primeiro comecei a afrouxar, mas depois lembrei-me de coisas que têm acontecido e... bem, acelerei.
- E depois?
- Um homem saltou para o meio da estrada, mesmo na minha frente, e fez incidir a luz da lanterna no pára-brisas, cegando-me. Não tive outro remédio senão parar.
- De que espécie de lanterna se tratava? Manual ou...
- Era manual, mas potente, do tipo em que montam uma lâmpada grande na bateria e...
- Está bem, parou - interrompeu-a Mason.-Que aconteceu, então?
- O automóvel do indivíduo estava parado, com a tampa do porta-bagagem levantada, e ele disse-me que tinha um pneu furado, não dispunha de macaco e precisava de ir à estação de serviço mais próxima, a fim de mandar substituir o pneu. Pediu-me que o levasse. Era simpático, mas não usava gabardina e, apesar disso, tinha o fato seco. Embora a chuva já tivesse diminuído, a verdade é que não podia estar na estrada há muito tempo e tudo parecia indicar que estivera à espera que eu aparecesse, sentado no automóvel, e que, ao ver brilhar os faróis do meu carro, se apeara e representara a sua farsazinha.
- Que fez você?
- Mantive a porta do automóvel fechada e trancada e limitei-me a baixar o vidro apenas dois ou três centímetros, para ouvir o que ele tinha a dizer. Compreende, têm-me feito propostas indecorosas de todas as maneiras e feitios e...
- Acredito, mas isso agora não interessa - interrompeu-a novamente Mason. - Baixou, portanto, o vidro dois ou três centímetros. Que aconteceu a seguir?
- Ele tirou uma carteira da algibeira, mostrou-me um distintivo, disse que era polícia e ordenou-me que abrisse. Como recusasse, riu nervosamente e disse-me: “Ouça, não posso ficar aqui toda a noite a discutir consigo. Não tenciono tomar liberdade; sou polícia. Entrego-lhe a minha arma e se lhe parecer que estou a ser atrevido poderá parar e ordenar-me que saia.”
- Que fez ele, então?
- Meteu a arma, com a coronha para a frente, pela janela, e deixou-a cair no banco.
- E você?
- Peguei-lhe, abri a porta e disse-lhe que entrasse.
- E depois?
- Depois conduzi-o à povoação de Vista dei Mesa, que fica a umas duas milhas da propriedade de Baxter. Havia uma estação de serviço aberta e ele disse-me que ia falar com o empregado, a fim de mandarem um carro consertar o seu.
- Muito bem, e que aconteceu?
- Parámos e, como o empregado estava a atender outro cliente, o meu companheiro dirigiu-se para as traseiras, na direcção das salas de espera. Foi daí que lhe telefonei.
- E depois? - insistiu Mason.
- Depois esperei, esperei, e como ele não aparecesse procurei o empregado e perguntei-lhe se tinham ido substituir o pneu. Perguntou-me a que carro me referia e eu respondi-lhe que ao do homem que estivera a falar com ele. Disse-me que me vira, de facto, chegar e um homem apear-se do automóvel e dirigir-se para as traseiras da estação de serviço, para os lados das salas de espera, mas como estava ocupado a trabalhar noutro automóvel julgara que não precisávamos de nada e não nos prestara mais atenção.
- Que fez você?
- Pedi ao homem que fosse ver na sala dos homens.
- E o seu amigo não estava lá?
Gwynn Elston abanou a cabeça.
- A seguir?
- Procurei na sala das mulheres, mas também não o encontrei. Resolvi ir para casa.
- E a arma?
- Estava no banco, ao lado do volante.
- Muito bem, foi então para casa. Agora lembre-se de que não dispomos de muito tempo e explique-me o que aconteceu.
- Quando cheguei a casa disse à Nell que tinha uma dor de cabeça terrível e que ia para a cama... Enfim, procedi exactamente como o senhor me recomendou.
- E deitou-se?
- Tentei, mas a Nell foi ao meu quarto e disse-me: “Escuta, Gwynn, não sei que se passa contigo, mas sei que te acho estranha e, para tua informação, digo-te que és muito má mentirosa. Agora senta-te e conta-me tudo, hem? Tens algum romance com o meu marido? E, se tens, trata-se de um desses casos desastrosos, capaz de provocar a quebra das nossas relações? Ou é um desses namoricos casuais, de que ambos se podem esquecer e que eu posso perdoar?”
- E você contou-lhe tudo? - indagou Mason.
- Não, não contei. Disse-lhe que não existia romance nenhum e que estava um pouco preocupada por ter encontrado um polícia que me dera a arma e, depois, se fora embora sem a levar. Mas não lhe falei nas minhas suspeitas, nem onde estivera, nem acerca do senhor.
- E ela?
- Bem, ela tentou “espremer-me”. Disse-me que não é costume dos polícias atirarem as armas para o colo das raparigas e que tinha a certeza de que o Felt andava a tramar alguma coisa a que eu não era alheia. Queria saber se ele voltara a ter atrevimentos, se eu os permitia e... Bem, falámos nestes assuntos durante muito tempo e por fim ela pareceu-me muito mais aliviada e disse-me: “Vou arranjar-te um copo de leite antes de te deitares e, depois, deito-me também.”
- Que aconteceu? - insistiu Mason.
- Bebemos o leite, conversámos mais um bocado, eu adormeci e... Enfim, embora estivesse convencida de que não conseguiria dormir, por me sentir nervosa, parece-me que nunca dormi tão bem na minha vida. Quando me levantei, esta manhã, a Nell quis continuar com o interrogatório e afirmou que quanto mais pensava na minha história do polícia e da arma mais estranha a achava e mais se convencia de que lhe escondia qualquer coisa.
- E depois?
- Fui buscar a arma, mostrei-lha e... retirámos o tambor e vimos que fora disparada uma bala.
- Uma bala?
Gwynn Elston acenou afirmativamente.
- Continue - pediu Mason.
- Não disse nada à Nell, fingi que não achava nada de extraordinário, mas decidi que seria melhor averiguar o que acontecera ao polícia e quem ele era, e o único lugar onde me pareceu que encontraria uma pista foi a propriedade de Baxter. Tudo indicava que lá estivera a tratar de qualquer caso.
- Que fez?
- Fui lá. Achei que teria tempo de ir, de me informar e de regressar a horas da nossa entrevista das dez e meia.
- Que aconteceu?
- Como o portão estava aberto, meti o carro pela alameda, guiei até à moradia e toquei a campainha. Ninguém respondeu e resolvi ir de carro até às traseiras...
- Porquê de carro? Porque não foi a pé?
- Por ter medo dos cães. Pareceu-me mais seguro estar dentro do automóvel, se houvesse algum cão de guarda.
- Está bem, prossiga.
- Dirigi-me às traseiras e, como não me agradava estacionei no meio do caminho, comecei a virar em marcha-atrás. A erva dos lados estava molhada, devido à chuva de ontem, as rodas de trás saíram do piso e um dos pneus derrapou e começou a girar quando tentei safá-lo. Parei, por isso, abri a porta, apeei-me e encaminhei-me para a casa. Foi então que vi um pé a sair da erva alta, junto de umas moitas, avancei dois passos e deparei com a perna de um homem, com calças e sapato, e reparei que a outra perna parecia dobrada para cima. Afastei os arbustos e dei comigo a olhar o rosto morto de Felting Grimes.
- Estava morto?
- Sim, e gelado.
- Tocou-lhe?
- Toquei. Inclinei-me para a frente e toquei-lhe no rosto, que estava gelado.
- Porque pensou que fora assassinado?
- Tinha um buraco de bala no peito.
- Muito bem, continue. Que fez?
- Assustei-me, corri para o automóvel e tentei arrancar. As rodas giraram um bocado em vão, mas por fim consegui voltar ao piso e sair dali para fora.
- E a arma? - inquiriu Mason.
- A esse respeito creio que perdi a cabeça. Abrandei a velocidade, quando ia a transpor os portões da propriedade de Baxter, apeei-me e atirei a arma o mais longe que consegui, para o meio de uns arbustos altos ali existentes. Depois meti-me outra vez no carro e dirigi-me para casa da Nell, a fim de lhe dizer, mas lembrei-me da minha entrevista consigo e... aqui estou.
Mason observou a cliente, depois Della Street e comentou:
- Sabe uma coisa, Gwynn? Estou a lembrar-me do que a sua amiga, Nell Grimes, disse a seu respeito.
- O quê?
- Que é uma péssima mentirosa.
A rapariga corou, começou a levantar-se, indignada, mas acabou por se sentar outra vez, muito hirta, na beira da cadeira. - Sinto-me ofendida, Mr. Mason.
- Essa sua história é...
- É verdadeira! O que me ofende é chamarem-me péssima mentirosa, pois sei mentir muito bem e, se o quisesse enganar, teria inventado uma história muito mais plausível do que esta, tão plausível que nem teria graça nenhuma. Sei que parece estranho que um polícia atirasse a arma pela janela do meu carro, para que me defendesse das suas liberdades, mas ele sabia que de outro modo não o deixaria entrar e ele tinha de entrar. Estava desesperado... Digo-lhe a verdade, creia.
- Está bem - aquiesceu Mason. - É minha cliente e tenho de partir do princípio de que me diz a verdade. Advirto-a, no entanto, de que mentir-me equivale a comprar um bilhete de ida para a câmara de gás. Compreende? O erro mais caro que alguém pode cometer é mentir a um advogado; é tão prejudicial como um doente mentir ao seu médico. Repito: compreende?
Gwynn Elston acenou afirmativamente.
- Não tenho tempo de a interrogar nem de tentar confirmar as suas declarações; tenho de representar de ouvido e de proceder depressa, partindo do princípio de que me disse a verdade. Depois não poderei voltar atrás; serei obrigado a ir até ao fim, baseado na mesma presunção. Se me mentiu, tudo quanto eu fizer será como um boomerang, isto é, tudo quanto tentar para a proteger redundará, precisamente, em seu prejuízo. Compreende?
Elston acenou novamente que sim.
- Muito bem. A companhia telefona-lhe, diariamente, uma lista de “prováveis”...
- Às vezes mandam-ma pelo correio.
- Tem alguns “prováveis” para visitar, hoje?
- Com certeza; tenho o dia todo à minha frente.
- Então saia e vá visitá-los - disse-lhe Mason.
- Mas não devo... não devo comunicar que encontrei o corpo e...
- Proceda como lhe recomendei: saia e comece a visitar os seus clientes.
- Mas... e o corpo?
- Compete-lhe comunicar o achado do corpo e já o fez; comunicou-mo a mim, que sou seu advogado e tratarei do que for preciso. Compreenda, no entanto, que não deve fazer nada que se assemelhe a uma fuga; trate da sua vida como normalmente e...
- Também não digo nada à Nell?
- Não diz absolutamente a ninguém - redarguiu-lhe Mason. - Em virtude das circunstâncias peculiares que rodeiam a morte, da sua descoberta da possibilidade de Nell Grimes ser esposa bígama e de Felt Grimes ser, na realidade, Frankline Gillett e Mrs. Gillett a primeira e, portanto, legítima esposa, deve entregar-se nas minhas mãos e seguir as minhas instruções. Ora as minhas instruções são que saia e comece a vender livros, que não telefone a Nel! nem comunique com ninguém até ao fim do dia. Siga a rotina habitual e vá para casa quando terminar o trabalho.
- Como se nada tivesse acontecido?
- Como se nada tivesse acontecido. Se ninguém comunicar consigo até essa hora, encontrar-me-ei à sua espera em casa dos Grimes ou mandarei alguém em meu lugar. Agora vá-se embora.
Gwynn Elston levantou-se, endireitou maquinalmente a saia, encaminhou-se para a porta, parou, sorriu a Perry Mason por cima do ombro e declarou:
- Repito-lhe, Mr. Mason, que lhe disse a verdade-absoluta. Se mentisse, seria muito mais artística.
- Esperemos que sim - redarguiu-lhe o advogada e ela desandou pela porta fora.
Mason pediu então a Della Street:
- Vá ao escritório do Paul Drake e diga-lhe que precisamos de saber o nome do polícia cujo carro estacionou ontem à noite junto dos portões da propriedade de Baxter. Saliente-lhe que precisamos de o saber depressa, antes de qualquer outra pessoa. Temos também necessidade de saber que empregado da estação de serviço de Vista dei Mesa foi a esse local substituir o pneu de um automóvel. Diga ao Paul que ponha em campo todos os homens de que dispuser e que venha depois ter comigo, a fim de o informar dos pormenores.
- E o corpo? - perguntou Della. - Tenciona...
- Tenciono falar com o Tenente Tragg, da Brigada de Homicídios. Quando sair, peça à Gertie que efectue-a ligação. Vá, não perca tempo.
- É para já! - replicou Della Street, saindo. Mason aguardou que o telefone tocasse e depois levantou o auscultador.
- Tenente Tragg? Como está, esta manhã? Daquir Perry Mason.
- A sua telefonista já me disse - resmungou, secamente, Tragg. - Presumo que pretende informações?
- Neste momento desejo, pelo contrário, dar informações.
- Que simpático! Algum novo gambito, Mr. Mason?
- Desta vez trata-se, sem dúvida, de um assassínio.
- Mudou, portanto, de táctica! Geralmente deixa-nos descobrir o cadáver para depois verificarmos que... Oh, mas não entremos agora nesses pormenores! Pode indicar-me o nome do assassinado?
- Creio que o assassinado se chamava Frankline Gillett e que morava em Tribly Way, perto de Vista dei Mesa. Para seu governo, acrescento que esta povoação fica a curta distância da grande propriedade de George Belding Baxter, a qual está rodeada, suponho, de uma cerca ornamental de ferro-forjado. O corpo de Mr. Gillett encontra-se entre a erva, perto do caminho de carros que leva à entrada principal da casa, parcialmente encoberto por um arbusto.
- Como sabe tudo isso? - indagou Tragg.
- Foi um cliente que descobriu o corpo.
- Onde está, agora, o cliente?
- Só lhe sei dizer que saiu do meu escritório.
- Não julgue que fica a rir-se com essa! Queremos interrogar esse cliente. Mande-o - ou mande-a - chamar.
- A lei exige-me que, como advogado, comunique um crime, quando do mesmo for informado, mas não exige que os meus clientes prestem declarações, além das referentes ao achado do corpo. Também não me obriga a desvendar a identidade dos meus clientes. Nada mais tenho a dizer, tenente. Muito obrigado.
E Mason desligou, sem dar ao Tenente Tragg ensejo de fazer mais comentários.
Paul Drake instalou-se na grande poltrona de couro dos clientes, com uma graça estranha que dava aos seus movimentos um ar simultaneamente moroso e perfeitamente sincronizado, como os de um malabarista ou de um pugilista.
- Pronto, Perry - começou. - Segui as suas instruções e pus os meus homens em campo. Agora gostaria de saber a razão de tão grande urgência.
- Tire o livro de apontamentos, Paul - pediu-lhe o advogado. - George Belding Baxter possui uma grande propriedade em Tribly Way. Era aí que o automóvel estava estacionado, ontem à noite. Que sabe acerca de Baxter em geral? Depressa, Paul.
- Sei que se trata de um grande desportista milionário e que tem investimentos de várias espécies.
- Idade?
- Cerca de cinquenta e cinco anos.
- Casado ou solteiro?
- Divorciado. Houve um divórcio escandaloso, há quatro ou cinco anos, e a mulher obteve uma pensão formidável, de dois milhões de dólares.
Descubra o que puder acerca dele - pediu Mason.
- Mais alguma coisa?
- Muito mais coisas. Frankline Gillett vivia em Tribly Way, com a mulher e um filho de sete anos, Frankline Júnior. Foi assassinado a noite passada ou esta manhã muito cedo e a Polícia já sabe que o corpo se encontra na propriedade de George Belding Baxter.
- Diabo! - exclamou Drake. - Quem informou a Polícia?
- Eu.
- Você?
- Exactamente.
- Com os diabos, Perry, não pode proceder assim!
- protestou Drake, que começou a levantar-se da cadeira.
- Não posso proceder assim, como?
- Informar a Polícia de um assassínio e depois chamar um detective.
- Que aconteceria, se não tivesse avisado a Polícia?
- indagou Mason.
Drake fitou-o, com expressão de grande desespero, e redarguiu:
- Não pretendo argumentar consigo, estou apenas a dizer-lhe ...
- Está bem, já me disse. Deixe-me dar-lhe, agora, uma informação confidencial: tenho motivos para crer que se encontra entre os arbustos existentes junto dos portões um revólver de calibre 38 ... Espere, eu faço-lhe um diagrama ...
Mason desenhou um esboço do local e acrescentou:
- A arma deve encontrar-se algures, nesta área.
- Mas que pretende, afinal, de mim? - indagou o detective.
- Que vá até lá. Se não conseguir entrar, deixe-se ficar perto da vedação e não perca de vista a área que lhe indiquei; quero ser informado, se a Polícia encontrar aí a arma.
- E se não encontrar?
Se não encontrar, pergunte se o deixam entrar e dar uma vista de olhos pelas proximidades. Não deixarão, evidentemente, mas o seu pedido dar-lhes-á que pensar.
- Quer que eu encontre o revólver?
- Não, com os diabos, não quero! Mostrei-lhe o local onde não quero que procure, sequer, a arma, mas onde desejo que a Polícia a encontre. E quando isso suceder, quero ser informado.
- Um destes dias habilita-se a um bilhete de ida para a penitenciária -comentou Drake, mal-humorado.
- Não pense nisso agora e siga as minhas instruções. Preciso que obtenha todas as informações possíveis acerca de Baxter e de Frankline Gillett, que saiba tudo quanto puder a respeito do assassínio e esteja no local do crime. A Polícia não vai gostar da sua presença e ficará furiosa comigo, o que o obrigará a usar de muita perspicácia e de grande dose de diplomacia.
- Como lhes direi que tive conhecimento do crime e para quem direi que trabalho?
- Diga que fui eu que o informei e que é para mim que trabalha - respondeu Mason. - Repito, quero ser informado imediatamente se e quando a Polícia encontrar a arma. Tratemos agora do carro que desejo que localize. Esteve imobilizado a noite passada, entre as nove e as dez horas, do lado de fora dos portões da propriedade de Baxter, e pertence a um polícia ou a um detective particular. Averigue o que puder acerca do veículo, come çando por identificar, se for possível, o formato dos pneus, a partir dos sulcos deixados no terreno solto da berma da estrada. Recolha algum maço de cigarros vazio ou qualquer outra coisa que possa constituir uma pista e depois percorra todas as estações de serviço de Vista dei Mesa e fale com os homens que estiveram de serviço a noite passada. Quero que localize o que se lembrar de uma rapariga a quem o indivíduo que a acompanhava abandonou. Arranje uma descrição do homem, se for possível, mas certifique-se de que a Polícia não o segue, quando proceder a essa investigação. Averigue também, nas estações de serviço e garagens de reboque, quem foi reparar um pneu ao referido automóvel, obtenha o número da matrícula do veículo, o nome do proprietário e o de quem mandou proceder à reparação. Sei que isto é complicado e moroso, mas os seus homens que deitem mãos à obra sem perda de tempo. Utilize quantos forem precisos para abranger toda a área no mais curto espaço de tempo possível.
- Já os mandei para Vista dei Mesa. Telefonarão a pedir instruções. O tal carro tinha um pneu furado?
- Sim, e o sobresselente estava vazio, ao que parece. Alguém encarregou o empregado de uma estação de serviço de proceder à reparação, quer colocando um pneu novo, quer enchendo o sobresselente, para que o indivíduo pudesse prosseguir viagem. Quero saber quem era esse homem e não quero que ninguém saiba que você...
A porta do escritório abriu-se para dar passagem ao Tenente Tragg, que trazia o chapéu um pouco inclinado para a nuca. Acompanhava-o um polícia à paisana, que parou dois passos atrás do tenente e se conservou ostensivamente silencioso.
- Como sempre, Tenente Tragg, achou-se com direito de entrar sem bater - comentou, sarcástico, Mason.
- Procedemos sempre assim - replicou Tragg, alegremente.- Aliás, já lhe expliquei a vantagem de semelhante procedimento, Perry, sobretudo em ocasiões como esta: aumenta a nossa eficiência.
- Não perdeu tempo a vir aqui - observou o advogado.- Julguei que fosse primeiro à propriedade de Baxter.
- Foi precisamente por calcular que julgava isso que vim cá primeiro. Vejo que está com o seu detective, provavelmente a dar-lhe instruções.
- Não se engana, mas já lhas dei todas. Pronto, Drake, pode começar.
- Não arranje sarilhos, Paul Drake - recomendou Tragg, sorrindo ao detective. - Lembre-se de que tem uma licença e de que não lhe agradaria perdê-la.
- Queiram sentar-se, cavalheiros - convidou Mason.
- Não me parece que tenhamos tempo para isso - redarguiu o tenente. - Quero saber quem é o tal ou a tal cliente relacionada com o assassínio do Gillett.
Mason abanou a cabeça e replicou:
- Não sou obrigado a revelar-lho.
- Não ignora, com certeza, o que a lei diz, relativamente a encobridores...
- Também não ignoro o que diz a respeito de conselhos a clientes; conheço-a no que se refere a sonegação de provas e à participação de crimes. Na realidade, tenente, prestei-lhe um favor: participei-lhe um assassínio, quando nada me obrigava a fazê-lo.
- Isso é que obrigava! - discordou Tragg. - Seria crime ter conhecimento de um homicídio e encobri-lo.
- Que quer dizer por «ter conhecimento»? Não vi cadáver nenhum!
- Sabia que existia um, em determinado lugar.
- Alguém me informou de que havia.
- Isso bastava.
- Engana-se, tenente, não bastava. Trata-se de «testemunho por ouvir dizer». Agora poderia dizer-lho, por exemplo, que estava um cadáver no cruzamento na Sétima com a Broadway, e o tenente não cometeria crime nenhum se não corresse para o telefone, chamasse a Polícia e dissesse: «Está um cadáver no cruzamento da Sétima com a Broadway!»
- Não cometeria porque não se encontra nenhum cadáver nesse local - redarguiu Tragg.
- Como sabe?
- Diz-mo o tom da sua voz e muitas outras coisas.
- Portanto, não tem de informar a Polícia?
- Não.
- Nesse caso, depende tudo da precisão com que uma pessoa saiba julgar o tom de voz de outra. Lamento não ter pensado nisso mais cedo, tenente, pois agora que mencionou esse pormenor começo a pensar que o tom da voz do meu cliente era...
- Já sei, já sei! - interrompeu-o Tragg. - Na realidade, vim apenas fazer-lhe uma visita de boa vizinhança, Perry, pois gostaria que continuasse entre nós. Detestaria ter de o mandar encerrar onde não pudesse continuar em circulação... Seria aborrecido para si e eu sentiria a sua falta.
- E eu a sua, tenente - confessou Mason.- Gosto sempre de ter polícias amigos, que passam por aqui para me dizerem o que é a lei.
- E lembrarem-lhe que, no momento em que começar a ajudar e a favorecer um assassino...
- ...me torno encobridor ou cúmplice - concluiu Mason, sorridente. - No entanto, tenente, procure no Código Penal e diga-me se encontra algum artigo que estipule ser ilegal ajudar e proteger uma pessoa inocente, erradamente acusada de assassínio.
- Falava de uma pessoa culpada, Perry.
- E eu de uma pessoa inocente, Tragg.
- Bem, Mason, vou andando. Passei por cá apenas para lhe apresentar os meus respeitos.
- E ver se apanhava o meu cliente a sair do edifício.
- Também, de facto. Cercámos o prédio de polícias, assim que pudemos, mas devido ao trânsito e a tudo o mais, não me espantaria que o tal cliente nos tivesse escapado por entre os dedos. No fim de contas, é um bocado complicado pedir a um polícia que observe as pessoas que saem de um edifício movimentado como este e identifique quem quer que pareça cliente de Perry Mason...
- Foi isso que fizeram?
- Oh, fizemos melhor! - exclamou Tragg. - Compreende, Mason, não somos parvos de todo. Estendemos as nossas redes...
- E apanharam algum peixe?
- Apanhámos demasiados - admitiu o tenente, sorrindo.- Os rapazes estão, agora, a peneirá-los e provavelmente já tiveram de se haver com uma dúzia de “fregueses” que amaldiçoaram a Polícia em todos os tons... Quando tentamos cumprir o nosso dever e fazer respeitar a lei, os cidadãos ficam furiosos; quando não a fazemos respeitar, escrevem cartas para os jornais a exigir depuração.
- Confesso que o avaliei mal, tenente - observou Mason, pensativo. - Pensei que correria sem perda de tempo para a propriedade de Baxter.
- Oh, também fizemos isso! Abrangemos muito território, como sabe. Aquela faixa ao longo do Tribly
Way está dentro dos limites da cidade e, portanto, da nossa jurisdição, e temos de ser razoavelmente eficientes. Teria chegado aqui mais cedo se não fosse obrigado a dirigir pessoalmente alguns telefonemas. Os empregados dos elevadores talvez nos dêem uma ajudazinha... Enfim, Perry, tentamos não descurar nenhum pormenor, não deixar escapar nenhuma possibilidade.
- Estou certo disso - murmurou Mason, pensativo.
- Gostava de lhe perguntar uma coisa - prosseguiu Tragg. - Como soube o seu cliente que houve um crime de morte na propriedade de Baxter?
- Não estou certo de que soubesse - redarguiu Mason. - É muito possível que alguém lhe tenha dito que se encontrava lá um cadáver, que o meu cliente me informasse e que eu lhe dissesse que o melhor seria informar a Polícia.
- É possível, sem dúvida, mas, não sei porquê, custa-me a crer que seja provável.
- Se o meu cliente tivesse assassinado o indivíduo, eu não informaria a Polícia; dir-lhe-ia, apenas, que não havia necessidade de fazer declarações que pudessem incriminá-lo e consideraria as informações que me desse abrangidas pelo sigilo profissional.
Tragg franziu a testa, e disse momentos depois:
- Dadas as circunstâncias, Perry, a única coisa que me ocorre é que existe no local alguma prova que receia procurar pessoalmente, mas que está ansiosíssimo seja encontrada pela Polícia antes que lhe aconteça alguma coisa. Que prova será, hem?
- Confesso que não faço a mínima ideia - afirmou Mason.
Tragg voltou-se para o paisano que o acompanhava e disse-lhe, muito sério:
- É capaz de ser a arma do crime, Jim... Bem, creio que nada mais temos aqui a fazer. Vamos lá ver o que conseguimos descobrir para os lados de Vista dei Mesa. Tive prazer em vê-lo, Mason.
- Muito obrigado pela visita, tenente.
- Não tem de quê; gosto sempre de passar por cá, quando estou nas redondezas. - E saiu, com o paisano.
- Bem, o tenente já teve tempo de sair das proximidades - disse Mason a Della Street. - É muito capaz de ter deixado alguém encarregado de me vigiar, mas como preciso muitíssimo de falar com Mrs. Felting Gri-mes, acho melhor ir buscar o carro e...
Interrompeu-se, pois o telefone interno começou a tocar numa série de campainhadas curtas e longas, sinal de que a telefonista pretendia adverti-lo de qualquer coisa.
Mal Mason fizera sinal a Della para que atendesse, a porta abriu-se e o tenente e o paisano entraram novamente no escritório, desta vez com Gwynn Elston no meio deles.
- Pensei que podia surpreendê-lo se voltasse tão depressa - confessou o tenente, bem disposto. - Esta jovem é Miss Gwynn Elston, Perry, e gostava de saber se a pode identificar.
- Porquê? - perguntou Mason, de rosto inexpressivo.- Deseja receber algum cheque?
- De acordo com o talão que tem no livro de cheques, entregou-lhe, ontem, um a si, de cinco dólares.
- Não tinha o direito de lhe mexer na mala nem no livro de cheques sem um mandado - lembrou Mason.
- Bem sei, mas, de vez em quando, também cometemos os nossos errozinhos. Você compreende, no entanto, que era importantíssimo esclarecermos este assunto e... Evidentemente que não tencionamos utilizar o facto como prova, Perry!
- Ora aí é que bate o ponto! O tenente julga ter-me apanhado, a mim, numa violação técnica qualquer por não ter denunciado um crime, mesmo tratando-se de “testemunho por ouvir dizer”, mas o senhor viola todas as leis e códigos, no capítulo de busca e detenção, e acha que não tem importância nenhuma!
- Mas é que nós trabalhamos no interesse da justiça, Perry.
- Como sabe que não faço o mesmo?
- Eis um pormenor que estou disposto a discutir consigo. Esta jovem, porém, mostra-se singularmente reticente em explicar por que lhe deu um cheque de cinco dólares, onde passou a última hora, etc, etc.
- Não querem sentar-se? - convidou Mason. Tragg voltou-se para a rapariga e disse-lhe, não sem delicadeza:
- Sente-se a senhora; nós ficaremos em pé.
- A que devo esta visita, tenente? - inquiriu Mason.
- Todas as pessoas brilhantes como você sofrem do mesmo mal... Você é quase um génio, Perry, e só pensa em termos fulgurantes e luminosos, esquecendo-se do velho, simples e laborioso procedimento rotineiro dos que não são génios... Veja o caso desta jovem, por exemplo. Assim que me telefonou a comunicar um crime, limitámo-nos a tomar algumas precauções rotineiras. Telefonámos à companhia de táxis com praça defronte deste edifício e pedimos que transmitissem pela rádio a notícia de que todos os táxis que houvessem recolhido, aqui, algum cliente, nos últimos quinze minutos, deviam comunicar com a sede; telefonámos a seguir para os parques de estacionamento desta área e recomendámos que arranjassem maneira de demorar qualquer pessoa que ali tivesse deixado o carro na última hora, sobretudo se, ao apresentar o bilhete de estacionamento, essa pessoa parecesse apressada. Claro que o procedimento deixa muito a desejar, sobretudo no capítulo de relações sociais. Tivemos de interrogar os passageiros de dois táxis que partiram daqui e parece que um dos pobres diabos perdeu o avião. Ameaçou processar o Município, a Polícia, o chefe da mesma e a companhia concessionária dos táxis, mas isso não impediu que o interrogássemos; tinha de ser. Tentámos fazer as coisas da melhor maneira possível, mas infelizmente ele já saíra de casa com muito pouco tempo para chegar ao aeroporto a horas... Nos parques de estacionamento detiveram uma dúzia de pessoas que barafustavam, irritadas. Despachámo-las depressa, até chegar a vez desta senhora, que nos contou uma história muito pouco convincente. Não é boa mentirosa; creio que é uma rapariga decente e tem pouca prática... O caso é que depois de lhe examinarmos a carta de condução, de darmos uma vista de olhos ao automóvel e de lhe fazermos algumas perguntas, nos declarou que não diria mais nada enquanto não falasse com o seu advogado. Por isso, como tinha a mala aberta para nos mostrar a carta de condução, demos uma olhadela ao livro de cheques e encontrámos um talão datado de ontem e referente a um pagamento de cinco dólares feito a Perry Mason. Juntámos dois e dois, chegámos à conclusão lógica de que talvez tivesse sido ela quem lhe dissera que o corpo de Frankline Gillett se encontrava na propriedade de George Belding Baxter e, naturalmente, tivemos interesse em saber como tomara conhecimento desses factos.
- E perguntaram-lhe? - inquiriu Mason.
- Perguntámos, mas ela respondeu que queria falar consigo.
- Acha que eu aceitaria um cheque de cinco dólares, como sinal, num caso de assassínio?
- De modo nenhum!-redarguiu Tragg, a sorrir.- O cheque foi passado ontem, altura em que ela o consultou acerca de qualquer bagatela que, hoje, se transformou em homicídio.
Mason fitou Gwynn Elston, cujo olhar suplicante era eloquente. O advogado abanou a cabeça, quase imper-ceptivelmente.
- Então, qual é a resposta? - indagou Tragg.
- Miss Elston é minha cliente; desejo falar com ela em particular.
- Lamento, mas agora é impossível. Ainda não foi acusada de nada, mas estamos a interrogá-la e estou certo de que o promotor de justiça também quererá submetê-la a interrogatório. Hamilton Burger, o nosso Promotor de Justiça, ficaria muito descontente se eu lhe permitisse que falasse em particular com ela, neste momento.
- Quer dizer que Miss Elston está sob prisão?
- Para esse efeito, está - respondeu Tragg. - Ouça,, Perry, não pretendemos ser injustos neste caso, mas esta atraente jovem recusa-se a responder às nossas perguntas, o que é, francamente, indício suspeito.
- Eis o que se ganha em tentar colaborar com a Polícia! - exclamou Mason. - Se eu tivesse esperado meia hora antes de lhe telefonar...
- Estaria a ocultar provas - interrompeu-o Tragg. - Oh, você é muito esperto, Perry! Sabe o que faz. Aconselharia à sua cliente tudo quanto fosse susceptível de proteger os seus direitos constitucionais, mas no que lhe respeita, como advogado, não poria um pé em falso. Informado de que fora cometido um crime, o seu dever era transmitir imediatamente a informação à Polícia. Foi isso que fez, ao mesmo tempo que mandava Miss Elston sair do seu escritório. Mas, como eu disse há pouco, às vezes os cérebros brilhantes como o seu não sabem avaliar o efeito da rotina policial, o antiquado e eficiente trabalho de andarilho e o raciocínio metódico, tão diverso do raciocínio fulgurante dos iluminados...
Mason voltou-se para Gwynn Elston e disse-lhe:
- Como seu advogado aconselho-a, Miss Elston, a não responder a perguntas nenhumas, sejam de que natureza forem, e a não prestar declarações de qualquer espécie enquanto eu não tiver oportunidade de examinar a situação... o que, aliás, já estou a fazer. Espero obter o máximo de informações a ela inerentes dentro de poucas horas. O Tenente Tragg adoptará, para consigo, uma atitude paternal e os polícias que a interrogarem dir-lhe-ão que não desejam ser injustos e que, se estiver inocente, não terão interesse nenhum em a sujeitar a publicidade jornalística. Dir-lhe-ão ainda que terão muito prazer em a libertar se lhes der um resumo dos seus passos nas últimas vinte e quatro horas, e tentarão tudo para a convencerem a falar. Mas não fale. Não diga uma palavra; limite-se a afirmar que eu falarei por si.
- Bem, não precisamos de saber mais nada, Perry - interveio Tragg, suspirando. - Queríamos apenas ter a certeza de que foi esta a cliente que o informou do crime. Lamento, Miss Elston, mas tem de nos acompanhar.
- Mr. Mason, posso... - começou Gwynn.
- Não pode nada - interrompeu-a Tragg. - Está detida por suspeita de assassínio de primeiro grau.
- E, como tal, tem direito ao benefício dos conselhos do seu advogado, em todas as ocasiões - lembrou Mason.
- Depois de ser registada - emendou Tragg.- Neste momento vamos levá-la para a esquadra, a fim de a submetermos a um interrogatoriozinho.
- Lembre-se de que não deve responder nada - disse Mason a Gwynn. - Sejam quais forem as perguntas que lhe fizerem, e por mais simples que lhe pareçam, cale-se. Não lhes diga onde mora, não lhes diga absolutamente nada. - Mason deu ênfase subtil às palavras “não lhes diga onde mora”.
O Tenente Tragg abriu a porta, segurou-a e disse ao polícia que o acompanhava:
- Pronto, Jim, levemo-la. Custa-me ter de proceder assim com uma jovem tão atraente, mas se ela não colaborar na nossa investigação pode ficar detida muito tempo.
- Não lhes diga, sequer, as horas, se lhas perguntarem, Miss Elston - insistiu Mason. - Os seus direitos constitucionais foram violados; revistaram-lhe a mala sem causa provável.
Tragg sorriu a Mason por cima do ombro e observou-lhe, antes de sair para o corredor:
- Agora temos causa provável, Perry.
Mason esperou que se afastassem da porta e depois pediu a Della Street:
- Vá lá abaixo buscar o meu carro Della. Ligue o motor e permaneça dez minutos no parque de estacionamento. Daqui a dez minutos, exactamente, dê a volta para a entrada do edifício.
- Se não conseguir encontrar lugar para parar...
- Não precisará de parar. Estarei no passeio e saltarei, quando você passar.
- Vamos a casa de Felting Grimes?
- Exactamente. É o único lugar aonde podemos chegar antes da Polícia e não vamos informá-los dessa pista.
- Mas eles acabarão por nos alcançar, não?
- Oh, com certeza! A nossa única esperança é que, quando lá chegarmos, encontremos outra pista que nos permita continuar um passo à frente deles. Pronto, Della, veja as horas e passe pela entrada do edifício daqui a dez minutos exactos.
Della Street parou o automóvel junto do passeio, defronte da residência de Grimes, no 367 da Mandala Drive.
- Nada de apontamentos - recomendou-lhe Mason, segurando a porta para ela sair.
Della deslizou pelo banco, deixando entrever, momentaneamente, as pernas bonitas, e parou no passeio, a endireitar a saia.
- Pronto, chefe, vamos a isto.
Subiram o caminho de cimento que levava à porta principal e a secretária perguntou ao advogado, antes de chegarem:
- Que tenciona dizer-lhe?
- Não sei ainda; representarei de improviso e veremos o que surge.
Mason premiu o botão da campainha e Nell Gri-mes atendeu.
- Bons dias - cumprimentou-a o advogado. - Chamo-me Mason, sou advogado e esta senhora é a minha secretária, Miss Della Street. Gostaríamos de entrar e de conversar consigo, se não se importasse.
- Perry Mason!-exclamou Mrs. Grimes, abrindo muito os olhos.
- Exactamente.
- É maravilhoso! Tenho lido coisas a seu respeito, nos jornais, e reconheço-o pelas fotografias publicadas nos mesmos. Façam favor de entrar.
Conduziu-os à sala de estar e Mason explicou:
- Preciso de lhe fazer umas perguntas e a senhora terá de me aceitar de boa fé...
- Pergunte à vontade aquilo que quiser. Terei muito prazer em o ajudar em tudo quanto possa.
- As perguntas relacionam-se com Gwynn Elston.
- Gwynn? - Mrs. Grimes teve um sobressalto de surpresa. - Mas porque... Que andou ela a fazer?
- Creio que Miss Elston tem vivido aqui, em sua casa, num quarto?
- É verdade. Tem cá um quarto e toma o pequeno-almoço. Às vezes convidamo-la para jantar, mas o aluguer abrange apenas quarto e pequeno-almoço.
- Miss Elston vende livros?
- Vende.
- Sabe onde esteve a noite passada?
- A noite passada efectuou uma missão qualquer, muito misteriosa - respondeu Miss Grimes, escolhendo cuidadosamente as palavras.
- Disse-lhe alguma coisa acerca de um polícia a ter mandado parar, na estrada?
- Falou-me, de facto, num polícia que a obrigou a parar o automóvel e lhe atirou a arma para o colo, a fim de se defender se ele... tomasse liberdades.
- Acreditou nessa história?
- Francamente, não acreditei.
- Dá-se bem com Miss Elston?
- Conhecemo-nos há anos e ela é a minha amiga mais íntima.
- Já alguma vez lhe mentira, antes disso?
- Bem, pregara-me uma petazita ou duas, assim como eu a ela, mas desta vez... enfim, desta vez foi diferente.
- Ela mostrou-lhe a arma?
- Mostrou.
- Girou o tambor, para que o pudesse ver?
- Girou.
- Notou alguma coisa anormal?
- Meu Deus, Mr. Mason, o que sei acerca de armas de fogo não me permite distinguir o normal do anormal. A Gwynn percebe alguma coisa, mas eu sei apenas o que ela me disse.
- E que lhe disse Miss Elston?
- Que estava uma cápsula vazia no cilindro. De facto, notei que uma das cápsulas tinha uma espécie de entalhe no centro, o que significa, creio, que fora deflagrada. E é tudo quanto sei, além da história que a Gwynn me contou a respeito de alguém lhe ter dado a arma para se proteger e depois se ter ido embora, deixando-lha.
- História em que não acreditou?
- Lamento, Mr. Mason, mas não lhe mentirei - respondeu Nell Grimes, ao mesmo tempo que abanava a cabeça. - Não acreditei, de facto.
- Ocorreu-lhe, por acaso, que alguém tivesse cometido um crime com essa arma e, sabendo-a incriminatória, pretendesse livrar-se dela?
Mrs. Grimes reflectiu, durante momentos, e por fim redarguiu:
- Não, não me ocorreu. Para ser absolutamente franca, Mr. Mason, o que me ocorreu foi que Gwynn se metera nalgum sarilho, inventara a história do polícia e resolvera experimentar impingir-me, para ver se pegava.
- E a senhora deu-lhe a entender que não acreditada?
- Com certeza! Ela conhece-me o suficiente para saber que não engoliria semelhante patranha nem por um minuto que fosse.
- Sabe onde terá a sua amiga arranjado, de facto, a arma?
Mrs. Grimes abanou a cabeça.
- Sabe onde se encontra agora o revólver?
- A Gwynn levou-o com ela.
- Sabe onde se encontra a sua amiga neste momento?
- Não, não tive notícias dela desde que saiu, esta manhã. Telefonaram a procurá-la, uma senhora de voz simpática, mas não quis deixar o número do telefone.
- Seu marido está em casa?
- Não; anda em viagem. Às vezes ausenta-se duas a três semanas seguidas. Felt (meu marido chama-se Fel-ting, mas chamamos-lhe todos Felt) passa muito tempo fora de casa. Partiu ontem, em viagem de negócios, e disse que se demoraria uma semana.
- Viaja muito?
- Viaja.
- De avião?
- A maior parte das Mezes, sim, mas tem carro e eu também.
- Onde está agora o carro do seu marido?
- No parque de estacionamento do aeroporto, suponho. Felt partiu ontem de manhã... Mas porque me faz todas essas perguntas?
- Tento obter todas as informações que me permitam formar uma ideia da personalidade de Gwynn Elston.
- E que tem meu marido que ver com isso?
- Aparentemente, nada.
- Há uma coisa, Mr. Mason... Não sei se lhe deva dizer...
- De que se trata?
- Bem... É que, ontem de manhã, Gwynn tirou alguns comprimidos de estricnina do armário dos medicamentos. Deus sabe para que os quereria!
- Mas a senhora tem comprimidos de estricnina no armário dos remédios?
- Não temos filhos, compreende? Há tempos tivemos ratos em casa e precisei de envenenar um bocado de carne.
- Miss Elston sabia disso?
- Sabia.
- Quando foi buscar os comprimidos?
- Ontem de manhã. Pelo menos foi quando os encontrei no quarto dela.
- Onde?
- Em cima da cómoda.
- Interrogou-a a esse respeito?
- Não; limitei-me a guardá-los no armário. Tencionava falar-lhe no assunto, mas esqueci-me. Ultimamente tem procedido um pouco... bem, não me tem parecido normal. Tem-me mentido e estou quase convencida de que existe um romancezinho sub-reptício entre ela e o meu marido... Se assim é, creio que não se lhes pode levar a mal. Gwynn é atraente e foi sempre um bocado exibicionista; gosta de camisolas justas e saias curtas... e às vezes deita-se por aí meio despida. Claro que essas coisas não passam despercebidas ao Felt, como não passariam a qualquer outro homem.
- Mrs. Grimes, vou pôr algumas cartas na mesa: Gwynn está em apuros.
- Que género de apuros?
- Por enquanto, não posso avaliar a gravidade da situação, mas a Polícia está a interrogá-la e preciso que a senhora me ajude.
- Que posso fazer? Direi a verdade, não mentirei... Não me pode dizer mais nada, Mr. Mason? Porque a deteve a Polícia?
- Preciso de todas as informações acerca do passado da sua amiga, antes de a Polícia chegar.
- A Polícia vem cá?
- Vem interrogá-la, Mrs. Grimes. Devem estar a chegar de um momento para o outro.
- Mas que deseja o senhor que faça?
- Que saia daqui para fora.
- Que fuja?
- Não, isso não. Desejo apenas que se meta no seu automóvel e conduza. Acompanhá-la-ei e conversarei consigo e a minha secretária irá atrás, no meu automóvel.
- Aonde iremos?
- A qualquer lado onde possamos conversar sem sermos interrompidos.
- Está bem, Mr. Mason - declarou, como se tomasse uma decisão súbita. - Farei tudo quanto puder pela Gwynn, mentirei até, se for preciso. Não cometerei perjúrio no tribunal, mas, fora isso, farei tudo quanto estiver ao meu alcance, se o senhor achar que lhe poderá ser útil.
- Vamos!-disse Mason, levantando-se imediatamente.- A Polícia pode chegar de um momento para o outro.
Mrs. Grimes conduziu-os à garagem, pela porta das traseiras, entrou no automóvel, levantou a saia, para poder movimentar as pernas à vontade, pisou duas vezes o acelerador, girou a chave da ignição e soltou o travão de mão.
- Sairei em marcha-atrás - avisou. - A secretária seguir-nos-á?
- Irá atrás de nós.
- Que direcção tomamos?
- Siga para qualquer lado onde não haja muito trânsito e possamos falar.
Nell Grimes tirou o carro da garagem, em marcha-atrás, desceu o carreiro de cimento e virou para Manda Ia Drive.
Della seguiu-a, cerca de trinta metros atrás.
- Que deseja saber em especial, Mr. Mason?
- Desejava que me dissesse tudo quanto pudesse acerca dos negócios do seu marido, Mrs. Grimes.
- A esse respeito de pouco ou nada posso servir, pois sei apenas que meu marido tem vários negócios e nunca discute nenhum comigo. Além disso, continuo sem perceber que relação possa isso ter com Gwynn.
- Apresentam a declaração de imposto de rendimento em conjunto?
- Não. O Felt preenche a sua e eu não a assino, não a vejo, nada sei a seu respeito.
- Não acha isso estranho? - perguntou Mason, de testa franzida.
- O senhor percebe mais dessas coisas que eu; é advogado. Este é o meu primeiro casamento.
- Conhece George Belding Baxter?
- Baxter... Baxter... Já ouvi esse nome. George Belding Baxter. Não me parece estranho, mas não conheço a pessoa.
- Sabe se o seu marido o conhece ou teve alguns negócios com ele?
- Não, não sei.
- Sabe o nome das pessoas que Miss Elston visitou a noite passada?
- Gillett. Vivem no Tribly Way, algures em Vista dei Mesa. A Gwynn não lhe disse?
- Infelizmente aconteceu tudo muito depressa e...
- Quero saber o que se passa, Mr. Mason; não quero continuar a responder às cegas. Em que sarilhos se meteu a minha amiga? Receio que o meu marido se tenha andado a divertir com ela e... Ouça, não foram apanhados juntos em nenhum motel ou coisa parecida, pois não?
- Se tem albergado semelhante desconfiança, pensou de certo em pedir à sua amiga que se mudasse?
- Não, não pensei. Compreendi que o meu marido veria, com certeza, muitas raparigas atraentes e... Enfim, não é essa a melhor maneira de lidar com um marido; é impossível afastar todas as tentações do seu caminho.
- Mas também não é preciso meter-lhas debaixo do nariz - comentou Mason.
- Bem... não sei. A Gwynn era capaz de se divertir com ele, mas jamais mo roubaria.
- Seu marido costuma olhar para outras mulheres, que a senhora saiba?
- Mr. Mason, um homem pode não atraiçoar o nosso amor, mas é essencialmente egoísta e se uma rapariga esperta começa a fazer-lhe olhos de carneiro mal morto julga-se logo um grande herói, másculo, irresistível e... - Interrompeu-se, de súbito, e estendeu a mão para ligar o aparelho de rádio.
- Que se passa? - perguntou Mason, apontando o aparelho.
- A esta hora transmitem um noticiário local, que costumo ouvir. É o meu programa favorito. Vou confessar-lhe uma coisa, Mr. Mason, mas livre-se de a repetir. Sei que existe outra mulher na vida de Felt, mas ignoro quem seja. Até há pouco tempo, não quis crer que fosse Gwynn...
- Como sabe que existe outra mulher?
- Há tantas maneiras de saber essas coisas, tantos pequenos pormenores! Não os discutirei consigo, Mr. Mason, mas sei que existe outra mulher, há já algum tempo.
O locutor radiofónico leu um anúncio, fez breves comentários acerca do tempo e logo a seguir transmitiu as notícias do dia:
- Há poucos momentos as autoridades encontraram na magnífica propriedade rústica do conhecido milionário George Belding Baxter o corpo de um homem que foi provisoriamente identificado como sendo Frankline Gillett. O corpo encontrava-se de costas, numa faixa de relva próxima do caminho de carros, com o coração atravessado por uma bala de calibre 38. A Polícia calcula que a morte ocorreu entre as nove horas e a meia-noite. Embora o indivíduo tivesse na algibeira carta de condução e bilhete de identidade passados em nome de Frankline Gillett, morador no Tribly Way, perto de Vista dei Mesa, com a impressão digital do polegar no primeiro documento, pouco depois a Polícia encontrou, estacionado perto da piscina da propriedade Baxter, um automóvel registado em nome de Felting Grimes, de Mandala Drive, e no compartimento das luvas uma carteira contendo um jogo completo de documentos de identidade e uma carta de motorista, tudo em nome do referido Felting Grimes. A impressão digital desta carta é absolutamente idêntica à aposta na de Frankline Gillett e a Polícia...
Nell Grimes travou tão bruscamente que o chiar dos pneus abafou a voz do locutor e Mason quase bateu com a cabeça no pára-brisas. O automóvel derrapou contra o passeio.
Apreensivo, o advogado olhou para trás e viu que Della Street só por um triz não chocara com a retaguarda do carro.
Nell Grimes fitou Mason com os olhos dilatados de espanto e a boca entreaberta, como se não tivesse força no queixo. As mãos caíram-lhe inertes, do volante.
- É isso, então! - exclamou, de súbito. - Ela matou o meu marido! Está a ouvir-me, Perry Mason? Ela matou o meu marido e você tentava levar-me a defendê-la!- A voz de Mrs. Grimes esganiçou-se, numa onda de histerismo. - Matou o meu marido! Saia, Perry Mason, saia já e não se atreva a voltar a falar comigo! Agora sei o que aconteceu; aquela desavergonhada levou a arma e... Planeou tudo, provavelmente, a pensar que me protegia... Saia deste carro! Saia! Saia!
- Um momento, Mrs. Grimes. Acalme-se, para esclarecermos tudo...
Nell Grimes girou sobre si mesma, levantou as pernas e começou a bater-lhe na cara com os saltos altos, sem deixar de gritar:
- Saia! Saia! Saia deste carro! Corro consigo a pontapé, esgatanho-o, mato-o! Pretendia levar-me a atraiçoar o meu próprio marido! Saia!
Mason viu os saltos finos erguerem-se na direcção do seu rosto, aparou um ou dois pontapés, abriu apressadamente a porta e saltou para o passeio.
- A dor cega-a, Mrs. Grimes, e leva-a a tirar conclusões precipitadas. Acalme-se um momento e...
Mas Nell Grimes meteu outra vez as pernas debaixo do volante, pisou o acelerador e arrancou, deixando-o no meio do passeio.
Della Street conduziu o carro do advogado para junto dele, parou e perguntou-lhe:
- Vai para os meus lados?
Os olhos de Perry Mason seguiram um momento mais o veículo que se afastava velozmente.
- Bonitas pernas - comentou Della. - Ou não reparou?
- Reparei sobretudo nos malditos saltos.
- Apostaria que não foi a primeira vez que se defendeu assim. Girou no banco e entrou rapidamente em acção, não foi? Sacrificou o pudor, mas pôde dispor de um par de armas... Que lhe disse que a irritou daquela maneira?
- Não foi o que lhe disse que a irritou e, sim, o que disse o locutor da rádio - explicou o advogado. - A Polícia julga ter provas de que Frankline Gillett e Felting Grimes eram uma e a mesma pessoa.
- E depois?
- E depois, Mrs. Grimes pensou que eu tentava levá-la a defender a pessoa que lhe assassinara o marido.
- Quer dizer que chegou à conclusão de que Gwynn Elston era culpada?
- Chegara já a outras conclusões antes da nossa visita desta manhã.
- Não devia ter permitido que lhe tocasse com os saltos na cara - observou Della. - Os saltos eram afia-
dos e podiam ter-lhe tirado algum olho ou rasgado o rosto... Que pena não ter trazido a máquina de filmar!
Teria conseguido um belo filme... Que fazemos agora?
Mason instalou-se ao lado de Della e respondeu:
- Vamos dar uma vista de olhos à propriedade de George Belding Baxter.
- O Paul está lá?
- Julgo que sim e creio que o Tenente Tragg deve ter dado ordens para não o deixarem aproximar-se da cena do crime nem permitirem que encontre quaisquer provas que possam ser úteis a alguém.
Ao lado da estrada que passava pelos portões da propriedade de Baxter estavam estacionados uns doze automóveis.
Mason encontrou Paul Drake encostado ao gradeamento de ferro forjado, a fumar um cigarro.
- Onde estão? - perguntou-lhe Mason.
- Os repórteres entram com um passe e muitas outras pessoas entram apenas; nós não entramos - respondeu-lhe o detective.
- Quem nos impede?
Drake apontou o polícia uniformizado, junto dos portões, e replicou:
- Aquele.
- Vamos - decidiu Mason.
O advogado, Della Street e Paul Drake dirigiram-se ao polícia, a quem o primeiro disse:
- Quero entrar.
- 'Tem passe, cartão de repórter, qualquer coisa deste género?
- Tenho o meu cartão profissional. Sou Perry Mason, advogado, e represento Gwynn Elston, que está a ser interrogada acerca deste crime.
- Arranje um passe e deixá-lo-ei entrar.
- Onde posso arranjar o passe?
- Depende. Uns são assinados pelo Tenente Tragg, outros pelo xerife, e também se pode entrar com um cartão de repórter. Pode-se entrar na propriedade, evidentemente, não na casa...
- Óptimo. Há alguma maneira de comunicar com a casa?
- Que quer dizer?
- Tenente Tragg não se encontra lá, neste momento?
- Não me compete dar informações acerca do Tenente Tragg.
- Gostava de falar com ele.
- Há muita gente que também gostaria.
- Não têm comunicação telefónica?
- Não dispomos de transmissores portáteis, se é a isso que se refere.
- Percebe agora o que quis dizer? - perguntou Drake ao advogado. - Nós somos público, somos uma classe excluída.
- Percebo. - O advogado tirou uma cigarreira de prata martelada, abriu-a e estendeu-a ao polícia.- Fuma?
O homem recusou, com um aceno de cabeça, e Mason ofereceu a cigarreira a Della, que recusou também.
- Não quero, obrigada.
Drake aceitou. Mason tirou o isqueiro, acendeu-lhe o cigarro, também o que tirara para si e, depois, fechou a cigarreira e, com um gesto despreocupado, atirou-a, com força, por cima do gradeamento, para o matagal.
- Eh, que diabo é isso? - perguntou o polícia.
- Alguma novidade? - retorquiu Mason, indiferente.
- Não pode atirar coisas lá para dentro.
- Alguma lei o proíbe?
- Com certeza que há uma lei que o proíbe! Não se pode atirar lixo para a propriedade alheia.
- Mas eu não atirei lixo; aquela cigarreira é muito valiosa. Olhe, está a ver este isqueiro? É muito bom, e caro. - Com a mesma despreocupação, atirou também o isqueiro por cima do gradeamento e acrescentou: - Bem, Paul, creio que não temos mais nada a fazer aqui...
- Eh, um momento! - protestou o polícia. - Qual é a sua intenção? Que pretende fazer?
- Nada. Já fiz tudo quanto pretendia.
- Não pode forjar falsas provas.
- Provas de quê?
- Não sei - confessou o polícia.
- Claro que não sabe - aquiesceu Mason.
O polícia dirigiu-se a uma viatura estacionada dentro dos portões, sintonizou para a esquadra, falou durante algum tempo com o transmissor junto dos lábios e depois pareceu prestar atenção às instruções que lhe davam. Por fim, repôs o transmissor, saiu da viatura e regressou para junto de Perry Mason, a quem perguntou, em tom beligerante:
- Disse que era Perry Mason, o advogado?
- Exactamente. - Mason espreguiçou-se, bocejou, deu uma chupadela no cigarro, piscou disfarçadamente o olho ao detective e disse-lhe:-Vamo-nos embora, Paul.
- Não se pode ir embora.
- O quê? Quer dizer que não sou livre de me ir embora daqui?
- Espere só um minuto.
- Tenciona deixar-me entrar?
- Não.
- Então ponho-me a andar, pois não estou aqui a fazer nada.
- Disse-lhe que esperasse; o Tenente Tragg deseja falar-lhe.
- Quando mostrei interesse em lhe falar você respondeu-me haver muita gente interessada no mesmo, agora diz-me que ele quer falar comigo. Para sua informação, fique sabendo que há muita gente que também quer falar comigo.
- Tenha calma, camarada - pediu o polícia. - Sabe muito bem que esteve a forjar provas...
- Provas de quê?
- Bem, atirou coisas por cima do gradeamento.
- Até aí estamos de acordo e, já que falamos nisso, gostaria de recuperar o que me pertence.
O polícia olhou ansiosamente para trás e, decorridos poucos momentos, o Tenente Tragg apareceu na alameda, acompanhado por um detective à paisana.
- Mas que grande reunião! -exclamou.- Miss Street, Perry Mason, Paul Drake...-Voltou-se para o polícia e perguntou-lhe: - Qual é a complicação, afinal?
- Este indivíduo - respondeu o homem, apontando Mason - tirou a cigarreira da algibeira, ofereceu cigarros e depois, com o ar mais casual desta vida, atirou-a por cima do gradeamento, para o matagal. Quando lhe disse que não o podia fazer, puxou do isqueiro e fez-lhe o mesmo. - Vigiou-o bem, durante todo o tempo em que esteve aqui? - indagou o tenente, de olhos semicerrados.
- Vigiei.
- A cigarreira e o isqueiro foram as únicas coisas que ele atirou para o matagal?
- Foram.
- E este? - perguntou Tragg, apontando Drake.
- Tem estado por aí há cerca de uma hora.
- A fazer o quê?
- Apenas a fumar...
- Perto do gradeamento?
- Mesmo encostado a ele, a fumar e...
- A fumar e a depositar falsas provas! - interrompeu-o o tenente, furioso. - É a ele que pertence essa especialidade. Mas vejamos agora a que vem tudo isto. Mason limitou-se a deitar-lhe poeira nos olhos. Não devia ter permitido que este indivíduo, Paul Drake, se aproximasse do gradeamento, compreende?
- O tenente, disse que não deixasse entrar ninguém e ele não entrou.
- Sirva-se da cabeça, homem! - resmungou Tragg. - Qualquer pessoa se podia encostar ao gradeamento, meter a mão por detrás do casaco e atirar qualquer coisa para as moitas, num momento em que você não estivesse a olhar.
- Atirar o quê? - perguntou o polícia.
- Como diabo hei-de saber? Mas descobri-lo-ei? Vamos lá dar uma vista de olhos. Para onde atirou Mason a cigarreira e o isqueiro?
- Para ali. Vi a luz reflectir-se no metal, há um minuto apenas. Se se desviar para aqui pode ver... Olhe, lá está! Vê o reflexo da luz?
Tragg voltou-se para o detective à paisana e disse-lhe:
- Vá lá você, Dick, que eu oriento-o. Depois de encontrar os dois objectos, aproveite e dê uma vista de olhos pelas proximidades.
Tragg olhou, pensativamente, para Mason, enquanto o polícia dizia, do portão:
- Um pouco mais para a direita... um pouco mais para trás... Agora outra vez um nadinha para a direita. É aí mesmo!
- Encontrei o isqueiro, tenente! - anunciou, o detective à paisana.
- A cigarreira foi parar um pouco mais para trás e para a direita - informou o polícia. - Vi-a bater nos ramos de uma das árvores e ressaltar. Está...
- Estou a vê-la! - gritou o detective. - Já a apanhei e...
- E que mais? - perguntou Mason, quando o outro se calou, de súbito.
- Está aqui uma arma, tenente.
- Já calculava - afirmou Tragg. - Isso explica todo este jogo de cena. Paul Drake atirou para aí a arma e Mason queria ter a certeza de que a encontrávamos.
- Está a acusar um honesto detective particular de delito grave contra a ética profissional, tenente - lembrou Mason.
- Pois sim, pois sim, estava apenas a pensar em voz alta - resmungou Tragg, após uma hesitação. - Não falava a ninguém em particular; portanto, façam de conta que não ouviram nada. Dick, introduza um lápis no cano da arma e traga-a cá, para lhe darmos uma vista de olhos.
O detective à paisana saiu do meio das moitas, trazendo um revólver de calibre 38 seguro por um lápis metido no cano.
- Que me dizem agora a isto, hem?! - exclamou o tenente, pegando no lápis e examinando cuidadosamente o revólver. - Levemo-lo para o laboratório, a fim de vermos o que se descobre. Talvez encontremos alguma coisa que o relacione com a pessoa que o atirou delibe-radamente para ali.
- E a respeito da minha cigarreira e do meu isqueiro? - perguntou Mason. - Recupero-os?
- Não, pelo menos por enquanto - respondeu-lhe Tragg, sorridente. - E, quando os recuperar, levarão as minhas iniciais marcadas... Compreende, Perry, estes dois objectos são, agora, provas.
- Entretanto, como me arranjo para fumar?
- Nós, polícias, arranjamo-nos muito bem, com um simples maço de cigarros, e uma carteirinha de fósforos de papel desempenha a contento a tarefa da ignição... - Voltou-se para o polícia e acrescentou: -Agora vamos estender uma corda através da estrada, entre estes dois portões, e não deixar ninguém aproximar-se do gradeamento.
- Tranca a porta depois da casa roubada? - troçou Mason.
- Tentamos apenas impedir que deitem mais provas cá para dentro - redarguiu-lhe Tragg. - Não queremos uma colheita demasiado grande...
- Com certeza - concordou Mason. - Entretanto, talvez fosse melhor certificar-se de que não se encontram entre os arbustos outra cigarreira e outro isqueiro...
- E outra arma - acrescentou Tragg, pensativo.- Às vezes os seus pensamentos assemelham-se aos meus de uma maneira extraordinária, Perry! - Dirigiu-se em seguida ao detective e ordenou-lhe: - Dick, vá buscar uma corda para vedarmos isto tudo, enquanto o seu colega não deixa ninguém aproximar-se do gradeamento. Não queremos ociosos por aqui, embasbacados.
- Aquilo é connosco, Della - observou Mason.- É a deixa para nos irmos embora.
- Às vezes percebe-me às mil maravilhas, Perry! - exclamou Tragg, irónico. - Gostaria muito de saber por que motivo estava tão interessado em que encontrássemos a arma e, também, como sabia que ela cá se encontrava.
Mason voltou-se para Drake e comentou:
- Eis o resultado de se ser polícia, Paul. As pessoas tornam-se cínicas e cépticas... Imagine que atirei uma cigarreira por cima do gradeamento e ela se transformou num revólver!
- É verdade que nos ajudou a encontrar uma prova - condescendeu o tenente-, mas ainda não a podemos avaliar e não sabemos que valor lhe devemos atribuir.
- Quando encontrarem a segunda arma será mais fácil - redarguiu Mason, com sarcasmo.
- Uma coisa lhe garanto, Mason: vamos seguir a pista desta arma desde o momento em que saiu das mãos do fabricante até ser colocada aqui, e se descobrirmos alguma coisa que se relacione consigo terá notícias nossas.
- É ilegal atirar armas para uma propriedade alheia?
- perguntou o advogado.
- É ilegal falsificar provas.
- Porque não relê o Código Penal, tenente? Que há de falso nesse revólver e por que motivo constitui prova?
Tragg apontou com o polegar os automóveis estacionados e ordenou-lhe:
- Vá-se embora. Não há aqui mais nada para si.
- Em virtude da situação criada, Della, vamos comprar cigarros - disse Mason à secretária. - Venha também, Paul; oferecemos-lhe almoço.
Passava pouco das quatro horas da tarde e Mason e Della encontravam-se no escritório quando Paul Drake chegou com uma série de relatórios.
Mason, que passeava impacientemente de um lado para o outro, parou quando o detective tirou de uma pasta de cartão algumas folhas de papel fino e comentou:
- Tentamos conservar-nos um passo à frente da Polícia, Perry, mas é muito difícil.
- Um passo à frente da Polícia? - repetiu o advogado, irritado. - A esta hora já eles nos apanharam.
- Não apanharam nada, Perry - afirmou Drake.- Tive uma boa deixa.
- Explique-se, homem! Que deixa?
- Procurei saber se o verdadeiro nome do indivíduo era Gillett ou Grimes e, para isso, fiz uma coisa de que a Polícia pareceu esquecer-se: procurei as certidões de nascimento de Felting Grimes e de Frankline Gillett. Verifiquei, assim, não existir nenhum registo de nascimento em nome de Felting Grimes. Agora passarei em claro toda a matéria secundária e mencionarei apenas o que me parece essencial, pois há pormenores escaldantes que talvez exijam acção imediata da sua parte.
- Siga para a frente, Paul.
- O pai de Frankline Gillett chamava-se Gorman Gillett e, segundo suponho, abandonou o lar ainda o filho era garoto. A mulher pediu o divórcio, fundamentando-se no abandono, mas morreu. Ninguém parece saber o que aconteceu a Gorman Gillett, pelo menos segundo consta da papelada do divórcio. Como Gorman é um nome raro, consultei as estatísticas e coloquei diversos homens a trabalhar no caso. Um deles tem uma cabana em Pine Haven, uma cidadezinha de montanha perto da região do Walker Pass, e lembra-se de que havia lá um indivíduo chamado Gorman Gillett, que era uma espécie de recluso...
- Era? - interrompeu-o Mason.
- Sim. O meu ajudante telefonou para lá, e informaram-no de que o homem morreu há três dias. O coroner está à espera que apareçam alguns parentes, a fim de lhe fazerem o funeral. Como Gorman é nome raro, há uma possibilidade de que seja o mesmo, tanto mais que a idade é aproximada e tudo parece condizer.
Mason franziu a testa, pensativo, e perguntou:
- O seu ajudante conhecia bem esse indivíduo, Paul?
- Nem por isso, pois, como já disse, era um tipo esquisito e fechado. Deixara-se ir muito abaixo, isto é, andava roto, não se barbeava nem cortava o cabelo durante longos períodos e ninguém sabia ao certo de que vivia.
- Não tinha família?
- Parece que não.
- Que mais soube?
- Pormenores rotineiros. Arranjei uma fotografia de Frankline Gillett.
- A respeito de Mrs. Grimes?
- Comunicou com a Polícia assim que o deixou e disse-lhes que você tentara convencê-la a esconder-se e... Enfim, creio que, com uma coisa e outra, o seu nome vai aparecer nos jornais.
- Tem alguma cópia das cartas de condução?
- Tenho. Frankline Gillett media um metro e setenta e sete centímetros, pesava oitenta e quatro quilos, tinha cabelos castanhos e olhos cor de avelã. Os rapazes dos jornais arranjaram-me uma cópia da sua fotografia, a qual será publicada daqui a duas horas.
- Que soube do carro com o pneu furado defronte da propriedade de George Belding Baxter?
- Não existiu semelhante carro, Mason. Mais vale encarar esse facto agora do que mais tarde.
- Existiu com certeza, Paul...
- Não esteve lá parado nenhum automóvel, pelo menos nenhum com um pneu furado.
- Como sabe?
- Primeiro, porque temos provas negativas. Percorri todas as garagens, todos os clubes automobilísticos e todas as estações de serviço da área e nenhuma enviou um reboque ou um carro de reparações ao local indicado. Mandei um dos meus homens à estação de serviço que você indicou e não há dúvida de que uma rapariga cujos sinais condizem com a descrição da sua cliente esteve lá a noite passada, cerca das nove e meia. O empregado lembra-se da hora porque largou o trabalho às dez horas e a pequena apareceu cerca de meia hora antes. Era ela que guiava; o homem apeou-se, fez uma pergunta qualquer, dirigiu-se para as traseiras da estação de serviço e, aparentemente, desapareceu.
- Como era o homem?
- Tenho aqui a descrição. Cerca de um metro e setenta e um ou setenta e dois de altura, aproximadamente vinte e cinco anos de idade e oitenta quilos de peso. Tinha cabelos ondulados, muito escuros, mas o empregado não se lembra da cor dos olhos, e vestia fato castanho-escuro. Repare agora neste pormenor, Perry: a rapariga e o desconhecido estiveram na estação de serviço cerca das nove e meia, como as declarações do empregado parecem confirmar, e às dez horas o guarda da propriedade de George Belding Baxter, fechou os portões de ferro com uma corrente, como é costume, e não viu nenhum automóvel parado defronte da entrada.
- Quem é esse guarda?
- Um indivíduo chamado Corley L. Ketchum. Vive num chalezinho das traseiras e compete-lhe abrir os portões todas as manhãs, às sete horas, e fechá-los todas as noites, às dez.
- Quem toma conta da casa? - indagou Mason. - Certamente não deixam entrar quem lhe apetece, sem mais nem menos?
- Quando George Belding Baxter lá está, tem dois criados que entram às oito da manhã e largam às cinco da tarde, um cozinheiro que entra ao meio-dia e trabalha até às oito e uma governanta que vive na moradia. Hoje, porém, é o seu dia de folga e a mulher informou a Polícia de que George Belding Baxter lhe dissera que podia sair ontem à noite. Partiu, por isso, cerca das nove horas.
- E Baxter? Onde está?
- Baxter fora a S. Francisco, tratar de um negócio, e regressou de automóvel. Ao chegar a Bakersfield instalou-se num motel, onde passou a noite, e esta manhã seguiu directamente para o escritório. Só soube que se passara algo de anormal na propriedade quando a Polícia lho disse.
- Mostraram-lhe fotografias do corpo? - inquiriu Mason. - Mostraram-lhe o corpo, mas ele afirma que o homem lhe é absolutamente desconhecido. Parte amanhã de avião para Honolulu, mas recomendou ao pessoal que desse à Polícia toda a cooperação possível e, segundo me constou, deixou as chaves ao Tenente Tragg. A Polícia parece razoavelmente convencida de que Gwynn Elston sabia que Frankline Gillett e Felting Grimes eram uma e a mesma pessoa - pelo menos a partir do momento em que viu uma fotografia de Frankline Gillett, na sua primeira visita à residência dos Gillett. Na opinião dos investigadores, Grimes procurou-a, depois da sua visita a Mr. Gillett, ela entrou no automóvel dele, acusou-o de bigamia e houve uma cena das grandes. Por fim apontou-lhe uma arma, obrigou-o a conduzir o automóvel até à propriedade de Baxter e, na alameda, matou-o e...
- E como foi para casa? - interrompeu-o Mason.
- Andou a pé até ao local onde deixara o automóvel. É esta, pelo menos, a teoria da Polícia: ela estacionou o automóvel em qualquer lado. Grimes alcançou-a, a rapariga entrou no automóvel dele e obrigou-o a seguir para a propriedade de Baxter, onde o matou. Depois a sua cliente, desfez-se do corpo, arrumou o carro do Grimes e voltou a pé para o dela, tudo isto antes de os portões serem fechados.
- E como explicam o homem que esteve com ela na estação de serviço, Paul?
- Namorado e cúmplice. Assim que a Polícia o descobrir terá um caso estanque.
- Não o poderá fechar - afirmou Mason.
- Não se iluda, Perry; observe a maneira como eles procuram as pontas soltas e as unem.
O advogado ficou pensativo, durante alguns momentos, e depois declarou:
- É pena que o meu segundo primo, Gorman Gillett, não tenha ninguém que lhe custeie o funeral.
Lamento saber que morreu, Paul, e talvez possa contribuir com o dinheiro para o enterro.
- Um momento, Perry! - exclamou Drake, alarmado.- Não se deixe apanhar nessa armadilha!
- Porque não?
- É ilegal. Você não pode... não se atreva a declarar que o homem era seu parente.
- Não conheço nenhuma lei que mo proiba e nada me impede de adiantar o dinheiro para o funeral, se me apetecer.
- Mas não lhes pode ir dizer que era seu parente chegado e reclamar o corpo.
- Para que quero eu o corpo? Vamos apenas até lá dar uma olhadela.
- É tempo perdido - afirmou Drake. - Você está um passo à frente da Polícia porque sabe onde se encontra o pai de Gillett, mas Frankline perdeu-lhe o rasto há muitos, muitos anos. Desde garoto, na realidade.
- Como sabe que assim foi?
- Era, pelo menos, essa a história que contava a toda a gente.
- Ele contava muitas histórias, Paul. Dizia à mulher que partia em viagem de negócios e, aparentemente, mudava-se apenas para a residência de Felting Grimes; depois, quando se cansava de viver aí, dizia a Nell Grimes que ia tratar de negócios e regressava aos encantos de Mrs. Gillett... Pobre velho Gorman, coitado, tem direito a um funeral decente. E eu creio que só terei a ganhar se esta noite não estiver em local onde a Polícia me possa interrogar.
- E eu vou sentir-me emocionadíssimo por ficar no meu cubiculozinho, agarrado ao trabalho e a subsistir de café morno e hamburgers vindos do restaurante ordinário lá de baixo.
Mason voltou-se para Della Street e perguntou-lhe:
- Quer uma boleia, Della?
- Com muito gosto. - Leve um livro de apontamentos e alguns lápis - recomendou-lhe Mason, que acrescentou, momentos depois: - Aconselho-a também a levar um bâton tão claro quanto possível e acho melhor pormo-nos depressa a caminho, para estarmos em Pine Haven por volta das oito horas. - Dirigiu-se a Paul e indagou. - Que descobriu a Polícia acerca da arma, Paul?
- Seja o que for que tenham descoberto, não disseram nada. Mas devem estar a investigar o que lhe diz respeito e tenho o pressentimento de que encontraram algo muito, muito interessante e de que estão decididos a guardar segredo, por ora... Partindo do princípio de que Gorman Gillett era pai de Frankline Gillett, que quer isso dizer?
- Quer dizer que é forçoso admitir que a mortalidade da família cresceu subitamente. Não será uma coincidência extraordinária dois membros da família perecerem numa questão de vinte e quatro a trinta e seis horas?
- Com a breca, Perry, não tinha visto as coisas desse ângulo! - confessou Paul Drake.
- Talvez não se trate de um ângulo... Pode ser uma curva, Drake. - Voltou-se para a secretária e acrescentou:- Vamos, Della; o carro precisa de um pouco de exercício.
Pine Haven ficava a altitude suficiente para reter o puro ar da montanha, enquanto nas terras baixas a atmosfera ressumava humidade. Brilhavam estrelas no céu, de uma limpidez cristalina, no qual se recortavam as silhuetas negras de altos pinheiros e abetos.
Um letreiro luminoso derramava luz colorida sobre a entrada da Bolton Funeral Home. Na frente havia, de um lado, uma capelinha, do outro um escritório e, atrás, um edifício grande e comprido, que fora em tempos residência elegante.
Estavam ainda abertas uma estação de serviço e uma loja de venda de sorvetes e, à esquina, os empregados fechavam um drugstore. Cerca de meia dúzia de pessoas saíam do cinema, mas a restante população da cidadezinha de montanha parecia já recolhida até ao dia seguinte.
Mason estacionou o automóvel defronte da Bolton Funeral Home e encaminhou-se para o escritório, em cuja porta de vidro se lia, em letras douradas: AJUDANTE DO CORONER E CURADOR PÚBLICO
O advogado premiu o botão da campainha e, segundos depois, abriu-lhe a porta um indivíduo de aspecto excêntrico, de cerca de sessenta anos, óculos de aros metálicos, cabelo crespo e desgrenhado, bigode grisalho, pendente, e ombros descaídos.
- Procuro Mr. Bolton - disse-lhe Mason.
- E já o encontrou!
- Chamo-me Mason - apresentou-se o advogado, estendendo-lhe a mão. - Esta senhora é Miss Della Street. Constou-me que tem aqui um corpo que ainda não foi reclamado por nenhuma pessoa de família...
- Gorman Gillett?- perguntou Bolton.
- Exactamente.
- É parente dele?
- Não sei, mas há uma possibilidade - uma possibilidade muito vaga, para ser absolutamente franco... No entanto, resolvi vir até cá ver o corpo. Se se tratar do homem que suponho e não houver outros parentes (talvez deva dizer, antes, se não aparecer ninguém da família a reclamar o corpo), gostaria de, pelo menos, custear as despesas do funeral.
Bolton observou Mason por cima dos ombros e exclamou:
- Isso já é alguma coisa! Entrem.
No ar pesado do interior misturavam-se os cheiros penetrantes do incenso, de flores e de líquido de embalsamação.
- Estive a escriturar os meus livros - explicou Bolton - e preparava-me para me deitar. As noites aqui são um bocadinho frias e eu não queria ligar o aquecimento central; por isso, talvez achem a atmosfera um pouco desagradável... Ora diga-me, Mr. Mason, que tem em mente, acerca do funeral?
- Uma coisa simples e modesta, embora sem irmos para o baratinho...
- Deseja transferir o corpo?
- Preferia não o reclamar - respondeu o advogado. - A minha intenção resume-se em contribuir financeiramente com o bastante para um funeral modesto, mas decente.
- Uma acção muito simpática, sim senhor. Deseja ver os caixões?
- Preferia deixar isso ao seu cuidado – confessou Mason. - No entanto, como por enquanto me tenho baseado apenas num nome, gostaria de ver o corpo, se posse possível.
- Com certeza. Contudo, creio que ficaria impressionado, Mr. Mason, e talvez esta senhora não gostasse de ver as coisas como estão... Compreendem, não se trata de uma daquelas ocasiões em que temos cá um grupo de pessoas de família, um bonito caixão e tudo muito bem arranjado para o velório. Na realidade, a sala está um bocado desarrumada, pois há quatro dias que não temos nenhum funeral. Tenho... Dão-me licença por um minuto ou dois, não dão? Depois podem entrar.
- Faça favor - respondeu Mason.
Bolton levantou-se da secretária e desapareceu por uma porta.
- Você ficará aqui, Della - recomendou Mason.- Direi ao homenzinho que lhe passará um cheque. Iremos até trezentos e cinquenta... Deixe ver o tal bâton claro.
- Qual é a sua ideia? - quis saber a secretária.
- Se quer que lhe diga, não sei. Terá de prestar atenção aos meus sinais.
- Recebeu um sinal de cinco dólares de uma cliente, obrigou-se a pagar cerca de mil duzentos e cinquenta dólares à Agência de Detectives Drake e agora vai arriscar trezentos e cinquenta no funeral de um cadáver desconhecido.
- Parece emocionante, não acha?
- Desastroso, do ponto de vista contabilístico.
- Qual é a opinião do Departamento de Impostos Internos acerca da prática da advocacia com prejuízo?
- Não vêem o caso com muito bons olhos. Subentende-se que as despesas devem ser correntes, necessárias e, creio, razoáveis.
- O dinheiro fez-se redondo para poder circular, Della. Já alguma vez pensou que se eu pegar num dólar e o der ao Paul Drake, este à senhoria e a senhoria ao merceeiro, esse dólar realiza uma tarefa importante na economia nacional? Ao passo que se meter o dólar na algibeira e o deixar ficar...
Mas Della não lhe permitiu que acabasse:
- Se alguma vez metesse um dólar na algibeira e o deixasse ficar, a moeda queimar-lhe-ia a algibeira das calças. Portanto, continue a gastar como até agora, pois poupa estragos nas calças e na anatomia.
- Obrigado. Queria apenas que soubesse que contribuo para a economia do país.
- Na minha opinião, mantém-na virtualmente sozinho.
A porta abriu-se e Bolton regressou.
- Quer ver, Mr. Mason? - perguntou ao advogado.
- Por aqui...
Bolton conduziu-o por um corredor até um aposento cuja porta dizia: CÂMARA-ARDENTE.
A sala tinha luz cor-de-rosa, muito suave, cheirava a perfume forte e altifalantes ocultos transmitiam música suave.
Bolton sorriu, constrangido, e murmurou, em ar de desculpa:
- Liguei mesmo agora a música gravada, mas o volume ainda não está bem... À medida que o amplificador for aquecendo, o volume aumentará. - E, após uma pausa: - Ainda não tive oportunidade de transferir o falecido para a câmara-ardente; está no lugar que destino à gente da terra, mas espero que não se importe.
- Não tem importância nenhuma - afirmou Mason.
- Desejo apenas vê-lo.
Bolton conduziu-o a uma mesa de mármore e levantou um lençol.
- Cá está o velho Gorman Gillett, um filósofo...
- murmurou. - Claro que o limpei um pouco, barbeei... Era um excêntrico que passava a vida a falar de filosofia e coisas parecidas, tinha uma barraquita atravancada de toda a sorte de sucata e dava a impressão de que nunca trabalhava. Por outro lado, parece que também não gastava muito dinheiro. Comprava uma saca de farinha de vez em quando e, chegada a época da caça ao gamo, matava um veado e durava-lhe, a bem dizer, todo o ano.
O olho direito de Bolton cerrou-se, atrás dos óculos descaídos, numa piscadela lenta, enquanto Mason observava o cadáver, sereno na imobilidade da morte.
- É este o homem que procurava?-perguntou-lhe Bolton.
Mason acenou, devagar, e respondeu:
- Não tenho a certeza, evidentemente, mas estou disposto a arriscar... Que espécie de funeral se conseguiria fazer com trezentos e cinquenta dólares?
- Por trezentos e cinquenta dólares poderíamos fazer um funeralzinho muito decente, Mr. Mason; muito decente, mesmo. Essa importância daria para pagar a um sacerdote e a um cantor e para transportar ao cemitério o senhor e Miss Della Street.
Mason continuou a observar o corpo.
- Importa-se de ir perguntar a Miss Street se trouxe o livro de cheques? Se trouxe, peça-lhe que lhe passe um de trezentos e cinquenta dólares.
- Com certeza - prontificou-se Bolton. - Vou imediatamente.
Assim que a porta se fechou, Mason tirou o bâton, puxou o lençol para trás, agarrou na mão gelada do cadáver, “pintou-lhe” as pontas dos dedos e comprimiu-as contra uma folha de papel dobrada que tirou da algibeira.
Repetiu em seguida a operação com a mão esquerda e certificou-se de que obtinha impressões digitais legíveis, sobretudo dos polegares, que rolou cuidadosamente de um lado para o outro. Olhou para a porta, tirou outra folha de papel da algibeira, obteve nova série de impressões e por fim limpou os dedos do cadáver, com um lenço, e puxou o lençol para cima.
Dirigiu-se então para a porta que dava para a outra sala.
Della Street, que tentara dar a Mason todo o tempo de que este precisava para o que quer que pretendia fazer, disse-lhe, ao vê-lo:
- Desculpe, mas enganei-me a preencher o cheque e tive de o rasgar e de preencher outro.
- Não tem importância. Escreva uma nota no talão, para sabermos o que foi.
- Já escrevi - esclareceu Della, entregando o cheque ao cangalheiro.
Bolton passou-lhe uma vista de olhos e fez menção de o guardar na algibeira, mas, de súbito, conteve a respiração e exclamou:
- O senhor é Perry Mason!
- Sou.
- O advogado?
- Sim.
- Não sabia que este homem era seu parente, Mr. Mason...
- Nem eu disse que o era, e, sim, que poderia ser.
- Mas, agora que o viu, que lhe parece? - inquiriu Bolton.
- Passei-lhe um cheque, não é verdade? Portanto, o defunto merecia-me consideração suficiente para lhe pagar o funeral.
Bolton reflectiu, uns instantes, e depois dobrou lentamente o cheque e guardou-o na algibeira.
- Gosto de lidar com pessoas que sabem colocar as coisas numa base comercial - declarou. - Que deseja agora, Mr. Mason?
- Onde vivia Gillett? Disse que tinha uma barraquita, não foi?
- Sim, a cerca de duas milhas daqui. Gostava de a ver?
- Gostava, sim.
- Aguardem um momento, enquanto vou dizer à minha mulher que fique a tomar conta disto. Depois irei com os senhores.
- Tem chave? - perguntou Mason.
- Com certeza. Sou ajudante do procurador público, como sabe, e até agora não apareceram quaisquer parentes.
- O defunto deixou alguma coisa?
- O que deixou não chegaria para lhe pagar o enterro - declarou Bolton. - Bem, mas o senhor quer mesmo dar por lá uma volta, não é verdade?
- Confesso que estou ansioso por estabelecer a verdadeira identidade do morto.
- Claro, claro... Fez um investimento de trezentos e cinquenta dólares e quer qualquer coisa em troca. Não nasci ontem e não espero morrer amanhã, Mr. Mason. Façam, pois, o favor de aguardar um instantinho, enquanto aviso a minha mulher de que tem de tomar conta da loja... Não é que espere alguém, diga-se de passagem. Um indivíduo chamado Jones tem estado muito doente, mas creio que o pior já passou; a avozinha Harper também está muito em baixo, mas vai-se aguentando... Uma mulher internada na casa de saúde é que está por pouco e pode falecer de um momento para o outro... Ficaria surpreendido se soubesse as estranhas horas que as pessoas escolhem para morrer, Mr. Mason! Aí pelas duas ou três da manhã, é sempre possível aparecerem alguns clientes... Bem, mas o senhor não está interessado nestes pormenores; o que lhe interessa é ver a barraquita. Seja, vou avisar a patroa e depois iremos.
Mais uma vez Bolton desapareceu por uma das portas, em passinhos miúdos e rápidos.
- Conseguiu o que pretendia? - perguntou Della Street.
Mason mostrou-lhe as impressões digitais.
- Que provarão?
- Não faço a mínima ideia - confessou o advogado.
- Acha que a Polícia virá até cá?
- Os polícias são indivíduos minuciosos, diligentes e astutos, mas suponho existir uma boa possibilidade de estarmos à frente deles no que se refere a Gorman Giilett.
- E como espera descobrir o que pretende saber?
- Exauriremos as fontes de informação locais.
- Refere-se ao Bolton?
- Refiro-me ao Bolton.
A porta abriu-se e Bolton entrou, a vestir o sobretudo, trazendo uma chave presa a uma corrente que, por sua vez, estava presa a uma chapa metálica com um número gravado.
- Na realidade, ainda não procedi a nenhum inventário- explicou-; dei apenas uma vista de olhos. Mas podem vir comigo, para vermos se encontramos alguma coisa que o convença, Mr. Mason, da identidade do indivíduo.
- Podemos ir no meu carro - disse o advogado. - Está parado aqui defronte e pronto a partir.
- Excelente - redarguiu o cangalheiro. - Terá de descer quatro quarteirões da rua principal, virar à direita e... enfim, temos de subir uma ladeira que tem tendência para ser escorregadia, tanto mais que choveu por cá um bocado. Miss Street não é nervosa, pois não?
- Não, Miss Street não é nervosa - respondeu secamente o advogado.
- Ainda bem. Algumas mulheres são...
Bolton fez menção de se sentar no banco da retaguarda, mas Mason disse-lhe:
- Podemos ir os três à frente; será melhor assim. Ligarei o irradiador e o carro aquecerá num instante.
Della Street entrou no automóvel, com natural graciosidade de movimentos, e deslizou para o meio do banco. Bolton sentou-se a seu lado e observou-a por cima dos óculos, com ar apreciador.
Mason instalou-se ao volante, percorreu os quatro quarteirões de que Bolton falara e perguntou-lhe:
- Vira-se à direita, aqui?
- Exactamente. Vira-se à direita, atravessa-se a ponte sobre o ribeiro e depois sobe-se um bocadinho. Para que tudo corra bem, convém não abusar da estrada; basta manter as rodas a andar e ter calma.
- Obrigado - agradeceu-lhe Mason.
O carro percorreu uma estrada de piso solto; atravessou, aos solavancos, uma ponte de madeira e começou a subir, lenta e firmemente. Passado cerca de um minuto, Bolton respirou fundo e recostou-se, aliviado, no banco.
- Vejo que não é a primeira vez que conduz por estradas de montanha, Mr. Mason. Perguntei-lhe se Miss Street era nervosa, mas a verdade é que o nervoso sou eu, quando tenho de percorrer estes caminhos com um motorista da cidade.
- Está mais tranquilo, agora?
- Muito mais; o senhor percebe de estradas de montanha, Mr. Mason.
- É verdade, como morreu Gillett? Quais foram as causas da morte?
- Oclusão das coronárias, segundo a certidão de óbito.
- Conhece o médico que lhe assistiu?
- Sem dúvida, Mr. Mason, sem dúvida. Foi o velho Dr. Carver; Ewald P. Carver.
Virou a cabeça, com um movimento rápido, fitou Della e depois Mason e acrescentou:
- Uma vez que o senhor é um cliente-pagante, Mr. Mason, esforço-me por lhe ser útil e por o obsequiar, mas gostaria de saber se compreende o que entendemos aqui por médico assistente?
- É, com certeza, o médico que tratava o doente antes de ele morrer, não?
- Bem, não será preciso irmos tão longe... Compreende, é complicado efectuar, neste ermo, um inquérito, e as palavras “médico assistente” podem significar muitas coisas. Se um indivíduo consulta um médico ou o médico o visita, descobre que sofre do coração e o trata dessa doença, quando o referido indivíduo morre não há necessidade de o abrir e lhe remexer nas entranhas- o que, diga-se de passagem, complica muito o trabalho do cangalheiro, pois é difícil embalsamar um corpo depois da autópsia. Alguns médicos percebem do ofício e deixam-nos ponta por onde pegar, mas outros retalham artérias para a esquerda e para a direita e o trabalho de embalsamamento torna-se terrível.
- Aqui para nós, Mr. Bolton, há quanto tempo, antes da morte, vira o Dr. Carver o falecido Gillett?
- Umas vinte e quatro horas antes, talvez.
- E tratou-o de mal cardíaco?
- Está a fazer muitas perguntas, Mr. Mason... e difíceis. Na realidade o Dr. Carver via Gillett na rua, ou no posto dos Correios ou em qualquer outro lado parecido, reconhecia-o e dava-lhe uma vista de olhos. Ficaria surpreendido se soubesse o que um médico fica a saber de uma pessoa só por olhar para ela e observar as coisas que faz! Alguns têm tanta prática que até parece incrível o que descobrem.
- Compreendo - murmurou Mason. - Portanto, o Dr. Carver viu Gillett no posto dos Correios e percebeu que ele morreria, provavelmente, dentro de vinte e quatro horas, com uma oclusão das coronárias?
- Bem, Mr. Mason, isso é uma maneira de dizer... É essa a maneira que lhe convém?
- A maneira que me convém é a dos factos.
- Quer, então, a verdade pura?
- Exactamente.
- Nua e crua?
- Nua e crua.
- Bem, o senhor é um cliente-pagante, como já disse, e tem o direito de ser servido. Vou contar-lhe, por isso, como as coisas se passaram. Gillett tinha um amigo chamado Ezra Honcutt, com o qual combinara ir vadiar um pouco... O Ezra não me disse qual era o fim da passeata, mas juraria que iam ver se arranjavam um bocado de carne de veado... Seja como for, o Ezra chegou à barraca, onde ficara de tomar o pequeno-almoço com Gorman, mas este, ao que julgou, ainda não se levantara. Não havia sinais nenhuns de actividade, nem lume aceso, nem cheiro de café no fogão. Ezra entrou na barraca, com a naturalidade habitual nestes sítios, viu o amigo deitado na cama e, de brincadeira, chamou-lhe preguiçoso e disse-lhe mais algumas palavras sem importância. Ao verificar, porém, que o amigo não respondia nem se mexia, aproximou-se, deu-lhe uma palmada num ombro e compreendeu logo que Gorman morrera. Depois, foi a correr ter comigo, contou-me o que acontecera, eu fui à barraca, vi o que se passava e... enfim, o senhor sabe como estas coisas são. Sabedor de que o Dr. Craver o vira diversas vezes, procurei-o e disse-lhe: “Acho melhor vir comigo dar uma vista de olhos, doutor”. O doutor acompanhou-me, deu uma vista de olhos, perguntou-me se estava tudo bem, respondi que assim parecia, ele puxou os cobertores para trás, despimos o defunto e não encontrámos buracos de balas nem nada suspeito. “Oclusão das coronárias?”, perguntou-me o doutor, e eu respondi: “Oclusão das coronárias.” Em seguida ele declarou: “Pronto, como sou o médico assistente passarei a certidão de óbito, declarando que a morte foi causada por oclusão das coronárias.” Trouxe, então, o corpo para a minha loja e aqui tem, em substância, como as coisas se passaram. Claro que não o diria assim a toda a gente, mas como o senhor é um cliente-pagante, tem o direito de ser informado.
- Obrigado - agradeceu-lhe Mason. -Já sabemos que este homem, Gorman, não tinha parentes, mas teria amigos? Refiro-me a amigos do exterior, de fora da cidade.
- Tenho estado a pensar precisamente nisso, Mr. Mason. Gorman não era o que se chama uma pessoa sociável, como compreenderá assim que vir a maneira como vivia. Tinha dois ou três amigos aqui, com os quais ia caçar e pescar... enfim, pescar e caçar furtivamente, compreende? Vivemos numa região onde há veados e não gostamos de gastar o nosso dinheiro todo nos talhos... Somos respeitadores da lei, sem dúvida, mas não exageramos...
- Compreendo.
- Como ia dizendo, o velho Gorman tinha dois ou três amigos, velhos vagabundos como ele, mas ultimamente, talvez nos dois últimos anos, vinha vê-lo de automóvel um indivíduo bem parecido, que nunca parava na cidade nem falava a ninguém. Ia direito à barraca do Gorman Gillett, ficava um bocado com ele, metia-se outra vez no automóvel e partia.
- Claro que, por cá, houve curiosidade em saber quem seria essa pessoa?
- Naturalmente, Mr. Mason. Não se pode impedir as pessoas de falarem do que se passa na cidade. Fala-se de tudo quanto é novidade e parece estranho.
- Disse, então, que esse homem aparecia de vez em quando, nos últimos dois anos?
- Bem, talvez não fosse, exactamente, há dois anos, e sim há mais. Ninguém sabe, ao certo, quando começou a aparecer porque, ao princípio, ninguém reparou. Mas passado algum tempo, houve quem notasse que o automóvel costumava parar defronte da barraca do Gorman e, uma vez, o indivíduo teve de meter gasolina...
- Onde? - interrompeu-o Mason, interessado.
- Na estação de serviço da esquina, a seguir ao meu escritório.
- Acha que se terá servido de um cartão de crédito e que será possível saber, por aí, o número da matrícula ou...
- Por esse lado, nada feito - interrompeu-o, por sua vez, Bolton. - Pensei nisso, quando tentei encontrar quem pagasse o funeral, mas não encontrei registo do número da matrícula... Depois de atravessar essa vala-zinha, à frente, vire à esquerda e suba uma pequena entrada de carros - prosseguia Bolton, mudando de assunto. - Mas cuidado, agora... Cá está, vire à esquerda e suba.
Mason virou à esquerda, subiu devagar uma entrada de carros bastante íngreme e perguntou:
- Suponho que Gorman Gillett não tinha automóvel?
- Automóvel?! Homem, ele nem tinha escova de dentes!
Os faróis iluminaram uma cabana tosca e Bolton observou:
- Não sei se Miss Street quererá entrar... O pobre diabo deixava muito a desejar, no capítulo de arranjos domésticos, e não deve estar acostumada ao que a espera.
- Não haverá novidade - afirmou Mason. - Queremos dar uma olhadela. E a respeito de luz, há electricidade?
- Apenas uma lanterna a gasolina - respondeu o cangalheiro. - Trouxe fósforos.
Apearam-se do automóvel e encontraram-se num tapete fofo de agulhas de pinheiro e folhas. Bolton conduziu-os à cabana, introduziu a chave na fechadura, abriu a porta, entrou e acendeu um fósforo.
- É melhor esperarem que encontre a maldita lanterna - aconselhou.
Della Street fungou, ao chegar-lhe às narinas o cheiro cediço de ocupação humana, e Mason recomendou-lhe:
- É melhor fumar um cigarro, Della.
- Aceito, obrigada.
Mason tirou o maço de cigarros da algibeira e comentou:
- Faz-me falta a cigarreira de prata.
- Acha que a recuperará?
- Sim, a seu tempo. Virá todai riscada com as iniciais do Tenente Tragg, como recordação.
Mason acendeu o cigarro de Della e, depois, outro para si. Dentro da cabana, Bolton dava à bomba da lanterna e riscava um fósforo. A torcida crepitou, por momentos, em seguida o crepitar transformou-se numa espécie de silvo e uma luz branca e brilhante iluminou o interior da habitação.
- Podem entrar - convidou Bolton.
A barraca constava de uma única divisão, com uma tarimba de um lado, uma mesa do outro e um fogão no meio, além de um lavatório com duas torneiras, para água quente e fria, três cadeiras e um caixote de madeira reforçado, que também servia de cadeira. Numa prateleira viam-se alguns alimentos enlatados, meia dúzia de pratos e uma caixa de charutos com diversas facas muito gastas, garfos e colheres ferrugentas, e noutra, por cima do fogão, uma velha cafeteira amolgada e uma chaleira. De um prego da parede pendia um alguidar.
- Vivia de maneira muito simples - explicou Bolton.
- Bem vejo.
O advogado dirigiu-se para um canto do aposento, onde se encontravam diversos caixotes pregados uns aos outros, que serviam de depósito, a dúzias de velhas revistas.
- Não encontraram papéis nenhuns? - perguntou Mason.
- Nenhuns. Nem sequer o risco de uma caneta. Não sei, até, se possuía alguma caneta... Encontrámos uma ponta de lápis, por aí algures.
As revistas estavam metidas na estante improvisada sem nenhum arremedo de ordem ou arrumação. Mason puxou uma cadeira, sentou-se e começou a folheá-las.
- Costumava trazer-lhas um amigo, de uma loja de venda de revistas em segunda mão - explicou Bolton. - Comprava-as quando custavam um dinheiro cada uma.
Mason continuou a folhear as velhas revistas. Todas as histórias pretendiam revelar pormenores secretos de verdadeiros crimes e tresandavam, razoavelmente, a homicídio.
- Era só disso que ele gostava - observou Bolton, interpretando os pensamentos de Mason. - Eu gosto de histórias de detectives e a minha mulher de viagens... Enfim, cada um tem o seu gosto. Gillett gostava de assassínios.
- Está aqui uma diferente - disse Mason, indicando um exemplar do Saturday Evening Post de uns dois anos e meio atrás.
- Tem razão, também reparei nisso quando cá estive a fazer o inventário - aquiesceu Bolton. - Foi a única revista normal que encontrei.
Mason folheou a revista e, de súbito, parou; mas percebeu que Bolton o observava, continuou a virar as páginas, com ar desinteressado, e, no fim, atirou-a para um lado.
- Disse que ele vivia de carne de veado, não disse?
- Sim, em grande parte.
- De que se servia para matar os veados?
- Claro, o senhor tinha de perguntar isso! - exclamou Bolton.
- Possuía alguma espingarda?
- Possuía uma espingarda excelente e diga-se desde já que a conservava bem lubrificada e reluzente. Não tinha nem mancha de poeira nem grãozinho de pó.
- Onde está?
- Levei-a para casa, para estar mais segura. Trata-se de uma arma excelente e sabe-se lá o que lhe aconteceria se a deixasse aqui. Tencionava ficar com ela, em pagamento do funeral, se não aparecesse ninguém que o custeasse.
- Bem, Mr. Bolton, se não existirem herdeiros, será a si que lhe competirá guardá-la, não é assim?
- Sabe que é um excelente advogado, Mr. Mason? Possui o tipo exacto de mentalidade, aquilo a que chamam mentalidade legal. Aposto que se arranjasse aqui uma cabana e se instalasse, adaptar-se-ia muito bem às pessoas da terra.
- Eis uma ideia interessante - concordou Perry Mason. - Se alguma vez dispuser de um pouco mais de tempo, talvez me agrade possuir uma cabana onde passe os fins-de-semana e as férias.
- Não há terra melhor do que esta, garanto-lhe! As pessoas vêm para a montanha com um pé no outro mundo e continuam a viver, a viver... Eu que o diga, com a breca! Não calcula o dinheiro que tenho perdido com gente que vem para cá com os pés para a cova e depois arriba! Mas deseja ver mais alguma coisa, Mr. Mason?
- Creio que não. Presumo que já passou em revista todo o espólio?
- Quase nem merece essa denominação, mas já, sim, senhor. Quando me apanho com um cadáver nas mãos e sem dinheiro para lhe fazer o enterro, revisto tudo muito bem.
- Gorman Gillett não deixou dinheiro nenhum?
- Dezassete dólares naquela velha lata de café e mais nada.
- Não havia cartas, nem postais, nem alguma coisa indicativa de que alguém lhe escrevia ou se interesssava por ele?
- Absolutamente nada.
- Preciso de ir ao carro buscar a pasta antes de nos irmos embora - disse Mason. - Gostaria de lhe mostrar uma coisa.
- Podíamos ir todos para o automóvel e... - sugeriu Bolton.
- Não - discordou o advogado. - Esta lanterna dá muito boa luz e talvez você vá precisar de uma boa luz...
- Eu vou buscá-la - prontificou-se Della Street e, acto contínuo, saiu da barraca e regressou pouco depois com a pasta de Perry Mason.
- Ao referir-se, há pouco, ao indivíduo que costumava visitar Gorman Gillett, disse, suponho, que o viu?
- indagou o advogado.
- Vi, sim.
- Reconhecê-lo-ia se o voltasse a ver?
- Creio que sim.
- Seria capaz de reconhecer uma fotografia dele?
- Isso é diferente; depende muito da fotografia. Tenho visto fotografias em que é fácil reconhecer as pessoas fotografadas e outras em que já não acontece assim. Não sei se o mal é das pessoas, se das fotografias.
Mason tirou o retrato de Frankline Gillett da pasta e estendeu-lho.
Bolto observou-o, pensativamente, depois aproximou-se da lanterna e segurou a fotografia de maneira que a luz incidisse directamente nela.
- É difícil dizer...-murmurou. - A fotografia não é colorida e, na minha opinião, as cores desempenham grande papel na identificação. Apesar disso, estou em crer que era este o indivíduo.
- Bem, eu gostaria de ter a certeza, mas...
- Parece, sem dúvida, ser ele - interrompeu-o Bol-ton. - Mas, ouça: Hy Lovell está na estação de serviço até às onze e meia e ele viu bem o sujeito, além de ser um rapaz muito curioso. Por outro lado, Ezra Honcutt, o indivíduo que encontrou o corpo, vive cerca de uma milha mais acima, na estrada.
- Poderíamos falar-lhe? - perguntou Mason, interessado.
- A esta hora já está deitado... mas se o senhor lhe quer falar, falará mesmo!
- Quero, com certeza.
- Então vamos.
Apagaram a lanterna, Bolton fechou a porta da barraca à chave e Mason conduziu o carro pela estrada acima, até uma cabana indicada por Bolton.
- É melhor ir eu acordá-lo - decidiu o cangalheiro.
- A gente daqui desconfia, às vezes, um bocado dos desconhecidos, sobretudo quando aparecem à noite.
Apeou-se do automóvel, deu alguns passos e chamou:
- Ezra, eh, Ezra!
Quase no mesmo instante, uma voz seca e áspera perguntou, de dentro da cabana:
- És tu, Manny?
- Sou - respondeu-lhe Bolton.
- Que queres?
- Conversar.
- Quem está contigo?
- Um homem e uma rapariga nova.
- Quem são?
- Pessoas da cidade.
- Não me apetece conversar.
- Com este indivíduo apetece, com certeza. Não há novidade. Além disso, a mulher que o acompanha é muito jeitosa!...
- Estou em trajos menores...
- Larga a espingarda, acende a luz e veste um macaco por cima do resto - insistiu Bolton.
- Quem te disse que estou a pegar na espingarda?
- Não nasci ontem nem espero morrer amanhã - resmungou Bolton. - Aposto que saltaste da cama e, mal puseste os pés no chão, agarraste na espingarda, assim que virámos a curva e os faróis iluminaram a tua janela. Vamos, deixa-te de conversas, veste-te e abre a porta.
- Está bem, está bem - rosnou Ezra. - Dá-me ao menos tempo, homem, com os diabos!
Mason e Della continuaram no automóvel, enquanto Bolton aguardava, impaciente, na estrada. Por fim acendeu-se uma luz, na cabana, e o cangalheiro aproximou-se e empurrou a porta.
- Esperem um momento que os chame - disse. Passado cerca de um minuto, voltou à porta e anunciou:
- Pronto, agora está decente; vestiu o macaco. Mason e Della apearam-se do automóvel e entraram na barraca, que também tinha apenas uma divisão, mas estava mais limpa e arrumada que a de Gillett.
Ezra Honcutt era um indivíduo alto e cadavérico, que vestia apenas um conjunto de roupa interior, de lã encarnada, e fato-macaco. O muito uso desbotara a camisola interior, que devia ter sido vermelho-cereja e estava um pouco suja. Os pés enormes, com as juntas dos dedos grandes muito deformadas, estavam descalços.
Os cobertores da cama, que ficava num extremo da quadra e não tinha lençóis, haviam sido agressivamente puxados para trás, e uma toalha turca, encardida, servia de fronha à almofada. Num canto, junto da cama, via-se uma espingarda de caçar veados; um revólver de seis tiros e um cinto cheio de cartuchos pendiam de um cabide de madeira.
- Ezra Honcutt-apresentou-o Bolton.-Este senhor e Perry Mason e a jovem que o acompanha chama-se Street.
Ezra Honcutt observou-os, com ar um tanto furtivo. Andaria pelos sessenta anos, era ossudo, tinha pescoço comprido e fino, maçã-de-adão saliente e melenas desgrenhadas.
Estendeu a mão por cima da mesa, apertou os dedos de Mason e murmurou:
- Prazer em conhecer...
Olhou para Della Street, inclinou timidamente a cabeça e disse-lhe:
- Tenho por aí um roupão. Se soubesse que era tão fina tê-lo-ia vestido...
- Deixa lá isso agora - interveio Bolton. - Estás decente e é quanto basta. Este homem tem uma fotografia que gostava que visses.
- Que espécie de fotografia?
- De um tipo - explicou Bolton.
- Está bem, mostre.
Mason tirou a fotografia da pasta e estendeu-a a Honcutt, a quem Bolton perguntou:
- Alguma vez viste esse tipo, Ezra?
O interpelado observou o retrato com atenção e devolveu-o, com um gesto lento. Em seguida, com ar pensativo, tirou da algibeira das calças um rolo de tabaco, partiu um bocado e meteu-o na boca.
- Conhece-lo? - perguntou-lhe Bolton.
- Não tenho a certeza.
- Mas que te parece?
- Parece-me que sim.
- Quem é?
- Um tipo que veio aí umas vezes, visitar o Gorman.
- Foi o que eu pensei! - declarou Bolton. - Sabes como se chama?
- Não.
- Nunca falaste com ele?
- Nunca.
- Era só isso que queríamos saber; agora vamo-nos embora. Desculpa ter-te obrigado a levantar, mas aqui este amigo está com pressa, pois tem de regressar ainda esta noite à grande cidade.
Os olhos azuis claros de Ezra perscrutaram o rosto de Mason, o que provocou uma gargalhadinha a Bolton.
- De que te ris? - perguntou-lhe o velho. - Julgas conhecê-lo, não?
- Acho-lhe um não sei quê de familiar - confessou Honcutt.
Bolton deu outra gargalhadinha.
- Então, não me dizes?
- Não te digo o quê, Ezra?
- O que há de familiar nele.
- Se é preciso dizer-te, então não te é assim tão familiar...
- Seja. não é.
- Voltarás a vê-lo, descansa - prometeu-lhe Bolton, despedindo-se. - Até breve.
- Não me dizes? - repetiu Ezra Honcutt, erguendo as sobrancelhas, magoado.
- Não te digo coisa nenhuma. Temos de ir andando.
Ezra levantou-se da desengonçada cadeira e endireitou-se a toda a altura do seu metro e oitenta bem puxado. Estendeu o braço comprido e ossudo e os seus dedos nodosos apertaram uma vez mais os de Mason.
- Muito prazer - repetiu.
- O prazer foi meu e muito obrigado pela sua ajuda - respondeu-lhe o advogado.
O velho olhou em seguida Della Street, baixou imediatamente os olhos e despediu-se:
- Boas noites, minha senhora.
- Boas noites. Tive muito prazer em o conhecer e agradeço-lhe a ajuda que nos deu. - E, impulsivamente, Della aproximou-se e estendeu-lhe a mão.
A maçã-de-adão de Honcutt subiu e desceu duas vezes antes de o velhote conseguir articular:
- Muito obrigado, minha senhora, muito obrigado.
- Tocou-lhe um instante nos dedos e depois recuou a mão. . .
- 'Até à vista - despediu-se por sua vez Bolton, saindo à frente dos outros da cabana. - Quer ir falar com Hy Lovell, à estação de serviço? - perguntou a Mason.
O advogado acenou afirmativamente e conduziu o automóvel ao longo da estrada escorregadia, desviando-se das numerosas poças de água lamacenta, de regresso a Pine Haven.
Parou junto da estação de serviço e pediu ao empregado:
- Encha.
O rapaz olhou-o com curiosidade e observou detidamente Della Street, mas não disse nada.
- Este amigo queria fazer-te umas perguntas - informou-o Bolton.
- Às ordens.
- Desejava que visses uma fotografia.
- Pois sim.
Mason apeou-se, seguido pelos outros, abriu outra vez a pasta, tirou a fotografia e mostrou-a a Lovell.
- Alguma vez viste esse tipo?-perguntou Bolton ao empregado.
Lovell segurou a mangueira da gasolina com a mão esquerda e, sem fazer qualquer esforço para tocar na fotografia, inclinou-se e observou-a durante uns cinco segundos. Em seguida endireitou-se e dedicou toda a sua atenção ao jorro de combustível que entrava no depósito.
- Então? - perguntou-lhe Bolton.
- Vi.
- Onde?
- É o tipo que veio cá encher o carro e visitou o Gorman Gillett várias vezes.
- Obrigado - agradeceu-lhe Bolton.
Mason guardou o retrato na pasta e Lovell ajustou a tampa no depósito de gasolina, verificou o óleo e a água, lavou o pára-brisas e disse ao advogado:
- Três dólares e oitenta e cinco.,
Mason estendeu-lhe uma nota de cinco dólares e disse-lhe:
- Estou com pressa e não tenho tempo de esperar pelo troco. Muito obrigado.
Saltou para o automóvel, Della instalou-se a seu lado e, a seguir, Bolton.
- Parece que é, de facto, ele - comentou o cangalheiro, mal o carro arrancou.
- Pois parece.
- Pode deixar-me na minha loja?
Mason parou o automóvel defronte da Bolton Funeral Home e Bolton despediu-se:
- Bem, então boas noites...
- Muito obrigado - agradeceu-lhe o advogado.
- Muito obrigado sou eu, Mr. Mason.
- Não me perguntou quem é o indivíduo - observou-lhe o advogado.
- Pois não. Calculei que, se mo quisesse dizer, o diria sem lho perguntar, e se não quisesse não diria mesmo que lho perguntasse. O senhor é um cliente-pagante...
- Creio que verá o rosto da fotografia nos jornais de amanhã. Confidencialmente, tenho motivos para crer que se trata do filho de Gorman Gillett, mas não queria que dissesse nada enquanto não tiver a certeza.
Bolton abanou a cabeça e redarguiu:
- Quando quiser que não diga nada acerca de alguma coisa, não me fale nela. Agora, como falou, direi.
- Está bem, diga - replicou-lhe Mason, sorridente.
- E direi mesmo! Nestas redondezas, um tipo que é o primeiro a falar numa coisa desse género torna-se importante.
- Está bem, você pode ser importante amanhã...
- Qual amanhã, qual nada! Vou já voltar atrás, à estação de serviço!
O cangalheiro acenou-lhes e Mason seguiu o seu caminho ao longo da estrada alcatroada.
- Então? - perguntou-lhe Della Street.
- Parece que a morte não perdeu tempo, depois de escolher a família Gillett.
- E o neto, acha que estará em segurança?
- Não sei, Della, mas tentaremos descobri-lo.
- Porque lhe disse, Perry?
- Porque lhe disse o quê?
- Que Frankline Gillett era filho de Gorman Gillett.
- Ele foi franco comigo e eu pensei que podia ser franco com ele... tanto mais que reconhecerá a fotografia quando a vir nos jornais. Não sei se reparou, mas tinha os jornais citadinos em cima da secretária.
- Está bem, Perry, deixe-se de mistérios. Que dizia o Saturday Evening Post?
- Porque pensa que dizia alguma coisa de especial?
- Porque você o folheou, parou, olhou para cima, viu que Bolton o estava a observar e continuou a passar as folhas, com ar tão casual que percebi ter encontrado qualquer coisa de interesse.
- Fui assim tão explícito?
- Para mim, foi. De que se tratava?
- De um artigo acerca de um comerciante que ganhou uma fortuna a comprar velhas casas de adobe, a arranjá-las de maneira a conservarem a antiga aparência e a mobilá-las com todas as comodidades modernas, a fim de as vender com um lucro espantoso. O nome do comerciante, no caso de lhe interessar, era...
- George Belding Baxter! - exclamou Della Street, ao mesmo tempo que Mason.
O advogado sorriu e a secretária riu francamente.
- Continuamos um passo à frente da Polícia - acrescentou Mason. - Agora entregaremos a Paul Drake as impressões digitais que recolhi e veremos o que resulta.
Mason fechou no trinco a porta do seu gabinete particular, atirou o jornal da manhã para cima da secretária e perguntou:
- Olá, Della, há quanto tempo chegou?
- Há quinze ou vinte minutos.
- O Paul Drake deu notícias?
- Disse que tinha muitas novidades e pediu que o chamasse assim que chegasse.
- Que tal se sente ele?
- Terrivelmente. Esteve quase toda a noite a pé, os litros de café que bebeu causaram-lhe indigestão e afirma que os hamburgers se lhe azedaram todos no estômago. Diz que tomou tanto bicarbonato de soda que se sente como um biscoito!
- Coitado do Paul, voltou à normalidade! Diga-lhe que cheguei, Della, e peça-lhe que venha dar-me as tais novidades.
Della Street telefonou ao detective e, segundos depois, Drake batia à porta.
Fitou Perry Mason, com os olhos encovados, e disse-lhe:
- Não há dúvida de que pintou o diabo em Pine Haven.
- Que aconteceu?
- O Tenente Tragg foi para lá, a ferver.
- Ver se encontrava alguma pista? - perguntou Mason, a sorrir.
- Ver se descobria o que você lá esteve a fazer.
- Enquanto conseguir mantê-lo a correr atrás de mim dessa maneira, estou garantido! - afirmou o advogado, bem disposto. - Que me diz das impressões digitais que deixei no seu escritório, a noite passada?
- De quem eram?
- Oh, Paul mauzão! - replicou Mason, a abanar a cabeça. - Sabe muito bem que não deve fazer perguntas quando as respostas são susceptíveis de lhe proporcionarem conhecimentos embaraçosos.
- Recorri a um perito de dactiloscopia, pedi-lhe que classificasse as impressões digitais e arranjámos um chefe de Polícia simpático, de uma cidade distante, que acedeu a telegrafar ao F. B. I., depois de feita a classificação.
- Já teve notícias?
- Ainda não, mas devem estar a chegar de um momento para o outro... se houver algum cadastro, evidentemente. Diga-me, Perry, as impressões digitais não eram...
Drake não completou a pergunta e Mason incitou-o:
- Não eram...?
- Creio que não me interessa a resposta. Eis uma informação que lhe convém saber: a Polícia identificou a arma, o que, aliás, lhe não foi difícil nem lhe deu muito trabalho. Foi comprada por George Belding Baxter, que a deu à governanta há cerca de duas semanas.
- Quem é a governanta?
- Minnie Crowder.
- Estava de folga quando foi cometido o crime, não é verdade?
- E que fez com a arma?
- Baxter deu-lha há cerca de duas semanas, como disse, e há uns oito ou nove dias ela deixou-a cair da algibeira do casaco e perdeu-a. Teve medo de informar o patrão, pois este relutara em lha dar, a pretexto de recear que a perdesse, por descuido, alguém a achasse e se servisse dela para cometer um crime, e como estava registada em nome dele...
- Pois sim, e que aconteceu?
- Ninguém sabe. A arma caiu-lhe da algibeira, quando a governanta passeava com o casaco no braço.
- Trata-se, efectivamente, da arma do crime?
- Não deram qualquer informação a esse respeito, mas as probabilidades são de cem contra uma. George Belding Baxter afirmou que só comprou uma arma e que foi essa que deu à governanta, para sua protecção.
- Vou preparar as coisas para uma audiência preliminar, Paul, e expedir citações. Quero que mande uma a George Belding Baxter, convocando-o a depor como testemunha de defesa.
- Não pode fazer isso, homem!
- Porquê?
- Com os diabos, Perry, tenha dó! George Belding Baxter é multimilionário, tem interesses em todo o país e está prestes a partir para Honolulu.
- Mas não partirá, depois de eu o citar como testemunha.
- Pintará a manta!-advertiu Drake.
- Ponha-lhe já um homem na sombra, Paul; quero-o vigiado, para quando chegar a altura de lhe mandarmos a citação sabermos onde se encontra. Claro que não convém que perceba que o vigiam. Quero que intime também a governanta, Minnie Crowder, e o guarda... Como diabo se chama ele?
- Corley Ketchum.
- Muito bem, convocaremos todos. E agora diga-me. Paul, qual é a teoria da Polícia?
- Deus sabe, a esta hora! Pensavam que Gillett e Gwynn Elston se haviam encontrado, zangado, entrado por qualquer motivo na propriedade de Baxter e que ela o matara aí. Pensavam, também, que provavelmente alguém a acompanhava...
- Essa era a teoria inicial - interrompeu-o Mason. - Ainda a perfilham?
- Não sei, mas creio que soltariam a rapariga, pelo menos por enquanto, se ela lhes contasse uma história convincente.
- Para depois a obrigarem a comparecer perante um grande júri - comentou Perry Mason.
- A sua recusa absoluta em falar, em responder seja a que perguntas for, colocou-a na berlinda, no que respeita a publicidade. Toda a gente pensa que é culpada, pois de contrário não manteria tal mutismo.
- Estou-me nas tintas para o que toda a gente pensa, Paul; o que o júri vai pensar é que conta. Tem alguma coisa a dizer-me acerca do indivíduo que estacionou o automóvel do lado de fora dos portões da propriedade de Baxter...?
Drake interrompeu-o, abanando decididamente a cabeça:
- Já lhe disse que tal homem não existiu! Houve um homem, de facto, mas acompanhava Gwynn Elston quando ela parou na estação de serviço. Esse indivíduo perguntou ao empregado qualquer coisa acerca da sala de espera e depois seguiu a direcção contrária. O empregado não tentou detê-lo, pois se às vezes as pessoas fazem confusão com as explicações que lhes dão e seguem caminhos errados, acabam sempre por encontrar o que procuram. Este indivíduo, porém, contornou a estação de serviço e assim que se apanhou do lado escuro pôs-se ao fresco.
- Deixando Gwynn Elston com uma arma “quente” nas mãos!
- Isso é o que ela diz. Acredita nela, tendo em vista todas as outras provas?
- Não sei - respondeu Mason.
- É que, se acredita, deve ser a única pessoa nessas condições - afirmou Drake.
- Nesse caso, compete-me resolver o problema dos serviços de propaganda de maneira que outros possam, também, acreditar nela.
- Quais outros?
- Possíveis jurados.
- Como espera conseguir isso?
- Você fornece-me factos, eu misturo-os com uma teoriazinha e talvez consigamos confeccionar um bolo.
- Veja lá se não queima os dedos, ao cozê-lo - advertiu-o Drake.
- Não me esquecerei do seu aviso.
- Pelo meu lado, serei cuidadosíssimo com os meus dedos.
- E agora ao trabalho, Drake. Ponha homens na peugada de Baxter, a fim de sabermos sempre onde ele está, e...
O telefone retiniu e o advogado calou-se. Della levantou o auscultador, fez sinal a Paul e disse-lhe:
- É do seu escritório.
Drake aceitou o auscultador que ela lhe estendia e atendeu:
- Estou... Sim... Diga lá isso outra vez... Que nome?... - Fez sinal a Miss Street e pediu-lhe: - Escreva, Della, por favor... Como se escreve?... Diabo, mas nós sabemos tudo a seu respeito! - Calou-se, por momentos, e depois perguntou:-Tem a certeza?... É singular! Quem era o outro tipo?... Collington Hal-sey?... H-a-l-s-e-y?... Está bem. Repita lá o primeiro nome, mais uma vez... C-o-l-!-i-n-g-t-o-n? Collington?... Muito bem. E onde foi isso?... Quando?... Óptimo, percebi... Nenhuma tentativa para mudar de nome, hem?... Está bem.
Drake desligou e disse a Mason:
- As impressões digitais eram de Gorman Gillett. Esteve sete anos preso em Fort Madison, no Iowa, por roubo à mão armada.
- Há quanto tempo?
- Há vinte anos.
- A quem se refere o outro nome?
- A um cúmplice dele. Collington Halsey e Gorman Gillett fugiram, A Polícia acabou por apanhar Gillett, mas nunca deitou a mão a Halsey. O F. B. I. ficou um pouco entusiasmado quando o chefe da Polícia mandou as impressões digitais; querem saber onde ele se encontra, pois pensam que talvez saiba o paradeiro do Halsey, a quem desejam interrogar a respeito de um homicídio.
- Se sabe onde está o Halsey, guardará a informação. Gorman...
- Está bem, Perry, já sabemos - interrompeu-o Drake. - Que motivos o levaram a proceder assim?
- Uma ideia.
- Até aí calculei eu. Trata-se de alguma coisa que esteja disposto a dizer-me?
- Trata-se apenas de um pressentimento, de uma coisa muito vaga.
- E não ma quer dizer? - insistiu o detective. Mason abanou a cabeça e atalhou:
- Vá, mande os seus homens vigiar o Baxter, até eu poder intimá-lo. Não perca tempo.
- O F. B. I. está muito interessado em Gorman Gillett...
- Diga-lhes que mandem uma coroa de flores para o funeral.
- O polícia que enviou as impressões digitais disse-me que o departamento quer que lhe dê todas as informações que puder.
- Ao meio-dia já o F. B. I. saberá o que se passa; a primeira coisa que Tragg e os seus homens farão será tirar as impressões digitais do Gorman Gillett, pelo sim, pelo não.
- E porque as tirou você?
- Pelo sim, pelo não também. Vá, Paul, não perca mais tempo.
Depois de Drake sair, Della perguntou ao advogado:
- Posso sugerir qual foi a sua ideia?
- Pode.
- George Balding Baxter?
Mason acenou afirmativamente.
- É uma ideia ousada, mas comecemos por somar dois e dois e vejamos que resultado obtemos. Gorman Gillett era amigo de Collington Halsey, de cumplicidade com o qual praticou um roubo à mão armada; Gillett cumpriu pena de prisão, mas Halsey escapou e nunca mais lhe encontraram o rastro. Que significa isto?
- Diga-me o senhor - pediu Della.
- Significa que Halsey começou vida totalmente nova. Abandonou o mundo do crime e guindou-se a posição tal que jamais alguém ousaria desconfiar dele.
- Porque deduziu tudo isso?
- Porque tinham as suas impressões digitais arquivadas e nunca mais voltaram a vê-las. Ora, é sabido que, mais cedo ou mais tarde, a Polícia encontra em qualquer parte as impressões digitais de alguém que esteja na fronteira do crime.
- Não encontrou as minhas... pelo menos recentemente- comentou Della Street.
- Você não está na fronteira de uma vida criminosa, o que não impede que, de vez em quando, lhe tirem as impressões digitais. Mas alguém que lide com criminosos acaba quase infalivelmente por ser apanhado por suspeita disto ou daquilo e por ver as suas impressões digitais tiradas e confrontadas pelo F. B.I., sempre que o homem procurado esteja em liberdade. O Halsey, porém, sumiu-se por completo.
- 'Continue - pediu Della.
- Gillett cumpriu a sua pena, decidiu mandar ao diabo a vida de delinquente, arranjou uma barraca numa cidadezinha de montanha e instalou-se, vivendo de veados e trutas, com um pouco de farinha e toucinho para variar, de vez em quando. Mas um dia, há dois anos e meio, pegou num exemplar do Saturday Evening Post e viu fotografias de George Belding Baxter, o multimilionário... Suponhamos - suponhamos apenas - que ele reconheceu, nessas fotografias, o seu cúmplice, Colling-ton Halsey. Na sua opinião, que terá acontecido, depois?
- Imagina que Gillett comunicou com George Belding Baxter?
- Porque não?
- Não parece ter lucrado muito com isso.
- Nem ele queria lucrar muito com isso. Nessa altura não pretendia mais que uma saca de farinha, um pouco de toucinho, café e sal. Era um homem feliz.
- E depois?
- Depois o filho encontrou-o - prosseguiu Mason. - O filho não se orgulhava muito do pai, mas ia aparecendo, para o ver. A certa altura, porém, começou a perguntar a si mesmo de que viveria o pai e tornou-se um filho solícito, com curiosidade de saber de onde vinha o dinheiro...
- O senhor fascina-me, Perry!
- -A situação é fascinante, Della. O filho descobriu que Baxter era Collington Halsey e começou a levar uma vida dupla. Cometeu bigamia, saltitava de lado para lado, tinha um negócio misterioso acerca do qual ninguém sabia nada, não apresentava declarações de rendimento conjuntas... Começou, enfim, a viver à grande.
- E depois?
- E depois, de súbito, a morte interveio; pai e filho morreram com o intervalo de quarenta e oito horas um do outro e Baxter mostra-se muito apressado em sair do país. Assim, se alguém se lembrar de recolher as impressões digitais dos habitantes da sua casa, para verificar se estão ilibados, ninguém poderá dizer-lhe: “Se não se importasse, Mr. Baxter, gostaria de lhe tirar as impressões digitais, apenas para efeitos de comparação.”
- E o senhor prepara-se para enviar a George Belding Baxter uma intimação - comentou Della, e Mason riu-se.-Em que situação se encontra, chefe! Acha que poderá...
- Que poderá o quê?
- Sobrevir-lhe uma oclusão das coronárias?
O advogado riu-se e replicou:
- Terei o cuidado de me afastar do Dr. Ewald Carver e, se por acaso desaparecer, exija uma autópsia, Della. Com a breca, porque não tive presença de espírito suficiente para roubar aquele Saturday Evening Post da barraca do Gillett?
- O Tenente Tragg já lá terá chegado?
- Se não chegou, deve estar a chegar... e assim que topar com aquele único Saturday Evening Post no meio de todas as outras revistas de crime começará a pensar como nós.
- E isso será mau?
- Deixaremos de ir um passo à frente da Polícia. Cada vez lamento mais ter deixado ficar o Post.
- Ousaria recuperá-lo agora?
- Não, meu Deus! Isso seria escamotear provas, não o poderíamos fazer.
- Que poderíamos fazer, então?
- Proceder de maneira que desse um pouco menos nas vistas - respondeu o advogado, de testa franzida.
- Bem, o senhor é um cliente-pagante...
Um sorriso iluminou lentamente as feições de Perry Mason.
- Ligue para Manny G. Bolton, Bolton Funeral Home, Pine Haven.
Della Street efectuou a ligação e, poucos momentos depois, Mason pegava no auscultador.
- Bons dias, Mr. Bolton - cumprimentou. - Como vai isso por aí, esta manhã?
- Vai tudo fino, Mr. Mason, tudo fino.
- Alguma novidade?
- Nada, continua tudo como a noite passada.
- Sabe, tenho estado a pensar no pobre Gorman, coitado...
- Sim? A pensar em quê?
- Você sabe, e eu sei, como estas coisas são, Bolton; compreendemos que quando uma pessoa se sente só e se entrega à leitura tem tendência para se interessar por determinado tipo de leitura...
- Continue, Mr. Mason. Que ideia é a sua?
- Custava-me que pensassem que o meu parente só lia revistas de crime, embora ele fosse apenas um parente muito afastado...
- E então? Diga-me o que pretende, Mr. Mason; o senhor é um cliente-pagante.
- Pensei que talvez desse má impressão se contasse que na barraca só havia essas revistas e...
- Quer que as vá lá buscar e as queime?
- Oh, não, isso não! Mas talvez o senhor tenha, em sua casa, algumas revistas velhas... Disse-me que a sua mulher se interessava por leituras de viagens, não disse?
- Exactamente, tem rimas e rimas de revistas do género. Uma arrecadação cheia!
- E se levasse para a barraca três ou quatro dúzias de revistas diferentes e as misturasse com as que lá estão?
- Mas não quer que traga nenhuma das de crime?
- Não, não creio que seja necessário tirar de lá seja o que for. Pretendemos apenas deixar supor que o tio Gorman se dedicava a leituras um pouco mais variadas.
- O tio Gorman?
- Foi o que lhe chamei.
- Compreendo, Mr. Mason. Vou levá-las já.
- Imediatamente?
- Imediatamente.
- Claro que não há necessidade nenhuma de se lembrar, ao certo, de quais foram as revistas que levou...
- Não se preocupe. Estou convencido, Mr. Mason, de que se adaptaria muito bem a esta comunidade daqui. Creio que as pessoas gostariam de si e que, provavelmente, não teria uma grande conta de talho, se cá vivesse.
- É uma ideia fascinante.
- Quero apenas que saiba, Mr. Mason, que apreciamos sempre as pessoas compreensivas.
- Óptimo. Visitá-lo-ei um destes dias.
Mason desligou e Della Street fitou-o, apreensiva.
- Isso não implica nenhum delito? - perguntou.
- Isso o quê?
- Forjar provas.
- Provas de quê?
- Provas que deviam... bem, o senhor sabe.
- Não conheço nenhuma lei que diga ser delito colocar revistas velhas na barraca de um homem que morreu de oclusão das coronárias. Lembre-se de que existe uma certidão de óbito a declarar que foi essa a causa da morte. Não há jogo sujo nisso.
- E em forjar provas? - insistiu a secretária.- Não há qualquer coisa...
- Provas de quê? E forjadas porquê?
- Do seu procedimento resultará que o exemplar do Saturday Evening Post passará despercebido.
- E isso é algum crime?
- Não sei; por isso pergunto.
Mason piscou-lhe o olho e replicou:
- Continuamos um passo à frente da Polícia, Della, o que me causa uma sensação maravilhosa. Geralmente, andamos um passo atrás deles e não nos ligam importância nenhuma.
- Mas suponha que Bolton lhes diz que, a seu pedido, levou para a barraca uma quantidade de revistas...
- Levou-as por eu não querer que parecesse haver lá apenas revistas de crime-redarguiu Mason. - Se o cangalheiro se lembrar de todas as revistas que levou, isso talvez ajude a Polícia: mas se ele declarar que na barraca só havia as chamadas histórias de crimes autênticos e que ele levou uma rima das suas, Tragg presumirá que todas as revistas que não forem de crime lá foram postas para despistar e lerá e relerá as de crime à procura da que eu pretendia fazer passar despercebida.
Della Street suspirou e disse:
- Bem, o cliente-pagante é o senhor!
- Sou, de facto. Agora temos de arranjar as impressões digitais de Collington Halsey e, depois, de inventar um pretexto razoável para obtermos pelo menos uma impressão digital de George Belding Baxter.
- Como provocar um acidente de viação, para lhe inspeccionar a carta de motorista?
- Isso talvez servisse, mas ele era capaz de desconfiar. Gostaria de obter as suas impressões digitais de maneira que não soubesse que mas dava.
- E como vamos arranjar isso?
- Quem me dera ter a minha cigarreira! - lamentou-se Mason. - Della, vá lá abaixo à joalharia, traga umas cigarreiras de prata polida e dois bonitos isqueiros de mesa e limpe tudo muito bem com uma camurça.
- E depois?
- Depois colocamos um jogo na sala de espera e outro, igual, aqui na secretária.
- Pensa que George Belding Baxter virá visitá-lo?
- Virá, não duvide. Depois de lhe mandar a tal intimação, o que conto poder fazer cerca do meio-dia, George Belding Baxter vai entrar por aí dentro tão impetuosamente que é muito capaz de arrancar a porta dos gonzos!
- E, enquanto cá estiver, deixará impressões digitais?
Mason acenou afirmativamente e Della declarou:
- É verdade que estamos um passo à frente da Polícia, mas é difícil calcular para que lado o senhor vai saltar. Só espero que veja o que fica por baixo, quando cair... Quanto posso gastar nas pratas?
- Gaste o que for preciso; quero que os objectos pareçam tentadores e convidativos. Não se esqueça da pele de camurça, para termos a certeza de que não há uma única impressão digital em nenhum dos objectos, quando os colocarmos no escritório. Verá a barrigada de riso que apanhamos!
- De que apanharemos qualquer coisa, não duvido, mas Deus sabe o que será. Esperemos que seja uma barrigada de riso...
Eram três horas e vinte e cinco minutos da tarde quando a recepcionista tocou três campainhadas curtas, o sinal combinado.
Mason sorriu a Della Street e disse-lhe:
- Isto significa que a caça caiu na armadilha! George Belding Baxter está na sala de espera. Vá dizer-lhe que estou ocupado, neste momento, mas que tentarei atendê-lo o mais depressa possível. Peça-lhe que aguarde uns minutos e faça com que se sente na cadeira próxima da cigarreira e do isqueiro de prata. Recomende à Gertie que toque duas vezes assim que ele pegar num dos objectos.
- Está bem, já ensaiámos isso duas vezes - redarguiu Della.-Pode confiar na Gertie, em assuntos deste género, pois ela adora a intriga.
Della saiu do gabinete e, pouco depois, regressou e disse a Perry Mason:
- Está louco furioso! Vi-me aflita para o convencer a sentar-se. Queria andar de um lado para o outro e, por momentos, receei que me afastasse e irrompesse por aí dentro.
- Mas sentou-se?
- Sentou.
- Nervoso?
- Nervoso, zangado e... pura e simplesmente furioso.
- Bem, se está nervoso não será capaz de afastar as mãos daqueles dois tentadores objectos reluzentos e...
O telefone interno tocou duas campainhadas curtas.
- Deixou as impressões digitais! - exclamou Mason, sorridente. - Vá buscá-lo Della, e depois diga à Gertie que meta um cartão por debaixo da cigarreira e do isqueiro, os levante e dê o sinal ao Paul, que terá com que se entreter.
Della saiu e regressou logo a seguir com um homenzarrão dos seus cinquenta anos, que lhe passou à frente assim que a porta se abriu e disse:
- Sou George Belding Baxter, Mason. Que ideia foi essa de me mandar este papel? - Tirou o referido papel da algibeira e bateu com ele em cima da secretária.
Mason levantou-se, sorridente, e replicou:
- Muito bem, Baxter, chamo-me de facto Mason. Que ideia foi essa de me invadir o escritório dessa maneira?
- Estou fulo!
- Se quer continuar fulo, saia como entrou; se quer sentar-se e conversar, sente-se nessa cadeira e fale.
- Falarei! -gritou Baxter.
- Então sente-se.
- Posso dizer o que tenho a dizer levantado.
- Está bem, eu também posso ouvir levantado. Se lhe mandei esse papel, essa intimação, é porque quero que seja testemunha da defesa.
- Mas eu não sei nada acerca do assunto!
Mason sentou-se, puxou alguns papéis para a frente e começou a ler como se não o tivesse ouvido.
Baxter pareceu irresoluto, por momentos, e depois aproximou-se da secretária e gritou:
- Não levará a sua avante, ouviu?
Mason nem sequer levantou a cabeça e o milionário pegou no isqueiro que estava em cima da secretária, como se pensasse em utilizá-lo como arma.
O advogado continuou a ler.
- Parto para Honolulu.
- Muito bem.
- Esta noite.
- Terá de regressar a tempo de depor na audiência preliminar - advertiu-o Mason.
- Mas que diabo pretende você? Repito-lhe que não sei nada que possa ser útil à sua cliente. Não conheço a acusada, Gwynn Elston, não conhecia o homem que assassinaram, não sei nada de nada. Estava ausente, quando cometeram o crime, e sei apenas que o mesmo se verificou nos terrenos próximos da minha casa. E mesmo isso sei-o porque alguém mo disse.
- E a respeito da arma?
- Fui eu que a comprei, sem dúvida.
- Pode, portanto, prestar declarações a esse respeito.
- Não preciso de o fazer; os registos falam por si. Não existem dúvidas acerca de quem comprou a arma, pois eu assinei a nota de venda do armeiro.
- Isso torna o caso muito interessante - comentou Mason.
- Ouça, vim cá apenas para lhe dizer que me é impossível adiar a viagem a Honolulu.
- Regresse a tempo da audiência.
- Não posso. Não posso ir e voltar logo a seguir.
- Nesse caso não vá.
- Ouça, Mason, tentei ser decente e facilitar-lhe as coisas, mas se prefere que lhe complique a vida, compli-car-lha-ei. Tenho uma série de advogados que percebem tanto de leis como você e talvez conheçam até algumas de que você nunca ouviu, sequer, falar. Por qualquer motivo que ignoro, resolveu citar-me para depor, com a intenção de me causar contratempos e não de obter quaisquer informações que lhe possa dar. Há qualquer espécie de chantagem legal em tudo isso e os meus advogados recomendaram-me que lhe explicasse as circunstâncias em que me encontro e que lhe pedisse que me dispensasse de comparecer na audiência. Estou a seguir essas instruções.
- Já me explicou as circunstâncias em que se encontra e não o dispensei.
- Muito bem, Mason, os meus advogados já calculavam que fosse essa a sua resposta. Fiz o que me mandaram e agora vou encarregá-los de merecerem os ordenados que ganham.
Voltou-se e saiu do escritório. Logo a seguir, Mason levantou o auscultador e perguntou:
- Chamou o Paul, Gertie?
- Chamei. Está no escritório com o perito de dactiloscopia.
- Diga-lhe que venha falar comigo assim que acabar. Temos mais algumas impressões digitais.
Pouco depois, Della Street e Drake, acompanhados de um indivíduo magro e nervoso, entraram no gabinete.
- Apresento-lhe Stan Doyle, Mason - disse o detective.-É um dos maiores peritos de impressões digitais que conheço. Tem mais algumas, recentes?
Mason apertou a mão ao desconhecido, apontou o grande isqueiro e disse:
- Devem estar aí algumas boas.
Doyle inspeccionou o isqueiro, tirou um frasquinho e uma escova da algibeira, lempou a superfície brilhante e fez aparecer as impressões digitais com surpreendente nitidez.
- São boas, de facto - declarou.
- Que fazemos agora? - perguntou o advogado.
- Levamos estes objectos para o escritório de Drake e fotografamo-los.
- E depois?
- Daqui a dez minutos poderemos dizer-lhe se o seu homem é ou não Mr. X, cujas impressões digitais obtivemos através do F. B.I. - explicou Drake.
- É isso precisamente que me interessa. Quero ter a certeza, preciso de provas.
- Provavelmente poderemos fazer ainda melhor do que isso - sugeriu Doyle. - Suponho que temos aqui impressões digitais suficientes para as combinarmos com as que obtivemos na sala de espera e classificarmos.
- Muito bem - disse Mason.- Precisamos de agir depressa, pois tenho o pressentimento de que o indivíduo que acaba de sair não deixará crescer a erva debaixo dos pés.
Doyle introduziu um cartão sob a cigarreira e o isqueiro e voltou-se para o detective:
- Pronto, Paul, podemos seguir para o seu escritório e deitar mãos à obra. Poupar-se-ia tempo se eu pudesse levantar estas impressões digitais, em vez de as fotografar, Mr. Mason.
- Não. Assim perderíamos a vantagem de as termos aqui. Revele as fotografias e depois compare-as com as de Mr. X, que o Paul tem, e informe-me do resultado.
Logo que os dois homens saíram, Della Street perguntou ao advogado:
- Que aconteceria se houvesse um erro, Perry?
- Poderiam acontecer muitas coisas. Estamos, por assim dizer, a jogar, mas eu creio que jogamos pelo seguro. Toda esta história coincide e se ajusta...
- Assim acontece, de facto, mas as provas são... circunstanciais.
- As provas circunstanciais são muitas vezes as melhores, embora nem sempre o digamos a um júri - redarguiu-lhe Mason, que estava muito bem disposto.
O telefone tocou e Della apressou-se a atender.
- Diga, Gertie... - Pouco depois voltou-se para Mason e informou: - Baxter trabalha depressa. Está lá fora um oficial de diligências para lhe entregar documentos.
- Mande-o entrar. Temos sempre muito prazer em receber documentos.
Della Street saiu e não tardou a regressar com o oficial de diligências.
- Obrigado por me receber, Mr. Mason - agradeceu o homem. - A maior parte das pessoas tenta vingar-se nos pobres oficiais de diligências, mas afinal é para isto que nos pagam, para entregarmos documentação judicial.
- Pois entregue o que tem a entregar, homem - convidou-o Mason. - De que se trata?
- De um requerimento de George Belding Baxter para ser anulada uma citação e de um processo cível, contra o senhor, exigindo-lhe cem mil dólares e acusando-o de haver, deliberadamente, aproveitado as normas judiciais para interferir nos seus negócios e causar-lhe sérias contrariedades.
- Quando Baxter faz alguma coisa, é em grande! - exclamou o advogado. - Suponho que o tinha lá em baixo à espera, à entrada do edifício?
- Bem, creio que lhe servi, por assim dizer, de arma de reserva... Estive à espera junto dos elevadores.
- Pronto, entregou-me o que tinha a entregar. Obrigado.
O homem saiu e Perry Mason examinou os documentos que lhe dera.
- Quando luta, Baxter luta mesmo a valer - murmurou.- Este processo a exigir as cem mil libras destina-se a assustar-me e a colocar-me na defensiva... Que espere pela pancada!
Cerca de dez minutos depois o telefone interno tocou.
- É o Paul. Andaram um pouco mais depressa do que previam, pelos vistos.
Levantou o auscultador e atendeu pessoalmente:
- Paul?
A voz de Drake, tensa e inquieta, respondeu-lhe:
- Antes de fotografarmos as impressões digitais empregámos uma lente e posso dizer-lhe já, sem receio de me enganar, que está a bater à porta errada. George Belding Baxter não é Collington Halsey.
Mason ficou um momento calado, a tentar digerir a informação.
- Compreendeu, Perry? - perguntou-lhe Drake.
- Compreendi. Acertou-me em cheio entre os olhos. Diga ao Doyle que avance com a classificação das impressões digitais. Se não é Malsey, vejamos quem diabo será.
Mason desligou e Della perguntou-lhe, em voz que denotava inquietação:
- Falhou?
- Desta vez...
- Em que situação isso o deixa, chefe?
- Muito em baixo de forma... Mas com os diabos. Della, não posso estar enganado! São inúmeros os pormenores que parecem dar-me razão e, contudo... Contudo, enganei-me, a não ser que o indivíduo tenha conseguido arranjar impressões digitais novas, o que dizem ser impossível.
- Se pensarmos bem no assunto, ficamos com a impressão de que ele se deixou apanhar pela nossa ratoeira com excessiva facilidade - observou Della Street. - Fez tudo quanto pretendíamos, de tão bom grado...
- Pergunto a mim mesmo se... -murmurou Mason, de testa franzida. - Meu Deus, Della, supõe que o tipo foi esperto ao ponto de perceber o que pretendia dele e que se esteve a rir à minha custa, empenhado apenas em arranjar bases para o bonito processo com que pretende desancar-me?
- Não suponho mais nada, chefe. Mason sorriu, contrafeito, e comentou:
- Parece, de facto, que esgotámos, por hoje, a reserva de suposições ousadas.
Depois do jantar, Mason e Della Street passaram pelo escritório de Paul Drake.
- Que mais más notícias tem para mim, a esta hora? - perguntou-lhe o advogado.
- -Montes! Conseguimos encontrar nos objectos de prata impressões digitais suficientes para uma classificação completa, telegrafámos ao F. B. I. e já recebemos a resposta. George Belding Baxter está tão inocente como no dia em que nasceu. Nunca lhe tiraram as impressões digitais e é, de facto, George Belding Baxter. Mason ouviu-o num silêncio pensativo.
- Além disso - prosseguiu o detective -, os jornais fizeram grande alarido a respeito da acção que intentou contra você. Concedeu duas entrevistas, no decorrer das quais declarou que, se for preciso, gastará um milhão de dólares para lhe mostrar que se não pode servir da intimação de um tribunal para obter vantagens pessoais e para lhe provar que a sua intenção é prejudicá-lo, que não possui quaisquer informações que possam ser de utilidade na acusação feita à sua cliente e que o facto de não poder efectuar a projectada viagem de negócios lhe causa graves prejuízos. Teve de cancelar vários encontros, etc, e considera-o pessoalmente responsável por tudo isso.
- Parece interessante.
- Pela maneira como fala, parece de facto, Perry. Acha que pode fazer isso?
- O quê?
- Considerá-lo pessoalmente responsável.
- Depende. - De quê?
- De uma infinidade de coisas. O que não compreendo, Paul, é em que se baseiam para continuarem a deter Gwynn Elston. Não têm ponta por onde lhe pegar.
- Um momento, Perry... Esse era o segundo cartucho que lhe reservava e olhe que está muito bem carregado...
- Explique-se.
- Receberam o relatório do departamento de balística e está provado que a bala que matou Frankline Gillett foi disparada pela pistola encontrada no meio das moitas. Não restam dúvidas nenhumas a esse respeito.
- Isso continua a não acusar Gwynn de nada - fisou Mason.
- Engana-se, Perry. A sua cliente falou. -E que disse?
- Vomitou a história toda.
- Acerca do homem do carro avariado, do distintivo que ele lhe mostrou e da arma? - perguntou o advogado, de olhos semicerrados.
- Exactamente.
- Tinha esperança de que continuasse calada - confessou Mason, decepcionado.
- Serviram-se da habilidade habitual, claro - disse Drake. - Ela estava farta de cadeia e eles afirmaram-lhe que o único motivo da sua detenção era o seu silêncio. Se dissesse a verdade acerca do que acontecera e eles investigassem e verificassem que não mentira, soltá-la-iam.
- Portanto, contou a sua história e, depois, disseram-lhe que não a acreditavam?
- O singular é que não transmitiram à Imprensa qualquer comunicação acerca da história da rapariga, embora tenham mandado tirar moldes dos rastos de pneus e das pegadas existentes no local onde encontraram o corpo. Verificaram que os primeiros coincidiam com os dos pneus do carro conduzido por Gwynn Elston e que as segundas eram dela, e não encontraram nem outros rastros nem outras pegadas.
- Muito bem, Paul, temos de descobrir quem foi o homem que lhe deu a arma.
- Eles já descobriram.
- Encontraram o polícia, Paul?
- Qual polícia, qual nada! Quem lhe deu a arma foi Frankline Gillett.
- Como chegaram a essa conclusão?
- Mrs. Gillett encontrou a arma na mala do marido, há cerca de uma semana, e ficou preocupada. Gillett disse-lhe que a achara na rua, a quatro quarteirões de casa, e quis guardá-la, o que contrariou a mulher, por recear que o filho lhe mexesse.
- Mrs. Gillett é capaz de identificar a pistola?
- É. Anotou o número, por uma questão de precaução, e quando o marido a avisou de que ia viajar e estaria ausente uma semana, mais ou menos, disse-lhe que a levasse consigo, pois não a queria em casa, e ele levou-a.
- Continue - pediu o advogado.
- O dia em que Gillett saiu de casa coincidiu com o dia em que Felting Grimes regressou de uma viagem de negócios e se instalou no lar Grimes, muito possivelmente com a arma na mala. Decorreu menos de uma hora entre o momento em que Gillett saiu de casa e aquele em que Grimes entrou na casa onde a sua cliente vivia.
Mason reflectiu longa e pensativamente na informação e por fim perguntou:
- Que disse Nell Grimes acerca da arma, Paul?
- 'Que nunca a vira antes de Gwynn lha mostrar e lhe contar a história de que um polícia lha dera. Mas há mais uma coisa que me admira, Perry. A Polícia não faz o mínimo esforço para tentar localizar o motorista que esteve “encalhado” junto dos portões da propriedade de Baxter e não perguntou em nenhuma estação de serviço se lá mandaram um reboque ou um mecânico. Os meus homens são os únicos que têm seguido essa pista. Francamente, não compreendo. Se procedessem nos moldes habituais, espiolhariam todas as garagens e estações de serviço, só para provarem que a história contada por Gwynn Elston era falsa e não houvera nenhum automóvel com um pneu furado.
Mason franziu a testa e não se pronunciou.
- Semelhante atitude parece demonstrar que ligam tão pouca importância à história da rapariga que acham não valer a pena tentar desmenti-la - prosseguiu o detective.
O advogado levantou-se, de súbito, e exclamou:
- Éo demonstras! Prova, isso sim, que encontraram o indivíduo e que, portanto, não estão preocupados com ele!
- Se o encontraram e se o seu depoimento confirmou o dela, deviam tê-la soltado - raciocinou Drake.- Não, Perry, desta vez está enganado. O que eles pretendem é deixá-la contar a história, para depois provarem que é falsa, que não contém parcela de verdade.
- E como o provarão?
- Não sei. Longe de mim pretender ser adivinho, mas pressinto existir em tudo isto seja o que for que perderá a sua cliente, Perry.
- Repito-lhe, Paul, que encontraram o tipo - teimou o advogado-e que deve haver na história dele matéria que a acusação espera aproveitar como munições. Uma coisa lhe garanto, porém, desde já: se apresentarem um indivíduo que jurar ter viajado no automóvel de Gwynn Elston, mas negar haver-lhe dado qualquer arma.
Eles encontraram esse tipo, Paul, e eu quero que você o encontre também. Temos de saber quem ele é.
Drake abanou a cabeça.
- Não existiu tal pessoa, Perry - afirmou. - A Polícia está preparada para o provar e você só pode basear-se no que a sua cliente lhe contou.
- E eles no que lhes contou essa testemunha. Se pretenderem basear a acusação nesse pormenor, vai haver uma sessão memorável!
- Não esqueça o elemento tempo, Perry - lembrou Drake. - Os portões foram fechados à chave às dez horas da noite e Gillett não podia, portanto, entrar depois dessa hora. O carro dele tinha, necessariamente, de passar através dos portões. Isso deixa um período de quarenta e cinco minutos para o assassínio. Foi durante esse espaço de tempo que a sua cliente tomou posse da arma; é durante esse espaço de tempo que ela não tem provas dos seus movimentos e foi para esse espaço de tempo que ela inventou a história do misterioso polícia que lhe entregou a arma. Saiu da casa dos Gilletts às nove horas e quinze minutos, segundo afirma Mrs. Gillett. Encontrou Gillett, que provavelmente a esperava, e pôs-lhe as cartas na mesa: descobrira que era bígamo; que tencionava fazer? Se ela tivesse dito a verdade à Polícia e confessado que o matara em legítima defesa, teria uma probabilidade; mas não se esqueça de que quem tinha a arma era Gillett e de que ela me telefonou pouco depois das nove e meia e logo a seguir lhe telefonou a você. Não é difícil imaginar o que aconteceu. Gillett deteve-a, para conversar com ela; estava munido da arma e queria ir a qualquer lado onde os não interrompessem; por isso, pararam perto da propriedade de Baxter. Ela deve ter arranjado maneira de o tranquilizar; talvez lhe tenha permitido, até, certas liberdades, e depois apoderou-se da arma, matou-o, entrou na propriedade de Baxter, onde se demorou o tempo suficiente para largar o corpo, saiu e inventou a história do polícia.
Mason reflectiu, durante alguns instantes, e depois redarguiu:
- Teria inventado história mais convincente do que essa, Paul; não falaria na arma e, sobretudo, não a deitaria fora.
- Não pode afirmar isso enquanto não souber em que apuros se viu metida - contrariou-o o detective.
- Deve ter-lhe acontecido qualquer coisa em que a posse da arma se tornou embaraçosa e a levou a inventar uma história que a justificasse.
- Lembre-se, Paul, de que Hamilton Burger, o Promotor de Justiça, não liga, às vezes, a importância devida a certos pormenores. Pode não ter dado por isso, mas a verdade é que não tem qualquer possibilidade de provar que foi a arma do crime que esteve em poder da acusada. Ela teve consigo um Smith & Wesson, de calibre 38, mas há milhares de armas Smith & Wesson desse calibre.
- E, claro, não nos esqueçamos da cigarreira e do isqueiro que você atirou por cima do gradeamento...
- insinuou Drake.
- Nem mais! Limitei-me a atirar a primeira bola dos campeonatos mundiais, Drake. Queria que a Polícia se mexesse e revistasse o local e, por isso, fiz uma coisa que os levaria a satisfazer os meus desejos. Tive o pressentimento de que o assassino podia ter deixado por ali a arma do crime...
- E em que baseava esse pressentimento?
- Na boa técnica da investigação. Queria que revistassem o local e posso apostar que, depois, passaram a pente fino o terreno todo, centímetro a centímetro. É um pormenor acerca do qual têm de me dar crédito.
- Sim, suponho que sim - concordou Drake, que acrescentou: -Agora...
- Não desejo mais nada, Paul. Esteja no tribunal, amanhã, e talvez as coisas não sejam tão contra mim como o Hamilton Burger e você parecem supor. Espere, queria mais uma coisa...
- O quê?
- Verifique o paradeiro de George Belding Baxter na noite do crime.
- Esteve em Bakersfield - afirmou Drake.
- Ele disse que esteve em Bakersfield.
- Esteve; os meus homens investigaram a sua história. Ficou num motel. No fim de contas, Perry, não costumamos ignorar o evidente.
- Investigaram a sua história? Que quer dizer?
- Assinou o registo às seis e meia da tarde, disse que estava fatigado e tencionava comer e deitar-se. Comeu num restaurante ligado ao motel e assinou um cheque. Trata-se de um daqueles motéis de luxo que têm serviço de hotel. Paga-se por cheque, tem-se telefone no quarto e parte-se de manhã.
- Ninguém o vigiou enquanto esteve na cama - murmurou Mason, de olhos semicerrados. - Quem o impediria de sair do motel às sete horas, meter-se no automóvel, matar Frankline Gillett, regressar ao motel e partir de manhã?
Drake fitou-o, pensativo, e acabou por responder:
- Ninguém.
Mason sorriu-lhe e, passado um bocado, o detective perguntou-lhe:
- Tem alguma prova de que assim procedeu?
- E você tem alguma prova do contrário?
O Juiz Harlan Laporte anunciou:
- Foi esta a data previamente estabelecida para a audiência preliminar da causa do Povo do Estado da Califórnia contra Miss Gwynn Elston.
- A acusação está pronta - declarou Farley Nelson, representante do gabinete do Promotor de Justiça.
- E a defesa também - acrescentou Mason.
O Juiz Laporte olhou para Hamilton Burger, que estava sentado ao lado de Farley Nelson, e perguntou-lhe:
- O Promotor de Justiça tenciona participar pessoalmente nos debates?
- O Promotor de Justiça participará pessoalmente nos debates - respondeu Hamilton Burger.
- Muito bem, chame a sua primeira testemunha. O Promotor de Justiça levantou-se e disse:
- Com licença do tribunal, julgo haver um assunto que merece precedência: um requerimento dos advogados que representam George Belding Baxter para que seja anulada a intimação por ele recebida para depor como testemunha da defesa.
- Em que se baseia o requerimento? - inquiriu o juiz.
- Os advogados de Mr. Baxter estão presentes, mas posso declarar que, de maneira geral, o requerimento de anulação se baseia no facto de a intimação para depor constituir abuso das prerrogativas judiciais e tentativa deliberada de causar incómodos a Mr. Baxter, que é um homem muito atarefado, na esperança de que a acusada beneficie com isso.
O Juiz Laporte olhou para Mason e perguntou-ihe:
- Mr. Baxter é uma testemunha necessária, Mr. Mason?
- Assim o considero, Excelência. Pelo menos, creio haver grande possibilidade de vir a ser uma testemunha importante e necessária.
- Com licença do tribunal, esta causa é simples. A acusação não tem testemunhas e nós achamos que a defesa devia declarar agora no tribunal a razão por que insiste na presença de Mr. Baxter, se alguma razão existe - disse Burger.
- Já declarei qual é a razão: preciso de Mr. Baxter como testemunha - declarou Mason.
- Testemunha de quê?
- Revelá-lo-ei no momento oportuno.
- Com permissão do tribunal - voltou o Promotor de Justiça àxarga-, a acusação prontifica-se, desde já, a aceitar qualquer depoimento que o advogado de defesa declare, de boa fé, esperar que Mr. Baxter faça.
Mason voltou-se para o juiz e declarou: -Com licença do tribunal, consideramos a proposta feita com o único objectivo de nos causar embaraços, primeiro porque nos obrigaria a revelar antecipadamente o nosso plano de defesa e, depois, porque Mr. George Belding Baxter intentou contra nós uma acção em que exige a indemnização de cem mil dólares por interferência nos seus negócios e abuso das prerrogativas judiciais, ao intimá-lo a depor.
- Existe tal acção cível? - perguntou o Juiz Laporte a Hamilton Burger.
- Creio que sim, Excelência.
- Nesse caso, Mr. Baxter escolheu o seu recurso - redarguiu o magistrado. - Não pode querer um proveito no papo e outro no saco. Se processou Mr. Mason por perdas e danos não pode requerer que o dispensem de testemunhar, por meio de um acordo. Sugiro que escolha o que prefere: requerer a anulação da intimação ou prosseguir com a acção por perdas e danos.
Hamilton Burger voltou-se para o local onde George Belding Baxter estava sentado e o milionário declarou, em tom frio e brutal:
- Não desisto dos meus direitos e peço também que me dispensem!
- Petição recusada - declarou secamente o Juiz Laporte. - Prossiga, Mr. Burger.
Perry Mason aproximou-se de Paul Drake, que estava sentado junto da teia, e segredou-lhe:
- Eis o grande segredo, Paul: Hamilton Burger vai proceder com muita astúcia, para ajudar Baxter a fortalecer a sua acção de perdas e danos contra mim. É por isso que está aqui.
- Consta que tem de reserva uma surpresa terrível - segredou Drake.
- Seguiremos a música e veremos o que sucede - respondeu-lhe o advogado, sorridente.
Farley Nelson chamou como primeira testemunha um agrimensor, que apresentou um mapa dos terrenos e da casa da propriedade de Baxter, desenhado em escala.
Mason declinou o contra-interrogar.
A testemunha seguinte foi o Tenente Tragg, que declarou ter recebido um telefonema de Perry Mason, informando-o de que se encontrava um cadáver na propriedade de Baxter. A testemunha dera instruções aos carros-patrulha para se dirigirem ao local e recomendara que preservassem todas as possíveis pistas. A seguir dirigira-se, pessoalmente e a toda a velocidade, ao escritório de Perry Mason, na esperança de chegar ainda a tempo de encontrar a pessoa que informara o advogado. Chegara demasiado tarde, mas tomara as providências necessárias para interceptar todos os táxis que houvessem recolhido passageiros próximo do edifício do escritório de Mason e ordenara aos empregados dos parques de estacionamento das proximidades que demorassem todas as pessoas que fossem buscar veículos estacionados havia menos de uma hora. Como resultado desse procedimento tinham detido a acusada, Gwynn Elston, que conduziram ao escritório de Mr. Mason, o quai a aconselhara a não dizer nada. A acusada tinha na mala um livro de cheques e, no mesmo, um talão referente ao pagamento de cinco dólares a Mr. Mason. Posteriormente, pediram ao banco uma fotocópia do referido cheque, quando fosse descontado, e ele, Tenente Tragg, .trazia consigo essa fotocópia, que reproduzia o cheque devidamente endossado por Perry Mason e descontado. O Tenente Tragg declarou em seguida que, depois de submeter Miss Elston a breve interrogatório, se dirigira à propriedade de Baxter e investigara pessoalmente a ocorrência. Descreveu a posição do corpo, o que encontrou, e acrescentou que, depois de o gyarda que deixara ao portão o avisar de que Perry Mason aparecera e fizera certas coisas, ordenara uma busca minuciosa ao Jocal e encontrara uma arma. A arma -um Smith & Wesson de calibre 38 - foi apresentada para identificação e verificou-se que tinha as iniciais de Tragg na coronha.
- A defesa pode contra-interrogar - disse Nelson.
- Quais foram as “certas coisas” que eu fiz? - perguntou Mason ao tenente.
- Sei quais foram apenas por ouvir dizer - respondeu Tragg.
- Não sejamos excessivamente técnicos - pediu iMason.- Que coisas fiz eu?
- Segundo me disse o polícia de guarda ao portão, aproximou-se e, ao verificar que ele não o deixava entrar, abriu uma cigarreira de prata, tirou um cigarro e atirou a cigarreira por cima do gradeamento, indo a mesma cair a pouca distância do local onde a arma foi encontrada. Depois atirou também um isqueiro, mais ou smenos na mesma direcção.
- Recuperou esses objectos? - inquiriu o advogado.
- Recuperei.
- Colocou neles as suas iniciais?
- Risquei neles as minhas iniciais.
- Tem esses objectos em seu poder?
- Tenho.
- Mostre-os, por favor. Tragg mostrou-os.
- Peço que sejam marcados para identificação - interveio Farley Nelson.
- Não me oponho - declarou Mason. - Junte-os ao processo como prova, se quiser.
- Assim faremos, no momento oportuno - prosseguiu Nelson. - Agora queremo-los apenas marcados-para identificação.
- Faça-se - ordenou o Juiz Laporte.
- Não desejo fazer mais perguntas - declarou Mason.
Nelson chamou um fotógrafo que tirara fotografias ao corpo, testemunha a que se seguiu o médico legista,, que retirara a bala fatal do cadáver e determinara a hora da morte entre as nove horas e a meia-noite.
- Mason não quis contra-interrogar nenhuma dessas testemunhas.
- Excelência - declarou Nelson-, torna-se agora necessário apresentar provas da identidade do cadáver. É tarefa penosa e desagradável, mas, visto ser indispensável, chamo a depor Mrs. Frankline Gillett.
Mrs. Gillett, vestida de preto, prestou juramento e disse como se chamava, que casara com Frankline Gillett oito anos antes, que a tinham levado à morgue para identificar um corpo e que esse corpo era o do homem com quem casara.
- Contra-interrogatório - disse Nelson, no fim.
- Lamento ter de a interrogar, Mrs. Gillett - declarou Mason. - Tentarei ser o mais breve e o menos maçador possível. Disse que casou com seu marido há aproximadamente oito anos?
- Sim.
- Que fazia ele, nessa altura?
- Era vendedor.
- Sabe qual era o montante dos seus rendimentos?
- Não era muito elevado. Tinha um ordenado fixo e comissões.
- Trabalhava muito?
- Muito.
- Durante quanto tempo continuou a trabalhar na mesma empresa?
- Cerca de três anos.
- E depois?
- Depois esteve desempregado durante algum tempo e a seguir arranjou outro lugar de vendedor. Este novo emprego não era tão bom como o primeiro e, ao fim de um ano, aproximadamente, meu marido despediu-se e empregou-se melhor, com um ordenado maior.
- E depois? - repetiu Mason.
- Há cerca de dois anos e meio anunciou que ia começar a negociar por conta própria.
- A partir de então operou-se alguma mudança nas vossas finanças?
- A partir de então, vivemos mais desafogadamente. Parece que meu marido ganhava muito bem.
- Sabe alguma coisa acerca da natureza dos seus snegócios?
- Não sei.
- Depois da sua morte conseguiu descobrir a natureza desses negócios?
- Não soube nada a tal respeito. Meu marido era muito reservado acerca dos seus assuntos comerciais, não desejava discuti-los comigo. Costumava dizer que a ele competia ganhar o sustento da família e a mím governar a casa... Depois da sua morte não encontrei nenhuns livros de contabilidade, nada susceptível de indicar a fonte dos seus rendimentos. Havia uma conta comum que apresentava, à data da sua morte, um saldo de cerca de três mil dólares. Têm-me dado a entender que todos os depósitos nessa conta foram feitos em dinheiro.
- Seu marido deixou mais alguns bens?
- Com certeza. Tínhamos comprado uma casa no Trilby Way, da qual estão pagos cerca de dois terços, há um carro da família, que sou quase sempre eu quem •conduzo, e outro carro que meu marido guiava.
- Encontrou alguma arma na mala do seu marido?
- Protesto! - interveio Nelson. - Não é contra-interrogatório correcto.
- Protesto recusado - declarou o juiz. - Perguntou-se à testemunha que bens deixara o marido. O tribunal não vê com bons olhos que se peça a uma testemunha parte apenas de uma informação pertinente. Responda, portanto, à pergunta.
- Pouco depois de meu marido regressar da sua última viagem de negócios - respondeu Mrs. Gillett, devagar-, encontrei um revólver na sua mala. Tratava-se de uma arma da marca Smith & Wesson, de calibre 38, cujo número anotei. Era o C 232721. Interroguei meu marido a respeito do revólver... Deseja que diga o cjue me respondeu?
- Faça favor de prosseguir - convidou-a Mason.
- Respondeu-me que o encontrara à beira da estrada,, a cerca de três quarteirões da nossa casa, e o apanhara. Acrescentou que, ao princípio, pensara em informar a Polícia, mas mudara de opinião porque, segundo as suas próprias palavras, seriam capazes de o maçar com perguntas. Disse-lhe que não me agradava nada a ideia de ter uma arma em casa e ele prometeu-me guardá-ia na mala, longe do alcance do nosso filho. Quando partiu' para a última viagem levou-a consigo.
- Muito obrigado - agradeceu Mason. - Não desejo mais nada.
- Agora, Excelência - disse Farley Nelson-, chegou a ocasião de debater um dos aspectos que tornou o> caso espectacular e o revestiu de grande notoriedade jornalística. Acho, no entanto, que, a fim de explicar todas as circunstâncias, é necessário chamar a depor, ainda que relutantemente, Nell Arlington.
Nell Arlington aproximou-se e prestou juramento.
- Onde mora? - perguntou-lhe Nelson.
- 367, Mandala Drive.
- Tem vivido nessa residência sob o nome de Ne!iS Arlington?
- Não, senhor.
- Sob qual, então?
- Sob o nome de Mrs. Felting Grimes.
- Considerava Mr. Felting Grimes seu marido?
- Considerava.
- Submeteu-se, com ele, a uma cerimónia matrimonial, em Las Vegas, Nevada?
- Sim.
- Mais ou menos há dezoito meses?
- Há dezoito meses e dez dias.
- Viu o cadáver que foi identificado como Frankline Gillett?
- Vi.
- Era o cadáver do homem com quem casou, do que conhecia por Felting Grimes?
- Era.
- Conhece a acusada?
- Conheço. Foi a minha mais íntima amiga durante1 alguns anos.
- Onde habitava ela no dia dez deste mês? ' - Connosco, no 367 da Mandala Drive.
- No dia dez deste mês?
- Sim.
- Quer fazer o favor de relatar os acontecimentos dessa tarde, o mais aproximadamente que se lembrar, Miss Arlington?
A testemunha relatou a história que Gwynn lhe contara, acerca do polícia que insistira em viajar no seu automóvel e lhe dera a arma.
- Viu o corpo do homem assassinado?-indagou Nelson.
- Vi.
- Lembra-se do momento em que a acusada se levantou, na manhã do dia onze, e apareceu na cozinha para tomar o pequeno-almoço?
- Perfeitamente.
- Sabia, nesse momento, onde se encontrava o homem que conhecia por Felting Grimes?
- Não.
- Quando o vira pela última vez?
- Na véspera, ao partir para uma das suas viagens.
- Está ao corrente da maneira como a acusada efectuava as suas transacções comerciais?
- Que quer dizer?
- Pergunto se sabia os nomes dos clientes prováveis que ela visitava.
- Oh, sim! Ajudava-a muito, nessas coisas; servia-lhe de amiga e, simultaneamente, de secretária.
- Pode explicar o que entende por servir-lhe de secretária?
- Ela recebia listas, umas vezes telefonicamente e outras pelo correio, de clientes prováveis que devia visitar. Eu encarregava-me de anotar os nomes, quando os comunicavam telefonicamente, na sua ausência, ou de arranjar maneira de lhos transmitir, quando chegavam pelo correio.
- Sabe de qual das maneiras recebeu a acusada o nome de Mrs. Frankline Gillett?
- Pelo correio. Depois de ela... bem, depois de ser presa, encontrei na sala a lista dos “prováveis” que continha esse nome. Cá está: Mrs. Frankline Gillett, 671, Trilby Way. É o nome do fim e a lista tem onze nomes.
- Essa lista foi deixada em local onde o homem que considerava seu marido, Felting Grimes, a pudesse ver?
- Encontrei-a na saia, onde provavelmente fora deixada pela acusada.
- Pedimos que a lista seja apensa ao processo - disse Nelson.
- Não me oponho - declarou Mason.
- Pergunto-lhe agora - prosseguiu o representante da acusação-se Mr. Mason a visitou, na manhã de quarta-feira, dia 11 deste mês?
- Visitou.
- Quem o acompanhava?
- A sua secretária, Miss Street.
- Que tentou Mr. Mason levá-la a fazer nessa ocasião, se é que tentou alguma coisa?
- Protesto. A pergunta é incompatível, irrelevante e secundária - interveio Mason. - Não influi nesta causa o que o advogado de defesa tentou ou não tentou levar a testemunha a fazer. Além disso, a pergunta obriga a testemunha a uma conclusão.
- Com permissão do tribunal, lembro que Mr. Mason era o advogado que representava a acusada - declarou Nelson.
- Pois claro que representava a acusada! Mas procedia por conta própria, pois não são os clientes que me costumam dizer como devo orientar a defesa. Procedo como me parece melhor. Se a acusação pretende demonstrar que a acusada tem responsabilidade em qualquer acto meu, deve provar que estava ao corrente desse acto e nele participou.
- Parece-me justo - declarou o Juiz Laporte.- Aceito o protesto.
- Pode contra-interrogar - disse Nelson.
- Não tenho perguntas a fazer - respondeu Mason, em tom casual.
- Não quer contra-interrogar? - perguntou Nelson, surpreendido.
- Não.
Nelson trocou breves palavras com Hamilton Burger e depois disse:
- Chamo a depor Peterson L. Marshall. Marshall indicou o nome e a morada, declarou ser proprietário de uma loja de objectos de desporto e conhecer bem George Belding Baxter, seu cliente havia algum tempo e com conta corrente em sua casa.
- Vou mostrar-lhe um revólver Smith & Wesson, número C 232721, e perguntar-lhe se o reconhece.
- Gostaria de ver pessoalmente o número, para ter a certeza.
- Faça favor de verificar.
A testemunha verificou o número e declarou:
- Conheço, de facto, essa arma.
- Quem a vendeu?
- Eu.
- Pessoalmente?
- Sim.
- A quem? - A George Belding Baxter.
- Pessoalmente?
- Sim senhor. Mr. Baxter foi à minha loja e disse-me que queria uma arma de defesa, coisa de confiança e pouco volumosa. Chamei-lhe a atenção para este revólver Smith & Wesson, de cano de duas polegadas e liga metálica, que o torna muito leve e apropriado. Mr. Baxter resolveu comprá-lo.
- Que fez o senhor?
- Bem... - a testemunha hesitou - ... não devemos entregar as armas no próprio dia em que são compradas, e sim guardá-las, mas... enfim, dadas as circunstâncias, limitei-me a datar a venda de três dias antes e a entregar a arma a Mr. Baxter.
- Entregou-a pessoalmente a Mr. Baxter?
- Sim, senhor.
- Pode contra-interrogar.
- Não desejo - replicou Mason.
- Chamo Mrs. Minnie Crowder - disse Nelson. Mrs. Crowder identificou-se como governanta de
George Belding Baxter.
- Quer fazer o favor de nos dizer o que fez na noite de dez deste mês? - pediu-lhe Nelson.
- Acabei o trabalho cerca das nove horas. O dia da minha saída era o seguinte, 11, mas tinham-me dito que não precisava de ficar toda a noite de 10 e, por isso, saí uns minutinhos antes das nove horas. Tencionava regressar no dia 12 de manhãzinha, mas a Polícia Jocalizou-me e transtornou os meus planos.
- A que horas a localizou a Polícia?
- Por volta das duas horas dá tarde do dia 11.
- Estou a mostrar-lhe uma arma que foi marcada para identificação e pergunto-lhe se a conhece.
A testemunha pegou no revólver, observou-o e respondeu:
- Conheço, sim.
- Teve alguma vez essa arma em seu poder?
- Tive.
- Alguém lha deu? Quem?
- Mr. George Belding Baxter.
- E que aconteceu à arma?
- Guardei-a no quarto e levava-a comigo quando saía à noite. Na noite de 3 do corrente dei um passeio e deixei-a cair da algibeira do casaco. Quando dei pela sua falta voltei para trás e procurei-a, mas em vão. Não disse nada a ninguém.
- Porque lha deu Mr. Baxter?
- Protesto! - interveio Mason. - Obriga a testemunha a uma conclusão e é, além disso, incompatível, irrelevante e secundária.
- Protesto aceite - disse o juiz.
- Depois do dia 3 deste mês, ou aproximadamente, deixou de ver a arma - prosseguiu Nelson. - Até quando?
- Até a Polícia ma mostrar.
- Peço desculpa de interromper, mas julgo ter o direito de interrogar a testemunha sobre voir dire^-interveio Mason.
- À vontade - respondeu Nelson. - Contudo, estou quase a acabar e talvez prefira fazê-lo no contra-inter-rogatório.
- É-me indiferente - declarou Mason.
- Farei apenas mais uma pergunta: voltou a ver esta arma no dia 11 do corrente?
- Sim, senhor. -Onde a viu?
- Em poder do Tenente Tragg. Foi ele que ma mostrou.
- Pode contra-interrogar.
- Como sabe que se trata da mesma arma que Mr. Baxter lhe deu? - perguntou Mason à testemunha.
- Bem... bem, sei que é a mesma. Mr. Gillett encontrou-a onde eu a deixei cair.
- Sabe onde a deixou cair? O local exacto?
- O local exacto, não... Deixei-a cair quando passeava e Mr. Gillett encontrou-a no caminho que percorri.
- Sabe quando a deixou cair?
- Sei. Foi na noite do dia 3 do corrente, por volta das nove e meia, quando saí para dar um passeio. Meti o revólver na algibeira do casaco, mas depois de andar um bocado senti calor e despi o casaco. Ao chegar a casa dei por falta da arma.
- Agora pense bem antes de responder: lembra-se se, durante esse passeio, se aproximou alguma vez da sebe perto da qual a Polícia encontrou o revólver?
- Não.
- Não se aproximou?
- Passei por lá, mas não saí da estrada.
- Mas podia ter perdido o revólver perto da sebe?
- Não o creio. Devo tê-lo perdido quando despi o casaco e o dobrei. Lembro-me de que foi cerca de cem metros depois dos portões e enquanto caminhava pela estrada alcatroada.
- Tomou nota do número da arma que Mr. Baxter lhe deu?
- Não.
- A arma era nova?
- Ele entregou-ma no dia em que a comprou.
- -Não tinha, então, nenhumas marcas que a distinguisse, nenhuns arranhões nem manchas?
- Com certeza que não! Era nova em folha.
- A arma tem, agora arranhões ou manchas?
- Notei que tem arranhões na coronha, creio que feitos pelo Tenente Tragg.
- Quando notou esses arranhões pela primeira vez?
- Quando o Tenente Tragg ma mostrou.
- Não se lembra de nenhumas marcas que o revólver possuísse quando Mr. Baxter lho deu?
- Bem... não.
- Não sabe se foi esta a arma que Mr. Baxter lhe deu ou se se trata simplesmente de um dos milhares de revólveres fabricados pela Smith & Wesson Company e vendidos pelo país todo, pois não?
- Bem, se faz a pergunta dessa maneira, só posso dizer que parece a que Mr. Baxter me deu.
- 'Obrigado. É assim que desejo fazer a pergunta. Não preciso de mais nada.
Nelson chamou Alexander Redfield, perito de armas de fogo e balística, e perguntou-lhe se examinara a bala fatal e se procedera a ensaios para determinar se a mesma fora disparada por aquela arma.
Redfield declarou que procedera a tais ensaios.
- Que pode declarar com respeito à bala fatal ter sido disparada por esta arma?
- A bala fatal foi disparada por esta arma que tenho na mão, por este revólver Smith & Wesson, número C 232721.
- Agora, com licença do tribunal, solicito que esta arma seja considerada prova - disse Nelson.
- Protesto por incompatível, irrelevante e secundário, sem bases convenientes - interveio Mason.
- Aonde pretende chegar? - inquiriu o Juiz Laporte.
- A isto apenas, Excelência: falta um elo de ligação. George Belding Baxter tomou posse desta arma no dia em que a adquiriu; ele que prove que deu à governanta o revólver que comprou.
- Isso não faz a mínima diferença - afirmou Hamilton Burger.- Esta arma foi encontrada entre as moitas, no local para onde, como é evidente, quem cometeu o homicídio a atirou. É a arma do crime. Foi comprada por George Belding Baxter, o qual deu à sua governanta uma arma em todos os aspectos semelhantes a esta. A governanta perdeu-a e nós não precisamos de saber mais nada. Na realidade, não há necessidade de provar mais nada além de que este revólver foi encontrado na cena do crime e de que a bala fatal foi disparada por ele. Estes pormenores chegam para que seja considerado prova; tudo o mais terá apenas o objectivo de demonstrar os antecedentes e a história do revólver.
- O tribunal está inclinado a concordar com o Promotor de Justiça - declarou o Juiz Laporte -, mas porque não havemos de chamar Mr. Baxter e de lhe pedir que declare que a arma que comprou foi a que deu à governanta? Assim relacionará essa arma com o seu número de série.
- Porque não é necessário - replicou Hamilton Burger.
- Porque George Belding Baxter me intentou uma acção de perdas e danos, exigindo uma indemnização de cem mil dólares, em virtude de o ter intimado a depor a favor da acusada - declarou Mason, secamente. - Se fosse chamado a depor pela acusação, pareceria que a sua presença aqui fora necessária e, então, já eu não o teria prejudicado ao intimá-lo a não se ausentar para testemunhar pela defesa. É esse o único motivo da presença de Hamilton Burger neste tribunal: tentar conduzir o caso de maneira a não ser necessária a presença de George Belding Baxter como testemunha.
O Juiz Laporte esboçou um leve sorriso e, depois, franziu a testa, pensativo.
- Claro que o procedimento normal seria estabelecer a relação desta arma, mas... dadas as circunstâncias, sinto-me inclinado a concordar com o Promotor de Justiça em que, para introduzir a arma como prova, basta apenas provar que foi o revólver usado no crime e encontrado em determinado lugar. Isso basta para fundamentar a sua aceitação como prova. Mas se pretendermos ir um pouco mais longe e tentar relacionar o revólver com a acusada, nesse caso haverá, sem dúvida, um certo hiato...
- Compreendemos perfeitamente, Excelência, e poderemos preencher esse hiato - declarou Hamilton Burger, em tom confiante. - Na realidade, suponho que temos uma testemunha que o preencherá.
- Bem, o tribunal está disposto a concordar que foram apresentadas bases suficientes para considerar a arma como prova. Será, portanto, aceite e marcada com o número correspondente.
- Obrigado, Excelência! - agradeceu Hamilton Burger, incapaz de disfarçar uma expressão de triunfo.
Nelson chamou a depor Corley L. Ketchum.
Ketchum, de fato escuro que prestara anos de serviço como “fatiota de ver a Deus”, pareceu pouco à vontade. Declarou ser guarda e jardineiro da propriedade de George Belding Baxter; ser costume a governanta trabalhar até às dez horas; competir-lhe fechar os portões à chave, à mesma hora; que na noite do dia 10 não soubera que a governanta saíra mais cedo, com permissão dada por Mr. Baxter; que dois ou três minutos antes das dez horas dessa noite fora fechar à chave os portões; que nesse momento não vira nenhum automóvel estacionado nas proximidades; que desempenhara a rotina simples de fechar os portões e regressara ao seu chalé de guarda e se deitara, e que, antes das dez horas, não ouvira nenhum automóvel entrar na propriedade, mas que isso podia ter acontecido sem ele dar por nada.
- Contra-interrogatório - disse Nelson, no fim, e Mason abanou negativamente a cabeça.
Um perito de moldes declarou que, obedecendo a instruções do Tenente Tragg, tirara os moldes do piso dos pneus do automóvel da acusada, assim como das marcas deixadas no local onde o corpo fora encontrado, e comparara os resultados. Moldara também as pegadas existentes junto do cadáver, as quais foram consideradas provas, juntamente com as impressões dos pneus.
Mais uma vez Mason prescindiu de contra-interrogar.
- Aproxima-se a hora da interrupção do meio-dia -lembrou o Juiz Laporte. - Tem muito mais testemunhas, senhor promotor?
- Creio que uma ou duas, apenas - respondeu Hamilton Burger.
- Muito bem. A audiência fica suspensa até às duas horas da tarde. A acusada continua sob custódia.
O Juiz Laporte saiu e Paul Drake aproximou-se de Perry Mason e comunicou-lhe:
- Têm uma testemunha-mistério, Perry. Está na sala das testemunhas, muito bem guardada, e ninguém pode entrar para a ver.
- Homem ou mulher?
- Homem.
- Tem a certeza?
- Entrevi-lhe, de fugida, apenas a cabeça, os ombros e pescoço, quando lá o conduziram. Têm um cordão de polícia a guardá-lo. Dir-se-ia um nababo que nos veio visitar, a julgar pela maneira como procedem.
- É capaz de o descrever?
- Bem é de... estatura mediana, atarracado, e reparei que tem cabelos escuros, fartos e ondulados.
- Um momento, um momento...
- -Que é, chefe? - perguntou Della Street, apreensiva.
- É o homem que deu o revólver a Gwynn Elston! - exclamou Mason. - Eu bem lhe disse que eles o tinham encontrado, Paul! Por isso não correram as estações de serviço para localizarem quem fora mudar o pneu ao automóvel avariado.
- Não houve nenhum carro avariado! - insistiu Paul Drake, teimosamente. - Não pode ter havido; o elemento tempo é-lhe contrário a esse respeito, Perry. Conferi tudo isso minuciosamente e verifiquei que não houve tempo de mandar um veículo efectuar a reparação.
- Nesse caso, há qualquer elemento que desconhecemos - afirmou Mason, de testa franzida.
- Já lhe disse que eles reservam uma grande surpresa. Estão preparados para pegar na vassoura, possuem qualquer trunfo que arrasará por completo a sua defesa.
- Bem, vamos almoçar e depois voltaremos ao tribunal e ocuparemos os nossos lugares. Pode existir algum elemento que desconheçamos por completo, mas assim que o descobrirmos talvez surpreendamos o promotor!
- Desta vez não, Perry - teimou Drake, abanando a cabeça. - Pode apostar o seu último dólar em como conferiram e reconferiram. Noto uma atmosfera de júbilo triunfante, que não conseguem disfarçar.
- Bem, aguardemos com calma e talhemos a obra à vista do pano - decidiu Mason.
Logo após a reabertura da audiência, Hamilton Burger levantou-se, com o ar triunfante de um mágico prestes a tirar um coelho do chapéu, e anunciou:
- Desejo chamar a depor Car! Freeman Jasper. Um polícia dirigiu-se à sala das testemunhas e abriu a porta. Mason, muito sério, segredou a Gwynn Elston:
- Tenha cuidado agora; isto vai ser uma surpresa. A porta abriu-se e um indivíduo de cerca de trinta anos entrou rapidamente na sala das audiências.
Gwynn Elston apertou violentamente o braço de Mason e começou a erguer-se, mas o advogado obrigou-a a sentar-se.
- É ele! - exclamou. - É ele!
- Cale-se - segredou-lhe Mason.
- É o homem que me deu a arma - murmurou a rapariga.
Hamilton Burger, a quem não passara despercebida a comoção da acusada e que se divertia à grande, disse:
- Dirija-se ao banco das testemunhas, Mr. Jasper, preste juramento, indique o seu nome e a sua morada ao escrivão e sente-se.
Assim que a testemunha cumpriu todas estas formalidades, o promotor aproximou-se, triunfante, e perguntou-lhe:
- Em que se ocupa, Mr. Jasper?
- Sou detective particular devidamente documentado.
- Era essa a sua ocupação nas noites de 9 e 10 deste mês?
- Era, sim.
- Estava encarregado de algum trabalho nessas datas?
- Estava, sim.
- Quem o encarregara dele?
- Um homem que me disse chamar-se Felting Grimes.
- Que morada lhe indicou ele?
- 367, Mandala Drive.
- Indicou-lhe algum número de telefone?
- Indicou.
Hamilton Burger voltou-se para Mason, com um arremedo de vénia, e declarou:
- Com licença do tribunal e da defesa, gostaria de interrogar esta testemunha de maneira a obter uma sequência consecutiva de acontecimentos. Segundo as normas, talvez fosse necessário demonstrar, primeiro, a relação existente entre a testemunha, a arma do crime e a acusada, e depois retroceder, mas confio em que o tribunal e a defesa compreendam a vantagem de a narrativa seguir uma certa sequência.
- Às ordens! - replicou Mason, imitando a cortesia de Hamilton Burger. - Estamos tão empenhados como a acusação em ver o assunto esclarecido. Prossiga, pois, senhor Promotor de Justiça.
Hamilton Burger, que esperava, evidentemente, qualquer objecção e o ensejo de a poder rebater, proferiu um “obrigado” seco, como um homem que acabasse de verificar que a sua granada de mão não explodira, e voltou-se para a testemunha:
- Mr. Grimes requereu os seus serviços?
- Requereu.
- Quando lhos começou a prestar?
- Na manhã do dia 10.
- E de que o encarregou Mr. Grimes?
- Com licença do tribunal, estou disposto a conceder ao acusador certa margem para esclarecer os assuntos preliminares, mas não vejo motivo para permitir o uso e abuso de testemunho “por ouvir dizer”.
- Faz parte do res gestae - declarou Burger. O juiz abanou a cabeça e replicou:
- Só se, primeiro, for demonstrado que faz parte da res gestae com provas melhores que essas, Mr. Burger. Aceito o protesto.
- Muito bem - concordou o promotor. - Que fez?
- Depois de receber instruções de Mr. Grimes dirigi-me a uma casa, no 671 do Trilby Way, perto de Vista dei Mesa, onde moravam Mr. e Mrs. Frankline Gillett.
- Sabia, então, que Frankline Gillett e Felting Grimes eram uma e a mesma pessoa?
- Não, senhor.
- Quando o soube?
- Quando me chamaram para identificar o corpo encontrado na propriedade de George Belding Baxter.
- Quando foi isso?
- Na noite do dia 11 e depois de o corpo ser removido para a morgue.
- Que fez, no desempenho da missão de que fora encarregado?
- Dirigi-me à residência Gillett, ocultei o automóvel em local onde não daria nas vistas e vigiei a habitação.
- Que procurava, se é que procurava alguma coisa?
- Estava encarregado de observar o número de matrícula de quaisquer automóveis que se dirigissem à residência e parassem, e de fornecer a descrição de qualquer mulher que na mesma entrasse.
- 'Deram-lhe pormenores acerca de alguma mulher em especial ou de alguma matrícula?
- Não, senhor. Competia-me apenas vigiar a moradia, a fim de poder descrever as pessoas-•sobretudo as mulheres:-que entrassem na mesma e fixar os números, de matrícula dos automóveis que estacionassem defronte da porta.
- E que faria, depois?
- Assim que anotasse a matrícula de algum carro ou tivesse acontecido alguma coisa, devia telefonar para o escritório, a fim de comunicarem os resultados a Grimes.
- Quando fez o primeiro telefonema para o seu escritório?
- Na noite do dia 10.
- E que carro informou ter visto?
- O carro que, depois, vim a saber ser o da acusada, Gwynn Elston. Comuniquei o número da matrícula e descrevi Miss Elston o mais pormenorizadamente que me foi possível.
- Quanto tempo decorrera desde que Miss Elston se dirigira à residência?
- Cerca de três minutos.
- Comunicou com o seu escritório pelo telefone?
- Comuniquei.
- De onde telefonou?
- Tinha no meu automóvel um sistema de comunicação que me permitia enviar para o escritório qualquer mensagem, que seria comunicada do mesmo modo a Felting Grimes.
- E como podia Felting Grimes comunicar consigo?
- Só por intermédio da pessoa que, no escritório, podia comunicar com o seu automóvel, por meio de sistema de ondas curtas.
- Que aconteceu depois disso?
- Continuei a vigiar.
- E que sucedeu?
- Ainda Miss Elston estava na residência e cerca de vinte minutos depois de comunicar com o escritório, Mr. Felting Grimes - isto é, o homem que eu conhecia por este nome - apareceu de automóvel. Agora sei, evidentemente, que o seu verdadeiro nome era Frankline Gillett e que Felting Grimes não passava de nome suposto, que usava na sua outra casa... ou talvez deva dizer que se tratava de outra identidade.
- Penso que isto é, definitivamente, parte da res gestae - declarou Hamilton Burger, que perguntou em seguida: - Que lhe mandou o seu cliente fazer, nessa altura?
- Alguma objecção? - perguntou o Juiz Laporte a Perry Mason.
- Penso que não - respondeu-lhe o advogado.- Com licença do tribunal, acho que devemos continuar. O depoimento está a tornar-se interessantíssimo.
- Já calculava que a defesa seria dessa opinião - comentou Hamilton Burger.
- Mr. Grimes, como o conhecia nessa ocasião e como lhe chamarei no meu depoimento, ordenou-me que deixasse o meu posto e o seguisse - declarou a testemunha.
- O seu posto era em Trilby Way?
- Sim, senhor.
- A que distância fica isso da propriedade de George Belding Baxter?
- Depende de se referir a...
- Refiro-me à entrada da propriedade, aos portões de ferro.
- Cerca de um quarto de milha.
- Foi ao longo dessa estrada que a acusada chegou e partiu?
- Deve ter sido, mas não a segui.
- Mas essa era a estrada que teria necessariamente de seguir?
- Era.
- E a propriedade de Baxter, ou melhor, os portões de ferro da propriedade de Baxter, ficam afastados da casa de Trilby Way uma distância que se pode facilmente percorrer a pé?
- Depende do que considerar facilmente - respondeu a testemunha.
- O tribunal toma conhecimento judicial de que um quarto de milha é um quarto de milha - interveio o Juiz Laporte. - Quatrocentas e quarenta jardas, ou seja uma distância que se pode facilmente percorrer a pé num período de cinco a sete minutos, andando a velocidade razoável. Prossigamos, portanto.
- Muito bem, que fez? - continuou Hamilton Burger.
- Segui o automóvel conduzido por Felting Grimes até à propriedade de George Belding Baxter.
- E depois?
- À entrada da propriedade a estrada alarga, ao juntar-se-lhe a alameda de acesso à propriedade de Baxter, e foi aí que encontrámos o primeiro lugar onde podíamos estacionar, fora da estrada, sem corrermos o perigo de ser atingidos por outros veículos.
- Muito bem, prossiga. Que aconteceu?
- Parámos os automóveis e o meu cliente disse-me ser absolutamente necessário encontrar um pretexto qualquer para deter a pessoa que vira entrar na residência Gillett, quando ela passasse a caminho da cidade. Disse-me que tinha de entrar no seu carro e de a acompanhar até ela entrar numa cabina telefónica, e que devia descobrir para que número telefonava. Acrescentou que era uma rapariga cordial e que devia conquistar a sua confiança e passar a noite com ela, se possível.
- Que fez?
- Declarei que a missão seria difícil, mas o cliente não quis saber dos meus protestos. Perguntou-me se tinha uma arma, respondi-lhe que não e ele entregou-me um revólver e disse-me que, se fosse preciso, desse um tiro num pneu da retaguarda, quando o automóvel passasse, pois ela não perceberia o que acontecera, em virtude de o estampido do tiro se assemelhar ao de um pneu a rebentar.
- Concordou com isso?
- Acertei a arma. Tinha certas reservas mentais acerca do que faria, mas o meu cliente parecia tão enervado que achei melhor não discutir com ele.
- Que fez, de facto?
- Estacionei o automóvel na berma da estrada, levantei a tampa do porta-bagagem e tentei dar a impressão de que estava em dificuldades com os pneus. Disse para comigo que, se conseguisse convencer a rapariga a dar-me uma boleia, o faria.
- Qual foi o procedimento do seu cliente?
- Declarou que nos seguiria depois de eu conseguir a boleia no carro da mulher que sei agora ser a acusada, Miss Elston.
- O seu cliente deu-lhe uma arma?
- Deu.
- E o senhor aceitou-a?
- Aceitei, com relutância.
- E planeou conquistar a confiança da acuèadaf •-Planeei.
- Levá-fa a confiar em si? - Sim, senhor.
- Aceitou a arma que o seu cliente lhe deu?
- Aceitei.
- Que espécie de arma era?
- Um revólver Smith & Wesson, de calibre 38 e cano de duas polegadas.
- Mostro-lhe a arma que foi marcada como “Prova G da Acusação” e pergunto-lhe se era esta?
- Um momento! - interveio Mason. -Essa pergunta obriga a testemunhar a uma conclusão. Gostaria me fosse permitido fazer perguntas sobre voir dire.
- Pode fazer perguntas sobre voir dire - autorizou o juiz.
- Tirou o número da arma quando Mr. Grimes lha deu? - perguntou Mason.
- Não, senhor.
- Examinou o revólver cuidadosamente?
- Examinei-o cuidadosamente.
- Encontrou algumas marcas que lhe permitissem, agora, jurar que esta arma, a “Prova G da Acusação”, é a mesma que o seu cliente lhe deu?
- Não encontrei nenhumas marcas que a distinguissem.
- Então não pode jurar que esta arma, a “Prova G da Acusação”, é a que ele lhe deu.
- Só pelo aspecto geral.
- Na sua c.ualidade de detective particular, está familiarizado com armas de fogo?
- De uma maneira geral, sim.
- Sabe que a Smith & Wesson Company fabrica e vende milhares de armas destas, de modelo idêntico?
- Presumo que sim.
- Viu muitas armas dessas expostas?
- Sim.
- Costuma andar munido de uma arma, quando actua como detective particular?
- Às vezes.
- Na noite do dia 10 deste mês tinha consigo uma arma sua?
- Não, senhor. Foi por isso que o meu cliente me deu a dele.
- Mas não pode afirmar positivamente que esta arma, a “Prova G da Acusação”, foi a que Felting Grimes lhe deu?
- Não senhor, não posso jurar. Posso jurar, apenas, que era idêntica, na aparência.
- Terminei o interrogatório sobre voir dire - declarou Perry Mason.
- Pode continuar, senhor promotor - disse o Juiz Laporte que, de cotovelos na secretária, se inclinava para a frente e observava a testemunha com muito interesse.
- Por outro lado - começou Hamilton Burger -, não encontra na aparência- desta arma, a “Prova G da Acusação”, nada que a torne diferente da que o homem a que chama Felting Grimes lhe deu?
- Não, senhor.
- Muito bem. Que aconteceu depois?
- Tinha instruções para deter a pessoa que conduzia o carro e, fosse lá como fosse, arranjar maneira de entrar no veículo e de a acompanhar até ela fazer um telefonema.
- E depois?
- Mr. Grimes disse-me que se afastaria um pouco, para baixo, e arrumaria o automóvel onde não desse nas vistas, mas olhou e não pareceu encontrar local que lhe conviesse. Sugeri-lhe então que talvez pudesse entrar na propriedade de George Belding Baxter, virar o carro e colocá-lo numa posição que lhe permitisse sair assim que Miss Elston passasse.
- Que fez Mr. Grimes?
- Aceitou a minha sugestão, entrou na propriedade e aguardou junto do portão, do lado de dentro.
- Que sucedeu depois disso?
- Passados poucos minutos vi faróis a descerem, saí para o meio da estrada, agitei os braços e apontei a luz da lanterna para o pára-brisas do carro que se aproximava.
- E depois?
- Era a acusada quem guiava. Parou, mas com as janelas subidas e as portas fechadas. Desceu a janela do lado direito uns cinco centímetros, mas não se decidiu a descê-la mais ou a destrancar a porta.
- E que fez o senhor?
- Aproximei-me. Ela baixou o vidro cerca de dois centímetros, a fim de ouvir a minha voz, e perguntou-me o que queria. Mostrei-lhe a minha licença profissional e disse-lhe que era polícia e que estava a tratar de um assunto muito importante; que tinha complicações nos pneus e o pneu sobresselente despejado e incapaz, portanto, de substituir o outro; que não tinha macaco e que precisava de ir à estação de serviço mais próxima, a fim de obter auxílio. Pedia-lhe, por isso, que me levasse. -Que aconteceu?
- Ela hesitou e eu disse-lhe que não tinha nada a recear; que, além de ser polícia, lhe daria a minha arma, para que pudesse levá-la no colo e utilizá-la, no caso de haver da minha parte qualquer tentativa de a molestar.
- E depois, que aconteceu?
- Convenceu-se. Servira-me de todo o encanto de que fora capaz e creio que lhe agradei. Abriu a porta, entrei e coloquei-lhe o revólver no colo.
- Que sucedeu a seguir?
- Pareceu contente por ter companhia. Quando chegámos à povoação de Vista dei Mesa tive o cuidado de observar as estações de serviço, vi uma com cabina telefónica e pedi-lhe que parasse, pois queria pedir ao empregado que mandasse consertar o pneu.
- E ela parou? -Parou.
- Que fez o senhor?
- Dirigi-me ao empregado, perguntei-lhe onde ficavam as salas de espera, contornei o edifício e coloquei-me atrás da cabina, antes mesmo de ela se apear.
- Que fez, depois?
- Encolhi-me atrás da cabina e vi-a marcar um número, que soube depois ser o da Agência de Detectives Drake, e perguntar por Perry Mason. Depois desligou e marcou outro número, que vim a saber ser o do Hollywood Brown Derby, e perguntar novamente por Perry Mason.
- Houve alguma conversação?
- Houve.
- Ouviu o que ela disse?
- Distintamente.
- Que ouviu?
- Ouvi-a afirmar saber, agora, que espécie de indivíduo era Felting Grimes e acrescentar que alguém o devia matar. Calou-se, enquanto escutava o que lhe diziam do outro lado, e depois afirmou que falava com sinceridade e que se alguém o matasse seria uma boa obra.
- Mais alguma coisa?
- Marcou encontro para as dez e meia da manhã seguinte com a pessoa com quem falava.
- E que aconteceu a seguir?
- O meu cliente seguira-nos e estacionara o automó vel numa transversal. Ao ver que ela se preparava para desligar e sair da cabina, recuei e corri para o automóvel do meu cliente, onde cheguei no momento em que ela abandonava a cabina.
- Contou-lhe o que ouvira?
- Contei-lhe tudo.
- Que efeito produziu nele?
- Perturbou-o muito. Disse-me que entrasse no automóvel e conduziu-me à propriedade de Baxter, onde deixara o meu.
- E depois que sucedeu?
- O meu cliente disse-me que não precisava de mais nada de mim, que a minha missão terminara por aquela noite e que me telefonaria no dia seguinte, se tivesse necessidade dos meus serviços. Pediu-me que lhe devolvesse a arma e quando lhe expliquei que a deixara no automóvel de Miss Elston pareceu aborrecido. Censurou-me por isso eu repliquei-lhe que o culpado era ele e que teria recuperado a arma e, possivelmente, marcado um encontro com a rapariga, se não me ordenasse que entrasse no seu automóvel e o acompanhasse.
- Que lhe respondeu ele?
- Que a mulher não brincara, ao falar ao telefone, que o mataria e que, munida de uma arma, como agora estava...
- Testemunho por ouvir dizer! - interveio Mason.
- Demonstra o estado de espírito do falecido - argumentou Hamilton Burger.
- Deixo prosseguir assim - interveio o Juiz Laporte. - Creio que está tudo irrevogavelmente relacionado e, de qualquer modo, é res gestae.
- Que fez então? - perguntou o promotor à testemunha.
- Fechei o porta-bagagem, liguei o motor e os faróis e fui-me embora.
- E onde se encontrava o seu cliente nessa altura?
- A chuva, junto do seu automóvel.
- E onde se encontrava o seu automóvel?
- Junto dos portões da propriedade de George Bel-ding Baxter.
- Os portões estavam abertos ou fechados?
- Nessa altura estavam abertos.
- Sabe que horas eram?
- Sei.
- Que horas eram?
- Faltavam dez minutos para as dez horas.
- Como sabe?
- Vi as horas e fixei-as, para poder dizer no escritório quando largara o serviço.
- Na altura em que se separou da acusada, na estação de serviço, deixou-a de posse da arma que o seu cliente lhe dera?
- Deixei, sim.
- Vou fazer-lhe mais umas pergunta: no momento em que o seu cliente lhe deu a arma, examinou-a?
- Examinei, sim.
- A que espécie de exame procedeu?
- Perguntei a Mr. Grimes se a arma estava carregada. Respondeu-me que sim, mas, fiel ao meu costume no que respeita a armas de fogo, puxei o tambor e verifiquei.
- Quer dizer que examinou o tambor?
- Examinei.
- Os cartuchos que continha?
- Sim.
- Que pode dizer, com referência ao carregamento da arma?
- O tambor continha seis cartuchos carregados de calibre trinta e oito.
- Nessa altura não fora disparado nenhum?
- Não, nenhum.
- Tem a certeza?
- Absoluta.
Hamilton Burger voltou-se para Perry Mason e disse-lhe, mais em tom de desafio que de convite:
- Pronto, contra-interrogue.
Mason levantou-se e observou pensativamente a testemunha, antes de começar.
- A arma, a “Prova G da Acusação”, é de um tipo popular, sobretudo entre guardas da Polícia e detectives, não é verdade?
- É, sim, sobretudo entre polícias à paisana, chefes de Polícia e pessoas desse género, que precisam de ter sempre uma arma à mão, mas não lhes agrada que seja pesada ou dê tanto nas vistas como as usadas pelos polícias fardados.
Mason aproximou-se da mesa das provas, pegou na arma marcada como “Prova G da Acusação” e perguntou:
- 'Existe alguma maneira que lhe permita identificar esta arma, ou diferençá-la de qualquer outra da mesma marca, exceptuando, evidentemente, o facto de ter, presa à guarda do gatilho, uma etiqueta que a qualifica como prova nesta causa?
A testemunha observou o revólver que Mason lhe estendia e respondeu:
- Não.
Mason arrumou o revólver no seu lugar e voltou para junto da testemunha.
- Não pode jurar, portanto, que esta arma, “Prova G da Acusação”, seja a mesma que entregou à acusada?
- Não, não posso jurar, mas posso jurar que se trata de uma arma de aparência idêntica.
- Foi contratado para conquistar as boas graças e a confiança da acusada?
- Encarregaram-me de averiguar a quem telefonava e quais eram os seus planos.
- E serviu-se de todo o seu encanto quando lhe falou?
- Queria levá-la a confiar em mim.
- Para que pudesse trair essa confiança?
- Para que pudesse fornecer ao meu cliente as informações que ele pretendia.
- E estava disposto a cortejar a acusada, a mentir-lhe ou a fazer fosse o que fosse que se tornasse necessário para alcançar os seus fins?
- Tinha uma tarefa a cumprir. No género de trabalho a que me dedico nem sempre é possível escolher os meios a adoptar para se alcançarem os fins pretendidos.
- Responda à pergunta que lhe fiz: estava disposto a cortejar a acusada?
- Estava.
- A mentir-lhe?
- Sim.
- Acha que a sua profissão exige que minta, de tempos a tempos?
- Acho.
- E era capaz de mentir por dinheiro?
- Por dinheiro, não. -Porquê, então?
- Para obter as informações que tivesse de obter.
- É esse o seu meio de vida?
- Tenho uma profissão.
- Ganha dinheiro com ela?
- Ganho a vida.
- Responda à pergunta: ganha dinheiro com ela? -• Ganho, - E mente para ganhar esse dinheiro?
- Minto, pronto, se quer pôr as coisas nesse pé!
- Mais nada - declarou Mason.
- Isso encerra a causa do Povo - afirmou Hamilton Burger. - É evidente o que aconteceu, excelência. A vítima estava viva e sã quando esta testemunha a deixou dez minutos antes das dez horas, altura em que a acusada já estava de posse da arma. Sabemos que a morte de Gillett deve ter ocorrido antes das dez horas, pois a essa hora os portões da propriedade de George Belding Baxter foram fechados à chave; sabemos que a acusada tinha a arma em seu poder na manhã seguinte; sabemos que passou a noite toda na casa de Mandala Drive, onde vivia, porque Nell Arlington, que a acusada conhecia por Nell Grimes, esposa de Felting Grimes, notaria se a amiga saísse durante a noite, e sabemos que na manhã seguinte faltava uma cápsula no tambor, quando a acusada mostrou a arma à testemunha Nell Arlington. Encontramo-nos, portanto, perante um dos casos mais perfeitos de provas circunstanciais jamais verificado no nosso departamento. As circunstâncias falam mais alto do que as palavras e mais enfaticamente que quaisquer frases ou desmentidos. A acusada descobriu que a vítima andara a segui-la e deve tê-la seguido, por sua vez, até à propriedade de Baxter. Aí, assim que a testemunha Jasper se afastou, entrou atrás de Gillett na propriedade, assassinou-o e saiu da propriedade, tudo isto antes das dez horas, altura em que, como sabemos, os portões foram fechados à chave. Esses portões continuaram fechados toda a noite. O assassínio verificou-se na noite de 10 e só pode ter sido praticado em determinado período de dez minutos, período durante o qual a acusada estava de posse da arma. Estes factos não podem ser desmentidos nem explicados; são factos físicos, demonstram a culpa da acusada.
- Está a tentar debater a causa nesta ocasião? - perguntou Mason.
- Chame debater, se quiser, mas tentava apenas resumir os depoimentos ouvidos, para facilitar a tarefa do tribunal.
- Mantenhamos a audiência de acordo com um padrão ordenado - aconselhou o Juiz Laporte. - O senhor Promotor de Justiça expôs a sua causa; vejamos agora se a defesa tem alguma coisa a dizer. Neste momento, ao tribunal interessa apenas verificar se o crime foi de facto cometido, do que parece não haver dúvidas, e se existem fundamentos razoáveis para relacionar a acusada com ele, para não haver dúvidas, também, de que as provas até agora apresentadas demonstram a existência desses fundamentos.
Hamilton Burger sentou-se, com um sorriso triunfante, e deixou Mason argumentar com o juiz.
- Com permissão de V. Ex.a - disse Mason, revelando, com a sua atitude, que procurava orientar-se de acordo com a nova faceta que a causa adquirira-, o tribunal exprimiu uma norma correcta de lei. De facto, se o Promotor de Justiça não chamasse a depor a última testemunha, teria direito a uma ordem que obrigaria a acusada a submeter-se a julgamento; mas a acusação deu um passo longo de mais... O Promotor de Justiça introduziu no processo provas que estabelecem definitivamente a inocência da acusada e não pode exigir que a mesma seja submetida a julgamento, apesar de, até ao depoimento da última testemunha, haver provas tendentes a relacioná-la com o cometimento do crime.
- A defesa pretende alegar que a última testemunha provou definitivamente a inocência da acusada? - perguntou Burger, incrédulo.
- Pretende.
- Prossiga com o debate - convidou-o o promotor, com exagerada delicadeza. - Estou muito, muito interessado em ouvir a defesa justificar uma afirmação tão incrível, neste momento.
- A resposta é simples - declarou Mason. - Tornou-se agora evidente que a última testemunha, Cari Freeman Jasper, teve a arma do crime em seu poder, que foi a última pessoa a ver a vítima viva e que, embora tenha contado uma história com a qual tentou explicar esses factos, continua a ser evidente que a mesma testemunha teve a arma do crime em seu poder e esteve com a vítima poucos minutos antes da sua morte. Dadas as provas reunidas, o dedo da suspeita aponta mais enfaticamente a última testemunha que a acusada. A testemunha admite que teve a arma em seu poder, assim como que a última pessoa a ver o assassinado com vida. O tribunal notará, especialmente, que durante todo o tempo em que o Promotor de Justiça o interrogou acerca da arma, nem uma única vez ousou fazer-lhe esta simples pergunta: Matou o homem que conhecia por Felting Grimes ou teve alguma coisa que ver com a sua morte? Repito, o promotor não ousou fazer-lhe esta pergunta.
Mason sentou-se e Hamilton Burger, de rosto escarlate, levantou-se e gritou:
- Excelência, jamais ouvi, em toda a minha vida, argumento tão absurdo! É... francamente, é pura e simples conversa fiada! A acusação pede, portanto, licença para reabrir a causa, chamar de novo a testemunha e formular a tal pergunta que, segundo a defesa, não ousámos fazer-lhe. Mostraremos a Mr. Mason que ousamos fazê-la!
- A defesa não se opõe, excelência - declarou Mason.
- A acusação que reabra a causa.
Hamilton Burger voltou-se para a sala e chamou:
- Cari Jasper, queira voltar a depor.
Jasper acorreu e Hamilton Burger perguntou-lhe:
- Matou Felting Grimes?
- Não.
- Pronto, pode-se ir embora.
- Um momento - interveio Mason. - Gostaria de contra-interrogar a testemunha. Mr. Jasper, quando foi que Mr. Grime utilizou os seus serviços pela primeira vez?
- Protesto! - gritou Burger. - Já foi perguntado e respondido.
- Creio que é verdade, Mr. Mason - interveio o Juiz Laporte. - Parece estar demonstrado, pelos depoimentos obtidos, que foi no dia 9.
- Mas agora perguntei quando foi que Mr. Grimes utilizou os serviços da testemunha pela primeira vez.
- A pergunta foi feita e respondida!-afirmou Hamilton Burger, erguendo a voz.
- Creio que tem razão - concordou o juiz. Mason, que observava o rosto da testemunha, declarou:
- Muito bem, modificarei a pergunta. Já trabalhara para Mr. Grimes antes do dia 9 deste mês?
- Protesto! Incompatível, irrelevante e secundária, não constitui contra-interrogatório nem segundo contra-interrogatório correcto. A minha pergunta, no segundo interrogatório directo, limitou-se a averiguar se sim ou não a testemunha era culpada de homicídio.
- E a minha pergunta, no segundo contra-interrogatório pretende demonstrar que se trata de uma testemunha influenciada ou com interesse no resultado da causa.
- Autorizo a última pergunta - declarou o juiz.
- Não me agrada argumentar com o tribunal - interveio o Promotor de Justiça-, mas parece que essa pergunta se afasta muito do assunto debatido, que não constitui contra-interrogatório correcto e, neste momento, segundo contra-interrogatório.
- Parece-me que a defesa tem o direito de a fazer, baseada na existência de influência ou interesse - afirmou Laporte. - O tribunal confessa que começa a perguntar de si para si como fora que Mr. Grimes recorrera aos serviços de detective particular da testemunha, sem mais nem menos, por assim dizer. Portanto, responda à pergunta, senhor depoente.
- Mr. Grimes utilizou pela primeira vez os meus serviços há cerca de dois anos e meio ou três anos - respondeu Jasper.
- O quê?! - exclamou Hamilton Burger, deixando transparecer, tanto na voz como no rosto, a surpresa que sentia.
Não posso dizer a data exacta, mas foi entre dois anos e meio e três anos - declarou a testemunha.
- Mr. Grimes utilizou os seus serviços a propósito de umas impressões digitais, não foi? - perguntou-lhe Mason.
- Sim, senhor. Confiou-me algumas impressões digitais recentes e um jogo de dez impressões digitais mais antigas e perguntou-me se poderia determinar se as primeiras tinham sido deixadas pela pessoa a quem pertenciam as segundas.
- E tinham?
- Sim, senhor.
- Sabe a quem pertenciam as impressões digitais?
- Não, senhor.
- Não havia nenhuma identificação nas mesmas?
- Não, senhor.
- Como lhe foram entregues as impressões digitais do jogo?
- Deu-mas Mr. Grimes.
- O que pretendo saber é se sabe de onde vieram, originariamente?
- Não, senhor.
- Eram impressas?
- Eram, sim.
- Que quer dizer?
- Tinham sido impressas numa folha de papel.
- Por outras palavras, se o compreendi correctamente, tratava-se do tipo de impressões digitais distribuídas aos polícias para tentarem localizar um criminoso?
- Tratava, sim.
- Mas tinham sido cortadas da circular, de maneira a ficar apenas o jogo dactiloscópico?
- Exactamente.
- Isso despertou a sua curiosidade?
- Um pouco.
- Classificou essas impressões digitais e tentou encontrar a pessoa a quem pertenciam?
- Não, senhor. Para ser franco, pensei fazê-lo, mas acabei por mudar de ideias.
- Devolveu essas impressões digitais impressas a Mr. Grimes?
- Devolvi.
- E a partir desse momento ficou a saber, ou teve razões para suspeitar, que Felting Grimes localizara alguém procurado pela Polícia?
- Eu... bem, creio que sim.
- Alguém que, no entanto, não denunciara?
- Sim.
- E sabia ser esse o cenário perfeito para exercer chantagem?
- Não pensei no assunto desse ponto de vista.
- Não sejamos ingénuos, Mr. Jasper. O senhor sabia o que Mr. Grimes tinha em mente, não sabia?
- Podia ter suspeitado...
- E como suspeitou, teve a esperteza de classificar essas impressões digitais e de saber, por intermédio dos arquivos do F.B.I, a quem pertenciam. Foi assim ou não foi?
- Eu... bem... foi.
- Mentiu, então, quando há pouco disse que não identificou as referidas impressões digitais?
- Menti.
- Essas impressões digitais pertenciam a Collington Halsey, um dos homens mais procurados pelo F.B.I?
- Sim.
- E, a partir de então, fez chantagem com Felting Grimes, assim como Grimes fazia chantagem com Halsey, não é verdade?
- Não fiz tal! Essa acusação ofende-me, não é verdadeira.
- Quanto recebeu de Felting Grimes durante os últimos dois anos e meio?
- Nada, excepto os honorários dos serviços que lhe prestei.
- Quanto?
- O que me pagou por vários serviços profissionais.
- Quanto? Lembre-se de que prestou juramento.
- Apenas o valor dos meus serviços. -Quanto?
- Não me lembro.
- Cinco mil dólares?
- Possivelmente.
- Dez mil?
- Talvez.
- Vinte mil?
- Não me lembro. .
- Trinta mil?
- Não, tanto não.
- Estou satisfeito - declarou Mason. - Sabendo-o chantagista e perjuro e que teve a arma do crime na mão. O tribunal já poderá tirar as suas conclusões.
O Juiz Laporte olhou pensativamente o advogado e perguntou-lhe:
- Mr. Mason, importa-se de dizer ao tribunal porque fez à testemunha a pergunta acerca das impressões digitais? Aparentemente, há nesta causa algo que nenhum de nós sabe, mas que o senhor deve ter deduzido do depoimento desta testemunha e... Bem, tenho a impressão de que tem em mente qualquer coisa que talvez interesse ao tribunal...
- Foi apenas um tiro disparado às escuras, excelência, a ver se acertava - declarou o decepcionado Promotor de Justiça. - É evidente que não se trata de outra coisa.
- Se foi, como diz, apenas um tiro disparado às escuras, a defesa parece possuir uma pontaria certeira! - comentou o juiz.
- Creio que, se o tribunal consentisse qiie voltasse a chamar uma testemunha, para contra-interrogatório, poderíamos esclarecer o assunto - sugeriu Mason.
- Protesto! - declarou Burger. - Se Mr. Mason pretende chamar uma testemunha que a chame para depor pela defesa. O caso está encerrado, quanto à acusação.
- A acusação reabriu-o ao chamar Mr. Jasper pela segunda vez - lembrou o Juiz Laporte, pensativo. - Um tribunal não é local onde os advogados possam praticar ginástica mental, mas sim o pretório onde se tenta provar a verdade ou a falsidade de acusações dirigidas a alguém e administrar justiça.
- Com licença do tribunal, gostaria de ver a lista dactilografada dos nomes de clientes prováveis que foi entregue à acusação e onde se encontrava, entre outros, o nome de Mrs. Frankline Gillett. Creio que, depois disso, poderei mais facilmente responder à pergunta do tribunal.
Mason aproximou-se da mesa onde se encontravam as provas, pegou na lista e levou-a para junto de Della Street.
- Dê uma vista de olhos, Della - pediu, baixinho.
- O Paul que veja também. Verifiquem se a máquina que dactilografou o último nome foi a mesma que dactilografou os outros. Se não foi, abane a cabeça quando olhar para você; se foi, acene afirmativamente.
Aproximou-se da secretária do juiz e declarou:
- Há certos aspectos deste caso que me parece deviam ser tomados em consideração pelo tribunal. Penso que o tribunal devia consentir que contra-interrogasse uma das testemunhas. No entanto, se...
- Opomo-nos à reabertura da causa - disse Hamilton Burger, sem o deixar acabar. - A defesa teve a sua oportunidade; agora que enfrente os factos. Dadas as circunstâncias, a acusada é a única pessoa que pode ser culpada do assassínio.
- Peço licença ao tribunal para afirmar que existem várias possibilidades distintas - redarguiu Mason.- Em primeiro lugar. Cari Jasper podia ser o autor do crime; podia ter morto a vítima antes de entregar a arma à acusada.
Mason calou-se e olhou para Della Street, que abanou a cabeça.
- Com permissão do tribunal, é demasiado aparente o que a defesa tenta conseguir - interveio Burger.
- Como é habitual nestas audiências preliminares, Mr. Mason não tem a mínima intenção de fazer uma defesa bona fide nem de chamar testemunhas a depor. No entanto, não deixou de abusar das suas prerrogativas judiciais ao tentar exercer chantagem sobre Mr. George Belding Baxter, sen/indo-se de uma intimação legal para prejudicar Mr. Baxter e procurar obter certas concessões em benefício da acusada. Mas Mr. Baxter não é pessoa que se deixe intimidar, nem que se assuste com chantagens, e moveu contra Mr. Mason uma acção em que pede cem mil dólares de indemnização por perdas e danos. No caso de Mr. Mason não chamar Mr. Baxter a depor, ficará provado que a queixa deste tem razão de ser. Se for forçado pelo tribuna! a fazê-lo, Mr. Mason tentará, provavelmente, chamar Mr. Baxter, mas o que pretende agora é confundir a causa de tal maneira que possa afirmar, com certa justificação, quando a acção de Mr. Baxter for julgada, que o intimou por pensar que a causa podia tomar uma feição de que resultasse ser Mr. George Belding Baxter testemunha necessária, e que o intimara, portanto, de boa fé. É disto apenas que se trata. Não há dúvida que as provas e os testemunhos produzidos indicam que a acusada é culpada. Quanto à demonstração de ter havido chantagem, o meu departamento encarregar-se-á de esclarecer esse assunto. Mas, repito, Mr. Mason tenta, agora, confundir a causa, de maneira a transformar o tribunal em cúmplice involuntário da defesa forjada de que se servirá quando a acção intentada por Mr. Baxter contra ele for julgada.
- Claro que, numa situação destas, o tribunal tem de tomar certos pormenores em consideração - comentou o Juiz Laporte, de testa franzida. - O tribunal avalia, sem dificuldade, a lógica dos argumentos da acusação e a tentação que, sem dúvida, a defesa sente de provocar uma série de perguntas susceptíveis de dar a impressão de que, em certas circunstâncias, podia ter motivos válidos para chamar Mr. Baxter a depor...
- Com licença do tribunal, tenciono chamar Mr. Baxter a depor-interrompeu Mason.
- Tenciona defender a causa? - indagou o juiz.
- Tenciono.
- Muito bem, permitirei um procedimento muito pouco usual - decidiu o juiz. - Permitirei que Mr. Mason apresente a defesa. Se, no decorrer da mesma, se verificar a existência de motivos válidos, no tocante ao seu pedido de chamar de novo a depor uma das testemunhas da acusação, a fim de a submeter a segundo con-tra-interrogatório, suspenderei o interrogatório da defesa e autorizarei que se chame novamente a testemunha da acusação.
- Basta permitir-lhe que chame George Belding Baxter- declarou Hamilton Burger. - Ele que experimente. Desafio-o!
- Não há motivo para tais explosões da parte do acusador - advertiu o Juiz Laporte. - Proceda à defesa, Mr. Mason.
- Como primeira testemunha da defesa chamo a depor George Belding Baxter - anunciou Mason.
- Apresente-se e preste juramento, Mr. Baxter - ordenou o magistrado.
Baxter olhou significativamente para Hamilton Bur-ger, ao aproximar-se, levantou a mão e prestou juramento.
Mal o milionário se sentou, Hamilton Burger levantou-se e declarou:
- Com permissão do tribunal, objectarei a todas as perguntas feitas a esta testemunha que não sejam absoluta e directamente pertinentes à causa em debate. Não permitirei que o advogado de defesa inicie uma expedição piscatória sem que a acta a registe pelo que na. realidade for.
- Nessas circunstâncias - replicou o Juiz Laporte -, o tribunal tentará proteger a testemunha contra o que possa ser qualificado de “expedição piscatória”.
- Do mesmo modo e com permissão do tribunal - disse Mason, por sua vez-, considero-me no direita de fazer perguntas que sugiram determinada resposta, tendo em vista ser a testemunha hostil.
- O tribunal concorda consigo nesse aspecto, Mr. Mason - respondeu o juiz. - Prossiga.
Géorge Baxter envolvia Perry Mason num olhar carregado de ressentimento, disposto a atacá-lo assim que se lhe apresentasse ensejo.
- Há quanto tempo possui a propriedade conhecida por “Propriedade de Baxter”?
- Protesto, por a pergunta ser incompatível, irrelevante e secundária- interveio Burger.
- Indeferido o protesto-respondeu o juiz.
- Há cerca de dezassete anos, Mr. Mason. Desejo declarar que não só considero esta pergunta como absolutamente alheia à causa em debate, como também que nada sei acerca dos factos sub judice. Estava em Bakers-field, na Califórnia, na noite do dia 10, e só no dia 11, quando regressei ao meu escritório na cidade, tive conhecimento do crime.
Baxter sorriu triunfante e recostou-se na cadeira.
- Pergunto-lhe agora, Mr. Baxter, há quanto tempo sabe que o seu empregado, Corley L. Ketchum, é, na realidade, Collington Halsey, procurado pela Polícia por causa de um assalto à mão armada e de um assassínio.
Hamilton Burger levantou-se, para protestar, mas calou-se, ao ver o rosto de Baxter. O sorriso desaparecera e o milionário parecia mirrar, dentro do fato.
O Promotor de Justiça acabou por apresentar o protesto, mas após uma hesitação que lhe foi fatal:
- Protesto. A pergunta é incompatível, irrelevante e secundária.
O momento de pausa de Hamilton Burger produzira no juiz o incentivo necessário para o levar a olhar, também, para a testemunha. A sua resposta foi inesperadamente pronta e firme:
- Protesto indeferido. Responda à pergunta. Baxter continuou silencioso, no seu lugar.
- Compreendeu a pergunta? - inquiriu Mason.
- Compreendi.
- Não responde?
Baxter respirou fundo, longamente, e declarou:
- Há alguns anos que o sei.
- Que parentesco existe entre Mr. Ketchum e o senhor?
- Somos irmãos.
- E deu-lhe asilo sabendo que a Polícia o procurava?
- Dei.
- Há cerca de dois anos e meio o assassinado, Frankline Gillett, descobriu o seu segredo?
- Descobriu a identidade do meu irmão.
- E exerceu chantagem?
- Sim.
Hamilton Burger tentou intervir:
- Com licença do tribunal, isto está a afastar-se muito...
- Se se prepara para apresentar algum protesto, está desde já indeferido- interrompeu-o o magistrado. - Na minha opinião, começamos agora a chegar ao âmago da questão. Presumo que deduziu tudo isto, Mr. Mason, do facto de as impressões digitais submetidas ao detective Cari Freeman Jasper serem, de facto, as de Collington Halsey?
- Exactamente, excelência.
- Excelência - declarou a testemunha-, já agora, parece-me melhor explicar tudo. Meu irmão, que tem vivido scb o nome falso de Corley L. Ketchum, é realmente Collington Halsey, assim como o meu verdadeiro nome é George Belding Halsey. Em tempos meu irmão, levou vida criminosa, com a cumplicidade de Gorman Gillett, pai de Frankline Gillett. Gorman Gillett cumpriu pena de prisão e foi solto. Nunca soube ao certo como Gorman descobriu a minha identidade, mas suponho que isso se deveu a um artigo publicado no Saiutday Evening Post. Tentámos conservar o meu irmão em segundo plano, nesse artigo, mas, sem sabermos como, o fotógrafo tirou uma fotografia dos dois a observarmos umas plantas quaisquer, e a fotografia foi publicada com a legenda seguinte: “George Belding Baxter e o seu jardineiro, Corley L. Ketchum, examinam plantas ornamentais.” Pouco depois Frankline Gillett procurou meu irmão com exigências e, desde então, temos pago chantagem.
Hamilton Burger levantou-se outra vez e começou a dizer qualquer coisa, mas desistiu de novo e voltou a sentar-se.
- Diga-nos agora o que aconteceu na noite de 10 do corrente - pediu Mason à testemunha.
- Não podíamos fazer nada - prosseguiu Baxter-, éramos impotentes para nos libertarmos da chantagem. As impressões digitais do meu irmão estavam registadas e o F. B. I. procurava-o. Graças ao estratagema de viver comigo e de passar por humilde jardineiro e guarda, com um salário baixo, conseguíramos conservar secreta a sua identidade. No entanto, assim que Gorman Gillett descobriu o segredo e o filho, Frankline Gillett, teve conhecimento dele, fomos obrigados a pagar. Às vezes duvido, porém, que Gorman soubesse o que o filho fazia e quanto exigia. Quando, no dia dez, estive em Bakers-field, peguei num jornal iocal e verifiquei que Gorman Gillett morrera.
- Compreendeu, então, que se acontecesse alguma coisa a Frankline Giilett o segredo do seu irmão estaria salvo?
- De modo nenhum! - protestou a testemunha.- Gillett serviu-se do falecimento do pai para apresentar novas exigências, das quais fui informado pelo telefone. O que dessa vez exigia era impossível de satisfazer, mas tenho a certeza de que nem eu nem o meu irmão o matámos.
- Diga-nos o que sabe acerca dessas exigências - pediu Mason.
- Telefonei ao meu irmão e ele disse-me que devia regressar a casa de maneira a parecer que continuava em Bakersfield. Acrescentou que não me podia explicar pelo telefone do que se tratava, mas que tudo dependia da minha ida. Registei-me num hotel de Backersfield e disse que jantaria e me deitaria cedo. Jantei, de facto, assinei um cheque para pagar a despesa, desfiz a cama, no quarto, meti-me no automóvel e regressei a toda a velocidade à minha propriedade, onde cheguei pouco depois das onze horas. Encontrei Frankline Gillett com meu irmão. Gillett exigia uma soma absolutamente absurda pelo que chamava pagamento final. Salientou que, em virtude de o pai ter morrido, podia tranquiia-zar-nos e deixar-nos em paz, argumentando que, enquanto o pai vivera, seria fácil alguém convencê-lo a fazer qualquer declaração ou que o velhote podia, até, trair-nos inadvertidamente. O argumento pareceu-me pouco lógico, embora, na realidade, a morte de Gorman Gillett reduzisse, de facto, as probabilidades de sermos descobertos. Frankline afirmou-nos que estava em sérios apuros, que teria de calar uma mulher tagarela, que o espiava, e que, para isso, não precisaria só de dinheiro, mas também do meu apoio, isto é, que lhe fornecesse um álibi.
- E que aconteceu? - perguntou Mason.
- Recusei; disse a ambos que não contassem comigo. Dinheiro daria, mas não deporia num juramento, cometendo perjúrio, para proporcionar a Frankline Gillett um álibi em caso de homicídio.
- Sabe alguma coisa acerca dos planos que ele tinha?
- Disse que talvez tivesse de sair do país. Francamente, duvido que os seus planos fossem, de facto, definitivos, mas sei que exigiu cem mil dólares em dinheiro e um álibi. Tínhamos disponível uma soma bastante grande, mas recusei-lhe redondamente o álibi. Gillett declarou ter de descobrir o que a tal mulher tagarela dissera já a certo advogado, a seu respeito, e de a impedir de comparecer à entrevista com o referido advogado, na manhã seguinte, ou de deixar o país. Estava enervadíssímo e, às vezes, dava a impressão de que não pensava com lógica. Receei que estivesse a ir-se abaixo...
- Que aconteceu depois?
- Não sei. Declarou-nos precisar de avaliar até que ponto era má determinada situação e que regressaria cerca de uma hora da manhã. Deixou-nos e meteu-se no automóvel.
- Onde se encontrava o seu automóvel?
- Estacionara-o junto da piscina. Foi para lá que se dirigiu, depois da minha recusa. Discutia o assunto com o meu irmão quando nos pareceu ouvir um rate ou um tiro. Saímos de casa a correr, mas não vimos nada. Demos uma volta pela propriedade, mas nem vimos nem ouvimos nada de especial. De súbito, porém, ouvimos o barulho de um automóvel a transpor os portões, presumimos que fosse Frankline Gillett que partia e que o estampido proviera do escape do seu carro.
- Que horas eram?
- Faltavam poucos minutos para a meia-noite.
- Os portões estavam abertos?
- Tinham sido fechados às dez horas, mas meu irmão abrira-os quando Frankline chegara e afirmara que pretendia discutir um assunto importante.
- Frankline Gillett disse-lhe que tencionava cometer um assassínio?
- Disse. Não especificou quem seria a vítima, mas declarou que se veria envolvido num homicídio e que lhe seria essencial possuir um álibi que a Polícia não pusesse em dúvida. Queria que fosse eu a fornecer-lho. Sabia que me julgavam em Bakersfield e pretendia convencer-me a declarar que soubera do meu paradeiro e, como tínhamos um negócio a discutir, se metera no automóvel e fora reunir-se-me no motel, onde estivéramos das onze horas em diante. Lamento que tudo isto tenha acontecido e que a máscara tenha sido arrancada ao meu irmão. Faria tudo para o evitar, se pudesse, mas é impossível discutir quando a prova são impressões digitais. Aliás, disse-lhe mais de uma vez que acabaria por pagar os erros que cometera.
- Creio que é tudo - declarou Perry Mason. - Não tenho mais perguntas a fazer. O Promotor de Justiça está interessado em contra-interrogatório?
Hamilton Burger franziu a testa, trocou breves palavras com Nelson, olhou com ar desesperado o Juiz Laporte e respondeu:
- Não.
- Agora desejo chamar uma das testemunhas da acusação para a contra-interrogar - disse Perry Mason.
- Quem é a testemunha? - perguntou o Juiz Laporte.
- Nell Arlington.
- Com licença do tribunal, retiramos o nosso protesto - declarou Burger. - Consideramos dever do nosso departamento desmascarar, sem sombra de dúvida, pessoas acusadas de crime, mas quando começa a tornar-se evidente que existem outros assuntos em causa não esquecemos que o nosso principal dever consiste em providenciar para que se faça justiça.
- Muito obrigado por essa declaração, senhor Promotor de Justiça - agradeceu o juiz. - Ilustra bem os princípios por que se rege o seu departamento. Miss Arlington deporá.
Nell Arlington levantou-se, com relutância.
- Já prestou juramento - disse-lhe o magistrado. - Sente-se.
- Declarou que, algumas vezes, servia de secretária à acusada e abria as listas que ela recebia, com os nomes dos clientes prováveis, a fim de lhe poder telefonar e de a informar desses nomes e moradas - começou Mason.- É verdade?
- É - respondeu a testemunha secamente.
- E quando essas listas eram transmitidas pelo telefone anotava nomes e endereços e depois informava do mesmo modo a sua amiga?
- Sim.
- Notei que nesta lista que contém o nome de onze nomes em vez de dez; que o nome de Mrs. Gillett é o último da lista e que foi dactilografado com uma máquina diferente da que escreveu os outros. Sugiro, Miss Arlington, que acrescentou esse undécimo nome depois de a lista chegar, pelo correio. Antes de responder lembre-se de que prestou juramento, que os nomes constantes da lista podem ser conferidos na sede da companhia editora que os enviou, que a escrita à máquina é tão fácil de identificar como a caligrafia e que um perito no assunto poderá dizer-nos, sem hesitar, se esse undécimo nome foi ou não escrito na sua máquina.
Seguiu-se uma longa pausa, mas por fim Nell Arlling-ton confessou:
- Pois bem, fui eu que o dactilografei!
- E dactilografou-o porque tinha certa desconfiança e queria saber quem vivia nesse endereço - afirmou Mason.
- Ao passar revista às coisas do homem que julgava meu marido encontrara uma carta de condução passada em nome de Frankline Gillett, residente no referido endereço. A idade dos dois indivíduos e a descrição física eram exactamente iguais. Fiquei sem saber que pensar, sem saber se ele usaria um nome suposto ou se se tratava de qualquer outra coisa. Como queria esclarecer o assunto, acrescentei esse nome à lista, sabendo que a minha amiga, Gwynn Elston, visitaria esse endereço e poderia sondá-la sem ela perceber que havia da minha parte interesse pessoal.
- Mas aconteceu qualquer coisa que a levou a modificar os seus planos?
- Claro que aconteceu qualquer coisa e o senhor sabe muito bem o que foi. O homem que julgava meu marido cometia bigamia e eu era, apenas, a mulher bígama. Meu marido, ou o homem que considerava como tal, descobriu que Gwynn Elston ia visitar o endereço dos Gilllett e, naturalmente, presumiu que Gwynn descobriria tudo e me informaria. Resolveu, por isso, matá-la, a fim de a impedir de falar, e, com esse fim, preparou-lhe uma bebida de gim e água tónica, a que acrescentou estric-nina. Só o compreendi depois de Gwynn e de ele saírem, quando vi o frasco do veneno onde ele o deixara, depois de o tirar do armário dos remédios. Na véspera, pensara que Gwynn deitara a bebida fora, despejando-a na bacia do lavatório, em virtude de o meu marido a ter feito demasiado forte... Quando a minha amiga regressou, naquela noite, trazendo um revólver consigo, senti que chegara a ocasião do ajuste de contas. Tentei conven-vê-la a contar-me tudo, mas ela não contou e percebi que me mentia. Juntei um barbitúrico ao leite que lhe dei e, logo que adormeceu profundamente, tirei-lhe a arma e fui procurar o meu marido.
- Foi procurá-lo como? - perguntou Mason.
- Sabia, havia algum tempo, que ele vivia do dinheiro que extorquia a George Belding Baxter. Ignorava os motivos por que lhe pagavam, mas decidi descobri-los. Meti-me no automóvel e dirigi-me à propriedade de Baxter, com a arma que tirara debaixo da almofada de Gwynn, depois de ela adormecer. Tinha a certeza de que, de uma maneira ou de outra, Mr. Baxter possuía a chave do mistério e... bem, pressentia que encontraria lá o meu marido.
- Encontrou-o?
- Cheguei precisamente quando o meu marido saía da habitação. Apanhei-o, por assim dizer, com a boca na botija.
- E depois?
- Ele viu-me, quis saber o que fazia ali, e, mal o acusei... bem, percebi que planeava matar-me. Tentou estrangular-me e eu puxei o gatilho. Caiu para trás, na relva, dei a volta ao carro e transpus os portões e regressei a casa, onde meti outra vez a arma debaixo da almofada da Gwynn.
Mason voltou-se para Burger e, com um arremedo de vénia, declarou:
- Creio que está encerrada a causa, por parte da defesa.
Mason, Della Street e Paul Drake estavam sentados no escritório do primeiro, a proceder a uma espécie de autópsia do caso...
- Ficou demonstrada a importância de lutar passo a passo - declarou o advogado. - E ficou demonstrado, também, que, às vezes, o destino pode dar umas torcide-lazinhas peculiares a um caso. A governanta disse a verdade ao afirmar que perdera a arma: Frankline Gillett, ao regressar à sua residência no Trilby Way, depois de uma visita à sua segunda esposa, na Mandala Drive, encontrou o revólver na berma da estrada. A arma era nova e bonita e não há dúvida de que o indivíduo parou o automóvel, apanhou-a e levou-a para casa. Esse simples gesto bastou para envolver George Belding Baxter no caso. Claro que, nessa altura, o bígamo não fazia a mínima ideia de quem perdera a arma. Para ele caíra-lhe do céu e levou-a consigo.
“Gillett possuía método absolutamente infalível de praticar chantagem; bastava-lhe bater à porta sempre que precisava de alguma coisa. George Belding Baxter era vendedor quando o irmão se metera em sarilhos e fugira a caminho da penitenciária. Morreu um polícia, mas, provavelmente, Halsey está inocente e conseguirá ilibar-se. George mudou de apelido, levou o irmão consigo como Corley L. Ketchum e, juntos, começaram a negociar.
“Depois Baxter prosperou e quiseram pôr-lhe o nome no jornal. Naturalmente, se soubessem que o irmão era seu sócio, quereriam também publicar o seu retrato, e isso daria mau resultado... Halsey teve, portanto, de se contentar com uma posição humilde, de passar a vida disfarçado de jardineiro e guarda. Há, nisto, um toque de poética justiça. Gorman Gillett foi preso, pagou a sua dívida à sociedade e pôde viver a sua existência, embora frugal e modesta. Era, contudo, independente. Collington Halsey, pelo contrário, foi obrigado a uma vida de dissimulação. Teve de viver em perpétuo temor e as suas capacidades naturais ficaram represadas, adormecidas sob a máscara forçada.
“Depois ambos os irmãos pagaram a chantagem.
“Dezoito meses antes, Gillett apaixonara-se por Nell Arlington. Estava um pouco fatigado da sua vida rotineira, com a esposa legítima, e resolveu tornar-se bígamo, convencido de que, enquanto não tivesse de ganhar a vida em qualquer emprego ou comércio, seriam poucas as probabilidades de ser descoberto.
“Mas, em virtude de se ausentar de casa com tanta frequência, Nell quis que a sua amiga Gwynn Elston fosse viver com ela e Gillett teve de consentir.
“Lentamente, inexoravelmente, o indivíduo caiu nas malhas da sua própria teia. Que de facto estava desesperado, mostra-o a tentativa de administrar estricnina a Gwynn Elston numa bebida, esperando que ela tivesse convulsões e morresse e, ajudado pela mulher, pudesse arranjar maneira de evitar um inquérito. Por outras palavras, Gillett era um indivíduo que não pensava muito nas consequências nem no futuro, que conjecturava a maneira de se livrar depressa de embrulhadas, quando elas surgiam, imediatamente e sem planear, com cuidado, a maneira de fugir às complicações, tomando em consideração todas as circunstâncias.”
- Tudo isso demonstra, ainda, que um advogado deve ser leal aos seus clientes - comentou Paul Drake. - Confesso, no entanto, que estou convencido de que não teria coragem de enfrentar um indivíduo com a influência de George Belding Baxter.
- É preciso mais do que ser leal aos clientes - afirmou Mason, pensativo. - É preciso ser leal ao princípio básico da justiça. E quando queremos proceder assim, somos obrigados a agarrar o boi pelas pontas, de vez em quando, ou pelo menos a estar preparados para isso.
- Pronto, apto e disposto, é a expressão legal - declarou Della Street, envolvendo o advogado num olhar que exprimia bem a intensidade dos seus sentimentos.
Erle Stanley Gardner
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