Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BOM INVERNO / João Tordo
O BOM INVERNO / João Tordo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O BOM INVERNO

 

            Quando o narrador — um escritor frustrado e hipocondríaco — se desloca a Budapeste para um encontro literário, está longe de imaginar até onde a literatura o pode levar. Planeando uma viagem rápida e sem contratempos, acaba por conhecer um escritor italiano mais jovem, mais enérgico e muito pouco sensato, que o convence a ir com ele até Sabaudia, em Itália, onde o famoso produtor de cinema Don Metzger reúne um leque de convidados excêntricos numa casa escondida no meio de um bosque. O cinema não é, porém, a única obsessão de Don: da sua propriedade em Sabaudia levantam voo balões de ar quente estranhamente vazios, construídos como obras de arte por Andrés Bosco, um catalão cuja relação com o produtor permanece um enigma. Nada, aliás, na casa de Metzger é o que parece; e, depois de uma primeira noite particularmente agitada, o narrador acorda com a pior notícia possível: Don foi encontrado morto no seu próprio lago. Bosco toma nas suas mãos a tarefa de descobrir o culpado e de o castigar, isolando o grupo de convidados na casa e montando-lhes um verdadeiro cerco. Confrontados com os seus piores medos, assustados, frágeis e egoístas, estes começarão a atraiçoar-se e a acusar-se mutuamente, num pesadelo que parece só poder terminar quando não sobrar ninguém para contar a história…

 

                       

                    A mulher de Wilhelm Rontgen

            Pusemos o homem dentro do cesto do balão e deixámo-lo desaparecer no céu pálido do Lácio. Foi um momento dramático e, se não houvéssemos caído naquele torpor pesado e ruminante que de nós se apoderou, alguém teria erguido um braço para, por entre lágrimas ou sorrisos, acenar um último adeus a Don Metzger. Foram precisos oito braços para transportar o corpo do carro até à gôndola de verga, junto da qual o sinistro Bosco havia, com a ajuda do fiel Alípio, insuflado de ar frio o envelope de nylon preto, a grande ventoinha ensurdecendo aquele dia tão fúnebre. Acomodámos Don dentro da gôndola o melhor que pudemos - tanto quanto era possível acomodar um gigante - e depois, com um gesto de amor que chegou a parecer cruel, Bosco abriu a válvula de propano e acendeu o maçarico, as chamas incendiaram o ar e ergueram a gôndola do chão como se a carregassem na palma de uma mão invisível. Era ainda cedo naquela manhã e Don já partia em direcção ao infinito, onde conjuntos de nuvens em vários tons de cinzento, banhadas por um sol melancólico, avançavam lentamente em direcção à montanha, sobrevoando-a como anjos coléricos que trouxessem o prenúncio de tempos terríveis.

Nenhum de nós se moveu enquanto o balão negro se fez aos céus, mesmo quando este era já uma miniatura recortada contra a vastidão nebulosa. Num círculo desfeito, na clareira do bosque, observámos a última ascensão de Don, sabendo que éramos nós que ficávamos sozinhos no mundo, e não ele. Talvez nos tivesse faltado a coragem; talvez, naquele momento, adivinhássemos já que nada saberíamos fazer sem Don e ficaríamos para sempre sujeitos ao jugo da sua ausência. Foi assim que o Bom Inverno começou. Foi em Sabaudia, foi há uns meses (embora me pareça ter sido há muito mais tempo), foi por acaso e, ainda assim, sempre que penso nas coisas que me aconteceram, coloco a possibilidade de não ter existido qualquer acaso e de tudo poder ser explicado para depois, com um sorriso e um abanar frouxo da cabeça, dizer a mim próprio que é escusado estar a adiantar-me porque o melhor é começar pelo princípio.

            Existem, na verdade, razões para explicar como as coisas aconteceram e, se existem razões, é possível ordená-las numa cronologia. Porém, tal como no funcionamento do universo, o todo raramente corresponde à soma das partes. Mas posso certamente explicar as partes ou, pelo menos, procurar fazê-lo: como fui parar a Itália quando o meu destino era regressar a Lisboa vindo da Hungria; como passei aquele tempo na companhia de desconhecidos que se tornaram meus semelhantes e, mais tarde, meus inimigos; como Don Metzger acabou enfiado na gôndola de um balão depois de morto; como esse balão, imitando a última vontade de um pássaro ferido, percorreu mais de cem quilómetros nas correntes de ar e se despenhou ao largo da ilha de Ponza. Passo a passo, é possível contar a história, embora seja impossível, no final, compreendê-la. Eu não a compreendo e os meus companheiros de infortúnio não a compreendem - ou porque estão mortos, ou porque deixaram de existir para mim, o que em última análise, vai dar ao mesmo. Existem sempre razões; mas, como todos sabemos, as razões nunca serão suficientes. No entanto, e porque qualquer história terá de as apresentar a certa altura para se validar a si mesma, vou começar precisamente por elas.

           

            A primeira vez que ouvi falar de Don Metzger - um homem tão intenso e fugaz como um cometa - foi num restaurante em Budapeste na última Primavera. Por essa altura eu já vivia do subsídio de desemprego havia seis meses e a Hungria era o último lugar do mundo onde imaginava poder vir a encontrar-me. Fui lá parar como podia ter ido parar a qualquer outro lado e, a contragosto, acabei por travar conhecimento com Vincenzo Gentile. Foi Vincenzo quem me falou de Don e foi por causa de Vincenzo que acabei por passar uns tempos em Sabaudia, uma cidade de província na costa italiana de que nunca ouvira falar e que não figura nos roteiros habituais dos turistas, ou sequer nos roteiros habituais dos turistas italianos. Mas não foi certamente por causa dele que deixei de trabalhar, nem foi por sua causa que fiquei coxo; seria injusto atribuir-lhe responsabilidade por todos os erros (incluindo os meus) e, assim, é inevitável dizer que, se é verdade que o italiano me abriu as portas do Inferno, também é verdade que era para lá que a minha vida rumava havia bastante tempo.

Para ser sincero, não era grande vida. Que coisa pode ser mais ridícula do que um escritor que não acredita na literatura, embora julgue, paradoxalmente, que esta acabará por o vingar? Pois bem, era o meu caso. Havia muito tempo, aliás, que deixara de acreditar; havia muito tempo, também, que fingia que isto não era verdade; e, por isso, procrastinava, adiando todas as decisões

e vivendo sem qualquer convicção de que a vida fosse um acontecimento digno de referência porque, mais cedo ou mais tarde, uma obra magistral acabaria por me fazer justiça. Portanto, eu era escritor e, embora não acreditasse na literatura - ou precisamente por causa disso, porque algumas pessoas teimam em bater com a cabeça nas paredes -, remetia todas as esperanças de futuro numa carreira literária que se recusava a sair do lugar, tratando a vida como um caixote do lixo por não saber o que fazer com ela.

            A verdade não é tão linear. A verdade é que, após vários anos a vaguear pelos arredores da literatura, não é impreciso dizer que me encontrava gasto. Sem me ter dado conta, batera a todas as portas e tornara-me um assaltante profissional, intrometendo-me em todos os meios e apresentando-me a todos os trabalhos com idêntica disponibilidade: durante esses anos fui jornalista, revisor, tradutor, criativo numa agência de publicidade, escrevi prefácios e posfácios de livros, discursos de políticos de segunda e, numa altura mais complicada, criei menus de degustação para restaurantes e letras de canções para um cançonetista popular que plagiava os mexicanos. À parte, ia mantendo uma carreira literária e, no Outono de há dois anos, publiquei o meu terceiro romance sem fazer ideia nenhuma de que, com esse livro, acabara de fechar um ciclo - como se o livro fosse a premonição de alguma coisa monstruosa ou dos tempos que estavam para vir. Esse romance era, tal como os dois primeiros, de um gritante pessimismo, tão gratuito que muitos leitores o abandonavam ao fim de umas quantas páginas, alegando que a realidade já era suficientemente macabra - no meu primeiro livro, por exemplo, um homem cuja família morria num incêndio fechava-se num apartamento londrino e começava a coabitar com fantasmas, falando sozinho e perseguindo vultos de cuja existência duvidava; no final, acabava por duvidar da própria existência, e assim por diante, num exercício sádico de dúvida metódica.

Enfim, os horrores sucediam-se. Não obstante, os livros foram sendo publicados, foram razoavelmente ignorados e, depois, como uma onda que regressa cheia de detritos e algas peçonhentas, as portas em meu redor foram-se fechando com estrondo. Ignorando os melhores conselhos da família e dos amigos, e sem saber ainda que era preciso ter cuidado com o que oferecíamos ao mundo - pois a miséria e a solidão ficcionadas podiam tornar-se reais -, acabei por ser despedido de um emprego estável como guionista numa pequena produtora de televisão, em Setembro do ano passado, por me incompatibilizar com os colegas, com o meu chefe e até com as senhoras da limpeza que amiúde esbarravam comigo a dormir nas casas de banho a meio do expediente. Evidentemente, forcei o despedimento com atitudes insubordinadas que é escusado descrever aqui e, dois anos após a publicação do terceiro romance - que, como os anteriores, morrera na praia —, decidi caminhar voluntariamente para o meu cadafalso, convencido, na altura, de que era a atitude de um herói. Não sei dizer exactamente porque o fiz. Talvez porque a literatura, coisa extraordinária e impossível de explicar (e justamente por isso alvo de constantes e frustradas tentativas), fora uma jovem ambição que cedo se transformara numa fonte de mal-entendidos. Fosse porque não acreditava em mim próprio, fosse precisamente pela razão contrária - porque, no fiando, me julgava capaz de coisas extraordinárias -, tomei a decisão de, após muito tempo a fazer aquilo a que normalmente chamamos «ganhar a vida», renunciar a essa flagrante perda de tempo e fechar-me em casa a escrever a obra com que, finalmente, me vingaria do mundo.

            Como quase sempre acontece a quem toma este género de decisões, escrevi muito pouco mas bebi imenso enquanto falava de páginas que só existiam na minha imaginação. O subsídio de desemprego, aliado a algumas economias, permitia-me essa veleidade e tinha alguns amigos que não se importavam de me acompanhar. De maneira que entrei numa espécie de marasmo criativo e sentimental, convencido de que não era um marasmo mas um sortilégio, uma coisa inevitável e não passível de ser justificada racionalmente, demasiado obscura para ser compreendida - um encantamento ou uma peste, dependendo do ponto de vista. Este marasmo, julgava eu, faria parte do processo de criação dessa tal obra-prima; era a sina de um tipo que finalmente começava a tornar-se um verdadeiro escritor, aquela película finíssima de paralisante pessimismo que nos ia separando da realidade e, a cada hora que passava, se tornava imperceptivelmente mais espessa, até que um dia nada nos podia tocar mas também nada nos podia salvar, de tal modo nos encontrávamos isolados de tudo. Mas a verdade é que, escrevendo ou não, eu sempre fora um pessimista. Conduzindo um carro por uma estrada a alguma velocidade, por exemplo, dificilmente não me punha a pensar no que aconteceria se, num desvio subtil do volante, passasse para a faixa contrária e embatesse de frente contra outro carro; segurando um bebé ao colo, imaginava com um pânico surdo o que seria de mim se o deixasse cair de uma varanda; enfim, este género de aberrações. Mesmo imaginada, uma dor continua a ser uma dor; está lá quando nos deitamos à noite, está lá antes do pequeno-almoço. Assim, com tempo nas mãos, munido destas ideias absurdas, e com uma secreta descrença na literatura, continuei a procrastinar, a adiar e a beber, arranjando toda a espécie de justificações para evitar a incómoda tarefa de, finalmente, me sentar e começar a escrever.

 

            A história que tenho para contar começa pouco depois, numa manhã de Dezembro, faz agora precisamente um ano, em que um pequeno acontecimento precipitou todos os outros e não tardou a alterar tudo. Foi uma manhã em que acordei de ressaca e caí das escadas do meu prédio quando saía para ir tomar o pequeno-almoço. Tenho uma recordação invulgarmente lúcida desse instante: lavei os dentes, dei um gole num café insípido do dia anterior, pensei no jogo de futebol que me esquecera de ver, abri a porta de casa, saí para o patamar e, quando cheguei às escadas, perdi os sentidos e caí. Quando recuperei a consciência, dei conta de duas coisas: uma, que tinha uma dor lancinante na perna direita; outra, que tinha também batido com a boca no chão e que, para além de ter aberto o lábio, lascara um dente. Peguei no fragmento do dente, colocando-o entre o polegar e o indicador da mão direita, e tive a certeza, nesse preciso momento - como tantas vezes antes, com um baque surdo do coração -, de que havia qualquer coisa profundamente errada comigo.

            Com a ajuda de um vizinho, fui para o hospital, onde me informaram, depois dos exames, que tinha fracturado a tíbia. Com a perna engessada, regressei a casa alguns dias depois acompanhado de uma paciente rapariga chamada Magda, com quem andava a sair nessa altura, que deixou o trabalho a meio da tarde para me ir buscar (Magda trabalhava num banco, lia obsessivamente os livros de Milan Kundera e, por alguma razão insondável, gostava de mim). Passei o Janeiro inteiro em casa, a ver televisão e a comer a sopa e as refeições ligeiras que Magda me trazia diariamente. Além disso, fazia-me café, mudava-me os lençóis e lavava-me a roupa, enquanto eu me passeava de um lado para o outro num par de muletas, atirando coisas ao chão e queixando-me de como a minha sorte estava a impedir o progresso de um genial romance que, na verdade, nunca chegara a começar. Magda foi perdendo a paciência até que, na tarde em que fui tirar o gesso, a perdeu de vez. Embora eu continuasse coxo, insisti em que fôssemos a um bar junto do rio onde bebi demasiado em pouco tempo. Depois disse-lhe:

            «Estou farto de tudo, sabes? A vida nem é propriamente um sonho, é mais uma insónia interminável num quarto cheio de melgas.»

Estávamos sentados a uma mesa da esplanada. Ela levantou-se e colocou a carteira ao ombro. Não estava pelos ajustes.

            «Vai-te lixar, tu mais a metafísica», disse, e deixou-me sozinho debaixo de uma chuva inesperada e breve que me encharcou o cabelo e as roupas. Fiquei ali sentado durante uma hora depois do dilúvio - ou talvez mais do que uma hora, não me recordo -, sentindo pena de mim próprio. Depois um empregado veio dizer-me que estavam a fechar, paguei a conta e coxeei pelas ruas à procura de um táxi.

            A seguir a esse episódio as coisas pioraram. Tal como acontecia às personagens dos meus livros, as sombras apertaram-se sobre a minha existência e, sem que eu pudesse lutar contra isso, tornei-me cativo de uma prisão que eu próprio inventei. Fechado em casa, sozinho e coxo, deixei-me levar por uma vaga de tristeza que parecia não ter fim. Ou talvez minta, e a vaga não fosse de tristeza, mas de indiferença, aquela espécie de cansaço resignado que provoca nos homens sonolência a horas bizarras e estômagos sensíveis. Vagueei, titubeante, pelos dois quartos e pela pequena sala do meu apartamento como um velho vagueia por um asilo, sem propósito nem razão. Ocasionalmente vi televisão. Uma noite, por mero acaso, sentado no sofá a olhar para as imagens, assisti a um programa americano sobre um médico que coxeava e usava uma bengala. Vi um episódio, depois vi outro, e acabei por ficar viciado; durante os meses que se seguiram, assisti a todos os episódios que eram exibidos. Nos pequenos momentos de lucidez telefonei a alguns amigos, todos eles demasiado ocupados com as suas famílias e os seus empregos e a vida de todos os dias e sem tempo para os meus queixumes; em momentos de insanidade, provocados pela solidão, tive discussões acesas com um vizinho cujos cães invadiam o meu pátio ao entardecer e lá deixavam as suas fezes. O vizinho recomendava-me alternadamente, em voz alta, que fosse trabalhar ou que procurasse um médico. Escolhi a segunda alternativa.

Fosse culpa do programa de televisão ou do meu precário estado sentimental, a verdade é que a perna não dava sinais de recuperação. O médico garantiu-me que era uma coisa passageira e depois pediu-me que fizesse uma série de exames, o que me convenceu de que havia realmente alguma coisa errada e de que me mentira. Na semana seguinte fiz as radiografias num hospital público. Os resultados não revelaram qualquer problema, mas eu estava seguro de que havia uma conspiração biológica em gestação porque as dores na perna se recusavam a deixar-me. Procurei uma segunda opinião. Depois de novos exames e inúmeras consultas, o meu diagnóstico era incerto. Segundo alguns médicos, sofria de hipocondria; segundo outros, de um estado de saúde débil sem causa aparente. Acabei por regressar ao médico inicial, que começou a receitar-me ansiolíticos.

            Quando, finalmente, aceitei aquele cruel destino - de que iria coxear para o resto dos meus dias - fui a uma loja na Baixa e comprei uma bengala Rosewood em mogno castanho, com castão também em madeira. Comecei a usá-la dentro e fora de casa, dando longos passeios ao entardecer pelo parque próximo do meu apartamento, que era habitado por velhos e pombos igualmente decadentes. Quando, em Março, entrei no consultório do médico para lhe mostrar o resultado dos exames mais recentes, de bengala em punho, o homem arregalou os olhos. Depois olhou demoradamente para os envelopes que eu trazia, abriu-os, consultou a papelada com o ar enigmático dos médicos, murmurou alguma coisa imperceptível e finalmente perguntou-me por que razão andava eu de bengala. Expliquei-lhe que continuava com dores e que era penoso arrastar a perna de um lado para o outro sem apoio. O homem limitou-se a olhar uma última vez para os exames e repetiu que não havia qualquer razão plausível para o meu estado.

            Livre-se da bengala, disse, em tom paternalista. «Não lembra ao diabo um homem de trinta e tal anos andar por aí como se fosse um velho.»

            «O médico da televisão tem uma», argumentei.

            «E também tem fama, dinheiro e idade para ser seu pai.»

            Depois falou em distúrbios psicossomáticos e escreveu o número de um psiquiatra numa folha de receitas. Saí do consultório sem dizer mais nada, apoiado, passo a passo, na bengala, e à saída do hospital atirei a folha para o lixo.

            Se antes eu era um pessimista, depois de comprar a bengala passei a ser um cínico. Um homem novo com uma bengala podia dar-se ao luxo de desprezar o mundo e, assim sendo, eu tencionava aproveitar a oportunidade para ajustar contas com a realidade. Havia alguma coisa naquele objecto - e na dor constante que sentia na perna, e na firme crença de que, dentro de mim, algo apodrecia - que transformava todo o cepticismo da minha juventude no mais puro fel. Não conseguia andar sem coxear e, no entanto, todos me observavam com o mesmo olhar incrédulo do médico, como se eu fosse maluco e imitasse um inválido por puro prazer. O médico tivera razão numa coisa: um homem de trinta e tal anos com uma bengala não lembra ao diabo; era preciso mais atrevimento para que o diabo se lembrasse de nós.

            Uma noite entrei no meu prédio e encontrei Magda sentada nas escadas do átrio. Por um momento imaginei uma dramática reconciliação, mas depois ela explicou que vinha buscar umas coisas que deixara lá em casa.

«Podias ter telefonado antes», disse-lhe, coxeando na direcção do elevador, apoiando-me na bengala com a mão direita.

            «Eu tentei telefonar imensas vezes, mas tu nunca atendes», respondeu ela. «O que é isso?» Apontava para a bengala.

            «Estou doente», disse-lhe.

            «Estás doente? Estás doente de quê?», perguntou com algum desprezo enquanto atravessávamos as portas enferrujadas do elevador.

            «Diagnóstico incerto», respondi. «Embora esteja razoavelmente seguro de que é cancro dos ossos.»

Magda revirou os olhos, o que me deu vontade de a esbofetear. Depois olhei para o seu rosto simétrico - de olhos castanhos muito claros, o cabelo alourado - e para as suas mãos longas de dedos finos cujos ossos sobressaíam, como se o esqueleto tivesse ganas de se mostrar. Fitei demoradamente os seus seios pequenos mas perfeitos.

            «O cancro não te tirou a vontade», disse ela, saindo do elevador para o patamar. Percorremos o corredor escuro em silêncio. Lá fora, o som de uma ambulância denunciava a cidade. Cinco minutos passados, Magda saía com um caixote de livros, discos e alguma roupa que deixara espalhada pelo apartamento e que eu não me preocupara em arrumar.

            «Toma conta de ti», disse-me.

            Apoiei o corpo todo na bengala, segurando o cabo com as duas mãos.

            «Vou fazer os possíveis.»

            Magda afastava-se.

            «Finalmente li o teu último livro», disse ela, antes de entrar no elevador.

            Senti um espasmo de ansiedade.

            «Ah sim? O que é que achaste?», perguntei, tentando fingir indiferença.

            «É chato. Parece que tem o dobro das páginas que realmente tem.» Magda entrou no elevador e a porta fechou-se atrás dela. Proferi um palavrão, sentindo o rancor acumular-se na garganta, voltei para casa e parti uma caneca que estava em cima da bancada da cozinha com um golpe destro da minha Rosewood.

O telefonema chegou numa tarde de sexta-feira. Havia alguns dias que não saía de casa e, arrastando-me vagarosamente, fazia viagens esporádicas entre a cozinha e a sala, onde me sentara no sofá a ler um livro qualquer cujo título e o autor me escapam. Lia por ler, sem verdadeiro interesse. A televisão tinha-se avariado no final de Março e, privado do programa do médico americano para me entreter, o aborrecimento instalara-se. Aborrecia-me estar em casa e aborrecia-me sair; não existia qualquer razão, na verdade, para estar em parte alguma. Entretanto, ia acumulando contas por pagar na caixa do correio, decidido a ignorá-las por receio de consultar o meu extracto bancário. Ao fim de tantos meses sem trabalho, e com o custo acrescido das consultas e dos exames, era provável que estivesse a gastar a última parcela das minhas economias, e o subsídio de desemprego seria insuficiente para me sustentar. A perspectiva de voltar a trabalhar, contudo, era aterradora.

            É estranho, assim, que tenha atendido aquela chamada; mas a verdade é que atendi. Foi numa sexta-feira chuvosa de Abril. O telefone tocou e, sem pensar no assunto - e depois de semanas a ignorar precisamente o mesmo som -, estiquei o braço e levei o auscultador ao ouvido. Chegou-me a voz da secretária da editora que publicava os meus livros dizendo-me que iria passar-me ao assistente editorial. O assistente cumprimentou-me e informou-me de uma vaga para um ciclo de conferências na Hungria, organizado para escritores europeus, e perguntou-me se estaria disponível.

            «Não», respondi.

            «É pago», disse ele.

            «O quê?»

            «A conferência. É paga, e bem paga.»

            Quis recusar novamente mas depois hesitei. Fez-se silêncio.

            «Estás disponível?», perguntou o assistente.

            «Sim. Quero dizer, depende.»

            «Depende do quê?»

            «A estadia também é paga?»

            «É tudo subsidiado pelo European Writers Bureau.»

            «O que é isso?»

            «E um novo departamento em Bruxelas. Um organismo, como gostam de lhe chamar. Foi fundado por um sueco, e sabes como são os suecos.»

            «Hum-hum», respondi, sem ter ideia nenhuma de como eram os suecos. Vieram-me à cabeça imagens de filmes pornográficos dos anos setenta.

            «O que significa é que tens hotel e comida à borla e um per diem bastante razoável. E um cheque no final.»

            «Quanto tempo?»

            «Uma semana em Junho.»

            Respirei fundo. Era dinheiro.

            «Está bem.»

            Houve um momento de silêncio.

            «Está bem?», repetiu ele.

            «Há algum problema?»

            «Tínhamos a certeza de que ias recusar. Faziam-se apostas aqui no escritório,» «Então para que é que telefonaram?» «Para ver o que acontecia, claro.» «Porque é que haveria de recusar?» Novo silêncio.

            «Corre por aí um rumor de que estás doente», respondeu o assistente.

           

            Na segunda semana de Junho parti para Budapeste. Os preparativos não foram fáceis. Telefonei para a companhia aérea que emitira o bilhete que a editora me enviara e pedi um lugar para pessoas com deficiência. A mulher que atendeu perguntou se podia ser mais específico. Disse-lhe que estava a morrer. Ela ficou em silêncio durante uns segundos e depois respondeu que aquela era uma companhia aérea de baixo custo e que não ofereciam condições especiais, nem mesmo para pessoas que estavam a morrer, que eram, bem vistas as coisas, todos os passageiros. Acabei por achar graça à mulher e deixei passar. Havia outros problemas mais prementes: fazer as malas, planear a conferência e arranjar paciência para sair de casa. A primeira foi a mais fácil das tarefas; a segunda, guardei-a para o avião; a terceira, resolvi-a chamando um táxi que me veio buscar à porta do apartamento para que não tivesse hipóteses de faltar ao compromisso.

            Budapeste era completamente diferente do que eu esperara. De um dos lados do rio, era uma cidade europeia de contornos imperiais, do outro, uma espécie de aldeia medieval com castelos e palacetes. O nome para rua era «Utca», «Ter» significava praça, e a língua era absolutamente incompreensível. Do aeroporto apanhei um táxi e mostrei ao homem a morada do hotel que tinha escrito num caderno. Ele olhou para a minha bengala, abanou a cabeça num gesto solidário e, no final, recusou a gorjeta. Nada interessado em fazer turismo ou conhecer as atracções locais, fiquei no quarto de hotel na primeira noite - que não era um hotel mas uma estalagem medieval construída em pedra, de tectos tão rasos que batia com a cabeça sempre que subia as estreitas escadas que conduziam ao segundo andar, provocando risos tímidos nas meninas da recepção. Deitado na cama, olhei para o que tinha escrito no avião a respeito da conferência. Eram gatafunhos incompreensíveis. Resolvi começar tudo outra vez. O tema proposto era a nova direcção da literatura europeia e, sem qualquer ideia por onde começar, ou que direcção pudesse ser essa, fui rabiscando idiotices e depois resolvi deixar o assunto nas mãos da inspiração que tivesse no momento. As duas da manhã, a perna começou novamente a doer-me e manteve-me acordado até de madrugada. Às oito o telefone tocava: era Eva Kalman, a organizadora do festival de literatura, a convocar-me para uma reunião no outro lado da cidade. Amaldiçoei-me por ter aceitado fazer a viagem e saí da cama com um grunhido.

            O Palácio Karolyi ficava no centro de Peste. O táxi atravessou, devagar, a ponte que cruzava o Danúbio, enquanto o taxista falava ininterruptamente, num inglês miserável, sobre os problemas dos deficientes nos transportes públicos. Tentei explicar-lhe que estava com pressa, mas o homem estava demasiado empolgado na sua diatribe. Quando cheguei ao palácio passava das dez e a reunião já havia começado. Subi desastradamente a escadaria principal do edifício - que era um verdadeiro palácio do século dezanove, com salões de baile e enormes cortinas de veludo como só vira em filmes - e, por indicação de um segurança, dirigi-me para a sala de conferências. Assim que abri a porta, a bengala resvalou no chão de linóleo e perdi o equilíbrio. Um segundo depois, estava no chão. Ouvi as expressões preocupadas de uma dúzia de pessoas. Uma mulher loura e anafada veio ajudar-me a levantar e, delicadamente, devolveu-me a bengala.

            «Não sabia», disse ela, num inglês carregado de sotaque.

Levantei-me e recompus-me. Algumas pessoas riram-se; outras fitaram-me com estranheza. A mulher apresentou-se como Eva Kalman. Tinha um sorriso simpático e olhos azuis de criança.

            «Sente-se», disse-me.

            Havia duas dezenas de cadeiras dispostas em círculo. Fui sentar-me numa cadeira vaga e olhei em redor: o grupo era estranhíssimo, com gente de idades diferentes e aspecto mais ou menos vagabundo. Um rapaz magro e uma rapariga, sentada ao seu lado, olhavam-me com curiosidade do outro lado da sala. Coloquei a bengala no colo e desapertei o colarinho: o calor de Junho invadia o espaço bafiento. Escrutinei o casal rapidamente. Ambos tinham olhos castanho-claros, embora ele fosse moreno e ela tivesse o cabelo muito loiro, quase branco. Pareciam muito novos e a rapariga era excepcionalmente bonita.

            Eva Kalman lutou contra um inglês rústico durante meia hora, apresentou cada um dos presentes - a maioria dos escritores era da Europa de Leste e tinha nomes estranhíssimos; o rapaz que me observara chamava-se Vincenzo Gentile e era italiano - e depois anunciou o ciclo de conferências do dia seguinte. Durante a apresentação de Eva Kalman, tive de fazer um esforço para não adormecer: antes de sair do hotel tomara três comprimidos para as dores e agora o corpo parecia ter deixado de responder, entregando-se a uma sonolência desgovernada. No final, vencido pela modorra, desci lentamente a escadaria do Palácio Karolyi e emergi pela porta das traseiras, de onde se via um belo jardim iluminado pelo sol do final da Primavera. Ouvi o som distinto da bengala no chão de pedra enquanto caminhava. Dirigia-me para a saída quando ouvi alguém chamar pelo meu último nome.

            «Ei. Que pressa é essa?»

            Vincenzo estava encostado a uma das colunas que constituíam a fachada lateral do prédio. Ao seu lado estava a rapariga loura e outra que não reconheci da apresentação. Aproximei-me devagar, consciente das minhas graves limitações.

«Como podes ver, demoro bastante mais tempo do que o normal a chegar a qualquer lado. É provável que se faça noite antes de conseguir atravessar outra vez a cidade.»

       O italiano olhou-me e sorriu. Tinha os dentes tortos e olhos profundos. O cabelo era negro, com a espessura da palha, espigado em todas as direcções. Usava um casaco preto, gravata e calças de ganga. As raparigas sorriam.

            «Tenho aqui uma conterrânea tua», disse ele, de cigarro na mão. Apontou para a rapariga desconhecida. Era ruiva e alta, cheia de sardas no rosto. Devia ter a minha idade ou ser talvez um pouco mais velha. Cumprimentei-a com um aperto de mão. Chamava-se Nina M. Pascal e falava um inglês com sotaque britânico.

            «Portuguesa?», perguntei, desconfiado.

            «Por portas e travessas», disse Nina. «O meu avô nasceu em Portugal, mas era filho de estrangeiros.»

            «A Nina vive em Londres», adiantou Vincenzo. «Representa uma agência internacional de direitos de autor.»

            «Hum. Vieste à caça de talentos escondidos?»

            Nina sorriu. A rapariga loura mantinha-se imóvel, observando-nos; parecia ser uma criatura dócil.

            «Nem por isso», respondeu Nina. «Tenho algumas reuniões com editores, mas nada de significativo. Eu e o Vincenzo conhecemo-nos há uns tempos, e quando ele me disse que vinha a Budapeste aproveitei a deixa. Nunca tinha estado na Hungria.»

            Um grupo de escritores saiu pela mesma porta das traseiras. Eram, na grande maioria, os representantes da Europa de Leste. Ignoraram-nos e caminharam para a saída.

            «Olha para eles», disse Vincenzo. «Os pobres bisnetos de Lenine.»

Nenhum de nós riu, e ele pareceu esquecer o próprio comentário. Observei o grupo: parecia um bando de corvos perdidos, os ombros descaídos, as cabeças baixas, sussurrando recônditas línguas eslavas. Depois Vincenzo esfregou as mãos e pareceu animar-se.

            «Então? Vamos a isso?», perguntou.

            «Como assim?»

            «Almoço, uns copos, essas coisas. Ver a cidade.»

Hesitei um momento.

            «Bom, na verdade se calhar regresso ao hotel. Amanhã há a conferência e, como já percebeste, vou ser um atraso de vida para vocês.»

Vincenzo olhou para a bengala que eu segurava e, num gesto repentino, arrancou-ma da mão. Fiquei em desequilíbrio, tentando subitamente suster-me sobre uma perna na qual perdera toda a confiança.

            «Devolve-me isso», disse-lhe, irritado. Ele segurou a bengala na palma das mãos e observou-a atentamente. As raparigas olhavam-no.

            «Vincenzo», disse finalmente a rapariga loura, em tom de censura.

«Oh, Olívia, relaxa. Estou só a dar uma olhadela. Não é todos os dias que vemos uma bengala Rosewood empunhada por um escritor.» Fitou-me. «Sabias que é um dos melhores fabricantes norte-americanos de bengalas, bastões e pinos de golfe? A tua até tem uma pega Fritz. É um portento.»

            Vincenzo devolveu-me a bengala, que aceitei sofregamente, ávido de equilíbrio. Depois piscou-me o olho.

            «Estou cheio de fome. Vamos a isso?»

 

            O episódio da bengala tinha sido caricato e poderia ter sido um problema se, ao longo dessa tarde, Vincenzo não tivesse mostrado que a única coisa que o movera fora a curiosidade. Tinha apenas vinte e cinco anos e, na sua juventude e energia,reconheci um pouco do que eu vinha perdendo com a passagem do tempo. Ainda assim, a sua presença não deixava de ser esgotante. Vincenzo queria viver todas as coisas com a intensidade de um tornado: falava a cem à hora, caminhava com quase tanta rapidez e, frequentemente, a meio de uma conversa, acabava a falar sozinho pois eu tinha ficado para trás, incapaz de o acompanhar, fazendo o lento progresso que a bengala me permitia. Curiosamente, Vincenzo era a doença e era também a cura, uma vez que me tratou, desde o início, com a displicência com que um elefante trata um vaso de cristal. Essa atitude, embora enervante, impunha respeito.

            Almoçámos numa esplanada próxima do rio. Fiquei a saber que Olívia era namorada do italiano mas, quando ela o disse, Vincenzo limitou-se a encolher os ombros.

            «Conhecemo-nos há muito tempo», disse ele, enquanto fumava.

            Estava sempre a fumar. Tinha vários maços de tabaco nos bolsos do casaco e acendia cigarros consecutivos. Fumou o tempo inteiro enquanto partilhávamos um guisado, bebíamos vinho e olhávamos para os torreões que sustentavam a ponte sobre o Danúbio; explicava-me também o enredo do seu único romance publicado. Chamava-se L’ultima rivoluzione e era um livro denso e acrobático sobre um grupo de italianos que resolvia, no auge da juventude, recriar o Maio de 68 em Roma. Nina, sentada a meu lado, interrompia-o constantemente com perguntas, que Vincenzo parecia receber com a força de disparos de bala que interrompiam o seu discurso. Tinha a coisa estudada, pensei, condescendendo; era normal nos escritores mais novos. Depois Olívia perguntou-me sobre o que eram os meus livros. Agitei-me um pouco na cadeira -o vinho servira para abrandar a dor na perna e a transformar numa comichão permanente - e fugi à pergunta. Não me apetecia falar de livros, e muito menos explicar-lhe os meus.

            «São policiais», menti. «Não têm grande interesse, a menos que gostes de policiais.»

            Olívia olhava-me com os seus olhos muito grandes. Havia ingenuidade no seu rosto e uma estranha melancolia que denunciava uma enorme carência.

«É pouco simpático presumires que não me interesso por policiais», respondeu, surpreendentemente ofendida. Olhei para Vincenzo, que sorriu, sardónico.

            «O que provavelmente ele quis dizer», interpelou Nina, olhando para Olívia, «foi que o enredo de um policial é mais linear do que o de um livro como o do Vincenzo. Correspondem a um género que toda a gente conhece e que não vale a pena estar aqui a explicar em pormenor.» Tornou a olhar-me. «Era isso?»

A pergunta ficou no ar. Vincenzo deu um gole no vinho e eu levei a mão ao cabo da bengala, procurando conforto.

            «Sim, deve ter sido isso.» Fitei Olívia. «Não queria ser desagradável», disse, sem qualquer vontade de me desculpar. A expressão indignada no rosto de Olívia suavizou-se.

            «Ou então não foi nada disso, mas porquê discutirmos quando acabámos de nos conhecer?», rematou Vincenzo. Olívia olhou-o de soslaio e ele piscou o olho a Nina, que susteve o olhar do italiano durante algum tempo. Olívia levantou-se e anunciou que ia fumar um cigarro junto ao rio, afastando-se. Vincenzo pousou o copo na mesa.

            «Já volto», informou.

            Fiquei sozinho com Nina. Era, dos três, claramente a mais adulta; alguma coisa nela inspirava confiança. Parecia, ao mesmo tempo, imensamente acessível e suficientemente distante para saber guardar um segredo. Contou-me que conhecera Vincenzo em Brighton, onde o namorado vivia. O namorado também era escritor e amigo do italiano. Perguntei-lhe o nome: era um escocês chamado John McGill, de quem eu já ouvira falar e que publicara um romance aparentemente extraordinário, cujo enredo decorria nos esgotos de Londres. Nina disse que a adaptação cinematográfica do romance estava a ser discutida. Não fiz qualquer comentário; soava-me a uma xaropada de Hollywood.

            «Li uma crítica ao livro algures», acrescentei. «Pareceu-me uma boa história.»

            Junto da ponte, Vincenzo e Olívia fumavam. Encontravam-se de pé, lado a lado, e Vincenzo falava e gesticulava. Olívia escutava-o. Era tão alta como ele, e as longas pernas sobressaíam debaixo de uma curta saia castanha.

            «Perfeitos um para o outro, não achas?», perguntou Nina.

            «Nem mais», respondi.

            «Isso é sério?», perguntou ela, apontando com o queixo na direcção da minha perna.

            Encolhi os ombros.

            «Estou convencido de que sim.»

            «Qual é o prognóstico?»

            «Não faço ideia. O médico diz que está tudo na minha cabeça. Que é psicossomático. A verdade é que tenho dores constantes. A dor é psicossomática? Não faço ideia, mas que dói, dói.»

            «A ferida dói como dói, não era assim que dizia o poeta?»

            «Precisamente», respondi. «Se pensares bem, o que é que os médicos, no fundo, sabem sobre a nossa dor? O que é que sabem sobre nós? Só têm números, tabelas, as malditas radiografias... Sabes que a primeira pessoa que foi submetida a raios X, no final do século dezanove, comentou, ao ver o negativo, que tinha a impressão de estar a olhar para a própria morte?»

            Nina começou a rir e acendeu um cigarro. Fumava Mayfair, uma marca que eu não via desde que estivera em Londres pela última vez, havia quase dez anos.

            «Pensa bem», insisti. «Haverá coisa mais parecida com a representação que fazemos da morte - as ossadas, a caveira – do que o negativo de uma radiografia? A primeira que foi feita, à mão esquerda da mulher do tipo que inventou a maldita máquina, um tal de Wilhelm Rontgen - alguma vez a viste? É uma coisa assustadora, uma imagem mórbida. A primeira vez que entrámos dentro de uma pessoa e a fotografámos por dentro e o resultado é aquele. A própria morte, como disse a pobre senhora, que deve ter apanhado um susto tão grande que só não morreu dele para não ridicularizar a própria ironia.»

            «É só um negativo», disse Nina. «Não representa nada mais do que isso.»

            «Não é completamente verdade», argumentei. «Estou em crer que a ciência julgou, durante muito tempo, que poderia salvar não apenas o corpo, mas também a alma. E que a alma estava guardada algures dentro de nós, uma coisa qualquer que nunca ninguém tinha visto, uma luz ou um sopro, uma substância esquiva. Depois, a ciência avança e a primeira representação que nos oferece do interior do homem - onde, supostamente, reside essa tal alma eterna - parece uma coisa saída de um filme de terror. E, sinceramente, de se perder a esperança.»

            «És um homem com muito pouca fé na medicina, estou a ver», comentou ela. Depois sorriu da ironia. «Se é que faz algum sentido dizer isto.»

            Vincenzo e Olívia tinham desaparecido de vista. A rua Jozsef Attila começava a encher-se de húngaros que emergiam dos escritórios para os bares e restaurantes da zona.

            «Neste momento sou um homem com muito pouca fé, seja no que for», acrescentei, dando um gole no vinho que ia aquecendo dentro do copo. Olhei em redor, procurando os italianos, mas não os encontrei.

            Depois Nina contou-me algumas coisas sobre si. Falava com vagar, cheia de pausas que enchiam a conversa de tranquilidade, de uma serenidade difícil de encontrar. Era agradável ouvi-la: tinha uma voz melodiosa e o sotaque dos documentários de televisão. Explicou-me que, apesar de trabalhar arduamente na agência de direitos de autor, não precisava de o fazer. Herdara algum dinheiro de família que aplicara com bom senso e, na última década, a fortuna triplicara. Tinha sido a herança do avô, que morrera em 1984 - e, quando disse isto, acrescentou imediatamente que parte do dinheiro servia para doações regulares a instituições de caridade.

            «Ninguém tem culpa de ser rico», disse eu, servindo-nos de mais vinho.

            «Ainda assim», respondeu Nina. «Se tenho mais dinheiro do que aquele de que preciso, sinto que devo alguma coisa aos outros. Faz sentido?»

            Encolhi os ombros. «Como é que o teu avô enriqueceu?»

            Nina apagou o cigarro no pires do café. «Tinha negócios privados em Portugal. Na quinta onde eu cresci, no meio do Alentejo.» Disse a palavra em português. «O lugar mais bonito que possas imaginar. Mas a herança mais importante que ele me deixou não foi essa.»

            «Então?»

            «Foi o amor aos livros. Era muito nova quando ele morreu e, nessa altura, ainda não me apaixonara pelas palavras. Hoje lembro-me muitas vezes da enorme biblioteca do meu avô. Julgo que nunca o vi sem um livro na mão.»

«Daí o namorado escritor», gracejei.

Ela riu. «Sim. Talvez só me tenha apaixonado verdadeiramente pelo John depois de o ter lido.»

            «Sabes o que é curioso?», perguntei, sorrindo, embora sem grande vontade. «Eu, no que diz respeito à literatura, regredi. Quero dizer, continuo a ler romances, claro que continuo. Mas descobri que os romances não me dizem nada. Ou deixaram de dizer, não sei. Leio-os como quem lê o jornal: sem amor, com uma leve suspeita de que o que estou a ler é um boato sem fundamento.

            Como se estivesse a ler notícias das coisas que aconteceram aos outros. Abre-se, fecha-se e esquece-se.»

            «Entendo-te», respondeu Nina.

            «Como assim?»

            Nina pensou durante uns momentos.

            «Se estiver a dizer disparates, corrige-me. Mas cada vez mais acredito que só vale a pena ler um romance - neste caso, um bom romance - quando temos uma pergunta na cabeça para a qual não sabemos a resposta. Ou, mesmo que tenhamos encontrado a resposta, se precisarmos de confirmação.»

            Fiquei intrigado. Pedi-lhe nova explicação.

            «Pensa bem: o mesmo se aplica a escrever livros, ou não? Não será o escritor, verdadeiramente, o único interessado naquilo que escreve? Quero dizer, porquê andar a inventar histórias a torto e a direito, a menos que essas histórias sejam a solução, temporária ou absoluta, para um enigma qualquer?»

            «Todos temos enigmas por decifrar», repliquei. «No entanto, nem todos lemos ficção. E somos ainda menos os que a escrevemos.»

            «Justamente», respondeu Nina. «Porque pessoas diferentes encontram as respostas em lugares diferentes. Algumas pessoas encontram-nas na própria vida; talvez eu faça parte desse grupo. Para outras, as respostas só surgem quando se disfarçam de outra coisa qualquer, de uma pessoa que não são. Quando se metem no lugar de uma personagem e depois a fazem passar por agruras, que é aquilo que acontece nos romances.»

            «Ao mesmo tempo, é uma forma de cobardia», respondi. «Deixar que os outros vivam as coisas por nós. Mesmo que os outros sejam invenção nossa.»

            «Pois é», respondeu Nina, sorrindo. «Os escritores, no fundo, são todos uns grandes cobardes e uns mentirosos. As vezes, raramente, são muito corajosos. Mas, geralmente, são só cobardes e mentirosos.»

            Fiquei sem resposta e, nesse momento, Vincenzo e Olívia regressaram. Olívia trazia uma flor púrpura no cabelo. Sorria e dava a mão a Vincenzo, que tinha um cigarro apertado no canto do lábio. O fumo entrava-lhe para os olhos e pestanejava muito.

            «Olhem o que o Vincenzo me comprou», disse Olívia, orgulhosa da sua flor.

«E se pedíssemos a conta?», perguntei, apoiando-me na bengala para me levantar.

 

            Andámos pela cidade durante a tarde, entrando e saindo de cafés e bares. Eu caminhava devagar mas, com o álcool constantemente a correr-me no sangue, as dores não passavam de um ligeiro incómodo. Vincenzo e Olívia iam à frente, conversadores e ébrios. O italiano parecia uma criatura volátil: pior para ele, pensei. Não tinha planos de fazer amizades e era-me indiferente que os meus colegas de conferência gostassem de mim ou me odiassem; queria cumprir o meu papel, receber o cheque e sair dali o mais depressa possível, de regresso ao conforto anestesiante do meu apartamento.

            Por volta das cinco da tarde. Nina despediu-se. Tinha de regressar ao hotel e preparar-se para um jantar com dois agentes literários que se encontravam na cidade por ocasião da conferência. Também quis bater em retirada, mas Vincenzo convenceu-me a jantar com eles - mais tarde apanharíamos um táxi, uma vez que o hotel onde se encontravam não distava muito do meu. Movido por uma ligeira embriaguez, aceitei. A tarde fora passada a falar de livros, de cinema, da vida em Roma e da vida em Lisboa; deixei--me levar pela banalidade das conversas e, subitamente, percebi que estava com fome. Havia muito tempo que não sentia fome - ou, pelo menos, aquele género de fome, que se aproximava muito mais da gula do que da necessidade - e sugeri que procurássemos um restaurante decente.

            Fomos ao Borbíróság, um lugar de que Olívia ouvira falar e que servia autêntica comida húngara. Era sexta-feira: o restaurante estava cheio, e ao bulício dos clientes junto do balcão e dos comensais sentados às mesas juntava-se o aroma das refeições que iam saindo da cozinha. Os nomes dos pratos estavam escritos em húngaro numa grande ardósia pendurada na parede. Bebemos vinho e partilhámos salmão grelhado, galinha com cogumelos e vitela com paprika. Olívia levantou-se no final da refeição, despediu-se e pediu desculpa por nos abandonar; estava muito cansada e queria ir dormir cedo para, no dia seguinte, fazer um passeio turístico. Depois do jantar, Vincenzo acendeu um cigarro e pediu um vodka; perguntou-me se o acompanhava, e concordei com pouco entusiasmo: havia muitas horas que deixara o hotel e a minha perna suplicava pelo conforto de uma cama.

            Quando Olívia partiu, Vincenzo tirou-nos imediatamente do marasmo em que a conversa parecia ter caído. As últimas horas tinham-me convencido - ou quase - de que, apesar de ligeiramente excêntrico, Vincenzo era, no fundo, um rapaz italiano de boas famílias conservadoras. O pai era diplomata, a mãe trabalhava para as Nações Unidas e ele vivia sozinho no apartamento da família em Roma.

            «É, no fundo, um pedaço de merda no meio do caos», disse ele, os olhos claros reflectindo as luzes da sala.

            Não era apenas Olívia que parecia melancólica, pensei; também na expressão de Vincenzo se via uma inusitada melancolia para alguém da sua idade. Esta era uma melancolia diferente da de Olívia, contudo - menos infantil e mais trágica.

            «Dificilmente se podia chamar a Roma um caos», contrapus.

            «Oh, não tenhas dúvida. A cidade é construída contra todos os princípios da utilidade e do bom senso. E o apartamento... Bom, não me faças falar. Os meus pais passam tanto tempo fora que não se deram conta de que há cogumelos a crescerem nos cantos da sala.»

            «Para um italiano, és bastante preocupado com a ordem.»

            Um empregado aproximou-se com dois copos de vodka puro. Pousou-os à nossa frente e afastou-se.

            Vincenzo expeliu o fumo pelas narinas.

            «Eu sou de Milão. Isso explica alguma coisa. Também temos de ter em conta o facto de ser filho único e de ter vivido praticamente sozinho desde os oito anos. Quero dizer, houve umas baby-sitters. Mas cedo os meus pais perceberam que eu não precisava de tanta atenção.»

            «Então criaste a tua própria estrutura e, por isso, aprecias a ordem.»

«Talvez eu seja um paradoxo. Aprecio a ordem, mas não me passa pela cabeça tirar os cogumelos dali. Gosto de os ver crescer, como se, às tantas, eles se pudessem apoderar do mundo. Inesperadamente, os fungos tomarão o poder e substituirão o reinado dos meus pais.»

            Comecei a rir do absurdo. O vodka estava gelado e subiu-me rapidamente à cabeça.

            «Porque é que não mudas de apartamento?»

            Ele encolheu os ombros.

            «Não quero viver em Itália, muito menos em Roma. É engraçado para os turistas mas, para um italiano, representa todos os defeitos da civilização contemporânea, construída por cima de uma outra, quase perfeita.»

            «Vincenzo, Imperador», gracejei. «Bem-haja.»

            Erguemos os copos e fizemos um brinde.

            «E quanto à Nina? Qual é a história?»

            Ele percebeu a minha intenção e sorriu. Os dentes tortos brilharam à luz intensa dos candeeiros do tecto.

            «A história é sempre a mesma, meu caro. A Nina tem outro homem na vida dela.»

            «Tu também tens outra mulher.»

            «A Olívia?» Vincenzo apagou o cigarro, os cantos da boca sorridentes e cínicos. «A Olívia é uma grande cama. Mas não passa de um entretanto, um intervalo necessário entre as coisas. É como ir ao cinema e, porque o projector se avariou, sermos obrigados a ir fumar um cigarro lá fora. Encontramos a Olívia, damo-nos bem durante dez minutos, e depois regressamos ao filme e nunca mais nos lembramos do cigarro que fumámos.»

            «Já lhe disseste isso? Aposto que ia ficar encantada.»

            «Estava a guardar esta teoria para lhe escrever um belo poema de amor.»

            «Fala a sério. Como é que a Nina entra no meio disto?»

            Vincenzo deixou-se recostar na cadeira e sorriu.

            «A história é mais complicada do que isto, mas basicamente reza assim: há dois anos, conheci um tipo chamado John McGill em Brighton. Foi também nessa viagem que conheci a Nina. Nessa altura ele já tinha escrito o romance, mas ainda não tinha sido publicado.»

            «Como é que se chama o livro?»

            «The Old Fires.»

            «Precisamente. Não me lembrava.»

            «Leste-o?»

            «Li excertos em revistas. Pareceu-me uma coisa decente.»

            «O McGill é genial.» Vincenzo calou-se e ficou absorto durante um momento. «Enfim, para encurtar a coisa: assim que o romance foi publicado, li-o de uma assentada e fui ter com o Taddeo à Grécia, onde ele passava férias.»

«Quem é o Taddeo?»

«É o meu pai. Desculpa. Adiante: ofereci-lhe o romance e recomendei-o vivamente. Acontece que o Taddeo» - Vincenzo acendeu outro cigarro, o fumo escondendo o seu rosto oval e infantil - «anda a correr mundo há vinte anos e conhece muita gente. Durante uma visita a Nova Iorque, encontrou o Don Metzger e mostrou-lhe o livro do McGill.»

            «Don Metzger?»

            Ele riu-se. O barulho em nosso redor diminuíra e o restaurante tinha-se esvaziado. Devia ser tarde, mas o álcool fizera-me perder a noção do tempo.

            «O Metzger é um dos maiores produtores de cinema da actualidade», disse Vincenzo.

            «É estranho nunca ter ouvido falar dele.»

            «Eu disse dos maiores, não dos mais conhecidos. Produziu inúmeros filmes independentes que ganharam festivais um pouco por toda a parte. Toda a série do Klaus Kasper até ao Fome, por exemplo. Os Diários de Rimbaud há cinco ou seis anos. O Trovador, do Jacques Giraud. Já ouviste falar da Elsa Gorski?»

«A mais jovem actriz a vencer um prémio em Cannes? Claro que sim.»

            «Bom, a Elsa Gorski assinou um contrato de exclusividade com o Metzger quando tinha dezassete anos. Só para perceberes a dimensão da coisa.»

            «Quer dizer que Metzger produziu todos os filmes dela?»

            «Alguns, sim. Outros, delegou-os em homens da sua confiança. A coisa mais curiosa acerca do Don Metzger é que ele detesta aparecer. É o contrário desses filhos-da-puta de Hollywood: nunca o verás pisar uma passadeira vermelha. Até se diz que já usou nomes alternativos nos genéricos dos filmes.»

            «Parece um tipo peculiar.»

Vincenzo acendeu outro cigarro e ofereceu-me um. Hesitei, mas depois decidi aceitar. Tossi à primeira passa e o fumo cegou-me por completo.

            «Bom, isto para dizer que, assim que o Metzger leu The Old Fires, disse imediatamente ao meu pai que havia ali um filme fabuloso. Isto foi há um ano e, como deves saber, estas coisas do cinema demoram eternidades. Quando contei a novidade ao McGill, ele ficou de tal maneira entusiasmado que veio visitar-me a Roma, na companhia da Nina.»Fez uma pausa demorada. «Eu e a Nina tornámo-nos mais próximos nessa visita.» «E tu e o McGill?»

            Vincenzo sorriu, embora não conseguisse dizer se era um sorriso irónico, se triste.

            «Digamos que eu e o McGill temos tido os nossos problemas. Não somos inimigos nem coisa parecida, não me entendas mal. Só que o John tem uma personalidade muito forte. Que, por vezes, resvala para uma espécie de...» «De...?»

            «De arrogância, talvez. Ou de desprezo. É difícil dizer.» «Entendo», respondi. O cigarro começava a saber-me excepcionalmente bem.

            «Eu e a Nina começámos a encontrar-nos ocasionalmente. Ela viaja bastante por causa do trabalho, eu viajo bastante porque preciso de fugir de Roma sempre que possível. Julgo que o McGill nunca achou graça a estes encontros fora da sua alçada.» «Uma espécie de Audrey Hepburn no Férias em Roma.» «Se eu fosse um jornalista americano, claro está.» «Queres dizer que, neste momento, o John McGill está em Brighton a fazer vudu com um boneco vagamente parecido contigo.» Vincenzo acenou ao empregado de mesa e pediu mais dois vodkas. Eu fiz sinal de recusa, mas o italiano pareceu não dar por ele.

            «Acho difícil. Vou explicar-te uma coisa: a Nina não estaria aqui se o McGill não tivesse interesse nisso. É verdade que ela acabou por arranjar as suas reuniões de negócios em Budapeste, mas

O motivo fundamental da sua presença são as notícias iminentes do Don Metzger. O meu pai disse-me, há coisa de duas semanas, que a oferta pelos direitos cinematográficos do romance está presa por detalhes e, a qualquer momento, o telefone pode tocar. Quando contei isto à Nina, ela disse imediatamente que viria ter connosco à Hungria.»

            «Achas mesmo que a Nina só aqui está por essa razão?»

            Vincenzo pensou durante um momento. Parecia estranhamente sóbrio, como se a bebida tivesse nele o efeito inverso do normal. Depois encolheu os ombros.

            «Não me compete julgar as razões dela. A Nina é boa pessoa e adora o John; os dois sabem perfeitamente que este é o caminho mais directo entre ele e o Don Metzger.»

            «Como assim? O Metzger não podia tratar do assunto com um agente? Certamente o McGill terá um agente.»

            «Sim. A Nina.»

            «Estou a ver. E não era mais fácil o produtor telefonar-lhe directamente?»

            Vincenzo sorriu. «Não estás mesmo a ver a coisa; ou pelo menos, ainda não estás. Com o Don Metzger, nada funciona pelas vias comuns, e ele só lida com agentes em fases posteriores. Primeiro, insiste em conhecer pessoalmente todos os autores em quem aposta. Quando decidir fazer a oferta para os direitos do livro, será o mais discreto possível e telefonará ao meu pai, que foi quem lho mostrou. O Don telefona ao meu pai, o meu pai telefona-me, eu falo com a Nina, ela dá as notícias ao John. Por esta ordem.»

            «O círculo não se quebra.»

            «Precisamente.»

            «Que personagem e pêras, esse Metzger», aventei.

            «Suponho que sim.» Quer dizer que tu não o conheces.»

            Vincenzo concordou com um aceno de cabeça.

            «Bom, e como é que ele vai conhecer pessoalmente o McGill, se decidir apostar nele?»

            «Nesse caso, eu sou o intermediário que lho apresentará.»

            «Como assim? O que é que acontece?»

            Vincenzo olhou-me com uma intensidade fingida. Depois chegou a cadeira à frente e debruçou-se sobre a mesa, aproximando o rosto do meu.

«Acontece o Bom Inverno.»

Fiquei a olhá-lo durante algum tempo, tentando compreender se o tinha ouvido bem. O último grupo de clientes deixava o Borbíróság naquele momento, e os empregados começavam a limpar o restaurante.

            «O que é isso?»

            Vincenzo fez uma pausa propositada para aumentar a tensão. Bateu com a ponta do cigarro no cinzeiro e a cinza caiu.

            «O Bom Inverno é como o Metzger chama ao Verão em Itália. O tipo tem uma propriedade no Sul do país, algures entre Nápoles e Roma, próximo de uma pequena cidade costeira chamada Sabaudia.»

            «Nunca ouvi falar.»

            «Sabaudia é um lugar estranho, que cai algures entre o cinema realista italiano aprovado por Vittorio Mussolini, filho do grande ditador, e o melhor surrealismo de Fellini. Difícil de explicar. A cidade foi mandada construir por Mussolini em cima de uma vasta extensão de pântanos drenados. A construção é pura arquitectura do regime fascista e muitos dos seus habitantes são... Bem, são velhos amargos e saudosos dos tempos da ditadura apenas porque nessa altura ainda eram novos, como os adultos às vezes são saudosos dos tempos da adolescência. E, ao mesmo tempo, Sabaudia foi também estância de férias do Pasolini e do Moravia.»

            «Um lugar bizarro.»

            «Seja como for. Os verões na propriedade de Metzger são conhecidos na comunidade artística internacional, e não apenas a do cinema. Desde o final dos anos setenta, quando o tipo comprou o terreno e mandou construir a casa, que convida os amigos e aqueles com quem deseja trabalhar no futuro. É a maneira de os fazer sentir-se confortáveis. Estás a ver, o Metzger é discretíssimo na sua vida quotidiana mas, quando chega a Itália, as coisas mudam de figura. O meu pai esteve lá umas quantas vezes e disse que as festas são de arrasar. O James Leffers foi convidado e chegou a Sabaudia com uma trupe de dez pessoas que vieram da Califórnia com ele. Nesse mesmo Verão começou a escrever o Bandwagon.»

            «Que foi adaptado ao cinema mais tarde.»

            «Pelo Metzger.»

            «Estás convencido de que, este ano, será a vez do McGill.»

            Vincenzo arqueou as sobrancelhas.

            «Talvez não seja só a vez do McGill.»

            «Como assim?»

            «Sabes o que é que o meu pai me disse?»

            «Tenho algum receio de saber.»

            Vincenzo inclinou-se outra vez sobre a mesa e falou em voz baixa.

            «Disse-me que, se o Metzger decidir convidar o McGill, eu devia ir também. Disse-me, ao telefone, que explicou ao Don que eu e o McGill somos amigos e que o Don respondeu que gostava de me conhecer.» Vincenzo pousou o cigarro no cinzeiro e entrelaçou os dedos das mãos. «O meu pai tinha a minha idade quando foi à casa de Verão do Don pela primeira vez. E acha que está na altura de eu ir experimentar o Bom Inverno.»

            «Não seria melhor que o gajo te convidasse mesmo?»

            «A regra é esta: tens de estar ligado a alguém que suscite o interesse do Don; desde que seja assim, as portas da mansão de Sabaudia estão abertas. Ora, eu tenho o McGill. E, agora, o homem disse que gostava de me conhecer. Isto, meu amigo, é aquilo a que se chama uma oportunidade única.»

            «Oportunidade para quê?»

            Vincenzo bebeu o que restava do vodka. «Para lhe mostrar que há mais do que um Gentile que vale a pena.» Comecei a rir. «Não te tomava por um interesseiro.»

            «Não sou interesseiro», respondeu. «Sou curioso. Gosto de aventuras e preciso delas para as minhas histórias. Além disso, na casa de Sabaudia fazem-se contratos milionários e consolidam-se carreiras à beira do lago. Eu aprecio os lagos. Também se bebe muito, disse-me o meu pai. E eu gosto de beber. Se o Metzger vier a interessar-se pelo que escrevo, porreiro. Senão, o que conta é ter lá estado, é ter vivido o momento. Para além disso, quem sabe

o que pode acontecer? Talvez, discretamente, enfie um exemplar de L’ultima rivoluzione debaixo da almofada do homem.»

            Fez uma pausa breve. Depois repetiu: «Talvez.»

            «Ainda não me explicaste essa história do Bom Inverno. Estamos em Junho, porra.»

            Ele encolheu os ombros e voltou a pegar no cigarro.

            «Sei lá. Há anos que ouço o meu pai usar essa expressão. Presumo que só o Metzger saiba a resposta.»

            «Bom, se um dia descobrires porquê, faz o favor de me elucidares.»

            Tirei o guardanapo do colo, procurei o cabo da bengala debaixo da mesa e bocejei. O restaurante estava completamente vazio, e um último e solitário empregado limpava o balcão do bar com um pano molhado. «Estou a adorar a conversa, mas amanhã temos um longo dia. Vamos andando?»

            Vincenzo pareceu não me ouvir.

            «Ouve lá, estou a ter uma ideia bestial.»

            Pousei o guardanapo usado sobre a mesa.

            «As famosas últimas palavras antes de um desastre iminente.»

            «Se o telefonema chegar, podias vir connosco a Sabaudia.»

            Fitei-o, incrédulo.

            «Não quero parecer mal-educado, mas acabámos de nos conhecer.»

            Os olhos de Vincenzo brilhavam de entusiasmo.

            «A sério, imagina bem as possibilidades. Somos os dois escritores, somos os dois jovens. Passar uns dias na casa de Metzger pode ser uma experiência do caraças. Que tem a vantagem de poder acontecer precisamente agora.»

            «Escuta», disse, interrompendo-o bruscamente. «É a primeira vez que estou a ouvir falar dessa história toda. Do Metzger, de Sabaudia, do Bom Inverno, seja lá o que for que isso queira dizer. Embora aprecie o teu entusiasmo, não estou numa altura da minha vida em que o consiga partilhar.» Levantei a bengala e mostrei-lha. «Sou um inválido de trinta e tal anos e preciso de dormir.»

            Vincenzo olhava-me com uma expressão zombeteira.

            «A bengala não te impediu de vires até Budapeste.»

            «Fui convidado. Eu não vou a lado nenhum sem ser convidado e, grande parte das vezes, não vou mesmo quando me convidam.»

            «Já te disse que não é assim que a coisa funciona com o Don Metzger. Olha o caso do James Leffers.»

            «O Leffers ganhou o Pulitzer», contestei, cansado. «Mesmo que a casa desse tal produtor seja uma comunidade de artistas onde ninguém precisa de convite porque, afinal, os artistas nunca precisam de convite para nada, há outras coisas prementes na minha vida neste momento.»

O italiano olhava-me em tom de desafio.

            «Tais como?»

            Um empregado aproximou-se e informou-nos de que o restaurante ia fechar. Olhei para o relógio de parede: era quase uma da madrugada.

            «Tais como apanhar um táxi para o hotel», respondi.

            Vincenzo soltou um riso sarcástico.

            «Tu sempre foste assim?»

            «Assim, como?»

            «Indisponível. Fechado em copas para o resto do mundo.»

            Soltei um longo suspiro. O empregado olhava-nos à distância.

            «O meu problema foi sempre o oposto. Pelo menos até há poucos anos. Vivi muito tempo demasiado disponível. Demasiado pronto a experimentar um bocado de tudo. Queria estar em toda a parte ao mesmo tempo e tinha inveja de toda a gente que estava noutro lugar qualquer. Um bocado como os velhos que têm saudades da ditadura só porque na altura ainda eram novos. Fui um hedonista, e o hedonismo paga-se caro.» Apoiei-me na bengala com a mão direita e levantei-me a custo. «Agora preciso de dormir», disse, rematando a conversa.

            Saímos e apanhámos um táxi. Quando atravessávamos a ponte entre Buda e Peste, Vincenzo sorriu e disse:

            «Não precisas de responder já. Pensa no assunto.»

            As luzes da cidade reflectiam-se na água como diamantes submersos nas profundezas.

 

            Dormi a espaços por causa das dores. Quando dormi, tive sonhos estranhos que roçavam o pesadelo: uma casa escondida no meio de um bosque, Mussolini a afogar-se num pântano, o esqueleto da mulher de Wilhelm Rontgen, Nina e Vincenzo fazendo amor na água salobra de um esgoto londrino. Acordei esgotado, sem qualquer energia. Vincenzo, Nina e Olívia apareceram às nove e meia num táxi e fomos directamente para o Centro de Congressos de Budapeste, em Jagelló út, ao lado de um hotel moderno. O italiano parecia ter dormido uma semana e, com uma energia que eu começava a achar insuportável, falou ininterruptamente dos planos de Sabaudia, aonde eu explicara que não queria ir. Olívia escutava-o atentamente, enquanto ele, no banco da frente, ao lado do condutor, oferecia uma descrição da propriedade de Metzger a partir de um relato que o pai lhe fizera. Nina ia sentada ao meu lado e deu-me uma cotovelada.

            «Parece que ficaste a saber de tudo ontem à noite», disse, sorrindo.

            «Muito mais do que queria», respondi.

            «Ele é mesmo assim. Entusiasma-se com tudo.»

            «Tu também devias estar entusiasmada. Afinal, são óptimas notícias para o McGill.»

            «Prefiro esperar para ver», respondeu.

            «E se chegar a acontecer? Se o tal Don Metzger quiser os direitos do romance?»

            Nina pareceu confusa.

            «Óptimo para o John. Óptimo para mim, que o represento.»

            «Não é a isso que me refiro», disse, observando atentamente os olhos azuis de Nina. «Se acontecer, vais para Sabaudia com o Vincenzo?»

O italiano continuava a falar com Olívia em voz alta. A nossa conversa encontrava-se abafada pela sua voz e pelo tráfego intenso. Nina hesitou um momento.

            «Parece que sim. Quero dizer, se for necessário para que o negócio se concretize. Aparentemente, o Don gosta de conviver com os artistas e os escritores, mas alguém tem de levar a caneta ao papel.»

            Estava maldisposto e decidi provocá-la.

            «E o John? O que achará ele disso?»

            Ela fitou-me, interrogativa. Depois disse:

            «O John irá certamente juntar-se a nós.»

            Nina remeteu-se ao silêncio durante o resto da viagem. Quando chegámos ao Centro de Congressos, decidi afastar-me daquelas três personagens durante o resto da minha estadia em Budapeste. O local das conferências era um edifício moderno, com janelas de vidro que reflectiam o sol radioso da manhã e longas escadarias que conduziam a diferentes anfiteatros. Despedimo-nos à entrada - Vincenzo tinha uma apresentação marcada num anfiteatro diferente, e Olívia e Nina acompanharam-no - e prometi, sem qualquer intenção de vir a cumprir a promessa, que os voltaria a encontrar no final. De maneira que fiquei sozinho no meio do átrio. Passados cinco minutos estava cego com tanta luz e arrastava-me de bengala, confuso e perdido, tentando fintar centenas de pessoas que se moviam em diferentes direcções, à procura de alguém que me pudesse ajudar e amaldiçoando-os por me terem deixado. O sotaque húngaro começava a irritar-me como uma abelha a zunir-me nos ouvidos. Eva Kalman apareceu subitamente, vinda de parte nenhuma, e segurou-me o braço direito com vigor.

            «Venha, venha», disse-me, sorrindo, e levou-me para dentro de um elevador.

A conferência foi penosa. No meu grupo encontravam-se cinco escritores da Europa de Leste e um escocês gordo e suado que publicara um romance histórico. O anfiteatro estava meio cheio e, por alguma razão, as vozes de um auditório adjacente chegavam-nos em ecos distantes. Cansado e dorido, olhei para os meus colegas de mesa e achei-os piores do que no dia anterior, como se o aspecto andrajoso com que se haviam apresentado no Palácio Karolyi houvesse sido um fato de gala comparado com o aspecto que tinham naquela manhã. O moderador apresentou cada um dos participantes e, quando chegou a minha vez de intervir, entrei propositadamente, para contrariar a poetisa romena que acabara de falar, numa diatribe sobre a morte prematura da poesia europeia, argumentando que a seguir à Segunda Guerra Mundial e a T.S. Eliot nada havia senão um vazio existencial pontuado por espirros inconsequentes. A tese era completamente aleatória e sem fundamento e foi recebida com espanto pelos outros escritores e com silêncios embaraçados por parte do público, até que o moderador interrompeu o meu discurso belicista e trocou de interveniente.

            Passei a hora do almoço sozinho na cafetaria do edifício, a bengala encostada ao vidro da janela, observando os escritores que comiam em grupos pequenos e o público fumando cigarros à varanda. Talvez tivesse pisado o risco, pensei enquanto comia mais um guisado, mas não tinha qualquer sentimento de culpa. Prometi a mim próprio, nesse momento, que jamais tornaria a participar em encontros de escritores e vieram-me à cabeça as palavras de Nina - e a sua voz tranquila, e o seu rosto plácido -quando dissera que os escritores eram uns cobardes e uns mentirosos e se refugiavam na literatura, que era uma mentira impossível em substituição da vida possível que constantemente recusavam.

            As sessões da tarde decorreram sem entusiasmo. O público compareceu em maior número, mas os participantes tinham perdido o fulgor matinal e as conversas moveram-se em círculos. Na primeira fila, Eva Kalman olhava-me com uma mistura de incredulidade e comiseração. Quando a sessão terminou, por volta das cinco, o público aplaudiu frouxamente aqueles que eram provavelmente os escritores mais aborrecidos da literatura europeia e, exausto, coxeei para fora do anfiteatro, decidido a dormir uma noite de sono decente e a arranjar uma desculpa qualquer para evitar os debates dos próximos dias.

            No átrio, desci a escadaria que conduzia ao exterior, a uma praça onde uma fila de táxis se acumulava atrás de um quiosque, quando ouvi a voz de Olívia. Voltei-me e vi-a sentada no degrau superior das escadas, os braços cruzados sobre as pernas, a fumar um cigarro. A luz do final da tarde batia-lhe em cheio no cabelo louro, que estava solto e lhe cobria metade do rosto.

            «Vais bater em retirada?», perguntou.

            Subi dois degraus até os meus olhos ficarem ao nível dos dela.

            «Estava a pensar seriamente nisso», admiti. «E tu? Que é feito do Vincenzo?»

Olívia apontou para a porta. «Está a receber elogios e a dar autógrafos.»

            «Uau. A coisa deve ter corrido bem.»

            «Ele é mesmo assim», respondeu Olívia, encolhendo os ombros. Parecia cansada. «Chama a atenção em qualquer parte onde lhe dêem oportunidade de falar.»

            «Não pareces muito entusiasmada.»

            Olívia tentou sorrir com os seus dentes muito perfeitos. O sorriso saiu-lhe falso.

            «Na verdade, estou um bocado enervada com ele.» Olhou-me durante um momento. «Podes sentar-te aqui um bocado?»

            Hesitei e depois subi o resto dos degraus e sentei-me ao lado dela. Vestia uma camisola interior de alças e, através do decote, reparei no soutien preto que usava por baixo.

            «Não sei se serei a melhor pessoa para isto», adverti.

            «Esta história da Nina e do namorado», interrompeu Olívia, sem me dar ouvidos. «Esta história de Sabaudia. De repente, é como se nada mais existisse; é como se eu não existisse. Desde que o pai lhe telefonou e lhe falou da possível proposta do não-sei-quantos, é como se o resto da vida dependesse disso, ou como se a vida tivesse começado agora e tudo o que ficou para trás fosse insignificante.»

            «O Don Metzger.»

            «O quê?», perguntou Olívia em voz alta.

            «O não-sei-quantos chama-se Don Metzger.»

     «Está bem», aceitou. «Desde que isso aconteceu, não sei. É como se o Sol tivesse parado de girar em torno da Terra.»

            «É o contrário», emendei.

            Olívia pareceu confusa.

            «A sério?»

            «Tudo bem, és pré-galileana. Cada um na sua.»

            Olívia começou a rir. Era um riso honesto; ao menos tinha isso a seu favor.

            «Tens razão, que estúpida que eu sou. Claro que é assim. A Terra à volta do Sol.»

            «Mas estavas a falar de Sabaudia.»

            Olívia continuou a falar.

            «Quero dizer, o livro nem sequer é dele. É de um inglês qualquer que eu nem conheço. Quando o Vincenzo se entusiasma investe em qualquer coisa, desde que seja excitante. Ou lhe pareça excitante. Achas normal? Achas normal que ele esteja tão entusiasmado com uma coisa que nem lhe diz respeito? Como se o sucesso dos outros fosse o sucesso dele?»

            «Ontem falámos um bocado ao jantar. Não me parece que o teu namorado seja assim tão altruísta.»

            «Então diz-me, por que carga de água temos de ir para Sabaudia com a Nina, se o tal Metzger telefonar por causa de um livro que não foi escrito pelo Vincenzo?»

            Fiquei sem resposta, tentando avaliar, na minha cabeça, a melhor maneira de sair daquela confusão.

            «Já pensaste que pode ser uma boa oportunidade para ele? Se as coisas forem como parecem ser, se esse Metzger for mesmo um tubarão, e se o romance do Vincenzo for bom, talvez possa ter a mesma sorte que o do McGill.»

            Olívia olhou-me com descrença. «O romance do McGill foi um sucesso em Inglaterra. O do Vincenzo vendeu três ou quatro mil exemplares em Itália.»

       «Mas o pai do Vincenzo e o Metzger são amigos, o que é uma vantagem.»

            «O Taddeo nunca lhe mostraria o romance do filho.»

            «Nunca o mostraria porquê?»

            Olívia abanou a cabeça. «Nunca. É tradição da família: não se ajudam mutuamente, ou pelo menos não se ajudam de maneira directa. São demasiado orgulhosos. É cada um por si. Nenhum deles gosta de mostrar afecto ou carência, nenhum deles quer reconhecer que precisa dos outros. Por isso fazem tudo por portas travessas.»

            «Estás a dizer o quê? Que o Taddeo mostrou o romance do McGill ao Don Metzger com segundas intenções?»

            «Ele certamente contou-te», retorquiu Olívia, sorrindo como se eu estivesse a tentar desviar a conversa. «O não-sei-quantos disse ao Taddeo que queria conhecer pessoalmente o Vincenzo, o que ele interpretou como um convite para ir a Sabaudia a propósito do livro do inglês. Tem esperança de que o produtor o leve a sério e considere também o seu romance. E, entretanto, isto parece uma coisa casual quando na verdade o Taddeo planeou a situação toda. É assim que eles fazem as coisas. Bizarro, não?»

            A tarde começava a esfriar e um vento vagaroso cruzava a praça.

            «Bom, duvido que haja um único escritor que não queira ver o seu romance no cinema. Os direitos valem uma fortuna, já para não falar do número de pessoas a que, de repente, a tua história chega. É uma ambição compreensível.»

            «Para as pessoas normais, sim. Para o Vincenzo, é completamente diferente.»

            «Como assim, diferente? Ele ontem falou-me em meter um exemplar do livro debaixo da almofada do Metzger.»

            Olívia desviou o olhar e fitou um pombo que saltitava, inseguro, pelos degraus. Depois suspirou.

            «Não sei explicar. Parece-me sempre tudo uma desculpa para outra coisa qualquer. Eu conheço-o há muito tempo; conheço-o há demasiados anos. Nada nele é transparente. O Taddeo também é assim. Sabaudia é uma experiência, tal como escrever é uma experiência, tal como a Nina e o McGill são uma experiência. Tal como eu sou uma experiência. É o modo como ele vive as coisas, acho eu. Deixa ver o que acontece se eu agitar estas águas. Deixa ver o que sucede se eu mergulhar neste rio. Talvez não compreendas o que te estou a dizer porque, quando se conhece o Vincenzo, ele tem tanta energia que nos deixa atordoados, não é? Depois torna-se, simplesmente, esgotante.»

            «Tem vinte e cinco anos. É normal.»

            «Eu tenho vinte e cinco anos», respondeu.

            As portas atrás de nós abriram-se e dezenas de pessoas começaram a descer as escadas. As conferências tinham terminado.

            «Talvez seja diferente para um homem. Talvez, nessa idade, haja uma dose acrescida de inquietação.»

            «Não sei se aguento tanta inquietação», acrescentou Olívia, erguendo-se. «Não sei quanto tempo mais aguento isto sem me passar.»

            Estendeu-me a mão para me ajudar. Assentei a bengala no chão. As pessoas desciam as escadas desviando-se de nós.

            «Às vezes gostava que ele fosse mais como tu», disse Olívia.

            A afirmação deixou-me aterrado.

            «Olha que estás enganada», contestei.

            «Mais velho, isto é. Mais maduro.» Pensou durante um segundo. «Mais leve.»

As palavras de Olívia atingiram-me como um martelo. Ali estava eu, prematuramente inválido, a fazer o papel do homem romântico - ou do homem castrado. Tentei inventar rapidamente uma resposta sarcástica mas, quando me ocorreu, já Vincenzo e Nina desciam as escadas. O italiano vinha algo eufórico e rubro do calor no interior do edifício; Nina aparentava a calma do costume.

            «Ouvi dizer que deste um belo espectáculo esta manhã», disse o italiano, acendendo um cigarro. «Lá dentro já és uma espécie de figura mitológica que come poetas ao pequeno-almoço.»

            Encolhi os ombros. Não estava com paciência para provocações. Fiz um aceno geral com a mão.

            «Adeus. Deixei os analgésicos no hotel e eles chamam por mim.»

            «Ei», disse Vincenzo, descendo um degrau. Tinha as pupilas dilatadas. «Já pensaste na proposta de ontem?»

            Não consegui evitar um sorriso incrédulo; aquele era um homem com uma missão. Como dissera Olívia, era um homem disposto a agitar as águas e a mergulhar nesse rio. Ter-lhe-ia tirado o chapéu se tivesse chapéu; naquele momento, contudo, eu precisava de terra firme.

            «Agradeço-te uma vez mais», respondi, batendo com a ponta da bengala na pedra dos degraus. «Uma vez mais, vou recusar.»

Lancei um derradeiro olhar a Nina e a Olívia e depois coxeei na direcção da paragem de táxis. Sentia o olhar do italiano queimar-me as costas.

            Tomei os comprimidos e adormeci logo. No último momento de vigília, pensei, sem saber porquê, em Magda. A doce Magda, que eu levara ao limite da paciência com a minha indisponibilidade para tudo. Senti um frémito qualquer de natureza sensual, mas estava demasiado cansado para o explorar e adormeci. À uma e meia da manhã acordei em sobressalto. Tinha a horrorosa sensação de que alguém estava sentado ao lado da minha cama a tocar um tambor. Abri os olhos, acendi a luz, olhei para o relógio e compreendi, estremunhado, que alguém batia à porta do quarto com violência. Ouvi o meu nome ser gritado um par de vezes por uma voz masculina. Disse um palavrão e levantei-me da cama, cambaleante. Deixara a bengala no sofá do outro lado do quarto e, agarrando-me aos objectos que fui encontrando pelo caminho, consegui chegar à porta sem cair. Olhei pelo óculo e, no corredor, vi o rosto do italiano deformado pela perspectiva, o nariz torto demasiado grande para o resto da cara, os olhos esbugalhados.

            Abri a porta e Vincenzo entrou, cantando o meu nome. Trazia uma cigarrilha acesa na mão direita. Estava bêbedo.

            «Bela merda», disse, olhando em redor. Depois deixou-se cair aos pés da cama, apoiando a cabeça na palma da mão.

            «Sabes que horas são?»

Arrastei-me e fui buscar a bengala ao sofá.

            «São horas de segundas oportunidades, meu caro.»

            Fui à casa de banho e lavei a cara.

            «Para quê?»

            «Já viste o Michael Clayton?»

            Sequei o rosto com uma toalha; continuava dormente de sono e dos comprimidos. A voz de Vincenzo, demasiado nasalada e afectada pelo álcool, feria-me os ouvidos como uma sirene de ambulância.

            «O filme?»

            «Sim, o filme. Lembras-te daquela parte em que a personagem, o próprio Clayton, pára o carro no meio de uma estrada no campo e, sem sabermos porquê, vai ter com uma manada de cavalos selvagens que estão a pastar sobre uma colina?»

Saí da casa de banho e fui procurar os analgésicos; encontrei-os debaixo de uma meia perdida em cima de uma cadeira. Tomei dois.

            «Mais ou menos. Isso é importante para ti a esta hora?»

            «Não, é importante para ti», corrigiu, soerguendo-se, a cinza da cigarrilha caindo sobre o lençol. «O Clayton safa-se de morrer numa explosão dentro do carro porque vai ver a manada de cavalos. Deus ex machina. O arbítrio intercede a seu favor. Tu, meu amigo, és o Michael Clayton, e eu sou a tua manada. Salvo seja.»

            Sentei-me na cadeira e respirei fundo.

            «É tarde. Começo a perder a paciência para estas charadas.»

            «O teu regresso a casa é a bomba no carro. Pum.»

            Fez um gesto como se alguma coisa tivesse explodido no ar.

            «Meu deus», disse, irritado. «Isto ainda é sobre Sabaudia?» Respirei fundo. «Escuta, eu aprecio o facto de me teres convidado. Mas considera por um momento o absurdo da situação.»

            «O meu pai ligou.»

            Fiquei em silêncio.

            «O meu pai ligou», repetiu. «O Metzger quer-nos em Itália o mais depressa possível.»

            Sentia-me nauseado. Os comprimidos nadavam-me no estômago vazio.

            «Óptimo para vocês. Óptimo para o McGill, para ti e para a Nina. Espero que corra tudo às mil maravilhas.»

            Vincenzo fez um esgar entediado e levantou-se da cama, ajeitando a gravata torta.

            «Muito bem, não insisto mais. Mas ao menos faz isto por mim: vem beber um copo connosco, uma espécie de despedida oficial.»

            «Quando?»

            «Agora. Elas estão à espera lá em baixo.»

Olhei para o relógio de cabeceira. Passavam quarenta e sete minutos da uma.

 

            Apanhámos um táxi e pedimos ao condutor que nos levasse a um bar ainda aberto. Fomos ao Janis's, um pub irlandês. O interior era escuro e tresandava a cerveja. Alguns quarentões bebiam canecas ao balcão e um grupo de gente nova e embriagada sentava-se a uma das mesas. O tema do bar era a Janis Joplin, e a decoração incluía cartazes antigos e pequenas figuras da cantora. Nenhum deles pareceu reparar nisto. Vincenzo falava obsessivamente dos planos de Sabaudia e começava a alinhavar os preparativos; Olívia parecia cansada, como se também estivesse meio adormecida; Nina tentava fazer uma chamada do telemóvel. Entretanto, os analgésicos que tomara tinham-me deixado numa lassidão profunda. Naquele ambiente cheio de fumo e de criaturas solitárias ao balcão, começava a sentir que descia devagarinho a um lugar inóspito, menos do que real, do qual precisava de me evadir com a maior urgência. Vincenzo era insuportável, Olívia desesperadamente carente, e Nina - embora com ela partilhasse maior comunhão espiritual, como se, de certa maneira, fosse mais verdadeira ou mais real aos meus olhos - estava demasiado embrenhada naquele bizarro enredo para poder partilhar da minha estupefacção.

            Vincenzo trouxe cervejas do balcão e propôs um brinde.

            «Ele já respondeu?», perguntou, ansioso.

            Nina voltou a olhar para o telemóvel. «Ainda não», disse. Usava um vestido de alças que expunha as suas omoplatas salientes.

            «Devíamos ficar até ao final», disse Olívia. «Acho estúpido partirmos assim, tão de repente.»

            Vincenzo fumava um cigarro. Deu uma passa longa.

            «A nossa parte está feita. Não tenho mais mesas em que participar, e raios me partam se vou ficar a assistir à parada dos mortos-vivos.»

            «Não sejas ordinário», disse Olívia. Não tocara na cerveja e parecia tensa.

            «O que é que achas. Nina?», perguntou Vincenzo.

            Nina fitou Olívia.

            «Julgo que não faz mal se partirmos amanhã, desde que o Vincenzo informe a organização.»

            «Amanhã?», perguntei.

            Nina olhou-me e sorriu.

            «Temos pena de que não venhas connosco.»

            «Duvido de que os meus ossos aguentassem tanta excitação.»

            «Também acho que prefiro voltar para Roma», disse Olívia.

            Vincenzo pousou a cerveja com força sobre a mesa.

            «Foda-se», praguejou. O olhar de dois homens ao balcão voltou-se na nossa direcção. «Que é que se passa com vocês? Um anda por aí a fingir que é inválido, a outra comporta-se como se fosse a minha avó. Não vos estou a convidar para irmos juntos à tropa, estou a convidar-vos para a casa de férias de um dos maiores produtores de cinema dos nossos tempos. Que é que tenho de fazer? Pôr-me de joelhos e implorar?»

            Houve um silêncio em torno da mesa. A música ambiente -Janis Joplin cantava Littk Girl Blue numa voz trágica - parecia ter diminuído de volume.

            Olívia baixou o olhar para a mesa. «Não me parece boa ideia, é só isso.»

Vincenzo estava furioso. Era a primeira vez que o via assim: o rosto perdera todos os traços infantis, o sangue subira-lhe às têmporas e o olhar tornara-se vítreo, como se fosse capaz de matar sem remorso. Nina interveio e disse-lhe:

            «Eu faço-te companhia até Itália. Esperamos pela chegada do john, e, se a Olívia quiser, pode juntar-se a nós mais tarde.»

            Vincenzo pareceu não a ouvir e ergueu-se, entornando a cerveja por acidente com a manga do casaco. O copo caiu ao chão com estrépito. Os mesmos clientes ao balcão olharam-nos.

            «Que se lixe», disse Vincenzo entre dentes, e dirigiu-se para a saída. Olívia levantou-se e foi atrás dele. Naquele instante senti-me rodeado de idiotas e pensei em bater em retirada; não quis, porém, deixar Nina sozinha.

            «A história repete-se», comentei.

            Nina acendeu um Mayfair.

            «É o costume entre estes dois. Zangam-se, um deles vai-se embora, depois o outro vai atrás, e acabam outra vez juntos.»

            Havia algum desprezo no tom de voz dela; era quase imperceptível, mas assomara brevemente à superfície.

            «Enerva-te?»

            Nina assumiu uma expressão indiferente.

            «Este tipo de cenas atrapalha os nossos planos.»

            «Quais planos? Teus e do McGill? Ou teus e do Vincenzo?»

            Nina olhou-me com ferocidade: não a imaginava capaz de tanto.

            «É a segunda vez, no mesmo dia, que te pões com enigmas.»

            A doçura dos seus modos desaparecera.

            «Se te ofendi, peço desculpa», adiantei. «Só queria dizer que tudo isto me parece injusto para a Olívia. Era só isso.»

            «Embora por vezes a Olívia se comporte como uma criança, é crescida o suficiente para tirar as suas próprias conclusões sobre o que é ou não injusto», afirmou Nina, pousando o cigarro na beira do cinzeiro. O fumo subiu numa espiral azulada. «Se há alguma coisa que me queiras dizer fá-lo de uma vez. Diz com as palavras todas. Já não tenho idade nem paciência para conversa de chacha. O que é que queres saber?»

            Procurei o cabo da bengala com os dedos. Encontrei-o e segurei-o com força.

            «Como assim?» A determinação dela, que me parecia agora reforçada por um matiz de astúcia ou de malícia, deixara-me ansioso. «Não quero saber nada. Foi só uma ideia. Ou uma constatação, se preferires. A Olívia parece estar à margem de uma história que a ultrapassa.»

            «A Olívia está à margem de uma vida que a ultrapassa», disse Nina.

De repente achei-a sensual: ali sentada, o néon de uma marca de cerveja incidindo-lhe no rosto enfeitado por fios de cabelo ruivos que lhe desciam aos lábios.

            «Há pessoas mais fracas do que outras», acrescentei, tentando fazer sentido da situação. «Ou talvez 'fracas' nem seja a palavra certa. Se calhar, são apenas mais cautelosas.»

            Nina sorriu, mas era um sorriso sardónico, quase malicioso. Continuou a fumar.

            «Estás a falar de quem?», perguntou. «Da Olívia, ou de ti?»

            O telemóvel dela tocou nesse instante; fiquei a observá-la enquanto o procurava no interior da carteira. Encontrou-o, levou-o ao ouvido e iniciou uma conversa. O comentário dela atingira-me. Nina tocara na ferida e a ferida continuava a doer, embora grande parte do tempo se encontrasse apenas dormente. Cauteloso era um eufemismo para aquilo que eu me tornara; na verdade, eu desistira, permitindo que a indiferença vencesse. Ajustara contas com a realidade escusando-me a existir, e um homem que se escusa voluntariamente a existir sucumbiu ao apelo da fraqueza, ou da cobardia, ou da ausência - coisas que o perseguem por toda a parte, até nos sonhos, aquela hora que deveria ser plácida e de menores tormentos.

            Nina falava com McGill ao telefone. Voltou-se na cadeira e ficou de frente para o balcão do bar. A música tornara a subir de volume e só consegui escutar algumas palavras mas, pelo sorriso que tinha no rosto, soube que eram palavras amorosas. Pela primeira vez em muito tempo, senti um nó na garganta e achei-me extraordinariamente só. Tirei uma nota de 1ooo florins do bolso e deixei-a sobre a mesa. Depois apoiei o peso do corpo na bengala e levantei-me; Nina pareceu não dar pela minha partida.

            Lá fora, a noite arrefecera e o calor dera lugar a uma brisa suave. A Lua, alta e redonda num céu sem estrelas, iluminava a rua deserta. Procurei Vincenzo e Olívia mas não os vi, e pus-me a caminhar na direcção de onde o táxi nos trouxera, subindo a Karolyi Pai Utca, onde os bares haviam fechado as portas e o silêncio era interrompido pelo monótono compasso da bengala

nas grandes lajes do passeio. No cruzamento com a Ferenczy, encostados à parede de um edifício antigo, de pedra talhada escurecida pelo tempo, Vincenzo e Olívia beijavam-se. Tinham os rostos colados, o de Vincenzo escondido pelo cabelo louro de Olívia, a única cor na rua deserta àquela hora da madrugada. A mão esquerda dela desaparecia no interior das calças dele. Gemiam baixinho. Dei meia-volta e procurei afastar-me sem ser notado, mas o som da bengala denunciou-me.

            «Ei!»

            Poucos segundos depois Vincenzo estava à minha frente. Vinha despenteado e enfiava atabalhoadamente a camisa dentro das calças. Mesmo desarranjado, era um tipo atraente, pensei. Olhou-me com tristeza.

            «É mesmo um adeus?»

            Tentei sorrir. Consegui, a custo, um esgar desinspirado.

            «Desculpa o meu acesso de fúria», explicou-se. «Não te queria ofender. Estou um bocado bêbedo.»

            Encolhi os ombros. Vincenzo sorriu.

            «Só te disse aquelas coisas porque acho que te vendes mal. Foi só por isso. Porque me parece que vales muito mais do que isto.»

            Vincenzo arrancou-me outra vez a bengala da mão. Tentei impedi-lo mas sem grande convicção. Olívia observava-nos do outro lado da rua; o silêncio da cidade era devastador.

            <<Talvez esteja tudo na minha cabeça. Talvez não», disse-lhe. «É a única cabeça que tenho, sabes? Vou ter de viver com ela para o resto dos meus dias.»

O italiano sorriu, apreciando a bengala. Depois devolveu-ma e deu-me um abraço.

            «Gosto de ti. Mas não te invejo.»

            O comentário fez-me rir. Depois Vincenzo afastou-se e, já de costas, levantou a mão direita num aceno.

            «Se te cortarem essa cabeça, sabes onde me encontrar.»

            «Vale.»

            «Alia jacta est», disse o italiano antes de começar a correr para o outro lado da rua, de onde Olívia me acenava. Uns segundos depois tinham desaparecido na noite.

            Caminhei até à Szerb e depois meti pela Vaci Utca, a rua mais movimentada de Peste, onde os bares começavam a fechar. Grupos de turistas emergiam das portas, embriagados e ferozes. Um homem veio perguntar-me se estava interessado em drogas; outro oferecer-me raparigas para passar a noite. Este segundo recuou imediatamente quando reparou na bengala e pediu desculpa num inglês absurdo. Continuei sem rumo até encontrar um táxi que me levou ao hotel. A recepção encontrava-se deserta e tive de tocar a campainha sobre o balcão para conseguir a chave. No quarto, deitei-me na cama e, cinco minutos passados, percebi que não ia conseguir dormir. Tinha dores na perna, mas mesmo essas pareciam insignificantes comparadas com a angústia que me dominava desde que deixara Nina sozinha no bar. Lembrei-me nesse momento, e sem saber porquê, que ao regressar a casa teria de enfrentar a realidade de um apartamento silencioso e solitário no qual, presumivelmente, eu deveria estar a escrever uma obra magistral com que me vingaria do mundo, e vi o meu apartamento, na minha cabeça, submerso na água de um dilúvio que tudo arrastaria na sua enxurrada imparável - incluindo, como é evidente, a tal obra que eu nunca chegara a começar.

            Foi então que fiz uma coisa estúpida. Depois de uns minutos de indecisão, peguei no telefone e marquei o número de Magda. O sinal de chamada soou quatro vezes no silêncio da noite e depois uma voz masculina e ensonada atendeu. Desliguei imediatamente por receio de ter marcado o número errado e, depois voltei a tentar. Desta vez Magda atendeu ao primeiro toque. Também ensonada, perguntou-me o que queria àquela hora.

            «Não sei bem», disse. Demorei algum tempo a continuar. «Acho que, no fundo, queria saber se podíamos voltar a ver-nos quando eu regressar.»

Ouvi-a suspirar do outro lado da linha.

            «Aconteceu alguma coisa?»

            Silêncio.

            «Nada», disse. «Aliás, tudo. Sim, aconteceram várias coisas, mas nenhuma delas fez muito sentido. O problema é justamente esse, é nada fazer grande sentido neste momento.» Suspirei. «Mas e nós?» Ouvi a respiração dela do outro lado. «Nós fazíamos sentido, não fazíamos?»

            «Nunca fizemos», respondeu Magda. As palavras deixaram na sua esteira um doloroso eco. «Agora tenho de dormir, está bem? Amanhã trabalho. Não voltes a ligar, sobretudo a esta hora. Adeus.»

            Ouvi o clique e a linha ficou muda. Depois o sinal contínuo substituiu o silêncio. Afastei o auscultador do ouvido, devagar, e deixei-o repousar em cima da cama, o som monocórdico abafado pela densidade do colchão. Senti-me tão estúpido que tive vontade de saltar pela janela. Em vez disso, levantei-me e fui à casa de banho, passei água pelo rosto e olhei-me ao espelho: as olheiras, o cabelo despenteado, o tom mortiço da pele, o corpo magro escondido pelas roupas amarrotadas. Quase verti uma lágrima, mas depois finquei as palmas das mãos no mármore frio da bacia e apertei-o, como se pudesse desfazê-lo com a força dos meus dedos. Disse em voz alta: aguenta-te, miserável, aguenta-te. Perguntei-me que súbita angústia seria aquela, que carência pueril tomara conta de mim naquela noite. Teria pena de mim próprio? Não, não era pena, era outra coisa - estava cansado, só podia ser isso; era cansaço. Regressei ao quarto

a coxear, apoiado à parede, e deitei-me com um grunhido de esforço. Só então é que uma lágrima se permitiu descer-me pelo rosto. Uma única lágrima, solitária; uma lágrima sem futuro e sem desejo. Uma lágrima cobarde, que voltara costas às outras lágrimas*.

 

* A partir daqui as coisas complicam-se. Pelo menos para mim - para o leitor, evidentemente, o enredo atingiu aquele momento crucial a que chamamos, em ficção, ponto de viragem: o protagonista, a princípio relutante, é incapaz de resistir ao chamamento da aventura e parte para destino desconhecido onde irá encontrar dificuldades e conflitos, o maior dos quais a superação do seu próprio fracasso. Mas aquilo que na ficção constitui o motor da narrativa costuma ser, na vida real, uma decisão incrivelmente errada que abre as portas a horrores que, ironicamente, julgávamos apenas existirem nos romances. Ou na tela dos filmes, se não formos pessoas de muita leitura. O problema tem sido este: como avançar sem denunciar os crimes que foram cometidos? Como continuar esta narrativa, sabendo que ela será uma pesada sentença contra os que nela figuram, vivos ou mortos, sendo eu o único responsável pela sua elaboração : portanto, ao mesmo tempo réu, advogado e juiz na construção de um caso a desfavor dos seus intervenientes?

                                             Sabaudia

 

            Encontrei-os em mau estado perto das oito da manhã. Após duas horas de sono inquieto, levantei-me, fiz as malas, deixei o hotel e, numa decisão titubeante, apanhei um táxi para a Krisztina Korut. Quando cheguei ao Hotel Mercure deparei com Nina, Olívia e Vincenzo a tomarem o pequeno-almoço com as mesmas roupas da noite anterior. O italiano levantou-se prontamente da mesa e, adivinhando a minha intenção, deu-me um abraço apertado. Cheirava a cigarros, a álcool e a cloro. Explicou, ainda embriagado, que na noite anterior tinham ficado no bar irlandês até fechar e, embalados por uma dose considerável de absinto, haviam passado ainda por uma discoteca cheia de prostitutas eslavas antes de terem acabado, já de madrugada, numa sauna e piscina mistas. Nina sorriu quando me sentei para torradas e café; qualquer que tivesse sido o atrito entre nós, era um desentendimento esquecido. Até Olívia parecia agora entusiasmada com a viagem, embora as suas cores saudáveis se tivessem transformado numa palidez de insónia. Havia o problema de a partida ser daí por umas horas. Disse-lhes que ia tentar fazer uma reserva num voo próximo e que precisava de direcções para chegar a Sabaudia. Vincenzo sorriu, enquanto trincava uma torrada.

            «O teu bilhete está comprado», disse.

            O arrependimento não tardou a chegar. Sentado no espaço exíguo do avião, a bengala no compartimento acima das nossas cabeças, qualquer entusiasmo que poderia ter existido desvaneceu-se rapidamente e, a caminho do Lácio, comecei a sentir-me estúpido por ter cedido ao chamamento da curiosidade. Os analgésicos que trouxera para Budapeste tinham chegado ao fim; as dores na perna iam e vinham em vagas cruéis; a hospedeira de bordo trouxe-me duas aspirinas, que tiveram um único efeito: uma dor de barriga que me obrigou a levantar e a coxear cabine fora até aos lavabos. Vincenzo, sentado ao meu lado, ressonou durante a viagem inteira.

            Chegámos à estação de comboios de Roma ao princípio da tarde, e Vincenzo e Nina tomaram as rédeas das operações. O calor em Roma roçava os limites do suportável - um suor viscoso e desconfortável que colava as roupas ao corpo - e a estação estava apinhada de passageiros, milhares de turistas e italianos em férias que corriam para as suas ligações, atropelando crianças, velhos e inválidos pelo caminho. Comboios partiam em todas as direcções de múltiplas linhas-férreas. Olívia decidira acompanhar a minha morosidade e, de vez em quando, se eu levava um encontrão, segurava-me no cotovelo. Parecia estar genuinamente preocupada com a minha mobilidade diminuta e, a certa altura, tive de lhe garantir que não estava com dores depois de um passageiro desgovernado ter batido com a esquina de uma mala de rodinhas no meu joelho e eu ter mordido o lábio para não gritar. Percorremos centenas de metros de plataforma até chegarmos ao guichet dos bilhetes, onde Nina e Vincenzo compraram as passagens de comboio para Priverno-Fossanova, a estação mais próxima de Sabaudia.

            Suávamos como trapos molhados. Olívia insistiu, nessa altura, em que a deixasse carregar a minha bagagem; tornara-se demasiado solícita e começava a enervar-me.

            «Pensei que ias ficar em Roma», acusei, tenso, enquanto esperávamos pela chegada do comboio.

            «Roma é demasiado confusa nesta época do ano», disse ela. E confesso que fiquei curiosa.»

            «A curiosidade é o principal problema do homem, sabias?», repliquei. «Não saber ficar quieto no seu quarto.»

«Ainda bem que não sou um homem, então», rematou Olívia.

            O comboio para Priverno não tinha ar condicionado. Sentámo-nos dois a dois, as mochilas entre nós, oferecendo repouso para as pernas. Os restantes passageiros eram velhos, como se todos os idosos de Roma tivessem decidido ir de férias. A carruagem cheirava a mofo e a água-de-colónia antiga; num banco solitário ao lado dos nossos, uma velha vestida de preto da cabeça aos pés mastigava o que lhe restava das gengivas desdentadas. Nina comprara um mapa de Itália numa loja da estação e mostrou-me para onde nos dirigíamos. O comboio ia fazer o caminho do Sul a partir de Roma, passando junto de Pomezia e Aprilia, depois por Latina (outra das cidades construídas segundo a arquitectura fascista de Mussolini; havia, na época do ditador, uma cidade chamada Mussolinia, explicou Vincenzo) e, finalmente, derivaria um pouco para o interior, na direcção de Priverno. Em Priverno teríamos de nos apear e aguardar na estação.

            «Porquê?», perguntei.

            Vincenzo encolheu os ombros. «Foi o meu pai que tratou do assunto. Disse-me: aguardem na estação. Presumo que alguém nos irá buscar.»

            «Não perguntaste quem?»

            «Um tipo com um nome estranho.» Pensou durante um momento; depois avançou: «Bronco, será possível?»

       Olívia e Nina riram-se.

            «Bronco?», perguntou Nina.

            «Talvez. Mas pode ter dito outra coisa parecida.»

            «Onde é que está o Taddeo?», perguntou Olívia.

            «Na Argentina», respondeu Vincenzo. «Ou no Peru, ou coisa que o valha. Provavelmente, a passar férias com uma das meninas do harém Gentile.»

            Houve um silêncio e depois o som das rodas no carril sobrepôs-se por momentos às vozes dos outros passageiros.

            «Por favor, não fiquem chocados», continuou. «É do conhecimento geral. A minha mãe também terá os seus amantes em Nova Iorque. Embora me seja mais difícil imaginá-la na cama com outro homem.»

            «Porquê?», perguntou Nina. «Por ser mulher?»

            «Não», respondeu o italiano, recostando-se no assento. «Porque está gorda e velha, caraças. Deve ter uma enorme dificuldade em arranjar namorados.»

            «Vincenzo», ralhou Olívia.

            Ele ignorou-a e voltou-se para Nina.

            «Em que pé estão as coisas com o John?»

            «Se tudo correr bem, chega amanhã. Não conseguiu uma viagem para hoje.»

            «Pareceu-te entusiasmado?»

            «Pareceu-me sobretudo expectante», disse Nina. «Se calhar, precisa de ver para crer.»

            Vincenzo sorriu antes de fechar os olhos e adormecer. Olívia encostou a cabeça ao ombro dele e pouco depois também dormia. Nina abriu a edição do dia do La Repubblica que comprara na loja da estação. Olhei pela janela gretada e fosca: campos imensos passavam por nós, silenciosos e fúnebres, queimando debaixo de um sol opressivo. Em breve chegaríamos aos pântanos de Sabaudia.

                                                         

            Esperámos mais de uma hora ao calor da tarde no Lácio. A estação era pequena e encontrava-se quase deserta, excepto quando os comboios se aproximavam, a cada vinte minutos, no sentido de Roma ou Nápoles; nessas alturas os passageiros emergiam na plataforma para depois desaparecerem no horizonte. Estávamos sentados à entrada do pequeno edifício. À nossa frente, um campo cultivado a perder de vista era sinal da ruralidade da zona. Trocámos poucas palavras, bebemos água, Olívia foi ao bar da estação buscar sanduíches de prosciutto e eu não conseguia encontrar uma posição confortável para a perna. Começava a duvidar seriamente de que alguém chamado Bronco existisse quando um descapotável azul surgiu de parte nenhuma e parou à nossa frente. Do interior saiu um homem atarracado, um tanto ridículo, de longos cabelos louros que nasciam em torno de uma careca. Devia ter pouco mais de quarenta anos. Trazia uma câmara de filmar na mão - uma câmara antiga, de fita magnética - e sorria com dentes amarelos. Vestia calções pelo joelho e uma camisa havaiana. Vincenzo foi o primeiro a levantar-se, sacudindo o pó das roupas. O homem filmava-nos.

            «Roger Dormant», disse, num inglês carregado de sotaque australiano. Depois cuspiu para a terra. «Não se importam que filme este momento, pois não? Aí sentados, todos suados, cobertos de pó. Clássico.»

            Vincenzo aproximou-se tanto do homem que este foi obrigado a baixar a máquina. Disse-lhe o nome.

            «Estávamos à espera de outra pessoa», acrescentou.

            «Que outra pessoa?», perguntou Roger. Tudo nele era pequeno, incluindo as mãos sapudas, com dedos curtos e grossos.

            «Um tipo qualquer chamado Bronco.»

            Roger fez um compasso de espera e depois começou a rir; parecia uma hiena.

            «Bronco! Clássico, clássico», disse. Depois voltou a atenção para nós: Nina já se pusera de pé e olhava-o com um misto de curiosidade e despeito. Roger devolveu-lhe o olhar com o seu lamentável sorriso e depois aproximou-se de mim.

            «John McGill, suponho», disse, e estendeu-me a mão. «É uma honra. Ouvi falar muito do teu romance. Excitante.»

            A inflexão que deu à última palavra fê-la soar ridícula e despropositada. Era difícil dizer se falava a sério, se zombava; havia também uma espécie de luxúria no seu rosto quando olhou para Nina e Olívia. Apertei-lhe a mão muito suada e desapontei-o, explicando-lhe que não era o autor de The Old Fires; Roger afastou-se como se eu tivesse lepra.

            «O John McGill deve chegar amanhã a Priverno», disse Nina.

            «Quem és tu?», perguntou Roger.

            «Sou a agente dele», respondeu ela.

            «Esperávamos o senhor Bronco», insistiu Vincenzo.

            «Bosco», corrigiu Roger. «O homem chama-se Bosco. A única coisa que me disseram foi para vir buscar o escritor inglês a Priverno. Não esperava um grupo, e muito menos um grupo sem o escritor inglês.»

            «O Bosco não te explicou a situação?»

            Roger franziu o sobrolho e mostrou os dentes manchados. Tomou a cuspir para a terra.

            «Não sou o moço de recados do Bosco. O meu único patrão é o Don Metzger.»

«Então deves saber que o meu pai falou com o Don e acertou tudo com ele.»

«O teu pai?», inquiriu Roger com um esgar de indignação. «Quem diabo é o teu pai?»

            Vincenzo rolou os olhos nas órbitas, claramente farto da estupidez do homem e do mal-entendido.

            «Chama-se Taddeo Gentile e é amigo do Don há muitos anos», respondeu o italiano com soberba. «Falou com ele e fomos convidados para a casa de Sabaudia. Disseram-nos para esperarmos aqui. Que havia um homem chamado Bronco, que afinal se chama Bosco, e que esse homem nos viria buscar.» Vincenzo pegou na mochila e avançou para o carro. «Bronco, Bosco, Roger, Dulcineia, é-me indiferente. Onde é que pomos as malas?»

            Atirou a mochila para o banco traseiro do descapotável e foi sentar-se no banco da frente. Algo desarmado com a situação, Roger não se coibiu, porém, de erguer a câmara e continuar a filmar-nos enquanto nos instalávamos dentro do carro, apontando a lente descaradamente para os corpos suados de Nina e de Olívia à medida que estas metiam as malas, muito a custo, na diminuta bagageira e entravam no descapotável. Finalmente, Nina tapou a lente da câmara com uma mão e obrigou-o a desligar o aparelho. Roger sorriu com malícia, entrou para o lugar do condutor, colocou a câmara aos pés de Vincenzo e fizemo-nos à estrada.

O final da tarde queimava e, pelas estradas secundárias da província de Latina, fizemos o caminho até Sabaudia. A Via Migliara 53 atravessava campos a perder de vista, os verdes e os castanhos confluindo num cenário de tranquilidade interrompida pelo burburinho contínuo do motor. Nina e Olívia sentavam-se ao meu lado, no banco traseiro; o vento agitava-lhes o cabelo. Nina usava óculos escuros e, pela ligeira inflexão dos lábios, deduzi que estaria satisfeita ou quase feliz. O Sol afundava-se, lisonjeiro, no fio do horizonte, decorando as peles a ocre e carmesim, e até Olívia parecia agora descontraída, enquanto era conduzida por um australiano atarracado em direcção ao desconhecido. Eu próprio me encontrava estranhamente à vontade. Havia uma inesperada e agradável liberdade naquela viagem com destino incerto; a liberdade de quem se entrega nas mãos do acaso, de quem adia todas as decisões; o género de liberdade que o Verão podia proporcionar.

            Roger e Vincenzo continuaram a discutir a logística falhada do encontro e, depois, o italiano mudou de assunto. Falavam em voz alta por causa do vento.

«A câmara?», dizia Roger. «Sou realizador. Filmes independentes. É provável que nunca tenhas ouvido falar de mim. Afinal, és demasiado novo.»

            Vincenzo pareceu ignorá-lo. «A que distância estamos?», indagou.

            «De onde?»

            «Da casa do Metzger.»

            «Sete ou oito quilómetros. Mas temos de ir a Sabaudia primeiro. Vocês ficam a conhecer a comuna e eu trato de alguns assuntos importantes para a chegada do Don.»

            «O Don ainda não chegou?», perguntou Vincenzo.

            «Chega esta noite. Esteve na Suíça a fechar um acordo de três longas-metragens com o Lucas Belvaux.»

            Nina interveio, inclinando-se sobre os bancos da frente.

            «O belga que ganhou o prémio da crítica em França.»

            «Esse», confirmou Roger. «O gajo da trilogia.»

            «Há motivos para celebrar, então», adiantou Nina.

            «Talvez sim, talvez não. O Don é imprevisível. Seja como for, vou comprar e preparar algumas coisas. Nunca se sabe. Temos convidados.» Vincenzo sorriu. «Não estou a falar de vocês», acrescentou, irritado. «A equipa de Game Over terminou a rodagem em Roma e está connosco há três dias. Para além disso, o Bosco precisa de algum material.»

            O cabelo ralo de Dormant esvoaçava, descontrolado, em redor do círculo calvo no topo da cabeça. Falava depressa mas comia as palavras e lançava perdigotos que desapareciam ao vento. Vincenzo voltou-se para trás e olhou-me.

            «Sabes o que significa isto?»

            «Não faço ideia.»

            «Que a Elsa Gorski está em Sabaudia.»

            «Pois», escarneceu Roger. «Mas isso não significa grande coisa, ou julgas que a Elsa está mortinha por privar com um zé-ninguém como tu?»

            «Depois pergunta-me como foi», provocou Vincenzo, dando duas palmadinhas condescendentes no ombro do outro.

            De mãos cerradas no volante, Roger voltou a cabeça e fitou o italiano; com uma guinada desviou o automóvel da estrada e enfiou-o num caminho de terra que corria paralelo. Fez uma travagem brusca; as rodas chiaram e a poeira ergueu-se. Agora Roger olhava para Vincenzo como se o quisesse matar; um estreito fio de saliva pendia-lhe do lábio inferior. Apontou o dedo na direcção de Vincenzo e, durante um segundo, pareceu procurar as palavras certas - ou quaisquer outras que conseguisse encontrar.

            «Escuta bem o que te digo», começou. Tinha os olhos raiados de vermelho e o corpo pequeno e compacto em grande tensão. «Não sei quem tu és nem o que fazes aqui e, sinceramente, estou-me nas tintas. O teu pai pode conhecer o Metzger mas, até ver, tu não conheces coisa nenhuma. És um projecto de gente, um cabrãozinho insignificante e, enquanto aqui estiveres, vais respeitar-me.»

            Vincenzo sorria com naturalidade.

            «Vais pôr-me de castigo?»

            «Tu não sabes do que eu sou capaz», disse o outro. «Eu já fazia filmes quando tu ainda não passavas de uma má ideia.»

            Vincenzo voltou-se para trás. Cáustico, disse:

            «Roger Dormant, realizador de cinema. Alguém ouviu falar?»

            O italiano arregalou os olhos à espera de uma resposta. O Sol era agora uma fogueira rubra no horizonte; as cigarras cantavam sobre o nosso silêncio.

«Bem me parecia», concluiu Vincenzo.

            O furibundo Roger arrancou a toda a velocidade e a poeira ergueu-se atrás dos pneus, que chiaram à entrada do asfalto.

            Nina inclinou-se para a frente e, procurando serenar os ânimos, perguntou a Roger de que material precisava Bosco. O australiano demorou uns momentos a recuperar a calma mas, depois, pareceu esquecer Vincenzo e explicou-nos, a caminho de Sabaudia, que Andrés Bosco era um artista catalão que vivia na propriedade de Don Metzger. Aí concebia, realizava e punha em prática projectos, que, segundo Roger, obedeciam à compulsão do produtor, que o contratava e lhe pagava o salário.

            «De que compulsão falas?», perguntou Nina.

            «Balões de ar quente», disse Roger. «Balões de todas as formas; balões de todas as cores e tamanhos. O Bosco projecta-os durante metade do ano e, a partir de Março, começa a construí-los. Às vezes põe-se a construir cinco ou seis ao mesmo tempo, uns tão grandes que poderiam levar meia dúzia de pessoas, outros tão pequenos como as lanternas do céu, aqueles balões de iluminação que os chineses fazem com bambu e papel de arroz. O mais curioso é isto.» Roger acelerou e ultrapassou uma camioneta carregada de vegetais que avançava com lentidão. «O Don nunca voou num único balão construído por Bosco.»

            «Então para que servem?», perguntei.

            Roger encolheu os ombros.

            «Sei lá. Se queres que te diga, eu acho-os um desperdício, e não apenas de tempo. O Don já investiu muito dinheiro nos balões e o único propósito daquelas coisas é enfeitarem o céu. Lá para o final de Julho, os convidados reúnem-se no bosque para verem os balões de Bosco desaparecerem de vista. Alguns deles sobrevoam O Lácio durante algum tempo e depois são arrastados pelo vento na direcção do mar; quando o gás se acaba, caem sobre a água. Aparentemente, o gajo sabe calcular as trajectórias dos ventos e os balões viajam sempre na direcção do mar.»

            O ritual parecia não fazer qualquer sentido. Para que servia um balão de ar quente sem ninguém para o pilotar e cujo único propósito neste mundo era desaparecer no Mediterrâneo? Perguntei-lhe:

            «Porque é que o Metzger não voa neles?»

            Roger riu-se como uma hiena.

            «Quando o conheceres, vais entender.»

            A Strada Migliara 53 dava lugar à Via Principe Biancamano e Sabaudia erguia-se do nada, uma sucessão de ruas com nomes de realeza, prédios rasos e coloridos e monumentos de construção geométrica que aludiam às preferências dos ditadores europeus do século vinte. O cheiro do mar era omnipresente, as ruas limpas e cuidadas, os habitantes caminhavam das peixarias para as lojas de fruta e dessas para as barracas dos gelados com a lentidão própria do princípio do Verão. As Vespas, conduzidas por rapazes e raparigas, surgiam de toda a parte, cruzando-se nas esquinas, buzinando com estrépito e seguindo em frente. O carro de Roger dava nas vistas e alguns transeuntes olhavam-nos. Vincenzo erguera as pernas e colocara os pés fora da janela; Roger fazia tangentes aos automóveis estacionados, numa tentativa pueril de arrancar os pés do italiano pelos tornozelos.

            «Toma cuidado», disse Vincenzo, divertido. Era evidente que já se odiavam e, embora Roger procurasse impor respeito, a menção a Taddeo Gentile, um bom amigo do produtor, havia limitado as suas ambições. Passámos por uma loja de bebidas e comprámos uma dúzia de garrafas - vodka, gin, limoncello, licores - e depois Roger parou em frente de uma retrosaria, saiu do carro e disse-nos para esperarmos. Nina inclinou-se para a frente e falava com Vincenzo enquanto eu massajava inutilmente a coxa numa tentativa de não deixar a perna adormecer, o que habitualmente acontecia quando estava muito tempo sentado e, nesses casos, as dores eram mais fortes. Enquanto o fazia, senti os dedos mornos de Olívia roçarem a minha mão esquerda - apenas um toque, uma gentil carícia que foi suficiente para que a olhasse. Fi-lo de relance e vi que parecia distraída, embora tivesse o rosto corado; poderia ser, no entanto, o mero reflexo do crepúsculo em Itália.

            «Este Roger é um traste», disse Nina.

            «Um traste do Paleolítico Inferior», respondeu Vincenzo, roubando os óculos escuros do rosto de Nina e colocando-os no seu. Parecia um actor de um filme de Godard, a camisa suada e aberta no colarinho, o cabelo revolto. «E, provavelmente, um real lambe-botas. O meu pai sempre me disse existirem uns palhaços em volta do Don Metzger. Mas, caramba, nunca imaginei um imbecil destes.»

            «O que é que isso dirá de nós?», perguntei.

            «Como assim?»

            «Viemos à conta de alguém que ainda nem sequer cá está. O homem julgava que eu era o John McGill. Podemos não ser imbecis, mas certamente parecemos.»

Vincenzo tirou os óculos e piscou-me o olho.

            «Até os imbecis podem ter classe.»

            Roger regressou com dois enormes sacos de plástico, no interior dos quais se encontravam tecidos em nylon azuis e vermelhos. Atirou-os para o banco de trás, um deles caindo em cima de Olívia, que resmungou enquanto o descapotável fazia inversão de marcha e voltámos a atravessar as ruas de Sabaudia; o carro ia agora a rebentar pelas costuras, os sacos de plástico atafulhando o banco traseiro. Entretanto, anoitecia: a luz desvanecia-se com lentidão, como se o Sol procurasse adiar o seu derradeiro instante. À saída da cidade entrámos na Via Litorânea, onde nos cruzámos com uma sucessão de carros coloridos apinhados de gente nova que vinha passar a noite na cidade; Roger, contudo, conduzia em direcção à escuridão da noite vindoura e, dez minutos passados, saiu da via principal por uma estrada de terra batida. Ligou os máximos e os faróis do carro iluminaram o caminho; havíamos entrado num enorme descampado onde a erva rala mal disfarçava a aridez do terreno; as antigas regiões pantanosas de Sabaudia estavam agora escondidas debaixo de camadas e camadas de terra seca que ocultava os lentos movimentos do subsolo. Mussolini mandara drenar os pântanos mas, avançando pelo caminho agreste, o descapotável serpenteando aos solavancos, senti, por alguma razão, que alguma coisa não ficara permanentemente fixa naquele território; que, apesar da superfície estanque, havia algo debaixo dos nossos pés que poderia despertar de um sono antigo e vir assombrar a nossa vigília.

            A noite caíra por completo quando vimos as luzes. Encontrávamo-nos já a alguma distância da Via Litorânea. Não eram as luzes de uma casa - eram luzes que iluminavam um objecto enorme no meio do descampado. Roger fez o carro sair da estrada de terra e avançou na direcção dos focos brilhantes, atrás dos quais se estendia um denso bosque. O carro, de faróis em riste como duas colunas de fumo branco, encandeava as duas figuras que se adivinhavam à distância e galgava o terreno instável, levantando poeira; era como conduzir um carro sobre a Lua, embora uma lua túrgida castanha e verde. Quando nos aproximámos das figuras - dois homens - demos conta de que as luzes que as iluminavam eram um par de holofotes que se sustinham dos ramos de uma árvore; havia também um ruído denso e contínuo, como a turbina de um avião camuflada. O objecto que flutuava no meio do campo tinha a forma de uma lágrima invertida, suspensa três ou quatro metros acima do solo pela propulsão do ar aquecido por um maçarico, cuja chama azul insuflava aquele balão de ar quente, em lona preta, que terminava numa gôndola em vime; a gôndola estava presa ao solo por quatro cabos, cujas anilhas formavam um quadrado imaginário. Roger parou o carro a alguns metros de distância, desligou os faróis e saiu.

Dois homens trabalhavam no balão de ar quente, que, pairando sobre o descampado, era uma sombra irreal recortada contra uma noite cheia de estrelas. Dentro da gôndola, atento ao maçarico, estava um homem magro de bigode grisalho, vestido com uma camisa aos quadrados e um boné; ao lado da gôndola, com um bloco de notas na mão direita, encontrava-se um homem alto e careca, forte como um touro, em camisa de alças branca, cujo tronco compacto lhe conferia o aspecto de um lutador, não fosse pelos óculos redondos que sustinha sobre a cana do nariz. Atrás deste segundo homem, encontrava-se um Renault antigo. Os dois homens ignoraram-nos; o mais alto parecia estudar as suas notas e dar indicações ao que se encontrava dentro do cesto, que ia ajustando o maçarico. Quando Roger se aproximou, porém, o homem enfiou o bloco de notas no bolso de trás das calças e voltou a cabeça na nossa direcção. Tinha um olhar violento, penetrante e magoado, sobretudo um olhar magoado, pensei; apesar do físico musculado, teria facilmente os cinquenta anos que as rugas no rosto e no pescoço denunciavam. Ao meu lado senti que Olívia se contraía, como se o olhar do outro lhe causasse repulsa ou insuspeito frémito; de alguma maneira também senti, sem saber porquê, que era para ela que o homem olhava. Roger disse-lhe algumas palavras que não conseguimos ouvir; depois o tipo desviou a atenção do carro - os seus olhos, muito claros e ferozes, iluminados pelos holofotes ligados a um pequeno gerador, pareciam os olhos de um animal - e, com um gesto autoritário, deu uma ordem qualquer ao homem de bigode, que se apressou a sair da gôndola.

            «SÓ pode ser o nosso Bronco», disse Vincenzo.

            Olívia começou a rir, mas era um riso nervoso. Olhei para Nina, que estava sentada, hirta, a olhar para o balão.

            «Este lugar assusta-me», disse ela, e abraçou-se, como se o vento se tivesse levantado.

            O homem de bigode aproximou-se e, ao reparar nas mulheres, tirou o boné com um gesto educado.

            «Chamo-me Alípio», disse em italiano. «Venho buscar os tecidos para o senhor Bosco.»

            Olívia saiu do carro e Nina passou-lhe os sacos de plástico com os tecidos. Alípio tomou-os nos braços estendidos, agradeceu com um aceno de cabeça, sorriu e regressou para junto do balão. Roger continuava a conversar com o presumível Bosco que, de braços cruzados, o olhava de cima com algum desprezo. Falavam em inglês, mas as palavras perdiam-se quase todas no ruído constante do maçarico, cuja chama mantinha o balão e a gôndola suspensos. Eu nunca tinha estado junto de um balão e, naquele ermo, àquela penumbra, parecia-me um objecto inacreditavelmente grande e, ao mesmo tempo, invulgarmente frágil. A gôndola era um pequeno cubo dentro do qual não caberiam mais de duas pessoas, com uma estrutura de metal que suportava o maçarico e, acima deste, a lágrima negra era uma bizarra nuvem sobre o descampado. Alípio pousou os sacos de plástico junto do balão e, subindo para a gôndola com a ajuda de uma pequena escada, desligou o maçarico. Subitamente, a voz de Bosco era audível, poderosa e rouca.

«...que género de idiota és tu? Dois dias? Não consegues fazer nada sem manual de instruções? Eram só uns tecidos, não era uma equação de segundo grau», disse Bosco, num inglês com forte sotaque espanhol. Abanava a cabeça, as mãos na cintura. «Idiota.»

            Roger parecia um anão ao lado de Bosco; acatou o insulto sem contestar.

            «Está entregue», disse o australiano, recuando devagar. Apontou para o carro. «Tenho de ir.»

            «Sim, põe-te a andar», afirmou Bosco, sacando outra vez do bloco de notas que guardara no bolso de trás das calças. Parecia estar à beira de um acesso de raiva; depois tornou a chamar: «Ei, idiota. Diz à mulher que vamos jantar.»

Roger afastou-se rapidamente e entrou no carro. Estava rubro de vergonha.

«Vocês são muito próximos?», gozou o italiano. Furioso, Roger fez marcha atrás e, tomando a ligar os máximos, arrancou. Ao nosso lado, Bosco e Alípio observavam o balão enquanto este murchava, o envelope desfazendo-se sobre a gôndola como um guardanapo usado. O descapotável avançou em direcção ao bosque escuro. Olhei uma vez para trás e registei aquela imagem que, a curta distância, era quase bela: duas figuras de rostos difusos no meio de um descampado, desinflando um enorme balão à luz fantasmagórica de dois holofotes pendurados dos ramos de uma árvore. Foi também nesse instante que compreendi aquilo que Nina acabara de dizer - que aquele lugar a assustara - quando vi Bosco apanhar do chão e pôr às costas uma mochila, do interior da qual emergia o cano daquilo que parecia ser uma espingarda de caça.

 

            Avançámos por uma estrada de terra que dividia a densa floresta. Ainda fazia calor, mas era atenuado por uma brisa fresca que trazia o aroma adocicado de pinheiros e ciprestes. Haveria, algures, um leito de água doce que alimentava aquela vegetação tão densa. Roger conduzia depressa e sem cuidado, o fundo do carro batendo constantemente em pedras que saltavam do solo. Nina parecia cada vez mais absorta nos seus pensamentos e vasculhou a carteira, o corpo aos solavancos por causa da condução desastrada do australiano. Quando encontrou o telefone, ergueu-o no ar acima das nossas cabeças.

            «Não tenho sinal», disse. Inclinou-se para a frente e perguntou: «Existe algum telefone no lugar para onde vamos?»

            Roger cuspiu para fora do carro; demorou o seu tempo a responder e depois disse: «Sim. Porquê?»

            «Preciso de telefonar ao John McGill e explicar-lhe a situação. Ele não conseguirá ligar-me quando chegar a Priverno.»

            «Estamos no meio do nada», disse Vincenzo, parecendo satisfeito com o facto. «É bestial.»

            Passados alguns minutos, chegámos a uma clareira. As copas das árvores eram menos densas e conseguíamos ver o céu. Roger abrandou o ritmo do automóvel e passámos junto a uma cabana oblonga em madeira. Um candeeiro eléctrico iluminava, intermitente, a porta da cabana, que tinha a forma de um pequeno hangar, perto da qual zunia um gerador de electricidade. Junto a um riacho, havia uma panóplia de objectos de balonagem: cestos de vime de vários tamanhos, alguns ainda por terminar, outros esburacados; envelopes de balão, em nylon, empilhados num monte que tinha a altura de um homem; vários rolos industriais de corda jaziam ao lado de antigas ventoinhas, maçaricos ferrugentos e dezenas de pequenas botijas cilíndricas de gás propano arrumadas num depósito vertical construído com troncos de madeira. O automóvel passou lentamente junto à porta da cabana, que estava entreaberta.

            «Este é o laboratório do doutor Bosco», disse Roger. «Aconselho-vos a manter a distância. O homem não gosta de gente curiosa. Aliás, o homem não gosta de gente. Ponto final.»

            Roger escarnecia, porém havia naquele lugar - não obstante o riacho, não obstante o tranquilo silêncio - alguma coisa de sinistro. A minha perna voltou a dar sinal de si, a ferida invisível pulsando no interior da carne; devo tê-lo mostrado, porque Olívia me tocou no braço. Senti-lhe os dedos gelados na pele; tinham a temperatura dos mortos. O caminho de terra atravessava a clareira de Bosco, voltava a penetrar no bosque e prolongava-se durante outros dez minutos - desta feita, a pedido de Nina, Roger conduziu mais devagar - e, depois, emergimos finalmente na propriedade de Don Metzger. O bosque terminava abruptamente e a estrada conduzia a uma grande clareira, no centro da qual se encontrava a casa. Roger explicou que a propriedade era circular e de grande dimensão; quando Metzger escolhera o lugar para construir, insistira em que a casa ficasse precisamente no meio daquele bosque de cerca de dez por cinco quilómetros - tanto quanto é possível uma coisa ficar no centro de um rectângulo.

Vimos o edifício iluminado à distância. Não era uma mansão ou sequer uma casa de grandes dimensões; era uma construção modernista transportada para um lugar recôndito no Lácio. O edifício era largo e achatado, todo branco, de dois andares e planta rectangular; o tecto era plano e a parte superior tinha varandins que abriam dos quartos para o exterior. Toda a casa eram ângulos rectos, e as paredes da frente, parcialmente em vidro, permitiam ver as divisões iluminadas, bem como um grande lanço de escadas que ligava os dois andares. Havia uma pequena palmeira junto da entrada, com aspecto de que já vira melhores dias, e uma extensa fila de pedras brancas e cactos verdes que decoravam o acesso à porta principal; aqui e ali, cresciam maciços de hortênsias e buganvílias. A estrada de terra terminava onde começava um largo relvado que, em declive, conduzia da parte fronteira e lateral da casa a um lago iluminado pela lua. Era uma casa de Verão importada directamente das colinas de Holywood, sóbria, luminosa, rectilínea e sem qualquer traço europeu. Vincenzo empolara-a tanto na sua imaginação que parecia ter ficado mortalmente desiludido. Olívia, porém, disse que o lugar era bonito; eu concordei, sobretudo depois de termos passado pela mórbida clareira de Bosco.

            Havia dois carros de luxo estacionados no exterior; do interior da casa ouviam-se vozes e música. Roger estacionou junto dos outros carros. Saímos e seguimo-lo, contornando o edifício até à parte lateral. Através da parede de vidro podia ver-se o recorte de pessoas no interior da casa. O lago, a quinze ou vinte metros da entrada, despertou-me imediatamente a atenção. A sua superfície imóvel reflectia a brancura da Lua; embora as águas fossem plácidas, aquela calma de morte parecia não ser mais do que um compasso de espera até que as águas se abrissem e revelassem uma coisa monstruosa: um navio pirata, um monstro marinho. Havia um pequeno cais na forma de um pontão em madeira com uma prancha no final e, à beira da água, atracado ao pontão, um pequeno barco a remos de aspecto frágil. Junto do cais encontrava-se uma árvore com um balouço feito de uma corda atada a uma tábua de madeira.

            O australiano entrou na casa por uma porta de correr que dava acesso à cozinha. Coxeei atrás dos outros, sentindo com a ponta da bengala a relva seca que denunciava um solo arenoso. Encontrávamo-nos a pouca distância do mar e, no entanto, rodeados por um bosque tão denso que seria impossível adivinhar o litoral. A cozinha era espaçosa e estava mobilada como um restaurante italiano de província - havia panelas e facas de todos os tamanhos, tachos pendurados na parede, uma rústica mesa de jantar com oito cadeiras, um forno a lenha, alhos e cebolas gigantes, vários garrafões de azeite e dezenas de garrafas de vinho tinto sem rótulo.

            Roger colocou os sacos com as bebidas em cima do balcão e apresentou-nos uma senhora gorda chamada Susanna, que usava um avental azul e um lenço na cabeça.

«Ela só fala italiano», disse, abrindo uma das garrafas de vodka. Os olhos ternos de Susanna fitaram-nos com expectativa. Roger gesticulou e apontou para o relógio, dizendo em inglês que Bosco e Alípio vinham jantar; a mulher sorriu, aquiesceu e depois perguntou, em italiano, se estávamos com fome. Havia uma focaccia no forno. Entreolhámo-nos e cada um concordou a seu tempo. Susanna olhou para a minha bengala e sorriu, o rosto velho enrugado pelo sol.

            A festa parecia ter começado havia algum tempo e as pessoas espalhavam-se pela casa. Havia um realizador chamado Albert Fink; havia uma mulher alemã chamada Uli Lefer, que era produtora executiva do filme; havia três actores - um dos quais o protagonista, um neo-zelandês franzino chamado Sebastian Pym (ou talvez Pym fosse a sua alcunha); havia também dois elementos da equipa, um director de fotografia asiático e um engenheiro de som austríaco. E havia Elsa Gorski, em quem era difícil não reparar. Não se tratava de Elsa ser uma estrela (que era), ou sequer de se comportar como uma (fazia-o); tratava-se da beleza que arrastava como um doente arrasta consigo um vírus, mesmo quando tudo nela indicava displicência e descuido. Depois de comermos afocaccia preparada pela cozinheira, encontrámos Elsa deitada num sofá no meio da sala, despenteada, num vestido preto muito curto, a fumar um cigarro e a olhar, com uma expressão vaga e sobranceira, para um ecrã gigante de televisão no qual passavam imagens de um filme antigo, a preto e branco. Na parede por cima do sofá havia uma fotografia de Pasolini em tamanho gigante, que - como mais tarde Elsa me explicou - retratava o realizador nas areias de Sabaudia e fora ampliada de um fotograma retirado de uma entrevista feita durante um distante Inverno nos anos 1970. Pasolini aparecia a caminhar sobre as dunas de gabardina, de óculos escuros e uma camisola às riscas. Elsa, abaixo do realizador, voltava-lhe as costas. Vincenzo apresentou-se à actriz, mas ela não chegou a desviar o olhar da televisão.

            «O Último Ano em Marienbad», disse, apontando para o ecrã. «Com a Delphine Seyrig. É a melhor coisinha da Nouvelle Vague.»

            Era evidente que Elsa Gorski queria que a deixassem sozinha. A sua presença, contudo, era de tal maneira apelativa que tive vontade de me sentar ao lado dela e massajar-lhe os tornozelos nus - como se, querendo rejeitar o mundo, ela acabasse por o atrair com uma força imensa; a sua rejeição era, portanto, sincera.

            A sala corria quase todo o comprimento do piso inferior da casa e estava dividida em duas partes. Numa delas, a mais próxima da cozinha, onde a actriz se encontrava deitada, havia sofás e cadeirões em tons ocre e castanho, um bar com um balcão em zinco, uma mesa baixa e um tapete suave e felpudo que cobria quase todo o soalho. Era uma decoração datada mas acolhedora. Na outra parte, o cenário era completamente diferente. Duas grandes portas de correr abriam para um espaço onde a parede de vidro exibia o exterior da casa - a palmeira, os cactos, os carros estacionados à entrada - e onde o chão havia sido substituído por um vidro: havia peixes a nadar num aquário debaixo dos nossos pés, toda a espécie de pequenos peixes de água doce, de cores vivas e grandes olhos ingénuos, peixes que serpenteavam por entre flora marinha de plástico e um fundo de areia muito amarela. Se os pudéssemos tocar, viriam certamente mordiscar-nos os dedos dos pés. A luz também vinha do chão, de duas enormes lâmpadas subaquáticas escondidas na areia, como se aquele lado da sala fosse uma bizarra discoteca marinha. Alguém pusera a tocar um velho álbum de música soul.

            Era neste espaço que a equipa do filme se juntava. Tinham copos na mão, fumavam cigarros, as conversas cruzavam-se e diluíam-se na música. Vincenzo sorriu, acendeu um cigarro e avançou para a festa, sem esperar por nós. Olívia ficou a olhá-lo sem reacção: parecia cansada ou talvez constrangida. Depois disse que ia buscar as malas ao carro e procurar um quarto onde as largar, e desapareceu. Fiquei a pensar nela enquanto se afastava. Era uma rapariga desiludida e, agora, estava finalmente só. Nina anunciou que ia tentar falar com McGill e, dando meia-volta, fez o caminho de regresso à cozinha.

            Na sala do aquário estava Roger, que sorvia o vodka de que se servira na cozinha e falava com três pessoas, uma delas uma mulher de quarenta anos muito queimada pelo sol. Junto desse grupo outras pessoas dançavam. Era uma noite quente em Itália e tudo o que eu queria, naquele momento, era encontrar uma cama e dormir até não poder mais. Vincenzo deu conta da minha hesitação e colocou-me um braço sobre os ombros.

            «A noite começa agora», disse. Cheirava a tabaco e a suor. Desde que entrara na casa, o italiano parecia ter esquecido tudo o que acontecera antes; naquele ambiente etéreo, líquido e branco, estava no aconchego de um ninho. Pisar aquele chão transparente era uma experiência curiosamente agradável e, com a ponta da bengala a bater no vidro, os peixes acercavam-se da minha sombra, como se fosse o flautista de Hamelin atraindo os ratos para fora da cidade.

            «Olha, os peixinhos gostam dele», disse a mulher loura que estava junto de Roger. O australiano apresentou-nos Fink, Lefer e a sua própria mulher, Stella Dormant. Stella estendeu a mão para Vincenzo e este beijou-a; comigo foi menos expressiva e limitou-se a fazer um breve aceno de cabeça. Tinha o cabelo louro demasiado brilhante, pestanas demasiado falsas, e usava um vestido demasiado justo para o seu corpo roliço; tudo nela era demasiado. Troquei um olhar rápido com Vincenzo; era assustador pensar o que ela e Roger fariam na solidão do seu quarto.

            «Fazem parte do grupo do McGill», disse Roger a Albert Fink, que concordou com um aceno de cabeça. Era um inglês de quarenta anos, careca e pálido como a neve.

            «Grande talento, esse puto», disse Albert. «Quem me dera que o tivesse lido há mais tempo. Parece que o Metzger quer entregar o serviço ao Belvaux.»

«Não acredito», disse Uli com um sotaque alemão muito carregado. «Não acredito que o Metzger dê o trabalho ao francês.»

            «Não é francês, é belga», corrigiu Roger. «Mais vodka?»

            Stella concordou imediatamente. Uli e Albert perguntaram se ainda havia champanhe; Roger disse que ia ver e afastou-se. Formávamos um pequeno círculo no lado esquerdo do aquário. Olhei pela parede de vidro e vi Nina a caminhar próximo do lago, de um lado para o outro, com o telefone na mão. Atrás de nós um segundo grupo conversava animadamente, e o director de fotografia asiático segurava uma garrafa de vinho na mão e ia servindo Pym, cujos olhos raiados de vermelho e lábios secos denunciavam mais do que o consumo de álcool.

            Albert perguntava-me alguma coisa. Regressei subitamente à conversa.

            «O quê?»

            «O Albert estava a perguntar se também trabalhavas em cinema», disse Vincenzo.

            «Eu? Não, não. Que ideia.»

            «Parece o médico da série americana, com a bengala», comentou Stella.

            «Até é vagamente parecido», riu-se Uli. «Não tem queixo, a barba por fazer, o ar ligeiramente alucinado. Aposto que...»

            «Apostas o quê?», gracejou Vincenzo.

            «Aposto que é escritor», disse Uli. «Pelo menos, tem ar disso.»

            «O que é isso do ar de escritor?», quis saber Albert. Falavam de mim como se eu não estivesse ali.

            «Um ar entre a sobranceria e a vagabundagem», explicou Uli sem sequer me olhar. «Já olhaste bem para os tipos que o Don tem coleccionado por aqui ao longo dos anos? Estou a falar dos romancistas, claro.»

            «O DeLillo esteve por cá há uns tempos», interveio Albert.

            «Foi a excepção à regra», contrapôs Uli. «Pensa no Tom Kapus, aquele americano judeu, quarentão, que parecia uma ratazana vestida de gente. E no outro, o do Bandwagon. Como é que se chamava esse hippie?»

            «James Leffers», adiantou Vincenzo com orgulho, como se a conversa o divertisse.

            «Bom, então tenho ou não razão?», perguntou Uli, olhando-me.

            «Em relação a quê?», perguntei.

            «És ou não és escritor?»

            Dei um gole na bebida. Uli e Albert imitaram-me; Vincenzo acendia um cigarro. Houve um bizarro momento de expectativa.

            «Não», respondi. Apontei com o queixo para o italiano. «Mas ele é.»

Uli arregalou os olhos; Albert tossiu.

            «Fico surpreendida», disse Uli.

            «Porquê?», perguntou Vincenzo, despeitado.

            «Tens um ar sobranceiro, é verdade, mas muito pouco vagabundo», respondeu ela. «A sobranceria tem alguma importância, mas a vagabundagem é mesmo essencial para quem se dedica a tal coisa.»

            Vincenzo parecia procurar uma resposta acutilante quando Stella interferiu.

            «Deixa-me adivinhar», disse, fitando-me muito séria. «Com essa perna, se calhar foste lutador ou assim.»

           Uli começou a rir; Albert continuou a beber, entretido; Vincenzo olhou-me, aguardando uma resposta.

            «Sim, é isso», respondi. «A perna foi-se num combate épico.»

            «Em Acapulco», acrescentou Vincenzo. «Durante os tempos de vagabundagem. Deviam ter visto o outro brutamontes: era um autêntico gorila.»

            Stella arregalou os olhos, genuinamente preocupada. Roger apareceu nesse momento com uma garrafa de vodka e vários copos e olhou para a mulher.

            «Que foi?»

            Albert sorriu.

            «Os teus amigos estavam a contar-nos sobre o seu passado de lutador», disse com sarcasmo.

            Roger franziu o sobrolho e distribuiu os copos.

            «Quem, este?», perguntou, apontando para Vincenzo.

            «O outro», disse Uli.

            «Foi um gorila em Acapulco que lhe deu cabo da perna, coitadinho», disse Stella. «Pobre criatura.»

            «Não há gorilas em Acapulco», disse Roger, confuso. Fiquei à espera de que cuspisse para o chão ou para os sapatos da mulher.

            Stella parecia baralhada; Roger olhou-nos. «Julgava que vocês eram escritores, ou o raio que vos parta. Como o McGill.»

            O australiano distribuiu vodka por todos.

            «Então o champanhe?», perguntou Uli.

            «O que há está guardado para a chegada do Don.»

            «Don Metzger!», gritou Pym, do outro lado da sala, e ergueu o copo no ar. Os outros imitaram-no e beberam; nós fizemos o mesmo. O vodka puro aqueceu-me imediatamente o corpo. Pym gritara para chamar a atenção de Elsa, que parecia dormitar sobre o sofá. Elsa voltou a cabeça na nossa direcção, susteve o olhar durante uns segundos, procurou sorrir e, depois, esqueceu-nos e tornou a fechar os olhos. Debaixo dos meus pés nadava um peixe púrpura de olhos amarelos e grandes barbatanas.

            «Parece um desenho animado, não achas?», comentou Nina, que, ao meu lado, também seguia o movimento irregular do peixe.

            Regressara para junto de nós. Olhei-a com um prazer inesperado: parecia mais bonita àquela luz que vinha do chão e lhe iluminava o queixo perfeito e o cabelo ruivo, que soltara sobre os ombros.

            «O McGill?»

            «Não consegui», explicou. «A Susanna deixou-me usar o telefone da casa mas, mesmo assim, não consigo ligação. Deve estar no avião.»

            Nina sorriu, embora parecesse cansada; Roger aproximou-se, serviu-lhe mais vodka e Nina bebeu. A música soul tornara-se mais melosa e, nesse instante, Vincenzo aproximou-se e arrebatou-a pela cintura. Puseram-se a dançar ao som da batida lenta, os pés deslizando sobre o vidro do aquário, os peixinhos acompanhando os movimentos sinuosos com o serpentear das suas caudas. Pym e os outros dois actores de Game Over - um homem alto de bigode e uma mulher de cabelo oxigenado - juntaram-se a Vincezo e a Nina; pouco depois imitaram-nos o director de fotografia asiático e o engenheiro de som. Roger ocupava-se de espalhar o vodka democraticamente pelos copos. Depois o realizador pegou na sua câmara, que estava pousada numa mesa, e começou a filmar.

            Fui-me afastando devagar, procurando sorrir como se isso ocultasse os meus movimentos, e voltei ao lado da sala mais convencional. Elsa desaparecera do sofá, embora o seu perfume - um aroma leve, agridoce - permanecesse no ar; ou talvez a sala cheirasse sempre assim, ao corpo suado de uma mulher deitada. Perguntei-me onde se encontraria Olívia, mas logo esqueci o assunto. Ao fundo da sala, depois do balcão do bar, existia um lanço de largas escadas em madeira que conduziam ao andar superior. Tentei espreitar para o cimo das escadas, mas tudo o que vi foi um corredor escuro. Considerei a hipótese de me aventurar mas, depois, um aroma vindo da cozinha atraiu-me.

            Susanna encontrava-se ao fogão, suada, agitando uma frigideira sobre uma chama diabólica. Bosco e Alípio estavam sentados à mesa de madeira, mastigando pedaços de pão mergulhado em azeite. A cozinha cheirava a chouriço, cebola e cravinho.

            «Cheira bem», disse.

            Bosco observava-me. Usava as mesmas roupas do princípio da noite e estava sujo dos trabalhos no campo. Alípio sorriu.

            «Senta-te connosco», convidou, em italiano.

            Susanna voltou-se, sorriu e apontou para um lugar vago à mesa. A música e as vozes dos outros eram, ali, sussurros provenientes de um lugar remoto; reinava o som da frigideira a crepitar enquanto alguma coisa deliciosa fritava ao lume.

            «É má educação não aceitar», disse Bosco em inglês com a sua voz rouca. O tom era rude e autoritário. Acedi, coxeei em direcção à mesa e sentei-me, encostando a bengala à cadeira. Devo ter feito um esgar de dor porque Alípio perguntou, unindo os dedos enrugados da mão direita - de unhas sujas e carcomidas -e levando-os perto da boca:

            «Aspirina?»

            «Precisava de alguma coisa mais forte», retorqui.

            Alípio voltou-se para Susanna, que nos observava: «Piú forte», emendou.

Susanna concordou com um aceno de cabeça e, aproximando-se, despejou uma mistela de ovos e chouriço directamente da frigideira para um prato de barro colocado no meio da mesa. Bosco e Alípio serviram-se e começaram imediatamente a comer. Debaixo da luz suave que pendia do tecto, podia ver-se o suor acumulado na cabeça calva do catalão que ameaçava correr-lhe para os óculos redondos; ao lado de Bosco, Alípio era do tamanho de uma criança. Susanna despiu o avental e saiu da cozinha. Alípio serviu-me um copo de vinho de uma das garrafas sem rótulo.

            «Deve ser tramado», disse Bosco, sem me olhar, continuando a comer. «Um tipo com a tua idade não poder andar como deve ser.»

            Provei o vinho: era doce como um licor.

            «Há coisas piores. Podia ter perdido o palato e não ser capaz de provar isto.»

            Alípio concordou com um gesto de cabeça, como se tivesse compreendido o que eu acabara de dizer.

            «O Roger disse-nos que fazes balões para o Metzger.»

            «Quem é o Roger?»

            «O australiano que te levou as lonas.»

            Bosco franziu o sobrolho durante um momento; parecia vasculhar as suas memórias mais longínquas em busca de uma funesta recordação de Roger.

            «Ah, esse palerma. O que é que ele disse?»

            «Que eras o artista que fazia os balões para o Metzger.»

            Bosco fez uma expressão zombeteira; os seus lábios finos, quase inexistentes, contorceram-se num espasmo. Tinha a boca cheia de ovos e chouriço por mastigar.

            «Artista?», cuspiu.

            «Julgo que foi a palavra que usou.»

            Bosco mastigou. «É uma palavra fácil, não te parece?»

            «Como assim?»

            «Serve para tudo e não serve para nada.» Engoliu nova garfada e falou outra vez de boca cheia. «Como é que o australiano se descreveu a si próprio?»

            «Disse-nos que era realizador de filmes independentes.»

            «E um realizador é um artista?»

            «Artista», repetiu Alípio em italiano, continuando a comer. A nossa conversa em inglês parecia diverti-lo. Bosco dividiu um pedaço de pão em duas metades e ofereceu uma metade ao italiano, como se lhe dissesse para enfiar o pão na boca e estar calado.

            «Parece que sim», respondi.

            «Mesmo um realizador que se vangloria de fazer cinema erótico quando, no fundo, o que faz é pornografia mal disfarçada de erotismo? Filmes, aliás, nos quais uma das protagonistas é a própria mulher.»

            Pousei o copo de vinho. Devo ter feito uma expressão confusa porque Alípio tornou a sorrir com a boca cheia do pão que Bosco lhe oferecera.

            «Imagina», continuou Bosco. «Pegas numa câmara de filmar comprada em segunda-mão, ligas a uns quantos amigos e pedes-lhes para irem a tua casa fornicar com a tua mulher. Entretanto, filmas tudo. Arranjas quem distribua essa imundície (e olha que há sempre quem compre coisas imundas, embora não haja sempre quem compre coisas belas) e chamas-lhe cinema erótico. Isto faz de ti um artista?»

            «Suponho que não.»

            Bosco trincou o seu pedaço de pão com vigor e abanou a cabeça.

            «É este o problema com o tempo em que vivemos», disse. Parecia verdadeiramente triste. «Está tudo virado ao contrário. Deixámos de pensar em termos positivos e passámos a encarar a realidade pela negativa. Fala com qualquer pessoa e aponta-lhe uma falha moral. Ela pergunta-te: qual é o mal?             Quando a pergunta devia ser - e sempre deveria ter sido - qual é o bem? O filho-da-mãe do australiano justifica-se assim, pela negativa. Como uma prostituta em final de carreira que não sabe fazer mais nada senão aquilo que andou a fazer a vida toda e, como está velha e acabada, diz que teve uma carreira em serviços para cavalheiros. Continua, no entanto, a ser uma prostituta.»

            «Prostituta», repetiu Alípio, sorrindo.

            «E o Don foi na conversa dele», continuou Bosco. «Comprou aquela chachada.»

            Dei outro gole no vinho; era tão aromático que chegava a ser enjoativo.

            «O Metzger financia os filmes do Roger?»

            «A pornografia não carece de financiamento, nem mesmo aquela que se esconde debaixo da máscara ridícula do erotismo», disse Bosco; havia um assustador desprezo na sua voz. «Tal como os fungos, alimenta-se da matéria em decomposição.»

            «Fiz a pergunta porque o Roger se referiu ao Don como seu patrão.»

            «O australiano é uma sanguessuga; alimenta-se do oxigénio espiritual que o Don lhe proporciona. Sem esse oxigénio, resta-lhe o mundo sórdido de Los Angeles. Restam-lhe actores decadentes de quinta categoria, limusinas a cinquenta dólares por hora, e os clubes de strip em Santa Mónica.»

            «Ele não me parece muito preocupado com a vida espiritual. Ou sofisticada.»

            «Se eu passasse dez horas por dia embriagado, também não me preocupava demasiado.»

            «No entanto, tu preocupas-te, e nem sequer é a tua vida.»

            Alípio levantou-se da mesa e foi buscar outra garrafa de vinho. Susanna regressou com um frasco de comprimidos que colocou em cima da mesa; sorriu e disse-me, em italiano, que eram os comprimidos que o patrão tomava para as dores. Tal como o vinho, o frasco também não tinha rótulo; tirei dois comprimidos do interior e guardei-os no bolso da camisa. Alípio regressou com uma nova garrafa.

            «Preocupo-me que abusem da boa vontade do Don», retomou Bosco, apontando com um enorme indicador na direcção da porta que dava para a sala. «Preocupo-me que abusem da sua excessiva hospitalidade. Preocupo-me que estes idiotas, que estes actorzinhos de meia tigela e estes realizadores frustrados e estas mulheres fáceis venham para aqui aproveitar e consumir e chupar tudo aquilo que puderem. Estas não são pessoas, isto não é gente. São parasitas; são fungos.»

            «Funghi», repetiu Alípio, sorrindo.

            O discurso de Bosco começava a parecer-se com a homilia de um pregador nas madrugadas televisivas; hesitei um momento e depois perguntei-lhe:

            «O que é que te torna diferente?»

            Bosco encolheu os ombros.

            «O que é que nos torna diferentes de qualquer outra pessoa?»

            «Diz-me tu.»

            «Uma marca de finitude», disse Bosco.

            «Não sei se te compreendo.»

            «Tu, por exemplo. O que é que fazes da vida?»

            Demorei algum tempo a responder.

            «Na verdade, grande parte do tempo não faço coisa nenhuma. Às vezes sou escritor. Ou fui escritor. Ou escrevo. Ou costumava escrever.»

            «E o que é que faz um escritor?»

            Franzi o sobrolho.

            «Escreve?»

            «Porquê?»

            «Porque tem uma pergunta na cabeça para a qual não sabe a resposta.»

            «Portanto, tenta dar-lhe resposta, ordenando o mundo com as suas palavras.»

            «Ou desordenando-o ainda mais.»

            «Pode fracassar.»

            «Precisamente.»

            «Embora só ele conheça o significado desse fracasso.»

            «Sim.»

            «Mas essa bengala e essa perna morta exibem-no constantemente.»

            Houve um instante de silêncio. Depois Bosco continuou, debruçando-se ligeiramente sobre a mesa; falou num tom colérico, embora contido.

            «Julgas por um momento que algum dos idiotas naquela sala compreende o que é existir dessa maneira, com uma exposição tão evidente de um fracasso?»

            «Nunca pensei na minha perna como um fracasso.»

            «E, no entanto, é. A tua perna é o teu fracasso; é a prova da tua finitude. E está aí para toda a gente ver, para alguns gozarem com ela e para outros sentirem pena. Porém só tu a entendes verdadeiramente; só tu conheces o seu significado, só tu convives com o teu tormento.»

            Bosco espetou de novo o indicador na direcção da porta da cozinha. Acima das nossas cabeças, a luz esmoreceu por um instante e logo regressou ao normal.

            «Vai àquela sala e pergunta a cada um deles onde é que fracassou; pergunta-lhes onde se encontra a sua prova de finitude. Todos a carregamos connosco de uma maneira ou de outra, porque estamos agora e para sempre predestinados ao fracasso. Porém, vais descobrir, para tua grande frustração, que lá dentro são todos imortais. Uma sala cheia de super-homens e de super-mulheres, perfeitos na sua imperfeição, completamente esquecidos de que são, como todos nós, repasto para cemitérios. Comida para os vermes.»

            Bosco tirou os óculos e limpou o suor da testa. Alípio levantou-se, sacou de um cigarro do bolso da camisa, acendeu-o e sorriu, anunciando em italiano que ia regressar ao trabalho. Bosco disse-lhe que levasse o carro e, pouco depois, ouvimos o Renault avançar pela estrada da floresta. Susanna lavava a loiça; a cozinha caíra no silêncio. Depois perguntei:

            «Qual é a tua demonstração cabal de finitude?»

Bosco levou a mão à parte de trás do pescoço e baixou a cabeça careca. À luz do candeeiro, pude ver uma cicatriz que lhe corria da orelha direita para o centro da nuca.

            «Tumor cerebral aos dezanove anos», respondeu. «E os meus balões, claro.»

            «Os teus balões?»

            «Arte perecível. Arte que não pode ser colocada num museu e que não pode ser restaurada. Arte que demora tanto tempo a projectar e a construir e tão pouco tempo a desfrutar. Arte, por assim dizer, marcada pela finitude.»

            «É verdade que o Don nunca voou em nenhum dos teus balões?»

            Bosco soltou um riso sarcástico, como se a pergunta não fizesse sentido. «Os filmes, as estreias, os festivais, a merda do dinheiro...», disse. «Não significam nada. Se conseguires ver a expressão no rosto dele quando vê os balões partirem e encherem o céu de cores, então conhecerás o verdadeiro Don Metzger.»

            «Não deixa de ser esquisito», comentei. «Ver balões partirem sem ninguém dentro, apenas pela beleza da coisa.»

            Bosco terminou o copo de vinho de um gole e pousou-o com firmeza.

            «Os balões significam muito mais do que mera beleza. A beleza pode dar sentido à realidade, mas é transitória. Os balões não são apenas belos; são símbolos e fazem parte de um ritual, um ritual que traz verdade à realidade, e não apenas sentido. Na Tailândia, por exemplo, acreditam que ver partir um balão-lanterna traz sorte. Muito apropriado aos asiáticos, que acreditam na fortuna. Os meus balões, por outro lado, são símbolos de libertação.» Depois citou, como que a rematar um discurso profundamente enraizado: «O homem nasce livre mas em toda a parte se encontra acorrentado.»

            Reconheci a frase, mas tive de pensar nela durante um momento para lhe descobrir o autor; enquanto o fazia, procurava também perceber se Bosco acreditava mesmo nas coisas que dizia, se era um lunático, se simplesmente um idiota que se defendia da realidade com filosofia de pacotilha. Então ocorreu-me:

            «Rousseau?»

                                              

            «Sim. Acorrentado pelos seus desejos. Ou, se fores crente, pelos seus pecados. Na religião há pecados veniais e pecados mortais; no meu bosque há balões pequenos e balões grandes. Sempre que um deles desaparece de vista - sempre que um deles voa tão alto que se transforma numa miragem, numa sombra de qualquer coisa que nunca chegou a ser... São como estrelas distantes cuja luz é uma falsa indicação de vida. Sempre que um deles desaparece na direcção do mar, há alguma coisa em mim - e também no Don - que desaparece com eles. Um peso, ou um desejo, ou uma ilusão. Uma dor,se quiseres.»

            Bosco parecia quase emocionado. Fez uma pausa e depois correu a palma da mão pela careca.

            «É melhor voltar ao trabalho», disse, e levantou-se da mesa.

            Nesse momento, Susanna, que enxugava a louça com um pano, deu um salto quando a porta se escancarou. Roger entrou, de câmara de filmar na mão direita, embriagado e a trocar os passos. Atrás dele vinham Stella, que ria descontrolada, Pym e Vincenzo; este último trazia na mão a garrafa de vodka. Pym fumava marijuana. O barulho da música e das vozes entrou de rajada na cozinha - algures na casa uma voz feminina ria histericamente. Levantei-me da mesa.

Roger apontou a câmara para Susanna e perguntou, em palavras arrastadas pelo álcool, se a cozinheira podia explicar aos espectadores de um programa de culinária improvisado a receita do prato defruttí di maré. Susanna, timidamente, levantou o pano de cozinha e tentou cobrir o rosto, mas Roger insistiu, aproximando a câmara cada vez mais da cara da mulher. Vincenzo estava tão embriagado como Roger; quando erguia a garrafa para beber do gargalo, reparou na presença de Bosco. Deu um passo atrás e fez uma vénia, quase tropeçando nas próprias pernas. O vodka entornou-se no chão de granito.

«Ups», disse. «É o poderoso lenhador do Lácio.»

           Bosco ignorou-o; olhava fixamente para Roger.

            «Estás perdido de bêbedo», disse eu a Vincenzo. Roger voltava agora a câmara na nossa direcção; Stella ria histericamente.

            «E tu estás perdido de sóbrio», disse Vincenzo. Olhou para o pulso como se usasse um relógio: «Que horas são? Se o Metzger não chegar entretanto, parece-me que vou ter um colapso.» Depois pareceu estar a recordar-se de alguma coisa. «Viste a Olívia?»

            Stella soltou um grito. Bosco pegara em Roger pelos colarinhos e erguera-o no ar; a câmara saltou-lhe da mão e caiu com estrondo no chão da cozinha. Susanna só teve tempo de se desviar, enquanto o catalão carregava Roger como um boneco de peluche pela cozinha fora, a cabeça do australiano batendo nas panelas penduradas do tecto e produzindo um bizarro trecho musical. Vincenzo e Pym correram atrás de Bosco, cada um agarrando-se a um dos enormes braços do catalão. Levei a mão ao cabo da bengala e coxeei na direcção da porta, embora mais não pudesse fazer do que assistir àquela triste cena.

            «Larga-o, besta!», gritava Stella, saindo para o relvado fronteiro ao lago atrás de Bosco.

            «Mffffff», agonizava Roger.

            Susanna recolhera-se a um canto da cozinha e persignava-se. Os gritos de Stella chamaram a atenção porque, quando saí da casa, Albert, Uli, Nina e o resto dos convidados aproximavam-se da beira do lago, onde Bosco - que Vincenzo e Pym tentavam inutilmente fazer recuar - caminhara até ao pontão e ameaçava largar Roger na parte mais rasa, onde a água se misturava com a terra lamacenta. Vincenzo e Pym, exaustos, desistiram de tentar contrariar o catalão e recuaram. Troquei um olhar com Nina: no rosto dela havia espanto e incompreensão. Avancei para o pontão enquanto Roger se debatia, as pernas atarracadas agitando-se no ar; Bosco não o largava mas também não se movia. Quando me aproximei, vi que o catalão tinha os olhos marejados de lágrimas e uma fúria desmedida no rosto.

            «Por favor», disse-lhe baixinho. «Larga-o.»

            Bosco hesitou um momento e, depois, com gestos lentos, recuou do pontão e abriu as mãos que sufocavam Roger pelo colarinho, deixando-o cair sobre a relva à beira da água. Roger tossiu e cuspiu.

            «Diz-lhe para ficar longe de mim», disse Bosco. «Da próxima sou capaz de o matar.» Depois voltou-se e, ignorando o olhar dos presentes, começou a caminhar na direcção do bosque e da escuridão.

 

            O incidente provocou algumas baixas e um grupo de cinco pessoas partiu num dos carros estacionados defronte da casa, incluindo o director de fotografia asiático e o engenheiro de som austríaco. Apesar da cena no pontão, partiram animados e ébrios, e cedo o automóvel foi engolido pelo bosque. A festa prosseguiu. O catalão desaparecera, Roger recuperou o fôlego, e o álcool continuou a jorrar para dentro dos copos e destes para o interior das gargantas. O australiano passou algum tempo na cozinha a praguejar e a insultar Bosco enquanto Stella escutava, solícita, os seus lamentos, e depois juntaram-se ao grupo que fumava marijuana na sala, esparramado nos sofás: Vincenzo, Pym, Albert e Uli. Elsa sentara-se com Nina no pequeno pontão à beira da água e partilhavam uma garrafa de vinho; ninguém sabia do paradeiro de Olívia. Quis convencer Vincenzo a ir à procura dela, mas depois vi, nos seus olhos quase fechados e no seu corpo vencido pela lassidão, que a tentativa era escusada.

Por volta das onze da noite, atrevi-me a subir as escadas para o andar superior. Procurava Olívia e queria conhecer a casa; na sala,a conversa transformara-se numa idiotice sem sentido e, além disso, se estivesse muito tempo parado, as dores na perna tornavam-se mais intensas. Esquecera-me de tomar os comprimidos por causa da cena com Roger e Bosco; o lapso ocorreu-me a meio do lanço de escadas, mas a ideia de regressar à cozinha para me servir de um copo de água pareceu-me demasiado cansativa. Assim, continuei a subir. O primeiro andar encontrava-se dividido por um longo corredor que terminava numa parede de vidro através da qual se viam as densas copas das árvores do bosque. Àquela hora - a Lua suspensa sobre a terra na sua aterrorizadora brancura, o vento morno agitando a folhagem e sibilando pelas frestas -, aquela parede de vidro era o ecrã de um filme macabro. Coxeei devagar pelo corredor, procurando evitar que a bengala fizesse demasiado barulho, e procurei um interruptor que acendesse uma luz, mas não encontrei nenhum. A parede pareceu morder-me a ponta dos dedos. Havia quatro portas fechadas de cada lado, mas não tive coragem de abrir nenhuma delas. O silêncio, ali, era uma coisa indesejável; à distância, perdido num outro mundo, escutei o murmúrio suave de uma respiração, mas era impossível dizer de onde provinha, se era sequer uma respiração, se o som do bosque durante a noite.

            Ao fundo, junto da parede de vidro, o corredor curvava à direita. Antes de fazer a curva pus-me em frente do vidro e semi-cerrei os olhos, vasculhando o bosque à distância, procurando uma luz de presença que fosse um sinal de Bosco. A princípio, nada vi: um halo de bruma parecia ter subitamente esbatido o recorte escuro das árvores. Depois, como se uma nuvem desimpedisse a Lua para que a sua luz incidisse sobre a Terra, pareceu-me ver uma sombra movimentar-se na direcção do bosque. Encontrava-se ainda dentro da propriedade, mas cedo desapareceu para o interior do arvoredo. Senti um calafrio. Era a sombra de uma coisa pequena mas ágil, provavelmente um veado ou um coelho; ou, num livro que eu pudesse ter escrito, o vulto de uma criança perdida num bosque.

Após a curva à direita, o corredor terminava abruptamente numa porta. Era uma porta maior do que as outras, porventura mais sólida, com uma grande maçaneta de metal. Levei os dedos da mão esquerda à superfície; que monstro se esconderia por detrás dela? Que criatura bizarra se resguardaria de olhares curiosos no final daquele corredor tão escuro? Tive vontade de rir, mas era do nervoso. Pensei: que tempo era este; que lugar era aquele? Preparava-me para recuar quando a porta rangeu - tinha estado apenas encostada e, ao tocar-lhe, abrira-se devagar. Havia luz no interior; coloquei a ponta da bengala junto da soleira e entrei. Do outro lado havia um quarto espaçoso e bem iluminado: tinha uma cama encostada à parede mais afastada da porta e um enorme ecrã de televisão na parede oposta. Do lado esquerdo encontrava-se o balcão redondo de um bar equipado, junto do qual havia uma cómoda baixa onde repousava um gira-discos antigo; do lado direito, duas poltronas; atrás das poltronas, uma porta. Uma secção da parede contígua à cama era em vidro e, através deste, podia ver-se a planura obscurecida do lago. Aproximei-me e olhei à distância: Nina estava sentada sobre o pontão, sozinha, balouçando suavemente as pernas sobre a água, iluminada pela luz que provinha da casa; olhava na direcção de alguma coisa que ficava fora do meu ângulo de visão. Ergui a mão esquerda e acenei-lhe; depois senti-me estúpido.

            «Vã tentativa», disse uma voz.

            Assustei-me e larguei a bengala. Perdi o equilíbrio, mas consegui chegar à cama e sentar-me sobre o colchão. Elsa estava de pé no meio do quarto. Aproximou-se, ajoelhou-se, pegou na bengala e devolveu-ma.

            «Desculpa», disse. Tinha as pernas molhadas e o cabelo preto desalinhado. Chegou-me o seu aroma pungente, a perfume e suor. «Vinha descansar um bocado, não sabia que estavas aqui.»

Pousei a bengala na cama. Elsa sentou-se ao meu lado.

            «Este é o teu quarto?»

            «Este é o quarto do Don. Gosto de dormir aqui quando ele cá não está.»

            «Vou deixar-te dormir então», disse-lhe, e quis levantar-me, mas Elsa agarrou-me o braço. Tinha os dedos mornos e mãos surpreendentemente macias.

            «És engraçado», disse ela, acendendo um cigarro.

            «Porquê?»

            «Parece que te enganaste no sítio. Como se fosses um mecânico de automóveis, por exemplo, e tivesses por engano comparecido a uma conferência de dentistas.»

            Comecei a rir.

            «Acredita que é mais ou menos isso», concordei. «Venderam-me gato por lebre.»

            «Quem? O teu amigo italiano?»

            «Ele conhece uma pessoa em quem o Don está interessado. Enfim, é uma longa história.»

            «Imagino. Tenho andado a fugir dele.»

            «De quem?»

            «Do Vincenzo.»

            «Porquê?»

            «Estivemos a falar há pouco. Ele veio ter comigo e fez aquela conversa que tanta gente costuma fazer; a conversa de chacha dos filmes, dos actores, dos realizadores, blá blá blá. Andam à volta das coisas que realmente gostavam de saber escondendo-se atrás de uma fachada de quem já sabe tudo. No fundo, é sempre o mesmo problema; o problema do sucesso ou da falta dele. Só que vem disfarçado de outra coisa qualquer. Ao mesmo tempo tentou assumir aquela postura de quem, no fundo, não se sente intimidado; de quem desconfia deste mundo porque, no fundo, se sente superior a ele. E isso irrita-me, porque é desonesto.»

            Elsa respirou fundo. Lá fora a noite escurecia cada vez mais, a Lua agora coberta por uma nuvem passageira.

            «Não lhe dás grande margem de manobra», argumentei, por alguma razão, em defesa de Vincenzo. «Se falasse contigo em tom reverencial, ias sentir-te ainda mais irritada. Gostavas que ele usasse esse tom contigo? Ou que se mostrasse intimidado?»

            «Não sei», respondeu ela, dando uma passa. «No fundo acho que espero sempre alguma espécie de distância. Ou, se quiseres, uma abordagem mais cuidadosa.» Fez uma pausa e fumou. Depois acrescentou: «Eu tinha dezoito anos quando ganhei um prémio em Cannes. Era uma miúda, mas a coisa não me subiu à cabeça, se é isso que estás a pensar.»

            Aquiesci com um gesto de cabeça; sem querer, sorri com o canto dos lábios. Ela deu-me uma cotovelada.

            «Diz o que tens a dizer, vá», desafiou-me.

            «Não sei. Parece-me demasiado cedo para alguém ganhar uma coisa dessas. O risco é o sucesso, como tu disseste — e o sucesso é uma coisa perigosa.»

            «Como é que sabes?»

            «Presumo, porque leio os jornais. Porque tenho amigos que o tiveram e se transformaram nuns palermas. Porque, no teu meio, há demasiadas histórias de gente que se desmoronou demasiado cedo.»

            Elsa sorriu; tinha os dentes manchados do tabaco e a cana do nariz ligeiramente torta. Ainda assim, era bonita.

            «Nunca entendi esse argumento do sucesso. Se acontece cedo, é demasiado cedo; se acontece tarde, é demasiado tarde. E, se acontece cedo, o que é suposto fazermos? Fecharmo-nos em casa até termos idade suficiente para sabermos lidar com as armadilhas da fama?»

«Estava só a fazer de advogado do Vincenzo. Se ele te pareceu demasiado à vontade, talvez seja porque, no fundo, não se sente nada à vontade. Eu sei que ele parece um idiota, mas não creio que o seja. É simplesmente novo, voraz, e quer assimilar todas as coisas de uma só golfada.»

            «Tu também és novo.»

            «Não tanto como ele.»

            Elsa encolheu os ombros.

            «Está bem. Vou dar uma hipótese ao italiano. Ainda assim, continua a ser um aborrecimento estar sempre a falar de mim própria como se a única coisa de que vale a pena falar de mim própria fosse propriedade pública. Estou cansada. Apetecia-me fazer um pacto de silêncio cm relação a tudo o que tem a ver comigo.»

Suspirou e depois passou os dedos pelo cabelo. Os seus pés nus e pequenos balouçavam da beira da cama.

            «Sabes o que é que o Don me disse da primeira vez que me viu?»

            «Não.»

            «Que precisava de uma empregada doméstica.»

            Comecei a rir; cada vez gostava mais do tal Metzger.

            «Nasci num subúrbio de Cracóvia, e a minha mãe levou-me para a Califórnia quando eu tinha dez anos. Para fugirmos da União Soviética. Alguns anos depois ela morreu porque estava doente há muito tempo e eu fiquei sozinha numa pequena cidade chamada Salinas. Ainda tinha família na Polónia e, ocasionalmente, eles mandavam-me algum dinheiro. Mas eu sobrevivia a arrumar quartos num motel. Nem imaginas a quantidade de coisas que encontrei naqueles quartos em Salinas: dinheiro, drogas, cartas de amor. Uma vez encontrei um dedo. Um indicador ou um dedo médio, não sei dizer, enfiado dentro do cesto do lixo na casa de banho. Cortado pela metade. Nem sequer me dei ao trabalho de chamar a Polícia. Esvaziei o cesto para dentro de um daqueles sacos pretos do lixo e lá se foi o dedo junto com o resto da porcaria. Nessa altura tinha um namorado e as coisas

correram mal; correram mesmo muito mal. Uma noite tivemos uma discussão terrível e ele partiu tudo o que havia para partir no meu apartamento. No dia seguinte o senhorio despejou-me. Não tinha economias nem possibilidade de alugar outro apartamento. Foi então que comecei a viver na rua.»

            Elsa acendeu um novo cigarro naquele que terminava.

            «Sim. Vivi na rua uns tempos. Andava pelos cafés a pedir dinheiro, e isso. Cheguei a pensar em prostituir-me, mas depois, quando olhava para as prostitutas que andavam por ali, percebi que era inútil. Não tinha peito e era esquelética. Para fazer render o meu corpo teria de aceitar o triplo dos clientes. Era demasiado sexo para mim.» Deu uma longa passa no cigarro e o fumo subiu numa espiral. «Um dia, estava sentada em frente de um Starbucks, sem saber bem o que fazer à vida, quando reparei num homem - um tipo enorme, de óculos escuros e chapéu, sentado a uma mesa com outro homem ao lado, esse magrinho e com ar de nazi. Eram o Don Metzger e o Klaus Kasper.»

«O realizador.»

            «Sim. Viste os filmes dele?»

            «Um ou dois. Vi aquele baseado no romance do Knut Ham-sun.»

            «Fome», disse Elsa.

            «Sim. Tu tinhas um papel secundário nesse filme.»

            «A rapariga vestida de preto.»

            «Precisamente.»

            «O que é que achaste do filme?»

            Do lago chegou-nos o barulho de vozes e o chapinhar de água. Elsa olhava-me agora com curiosidade, tão diferente daquele enigmático torpor em que se encontrara quando eu chegara àquela casa.

            «Para ser sincero, achei-o fraco. O livro do Knut Hamsun resiste a adaptações desse género e, se queres mesmo saber, pareceu-me que o Kasper fez um péssimo trabalho. O filme é presunçoso, pedante e vazio de sentido.»

            Elsa ficou muito séria durante um momento e depois abriu o rosto num sorriso.

            «Concordo contigo. Sabes que foi meu primeiro papel?»

            «Não sabia.»

            «Depois de o Don me ter encontrado sentada naquele passeio perguntou-me se estava interessada em trabalhar para ele: precisava de alguém para cuidar da sua casa em San José, que era próximo de Salinas. Primeiro suspeitei das intenções dele, mas depois percebi que o Metzger era o perfeito cavalheiro. O curioso foi eu não ter feito qualquer ideia de quem ele era, de que aquele bisonte com cara de pudim com quem estava a falar era um dos produtores mais conceituados do cinema europeu. Ele nunca fez qualquer referência ao assunto; pôs-me a trabalhar como empregada doméstica e, dois meses depois, ofereceu-me um pequeno papel no Fome. Percebes agora?»

            «O quê?»

            «O que eu te disse sobre o teu amigo italiano. Aquela voracidade que tu descreveste é uma coisa trágica. Se eu tivesse sido voraz com o Don, ele nunca me teria pegado pela mão, aos dezasseis anos, e levado para longe daquele passeio imundo em Salinas.»

            «O Vincenzo escreveu um romance», expliquei. «Tem esperança de que o Metzger lhe dê uma vista de olhos ou, pelo menos, de o conseguir deixar debaixo da almofada do homem.»

            «Esta?»

            Elsa sorriu e pegou na almofada.

            «Essa.»

Peguei na bengala e levantei-me, subitamente consciente de estar sentado na cama de Don. Elsa também se ergueu e ficámos frente a frente: estava descalça e era muito mais baixa do que eu. Fitava-me com curiosidade.

«O Vincenzo tem audácia», continuei. «Pode ser insensato, descuidado, impulsivo, mas tem audácia. Está disposto a sair à chuva para se fazer ouvir, que é bem mais do que aquilo que eu posso dizer de mim.»

«Não foi isso que ouvi dizer.»

«O que é que ouviste dizer?»

«O Vincenzo disse-me que já escreveste três romances e que te admira muito.»

Incrédulo, comecei a rir.

            «Ele nunca leu os meus livros. Não pode ter lido.»

            «Então admira-te a ti. São coisas diferentes», disse Elsa.

            «Queres ver uma coisa gira?»

            Deu meia volta e avançou para a porta atrás das poltronas. Observei-a enquanto caminhava descalça, as ancas movendo-se debaixo do vestido preto que denunciava nádegas firmes; Elsa parecia indiferente ao seu aspecto físico, e isso era uma qualidade estranhamente sensual. Abriu a porta e fez um gesto para que a seguisse.

            Entrámos numa sala estreita que parecia um corredor, atafulhada de coisas. Havia uma estante alta com portas de vidro atrás da qual se encontravam os vários prémios que Metzger acumulara, em festivais, durante a sua carreira: Cannes, Veneza, Berlim, outros festivais menores. Não existia ordem aparente na vitrina, como se quem ali colocara os galardões se tivesse limitado a arrumá-los com uma dose considerável de desprezo; uns estavam tombados, outros de pé, outros voltados ao contrário. Depois vi o Óscar. A estatueta estava na segunda fila, encaixada entre outras duas mais pequenas, porém destacava-se, uma vez que a cabeça dourada do boneco aparecia a espreitar por cima dos companheiros com o seu ar de criatura extraterrestre.

            «Não sabia que ele tinha um desses.»

            «Foi nos anos oitenta. Ganhou-o pelo melhor filme estrangeiro», explicou Elsa. «Mas nem sequer compareceu à cerimónia da entrega dos prémios.»

            Do lado direito do quarto havia uma parede com fotografias emolduradas; também estas pareciam ter sido ali colocadas sem qualquer ordem e penduradas ao acaso. Don estava em todas elas, mas não era o alvo principal do fotógrafo: em todas as imagens aparecia acompanhado por um actor ou um realizador, amiúde ambos. Algumas eram a preto e branco e datavam dos anos setenta, pois Metzger surgia mais magro e vestido à época; outras eram mais recentes; o rosto do produtor, contudo, era igual em todas elas: um sorriso rasgado mas plástico, a superfície lacustre no olhar de quem se ausentou por momentos da realidade, uma personagem construída para as câmaras. Tinha olhos claros, um nariz batatudo, o cabelo grisalho penteado para trás e um rosto muito largo e gelatinoso, enigmático, quase impossível de decifrar. A expressão artificial de Metzger só se alterava em dois retratos: o primeiro era uma fotografia pequena, aparentemente tirada com uma Polaroid, e mostrava-o lado a lado com um tipo muito alto, muito jovem e muito sorridente, de cabelo louro desordenado, vestido como um soldado, naquilo que parecia ser um movimentado aeroporto - a expressão de Don era mais sisuda do que o habitual; o segundo era a única fotografia em que aparecia sozinho: a moldura havia sido colocada muito abaixo das outras, quase escondida, do lado inferior esquerdo da parede, e a fotografia era antiga, as cores comidas pelo tempo. Nela, Don aparecia ao lado de um balão de ar quente - um balão enorme cujo topo não chegava a caber na imagem. Estava ajoelhado junto do cesto e encontrava-se naquele que parecia ser o descampado onde algumas horas antes eu vira Bosco. Tinha os cotovelos pousados nos joelhos e usava barba; a pele bronzeada denunciava tempos de lazer. Foi a única expressão sincera de Don Metzger que alguma vez cheguei a ver: a expressão consolada e tranquila de um homem próximo da coisa que, como dissera o catalão, mais lhe agrada neste mundo.

            Ao fundo do quarto havia um armário com uma porta de correr. Elsa fê-la deslizar e descobriu um conjunto de roupas coloridas. Eram roupas que pertenciam a outros tempos - casacos justos de homem, dos anos setenta, vestidos de lantejoulas, um casaco de peles, sapatos de homem e de mulher empilhados num monte caótico.

            «Coisas que as pessoas vão deixando para trás», disse ela. «Este armário é o pequeno museu das coisas esquecidas.»

            Elsa começou a tirar roupa do armário sem qualquer propósito aparente, atirando-a para uma pilha que se ia formando atrás de si; depois descobriu um calção de banho de homem com um padrão de flores garridas e passou-mo.

            «O que é isto?»

            «Vai fazer-te falta quando mergulharmos no lago.»

            Comecei a rir.

            «É essa a tua ideia? Afogar-me?»

            Elsa não respondeu e começou a despir-se. Primeiro pensei em desviar o olhar, mas a naturalidade com que ela ergueu o vestido preto acima da cabeça - revelando um corpo pálido e magro - dizia-me que não o fizesse; tinha uma tatuagem acima da nádega direita, um pequeno rouxinol pousado sobre o fino ramo de uma árvore. Vestiu um fato de banho antigo, de peça única, às riscas brancas e pretas, e colocou uma touca sobre o cabelo despenteado.

            «Fiquei sem sono. Vamos?»

            Saímos do quarto secreto e Elsa fechou a porta e rodou a chave; com as roupas na mão, avançou para o corredor escuro e eu procurei segui-la, cambaleante. Olhou-me e sorriu como se fosse uma criança à beira de fazer uma traquinice qualquer - havia nela igual medida de sedução e patetice para me deixar descontraído, sem qualquer espécie de urgência - e cada minuto parecia ser um minuto novo, desimpedido pelo minuto anterior e sem a mínima antecipação do minuto seguinte. Quando nos aproximámos do patamar das escadas, ouvimos gemidos que vinham do interior da porta mais próxima; a voz aguda de uma mulher dava gritinhos estridentes.

            «Stella e Roger», comentou Elsa, rindo-se. «Provavelmente, estão a filmar outra longa-metragem.»

            Desci as escadas com a ajuda de Elsa, aqueles calções de banho ridículos pendurados ao ombro. Não tinha qualquer intenção de mergulhar no lago - não sabia sequer se ainda sabia nadar -, mas parecia impossível deter o entusiasmo dela. Na sala, Pym, Uli e Albert estavam sentados no mesmo sofá. Pym parecia dormitar, mas Uli e Albert conversavam em voz alta; a música continuava a tocar na sala do aquário. Perguntei-me uma vez mais por Olívia, mas depois Elsa levou-me para a cozinha. Encontrámos Susanna sentada à mesa, a cabeça repousada sobre os braços dobrados -quando deu pela nossa presença levantou a cabeça muito depressa; tinha os olhos ensonados e turvos. Elsa sorriu-lhe e fez-lhe sinal de que continuasse a dormir, mas Susanna ergueu-se e, num gesto envergonhado, começou a ajeitar a roupa. Saímos pela porta de correr na direcção do lago; a noite trouxera alguma humidade e a ponta da bengala parecia afundar-se um pouco no terreno instável.

            «A empregada dorme na cozinha?»

«A Susanna não se vai deitar antes de o Don chegar», respondeu Elsa. «Ou até o marido regressar do bosque.»

            «O marido?»

            «O Alípio. Vivem numa aldeia próxima de Sabaudia, mas, durante o Verão, a Susanna costuma passar aqui as noites. O Alípio trabalha com o catalão nos balões, ela limpa e arruma a casa. Há muitos anos que é assim.»

Fomos até ao pontão de madeira onde Nina permanecia sentada. A Lua, ainda coberta pelas nuvens, conferia ao lago uma dimensão espectral, a água um denso manto de sereno negrume interrompido apenas por um chapinhar próximo da margem que assumi ser o barco a bater suavemente contra as estacas que sustentavam o pontão. Elsa sentou-se perto de Nina, que bebia o resto de uma garrafa de vinho branco; Nina estendeu-me uma mão e, pousando a bengala, sentei-me entre as duas. Olhei em frente, mas a escuridão já não permitia distinguir o lago do bosque que nos rodeava, onde, noite dentro, Bosco e Alípio laboravam para satisfazer os desejos mais obscuros de Don Metzger.

            Alguma coisa próxima do pontão continuava a chapinhar na água. Nina pegou nos calções que eu tinha sobre o ombro; desdobrou-os e riu-se.

            «Vão ficar-lhe a matar quando mergulhar no lago», gracejou, olhando para Elsa.

            «Nem penses», contestei. «Não entro nessas águas. Gostava de viver para conhecer a manhã no Lácio.»

            «Quando é que esta noite termina?», perguntou Nina. «Parece-me que chegámos há uma eternidade.»

            «Alguma notícia do McGill?», indaguei.

            Nina procurava a Lua escondida.

            «Nada. Começo a pensar que entrámos na Quinta Dimensão e que estamos presos naquele episódio no qual as horas não passam, tudo se repete, e é impossível sairmos deste círculo vicioso.»

Elsa começou a rir. No silêncio da noite, cortado pelo leve rumorejar do lago, o seu riso era agradável.

            «Uma vez li um guião assim. Tinha sido escrito por um cineasta com noventa anos e tratava de duas pessoas - um homem e uma mulher - que ficavam presas nos escombros de uma casa bombardeada durante a guerra. De repente, o tempo deixava de ter significado: um minuto podia ser uma hora, uma hora podia ser um ano.»

            Perguntei-lhe se era um bom guião.

            «Usando as tuas palavras, era presunçoso, pedante e vazio de sentido.»

            «Parece-me mais uma história de terror», disse Nina.

            Da casa chegava-nos um vago murmúrio de música e vozes, mas o vento levantou-se outra vez e o barulho das copas das árvores sobrepôs-se. Elsa apontou para o lago escuro.

            «Isto, sim, é um filme de terror», disse ela. «Imaginem que havia fumo a sair deste lago. Como naqueles filmes beras americanos que Holiwood produz à razão de centenas por ano.»

            Balouçávamos as pernas sobre o lago; o chapinhar prosseguia, mas o barco parecia não se mover.

            «E se, subitamente», continuou Nina, «o monstro da lagoa se erguesse das águas e arrastasse consigo o primeiro inocente que teve a audácia de se sentar no pontão?»

            As águas abriram-se e o monstro surgiu. Aconteceu tão rápido que nem sequer tive reacção: fiquei sentado entre Nina e Elsa, enquanto a criatura devorava a minha perna enferma, decepada na coxa pelas medonhas mandíbulas. A água saltou por todos os lados e ensopou-me as calças. Depois olhei para elas: Elsa e Nina dobravam-se de riso. Vincenzo surgira do lago e agarrava-se à minha perna, também ele perdido de riso; puxou atrás a máscara de mergulhador com tubo de oxigénio e revelou o seu rosto ébrio num esgar de puro prazer.

            «Nunca te sentes à beira de um lago em noites de lua cheia», disse ele, cuspindo água.

            «Vai-te foder», disse-lhe, como se o susto tivesse chegado atrasado. «Vão-se todos foder.»

            Nina abraçou-me e deu-me um beijo no rosto.

            «Desculpa», disse-me. «Não resistimos.»       

            Vincenzo piscou-me o olho, nadou para a esquerda e puxou as pernas de Elsa. Elsa gritou e lutou durante uns segundos, mas acabou por se deixar levar e caiu dentro do lago; alguns segundos depois estavam à luta dentro de água como duas focas, chapinhando. A seguir ambos nadaram para longe do pontão, fazendo uma espécie de corrida - Vincenzo nadava de bruços e Elsa de costas, a touca e o fato de banho às riscas lembrando uma zebra que tivesse caído num lago numa noite escura.

            «Queres entrar?», perguntou Nina, apontando com o queixo na direcção do lago. «Parece que a água está óptima. Não devias perder a oportunidade.»

            Olhei-a com descrença; depois vi na sua expressão que estava a falar a sério. O cabelo ruivo esvoaçou ao sabor do vento e tornou a pousar-lhe sobre a testa pálida. Sem saber porquê, senti-me melancólico; lutei contra o sentimento durante uns segundos, mas não se desvaneceu - era como se uma série de razões, caoticamente entrelaçadas, tivesse colidido naquele preciso momento e me impedisse de lhe dar uma resposta. O meu silêncio falou por si. Deixei que Nina me despisse a camisa; deixei que Nina me desapertasse o cinto e, depois, com a suavidade com que se trata de uma criança, me tirasse as calças e me descalçasse os sapatos. Tinha mãos suaves e maternais. Ajudou-me a vestir os horríveis calções de banho sobre as cuecas e depois tirou a sua própria roupa, fazendo com ela um monte que ficou sobre o pontão. Tinha um corpo maduro, a pele branca coberta de sardas. Entrou na água devagar e, depois, nadou até perto de mim. Olhámo-nos; eu ainda sentado na beira do pontão, ela mergulhada no lago até ao pescoço.

            «Anda», disse-me. «Eu tomo conta de ti.»

            À distância, Vincenzo e Elsa tinham parado de nadar e pareciam conversar dentro de água, só com as cabeças à vista. Nina aproximou-se e segurou-me nas pernas; apoiei a palma das mãos na madeira e, impulsionando o corpo, deixei-o descair e mergulhei no lago. A experiência foi inusitada. Primeiro Nina segurou-me pelos cotovelos mas, depois, a densidade da água pareceu eliminar a sensação de fraqueza na minha perna e, passados alguns segundos de tensão, foi como se me tivessem retirado todo o peso do corpo.

            Sem dar conta devo ter sorrido, porque Nina disse:

            «Pareces feliz.»

            Nadámos ao encontro dos outros dois, que haviam recomeçado a guerra de água. As nuvens tinham mudado de posição e tornado a descobrir a Lua, transformando a superfície do lago num espelho de fantasmas, revelando os contornos dos rostos húmidos; os quatro rostos naquele lugar estranho e remoto, como se o mundo tivesse cancelado o seu infindável progresso rumo à destruição. Foi um derradeiro momento de felicidade; afinal, toda a gente tem direito ao seu*.

 

            Ficámos dentro de água até as pontas dos dedos nos parecerem cascas de noz; quando regressámos ao pontão, sentia-me melhor do que em muitos meses. Nina foi buscar toalhas e, enquanto nos vestíamos, respirei profundamente o ar nocturno. Havia alguma coisa diferente àquela hora, como se as regiões pantanosas de Sabaudia ressuscitassem durante a noite e libertassem os seus vapores para a atmosfera; havia alguma coisa misteriosa, quase sensual, que pairava sobre o lago e sobre a casa.

            Fomos para a cozinha beber whisky e comer pão. Era quase meia-noite e Susanna havia desaparecido; uma vez que Alípio não regressara do bosque, deduzimos que a empregada se tivesse ido deitar no seu pequeno quarto nas traseiras da casa, onde ficava sempre que o marido trabalhava até mais tarde. O italiano serviu os copos.

            * Já aqui confessei que não sou um narrador de confiança. Isso não significa que vos minta propositadamente; significa que, tal como todos os que estiveram presentes no Bom Inverno, sei que a verdade é uma miragem tragicamente limitada pela condição humana. Ainda assim, a verdade é tentada vezes sem conta - neste caso através de um testemunho que, ironicamente, depende da vossa capacidade em acreditar num narrador que se confessa, à partida, inepto. Tentarei, no entanto, compensar as minhas sérias limitações explicando-vos onde se encontra o ângulo morto desta narrativa; o facto de ela ser verdadeira não lhe retira o carácter de narrativa, na qual o interesse do leitor depende da existência desse ângulo. Todas as narrativas o têm: perguntem por ele a qualquer escritor que conheçam e ele irá explicar-vos que o ângulo morto é aquilo que se esconde do leitor - aquilo que o deixa às cegas em benefício da força telúrica da história."Neste caso, contudo, também o próprio escritor está às cegas.

            Nina encontrou um pão de forma e cortou-o, e ficámos à conversa durante algum tempo.

            Foi durante esse período que a festa recomeçou - Roger e Stella voltaram a aparecer, o australiano em tronco nu e a loura em fato de banho, exibindo as suas carnes excessivas -, e Albert, Uli e Pym regressaram à vida, continuando a fumar marijuana e, finalmente, assaltando a reserva de champanhe que estivera guardada para a chegada de Don. Antes da uma da madrugada estávamos todos reunidos na sala, a música em alto volume, os peixes do aquário tão inquietos como nós, dançando em espirais descontroladas e circulando vezes sem conta as luzes subaquáticas e a flora de plástico. Já ninguém perguntava por Metzger, e até eu me esquecera de que Olívia desaparecera havia horas; devo ter assumido que tinha encontrado um quarto vazio e por lá tivesse adormecido.

            Depois, quando senti que o meu corpo se esfriava por completo - nenhuma memória de ter nadado, do calor trazido aos músculos pelo movimento -, as dores na perna regressaram. O whisky não fizera qualquer efeito e, sentado num dos sofás, comecei a sentir as pontadas do costume, embora com maior violência. Tirei os dois comprimidos do bolso da camisa e tomei-os. O efeito foi catastrófico: apaguei como um fósforo debaixo de um temporal. Num minuto estava a falar com Vincenzo e com Nina e, no seguinte, tinha perdido os sentidos, os sons e as cores e as formas engolidos por uma vertigem tão profunda que Vincenzo me esbofeteou com força para que abrisse os olhos. O italiano disse-me, mais tarde, que foi ele quem me levou em braços para um dos quartos no andar de cima e me deitou na cama.

            Embora tivesse perdido a consciência, creio que alguma coisa em mim permaneceu alerta. Uma supraconsciência ou, se preferirem, uma infraconsciência, alguma coisa que resiste à razão mas também não é instinto, alguma coisa que roça a obstinação em deixar que tudo se suma numa única e definitiva voragem. Por exemplo: durante a madrugada, embora não soubesse onde me encontrava, guardo a recordação dos sons - das diferentes vozes e suas gradações, dos momentos em que havia apenas silêncio, do piar funesto de uma coruja, do som do vento e do motor de um carro, do estrépito das rodas na gravilha na parte fronteira da casa, do estrondo de um trovão ou de qualquer coisa que parecia um trovão; guardo a recordação de portas a bater e de portas que também batiam nos meus sonhos, fechando-os um atrás do outro, como alguém que corre através de vários quartos vazios à procura de uma saída, encontrando somente outro e outro quarto, percorrendo uma distância infinita (em sonhos, ainda podia correr); ainda que, na verdade, só me recorde de um sonho, que foi aquele que se prolongou até os gritos me terem despertado.

            Sonhei com Don Metzger. Estávamos dentro de um balão de ar quente e ele era idêntico ao actor David Niven no filme A Volta ao Mundo em Oitenta Dias (nesse filme, Niven fazia de Phileas Fogg). Sobrevoávamos as terras do Lácio. Metzger cofiou o bigode enquanto bebíamos chá, as nuvens cruzando-se ao nosso lado como algodão doce. Depois ajeitou a cartola e disse:

            «Meu caro, o mundo é nosso.»

            «Dificilmente», respondi.

            Lá em baixo, a casa, o lago e o bosque transformavam-se em miragens.

            «Pelo menos aqui em cima é nosso», insistiu Metzger. «Temos o nosso chá, temos o nosso lastro, temos o céu todo por nossa conta.»

            «E quando pousarmos?»

            «Não pousaremos.»

            «E se nos obrigarem?»

            «Não nos obrigarão.»

            «Nunca mais quero voltar», afirmei; fizemos um brinde com as chávenas. «Lá em baixo só existe fracasso e humilhação.»

            Don sorriu e tornou a cofiar o bigode.

            «E também a Elsa Gorski.»

            «A Elsa», repeti, subitamente alarmado. «Se não voltarmos, nunca mais a verei.»

            «Devias ter pensado nisso antes de teres entrado no balão.»

            «Haverá maneira de ainda descermos para a ir buscar?»

            «Este balão é daqueles que apenas sobe», disse Don. «Daqui a pouco ultrapassaremos a troposfera e vai fazer algum frio.» Baixou-se e procurou no chão da gôndola um cobertor cor de laranja. «Usaremos este rumo à mesosfera.»

            «Mas na mesosfera estarão 1oo graus negativos», queixei-me.

            «Uma pessoa aguenta tudo», disse Metzger.

            «Se ao menos pudéssemos voltar atrás para ir buscar a Elsa Gorski», repeti, melancólico.

            «Podes deixar-lhe uma recordação tua», disse Don.

            «Qual?»

            Metzger tornou a baixar-se e, quando se levantou, tinha um serrote na mão.

            «Essa tua maldita perna.»

            Levantei a perna das calças. A carne era um destroço, corroída por uma doença que dela se alimentara, expondo parte dos ossos e dos nervos. Don meteu mãos à obra com o serrote e, um minuto depois, segurava a perna na mão; era um alívio.

            «Cá vai disto», disse Don, e atirou a perna borda fora.

            «Para a Elsa, com amor», gritei em direcção ao vazio.

 

                        O BOM INVERNO

            Abri os olhos e emergi do fundo de alguma coisa dolorosa e túrgida, sem saber dizer se os gritos vinham de dentro ou de fora dos meus sonhos; depois ouvi o som de alguma coisa abater a um ritmo compassado. O meu primeiro gesto foi levar a mão à perna - aquela de que Don se desfizera no balão - e, depois, procurar a bengala na escuridão: a perna estava lá, a bengala não. Encontrava-me num quarto às escuras e as venezianas da janela estavam fechadas; uma luz ténue atravessava as minúsculas frestas que separavam as tábuas de madeira. Tentei sair da cama, mas não consegui à primeira; era como se tivesse estado imóvel durante semanas e, agora, o corpo não conseguisse responder. Tornei a ouvir os gritos roucos de um homem; havia uma situação desesperada do outro lado daquela parede. O ritmo da coisa a bater persistia. Vasculhei o chão com os braços cegos e encontrei a bengala aos pés da cama. Levantei-me, alcancei a janela e apoiei-me nela, abrindo as venezianas. Na linha do horizonte o dia começava a nascer. Esfreguei os olhos com rapidez e procurei a origem da voz; o bosque era ainda um manto negro e insondável e as luzes da casa tinham sido desligadas. Um vento diabólico parecia agitar o mundo, fazendo o baloiço de madeira bater ritmicamente contra o tronco da árvore: aí estava a origem do barulho. Depois vi que alguma coisa se movimentava no lago. Novamente a voz e, então, os vultos em movimento: havia gente dentro de água.

            Precipitei-me na direcção da porta. O quarto era comprido e estava praticamente vazio, com excepção da cama, um pequeno sofá e uma secretária voltada para a janela. A bengala resvalou no chão de madeira enquanto avancei para o corredor; do outro lado da porta, o ar estava impregnado de uma mistura de tabaco, marijuana, suor e álcool. Encontrava-me no último quarto do lado esquerdo; a casa era um silêncio de sepulcro, um cemitério de almas provavelmente abandonadas a sonos letárgicos e profundos. Percorri o corredor até às escadas, que desci aos solavancos, os gritos cada vez mais audíveis. Quando alcancei o patamar, dirigi-me para a cozinha, onde uma pequena cidade de garrafas e copos vazios atulhava a mesa de jantar, e saí para o exterior pela porta de correr. Tudo era silêncio lá fora, excepto a voz desconhecida, o chapinhar nas águas e um vento fortíssimo de nordeste. O horizonte estava vermelho-vivo, como se o final daquela noite derramasse sangue pelo céu abaixo em direcção à terra.

            A voz clamava por ajuda. Olhei para trás: nenhuma outra luz se acendera na casa. Tentei estugar o passo na direcção do lago com a velocidade possível a um coxo, a bengala enterrando-se a cada estocada na relva húmida. Quando entrei no pontão de madeira vi os dois homens. Um deles, louro e pálido, tentava arrastar o pequeno barco de madeira, quase afundado, na direcção do pontão; no barco estava o corpo de um outro homem; a tarefa era impossível, porque o corpo desse homem era uma coisa gigantesca numa diminuta embarcação condenada ao fracasso, que o vento empurrava para o centro do lago.

            O homem louro parecia no limite das forças; tentou gritar uma vez mais quando me viu, mas tudo o que lhe saiu da boca foram palavras engolidas pela água. Estava a cerca de dez metros do pontão mas, a cada braçada para diante, o vento tornava a levá-lo para trás. Olhei uma vez mais na direcção da casa: ninguém parecia ter acordado, apesar dos gritos; apesar de o baloiço desgovernado massacrar o tronco da árvore com chicotadas bestiais. Aproximei-me e, ajoelhando-me, fiz a única coisa que me ocorreu: estendi a bengala na direcção dele, um gesto que se revelou completamente inútil. O homem louro afogava-se na tentativa de resgatar o outro.

            «Deixa-o ir», gritei-lhe. «Deixa-o.»

            Agitei a bengala no ar enquanto o homem louro continuava a engolir água e a tentar arrastar o barco para o pontão. Era uma batalha perdida e, de repente, o barco soçobrou. Encheu-se de água e, borbulhando, foi desaparecendo da superfície. O homem louro lançou-se ao pescoço do gigante e, exaurido, tentou mantê-lo à tona, mas o corpo do outro começou também a afundar-se devagar, à mesma cadência do barco.

            «Deixa-o», tornei a gritar.

            Nesse momento emergiu um carro do bosque a grande velocidade: era o Renault de Alípio, que fez todo o caminho até junto do pontão aos solavancos, travando com estrépito. Bosco saltou do lugar do passageiro e galgou terreno como um atleta, uma grossa corda enrolada ao ombro direito; atrás vinha Alípio, vestido com as mesmas roupas da noite anterior, de boné na mão, suando as estopinhas, quase aos trambolhões porque as pernas lhe fraquejavam do esforço. Agitei os braços no ar e gritei ao homem no lago que se mantivesse à tona. Um instante depois Bosco chegou ao pontão; vinha sem óculos, e os olhos pareciam ter diminuído na mesma proporção em que o seu corpo fenomenal crescera; havia, contudo, um desespero no seu rosto que ainda não lhe vira, uma urgência angustiada que quase me lançou borda fora, enquanto atava uma ponta da corda à cintura e a outra a uma das colunas que sustentavam o pontão. Segundos depois lançou-se à água e, com braçadas vigorosas, nadou na direcção dos dois homens. Alípio chegou pouco depois, afogueado; levou uma mão à testa como se presenciasse a maior desgraça do mundo e depois enfiou o boné na cabeça.

            O homem louro foi o primeiro a chegar ao pontão. Ajoelhei-me, pousei a bengala e tentei ajudá-lo a subir, mas faltaram-me as forças e, quando ele já se encontrava fora do lago, resvalei e caí sobre a madeira. Bosco ocupava-se do corpo que agora arrastava sobre as águas, trazendo-o lentamente na nossa direcção; Alípio arregaçara as mangas e preparava-se para oferecer ajuda. Olhei para o homem louro, que estava completamente vestido - calças, camisa, ténis - e reconheci-o das fotografias que vira em jornais literários: era John McGill. O inglês cuspiu água durante um minuto e, depois, ajudou Bosco e Alípio a fazer subir o corpo obeso para o pontão. Alípio e McGill voltaram-no ao contrário e o rosto ficou virado para cima, iluminado pelos primeiros raios de sol da manhã.

            Alípio soltou uma exclamação e persignou-se quando viu a última expressão de Don Metzger, os olhos ainda abertos, a boca contorcida num horrível esgar de sofrimento. Era o rosto de um homem perturbado, pensei; o rosto de alguém que sofrera muitíssimo no momento da morte. Embora o cadáver estivesse deitado sobre as tábuas de madeira, a nossa atenção voltou-se para a entrada do cais, onde alguém aparecera. Era Olívia; não sei há quanto tempo nos observava, mas estava ali parada como se estivesse em choque, os braços pendendo ao longo do corpo como coisas inanimadas, os olhos postos no defunto sobre o pontão. Nenhum de nós reagiu à presença dela e Olívia recuou um passo, depois dois, depois três, e finalmente regressou para dentro da casa a correr.

            O rosto de Metzger, inchado e azul, fazia recordar vagamente o rosto das fotografias que eu vira no quarto secreto que Elsa me mostrara. O resto era inimaginável; o homem tinha sido um colosso em vida, um cachalote de cento e quarenta quilos a que nenhum retrato podia fazer justiça. As mãos pareciam raquetes; a barriga, exposta pela camisa aberta, erguia-se do pontão como uma montanha; se usara calças, perdera-as no lago, e acima das cuecas brancas, quase invisíveis debaixo da gordura e coladas ao corpo pela água, via-se uma profusão de pêlos claros e molhados que conduziam ao baixo-ventre. Em redor do grosso pescoço havia marcas vermelhas. Depois do resgate, Bosco passou alguns minutos de joelhos a recuperar o fôlego. Perguntei a McGill o que acontecera; o inglês parecia tão atónito como um homem que, deitando-se na Terra, viesse a despertar na Lua. Explicou-me, arfando, que aterrara em Roma no primeiro voo da madrugada vindo de Inglaterra e que, depois, seguira as indicações que Nina lhe dera pelo telefone, ainda em Budapeste; quando chegou à estação de Priverno tentou ligar para Nina, mas não havia sinal. Ainda pensou em dormir na estação e esperar pela manhã mas, depois, ouviu uma conversa em inglês entre dois bêbedos.

            «Um tipo asiático que era director de fotografia», disse McGill, ainda à procura de ar, «e outro tipo qualquer. Estavam sentados no meio de um grupo num banco da estação com uma garrafa de vodka. Aparentemente, tinham espatifado o carro e iam apanhar o comboio para Roma. Ouvi-os dizerem o nome de Metzger e meti conversa.»

            Bosco, ajoelhado, arfava. Com uma mão sobre a outra, pressionava levemente o peito de Don: água turva saía-lhe da boca num fio contínuo, mas Don continuava morto. Bosco olhou, angustiado, para o céu, onde a manhã era agora plena - os seus olhos claros eram da cor das nuvens.

            McGill continuou, afastando o cabelo louro dos olhos; era um tipo elegante, magro, de maçãs-do-rosto salientes e maxilares fortes.

«O asiático e o outro tipo disseram-me que era impossível chegar aqui sem carro. Mas eu não queria passar a noite no raio da estação. Estava entusiasmado com tudo: o livro, o contrato, o raio do filme. Consegui apanhar um táxi que me deixou na Via Litorânea, ao quilómetro que o asiático indicou. Meti pela estrada de terra batida e fiz-me ao descampado a pé; pouco tempo depois vi as luzes penduradas da árvore e encontrei-o.» Apontou para Alípio, que falava com o catalão em voz baixa. Nesse momento Olívia tornou a sair da casa, acompanhada por Nina e por Vincenzo; Olívia estava pálida como um fantasma e Vincenzo parecia ter sido esmagado por um rolo compressor, as olheiras descendo-lhe pelo rosto como cortinas de chumbo. Nina não parecia em melhor forma, mas, quando viu John McGill, correu para ele; McGill fez o mesmo, e abraçaram-se à entrada do pontão. Mas depois Nina viu o morto e levou as duas mãos à boca. Vincenzo aproximou-se, despenteado e incrédulo, em tronco nu, enquanto Bosco e Alípio continuavam a examinar o corpo.

            «Por favor diz-me que isto não está a acontecer.» Vincenzo parecia desesperado. «Diz-me que aquele não é o Metzger.»

            «É o Metzger», respondi-lhe, apoiando-me na bengala. «E isto parece ser o cenário de um crime.»

 

            Bosco e Alípio enrolaram o corpo de Metzger numa lona de balão que se encontrava na bagageira do Renault; era a única coisa suficientemente grande para o abarcar. O catalão tinha decidido, depois de ter visto Susanna chorar, descontrolada, ao descobrir o corpo deitado sobre o pontão, que era desnecessário continuar a expor o cadáver. Assim, tinham-no enrolado e colocado á sombra da árvore.

Estávamos na cozinha. Bosco olhou para McGill; pediu-lhe, inquisidor:

            «Conta-me o que sucedeu.»

            «O Alípio não te contou?»

            «Quero ouvir nas tuas palavras.»

            Susanna fazia café enquanto chorava; a mulher estava incrédula e Alípio tivera de a abraçar para controlar o seu pranto.

            «Encontrei o Alípio na cabana. Perguntei-lhe pela casa do Don Metzger e ele trouxe-me naquele carro antigo», disse McGill. Apontava para o Renault estacionado lá fora. Depois olhou para Bosco em tom de desafio.

            «E tu? Onde é que estavas enquanto eu o salvava de ir parar ao fundo do lago?»

            Bosco ergueu-se da cadeira na qual se sentara ao contrário, apoiado no espaldar. Nina segurou o braço de McGill, num gesto protector, e Olívia foi-se afastando para o fundo da cozinha. A rapariga parecia aterrorizada e perdera toda a cor; era como se, durante a noite, tivesse sido visitada por uma criatura que lhe houvesse sugado o sangue.

            «Era melhor termos calma», disse Vincenzo, que permanecia em tronco nu. Voltou-se para McGill. «Explica a este tipo o que aconteceu. Por favor.»

            McGill respirou fundo e falou telegraficamente.

            «Chegámos no Renault, ainda era noite. Eu saí do carro e o Alípio ia dar meia-volta quando olhei para o lago e vi o barco a flutuar com um corpo em cima. Fazia um vento fortíssimo e o barco afastava-se da margem. Perguntei-lhe quem era aquela pessoa dentro do barco, e o Alípio também saiu do carro e aproximou-se da água. Gritou alguma coisa em italiano na direcção do barco, uma série de vezes, mas a figura não se mexia. Pensei que fosse alguém desmaiado ou assim e meti-me dentro de água para ir ver o que se passava. Nadei até ao barco e, quando lá cheguei, encontrei o tipo todo nu, deitado. Estava de costas, de olhos abertos, a olhar para o céu; era arrepiante. Tentei fazê-lo reagir, mas tive medo de o abanar demasiado; o barco estava cada vez mais cheio de água. Comecei a tentar trazer o barco para o pontão, mas o homem era demasiado grande e a embarcação demasiado frágil. Vi o Alípio, na margem, a correr para o carro e a meter-se pelo bosque adentro. Julguei que se tinha ido embora e entrei em pânico; comecei aos gritos, a chamar por socorro; não conseguia arrastar o barco para a margem. Depois, mesmo antes de o Alípio regressar, a embarcação começou a afundar-se e o homem ficou dentro de água.» Apontou para mim. «Aquele tipo já tinha aparecido. O da bengala.» Voltou-se para Bosco. «É tudo o que me lembro. Podemos chamar a Polícia?»

Bosco apoiava as mãos na beira da mesa. Olhava para McGill com suspeita e perguntou, franzindo o sobrolho:

            «A Polícia? Porquê?»

            Os presentes entreolharam-se. Troquei um olhar com Vincenzo, que parecia exausto; ao fundo da cozinha, Olívia abraçava-se. Susanna trouxe uma bandeja com chávenas de café para o meio da mesa.

            McGill estava atónito.

            «Porquê?! Que tal porque morreu uma pessoa?»

            «O Don Metzger foi assassinado», disse Bosco.

            «Mais uma razão para chamarmos a Polícia.»

            «Foi assassinado esta noite por alguém nesta casa», acrescentou Bosco, cruzando os braços. «E eu faço questão de saber quem foi; faço muita questão de saber.»

            Nina riu-se, incrédula, e aproximou-se de Bosco.

            Ouve, tu não podes mandar e desmandar como te apetece.»

            Bosco deu uma palmada na mesa com tanta força que as chávenas de café saltaram da bandeja; duas caíram e partiram-se. O café alastrou pela pedra fria, espalhando um aroma intenso.

            Nina recuou, assustada, e Susanna recomeçou a chorar. Bosco olhava-a com desprezo e, ao mesmo tempo, com os olhos marejados de lágrimas.

            «Aquele homem que ali está», disse, apontando para a porta, a sua voz de trovão ecoando pela cozinha, «foi posto inconsciente, estrangulado e depois afogado. Tem marcas no pescoço, um traumatismo na nuca e os pulmões cheios de água. O Don Metzger chegou vivo a esta casa e agora está morto. O culpado - ou os culpados - estão aqui.» Bosco olhou em redor e depois reafirmou, com uma solenidade que roçava a comédia: «Estão aqui.»

            McGill abanou a cabeça; perguntou em voz alta:

            «O que é que te leva a dizer isso? Que o culpado está aqui? E se o culpado chegou, fez o que tinha a fazer e se pôs a milhas?»

            Bosco soltou um riso cínico.

            «O Don Metzger tinha dois metros de altura e cento e cinquenta quilos. Quem o matou era alguém da sua confiança ou, pelo menos, alguém suficientemente próximo para o conseguir fazer num momento oportunista. Eu examinei-lhe o corpo; não existem quaisquer marcas de luta ou sinais de resistência.» Bosco respirou fundo; parecia prestes a perder as estribeiras. «O homicida foi um cobarde que se aproveitou da vantagem de aqui estar e de passar despercebido.» Enquanto Bosco falava, todos se encolhiam: a tensão na cozinha era quase insuportável. O catalão fincou as mãos na mesa até os nós dos dedos ficarem brancos; fez uma pausa; do fundo da sua ira disse alguma coisa incompreensível e depois continuou: «... era um homem bom, era um homem honesto. Vocês, seus filhos de uma puta» - abanou a cabeça, tentando lutar contra as lágrimas - «vocês deram cabo dele.»

            «Quando é que o Metzger chegou?», perguntei abruptamente. Os olhares voltaram-se na minha direcção, como se tivesse proferido uma obscenidade; a respiração pesada de Bosco ecoava pela cozinha. Reformulei a pergunta: «Eu já estava a dormir, não o cheguei a ver com vida. Quem é que o viu chegar?»

            Nina olhou para Vincenzo e este, por sua vez, olhou para Olívia; esta, encostada à porta, tremia, abraçando o próprio corpo, e não devolveu o olhar.

            «Eu adormeci muito cedo num dos quartos», disse Olívia. «Só acordei esta manhã com os gritos.»

            Alípio parecia seguir a conversa e disse, em italiano, que a sua mulher se tinha deitado sem nunca ver o patrão; Susanna acenou afirmativamente, secando as lágrimas com as costas da mão. Restavam Nina e Vincenzo; olhei-os.

            «Toda a gente que estava cá em baixo deu pela chegada», adiantou Vincenzo. «Foi impossível não dar por ela.»

            «O que é que isso quer dizer?», perguntou Bosco.

            Vincenzo perguntou a Alípio, em italiano, se, na noite passada, se tinha dado conta do carro do patrão a passar; Alípio acenou afirmativamente.

            «Passou pela clareira como se fosse uma flecha», confirmou o homem, de boné amarfanhado nas mãos.

            Vincenzo perguntou: «Vocês ainda não viram a parede de vidro da sala, pois não?»

            Bosco precipitou-se para fora da cozinha e todos o seguiram. Naquela madrugada, por causa dos gritos vindos do lago, eu não me preocupara em olhar para a casa - agora, à luz violenta do dia, a desarrumação era de tal ordem que o lugar parecia ter sido varrido por um pequeno tornado. Havia sofás voltados ao contrário, a televisão estava tombada no chão, havia garrafas vazias largadas por toda a parte; atrás do balcão do bar, uma secção inteira de copos tinha caído e os cacos espalhavam-se caoticamente pelo soalho. Susanna benzeu-se e, num impulso irracional, começou a tentar arrumar a sala; Bosco deu-lhe ordem para não mexer em nada.

Depois percebemos a pergunta de Vincenzo. Na sala do aquário, a parede de vidro do lado esquerdo - que enfrentava o lago -tinha sido parcialmente destruída pela parte dianteira de um carro. Nina explicou que aquele era o carro de Don Metzger e que fora assim que o produtor chegara à festa: aparentemente viera depressa demais e, embora tivesse tentado travar, tinha acabado por entrar pela sala do aquário dentro do automóvel. Um dos faróis ainda estava aceso e o outro encontrava-se quebrado. O automóvel galgara o terreno fronteiro da casa, arrastando consigo as filas de pedras e cactos que decoravam o relvado e, naquilo que se adivinhava ter sido uma travagem brusca, partira o vidro da janela antes de acabar com as rodas da frente dentro da casa. Lembrei-me, nesse momento, do som de trovão que escutara nos meus sonhos.

            Havia pedaços de cacto espalhados pelo chão e uma garrafa de whisky vazia em cima do tejadilho. Bosco dirigiu-se ao carro; os peixes, no aquário, acompanharam os seus passos decididos.

            Depois Bosco olhou-nos, como se procurasse uma explicação.

            «Foi assim que o Don chegou», disse Vincenzo. «Saiu directamente do carro para o meio da sala.»

            Bosco perguntou:

            «Quem é que estava aqui quando isto aconteceu?»

            «Eu e o Vincenzo», disse Nina. «O actor do filme...»

            «Pym», adiantou Vincenzo.

            «Pym», repetiu Nina. «A Elsa. A Stella e o Roger.»

            Bosco pareceu querer rugir ao ouvir o nome do australiano. O seu corpo retesou-se; cerrava os punhos de fúria. Olhei para o exterior: o descapotável de Roger permanecia no mesmo lugar onde o deixara na noite anterior; não sofrera um arranhão com a chegada tumultuosa de Metzger. Bosco olhava-me.

«E o resto?»

            Nina olhou para Vincenzo; este levou a mão à cabeça e sacudiu o cabelo despenteado. Depois esfregou os olhos com a ponta dos dedos.

«Hum. Julgo que éramos só estes quando o Don chegou.» Depois hesitou, abanando a cabeça. «Espera, não sei. Não tenho a certeza. Os últimos a partir foram a Uli e o Albert. Sei que levaram o carro vermelho, aquele que estava junto ao descapotável do Roger. Mas não sei se partiram antes ou depois de o Don ter chegado.»

            «Não sabes como?», perguntou Bosco, irritado. «Estavas aqui ou não estavas?»

            «Estava», repetiu Vincenzo. «Mas não me lembro.»

            Houve um silêncio prolongado; lá fora, o vento abrandara e um bando de pássaros cruzou o céu em rigorosa formação. Bosco olhou para Nina.

            «Tu. O que é que tens a dizer?»

            Nina hesitou um instante e depois olhou para McGill; este encolheu os ombros e abanou a cabeça, como se não soubesse que resposta lhe dar.

«A Uli e o Albert ainda cá estavam quando o Don chegou», disse Nina.

«Tu lembras-te. Diz-me então o que é que aconteceu depois», exigiu Bosco.

Nina olhou novamente para McGill; descobriu que também este esperava uma resposta. Depois disse-lhe: «Acho que tens razão. Devíamos chamar a Polícia.»

            Todos nos voltámos quando Nina deu meia-volta e avançou com determinação para o telefone de parede que ficava à entrada da cozinha; o catalão, furioso, abriu caminho por entre Alípio e Vincenzo e dirigiu-se a Nina, que já pegara no auscultador e o levava ao ouvido. Julguei que Bosco lhe ia arrancar a cabeça, mas depois o que ele fez foi igualmente cruel: com as duas mãos, arrancou o telefone da parede e atirou-o para o chão da cozinha.

            O aparelho desfez-se em pedaços. Nina recuou e encostou-se à parede; pela primeira vez, vi medo no seu rosto.

            «Filho-da-puta», disse, baixinho. «Não tens o direito de fazer isto.»

            Bosco estava rubro de fúria; aproximou-se muito dela e disse, numa voz contida:

            «Não respondeste à minha pergunta.»

            McGill tentou interpor-se, mas o catalão empurrou-o e o inglês caiu ao chão. Vincenzo ajudou-o a erguer-se; McGill parecia atordoado.

            «Besta dos infernos», gritou Nina, fuzilando Bosco com o olhar. «Nem mais uma palavra minha. Nem mais uma.»

            Bosco sorriu de escárnio. «Se te recusas a falar, vou simplesmente assumir que tens alguma coisa a esconder.»

            «Estou-me a cagar para o que tu assumes ou não», disse Nina, empurrando Bosco para o desviar do seu caminho. Num movimento hábil, Bosco segurou o braço de Nina antes que esta pudesse afastar-se.

            «Larga-me», gritou ela.

            Houve um momento de silêncio. Ao meu lado, McGill preparava-se para se meter outra vez ao barulho; Nina arreganhava os dentes.

            «Ela esteve comigo depois de o Don chegar», disse uma voz no cimo das escadas. Era Elsa: usava uma camisa de homem e começou a descer os degraus; parecia estar nua por baixo da camisa. Quando chegou ao patamar, acrescentou: «Estivemos a conversar e a beber vinho no meu quarto durante o resto da noite, enquanto contávamos as estrelas.»

            Bosco desviou o olhar de Elsa. Depois de um momento de silêncio, disse:

            «Acordem os outros. Quero toda a gente lá fora daqui a cinco minutos.»

            Na hora que se seguiu as coisas complicaram-se ainda mais. Bosco meteu-se no Renault, fez-se ao bosque e regressou com uma arma - a espingarda de caça que lhe vira na noite anterior, com uma mira e uma fivela de transportar ao ombro. Quando a espingarda apareceu, soube que aqueles breves minutos em que Bosco se ausentara - os fugazes minutos durante os quais Vincenzo foi acordar Roger e Stella e Elsa subiu para ir buscar Pym -tinham sido os nossos últimos minutos de liberdade: a partir de então, o nosso pequeno mundo, sujo e perverso, transformar-se-ia num cativeiro.

            Estávamos reunidos junto do lago, em redor da árvore, onde jazia o corpo de Metzger. Alípio e Susanna tinham ficado à porta da cozinha; a mulher dissera que não queria aproximar-se do cadáver e Bosco concordara. Por volta das oito e meia, Pym emergiu pela mão de Elsa para a luz cruel da manhã, ainda com pior aspecto do que Vincenzo quando despertara: o neo-zelandês parecia um animal doméstico assustado com a vida selvagem, de olhos azuis aguados e ingénuos, acompanhados de uma voz fina e temerosa. Roger e Stella desceram do quarto pouco tempo depois, estremunhados, meio despidos, e quiseram saber o que se passava para terem sido acordados àquela hora. Bosco respondeu levantando a lona que cobria Don Metzger. Stella vomitou sobre a relva; Roger não teve qualquer reacção - ficou a olhar para o cadáver inchado, para aquela baleia azul e imóvel, e depois passou os dedos pelo cabelo oleoso.

            «Macacos me mordam», disse, cuspindo para o chão. «Que raio aconteceu aqui?»

            Stella parara de vomitar e limpava a boca com as costas da mão. Olívia tinha desviado a cabeça e fitava a superfície tranquila do lago: o vento cessara de vez e dir-se-ia que aquela era uma paisagem bucólica, pintada num quadro naturalista; nos olhos de Olívia, porém, à reflexão do lago juntava-se uma pesada melancolia.

            «Diz-me tu», provocou Bosco, tomando a tapar o corpo de Metzger. «Explica-me como é que um palerma do teu tamanho consegue estrangular um homem deste porte, afogá-lo e metê-lo dentro de um barco.»

            Roger, espantado, ergueu o olhar para o catalão.

            «Que tal se eu ligar para o meu advogado e te meter em tribunal por difamação?»

            Bosco sorriu com malícia. Depois pegou na espingarda e apontou-a a Roger. Todos recuámos um passo; Roger lançou-se ao chão; Stella soltou um grito histérico.

            «E se eu fizer justiça e te enfiar um tiro na cabeça?»

            Roger e Bosco olharam-se durante um longo momento. Depois Roger riu-se, levantou-se, sacudiu a relva da roupa e voltou-lhe as costas.

            «Vamos», disse para Stella. «É um bluff. Vamos pôr-nos a andar daqui. Vai buscar as nossas coisas e encontramo-nos no carro.»

            Ainda não tinham dado um passo na direcção da casa quando Bosco deu o primeiro tiro, que acertou em cheio num dos pneus dianteiros do carro de Roger. O pneu perdeu imediatamente pressão e o carro descaiu uns centímetros. Depois, Bosco disparou um segundo tiro, que atingiu um dos pneus traseiros. O carro ficou completamente inclinado.

            «Este tipo é louco», disse Nina, baixinho.

            «Completamente louco», concordou McGill.

            Roger, que olhava incrédulo para o descapotável, voltou-se devagar na nossa direcção. Stella tinha instintivamente erguido os braços no ar, num movimento de rendição.

            «O próximo é para ti, se me tornares a voltar as costas», disse Bosco.

            McGill passou os dedos pelo cabelo louro; tinha a testa suada e as roupas ainda molhadas e sujas. Avançou um passo e, corajosamente, fitou Bosco.

     «Ouve, diz-nos o que queres», pediu-lhe, passando outra vez os dedos pelo cabelo. «Diz-nos o que queres antes que isto se descontrole por eompleto. Nós fazemos o que tu quiseres e, depois, vamos todos embora daqui. Que te parece?»

            Bosco deixou a espingarda repousar no ombro.

            «O que eu quero?» Riu-se. «Não se trata de fazer o que eu quero. Trata-se de fazer o que é certo. Trata-se de fazer justiça.»

            «Se queres justiça, então vamos chamar a Polícia», disse McGill.

            «Estamos a falar de um produtor de cinema», corroborei. «A investigação vai ser exaustiva.»

            «E o que é que acontece?», perguntou Bosco. Começou a caminhar de um lado para o outro, absorto. «A Polícia investiga. Se encontrarem um suspeito, os tribunais italianos demorarão uma eternidade a levá-lo a julgamento e, entretanto, o assassino arranjou um advogado que é amigo do juiz e o declara inocente ou, na melhor das hipóteses, lhe dá pena suspensa.» O catalão abanou a enorme cabeça. Havia voltado a pôr os pequenos óculos sobre o nariz; parecia um pregador de domingo com uma espingarda ao ombro. Rematou: «Não, isto não vai ser assim. Não funciona. Não é suficiente.»

            Elsa acendeu um cigarro. Pym tremia de frio, embora a manhã aquecesse.

            «O que é que tu consideras suficiente?», perguntou McGill.

            Bosco continuava a caminhar em linha recta: três passos para cada lado.

            «Uma confissão. Uma confissão de quem cometeu este crime.» :

     «E depois da confissão?»

     «Encontraremos a punição adequada à ofensa», explicou Bosco.

            McGill trocou um olhar preocupado com Nina.

            «Homem, isso é uma loucura», disse o inglês.

            Bosco olhou-o demoradamente enquanto caminhava.

            «Loucura é a impunidade; isto é justiça.»

            «Feita pelas próprias mãos», disse eu.

            «Tal como o crime», disse Bosco. «Repito: a resposta deve ser adequada à pergunta, bem como a punição adequada à ofensa.»

            «Mas porquê?», perguntou Elsa, olhando para a lona que cobria Metzger. «O homem está morto. Que é que lhe interessa a justiça?»

            «Quando existe justiça os mortos continuam a viver», insistiu Bosco. «A justiça resgata-os à morte; traz-lhes paz. Don Metzger terá a sua paz e nós também a teremos com ele.»

            «Isso não é justiça», disse Nina. «É uma inquisição supersticiosa.»

            Bosco deteve-se e respirou fundo; o seu peito largo encheu-se de ar.

            «É-me indiferente o nome que lhe atribuis. Vocês sugaram tudo o que puderam ao Don Metzger. Está na altura de retribuírem com a verdade.»

            «De repente o Don Metzger é um santo», disse Roger. «Inacreditável.»

            Bosco tornou a apontar a espingarda na direcção do australiano; Roger agachou-se e depois ergueu um braço para diante num gesto de defesa. O semicírculo em torno da árvore tornou a alargar-se.

            «Queres partilhar alguma coisa?», perguntou Bosco.

            «Quero», disse Roger. «Se baixares essa porcaria.»

            Bosco fez um compasso de espera e depois baixou a arma. O bando de pássaros cruzava agora o lago, baixando até à água em voos rasantes.

            «Sou todo ouvidos», disse Bosco.

            Roger aclarou a garganta e olhou para a lona.

            «Tu falas em respeitar os mortos; muito bem. Mas se o Don Metzger aqui estivesse, não ia querer justiça. Nem compaixão,nem confissões, nem porra nenhuma. O Don era um homem livre. Não acreditava em deus nem no diabo, no céu ou no inferno.» Espetou o indicador da mão direita no seu próprio peito. «Eu conheci-o como a palma da minha mão. O Don gostava de mulheres, de whisky irlandês, de cinema e dos teus malditos balões.» Bosco escutava-o, impassível. «Se queres respeitar o Don, se lhe queres fazer justiça, então faz o que ele teria feito, e deixa-o morrer. Deixa que os vermes tomem conta do assunto. Não há punição neste mundo que seja adequada às nossas ofensas. Sobretudo para um homem como ele; para homens como nós.»

            «Eu não sou igual a ti», disse Bosco num tom gélido. «Certamente que o Don não era igual a ti.»

            Roger soltou um riso zombeteiro.

            «Só não era igual porque, provavelmente, era mais bêbedo.» Olhou para a casa e apontou para o carro, cuja parte dianteira se encontrava enfiada na sala. «Estás a ver aquilo? Aquele era o teu santo. O mais certo é ter aterrado em Roma já com uns copos em cima; meteu-se no carro, bebeu uma garrafa de whisky pelo caminho e chegou no estado em que chegou. Eu vi-o ontem, Bosco. Parecia um comboio prestes a descarrilar e continuava a beber. Depois, deve ter-se enfiado no barco e deu-lhe uma coisinha má, porque era gordo como um elefante e tinha as veias entupidas de merda. Morreu sozinho, sem a ajuda de ninguém.»

            Bosco abanou a cabeça.

            «Não sejas idiota», disse. «O Don foi morto e tu sabes disso. Ou também queres sugerir que ele se tenha estrangulado a si próprio?»

            «Não faço ideia», disse Roger. «Não sou médico-legista.»

            «O Don nunca se mataria», disse Elsa.

            Pym, ao seu lado, tinha lágrimas nos olhos. McGill interveio.

            «Assumindo que foi um homicídio», disse, «e que o culpado está, como tu julgas, aqui, como é que vais fazer para conseguires a tua confissão? Vamos jogar Cluedo até descobrirmos o criminoso? Foi o mordomo, no salão, com um candelabro?» McGill fechou os olhos, procurando as palavras, e depois abriu-os. «Isto não é um jogo, Bosco. Um homem morreu, e está ali deitado a apodrecer. O que é que vamos fazer ao corpo, enquanto tu arrancas a tua confissão?»

«Fazemos um funeral digno», respondeu o catalão, voltando a colocar a espingarda ao ombro.

 

            Fomos todos culpados. Nós éramos onze e Bosco apenas um; tinha uma arma, é certo, mas era apenas um. Calámos, obedecemos, pusemos o homem dentro do cesto do balão e deixámo-lo desaparecer no céu pálido do Lácio. Ou talvez as coisas tivessem acontecido precisamente da mesma maneira se todos tivéssemos uma arma, pois o medo transforma-nos, faz de nós presas fáceis, mergulha-nos num torpor pesado e ruminante. Foi assim que, numa triste procissão de condenados, nos arrastámos pelo caminho sinuoso do bosque em direcção à clareira onde Bosco e Alípio construíam os balões. Foram precisos quatro de nós para levantar o corpo de Metzger e o enfiar dentro do Renault - McGill, Roger, Vincenzo e Pym - e os mesmos quatro para o transportar do carro até à gôndola do balão. Depois, Don Metzger fez-se ao céu e nunca mais o tornámos a ver.

Recordo com particular agonia essa tarde; foi um tempo de silêncio e de dor. No caminho da floresta, seguindo o Renault que Alípio conduzia devagar pelo trilho - Bosco a alguma distância do grupo, vigilante, déspota -, Vincenzo deixou-se ficar para trás e acompanhou o meu andar coxo. À nossa frente seguiam, abraçados. Nina e McGill; Olívia, sozinha e circunspecta; Elsa e Pym,fumando cigarros; Stella e Roger, ela pasmada, ele derrotado; Susanna seguia no Renault, no lugar do passageiro. Olhei para Vincenzo. Havia culpa no seu rosto; havia também sofrimento. Tão diferente agora do rosto que, num restaurante de Budapeste, me convencera a passar o Verão naquele lugar com um entusiasmo quase insólito.

            «Tinhas razão», disse-lhe em voz baixa, a bengala afundando-se no terreno arenoso. «Sabaudia é, de facto, uma experiência única.»

            «Não sei o que hei-de responder a isso», disse Vincenzo.

            Sorri com sarcasmo.

            «Podias dizer que isto é tudo uma grande partida e que fui apanhado mesmo a jeito. Depois voltamos para a beira do lago e abrimos o champanhe. Que te parece?»

            «Sabes que não te posso dizer isso. Isto é tão inesperado para mim como para ti.»

            «De maneira alguma», disse-lhe. Num impulso irracional, senti que a culpa era toda dele. «Tu sabes que eu tinha uma vida antes de te conhecer, não sabes? Podia não ser grande coisa, mas não incluía chalados com espingardas nem romarias pelo bosque com cadáveres.»

            «Que queres que te diga? Que estou a adorar a situação?»

            «Quero que tires esse ar de miserável, porque as coisas não vão ficar melhores e, se eu não consigo andar e tu não consegues pensar, é melhor desistirmos já e juntarmo-nos ao Don Metzger.»

            Vincenzo olhou para trás de relance; Bosco permanecia distante e observava o grupo. Atravessávamos agora um trecho denso de arvoredo. No chão viam-se marcas de pneus.

            «Escuta», sussurrou Vincenzo, temeroso. «Quem é que pensas que foi?»

            «O quê?»

            «Quem é que o matou.»

            Olhei-o atónito.

            «Como é que eu posso saber? Nem sequer cheguei a conhecer o homem.»

Vincenzo suava. Vestira a mesma camisa da noite anterior, que emanava um intenso odor a tabaco.

            «É tudo tão estranho», sussurrou; parecia perturbado. «O que é que aconteceu à Olívia ontem? Desapareceu assim que chegámos. E hoje mal falou comigo. Parece hipnotizada, caraças.»

            «Eu estava a dormir, tu estavas acordado. Devias saber mais do que eu.»

            «Não me lembro de quase nada.»

            «Seja como for, não me parece que a culpa seja da Olívia. Olha para ela.» Olívia caminhava alguns metros à nossa frente; o seu corpo magro avançava lentamente na direcção da clareira. «Repara nos pulsos dela.»

            «Os pulsos?»

            «Tem os pulsos mais finos que alguma vez vi. É impossível que alguém com pulsos daqueles consiga estrangular um homem do tamanho de Metzger.»

            Vincenzo observou-a.

            «Tens razão», concordou. «Estou a ficar paranóico.»

            Houve um momento de silêncio. Debaixo dos nossos pés quebravam-se ramos de árvore caídos; o Sol erguia-se no céu, encoberto por nuvens brancas e cinzentas. Depois Vincenzo perguntou:

            «Tens alguma ideia?»

            «Para quê?»

            «Para nos safarmos desta?»

            «Tenho, mas não é brilhante: se não podes vencê-los, junta-te a eles.»

            Poucos minutos passados, chegámos à clareira. Bosco e Alípio haviam trazido o balão negro que tínhamos visto no descampado e a gôndola encontrava-se no espaço em frente da cabana; no chão jazia o envelope de lona preta, ligado por cordas ao cesto de vime. Alípio estacionou o Renault ao lado da cabana e, quando eu e Vincenzo nos juntámos aos outros, o homem, com o boné enfiado no bolso de trás das calças, começou a arrastar uma grande ventoinha de propulsão de ar frio para junto da gôndola; depois deitou a gôndola de lado, a abertura voltada na direcção da lona. Quando Bosco chegou, Alípio ligou a ventoinha: o som do ar propulsionado abafou todos os outros sons da manhã e a lona negra começou, lentamente, a insuflar.

            Olívia distanciara-se e estava parada junto das pequenas botijas de gás propano, de braços cruzados e olhos no chão; o resto dos presentes formara um grupo junto da porta da cabana, que estava fechada, e observava o procedimento. A operação demorou algum tempo - não sei precisar quanto, dez ou quinze minutos - durante o qual observei atentamente a expressão dos outros. Ainda sentia um ódio irracional por Vincenzo mas, por outro lado, era difícil não concordar com ele: que acontecera a Olívia, que, até ao dia anterior, se mostrara a mais afável das criaturas? Havia outras perguntas: que teria Nina a esconder para negar uma simples resposta? Por que razão tinha McGill colocado em perigo a própria vida para salvar um homem que nunca conhecera numa singular madrugada no Lácio? Que faziam Elsa e Pym naquele lugar - duas pessoas jovens e belas que pertenciam a um outro mundo, um mundo moderno e luminoso onde a sombra da morte não vagueava tão presente por entre os vivos? Que espécie de relação com o produtor teria tido Roger Dormant, o pornógrafo? Que espécie de loucura era a de Bosco, e o que desejaria com o seu repto e a sua perigosa demanda da verdade? Mais importante do que tudo isso: quem, afinal, tinha sido Don Metzger em vida, e quem teria razões para o querer ver morto, e que estranho tempo era aquele, e que estranho destino era o nosso?

            Bosco segurava a parte superior da lona nos seus grandes braços para deixar entrar o ar frio que partia da ventoinha; a força daquele vento agitava-lhe as roupas. Quando a lona formou um semicírculo, Alípio foi ao depósito de madeira buscar uma das botijas de gás propano e atarraxou-a a um tubo que pendia do maçarico. Depois acomodou a botija dentro da gôndola, desligou a ventoinha e afastou-se. Bosco foi posicionar-se atrás do maçarico, que estava montado numa estrutura de ferro que partia das extremidades da gôndola e apontava na direcção da lona meio insuflada.

            «Tragam o corpo de Don», ordenou.

            A seguir rodou a válvula do gás propano, acendeu o maçarico, e uma chama intensa penetrou o ar frio. McGill, Vincenzo, Pym e Roger dirigiram-se ao carro e arrastaram o corpo embrulhado de Metzger do interior deste até perto do local onde Bosco controlava o lança-chamas. Pouco a pouco, o envelope do balão ganhou a forma de uma lágrima e começou a erguer-se no ar; a gôndola abandonou a posição lateral e foi levantada pela força do envelope. Quando a gôndola se encontrava quase vertical, Bosco desocupou-a e acercou-se do corpo embrulhado; a gôndola ficou presa ao chão por uma grossa corda. Com a ajuda de McGill, fizeram rolar duas vezes o cadáver sobre si próprio e libertaram-no da lona - Metzger continuava de olhos abertos (o que era, por si só, assustador), mas o rigor mortis começava agora a invadir-lhe o corpo, os membros hirtos e crispados, as mãos como duas garras azuladas que tivessem petrificado no momento de uma execução. Com a ajuda de Vincenzo e de Roger, o corpo foi levantado da terra e colocado dentro da gôndola; Metzger era tão grande que ocupava o cesto inteiro. Alípio olhou para o céu e, molhando o dedo com saliva, ergueu-o no ar.

            «Vento sudoeste», disse, em italiano. Bosco concordou com um aceno de cabeça. «Em menos de uma hora estará no mar.»

«Que descanse em paz», disse o catalão, desatando o nó à corda que segurava a gôndola. Depois tirou os óculos por um momento, limpou, com as costas da mão, o imenso suor que se lhe acumulara na testa, tornou a pôr os óculos e recuou para observar a lenta ascensão do balão. Formávamos um círculo desfeito na clareira do bosque: Roger estava junto de Stella e davam as mãos; McGill, Vincenzo e Pym recuaram para junto de Nina e Elsa; Alípio - cuja lealdade visceral a Bosco chegava a ser repugnante - colocara-se ao meu lado; até Susanna saíra do carro e se aproximara para prestar uma última homenagem. Apenas Olívia se mantinha afastada, como se aquele inusitado funeral não lhe dissesse respeito. Alípio colocara de novo o boné na cabeça e, de pele queimada e envelhecida pelo sol, olhava atentamente, de mãos na cintura, para o primeiro e último voo do patrão, como se observasse o resultado de um gratificante dia de trabalho.

            O balão continuou a subir e pouco tempo depois estava cinco metros acima das nossas cabeças. Era uma visão bizarra e, ao mesmo tempo, de uma beleza estonteante, uma massa negra que pairava sobre nós inundando a clareira de sombra. Era, pensei então, o balão mais triste de sempre, e Metzger, provavelmente, o primeiro homem na História que, depois de morto, subia em direcção ao céu em vez de descer às entranhas da terra, fazendo do ar o seu sepulcro e das nuvens pálidas do Lácio os seus anjos coléricos do infortúnio. Bosco despedia-se com solenidade, as mãos unidas à frente do corpo, a cabeça erguida, sem perder de vista a gôndola. Observei a cicatriz que lhe atravessava a nuca e pensei: qualquer um de nós poderia tê-lo derrubado naquele momento. Qualquer um - McGill, Roger, Vincenzo, Nina, Elsa, ou mesmo Pym - poderia ter pegado numa pedra e, com ela, ter aberto um lanho na grande cabeça careca do catalão que o deixasse inconsciente durante o tempo suficiente para fugirmos daquele lugar, chegarmos à civilização e nos apresentarmos às autoridades. Tinha morrido um homem, diríamos à polizia di stato, e um gigante espanhol que vive no meio do bosque tinha metido o seu corpo num balão negro e tinha-o feito voar. O polícia arregalaria os olhos e declararia a nossa insanidade; provavelmente, meter-nos-ia na prisão por fazermos pouco da autoridade. Mas ao menos teríamos feito alguma coisa, se ainda fôssemos humanos, claro; se ainda restasse humanidade em nós e essa humanidade nos mantivesse unidos. Olhei para os outros; nada restava. Éramos destroços, rendidos, mudos, paralisados, isolados. Ninguém avançou, ninguém recuou, ninguém se atreveu sequer a falar antes de Bosco dar por terminada a cerimónia. Depois, como ratos que se escondem no porão, demos meia-volta e regressámos a casa, repetindo a lenta procissão ao longo do bosque em silêncio, enquanto o balão - um ponto final perdido no meio das nuvens - era engolido pela voracidade do infinito.

            Bosco anunciou, depois de nos ter seguido até à propriedade de Metzger, que iria regressar à cabana e aguardar por uma confissão. Estávamos junto da porta da cozinha e começara a chuviscar, as gotas mornas caindo do céu sobre os nossos rostos exaustos. Alípio e Susanna já tinham entrado; McGill, de mãos na cintura, olhou para o catalão e depois para nós. A incredulidade no seu rosto começava lentamente a transformar-se em desespero.

            «Isto não pode ser a sério», disse o inglês, voltando-se para Bosco. «Diz-me que não estás a falar a sério. Que isto foi um delírio e que o delírio termina aqui e agora.»

            Bosco permaneceu imperturbável, com o cano da espingarda a espreitar por cima do ombro esquerdo.

            «Vocês sabem onde encontrar-me», disse.

            «O que é que vais fazer se ninguém se acusar?», perguntou Nina. «Esperar até sermos velhos?»

            «Se for necessário. Temos todo o tempo do mundo.»

            «E se nós simplesmente nos formos embora?»

            Bosco esboçou um sorriso cruel.

            «Ninguém se vai embora.»

            Bosco voltou costas e caminhou para o Renault, que Alípio estacionara na curva do lago onde a estrada de terra terminava. Pássaros negros cruzavam as águas ao descerem de um céu melancólico, cuja penumbra se estendia por todo o horizonte conhecido. McGill chamou:

            «Bosco!»

            Chamou-o duas, três vezes, enquanto o catalão entrava no carro, enquanto ligava o motor e mesmo quando já desaparecia para o interior do bosque. Pym, Roger e Stella regressaram à casa. Permaneci lá fora com Nina, Vincenzo e McGill, os quatro a olharmos para a orla do bosque onde a chuva beijava as copas das árvores.

            McGill enterrou as mãos nos bolsos das calças; os olhos brilhavam-lhe àquela luz mortiça. Vincenzo encolheu os ombros e disse:

            «Podemos sempre ignorá-lo. Fazemos as malas e partimos pela manhã.»

            Olhei para Nina. Estava inquieta; de braços cruzados, esfregava-os com as palmas das mãos.

            «Vai ser difícil ignorá-lo», disse ela. «Um homem com este grau de obsessão.»

            «O que não nos deixa grandes opções, ou deixa?», disse McGill, sarcástico. «Vamos ter de encontrar um culpado, fazê-lo assinar uma confissão e depois entregá-lo a este maníaco. Se quisermos sair daqui vivos.»

            A ideia pairou no ar durante um momento.

            «Isso é ridículo», disse eu. «Mais vale sermos nós a executar a sentença; poupávamos ao pobre coitado algum sofrimento.»

            Vincenzo começou a andar em círculos. «Isto é um caso de Polícia», disse; a voz tremia-lhe, nervosa. «É absurdo estarmos a contemplar, ainda que por mera ironia, a possibilidade de se fazer justiça pelas próprias mãos. Ou a justiça que ele quer fazer. Seja ela qual for.» Depois olhou para Nina. «Tu tens um telefone. Telefonamos à Polícia, é simples.»

            «O meu telefone não funciona há dois dias», disse Nina, olhando para o céu. «Aqui não tem sinal.»

            «Então escolhemos um de nós para ir a Sabaudia», disse o italiano. «Tiramos à sorte. É uma questão de correr em qualquer direcção que não seja a da clareira de Bosco.» Vincenzo apontou para o bosque que cercava a casa. «Por ali. Ou por ali. Vá por onde vá, acaba sempre por ir dar a uma estrada qualquer. Depois é procurar um telefone. Ou apanhar boleia até à Polícia.»

            «O que é que vais dizer à Polícia?», perguntei-lhe.

            «Que há um grupo de pessoas no bosque que estão a ser ameaçadas. Que foram sequestradas por um louco com uma espingarda.»

            McGill riu-se e abanou a cabeça. A chuva começou a cair com maior intensidade. No piso superior da casa ligaram-se as luzes de um quarto. Nina voltara-se de costas para nós e olhava, à distância, as nuvens cinzentas que se aproximavam.

            «O problema é precisamente esse», contestei. «Ninguém foi sequestrado. Ninguém foi impedido de partir, pelo menos até agora. Como é que vais explicar às autoridades que há onze adultos numa casa amedrontados por um tipo cujo único crime foi meter um cadáver num balão, crime esse com o qual todos pactuámos?»

            «Eu não pactuei com coisa nenhuma», corrigiu Vincenzo.

            «Ajudaste a transportar o corpo», afirmei.

            «O gajo tinha uma espingarda», defendeu-se Vincenzo. A voz dele tornara-se mais aguda; a chuva colara-lhe as roupas ao corpo, realçando-lhe os ossos protuberantes. Olhou para a bengala. «Tu só não participaste por causa disso.»

            «Eu participei. Não fazer nada é uma maneira de consentir.»

            «O homem exigiu uma confissão. Toda a gente o ouviu. Consiga-a ou não, mais cedo ou mais tarde vai começar a fazer justiça.»

            Nina voltou-se e disse: «A autoridade não se costuma preocupar com o que ainda não aconteceu.»

            «Temos um morto, mas não temos cadáver», disse McGill. «Estamos acossados, mas não temos maneira de o provar. É uma situação do caraças.»

            «E também temos o cenário perfeito para uma rusga policial», disse eu. «Uma casa destroçada, um carro atravessado numa janela, e sabe-se lá o que mais encontrariam lá dentro.»

            «Vamos ficar aqui enfiados até o maluco dos balões se passar e nos vir buscar para nos levar para o Inferno? É essa a vossa sugestão?», perguntou o italiano.

            McGill olhou para o céu e abriu a boca, deixando a chuva entrar. Depois perguntou:

            «E que tal se falássemos disso lá dentro?»

 

            Mas não chegámos a falar: o resto da manhã passou em silêncio e a tarde chegou melancólica, opressiva. A chuva continuou a cair e, pouco depois das três, a sala do aquário começou a ficar inundada, a água escorrendo pela capota do carro e caindo sobre o vidro que cobria os peixes, pingando, vagarosa. Ninguém pareceu importar-se; cada um parecia entretido nas suas cogitações, cada um assimilando devagar, à sua maneira, a realidade da situação em que caíramos. Pym e Elsa sentaram-se no sofá da sala debaixo da fotografia de Pasolini, fumando cigarros e bebendo vinho de uma das muitas garrafas que sobravam na cozinha;

            Roger e Stella andaram por ali, e depois retiraram-se para o quarto e tiveram sexo o resto da tarde; Nina, Vincenzo e McGill tomaram um duche e, depois, juntaram-se a Susanna e a Alípio que, na cozinha, prepararam uma refeição; eu fui para o quarto descansar meia hora, antes de comer.

            Fechei as venezianas, pousei a bengala no sofá e deitei-me de barriga para cima. As dores tinham regressado e a perna latejava como uma ferida aberta. Fechei os olhos por um momento e amaldiçoei tudo. Prometi a mim próprio que, depois daquele sono breve, deixaria de dar ouvidos a Vincenzo e a McGill e tomaria uma decisão. Fá-lo-ia sozinho: era preciso lidar com Bosco e nenhum daqueles palermas sabia como; era nisto que pensava quando os meus olhos se fechavam. Era preciso sair daquele lugar, abandonar Sabaudia e fazer o caminho de regresso à vida que era minha antes de me deixar levar naquela estúpida quimera que conduzira a um beco sem saída, onde um monstro aguardava, sedento, para devorar uma vítima. Adormeci com o ruído monótono da chuva a bater no telhado e com o som distante das vozes de Roger e Stella que, no quarto ao lado, esqueciam com abandono as premissas fundamentais da sobrevivência. Senti o corpo aquecer e as dores recuarem; caí num sono pesado e profundo.

            Quando acordei, pensei que ainda sonhava. O quarto estava escuro e a chuva cessara. Porém, não estava sozinho; havia alguém comigo. Uma voz morna e doce sussurrou, naquele negrume:

            «Chhh.»

            Tentei levantar a cabeça mas a nuca pesava-me como chumbo. Sem saber porquê, não tive receio. O corpo aos pés da cama subiu e encontrou as minhas pernas; subiu um calor com ele. Depois senti as mãos treparem pelas coxas c procurarem-me o cinto das calças. Lentamente desapertaram-no. A fivela tilintou na escuridão; procurei uma nesga de luz mas nada encontrei. A perna latejava-me, mas uma das mãos ternas pousou sobre ela, sossegando-a. Parei de tremer. Os movimentos começaram: uma boca húmida que se colou ao meu sexo e, em gestos treinados, uma ginástica praticada muitas vezes despertou um tempo esquecido. Fechei os olhos; era inútil mantê-los abertos. A criatura que me interrompera o sono continuou a mover os lábios e a língua sinuosa e eu permaneci imóvel, respirando devagar, compassadamente, uma respiração forte, uma respiração de resistência. Segurei o lençol da cama com os dedos das mãos. Havia sons gorgolejantes dentro do quarto, como água entornada de uma garrafa de vidro; havia um gemido constante, como a ânsia de um animal com fome. Depois tive um orgasmo e os sons cessaram; não foi um orgasmo previsto mas uma ocorrência inesperada, como um soluço ou uma contracção involuntária. A boca desapareceu do meu sexo e senti um enorme alívio por ela deixar de estar ali. De alguma maneira não queria que me voltasse a tocar; queria que me deixasse com a mesma suavidade com que chegara, um restolhar dos lençóis, uma mão descendente, um corpo ausentando-se, e depois a solidão do quarto novamente vazio. Abri os olhos; a criatura obedeceu aos meus desejos. Movia-se na escuridão - deixara um leve perfume no ar com uma película de suor - e afastava-se, deslizando o corpo pelo lençol. Depois ouvi passos e houve uma fresta de luz, tão etérea e fugaz que podia ser um sonho: a porta do quarto abriu-se e fechou-se, o corpo implausível esgueirou-se pela abertura e depois o silêncio reclamou presença. Enterrei a cabeça na almofada; apeteceu-me chorar sem saber porquê.

            Despertei com as vozes grosseiras que vinham do andar de baixo. Tentei alcançar o candeeiro junto da cama mas, na escuridão, andei aos apalpões ao ar durante quase um minuto antes de encontrar o interruptor. O quarto iluminou-se: não fazia ideia de que horas seriam; ainda sentia a presença do fantasma. Levantei-me estremunhado, alcancei a bengala, abri a porta e saí para o corredor. Era noite cerrada mas a chuva parecia ter ajudado a limpar o céu, e a luz da Lua banhava todo o corredor deserto. No quarto ao lado, Roger e Stella estavam em silêncio; a casa parecia defunta. Depois tornei a ouvir as vozes que subiram de volume: alguém discutia no andar de baixo. Eram vozes masculinas e descontroladas. A porta do quarto fronteiro ao meu abriu-se e Olívia apareceu, enrolada numa manta que lhe cobria os ombros. Trocámos um olhar e ocorreu-me o mais estranho dos pensamentos.

            «Estás a ouvir isto?»

            «Estou», respondeu Olívia, que logo desviou o olhar do meu e se pôs a caminhar à minha frente. Olhei para os seus pés nus, os tornozelos finos, a curva das nádegas visível debaixo das calças brancas do pijama. Na sala, Elsa e Pym continuavam sentados no sofá mas tinham adormecido em frente da televisão, que estava ligada sem som e emitia apenas electricidade estática de um planeta distante. Pym dormia em posição fetal aos pés de Elsa; o ecrã de televisão iluminava a sala, a luz tremeluzente formando sombras mórbidas nas paredes; a água que se acumulara no espaço do aquário pingava do pequeno degrau que o separava da sala. Estuguei o passo atrás de Olívia na direcção da cozinha. As luzes estavam apagadas, mas a porta de correr encontrava-se aberta, um vento frio varrendo as panelas e os tachos, que tilintavam baixinho como sinos desafinados. Havia várias garrafas de vinho vazias em cima da mesa e os restos de uma refeição em pratos sujos. As vozes vinham do exterior.

            Lá fora, Nina punha-se entre McGill e Vincenzo. O inglês, corado e de cabelo desalinhado, os punhos cerrados, tentava aproximar-se do italiano; Nina tentava protegê-lo. Vincenzo tinha um olho inchado e corria-lhe um fio de sangue do canto da boca.

            «John, pára», gritou Nina. «Já chega.»

McGill olhou para Olívia e depois para mim. Avancei um passo na direcção de Vincenzo, mas ele fez-me sinal com a palma da mão para me afastar; olhei para Nina.

            «Que aconteceu?»

            «Não sei. Quando cheguei aqui estavam à pancada.»

            McGill riu-se com cinismo.

            «Não sabes?» Voltou-se para Olívia. «Tu aí. Sim, tu, aí especada como uma atrasada mental. Sabes o que é que tem acontecido por aqui?»

            Olívia observava McGill, desinteressada. McGill arrastava as palavras; estava bêbedo.

            «Não a metas nisto», disse Vincenzo.

            «Cala-te, filho-da-puta», ameaçou McGill. «Mais uma palavra e arrumo contigo.»

            «John, vai-te deitar», disse Nina. «Não piores ainda mais as coisas.»

            «As coisas não podiam ficar piores», disse McGill, que deu um passo atrás, cambaleante. Abanou a cabeça com uma expressão desesperada no rosto. «Queres pior do que isto? Estamos no meio de lado nenhum, cercados por um bosque onde há um psicopata com uma espingarda, e a minha namorada - a puta da minha namorada - anda a fornicar com outro gajo. Achas mesmo que as coisas podiam ficar piores?»

            Nina avançou dois passos e deu um estalo a McGill; o barulho da chapada - seco, breve - fez eco na noite.

            «Não me voltes a chamar isso», disse Nina. Depois, para Olívia: «Não ouças o que eles dizem. Estão bêbedos e estúpidos.»

            «Não faz mal», disse Olívia. A sua voz tranquila e monótona rasgou a tensão palpável no ar. «A sério, não tem importância nenhuma. Vou deitar-me.»

            Olívia deu meia-volta e, antes de tornar a entrar na casa, lançou um olhar indiferente a Vincenzo e afirmou:

            «Deixo as tuas coisas à porta do quarto.»

            O italiano ficou a observar Olívia, que desapareceu dentro da casa; depois limpou o sangue do lábio com as costas da mão, hesitou um segundo e também ele entrou. Ficámos os três parados a olhar uns para os outros. McGill esforçava-se por manter o equilíbrio.

            «Que se foda», disse ele, e deixou-se cair de encontro à parede da casa, sentando-se no chão, os joelhos contra o peito; enterrou a cabeça entre os joelhos. Nina levou a mão ao rosto e depois encarou-me.

            «Desculpa. Não tens nada a ver com isto.»

            «Eu sei», respondi. Ia voltar para dentro quando McGill ergueu subitamente a cabeça e me olhou:

            «É tudo verdade, sabes?»

            «John, por favor», disse Nina.

            «Pergunta-lhe», insistiu McGill.

            Nina fitou-me como se me devesse uma explicação. Fez uma breve pausa e depois disse: «Fui deitar-me a seguir ao jantar. Deixei-os aqui em baixo, a beber vinho e a fumar cigarros. Estava tudo bem. Acordei a meio da noite. Desci até à cozinha e havia um silêncio estranhíssimo. O John estava sentado à mesa, às escuras. O Vincenzo estava cá fora.»

            «O gajo tinha acabado de me dizer que está apaixonado por ti», disse McGill.

            Nina ficou lívida.

            «Isso é tão estúpido», disse ela. «É tão desnecessário.»

            «Eu sei que tens dormido com ele», disse McGill.

            «Como é que sabes isso?», perguntou Nina.

            «Porque o cabrão me disse.»

            McGill tentava erguer-se enquanto falava. «Porque o gajo me encarou e disse com todas as letras que andava a dormir contigo. E sabes o que foi pior? Foi que o disse como se fosse uma coisa divertida. Como se eu fosse dar-lhe uma palmada nas costas ou até os parabéns.» McGill pôs-se de pé e passou os dedos pelo cabelo; depois fungou e esfregou os olhos.

            «O mais engraçado disto tudo é que eu já sabia, mas recusava-me a ver.»

            «Estás a inventar coisas», disse Nina, aproximando-se dele. «O que o Vincenzo diz é uma coisa, o que realmente aconteceu é outra.»

            McGill não a encarava.

            «Já sabia desde que o fomos visitar a Roma.» John voltou a cabeça na direcção do céu, onde a Lua era a atracção principal num negrume cheio de estrelas; pusera-se uma noite de Verão depois da chuva. «Maldito livro. Quem me dera nunca o ter escrito.»

            «Por favor, não digas isso.»

            «O livro trouxe-nos até aqui.» As lágrimas assomavam-lhe aos olhos tremeluzentes. «Trouxe-nos a este lugar horrível para nos separar. Eu já sabia de tudo isto e, mesmo assim, fui atraído pelo abismo. É o epílogo da história, entendes? Faltava esta parte para o romance ficar completo. Faltava eu meter-me num avião e depois num comboio, caminhar pelo meio de uma floresta em Itália e vir ao encontro do nosso final, quando tudo me dizia que não o fizesse. Quando tudo me dizia que isto ia ser uma cilada montada pelo destino para nos separar.»

            «A única coisa que aconteceu foi a morte do Don Metzger», disse Nina num tom de angústia; tentou agarrar o braço de McGill, mas este deu dois passos atrás na direcção do lago. «E isso nenhum de nós poderia ter adivinhado.»

            «Diz-me que não estás apaixonada por ele.»

            Nina levou as mãos ao rosto; parecia desesperada. Olhou-me de relance, como se eu pudesse socorrê-la.

            «Se calhar bebeste uns copos a mais», intervim, sem convicção, dirigindo-me a McGill. «Que tal se fosses dormir um bocado? Falavam de tudo isto pela manhã.»

            McGill ignorou-me. «Diz-me que não gostas daquele palhaço», pediu ele a Nina.

            «Não gosto daquele palhaço», respondeu ela.

            McGill fitou-a por um momento e começou a rir.

            «Mentirosa», acusou. «As viagens, os e-mails, os telefonemas nocturnos. Era tão evidente, e eu fiz tudo por ignorá-lo. Mas sabes que mais? Vai ser um desastre, porque ele só quer o que eu tenho. Mais nada. É tudo uma questão de inveja e, assim que conseguir aquilo que quer, deixa-te para trás e segue em frente. A próxima paragem a caminho da ambição desmedida.»

            Nina soltou um longo suspiro e depois, de repente, desistiu.

            «Vou para o quarto e espero lá por ti», disse, subitamente tranquila. «Vem falar comigo quando curares esse pifo descontrolado.»

            Nina voltou-se e avançou para a porta da cozinha. Senti-me aliviado e preparava-me para a imitar quando McGill disse:

            «Psst. Tu. Vou-me embora. Queres vir comigo?»

            Nina deteve-se.

            «Eu?», perguntei, atónito. «É melhor não me meteres nisso. Com a minha lentidão, chegamos à orla da floresta lá para Setembro.»

            «Levamos aquilo», disse McGill, e apontou para o carro de Don Metzger que estava enfiado dentro da sala.

            «Perdeste o juízo?», perguntou Nina. «Não vais a lado nenhum nesse estado.»

            McGill parecia, de repente, sóbrio e resoluto, como se a decisão o houvesse transformado. Aproximou-se de Nina até os rostos ficarem à distância de um palmo.

            «Escuta O que eu te digo. Vou pegar naquele carro, fazer-me à estrada e, depois, dirijo-me à primeira esquadra da Polícia que encontrar. Vou contar-lhes exactamente o que se passou aqui, em inglês, em italiano, se for preciso até lhes explico em russo, caraças. Depois volto para Inglaterra e nunca mais quero ver a tua cara. Estamos entendidos?»

            Nina ficou sem resposta. McGill voltou-se e caminhou na direcção da parte da frente da casa, subindo a ligeira encosta relvada a passo estugado. Nina tornou a olhar-me como se eu pudesse confirmar que aquilo estava mesmo a acontecer; como eu nada dissesse, partiu a correr atrás de McGill. Fui atrás deles mas deixei-me ficar na esquina da casa; McGill preparava-se para entrar na viatura pela porta do passageiro. Observei-os enquanto discutiam; era inútil tentar interferir. Era impossível demover o inglês e, na verdade, agradava-me a ideia de alguém ir à Polícia denunciar a situação em que nos encontrávamos. Mais um dia naquela casa e ficaríamos loucos, tão loucos como Bosco, tão loucos como McGill, tão loucos como Metzger tinha sido, embora poucos o tivessem conhecido e eu apenas soubesse da sua vida por intermédio de outros; tão loucos como Metzger indubitavelmente fora. As palavras de McGill e Nina perdiam-se na noite e, de repente, a porta do passageiro do carro fechou-se com estrondo e um dos faróis dianteiros acendeu-se e iluminou o aquário e o chão de água onde os peixes viviam. O motor do carro começou a trabalhar e Nina recuou, gritando pelo nome do inglês. Lá em cima, as luzes do quarto de Stella e Roger acenderam-se. Depois o carro recuou com estrépito, arrastando consigo o que restava da janela partida - o estrépito dos vidros abatendo--se sobre o chão - e desceu a pequena colina em marcha atrás, fazendo um pião e avançando na direcção da estrada de terra que conduzia ao bosque. Elsa e Pym apareceram na sala do aquário, estremunhados; Nina ainda perseguiu o automóvel durante algum tempo, mas cedo a poeira levantada pelas rodas traseiras a obrigou a deter-se. Ficou parada à beira da estrada, o luar sorrindo sobre os seus cabelos ruivos, a poeira caindo em seu redor. Pouco depois McGill desaparecia pelo caminho do bosque*.

 

* O que aconteceu naquela fatídica madrugada em que Don Metzger soltou o seu último suspiro e nós - tão impreparados para as vicissitudes desta vida - nos transformámos em monstros de indiferença? Aconteceu um crime, ou aconteceram vários? Por exemplo: se um homem não for testemunha de um crime, será que isso o iliba da responsabilidade de, caso esteja ao seu alcance, encontrar o perpetuador dessa ofensa? Ou será que essa inacção constitui, por si própria, um segundo crime a acrescentar ao primeiro? Será que um homem pode, pelo simples facto de não ter matado, ignorar o facto de outro o ter feito, lavando daí as suas mãos e dizendo que a punição, a existir, está entregue ao destino? Pergunto-me muitas vezes como é possível que o destino nos pareça um conceito plausível quando este mundo é uma panóplia de erros que conduzem aos piores horrores. Usamos o destino como álibi, crendo, ingénuos, que as coisas acontecem de certa maneira porque não poderiam acontecer de outra; esta crença, tão válida como a crença em Deus ou na imortalidade da alma, tem consequências terríveis para o espírito que, mais cedo ou mais tarde, se vê corrompido pela dúvida que tem origem na impossibilidade de sabermos, com qualquer grau de certeza, se as nossas decisões nos trarão paz ou, pelo contrário, irão acordar as bestas do Inferno; se, doravante, teremos de caminhar pelo mundo com a cabeça voltada ao contrário como um contrapasso de Dante.

 

            Olívia dormiu sozinha no que restou dessa noite. Vincenzo ficou na sala, no sofá que não se encontrava ocupado por Pym. Elsa subiu ao primeiro andar e dormiu no quarto de Don Metzger, debaixo dos lençóis da grande cama como uma princesa enfeitiçada. Nina dormitou a espaços num dos quartos vazios. Uma vez por outra, antes de o dia raiar, ouvi os seus passos suaves — vinha ao corredor fumar, o cheiro do tabaco espalhava-se por ali, ouvia-lhe a voz, falava consigo própria num sussurro. Também no corredor, largada por Olívia à porta do seu quarto, estava a mochila de Vincenzo, abandonada como uma coisa que, outrora estimada, tivesse agora perdido o valor.

            Deitado na cama, eu era incapaz de voltar a dormir.

            Quando amanheceu, tomei um banho de água tépida e vesti roupas lavadas. Vi, pela da janela do meu quarto, que Alípio já se levantara e se dirigia para o bosque. Vestia a mesma roupa do dia anterior ou, então, as suas roupas eram tão parecidas que se tornavam indiscerníveis. De boné enfiado na cabeça, levava na mão uma caneca com café; parecia completamente alheado da situação que vivíamos naquele lugar e, aparentemente, estava disposto a continuar a vida de todos os dias como se os dias permanecessem os mesmos - talvez Alípio fosse tão obediente à vontade de Bosco ou tão ignorante que, apesar da morte do patrão, continuasse a considerar-se um funcionário daquela propriedade e, sendo assim, se havia trabalho a fazer, era uma questão de meter mãos à obra. Talvez Alípio julgasse que, na ausência de Metzger, o catalão assumiria o seu papel; talvez fosse essa a lógica inescrutável daquele vassalo de província, talvez fosse esse o imperativo que não podia ser desmanchado, o imperativo do trabalho. Mas que trabalho poderia ser esse, agora que Metzger se fora? Por que razão avançava o velho italiano na direcção do bosque pela manhã, agora que Don deixara de precisar dos seus balões para celebrar o Bom Inverno?

            Qualquer que fosse a resposta, parecia, evidente que tanto Alípio como Susanna se encontravam fora da lista de suspeitos de Bosco: nada lhes havia sido exigido e a rotina parecia ter regressado à casa. Quando desci à cozinha, a mulher preparava o pequeno-almoço: aquecia, em lume brando, uma velha panela de água e fizera pão fresco que começava a tirar do forno. Quando me viu fez um aceno de cabeça e tentou sorrir; contudo, alguma coisa tinha mudado nela - a sua compleição, antes rosada e calorosa, era agora pálida e mortiça, como se a morte do patrão tivesse tido um efeito físico na sua existência. Era um sinal vago, mas talvez significativo, de que as coisas não eram exactamente como as julgara; de que talvez fosse o medo - O mesmo medo que nos assolava - aquilo que remetia Susanna e Alípio à métrica ordenada do quotidiano.

            Preparava-me para me sentar à mesa da cozinha e comer quando, através da porta aberta, vi Alípio parado no princípio da estrada de terra que conduzia ao bosque. Estava de cócoras e remexia alguma coisa que encontrara no chão. Avancei para o exterior; ainda havia uma brisa no ar, mas o céu limpo era prenúncio de um dia de calor, o azul do céu reflectido na superfície tranquila do lago. Susanna seguiu-me até à porta mas deixou-se ficar. À distância não conseguia ver o que Alípio encontrara mas, enquanto me fui aproximando, devagar, a bengala firme na minha mão, ouvi Susanna chamar pelo marido, que se soergueu ligeiramente e olhou para trás para logo voltar a cabeça; era o gesto súbito de um homem preocupado. Compreendi então que havia alguma coisa caída no chão. Julguei, sem saber porquê, que fosse um animal morto, e abrandei o passo ao aproximar-me. Mas Alípio voltou a cabeça para trás uma segunda vez e percebi nos seus olhos que não era um animal: havia um corpo humano deitado sobre a terra e Alípio colocara-lhe um braço debaixo do pescoço, erguendo-lhe ligeiramente o tronco. Era McGill. Fiquei parado durante um momento, sentindo nas costas o calor do Sol que se erguia no horizonte. O inglês estava quase irreconhecível e somente as roupas e o cabelo louro o denunciavam; tinha o rosto parcialmente desfeito, o olho direito tão inchado que desaparecera por detrás de uma massa de carne negra e disforme; o nariz parecia ter sido deslocado, a cana rachada e fora do lugar, o sangue que lhe descera das narinas, agora seco, colado à boca, ao queixo, ao pescoço e à camisa; faltava-lhe um dos dentes da frente, o espaço negro visível através da boca semiaberta, como se tivesse morrido na tentativa de dizer alguma coisa. Mas o mais cruel não era o rosto; o mais cruel era a posição impossível do braço esquerdo de McGill, que, consequência de um golpe violento, tinha sido deslocado com tamanha brutalidade que se encontrava literalmente do avesso - a palma da mão voltada para fora, o cotovelo na parte interior, junto do tronco, como se o homem fosse um boneco de montar e alguém, por descuido, lhe tivesse atarraxado um membro ao contrário.                     ;

            Ajoelhei-me junto de Alípio e pousei a bengala.

            «Estava aqui», disse o homem, em italiano. «Estava coberto de

pó quando o encontrei.»

            Senti-lhe o pesar na voz. Tirou o boné e, num gesto solene, baixou os olhos para a terra. Peguei na bengala, ergui-me e regressei à casa.                                                                            

            Nina foi a última a saber. Passara grande parte da noite acordada e, quando subi ao andar superior, reparei que adormecera de porta aberta sobre a cama do primeiro quarto do lado esquerdo. Fechei a porta sem fazer barulho e deixei-a dormir; depois desci novamente à sala. Pym dormia a sono solto, enrolado como um caracol no grande sofá. Acordei Vincenzo e pedi-lhe que não fizesse barulho; depois levei-o até à estrada de terra e mostrei-lhe o corpo de McGill, junto do qual permanecia Alípio. O italiano levou as mãos à cabeça e começou a chorar - uma espécie de choro que nascia do desespero, as lágrimas correndo livres por um rosto carregado de uma inquietação que o fez dar duas voltas sobre si próprio e pontapear a terra seca, o pó atingindo o rosto massacrado de McGill.

            «Não há nada a fazer», disse eu.

            «Dois mortos. Dois mortos em vinte e quatro horas. É um filme de terror e nós estamos mesmo no meio dele.»

            Olhei em volta; vi o silêncio do bosque e a lisura do lago. Nada naquele lugar sugeria morte e, no entanto, ela era a presença dominante, uma espécie de rumor vindo das águas e das montanhas de Sabaudia que cedo se transformaria numa tempestade. Nada daquilo era plausível, nada daquilo parecia real; e, no entanto, era tão verdadeiro como o chão arenoso debaixo dos nossos pés.

            «A culpa desta morte é minha», disse Vincenzo.

            «O que é que tu lhe disseste ontem à noite?»

            Vincenzo baixou a cabeça.

            «Ontem à noite disseram-se muitas coisas, grande parte delas parvoíces de bêbedo.»

            «Disseste-lhe que estiveste com a Nina?»

            Vincenzo olhava na direcção do lago.

            «Não. Quero dizer, sim. É possível que tenha dito uma estupidez desse género.»

            «É verdade?»

            Vincenzo hesitou.

            «Talvez. Não sei. Talvez seja parcialmente verdade. Talvez já tenha acontecido, no passado. O que é que importa agora? O tipo está morto e a culpa é minha.»

            «A culpa não é tua. Mas temos de o enterrar. Preciso da tua ajuda para carregar o corpo.»

            «Enterrar?», reagiu Vincenzo em voz alta. À porta da cozinha, Susanna espreitava, tentando decifrar os acontecimentos. «Ouve, nós temos é de nos pôr a milhas daqui e chamar imediatamente a Polícia. Antes que isto se transforme num banho de sangue.»

            Vincenzo suava. Procurou um maço de cigarros no bolso das calças e acendeu um. Olhou desconfiado para Alípio, que nos observava em silêncio, de boné na mão.

            «Como é que propões fazer isso?», perguntei; Alípio podia ser fiel a Bosco mas, naquele momento, era o menor dos nossos problemas. «Temos um psicopata do outro lado deste bosque que, aparentemente, não vai deixar ninguém partir sem autorização expressa.»

            «Como é que sabes que foi o Bosco?», perguntou, chupando avidamente do filtro e caminhando freneticamente de um lado para o outro.

            «Quem mais é que podia ter sido? Um animal selvagem? Existem predadores nos bosques de Sabaudia?»

            «O McGill foi-se embora no carro do Don Metzger. Eu ouvi o carro partir. Como é que o outro o apanhou, se ele ia de carro?»

            Tornei a olhar para o corpo do inglês; parecia ter sido atropelado por uma manada.

            «Não faço ideia. O que sei é que, se ele consegue travar um carro e fazer isto a um homem, é capaz de fazer praticamente tudo.»

            «Portanto, vamos enterrá-lo e continuar a alinhar nesta chacina?», perguntou Vincenzo, subindo outra vez o tom de voz.

            «Vamos enterrá-lo e esboçar um plano. Ver quais são as nossas hipóteses. Não podemos deixar um cadáver a apodrecer, ou podemos? Seja qual for o pé em que as coisas ficaram, o McGill era teu amigo. Ou foi teu amigo. Merece algum respeito, sobretudo depois de morto.»

            «E se fôssemos cada um para seu lado?», perguntou subitamente, detendo-se.

            «Não percebi.»

            «Se cada um de nós pegar nas suas coisas e partir numa direcção diferente. Ele não pode estar em toda a parte ao mesmo tempo, ou pode?»

            Olhei em volta. Depois fitei Vincenzo.

            «Há dois problemas com essa ideia. Primeiro, estamos no interior de um bosque bastante denso que, aparentemente, nenhum de nós conhece e se estende por vários quilómetros. A oeste e a sudoeste, temos o lago; a leste e a norte, mato e arvoredo sem fim à vista. A sul, temos o único trilho desbravado, que conduz à clareira do Bosco. Já percebemos que o catalão não está a fazer bluf. Se tentarmos fugir durante o dia, o mais provável é andarmos em círculos e sermos apanhados num ápice. Durante a noite, aposto contigo em como nenhum de nós se atreve a meter-se ao caminho. O segundo problema com essa ideia é que é uma lotaria. Pode ser que alguns sobrevivam, mas haverá sempre os sacrificados: os mais fracos ou os mais lentos. Tenho uma vaga ideia de quem possam ser.»

            Vincenzo olhou para a minha bengala.

            «Foda-se», disse.

            «E não é só isso», continuei. «Um homem como o Bosco dificilmente se contentará em apanhar um e deixar os outros fugir. Ele está centrado, obsessivamente, numa ideia de justiça que não se coaduna com uns quantos sacrifícios. Se for cada um para seu lado, tenho a certeza de que irá atrás de cada um de nós. De todos os que conseguir apanhar. Não vai parar até a sua justiça ser feita.»

            «A menos que alguém o pare primeiro», disse Vincenzo.

            «É uma boa ideia, mas olha o que tens ao dispor. Um semi-inválido, um par de actores, um australiano atarracado. A Nina é a tua melhor hipótese mas, apesar de ser uma mulher determinada, dificilmente fará frente a um gigante como o Bosco. Que tem uma arma, conhece provavelmente este bosque como a palma da mão e está doidinho por que a época de caça seja oficialmente declarada.»

            «Pelos vistos já foi», disse Vincenzo, olhando para o corpo de McGill. «Sabes o que acho? Acho que também foi ele quem deu cabo do Metzger.»

            Houve um momento de silêncio. Depois eu disse:

            «Neste momento essa é a menor das nossas preocupações.»

            Vincenzo livrou-se do cigarro atirando-o para a terra; parecia mais calmo.

            «O que é que sugeres?»

            «Parece-me que este homem é a nossa melhor hipótese.»

            «O Alípio?», perguntou Vincenzo.

            «Io», repetiu Alípio ao escutar o seu nome.

            «Ele trabalha com o Bosco e o homem confia nele», expliquei. «Como, aparentemente, não vai existir qualquer confissão, ficamos sem maneira de apaziguar a fera. Por isso há que negociar.»

            Vincenzo fez um compasso de espera antes de se agachar junto do corpo de McGill.

            «Está bem. Não sei o que queres dizer com isso, mas dou-te o benefício da dúvida. É a última hipótese que dou a esta porcaria de ser resolvida com diplomacia.»

            Alípio também se agachou e os dois levantaram o corpo de McGill.

            «E depois o que é que acontece?», perguntei.

            «Depois é cada um por si», disse o italiano, grunhindo do esforço. «Alea jacta est.»

            Coube a Vincenzo a tarefa de ir acordar Nina. Alípio abriu uma cova no declive que conduzia ao lago; Susanna chorou em silêncio no momento em que finalmente viu o cadáver. Quando Nina desceu do quarto, já Alípio tinha enrolado o cadáver num lençol, a relva e a terra afastadas para darem lugar a um buraco em redor do qual se improvisaria um funeral. Ajudei Alípio como me foi possível, e pensei, nesses momentos, sobre a maneira como eu estava a reagir aos acontecimentos - sobre a frieza inesperada com que ia lidando com cada sucessivo obstáculo. Eu, que fora um cobarde, de estômago sensível, comportava-me agora como um profissional da morte, e o desespero alheio - o choro, os gritos, os insultos, as traições - só tinha servido para me deixar mais alerta e, de certa maneira, encher as medidas daquela minha recém-descoberta familiaridade com o Mal; a minha estranha disposição para resistir ao apelo desesperado da sobrevivência que, mais cedo ou mais tarde, seria o cadafalso dos meus companheiros. De maneira que, quando comecei a ouvir os gritos angustiados de Nina, vindos do andar de cima, não precisei, como Stella ou Pym, de tapar os ouvidos para me evadir à dor alheia.

            Estávamos reunidos na cozinha e aguardávamos por Nina e Vincenzo; Alípio encontrava-se lá fora a preparar o enterro.

            Ficámos alguns minutos em silêncio até que os gritos se desvaneceram e se transformaram num murmúrio de choro.

            «Macacos me mordam», disse Roger. O australiano estava encostado ao balcão e bebia vinho pelo gargalo de uma garrafa. Estava despenteado, o cabelo longo e sebento enrolado em volta das orelhas; Stella, ao seu lado, de maquilhagem esborratada e olhar perdido, parecia uma boneca velha que alguém tivesse encontrado no fundo de um baú. Pym esforçava-se por conter as lágrimas - não por causa de McGill, que mal conhecia, mas porque o medo lhe enchia o rosto de criança -, enquanto Elsa fumava um cigarro, mostrando-se calma. Olívia sentara-se a um canto, recatada, de braços cruzados; aparentemente, nem a morte de McGill a conseguira arrancar àquele sonambulismo. Acabara de lhes explicar o plano que discutira com Vincenzo.

            «Concordo em absoluto», disse Elsa. «Nos filmes de terror é a mesma coisa. Quem se põe em fuga do assassino acaba sempre mal.»

            «Quem é que vai ao covil negociar com a fera?», perguntou Roger. «Se eu me aproximo, aquela besta ainda me arranca o escalpe.»

            «Eu vou», ofereci-me. «O Alípio faz-me companhia. Já conversei com o Bosco uma vez e talvez ele me dê oportunidade de lhe expor a situação.»

            «E qual é a situação?», perguntou Pym.

            Hesitei um momento e depois agarrei no castão da bengala com as duas mãos.

            «Antes de continuarmos, queria fazer-vos uma pergunta. Algum de vocês quer partilhar alguma coisa com os outros? Alguma revelação que, neste momento, fosse importante para a nossa sobrevivência?»

            Os presentes entreolharam-se; Roger começou a rir.

            «Isso faz imenso sentido. Estás à espera de que alguém confesse? Sabendo do que aquele animal é capaz de fazer?»

            «Não estou à espera de uma confissão. Estou a perguntar se algum de vocês sabe de alguma coisa que possa explicar esta situação ou que nos possa ajudar a sair dela. Se alguém tem alguma informação sobre a morte do Don Metzger.»

            Todos se entreolharam novamente mas ninguém falou; olhei para Olívia.

            «Se há alguma coisa que nos queiras dizer, este é o momento.»

            Olívia abanou a cabeça, indiferente.

            «Não. Não há nada que vos queira dizer.»

            Pym riu-se, desesperado. Disse, em voz alta: «É óbvio que ela sabe de alguma coisa.»

            «Pym», avisou Elsa, agarrando-lhe o braço.

            «Larga-me», rejeitou-a Pym, apontando para Olívia. «Olhem para ela. Tão frágil, tão distante, tão improvável. Onde é que ela estava na noite em que o Don morreu? Eu vi-a chegar, e depois desapareceu como uma nuvem de fumo. Alguém sabe o que ela fez nessa noite ou onde esteve?» Descontrolado, Pym deu um passo em frente na direcção de Olívia. «Vais explicar-nos, ou vamos todos morrer neste lugar, como uns miseráveis, por tua causa?»

            A pergunta ficou no ar; Olívia olhava para Pym sem qualquer traço de emoção. Não parecia a mesma pessoa que eu conhecera em Budapeste. Levantou-se e disse, em tom monótono:

            «Volto a dizer as vezes que forem necessárias: fui deitar-me cedo e só acordei de madrugada.»

            «Mentirosa», gritou Pym.

            Elsa agarrou-o. «Pym», disse Elsa, em voz baixa. «Não vale a pena.»

Pym ainda susteve o olhar desafectado de Olívia durante um momento e, depois, recuou e deixou que Elsa o abraçasse; enterrou a cara no ombro dela e pareceu começar a soluçar. Nesse momento Vincenzo apareceu na cozinha, acompanhado por Nina. Esta tinha olheiras profundas mas tinha parado de chorar e o seu rosto assumira uma expressão involuntária de derrota,como se a dor emocional pela morte de McGill se tivesse transformado, no tempo que leva a descer um lanço de escadas, na dor de um desafio perdido.

            Lá fora, Susanna começara a colher flores para a campa de McGill. Fizemos o nosso caminho em direcção à cova - Nina caminhou sozinha, de braços cruzados em redor do peito, e Vincenzo acompanhava-a um pouco atrás. Nos olhos dele vi a sombra de uma culpa terrível cuja verdadeira natureza desconhecia: que relação tinha com Nina? Que acontecera entre eles? Teriam as suspeitas de McGill outro fundamento que não um ciúme alcoólico, suspeitas que se haviam transformado em certezas e o tinham conduzido a uma morte violenta?

            Junto da cova, Alípio e Vincenzo entregaram o morto à terra. Elsa aproximou-se e entrelaçou o braço no meu, oferecendo-me o calor do seu corpo. O cadáver de McGill, enrolado no lençol, desapareceu para o interior da cova, e Alípio disse uma oração em italiano, que todos rematámos com um amen descompassado. Olhei em redor: Olívia não viera prestar aquela última homenagem; Pym chorava e tremia; Roger fora buscar a câmara de filmar e registava aquele momento fúnebre. Depois Elsa fitou-me com os olhos cheios de ternura e melancolia e disse:

                   «Boa sorte.»

 

            Eu e Alípio partimos para o bosque logo a seguir ao funeral. Não havia nenhum carro que nos pudesse transportar - Bosco levara o Renault, McGill o automóvel de Metzger, e o carro de Roger permanecia à entrada da casa com dois pneus completamente vazios - e, por isso, fizemos o caminho a pé. O Sol brilhava num céu muito azul e o calor apertava, fazendo-nos suar.

            Alípio tinha a paciência de um homem do campo e acompanhava a minha lentidão sem denunciar qualquer ansiedade enquanto eu fincava a bengala nas partes do terreno que me pareciam mais sólidas, esperando quando era necessário esperar, estugando o passo sempre que eu encontrava um novo fôlego; murmurava uma antiga cantilena italiana para entreter a nossa travessia. No caminho do bosque, ensombrados pelas árvores muito altas que se debruçavam sobre nós, ameaçadoras, existia a sensação de que alguma coisa nos observava a partir dos lugares mais recônditos; existia a sensação insidiosa de que alguma coisa nos acompanhava sem dar tréguas, medindo os nossos passos, dois olhos demoníacos escondidos na semi-obscuridade das árvores.

            Caminhando, pus-me a pensar em todas as possibilidades. Que teria acontecido a Don Metzger, e quem era o responsável pela sua morte? Vincenzo suspeitava de Bosco, mas o catalão parecera-me demasiado obcecado com a justiça e demasiado fiel a Metzger para ser, ao mesmo tempo, autor e justiceiro do mesmo crime. Ocorriam-me agora pensamentos mais insensatos, pensamentos que nasciam do cruzamento radical de todas as hipóteses: e se, como sugerira Bosco, o crime não tivesse sido perpetrado por um, mas por vários? E se Sabaudia tivesse sido, na verdade, o recôndito lugar de uma vingança colectiva, e cada um deles tivesse uma razão secreta para querer Don Metzger morto, embora não tivessem previsto a ameaça que o catalão viria a constituir? O pensamento era rebuscado e, no entanto, tão verosímil como o que me ocorreu em seguida: e se Vincenzo, possuído pela inveja ou pelo álcool - ou por ambos -, fosse o culpado pela morte? E se Nina fosse, na verdade, sua amante e sua cúmplice, e os dois mentissem para ocultar um homicídio que fora o resultado de um conjunto de circunstâncias infelizes numa noite de descontrolo? Todos os cenários, mesmo os mais bizarros, me pareceram plausíveis no tempo daquela caminhada silenciosa com Alípio. Nina; não sabia, na verdade, o que pensar de Nina. Elsa dissera a Bosco que tinham estado juntas na noite em que Metzger chegara; mas teria Elsa dito a verdade, ou tê-lo-ia dito para proteger Nina da verdade perante Bosco - e perante McGill? Se assim fosse, então Elsa era também cúmplice naquela teia de enganos e conspirações. Contudo Elsa era uma das criaturas que Metzger trouxera do subsolo para a superfície; não fazia qualquer sentido que pactuasse com Nina e Vincenzo, a menos que desconhecesse que estes ocultavam um homicídio e, portanto, protegesse Nina somente porque as mulheres, por vezes, se protegem, e noutras ocasiões se ferem de morte. Havia ainda Roger e Stella; tanto quanto me era possível compreender, Stella encontrava-se acima de qualquer suspeita: ou era a melhor actriz do mundo, ou então era simplesmente idiota, sem qualquer possibilidade de conceber ou pôr em prática um plano tão macabro. Quanto a Roger - embora Bosco nunca tivesse escondido o seu ódio por ele -, parecia-me não ser mais do que um actor secundário naquele enredo a quem o catalão nem sequer exigira um álibi para a noite do crime. Com quem insistira Bosco? Com Nina, sobretudo: o grande conflito fora com Nina, embora isso não significasse necessariamente que desconfiasse dela acima de todos os outros, mas que Nina tivera a coragem de o desafiar. Por outro lado, a pessoa mais misteriosa era Olívia; no seu ar desinteressado, quase infantil, declarara ter dormido a noite toda, e esse seu álibi só fora contestado por Pym num momento de fraqueza; eu próprio me sentira tentado a ilibá-la de culpas ao fazer notar a Vincenzo a finura dos seus pulsos e a sua incapacidade física para dominar e estrangular um homem do tamanho de Don Metzger. Porém, na verdade, que sabia eu sobre Olívia? Praticamente nada. Que era bonita, que parecia moderadamente inteligente e que tinha sido, durante os últimos anos, o caixote do lixo de Vincenzo. Mas e se Olívia, na verdade, sofresse de uma patologia ainda por classificar - uma patologia sobrenatural que transformasse um anjo num demónio? E se debaixo de Olívia -debaixo da sua pele - se escondesse uma criatura nefasta capaz das maiores atrocidades?

            Quem entrara no meu quarto a noite passada?

            «Avanti», disse Alípio. À nossa frente, a clareira tornou-se visível. O sol penetrava pelos espaços entre as árvores do bosque, criando feixes de luz nos quais esvoaçavam minúsculos insectos. A clareira estava deserta mas, assim que chegámos, ouvimos o restolhar de passos atrás de nós. Voltei-me e ali estava Bosco, que surgira de parte nenhuma; trazia a espingarda ao ombro e tinha gotas de suor dispersas pela cabeça calva. Passou por mim e por Alípio e, dirigindo-se ao centro da clareira, agachou-se junto da terra, onde jazia o envelope azul e vermelho de um balão. Ergueu o olhar por um instante e depois começou a desdobrar o envelope.

            «Não vos esperava tão cedo», disse. Olhou para Alípio e pediu--lhe ajuda em italiano.

            Alípio obedeceu e foi ajudá-lo; os dois começaram a esticar o envelope. A porta da cabana estava aberta, havia algumas botijas de gás propano fora do depósito, e um dos rolos industriais de corda encontrava-se próximo de Bosco; tinha sido recentemente usado.

            «Estás a preparar um voo?», perguntei.

            Bosco ergueu os olhar; observava-me como se eu tivesse aparecido para tomar chá.

            «Como assim?»

            «Vejo que estás a trabalhar num balão», disse. Apontei para a lona com a bengala. «Presumo que o vás pôr a voar.»

            Abanou a cabeça. «Por agora, duvido. Mas não gosto de ver coisas por arrumar.»

            Limpou o suor da testa com as costas da mão e tirou a espingarda do ombro; pousou-a no chão; depois ergueu-se e levou as mãos à cintura.

            «Tens novidades para mim?»

            «Novidades?»

            «Sabes bem. Uma confissão». Esboçou um sorriso zombeteiro. «Suponho que não; teria sido demasiado rápido. Um criminoso oferece sempre resistência.»

            «Estás determinado a vencer essa resistência?»

            Bosco foi buscar um pano velho dentro de um balde, à entrada da cabana, e começou a limpar as mãos. Alípio continuava a escrutinar minuciosamente o envelope.

            «Estou simplesmente à espera. Tal como vos disse que estaria. Há parasitas que demoram mais tempo a sair do lugar. Estão confortáveis na humidade de um canto escuro ou nos intestinos de um hospedeiro. Vão apodrecendo lentamente tudo em seu redor. Outros demoram menos.» Ergueu as mãos num gesto complacente. «Há tempo para os dois casos. É, uma vez mais, uma questão de esperar.»

            «Dificilmente se poderia chamar 'esperar' ao que tens feito», afirmei, num assomo de coragem. A presença de Alípio, por alguma razão, fazia-me sentir mais seguro.

            «Porquê?»

            Bosco aproximou-se.

            «Houve um carro que passou por aqui a noite passada. Um carro, aliás, que tu devias conhecer bem, pois pertencia ao Don Metzger.»

Bosco cruzou os braços; estava suficientemente próximo para lhe conseguir ver o branco dos olhos, raiado de vermelho, e a profundidade das olheiras - como se não dormisse há muitas noites.

            «Que é que estás a insinuar?»

            «Quem conduzia esse carro era o John McGill. O inglês que ontem de madrugada impediu que o corpo de Metzger fosse parar ao fundo do lago.» Houve uma centelha de reconhecimento na expressão de Bosco, mas logo se esfumou. «O McGill - na verdade, o seu cadáver - foi encontrado esta manhã no princípio da estrada que conduz da casa ao bosque.»

            Bosco observava-me com grande concentração.

            «Lamento», disse.

            «Como é que supões que ele foi ali parar?»

            Bosco encolheu os ombros.

«Há muita coisa neste bosque que desconhecemos. Animais selvagens. Assassinos à solta. Nunca se sabe.»

            «Não há um único animal neste bosque que se meta no caminho de um carro. E, se existem assassinos, haverá outra maneira de os descobrir que não imitá-los.»

            O catalão pareceu confuso; depois zombou.

            «Tenho alguma dificuldade em seguir-te.»

            «Estou a dizer que o McGill foi ali deixado como um aviso.»

            «Um aviso?»

            «Sim. Uma maneira de nos avisar de que não vale a pena tentarmos fugir.»

            «Estás a insinuar que eu o matei?», perguntou Bosco, que tornou a aproximar-se, o seu corpo sólido e ameaçador ensombrando o meu; Alípio parou o que estivera a fazer e olhava-nos.

            «Estou a dizer que pouco me interessa se o que aconteceu ao McGill foi puro homicídio, se foi em legítima defesa. Se me disseres que ele te atacou eu acredito em ti; se me disseres que houve uma luta e que, para salvares a tua vida, tiveste de tirar a dele, também acredito. O que não acredito é que sejas cruel - propositadamente cruel, para ser mais preciso. Que deixasses aquele corpo ali com outro propósito que não o de mostrar até onde poderás ir para fazer justiça.»

            Bosco franziu o sobrolho.

            «Essa tua teoria vai a algum lado?»

«Venho dizer-te que a estratégia não deu resultado. Ou melhor, teve o resultado inverso: a confissão por que esperavas, nenhum deles ta irá dar agora que viram o que lhes pode acontecer.»

Bosco ficou parado durante um momento e depois voltou-me as costas e caminhou na direcção da espingarda. Pegou nela e tornou a colocá-la ao ombro.

            «Uma vez que, aparentemente, falas por todos, qual é a tua sugestão?»

            «Eu não falo por todos. Isso é uma declaração absurda.»

            «Foste tu quem veio ter comigo.»

            «Vim tentar arranjar uma solução para este problema.»

            Bosco bufou.

            «Vamos assumir, por agora, que falas por todos. Qual é a vossa proposta?»

            Tínhamos chegado ao âmago da questão: nada me ocorrera a caminho da clareira. Sabia simplesmente que era necessário negociar; compreendia agora que nada tinha para oferecer em troca. O que teríamos nós para oferecer a um homem como Bosco? Disse a primeira coisa que me ocorreu para ganhar tempo:

            «Uma vez que não vai existir uma confissão, que tal várias confissões?»

            As palmas das minhas mãos começavam a suar; ele pareceu intrigado.

            «Como assim?»

            «Se cada uma das pessoas naquela casa contar tudo o que viu e que sabe sobre aquela noite, talvez consigamos chegar a uma conclusão. Sobre o culpado da morte do Metzger.» Bosco pareceu confuso durante um momento. «Depoimentos», acrescentei. «Uma colecção de depoimentos com que reconstruir os acontecimentos daquela noite.»

            «Depoimentos?»

            «Sim. Como fazem na Polícia quando ocorre um crime: chamam os suspeitos à esquadra e eles prestam declarações. Ou depoimentos. Como lhes queiras chamar.»

            «Continua.»

            Tornei a improvisar:

            «Vamos escrevê-los. Cada um de nós irá sentar-se e escrever o seu testemunho. Depois eu irei reuni-los, trazê-los aqui e tu, depois de os leres, tomas uma decisão.»

            Bosco demorou uns momentos a reagir; depois assentiu com a cabeça em sinal de aprovação.

            «Muito bem. Faremos então isso.»

            Fiquei estupefacto com a aceitação; era um plano completamente descabido mas o catalão parecia ter ficado agradavelmente surpreendido. Por alguma razão eu julgara que, quando chegasse o momento, teria capacidade para o convencer a desistir daquela empreitada apocalíptica - que, na hora da verdade, quando o confrontasse com a morte de McGill, o louco abandonaria a sua loucura e procuraria a expiação libertando-nos do Bom Inverno. Agora oferecera a um louco a pior de todas as possibilidades -um novo jogo, conspiratório e paranóico, que acabaria por validar irracionalmente a sua derradeira decisão.

            «De quanto tempo precisas para recolher esses depoimentos?»

            Vieram-me à cabeça números absurdos: um ano ou dois, apeteceu-me dizer.

            «Não sei. Uns dias. Depende.»

            «Depende do quê?»

            «Primeiro tenho de os convencer. Depois há que esperar por que cada um se sente e cumpra o prometido. Sabes que este é um grupo volátil.»

            «Muito volátil», confirmou Bosco.

            Finquei os dedos com força no cabo da bengala. Não era capaz de parar; ainda que a minha cabeça me mandasse calar, ainda que a razão me dissesse parar fechar a boca, ia continuar a derramar baboseiras.

            «Precisamente», concordei. «Irá levar o seu tempo. A ideia tem primeiro de assentar para, depois, a verdade vir ao de cima.»

            Bosco sorriu, meio zombeteiro.

            «Traz a verdade ao de cima, então.»

            Deu meia-volta e dirigiu-se para a cabana. Agradeceu a ajuda de Alípio e disse que me esperava em breve. A espingarda, aos seus ombros poderosos, parecia um brinquedo.

            «Espera», disse-lhe, num assomo tardio de sensatez. «Há mais uma coisa.»

            Bosco voltou-se.

            «O quê?»

            Apontei para o italiano.

            «A mulher do Alípio está doente.»

            Alípio olhou-me com curiosidade ao escutar o seu nome.

            «O que é que aconteceu à Susanna?»

            «Susanna?», repetiu Alípio.

            «Foi de repente. Não sabemos o que é, mas pode ser grave. Tem uma febre muito alta desde ontem e sente-se muito fraca. Pode ser qualquer coisa passageira mas também pode ser alguma coisa séria. Nenhum de nós é médico e, na idade dela, uma coisa destas pode ser fatal. Precisa de ir ao hospital.»

            Bosco hesitou um instante e depois perguntou a Alípio:

            «Tua moglie è ammalata?»

            Alípio demorou um segundo a assimilar a pergunta; o meu estômago contraiu-se num espasmo involuntário. Se me desmentisse acabava-se tudo e era impossível dizer o que Bosco faria em seguida - provavelmente, eu já não regressaria à propriedade de Metzger para contar a história. Procurei o olhar do homem e tentei oferecer-lhe um sinal, mas não foi necessário: Alípio concordou com um aceno de cabeça e confirmou a minha mentira. O catalão levou a mão direita à nuca e esfregou-a com a palma da mão. Depois aproximou-se de Alípio, ajoelhou-se e conversaram baixinho em italiano; as palavras que trocaram perderam-se nos sons chilreantes do bosque. Em seguida, Bosco ergueu-se e disse que ia providenciar para que Susanna pudesse ser levada ao hospital mais próximo, embora apenas ela e Alípio tivessem permissão para deixar o bosque; mesmo sem o ter dito, era evidente que, para ele, o ajudante e a mulher estavam isentos de qualquer suspeita no que dizia respeito à morte do patrão. Concordei de imediato e, tendo fechado as negociações, regressámos pelo mesmo caminho que nos levara à clareira.

            Nessa mesma tarde, reuni os presentes na sala e expliquei que Bosco deixaria Alípio e Susanna partirem. Expliquei o ardil da doença e pedi a Vincenzo que traduzisse as minhas palavras em italiano para que a empregada de Don Metzger ficasse a par do que tinha sido combinado e do que se esperava dela. Não iria ser difícil fazê-la passar por doente; Susanna andava pálida dos horrores dos últimos dias. Alípio e a mulher conversaram com Vincenzo e estabeleceram um plano: o homem iria buscar o Renault à clareira, regressaria para levar a mulher e partiria com o consentimento de Bosco. Assim que chegassem à estrada, iriam à esquadra de Polícia mais próxima e tentariam explicar a situação. Havia agora um corpo acabado de enterrar; existia uma morte possível de provar e que teria de ser investigada pelas autoridades.

            Roger estava sentado num dos sofás ao lado de Stella. Tinha uma garrafa de vinho na mão.

            «Isso é um delírio», disse com a voz rouca e embriagado. «O mais provável é nunca mais os vermos.»

            Pym, ao lado de Elsa, ficou subitamente agitado.

            «Que quer isso dizer?», perguntou. Uma vaga de pânico atravessava-lhe o rosto.

            «Quer dizer que o homem pode ser maluco mas não é estúpido. Estes dois», apontou para Susanna e Alípio, «são uns campónios e não vão mexer uma palha para nos ajudar.»

            Vincenzo pediu a Alípio e a Susanna que se preparassem para a viagem; os dois saíram da sala em direcção à cozinha, ele com o braço sobre o ombro dela. Olívia tinha-se sentado no degrau que conduzia à sala do aquário, o rosto anguloso, de perfil, fitando o bosque distante. Pelo vazio onde antes existira a parede de vidro entravam os raios de sol de uma tarde gloriosa.

            «Se calhar ele tem razão», disse Pym, agitando as pernas num movimento nervoso.

            «Tem calma», pediu-lhe Elsa.

            Tentou segurar-lhe a mão, mas Pym afastou-a e olhou para Roger, perguntando-lhe: «Acreditas mesmo nisso?»

            «Claro que acredito, princesa. Vão concordar com tudo o que lhes pedirmos e, assim que estiverem a cem metros da casa, já nos esqueceram.»

            Pym estava à beira das lágrimas e, agora, agitava descontroladamente as pernas; a sua voz tornara-se tão aguda como a de uma criança.

            «E se os convencermos?», suplicou Pym. «Podemos dar-lhes dinheiro. Eu tenho algum dinheiro. A Elsa também.»

            Olhou em redor da sala. Nina, que se encontrava de pé, de braços cruzados e olhos postos no chão, parecia ausente da conversa; via-se-lhe nas maçãs-do-rosto que chorara muito durante o dia. Vincenzo, sentado no chão, contemplava o tecto, derrotado. Sentado numa cadeira, com a bengala em cima dos joelhos, eu procurava aceitar a fragilidade do meu plano.

            Pym meteu a cabeça entre as mãos e disse, num tom desesperado:

            «O que é que se passa com vocês? Precisamos de ajuda ou vamos todos morrer. Como o pobre coitado que morreu ontem, como o pobre coitado que morreu no dia anterior.»

            Houve silêncio; depois Roger adiantou:

            «Ao menos há comida e bebida.»

            Pym, que já tinha lágrimas no rosto, afundou-se no sofá.

            «Por acaso nem isso é inteiramente certo», disse Nina. A voz saiu-lhe fraca mas decidida. «A bebida até pode durar - sabe-se lá quantas garrafas há naquela cozinha - mas, no que respeita à comida, estamos seriamente limitados.»

            «O frigorífico e a despensa estão quase cheios», disse Stellai*

            «Estão cheios de coisas perecíveis», insistiu Nina. «Já reparei no que temos: ovos, legumes, iogurtes, leite, algum peixe. Existem vários pacotes de massa, é certo, mas continuamos a ser oito pessoas. E já não estou a contar com a Susanna e o Alípio. Oito pessoas. Quanto tempo vos parece que aguentamos a comer massa? Massa ao pequeno-almoço, massa ao almoço, massa ao jantar?»

            Stella olhou em volta como se procurasse uma resposta. Elsa continuava a consolar um inconsolável Pym. Depois Stella perguntou:

            «Não sei. Quanto tempo vamos ter de ficar aqui?»

            A pergunta ficou no ar. Vincenzo olhou-me; eu olhei para Nina; Nina encolheu os ombros. Roger riu-se.

            «Para o resto da vida», respondeu Roger. «O que vale é que a vida parece que vai ser relativamente curta.»

            «E se esperássemos?», sugeri. «Não sabemos o que vai acontecer com o Alípio e a Susanna.»

            «Sei-o perfeitamente», tornou Roger.

            «Muito bem», repliquei, encarando Roger. «Se sabes assim tanto, oferece-nos uma solução melhor. Oferece-nos uma saída. Estamos à espera.»

            Roger fez um esgar contrariado; depois sentiu os olhares todos sobre si, encolheu os ombros e resmungou:

            «Estou só a ser realista.»

            «Então reza para que o teu realismo não seja real», disse-lhe, levantando-me da cadeira. «Ou vamos passar uma longa temporada no inferno e é melhor aprenderes a pescar. Ou a caçar, já agora.»

            «Está decidido», rematou Vincenzo. «Vamos esperar e ver o que acontece.»

            Alípio voltou com o Renault ao princípio da noite e, do interior da casa,Nina e Vincenzo acompanharam Susanna até ao carro como se esta estivesse demasiado fraca para se deslocar sozinha. Nina segurava-lhe na mão e Vincenzo fingiu ajudar a suster o tronco da mulher passando-lhe um braço pela cintura. Susanna cumpriu o seu papel com diligência, soltando uns gemidos de dor que, ouvidos de muito perto, facilmente se revelariam falsos. Mas o nosso inimigo não estava perto; estava no interior do bosque e, para o efeito pretendido, o teatro servia perfeitamente. Para além disso, o mais provável era que Bosco nos estivesse a vigiar - tanto quanto sabíamos, podia ter um par de binóculos ou usar a mira da sua espingarda. Depois Vincenzo regressou à cozinha para vir buscar uma mala vazia, voltou ao carro e enfiou a mala no assento traseiro. Alípio e Susanna partiram quando o céu já se enchera de estrelas e a Lua começava a debruçar-se sobre a superfície perfeita do lago.

 

            As flores sobre a campa de McGill murcharam ao fim de alguns dias e, na ausência de Susanna, ninguém mais se deu ao trabalho de as mudar. O corpo foi entregue à terra, aos bichos que se ocupavam da podridão do mundo, e rapidamente a existência do inglês pareceu ser esquecida. Havia, por um lado, uma nova esperança entre nós e, por outro, uma sensação de angústia presente em cada silêncio, em cada sopro de vento, em cada agitar das águas plácidas, uma angústia que nascia do indizível: era impossível voltar atrás. Houvesse ou não um assassino entre nós, a possibilidade de redenção ficara afastada a partir do momento em que permitíramos que o corpo de Don Metzger fosse enviado aos céus no balão de Bosco, perdendo-se, se assim os ventos quisessem, nas profundezas do Mediterrâneo - a partir do momento em que, ao nada fazermos, pactuámos com aquele macabro funeral. E, no entanto, havia esperança - a esperança dos desesperados, a esperança sem redenção; a esperança de que a partida de Alípio e Susana pudesse, de alguma maneira, fazer a realidade regredir aos seus contornos mundanos e nos libertasse daquela prisão, nos resgatasse àquele cerco, nos permitisse, a cada um, partir numa direcção diferente e tentar, na medida do possível, continuar a viver. Era impossível voltar atrás; e, contudo, teríamos dado tudo para voltar atrás ou então para seguir em frente, esquecidos, sem memória, como fantasmas.

            A casa transformou-se, durante esses dias, num lugar de espera habitado por sombras. Resolvi adiar a conversa sobre os depoimentos para o caso de Alípio e Susanna desaparecerem sem deixar rasto, tal como Roger previra; ainda que fosse a hipótese mais viável, era difícil aceitá-la sem, ao menos, dar aos caseiros de Don Metzger o benefício da dúvida. Para além disso, seria mais fácil convencer os restantes a colaborar nesse plano caso as circunstâncias se tornassem mais taciturnas. Não era sequer um plano; era apenas uma maneira de adiar a sentença. O resto, concluí, não era problema meu. Um homem tenta encontrar uma solução; os resultados ficam aquém das expectativas; poder-se-á culpá-lo por ter tentado? Era muito mais do que aquilo que Roger fizera; fosse como fosse, que sabia Roger? Que sabia, aliás, qualquer um dos outros que ali se encontravam? Bosco dissera que eu falava por todos; embora a frase me tivesse, na altura, deixado atordoado, com o passar do tempo comecei a entendê-la como um voto de confiança e muitas vezes me ocorreu um pensamento que cedo se transformou numa convicção: a de que o meu corpo tinha ficado debilitado para que a minha atenção se concentrasse em encontrar a solução para um determinado problema. O problema tinha-se apresentado e, menos inclinado a reagir de forma emocional ou intempestiva - coisa mais provável num homem com pleno uso das suas faculdades motoras -, havia em mim a confiança de que, utilizando as regras mais elementares do bom senso e nunca deixando que a pulsão primária pela sobrevivência se adiantasse, era possível encontrar uma resposta.

            O Verão instalou-se na sua grandeza e também na sua miséria. A noção de que pouco havia a fazer naquele momento infundiu as almas de uma estranha apatia e, ao mesmo tempo, de uma urgência em regressar ao quotidiano - ou, pelo menos, a um simulacro do quotidiano. Vincenzo e Nina começaram a dormir no mesmo quarto (o primeiro do lado esquerdo, que tinha uma cama de casal e uma clarabóia no tecto) e, à noite, se uma pessoa se pusesse à escuta, conseguia ouvir os suaves gemidos de Nina do corredor. Era impossível saber, porém, se eram gemidos de prazer ou de uma dor profunda; era impossível saber porque dormiam juntos, se por amor, se por desencanto. Pela manhã, os dois despertavam e faziam o pequeno-almoço - ovos estrelados ou mexidos, o aroma do azeite quente invadindo os espaços mais recônditos da casa - e partilhavam-no com quem quer que se encontrasse por ali; algumas vezes tomavam-no sozinhos, em silêncio, como um casal de longa data que nada mais tivesse a partilhar - e os seus silêncios eram longos, melancólicos e pesados.

            Roger e Stella mantinham-se alheados e curiosamente despreocupados. Ele convencera-se da morte iminente e ela concordara por osmose; era, assim, fundamental aproveitar aqueles últimos dias ao máximo. Isto resultou em sessões intensas de consumo de álcool, sexo estridente e banhos de sol no pontão do lago. A luz reinava sem desafio e Roger, de câmara em punho, filmava Stella constantemente; ela agradecia a atenção com sorrisos, parvoíces e poses para a lente. Pareciam estupidamente adaptados à situação.

            Pym, pelo contrário, transformara-se num enorme problema. Elsa passou grande parte desses dias ao seu lado, assegurando-se de que ele não resvalava da beira do precipício em que se encontrava, mas Pym recusava-se a aceitar que as coisas eram como eram. Não se tratava sequer de estar revoltado moralmente - ou em qualquer outro sentido espiritual - contra o cativeiro imposto por Bosco; não se tratava sequer de obstar ao facto de termos depositado em Alípio e Susanna a esperança de uma salvação; tratava-se do facto de Pym ser, pura e simplesmente, demasiado frágil para viver uma situação como aquela. Por vezes chorava durante a noite e os seus lamentos atravessavam a casa como se um animal ferido habitasse o quarto que fora de Don Metzger; noutras, sentava-se debaixo da árvore, à sombra, as pernas dobradas e a cabeça enterrada nos joelhos, e ali passava as horas, mexendo-se apenas para enrolar a sua marijuana e depois ficar submerso numa nuvem de fumo que o remetia a um sono profundo. Quando se encontrava dentro da casa, Elsa fazia-lhe companhia no grande sofá da sala. Pym deitava a cabeça no seu colo e ela afagava-lhe o cabelo seco e espigado, murmurando-lhe palavras de conforto que pareciam não produzir qualquer efeito na sua vontade: Pym encontrava-se já muito para além dessa vontade, como se um vírus tão destrutivo quanto silencioso o houvesse invadido e o conduzisse, pouco a pouco, a um desespero sem remissão.

            Quanto a mim - não vou mentir - esses foram os melhores dias. Caíra sobre a casa de Sabaudia uma tranquilidade que servia como um bálsamo que apaziguava as feridas recentes. Pensei, nessa altura, que o homem era uma coisa fácil de contentar: dêem-lhe sol, ponham-lhe comida na mesa, satisfaçam-lhe o desejo, e ele esquecerá que meteu um cadáver num balão de ar quente e que, no dia seguinte, enterrou um segundo cadáver no jardim. É certo que a espera fazia agora parte do nosso plano; mas também é certo que, se tivesse havido entre nós a urgência da verdade, a ninguém teria sido permitido usufruir do Bom Inverno depois do que acontecera. Havia tanto por explicar; existiam tantas incógnitas. A nenhum de nós cabia encetar uma investigação e, portanto, qualquer um o podia ter feito; qualquer de nós podia ter exigido que Nina expusesse aquilo que recusara revelar a Bosco sobre a noite em que Don morrera, ou ter questionado a natureza da sua relação com Vincenzo, com quem agora dormia, numa atitude cruel que escarrava na face dos mortos; qualquer um de nós podia ter interrogado Olívia pedindo explicações para o seu comportamento soturno e indecifrável; qualquer um de nós podia, mas ninguém pareceu importar-se.

            Durante esses dias Olívia esteve quase sempre fechada no quarto, descendo ocasionalmente para se alimentar ou dar um breve passeio pelo jardim. A presença de Nina e Vincenzo - que, agora, estavam sempre juntos - não parecia incomodá-la; parecia, aliás, nem os reconhecer quando, muito raramente, se cruzavam numa divisão qualquer da casa. Durante as horas de sono nada se ouvia atrás da porta do seu quarto; durante as horas de vigília, trocava as palavras necessárias ao normal funcionamento do quotidiano. Passava por nós como um espírito e, sempre que o fazia, um calafrio percorria-me a espinha.

            As noites eram bem-vindas. O calor diminuía e uma brisa amena atravessava o bosque e circulava o lago, levantando os aromas doces da terra. Havia sempre alguém que sugeria a hora de jantar, como se cada noite não fosse uma monótona repetição da anterior.

            «Podíamos jantar», dizia alguém.

            Era Vincenzo quem cozinhava grandes tachos de spaghettí mergulhado em água a ferver e fazia um molho de tomate com alho e orégãos. Cada um comia como lhe aprouvesse, sozinho ou na companhia da pessoa mais próxima. Pym habitualmente recusava o jantar e eu comia com Elsa à mesa da cozinha, onde, para passar o tempo, falávamos sobretudo de cinema: discutíamos os méritos do cinema europeu e do cinema americano e, quando o tédio era maior, escolhíamos uma letra do alfabeto e discutíamos todos os filmes de que nos conseguíamos lembrar começados por essa letra; discutíamo-los até estarmos fartos e, depois, avançávamos para a letra seguinte e repetíamos o processo.

            Nina e Vincenzo costumavam levar os pratos lá para fora e comiam sentados na relva junto ao lago, banhados pela lua; a seguir fumavam cigarros enquanto olhavam as estrelas e eram mordidos pelas melgas. Roger e Stella, que passavam o dia no pontão a apanhar sol, resignados ao cativeiro e à morte vindoura, ficavam na sala a beber vinho pela garrafa e, quando já estavam bêbedos, riam muito alto e falavam sobretudo de sexo, entre sussurros e apalpões; depois Roger adormecia embriagado e Stella passava algum tempo a tentar acordá-lo e a convencê-lo a subir para o quarto. Por volta das onze da noite, Olívia descia para comer o que restasse do jantar e, nessa altura, Elsa despedia-se e ia para o quarto fazer companhia a Pym; confessara-me recentemente que Olívia lhe deixava os nervos em franja e, para ser sincero, era fácil compreender porquê: embora fosse bonita, Olívia andava pela casa vestida com um pijama branco que lhe acentuava a palidez e o louro deslavado do cabelo; o rosto sem expressão, como o de um sonâmbulo, conferia-lhe a aparência de um

cadáver. Por vezes lembrava-me a Eleonora de Edgar Allan Poe, e imaginava-a doente, vagueando por entre flamingos de plumas escarlates e árvores em forma de serpentes num vale de morte.

            No meu quarto, por vezes, era difícil adormecer; a expectativa mantinha-me desperto. Mas de alguma maneira sabia que, se permanecesse acordado, nada aconteceria. Embalado pelo ruído próximo do vento e pela necessidade de repouso, acabava por entrar num sonho tépido do qual sabia que me despertariam nas horas anónimas da madrugada. Por vezes nem sequer ouvia a porta abrir-se. Quando, estremunhado, abria os olhos e tentava adivinhar a escuridão, já o corpo ali estava, aos pés da cama. A voz doce e terna dizia:

            «Chhh.»

            O ritual começava. Por vezes era apenas uma mão que, desenvolta, me encontrava o sexo e o massajava, devagar, a outra mão gentilmente pousada sobre a minha perna doente; nesses momentos apenas a minha respiração pesada e o restolhar dos lençóis interrompiam o silêncio; de outras vezes a criatura entregava-se e executava, com a destreza de um atirador furtivo, os movimentos da boca e da língua que descrevi algures e tudo terminava com maior rapidez mas também com a sensação de uma derrocada — de uma explosão e de uma derrocada — e havia um gemido como o de um animal com fome e eu cravava a ponta dos meus dedos nos lençóis no terno conforto de já saber o final de uma história. Eu preferia esta segunda forma de prazer, embora ela me suscitasse maior melancolia; talvez porque uma boca é diferente de uma mão, talvez porque implica um compromisso maior e também um desgosto maior se, um dia, a virmos desaparecer para sempre da nossa vida. Por isso gostava de ter prazer naquela boca sem saber na boca de quem tinha prazer. Por vezes ocorreu-me, e se fosse um homem? Mas não podia ser. Um homem não teria aquele perfume levemente fundido com uma película de suor que se retira com a ponta dos dedos; um homem não teria aquela destreza de um atirador furtivo. A porta tornava a abrir-se na escuridão e depois tornava a fechar-se, e eu, novamente sozinho, pensava: se ela viesse mais tarde, se houvesse luz no horizonte, se a madrugada desse lugar à manhã, se as cortinas se abrissem como num passe de mágica, então poderia ver-lhe o rosto, descobri-la, decifrar este enigma. E, de repente, já estava a dormir outra vez.

 

            Ao final de uma semana, era como se estivéssemos de férias. Bosco mantinha-se oculto do seu lado do bosque e aguardava pelos depoimentos; do nosso lado, a rotina instalara-se como todas as rotinas se instalam - pela calada, sorrateira, apoderando-se dos dias antes de os dias darem pela sua chegada. O Sol ocupou a sua abençoada posição no céu - também ele cumprindo a sua rotina - e iluminou os dias de Sabaudia. Era fácil viver assim: se não fosse a ameaça latente escondida no meio das árvores, não me teria desagradado permanecer naquele lugar durante muito tempo. À noite, um corpo secreto vinha ter comigo e, durante o dia, pouco mais havia a fazer do que ir esquecendo as vicissitudes do mundo exterior ao bosque, as vicissitudes da realidade; realidade que, afinal, sempre se provara uma má companheira. Em certa medida, era Pym (apesar de toda a sua fraqueza e ingenuidade) que representava o apelo choramingas a essa realidade -ou a uma saída daquilo que ele julgava um pesadelo e que, para os outros, começava a assumir os contornos de um sonho. Pym estava acometido daquela pulsão primária pela sobrevivência que já descrevi e, nessa medida, parecia-me um ser irracional no qual não se podia depositar qualquer confiança; fomos ignorando os seus queixumes até ser tarde de mais.

            Numa tarde muito quente, cinco ou seis dias depois do meu encontro com o catalão no bosque, adormeci sobre a relva à sombra da árvore junto do lago e, quando acordei, a sombra movera-se, deixando-me a cabeça ao sol. Pym encontrava-se próximo, deitado, de olhos fechados; Nina e Vincenzo estavam sentados em cadeiras de praia sobre o pontão, atirando cartas de jogar para dentro de um cesto com um golpe de dedos; as cartas iam-se espalhando pelas tábuas de madeira. Despertei estremunhado e suado, peguei na bengala e, com a perna a latejar do esforço, subi ao primeiro andar onde pensava deitar-me na cama durante o resto da tarde. No corredor ouvi os gemidos de Stella; ouvi também o som de uma canção, e decidi segui-lo. Avancei na direcção da parede de vidro que enfrentava o bosque e, dobrando o corredor, encontrei a porta do quarto de Don Metzger entreaberta. Bati à porta com os nós dos dedos.

            «Sim?»

            Era a voz de Elsa. Entrei. Havia um disco a tocar no gira-discos e a voz melodiosa de uma cantora de blues vagueava pelas notas de um piano. Elsa estava sentada na cama e segurava entre as mãos um objecto dourado; era o Oscar de Don Metzger.

            «Encontrei-o no chão do quarto», disse, em tom melancólico, sem tirar os olhos da estatueta.

            «Devia estar farto do anonimato do armário.»

            «É tão triste, não é?», perguntou.

            Sentei-me na cama ao seu lado.

            «É um extraterrestre dourado. Não tem olhos nem expressão facial. Não chega a ser triste.»

            «É tão triste que ele tenha recebido esta coisa e a guardasse ali dentro.» Ela própria parecia triste; o cabelo despenteado escondia-lhe parte do rosto. «Como se pouco ou nada lhe interessasse», continuou, pesando o objecto na mão. «Como se esta coisa que toda a gente ambiciona não tivesse qualquer valor.»

            «Triste porquê? Julgava que era isso o que mais gostavas no Don Metzger. O desprendimento.»

            «Mas, na morte, o desprendimento transforma-se numa coisa triste. O Don partiu incógnito. Tal como esta estatueta que não tem olhos nem expressão, que vai ganhar pó dentro de um armário e nunca mais ninguém saberá dela. Vai acontecer-lhe precisamente o mesmo: não passará de um nome numa base de dados; nada ficará da sua vida. Será mais um caso curioso de um excêntrico desaparecido em circunstâncias bizarras que, um dia, até chegou a ganhar um Oscar que nem se dignou ir receber.»

            Ficámos em silêncio durante um momento. O disco parou de tocar e a agulha, tendo chegado ao final, levantou-se sozinha e cumpriu o seu movimento de regresso. Elsa encostou a cabeça ao meu peito; o seu cabelo roçou na minha barba descomposta. Fechei os olhos e senti-lhe o perfume. Seria o mesmo? A sensação era outra; mas quem podia estar certo de alguma coisa no silêncio estonteante da noite?

            «O importante é que tu o recordes», disse-lhe. «Somos nós que mantemos vivos os mortos.»

            «E recordo-o. Uma vez, sabes, o Don salvou-me de ser violada.»

            Não esperava aquilo e fiquei sem resposta.

            Elsa continuou. «Só para veres o quanto ele era diferente dos idiotas que andam por este mundo. Nunca contei isto a ninguém. Mas agora que chegámos aonde chegámos parece-me que te devo contar isto, uma vez que nenhum de nós sabe se alguma vez chegará a sair daqui.»

            A janela estava aberta, e um pássaro, pequeno e castanho, pousou no beiral, vasculhando a superfície com o bico em movimentos rápidos. Elsa desencostou a cabeça do meu peito e, com a ponta dos dedos, afastou o cabelo do rosto. Depois pousou a estatueta na cama e acendeu um cigarro.

            «Foi durante a rodagem do meu primeiro filme, o do Klaus Kasper. Aquele baseado no romance do Knut Hamsun. Estávamos a filmar na República Checa e havia uma cena nocturna de interiores na qual o protagonista dorme numa cela da Polícia. Eu nem sequer entrava nessa parte, mas o Kasper fazia questão de que todos os actores estivessem presentes em todas as cenas. Isto implicava custos acrescentados e uma logística infernal, como deves imaginar. O Kasper era maníaco e o Don sabia-o, por isso também fazia questão de estar presente sempre que podia. Estaria a mentir se te dissesse que ignorava no que me estava a meter; já tinha ouvido falar das coisas que o Kasper fazia aos actores. Despedia-os a meio das filmagens, torturava-os com horas de espera, chegou a andar à pancada com uns quantos; enfim. Mas nunca imaginei que ele também fosse perverso.»

            Elsa fez uma pausa para fumar.

            «Pelo menos não imaginava que pudesse ser perverso comigo. Quero dizer, o Kasper nasceu na RDA. Ele sabe, tal como eu, o que é crescer pobre num lugar que nos oprime e nos constrange ao silêncio. Nestes lugares não existem verdadeiras escolhas. Escolhes o teu pão, mas não escolhes a tua vida. O meu pai morreu pelas suas escolhas. Era contra o regime e não tinha medo de o dizer. Passou muito tempo nas prisões e depois morreu de desilusão. Adiante. Nessa noite em Praga, adormeci e fiquei no hotel. Devo ter faltado às filmagens porque alguém bateu à minha porta de madrugada. Era o Kasper. Entrou no meu quarto, furioso, e tentou obrigar-me a ter sexo com ele. E tudo aquilo em que eu conseguia pensar era no meu pai: no meu velho pai, que apodreceu de melancolia. Não te parece que é a mesma coisa? Meter um homem na prisão por discordar, ou violar uma rapariga? São duas maneiras de remeter alguém ao silêncio. Alguns violadores gostam de gritos e outros tapam a boca das vítimas; seja como for, é opressão. É silêncio.» Elsa apagou o cigarro. «Ainda hoje não sei porque é que aquilo aconteceu. Talvez a noite de filmagens tivesse corrido mal; talvez ele estivesse furioso comigo por não ter aparecido. Não te sei dizer. Procuramos sempre razões para o mal, não é?» Fez um compasso de espera. «A princípio tentei dar luta, mas o Kasper é um homem alto e eu sou uma mulher pequena. Às tantas devo ter desistido de lutar, porque a próxima coisa de que me recordo é de o Don Metzger já estar dentro do quarto a levantar o Kasper pelo pescoço. Eu estava meio despida e deitada na cama e o Don estava a levantar o Kasper do chão só com uma mão e a encostá-lo à parede. O alemão parecia um insecto; lutava para se libertar, mas era inútil. Fui eu quem pediu ao Don para o largar. Se não o fizesse, acho que ele o tinha matado ali mesmo. Pedi-lhe gentilmente, e o Don largou-o e deixou-o no chão a resfolegar como um cavalo abatido. Depois o Don disse-lhe para se pôr dali para fora. Disse-lhe que era a última vez que filmava na vida.»                                                                  

            «Foi a última vez?»

            «Não. O Kasper voltou a filmar com um produtor diferente, mas nunca mais fez nada que se visse.»

            «Que é o mesmo que nunca mais ter filmado.»

            «Precisamente.»

            <<Lamento que isso te tenha acontecido.»  

            «No fundo não chegou a acontecer.» Elsa sorriu. «Quero dizer, pelo menos com o Kasper»

            «Como assim?»                                                                

            «Nessa noite dormi com o Don. Uma vez sem exemplo.» Devo ter arregalado os olhos porque Elsa perguntou: «É difícil de imaginar, não é?»

            «Confesso que sim.»

            «Deixa-me que te diga que também foi difícil de concretizar. Um homem daquele tamanho e eu tão pequena. Quando ele estava em cima de mim pensei que ia desmaiar. Não conseguia mexer-me nem respirar, não conseguia sentir nada. Pedi-lhe para me deixar ficar por cima e ele concordou. Mas depois havia outra coisa.»

            «O quê?»

            «Ele gostava de ser sufocado.»

            «Sufocado?»

            «Pediu-me para lhe atar uma corda ao pescoço e a apertar com toda a força que tivesse.»

            «E tu fizeste-o?»

            Elsa olhou para o pássaro que continuava a bicar o beiral da janela.

            «Deu-lhe prazer.»

            «E a ti?»

            Abanou a cabeça em negação.                                                                    

            «Porque é que dormiste com ele, então?», perguntei.

            Elsa encolheu os ombros; era mórbido falar da vida íntima de um morto.

            «Porque lhe devia alguma coisa. Porque, se alguém te salva de uma coisa muito má, tu ficas em dívida. Ou não?»

            «Suponho que sim. Mas há várias maneiras de saldar uma dívida.»

            O pássaro castanho levantou voo subitamente e desapareceu de vista.

            «Naquela altura pareceu-me a maneira certa. Seja como for, nunca mais tornou a acontecer. Eu e o Don arrumámos o assunto nessa noite. A seguir voltámos ao normal, regressámos ao registo que sempre tivéramos. Que era o de uma relação quase de pai e filha. Também nunca falámos do assunto. Algumas pessoas referiam-se a mim como a filha adoptiva do Don e foi assim que me continuei a sentir.»

            «Foram muito próximos, então.»

            Elsa suspirou de tristeza.

            «Éramos. Mas o Don... Desde a primeira vez que o vi, sabes o que pensei? Pensei que aquele homem ia durar pouco. Não porque fosse um gigante de gordura; nem mesmo porque o médico já lhe tinha dito uma dúzia de vezes que estava à beira de um ataque cardíaco. Pensei-o porque havia uma tragédia incompleta nos seus olhos. Porque havia alguma coisa naquele rosto que anunciava uma desgraça. Alguma vez te deste conta disso? Que há pessoas que carregam a desgraça no rosto?»

            Ocorreu-me, quase sem saber porquê, o rosto de Vincenzo.

            «Talvez, no fundo, toda a gente leve a desgraça no rosto», respondi. «Só que alguns o sabem e outros nem por isso. O Bosco disse-me uma coisa parecida no outro dia, ou pelo menos assim entendi: que alguns de nós andam por aí com as marcas da sua finitude à mostra e que outros, embora pareçam não as ter, estão tão condenados como os primeiros.»

            «Bosco», repetiu Elsa. Depois abanou a cabeça. «Bosco e Don. Don e Bosco. O raio dos balões. Nunca fez qualquer sentido para mim.»

            «É uma obsessão como outra qualquer.»

            Julgo que tem a ver com a infância do Don na África do Sul. Ele nunca falou muito sobre o assunto, nunca quis explicar esse lado mais obscuro da sua cabeça. Mas disse-me que, quando tinha oito ou nove anos, os pais o levaram a dar um passeio de balão. Sabes o que dizem sobre andar de balão em África?» E o que é que dizem?»

            Que é uma experiência de tal maneira poderosa que pode mudar uma pessoa. Que as terras de África vistas do céu são demasiado belas para o olhar humano e, portanto, algumas pessoas ficam loucas. Literalmente loucas por serem incapazes de esquecer a experiência.»

            «O Don era louco?»

            De certa maneira, era. Só um louco pagava a outro louco para lhe construir balões e depois os mandar para o fundo das águas do Mediterrâneo. Mas o Don era um louco bondoso, ou coisa que o valha; isto, claro está, se houver loucos malvados e loucos bondosos, se a loucura não estiver para além destas coisas. Talvez o Don tivesse passado o resto da vida a tentar recuperar aquele sentimento que vivera na infância; aquele momento perfeito vivido dentro de um balão. Talvez o facto de saber que nunca tornaria a voar num - não com aquele peso, ele que não cabia em parte nenhuma, que tivera de ajustar todas as coisas na sua vida ao seu tamanho... Ele, que tinha de comprar dois lugares nos aviões e compartimentos inteiros nos comboios. Ele nunca mais se atreveria a meter-se num balão, mas precisava de os ver partir incessantemente.»

            «Daí a necessidade de ter o Bosco por aqui.»

            Elsa sorriu, mas logo abandonou o sorriso.

            «A história do Andrés Bosco é muito anterior a Sabaudia», explicou. «Eu nunca a compreendi completamente porque tudo o que fui ouvindo foram rumores por parte de amigos do Don - ou inimigos, se calhar era melhor chamar-lhes assim -, que disseram toda a espécie de maldades sobre a relação entre os dois.»

            «Que espécie de maldades?»

            «Tudo. Desde uma suposta relação homossexual a tramas elaboradas sobre a verdadeira actividade do Bosco, que, ouvi alguns dizerem, era um mercenário às ordens do Don em países do Médio Oriente.»

            «Mercenário? Mas porquê?»

            «Não sei. Pura especulação - algumas pessoas estão convencidas de que o Don usava o cinema como fachada para encobrir outros negócios mais lucrativos: tráfico de armas, transporte de droga, derrube de governos de pequenos países... Enfim, ouvi de tudo, até rumores sobre pedofilia. No meio disto tudo, a única ponta de fundamento era a ligação do Bosco ao Médio Oriente.»

            «Andou por lá?»

            <Durante muitos anos», disse Elsa. E, de súbito, a fotografia que estava dentro do armário, na qual Don aparecia ao lado de um tipo muito alto, muito jovem e muito sorridente, de cabelo louro desordenado, vestido como um soldado, naquilo que parecia ser um movimentado aeroporto, surgiu diante dos meus olhos. Aquele tipo era Bosco, havia muito tempo, numa cidade distante e num mundo ainda mais distante e, enquanto Elsa explicava as coisas que sabia, não consegui deixar de, na minha cabeça, tentar sobrepor as duas imagens - de um Bosco no princípio das coisas e de um Bosco no final delas, de um rapaz louro de sorriso inocente e de um homem careca de olhar assassino - e, de alguma maneira, pareciam não poder ser sobrepostas sem a inóspita sensação de uma trágica perda entre uma e a outra.

            «Foi por volta de 1980», continuou Elsa. «O Don e o Bosco eram estudantes em Barcelona, na Escola de Artes. Sim, o Don não foi sempre um tubarão do cinema; aos vinte anos queria ser artista e, com o pai a pagar-lhe os estudos na Europa e a avançar-lhe uma generosa mesada, era natural que isso atraísse tipos como o Bosco, que eram pobres que nem rafeiros. Desconheço, por outro lado, o que terá o Don visto no Bosco nesses tempos; nunca lhe perguntei. O que sei é que o Bosco ficou doente a certa altura.»

            «Um tumor cerebral», adiantei.

            Elsa olhou-me e franziu o sobrolho; depois acendeu outro cigarro. A tarde continuava do lado de fora da janela, o chilrear intermitente dos pássaros entrecortado pelo mergulhar dos corpos no lago.

            «Um tumor cerebral», repetiu ela, dando uma longa passa no cigarro. «E foi o Don quem lhe custeou as despesas. Da operação num hospital de primeira, da recuperação, dos tempos difíceis que se seguiram. Enfim, de tudo. Não me perguntes qual era a história do Bosco antes de o Don aparecer na vida dele; julgo que ninguém a sabe. Mas a verdade é que, se o Don acreditava numa pessoa - se julgava que essa pessoa estava, de alguma maneira, destinada à grandeza -, fazia todas estas coisas por ela sem nunca olhar para trás. O problema foi o que veio depois. O Don disse--me uma vez que, depois da doença, o Bosco nunca mais foi a mesma pessoa; ou, se quiseres, depois da operação que lhe salvou a vida. Disse-me que, subitamente, o homem desenvolveu uma segunda personalidade, que correu paralela à primeira durante algum tempo, revelando-se em episódios esporádicos para, mais tarde, tomar conta dele por completo.»

            «Uma espécie de esquizofrenia.»

            «Talvez», replicou Elsa. «O que importa é que esta segunda personalidade era conspirativa, paranóica e mitómana. Foram as palavras que o Don usou, se bem me recordo.» Fez uma pausa para fumar; pareceu esquecer-se do que dizia durante um momento e depois retomou: «De tal maneira que, quando o Bosco decidiu desistir da faculdade e juntar-se a um partido radical da Catalunha, Don não interferiu; como também não interferiu quando decidiu partir para o Afeganistão durante a invasão dos soviéticos - sem que nunca antes tivesse mostrado qualquer interesse por aquela guerra ou por qualquer outra. Deixou a Catalunha e, aparentemente, andou por lá durante algum tempo. Não me perguntes o que andou a fazer, não tenho ideia nenhuma. Sei que, nessa altura, estava convencido das ideias comunistas, mas sei que também andou imiscuído nos grupos rebeldes que lutavam contra o governo.»

            «Os muhajidin?»

            «Sim. Teve de andar clandestino e acabou por fugir para o Paquistão. Mais tarde foi viver para o Líbano, onde assistiu à invasão dos israelitas e ao bombardeamento de Beirute. Teve de fugir outra vez e acabou por se instalar na Turquia mas, mais tarde, aventurou-se novamente no Irão, no Iraque, em Israel... onde quer que houvesse um conflito. Aparentemente, o Don era a única pessoa que ele contactava com alguma regularidade, normalmente para pedir algum dinheiro, nunca demasiado, e sempre com uma justificação plausível, uma situação de desespero radical.»

            «E o Don acedia?»

            «Que eu saiba, sim.» Elsa apagou o cigarro. «No final de 1980 o Don já começara a produzir cinema e enriqueceu rapidamente; tinha dinheiro de sobra e um estatuto invejável na comunidade. Mudou-se para a Califórnia e, de repente, não teve notícias do Bosco durante uns anos, embora o tivesse informado da sua nova morada. É provável que o tenha dado por morto ou desaparecido; afinal, há um limite para a quantidade de sarilhos em que uma pessoa se pode meter. E, depois, em 1992 ou 1993, já não tenho a certeza, numa viagem de negócios a Barcelona, voltou a encontrá-lo por mero acaso.» Elsa sorriu com alguma saudade no olhar. «Lembro-me sempre desta história porque é muito parecida com a minha. O Don estava a descer as Ramblas uma tarde, algures perto do Bairro Gótico, onde costumava viver nos tempos de estudante, quando viu um homem enorme e careca, mal vestido, sentado num banco com um cartaz de papelão ao colo. O cartaz dizia: Jo visc aqui. Eu vivo aqui, em catalão. Primeiro o Don não o reconheceu, mas a frase intrigou-o: desde que aterrara em Barcelona que aquelas palavras lhe iam aparecendo à frente um pouco por toda a parte, na parede de um prédio, escritas na casa de banho de um bar, num cartaz colado a um poste de electricidade. Aproximou-se e começou a falar com o homem careca; ao fim de alguns momentos percebeu que estava a falar com o Andrés Bosco e este percebeu que aquele era o Don Metzger; o primeiro perdera o cabelo loiro e a inocência e o segundo engordara trinta quilos e usava um fato italiano. Ambos estavam irreconhecíveis.»

            «Deve ter sido um encontro memorável.»

            Elsa encolheu os ombros. «Foi o encontro que foi: dois amigos que não se vêem há tanto tempo que já nem se reconhecem.

            Embora tudo esteja diferente, no fundo tudo permanece igual -um é rico, o outro é pobre.»

            «O que é que aconteceu então?»

            «Aquilo que eu nunca compreendi: o Don tirou-o da rua e trouxe-o para Itália. Ao que consta, o Bosco regressara do Médio Oriente no princípio dos anos noventa e começara a viver, primeiro em casas ocupadas, mais tarde onde quer que o deixassem dormir. Vivia nos parques públicos e em bancos das Ramblas e iniciara o seu próprio movimento de apropriação dos espaços: Jo visc aqui, uma coisa que aparentemente andou na berra durante uns tempos, tão na berra que já nem a Polícia o incomodava. Uma vez mais, o Don deve ter visto alguma coisa nele que mais ninguém foi capaz de ver - ou, então, sentiu pena do pobre diabo, vá-se lá saber - e convenceu-o a mudar-se para Sabaudia. Deve ter-lhe prometido espaço de sobra para o catalão se apropriar dele, ou coisa que o valha.»

            Elsa caiu em silêncio; lá fora, a tarde começava a esmorecer.

            «E desde então vive aqui.»

            «E desde então vive aqui e constrói balões para o Don.»

            Ficámos calados durante um longo minuto a escutar os sons do Verão, da tarde que terminava. Depois perguntei:

            «Por que é que mentiste a respeito da Nina?»

            «Menti como?»

            «Quando o Bosco lhe perguntou sobre a noite do homicídio, tu disseste que a Nina tinha passado a noite contigo.»

            Elsa olhou-me com curiosidade.

            «Como é que sabes que é mentira?»

            Encolhi os ombros.

            «Sei, simplesmente. Vi nos olhos dela que estava a esconder alguma coisa. Não sei o quê, mas também sei que preferiu ficar em silêncio a mentir. Foi isso que ela fez com o Bosco: recusou-se a responder para não ter de mentir.»

            «Ao contrário de mim», disse Elsa, sorrindo.

            «Tu és actriz. Pagam-te para mentires.»

            «A ti pagam-te para fazeres perguntas?»

            «É preciso haver algum sentido nisto tudo. Como tu dizias há bocado: é preciso encontrar razões para o mal.»

            «Eu não disse que era preciso encontrar razões, limitei-me a dizer que as procuramos. E se as razões não existirem e o mal for arbitrário?»

            «Então vale a pena desistirmos e matarmo-nos antes que o Bosco o faça.»

            Elsa fez uma pausa.

            «Estou a ver», disse ela.

            «Ainda não me respondeste.»

            «Não?»

            «Porque é que mentiste?»

            Elsa desviou o olhar para o azul que entrava pela janela.

            «Porque nessa noite a Nina fez coisas de que certamente não se orgulha. O McGill estava ali e eu senti que tinha de lhe oferecer uma saída.»

            «Que género de coisas?»

            Elsa olhou para os pés descalços que balançavam da beira da cama.                                                                                      

            «Escuta», pediu, num tom doce. «Tens de compreender que não é possível saber tudo. Existem certos momentos que, se não os vivermos, são impossíveis de resgatar através dos outros.» Fez um compasso de espera e olhou para a estatueta dourada deitada na cama. «É complicado falar dessa noite, sobretudo depois da chegada do Don. Assumiu os contornos de um sonho demasiado pesado; quem sabe um pesadelo. Houve muito álcool e as coisas tornaram-se difusas. O Vincenzo tinha uns comprimidos e convenceu-me a tomar um. Perdi a noção do tempo e do espaço. Há longos períodos de tempo de que me esqueci. Prefiro pensar nessa noite como um fragmento da minha imaginação, e não como uma coisa real.»

            «Que comprimidos eram esses?»

            «Não sei. Eu estava bêbeda e, àquela hora, teria tomado qualquer coisa.»

            Depois ocorreu-me.

            «Os comprimidos de Susanna.»

            «O quê?»

            «A Susanna deu-me uns comprimidos para as dores nessa mesma noite. Disse que eram do patrão e vinham num frasco sem rótulo. O frasco deve ter ficado na cozinha.»

            «Ah.» Elsa riu-se. «Eram a codeína do Don. Doses cavalares.»

            «Eu também os tomei e apaguei completamente.»

            «Se não beberes muito álcool, põem-te a dormir. Se beberes, é como se andasses na superfície da Lua. Continuas acordado, mas é como se não estivesses cá; começas a levitar, partes para outra. Desapareces, ficando no mesmo sítio.»

            «O Vincenzo é um idiota», disse eu, abanando a cabeça.

            «Talvez não seja assim tão idiota como julgas.»

            «Porquê?»

            «Procuramos razões, lembras-te? Razões para o mal. Um idiota não tem razões e, portanto, é geralmente considerado inocente.»

            «Não percebo.»

            Do exterior chegou-nos o som de um corpo a mergulhar nas águas e o chapinhar de braços; alguém ainda nadava no lago.

            «Talvez não queiras perceber», disse Elsa, levantando-se da cama.

            «Estás a acusar o Vincenzo?»

            Elsa sorriu e estendeu a mão para me ajudar a levantar.

            «Quem sou eu para dizer tal coisa? A mim só me pagam para representar.»

            Dei a mão a Elsa, pus a bengala no chão e saímos do quarto.

 

            O dia chegou lentamente ao fim, mas a longa conversa com Elsa continuou a ressoar na minha cabeça. Quando se fez noite, o tempo mudou outra vez, abruptamente, de um céu limpo para um céu carregado de nuvens, um calor infernal subindo da terra e trazendo hordas de mosquitos, atraídos pelas luzes, para o interior da casa. Os antigos pântanos de Sabaudia levantaram as suas brumas para preencher um vazio feito de perguntas sem resposta e, a cada hora que passava, era mais evidente que Susanna e Alípio não regressariam; a cada hora que passava, tomava-se mais premente aplacar a ira de Bosco que, no bosque, aguardava pelos testemunhos que lhe prometera; o tempo de espera estava a chegar ao fim.

            Vincenzo preparou outro tacho de spaghetti com tomate. Jantámos todos perto do lago, iluminados por um pequeno candeeiro a petróleo; até Olívia foi obrigada a deixar o quarto no primeiro andar, expulsa do seu esconderijo pelo calor e a humidade; os insectos, vorazes, irritantes, atacavam em toda a parte sem piedade.

            Comíamos sentados na relva.

            «Está na altura de tomarmos uma decisão», disse eu, interrompendo o silêncio. Vincenzo e Nina pararam de comer e olharam-me.

            «Que género de decisão?», perguntou Nina.

            «Se a ajuda viesse, a esta hora já teria chegado.»

            Olhei para Pym e tentei avaliar a sua reacção; parecia concentrado no prato de massa. Um enorme mosquito voava à frente dos meus olhos.

            «Ainda só passaram uns dias», disse Vincenzo.

            <Passou quase uma semana», respondi. «É insensato continuarmos a acreditar que Alípio e Susanna vão fazer alguma coisa para nos tirar daqui. É ingénuo pensarmos, por esta altura, que vão falar com alguém sobre a nossa situação.»

            Roger riu-se enquanto engolia uma garfada de esparguete; o molho de tomate escorreu-lhe pelo queixo.

            «Eles não voltam e nós vamos morrer», disse.

            «E se calasses a boca?», ameaçou Nina.

            «E se calasses tu a boca?», respondeu Stella.

            Pym começou a falar baixinho. Todos olhámos na sua direcção.

            «Eles não voltam», dizia, entre dentes, segurando o prato de esparguete por comer. «Eles não voltam e nós vamos morrer.»

            Elsa levantou-se e foi sentar-se ao lado de Pym. Tentou sossegá-lo, mas ele estava para além da possibilidade de conforto; via-se nos seus olhos que filmara marijuana. Ergueu-se de prato na mão e, prosseguindo a ladainha, começou a correr pela relva em círculos atabalhoados. Fios de esparguete iam caindo do prato.

            «Eles não voltam e nós morremos. Eles não voltam e nós morremos.»

            Vincenzo e Nina entreolharam-se; Roger ria-se, divertido com a situação. Elsa ia levantar-se quando Pym passou perto de Roger e este lhe segurou a perna e disse, numa voz tenebrosa:

            «O Bosco vem aí buscar-te, princesa.»

            O prato caiu sobre a relva ao mesmo tempo que Pym caiu sobre Roger, esmurrando-o duas vezes no nariz que logo explodiu sangue. Nenhum de nós reagiu a tempo: Vincenzo só se ergueu quando Roger (que segurara o nariz durante um momento como se estivesse prestes a cair) já se lançara sobre Pym, atirando-o ao chão e começando a bater-lhe. Stella desatou a gritar; o italiano tentou separar os dois homens que rebolavam sobre a relva e, depois, acabou por ser arrastado para o meio da bulha. Entretanto, Pym, com a destreza própria de um tipo mais jovem e mais magro, conseguiu escapar à fúria de Roger que, de cabelo despenteado e o rosto inundado de raiva e de sangue, foi impedido por Vincenzo de se levantar e correr atrás do outro.

            Foi Elsa quem correu atrás dele.

            «Pym», gritou.

            Pym estava como um louco, atravessando o relvado na direcção da curva do lago sem olhar para trás, gritando por ajuda com todas as forças que tinha; a sua voz aguda ecoava no silêncio da noite e nas águas mornas do lago; era impossível dizer a quem, na cabeça de Pym, poderiam chegar os seus gritos desesperados de socorro. Nina começou a correr atrás de Elsa; quando também eu comecei a coxear no encalço de Pym - Olívia ficou tranquilamente sentada sobre a relva e Stella preocupava-se com o nariz ensanguentado de Roger -, já ele chegara à estrada de terra que conduzia ao bosque. Corria a uma velocidade estonteante, agitando os braços como se fosse um pinguim a escorregar nas superfícies geladas da Antárctida, a sua figura ridícula transformando-se num vulto invertebrado que partia em direcção a uma noite ainda mais profunda.

            O tiro aconteceu quando Nina já tinha alcançado Elsa, que continuava a chamar por Pym. Foi apenas um tiro - certeiro, seco, remetendo todas as vozes ao silêncio - e, depois, como se viesse de muito longe, o breve som de um corpo a cair sobre a estrada. Todos olhámos em sintonia para o bosque à procura da origem do tiro. Ficámos imóveis, em silêncio, durante trinta segundos; o bosque era escuridão. Troquei um olhar com Vincenzo, que, subitamente, começou a correr na direcção de Elsa enquanto esta gritava, novamente:

            «Pym!»

            Mas desta vez com verdadeiro desespero.

            O corpo de Pym ficou toda a noite ao relento. Deitado sobre a estrada de terra, a bala entrara-lhe por uma têmpora e saíra abaixo da orelha esquerda; um breve resquício de sangue que jorrara da entrada do projéctil marcava o momento da sua morte.

            Vincenzo teve de ir buscar Elsa junto do cadáver e arrastá-la de regresso à casa. Elsa gritou, chorou e insultou Vincenzo, mas o italiano estava certo: era demasiado perigoso aproximarem-se da orla do bosque durante a noite, mesmo que fosse para resgatar um morto. Bosco encontrava-se certamente escondido entre as árvores, furtivo, sorrateiro, muito mais atento do que o julgávamos, escrutinando todos os nossos movimentos. Se houvesse dúvidas de que nos tinha na palma da mão, estas haviam-se dissipado por completo. Pym tentara fugir e pagara o preço da ousadia; quem sabe o que aconteceria se, a meio da noite, outro de nós aparecesse por ali para levar o corpo?

            Na casa ninguém dormiu. Primeiro, Elsa teve uma discussão acesa com Roger, culpando-o da morte de Pym; as acusações voaram de um e de outro lado como flechas. Roger defendeu-se culpando Elsa de proteger Pym em demasia, com as consequências que todos haviam testemunhado. A certa altura, Stella começou a chorar descontroladamente, o corpo agitando-se como uma máquina de lavar em centrifugação, as lágrimas caindo-lhe, incontroláveis, pelo rosto; Roger e Elsa interromperam a discussão para que ele pudesse tranquilizar a mulher. Algumas horas depois, quando tínhamos caído num pesado silêncio pontuado por copos de vinho para sossegar o medo - o cadáver de Pym, lá fora, tão só perante a brutalidade da noite -, Olívia, que assistia, impassível, a mais uma crise, anunciou que se ia deitar. Nina, que já bebera muito, impediu-a de deixar a sala e começou a exigir-lhe uma explicação para aquele comportamento. Olívia tornou a sentar-se no sofá, cruzando as pernas com tranquilidade e olhando para Nina sem a mínima consternação.

            «Que espécie de monstro és tu?», perguntou Nina.

            «Pergunto-te exactamente o mesmo», respondeu Olívia.

            Eu estava sentado no degrau que conduzia à sala do aquário, com a bengala entre os joelhos. Elsa estava sentada ao meu lado; Roger e Stella ocupavam o sofá grande e Vincenzo encostara-se à parede, de frente para a imagem de Pasolini.

            Nina hesitou.

            «O quê?»

            «Foste tu quem se esquceeu do John McGill a partir do momento em que ele apareceu morto», explicou Olívia.

            Nina atirou o copo de vinho contra a parede; este estilhaçou-se e o vinho começou a escorrer para o chão. Vincenzo desviara-se para fugir dos cacos que tinham voado em todas as direcções.

            «Eu nunca me esqueci dele», gritou Nina. «Tu não fazes ideia do que dizes.»

            «Estou a dizer o que vejo. E o que vejo é que ficaste com um sem sequer teres feito o luto do outro», continuou Olívia no mesmo tom monocórdico. «Também sei que já tinhas estado com o Vincenzo antes de o McGill morrer.»

            Vincenzo olhava para o chão.

            «Esta discussão é completamente inútil», disse o italiano.

            «Inútil?», zombou Olívia. «Tão inútil como a tua experiência de Sabaudia está a ser?»

            «Qual experiência?», perguntou Nina.

            «Aquela de que o Vincenzo me falou tantas vezes quando estávamos em Budapeste. Mal conseguia dormir com tanta excitação. Estava sempre a dizer que queria agitar as águas; que queria agitar as águas e mergulhar nesse rio para ver o que acontecia.» Olívia olhou para Vincenzo, desta feita com maldade. «Pois aqui está o teu rio. Aqui estão as tuas águas agitadas.»

            «De que raio está ela a falar?», perguntou Roger. Parecia confuso e segurava uma garrafa de vinho pelo gargalo.

            Vincenzo levantou-se, inquieto.

            «Tu não estás boa da cabeça», disse Vincenzo. «Tu precisas de ajuda, Olívia. A sério que precisas.»

            «Deixa-a terminar», disse Elsa. «Quero ouvir isto.»

            Olívia esboçou um ligeiro sorriso - alguma coisa entre o escárnio e o momento de uma humilhação. Parecia, subitamente, uma mulher adulta, muito mais velha do que a sua idade, como se houvesse envelhecido vários anos em duas semanas.

            «Tudo isto é material de trabalho para o Vincenzo», disse Olívia. «Todos vocês. Todas as agonias, todas as mortes. Ele planeou escrever um livro sobre tudo o que aconteceria em Sabaudia; sobre tudo o que está a acontecer neste preciso momento.»

            Elsa olhou para Vincenzo.

            «Isto é mentira, não é?»

            «Ela perdeu o juízo», disse Vincenzo, de rosto subitamente rubro.

            «É completamente verdadeiro», continuou Olívia. «Aquilo que para vocês é um pesadelo é, para ele, motivo de enorme curiosidade. Como se estivesse a viver o romance que nunca seria capaz de imaginar. No fundo, tudo correu de acordo com os planos do Vincenzo a partir do momento em que chegámos a Sabaudia. Era uma aposta arriscada, é certo, mas a morte do Don Metzger foi um excelente ponto de partida para o livro e, agora, aposto que mal pode esperar por ver aonde isto vai parar.»

            Roger pousou a garrafa sobre a mesa com estrépito e levantou-se; olhou para Vincenzo.

            «Do que é que ela está a falar? Um livro?»

            Olívia adiantou-se.

            «Pelo menos está a tomar notas. Se quiserem podem encontrá-las no quarto dele, num pequeno caderno preto.»

            Roger avançou para as escadas. Vincenzo tentou ir atrás dele, mas Roger voltou-se e disse-lhe:

            «Se vieres atrás de mim, juro que acabo contigo.»

            Apesar da baixa estatura do outro, Vincenzo recuou. Ouvimos, em silêncio, os passos de Roger subindo as escadas, o abrir da porta do quarto onde Vincenzo e Nina dormiam, depois coisas a caírem ao chão, o roçagar de uma mala arrastada pelo soalho, outros ruídos impossíveis de decifrar. Após alguns minutos de silêncio, Roger regressou à sala com um bloco preto na mão; no seu rosto existia uma fúria silenciosa. Aproximou-se, atirou o bloco para cima da mesa, cuspiu para o chão - embora estivéssemos dentro de casa — e foi sentar-se outra vez ao lado de Stella.

            «É verdade. Ele está a escrever sobre esta merda toda.»

            Elsa avançou para a mesa e pegou no bloco; abriu-o, passou brevemente os olhos pelas folhas e depois passou-mo. A sala permanecia em expectante silêncio. No interior do bloco havia várias páginas rabiscadas a tinta preta e alguns desenhos. Um dos desenhos era uma planta tosca da casa, com todas as divisões assinaladas e um esboço do lago e do bosque. Noutras páginas existiam, por exemplo, entradas descritivas para cada uma das pessoas que ali estavam ou tinham estado; apontamentos, numa caligrafia difícil, que pareciam definir os pontos principais de um enredo; as palavras 'Budapeste' e 'Sabaudia' apareciam com frequência; numa outra página existia uma série de títulos ensaiados entre aspas: um deles era, simplesmente, «O Bom Inverno». Olhei para Vincenzo, que se encostara à parede, de braços cruzados, numa atitude defensiva.

            «Muito bem», disse ele. «Eu admito que tinha planeado escrever um livro. E depois? Um escritor vai buscar o seu material aonde pode. Não compreendo qual é o problema.»

            «O problema é este», disse Roger furioso, subindo o tom de voz. «Se tu estás a planear escrever um livro, então tudo isto que está acontecer me parece terrivelmente conveniente. Um enredo do caraças, atrevo-me a dizer. Ou julgas que somos idiotas?»

            «Lá por estar a escrever um livro, não quer dizer que seja responsável por as coisas acontecerem», argumentou Vincenzo.

            Roger ignorou-o; apontava para Olívia: «Ela própria disse que tu tinhas planeado escrever um livro sobre tudo o que se passasse em Sabaudia. Como é que tu sabias que o que iria acontecer aqui daria uma história? Quem é que planeia escrever um livro sobre seja que merda for, a menos que tenha a certeza de que vai haver, no mínimo, um ou outro contratempo para entreter o leitor?»

            «Não sejas ridículo», acusou Vincenzo.

            «Estou errado?», perguntou Roger, exaltado. «Então dá-me uma explicação para isto, foda-se. Explica-me como é que tudo aconteceu, como ela disse, de acordo com os teus planos; explica-me que planos eram esses; explica-me que outros contratempos teremos de enfrentar a seguir e quem mais vai ter de bater a bota para que o teu livro acabe como gostarias. Ou se calhar é pior ainda», escarneceu. «Se calhar tu já sabes o final e até já o escreveste. Se calhar tu sabes mais do que todos nós, sabes praticamente tudo e, nesse caso, gostava que partilhasses connosco essa tua sabedoria.»

            «Não há nada para partilhar», disse Vincenzo.

            Roger deu um longo gole na garrafa de vinho e apontou para o caderno que eu segurava.

            «Depois de ver aquilo, como é que eu sei se não foste tu quem matou o Don Metzger? Quem é que me diz que tu não planeaste isto tudo só para escreveres a merda de um livro?»

            «Como é que eu sei se não o mataste tu?», contestou Vincenzo.

            «Dá-me uma única razão pela qual eu quisesse matar o Don.»

            «Toda a gente sabe que ele te tratava como um criado.»

            «És mesmo um filho-da-puta», vociferou Roger.

            Os dois fitaram-se durante um momento. Roger parecia prestes a atirar-se a Vincenzo mas, depois, Stella abraçou o marido e, de lágrimas nos olhos, sussurrou-lhe ao ouvido:

            «Ele não vale isso», disse-lhe.

            Roger resistiu durante uns segundos, mas depois deixou que Stella encostasse a cabeça ao seu ombro. Nina pousara os olhos no chão e cruzara os braços. Tinha-se levantado um vento agreste que uivava por entre as frinchas das portas e das janelas. Olhei para Olívia, que permanecia sentada, de pernas cruzadas, o esboço de um sorriso no rosto; um silêncio desolado caiu sobre a sala.

            «Não queria que se zangassem por minha causa», disse finalmente Olívia, com horrorosa ironia. «Parece-me apenas que chegou a altura de se começarem a perguntar em quem podem confiar.»

            Elsa disse, numa voz magoada:

            «Só nos temos uns aos outros. Há um assassino naquele bosque.»

            «Provavelmente há um assassino aqui dentro», disse Roger.

            «Até prova em contrário, a única ameaça está lá fora», retorquiu Elsa. «Há um cadáver caído no meio da estrada. Neste momento queremos sair daqui o mais depressa possível. Apenas isso. Lidamos com o resto mais tarde.»

            «Se é que isso é verdade», contestou Olívia. «Se é que queremos mesmo sair daqui.»

            «Parece-me evidente», disse Elsa.

            «Parece-me tudo menos evidente», corrigiu Olívia. «Se pensarem bem no assunto, talvez venham a descobrir que cada um de vocês tem razões para não querer regressar à vida que conhecia antes de Sabaudia.»

            Havia uma mistura de provocação e de certeza no rosto de Olívia. O seu repto pairou durante longos momentos, bem como o fantasma de Pym; a noite transformava-se em madrugada, o vento oriundo do bosque entrando pela brecha na parede de vidro e viajando pela casa, trazendo o aroma dos ciprestes e do lago. As palavras de Olívia ressoaram em nós e, depois, a cruel resposta a essas palavras. A perversidade de Vincenzo já havia sido exposta. Mas também a Roger certamente lhe ocorreu como seria a vida depois de Sabaudia, a sua vida de realizador fracassado que Metzger permitira, por comiseração, ter próxima da sua;

            Ou a Nina, que assistira à morte de um amante e logo se entregara nos braços de outro, atraiçoando um passado que regressaria vezes sem conta para lhe assombrar o resto dos dias; ou a mim, que era um inválido por teimosia, que estivera pronto para me retirar prematuramente do mundo e apontara as baterias do cepticismo à realidade e descobria agora - a braços com o horror - que o cepticismo era a armadura dos temerosos e que ainda era possível desejar, temer, amar, sofrer e querer a vida; ou a Elsa, ou até mesmo a Stella; também elas se devem ter perguntado, naquele momento, o estado em que nos acharíamos para o mundo se o nosso cerco chegasse ao fim e sobrevivêssemos. Seria preferível a morte? Seria preferível aguardar pelo instante em que, no escuro, a bala certeira de Bosco nos remeteria ao derradeiro destino de todos aqueles que estão vivos?

            Interrompi o silêncio: «Há uma coisa que ficou por contar.» Os olhares voltaram-se na minha direcção. «As razões de cada um para querer sobreviver a isto são privadas. Mas seria injusto que não conhecessem todos os caminhos.»

            Vincenzo sentou-se no chão encostado à parede. Nina acendera um cigarro e observava a primeira luz no horizonte, para lá do lago, para lá do bosque, para lá do corpo de Pym que permanecia sobre a estrada poeirenta. Falei-lhes então do acordo que fizera com Bosco quando me deslocara à clareira na companhia de Alípio. Falei com cuidado, tentando medir as palavras, pesando-as, uma a uma, como se fossem pedras atiradas à água e procurasse formar círculos de reverberação tão pequenos quanto possível. Quando terminei houve um compasso de espera durante o qual os presentes se entreolharam.

            «Que raio de acordo foi esse?», perguntou-me Roger. «Foi o acordo que me ocorreu na altura. Foi a única coisa em que consegui pensar para ganharmos tempo. Agora deixámos de ter tempo. O Bosco está a vigiar a orla do bosque e, se eu não lhe apresentar os depoimentos que prometi, tenho medo de que ele comece a carregar no gatilho a torto e a direito.»

            «Ou mesmo só a direito», disse Roger':

            «Porque é que não soubemos disso mais cedo?», perguntou Stella. O seu rosto, antes maquilhado, era agora uma confusão de cores desbotadas pelo choro.

            «Porque era desnecessário até termos a certeza de que Alípio e Susanna não regressariam.»

            «E porque o teu acordo implica um sacrifício», concluiu Nina.

Stella olhou-a. «Um sacrifício?»

            «Um de nós vai ter de pagar pela morte do Don Metzger, mesmo que nenhum de nós seja o culpado. É isso que está implícito no acordo. Ele lê os depoimentos e escolhe alguém para sacrificar. É o que tem sido evidente desde o princípio, não percebes? O homem não vai desistir enquanto não encontrar um bode expiatório.»

            Vincenzo olhava com despeito para Stella.

            «Abre os olhos», disse-lhe. «Não podes ser assim tão estúpida.»

            Stella parecia aterrorizada.                                                

            «Tem cuidado com a língua», ameaçou Roger. «Quem sabe se não acabas por ser tu a nossa moeda de troca.»

            «Ou tu», respondeu Vincenzo.

            «Não temos de escolher ninguém», interrompi. «Cada um de nós escreve o seu depoimento sobre a noite em que o Metzger morreu e, depois, eu entrego todos os depoimentos ao Bosco. Se formos honestos, acredito que não haverá qualquer sacrifício. O homem pode ser louco, mas mesmo os loucos laboram segundo uma lógica. Se o conseguirmos convencer de que nenhum de nós é culpado pela morte do Don, talvez ele nos deixe partir.»

            «Nesta altura parece-me um bocado ingénuo», disse Vincenzo.

            «Uma verdadeira utopia», acrescentou Nina.

            «Talvez seja. Mas, a menos que tenham um plano fabuloso na manga, é a nossa melhor hipótese», contrapus. «Ou, se querem mesmo saber a verdade, a nossa única hipótese. Se não nos conseguir a liberdade, pelo menos consegue-nos algum tempo para decidirmos o que fazer a seguir. O Bosco vai ter de ler os depoimentos e obrigámo-lo a pensar no assunto.»

            «São só palavras», disse Roger.

            «As palavras têm o seu poder sobre as pessoas», insisti. «Se forem as palavras certas, podem mover montanhas.»

     «Ou transformar a água em vinho», ironizou Vincenzo.

            «És tu quem lhe vai levar os depoimentos?», perguntou Nina.

            «Fui eu quem lhos prometi.»

            «Tudo bem. Cá por mim, vejo uma vantagem óbvia nisto», disse Roger.

            «Qual?», perguntou Elsa.

            «Quando ele for à clareira entregar os depoimentos; enquanto lá estiver, o Bosco também estará, e é uma janela de oportunidade para os outros. Afinal, o gajo não pode existir em dois lugares ao mesmo tempo.»

            Houve um novo silêncio na sala. A manhã acabara de nascer e do bosque chegava-nos o chilrear dos pássaros. Ninguém se olhava; um longo cansaço inundava-me o corpo como uma onda pesada e vagarosa. A perna latejava-me.

            «Isso é tremendamente injusto e cruel», disse Elsa.

            «A vida é injusta e cruel», argumentou Roger.

            «Se acreditas mesmo nisso, então sacrifica-te tu», respondeu Elsa. «Leva os depoimentos ao Bosco e distrai-o enquanto nós fugimos e te abandonamos no bosque.»

            «Não estás a perceber o problema», disse Roger, apontando para mim. «Ele é o único que não está em condições de fugir. Tem aquela maldita perna coxa. Tem a bengala. Mesmo que qualquer outro de nós levasse os depoimentos ao Bosco, ele ficaria sempre para trás na eventualidade de uma fuga.»

            «Então teríamos dois sacrifícios», disse Vincenzo. «O dele, que não pode correr, e o do pobre coitado que fosse a manobra de distracção.»

            Olhei para Vincenzo, mas ele não me devolveu o olhar. Nina tornou a observar o bosque e acendeu outro cigarro. Olívia permanecia sentada, a cabeça repousada num punho fechado, com indiferença ou zombaria no rosto. Elsa esfregou os olhos com as costas da mão.

            «Isto é um delírio provocado pela insónia. Só poder ser», disse Elsa. «Ninguém vai ser sacrificado, Roger. Ninguém vai ficar para trás. Não somos animais.»

            «Diz isso ao nosso amigo do bosque», respondeu Roger. «Diz isso ao rapaz que está ali deitado na terra e que foi abatido como gado.»

            «És mesmo um filho-da-puta», murmurou Elsa.

            «Eu não vou morrer aqui», disse Roger. «Se querem armar-se em heróis, estejam à vontade. É o vosso funeral. Mas eu não vou morrer aqui.»

            Peguei na bengala e, pousando-a no chão, o braço a tremer de cansaço, pus-me de pé. Coxeei até junto de Vincenzo e entreguei-lhe o caderno preto; este recebeu-o com a vergonha estampada no rosto.

            «Cada um fará aquilo que achar melhor», sugeri. «Entretanto, temos de ir buscar o corpo de Pym. Depois é preciso escrever os depoimentos.»

            «Que tal se dormíssemos primeiro?», sugeriu Roger.

            «E o Pym?», perguntou Elsa. «Não podemos deixá-lo ali.»

            «Mais umas horas não o vão matar», respondeu Roger.

 

            As revelações da noite tiveram o seu peso nos que restavam. Se, por um lado, foi um alívio ter exposto o meu acordo com Bosco, por outro, as palavras de Roger tinham trazido maior inquietação. Era agora evidente que as minhas tentativas racionais de encontrar uma saída iriam provocar consequências desastrosas e começava a arrepender-me de continuar a resistir ao apelo natural da sobrevivência. O acordo tinha sido um ataque de soberba e de desespero; uma confiança desmesurada nas minhas capacidades de persuasão e uma tentativa de adiar o que agora parecia inevitável; e, portanto, sentia a espada de Dâmocles sobre a cabeça - pronta a sacrificar o mais arrogante dos cordeiros do rebanho. O facto de Bosco me ter oferecido um voto de confiança tornara-me, paradoxalmente, o principal candidato a ficar para trás e, por aquela altura, era impossível adivinhar até que ponto a sugestão de Roger faria sentido para os outros cinco. Se fizesse, eu tinha os dias contados, pois Bosco achar-me-ia responsável pela fuga colectiva; se, pelo contrário, a decisão de tentar a fuga aproveitando a distracção do catalão na entrega dos depoimentos não fosse avante, estaria a entregar nas mãos do assassino do bosque a escolha de um sacrificado. Mesmo que os testemunhos fossem verdadeiros; mesmo que ilibassem cada um e todos; mesmo assim, não havia maneira de provar a sua autenticidade ou, o que era mais importante, convencer Bosco dessa autenticidade. Se, por hipótese, nenhum dos presentes fosse culpado do assassinato de Don Metzger, isso só serviria para suscitar ainda mais incógnitas: quem então o fizera? Obviamente, nem eu próprio acreditava na clemência de Bosco; depois de tudo o que acontecera, seria ridículo esperar que o homem fosse aplacado pelo «poder das palavras» e nos deixasse partir. O «poder das palavras» era uma coisa que só tinha sucesso nos romances - ou em alguns romances - e, embora Vincenzo estivesse a preparar um romance, a situação que vivíamos ultrapassava em larga medida as páginas de um livro.

            Foi a última vez que dormimos na casa de Don Metzger, uma vez que a noite seguinte foi de vigília colectiva. Foi a última vez, embora em pleno dia, que nos remetemos à solidão dos nossos quartos, vagueando entre o sono e o sonho numa espécie de período de reflexão que adiava temporariamente o pesado malhete de um julgamento. Nessas horas, embora o tivesse esperado, o corpo que me dava prazer não apareceu. Talvez porque dormíssemos durante o dia; talvez porque o sono fosse demasiado breve e ausente do silêncio e da profundidade da noite; talvez porque alguma coisa houvesse terminado no momento em que Pym morrera e nos arrancara ao nosso torpor; é impossível dizer. Despertei passadas algumas horas na terrível angústia de saber que aquele corpo que me visitava não tornaria; tinha sido um fiel amante e desvanecera-se sem deixar rastro. Contudo, minto: deixara um rastro em mim, como o murmúrio da terra depois de uma avalanche, como os fantasmas de todas as coisas que amamos e nos vão sendo levadas, uma a uma, até nada restar senão essa dor que nos acorda a meio da noite e nos faz perguntar pelo seu paradeiro.

            Nessa noite sonhei com Bosco e Don Metzger. Foi um sonho bizarro - tão bizarro como o sonho que tivera na noite do homicídio, em que serrava a minha própria perna e a atirava, borda fora, de um balão de ar quente. Neste sonho encontrava-me à janela do quarto e olhava na direcção do lago. Era noite. Lá em baixo, junto do pontão, estava Bosco, a sua careca luzidia resplandecente ao brilho desimpedido da Lua. Segurava um remo na mão direita. Voltou a cabeça para trás e olhou-me, sorrindo; depois desviou novamente a atenção para o lago. Alguma coisa deslizava suavemente sobre as águas. Era uma coisa maciça e redonda que emergia da superfície como um submarino acabado de subir das profundezas. Reconheci-a. Era Don Metzger que, de barriga para cima, sulcava tranquilamente as águas tépidas de Sabaudia. Também ele sorria; o rosto, pálido e grande como o balão de uma criança, voltado para o céu. Depois Metzger atracou no pontão e Bosco, com um gesto atlético, sentou-se sobre a barriga imensa do homem como se montasse a sela de um cavalo. Começou então a remar, alternando, de um e de outro lado do corpo, o mergulho do remo nas águas. Alegremente deslizaram para o centro do lago, Bosco remando sem esforço e assobiando uma cantilena italiana. Pouco tempo depois foram engolidos por uma súbita e densa bruma que os fez desaparecer de vista. A cantilena continuava quando acordei.

De maneira que, depois de um sono de algumas horas em pleno dia, fomo-nos levantando a meio da tarde e o plano foi sendo posto em marcha. Primeiro, Vincenzo e Roger foram buscar o cadáver de Pym à estrada. Depois de uma noite ao relento, e de meio dia exposto ao sol do Verão, Pym parecia um morto-vivo: tinha os olhos abertos, o buraco da bala escondido pelo sangue seco, a pele de um cinzento mórbido e os membros paralisados pelo rigor mortis. Vincenzo, em tronco nu, tentou cavar uma sepultura próxima do lugar onde McGill fora enterrado, mas cedo atingiu uma secção rochosa e deixou-se cair sobre a relva, exausto, coberto de suor, a exclamar obscenidades; Roger aguardava à sombra da árvore e, entretanto, o cadáver de Pym via novamente adiado o seu repouso final à torreira do sol. Acabámos por decidir atirá-lo á água e, depois de Elsa dizer algumas palavras à beira do pontão - palavras murmuradas e chorosas que acabei por esquecer -, o corpo foi empurrado por Vincenzo e mergulhou como uma pedra nas profundezas do lago. Pym desapareceu com a mesma velocidade com que surgira nas nossas vidas e, minutos passados, só Elsa se recordava de que ele alguma vez ali tinha estado. O que ninguém esquecia era a crueldade com que o assassino do bosque tinha posto o ponto final na sua vida -um tiro invisível, imprevisto e mortalmente certeiro; a certeza de que, fosse qual fosse o lado para o qual nos movêssemos, Bosco nos seguiria como uma sombra sem remorso.

            Depois chegou a altura de escrevermos os depoimentos; as opiniões dividiram-se novamente. Na casa havia apenas uma máquina de escrever antiga, uma Olivettí Lexicon guardada na garagem. Elsa era a única que sabia da sua existência.

            «É uma relíquia», disse eu, premindo uma das teclas enferrujadas. Elsa segurava a caixa de papelão onde a máquina tinha sido guardada; por baixo dela havia uma resma de folhas brancas cobertas por um plástico transparente.

            «É o que temos», respondeu ela. «A menos que prefiras escrever à mão.»                                                                          

            Na cozinha, o grupo reuniu-se em torno da máquina de escrever que Elsa colocou sobre a mesa. Olívia observava-nos junto da porta que conduzia à sala; tinha permanecido no quarto até mais tarde e nem sequer assistira ao funeral de Pym.

            «E agora?», perguntou Vincenzo. «Só temos uma máquina. Somos sete.»

Olhei em redor e contei. Sete. Era o número da sorte, se não contássemos com Bosco.                                                      

            «Tenho uma sugestão a fazer», disse, apoiando o lado direito do corpo na bengala. «Cada um de vocês dita, e eu escrevo. Fazemo-lo em privado, num dos quartos, um de cada vez. Estou habituado a dactilografar e, desta maneira, aceleramos o processo. Não sei quanto tempo nos resta até Bosco aparecer por aí e começar a reclamar cabeças.»

            A sugestão gerou um enorme debate. Elsa concordou imediatamente comigo, mas, para os outros, a ideia dos depoimentos assemelhava-se demasiado a uma confissão para que pudessem confiar-me a tarefa de os dactilografar. Roger foi o primeiro a argumentar que, se cada um tinha direito à sua versão dos acontecimentos na noite da morte de Metzger, tinha também o direito a escrevê-la em paz, sem a pressão de olhos e ouvidos alheios. «Quero dizer, não é o raio de uma redacção da escola», disse ele. «Estamos a tentar salvar a pele e cada um deve ter a sua oportunidade.»

            «Isso não faz sentido», argumentou Elsa. «Era melhor que chegássemos a um acordo sobre uma versão dos acontecimentos e que essa versão batesse certo em todos os depoimentos.»

            «É impossível», contrapôs Vincenzo. «Um depoimento é um ponto de vista e os pontos de vista naturalmente divergem.»

            «Concordo. Mas os factos dentro desse depoimento não têm de divergir, ou têm?», perguntou Elsa. «Quero dizer, uma coisa são os factos, outra é a interpretação que cada um faz deles. Pelo menos no que diz respeito aos factos que vamos oferecer ao Bosco. O que é que interessa se tu, o Roger ou a Nina concordam sobre este ou aquele pormenor? O importante é que as histórias não entrem em contradições tão gritantes que levem o homem a pensar que um de nós está a mentir. Ou alguns de nós, ou mesmo todos.»

            Houve silêncio na cozinha enquanto as palavras de Elsa assentavam.

            «Estás a sugerir um depoimento conjunto?», perguntou Nina.

            «Estou a sugerir uma versão conjunta em depoimentos separados. Se estivermos todos em sintonia em relação a algumas coisas, a história vai parecer muito mais sólida aos olhos de Bosco. Quanto mais sólida for a história, mais facilmente o convenceremos da nossa inocência.»

            «Excepto se ele estiver precisamente à espera disso», disse Vincenzo. «É um plano tão previsível que até o mais imbecil dos psicopatas o topava à distância.»

            Roger bufou e ajeitou o cabelo revolto.

            «Infelizmente tenho de concordar», disse, contrariado. «Arranjar uma história igual para toda a gente vai trazer-nos problemas. O homem não é estúpido.»

            «Qual é a alternativa?», perguntou Nina. «Dizer a verdade?»

            «Porque não?», perguntou Olívia. A voz, do fundo da cozinha, atravessou o espaço como uma corrente de ar frio. «Se estão assim tão inocentes como afirmam nada têm a temer.»

            Nina ergueu o olhar para Olívia com desprezo.

            «O John McGill estava inocente. O Pym, provavelmente, também. Um deles está enterrado em frente da casa e o outro no fundo do lago.»

            «Não podes afirmar com toda a certeza que eram inocentes», disse Olívia, cruzando os braços. «Nenhum de nós pode. Ambos desobedeceram às regras.»

            «As regras? Quais regras?», perguntou Nina.

            «Os dois tentaram fugir, quando tinha ficado bem claro desde o início que ninguém poderia partir antes de o caso estar resolvido.»

            «É engraçada a maneira como tu colocas o problema e fazes alusão às regras. 'Se estão assim tão inocentes', etc. Como se tu não fizesses parte disto; como se já estivesses a salvo por teres desistido de jogar.»

            Todos olharam para Olívia.                                                

            «Eu nunca cheguei a entrar no jogo», respondeu ela.

            «Pois eu aposto que entraste», disse Nina.

            «Eu faço as minhas apostas e vocês fazem as vossas», tornou Olívia.

            «Acho que devíamos votar», interrompeu Roger.

            «Votar em quê?», perguntou Elsa.

            «Na tua sugestão para os depoimentos ou na minha.»

            «Isso é um exercício bastante perigoso», disse Elsa.

            Roger parecia ter perdido a paciência para a conversa. Inquieto, disse:

            «Escutem lá. A menos que alguém se acuse e acabe de vez com esta palhaçada, não vejo possibilidade de consenso. Porque só há três hipóteses. Ou somos inocentes, ou alguém aqui é culpado, ou o culpado é o próprio Bosco. Qualquer destas hipóteses nos deixa no mesmo pé. Se formos inocentes, é estúpido estarmos para aqui a combinar uma história. Se houver um assassino, ele não se vai denunciar por esta altura do campeonato. E, se a culpa for de Bosco, então mais vale esquecer o assunto, uma vez que ele irá decidir aleatoriamente quem vive e quem morre.»

            «Como é que ficamos?», perguntei.

            «Inocentes até prova em contrário», adiantou Vincenzo.

            «Votemos então», concordei.

            A votação foi rápida e o método de Roger ficou aprovado por maioria; eu e Elsa fomos os únicos a votar a favor de uma história combinada nos depoimentos a apresentar a Bosco. Cada um de nós iria, assim, escrever o seu depoimento em privado e, a seguir, cada folha de papel seria colocada num envelope fechado. A máquina de escrever foi colocada num dos quartos vazios do primeiro andar; quem quisesse poderia usá-la ou, então, escrever o depoimento à mão, caso se sentisse pouco confortável a dactilografar. Calculei que, depois da morte de Pym, todos sentissem a mesma urgência, e que teríamos uma colecção de testemunhos secretos antes de o dia nascer, altura em que eu os levaria até à clareira de Bosco sem ter qualquer maneira de os alterar - isto é, sem uma caneta na minha posse - e sem fazer qualquer ideia do que neles se encontrava escrito.

            As horas passaram como se um grupo de contaminados, na sala de espera de um hospital, entrasse à vez num consultório para saber do estado da sua infecção. Ao final da tarde. Nina e Vincenzo foram até à cozinha para preparar o que restava do spaghetti; de resto, todos permanecemos na sala, observando as cores de sangue do Verão dissolverem-se como um fogo do Inferno no horizonte de Sabaudia, cada um escolhendo secretamente a hora da sua confissão, abandonando a companhia dos outros sem aviso prévio e subindo ao quarto onde a máquina de escrever o aguardava. O único som que se ouvia na casa era o das teclas da máquina de escrever a serem premidas - e, numa ocasião, o perturbante silêncio de Roger e Stella, que subiram ao quarto para escreverem um depoimento conjunto e o fizeram à mão; fora isso, a quietude era tão grande que se conseguia ouvir, à distância, o som da água chapinhada pelas brisas nocturnas, a mesma água onde o corpo de Pym apodrecia, o cadáver largado no fundo arenoso do lago, de olhos abertos, como um pirata lançado borda fora de um navio que pagasse agora pelos pecados cometidos em vida.

            Esta quietude, contudo, indicava desassossego. Com a passagem das horas, pude ver nos rostos alheios que a decisão tomada lhes começava a pesar no espírito. Uma coisa era falar sobre o assunto; outra pô-lo em prática. O secretismo da empreitada lançava o espectro da dúvida e da suspeição, uma vez que todas as palavras escritas no andar de cima da casa permaneceriam por revelar e, assim, constituíam uma possível ameaça de cada um a todos os outros. Sentado num dos cadeirões, com uma chávena de chá e a bengala por companhia, comecei a imaginar as absurdas possibilidades que o desespero poderia gerar, conduzindo, por exemplo, a uma sucessão rocambolesca de traições: Vincenzo acusaria Roger, Roger acusaria Elsa, Elsa acusaria Olívia, Olívia acusaria Nina, Nina acusaria Stella, Stella acusar-me-ia e eu acusaria Vincenzo apenas para fechar o círculo; ou, então, talvez as cartas se baralhassem de maneira diferente e as denúncias acabassem por ser completamente inesperadas, amantes acusando-se mutuamente e as mentiras empilhando-se como castelos de areia numa praia ventosa, numa ânsia crescente de expiação. Ou talvez me enganasse uma vez mais - talvez todos nos enganássemos - e cada um dos presentes acabasse por contar mesmo a verdade, que seria, já o sabemos, necessariamente confusa e subjectiva, e apesar disso as palavras fossem iluminadas pelo volúvel brilho de todas as coisas honestas e Bosco acabasse por desistir daquela empreitada em direcção ao apocalipse e acatasse, com a contrição dos homens justos, a prova da nossa inocência.

            A ordem acabou por ser esta: Vincenzo, Roger e Stella, Olívia, Nina, Elsa e, por último, eu. Foi Elsa quem encontrou um maço de envelopes numa das gavetas do quarto de Don e, um a um, os depoimentos foram sendo colocados dentro de um sobrescrito colado com saliva, escondendo a sua verdade ou a sua mentira (ou a sua ilusão de verdade). Alguns demoraram-se mais lá em cima, outros menos; alguns provocaram maior nervosismo entre os que, cá em baixo, ainda não haviam escolhido a sua vez ou viam o seu destino já selado dentro de um rectângulo de papel. Quando foi a vez de Olívia, por exemplo - faltavam alguns minutos para as dez da noite -, o silêncio instalou-se, acompanhado de uma pesada apreensão. Até Roger, que comia um prato de massa, colocou a refeição de lado e, sentando-se sozinho no degrau que conduzia à sala do aquário, fumou cinco ou seis cigarros durante a hora que Olívia se demorou no andar superior. Stella quis juntar-se a ele, mas Roger preferiu a solidão.

Vincenzo e Nina também se mantiveram distantes durante essa noite. O italiano era incapaz de estar quieto e sentava-se e levantava-se constantemente, caminhando de um lado para o outro, entrando na sala do aquário e ficando a olhar para a Lua em quarto crescente que, suspensa sobre o bosque, era o farol do pequeno mundo que conhecíamos. Nina, sentada num dos sofás, parecia estranhamente distante e brincava com um colar de contas que usava por baixo de uma camisa branca; a camisa realçava a cor fogosa do seu cabelo despenteado, mas os gestos minuciosos das suas mãos deixaram-me inusitadamente triste. Eram gestos de criança; eram os gestos de uma criatura infantil que escrutina detalhadamente um objecto por se espantar com o mero facto de ele existir. A mulher ali sentada, absorta numa actividade inútil, desatenta, era alguém que eu via pela primeira vez, uma Nina despida de todas as barreiras que tinham feito dela uma mulher segura, confiante, por vezes até desejável; como se os dias em Sabaudia a tivessem vencido; como se, depois da morte de McGill, alguma coisa dentro dela tivesse começado a funcionar ao revés, um relógio que pára subitamente e cujos ponteiros revertem a marcha, uma concha esquecida na praia pela maré. Enquanto a observava, soube, atacado de uma enorme melancolia, que em breve diríamos adeus. Aquela mulher que, desde o primeiro momento, eu sentira conhecer desde sempre - como se tivéssemos sido companheiros num tempo anterior a este tempo, como se eu a tivesse escrito num romance muito antes de a ter conhecido em carne e osso -, preparava-se para desaparecer de uma das inúmeras maneiras que o destino reserva para roubar os outros à nossa existência. Não sei como o soube, mas soube-o. E talvez Elsa tenha sentido esta minha angústia, pois veio ter comigo e sentou-se ao meu lado. Era uma angústia que correspondia ao regresso de uma noção perdida - a noção de que a vida não terminava num romance macabro, ou numa perna doente, ou num homem fechado dentro de um apartamento do qual desistira de sair por julgar que o mundo nada mais tinha para lhe oferecer; correspondia à noção de que a vida continuava a nosso despeito, em diante, sempre para diante, e com a mesma facilidade com que nos havia colocado aqui poderia ceifar-nos da superfície do mundo e tudo o que deixaríamos para trás era arrependimento, mágoa, solidão - sobretudo solidão - e um acto de rendição voluntário que manchava todas as coisas que havíamos tocado; um acto que facilmente se confundiria com soberba, mas que não passava de cobardia. Não, eu não queria morrer; não, eu não queria que Nina desaparecesse para

sempre da minha vida, nem Elsa, nem Vincenzo, nem mesmo Roger e Stella ou Olívia; naquelas horas de espera, segurando a maldita bengala que inventara para as minhas dores, sorvendo lentamente o chá que Elsa ia aquecendo de tempos a tempos, compreendi finalmente que a ausência, a solidão e o esquecimento eram coisas terríveis, tão terríveis como uma mutilação ou a morte de um filho, tão terríveis como um velho amigo ao qual nunca mais ouviremos a voz nem conheceremos o cheiro nem saberemos a cor dos olhos, tão terríveis que, mesmo nos livros, até nos romances mais pessimistas, não devemos chamar por elas, não devemos enaltecê-las ou tentar transformá-las em beleza.

            Depois Elsa subiu, demorou-se trinta minutos no quarto e, por fim, chegou a minha vez. Já só havia três pessoas na sala por essa altura - Roger, Stella e eu -, o resto tinha-se dispersado pela casa silenciosa. Ergui-me com um grunhido de esforço e fiz-me às escadas.

 

            O depoimento suscitou em mim um prazer inesperado. Sozinho no segundo quarto do lado direito do corredor - o único que permanecera desocupado e mais pequeno do que os outros, com uma cama de solteiro coberta por lençóis azuis e uma pequena janela que dava para o bosque -, encostei a bengala à parede, sentei-me à secretária e encarei a máquina de escrever durante largos minutos. O monte de papel estava desalinhado e algumas das folhas esborratadas de tinta, manuseadas por dedos incautos; ao lado da máquina havia uma garrafa quase vazia de whisky que, provavelmente, Roger levara para ali e servira de inspiração aos que se haviam sentado em seguida.

            Peguei na garrafa e dei um gole; o líquido, amargo e morno, desceu-me pela garganta com um travo inesperado a água salgada. A janela encontrava-se aberta e chegava-me o aroma das árvores e o cheiro pungente da terra. Havia muito tempo que não me sentava para escrever e dei-me conta de que tinha saudades. Tinha saudades da folha em branco, da ligeira angústia, da eterna hesitação antes de começar; tinha saudades de ver as palavras formarem-se perante os meus olhos e serem conduzidas pelos meus dedos. Fiz contas de cabeça e percebi que havia muito tempo que não escrevia nada que fosse verdadeiro ou, de alguma maneira, se assemelhasse à verdade; publicara o último romance há quase dois anos - escrevera-o muito antes - e, depois do incidente de Dezembro em que caíra das escadas abaixo, passara longos meses a isolar-me do mundo, a procrastinar e a alimentar uma conspiração biológica. O álcool chegou-me enfim à cabeça e, poucos segundos depois, comecei a escrever. Mas o que escrevi não teve qualquer significado; não passou de uma acumulação de factos e, ao fim de alguns minutos, batia à máquina apressadamente, procurando despachar o assunto. É escusado estar a aborrecer-vos com o conteúdo desse testemunho; tudo o que nele ficou registado encontra-se também nestas páginas com superior pormenor e, por isso, é inútil reproduzi-lo. Bastará dizer que, no parágrafo final, procurei assegurar Bosco da veracidade da minha história, garantindo-lhe que nunca chegara a conhecer Don Metzger e que as últimas e trágicas horas daquela noite em Sabaudia tinham sido passadas em inconsciência, deitado numa cama para a qual tivera de ser levado. Omiti quaisquer detalhes sobre os outros, limitando-me a descrever a sucessão de acontecimentos desde que havíamos chegado à estação de Priverno. Era um relato aborrecido, sem conflito ou tensão, destinado a apaziguar a voracidade de um animal ferido; nada tinha a ver com literatura, nada tinha a ver com o ofício de um verdadeiro escritor.

            Por volta das onze da noite abandonei o quarto, o depoimento dobrado dentro de um envelope fechado. As luzes do corredor estavam acesas e desci as escadas, a ponta da bengala batendo na madeira e ecoando pela solidão da casa. Não havia ninguém na sala, apenas os vestígios de cigarros fumados dentro dos cinzeiros e vários copos de vinho espalhados pela mesa e pelo chão. Guardei o envelope no bolso de trás das calças e fui à cozinha; daí saí para o exterior. A noite estava quente e um enxame de melgas esvoaçava junto da luz do candeeiro de presença acima da porta de correr, que se encontrava aberta. Olhei na direcção do lago: havia alguém sentado no baloiço de madeira suspenso da árvore, que se agitava lentamente. O quarto crescente iluminava a extremidade ocidental do lago.

            Avancei na direcção da árvore e reconheci a silhueta de Nina. Quando ela me ouviu chegar voltou-se para trás, segurando as cordas do baloiço com as duas mãos, e sorriu.

            «O último dos condenados vem dar a volta final ao pátio antes da execução», disse. Tinha o envelope sobre o colo, debaixo de um maço de cigarros; o seu sorriso era desinspirado e triste. Depois continuou a balouçar levemente, olhando de novo a superfície das águas. Sentei-me sobre a relva húmida; Nina acendeu um Mayfair e ofereceu-me outro. Aceitei e ficámos a fumar durante alguns minutos em silêncio. Depois ela olhou-me, a silhueta do seu rosto elegante recortada contra o céu nocturno.

            «Quem te parece que vai ser o escolhido de Bosco?», perguntou casualmente, como se falasse do vencedor de um concurso de televisão.

            «Nenhum, se estamos todos inocentes. Não é essa a teoria vigente?»

            Nina riu-se e expeliu o fumo pelas narinas. Perdida na lonjura, uma coruja piava.

            «Mesmo que fosse verdade, que importância teria? Aquele monstro que está dentro do bosque vai escolher um de nós e terá a sua vingança. Ou a sua justiça. Ou qualquer outra destas perversidades com que os loucos ajustam contas com o mundo.» Nina deu uma passa no cigarro. «Então: quem vai ser o escolhido?»

            Também puxei do cigarro, o que me deixou zonzo.

            «Não sei.»

            Nina suspirou e deteve o baloiço.

            «Acho que serei eu a escolhida.»

            «Porquê?»

            «Fui a primeira a fazer-lhe frente. Na madrugada em que o Don Metzger morreu, lembras-te? Quando o Bosco apareceu e eu lhe chamei louco e filho-da-puta e outras coisas assim. O homem quase me matava ali mesmo, não fosse a Elsa ter intervindo.»

            Nina puxou outra passa do cigarro: o fumo subiu no ar e decorou a Lua. Parecia resignada, como se o fim estivesse a caminho e ela nada pudesse fazer para o evitar. Num sentido universal, isto era verdadeiro; mas a vida tratava do contrário, de ignorar o absoluto e viver em absoluta relatividade.

            «A Elsa confessou-me que mentiu. Ou quase confessou. No outro dia tivemos uma conversa e ela disse-o. Ou eu disse-o, e ela não me contestou.»

            Nina encolheu os ombros.

            «Claro que mentiu. Mas eu não lhe pedi que o fizesse, por isso não me sinto propriamente culpada. O Bosco sabia perfeitamente que ela estava a mentir e foi por isso que fez aquilo ao John. Aquela monstruosidade. Para me castigar e para punir a mentira.»

«O Bosco matou-o porque ele tentou fugir. Não me parece que tenha sido uma vingança.»

            «Não precisava de o ter matado. Podia tê-lo feito regressar pelo mesmo caminho de onde viera.»

            «O McGill saiu daqui num carro, lembras-te?», disse eu, atirando a beata para a água. «De alguma maneira o Bosco conseguiu fazê-lo parar e, depois, deve ter existido um confronto.»

            Nina, por sua vez, atirou o cigarro para a relva. Tinha os olhos marejados de lágrimas. «O John era uma boa pessoa, sabes? Um gajo às direitas. Detestava confrontos de qualquer espécie. Eu, com a minha estupidez e o meu egoísmo, consegui fazê-lo atirar-se de um precipício. Se não fosse por mim, ele ainda estaria vivo.»

            «Segundo entendi, naquela noite foi o Vincenzo quem o provocou.»

            Nina abanou a cabeça; uma lágrima desceu-lhe pelo rosto.

            «O Vincenzo só o provocou porque pôde provocá-lo. Porque eu permiti que as coisas chegassem a esse ponto. É verdade que eles sempre tiveram uma relação difícil, que era baseada, do lado do Vincenzo, no ciúme e na inveja. E, embora ele não o admitisse, na admiração. São três coisas terríveis para se sentir por uma pessoa. A verdade é que o John era, dos dois, o melhor escritor; a verdade é que o John era a melhor pessoa.»

            «E tinha-te a ti», acrescentei.

            «E tinha-me a mim», repetiu.

            Ficámos em silêncio durante um longo momento; a coruja continuava a piar, indiferente à nossa presença.

            «O que é que aconteceu entre ti e o Vincenzo?», insisti.

            «Até chegarmos a Sabaudia, nada. Quero dizer, nada que tivesse importância. Nada que não pudesse ser apagado por aquela borracha da memória que usamos para as coisas fúteis.»

            «Estás a dizer-me que nunca tinham dormido juntos?»

            «Estou.»

            «E que na noite da morte do Metzger dormiram juntos.»

Nina fez uma longa pausa, tentando combater as lágrimas que lhe desciam pelo rosto. Quando parecia que ia dizer alguma coisa, permaneceu calada.

            «A Elsa disse-me que tu fizeste coisas de que certamente não te orgulhas», disse-lhe eu, em voz baixa e tranquila. «Seja o que for que tenha acontecido, por esta altura não há nada de que sentir vergonha. Não depois do que se passou aqui.»

            «Mas há», disse ela, subitamente firme. «O que acontece num determinado momento não tem importância: as acções duram o tempo que duram e depois passam. O que importa é o que vem depois.» Voltou o rosto para me olhar. «Lembras-te, em Budapeste, de falarmos sobre raios X? Da mão da mulher do médico?»

            «A mulher de Wilhelm Rontgen. Lembro-me.» «Falávamos disso porque tu me dizias que não tinhas fé. Que tinhas perdido a confiança no mundo. Agora olho para ti e, de todos os pobres coitados que ainda aqui estão, és o único que não se rendeu ao desespero.»

            «Talvez isso seja uma consequência dessa falta de fé. Se não estivermos muito preocupados com a existência, tendemos a ser mais racionais. Ou menos sujeitos aos nossos impulsos. A vida torna-se menos dolorosa. No fundo é uma forma de cobardia, acho eu. Provavelmente a forma mais dissimulada, mas também a mais poderosa. Agora, curiosamente, estou suficientemente interessado no mundo para querer sobreviver. Por isso talvez tenhas razão; talvez eu tenha recuperado alguma fé.»

            «Pois eu perdi-a toda depois da morte do John», disse Nina. «Quero dizer, dificilmente vou aceitar o destino de mão beijada mas, se este chegar como eu julgo que chegará, também não vou lutar contra ele com unhas e dentes. Nesta altura prefiro deixar-me levar.»                                                                            

            «És demasiado nova para pensares dessa maneira.» «Queres dizer que sou demasiado nova para morrer?»  

            As palavras dela pareceram agitar as águas do lago, onde um pássaro solitário pousou um instante, bebeu da superfície e tornou a levantar voo.

            «Sim.»

            «O meu avô costumava dizer que ninguém é demasiado novo para morrer», disse Nina. «Julgo que tinha razão. Há certas coisas que tínhamos para fazer nesta vida, certas coisas que nos estavam destinadas. Se é que esta é a palavra certa. Depois de feitas, deixamos de ter razões para aqui estar. Talvez eu as tenha feito todas e tenha chegado a minha altura.» Nina riu-se, mas era um riso triste. «Quero dizer, como é que eu posso continuar? Em que direcção, com que rumo? Com quem por companhia?»

            «E o Vincenzo?»

            Nina voltou o rosto na direcção contrária e fitou o lago.

            «O Vincenzo é a evidência do meu desespero. A prova provada de que cheguei a um beco sem saída e, por mero acaso, ele se encontrava lá. Nenhum de nós alimenta ilusões. Se houver um mundo para lá deste bosque, será um mundo cruel para mim e pior ainda para ele; uma merda de um mundo. O Don Metzger não foi o único a morrer.»

            Fiquei em silêncio por um instante. Pensei em contar-lhe da conversa que tivera com Elsa e da suspeita que esta levantara sobre Vincenzo; pensei em perguntar-lhe o que recordava ela das horas dramáticas da noite do crime; quis saber do que não se orgulhava Nina, se de ter tido relações sexuais com Vincenzo, se de ter permitido que este provocasse McGill, se, pior ainda, de ter participado na morte de Don Metzger. Quis perguntar-lhe todas estas coisas mas, no final, não tive coragem de dizer nada. Tirei o envelope do bolso de trás das calças e ofereci-lho.

            «Gostarias de ler?», perguntei.

            Tive a breve esperança de que pudéssemos trocar depoimentos. Mas Nina sorriu, recusou e acendeu outro cigarro. Fiquei a segurar o envelope no ar durante um momento e depois voltei a guardá-lo; a noite avançava sem remissão.

            No que restou dessas horas de escuridão houve quase uma vigília colectiva; nenhum de nós era capaz de dormir a sono solto. Roger e Stella fecharam-se no quarto, mas Stella chorou sem parar, e as palavras de Roger - primeiro de consolo, depois de desespero -atravessavam o silêncio da casa; Vincenzo e Elsa tinham regressado à sala e puseram-se a beber e a fumar, sem trocarem palavra, o italiano fechando os olhos, a espaços, mas logo despertando de sonos inquietos; Nina ficou à beira do lago, em cima do baloiço, agitando-se ao sabor tranquilo das águas; talvez Olívia tivesse ido dormir - mas quem saberia dizer o que Olívia agora fazia?

            Estranhamente, acabei por dormitar. Não foi um sono demorado; talvez uma hora na modorra do meu quarto, escutando os sons intermitentes da manhã vindoura - havia pássaros que chilreavam escondidos por entre as ramagens do bosque próximo, havia o zunido das melgas cansadas das suas aventuras nocturnas; segurava junto do peito o envelope que continha uma improvável redenção. Era um sono breve, é certo; mas foi também um sono profundo, pois dentro dele um novo sonho assumiu contornos perturbadores e premonitórios.

            No sonho despertei na mesma cama onde adormecera; ainda era noite. Escutei os passos leves de alguém que atravessava o corredor. Levantei-me - sem precisar da bengala, porque nos sonhos tudo é irremediavelmente pesado ou fantasticamente leve - e saí do quarto. Fui atrás de uma sombra, uma matéria volúvel, uma nuvem macilenta transportada em pés esquálidos que calcorreavam o chão desabitado da casa. Era Olívia: vi-lhe o cabelo louro, quase branco, suavemente agitado pelos movimentos sinuosos do seu corpo coberto pela fina textura de um pijama branco. Na sala do aquário as fosforescências subaquáticas zuniam como um letreiro em néon, iluminando a caverna de escuridão em que o resto do espaço se transformara. Olívia atravessou-o nas pontas dos pés e saiu da casa pelo vazio da parede derrubada. Seguindo-a, passei também sobre o vidro do aquário e olhei para baixo: as fosforescências eram estranhos filamentos entrelaçados que circulavam pela água como cobras luminosas, em movimentos sinuosos e sinistros; eram criaturas malvadas que tinham assassinado os peixes e estes jaziam, em espasmos, moribundos, no chão de areia.

            Olívia corria em direcção ao bosque. A noite era cerrada e fria, a Lua encoberta por nuvens opacas. A sua figura era a de um animalzinho que avançava, assustado, pelo caminho traiçoeiro, descalço, o pijama branco agitando-se e ficando preso, aqui e ali, em espinhos que nasciam das árvores circundantes; as próprias árvores eram criaturas que a tentavam resgatar como se a quisessem impedir de atravessar aquela fronteira imaginada - uma vez do outro lado, não haveria retorno. Mas Olívia seguia em frente e eu seguia atrás dela até que, ao entrar no território de Bosco, a perdi. Os ramos retorcidos e espinhosos das árvores cresceram, expandiram-se, travaram o meu progresso e, quando penetrei na clareira, já Olívia havia desaparecido de vista. Dentro do sonho uma coruja piou.

            Os balões de Bosco ensombravam a clareira com as suas formas rocambolescas, uns na forma de lágrimas e outros na forma de ovos, ainda outros semelhantes a um rosto humano recortado contra a imensidão temerosa do céu. A clareira estava iluminada por uma lua súbita; as nuvens tinham-se dissipado na direcção do Sul e os balões eram como estátuas que pairavam acima do mundo, observando tudo, tudo registando nos seus silêncios ancestrais, rostos da ilha da Páscoa flutuando acima da humanidade com os seus olhos cegos. Aproximei-me devagar, a terra esfarelando-se debaixo dos meus pés, como se caminhasse sobre torrões de açúcar; fui em direcção à cabana. Havia uma janela no fundo e dela emanava uma luz quente e acolhedora. Pus-me em bicos de pés e espreitei para o interior. Dentro da cabana estava o meu quarto na penumbra, idêntico ao lugar onde eu sonhava aquele sonho: a mesma cama, o mesmo sofá, a mesma secretária voltada para a janela. Deitado na cama, coberto por um lençol, estava um homem que parecia dormir. Vi-lhe o rosto de relance, iluminado pela lua, quando o homem fez um movimento brusco - o homem sonhava, por certo - e vi que era o meu rosto, que aquele homem era eu. Sonhando, via-me a mim próprio a sonhar o sonho que via. Era estranho

e mágico ao mesmo tempo, como espelhos dentro de espelhos que conduzem ao infinito; nunca antes me encontrara a mim próprio em sonhos.

            A porta do quarto abriu-se e Olívia entrou. Descalça, o cabelo caía-lhe sobre o rosto, embora o rosto já não fosse o dela - era um rosto distorcido, com dois olhos negros como carvão e uma boca líquida, uma boca que não era humana e que só podia ter sido inventada por um demónio que desenhasse rostos na escuridão. Aproximou-se e, devagar, como um animal que trepa a quatro patas para uma superfície acima do chão, pôs-se sobre a cama. Debaixo dos lençóis, o homem com o meu rosto continuava a dormir; Olívia procurou com um braço leitoso o sexo daquele que dormia e começou a massajá-lo. Olhando-os pela janela, senti a excitação do homem adormecido. O quarto variava entre a luz e as sombras provocadas pelo movimento dos balões que cobriam e descobriam a Lua. O prazer despertou o homem enquanto a mão de Olívia se movia lentamente debaixo do lençol. Partilhei desse prazer. Depois a porta do quarto abriu-se novamente e a figura sinistra do catalão surgiu, diáfana. A porta tornou a fechar-se. Bosco segurava a espingarda na mão direita e apontava-a na direcção da cama. Num assomo de pânico, quis gritar, embora não tivesse voz para o fazer; bati na janela, procurando alertar o meu outro eu, que, deitado, parecia ter-se abandonado ao prazer da mão de Olívia. O rosto dela dissolvia-se em nada, engolido por um buraco negro, um vórtice para onde tudo iria convergir no final dos tempos. Bosco puxou o gatilho da espingarda e, com o sobressalto de quem se vê morrer em sonhos, despertei suado e sem respiração na cama do quarto onde me deitara.

            Amanhecera; estava excitado e, ao mesmo tempo, devorado pelo medo.

Um por um, recebi os envelopes; um por um, os sobreviventes do Bom Inverno entraram na cozinha e depositaram as suas derradeiras palavras sobre a mesa, as cartas empilhando-se e cobrindo a superfície de fórmica. Encontrava-me sentado num dos bancos altos e bebia os restos tépidos de um café. Tinha descido do quarto à primeira hora de luz e descobrira que não restava nada para comer, excepto umas quantas latas de anchovas. A despensa vazia era a imagem da fome; as prateleiras estavam cobertas de migalhas e de pedaços minúsculos de esparguete; no frigorífico restava uma embalagem de leite azedo e pacotes de manteiga. Coloquei o meu envelope em cima da mesa e aguardei.

            Também nós éramos a imagem da desgraça. Vincenzo foi o primeiro a levantar-se do sofá da sala e a vir até à cozinha. A barba crescera-lhe de forma desordenada, o bigode quase inexistente contrastando com um enorme tufo de pêlos no queixo. Tinha as roupas encardidas e passeava descalço como um náufrago numa ilha deserta; nos seus olhos inchados lia-se a evidência de uma noite de lágrimas. Foi sem esperança que colocou o envelope sobre a mesa e regressou à sala. Seguiu-se Elsa. Depois de pousar suavemente o seu envelope sobre os outros dois, deu-me um beijo no rosto e desejou-me boa sorte. Roger e Stella apareceram a seguir, deixando um envelope mais espesso em cima dos outros três. Vinham de mãos dadas, o australiano atarracado em cuecas e chinelos, a barriga de cerveja pendendo sobre o elástico da roupa interior, Stella vestindo um roupão com as iniciais DM bordadas. Por último. Nina percorreu a distância do lago até à casa e, entrando pela porta de correr, colocou um quinto envelope na pilha. Tentou sorrir, mas o sorriso desfaleceu - como um piano cuja tecla enferrujada é incapaz de fazer soar a nota pretendida - e, sem trocarmos uma única palavra, desapareceu para o interior da casa. Os cinco envelopes sobre a mesa olharam-me na cruel indiferença das coisas mortas. Retribuí o olhar e pressenti a melancolia de um final: fosse qual fosse, o futuro estava hipotecado.

            Esperei meia hora por Olívia e, quando esta não apareceu, subi ao primeiro andar e encontrei o quarto vazio. A cama estava feita, as almofadas colocadas naquela posição artificial em que tantas vezes as encontramos nos quartos de hotel; não havia vestígios de qualquer objecto que lhe houvesse pertencido. Pela janela aberta, de par em par, entrava a brisa matinal. Era como se Olívia nunca ali tivesse estado.

            Regressei ao piso térreo. Era inútil matutar no assunto; era igualmente inútil pensar que o meu sonho teria alguma semelhança com a realidade. Olívia simplesmente desaparecera e ninguém daria pela sua falta; ninguém se preocuparia com a sua ausência. Podia ter decidido fugir, podia ter-se perdido no bosque, podia simplesmente ter-se transformado num morcego e ter voado pela janela fora em direcção ao clarão escarlate da aurora; tanto fazia. Recolhi os envelopes da mesa da cozinha e segurei-os na palma da mão esquerda; com a direita, finquei a ponta da bengala no chão e atravessei a porta de correr. Estava uma bela manhã de sol, a luz reflectida como ouro na superfície do lago; o céu azul denunciava uma jornada de calor intenso. Quando dobrei a esquina da casa, olhei para trás e vi-os. Estavam os cinco de pé, na sala, um pequeno grupo que me observava enquanto partia para o bosque. Gostaria de dizer que havia candura nos seus olhos e esperança nos seus corações, mas estaria a mentir. Com excepção de Elsa, era como se um bando de abutres vislumbrasse alimento à distância e, na sua paciente necrofagia, aguardasse pelo ataque da besta para depois se deliciar com os restos.

            Percorri a estrada de terra com serenidade. Havia alguma coisa de nobre naquele gesto e, desprovido de gestos de nobreza nos últimos tempos, senti-me, de certa maneira, o insuspeitado herói daquela história. Cheguei a sentir que poderia largar a bengala ali mesmo e caminhar com a firmeza de qualquer homem; a verdade, contudo, era que a dor regressava sempre que me punha a pensar nela. Embrenhei-me no bosque. A luz intensa atravessava as copas das árvores em lâminas que cortavam a sombra em todas as direcções; as lâminas porosas, agitadas por minúsculos insectos, criavam um estranho espectáculo de pirotecnia natural que parecia ir abrindo caminho à minha passagem. A bengala encontrava terra, musgo, folhas secas, pedras; os envelopes começavam a ficar impressos com o suor da minha mão. Recordei a sugestão de Roger: o meu encontro com Bosco era o momento ideal para uma fuga. Agora, que o momento chegava, perguntei-me seriamente o que aconteceria se todos fugissem e eu ficasse para trás. Que faria Bosco comigo quando se desse conta de que a minha chegada havia sido uma estratégia de partida? E, no entanto, a fuga parecia-me o menos provável dos cenários naquele momento, de tal maneira a presença malévola do catalão se encontrava propagada por aquele lugar sinistro e enfeitiçado; de tal maneira o cheiro do bosque era o seu cheiro, o cheiro de Bosco; de tal maneira a sombra das árvores do bosque era também a sua sombra, a sombra de Bosco; como se houvesse conseguido uma flexão inusitada com a natureza que só se encontrava ao alcance de quem compreendia os movimentos mais recônditos do subsolo; de quem compreendia os movimentos mais recônditos de todas as criaturas da superfície, das folhas às pedras aos lagos; de quem compreendia todos os movimentos das criaturas do ar, das águias às corujas aos balões de ar quente. O bosque estava impregnado de Bosco e Bosco estava impregnado do bosque. Bosco, bosque. Talvez, no fundo, quisessem dizer a mesma coisa; talvez fossem apenas palavras diferentes para designar o mesmo fenómeno de oclusão do mundo.

            Em menos de dez minutos cheguei à clareira.

                                  

                                   O deus do bosque

            Esperei por Bosco junto da porta da cabana. Havia uma cadeira velha ali largada, de pernas bambas, e sentei-me nela com os envelopes no colo. O sol iluminava a lona azul e vermelha do balão que o catalão remendara, agora completamente estendida no meio da clareira e pronta a insuflar, ligada por longas cordas pretas a uma gôndola deitada sobre a erva. Havia um pequeno pássaro pousado sobre a gôndola que bicava os filamentos de verga que se soltavam da superfície rugosa; outros pássaros idênticos faziam fila sobre o telhado da cabana e sobre o depósito vertical de botijas. Os sons do bosque eram os de pequenos animais que cruzavam a terra e o ar à procura de sustento e de luz; não corria uma aragem.

            Bosco surgiu de parte nenhuma. Fechei os olhos e, quando os tornei a abrir, estava à minha frente, de braços cruzados, os músculos retesados, gotas de suor descendo-lhe da testa para as armações dos óculos. Tinha a espingarda ao ombro e observava-me com a atenção e a curiosidade de quem encontra um amigo há muito perdido em terras longínquas. Apoiei-me na bengala e ergui-me.

            «Aqui tens os depoimentos», disse-lhe.

            Bosco aproximou-se e pegou nos envelopes; cheirava a suor.

            «Os envelopes estão fechados.»

            «Foi uma questão de privacidade. Votámos e decidimos assim.»

            Bosco escarneceu: «Pensava que tu falavas por todos.»

            «Sabes que não é assim», respondi. «Foi o melhor que consegui fazer.»

            «Falta um», disse Bosco, contando os envelopes.

            «Na realidade, faltam três», atrevi-me a dizer. «A Olívia desapareceu esta manhã. E o Pym foi assassinado.»

            Bosco olhou para o céu, onde algumas nuvens insuspeitas se começavam a juntar; por um instante pareceu registar a minha indiscrição, mas depois o céu reflectiu-se nos seus olhos muito claros, dando-lhe a aparência de um cego. Imaginei-o sentado num banco de uma avenida em Barcelona com um cartaz de papelão ao colo.

            «O depoimento da Olívia não está em falta porque já o tenho», respondeu, enigmático. Depois repetiu: «Continua a faltar um.»

            «O Roger e a Stella escreveram um depoimento conjunto», expliquei.

Bosco observou-me durante um momento, como se fosse capaz, dessa maneira, de averiguar a veracidade das minhas palavras; depois concordou com um aceno de cabeça.

            «Entra», disse, e dirigiu-se à cabana, abrindo a porta.

            O interior da habitação era escuro e cheio de humidade. Havia uma comprida mesa de trabalho ao centro, coberta de lonas por remendar; havia gôndolas inacabadas de diversos tamanhos, empilhadas umas nas outras, e longas tiras de vime reunidas em feixes; havia um ferro de soldar sobre a mesa, uma pá de coveiro e uma velha bigorna a um canto; na extremidade da mesa mais distante da porta estavam quatro maçaricos armados em estruturas de ferro, destinados a serem acoplados às cestas. Havia também

uma grande ventoinha junto da bigorna e duas cadeiras desconjuntadas; sobre uma das cadeiras encontrava-se um chicote. Dois grandes candeeiros de metal, toscos, pendiam do tecto, as lâmpadas oferecendo uma luz fraca e intermitente.

Bosco apontou para uma cadeira velha e remendada a um canto e mandou-me sentar. Com os envelopes na mão, foi então para o fundo da cabana, onde a penumbra era maior. Nesse lado havia um colchão velho pousado sobre o chão de terra e, ao lado, uma gaiola pendurada num cabide, dentro da qual estavam dois pássaros mortos.

            Sentei-me e observei-o durante algum tempo. Bosco abriu os envelopes um a um e leu com avidez, caminhando de um lado para o outro. Tentei descortinar alguma coisa no seu rosto que indicasse fúria, apreensão ou até apaziguamento, mas a obscuridade no fundo da cabana permitia ver apenas o seu vulto que, movendo--se compassado como o pêndulo de um relógio, fazia do roçar das páginas entre os dedos o exemplo da sua concentração. Descobri, com surpresa, que não estava em pânico. Era a inevitabilidade da coisa, julgo; a impossibilidade de fugir para escapar à situação. Era a impotência de termos chegado a um ponto em que tudo se nos escapava por entre os dedos e a decisão de Bosco - violenta, arbitrária - dependia apenas dele. Talvez os meus companheiros tentassem fugir naquela altura, cada um correndo numa direcção diferente pelo bosque dentro - nem sequer isso me deixou inquieto. Recordei o tempo de Budapeste e o jantar com Vincenzo no Borbíróság, onde pela primeira vez ouvira falar de Sabaudia e de Don Metzger; recordei a sensação de conflito e, mais tarde, de comunhão, e reconheci-as como sensações anódinas, que pertenciam a um tempo em que não havia verdadeiramente conflito ou comunhão, mas somente caprichos que nos mantinham à superfície das coisas; recordei o que havia acontecido num tempo ainda anterior a esse, um tempo que me parecia agora um mero esboço na vida desenhado por um idiota sem qualquer obra de arte em vista, um esboço que não passava disso - de um rascunho inútil sem pretensão a tornar-se um verdadeiro quadro da existência; pensei em como este hipotético quadro era, na verdade, impossível de completar pelo simples facto de existirmos uma vez, e uma vez apenas, e não haver tempo para lhe aplicar as pinceladas finais; recordei também os meus livros, e o meu apartamento, e Magda, e o meu ecrã de televisão onde o médico da série americana se arrastava de um lado para o outro curando doenças impossíveis de existir e muito menos de ser curadas; recordei outro médico, o verdadeiro, aquele que me dissera que não lembrava ao diabo andar a arrastar-me por aí como se fosse um velho, e de como essa velhice prematura - ou essa indisponibilidade, ou essa arrogância - me trouxera a esta escuridão onde, finalmente, me ocorreu uma frase de um romance de Kundera que Magda costumava ler repetida e obsessivamente e que dizia (não sem a sua razão, sem a sua estupidez, sem a sua dose de crueldade) que a vida de nada valia por ser um ensaio de si própria, um ensaio para uma peça que estava a acontecer ao mesmo tempo que era ensaiada.

            Depois Bosco emergiu do fundo da cabana, pegou numa cadeira e sentou-se à minha frente.

            «Falemos», disse.

            «Estou a ouvir-te», respondi.

            Bosco segurava as folhas na mão direita. Estava sentado na cadeira ao contrário, debruçado sobre o espaldar. A sua careca reluzia na semi-obscuridade da cabana. Trouxera a espingarda e deixara-a repousar, com o cabo no chão. Ele tinha uma espingarda; eu tinha uma bengala.

            «Temos aqui um problema sério que poderá não te favorecer», disse ele. Fez uma pausa e olhou para as folhas. «A maioria dos depoimentos aponta para um culpado da morte do Don Metzger.»

            «Quem?»

            «Tu», respondeu Bosco.

            O sangue fugiu-me do rosto durante um instante. Depois tornou a subir e senti-me zonzo. A cara de Bosco ficou desfocada, distante; a seguir, tudo regressou ao seu lugar.

            «Todos os depoimentos?»

            Bosco agitou as folhas de papel. Não parecia zangado; parecia antes intrigado.

            «Três dos cinco depoimentos indicam-te como culpado. Outro é o teu, por isso não conta. O quinto iliba-te, nomeando outra pessoa.»

            «De quem é esse quinto?»

            Bosco sorriu enigmaticamente. Traído pela ansiedade, inclinei-me para a frente na cadeira como se pudesse roubar-lhe as folhas das mãos enormes e calejadas; como se fosse eu o inquisidor. Bosco pegou na espingarda e, num movimento súbito, encostou a boca do cano ao meu peito. Fiquei paralisado ao sentir o metal frio sobre a camisa.

            «É estranho colocares a pergunta dessa maneira», disse Bosco. «Qual deles te iliba. Outra pessoa quereria saber quais a acusam.»

            «Se souber quem me iliba, saberei todos os que me acusam. É uma questão de lógica.»

            «Não estava a falar de lógica, mas do entendimento que fazemos dela. O teu entendimento é singular. Não é motivado pelo desejo de sobrevivência, que gera o conflito entre a espécie e, naturalmente, a disputa e o ódio. Também não é motivado pelo amor.»

            «Pelo amor? Não te percebo.»

            Bosco perscrutou o meu rosto com os olhos profundos.

            «Sabes por que razão o Don se referia a este tempo em Sabaudia como O Bom Inverno?»

            «Não sei.»

            «Quando era adolescente, passou algum tempo no Lesoto. A mãe tinha morrido e o pai era médico na África do Sul quando foram enviados para lá. O Lesoto tinha conseguido a independência há pouco tempo e era um país em convulsão; um enclave entregue a si próprio, no meio de nenhures. Não era apenas o país mais pobre de África, mas também o que tinha os invernos mais frios. Foi lá que o Don conheceu, pela primeira vez, o peso das coisas: a pobreza, a carência, a solidão interminável das planícies geladas. Depois, o pai mandou-o estudar para a Europa durante um dos invernos do Lesoto; o Don nunca tinha saído de África. Quando chegou a este continente, percebeu, pela primeira vez, que ao terrível Inverno no Lesoto correspondia o Verão neste lado do mundo. E, a partir de então, passou a referir-se a esta época do ano, na Europa, como o Bom Inverno.»

            «O que tem isso a ver com tudo isto?»

            «Se fores paciente», respondeu, num tom severo, «acabarás por compreender. Todas as coisas têm o seu contrário e a todas as coisas associamos outras. A tristeza ao Inverno, a felicidade ao Verão. Mas, como podes bem ver, um Inverno pode ser uma ocasião de júbilo; e um Verão, um evento funesto.» Fez uma pausa e puxou atrás o canhão da espingarda; depois destravou-o lentamente.

            «Havia um filósofo medieval que dizia que todo o amor era peso. O ódio, curiosamente, parece ser muito menos pesado, porque não nos consome por inteiro, extingue-se facilmente à primeira derrota, à primeira humilhação. Ao primeiro fracasso. Podia pensar-se que o amor constitui a nossa derradeira e eterna libertação, mas estamos enganados, porque ele nunca se extingue, continua a fazer de nós escravos. É um erro comum, aliás; como é que se costuma dizer por aí? Que o amor liberta? Que a verdade liberta? E o trabalho, também liberta o homem? Os filhos-da-puta dos fachos quiseram convencer toda a gente e escreveram-no à entrada de Auschwitz, Arbeit machtfrei, e a verdade é que os judeus trabalharam, e depois continuaram presos, presos, presos. E, a seguir a isso, mortos.» Bosco inspirou fundo e depois expirou. «Desengana-te: o amor não é senão peso. É a coisa que com mais força nos prende a este mundo. Significa que estamos agarrados às coisas com unhas e dentes; que nos recusamos a deixá-las para trás, numa aflição patética. Porque é que te parece que enterramos os mortos? Porque eles carregam consigo o peso da vida: mesmo no leito de morte, o homem quer levar consigo as coisas que ama. É uma patologia que parece não ter fim: mesmo na morte, queremos arrastar connosco os vivos. Queremos levar o mundo para a cova; arrastar tudo para o Inferno. Somos mortos que não querem morrer, entendes? Mortos que se recusam a aceitar o destino.»

            «Que destino é esse?»

            O catalão olhou na direcção da porta que um vento repentino fez titubear.

            «Sermos leveza ao invés de peso», disse. «Como os balões chineses. Insuflamos, expandimo-nos, subimos ao céu e, depois, desaparecemos para sempre. Não há dois balões iguais. Cada um só sobe uma vez, só faz uma viagem e, sendo assim, cada balão é único. O nosso propósito sempre foi esse: sermos leveza. Sermos únicos. Invadirmos gloriosamente os céus com a nossa chama. Não temermos a morte.»

            «Todos tememos a morte.»

            «Precisamente. É por temermos a morte que não sabemos viver; é por temermos a morte que somos tão pesados.» Bosco levantou uma das botas e tornou a deixá-la cair sobre a terra. Uma nuvem de poeira ergueu-se em redor da sola. «Peso», repetiu. «Mesmo quando nada amamos, continuamos a amar a ideia do amor. A ideia ridícula do amor. Mesmo quando o negamos, somos-lhe fiéis como uma circunferência é fiel ao seu centro. Gravitamos em seu torno.»

            «Talvez porque o amor seja uma coisa importante.»

            Bosco riu-se.

            «Há muitos anos estudei Arte em Barcelona. Não me lembro exactamente quando. Setenta e oito, setenta e nove; por aí. A faculdade ficava na Carrer de Pau Gargalló. Nome inesquecível, não achas? Os meus colegas andavam inebriados pelo espírito dos tempos e faziam arte que exaltava o desejo. O desejo do corpo, o desejo das coisas: mulheres, fortuna, sucesso. Tudo era fácil, tudo parecia estar disponível. E todos eles foram um fracasso crónico. Sabes porquê? Porque pelo desejo, que não passa de amor mundano, somos convencidos de que existe alguma coisa fora de nós que completará o vazio que sentimos cá dentro. Quando isso não acontece, dizemo-nos acabados.» Bosco fingiu um tom de lamúria. «A minha mulher deixou-me; perdi tudo ao jogo; ninguém se importa comigo.» Vociferou: «Que sentido faz isto, explica-me? Se quem fez o universo nos quisesse unidos com as outras coisas, tinha-nos feito em agregados, e não solitários. Por alguma razão o universo é feito de unidades, de coisas únicas. A invenção do amor serve para disfarçar o facto de esta vida, que não se repetirá, ser brutal e solitária e o universo só guardar espaço, no final, para a sobrevivência de um homem.»

            «Uma espécie de Adão do final dos tempos?»

            Bosco moveu ligeiramente a posição do cano no meu peito.

            «Imagina um conjunto de células, todas interligadas, que entram num processo de autodestruição. Um linfoma da humanidade que se propaga até só restar uma célula. Será o contrário do desejo, o oposto do amor. O código da espécie dita uma guerra contínua pela sobrevivência do mais forte; logicamente, restará uma última célula, um derradeiro homem. Mas até esse último homem, se viesse a existir por sobreviver a todos os outros, não poderia, ele próprio, resistir ao cruel escrutínio do tempo. A evolução da espécie é outro disparate que aceitámos por não sabermos que sentido fazer disto; a evolução da espécie não é evolução nenhuma porque não há lugar nenhum aonde ir.»

            «Estou confuso, Bosco. Aonde queres chegar?»

            Bosco deixou a arma escorregar lentamente pelo meu peito e depois pousou-a sobre a minha coxa. Bateu-lhe duas vezes, levemente, com o cano.

            «Estou a dizer-te que tu, ao contrário dos outros, não és um esquecido desta condição. Não és um esquecido da morte. Não esqueceste que, a cada momento, é um milagre que o nosso coração bata e os nossos pulmões se expandam e se contraiam a um ritmo constante, permitindo-nos experimentar esta coisa absurda que é a vida. Há qualquer coisa que te torna diferente. Se por um lado amas este mundo doente como todos os que ainda aqui se encontram, suspeito que, ao mesmo tempo, desprezas esse amor. Se pudesses, cuspirias nessa tirania. Isso faz de ti uma criatura com um propósito. Podes desconhecê-lo, podes até negá-lo, mas, no final, serás leve. Apesar da tua enfermidade, quando o fim chegar serás leveza.»

Bosco fez um compasso de espera e respirou fundo; a humidade no interior da cabana ensopara-me a camisa. O cano da arma deslizava contra as minhas calças.

            «Não sou diferente de nenhum deles», disse. As mãos começavam a tremer-me. «Quando muito, sou pior do que eles porque escolhi não viver. Ou escolhi viver assim, desta maneira, muito mais parecida com um lento naufrágio do que com outra coisa qualquer. Dizes que o meu entendimento é singular, mas que género de homem prescinde do amor? Que género de homem ignora a sobrevivência? Que género de homem escolhe a sua vida por exclusão de partes?»

            «Um homem vazio.»

            «Sim. Um homem vazio.»

            «Que está preparado para enfrentar o seu destino.»

            «Qual é o meu destino, Bosco?»

            O cano da espingarda tornou a subir e encostou-se outra vez ao meu peito; o meu pulso acelerou. Os olhos de Bosco eram duas esferas malévolas, onde o meu reflexo surgia distorcido na penumbra da cabana. A porta rangeu duas vezes agitada pelo vento.

            «Disseste-me que eras escritor», disse ele. «E que os escritores escrevem porque procuram a resposta a uma pergunta.»

            «Era mentira. Não sou escritor nenhum.»

            Bosco pareceu ignorar-me. «Os escritores ordenam o mundo com palavras», insistiu.

            «Ou desordenam-no, se forem maus escritores.»

            Bosco ergueu as folhas que segurava na mão esquerda e depois deixou-as cair; as folhas espalharam-se pelo chão. O suor começava a escorrer-me pela testa.

            «Não acredito numa palavra do que está escrito nestas páginas», disse Bosco. «Tens o teu quinhão de culpa. Prometeste-me depoimentos e o que me trouxeste foram aldrabices.» Apertou o cano da espingarda contra a minha camisa; Bosco abanou a cabeça em sinal de negação. Entretanto, o indicador da sua mão direita movera-se na direcção do gatilho. «Agora acusam-te falsamente porque julgam que é a saída mais fácil. Julgam que és o cordeiro de Deus.»

            Engoli em seco. O catalão parecia prestes a disparar. Um pingo de suor desceu-me da sobrancelha e caiu-me no olho.

            «Que queres que te diga? Que posso eu fazer?»

            «Dá-me uma resposta à minha pergunta», disse ele. «É isso que os escritores fazem.»

            O meu corpo tremia descontrolado. O indicador de Bosco estava dobrado sobre o gatilho; puxou o canhão atrás com o polegar. A porta continuava a ranger, a brisa morna varrendo as folhas de papel. Eu fechara os olhos e preparara-me para o derradeiro momento. Só via escuridão e o fantasma de Bosco dentro dessa escuridão.

            «Qual é a tua pergunta?», perguntei, a voz embargada.

            «Tu sabes qual é a minha pergunta», disse Bosco. «Dá-me uma resposta ou cumprirei a justiça que os depoimentos exigem. De uma maneira ou de outra, farei justiça.»

            O suor, salgado e morno, alagava-me agora o rosto. Continuei de olhos fechados e implorei.

            «Mas, Bosco, até um escritor, que eu não sou, só é deus das suas personagens. Só tem o poder de decidir o destino destas; e até elas, por vezes, lhe fogem das mãos. Como é que eu posso decidir o destino daquelas pessoas? Quem é que me dá esse direito?»

            «Dou-to eu», disse Bosco. «Porque sou deus nesta tua pequena história.»

            O cano da espingarda subiu e foi encostar-se à minha garganta. Tentei engolir em seco, mas não fui capaz. Respirei fundo e senti os aromas do bosque que entravam pela porta e pelas frinchas das paredes.

            Comecei a falar.

            De olhos fechados, o suor a cair em cascata da minha testa, o cano da espingarda contra a traqueia e a presença inexorável de Bosco exigindo uma resposta, comecei a falar. Num dilúvio contei-lhe a verdade que era a verdade possível a que um escritor podia almejar, um escritor que é deus das suas personagens e, portanto, não tem ninguém a quem prestar contas porque não existe ninguém acima dele para condenar ou exaltar as suas palavras; expliquei-lhe, palavra por palavra, o que tinha acontecido na noite da morte de Don Metzger, e o que tinha acontecido era de tal maneira insólito e ao mesmo tempo de uma beleza tão cruel que só um escritor ou um farisaico poderia tê-lo contado como o fiz; mas se tivesse de repetir, se fosse obrigado a repetir as coisas que lhe contei naquele momento em que julguei que ia morrer dentro daquela cabana na clareira de um bosque em Sabaudia, então, como quem se senta defronte de uma velha máquina de escrever enferrujada e martela as teclas lutando pela sua vida, diria,Bosco, quando Don Metzger, dois metros de altura e cento e quarenta quilos de peso, espatifou o carro contra a parede de vidro da sala do aquário na madrugada daquela noite, estava já morto embora biologicamente ainda estivesse vivo, coisa que nenhum de nós soube compreender porque um torpor pesado e ruminante se havia apoderado das nossas almas durante o Bom Inverno. Sim, pode morrer-se em vida e Metzger já tinha, na sua cabeça, selado o seu destino, porque nenhum outro destino lhe parecia verosímil senão a aniquilação desta existência que deixara de fazer sentido, porque desde sempre houvera uma tragédia incompleta nos seus olhos; sabias, Bosco, que há pessoas que carregam a desgraça no rosto? Chamemos-lhe, neste caso, a desgraça de um menino que, numa infância remota num país distante chamado África do Sul, se fez aos céus num balão acompanhado dos pais e ficou irremediavelmente só a partir do momento em que viu a terra afastar-se como se fosse um sonho, pesadas as pernas, pesada a cabeça, insustentável o coração, porém infinitamente leve a partir do momento em que as terras insondáveis de África, que são demasiado belas para o olhar humano, o vergaram à inutilidade deste lugar em que vivemos escravizados pelas coisas; como tu dizes, Bosco, somos parasitas, somos fungos, somos circunferências viciadas nos seus centros, e talvez tenha sido esse o momento em que Don Metzger ficou louco. Imagina tu, louco desde a mais tenra infância! Se as terras de África, vistas do céu, são demasiado belas para o olhar humano, que imaginas tu que sucede à pessoa que sustenta esse olhar? Perderia a causa das coisas? Ou será o louco aquele que vê demasiada causa em todas as coisas e essa primeira viagem em direcção ao nada seja a causa de tudo o que veio depois, a razão que anula a possibilidade de alguma vez se sentir em comunhão com o mundo ou até consigo próprio? Mas esta história começa antes, Bosco, começa com uma perna morta e um escritor fracassado e uma viagem inesperada e um encontro em Budapeste e uma proposta nocturna, uma proposta que estava impregnada de aventura mas também de maldade, uma proposta feita por um homem que queria tudo, um homem demasiado ambicioso e obstinado para o seu próprio bem; alguém que quis agitar as águas e depois mergulhar nesse rio e ver o que acontecia. Tu sabes de quem falo, Bosco, tu sabes a quem me refiro quando te digo a palavra homem; sabes tão bem como eu sei na pele o frio implacável do cano dessa espingarda, e posso contar-te mais, digo-te ainda que, quando Dou Metzger, dois metros de altura e cento e quarenta quilos de peso, finalmente conseguiu emergir do carro espatifado contra a parede da sala, o fez com a ajuda de Vincenzo, com a ajuda do seu carrasco, o criminoso insuspeito que veio para Sabaudia sob falsos pretextos e logo conspirou para reclamar o que julgava seu, incapaz de compreender como podia pertencer a outro a vida que devia ser dele. Falo-te de um escritor, Bosco, e por isso te digo que não sou escritor e que nada tenho a ver com essas criaturas que substituem a realidade pelas suas fantasias e por vezes chegam a julgar que a realidade é apócrifa e as fantasias a verdadeira essência das coisas; mas estou a divagar; o que te queria dizer ou fazer entender é que Vincenzo julgou que a sua vida havia sido usurpada por outro, um inglês chamado McGill que tu encontraste no lago naquela fatídica madrugada, um inglês que julgou vir encontrar um mar calmo e se deparou com uma tempestade, um inglês que tinha a mulher e que escrevera o livro que Vincenzo sentia roubados, coisas que sem lhe pertencerem lhe tinham pertencido desde sempre; como tu sabes, Bosco, não existe pior mistura de sentimentos neste mundo do que o ciúme, a inveja e a admiração; é uma trindade tão perigosa que pode levar um homem a ascender ao Céu ou a lançar-se de um penhasco até ao mais profundo dos Infernos. Por isso te conto agora que, quando Don Metzger chegou naquela noite ao Bom Inverno, foi em Vincenzo que encontrou o epitáfio da sua vida destroçada, que mais poderia ser, destroçada; um homem que vem de Roma num carro a alta velocidade enquanto bebe uma garrafa de whisky e derruba a parede de vidro da sua própria casa é um homem que procura um epitáfio por já não saber que continuação dará isto a que chamamos existência; porque Don Metzger não acreditava em deus nem no diabo, no Céu ou no Inferno, e tu sabes disso, Bosco, sabes que era um homem livre que caminhou voluntariamente para o seu cadafalso, senão, repara tu, ao desejo de morrer de um homem corresponde o desejo de vingança de outro, vingança não de coisas feitas mas de coisas roubadas de antemão, e se um homem deseja morrer e outro homem deseja vingar-se, quem poderá dizer que neste encontro de vontades não existe um equilíbrio ou uma lei secreta da natureza, tão simples como o riacho que corre por entre as pedras sólidas desta clareira ou os pássaros que chilreiam pelo bosque à nossa passagem? Por isso, Bosco, senhor do nosso pequeno mundo, imagina tu agora o que sucederia se Vincenzo, depois de as substâncias navegarem no seu sangue como o tal linfoma da humanidade de que me falaste, pesadas as pernas, pesada a cabeça, insustentável o coração, imagina tu que este homem se encontra perdido numa casa em Sabaudia antes de raiar a madrugada e que acaba de despertar de um pesadelo. Está estendido num sofá, a sala fede a tabaco e a álcool e ao suor dos corpos que a habitaram, no ar vagueia um halo de bruma, aquela bruma que se levanta dos pântanos ocultos de Sabaudia, uma bruma que tu bem conheces, Bosco, porque és o deus do bosque e tens o poder de a convocar a teu bel-prazer; imagina tu que este homem acordou de um pesadelo para imediatamente entrar noutro e que se acha no meio deste súbito Inverno que lhe faz gelar os ossos e lhe penetra na alma; está sozinho ou assim se julga, pois alguma coisa chama por ele, um apelo que quase não chega para quebrar o mórbido silêncio da madrugada, como o lamento de um animal moribundo que apenas outro animal pudesse ouvir; ainda assim, sente-o, vem lá de cima, levanta-se, sobe devagar as escadas e aí encontra um corredor enorme e escuro com quatro portas fechadas de cada lado, um corredor que termina numa parede de vidro através da qual se vêem as copas das árvores que formam o teu bosque, Bosco, onde tu e o velho Alípio construíam os balões; a luz da Lua, suspensa sobre a Terra como a íris de um deus cego, atravessa diáfana a espessura da bruma que se instalou sobre esta noite que caminha para o seu trágico final. E agora imagina tu que Vincenzo caminha pelo corredor perseguindo o apelo que sente cada vez mais próximo, dobra a esquina, aproxima-se devagar de uma porta maior do que as outras, deixa pegadas no chão húmido, sacode as mãos à frente do corpo para dissipar a bruma que tomou conta da casa, que a penetrou como um sortilégio ou uma doença, Orfeu procurando Eurídice no Inferno; dali vem o apelo, do outro lado da porta encostada. Empurra-a, a porta abre-se, o quarto; pelas janelas que olham o lago entra uma luminosidade espectral que define o vulto de uma mulher deitada na cama; a mulher chama-o em silêncio, dorme profundamente mas chama-o, e Vincenzo dá um passo em frente, Bosco, um passo que muda todas as coisas; porque de repente está em cima de Nina, prende-lhe os braços à cama, ela mal se debate porque as substâncias ainda lhe infectam o sangue, está em cima dela e beija-a, será sua, foi-lhe roubada de antemão, despe-a, arranca-lhe a roupa. Nina geme mas não do prazer, geme porque sofre, ele continua, toca-lhe os seios, ela debate-se mas ele é mais forte, será sua, tenta penetrá-la, não está molhada, tenta outra vez, e quando finalmente o consegue está cumprida a vingança pela metade, move-se sobre ela numa vertigem, num delírio, depois num alívio, todo o prazer é alívio, ela chora; é então que ele sente que alguma coisa o arranca da cama como se o descolasse do mundo; um segundo depois está pregado à parede, os pés acima do chão, um rosto olha-o com desprezo, largo e gelatinoso, de olhos claros, nariz batatudo, cabelo grisalho puxado atrás, é Don Metzgerquem o levanta no ar sem piedade, aporta do quarto está aberta. Nina parou de chorar, e depois a mão do outro começa a fechar-se em torno da sua garganta. Vincenzo não respira; o outro vai matá-lo se continuar, Vincenzo sufoca, pede socorro, sente a vertigem, nisto é Nina quem se põe de pé, é ela quem implora. Deixa-o, Deixa-o, mas Dou Metzger não a escuta; concentra-se na mão que aperta a garganta e Nina continua a implorar. Vincenzo quase desfalece; um minuto de agonia e é então que um som breve e surdo, compacto, lhe devolve a vida, Vincenzo cai mas levanta-se, Don Metzger cai e não tornará a erguer-se. Nina está de pé com uma estatueta dourada na mão. Vincenzo recupera o fôlego e olha para o corpo caído; debruça-se sobre ele e é a sua vez de o sufocar, as mãos cerram-se em fúria sobre a grossa garganta e apertam-na, apertam-na, apertam-na até não poder mais, não consegue parar até Nina lhe implorar que pare, que os olhos abertos do outro já nada vêem. Nina chora outra vez, larga a estatueta no chão, desistiu. Vincenzo sente então um desmaio, a súplica de Nina é o único som na casa mergulhada em silêncio, os dedos abrem-se sem vontade e libertam a carne defunta. Se matou, foi por amor, e não se pode calcular o peso do amor; está cumprida a vingança pelo todo. Agora os amantes observam o corpo. É um cachalote, a barriga é uma montanha, as mãos são raquetes. Que fizeram eles, Bosco? Este homem e esta mulher cumpriram, sem trocar palavra, o ritual de um crime que nenhum dos dois sabe quem chegou a cometer. Pegam, cada um, numa das pernas do corpo sem vida e arrastam-no pelo corredor e depois pela escada, degrau a degrau, em silêncio; quando chegam ao andar inferior, continuam a arrastá-lo na direcção da cozinha e, em seguida, para o exterior. A manhã ainda não chegou, mas está anunciada numa breve claridade do céu, uma claridade que, uma hora mais tarde, teria denunciado ao bosque as duas figuras magras, suadas, ofegantes, que levavam um gigante morto pelo relvado, puxando-o pelas calças na direcção do lago. Junto da água, próximo da árvore onde o baloiço gira sobre as suas cordas ao vento que se levantou, onde o barco a remos chapinha sobre a superfície do lago, é aí que finalmente se sela o pacto entre as lágrimas que descem pelo rosto desta mulher e a chama que arde no coração deste homem, o pacto de uma morte dividida, de uma responsabilidade partilhada; o pacto que Vincenzo quisera selar desde o princípio e que condena esta mulher a ser eternamente sua à custa de um segredo; imagina tu, Bosco, o que sentiram estes dois quando se olharam naquela madrugada, duas criaturas para sempre perdidas uma na outra; imagina agora que Vincenzo, exaurido do esforço, arrasta o corpo até à beira do lago, lhe dá uma volta e lhe mergulha a cabeça na água para que os pulmões se encham de líquido e a morte pareça um afogamento. Assim o mantém debaixo de água por largos minutos, os dedos em volta do pescoço inchado, empurrando-lhe a nuca golpeada, o rosto esbofeteando o fundo arenoso. O homem olha uma vez mais para a mulher e, sempre em silêncio, sabendo que não o podem largar na margem, num derradeiro esforço colocam o corpo dentro do barco a remos, desatam a corda que o ata ao pontão, e o barco parte em direcção ao centro do lago, onde as nuvens se espelham nas águas à luz melancólica da lua. Em pouco tempo, calcula Vincenzo, a fragilidade do barco e os dois metros de altura e cento e quarenta quilos de peso de Don Metzger encherão afina carcaça de água e levarão a vítima para o seu cemitério aquático. O barco parte, é arrastado pela brisa, e os dois regressam à casa sem trocarem palavra. Sem saberem, Bosco, que está a caminho um inglês demasiado obstinado e madrugador, e depois tu; sem saberem que o corpo nunca chegará ao fundo daquele lago.

            Respirei fundo. Sem ar, tossi, e depois esfreguei os olhos. Abri-os.

            O suor continuava a cair-me sobre o rosto. Quanto tempo teria passado? Lá fora erguera-se um vento danado e a manhã escurecera abruptamente; a porta agitava-se nos seus frágeis ferrolhos como um leque desgovernado; as folhas que tinham estado caídas no chão voavam agora pela cabana, livres, com vida própria. Bosco não se movia. Os seus olhos eram duas fogueiras ateadas. Senti o cano da espingarda pressionado contra a minha traqueia.

            Nesse momento começou a chover. Houve um relâmpago seguido de um trovão e, subitamente, tudo se transformou num temporal. A chuva desatou a cair sobre o tecto da cabana como um forte aplauso. A careca de Bosco, iluminada pela humidade, voltou-se momentaneamente na direcção da porta; depois, como se tivesse aceitado a chegada do dilúvio, tornou a voltar-se na minha direcção. O cano da espingarda desfez a pressão sobre a minha traqueia.

            «Agora vai-te embora e diz-lhes que estou a caminho.»

 

            A chuva cairia toda a noite, mas a noite ainda não chegara. Nessa tarde regressei à casa debaixo de um temporal tão denso que obscureceu o caminho do bosque em meu redor, o céu invisível escondido pela água torrencial que se derramava das copas das árvores. O bosque mergulhara numa imensa escuridão e eu mergulhara nele. Quis correr, nunca desejei tanto poder correr; mas, como nos pesadelos em que não saímos do mesmo sítio, consegui pouco mais do que arrastar o meu corpo debilitado, apoiado na bengala, pela lama do caminho. Coxeei pelo bosque fora, grunhindo, desesperando, o cabelo escorrendo a água da chuva, a roupa colada ao corpo, o braço livre afastando com violência os ramos das árvores chorosas que me barravam o caminho. O meu esforço foi tão grande que as lágrimas de dor rapidamente se transformaram num riso de escárnio, e ri-me da minha figura trôpega a meio de um temporal, e ri-me de raiva, e ri-me do suor que me jorrava pelas têmporas, e ri-me do mundo e do que estava para lá do mundo, e ri-me dos deuses que pareciam zombar da minha lentidão. O Inverno chegara, afinal; e era um Inverno de dilúvio, um Inverno de morte, um Inverno de culpa. Era um Inverno convocado por uma confissão e, contudo, mais do que vergonha pela minha mentira - pelo opróbrio de uma condenação -, aquilo que sentia era perplexidade, porque a minha confissão havia, no fiando, sido a confissão de um verdadeiro escritor - o tal cobarde e o tal mentiroso que, por vezes, embora muito raramente, era também corajoso; havia sido a confissão de quem se refugiava numa mentira possível em substituição da realidade impossível.

            Quando emergi na estrada de terra - que era agora de lama -comecei a ouvir os gritos. Percorriam a distância entre a orla do bosque e a casa e eram os gritos de um homem, berros de dor insuportável que atravessavam o espaço de uma intempérie. Onde houvera, nessa manhã, um céu azul e um sol reflectido na calmaria do lago, havia agora um tecto de nuvens opressivas que esvaziavam sobre o lago a sua vingança, a chuva despenhando-se a jorros sobre a superfície negra. Tentei estugar o passo; já não sabia se o líquido que me corria pelo rosto era apenas água, se chorava do esforço.

            Depois vi-os em frente da casa sobre o relvado encharcado. Nina, Elsa e Vincenzo debruçavam-se sobre duas figuras, uma deitada, a outra de joelhos. Tinham as roupas ensopadas. Fiz a curva do lago ao pé-coxinho, saltando de poça em poça, a casa recortada contra a escuridão do dia; era Roger quem estava deitado no chão e tornou a urrar de dor. O som pareceu esbarrar no tecto de nuvens e fazer ricochete pela propriedade. Debruçada sobre ele, Stella parecia agitar o corpo prostrado, como se tentasse espantar um demónio. Havia alguma coisa que o impedia de se mover mas, antes que conseguisse ver o que era, Vincenzo, que estava de frente para mim, destacou-se do grupo e, tropeçando na relva e percorrendo a distância que nos separava, aos trambolhões, quase me derrubou quando lançou uma mão ao meu ombro e outra ao colarinho da minha camisa.

            «O que é que aconteceu?», perguntou. Senti-lhe a ansiedade como uma descarga eléctrica. Nina também se voltou e deu pela minha presença para, logo em seguida, se voltar outra vez para Roger, que Stella procurava apaziguar.

            Devolvi-lhe a pergunta. «O que é que aconteceu aqui?»

            A chuva caía entre nós como uma cortina.

            «Diz-me tu primeiro», disse Vincenzo. O seu hálito azedo chegou-me às narinas. Olhámo-nos nos olhos, e vi o desespero que lhe assomara ao rosto; tinha a face manchada por uma pesada angústia. Não lhe respondi. Sustive o seu olhar durante um momento; atrás de Vincenzo, Roger gritava. Depois baixei a cabeça, incapaz de o continuar a fitar, vendo a relva molhada engolir as solas dos nossos sapatos, e procurei dizer alguma coisa, mas entreabri os lábios sem conseguir proferir uma única palavra. Tentei falar uma e outra vez; quis explicar-lhe, adverti-lo, acautelá-lo, mas a culpa paralisara-me e só fui capaz de engolir em seco.

            Assim ficámos durante um longo momento, até eu erguer novamente os olhos e constatar que a expressão de Vincenzo mudara. A chuva caía por nós abaixo, cataratas humanas, mas, por um interminável segundo, o mundo pareceu ficar em suspenso. As gotas detiveram-se a meio caminho entre o céu e a terra, as águas do lago, exangues, estacaram no reboliço da tempestade, as copas das árvores, inclinadas pelo vento, assim permaneceram como se fosse essa a posição que naturalmente lhes pertencia. Nesse derradeiro segundo de quietude foi como se Vincenzo conseguisse entrar na minha cabeça e, sem mais, apenas pelo meu silêncio, ficar a par do meu opróbrio que era a sua condenação.

            Os olhos do italiano abriram-se muito e depois recuou um passo. Era como se tivesse visto um fantasma ou, pior ainda, como se se tivesse, subitamente, transformado num fantasma; num morto, preparado para se agarrar aos vivos com unhas e dentes.

            Nina aproximou-se, encharcada; tinha as palmas das mãos ensanguentadas.

            «Ele está a perder muito sangue», gritou. «O que é que fazemos?»

Stella chorava compulsivamente. Estava debruçada sobre o corpo e tinha as roupas rasgadas, como se tivesse corrido pelo meio de uma floresta de espinhos. Se antes me parecera que agitava Roger, via agora que tentava, em vão, libertá-lo; ou antes, libertar-lhe o tornozelo: em redor deste, fechada como a mandíbula de um tubarão, estava uma armadilha para ursos que lhe cravara dois aguçados dentes na carne, um de cada lado da perna. Era um objecto sinistro, em ferro, com o aspecto enferrujado de uma arma antiga e medieval, a base colada à sola do sapato de Roger e uma correia solta que tilintava enquanto Stella procurava, à força das suas mãos ensanguentadas, desenterrar os dentes da perna do homem. Elsa, ao seu lado, ergueu-se e levou uma mão à boca; a chuva colara-lhe o cabelo ao rosto. Vincenzo ignorou Nina e correu na direcção da casa.

            «Vincenzo», gritou Nina. Depois olhou-me brevemente e foi atrás do italiano. Apoiado na bengala, ajoelhei-me ao lado de Roger. A perna dilacerada pela armadilha era uma visão difícil de suportar, mas, de alguma maneira, a chuva e a escuridão serviam para disfarçar a torrente de sangue que dela se esvaía. Observei a armadilha. Havia, no fundo desta, um orifício para uma chave inexistente que a destrancaria; o esforço de Stella era inútil.

            «Encontrámo-los aqui fora», disse Elsa. «A Stella arrastou-o desde o bosque. Não devem ter ido longe.»

            «Está a chover a cântaros. Temos de o levar lá para dentro», disse eu.

            «Não», gritou Roger. O rosto contorcido era uma caraça de dor, as veias do pescoço, salientes, bombeando sangue pelo corpo em crise. «Se vou morrer, que morra aqui fora», grunhiu. «Não volto para aquela casa nunca mais. Maldita seja. Maldita seja.»

            «Não vais morrer», chorou Stella, que desistira de tentar abrir a armadilha e agora o abraçava. «Não vais morrer.»

            «Tentaram fugir», disse-me Elsa, baixinho. Tomou-me na mão o braço livre; tinha os olhos marejados de lágrimas e tiritava de frio. «Eu disse-lhes para esperarmos, mas eles não me ouviram. Meteram pelo bosque por trás da casa e não soubemos deles durante horas até ouvirmos os gritos de Roger. Ela arrastou-o até aqui à chuva, sozinha, sabe-se lá com que forças, com a armadilha na perna.»

            O catalão certamente armadilhara o bosque. Surgiu-me, sem saber porquê, a imagem dos dois pássaros mortos dentro da gaiola. Olhei para trás, na direcção das árvores e, por um momento, consegui ver a figura colossal de Bosco avançando sem remissão pela estrada, braços retesados, tronco poderoso inclinado para a frente, espingarda ao ombro, preparando-se para executar a minha sentença.

            «Escuta, Elsa», disse-lhe. «Temos de fugir daqui. Temos de fugir daqui e não podemos olhar para trás.»

            Elsa olhou para Stella, que continuava abraçada ao corpo imóvel de Roger, murmurando palavras imperceptíveis, chorando.

            «Não os podemos abandonar.»

            «Temos de os abandonar, ou nenhum de nós sobrevive a isto. Se a Stella quiser vir, muito bem. Senão, temos de os deixar. Elsa, escuta o que te digo.»

As lágrimas que marejavam os olhos de Elsa desceram-lhe suavemente pelas faces; ela compreendia.

            Nesse momento Vincenzo e Nina surgiram da porta de correr que dava acesso à cozinha. A chuva abrandara e transformara--se num aguaceiro oblíquo. Vincenzo caminhava à frente dela, a passo rápido; trazia a mochila ao ombro e uma determinação no olhar que se assemelhava a um desespero contido. Nina correu para o alcançar e puxou-lhe um braço; o italiano voltou-se, a contragosto, e começaram a discutir em voz baixa. Tornei a olhar para a estrada que conduzia ao bosque. A tarde escurecera como se fosse noite; sobre as águas do lago, agora turvas e tépidas, caíam gotas de chuva do tamanho de nozes, formando círculos concêntricos. Elsa ajoelhou-se e tentou falar com Stella, que continuava prostrada sobre Roger; o australiano remetera-se ao silêncio, de olhos abertos, vítreos, o cabelo louro da mulher espalhado sobre o seu peito, fitando um céu ameaçador que parecia prestes a desabar sobre a Terra. A perna apanhada na armadilha estava imóvel e repousada sobre a relva, mas a outra, dobrada, tremia sem parar. Pensei, sem saber porquê, em Olívia. Perguntei-me o que seria feito dela; se acaso nos observaria de algum lugar recôndito, aqui ou noutro mundo qualquer. Talvez zombasse de nós atrás de uma nuvem.

            Nina abraçou Vincenzo e enterrou o rosto no seu ombro. Também ela chorava. Segredou-lhe alguma coisa ao ouvido e Vincenzo disse, em voz alta:

            «Não.»

            Afastou-se de Nina - teve, na verdade, de a empurrar para que esta se afastasse - e, ao passar por mim, enquanto me olhava com uma mistura de desafio e despeito, cuspiu para a relva.

            «Alia jacta est», disse. Sem tornar a olhar para trás, começou a correr na direcção contrária à do lago, para oeste, de encontro à orla do bosque mais próxima; a mochila saltava-lhe nas costas. Nina sentou-se no chão, apoiou os cotovelos nos joelhos e tapou o rosto com as mãos. Também eu me sentei na relva, exausto, incapaz de continuar de pé. Foi nesse preciso momento que a chuva cessou e, pela primeira vez em horas, o mundo caiu num silêncio apenas interrompido pelas palavras que Elsa murmurava ao ouvido de Stella. Olhei para o céu: era pura escuridão e desordem. Uma última gota do temporal, grossa, atrasada, desfaleceu sobre o mundo, desfazendo-se no meu rosto. Estava na hora.

 

            No final éramos três. Trouxemos o que conseguimos encontrar na garagem - uma lanterna, um cantil de água - e fizemo-nos ao bosque. Avançámos com lentidão, como todos os homens que não conhecem a natureza e a tentam desbravar, sem jeito, incompetentes, temendo a obscuridade provocada pelas copas das árvores e atentos aos sons mais recônditos que os bosques produzem, as suas peculiares criaturas escondidas no meio das ramagens, atrás de uma pedra, no subsolo pantanoso de Sabaudia. Já não havia tempo para culpa ou remorso; a sombra de Bosco estava agora presente a cada passo, o medo derramando-se sobre os nossos corpos na forma de um suor espesso, provocado pelo calor que a tempestade finda trouxera.

            Eu caminhava à frente, usando a bengala para testar o chão coberto de folhas, terra e raízes, prevenindo contra outras armadilhas que Bosco pudesse ter espalhado pelo bosque; os passos de Elsa e Nina crepitavam atrás de mim enquanto avançávamos pelo terreno acidentado, ziguezagueando pelo meio dos grossos troncos dos pinheiros e dos ciprestes, as raízes entrelaçadas no solo como veias carregadas de uma seiva maldita. Tínhamos escolhido caminhar para leste, na direcção contrária à de Vincenzo, e Elsa fora a única a olhar para trás no caminho que ia da casa ao lugar onde a clareira de Metzger terminava e o bosque começava, o lago à nossa direita numa estranha quietude, pontuado por pingos dispersos que sobravam às nuvens, quietude que denunciava um compasso de espera. Elsa olhou várias vezes por cima do ombro, chorando pelas duas figuras que permaneciam caídas sobre a relva - Roger, que ia morrer, Stella que escolhera ficar com ele. Elsa, talvez a única que me ilibara, provavelmente a única que não me acusara aos olhos de Bosco - fazendo de mim o cordeiro de Deus -, era a única que ainda tinha capacidade para amar, a única para quem o destino alheio continuava a ser tão valioso como o próprio, ou talvez mais, porque era a única para quem, na verdade, a vida não era tão importante que salvar-se fosse a coisa mais importante de todas.

            A noite estava próxima. A luz ténue que as copas das árvores permitiam ver começava a esmorecer e, em breve, deixaria de nos iluminar o caminho. Avançávamos às cegas, a um ritmo tão lento que chegava a ser agonizante, na desesperada esperança de que, se continuássemos sempre em frente, acabaríamos por chegar à estrada. Nina mantinha-se silenciosa mas não era difícil adivinhar a conversa que tivera com Vincenzo. Bosco iria atrás dele em primeiro lugar; eu sabia-o, ele sabia-o. Nina sabia-o; partira por isso sozinho numa fuga desenfreada e, provavelmente, proibira-a de o acompanhar. Era, a primeira vista, um gesto generoso - afastar-se de nós servindo de chamariz - mas, na realidade, era a possibilidade contrária que o fizera correr pelo bosque: a possibilidade de conseguir chegar á estrada sem ser travado pelo vagar que nos ia esgotando.

            Ao final de duas horas de caminhada, decidimos parar; estávamos profundamente embrenhados no bosque. Eu e Elsa sentámo-nos em cima de uma pedra enorme, exaustos; ela abrira a camisa e o suor escorria-lhe do corpo pálido. Na mão esquerda segurava a lanterna.

            «Há que esquecer as armadilhas», disse Nina, ofegante. «Temos de avançar ou a noite cai e estamos perdidos.»

            «Temos isto», disse Elsa, mostrando a lanterna.

            «De que serve isso?», perguntou Nina. «Quando ficar escuro, vamos perder a noção do caminho e vamos andar em círculos pelo bosque. Com ou sem lanterna.»

            «Provavelmente, já estamos a andar em círculos», corrigiu Elsa. «Num bosque tudo é parecido, não há trilhos definidos; pouco importa se é noite ou dia.»

            Elsa olhou-me. Mesmo que esquecêssemos as armadilhas, eu nunca conseguiria acompanhá-las se decidissem estugar o passo -havia algum tempo que deixara de sentir a perna. Nina olhou para as copas das árvores acima das nossas cabeças.

            «Quando a noite cair, acabou-se», insistiu. «Sinto-o.»

            «Agora é inútil correr», disse Elsa. «Falta muito pouco para o dia acabar.» Nina dobrou-se para a frente e pousou as mãos nos joelhos. O cabelo ruivo caiu-lhe para o rosto; o suor escorria-lhe pelas costas.

            «A esta velocidade somos presas fáceis.»

            «Não vou deixar mais ninguém para trás», avançou Elsa em tom assertivo.

            Nina levantou a cabeça e olhou-a; havia desespero no seu rosto.

            «Então estamos todos mortos», disse Nina.

            Elsa encolheu os ombros.

            «Já estávamos mortos antes», acrescentou.

            Nina bebeu água do cantil e depois passou-o; em três longos goles, a água ficou reduzida a metade. Depois pusemo-nos outra vez a caminho. Numa espécie de compromisso tácito, deixei de tactear o solo com a bengala em busca de armadilhas. Nina avançou à frente e Elsa e eu caminhámos juntos, os três em conspícuo silêncio; o fantasma de Vincenzo pairava entre nós. Talvez já estivesse morto, mas quem saberia dizer?

            Quando a noite caiu, Elsa ligou a lanterna e assumiu a liderança. A luz era um triângulo mórbido que pouco conseguia contra aquela violenta escuridão. Os troncos das árvores pareciam sussurrar à nossa passagem; as folhas que estalavam debaixo dos nossos pés faziam-no com redobrado estrépito, como se quisessem chamar até nós o carrasco do bosque. Algures, no escuro, piavam corujas c agitavam-se as asas de pássaros, vassalos do demónio; era impossível dizer em que direcção nos movíamos, ou sequer se nos movíamos; talvez o bosque se movesse por nós, criando a ilusão nos nossos espíritos fatigados de que rumávamos a qualquer parte.

            A certa altura, Elsa recuou um passo e agitou a luz da lanterna à sua frente.

            «Quem está aí?», perguntou, assustada.

            Juntámo-nos os três, a tremer de medo, como crianças caídas num pesadelo. À nossa frente alguma coisa resfolegava nos arbustos; a luz da lanterna alongava indefinidamente as sombras. Ficámos em silêncio, a respiração pesada, o coração aos saltos como se fôssemos parte de um mesmo organismo. Como nada acontecesse, tornámos a avançar na escuridão. O susto repetiu-se várias vezes: alguma coisa passava de rajada em frente da luz da lanterna e escondia-se nos arbustos ou atrás do tronco de uma árvore; Elsa parava e fazia um compasso de espera, agitando a lanterna que perseguia as sombras; os três tremíamos de pavor e aguardávamos, como se estivéssemos a ser perseguidos e rodeados por uma criatura que se escusava a aparecer. Depois as pulsações abrandavam e retomávamos o caminho.

            Havia cinco, talvez seis horas, que tínhamos deixado a casa; o bosque prosseguia, infindável; a noite avançava. Quando fizemos nova pausa para recuperar o fôlego, Elsa pousou a lanterna e sentámo-nos em redor desta, bebendo o que restava da água. Pensei: à velocidade a que era possível movermo-nos, devíamos ter percorrido três ou quatro quilómetros, talvez um pouco mais; mas até naquela lentidão teríamos chegado à estrada se caminhássemos em linha recta. Guardei o pensamento para mim. Era inútil partilhá-lo, e continuar a caminhar oferecia-nos uma sensação de propósito que era a única coisa que nos restava. Depois de alguns minutos de descanso, prosseguimos a marcha.

            Contornávamos árvores e pisávamos a terra ainda húmida do temporal, seguindo uma mancha de luz que começava a perder algum fulgor, quando ouvimos um ruído de água. Detive-me por um momento, sentindo a palma da mão calejada contra o cabo da bengala que era agora a continuação do meu braço exausto. Elsa e Nina estacaram, e a luz da lanterna, apontada subitamente ao meu rosto, encandeou-me.

            «Desculpa», murmurou Elsa, e baixou a lanterna que iluminou brevemente os nossos sapatos gastos. Pusemo-nos à escuta; o barulho da água continuava.

            «Vem dali», sussurrei. Elsa iluminou o caminho na direcção que eu apontava.

            «Esperem», disse Nina, segurando-nos pelos braços. «E se for o Bosco?»

            «E se não for?», perguntou Elsa. «Estamos a caminhar há horas, temos de parar. É água, não ouves? Água.»

            Resolvemos ir atrás do barulho. Elsa abria caminho por entre as árvores com a lanterna rente ao chão; quando o som da água se tornou mais próximo, desligou-a. Agachámo-nos atrás de uma árvore e deixámos que os nossos olhos se habituassem à escuridão. Pouco depois, o brilho azulado da Lua mostrou-nos o recorte das coisas. Era uma pequena aberta no bosque e, no centro, brilhava a água de um pequeno riacho que corria por entre as pedras. O som era confortável, quase apaziguador. Depois Nina apontou para uma mancha ao lado do riacho.

            «Olhem.»

            Aos poucos a mancha foi-se revelando, o formato inusitado de alguma coisa compacta, do tamanho de um rochedo embora demasiado rectilínea para ser um rochedo. Elsa tornou a ligar a lanterna e apontou para a sombra: era um automóvel e estava parado junto do riacho. Tinha os pneus vazios. A luz moveu-se pela pintura estragada da porta do condutor e, depois, mais próxima de nós, pela frente, destruída por um impacto recente. Era o carro que pertencera a Don Metzger.

            Saímos do nosso esconderijo e avançámos para o carro; de repente, a porta do condutor abriu-se. Elsa gritou e, recuando um passo, chocou com Nina, que por sua vez se agarrou ao meu braço, procurando apoio, e me arrastou com ela para a terra húmida. Caí de costas e a bengala saltou-me da mão. Durante um breve instante fui tomado por uma incrível quietude - olhando a estrela maior que, visível numa brecha entre as nuvens, reinava solitária sobre Sabaudia -, mas logo o medo me obrigou a erguer com muito maior rapidez do que me julgava capaz. Estiquei o braço, levei a mão à frente do rosto, recuei uns passos. Ouvi as vozes de Nina e Elsa e a voz de um homem - alguém no interior do carro, a porta aberta ainda a ranger nas dobradiças -, mas não havia qualquer luz; Elsa, provavelmente, largara a lanterna e esta ficara perdida no meio da terra. Estaquei, aguardando, o coração a bater desenfreado, o som dos passos vindo de todos os lados, as sombras agitadas tentando encontrar-se no negrume como um jogo de cabra-cega; aguardei também pela morte, pois seria aquele o momento mais óbvio.

            O foco de luz da lanterna surgiu, de repente, e iluminou Vincenzo - ou o que restava dele.

            Estava sentado no lugar do condutor. Encontrava-se nu da cintura para cima e tinha o rosto tão inchado que estaria irreconhecível não fosse pelo seu cabelo espigado e as omoplatas salientes. Nina e Elsa estavam à minha frente e olhavam-no; Elsa apontava a lanterna, mas a sua mão tremia; a luz titubeava. Aproximei-me e vi que o tronco dele estava marcado por inúmeros rasgões, lanhos escuros que o cortavam em vários sentidos. Vincenzo levou a mão direita a um deles, passou o dedo pela ferida e lambeu-o.

            «O sangue no carro não é só meu», disse, numa voz fraquíssima. «Há também algum do McGill».

            Riu-se, débil, enquanto tossia, e o rosto transformou-se numa máscara hedionda: faltava-lhe um dente e tinha o nariz partido. Tirámo-lo do carro, sentámo-lo na terra e ajoelhámo-nos junto dele. Nina pegou-lhe na mão e soluçou.

            «O que é que ele te fez?»

            «Apanhou-me em dez minutos», disse Vincenzo. «E vai voltar.»

            Virou a cabeça e cuspiu um jacto verde-escuro para a terra. Falou-nos em voz baixa, aos soluços, parando uma vez por outra para tornar a cuspir o sangue que se lhe acumulava na garganta.

            «Assim que entrei no bosque, senti-o. Quero dizer, senti-o mesmo. Como se sente a picada de um insecto. Por mais depressa que corresse, por mais que desse às pernas...» Tornou a rir-se. «O tipo só tinha de esticar um braço. Era como se estivesse em toda a parte. Era como se estivesse, não atrás de mim, mas acima de mim. Como se fosse deus, caraças. Ou uma daquelas máquinas com um gancho que apanham bonecos nas feiras populares. Sabes quais são?»

Olhou-me; Nina e Elsa imitaram-no. Os dois suávamos, mas ele suava sangue. Baixei o olhar, incapaz de suster a sua provocação - mas não era uma provocação; não era sequer um atestado de culpa. Quando tornei a enfrentá-lo, percebi que nos seus olhos já não havia desprezo, sequer raiva; havia, somente, uma triste despedida.

            «Sei», respondi. «Sei quais são.»

            «Veio de parte nenhuma e apanhou-me como se fosse um gancho daquelas máquinas. Zut.» Riu-se novamente. Nina afagava-lhe a mão enquanto ele falava. «De um momento para o outro senti-me a voar, arrancado do chão como uma erva daninha. Foi quando me partiu o nariz. Acho eu. Talvez tenha sido aí. Não me recordo bem. Sei que senti uma dor tremenda no rosto e depois ficou tudo negro.»

            A luz da lanterna tremia. Elsa aproximou-se de mim e ficámos ombro com ombro em torno de Vincenzo.

            «Quando recuperei a consciência estava esticado de cabeça para baixo, pendurado numa árvore. Abaixo de mim, na terra, havia uma poça de sangue.» Tossiu, o corpo esfacelado agitando--se; tornou a cuspir para a terra. «Vi o balão no qual Bosco vai partir. Está estendido no centro da clareira em frente da cabana.

            É um balão de duas cores e só lhe resta insuflá-lo. Quando me matar, mete-se nele e vai-se embora.»

            «O que é que aconteceu depois?»

            Vincenzo ficou em silêncio durante um momento; chegou-nos o som tranquilizante do riacho. Depois fechou os olhos por um momento, respirou fixando e continuou:

            «Fui perdendo e recuperando os sentidos. Talvez tenha tido pesadelos, não sei. Mas lembro-me de ver coisas terríveis. Vi a Olívia. Ou se calhar imaginei-a, não sei. Estava de pijama, aquele pijama branco, debruçada sobre a terra. Tinha uma pá na mão e escavava, como se procurasse alguma coisa. Ou talvez estivesse apenas a cavar um buraco, não sei. Via tudo ao contrário e não conseguia sentir o corpo. Julgo que chamei por ela, mas é possível que as palavras me tenham saído tão fracas que não tenha chegado a dizer nada. Desmaiei outra vez. Quando abri novamente os olhos, a noite chegava e vi o Bosco junto dos corpos. Eram o Roger e a Stella. A Stella tinha os olhos abertos. Abertos, juro-vos. Mas estava morta. Depois o Bosco e a Olívia fizeram rolar os corpos para dentro da cova e ele começou a deitar-lhes terra por cima com a pá...» Vincenzo tornou a tossir. Nina passou-lhe uma mão carinhosa pela testa e afagou-lhe o cabelo; era-lhe cada vez mais difícil falar, mas prosseguiu:«... perdi outra vez os sentidos. Quanto a noite chegou, finalmente despertei, mas via tudo turvo. Ele apareceu da cabana com um chicote. Chicoteou-me estas vezes todas, sem parar. Depois, como eu não berrei nem supliquei pela minha vida, porque já não conseguia berrar nem suplicar, o filho-da-puta desamarrou-me da árvore e atirou-me ao chão.» Riu-se uma vez mais, um riso trágico, carregado de tristeza. «Quase não me conseguia mexer, mas ele arrastou-me pelo cabelo em torno da clareira. Não fez nada comigo, simplesmente arrastou-me pelo cabelo como se eu fosse um esfregão. Esfregou o chão comigo. E eu só conseguia pensar nos dois que ele tinha enterrado. Pensava: estou a esfregar o chão fresquinho de mortos, e deu-me vontade de rir. Depois bateu-me com a cabeça nas botijas de gás e elas fizeram um som oco, tlum, tlum. À segunda pancada na cabeça, senti alguma coisa partir-se cá dentro. A seguir largou-me ali, no meio da terra. Deu-me dois ou três pontapés e largou-me. Deve ter ouvido alguma coisa, ou o bosque chamou por ele, ou o que raio os malucos escutam, porque se desinteressou de mim. Nina corria os dedos pelo cabelo molhado de Vincenzo, suavemente, uma leve carícia; Vincenzo respirou fundo, os olhos magoados, sem ponta de esperança, meio ocultos pelo rosto inchado. «... pegou na espingarda e foi-se embora. Como se a conversa tivesse corrido mal e estivesse zangado. O homem é sádico. É louco e sádico. Quis que eu fugisse para poder brincar comigo. Sabe que não consigo ir longe. Depois vem buscar-me e leva-me outra vez para a clareira. Quando já não restar nada de mim, mata-me. A seguir mete-se no balão e faz-se aos céus.»

            Vincenzo abanou a cabeça e riu-se uma vez mais; um riso desdentado, soturno. A luz da lanterna de Elsa estava cada vez mais ténue, e as nossas caras eram agora espectros amarelos em torno de uma fogueira ancestral.

            «Quando é que fugiste?», perguntou-lhe Nina.

            «Quando me consegui mexer. Ele não voltou entretanto. Mal conseguia respirar, mas rastejei para fora da clareira e pelo bosque adentro, até me conseguir pôr de pé. Não sabia para onde estava a ir e não me importei. Se ele voltasse, não sobreviveria a outra tareia. Andei por aí, aos tombos, como um desalmado.»

            Vincenzo passou as costas da mão pelos lábios ensanguentados e secos.

            «Há quanto tempo chegaste aqui?», perguntei, observando a escuridão em nosso redor.

            «Não sei. Há pouco.» Levou a mão ao peito e contorceu o rosto num esgar, como se lhe faltasse oxigénio. Talvez tenha passado mais tempo do que na verdade me parece que passou. Não sei dizer.»

            Elsa olhou-me.

            «Em que é que estás a pensar?»

            «Andámos às voltas desde que partimos. Ele não pode ter chegado longe, não neste estado. E, se estamos próximos da clareira do Bosco, viemos para sul em vez de termos continuado para leste. Continuamos metidos dentro do bosque.»

            «Isto já não dura muito», disse Elsa, agitando a lanterna.

            «Temos de ir então», disse Nina, olhando para Vincenzo; também ele parecia prestes a extinguir-se.

            «Para onde?», perguntou Elsa.

            «Não sei. Temos de o tirar daqui», respondeu Nina. Vincenzo recomeçou a tossir e cuspiu nova golfada de sangue para a terra. «Não ouviram o que ele disse? O outro vai regressar e, quando o encontrar, vai matá-lo. Temos de o levar para fora do bosque.»

            Vincenzo agarrou o pulso de Nina num movimento brusco.

            «Não sejas estúpida», disse, ofegante. «Ele só me quer a mim, não quer saber de vocês. Quer-me a mim e quer acabar comigo devagar. Desapareçam daqui. Têm tempo. Vão na direcção contrária à de onde vieram e hão-de chegar à estrada mais cedo ou mais tarde. Se preferirem, escondam-se algures e esperem pela madrugada.»

Troquei um olhar preocupado com Nina; hesitámos um instante.

            «A Nina tem razão», disse eu. «Fugiremos juntos.»

            «Mas como?», quis saber Elsa, encolhida, temendo a escuridão. «Como? Para que lado é que vamos?»

E então pareceu-me evidente qual era o final da nossa história.

            «Vamos para cima», respondi.

 

            Nina e Elsa ajudaram Vincenzo a caminhar, carregando os braços dele sobre os ombros, enquanto eu abria caminho pelo bosque. Mesmo com a bengala numa mão e a lanterna na outra, conseguia agora ser mais rápido do que eles; embora a luz fosse pouco mais do que um desmaio intermitente e mortiço. O italiano ficou confuso durante um minuto quando o pusemos de pé e, depois, recordando como ali chegara, apontou numa direcção e foi por aí que seguimos. Era um plano absurdo, mas era o único que nos restava; nunca chegaríamos à estrada, não com Vincenzo naquele estado. Roubar o balão de Bosco era, também, um atrevimento digno de um grupo de suicidas - embora, na verdade, já tivéssemos feito um balão voar uma vez, por ocasião do sórdido funeral de Metzger -, mas talvez a loucura desmedida daquela empreitada pudesse funcionar a nosso favor. Afinal, a última coisa que uma besta espera é que a presa se meta no seu covil. Talvez não estivéssemos muito distantes da cabana de Bosco; talvez não tivesse passado muito tempo desde a fuga de Vincenzo; talvez Bosco ainda não tivesse regressado; talvez Olívia tivesse sido um pesadelo ou uma alucinação; talvez houvesse tempo para insuflar o balão e escapar; talvez, por uma vez, desafiando-a, conseguíssemos escapar à morte.

            A lanterna extinguiu-se passados uns minutos mas, por essa altura, já ouvíamos o ruído distinto do gerador. As folhas estalavam debaixo dos nossos pés e, de dez em dez passos. Nina e Elsa tinham de parar para recolocar os braços de Vincenzo sobre os ombros. O italiano esgotara-se com o relato e, agora, a cabeça pendia-lhe sobre o peito, iluminada pela Lua que as nuvens haviam parcialmente descoberto. Adivinhámos o caminho na escuridão seguindo o zunido constante que provinha da clareira.

            Depois vimos as luzes, que se projectavam acima das árvores como se um enorme vagalume por ali nascesse. O clarão irradiava, belo, na densidade do bosque. Avançámos, tentando o silêncio, até que chegámos à orla da clareira. Por entre as árvores conseguíamos ver a cabana de Bosco, os holofotes suspensos de um ramo e, no centro, a lona do balão atada por cordas à gôndola que estava sobre a terra. Aguardámos um minuto, agachados atrás de um arbusto; os nossos corações batiam descompassadamente - podia quase ouvir os batimentos cardíacos de Nina e Elsa atrás de mim - enquanto Vincenzo parecia suspenso entre a vigília e um entorpecimento que o prostrava nos braços das duas mulheres. Como ninguém se encontrava na clareira, fui o primeiro a aventurar-me e, com um gesto firme da mão que segurava a bengala, principiei a erguer-me. A mão de Elsa agarrou-me o braço.

            «Tem cuidado», murmurou.

            Coxeei até ao centro da clareira. A luz dos projectores irradiava milhares de pequenos mosquitos que a circulavam como átomos esfomeados. Ainda era noite cerrada mas, naquele lugar, a forte iluminação artificial conferia-lhe a aparência de um dia apocalíptico, envolto em excessiva brancura. Havia uma estranha quietude, interrompida apenas pelo fantasmagórico zunido do gerador.

            Olhei em todas as direcções: vi Elsa, Nina e Vincenzo espreitarem por detrás do arbusto; vi a corda pendurada da árvore que tinha sustentado o calvário do italiano; vi as sombras das coisas lançadas aos quatro ventos; mas não vi Bosco. Fiz um compasso de espera e, depois, dei sinal na direcção do arvoredo, e Nina e Elsa emergiram, arrastando Vincenzo. Apontei para a gôndola do balão que estava deitada sobre a terra e levei o indicador à boca, pedindo silêncio.

A porta da cabana estava aberta. A luz penetrava pelas frinchas de madeira em feixes que denunciavam uma densa nuvem de pó.

            Procurei, na obscuridade, a ventoinha de ar frio; estava no mesmo lugar onde a vira, junto da bigorna. Subitamente um estrondo metálico: voltei-me e paralisei de susto - na gaiola, um pássaro vivo piou e saltou de um lado para o outro, batendo contra a armação de ferro; a gaiola tornou a chocalhar; os dois pássaros mortos continuavam caídos no fundo. Depois, apoiando-me na bengala, comecei a arrastar a ventoinha para fora da cabana. Nina veio a correr em meu auxílio; Vincenzo estava deitado sobre a relva, quase desmaiado, perto da cesta de verga do balão. Rapidamente levámos a ventoinha até junto da gôndola e imitámos o que Alípio fizera na manhã do funeral de Don Metzger: Elsa e Nina ergueram a parte superior da lona do balão nos braços para que o ar pudesse entrar e eu liguei o aparelho na potência máxima. As hélices começaram a girar a toda a velocidade. Depois, coxeando, fui ao depósito das pequenas botijas de gás propano, escolhi uma que senti cheia e regressei para junto do balão, arrastando-a pela terra. Olhei para a lona, que começava a insuflar. Não deveria demorar mais do que dez minutos; não tinha demorado mais do que isso quando Alípio insuflara o balão de Metzger.

            O barulho da ventoinha juntou-se ao zunido do gerador e a noite encheu-se de um som monótono, constante. Nada havia a fazer senão aguardar; um enxame infinito de mosquitos pairava sobre nós. As roupas e os cabelos de Elsa e de Nina agitavam-se ao ar frio da ventoinha que começava a encher o envelope. Pareciam dois anjos numa rajada de vento, pensei, os braços esticados ao máximo, em bicos de pés, a lona azul e vermelha dançando atrás delas como uma vaga colorida. Vincenzo enrolara-se agora numa posição fetal, de olhos fechados, as marcas do chicote e os hematomas no seu corpo mais visíveis à luz intensa, o rosto coberto de sangue. O meu coração galopava e, enquanto atarraxava o tubo de alimentação do maçarico à botija de gás, olhei uma vez para a orla do bosque e imaginei Bosco a irromper por entre as árvores montado num cavalo negro, galgando na nossa direcção com um martelo em punho e pronto a espezinhar o que restava da nossa derradeira tentativa. Mas nada disso aconteceu. O que aconteceu foi que o envelope de lona cresceu cada vez mais e, em pouco tempo, tinha formado um semicírculo na clareira, retesando as cordas que o uniam à cesta. Subitamente havia esperança nos olhos de Nina e Elsa; havia esperança nos meus; a lona do balão era agora uma gruta colorida de ar frio.

            Foi nesse momento que o bosque começou a gritar. Um grito a princípio distante, camuflado pelo som da ventoinha, como um espírito aprisionado no fundo de um armário; depois, cada vez mais próximo, cada vez mais estridente, como se esse espírito saísse da escuridão, voraz, e viesse mostrar a bocarra de dentes carnívoros e devoradores. Procurámos a origem do grito, num pânico conjunto que nos fez voltar as cabeças em simultâneo; Nina e Elsa largaram as abas do envelope insuflado e eu fiquei paralisado, de cócoras, junto do maçarico.

            Era Olívia.

            Caminhava lentamente na nossa direcção, em pijama branco e descalça, a sua figura magra recortada contra a cabana assombrada pela luz intermitente do candeeiro eléctrico; caminhava para nós, de boca aberta e braços retesados ao lado do corpo, as mãos fechadas em punhos de fúria, o cabelo revolto pelo vento, e gritava a plenos pulmões, embora nada dissesse no seu grito - era apenas ruído, um ruído agudo e indescritível, uma voragem saída do fundo da sua garganta que parecia consumir todos os outros sons em redor. Quando o primeiro grito terminou, Olívia - que era um fantasma, nada mais do que um fantasma - dobrou ligeiramente os joelhos e, como se preparasse um salto para a água, encheu os pulmões de ar e redobrou a força do grito. Gritava, o rosto contorcido pelo esforço, para chamar a atenção; gritava, soube-o então, para que Bosco viesse ao seu encontro.

            Mas o segundo grito não durou muito. Nina pegou na lanterna apagada que eu largara sobre a terra junto de Vincenzo e, correndo para Olívia, com um único e brutal movimento, atingiu-a no rosto. O barulho do choque foi seco e breve: o sangue explodiu-lhe na cara, mas Olívia não caiu logo. Cambaleou, aturdida, o líquido vermelho escorrendo para a frente do seu pijama, os braços em movimentos sinuosos procurando um apoio invisível; porém, antes que se pudesse recompor. Nina atingiu-a uma segunda vez. Ouviu-se outro barulho, desta vez alguma coisa que se partia; Olívia caiu redonda sobre a terra e Nina, com um despeito pela vida que só poderia ter aparecido naquele momento, debruçou-se sobre o fantasma e continuou a bater-lhe com a lanterna, uma, duas, três vezes.

            «Nina.»

            Elsa puxou-a pelos ombros e as duas caíram para trás. O rosto de Olívia, tombado de lado, era um caos de hematomas púrpuras e sangue. Elsa segurou Nina com firmeza durante um momento, até que esta deixou a lanterna escorregar da palma da mão e rebolar para a terra. Nina olhou para Elsa e depois para mim; o furor desaparecera dos seus olhos.

            «Vamos», disse Elsa, tentando erguê-la por um braço; Nina resistiu por um instante, mas depois deixou-se levar. «Vamos», repetiu Elsa.

            A ventoinha continuava ligada, agitando a lona do balão, os cabos cada vez mais tensos. Largando a bengala no chão, pus-me de joelhos e rastejei para dentro da gôndola tombada. Depois abri a válvula que libertava o gás propano e acendi o maçarico destrancando a manivela. A chama projectou-se em frente, uma nuvem azul no centro da qual uma rajada amarela queimava o ar frio que insuflara o envelope. Tínhamos pouco tempo. Puxei a bengala para dentro da gôndola enquanto Nina e Elsa, uma de cada lado, tentavam esticar as abas do envelope, procurando que enterrado no solo, que terminava numa anilha; a corda tinha ficado escondida pela lama. Nina ajoelhou-se junto da anilha e começou a desatar a corda, as suas mãos movendo-se com nervosa destreza.

            «Depressa», disse Elsa, ansiosa. «Depressa.» Foi nesse momento que o vi, emergindo do bosque como um centauro enraivecido. Elsa deu um grito e recuou para a parte mais distante da gôndola, enquanto o meu corpo desceu a uma temperatura mínima; apesar do calor intenso do maçarico, fiquei gelado, incapaz de me mover. O corpo poderoso de Bosco galopava na nossa direcção, de camisa rasgada, as pernas grossas como troncos de árvores, a espingarda pendurada às costas, agitando-se como a lança de um guerreiro ancestral. Trazia a morte no olhar - ou qualquer coisa pior do que a morte. «Nina», gritou Elsa.

            Nina conseguiu soltar a corda e, antes de regressar para dentro da cesta, olhou uma vez para trás, para a figura aterrorizadora que se aproximava a grande velocidade. Bosco estava a menos de dez metros quando o balão começou a subir; Bosco estava a menos de cinco metros quando o balão já se erguia a um metro e meio da terra; depois Bosco deu um salto em frente, o corpo esticado como uma bala que tivesse sido disparada de um canhão e, perante o nosso horror - recuámos, por instinto, para o fundo da gôndola -, conseguiu agarrar o braço que Vincenzo tinha deixado de fora. A gôndola abalou com violência e descaiu para o lado onde Bosco se pendurara, e os três resvalámos para cima de Vincenzo, que, incapaz de oferecer resistência, era arrastado pelo peso do catalão. Pensei: vamos virar-nos ao contrário, mas um balão não se vira: em resposta ao sacão, a força do ar quente tornou a equilibrar a frágil cesta e fez-nos resvalar outra vez para trás, a gôndola titubeando para os dois lados, indecisa entre o peso de Bosco e a força do ar que explodia dentro do envelope.

            Antes que pudéssemos recuperar o pé, já Vincenzo era arrastado para fora do cesto pela força do catalão, que, pendurado no ar, os pés a poucos centímetros do chão, tinha no rosto uma mórbida expressão de vingança, as mãos firmemente presas aos braços do italiano.

            O resto aconteceu muito depressa. Lançámo-nos os três em socorro de Vincenzo, mas foi Nina quem chegou primeiro. Ainda hoje me pergunto se terá sido um acaso, se, na verdade, aquele desfecho havia sido decidido de antemão; a resposta nunca veio e nunca virá. Pouco importa: foi Nina quem chegou primeiro, foi Nina quem agarrou, com braços movidos pela força do amor, as calças de Vincenzo enquanto o corpo deste desaparecia de vez do interior do cesto, e foi Nina quem se viu, no lapso de um breve segundo, arrastada para fora da gôndola pelo peso dos dois homens e se despenhou com eles em direcção ao solo, enquanto o balão, aliviado, começava a subir para dentro da noite, a gôndola vacilando pela última vez. Depois Elsa e eu, agarrados, debruçámo-nos sobre a cesta e olhámos para as três figuras caídas sobre a terra. Em poucos segundos estávamos nas alturas, todas as coisas perdendo tamanho lá em baixo. Nina ainda tentou lutar, e vimo-la, no centro da clareira, o cabelo ruivo resplandecente às luzes eléctricas, atirar-se à figura maciça do catalão, da qual agora só reconhecíamos a careca luzidia e os ombros largos; colocou-se entre Bosco e Vincenzo e, com gestos agressivos, tentava manter o catalão afastado do italiano que, prostrado sobre a terra, parecia ter perdido os sentidos. Continuámos a subir e houve uma lágrima nos olhos de Elsa no momento em que, a clareira transformada numa colmeia de luz no meio de um mundo de alcatrão, vimos Bosco apontar a espingarda na direcção de Nina e o disparo nos chegou na forma de um eco longínquo, o som seco de uma rolha arrancada a uma garrafa. O corpo de Nina tombou. Elsa tapou os olhos, voltou costas e sentou-se dentro da gôndola. Também eu desviei o olhar; o segundo tiro foi uma ilusão distante, abafada pelo barulho do maçarico, cuja chama nos transportava para longe, para longe, para longe, para cada vez mais longe.

 

            O céu clareou e o vento ameno transportou-nos. Pouco tempo depois de deixarmos o bosque, o horizonte revelou a manhã vindoura, anunciada numa linha de luz trémula logo acima do mar. Quando me pareceu que tínhamos subido o suficiente, desliguei o maçarico; a chama extinguiu-se lentamente. Não me perguntei aonde iríamos parar e não me interessava saber. Aos meus pés, Elsa chorava baixinho; lá em cima tudo era silêncio, tudo era melancolia. Sem o calor da chama, o ar frio da madrugada cortou-me a respiração. Olhei para baixo. Vi o rectângulo do bosque nitidamente recortado nas terras de Sabaudia. Vi a clareira onde a casa de Don Metzger permanecia, agora desabitada, para sempre um lugar de fantasmas. Vi as casas e as povoações, os campos lavrados em pequenos quadrados castanhos e verdes, as linhas escuras das estradas que havíamos percorrido noutro tempo, e o azul-turquesa das águas, e a areia amarela das dunas no litoral. Na minha cabeça fui para outros lugares e foi nesse momento que comecei a ver tudo ao contrário - como se todas as coisas que eu julgara perdidas estivessem lançadas ao vazio de um futuro ainda por escrever; como se esse futuro não fosse mais a sombra da minha vida, mas um lugar desabitado que não sabia onde começava ou terminava; como se tudo não estivesse agora e para sempre predestinado ao fracasso e a verdadeira quimera fosse continuar a procrastinar ou adiar todas as decisões porque o futuro e o passado não eram coisas iguais, sequer semelhantes, mas duas faces de um espelho que só se pode atravessar quando se viaja num balão sem rumo, a uma velocidade impossível, para fugir ao pesadelo do que já aconteceu em direcção à incógnita de tudo o que poderá acontecer; e foi então que soube que chegaria a esse futuro por escrever e que, nesse futuro, tudo se tornaria a passar como se fosse a primeira vez e me seriam devolvidas todas as coisas que julgara perdidas, um futuro onde aterraria a qualquer momento sem esperar uma resposta, porque sabia agora que não existia uma resposta ou que a única resposta era uma secreta e apaziguada esperança.

            Enquanto me detinha nestas cogitações, Elsa ergueu-se e puxou a corda que abriu a válvula do pára-quedas no topo do envelope. Não me ocorrera fazê-lo, não apenas porque não sabia para que servia aquela corda, mas também porque regressar à terra me parecia um gesto inútil e sem propósito. Elsa tornou a sentar-se; ao contrário de mim, o mundo que despertava em nosso redor parecia-lhe uma coisa agreste. Havia pouco vento e, com a naturalidade de um pássaro, o nosso balão de fuga foi descendo calmamente dos céus, nada o sustendo mas também nada o obrigando a repousar, e fomos levados numa suave diagonal, através dos campos e das povoações e das estradas e finalmente passando pela comuna de Sabaudia até pousarmos sobre um extenso campo de margaridas silvestres quando a manhã já principiava. A gôndola atingiu o solo com alguma velocidade e eu caí dentro dela, encontrando Elsa no rebolão. O cesto de vime ficou deitado de lado e, depois, o envelope do balão desfez-se de ar e, como uma manta que se coloca sobre uma criança adormecida, envolveu-nos ao primeiro sol daquele dia que começava a brilhar através da lona azul e vermelha, inundando-nos de cor. Com algum esforço destapei a lona que nos cobria e rastejei para fora da gôndola. O campo verde, repleto de flores amarelas, estendia-se para um dos lados; do outro, uma estrada de terra batida conduzia a uma duna.

            Elsa emergiu de baixo da lona e deitou-se de costas sobre as flores. Respirava pesadamente, arfando como se tivesse corrido durante muito tempo. Os seus olhos magoados fitavam o céu que começava a despertar num imenso azul. Ainda de joelhos, aproximei-me dela e, suavemente, levei os meus lábios aos seus. Ela fechou os olhos e pareceu sorrir. Eu conhecia bem aquela boca; era uma boca que também me conhecia, éramos velhos amigos. Depois tirei os sapatos e descalcei as meias suadas. Lentamente desapertei, um a um, os botões da camisa encardida que trazia vestida. Pensei: a bengala ficou dentro da gôndola. Mas não a fui resgatar. Já não precisava dela. Pus-me de pé e foi então que o dia abriu, iluminando aquele campo de flores estivais. Avancei na direcção da estrada, a coxear, arrastando a perna doente com o peso do corpo ainda são. Quando os meus pés entraram no caminho de terra, que permanecia um tanto húmida da noite de temporal, a bengala era já uma memória de outra vida. Caminhava ansiosamente na direcção da duna. Caí duas vezes no chão antes de chegar à praia. O areal imenso estava deserto; o mar era tão azul como o mar de um sonho, nenhuma espuma à vista, uma cegonha observando o horizonte do cimo de uma rocha. A areia fina entrelaçou-se nos dedos dos meus pés. Olhei para a esquerda e vi, à distância, o rosto recortado pela erosão da água na rocha de Circe. Podia ser o rosto de Don Metzger, pensei; podia ser o rosto de qualquer um de nós, um rosto esculpido pela erosão do acaso num promontório voltado para o Mediterrâneo, um promontório cujo destino não estava ainda decidido.

            Nada está decidido, penso. Coxeio lentamente na direcção do mar. A areia morna afaga-me os dedos nus. Pé ante pé, chegarei à beira da água e nela mergulharei para lavar o meu corpo de culpas. Olho para o céu onde não existe uma única nuvem à vista. Saltámos uma estação, pois o Verão - o verdadeiro, não esta escusada mentira — acabou de chegar.

           

            O balão negro onde Dou Metzger partiu foi encontrado na ilha de Ponza, no fundo de uma falésia, perto do final do Verão. O corpo, no interior da gôndola, tinha apodrecido e sido parcialmente dilacerado pelas gaivotas. A Polícia italiana considerou que a morte tinha sido causada por um «acidente». Não foi feita qualquer autópsia. A notícia no La Repubblica falava da casa deferias de Sabaudia, que a Polícia investigou, e que revelou encontrar-se vazia com excepção dos móveis e de alguns pertences pessoais do produtor. O artigo referia ainda que a casa se encontrava «excepcionalmente limpa».

            Alípio e Susanna Rizzo foram interrogados e afirmaram ter passado o Verão na casa de família, na Lombardia, depois de Don Metzger ter prescindido dos seus serviços.

            Nos últimos três meses, surgiram notícias dispersas sobre os desaparecimentos de John McGill, Roger e Stella Dormant e Vincenzo Gentile. Não surgiu qualquer notícia sobre o desaparecimento de Olívia Fontana ou Nina Millhouse Pascal. Nenhum dos desaparecimentos relatados foi ainda relacionado com a morte de Don Metzger. A Polícia continua a investigar os casos separadamente.

            Não existe qualquer referência a Andrés Bosco nos jornais.

            Nunca mais tornei a ver Elsa Gorski. Embora tenha a certeza de que, um dia destes, nos voltaremos a encontrar.

 

                                                                                João Tordo  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"