Artur Azevedo
Revista fluminense do ano de 1885, em um prólogo, três atos e dezessete quadros. Representada pela primeira vez no Teatro Lucinda do Rio de janeiro, Em 29 de janeiro de 1886.
PERSONAGENS: FAUSTINO O TRABALHO O COMENDADOR CAMPELO ALEXANDRE RIBEIRINHO O INSPETOR O ENTRUDO UM TITULAR O CONDE DE MONTE CRISTO BAR-GOSSI UM SUJEITO QUE ANDA À PROCURA DA COMPANHIA MONTEDÔNIO UM ESQUELETO UM COROADO PRIMEIRO MENINO O XADREZ PRIMEIRO ZÉ O BALÃO JÚLIO CÉSAR A TRAGÉDIA UM EMPRESÁRIO ITALIANO O DIÁRIO PORTUGUÊS PRIMEIRO PROPRIETÁRIO DE CAVALOS O POLÍCIA NOTURNO O JOGO O A. O DRAMALHÃO UM ATOR ITALIANO O DIÁRIO DE NOTÍCIAS UM DOUTOR UM VIAJANTE O RECREIO DA CIDADE NOVA GAMBÁ SPORTMAN UM CORTESÃO PRIMEIRO BANHISTA RAFANI O BRASIL UM HOMEM DO POVO UM MESTRE-ESCOLA ANACLETO UM EMPREGADO DO CONSULADO PORTUGUÊS SEGUNDO ZÉ UM PAI O CAPITÃO VOYER PRIMEIRO ESPECTADOR UM MACACO UM BARRAQUEIRO JOSÉ SEGUNDO BANHISTA TERCEIRO ZÉ UM NOIVO, UM MOÇO DE RECADOS SEGUNDO PROPRIETÁRIO DE CAVALOS SEGUNDO CAIXEIRO SEGUNDO EXPECTADOR UM CRIADO UM VENDILHÃO UM MORCEGO UM CRIOULO UM SENHORIO QUARTO ZÉ PRIMEIRO EMPREGADO DO TEATRO SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA UM ALFAIATE SEGUNDO EMPREGADO DO TEATRO SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA O CONTRARREGRA TERCEIRO BANHISTA UM ESPECTADOR SEGUNDO SPORTMAN SEGUNDO MENINO UM GÊNIO QUE PEDE ESMOLAS PARA AS FESTAS DA INDEPENDÊNCIA PRIMEIRO MENINO RICO JOGATINA A OCIOSIDADE UMA MUSA DO POVO O CARNAVAL A ÓPERA A SEMANA CAROLINA MADEMOISELLE GRICHARD A OPERETA A REVUE COMMERCIALE FINANCIÉRE ET MARITIME A LOTERIA A ILUSTRÍSSIMA A MÁGICA MADAME BARGOSSI A FOLHA NOVA A ABÓBORA UMA NOIVA A CENOURA UMA ATRIZ ITALIANA PRIMEIRO CAIXEIRO A VERMELHINHA A PULE A PRETA DOS PASTÉIS A VÍSPORA O PACAU O CÂMBIO O GÊNIO DO FOGO O BURRO DE CARGA A RELIGIOSA BESTA O CÃO SEM DONO O GATO ESCALDADO O BODE EXPIATÓRIO UM HOMEM SEM CABEÇA Credores, Cortesãos, Loterias, Décimos, Vigésimos, Banhistas, Urbanos, Morcegos, Capoeiras, Trabalhadores, Zes, Máscaras, Foliões Carnavalescos, Estudiantes, Caixeiros, Soldados, Jornalistas, Músicos, Bombeiros, As horas, Espectadores, Autoridades, Empregados do Teatro de São Pedro de Alcântara, Sportmen, Proprietários de Cavalos, Hortaliças e Legumes, Barraqueiros, Figueteiros, Meninos, Bichos etc., etc.
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QUADRO I Sala em casa de Faustino
CENA I Faustino depois um Criado.
FAUSTINO (dirigindo-se à esquerda) José! Ó José!
O CRIADO (entrando) Meu amo?
FAUSTINO Levaste a carta ao Comendador?
O CRIADO Levei, sim, senhor. FAUSTINO
O diabo! (Indo puxar o relógio, que não encontra). Esquecia-me de que o pus ontem no prego.
O CRIADO Deram duas há pouco
FAUSTINO Bem, podes retirar-te
O CRIADO E o jantar?
FAUSTINO Que jantar?
O CRIADO O jantar pra gente.
FAUSTINO (embaraçado) O jantar... oh! sim... o jantar... Homem, pra falar a verdade, não tenho fome. (À parte). Nem com que matá-la.
O CRIADO Mas eu...
FAUSTINO Tu comerás logo, em qualquer casa de pasto... depois que o Comendador vier. Vai.
O CRIADO (que vai a sair, voltando) Ah! É verdade, vieram há pouco dois homens, assim, com modos de meirinhos...
FAUSTINO Hein? Meirinhos?!
O CRIADO
Ou coisa parecida.
FAUSTINO Não estou em casa, estás ouvindo? Se voltarem, não estou em casa!
O CRIADO (saindo, à parte) Isto vai mal! Se as coisas não mudarem, piro-me! (Sai)
CENA II Faustino só, depois Ribeirinho e Anacleto
FAUSTINO (pensativo) Meirinhos... Não há que ver: foi o senhorio! Foi ele com certeza! O senhorio ou o alfaiate... Daí, quem sabe? Talvez seja o maldito taverneiro... O taverneiro? Qual! é o Sousa da loja de calçado! Cuidado! é preciso que não se apanhem descalço (Aparecem ao fundo os dois meirinhos, que espiam cautelosamente). Só o Comendador poderá salvar-me. Creio que não hesitará em emprestar-me os quinhentos mil réis que lhe mandei pedir.
RIBEIRINHO Vossa senhoria dá licença?
ANACLETO Criado de vossa senhoria.
FAUSTINO (à parte, sucumbindo) Bonito!... (Cai sentado numa cadeira)
RIBEIRINHO (aproximando-se) Vossa senhoria desculpe, mas nós viemos...
ANACLETO Por causa daquela conta...
RIBEIRINHO Da Casa Sousa & Companhia.
FAUSTINO Não disse? É o homem das botas! Então, que pretendem?
RIBEIRINHO É boa! Vossa senhoria está fazendo de novas! O importe...
FAUSTINO Oh! uma miséria! Duzentos e quarenta mil réis, se não me falha a memória.
RIBEIRINHO Perdão de vossa senhoria, mas... com as custas...
FAUSTINO Ah, sim, fui citado à semana atrasada.
RIBEIRINHO E apresentou atestado médico.
ANACLETO Mas não comparecendo à última audiência...
RIBEIRINHO Fui condenado a pagar.
ANACLETO Trezentos e oitenta e um mil réis.
FAUSTINO (com um pulo) Hein? quê?
RIBEIRINHO E então? Citação, contrafé, juiz, escrivão, procurador, oficial de justiça, mandado, etc., etc., etc...
ANACLETO Principalmente etc., etc.
FAUSTINO Os senhores não podem esperar até depois de duas e meia?
RIBEIRINHO Não, senhor; temos ordem de proceder à penhora, o que vamos fazer imediatamente! (Tira do bolso papéis e prepara-se para proceder à penhora)
CENA III Os mesmos, o Criado.
O CRIADO (entrando) Meu amo, aí vem o Comendador (À parte, vendo os dois meirinhos). Ui! cá estão eles!
FAUSTINO O Comendador?! Corre! Demora-o! Traze-o só quando eu chamar!
O CRIADO Sim, senhor. (Sai a correr)
FAUSTINO (a Anacleto) Senhor...
ANACLETO Anacleto do Espírito Santo, criado de vossa senhoria...
RIBEIRINHO O Ribeirinho, para o servir. Não há caloteiro que me não conheça! Vossa senhoria é o primeiro que...
FAUSTINO (entre os dois)
Meus amigos, pelo amor de Deus não me deitem a perder! Escondam-se! É uma visita importante, que não os devem encontrar aqui.
OS DOIS Mas...
FAUSTINO Logo que o Comendador sair, vocês farão o seu dever. (Tirando a corrente que não tem relógio). – Tomem; é tudo o quanto possuo. (À parte). É de plaqué. (Alto). Mas, pelo amor de Deus, escondam-se!
ANACLETO (depois de examinar a corrente, e de consultar Ribeirinho com os olhos) Onde?
FAUSTINO Ali, naquele quarto! (Empurrando-os). Depressa! (O Comendador aparece ao tempo em que os dois se somem, e não os vê). Era tempo! – Ó Comendador! Vossa excelência quis dar-se ao incômodo...
CENA IV Faustino, Comendador, depois Anacleto e Ribeirinho.
COMENDADOR O senhor tem um criado muito falador! A puxar conversa... a puxar conversa... Dir-se-ia que não queria me deixar entrar.
FAUSTINO (com sorriso contrafeito) Ora, Comendador! essa agora! É de costume daquele animal! Se eu ansiava pela vinda de vossa excelência! – Então, excelentíssimo, queira sentar-se!... (Durante toda a cena, olha desconfiado pela porta por onde saíram os meirinhos).
COMENDADOR Obrigado; mas desde que me negaram acento na Câmara dos Deputados, nunca mais me sentei em parte alguma! Só me hei de sentar quando for eleito! Foi um voto!
FAUSTINO Vossa excelência só teve um voto?
COMENDADOR Não; foi um voto que fiz.
FAUSTINO Ah! Mas deve ficar excessivamente fatigado.
COMENDADOR Quando canso, deito-me. É por isso que não faço visitas de cerimônia. – Mas que tem o senhor? Acho-o assim com ares de espantado!
FAUSTINO Não é nada... não é nada... É um ar encanado que vem daquela porta. Com licença (Vai fechar a porta e volta). Mas, como íamos dizendo... (Senta-se e levanta-se logo). Desculpe-me, excelentíssimo! Vossa excelência de pé e eu sentado: que distração!
COMENDADOR Esteja à vontade: o senhor não fez nenhum voto, como eu.
FAUSTINO O caso é que vossa excelência foi vítima da mais clamorosa injustiça de que há exemplo nos anais da Cadeia Velha!
COMENDADOR Que quer o amigo? Fomos dois os eleitos pelo meu distrito.
FAUSTINO Dois?
COMENDADOR Dois, sim, senhor; acha pouco?
FAUSTINO Acho até demais!
COMENDADOR Também eu. Eu fui o mais votado; ergo, fui o eleito; não?
FAUSTINO Parece.
COMENDADOR Mas o Lopes foi o reconhecido!
FAUSTINO Ora o Lopes!
COMENDADOR Ergo, foi o eleito; não?
FAUSTINO Incontestavelmente. Mas qual dos dois teve o diploma?
COMENDADOR Ambos. O dele, passado pela junta apuradora, e o meu por dois juízes de paz. Temos, por conseguinte, dois eleitos. Qual deveria ser a consequência lógica desta dualidade? Serem ambos reconhecidos pelo mesmo distrito dois ou três deputados. Houve esta lacuna na ideia-mãe. Entretanto, senhor presidente, que mal haveria no duplo ou no tríplice reconhecimento? Nem ao menos acréscimos de despesa pública, porquanto, cada um dos dois ou três eleitos, representando metade ou um terço de deputado, venceria, em vez de cinquenta mil réis diários, vinte e cinco mil réis ou dezesseis mil, seiscentos e sessenta e seis réis!
FAUSTINO Mas o Comendador em tal caso só teria direito à metade de um voto e talvez a um terço
(Os meirinhos de vez em quando espiam pela porta, que entreabrem).
COMENDADOR Não elucidei ainda este ponto. Fá-lo-ei na primeira ocasião. – Ah! mas ficou-me uma satisfação: o meu partido, o Conservador...
FAUSTINO Ah! Vossa excelência é conservador?
COMENDADOR Fui. Fui conservador até o terceiro escrutínio. Hoje sou liberal, ultraliberal, meu caro Senhor Faustino... Liberal da velha guarda!
FAUSTINO Mas como ia dizendo: o Partido...
COMENDADOR Qual deles? Ah! sim... o Conservador, ou antes, os meus excorreligionários não concorreram com seu voto para a minha exclusão...
FAUSTINO Então por que mudou de política?
COMENDADOR Justamente por isso; para, da outra vez, obter os votos dos meus exadversários. No mais, não... Razões de queixa não tive. O Partido ofereceu-me até, bem como aos outros sacrificados, um jantar de oitenta talheres no Hotel do Globo.
FAUSTINO Oitenta! Quanto mais se fossem reconhecidos!
COMENDADOR Então, o caso muda de figura. Cada qual se contentaria com seu talher na mesa do orçamento.
FAUSTINO Por falar em orçamento: Vossa excelência trouxe?...
(Ouve-se no quarto barulho de louça que se quebra).
COMENDADOR Que é isto?
(Saem do quarto, assustados, Anacleto e Ribeirinho).
FAUSTINO Nada, Comendador, não faça caso. (À parte). Diabos os levem! (Alto). São dois amigos... (Apresentando-os). O Conselheiro Nóbrega e o Doutor Nóbrega Júnior, seu irmão... o Senhor Comendador Campelo...
COMENDADOR (desconfiado) Não conheço.
FAUSTINO Oh! não conhece vossa excelência outra coisa! O Conselheiro Nóbrega, velho advogado do nosso foro, onde honestamente adquiriu fortuna.
COMENDADOR Ah!
FAUSTINO Tem se distinguido muito por sua filantropia (Baixo a Anacleto). Não me desminta.
ANACLETO (protestando) Oh! Vossa senhoria...
FAUSTINO Ainda ultimamente fez um importante donativo para o Asilo da Candelária.
ANACLETO Uma bagatela!
(Os dois meirinhos sobem ao fundo, dando-se ares)
COMENDADOR (baixo a Faustino) Pode ser que sejam grande coisa; mas a mim quer-me parecer que, com aqueles amigos, o senhor está livre de uma penhora.
FAUSTINO Como se engana!
COMENDADOR (vendo as horas) Bem, deixo-os a gosto. (Vai a sair)
FAUSTINO Perdão; mas a carta que tive a honra de...
COMENDADOR Respondo em duas palavras. não disponho atualmente da quantia que me pede... mas, se precisa de dinheiro e quer fazer um bom negócio... como me disse que era amigo do ministro... e eu tenho um enorme desejo, confesso, de... de ser barão... arranje-me o título, e depois conversaremos.
FAUSTINO Oh! mas vossa excelência... uma influência política!
COMENDADOR Não quero pedir certas coisas... e depois, ainda não tomei pé no meu novo partido. Adeus, e desculpe. Obtenha-me o título e apareça. (Sai, cumprimentando os dois meirinhos com muita cerimônia).
CENA V Os mesmos, menos o Comendador, depois Alfaiate, o Senhorio, o Vendilhão e outros credores.
FAUSTINO Vocês iam deitando tudo a perder! Filam-me uma corrente de ouro de lei, e vêm sem ser chamados!
RIBEIRINHO Perdão, mas um gato, que estava sobre a cômoda, assustado com a nossa presença, saltou em cima do lavatório e quebrou a bacia...
FAUSTINO Mas este prejuízo...
ANACLETO ...para os credores.
RIBEIRINHO Nós, que não esperávamos pelo gato...
ANACLETO Vossa senhoria bem vê que...
(Entram os credores)
CORO DE CREDORES É já pagar Sem mais tardar! Venha dinheiro, Ó caloteiro! O cobre já Venha de lá!
RIBEIRINHO e ANACLETO Ó meu Deus! para que tanto barulho! Para que serve gritar?
OS CREDORES Vai haver um grande sarrabulho! Ou há de já pagar, Ou damos-lhe a matar!
FAUSTINO Quero pagar; porém, Não tenho aqui vintém!
O ALFAIATE Tu para cá vens de carrinho!
SENHORIO Eu quero já o meu rico dinheirinho!
CREDORES Zombar assim de nós não tem lugar! Ou paga o que nos deve, ou damos-lhe a matar! É já pegar etc.
SENHORIO Então mudava-se sem pagar?!
VENDILHÃO Ao menos previne-se a gente!
FAUSTINO Mudar-me, eu?!
ALFAIATE Decerto; estão as carroças à porta.
FAUSTINO As carroças?! Nesse caso, mudam-me, não sou eu que me mudo!
RIBEIRINHO Somos nós, em virtude deste mandato...
TODOS Uma penhora?! E nós?!
RIBEIRINHO Vossas senhorias usem dos seus direitos, que nós usamos dos nossos. (A Anacleto). Vamos! Mãos à obra!...
ANACLETO Vou chamar os carregadores. (Sai)
FAUSTINO Como? Sem mais formalidades? Sem ao menos relacionarem os móveis!
VENDILHÃO Sem nada não fico eu! (Carrega um móvel e sai).
RIBEIRINHO Mas, senhor!
ALFAIATE Nem eu! (Idem)
SENHORIO Quanto mais eu! (Idem).
OS OUTROS CREDORES E eu! E eu!...
(Saem todos carregando os móveis da sala e do quarto, onde entram. Anacleto tem voltado com dois carregadores, que também levam o que podem levar. Quadro muito animado. A sala fica completamente despida).
CENA VI Faustino, depois o Trabalho
FAUSTINO (só) Consummatum est! Eis o último canto de um miserável poema que principiou no jardim do Santana, continuou num gabinete particular da Maison Modern, e acabará... sabe Deus aonde! Em seis meses meti o pau na minha legítima materna e no pouco que deixou meu pai. Aqui estou eu órfão, sem proteção, sem emprego, sem ofício, sem amigos, sem eira nem beira nem ramo de figueira. O Comendador falhou: a quem devo recorrer?
O TRABALHO (aparecendo) A mim!
FAUSTINO Oh! que figura é esta? Quem és tu, e de onde vens?
TRABALHO Sou aquele que nunca procuraste em tua vida.
FAUSTINO Isso sei eu... e a prova é que não te conheço.
TRABALHO Oxalá me conhecesses! Não chegarias onde chegaste!
FAUSTINO (vivamente) Trazes-me dinheiro? – Ah! já sei, és um usurário. Não importa; venha o cobre, seja qual for o juro!...
TRABALHO Dizes bem, trago-te dinheiro, ou antes, o meio de adquiri-lo com meu auxílio.
FAUSTINO Desembucha de uma vez! Queres ser meu fiador?
TRABALHO Nem sequer me conheceste ainda. Eu sou...
FAUSTINO Um patife, que há cinco minutos zomba de mim e dos apuros em que me vejo! Em suma, quem és?
TRABALHO O Trabalho! (Projeta-se-lhe no rosto um raio de luz).
FAUSTINO O Trabalho! Ah! Ah! Ah! É boa! Vai bater a outra porta, pai! Não é do trabalho que eu preciso: é de dinheiro. Dinheiro! – ouviste?
TRABALHO Comigo ganharás.
FAUSTINO Nada! Dispenso! Vai-te! Levaria muito tempo, e eu preciso de dinheiro quanto antes. Muito dinheiro, a juro barato e prazo longo, como a lavoura.
TRABALHO Com quê, desgraçado...
FAUSTINO Ora, não me aborreças! Olha que para a mostarda subir-me ao nariz não preciso muito!
TRABALHO Ameaças-me?
FAUSTINO Ou dinheiro, ou rua!
TRABALHO Vem comigo, e daqui a oito ou dez anos...
FAUSTINO Ó mariola! Divertes-te à minha custa! Já! Rua! (Dá-lhe um pontapé)
TRABALHO (levando a mão à parte ofendida) Está bem, saio! Mas encontrar-nos-emos ainda! Dia virá em que te arrependas amargamente do pontapé que deste no Trabalho! (Vai a sair).
FAUSTINO (algum tanto arrependido) Olha, vem cá... escuta...
(Entra a Ociosidade).
CENA VII Os mesmos, a Ociosidade
OCIOSIDADE Deixa-o ir... não te arrependerás... Eu te salvarei!
FAUSTINO Cáspite. Falem-me disto! Contigo irei até o inferno... logo que saiba quem és e o que desejas.
OCIOSIDADE Eu sou a Ociosidade!
(A cena fica repentinamente escura)
TRABALHO A mãe de todos os vícios!
OCIOSIDADE E de todos os prazeres!
TRABALHO Ao passo que eu sou o pai de todas as virtudes!
OCIOSIDADE E de todas as sensaborias.
FAUSTINO Safa! que tendes ambos a bossa paterna muito desenvolvida!
OCIOSIDADE Ouve...
COPLAS
I É por intriga, Por balda antiga, Que me fustiga Este grande ratão! Não me perdoa, Mas me magoa, Me amaldiçoa, Não sei por que razão. Quem passa a vida De perna alçada, Sem fazer nada, Há de ser bem feliz, Pois é negócio, Neste país, Viver entregue ao santo ócio! (Declamando) Assim pois... Faustino, vem comigo já! O que eu te dou ninguém te dá, Nem te dará!
TRABALHO Agora eu, minha rica senhora...
II Nesta batalha Quem não trabalha Nem a mortalha Ao menos pode obter; É condenado, É reprovado, Vituperado: Só lhe resta morrer! Foge ao perigo! Se vens comigo, Se és meu amigo, Inda será feliz! Não é negócio, Neste país, Viver entregue ao santo ócio! (Declamando) Por conseguinte... Faustino, vem comigo já! O que eu te dou, ninguém te dá, Nem te dará!
AMBOS Faustino, vem comigo já! etc.
FAUSTINO (à Ociosidade) Decido-me por ti, que és bela!
OCIOSIDADE Vamos...
FAUSTINO Aonde?
OCIOSIDADE Ao Reino do Jogo! (Sai, levando Faustino)
TRABALHO Insensato! tudo farei para salvar-te! (Sai. Mutação)
QUADRO II O Reino do Jogo, cintilante de ouro e luz.
CENA I Um Cortesão, cortesãos, depois o Jogo.
CORO DE CORTESÃOS Espera na sala de espera do emissário Que vem tratar de um caso extraordinário! Vamos saber incontinenti Qual a razão que o trouxe cá; Assunto sério é certamente Que o nosso rei decidirá, – É talvez uma bagatela... Não vale a pena falar nela.
COPLAS
JOGO (entrando) II Sou nada menos do que um rei, Sou nada menos que um monarca, E não receio a escura Parca, Pois nunca mais a bota baterei. Sei dirigir a traquitana, Governar sei o meu país; Não sou pr’aí nenhum banana; Se o sou, porém, ninguém mo diz.
CORO Não é pr’aí nenhum banana; Se o é, porém, ninguém lho diz!
II JOGO Eu baldo o naipe nunca estou, Se as coisas vão embaralhadas; Pois copas, ouros, paus, espadas, – Nenhum jamais me abandonou. Às ordens tenho várias tropas, Meus exércitos não são maus! E sou também um rei de paus!
CORO Ele é aqui um rei de copas, E ele é também um rei de paus!
JOGO (que, no fim das coplas, tem subido a um trono) Estão todos?
TODOS Todos.
O CORTESÃO Não falta nenhum.
JOGO (ao Cortesão) Conselheiro, manda entrar o emissário.
(O Cortesão faz um gesto para. Entra o Xadrez, que se prostra diante o trono)
CENA II Os mesmos, o Xadrez.
JOGO Ergue-te! (Reconhecendo-o) – Olá! Xadrez! o jogo aristocrata por excelência! (Estendendo-lhe a mão) Tens licença para me apertares a mão. Aperta mais... mais... Basta! Que pretendes?
O XADREZ Justiça!
JOGO Vai por aí; não pedes pouco. Justiça contra quem?
XADREZ Contra a Jogatina!
JOGO Contra minha filha!
OS CORTESÃOS Oh!...
JOGO Sim contra tua filha! Depois que a deste ao mundo, o teu reino foi invadido por uma multidão de jogos de ínfima espécie, se é que tal nome mereça tal gentinha. Vivíamos como os anjos, numa doce alegria imperturbável. As classes sociais estavam perfeitamente definidas. Eu, o Voltarete, o Whist, o Ecarté, as Damas, o Besigue, o Dominó, o Bilhar e alguns mais formávamos a classe aristocrata. O Gamão, a Bisca, o Solo, os Três setes e outros formavam a burguesia honesta. O Burro e seus congêneres, a plebe. Os jogos de parada, à frente dos quais se chamava o Lansquenet e o Bacará, eram qualquer coisa como mediadores plásticos entre a aristocracia e a burguesia.
JOGO Uma espécie de demi-monde.
XADREZ Talvez. – Mas tua filha, fruto de um amor espúrio e condenado, nasceu, cresceu, e, hoje, durante noites inteiras, deixa o teu palácio, e anda pelo reino a organizar uma nova camada social: – a canalha!
TODOS Oh!...
XADREZ Até hoje o Reino tem suportado calado...
JOGO (erguendo-se com ímpeto e interrompendo-o) Hein? Calado, dizes tu?...
XADREZ (atônito) Como?
JOGO Nada... lembrei-me de... (Desce do trono e traz o Xadrez ao proscênio, misteriosamente)
CANTO
JOGO Psiu!
XADREZ Psiu!
AMBOS Calado...
CORO Psiu... Calado...
JOGO Calado, sim, calado! Não me parece averiguado Que um coitado Condenado, Sem ser ouvido nem cheirado, Seja ou não culpado
TODOS Calado... Psiu!
JOGO (subindo de novo ao trono e sentando-se) Continua.
XADREZ Até hoje o reino tem suportado tudo sem tugir nem mugir. Mas a paciência é como as nações: tem limites.
JOGO Comparação feliz!
XADREZ Os jogos aristocratas reuniam-se e deliberavam, depois de grande discussão, enviar-me à tua augusta presença para pedir providências imediatas e enérgicas. Deves compreender, senhor, que eu, o Xadrez, um jogo fidalgo, cuja origem se perde na noite dos tempos; eu, que até já figuro na gazetilha do maior jornal da América do Sul...
JOGO Bem sei... Bem sei que o xadrez há muito tempo fornece matéria para a gazetilha.
XADREZ O Whist, um jogo de príncipes, o Voltarete, a glória do baralho de cartas, e outros não podemos viver de súcia com o Pacau, o Trinta-eum e a Vermelhinha. É isso pretender casar o salão com a tarimba, o palácio com a espelunca!
JOGO Tens toda razão. Justiça vai ser feita. (Ao Cortesão) A Princesa Jogatina que venha cá. (O Cortesão sai. A Xadrez) Vais ver como esta casa cheira a jogo! A energia do teu rei ficará eternamente gravada na memória do povo.
(Xadrez inclina-se. Entra Jogatina, acompanhada pelo Cortesão, que havia saído)
CENA III Os mesmos, Jogatina, depois o Víspora, e sucessivamente a Pule, a Vermelhinha, a Loteria, a Loteria, o Pacau, o Câmbio, que apenas atravessa a cena. Jogatina entra com modos desenvoltos, que escandalizam a corte.
COPLA
JOGATINA A jogatina eu sou! Por’i além contente eu vou! A vida eu levo assim, Que o mundo alegre é para mim. Que importa que a Moral, Não sei por quê, me queira mal? Hei de cantar e rir, Não hei de nunca me afligir! Leviana sou, talvez, porém, Filósofa também! Quem se prostrar No meu altar Será rico e feliz. Fortuna dou Benigna sou Até c'os imbecis! Eu sou fazenda papafina! Sem me adorar ninguém me vê: Pois a Princesa Jogatina Não há de negar que tem seu quê.
CORO
É descarada a tal menina! Lições não há quem mais lhe dê! O reino as casa ilumina Se inda daqui bem longe a vê!
JOGO Bem! Basta! Não te mandei chamar para ouvir cantarolas!
JOGATINA Estou às tuas ordens, papai.
JOGO Aproxima-te. Conheces este cavalheiro?
JOGATINA (desdenhosa) De vista.
JOGO Pois devias conhecê-lo pessoalmente, porque é o mais conspícuo dos meus vassalos. (Xadrez inclina-se) Não te inclines: é a verdade.
JOGATINA Mas o que tenho eu de comum com este sujeito?
XADREZ (vivamente) Nada, absolutamente nada!
JOGO Este (frisando) sujeito, que representa a classe mais sim-senhor do reino, ou para exprimir-se em bom português, o high-life, queixa-se, e com razão se queixa, de que tu, minha sirigaita, introduziste na sociedade uma camada perigosa e abjeta: a canalha!
JOGATINA Ora! E foi para isto que me arrancaram da companhia dos meus amigos!
O CORTESÃO (inclinando-se) Real senhor, perdoa se me meto o nariz onde não sou chamado.
JOGO Mete, mete, Conselheiro! O nariz de um Cortesão goza de todas as imunidades!
CORTESÃO Obrigado, Majestade. Parece-me, também a mim, que o Xadrez tem muita razão. E se Vossa Majestade quiser capacitar-se da verdade, ordene à Princesa Jogatina que faça entrar nesta sala os tais amigos, em companhia dos quais se achava ainda agora nos meus aposentos. Eles ainda lá devem estar.
JOGATINA Pois não! com todo prazer! (Indo à porta) Meus amigos, fazem favor? Entre um por um, para ser mais fácil a apresentação.
XADREZ (à parte) Que cinismo!
(Música. À medida que Jogatina os nomeia, os Jogos vão aparecendo. Jogatina toma-os pela mão e apresenta-os, declamando os seguintes versos)
JOGATINA Este é o famoso Víspora! Já foi bem recebido Dentro do lar doméstico Com toda a distinção... Mas, afinal, o pícaro Deu em andar metido Por espeluncas sórdidas Que reprovadas são.
A Pule! que magana! Com o pé de melhorar A raça cavalar,
Esbodegando vai a raça humana.
Esta pequena simpática É a melhor amiga minha; Dá que fazer à polícia, E chama-se a Vermelhinha.
A Loteria, Velho jogo vagabundo, Que foi em Roma o regalo De Nero e de Heleogabalo E que hoje em dia Ditosa vive E em toda parte do mundo, A nova Austrália inclusive!
Eis a Rifa, joguinho matreiro, Oriundo dos tempos antigos, Conhecido no Rio de Janeiro Pelo nome de Ação entre Amigos.
JOGO Que gente!
XADREZ Quando eu digo...
JOGATINA Um jogo aparece agora Que não tem nada de mau; Nos quartéis floresce e mora, E tem por nome o Pacau.
JOGO Este é que se pode chamar um jogo de parada.
(O Pacau é representado por um soldado)
JOGATINA Agora vou mostra-vos um sujeito, Cuja pessoa é muito respeitada, Sendo, aliás, tão diga de respeito Como dos jogos a pior cambada.
(Aparece o Câmbio, que atravessa a cena encolhendo-se, isto é, tornando-se mais baixo sempre, à medida que Jogatina profere a palavra. Desce)
Ei-lo que passa. É o Câmbio! Esse bandalho Que desce, desce, desce, e desce, e mais, E faz com que alguns ganhem sem trabalho E muitos percam grandes capitais.
JOGO Então aquele vai-se embora?
CORTESÃO Ah! o Câmbio não para... Tem sempre muito que fazer.
(Cessa a música)
XADREZ Está feita a apresentação? Faltam ainda muitos!
JOGATINA Muitíssimos, porém só estes se achavam ainda agora em minha companhia.
(Os recém-chegados estão alinhados a um lado da cena)
JOGO Atenção!
TODOS Atenção!
JOGO Princesa, há muito tempo que teu modo de vida me pôs a pedra no real sapato e a pulga a atrás da orelha augusta. Há muito tempo que eu pretendia exercer sobre a tua execranda pessoa minha dupla autoridade de soberano e pai. De hoje em diante não escandalizarás o meu reino! Tens um quarto de hora para escolheres um exílio e te prepares para a viagem!
JOGATINA (protestando) Mas...
JOGO (erguendo-se com violência) Nem mais uma palavra! (Descendo e examinando os jogos) Quanto a estes pulhas que introduziste no reino, saberei, pois que não são príncipes, livrar-me deles ainda com mais facilidade do que me livro de ti, que afinal de conta, és Princesa!
XADREZ (declamando) Nem era de esperar que um rei tão sábio Procedesse jamais de outra maneira!
JOGO Agradeço a citação literária, e espero que estejas plenamente satisfeito.
XADREZ Satisfeitíssimo, senhor.
JOGO Então não me amoles... Vai-te embora, e dá lembranças ao Voltarete.
(O Xadrez inclina-se e sai. O jogo sai pelo outro lado, e os cortesãos acompanham-no com o motivo do último coro da orquestra)
JOGATINA (aos Jogos) Deixem-me! (Vão todos a sair) Tu, Loteria, fica.
(Saem todos os jogos, menos a Loteria)
CENA IV Jogatina, a Loteria.
JOGATINA Que dizes a isto? Que escolha um exílio; mas qual! Onde a Jogatina encontrará um povo tão mal educado, que a tolere? Estou deveras embaraçada... Malditos aristocratas! Raças infame de hipócritas! Mas tu não dizes nada?... não me aconselhas?... Mandei que ficasse, por seres a mais inteligente, e não arranco dos teus lábios dos teus lábios lábios uma palavra sequer!
LOTERIA Pela máquina Fichet! que queres tu que te eu te diga? Não és tu a minha diretora! – Ah! mas vejo que se dirige para este lado alguém pode aconselhar-te.
JOGATINA Quem?
LOTERIA Tua mãe.
CENA V As mesmas, a Ociosidade, depois Faustino, depois as Loterias, os Décimos e os Vigésimos, depois os Cortesãos.
OCIOSIDADE Dás licença?
JOGATINA (indo abraçá-la e trazendo–a para a cena) Ó mamãe! pois precisas pedir licença?
OCIOSIDADE É que não venho só.
JOGATINA Os teus amigos meus amigos são.
OCIOSIDADE Sim; mas é que teu pai não quer saber de mim... e então... tenho escrúpulos...
JOGATINA Escrúpulos? Será a primeira vez. Papai está realmente ficando um mau jogo. Acaba neste momento de me expulsar do reino... Intrigas dos aristocratas...
OCIOSIDADE Não sei ainda; o tempo passa, e dentro de um quarto de hora devo escolher o lugar de meu exílio.
OCIOSIDADE Não tens que hesitar: Rio de Janeiro!
JOGATINA Achas?
OCIOSIDADE Fixei ali o meu domicílio. Dou-me perfeitamente com o clima... Tenho lá muitas relações e sou muito considerada. A ti não te faltarão elementos para lá exerceres poder absoluto. Não podes escolher melhor.
LOTERIA Pelo menos, sei que os fluminenses dão o cavaquinho por loterias.
JOGATINA Deveras?
LOTERIA Adoram-nas. Não há terras em que eu tenha tantos prosélitos! Todos os dias anda a roda, quando não anda duas vezes no mesmo dia! Eu no Rio de Janeiro sou moda, sou febre, sou delírio! Tudo lá é pretexto para loterias! Emancipação? Loterias! Obras numa igreja? Loterias! Asilos de caridade! Loterias! Montepio? Loterias! Tudo loteria! Todas as províncias jogam! Do Sul ao Norte loterias e mais loterias! Pará, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Paraná, Santa Catarina, rio Grande do Sul, cada qual tem sua loteria; mas quem paga o pato é a corte, que dá saída a todas elas!
JOGATINA Decididamente é um povo que me convém! As loterias, assim repetidas, são infalível sintoma de dissolução social. Em parte alguma, pode a Jogatina estar melhor que numa sociedade que se esfacela. Vou para o Rio de Janeiro!
OCIOSIDADE E lá desempenharás, nas horas vagas, já se sabe, uma comissão que muito me interessa.
JOGATINA E é?...
(Ociosidade faz um gesto para fora: entra Faustino que ela toma pela mão)
OCIOSIDADE Proteger este mancebo!
FAUSTINO (deslumbrado) Como isto aqui é lindo!
JOGATINA A tua mão!
FAUSTINO Ei-la! (À parte) Falem-me disto!
JOGATINA Somos aliados?
FAUSTINO Dar-me-ás fortuna?
JOGATINA Veremos.
FAUSTINO Como obtê-la?
JOGATINA Por muitos meios. (Mostrando a Loteria) A Loteria, por exemplo.
FAUSTINO Um... as loterias da minha terra nunca me atentaram.
LOTERIA Que dizes? Oh! naturalmente não as conheces! Não posso consentir que julgues mal de minhas filhas! – Apareçam, meninas! (Música. Aparecem as Loterias Brasileiras, acompanhadas por Décimos e Vigésimos) Gaba-se aquele mortal de que vocês nunca seduziram.
LOTERIAS Oh!
LOTERIA Quebrem-lhe a castanha na boca!
BAILADO E COROS
(As Loterias cercam Faustino, tomando as mais graciosas posições)
LOTERIAS Belo mancebo pálido, Tu vais reconhecer
Neste momento mágico Nosso imortal poder!
FAUSTINO Lindas são Sem questão! Nunca vi Tanta huri!
LOTERIAS Belo mancebo pálido, etc.
(Entram os cortesãos com um movimento de dança)
CORO DE CORTESÃOS Oh! que dia de júbilo! El-rei Nosso Senhor A Jogatina exótica Bem longe manda pôr!
(Continua um trêmulo na orquestra até o galope final)
UM CORTESÃO Princesa Jogatina, o rei, teu pai, manda-me à tua presença para acompanhar-te até fora do reino com esta luzida escolta de cavalheiros. Manda, outrossim, que em sinal de regozijo pela tua ausência, gire a roda da fortuna, que só gira nas grandes ocasiões! (Sobe o pano do fundo e vê-se a roda da Fortuna girando vertiginosamente) E agora, a galope!
TODOS A galope!
(Grande galope final. Cai o pano)
QUADRO III A Rua do Passeio, no espaço compreendido pelo muro do convento da Ajuda.
CENA I Comendador, Carolina, Alexandre, Banhistas.
(É alvorecer. Durante todo o Quadro passam indivíduos, que vão ou voltam do banho. Algumas senhoras de cabelos soltos e toalhas nos ombros, etc.)
COMENDADOR (entrando apressado e atravessando a cena) Vamos, são horas, o sol está quase sai-não-sai, e banho de mar com sol não é comigo.
CAROLINA (entrando, seguida por Alexandre) Deixe-se disso, primo Xandico; nós não temos nada que conversar.
ALEXANDRE Má! sempre a mesma!
CAROLINA Você é que é sempre o mesmo; mas vamos depressa, que papai está longe.
ALEXANDRE Vamos, dê cá o braço. CAROLINA
Não dou! Que homem, gentes! (Saindo) Você há de acabar por fazer que eu não saia em sua companhia. Ora dá-se!(Sai, acompanhada por Alexandre)
CENA II Faustino, Jogatina, vestida de rapaz; depois o Inspetor e dois urbanos.
JOGATINA (entrando a correr) Vem!
FAUSTINO (idem) Já não posso correr!
JOGATINA Aqui ficamos ao abrigo de todas as perseguições.
FAUSTINO Achas?
JOGATINA Com certeza; a freguesia do Sacramento está longe.
FAUSTINO Bem se vê que não conheces o Borges!
JOGATINA Pois julgas tu que haja alguém que eu não conheça? Ora vai passear! Tu é que não me conheces!
COPLAS
I É bem tolo o que imagina Que a princesa Jogatina Para os homens conhecer Necessita os homens ver. Se assim fosse, era ocioso Meu poder misterioso, Pois bastava-me, afinal, Ser uma simples mortal Meu querido Protegido! Vê tu lá Pra ver quanto vale a que aqui está!
II Eu conheço fidalguia, Clero, povo e burguesia, E, na classe militar, Sou bastante popular. Entretanto, meu pexote, É preciso que se note; Muitos há com que me dou, Mas não sabem quem eu sou. Meu querido, etc.
O INSPETOR (entrando com dois urbanos) Olá! cá estão os melros! Bem disse eu que não me escapavam!
FAUSTINO Bonito! aí está o que querias!
INSPETOR (aos urbanos) Prendam aqueles sujeitos!
FAUSTINO Prender-nos a nós? Menos essa! Qual foi o nosso crime?
INSPETOR Não tenho que dar satisfas: o poder é o poder, disse alguém que podia. A polícia está disposta a não poupar as casa de jogo. Vamos!
FAUSTINO E se pagarmos a multa?
INSPETOR O caso muda de figura. São quatro mil réis por cabeça.
FAUSTINO Não faz isso por menos?
INSPETOR Não, senhor; preço fixo e dinheiro à vista.
FAUSTINO Hum... isso é que é o diabo!
JOGATINA Tratando-se de duas pessoas, bem podia fazer um abatimentozinho...
INSPETOR Não posso, creia que não posso... Já dou pelo custo... (Emendando) Quero dizer: é o preço da lei.
FAUSTINO O homem de vez em quando esquece-se de que é autoridade, e só se lembra de quando é negociante.
JOGATINA Então? Nem sendo por atacado?
INSPETOR Nada! Quatro mil réis!
FAUSTINO Vá lá, não há remédio. (Tirando do bolso do colete uns níqueis e algumas notas de quinhentos réis) O pior é que só tenho três mil e setecentos... Tome; no princípio do mês darei o resto.
INSPETOR Ai, que o amigo quer divertir-se! Olhem que quando estou com o metro... quero dizer: com a vara... não brinco! (Aos urbanos) Vamos!
JOGATINA Esta bem, não se zangue. Aqui estão os quatro mil e trezentos que faltam
INSPETOR (recebendo o dinheiro) Ah! isto agora sim! Querem recibo?
JOGATINA Não é preciso.
INSPETOR Nem eu dava.
FAUSTINO Risque nosso nome do borrador, e passe bem.
INSPETOR (tirando o chapéu e cumprimentando) Quer como autoridade, quer como negociante, sempre às ordens da freguesia. (Espirra)
JOGATINA Dominus...
INSPETOR Não faça caso, constipei-me... Corre aqui um ar...
FAUSTINO Não deve estranhar, pois é um ar marinho.
INSPETOR (aos urbanos) Vamos! (Saem o Inspetor andando muito ligeiro, e muito devagar os urbanos, que durante a cena levaram a dormir de pé, só despertando às duas vezes em que o inspetor disse) Vamos!
FAUSTINO Maldito víspora! Estamos sem vintém
JOGATINA Não tens meio de arranjar dinheiro?
FAUSTINO Tenho um só, mas muito arriscado. (Jogatina faz um gesto de furtar) Pouco mais ou menos...
JOGATINA De que se trata?
FAUSTINO De arranjar um título de Barão; e o único meio que tenho de arranjálo, é forjá-lo!
JOGATINA Falsificá-lo!
FAUSTINO Inventá-lo!
JOGATINA Bravo! vais arranjá-lo, forjá-lo, falsificá-lo, inventá-lo sem perda de um momento!
FAUSTINO Eu?
JOGATINA Tu, sim... deixa o resto por minha conta. Ao meio-dia vai Ter comigo no lugar costumado; mas, se não levares consigo o título arranjado, forjado, falsificado e inventado, melhor será que não apareças! Adeus! (Sai)
CENA III Faustino, depois o Trabalho, que ouve parte do diálogo quando passa pelo fundo, vestido de operário, e levando sua ferramenta.
FAUSTINO Diabos levem a polícia! Justamente quando a sorte ia mudar, é que a maldita cercou a casa. Oh! mas deixe estar, que a caipora não há de durar eternamente!
FAUSTINO Há de durar enquanto me evitares!
FAUSTINO Olá! o meu amigo dos manjericões! Hoje a encadernação é mais barata, hein?
TRABALHO Hoje eu sou um operário, e vou para a oficina excitar o brio dos que se acharem ao meu lado! Enquanto tu passavas a noite numa espelunca, para ganhares, ao cabo de muitas horas, metade da soma que o trabalho honesto poderia render em menos tempo, o operário dormia, refazendo as forças para recomeçar no dia seguinte a tarefa da véspera (Dando-lhe uma peça da ferramenta) Toma! Vem comigo!
FAUSTINO Tira isso para lá! Que mania!... Não me aborreças! Podes ser muito boa pessoa, mas és bisbilhoteiro e maçante! Não me dirás o que poderei ganhar com este ferro?
TRABALHO Pelo menos honra!
FAUSTINO ...e calos. E, calos, por calos, antes pregá-los que apanhá-los!
TRABALHO Essa máxima é digna de ti. Os calos são os anéis do operário.
FAUSTINO Anéis que não vão para o prego, viva! Sabes que mais? Vou para a cama!
TRABALHO E eu para o Arsenal!
(Saem cada um por seu lado)
CENA IV Banhistas, que entram em confusão, entre eles, o Comendador, com roupas de banho, Alexandre e Carolina, esta de cabelos soltos e toalha nos ombros. Grande pânico em todos os personagens.
CORO Que tintureira! Bicho maior eu nunca vi! Desta maneira Eis-me a tremer de medo aqui!
COMENDADOR Que tintureira!
CORO Que tintureira!
ALEXANDRE Que tintureira!
CORO Que tintureira! Bicho maior eu nunca vi, etc.
PRIMEIRO BANHISTA Eu vi a tintureira!
SEGUNDO BANHISTA E eu! Que enorme!
TERCEIRO BANHISTA Era do tamanho da torre da Candelária!
PRIMEIRO BANHISTA Exageras, Gaudêncio... seria do tamanho da torre do Carmo, quando muito.
TERCEIRO BANHISTA Nada! ao Boqueirão não volto eu!
CAROLINA Eu bem senti alguma coisa me puxar o pé!
ALEXANDRE (à parte) Não era a tintureira!
COMENDADOR Pois sim, mas eu não posso ir assim para casa! Que diriam, se vissem um liberal da velha guarda por essas ruas em trajes de banho? – Ó Alexandre, fica com a tua prima... esperem-me, que eu vou vestir-me.
CAROLINA Não se demore muito, papai.
(Sai o Comendador. Saem os banhistas a pouco e pouco, de modo que, na ocasião só canto, só estejam em cena Alexandre e Carolina)
CENA V Alexandre, Carolina, depois o Comendador.
ALEXANDRE Vamos nós dar um giro pelo Passeio Público enquanto o velho não vem?
CAROLINA Eu? Você está doido, primo Xandico! Você pensa que ainda está na Europa! Eu sozinha com você no Passeio Público! Deus me livre!
ALEXANDRE Bem se vê está apaixonada pelo tal Faustino. É o que meu asa-negra aquele bilontra! – Olhe, prima Carolina, eu não queria lhe dizer nada, porque sei que você não há de gostar; mas, como quem o seu inimigo poupa às mãos e morre, lá vai...
CAROLINA Lá vai o quê?
ALEXANDRE Ouça. O tal Faustino foi esta noite apanhado pela polícia em uma casa de tavolagem
CAROLINA Não pode ser. Você viu?
ALEXANDRE Não! disseram-me...
CAROLINA Quem?
ALEXANDRE O Gaudêncio, um amigo que encontrei no Boqueirão.
CAROLINA Ora! são intrigas...
ALEXANDRE Ao passo que eu, prima Carola, não tenho vícios e estou bem empregado. (Comovido) Quando você era pequenina, gostava muito de mim e me chamava seu noivo. Maldito momento em que meu pai mandou educar-me na Europa, afastando-me de você! Oh! mas ainda espero em Deus alcançar no seu coração o lugar devidamente ocupado por aquele bilontra!
CAROLINA Que vem a ser bilontra?
ALEXANDRE Ah! não sabe? Pois ouça...
RONDÓ Se quer saber o que é bilontra, É bom que saiba antes do mais, Que esta palavra não se encontra No dicionário do Morais. A bilontrage é sacerdócio Que cada qual pode exercer; Entre o pelintra e o capadócio O meio termo vem a ser. Pode o bilontra ser um velho, Pode também ser um fedelho; Mas o modelo mais comum É o garnizé que se emancipa; E que a legítima dissipa Ao completar os vinte e um Tipo de calças apertadas, Chapéu de fitas espantadas, Em cada pé bico chinês; Pode apostar, ó prima, contra O que quiser que ele é bilontra Se bem que finja ser inglês...
COMENDADOR (voltando) Pronto! ALEXANDRE E a tintureira?
COMENDADOR Desapareceu, dizem, sei lá! Pelo sim, pelo não, o filho de meu pai não volta ao banho! E não se trata só da tintureira: patifes há que se apresentam na paria indecentemente trajados, e escandalizam as famílias! Eu sou liberal de princípios; mas façam-me subdelegado desta freguesia, e verão! – Vamos para casa.
CENA VI Os mesmos, o Empregado do Consulado.
EMPREGADO (entrando esbaforido e dirigindo-se ao Comendador) Perdão, meu caro senhor: não viu por aqui o Senhor Borges? Disseram-me que tinha vindo para este lado. Preciso da polícia quanto antes.
COMENDADOR Aconteceu alguma desgraça?
EMPREGADO E que desgraça! Os ladrões...
COMENDADOR (assustado) Ladrões?! Ai!...
EMPREGADO ...penetraram esta noite... arrombaram...
COMENDADOR e ALEXANDRE Aonde?... o quê?... Acabe!
EMPREGADO O Consulado!
TODOS Um roubo no Consulado!
EMPREGADO E que roubo!... e que roubo!... Trezentos contos!...
COMENDADOR Não seria gente de casa?
EMPREGADO De casa? Qual o quê! Em casa só ficam os ratos.
COMENDADOR Justamente por isso.
COPLA
Onde houver vil metal luzente Há sempre ratos de dois pés; Dona Polícia ultimamente Caçou debalde uns oito ou dez... Agora todas as semanas Desfalques há com profusão; Mas fogem logo as ratazanas, Ninguém lhes pode pôr a mão! Sem tugir, Nem mugir Lá vão, sem passaporte! Habitar, Povoar A América do Norte!
EMPREGADO Ora, onde encontrarei o homem, para abrir o inquérito? Vou até o armarinho... Passem bem, meus senhores... minha senhora (Saindo) Ora onde se meteria o Borges? (Sai)
COMENDADOR Consolado ficou o ladrão.
(Ouvem-se marteladas e pancadas de alavanca, dadas por trás do muro do convento)
ALEXANDRE Que bulha é esta?
COMENDADOR Sei lá! Serão as freiras?
CAROLINA Elas, coitadinhas!
COMENDADOR Ah! não! já sei: são os empresários da nova rua, que estão deitando o muro do convento abaixo.
CAROLINA Credo! Que falta de religião!
COMENDADOR Qual religião? qual carapuça! Eu sou liberal da velha guarda!
ALEXANDRE Meu tio, olhe que há liberais da velha guarda e liberais da GuardaVelha. Foram estes que autorizaram o escândalo.
COMENDADOR Ora adeus! para que as freiras querem chácara?
ALEXANDRE Para que eu quero meu relógio?
CAROLINA Tem razão, primo Xandico. Vamos embora, papai... não quero presenciar este atentado!
COMENDADOR Vamos lá (Saindo a falar sempre) É que quando digo que sou liberal da velha guarda...
(Não se ouve o resto. A cena fica vazia)
CORO DE DEMOLIDORES (fora) Caia o muro do convento Que não serve para nada, E apareça num momento Rua nova e bem calçada.
Caia o muro! caia! Caia! Derribá-lo é privilégio! Sobre todos nós recaia Tão nefando sacrilégio!
CORO DE FREIRAS (Longínquo) Nossa Senhora da Ajuda, Vê tu que profanação! Não temos quem nos acuda, Nem quem nos estenda a mão!
(Juntam-se os dois coros em concertante. O muro tem caído aos poucos. No fim do coro desaba completamente, deixando ver toda a rua do Senador Dantas)
QUADRO IV A Rua do Senador Dantas.
CENA I O Doutor, Trabalhadores, depois a Musa do Povo, depois a Preta dos Pastéis.
O DOUTOR Quem quer comprar terrenos excomungados? Preços reduzidos! Ver para crer!
(Os trabalhadores vão saindo a pouco e pouco)
MUSA DO POVO (entrando da direita) Este enorme, sacrílego atentado, Nos versos meus será vituperado!
DOUTOR Quem é a senhora, e com que direito vem aqui protestar em verso?
MUSA DO POVO Musa do Povo eu sou: passar não deixo Tanta vergonha sem abrir o queixo!
DOUTOR Pois abra!
MUSA DO POVO Ardendo em santa e impiedosa ira, Eu tanjo as cordas de inspirada lira!
DOUTOR Pois tanja!
MUSA DO POVO E contra esta fatal profanação Protesto em nome da religião!
DOUTOR Pois proteste! (Saindo a apregoar) quem quer comprar terrenos excomungados? Grande redução de preços! A vista faz fé! (Sai)
MUSA DO POVO Que escândalo, meu Deus! como se abusa! Tenho às vezes vergonha de ser Musa!
(Entra a Preta dos pastéis e entrega-lhe uma salva, coberta com uma toalha de crivos, e um cartão. Depois retira-se. Lendo o cartão)
“As freiras, modestamente, Graças a sua defesa, Enviam-lhe esse presente Para a sua sobremesa”.
(Descobre a toalha. Aparece uma compoteira cheia de doce)
Que vejo, Apolo?! Doce de laranja! E agora digam lá que não se arranja Quem como eu cá da lira as cordas tanja! (Mete o dedo no doce, e prova-o) Que gostoso! que bom! Como isto inspira! Vamos! vou dar-te o que fazer, ó lira! (Sai)
CENA II Morcegos, depois Soldados da Polícia.
CORO E MARCHA DOS MORCEGOS Eis quase toda a morcegada, Que enfim foi posta em debandada! Adeus, bom tempo do chanfalho, Do belo apito a tiracol! Adeus, ó tempo do trabalho À luz do gás e à luz do sol! Tudo para nós já se acabou! A nossa estrela se apagou! Sem mais contemplação Veio a dissolução! Agora somente Na cama é chorar, Pois é lugar quente, Não há que negar!
(Continua a música na orquestra até o fim do quadro)
UM MORCEGO Bem, meus amigos! Agora que estamos dissolvidos, é preciso tratar da vida, que a morte é certa! Portanto, voltemos à nossa antiga profissão!
TODOS Valeu! Apoiado!
(Forte na orquestra. Todos os Morcegos se transformam em capoeiras, que se dividem em dois campos)
VOZES DA ESQUERDA Viva os guaiamus!
VOZES DA DIREITA Viva os nagoas!
UNS Entra!
OUTROS Livra!
(Grande conflito. Apitos da polícia, que intervém e dispersa os capoeiras. A cena fica vazia. Mutação. Cessa a música)
QUADRO V Sala casa do Comendador. Porta e janelas ao fundo. Portas laterais.
CENA I Comendador, Faustino, que entram do fundo, depois o Trabalho.
COMENDADOR (com um decreto na mão e muito contente) Barão! Barão! Estou finalmente Barão... Barão de Vila Rica! Já não sou o Comendador Campelo! (Abraçando Faustino) Quanto lhe agradeço, meu amigo, meu bom, meu excelente amigo! Quanto lhe agradeço! E hoje mesmo hei de ir pessoalmente agradecer ao ministro.
FAUSTINO (vivamente) Não vá... não se dê a esse incômodo, porque já lhe agradeci em seu nome.
COMENDADOR Bem; agora há de permitir que eu vá buscar a recompensa de seu trabalho. (Saindo) Barão! (Saída falsa pela direita)
FAUSTINO (só) Este cometimento de alta bilontragem pode sair-me caro; pelo menos transformar o meu projeto de casamento com a filha do Comendador, que tem bom dote e gosta de mim. Ora! não pensemos no futuro!
A VOZ DO TRABALHO Padeiro!
FAUSTINO É o homem do pão. (O Trabalho aparece à porta do fundo, com um saco de pães na mão) Ainda ele!
TRABALHO Ainda e sempre! Serei a tua providência! Não cometerás um ato reprovado. Toma este saco! (Dá-lhe o saco)
FAUSTINO Há dinheiro dentro? (Mete a mão no saco, tira de dentro alguns pães e sacode o saco vazio) Ora! pães!
TRABALHO Vai entregá-los.
FAUSTINO E tu, vai bugiar! (Atira-lhe o saco)
TRABALHO Ainda uma vez te ofereço ocupação: ainda uma vez recusas. Tu’alma, tua palma. Olha: na mão do Trabalho, o pão transforma-se em ouro! (Mete a mão no saco e retira-a cheia de moedas de ouro)
FAUSTINO Ouro! Dá cá o saco!
TRABALHO Trabalha! (Sai)
FAUSTINO (só) Ora o mágico!
COMENDADOR (voltando) Aqui tem três cheques do Banco do Brasil, na importância de conto de réis cada um. Desculpe a insignificância. (Dá-lhos)
FAUSTINO Ó Comendad... quero dizer: Barão...
COMENDADOR Comendador, diz bem... antes de quinze dias não quero que se saiba que sou Barão. Só no dia dos meus anos publicarei a grata nova, e por essa ocasião darei um jantar, para o qual o amigo está desde já convidado.
FAUSTINO Nesse caso, vou providenciar para que a nomeação não seja publicada. (Guarda os cheques)
COMENDADOR É favor. Agora há de me dar licença: esperam-me no meu gabinete (Aponta para a esquerda) alguns correligionários políticos.
FAUSTINO De qual dos partidos?
COMENDADOR (ingenuamente) Do Liberal. – Aí vem minha filha; conversem, mas não lhe diga nada sobre o baronato. (Abraçando-o) E muito obrigado! (Saindo) Eu sou liberal, e liberal da velha bandeira; mas confesso que ser barão era o meu sonho dourado! (Sai pela esquerda e Carolina entra pela direita)
FAUSTINO (consigo) E Jogatina à minha espera na porta da rua!
CENA II Faustino, Carolina.
CAROLINA Ora seja muito bem aparecido, seu Faustino! Estava morta por vê-lo!
FAUSTINO (contente) Deveras?
CAROLINA Disseram-me uma coisa do senhor...
FAUSTINO De mim? Que foi, dona?...
CAROLINA Não nega se for verdade?
FAUSTINO Negar, eu?! Oh! A senhora não me conhece! Eu não minto nem brincando! Sou como Epaminondas!
CAROLINA Quem é esse Epaminondas?
FAUSTINO Um amigo de meu avô... um sujeito de Tebas...
CAROLINA Pois fale como ele... verdade verdadinha... – O senhor joga?
FAUSTINO (com grandes gestos) Jogar eu?! Virgem Maria!... Eu que nem sei pegar em cartas! Deus me livre! (Benze-se).
CAROLINA Ah, seu Faustino, como eu fiquei quando me disseram! Agora vejo que foi intriga!
FAUSTINO Uma intriga miserável! Mas quem lhe disse?... quem foi?...
(Aparece à porta Jogatina, disfarçada em vendedor de bilhetes de loteria)
CENA III Os mesmos, Jogatina.
JOGATINA Anda hoje a roda! São os duzentos da Bahia! É o último.
FAUSTINO (com um sobressalto) Duzentos! (Vendo Jogatina e reconhecendo-a) Oh! (Faz-lhe sinal para que o não reconheça)
CAROLINA Ó moço! como se entra assim por uma casa! (Indo a Jogatina e tomando-lhe o bilhete) Se a gente tirasse mesmo... Mas qual! está branco com certeza!
JOGATINA (aproximando-se) É este de resto! Fique com ele, tenho palpite! sou muito feliz!
COPLA
Quem tentar Apanhar Sem tardar Sorte grande, Chamar-me mande! Como eu cá, Ninguém há! E aqui está Um bilhete Que bem promete! Profeta sou! Convicto estou De que lhe dou A bela sorte! É mister Não temer! Se perder, Não se importe! Ora aqui tem; não perca a vaza; Compre o bilhete de uma vez; São dez tostões; preço da casa; Cinco mil, cente e vinte e três, Fique com este da Bahia, Porque a tal emancipação, Anda não anda todo dia, Que até parece logração! (Declamando) Então? Vamos! que bonito número! 5.123!
CAROLINA Vou experimentar mais esta vez. Quanto custa?
JOGATINA Já disse, dez tostões, o preço da casa.
CAROLINA Empresta-me, seu Faustino, para não ir lá dentro agora?
FAUSTINO (atrapalhado) É que... só tenho pelegas grandes...
CAROLINA (estranhando) Pelegas?...
FAUSTINO (emendando) Notas... notas... queria eu dizer.
CAROLINA Então espere aí, moço. (Sai)
CENA IV Faustino, Jogatina, depois Carolina.
FAUSTINO Que vieste fazer aqui?
JOGATINA Fartei-me de te esperar à porta. Então? Recebeste alguma coisa?
FAUSTINO Três cheques do Banco: três contos de réis.
JOGATINA Bravo! Vamos ao Banco e de lá a uma roleta magnífica! Vais centuplicar essa quantia! Anda daí!
FAUSTINO Espera um pouco; deixa vir a pequena com os dez tostões. Não quero despedir-me à francesa.
JOGATINA Não temos um instante a perder: o Banco vai fechar.
FAUSTINO Nesse caso, allons!
(Saem pelo fundo; entra Carolina)
CAROLINA Aqui está, moço. – Ninguém! – Para onde iria seu Faustino? (Indo à janela) Lá vai ele! E de braço com o garoto! Ora esta!...
(Entra o Comendador, acompanhado do grupo Zé)
CENA V Carolina, que logo sai, o Comendador, os Zés.
CORO DOS ZÉS Nós somos o grupo Zé, Que todos tomam a sério, E que há de, c'um pontapé, Derribar o ministério! Ao mundo vamos, olé! À parte a nossa modéstia, Provando que o grupo Zé Não é nenhum Zé da Véstia.
COMENDADOR (a Carolina, que sai da janela) Ó Carola, estavas aí? Vai lá para dentro! Não gosto de ver mulheres envolvidas em política. Não quero Luísas Michéis cá em casa. Isso é bom para os franceses. Vai!
CAROLINA Sim, papai. (À parte) Aquele seu Faustino! (Sai)
PRIMEIRO ZÉ Pois, meu caro Senhor Comendador Campelo, o grupo Zé, convidado para esta reunião em sua casa, felicita-se pela sua adesão à nossa causa. Mas vossa Senhoria não me explicará como, repelido por uma câmara liberal, fez-se liberal e entrou logo em oposição ao governo?
COMENDADOR Meu caro, em política, como em tudo mais, cada um sabe as linhas com que se cose. E se houver dissolução?
PRIMEIRO ZÉ (ao Segundo) O que me parece é que este Comendador é uma besta.
SEGUNDO ZÉ (ao Primeiro) Apoiado!
(Passa pela rua uma banda de música a tocar. Ouvem-se vivas e foguetes. Correm todos à janela)
OS ZÉS (retirando-se da janela) Ora! é uma manifestação conservadora!
COMENDADOR (à janela) Viva! viva!...
TERCEIRO ZÉ Que é isso, Comendador? Está dando vivas aos conservadores?
COMENDADOR (aproximando-se) Perdão, eu sou liberal da velha guarda... mas reconheço que o partido contrário... ao qual também pertenci... Demais, nestas manifestações, as caras são sempre as mesmas.
(Os sons da música têm se perdido ao longe)
PRIMEIRO ZÉ (aos outros) Então está dito, meus nobres colegas: continue a tramoia! A tramoia há de salvar-nos! Que grande invenção a tramoia!
SEGUNDO ZÉ Havemos de mostrar ao ministério, que se julga tão forte, para quanto valemos!
TERCEIRO ZÉ (ao Primeiro) O diabo foi você ter assinado o projeto!
PRIMEIRO ZÉ Assinei, mas voto contra. Que tem isso? Ainda ontem o Sinibu votou sim a favor de um candidato, e hoje votou não a favor do mesmo candidato.
SEGUNDO ZÉ Sganarello tem feito escola.
(Nova manifestação na rua. Banda de música, vivas e foguetes. Os Zés correm para a janela)
COMENDADOR (com toda a força) Viva o Partido Liberal! viva o meu partido!... (A manifestação passa) Toda a resistência, meus amigos, toda a resistência! Esta questão de emancipação é muito séria. O marechal tem razão. A junta de coice é indispensável.
TERCEIRO ZÉ Eu acho... apesar de não saber ao certo o que vem a ser a tal junta.
PRIMEIRO ZÉ homem, você não sabe? Nem eu!
SEGUNDO ZÉ Se o comendador nos explicasse...
COMENDADOR Não há nada mais simples. Você... (Segura o Primeiro Zé) você é o carro...
PRIMEIRO ZÉ Que carro?
COMENDADOR O carro da emancipação. É uma figura.
PRIMEIRO ZÉ Sim, senhor, eu sou o carro.
COMENDADOR (mostrando o palco) Isto aqui é um barraco... um plano inclinado. (Segurando dois Zés e pondo-os na frente do Primeiro) SEGUNDO ZÉ (que é um dos dois segurados, com riso alvar) Ah! ah! ah! somos a parelha! Está dito.
COMENDADOR Peguem no carro. (Os dois seguram, com as mãos para trás, o cós da calça do Primeiro Zé) Agora os senhores... (Vai buscar o Terceiro Zé, e outro) Os senhores são os bois!
TERCEIRO ZÉ Homem, isto de bois...
COMENDADOR Uma figura!
TERCEIRO ZÉ Vai lá, sou boi.
(Seguram no cós do Primeiro Zé)
COMENDADOR Agora, puxem os senhores para frente, e os senhores para trás.
(Obedecem)
PRIMEIRO ZÉ Ai! ai! ai!
COMENDADOR Basta! Então? O carro avançou um passo? Não! Por quê? Porque as forças estavam equilibradas pela junta do coice, junta do coice representada aqui pelos nossos amigos.
TODOS Ah! ah! ah! é boa!...
(Vaia na rua)
VOZES NA RUA Fora, negreiro! Escravocrata! Fiô! Fiô!
TODOS Que é isto? (Vão a correr para a janela, e estacam ao ver entrar o A) O A.!...
CENA VI Os mesmos, o A.
A. Eu mesmo, meus amigos! Que desaforo!... Que insolência!... que pouca vergonha!... Vejam se isto é de um governo que se preza!
COMENDADOR Mas que foi?
A. Pois não ouviram?... Fui vaiado! Eu vaiado!... Vaiado!...
COPLAS
I Eu saio da Câmara
Ao fim da sessão, E vou sorumbático, Olhando pro chão; Mas eis que, de súbito, Eu ouço uma voz Dizendo-me injúrias, E passo veloz... Um grupo de vândalos Persegue-me então... São eles inúmeros... Nem sei quantos são! Fiô! Fiô! Escravocrata! Lá vai batata! Zás! Trás!
TODOS Fiô! etc.
II A. Cos olhos um tílburi Eu busco, mas qual! Que vaia! que escândalo! Que piramidal! Enfim, todo impávido, Lá vou mesmo a pé, E os vândalos seguem-se, Chamando-me Zé! Nas ruas mais públicas Quem viu coisa assim! Os pulhas insultam-me E zombam de mim! Fiô! etc. Com franqueza, amigos: eu pareço-lhes suficientemente indignado?
TODOS Certamente!
A. (risonho e noutro tom) Pois bem, não estou tal.
TODOS Hein?
A. Tudo isto é uma comédia!
TODOS Como assim?
A. A vaia foi encomendada por mim.
TODOS Para quê?
A. Eu precisava de um pretexto para...
TODOS Para...
A. Uma moção de desconfiança!
TODOS Vamos!
A. Já?
TODOS Já! Partamos!
(Saem todos pelo fundo, depois de repetirem o coro de entrada)
COMENDADOR Nem sequer se despediram de mim! Ah! política! ah! tramoia! (Tirando o decreto do bolso) O que me consola é isto! O meu decreto! Vou para o meu gabinete contemplá-lo! Barão! Barão! Barão de Vila Rica!...
ÁRIA Barão estou feito Da Vila Rica! Eis a rubrica Do Imperador! ´Stou satisfeito! Sou mais um furo Que aquele obscuro Comendador! Brasão doirado Meu nome encerre: Um V e um R, Por cima um B. Vê-lo-ei gravado, Todo pachola Na portinhola Do meu cupê!
Da Vila Rica eu sou Barão! Hei de fazer um figurão!...
(O comendador sai dançando. Mutação)
QUADRO VI O Largo de São Francisco de Paula.
CENA I Arlequins, depois o Carnaval, depois um Zé-Pereira, depois o Entrudo.
(Ao levantar do pano, a cena está cheia de máscaras e povo. Entra um bando de arlequins e executa um bailado. No fim do bailado, a cena fica vazia. Aparece o Carnaval, vestido com um dominó)
CARNAVAL (ao público, com voz de falsete) Os senhores me conhecem? Sou eu mesmo... O Carnaval!... (Voz natural) Mas, se licença me dessem, Falava em voz natural. Em poucos versos contar-lhes A minha história aqui vou; O meu passado lembrar-lhes, Que tão depressa mudou. Eu fui isto que estão vendo: Como dominó remei... Mas fui descendo... descendo... E em princês me transformei. (Transforma-se) Não satisfeito do meu fado Destes caprichos fatais, Fez-me um diabinho encarnado... (Transforma-se) Eis o que sou: nada mais! A loucura, essa irmã gêmea Do carnaval sucumbiu Dês que a brilhante Boêmia Os atabales partiu. Findou-se a minha alegria Depois que me deixou só O Club X, que bem podia Chamar-se XPTO. De Heidelberg os estudantes, Filhos do gozo, onde estão? Era outra coisa, isto... dantes, Nos tempos que já lá vão. Decididamente acabo
De um modo muito vulgar, Se os Tenentes do Diabo Não me quiserem salvar! Se os Fenianos, da cova Não me chamam para si, Leve o demo a casa nova, Que é muito perto daqui. Se eu não for quem fui outrora, Se hei de ser sempre que sou, Renegar, sem mais demora, Dos Democráticos vou. Se Fenianos, Tenentes, Democráticos Do seu amor por mim não me dão prova, Recorrerei aos préstimos simpáticos Dos Progressistas da Cidade Nova! (Passa pelo fundo um Zé-Pereira) Vai passando um Zé Pereira! Momo, se me vês de lá, Repara que desgraceira! Se não cessa a quebradeira, O meu futuro ali está! (Olhando para a direita) Ó céus! que vejo! vem ali o Entrudo! Desgraçado que sou! Se não fujo, ai de mim! lá se vai tudo Quanto Marta fiou! Sem dizer água vai, daqui me mudo, Porque mesmo água vem; ligeiro vou... (Sai apressado; mas o entrudo, que entra, ainda o vê)
ENTRUDO Vai! Foge!... Foge covarde!... Ainda vives, Carnaval! Mas até ver não é tarde Quem há de cair por terra Nesta encarniçada guerra, Neste duelo mortal! Feros rancores eu guardo
Contra ti, contra ti só! A hora suprema aguardo, Que em sonhos meu peito afaga, Da vitória da bisnaga, Da queda do dominó!... (Vindo ao proscênio) Eu sou o Entrudo, o clássico folguedo; Na massa estou do sangue nacional; Já noutros tempos me encolhi de medo Ao surgir nesta corte o Carnaval. Retirei-me aos penates, porém quando Ele deveras irritar-me fez, As manguinhas de fora fui deitando E acabei por deitá-las de uma vez. Contudo inda não sou quem dantes era: Inda serei, porém, quem dantes fui; Inda este povo, como noutra era, Verei entrando em tredo entrudo. – Ui! Inda aqui me vereis de balde e tina... De seringa na mão já alguém me vê, Pois a bisnaga é coisa muito fina Que o Mal das Vinhas inventou. Pra quê? É tão aristocrata a descoberta, Que Alguém, com A maiúsculo, também A bisnaga em Petrópolis aperta E esguicha a essência que ela em si contém. Nada! não quero... Mas, ó céus! que vejo?! Um grupo se dirige para cá, Que mascarado está! Encontrar-me com ele não desejo, Pois vem muito decente, E o Carnaval não venço facilmente Que com certo capricho se apresente; Portanto eu me vou já. (Sai)
CENA II Os Estudantes de Salamanca, depois Jogatina e Faustino; Povo.
(Os estudantes cantam uma canção espanhola e saem, acompanhados e aplaudidos pelo povo. Durante o canto entram Faustino e Jogatina, vestidos como no quadro precedente. Vêm ambos ligeiramente embriagados)
JOGATINA São os coristas do Santana que andam a pedir para as vítimas do terremoto de Andaluzia.
FAUSTINO Se pedíssemos nós para as vítimas de roleta?... Podes limpar a mão à parede com a tua proteção... Parece incrível!... Três contos de réis deitados fora em três dias!...
JOGATINA Mas tu hoje começaste logo no princípio a dar beijos na Marie Brizard!... Deste modo ninguém pode jogar... a não ser que jogue como uma barca Ferry.
CENA III Faustino, Jogatina; um Noivo, uma Noiva e o Pai da Noiva.
O PAI (acompanhando os noivos) Não pode ser! Não estão casados!...
NOIVA Estou casada e muito bem casada!
NOIVO Estamos casadinhos da silva!
PAI Isto não tem lugar!
FAUSTINO (agarrando o noivo) Explique-me, seu coisa!
JOGATINA (agarrando a noiva) Diga-me...
PAI Façam ideia, meus senhores: um casamento tumultuário!
JOGATINA Tumultuário? Que quer dizer isso dizer?
OS NOIVOS e O PAI Eu lhes digo...
FAUSTINO Não. Fale cada qual por sua vez.
OS TRÊS Não vê que...
JOGATINA Tumultuário são, não há dúvida! (Ao pai) Fale senhor, que é o mais velho! (Aos outros) Atenção!
PAI Eu sou pai desta rapariga, que é minha filha, se é certo o que diz minha mulher e meu amigo íntimo Doutor Salgado, que já era meu amigo antes de nascer... Este senhor, que é um bilontra...
FAUSTINO (cumprimentando-o) Toque!
PAI Este senhor, não tendo onde cair morto e sabendo que eu tenho onde cair vivo, andou... a fazer pé-de-alferes à pequena...
NOIVO De alferes, não, senhor...
PAI Pois bem, pé-de-moleque, que é o que você é... (Continuando) Ela, coitadinha! teve a fraqueza de se embeiçar por ele... Eu opus-me ao casamento... Minha mulher e o Doutor Salgado também se opuseram. Vão eles então, combinam-se, vestem-se deste modo, que parecem duas figuras de bandeja de confeitaria, e vão ouvir missa... Ajoelham-se, e, no momento em que o vigário deita a bênção, dizem muito alto: Tomamos as pessoas presentes por testemunhas... (Os noivos aproveitam a distração do velho e fogem) de que nos recebemos por marido e mulher. E receberam-se... Ah! ah! mas eu lhes darei o recibo!... A coisa não vai assim! Eu ainda estou aqui!... Oh! mas eles é que já cá não estão!... Ah! patifes! (Sai correndo)
JOGATINA O progresso, seu Faustino, o progresso!
FAUSTINO Progresso? Bilontrismo chamo-lhe eu. (Rumor dentro) Que mais temos? (Olha para o lado da Rua do Ouvidor)
JOGATINA (idem) É uma francesa que, pelos modos, filou um sujeito.
(Entra Mademoiselle Grichard, segurando Rafani)
CENA IV Os mesmos, Mademoiselle Grichard, Rafani, depois um Visitante.
RAFANI Ma per Dio, signora! No capisco niente!
MADEMOISELLE GRICHARD Eh bien, allons à la police!
RAFANI Lasciateme dunque! questo collare non é vostro!
FAUSTINO Conflito franco-italiano!
MADEMOISELLE GRICHARD Il est à moi... On me l´a volé!
JOGATINA (a Faustino) Ah! percebo: é o negócio das joias de Mademoiselle Grichard.
FAUSTINO Ah! outra bilontrice!
MADEMOISELLE GRICHARD Il y a quarante et trois diamants... Voyons!
RAFANI Non è vero... Sono quaranta e cinque. Esse me a stato venduto par il Commendatore Xorro.
MADEMOISELLE GRICHARD C´est ce que nous verrons!
RAFANI Orbene, vendremo e dopo parleremo!
MADEMOISELLE GRICHARD Allons au subdelegué!
RAFANI Dio! Dio! Andiamo dunque! (Saindo com ela) Queste orizzontali hanno capellete alle vente!
FAUSTINO O pobre do Rafani está apertado!
JOGATINA Pobre rapariga! Sabe Deus quanto lhe custou adquirir aquele colar!
FAUSTINO É...
JOGATINA Quem é este sujeito que aí vem a olhar para todos os lados, com uma mala debaixo do braço?
FAUSTINO (esbarrando pelo Viajante, que entra) Oh! O senhor não vê por onde anda?
VIAJANTE Desculpe, mas vou com muita pressa... Não tenho um momento a perder... Querem alguma coisa para a outra banda?
JOGATINA Que vai lá fazer, se não é indiscrição?
VIAJANTE Pois não sabem?
COPLAS
I Dois tipos muito amigos Se encheram de razões; Tornaram-se inimigos, Trocaram cachações! Um deles, o mais forte, Deu mais do que apanhou, E o outro se acha à morte Da tunda que levou! Tem a briga um fim? Pode ser que sim... Ambos tem razão? Pode ser que não!
TODOS Pode ser que sim... Pode ser que não...
II VIAJANTE Alegre e satisfeito Vou ter c'os dois heróis, Um deles escorreito E o outro nos lençóis. Ser espinhosa deve A minha comissão; Mas digo muito em breve Qual deles tem razão. Perco o meu latim? Pode ser que sim... Venço a tal questão? Pode ser que não!...
TODOS Pode ser que sim... Pode ser que não... (O Viajante sai correndo)
FAUSTINO Foi uma acertada nomeação, porque este sujeito tem olho. Ó diabo! lá vêm o Comendador e a pequena! Toca a safar!
JOGATINA Sim, mesmo porque são horas de nos prepararmos para o Bando Precatório!
CENA V O Comendador, Carolina, depois o Balão Júlio César.
CAROLINA Olhe, papai, seu Faustino!
COMENDADOR Aonde, menina? Estás doida?
CAROLINA Era ele sim, senhor; ele e o cambista.
COMENDADOR Que cambista, menina?
CAROLINA O tal que não esperou pelo dinheiro daquele bilhete em que eu tirei quinhentos mil réis...
COMENDADOR Pois se era ele, não lhe gabo a companhia... Mas qual! um rapaz tão bem relacionado, que me arranjou o título de Barão!
CAROLINA (à parte) Começo a desconfiar que primo Xandico tem razão. (Olhando para dentro) Olhe, papai, que homem tão esquecido! Quem será?
COMENDADOR Sei lá!
BALÃO (entrando) É um esbulho! Aí está o que eu fui buscar a Paris! (Ao Comendador) Copiaram-me, meu caro senhor, plagiaram-me!
COMENDADOR Mas que é o senhor? Não tenho a honra de...
BALÃO Eu sou o Balão de Santa Maria de Belém. Dá-me um charuto?
COMENDADOR Ah! é um colega! (Dando-lhe um charuto) Pois eu sou o da Vila Rica.
BALÃO O senhor!... pois o senhor é também balão?
COMENDADOR Sim, senhor. (À parte) Não pronuncia os rr: é tatibitate... (Alto) Mas... como dizia o colega?
BALÃO Sabe por que ainda não subi? Faz-me favor do fogo?
COMENDADOR Por quê?
BALÃO (acendendo o charuto) Não subi porque não pude encher-me.
COMENDADOR Dá-se comigo justamente o contrário: não pude encher-me porque não subi.
BALÃO Vou recorrer ao povo. Dá-me outro charuto, para quando acabar este?
COMENDADOR (dando-lho) Ao povo recorri eu... Mas rasgaram-me o diploma... Faltou-me o apoio...
BALÃO Apagou-se. Dá-me um fósforo? (O Comendador dá-lho) Eu não preciso de diploma e achei já o meu ponto de apoio. Apagou-se; dáme outro?... Gás!... de gás é que eu preciso!
COMENDADOR De gás ou de fósforo?
BALÃO (acendendo o charuto)
Gás, para subir!
COMENDADOR Ah! quer concorrer para a iluminação da cidade!
BALÃO Nada! preciso de gás para ir às nuvens!
COMENDADOR Às nuvens fui eu sem gás!
BALÃO Sem gás? Que me diz, colega? Pois um balão sem gás vale lá alguma coisa! Balão sem gás é saco vazio!
COMENDADOR (desapontado) Ai, que é balão e não barão! Agora compreendo... Carola, é o balão Júlio César! E eu a dar-lhe treta e charutos!
BALÃO Mais um para depois do jantar...
COMENDADOR Nada! contente-se com os que já tem... Que pedinchão... O Barão da Vila Rica não é paio!
BALÃO É Barão! Logo vi! Os barões não podem compreender-me. Só o que tem fé acredita em mim, porque a tem... ao menos no nome. Dispenso os seus charutos. Apesar de não ter gás, vou subir até às altas regiões e pedir que nomeiem uma comissão para angariar-me donativos.
COMENDADOR Darei alguma coisa, se publicarem o meu nome por extenso: Barão de Vila Rica. Senão, não. Sou liberal da Velha Guarda, mas gosto, que me lambo todo, que me chamem pelo título!
BALÃO Não seja esta a dúvida! Passasse bem. (Sai)
CENA VI O Comendador, Carolina, depois um Titular, Primeiro Caixeiro, Caixeiros, depois Segundo Caixeiro.
CAROLINA Já estava cansada de esperar. Que balão cacete!
COMENDADOR O caso é que, se ele se governasse nos ares, muita gente ficaria com cara d'asno.
TITULAR (entrando, acompanhado de muitos caixeirinhos, que o felicitam ruidosamente) Basta! Obrigado! Larguem-me! (À parte) Quem me mandou meter com crianças?
PRIMEIRO CAIXEIRO Viva o nosso protetor!...
TODOS Viva!... (Rodeiam o Titular)
CORO DE CAIXEIROS Viva o nosso amigo, Nosso defensor, Que é da nobre classe Nobre protetor! Viva o fechamento, Que abre os corações! Viva a caixeirada! Fora os tais patrões!
TITULAR Basta, já disse! Basta de demonstração! (Vendo o comendador) Ó meu nobre amigo! por aqui?
COMENDADOR Como vê, e admirado de o encontrar cercado por essa rapaziada!
TITULAR Não me largam desde pela manhã. Fui propor o fechamento das portas, e agora o verás!
PRIMEIRO CAIXEIRO Viva o protetor da nobre classe caixeiral!
TODOS Viva! viva!...
TITULAR Vão embora, meus amiguinhos, vão tratar de suas obrigações. Eu tenho quarenta anos...
COMENDADOR Só?
TITULAR Só (aos caixeiros) Estou no caso de lhes dar conselhos.
PRIMEIRO CAIXEIRO Viva o nosso conselheiro!
TODOS Viva!
TITULAR Já me apresentei candidato a senador...
PRIMEIRO CAIXEIRO Viva o nosso senador!...
TODOS Viva!
SEGUNDO CAIXEIRO (entrando esbaforido, aos outros) Sabem?... Uma grande... novidade!
TODOS Qual é? qual é?
SEGUNDO CAIXEIRO Chegou...
TODOS Quem?
SEGUNDO CAIXEIRO Chegou o Sousa Bastos e a Pepa!
TODOS Viva a Pepa! Viva! Vamos vê-la! Viva a Pepa!... (Saem a dar vivas)
TITULAR Ora aí está o que é a popularidade! Eu contava, pelo menos, com o retrato a óleo. (Alto) Fica, Comendador?
COMENDADOR Fico ainda um momento (A Carolina) Comendador... É célebre! Ainda ninguém sabe que eu sou Barão!
TITULAR Então, até sempre. (Sai. Ouve-se música dentro)
CAROLINA Papai, aí vem o Bando Precatório.
CENA VII Comendador, Carolina, Faustino, Jogatina, o Trabalho, o Bando Precatório.
(Começa a desfilar o Bando Precatório. Faustino e Jogatina são dos primeiros que chegam, de casaca ambos, e trazendo no braço o distintivo da imprensa. O Trabalho entra pelo outro lado, disfarçado de vendedor de jornais. Muitos indivíduos, todos com o mesmo distintivo, entram, uns com sacolas na mão, outros com elas presas à ponta de uma vara. O Comendador é vítima dos pedintes)
COMENDADOR Nada! vou trocar cinco mil réis em níqueis ali no quiosque! (Faz o que diz)
FAUSTINO (a Jogatina) Já tenho uns vinte bodes. E tu?
JOGATINA Há de andar por isso.
FAUSTINO Disfarça e passa dez para o bolso. Eu faço o mesmo.
JOGATINA (em tom de censura) Dinheiro das vítimas da...
FAUSTINO (impaciente) Anda, Luzia! (Fazem a ladroeira) Oh! O Campelo! Se ele já deu pela coisa... (Vendo que o Comendador lhe sorri) Ah! não! (Aproximando-se) Comendador, para as vítimas dos terremotos!
(Jogatina pede do outro lado da cena)
COMENDADOR
Olá! o senhor é também jornalista?
FAUSTINO Por hoje só... Para servir aos meus amigos da imprensa. Ah! O Comendad... perdão! o Barão há de encontrar no Bando um bando de indivíduos que se acham nas minhas condições.
COMENDADOR (dando-lhe níqueis) Aí tem.
FAUSTINO (baixo a Carolina) Como está?
CAROLINA Muito zangada com o senhor! Aquilo faz-se? Despedir-se sem falar com a gente!
FAUSTINO (disfarçando) Oh! lá vai o Freitas! Vou apanhar-lhe uns níqueis! (Vai correndo e encontra-se com o Trabalho)
TRABALHO Um momento!
FAUSTINO Oh!
TRABALHO Toma estes jornais. Antes os venda do que finjas escrevê-los. Estás extorquindo dinheiro dos desgraçados, lançando uma nota triste nesta esplêndida festa de caridade! Vai trabalhar!
FAUSTINO Sabes que mais? Toma! (Dá-lhe um pontapé)
TRABALHO É o segundo pontapé que dás no Trabalho. São pontapés que dás em ti mesmo!
(Entram jornalistas a cavalo. Banda de música. Movimento. Entusiasmo. Animação. Mutação)
QUADRO VII O Bando Precatório.
APOTEOSE
(O Anjo da Caridade, no céu, derrama flores e moedas de ouro sobre o cortejo. Fogos, etc.)
ATO II
QUADRO VIII Sala de fantasia.
CENA I Faustino, Jogatina, vestida de mulher.
FAUSTINO Mas, afinal de contas, onde estamos nós?
JOGATINA No Palácio dos Teatros.
FAUSTINO É bonito, é; mas não me dirás o que vimos aqui fazer?
JOGATINA Quer acender-te o desejo do único jogo que ainda não tentaste.
FAUSTINO Qual?
JOGATINA O câmbio de teatro. Faze-te cambista de bilhetes. Se fores feliz, firmarás a tua independência.
FAUSTINO Mas eu não entendo disto...
JOGATINA Foi essa justamente a razão por que aqui te trouxe. Vais conhecer os diversos gêneros teatrais. Ouve...
RONDÓ Moram aqui de cambulhada Os vários gêneros teatrais, O Dramalhão de capa e espada, A peça fina, e todos mais. Estão aqui, promiscuamente, Na nova Torre de Babel, A nova Farsa mais recente E a velha Farsa de Cordel. A par da rígida Tragédia, Que nos faz lágrimas verter, Acha-se a pândega Comédia, Que a todos faz rir a perder. Aqui também se acha a Opereta De quem se diz bastante mal, Por ter bastante malagueta E muitas vezes não ter sal. Também cá mora a Ópera séria E, quando a voz levanta aqui, Ninguém aventa uma pilhéria, Que a todos vence o dó-ré-mi!
Moram aqui de cambulhada etc.
Mas vivem todos só da fama: Chega a cortar o coração
Ver como aqui vegeta o Drama, Como agoniza o Dramalhão. A mesma Op’reta – quem diria? – Deixou de ser o que já foi; A Tragédia ficou pra tia: Já não é mais que um pé-de-boi. Se não melhoram estes fados, Continuando a esbodegação, Os vários gêneros, coitados Fazer a trouxa poderão. Mas o deus Público decerto Em maus lençóis nunca os porá, E assim o teatro, embora aberto, As portas nunca fechará.
Moram aqui de cambulhada, etc.
FAUSTINO Então, moram aqui?...
JOGATINA Que sei eu! a Ópera, a Tragédia, o Drama, o Dramalhão, a Comédia, a Opereta, a Mágica...
FAUSTINO Tantos?! E vivem em harmonia?
JOGATINA Como o cão com o gato. Espera. Vou buscá-los. (Sai)
FAUSTINO (só) Isto não vai bem, seu Faustino, isto não vai bem! É preciso mudar de rumo... Os negócios vão de mal a pior. Começo a notar certa frieza no Campelo... Aquele decreto falsificado tira-me o sono! Não teria sido melhor procurar um emprego, qualquer que fosse?
CENA II Faustino, o Trabalho.
TRABALHO (levantando-se na orquestra, onde finge ser tocador de oficleide) Muito apoiado! Vá por aí!
FAUSTINO Oh! Ainda!...
TRABALHO Ainda e sempre.
FAUSTINO Nova reforma do Remorso Vivo!
TRABALHO Toma este instrumento; aprende a tocá-lo, e vem trabalhar cá na orquestra.
FAUSTINO É de ouro?
TRABALHO Não; mas ouro é o que ouro vale.
FAUSTINO Então vai-te catar! Ora que eu não possa dar um passo sem encontrar este tipo!
DUETINO
FAUSTINO Que trabalho tão maçante! Já o não posso tolerar! Aparece a todo instante!
TRABALHO Anda cá, vem trabalhar
(Solo de oficleide)
FAUSTINO Ei-lo armado de oficleide! Afinal diga o que quer!
TRABALHO Qu’lides!
FAUSTINO Qu’lide?
TRABALHO Qu’lides!
FAUSTINO Qu’lide? Pois que lide quem quiser! (Solo de oficleide)
(Juntos)
TRABALHO Que grande vagabundo! Não tem mais correção! Engana a todo mundo Sem consideração!
FAUSTINO Torna-me furibundo Tamanha amolação! Até o fim do mundo Me of’rece ocupação!
TRABALHO Se não tocas o instrumento, Rufa ao menos o tambor! Desce cá por um momento...
FAUSTINO Não me amole por favor!
(Solo por Faustino, que imita o oficleide com as mãos na boca)
TRABALHO Desde já te participo
Que hás de ter um fim fatal!
FAUSTINO Tipo!
TRABALHO Tipo!
FAUSTINO Tipo!
TRABALHO Tipo! Hás de, amigo, acabar mal!
(Juntos)
TRABALHO Que grande vagabundo, etc.
FAUSTINO Torna-me furibundo, etc.
(No fim do duetino desaparece o Trabalho)
FAUSTINO Ah! musca-se? Melhor! Há mais tempo!
CENA III Faustino, Jogatina, a Ópera, a Tragédia, a Opereta, o Dramalhão e a Mágica.
JOGATINA Cá estão os donos da casa. (Apresentando) A Tragédia... a Ópera... a Opereta... o Dramalhão... e a Mágica.
(Cumprimentos mudos)
FAUSTINO E o Drama? E a Comédia?
DRAMALHÃO Não estão em casa.
OPERETA Ils sont allés ao Teatro de São Pedro de Alcântara.
TRAGÉDIA Onde neste momento são honrados Por um talento lúcido, assombroso!
TODOS A Duse-Checchi!
JOGATINA Tragédia, dize a este senhor o que lhe podes oferecer.
TRAGÉDIA O que lhe posso oferecer... Vergonhas! Doces lembranças de um passado morto, Quando ainda no palco fluminense
Brilhava à luz da rampa o grão Racine E o terrível Corneille iluminava Com o gênio seu do povo a inteligência; Quando Antônio José queimado ardia Da Inquisição na estúpida fogueira, E Hedelmonda morria aos pés de Otelo, E a Nova Castro soluçava idílios, A Nova Castro que hoje raramente O Florindo remonta e o bom Barbosa. (Todos os personagens vão aos poucos dormindo em pé) Ultimamente reanimar quiseram O meu cadáver clássico: de Espanha O Seio da Morte Echegaray mandou-nos, Que dois mancebos, talentosos ambos, Vencendo o sono traduzir lograram. Baldado esforço! Nem valeu ter sido Recomendado o poema por um César! De bem alto caiu: foi grande a queda! Mas, justos céus! que vejo! todos dormem! Ao trêfego Morfeu quando eu declamo! Ninguém resiste! Ó fado! Ó sina! Ó numes! Se, porém, quereis ver como despertam, Basta que eu cante um pândego estribilho De insulsa ópera-bufa! E vou fazê-lo: (Cantando e dançando ao som da Mascote) Mas ninguém tema o macacão Qu’hão deitar-lhe... Qu’hão deitar-lhe... Mas ninguém tema o macacão, Qu’hão de deitar-lhe a mão: Zás! (Têm todos despertado e dançam) Vistes! Foi necessário que eu espojasse No chão brejeiro a clâmide sagrada Para que o som da minha voz ouvissem! (Vai para o fundo)
FAUSTINO (à parte)
Será o Trabalho, disfarçado ainda?
JOGATINA Para este gênero são precisos atores excepcionais. – Dramalhão, que novidades nos dás?
DRAMALHÃO Nenhuma, senhora, se bem que ainda não soasse a hora de meu aniquilamento.
FAUSTINO Que! pois não tens nada de novo?
DRAMALHÃO Não! Que não é novo o Palhaço, um dramalhão em que João Caetano transformava D’Ennery em Shakespeare... Não são novas as Duas Órfãs... e os Estranguladores de Paris há muito tempo estrangulam a paciência do público... Não é nova a Cruz da Morta nem o Assassino por Amor, nem o Remorso Vivo, nem João, o Cocheiro, que não é outro senão o Guia da Montanha, que não é outro senão o Fiacre Número 226. Mas vou reanimar uma grande figura, imensa no romance, decrescida no teatro, mas sempre interessante e eterna.
TODOS Qual?
DRAMALHÃO Ressurge, Edmundo Dantés, abade Busoni; Simbad, o marítimo; Zaconne; Conde de Monte Cristo!
(Forte na orquestra. Surge de um alçapão o Conde de Monte Cristo)
CENA IV Os mesmos, o Conde de Monte Cristo.
CONDE DE MONTE CRISTO Temerário! quem te autorizou a me filiares ao teu gênero falso e condenado? Por que evocas o meu prestígio para inoculares em tuas veias depauperadas uma gota do meu sangue romântico? Não receias que eu puna a tua audácia?... e que, depois de encerrado, por tantos anos, no castelo de If do esquecimento público, eu volte com todas as veemências, com todas as energias?
DRAMALHÃO Vilão, que usas de muitos nomes, como os vagabundos e ratoneiros; conde macanjo, que assim pagas a nova existência que te proporciono! Não temes que eu te obrigue a assinar termo de bem viver?
CONDE DE MONTE CRISTO Uso de muitos nomes, é certo; mas o meu nome verdadeiro... basta que eu o pronuncie para fulminar-te, a ti e a todos os teus adeptos!
DRAMALHÃO Este nome é?...
CONDE DE MONTE CRISTO Alexandre Dumas!
TODOS Ah! (Fogem. Ouve-se dentro um tiro)
CONDE DE MONTE CRISTO Ah! ah! ah! (Some-se. Voltam todos, menos o Dramalhão)
TRAGÉDIA O Dramalhão, coitado! Suicidou-se! Move-me a piedade o seu suicídio!
FAUSTINO (da porta) Já se foi embora esse maluco?
JOGATINA Amenizemos esta cena lúgubre. – Mágica!
MÁGICA Que desejas, Princesa Virtuosa?
JOGATINA Deixa-te de ironias. Que novidades me ofereces?
MÁGICA Vem comigo à rocha de ouro, onde se oculta o feiticeiro azul.
FAUSTINO Não é isso que desejamos.
MÁGICA Que pretendes, mortal ousado? Trazes contigo o talismã da fada de coral? e o ramo de esmeraldas da deusa das buzinas?
FAUSTINO Quem é essa deusa das buzinas?
JOGATINA Deve ser uma espécie de Mariquinhas dos Apitos.
FAUSTINO Não; não trago buzinas nem apitos. (À parte) Que diabo de estilo tem esta mulher!
MÁGICA A Fada Melusina e o Príncipe Formoso...
JOGATINA Não se trata agora disso... Que novidades me ofereces? É a segunda vez que te faço tal pergunta.
MÁGICA Uma só: o Gênio do Fogo.
FAUSTINO Que gênio é esse?
MÁGICA Ele próprio to dirá... Gênio do Fogo, surge do teu reino subterrâneo!
(Surge do chão o Gênio do Fogo)
CENA V Os mesmos, Gênio do Fogo.
MÁGICA Ei-lo!
FAUSTINO Apesar da propaganda abolicionista, vele bem novecentos mil réis pela nova lei.
JOGATINA Enganas-te: não vale nada. Experimenta: dirige-lhe a palavra.
FAUSTINO Então? Diga alguma coisa!
(O Gênio do Fogo ri-se alvarmente)
JOGATINA Vês? Estúpido como uma porta!
TRAGÉDIA Tempos! ó tempos! rápidos passastes! Eis o teatro brasileiro, ó Numes!
(O Gênio ri-se como acima)
JOGATINA Sabes que mais? Rua!
FAUSTINO Rua, ou mando-te rapar a cabeça na polícia! Rua!
(O Gênio do Fogo some-se, rindo-se sempre)
JOGATINA Este Gênio do Fogo não tem o fogo do gênio.
CENA VI Os mesmos, menos o Gênio do Fogo.
ÓPERA Com efeito! estou aqui há duas horas, eu, a Ópera, o gênero teatral mais nobre e elevado, e ninguém me dá importância, ninguém me dirige a palavra, como se eu fosse para aí qualquer coisinha!
OPERETA Vous n’avez pas razão de queixa, porque sois mui cara. Io tengo più ragione di essere irritata!
ÓPERA Já lhe tenho dito um milhão de vezes que não se meta com a minha vida... Entre nós nada há de comum!
FAUSTINO A Ópera e a Opereta escamam-se!
JOGATINA Andam sempre assim!
OPERETA Questa orgulhosa se imagina que me fait peur! No la temo!
FAUSTINO Reparaste que a Opereta fala todas as línguas ao mesmo tempo?
JOGATINA Menos a portuguesa.
ÓPERA Um sopro meu é bastante para pulverizar-te!
FAUSTINO Temos outra vez a cena do Monte Cristo?
ÓPERA Julguem-nos! Julguem entre a Gioconda e a Ave do Paraíso!
OPERETA Si tu m’insultes, dou-te um bofetão, e te quedarás com el.
ÓPERA Um bofetão! Em mim?! Em mim... Oh!...
(Dueto)
ÓPERA Opereta incivil, malcriada, Que o bom gosto expulsou de Paris, Vai haver uma grande estralada Se a mostarda me chega ao nariz!
OPERETA Não suponhas, mulher, que o teu luxo De despeito me faça estourar! Eu protesto que aguento o repuxo E te posso com os pés esmagar!
ÓPERA Que me toques duvido!
OPERETA Olha lá, não me assustes!
ÓPERA Sou mais forte, verás!
OPERETA Deixa-me em paz!
(Juntas)
ÓPERA Opereta incivil, etc.
OPERETA Não suponhas, mulher, etc.
(Engalfinham-se; Jogatina separa-as)
JOGATINA Então, minhas senhoras, então? Isso é feio! A Ópera e a Opereta podem viver perfeitamente sem se engalfinharem! – Vamos lá, digam-me: que novidades nos oferecem?
(A Ópera e a Opereta falam ambas ao mesmo tempo)
ÓPERA A Gioconda! Vem ver como é bela! Que música! Que bailados!...
OPERETA A Ave do Paraíso, a Princesa das Canárias... Amar sem conhecer... Vem ver que lindas!
JOGATINA Tá, tá, tá, devagar! Cada qual por sua vez!
FAUSTINO Ouvi falar em bailados: são coisa que se veja?
ÓPERA Os bailados da Gioconda? Estupendos! Principalmente o das horas!
JOGATINA O bailado das horas! Ah! é belíssimo!...
ÓPERA Querem ver? (Faz um sinal ao regente da orquestra) Faz favor?
(Música)
BAILADO DAS HORAS
FAUSTINO (a Jogatina) Para falar-te francamente: ainda não vi coisa que me enchesse as medidas.
JOGATINA Talvez que entre os hóspedes encontres alguns que te agradem.
FAUSTINO Como entre os hóspedes?
JOGATINA Sim, porque os teatros dão muitas vezes hospedagem a outros gêneros de espetáculos, que não são nem a tragédia, nem o dramalhão, nem a ópera, etc.
FAUSTINO Ah! compreendo... Que temos então?
JOGATINA A Estudiantina Figaro, por exemplo.
FAUSTINO Nada; estudiantina já ouvimos uma, e é quanto basta.
JOGATINA O Capitão Voyer, que é coisa papafina e única no seu gênero.
FAUSTINO Ah, sim? Que faz esse Capitão? É algum mestre-de-armas?
JOGATINA Não; é um músico.
FAUSTINO Que instrumento toca?
JOGATINA O mais vulgar, porém não o menos apreciado. Vais ver! (Fazendo um sinal para dentro) Eh! ó capitão!
CENA VII Os mesmos, o Capitão Voyer, depois o Trabalho.
CAPITÃO VOYER (entrando a conduzir um realejo-piano, assente sobre duas rodas) Cá estou!
FAUSTINO Um realejo!...
ÓPERA Oh!...
CAPITÃO VOYER Um realejo-piano! Há muito quem diga que qualquer pode tocar este instrumento em que tenho recebido justa e merecida celebridade. É um engano! É preciso bravura e expressão. Eu, como pianista, tenho a expressão e, como capitão, tenho a bravura! Ah! este instrumento tem também os seus segredos, como outro qualquer. E, senão, vejam... (Toca) Andante... Allegro... Affrettato... Ralentando... Allegretto... Più mosso... Presto... Prestissimo... Prestississimo...
JOGATINA Não há dúvida: o Capitão com seu instrumento vai longe!
FAUSTINO Vai, sim; e quem o manda sou eu.
CAPITÃO E vou mesmo. Piano, piano, se va lontano. (Sai tocando)
FAUSTINO Este capitão está no mato! Que mais temos?
JOGATINA Temos o Bosco, o grande Bosco!... (Fazendo um sinal) Entre o Bosco!
(Um elefante entra e atravessa a cena: quando passa perto de Faustino, sai o Trabalho de uma das pernas)
TRABALHO (a Faustino) Vem trabalhar! Vem, ao menos, ser perna de elefante!
FAUSTINO Ó Senhor!... que sarna!...
JOGATINA Bem, só me resta mostrar-te os leões nubianos.
FAUSTINO Nada de brincadeiras! Deixa lá ficar os leões! Mostra-me animais menos perigosos...
JOGATINA Nesse caso, venha o pessoal do Senhor Salvini!
(A um sinal, entram os macacos, que executam uma pequena dança, rodeando a Tragédia)
TRAGÉDIA (declamando durante a dança) Não faltava mais nada! Eis o teatro A que está reduzido nesta terra! Leões, macacos, elefantes, tigres, Gatos, cachorros, cabras e cavalos... É uma Arca de Noé, não é teatro! Sobre os ombros Martins o encargo toma De reanimar o palco brasileiro, E o esforço seu não é recompensado! Três peças nacionais debalde exibe! Nem o Luxo e vaidade, de Macedo, Nem A Lei de Vinte e Oito de Setembro. Nem Venenos que Curam – chamam gente E o público despertam! Eis o teatro A que está reduzido nesta terra!...
CENA VIII Os mesmos, o Recreio da Cidade Nova.
RECREIO Então comigo não se conta?
TODOS Quem é?
RECREIO Quem é... quem é... Olha as imposturias! Ó gentes! Eu sou o Recreio da Cidade Nova!
TODOS Olá!...
JOGATINA O ex-Filomena Borges!
RECREIO Então? Não se façam de bãos, porque tão bão como tão bão, o pobre também veve.
FAUSTINO Ó amigo, olhe que não é veve: é vive.
RECREIO Eu bem sei, seu doutô, eu bem sei... Mas disse veve muito de prepósito para levar a coisa ao superlativo!
MÁGICA Mas que desejas, mortal ousado?
OPERETA Dites-nous ce que usted pretende!
ÓPERA E pronto!
TRAGÉDIA Sim, que pretendes, capadócio? Fala!
RECREIO Cá o degas vem convidar toda a mestrança para assistir a uma arrepresentação da Morgadinha de Valflor.
TODOS (escarnecendo) Oh! Oh! Oh!...
RECREIO Se vissem como o diabo da cômica vai bem! (Arremedando) “Criança, sabes lá o que é o amor. Lago que a brisa encrespa, e que já se julga oceano! Sabes o que são as longas insônias, as noites sem repouso, os dias sem distração? Oh, não! não ames nunca, criança... Deixa-me passar, quero vê-lo!” Venham, venham, que ninguém se há de arrepender-se!
TODOS Pois vamos! Vamos...
RECREIO Mas, antes disso, ouçam lá o lundu do Recreio da Cidade Nova!
TODOS Ouçamos! ouçamos!...
LUNDU
I RECREIO Quem quer que a noitada Se passe depressa, Que compre uma entrada Pra ouvir uma peça!
CORO Ah! ah! Ah! ah! ah!
RECREIO Bonito, Filipe!
CORO Quá! quá! quá!
II RECREIO O drama na cena Não anda à matroca: Não sou Filomena,
Não sou João Minhoca!
CORO Ah! ah! Ah! ah! ah!
RECREIO Ai seu Filipe!
CORO Quá! quá! quá!
III RECREIO E, se continua Sucesso assim tanto, Eu vou para a Rua Do Espírito Santo...
CORO Ah! ah! Ah! ah! ah!
RECREIO Ataca, Filipe!
CORO Quá! quá! quá!
TODOS Bem! vamos! vamos!... (Saem. Mutação)
QUADRO IX A caixa do Teatro São Pedro de Alcântara, vista de dentro para fora. A cena passa-se no palco. Ao fundo, o pano de boca está decido. A cena está às escuras.
CENA I O Trabalho, depois Empregados do Teatro.
(Entra o Trabalho, disfarçado em gasista, e começa a acender as gambiarras. Pouco a pouco aparecem alguns empregados, que descem ao proscênio)
CORO É trabalhar Sem mais tardar! Tempo não há pra descansar!
TRABALHO “É trabalhar”, e não se mexem! Isso deveras me exacerba! Meus bons amigos, não me vexem... Trabalhem, pois, e res non verba.
CORO Oh, que gasista amolador! Ordena como um grão-senhor! Meu caro amigo, melhor faz Se for tratar de ver o gás! É trabalhar, etc.
PRIMEIRO EMPREGADO Parece que a madame Chechi não está boa...
SEGUNDO EMPREGADO Não é Chechi... é Cheche.
TERCEIRO EMPREGADO Não é Cheche... é Checchi.
TRABALHO Ora Chechi. Daqui a pouco vocês chamam ao Andó, Chuchu!
PRIMEIRO EMPREGADO Então para que escrevem com ch? C, h, é, ché; c, h, i, chi. Chechi.
SEGUNDO EMPREGADO O bonito é se não há espetáculo!
PRIMEIRO EMPREGADO Seria a segunda transferência nesta semana.
TRABALHO Vão trabalhar... deixem-se de prosa.
PRIMEIRO EMPREGADO Ora cuide de sua vida! (Aos outros) É cacete este gasista.
TRABALHO Sou cacete, porque não gosto de vadiação. Valha-os Deus! valha-os Deus! (Sai)
PRIMEIRO EMPREGADO Gosto muito da peça que vai hoje.
SEGUNDO EMPREGADO Também eu. Quanto mais se a gente entendesse!
PRIMEIRO EMPREGADO Sempre queria que me dissessem por que eles não representam em português!
TERCEIRO EMPREGADO Pois se são italianos!
PRIMEIRO EMPREGADO Por isso não: todos os teatros estão cheios de estrangeiros, que representam em português!
SEGUNDO EMPREGADO É verdade! Tu não viste o Bordrini?
PRIMEIRO EMPREGADO E a Rosa Mariz?
SEGUNDO EMPREGADO E o Poleiro... e o Vanimel...
TERCEIRO EMPREGADO Esse não é estrangeiro: é português.
(Durante este diálogo, os empregados que não falam têm arranjado a cena)
CENA II Os Empregados, o Empresário.
EMPRESÁRIO Sono otto ore... La scena é arranjata?
PRIMEIRO EMPREGADO Oui, monsiù.
EMPRESÁRIO Domandate dunque a la Signora Duse se é prompta?
PRIMEIRO EMPREGADO Oui, monsiù.
TERCEIRO EMPREGADO Parece que a madama não está boa.
EMPRESÁRIO É malata la Signora Duse? Ma Dio! andate a vedere... Andate via e ritornate presto!
PRIMEIRO EMPREGADO Oui, monsiù. (Sai a correr. Os outros empregados afastam-se pouco a pouco e saem)
EMPRESÁRIO (só) É amalata, ma recita: questo é l’essenziale. Una bella serata!... Tutti i palchi sono venduti!... Molta gente! brava gente! Vá bene, vá benissimo! Io sono um impresario veramente felice!
CENA III O Empresário, Jogatina, Faustino.
JOGATINA (vestida como no quadro precedente) Ó meu caro! como tem passado?
EMPRESÁRIO Bene, grazie tante. Cosa vuole?
JOGATINA Este senhor é pessoa de minha amizade...
EMPRESÁRIO Buona sera, signore.
FAUSTINO ...e queria uns bilhetes para o espetáculo.
EMPRESÁRIO Per lei? Palco?... cadeira?...
FAUSTINO Cadeiras... algumas cadeiras.
JOGATINA Per il cambio...
EMPRESÁRIO Ah! Capisco!... Quante ne voule?
FAUSTINO Io non “parlate” italiano.
JOGATINA Bastam vinte e cinco ou trinta. Amanhã pela manhã ele trará o quatrini.
EMPRESÁRIO Oh! no, no! Fiato, no!
JOGATINA Eu responsabilizo-me. (Sorrindo com faceirice) É capaz de recusar a minha firma?
FAUSTINO (à parte) Boa firma!...
EMPRESÁRIO Bene! bene!... me ne vó a vedere. Aspetate un pó. (Sai, e Jogatina vai espreitar, pelo buraco do pano de boca, para a plateia)
CENA IV Os mesmos, o Trabalho.
FAUSTINO Bom; as bichas pegaram. Arranjei uns trinta ou quarenta bodes... Vou até a bilheteria... (Vai a sair e encontra o Trabalho, que tem entrado com o acendedor na mão) TRABALHO Um momento!
FAUSTINO (fora de si) Ora bolas! Isto já passa de desaforo!...
TRABALHO Toma este acendedor!
FAUSTINO Pois até gasista?! Você tem mais profissões que o Conde de Monte Cristo!
TRABALHO (imperturbável) Vai acender o gás do porão.
FAUSTINO Não me aborreças, senão queixo-me ao empresário, que ali vem...
TRABALHO Tempo virá em que te hás de arrepender...
FAUSTINO Isso já é um estribilho... Olhe, ponha-o em música, e apareça.
(O Trabalho sai)
JOGATINA Parece que há grande influência.
(O contrarregra entra e dá sinal para a orquestra; pouco depois ouve-se a ouverture)
CENA V Os mesmos, o Empresário.
EMPRESÁRIO (dando bilhetes a Faustino) Ecco! Domani matina lei me aporterá il danaro?
FAUSTINO Essa é boa! Hoje mesmo... não é preciso domani matina... hoje mesmo, antes de acabar o espetáculo.
EMPRESÁRIO Tanto meglior... Aspetteró...
JOGATINA E nós, vamos...
EMPRESÁRIO Addio... addio... Sono ocupatissimo, e stá per comminciare lo spetacolo.
(Saem Faustino e Jogatina)
CENA VI O Empresário, o Contrarregra, depois uma Atriz, um Ator e várias pessoas.
CONTRARREGRA (entrando com um castiçal e um papel na mão) Pronto?
EMPRESÁRIO Pronto!
(A Atriz entra cercada por muitas pessoas, que a cumprimentam, e dirigese para o fundo. Rumor e conversação imperceptível durante algum tempo)
CONTRARREGRA (ouvindo parar a orquestra) Fora de cena!... fora de cena!...
(Apita. A cena esvazia-se como por encanto. Só ficam a Atriz e o Ator, ao fundo, de costas para o público. Novo apito. Sobe o pano de boca e ouve-se uma grande salva de palmas)
QUADRO X A sala do Teatro São Pedro de Alcântara, vista da caixa, em noite de espetáculo e de enchente real.
CENA ÚNICA A Atriz, o Ator, depois o Empresário, Empregados e Curiosos, depois um Sujeito que quer saber para onde se mudou a Companhia Montedônio.
(Durante o diálogo que se segue e que pode ser dito de modo que os espectadores reais pouco percebam, a Atriz vai parecendo pouco e pouco incomodada, até que desmaia)
ATOR Signora duchessa, há visto il Conte?
ATRIZ Non me ne parlate. Questo uomo esercita un sinistro influsso sulla mia esistenza; è il mio cativo genio. Con tutto questo, una forza irresistible mi spinge, malgrado mio, verso di lui!
ATOR Voi l’amate.
ATRIZ E chi ne sa? Questo uomo... (Interrompendo-se) Ah! (Leva a mão ao peito. O Ator corre para ela e ampara-a. Cai o pano do fundo. A cena enche-se de pessoas que correm para a Atriz, carregam-na e levam-na para o interior. Ao mesmo tempo, os empregados tiram os acessórios de cena)
EMPRESÁRIO (entrando, fora de si) Dio! Dio! La signora Duse sempre ammalata! Il signor Rossi ammalato! La signora Aleoti è stata ammalata! Tutti sono ammalati! Di questa maniera anch’io finiró per cadere ammalato! Ma come la signora Duse, una donna così ideale, così delicata, è vittima di una indigestione! – Pazienzza! Pazienzza!... (Vai a sair e encontra o sujeito que quer saber para onde se mudou a Companhia Montedônio)
O SUJEITO (entrando) Boa noite: sabe me dizer para onde se mudou a Companhia Montedônio?
EMPRESÁRIO Lasciateme, seccatore! (Sai)
SUJEITO (só, ao público) Pois não! Dizem-me que a empresa Montedônio está na Fênix; vou à Fênix e bato com a cara na porta. O barbeiro de defronte informa-me que o Montedônio foi para o Príncipe. Corro ao Príncipe! qual Montedônio, qual nada! O barbeiro da esquina explica-me a coisa: o Montedônio foi para Niterói. Tomo a barca, atravesso a baía... Qual Montedônio nem meio Montedônio! Um barbeiro, que faz barbas a seis vinténs (Sendo em dúzia, há um abatimento), diz-me que o Montedônio viera para o Lucinda. Toca para o Lucinda: nem novas nem mandados! Estará ele no Politeama? Eu queria impingir-lhe a minha peça Os filhos da gentalha... Vou informar-me com o barbeiro da ilharga. Addio! (Sai. Mutação)
QUADRO XI O terraço do Teatro São Pedro de Alcântara em noite de espetáculo.
CENA I
Espectadores de ambos os sexos, Jogatina e Faustino, que entram no fim do coro.
CORO É monumental! Viram coisa igual? Que estopada! Que maçada! E por mangação Outra peça dão! A Duse está doente; Mas que será? Ela enferma está... ‘Sta constantemente! É monumental, etc.
FAUSTINO (entrando, acompanhado por Jogatina) Bonito! E agora?
JOGATINA Quem esperava por isso?
FAUSTINO Já é caiporismo! E ainda vem o tal Andó, muito lampeiro, dizer que, em vez do drama, se representam duas comédias em que não entra a Duse!...
JOGATINA Foste roubado...
FAUSTINO Ainda se transferissem o espetáculo e restituíssem o dinheiro das cadeiras...
JOGATINA Restituíssem! Mas se não pagaste?
FAUSTINO Pois justamente nisso é que estava o câmbio...
JOGATINA Afinal de contas, és tu que me dás lições... Que bilontra!
FAUSTINO Agora ninguém comprará o resto dos bilhetes! E eu fiquei de os pagar... Ora adeus! mais uma vítima pouco importa!...
(Vão para a balaustrada do terraço e olham para fora)
CENA II Os mesmos, Comendador, Carolina e Alexandre.
COMENDADOR Pois eu sou fanático por ela! Aquilo é que é talento! Ignoro quais sejam as opiniões políticas desta excelente Atriz, mas a verdade deve dizer-se.
CAROLINA Mas é tão feia... tão espandongada...
ALEXANDRE Não diga isso, prima Carola... eu acho-a até elegante!
CAROLINA Com aqueles braços para trás e os vestidos a lamberem o chão?
ALEXANDRE Por isso mesmo; sai fora do comum.
CAROLINA E o andar? Que desengonçada! Até já ouvi dizer que ela tem uma perna mais comprida que a outra!
COMENDADOR Ó menina! não é assim que se faz crítica dramática! (Outro tom) Vocês querem tomar alguma coisa?
CAROLINA Não, senhor; vá vossemecê tomar o que quiser, que nós ficamos tomando fresco.
COMENDADOR Então vou saborear um grogue ali junto ao Antônio José.
CAROLINA Titio está no Teatro?
COMENDADOR Não; não é de teu tio Antônio José que falo... é do Antônio José, poeta cômico, segundo diz o letreiro, mas em quem nunca ouvi falar.
ALEXANDRE Ah! É o Antônio José, de Almeida Reis.
CAROLINA Não conheço nenhum Antônio José de Almeida Reis.
COMENDADOR Nem eu. (Sai)
ALEXANDRE Que ideia! fazerem botequim no salão!
CAROLINA Nunca pensei que o Teatro ficasse tão bonito!
ALEXANDRE Escapou de pegar fogo o outro dia... Lá se iam os trezentos contos que o Banco despendeu.
CAROLINA Xi! Tanto assim?
ALEXANDRE Então? Dinheiro alheio não custa a gastar. (Vendo Faustino e Jogatina) Ó Prima... (Apontando para eles) Olhe! (A este tempo, Faustino e Jogatina têm se voltado sem ver Carolina)
CAROLINA Seu Faustino!...
ALEXANDRE Que lhe disse eu?... Veja com quem está ele!
CAROLINA Ah! (Desmaia nos braços de Alexandre. Faustino, que a vê, foge com Jogatina)
COMENDADOR (entrando) Minha filha!... Carola!... Que sucedeu?!
(Vários espectadores se aproximam)
ALEXANDRE Levemo-la daqui!
COMENDADOR Vamos tomar um carro!
(Saem levando Carolina)
UM ESPECTADOR Coitada! Foi talvez o calor!
OUTRO Ora, seu Cunha, você acredita em faniquitos de mulher?...
CENA III Espectadores, Faustino, Jogatina, que voltam.
FAUSTINO Agora é que estou arranjado de uma vez! Lá se foram as minhas esperanças!
JOGATINA Qual histórias! Por te ver comigo não é que ela te desprezará. O ciúme é o Amer Picon do amor! Contanto que o Comendador não descubra a falcatrua do baronato antes de casares com a filha!...
(Ouve-se barulho na rua. Apitos)
PRIMEIRO ESPECTADOR Que será?
SEGUNDO ESPECTADOR Correm todos para a Rua do Sacramento!
PRIMEIRO ESPECTADOR É um incêndio!
(Vê-se um grande clarão ao fundo)
FAUSTINO Um incêndio!...
JOGATINA Para o lado do Tesouro!
FAUSTINO Do Tesouro?! Aproveitemos!...
JOGATINA Espera: é na rua do Hospício.
FAUSTINO Ora!
SEGUNDO ESPECTADOR Qual! É muito mais perto!
(Barulho de bombas que passam, agitando as sinetas)
FAUSTINO (para a rua, gritando) Psiu! ó Marques! ó Marques! Onde é o fogo!
A VOZ DE UM BOMBEIRO No Montepio!
TODOS No Montepio! Corramos!
(Forte na orquestra. Música durante todo o quadro seguinte. Mutação)
QUADRO XII O incêndio do Montepio.
CENA ÚNICA Faustino, o Trabalho, bombeiros, autoridades, povo.
(Os bombeiros trabalham ativamente na extinção do incêndio. As autoridades cruzam-se em diversos sentidos. Entre os espectadores está Faustino. O Trabalho, vestido de bombeiro, apaga o fogo; mas, vendo Faustino, deixa o serviço e corre para ele)
TRABALHO Um momento!
FAUSTINO De bombeiro?
TRABALHO Toma esta manga e apaga o fogo!
FAUSTINO Apago, pois não! Toma lá! (Dá-lhe um pontapé)
TRABALHO (levando a mão à parte ofendida) É o terceiro pontapé que dás no trabalho: hás de...
FAUSTINO “Hás de te arrepender, etc... ” Não precisas dizer mais (Continua o serviço da extinção do incêndio, que cada vez aumenta mais)
ATO III
QUADRO XIII O Derby Club.
CENA I Sportmen, que passeiam de um lado para outro, conversando, apostando, etc., depois o Comendador, Carolina e Alexandre.
CORO Belo prado! Prado esplêndido! Que bem feito e bem pintado! Satisfeito se acha o público! Belo prado!... Aqui tudo nada em jubilo, Tudo aqui se acha contente, Porque ver correr bucéfalos Hoje é moda, felizmente. Perca embora algum dinheiro, Saciado fica o povo; Um divertimento novo Torna-o logo prazenteiro!
PRIMEIRO SPORTMAN Deixem lá! É o mais bonito dos prados!
SEGUNDO SPORTMAN Eu prefiro o Clube Atlético Fluminense, que também se inaugurou este ano.
PRIMEIRO SPORTMAN Pelo amor de Deus, Senhor Xavier, não confunda as coisas. Clube é clube, e prado é prado.
SEGUNDO SPORTMAN Isso sei eu; não me dá novidade.
PRIMEIRO SPORTMAN E lá quanto a corridas, antes quero as de animais. Isto de burrinhos sem cauda não é comigo.
COMENDADOR (entrando com Alexandre e Carolina) Está um sol de rachar!
ALEXANDRE Quanto mais se meu tio fosse ao Hipódromo Guanabara!
COMENDADOR Vamos para as arquibancadas.
CAROLINA Ainda é cedo, papai; deixe a gente ver isto cá em baixo.
COMENDADOR Então esperem um pouco... Vou comprar uma pule... Eu sou liberal da velha guarda, mas confesso que de vez em quando gosto de arriscar meus dez mil réis na pata de um cavalo... De resto, o esporte nada tem com as opiniões políticas do cidadão.
ALEXANDRE Oh! Certamente!
COMENDADOR E depois, o melhoramento da raça cavalar... resultante do cruzamento dos burros franceses e ingleses com os burros brasileiros, que não são poucos, deve merecer a atenção dos patriotas como eu, quanto mais não seja – por espírito de classe. – Qual é o teu palpite, Alexandre?
ALEXANDRE Por força de cavalo, ganha a Regalia.
CAROLINA Qual o quê!... quem ganha é a Safira, que é montada pelo Lourenço...
COMENDADOR Pois está dito! Vou comprar uma pule da Safira. (Sai)
CAROLINA Estou muito triste, primo Xandico! Seu Faustino não me sai da cabeça... Mas você conhece aquela moça? Quem é? Que posição tem?
ALEXANDRE Tem uma posição... horizontal.
CAROLINA Horizontal o que é?
ALEXANDRE Costureira... cose para o arsenal...
CAROLINA Oh! E sustenta aquele luxo todo?!
ALEXANDRE Ora! Ela até sustenta... que é uma senhora respeitável! – Mas mudemos de conversa...
CAROLINA Para falar de quê?
ALEXANDRE Do meu amor!
CAROLINA Pois até aqui?
ALEXANDRE Aqui, como em toda a parte. Olhe, estou pronto para o casório; só me falta o seu consentimento e uns cobres para o enxoval...
CAROLINA Esse pouco!
ALEXANDRE Tenho um bom emprego, e os patrões já me prometeram interesse na casa. Esqueça de vez aquele patife, que é indigno de você.
CAROLINA (meio resolvida) Pois sim; espere mais alguns dias... Hei de fazer a diligência para me curar, e então...
ALEXANDRE (contente) Ah!...
COMENDADOR (voltando) Cá estou armado com a pule. Vamos para cima.
CAROLINA e ALEXANDRE Vamos.
(Saem)
CENA II Jogatina, Faustino, Sportmen, depois oTrabalho.
(Durante o diálogo precedente, muitos Sportmen tem saído de cena, e voltam agora, precedendo a Jogatina, que entra elegantemente vestida de jóquei. Faustino acompanha-a)
CORO O jóquei novo ei-lo aqui está! Jóquei tão belo assim não há! Nenhum de certo o ganhará! Vinte quilos não pesará!
(Rondó)
JOGATINA Mim ‘star um jóquei superfine, Que aqui vem faz muite furor! Mim ganha vem libre esterline, Pois fica sempre vencedor! Lá no Ingliterre estar famose, E muite money mim ganhar; Non hever jóquei mais ditose... Mim dá bastante que falar. Ouve dizer que brasileira Patotas mil gosta de faz: Mim não se presta a bandalheira, Porque ‘star muite bom rapaz.
CORO É bom rapaz! É bom rapaz!
JOGATINA Senhores, mim não gosta de conversa com pova... Patrão desconfia que mim quer faz patota...
(Os sportmen afastam-se)
FAUSTINO (confidencialmente) Mas, afinal, que queres tu que eu faça?
JOGATINA Aposta na Regalia, que é a égua que eu vou montar.
(O Trabalho entra, disfarçado em criado, trazendo um balde e uma escova na mão. Vendo os dois, para e ouve)
FAUSTINO Mas olha o que fazes... Restam-me apenas uns magros cobres...
JOGATINA Não tenhas medo: com o poder misterioso de que disponho, faço a égua ganhar pela certa.
FAUSTINO Então jogo?
JOGATINA Tudo. E se achares apostas por fora, sem casar o cobre, pega em todas. Vem comprar as pules.
FAUSTINO Vamos lá
(Saem)
TRABALHO Eu vinha oferecer-lhe esta escova, embora com risco de apanhar o quarto pontapé; mas, pelo que ouvi, vou, mas é tratar de dar-lhe os contras. Oh! Eu também disponho de um poder misterioso! (Sai. O proscênio ainda está desembaraçado)
CENA III Primeiro Proprietário, depois Outros Proprietários.
PRIMEIRO PROPRIETÁRIO (entrando, montado num cavalinho de pau) Hop lá! Hop cá! Cá está ela! Acaba de chegar da Europa com escala pelo Rio Grande! Há de passar por meio sangue nacional! Os documentos estão perfeitamente em regra: filha de Lúcifer e Bonita, tal qual o legítimo vinho do Porto, fabricado na Rua do Passeio. (Fazendo festas à cabeça do cavalinho) Vamos, negra; vamos para o ensilhamento! (Dirige-se para o lado do ensilhamento, donde saem vários proprietários, montados em cavalinhos idênticos, os quais fazem uma evolução em roda do Primeiro Proprietário)
CORO Caro amigo, não se zangue Com o que lhe vamos dizer: Esta besta é puro sangue; Aqui não pode correr. Bem conhecemos a égua; Não nos ilude o animal; À distância de uma légua Mostra não ser nacional.
PRIMEIRO PROPRIETÁRIO Perdão, meus senhores: tenho todos os documentos! A égua é meiosangue. Há de correr!
SEGUNDO PROPRIETÁRIO Qual meio-sangue nem meio-sangue! Protestamos!
TERCEIRO PROPRIETÁRIO É um abuso! Não temos cavalos para vir um animal visivelmente estrangeiro bifar-nos os prêmios! Se ele falasse, haviam de ver que tinha sotaque!
PRIMEIRO PROPRIETÁRIO Pois se é visivelmente estrangeiro, é provavelmente nacional!
SEGUNDO PROPRIETÁRIO É a história da Savana e outros.
PRIMEIRO PROPRIETÁRIO E o Aimoré?
SEGUNDO PROPRIETÁRIO Pois confesso: o Aimoré não é punga!
PRIMEIRO PROPRIETÁRIO Mas tem-no feito passar por tal. Há de restituir todos os prêmios que tem ganho!...
SEGUNDO PROPRIETÁRIO Ora tire o cavalo da chuva! Eu hei de restituir bem sei o quê!
PRIMEIRO PROPRIETÁRIO Então cale-se e deixe correr o marfim... quero dizer: a égua!
TODOS Não há de correr!
PRIMEIRO PROPRIETÁRIO Há de!
TODOS Não há de!
PRIMEIRO PROPRIETÁRIO Se não correr aqui, corre no Jóquei Clube.
SEGUNDO PROPRIETÁRIO E nós fazemos greve!
TERCEIRO PROPRIETÁRIO Apoiado! Não corremos lá... isto é, os nossos animais não correm.
PRIMEIRO PROPRIETÁRIO Pois veremos quem vence!
TODOS Veremos!
(Saem, repetindo o coro)
CENA IV Faustino, Sportmen, depois Bargossi e Madame Bargossi.
FAUSTINO Magnífico! Fui comprar três pules da Regalia, e o vencedor deu-me quatro! Tudo é lucro! Que bom! (Vendo um sportman) Olé! Lá está o Tavares! Que bilontra! Vou ver se lhe filo vinte mil réis emprestados! Ó Tavares! Tavares! (Dirige-se para o grupo)
TAVARES (que o vê) Xi! O Faustino!... que bilontra!... (Sai apressado, perseguido por Faustino)
PRIMEIRO SPORTMAN Olhem, lá vêm eles!
SEGUNDO SPORTMAN Quem?
PRIMEIRO SPORTMAN O Bargossi e a mulher.
TODOS São... são eles mesmos.
(Entram a correr Bargossi e MadameBargossi)
COPLA EM DUETO E CORO
BARGOSSI Eis o famoso Bargossi...
MADAME BARGOSSI E a sua cara-metade.
AMBOS Vêm ambos nesta cidade Aplausos mil conquistar.
BARGOSSI Ando três léguas por hora!
MADAME BARGOSSI Sou mesmo uma roda-viva!
AMBOS A melhor locomotiva Não nos consegue apanhar!
MADAME BARGOSSI Corro mais do que o dinheiro, Que corre no mundo inteiro!
BARGOSSI Corro mais que as loterias, Que correm todos os dias!
MADAME BARGOSSI Mulher locomotiva: o mundo assim me chama!
BARGOSSI E a mim deve chamar – o homem telegrama!
AMBOS Eis o famoso Bargossi E a sua cara-metade...
TODOS (imitando-os a correr) Vêm ambos nesta cidade Aplausos mil conquistar. Andam três léguas por hora, São mesmo uma roda-viva; A melhor locomotiva Os são consegue apanhar!
(No fim do canto, os andarilhos desaparecem, aplaudidos pela multidão)
CENA V Povo, Faustino, Alexandre, depois Jogatina e Trabalho, montados.
PRIMEIRO SPORTMAN Lá vêm os animais!
SEGUNDO SPORTMAN Deus queira que o jóquei novo não nos faça alguma! Eu estou na Regalia até aqui!
PRIMEIRO SPORTMAN E eu atolei-me todo!
JOGATINA (a travessando a cena, montada numa égua, a Faustino) Compraste?
FAUSTINO Olerepes!
JOGATINA E apostas?
FAUSTINO Apostei cem por vinte!
JOGATINA Bom!
PRIMEIRO SPORTMAN Nada de conversinhas! Siga!
SEGUNDO SPORTMAN Que é dos outros animais?
JOGATINA Estar no raia. (Desaparece)
TRABALHO (entrando, montado num cavalo, que traz um emplasto num dos olhos) Menos Fanfarron, que ainda aqui vai.
FAUSTINO Ele!... Está tudo perdido!...
POVO (apupando o Fanfarron) Olha o caolho! Fiô! Fiô! Fora! Ah! Ah! Ah!...
TRABALHO (durante a vaia, afagando o cavalo) Vamos, meu velho; deixa-os falar. (Sai)
PRIMEIRO SPORTMAN Deixem lá, que, se ele ganhar, que bolada! Só tem seis pules!
ALEXANDRE Uma delas é minha.
SEGUNDO SPORTMAN Joga-se nele na bagagem!
PRIMEIRO SPORTMAN Vão dar a saída. (Movimento de povo) Saíram!
SEGUNDO SPORTMAN Que bela saída!
PRIMEIRO SPORTMAN Que dizia eu? Fanfarron na bagagem!
(Alvaroto entre o povo)
SEGUNDO SPORTMAN Regalia já deu tudo!
ALEXANDRE (não cabendo em si e gaguejando)
É... é... o... Fanfarron! Ganhei!... (Dá um salto e desata a correr para o lado da pule. A banda de música toca ao longe até o final do quadro)
VOZES (fora) Viva o Fanfarron!
PRIMEIRO SPORTMAN Que pule!
SEGUNDO SPORTMAN Para mais de dois contos de réis!
FAUSTINO (entrando, desorientado) Lá se foi tudo!
(Passam montados o Trabalho e depois Jogatina)
TRABALHO (passando) Vou pesar-me. Ficarei sendo um trabalho pesado... (Desaparece)
FAUSTINO (a Jogatina) Tu és a minha perdição!
JOGATINA Que queres? O maldito tinha asas nas patas! Tiraremos a desforra! (Desaparece)
FAUSTINO Ponho-me ao fresco, antes que o homem dos cem por vinte me encontre! E ainda dei lambuzem! Fui um asno!
ALEXANDRE (voltando) Dois contos trezentos e oitenta e três mil e quinhentos!... (Guarda o dinheiro)
CENA VI Os mesmos, Comendador, Carolina, um Apostador.
COMENDADOR (entrando com Carolina) Foste feliz, Alexandre... Dou-te os parabéns... Hás de me restituir os dez mil réis que perdi na Safira.
ALEXANDRE Com todo gosto, meu tio.
UM APOSTADOR (indo a Faustino, que está no fundo) Os cem mil réis?
FAUSTINO Que cem mil réis?
APOSTADOR Os cem mil réis que perdeu!
VOZES Pague! Pague! Perdeu! Perdeu!
(Discussão muito animada, degenerando em rolo. O Comendador sobe)
CAROLINA Ele?! Encheu-se o pote! – Primo Xandico, a pule do Fanfarron chega para o seu enxoval?
ALEXANDRE Chega e sobra.
CAROLINA Pois pode pedir-me a papai! (Sobe para junto do pai)
ALEXANDRE (transportado) Viva o Fanfarron!
(Continua a discussão ao fundo. Mutação)
QUADRO XIV Salão de fantasia.
CENA I Brasil, depois Folha Nova.
BRASIL (entrando) Aí vem ela, a minha adorada Folha Nova! Ainda bem que poderei vê-la uma vez ao menos antes de morrer. Corre, corre a meus braços, querida Folha Nova!
FOLHA NOVA (entrando e lançando-se nos braços do Brasil) Ó meu querido Brasil!
BRASIL Como somos infelizes! Amamo-nos como nunca duas folhas públicas se amaram... Tudo nos aproximará um do outro; entretanto...
FOLHA NOVA Entretanto, feridos de morte por esta terrível moléstia causada pelo desfavor público, temos ambos o pé na sepultura. BRASIL Mas não! morrer de pindaíba será uma vergonha!
FOLHA NOVA Ora se...
BRASIL Essa medonha enfermidade não nos matará!
FOLHA NOVA Como evita-lo?
BRASIL Suicidando-nos.
FOLHA NOVA O suicídio?...
BRASIL O suicídio, sim! Unir-nos-emos no seio da morte, já que no seio da vida não nos foi dado fazê-lo.
FOLHA NOVA Dizes bem, morramos; mas de que meio lançaremos mão?
BRASIL Com certeza não será do meio circulante.
FOLHA NOVA E muito menos de um meio de vida.
BRASIL (tirando uns jornais) Vês isto?
FOLHA NOVA Que vem a ser?
BRASIL Leiamos os nossos artigos de fundo. Não há suicídio menos doloroso.
FOLHA NOVA Lembras bem; sirvamo-nos da prata da casa.
BRASIL Pobre Folha Nova! quem diria que chegavas a ser uma folha velha!
FOLHA NOVA Pobre Brasil! quem diria que não chegarias a fazer a tua independência!
BRASIL Morir si pura e bella!...
FOLHA NOVA Assim é preciso.
BRASIL Adeus, retórica política!
FOLHA NOVA Adeus, violino!
BRASIL Adeus, mundo elegante!
FOLHA NOVA Adieu, choses du jour!
BRASIL (com resolução) Sentemo-nos!
FOLHA NOVA Onde? Não há cadeiras...
BRASIL No chão... assim.. (Sentam-se ambos) Toma lá um artigo de fundo meu... lerei um teu...
FOLHA NOVA Leiamos.
(Música em surdina na orquestra. Começam ambos a ler os artigos, de modo que os espectadores não percebem o que eles dizem. A voz vai-se-lhes a pouco e pouco enfraquecendo)
BRASIL (interrompendo a leitura) Já?
FOLHA NOVA Ora se... E tu?
BRASIL É agora...
(Continuam a ler. Caem ao lado um do outro, resmungando sempre, até que se lhes extingue a voz. Soltam os jornais das mãos, deixam prender os braços e expiram)
CENA II Os mesmos, a Semana.
RONDÓ
SEMANA (entrando a correr) Eu sou a Semana menina garbosa, Que, apenas nascida, já dá que falar! Não há quem me vença no verso ou na prosa! Vitórias brilhantes pretendo ganhar! Conquanto na corte jornais literários Sem mil sacrifícios não possam vingar, Eu zombo da fúria dos ventos contrários, Alegre e contente, vivendo a cantar! Sonetos, romances, charadas, artigos, De tudo e por tudo vos posso ofertar! Se acaso me lerdes, sereis meus amigos, Não tendo o costume de ler sem pagar. Eu sou a semana, menina garbosa, etc.
É como digo!... Agora... agora uma coisa... Aqui para nós que ninguém nos ouve: na opinião de vossas excelências, qual é o primeiro poeta brasileiro?... Não respondem?... Não querem responder?...
UMA VOZ NA PLATEIA Gonçalves Dias!
SEMANA Gonçalves Dias? Nego! Nego e ponho a votos! Os senhores que entendem que Gonçalves Dias é o primeiro poeta brasileiro, queiram ficar sentados (muito admirada) Passou! – Pois olhem, com franqueza: na minha humilde opinião, o primeiro poeta brasileiro é outro... (Vendo os dois cadáveres) Que é isto? Que vejo? A Folha Nova e o Brasil!... Estarão dormindo? Vou acordar eles... Eu dizia – acordálos; mas depois que o astro Lopes sustentou ex-cathedra que a gente deve dizer – acordar eles, não me exprimo de outro modo... (Aproxima-se dos cadáveres) Então? que é isso?... São horas de dormir?... Acordem! (Assustada) Meu Deus! esta rigidez! este palor! esta frialdade; Não lhes bate o coração! Mortos! mortos!... E esta? Corramos a chamar alguém!... Mas, antes disso, cubramo-los, para poupar aos nossos próprios olhos tão lúgubre espetáculo! (Vai buscar um manto no bastidor, e cobre os dois cadáveres. depois vai a sair e encontra-se com m Diário Português, que entra muito doente)
CENA III A Semana, o Diário Português.
SEMANA Ah! é você, seu Diário Português! Não sabe o que me sucede!
DIÁRIO PORTUGUÊS O que foi? (Tosse muito)
SEMANA Ó Senhor! que tosse!...
DIÁRIO PORTUGUÊS Ah! isto está por um fio! estou já cheirando a defunto!
SEMANA É justamente de mortos que se trata. Vim encontrar aqui dois cadáveres.
DIÁRIO PORTUGUÊS (assustado) Cadáveres? Esconda-me!
SEMANA Sossegue, não se trata de cadáveres vivos!
DIÁRIO PORTUGUÊS Pois são esses os que me matam. mas quem foi então que morreu?
SEMANA O Brasil e a Folha Nova.
DIÁRIO PORTUGUÊS Não é possível!... Qualquer deles gozava de mais saúde do que eu.
SEMANA Tanto é possível, que ali estão debaixo daquele manto.
DIÁRIO PORTUGUÊS Ora essa! deixe-me vê-los, coitados! (Descobre o manto, e sai debaixo dele, muito lépido e jovial, o Diário de Notícias)
CENA IV Os mesmos, o Diário de Notícia.
SEMANA e DIÁRIO PORTUGUÊS Oh!...
SEMANA Um jornal novo!
DIÁRIO PORTUGUÊS Um novo colega!
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Sim, um jornal novo, nascido de dois cadáveres: o Diário de Notícias!
TERCETO
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Viva o prazer! viva a alegria! Seja este júbilo geral! Mais um diário se inicia! Surge a sorrir mais um jornal! Ditoso e contente Espero viver! Imediatamente Medrar a crescer! Do povo as carícias Pretendo gozar! Venha o Diário de Notícias! Toda gente há de bradar!
OS TRÊS Viva o prazer! viva a alegria! etc.
DIÁRIO PORTUGUÊS É bonito!
SEMANA E não diz: Ai, mana!
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Mas, afinal, quem são vocês?
SEMANA Colega, eu chamo-me Semana.
DIÁRIO PORTUGUÊS Eu sou o Diário Português.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Eu folgo muito em conhecê-los, E estimo vê-los! São hiperbólicos meus planos! Se obtendo o público favor, Hei de fazer, em poucos anos, Casa na Rua do Ouvidor!
SEMANA e DIÁRIO PORTUGUÊS Que maganão! Como está todo o pimpão!
OS TRÊS Viva o prazer! viva a alegria! etc.
SEMANA Diga-me, colega: qual é o seu maior programa?
DIÁRIO DE NOTÍCIAS É não ter nenhum.
DIÁRIO PORTUGUÊS E a sua política?
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Sou conservador.
SEMANA Conservador?
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Às terças-feiras... às quintas-feiras sou liberal...
DIÁRIO PORTUGUÊS Liberal?
DIÁRIO DE NOTÍCIAS E aos sábados republicano.
SEMANA Quer dizer isto que tem três políticas?
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Pelo contrário: quer dizer isto que não tenho nenhuma. Sou pura e simplesmente um jornal noticioso, como indica o meu título.
DIÁRIO PORTUGUÊS (com uma afrontação súbita) Ai! ai! ai!
OS DOIS Que é?
DIÁRIO PORTUGUÊS Sinto... uma falta...
DIÁRIO DE NOTÍCIAS De ar?
DIÁRIO PORTUGUÊS Não: de assinantes...
SEMANA Falta de assinantes! Ó diabo! Querem ver que este vai também morrer aqui!
DIÁRIO PORTUGUÊS Chamem... chamem...
SEMANA Um médico?
DIÁRIO PORTUGUÊS Não: novos assinantes...
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Está delirando.
DIÁRIO PORTUGUÊS Eu mor... eu morro... (Expira. O Diário de Notícias e a Semana contemplam-no, e, passado um instante, olham um para o outro sem dizer palavra)
DIÁRIO DE NOTÍCIAS E agora?
SEMANA Agora é pôr-lhe o manto por cima, a ver se lhe acontece o mesmo que aos teus infelizes progenitores. (Cobre o cadáver com o manto)
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Que estás a fazer?
SEMANA Cala-te, eu cá me entendo. Deixemos passar alguns instantes a ver se se opera a transformação.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS (sem compreender) Que transformação?
SEMANA Já deve ser tempo. (Levanta o manto. O cadáver tem desaparecido) Nada! nada mais resta do Diário Português!
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Mas que meio cômodo e econômico de enterrar os mortos!
SEMANA Coitado! era um bom rapaz!
DIÁRIO DE NOTÍCIAS E uma coisa boa tinha ele... lá isso tinha...
SEMANA Qual?
DIÁRIO DE NOTÍCIAS O título. Seria preferível que tivesse títulos. – Mas, mudando de assunto: a menina faz-me obséquio? Apresenta-me aos nossos colegas?
SEMANA Pois sim, mas há de ser quanto antes, porque estou ocupadíssima.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Em quê?
SEMANA Promovendo uma grande manifestação em honra à memória de Vitor Hugo.
CENA V Diário de Notícias, Semana, Reuve Financière, Commerciale et Maritime.
REUVE Pardon, mas é a mim que compete fazer essa manifestation.
SEMANA Ora essa! Por quê?
REUVE Parce que. Jje suis française. je suis la Revue Financière, Comerciale et Maritime, voilá.
SEMANA Ora essa razão é de cabo-de-esquerda.
REUVE Comment?
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Elle dit que c´est une raison de caporal.
REUVE Eu não pode consentir que, estando eu aqui, uma folha nacional me tome a dianteira.
SEMANA Minha cara senhora, Vitor Hugo pertencia a todas as pátrias.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Apoiado!
REUVE Está enganado: ele... (Com dores súbitas) Ai! ai! ai!
SEMANA Que?! Vai manto?
REUVE Oh! faites appeler une sage-femme... um médico parteiro... Quelq´un! (Sai, correndo)
SEMANA Socorramo-la... (Sai, levando o manto)
CENA VI Diário de Notícias, depois o Professor, acompanhado de alguns Carregadores, depois os Bichos, depois a Semana.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS (só) Quem será aquele sujeito que ali vem tão acompanhado?
PROFESSOR (entrando e falando para fora) Esperem aí. (Aproximando-se) Meu caro senhor, vossa senhoria faz parte da imprensa diária?
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Sim, senhor; mas acabo de nascer e ainda não tomei pé. Que pretende?
PROFESSOR Venho mostrar à imprensa o meu incomensurável Dicionário Geográfico Brasileiro, e pedir-lhe que anime as subscrições que se abrigam em todos os pontos do Império, para auxiliar a publicação desta importantíssima obra, preconizada já pela Sociedade de Geografia.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Ah! nós temos uma Sociedade de Geografia? Que condições são necessárias para ser sócio?
PROFESSOR Algumas... a essencial é não saber geografia.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Bom; faça o favor de entrar, e dirigir-se lá dentro aos meus colegas mais velhos.
PROFESSOR Às suas ordens. (Para fora) Vamos! acompanhem-me! (Sai. Ao mesmo tempo entram pelo lado oposto alguns carregadores, que atravessam a cena, levando nos ombros grande resma de manuscritos)
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Quê! Tudo isto?! Santo breve de marca!... (Só. Olhando para fora) Xi! que bicharia!... (Entram os animais, com grandes reverências) Vivam! que desejam vossas excelências?
MACACO Como vê, somos uma comissão de animais... Eu, como mais inteligente, fui escolhido para orador.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Seria mais acertado escolher o papagaio. Que desejam?
MACACO Manifestar, publicamente, por meio da imprensa, o júbilo de que nos achamos possuídos pela fundação da Sociedade Protetora dos Animais. Vou ter a honra de apresentar estes senhores... o Senhor Burro de Carga e sua esposa, a Excelentíssima Senhora Dona Religiosa Besta... o Senhor Cachorro sem Dono... o Senhor Gato Escaldado, o Senhor Bode Expiatório... o Senhor...
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Isso não é comigo, que acabo apenas de nascer. (Aponta para a Semana, que entra) Dirijam-se a esta menina.
SEMANA Quê! É comissão? Dirijam-se à imprensa diária. (Encaminhando-os) Por ali...
MACACO Muito obrigado, minha senhora.
(Reverência dos animais, que saem)
CENA VII Semana, Diário de Notícias, depois um Homem Sem Cabeça.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Então, como vai a francesa?
SEMANA Morreu na ocasião de dar à luz L´Étoile du Sud. Tem havido este ano um aluvião de jornais franceses: L´Étoile du Sud, Le Sud Américain, La France e L´Avenir du Brèsil.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS E nacionais?
SEMANA Temos o Constituinte, que morreu por ter uma constituição muito fraca; e a Vanguarda (Benzendo-se), que tem o cheiro de santidade. (Atravessa o fundo um homem sem cabeça)
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Que é aquilo? Um homem sem cabeça!
SEMANA É o Diário do Brasil, que anda acéfalo. (De repente aparece uma cabeça no corpo do passante) Bravo! criou cabeça, mas... se não me engano, é cabeça conservadora!! Ora esta!
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Bem; agora, que estás desembaraçada, anda apresentar-me aos colegas. Tarda-me conhecê-los.
SEMANA Vamos!
(Saem)
CENA VIII Jogatina e Faustino.
JOGATINA Entra desassombradamente. Isto aqui é público.
FAUSTINO Então este é que é o empório da imprensa fluminense?
JOGATINA Tu o disseste.
FAUSTINO Bem; mas na imprensa não se joga... Que diabo queres tu que eu faça aqui?
JOGATINA Quem foi que te disse que na imprensa não se joga? Antes de mais nada, é bom que saibas que há imprensa e imprensa. A primeira não se fez para bilontras; a segunda, sim.
FAUSTINO Mas eu nunca escrevi.
JOGATINA Razão demais para seres jornalista. Fundas uma folha pornográfica, e franqueias as respectivas colunas a todos os ódios, a todas as paixões da arraia miúda. Quero dizer que o próprio público se encarregará de fornecer o material literário e de pagar ainda por cima. E, nesse caso, paga tanto o ofensor como o ofendido, pois tu não seria tão néscio, que não explores ao mesmo tempo o rancor de um e o terror de outro.
FAUSTINO Pois sim; mas se me acontecer o mesmo que ao outro na Rua do Lavradio; ou se eu, pelo menos, apanhar uma tunda de pau?
JOGATINA Pois é aí que está o jogo. Que diabo! é preciso que arrisques alguma coisa... a pele, pelo menos!
FAUSTINO “Pelo menos” tem graça.
JOGATINA Então? Resolves-te?
FAUSTINO Francamente, Princesa: a senhora tem me metido em cada uma!
JOGATINA Queixas-te de mim?
FAUSTINO Não, não me hei de queixar! Recapitulemos, minha senhora, recapitulemos! A Ociosidade, que é muito boa pessoa e se mostrou empenhada em servir-me, levou-me à sua pessoa e a senhora prometeu proteger-me. Quis jogar na loteria. Não! isto não vale nada. Antes as cartas! – As cartas puseram-me na dependura. Desci ao víspora: fui perseguido e multado. Instigado pela senhora, roubei três contos de réis por meio de documento falso. Esse dinheiro maldito não me aproveitou... perdi até o último vintém na roleta. recorri ao câmbio à porta do teatro: nada fiz, senão pregar um escandaloso calote. O resultado das corridas foi aquele que se viu! A estas horas o Barão já descobriu que é tão Barão quanto eu, e Dona Carola não quer ouvir falar de mim. E ainda a senhora me vem propor a fundação de um periódico dessa natureza! Ora, boa noite!
JOGATINA És mais tolo do que eu supunha! pois não vês que uma folha pornográfica é o meio mais seguro de te fazeres valer?
FAUSTINO Como assim?
JOGATINA O Barão tem calcanhares de Aquiles por todo o corpo: está assim... de calcanhares de Aquiles. Se ele te mostrar má cara, bumba! primeiro artigo! Continua? Zás! segundo artigo! E o bom do homem não terá remédio senão chegar às boas. Que queres tu, afinal de cantas? O dote da rapariga, não é? Pois fazes o que eu digo, e dou uma perna ao diabo, se não te saíres bem!
FAUSTINO És um demônio!
JOGATINA Agora é que sabes? Um demônio, sim! um demônio, e dos mais temíveis!
COPLAS
I Tu, na verdade, és um pateta, És tal e qual um Mané Zé; Qualquer criança analfabeta Te poderá passar o pá! Bofe! por Lúcifer! ao cabo De tanto tempo ao lado meu, Que eu seja um pândego diabo Ignora ainda este sandeu! Massa encefálica não tens... Eu não te dou meus parabéns... Mas, enfim, como és muito bom rapaz, Por hoje só, o meu perdão terás. Pif! paf! meu toleirão, Demônio sou, não há questão, Nem demônio há tão Trapalhão, Tão Parlapatão!
II Meu pai, o Jogo, esse demônio Nasceu do próprio Satanás; E o mundo tem por patrimônio, E nunca deixa o mundo em paz.
Não é maior Mefistófeles... FAUSTINO Mefistófeles, dizes tu?
JOGATINA Nem Asmodeu, nem nenhum deles, Entrando em conta Belzebu.
FAUSTINO Mefistófeles, diz você, Mas Mefostófeles é que é. (Declamando) Deixa estar, que hei de consultar o astro Lopes.
JOGATINA Pif! paf! etc.
CENA IX Os mesmos, Gambá, um Anjo, vestido de verde e amarelo, Ilustríssima.
GAMBÁ Meus senhores, bom dia. (Ao Anjo) Fala, meu anjo.
ANJO (em tom de quem mendiga) Uma esmolinha para a festa da Independência!...
JOGATINA Que quer isto dizer?
GAMBÁ Senhor eu sou membro da Sociedade Comemorativa Sete de Setembro... quero dizer: eu sou a Sociedade... esta menina representa o gênio do Brasil. Andamos a angariar donativos para a festa que costumamos celebrar no Rossio... O morro de Santo Antônio já está capinado...
FAUSTINO Ah, meu amigo! veio bater a má porta.
JOGATINA Olhe, vá entrando; encontrará lá dentro a quem dirigir-se.
GAMBÁ Com efeito! já não há patriotismo! – Vamos, meu anjo! (Sai com o Anjo. Pouco depois ouve-se a voz deste, pedindo esmola)
FAUSTINO (pensativo) Os gênios acabam sempre por pedir esmola!
ILUSTRÍSSIMA (entrando) Com licença!
CENA X Faustino, Jogatina, a Ilustríssima, depois o Trabalho.
JOGATINA Quem será esta castanha pilada?
ILUSTRÍSSIMA (a Faustino) Vá dizer ao Diário de Notícias que está aqui a Ilustríssima, que lhe deseja falar.
FAUSTINO Vá você, que não sou seu criado!
ILUSTRÍSSIMA Está bem, está bem; não disse para ofendê-lo. (A Jogatina) Como desejo este ano celebrar este ano o Sete de Setembro de um modo digno de tão gloriosa data, distribuindo algumas cartas de liberdade, já que se acham aqui registradas... (Mostra um livro de ouro que tem na mão)
FAUSTINO Um livro de ouro! Se eu o apanhasse...
ILUSTRÍSSIMA (continuando) ...vinha pedir ao Diário de Notícias que se associasse a esta manifestação, dando um número especial.
JOGATINA Mas por que não se dirige ao Diário Oficial, que agora se diz órgão do governo?
ILUSTRÍSSIMA Por isso mesmo. Estou de candeias às avessas com o tal governo, que deu em andar se metendo co a minha vida.
JOGATINA Percebo; a Ilustríssima quer fazer das suas a vontade. – Pois olhe, se quer falar ao Diário de Notícias, vá por ali, que o encontrará lá dentro. (A Ilustríssima vai saindo) Mas ouça cá: tenho que lhe dizer alguma coisa em particular.
ILUSTRÍSSIMA Estou às suas ordens.
(Saem ambas a conversar pela direita. Entra o trabalho pela esquerda, disfarçado em tipógrafo e deita a mão ao ombro de Faustino)
TRABALHO Um momento.
FAUSTINO Já cá tardava.
TRABALHO Aqui tens este componedor. Uma vez que aquele demônio já te encasquetou na cabeça que deves entrar para a imprensa, vai aprender a nobre arte tipográfica.
FAUSTINO Tu fazes-me um favor? Não me apoquentes... (Desce)
TRABALHO Desgraçado! quando compreenderás tu que só o Trabalho pode dar a honra, a glória, a riqueza?
FAUSTINO Isso não é teu: é do defunto Castilho.
TRABALHO Queres um exemplo? Olha! (Aponta para o fundo, que se abre, deixando ver o grupo Cristo e a adúltera. (Música em surdina na orquestra) Vê!
FAUSTINO Que é aquilo?
TRABALHO É o resultado do estudo do trabalho! É uma das mais grandiosas composições brasileiras! É o primoroso grupo O Cristo e a adúltera, de Rodolfo Bernardelli, a quem a velha Europa rendeu homenagem e o nosso governo acaba de galardoar!
(O pano desce, cessa a música)
FAUSTINO Pode ser que tenhas razão... mas para estatutário, palavra! falta-me queda.
TRABALHO Eu sei que só tens queda para o vício. O teu fim será funesto: quem foge do trabalho foge da honra! (Sai apressado, porque Faustino quer dar-lhe um pontapé)
FAUSTINO Ainda mato este diabo!
JOGATINA (voltando e falando para dentro) Pois faça o que lhe digo, e verá que não se arrepende.
CENA XI Faustino, Jogatina, depois um Esqueleto Humano.
FAUSTINO Que ideia deste tu à Ilustríssima?
JOGATINA Aconselhei-a a estabelecer barraquinhas no Campo de Santana, com sortes, cavalinhos, caminhos de ferro, etc., para divertimento do povo.
FAUSTINO Estás nas tuas sete quintas! E ela aceitou?
JOGATINA Ora, ora! Chegou o momento de tirares o pé do lodo. Desisto da ideia da folha pornográfica. Vais abrir uma barraquinha!
FAUSTINO Achas? (Vendo a fundo o Esqueleto, que tem entrado com uma quilha de navio na mão, foge para o regulador da direita) Ui!
JOGATINA (fugindo para o regulador da esquerda) Ai!
AMBOS Um esqueleto humano!
ESQUELETO (sentando-se na quilha, depois de haver deposto no chão, e recitando ao som da orquestra)
Eu vou contar-vos imediatamente O que o intendente da polícia fez
Num ano cheio de acontecimentos: Mil setecentos e noventa e três.
Naquele tempo o Vidigal famoso, Mais rancoroso do que um bicho mau, Tinha jurado aos deuses seus prender-me, Para meter-me na polícia o pau!
Eu preso fui e, na enxovia imunda, Bárbara tunda sem tardar sofri; À vista, pois, de tanta bordoada, Não tendo nada que fazer, – morri.
Certo jornal que nesse tempo havia Descobre um dia meu martírio atroz, E o vice-rei, sujeito de sabença, Ouviu da imprensa a autorizada voz.
Mas da polícia certificava o médico, Enciclopédico cirurgião, Que eu, que a pauladas tinha sucumbido, Tinha morrido de uma congestão.
O Vidigal, rafeiro diligente, Incontinenti manda me exumar, E o meu cadáver, desassossegado, Foi transportado para outro lugar.
Falou-se disso no Brasil inteiro, E no estrangeiro se falou também; Quando julgaram ter do crime a prova, Na minha cova não se achou ninguém.
Depois de um século esta pobre ossada Foi encontrada numa escavação: Contar a imprensa eu venho esta chalaça; Proveito faça-lhe a revelação.
Quanto a esta quilha de uma caravela, Ao lado dela colocado fui... Por que razão? Gracejo foi? Foi sério?... Eis o mistério que ninguém possui. (Sai)
CENA XII Faustino, Jogatina, depois o Diário de Notícias e a Ilustríssima, depois um Moço de Recados. FAUSTINO Não me dirás por que aquela caixa de ossos fez a sua longa narração em recitativo?
JOGATINA Não sei; naturalmente porque os recitativos estavam já em moda no século passado.
FAUSTINO E dizer que ainda hoje se ouve o Amor e Medo nos chás de família!
DIÁRIO DE NOTÍCIAS (entrando com a Ilustríssima) Eis-me aqui, especialmente arranjado para festejar o Sete de Setembro! (Traz casaca amarela, colete verde e calças com uma perna verde e outra amarela)
ILUSTRÍSSIMA Estás muito bem, acredita.
JOGATINA Um papagaio.
UM MOÇO DE RECADOS (entrando) Vamos senhoria é que é o Diário de Notícias?
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Sim, senhor; que pretende?
MOÇO Aqui tem esta carta.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS (depois de abrir) É uma fábula de La Fontaine.
MOÇO Tenho mais estas para o Jornal do Comércio, Gazeta de Notícias, País, Gazeta da Tarde, Apóstolo... DIÁRIO DE NOTÍCIAS Entre! entre! (O moço sai) Que aluvião de fábulas! O que val´é que esta está bem traduzida.
JOGATINA Oh! que gente esquisita a que aí vem!
CENA XIII Faustino, Jogatina, o Diário de Notícias, a Alface, a Cenoura, a Abóbora, o Repolho, o Nabo e outras Hortaliças, que entram marchando.
CORO Aqui estão as hortaliças; Quingombós, Couves e jilós, Quiabos, Nabos E nabiças! Sofrer injustiças É coisa atroz! (Solenemente) Escreva a imprensa quatro linhas Sobre as malditas barraquinhas! Ora aqui está ao que aqui vimos: Bem pouca coisa nós pedimos!
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Oh! que balbúrdia Fazem vocês! Cada um que fale Por sua vez!
ABÓBORA, ALFACE e CENOURA Vá lá! nós três!
COPLAS
I CENOURA Nós vivíamos em sociedade, Lá no mercado em doce paz...
ALFACE (apontando par Ilustríssima) Mas a Municipalidade Súbito zás que lhe darás!
ABÓBORA Pois com rigor As barraquinhas quis impor, Fez-se greve Sem tardar! Ninguém deve O que não deve pagar. Do jornalismo a proteção Viemos pedir em prontidão! Se a imprensa escreve Sobre esta greve, Vencida já A coisa está!
CORO Fez-se greve, etc.
II ALFACE Todos nós guardamos mistério Quando esta greve se formou...
CENOURA O quingombó mostrou critério E desta vez não escorregou...
ABÓBORA Em conclusão: Sendo precisa uma lição, Fez-se greve, etc.
CORO Fez-se greve, etc.
DIÁRIO DE NOTÍCIAS Eu sou o mais novo dos jornais; Ide falar aos maiorais! Noutro salão a Imprensa está. Ide por cá.
CORO Vamos por cá. Fez-se greve, etc. (Saem as horas)
O DIÁRIO DE NOTÍCIAS (a Ilustríssima, mostrando-lhe as hortaliças) São horas da sua festa: vamos!
ILUSTRÍSSIMA Vamos!
JOGATINA Estas hortaliças abriram-me o apetite!
FAUSTINO Se a gente fosse almoçar?
JOGATINA Está dito; e de lá, toca a providenciar para arranjar a barraquinha.
FAUSTINO Bravo!
(Saem a correr enlaçados. Mutação)
QUADRO XV As barraquinhas da Praça da Aclamação.
CENA I Trabalhadores, Barraqueiros, depois Faustino e Jogatina.
(Ao levantar o pano, alguns trabalhadores estão dando a última demão às barraquinhas. Outros armam ao fundo um fogo de artifício. Várias pessoas do povo estão à espera de que comece a feira)
FAUSTINO (entrando a Jogatina) Mas, então, qual é a nossa barraca?
JOGATINA Aquela. É bonita, hein? À Barraca da Felicidade.
FAUSTINO Da fidelidade, gosto. Mas sempre queria que me dissesses como, sem vintém, pudeste arranjar as coisas.
JOGATINA Para que me serve ter lábia e ser demônio, além de moça bonita? O homem das barracas dá tudo pronto, e pagaremos o aluguel por semanas vencidas.
FAUSTINO Magnífico!
JOGATINA Vai, pois, tomar posse, enquanto eu vou contratar um piston, um clarinete e um oficleide para formar uma banda. (Sai)
FAUSTINO Bravo! temos banda! Ela falou em oficleide: não vá o Trabalho vir por aí! (Vai a sair)
CENA II Faustino, o Trabalho.
TRABALHO (disfarçado em fogueteiro, com um foguete na mão) Um momento.
FAUSTINO (voltando-se) Então? Que disse eu? (Desata a correr e desaparece)
TRABALHO Eu vinha passar-lhe um foguete. Oh! mais dia, menos dia, hei de vêlo com vulgo e assinando termo de bem viver. (Vai para o fundo e desaparece).
CENA III Comendador, Carolina, depois o Polícia Noturno.
COMENDADOR Aqui tens tu as barraquinhas. Está feita a tua vontade contra a minha... Os guaiamus puseram a bandeira no fio telegráfico, o que, na opinião do Diário de Notícias, quer dizer que temos sarilho feio...
CAROLINA Qual o quê, papai!Não creia!
COMENDADOR Acho bom; mas, quando vier por aí alguma navalha desgarrada, como aconteceu no rolo do Largo de São Francisco...
CAROLINA Ora, papai! Deixe-se de medos!... Um barão!
COMENDADOR E então que tem isso? Um Barão também tem tripas! Tripas nobres, é verdade, mas tem-nas. Eu sou liberal, ultraliberal, liberal da velha guarda; mas façam-me Ministro da Justiça, e verão senão dou cabo dos capoeiras! Felizmente um jornal inventou e o comércio está tratando de organizar a polícia noturna...
(O Polícia Noturno vai atravessando a cena. É um velho coxo e coberto de velhas armas, de um tamanho exagerado)
POLÍCIA NOTURNO Quem me chama?
CAROLINA Ah!
POLICIA NOTURNO Não se assuste, minha menina: não sou um perturbador, mas um garantidor da ordem. Sabendo que se ia formar a polícia noturna...
COMENDADOR Pretende servir-lhe de modelo?
POLÍCIA NOTURNO Ah! q,u,i, qui. Vou à Rua do Ouvidor apresentar-me às pessoas incumbidas da organização...
COMENDADOR E espera ser aceito?
POLÍCIA NOTURNO Que dúvida! Cem homens como eu, e assim armados, era uma vez o último gatuno! (Cumprimenta e sai, com altivez cômica)
COMENDADOR Pois sim, cem polícias noturnos como aquele, e mudo-me do Rio de Janeiro. Eu sou li...
CAROLINA Papai... olhe... que é aquilo? (Aponta para fora)
COMENDADOR Aquilo?... Espera... Parece um comparsa do drama Guarani... E é mesmo!
(Entra o Coroado)
CENA IV Os mesmos, o Coroado.
COMENDADOR Ó amigo! (O Coroado não responde) Eh! Amigo! (O Coroado volta-se espantado) Quem é você, que anda assim vestido, para não dizer despido, pelas ruas?
COPLA
COROADO Pericumã, Manhuaçu, Cjapió, Curupuru. Icaraí, Baturité, Curupaiti, Muriaé Itaoca, Tapioca, Jurujuba, Guajará, Indaíba, Paraíba, Pindaguaratinguetá!
COMENDADOR Fiquei na mesma: isto não é um homem: é uma carta geográfica do Brasil!
CENA V Os mesmos, Alexandre.
ALEXANDRE É inútil dirigir-lhe a palavra, meu tio; esse homem não fala português: é um coroado.
COMENDADOR Um coroado! (Tirando vivamente o chapéu) Oh! sire!
ALEXANDRE Ponha o chapéu... É um selvagem da tribo dos coroados.
COMENDADOR (pondo o chapéu) Ora, um selvagem!
ALEXANDRE Só fala guarani.
CAROLINA E não o canta?
ALEXANDRE (apertando-lhe a mão) O guarani, idioma.
COMENDADOR Ah! esse até eu falo!
CAROLINA Papai?
COMENDADOR Ora! ora!ora! (Ao índio) Paraquerê Coroatá? (O índio olha totalmente para ele) Paraquerê Coroatá?
COROADO (exprimindo-se muito bem) Ora, meu caro senhor, isso nunca foi guarani. (Sai)
COMENDADOR (depois de uma pausa) E eu fiquei com cara de lorpa! Estes selvagens nada têm de civilizados! – Vem cá, Alexandre: que se diz por aí de política?
ALEXANDRE Quanto à política interna, nada de novo... o tal projeto passa com certeza... Do exterior é que temos um telegrama importante.
COMENDADOR Sim?
ALEXANDRE Participando que os alemães se apoderaram das ilhas Carolinas.
COMENDADOR (cantando sem acompanhamento) Carolinas! que ilhas são esta? Onde estão, ai! meu Deus! De quem são?
ALEXANDRE São do reino espanhol, que protesta, Contra a gana do reino alemão.
(Tem anoitecido pouco a pouco; as barraquinhas começam a iluminar-se, e o povo a fluir)
COMENDADOR Isto começa a encher-se, e para apertos do povo não serve o filho de meu pai... Toma conta de tua prima, Alexandre... Já é tua noiva...
ALEXANDRE O seu braço, Carola.
COMENDADOR Vamos até o circo, gosto muito do palhaço Augusto... Arreda, que eles aí vêm! (Fugindo de uma malta de capoeiras, que vem à frente da charanga). Eu sou ultraliberal, mas não se me dava de acabar com estes patifes! (Desaparece com a família).
CENA VI Jogatina, Faustino, barraqueiros, um Crioulo.
(Jogatina atravessa a cena tocando violão e acompanhada por três músicos, que tocam outros instrumentos. Entram todos na barraca de Faustino, que aparece encarapitado, para gritar, quando a música cessa)
FAUSTINO É a última dezena! Oitenta e um a noventa!
JOGATINA (aparecendo) Cinquenta e um a sessenta!
UM CRIOULO (do outro lado) Um peru com seis pelegas! Vai-se tirar o número para ver quem é o felizão! (Sacode a caixa de números) Muita limpeza!
JOGATINA A última dezena! Cinquenta e um a sessenta!
CRIOULO (cantando o número) Vinte e sete!
UM SUJEITO (do povo) Cá está! cá está!
CRIOULO Quer o peru ou as pelegas?
UM BARRAQUEIRO Números vinte e dezesseis! São os últimos! Dois mil réis ao primeiro e dez tostões ao segundo! Olha o Jóquio Rio-grandense!
FAUSTINO (aparecendo) Safa! Estou cansado!
JOGATINA Pois descansemos um pouco. Que meninada é aquela que ali vem? Será algum colégio?
FAUSTINO Não sei, vamos ver. (Desce para a cena; Jogatina imita-o)
CENA VII Faustino, Jogatina, Povo, a Ilustríssima, 1º, 2º, 3º, 4º Meninos e mais 17 Meninos, formando uma escada. Os passeantes agrupam-se. Cessam os pregões.
MARCHA E CORO DOS MENINOS. Nós somos os vinte e um: Não falta aqui nenhum! Barulhentos, Turbulentos, Prazenteiros, Desordeiros, Nós somos os vinte e um: Não falta aqui nenhum!
CORO GERAL Cá estão os vinte e um: Etc.
JOGATINA Tantos meninos, meu Deus!
ILUSTRÍSSIMA Pois são todos filhos meus!
JOGATINA Tem vinte e um filhos a matrona! Gabo a pachorra de tal pai! Quem ele é, senhora dona, Se faz favor, dizer-nos vai!
ILUSTRÍSSIMA Pois não, pois não: é o município.
FAUSTINO É o município!
JOGATINA É o município!
CORO É o município, o município. Ditoso pai de vinte e um! É o município, o município! Todos aqui estão, sem faltar nenhum!
ILUSTRÍSSIMA Agora, meus queridos filhos, Vamos nós todos passear; Mas não me sejam peralvilhos, Pois não desejo me zangar.
(Repetição do coro. Sai a Ilustríssima com dezessete dos vinte e um meninos)
CENA VIII Os mesmos, menos a Ilustríssima e os 17 meninos figurantes.
JOGATINA (aos quatro meninos que ficaram) Então, nhonhôs, não quiseram ir com a mamãe?
PRIMEIRO MENINO Não fumos, não sinhô; nós aqui fiquemos milhó: podemos pintá.
JOGATINA Ah! a velha é rabugenta?
PRIMEIRO MENINO Nem por isso. Às vez pinta cumo nós. Mas é que nós quer fazer uma coisa de que talvez ela não goste.
CRIOULO Muita limpeza! O belo casal de galinhas do Japão ou seis pelegas!
BARRAQUEIRO Olha essa estrada de ferro que vai andar!
CRIOULO (cantando) Trinta e cinco!
UM HOMEM DO POVO Pronto! Venham as pelegas!
JOGATINA (que tem estado a falar baixo com os meninos e Faustino) Então decididamente não nos querem dizer qual é o plano?
PRIMEIRO MENINO Boas! Você era capaz de contá a mamãe, que diria tudo a seu mestre.
JOGATINA Pois não sairemos daqui sem ver o que vocês querem fazer!
SEGUNDO MENINO Vocês não diz nada?
JOGATINA Não dizemos, não: palavra.
SEGUNDO MENINO Jure.
JOGATINA (beijando uma cruz que faz com os dedos) Juro, aí está!
PRIMEIRO MENINO Pois lá vai: devem vir daqui a pouco uns meninos ricos, que têm uns brinquedos bonitos... Que calungas! cavalinhos! velocípedes, boizinhos... principalmente os boizinhos! Que boizinhos!
SEGUNDO MENINO Parecem bois de verdade.
PRIMEIRO MENINO Nós então qué dá muita pancada neles e não deixá eles passá...
JOGATINA Ora, fazem mal... O melhor é obrigá-los a pagar qualquer quantia, e deixa-los depois...
FAUSTINO É; vocês compram biscoitos, doces...
PRIMEIRO MENINO Bem lembrado! (Aos outros) Tá dito?
OS OUTROS Tá dito!
PRIMEIRO MENINO Olhe, lá vêm eles c'os boizinho.
JOGATINA Avante! Ou pagam ou não passam!
FAUSTINO Que diabo! Vê lá o que vais fazer!
JOGATINA Deixe-os
(Os outros meninos colocam-se em linha do lado aposto àquele por onde entram os quatro meninos ricos, com boizinhos que arrastam por meio de um cordel)
CENA IX Os mesmos, os Quatros Meninos Ricos, depois a Ilustríssima, depois o Mestre-Escola.
PRIMEIRO MENINO Alto aí! C'o boizinho ninguém passa sem pagá!
PRIMEIRO MENINO RICO Menos isso! a gente há de passá!
PRIMEIRO MENINO Cinco niques cada boizinho! Dois niques para mim, que sou o mais véio, um nique pra Juca, outro pra Jojoca e outro pra Cazuza!
FAUSTINO (baixo ao Primeiro Menino) Vê se arranjas também um para mim.
PRIMEIRO MENINO Venha os niques ou sai rolo!
PRIMEIRO MENINO RICO Tome; não faço caso de misérias. (Dá os níqueis e passa com o boizinho)
PRIMEIRO MENINO Venha dos outros! (Os outros pagam e passam). Agora vamos reparti.
FAUSTINO Olha lá, não te esqueças!
ILUSTRÍSSIMA (voltando) Juca! Cazuza! Jojoca! Tonico! Onde se meteram estas crianças?
JOGATINA (á parte) Que crianças!
ILUSTRÍSSIMA Ah! Lá estão eles! Que estão fazendo aí, meninos? (Vendo o dinheiro) Níqueis!... Onde arranjaram vocês tanto dinheiro?
PRIMEIRO MENINO Eu tirei nos cavalinho, sim, senhora.
SEGUNDO MENINO Foi um moço que me deu pra comprá bala.
FAUSTINO (á parte) Não me deram nada? Espera! (Alto) É mentira! Não foi nos cavalinhos: foi nos boizinhos... Tiraram de outros meninos que traziam uns boizinhos.
ILUSTRÍSSIMA Ó atrevidos! ainda bem que lá vem o mestre! Ele é que pode com vocês! (Ao Mestre-escola, que entra solenemente) Seu professor, estes malcriados tiraram dinheiro de uns meninos que vinham com boizinhos.
MESTRE-ESCOLA Grave!... grave!... muito grave!... Vou suspendê-los do recreio... Estão suspensos! Marche! (Aponta para fora)
OS MENINOS (saindo) Fomos suspensos! Ih! ih! ih!
(Saem fazendo berreiro. O Mestre-escola e a Ilustríssima saem também)
JOGATINA Vamos, para a barraca! Tratemos da vida!
(Recomeçam os pregões. Animação. Música de charanga. Confusão geral)
VOZES Lá vai começar o fogo!
TODOS Ao fogo! Ao fogo!...
(Começa a arder uma roda de fogo de artifício. Mutação)
QUADRO XVI Em casa do Comendador.
CENA I Alexandre, Carolina.
CAROLINA Estou comovida, Xandico: é a primeira vez que venho à casa de papai depois de casada.
ALEXANDRE Há oito dias apenas.
CAROLINA A nossa primeira visita pertencia-lhe de direito. Ele estará em casa?
ALEXANDRE É provável; bem sabes que, depois da história do título falso, poucas vezes sai.
CAROLINA Aquele Faustino, hein?
ALEXANDRE Não te dizia eu que era um bilontra?
CAROLINA Bi? Trilontra, digo eu!
ALEXANDRE O que nos vale é que o júri, a que hoje vai responder, deve dar-lhe uma lição.
CAROLINA Bem; não fales mais naquele maldito, mesmo porque aí vem papai.
CENA II Os mesmos, Comendador.
COMENDADOR Ó meus filhos! Que agradável surpresa! Já tencionava hoje ir vê-los... (Abraça-os) se apolítica me deixasse. A ascensão do meu partido... do grande Partido Conservador...
CAROLINA Uê! Papai é conservador?
COMENDADOR Se sou conserv... se sou conservador?! Homem, essa agora! Fui, sou e serei conservador de princípios, conservador da velha guarda!... Intransigente!...
ALEXANDRE Ó meu tio... ainda há poucos dias dizia-se liberal...
COMENDADOR Eu?... Eu dizia-me liberal?... Você está sonhando... Ora eu liberal! Eu, que fui esbulhado por uma câmara liberal!!! Eu? Havia de ter graça!
CAROLINA Papai é governista... não é ele que muda, são os governos.
COMENDADOR Agora é que tu disseste a verdade... Sempre firme no meu posto... O que eu quero é deixar a meus filhos uma pátria moralizada... Ora eu liberal!...
CAROLINA Papai está todo encasacado... Ia sair?
COMENDADOR Daqui a pouco. Estou à espera de alguns amigos políticos, que me acompanham desde os bancos acadêmicos.
CAROLINA Papai nunca andou na academia...
COMENDADOR Isto é um modo de dizer. Amigos firmes, de todos os tempos, que vêm buscar-me para irmos cumprimentar o novo gabinete, a aurora da regeneração! Já era tempo! Este malfadado país ia de todo à garra com os tais liberais! Sete anos, sete meses e duas vezes sete dias de governo, irra!
CAROLINA Papai hoje está muito político...
ALEXANDRE Como sempre!
CAROLINA ...e nós ainda temos que fazer muitas visitas antes de jantar. Quer ir à noite às quermesses?
COMENDADOR Não tinha eu mais que fazer.
ALEXANDRE Pois nós vamos a cinco. Agora é moda.
CAROLINA Até quando?
COMENDADOR Até amanhã ou depois. Logo que as coisas entrarem nos seus eixos, irei jantar com vocês.
ALEXANDRE Adeus, meu tio.
CAROLINA A benção, papai? (Beija-lhe a mão e sai com o marido)
COMENDADOR Deus os acompanhe.
CENA III O Comendador, depois um Criado, depois vários Amigos Políticos.
COMENDADOR (vindo pensativo até a boca da cena) Até quando serei conservador? Oh! desta vez hei de conseguir... já não digo uma pasta, o que, aliás, não seria coisa do outro mundo... mas uma presidência de província... ou, quando menos, uma subdelegacia na corte... (Entra um criado, entrega-lhe um ofício e sai) Bravo! estou nomeado inspetor de quarteirão! (Guarda o ofício. Entram os amigos políticos. Trazem todos as casacas vestidas do avesso)
PRIMEIRO AMIGO Barão, estamos prontos!
COMENDADOR Eu já não sou Barão, meu amigo!
PRIMEIRO AMIGO Desculpe, não me lembrava.
COMENDADOR Perdi o título, e para isso não foi preciso reunir o Conselho de Estado.
SEGUNDO AMIGO Sabe que se fala em dissolução?
COMENDADOR Eram favas contadas.
PRIMEIRO AMIGO Passou a moção dos liberais!
COMENDADOR Que partido, meus amigos, que partido! Eu sou li... quero dizer: eu sou conservador da velha guarda; mas, se fosse liberal, não votaria por semelhante moção!
PRIMEIRO AMIGO Está bem, faz-se tarde, e são horas de partir.
SEGUNDO AMIGO Vamos, Comendador?
COMENDADOR Vamos! (Vão todos a sair). Ah! esperem. (Estacam todos. O Comendador despe a casaca e torna a vesti-la do avesso). Partamos! (Saem. A cena fica deserta por alguns momentos, findo os quais Faustino entra pelo fundo, mal trajado, de barba crescida e com o olhar desconfiado)
CENA IV Faustino, depois a Ociosidade, depois o Trabalho.
FAUSTINO O júri absolveu-me: estou livre... Escapei arranhando; por uma atenuante que não está no código: porque tive graça... Embora! de hoje em diante procurarei reabilitar-me... Ao sair do júri, encontrei na Praça da Aclamação o Trabalho, que conduzia uma carroça. Desta vez fui eu quem lhe disse: – Um momento! – Aproximei-me dele, e pedi-lhe que me valesse. Prometeu-me tudo, sob uma condição: a de vir pedir ao Comendador que me perdoasse. Eu também sinto que, sem o seu perdão, não poderei resgatar o meu passado. Quando não seja resgatá-lo completamente, ao menos pagar o prêmio e reformar a cautela... Maldita Jogatina! Ainda agora passei por ela: lançou-me um olhar de soberano desdém. Pudera! A sua obra está consumada.
OCIOSIDADE (entrando) Faustino!
FAUSTINO Tu?! Some-te da minha presença, mulher maldita!
OCIOSIDADE Vem comigo, e ainda serás feliz!
FAUSTINO O mesmo já me prometeste um dia... Some-te!
OCIOSIDADE Vem!
FAUSTINO Não! (Estabelece-se uma luta entre os dois)
TRABALHO (entrando e repelindo a Ociosidade) Para trás!
OCIOSIDADE Ainda desta vez hei de vencer!
TRABALHO Para trás! (A Faustino, que se lhe atira nos braços). Estás salvo! Só nos braços do Trabalho encontrarás a regeneração.
FAUSTINO Obrigado.
TRABALHO (descendo ao proscênio)
Do imortal Vitor Hugo, encarnação da Arte, O majestoso vultou encheu da Glória o templo; Ociosidade vil e estúpida, mostra-te Eu quero do Trabalho este sublime exemplo
O truculento Homero, o singular Virgílio, E os mais que a glória são da velha Humanidade, Lá no divino, eterno e luminosos exílio Honram-se de acolher o fúlgido confrade.
Vítor Hugo deixou no coração dos povos Um largo e longo sulco astrífero e profundo; Os grandes livros seus, eternamente novos, São legados em França e dádivas no mundo.
Por berço teve a França estremecida sua, Porém por pátria universal, imensa; Foi patrício de todo aquele que possua Um coração que bate e um cérebro que pensa!
(Aponta para o fundo. Mutação)
QUADRO XVII Apoteose a Vitor Hugo.
(A orquestra executa a Marselhesa)
Artur Azevedo
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