Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O BRÁS
Os novos patrões
Brás estava sentado num banco, com o queixo apoiado na mão esquerda. Reflectia tão profundamente que nem pensava em trincar uma fatia de pão com requeijão que sua mãe lhe dera para o almoço.
- Em que pensas, meu rapaz? - disse-lhe a mãe.
- Deixas cair ao chão o requeijão e assim o pão não fica bom.
BRÁS - Pensava nos novos patrões que vão chegar, minha mãe, e queria adivinhar se são bons ou maus.
SR.a ANFRY- És pateta! Como queres adivinhar como eles são se nenhum de nós os conhece?
BRÁS - Não os conhecemos aqui, mas os moços de estrebaria que chegaram ontem com os cavalos conhecem-nos e não gostam deles.
SR.a ANFRY- Então isso prova que ele e os patrões são maus?
BRÁS - Quando rapagões como estes têm medo de um rapazinho de onze anos é porque este lhes faz mal.
BRÁS - Ora! Ele vai fazer queixa; o pai e a mãe dão-lhe atenção e ralham com os pobres criados. Por mim julgo que ele não é bom.
BRÁS - Ah, meu querido Sr. Tiago! Esse era bom e amável como se vê poucas vezes. Repartia tudo comigo; tinha sempre uma gulodice para me dar: uma pera, um bolo, cerejas, brinquedos; era mesmo bom e eu gostava dele. Ah, se gostava!.. Nunca me consolarei da sua partida.
Brás começou a chorar.
SR.a ANFRY-Vamos, Brás, deixa isso! Mesmo que chores todas as lágrimas que tens no corpo, não consegues que ele volte. Desde que o pai fez esta venda aos novos patrões é negócio feito, e as tuas lágrimas de nada valem, não é verdade? Eu também tenho saudades do Sr. e da Sr. a Berne e, apesar disso, não me vês chorar...
A Sr. a Anfry foi interrompida pelo estalar de um chicote e por uma voz forte que chamava:
- Eh lá! Porteiro! Não está aqui ninguém? A Sr. a Anfry deitou a correr; um criado a cavalo e de libré estava junto do portão fechado.
- É você a porteira daqui? Deixe estar o portão aberto; o Sr. Conde chega daqui a cinco minutos disse ele, com ar insolente.
- Sim, senhor - respondeu a Sr.a Anfry, cumprimentando.
- Está tudo em ordem no solar?
- Ora essa, senhor! Fiz o melhor que pude para agradar aos patrões - respondeu timidamente a Sr. a Anfry.
- Está bem, está bem - disse- o criado, chicoteando o cavalo.
A Sr.a Anfry abriu o portão, continuando a seguir com os olhos o criado, que galopava para o solar.
- Não é delicado, este - murmurou. - Bem podia ter falado mais amavelmente. Brás, meu filho - continuou em voz alta - corre ao solar e previne o teu pai de que os novos patrões estão a chegar; que venha depressa ter comigo para os receber ao portão.
- Onde o posso encontrar, minha mãe? - perguntou Brás.
- Nos quartos, que está a arrumar e a limpar desde manhã; vai, filho, vai depressa.
Brás, partiu a correr; entrou no vestíbulo, onde encontrou cinco ou seis criados que iam e vinham com ar assustado.
- Alto aí, pequeno! -gritou-lhe um dos criados.
- Não passes por aqui com essa camisa. Que queres?
- Procuro meu pai, senhor, para ir receber os patrões - respondeu Brás. - A minha mãe disse-me que ele estava no solar.
E Brás quis entrar nos aposentos; o criado agarrou-o pelo braço.
CRIADO - Já te disse, rapazinho, que os criados não passam por aqui. O teu pai não está no solar; não é lugar dele nem teu. Vai procurá-lo a outro sítio.
BRÁS - Mas a minha mãe disse-me.
CRIADO - Acaba com isso e põe-te a andar, resmungão! Se acrescentas uma palavra sacudo-te os ombros com o cabo do meu espanador.
O pobre Brás retirou-se de coração apertado e voltou tristemente para o portão, onde a mãe o esperava.
- Não quiseram deixar-me entrar, minha mãe; disseram que o pai não está no solar e que eu não podia entrar em camisa. No tempo do Sr. Tiago eu andava à vontade.
- Receio que não tenhas errado, meu pobre Brás - disse a Sr. a Anfry, suspirando. - Tais patrões, tais criados. Os criados não são bons, os patrões também não o devem ser... Que havemos de fazer? Eles não vão gostar que o teu pai não esteja aqui para os receber. Um porteiro tem que estar no seu portão.
BRÁS - Quer que volte ao solar, minha mãe? Talvez o encontre nas cavalariças.
Ao acabar estas palavras, chegava Anfry a correr, ofegante e suado, precisamente quando uma nuvem de poeira anunciava a aproximação da carruagem.
Anfry colocou-se de chapéu na mão, de um lado do portão; a Sr.a Anfry alinhou com Brás do outro lado: a berlinda, puxada a quatro cavalos apareceu, virou a galope e enfiou pela avenida do solar. Passou tão rapidamente que Brás mal teve tempo de ver um senhor e uma senhora no fundo da carruagem, um menino e uma menina à frente. Passaram sem corresponder às reverências da Sr.a Anfry e à saudação do porteiro; só a menina cumprimentou.
Quando a carruagem se sumiu, o marido e a mulher olharam-se com tristeza; fecharam lentamente o portão, tornaram a entrar em casa sem dizer palavra e sentaram-se à mesa, onde se encontrava o modesto jantar. Brás juntou-se- lhes e, como os pais, foi silenciosamente para junto da mesa.
- Meu amigo - disse, por fim, a Sr.a Anfry - que tal achas os criados dos novos patrões?
- Maus - respondeu Anfry -, grosseiros, más línguas. Maus - repetiu, suspirando.
ANFRY - Pode muito bem ser! Não vai ser como os anteriores. Brás, meu filho - acrescentou, voltando- se para este-, não vás ao solar; não vás lá senão quando te mandarem e demora-te o menos possível.
BRÁS - É isso que tenciono fazer, meu pai; não tenho vontade nenhuma de lá ir. Quando o meu querido Sr. Tiago morava lá, era bem diferente; eu gostava dele e ele queria-me sempre... Talvez nem o torne a ver! Meu Deus! Meu Deus! Como é triste gostar das pessoas que nos deixam.
E o pobre Brás deixou cair algumas lágrimas. ANFRY-Vamos, Brás; coragem, meu rapaz! Quem sabe? Talvez o tornes a ver mais depressa do que julgas. O Sr. Berne prometeu- me que trataria de me empregar nas suas terras, para onde foi viver.
BRÁS - E depois vende-as também e temos outra vez de mudar de patrões.
ANFRY - Isso não; tu nada sabes e falas como se soubesses. A outra terra é da família dele e não deve nunca ser vendida, ao passo que esta era da família da senhora e eles não podiam viver em duas propriedades ao mesmo tempo. Não é verdade?
- Para que serve falar de tudo isto? - disse a Sr.a Anfry. - Vamos ao jantar. Queres queijo, Brás, en quanto esperas a salada de ovos cozidos?
Brás aceitou o queijo; depois a salada e, sempre suspirando, comeu com bom apetite, pois, aos onze anos, chora-se e come-se ao mesmo tempo.
O resto do dia decorreu tranquilamente para a família do porteiro; ninguém os chamou. Quando caiu a noite, correram os ferrolhos do portão. O porteiro deu o seu giro para ver se tudo estava bem fechado e voltou para se deitar. A mulher e o filho dormiam já, profundamente.
Primeira visita ao solar
- O Sr. Conde chama o porteiro - disse, com voz imperiosa, um dos criados do solar.
Era manhã alta. A Sr.a Anfry tratava da casa; Brás limpava a louça, e Anfry tinha ido serrar madeira para os fornos da cozinha e da lavandaria.
O criado abrira ruidosamente a porta e conservava-se na soleira, observando o modesto mobiliário do porteiro.
- A vossa mobilia não honra os antigos patrõesdisse o homem, troçando. - Se o Sr. Conde passa por aqui, obriga-os a trocar tudo isso depressa.
- Que tem a minha mobília com os antigos patrões? - respondeu vivamente a Sr.a Anfry. - Porventura, falta-lhe alguma coisa? Não está tudo em bom estado? Eram bons patrões, os que já cá não estão, e não peço a Deus que mos dê melhores.
CRIADO - Ah! Ah! Deus! Como se ele se preocupasse com um porteiro e a sua mobilia.
CRIADO - Bom, bom, porteira, não é preciso zangar-se com uma brincadeira. Mas o Sr. Conde chamou o porteiro e eu não o vejo aqui...
SR.a ANFRY - Está para o solar, a serrar madeira; vá lá procurá-lo e dê-lhe o recado.
CRIADO- Se mandasse lá o seu rapaz eu tinha tempo de dar uma volta pela aldeia e conhecer as lojas.
CRIADO - A senhora é aborrecida; mas tome cuidado, porque podem tratar de substituí-la e mandá-la embora.
O criado viu que não ganhava nada em continuar a conversa; retirou-se resmungando e tornou a subir lentamente a avenida do solar. Encontrou o porteiro na estância, como lhe dissera a Sr. a Anfry.
- O Sr. Conde chama-o - disse-lhe bruscamente.
- Não estou vestido de maneira a poder apresentar-me ao Sr. Conde! - respondeu Anfry.
- Mas se ele o chama, é porque o quer como estiver - retorquiu o criado em tom rabugento.
- Está bem! - limitou-se a responder Anfry. E, deixando o seu trabalho, vestiu o casaco, sacudiu a poeira dos pés e dirigiu-se para o solar.
- Aonde vai? -disse-lhe rudemente um criado que varria a escada.
- O Sr. Conde mandou-me chamar.
- Tem a certeza disso? Então passe, apesar de estar mal vestido para aparecer ao Sr. Conde.
- Lá nisso não há dúvida; até gostava de lá não ir. E Anfry pôs-se a descer a escada, que acabava de subir até meio.
- Mas não, siga lá. Já que o Sr. Conde o chamou, é porque o quer ver.
- Então guarde as observações para si - disse Anfry, tornando a subir a escada.
Chegou à porta do Conde Trénilly e bateu discretamente.
- Entre! - gritaram.
Anfry entrou. Viu um homem de trinta e cinco a trinta e seis anos, de boa aparência, aspecto altivo, mas com um olhar bastante agradável. Anfry fez uma vénia; o conde respondeu com um ligeiro aceno de cabeça.
- Tem filhos? - disse em voz breve.
ANFRY - Um só, Sr. Conde.
CONDE - Rapaz ou rapariga? ANFRY - Rapaz.
CONDE - De que idade? ANFRY - Onze anos. CONDE - Mande-o cá.
ANFRY - Para que serviço, Sr. Conde?
CONDE - Para o meu, é boa! Se sou eu que lhe estou a dizer que mo mande!
ANFRY - Perdão, Sr. Conde, mas não compreendo como o meu rapaz, de onze anos, pode servir o Sr. Conde. E para ser claro, não gostaria de pô-lo em contacto com os criados da casa.
CONDE - E porquê? Faz favor de me dizer. O filho do meu porteiro é tão fidalgo que não possa conviver com os meus criados?
ANFRY - Pelo contrário, Sr. Conde, parece que não é digno deles; ontem expulsaram-no e tornariam a fazê-lo.
- Gostaria de ver isso -gritou o conde colérico -, sendo por minha ordem que ele aqui viesse.
ANFRY - Enfim, Sr. Conde, o meu rapaz poderia ver e ouvir coisas que me dariam desgosto se lhe fizessem mal, e gostava que ele ficasse em casa e não entrasse no solar.
O conde ficou admirado com esta resistência. Olhou atentamente o porteiro e pareceu impressionado com o seu ar decidido, mas franco, afoito e honesto, que tinha
qualquer coisa que impunha respeito. Hesitou um momento, depois continuou em tom mais moderado:
- Era para o meu filho que eu lhe pedia o seu; mas talvez tenha razão... Quando o meu filho quiser brincar com o seu rapaz, irá procurá- lo a sua casa. Adeus - acrescentou, fazendo com a mão um gesto de despedida - qual é o seu nome?
- Anfry, Sr. Conde, ao seu dispor.
Anfry saiu, desceu a escada e, no vestíbulo, os criados fizeram-no parar, com curiosidade de saber o que o patrão pretendia de uma pessoa tão pouco importante como era o porteiro de um solar; Anfry respondeu- Lhes secamente, sem parar, e voltou para casa.
Brás estava em frente do portão; andava a limpar e a esfregar quando o pai entrou.
- Viste o filho do Sr. Conde? - perguntou-lhe Anfry.
BRÁS - Não, meu pai; não vi ninguém, a não ser um criado que veio dizer-me para ir ter com o Sr. Júlio.
ANFRY - Mas não foste, com certeza?
BRÁS - Não, meu pai, pois não mo proibiu? De resto, não me interessa conhecer esse Sr. Júlio. Calculo que não deve ser bom.
- Deves ter razão; trabalha, vai à escola, que será melhor para ti do que divagar e preguiçar todo o dia. Entretanto, vai buscar o podão que deixei na estância; estão uns ramos por cima do portão que não deixam abri-lo bem. Quero cortá-los.
Brás, sempre pronto a obedecer, partiu a correr, entrou na estância e encontrou lá Júlio Trénilly, que tentava cortar aparas de madeira com o podão.
- Quer ter a bondade de me dar esse podão? disse-lhe Brás delicadamente.
JÚLIO - Não é teu, não to dou.
BRÁS - Perdão, mas é de meu pai; mandou-me buscá-lo.
JÚLIO - Já te disse que preciso dele; deixa-me em paz.
BRÁS - Mas o meu pai também precisa dele e tenho de lho levar.
JÚLIO - Anda e deixa-me sossegado; estás-me a aborrecer.
Brás insistiu novamente; Júlio continuou a recusar; Brás aproximou-se para tirar o podão das mãos de Júlio, que se enfureceu e ameaçou atirá-lo à cabeça de Brás. Fez, realmente, o movimento de o lançar; o podão, pesado de mais, caiu-lhe em cima de um pé, fazendo-lhe um golpe que atravessou o sapato e a meia até à pele; Júlio pôs-se a gritar; Miguel, o moço da cavalariça, apareceu e assustou-se ao ver sangue no pé do jovem patrão.
- Como é que se feriu, Sr. Júlio? - perguntou.
JÚLIO - (gritando) - Foi este maroto que me fez mal. Cortou-me com o podão.
MIGUEL- (rudemente) - Patife! Que vens aqui fazer? Tu és filho do porteiro; vai para o teu cubículo e não saias de lá... Não chore, pobre Sr. Júlio; hão-de ralhar com este maroto que lhe fez mal.
JÚLIO - Miguel, vais dizer que ele me feriu com o podão.
MIGUEL - Mas isso é verdade? Por mim não vi nada.
JÚLIO - Tanto faz. Tu dizes assim porque a culpa foi dele; se não quiseres, digo que foste tu e hás- de ser despedido.
MIGUEL - Não, não Sr. Júlio, isso não, não quero ser despedido; digo aquilo que me mandar.
Brás ficou imóvel, estupefacto. Por fim, pegou no podão e disse para si: - Muito mau deve ser este rapaz! Vou já contar tudo a meu pai, para que ele saiba a verdade e fique seguro de que não fui eu que o feri.
Correu para o portão; o pai esperava-o, impaciente.
- Levaste tempo, meu rapaz! - disse recebendo o podão. - Que te prendeu este tempo todo?
Brás, ofegante, contou ao pai o que se tinha passado; mal terminara, apareceu o Sr. Trénilly no alto da avenida, caminhando apressadamente para o portão. - Anfry! - gritou severamente. - Traga-me esse rapazelho que se escondeu em casa quando me avistou. Anfry caminhou sozinho ao encontro do Sr. Trénilly.
- Sr. Conde - disse ele, de chapéu na mãocreio saber o que o traz aqui e sei que o meu filho não tem culpa do que aconteceu.
ANFRY - Não foi o meu rapaz, mas sim o seu que se feriu a si próprio.
ANFRY - Não, Sr. Conde, mas por imprudência e por despeito.
Então Anfry contou ao Sr. Trénilly o que acabava de ouvir a Brás.
- Mande-o vir - disse o Sr. Trénilly-, quero ouvi-lo contar isso.
Anfry foi buscar Brás e encontrou-o agachado atrás de uma cortina.
ANFRY - Vamos, Brasinho, vem falar ao Sr. Conde; ele quer que tu lhe contes o que se passou com o Sr. Júlio.
BRÁS - Oh! Meu pai, tenho medo. Está com cara de zangado e vai-me bater.
ANFRY - Bater-te! Está sossegado, meu rapaz; eu estou lá! Se fizer menção de te tocar, levo-te e deixamos a casa; é só o tempo necessário para levarmos o que possuímos.
Brás saiu do esconderijo e, a tremer, seguiu o pai que o levou ao Sr. Trénilly. Brás não se atrevia a levantar os olhos; o Sr. Trénilly olhava-o com raiva.
- Conta-me como foi que o meu filho se feriu! disse por fim, com dureza.
BRÁS - Ele não queria entregar- me o podão que o meu pai me tinha mandado buscar, eu insisti; zangou-se e quis ferir-me mas o podão era pesado; caiu e feriu-lhe um pé.
BRÁS (vivamente) - Não, meu senhor, não minto, eu nunca minto. Se eu tivesse ferido o Sr. Júlio, dizia-o sem esperar que mo pedissem.
A honesta indignação de Brás pareceu impressionar o Sr. Trénilly; olhou alternadamente Brás e Anfry, e foi-se embora, dizendo a meia voz:
- É singular! Ele tem um ar franco e honesto; mas porque seria que Júlio inventou esta história e Miguel lhe deu razão?.. Vou tratar de saber isso.
Quando ele se retirou, Anfry voltou para casa com Brás e repetiu-lhe a proibição de ir ao solar sem necessidade.
A reparação e a reincidência
Oito dias depois, Brás estava no jardim com o pai; sachavam um canteiro, quando ouviram a voz do Sr. Trénilly chamando Anfry.
- Estou aqui, Sr. Conde! - respondeu Anfry. E correu para o conde, que dava a mão a Júlio.
- Anfry - disse o conde -, está aqui o Júlio que vem pedir desculpa ao seu rapaz pelo que se passou a semana passada; o seu rapaz tinha razão. Foi Miguel que mentiu; Júlio feriu-se a si próprio, já o confessou, e está aborrecido de ter acusado sem razão o seu rapaz; com medo de que lhe ralhassem por ter mexido no podão, disse uma mentira e uma maldade, mal aconselhado por Miguel, que foi despedido e voltou para a sua terra; Júlio não voltará a fazer isso, porque mo prometeu. Júlio, vai dizer isso mesmo a Brás.
Júlio encaminhou-se lentamente para o sítio onde Brás trabalhava; tinha vergonha das desculpas que seu pai Lhe mandara dizer, e não sabia como havia de começar. Estava imóvel e silencioso diante de Brás, que o olhava surpreendido.
- Em que o posso servir, Sr. Júlio? - perguntou-lhe por fim.
- Em nada - respondeu Júlio.
- Mas se veio para o pé de mim, Sr. Júlio é porque precisa de mim.
Não - respondeu Júlio.
BRÁS- Então continuo a sachar, salvo o devido respeito, Sr. Júlio. O meu pai não gosta que eu perca tempo.
JÚLIO (embaraçado) - Brás!
BRÁS - Sr. Júlio.
JÚLIO (muito embaraçado) - Brás!.. Eu vinha... O papá disse-me... Não sei como hei-de dizer... Eu queria... não, eu devo... pedir-te perdão.
BRÁS (surpreendido) - A mim, perdão! e de quê? JÚLIO - Daquilo de outro dia... o podão... Miguel... não te lembras?
BRÁS - Ah! A mentira! Ora, já nem pensava nisso. Não lhe quero mal nenhum, Sr. Júlio, e custa-me bastante que se tenha incomodado a desculpar-se. Foi justo, na verdade, mas custa e fico-lhe grato.
Júlio, encantado por se ter desembaraçado desta penosa missão, levantou a cabeça, que tinha conservado inclinada, e, olhando a cara boa e bem disposta de Brás, propôs-lhe irem brincar para o solar.
BRÁS - Não posso, Sr. Júlio, porque o meu pai proibiu-me de ir lá.
JÚLIO - Mas porquê?
BRÁS - Diz que não é lá o meu lugar, que eu não devo habituar-me a andar na brincadeira mas sim ajudá- lo com o meu trabalho.
JÚLIO - Oh! Que aborrecimento! Espera, eu vou pedir ao papá.
Júlio correu ao Sr. Trénilly e pediu-lhe licença para levar o Brás.
CONDE - Não desejo outra coisa, meu amigo, gosto mesmo que brinques com o Brás, que me parece ser um rapaz bom e trabalhador.
JÚLIO - Mas o pai dele quer que ele trabalhe e que não vá ao solar.
CONDE - Tem razão, mas com certeza que hoje Lhe dará feriado para vocês acabarem de fazer as pazes.
- Ceda-nos o Brás esta tarde, Anfry. I, logo mandamo-lo para casa.
ANFRY - Não posso recusar ao Sr. Conde, contanto que Brás não incomode. Mandá-lo-ei, assim que estiver limpo e com outro fato.
CONDE - Para que há-de mudar de fato? Deixe-o ir em camisa; hoje não é dia de festa.
ANFRY- É festa para ele, Sr. Conde, porque é a primeira vez que é recebido pelo Sr. Conde e pelo Sr. Júlio. Mas se o Sr. Conde prefere, irá em camisa.
E dirigiu-se para o jardim, onde Brás continuava a sachar.
- Brasinho, vai lavar as mãos e a cara e dar uma penteadela ao cabelo. Acompanharás o Sr. Júlio e brincarás com ele no solar.
Brás corou, em parte por medo e em parte de prazer, e foi lavar-se. Assim que ficou limpo e penteado foi ter com Júlio e o conde, que o esperavam na avenida. Estes caminhavam adiante e Brás seguia-os. Não estava à vontade, não se atrevia a falar e só desejava voltar à sua enxada e ao jardim. Chegados ao patamar, encontraram a condessa e a filha que os esperavam.
- Trazem o Brás! - disse a condessa, avançando para eles. - Tenho prazer em conhecê-lo, disseram-me bem dele. Não tenhas medo, pequeno - acrescentou.
- A Helena não te come e o Júlio há-de ficar contente por brincar com um rapaz da sua idade.
- Não tenho medo, minha senhora - disse Brás.
- O que não estou é à vontade.
-Pois bem: vais estar quando nos ajudares a sachar e a arranjar o nosso jardim, Brás - disse Helena, com um sorriso amável. - Venham comigo Júlio e Brás, e toca a trabalhar.
E, pondo-se no meio deles, pegou-lhes nas mãos e levou-os para o pequeno jardim que o Sr. Trénilly lhes arranjara junto do solar.
- Mas no vosso jardim não há nada - disse Brás. HELENA - Por isso mesmo é que vamos arranjá-lo. Tu ajudas-nos.
BRÁS - Que quer nele: flores ou hortaliça?
- Flores! - gritou Helena. - Gosto tanto de flores!
- Hortaliças! - gritou Júlio. - As flores aborrecem-me.
HELENA - As flores são mais bonitas e crescem mais depressa.
JÚLIO - As hortaliças são muito mais úteis; de resto, eu quero hortaliça, e se tu pões lá flores arranco-as.
HELENA - Faz como quiseres; já sei que contigo não se pode teimar.
BRÁS - Porque não pode teimar, minha menina? HELENA - Para ele não me bater e para o meu pai não me ralhar, porque acredita em tudo que Júlio diz.
JÚLIO - Vamos ao trabalho, depressa! Cavem, enquanto eu vou buscar as sementes ao jardim.
Brás teve vontade de resistir ao Júlio e de apoiar Helena, mas não se atreveu e, agarrando uma enxada entregou-se ao trabalho com tal ardor, que o jardim ficou revolvido em menos de meia hora. Helena ajudava-o, mas com menos entusiasmo. Júlio voltou com um saco cheio de sementes de toda a espécie de hortaliças.
Aqui estão couves, ervilhas, rabanetes, espargos, cenouras, nabos, alfaces, espinafres...
BRÁS - Mas Sr. Júlio, tudo isso tem de ser plantado em cama e transplantado quando se tiver levantado.
JÚLIO- Seja como for, não quero; quero semear as sementes no meu jardim.
BRÁS - Como queira, Sr. Júlio; mas então tem de esperar muito tempo.
JÚLIO - Tanto faz, quero semeá-las; prefiro esperar.
Helena não dizia nada; estava habituada aos caprichos do irmão; a sua bondade e a sua doçura levavam-na a ceder sempre para evitar discussões. Brás maneava a cabeça mas calava-se, ao ver Helena consentir de boa vontade em sacrificar as flores que desejara. Com a enxada fez as pequenas regueiras em que Júlio ia lançar as sementes.
BRÁS - Que semeou aqui, Sr. Júlio?
JÚLIO - Não sei; misturei tudo.
HELENA - Mas, como vens a saber onde estão os rabanetes, as couves ou as cenouras?
JÚLIO - Logo vejo quando os comer.
HELENA - Mas, quando quisermos comer rabanetes, como os encontras?
JÚLIO - Ah! Isso não sei! Aborreces-me com as tuas observações.
BRÁS - Ouça, Sr. Júlio, não está a ser razoável; isto assim não é um jardim; durante quinze dias não se vê aí nada. Deixe a sua irmã pôr-Lhe umas flores.
JÚLIO (batendo o pé) - Não, não e não! Não quero; não gosto de flores e não as ponho lá.
Helena estava vermelha e com vontade de chorar. Brás teve pena e disse-lhe:
- Não se aflija, minha menina, vou-lhe arranjar outro jardim e plantar-lhe lindas flores.
HELENA - Obrigado, Brás. És bom, de verdade. JÚLIO - E eu! então sou mau?
HELENA - Tu não és mau, mas Brás é muito bom. JÚLIO (com raiva) - Eu não quero que o Brás seja melhor do que eu; não quero que digas isso.
HELENA - Se te contrarias não digo, mas... JÚLIO (da mesma maneira) - Mas, quê? HELENA - Mas... o Brás é muito bom.
Júlio começou a gritar e a bater os pés; correu para bater em Helena, mas esta escapou-se; atirou- se ao Brás que fugiu, saltando agilmente para o lado. Júlio caiu de nariz no chão e redobrou a gritaria; a criada de Helena apareceu.
- Que foi? Porque são esses gritos?
JÚLIO (a chorar) - O Brás é mau; quer arrancar as hortaliças para pôr flores; dizem que eu sou mau; ele é que é mau, quer tirar as hortaliças.
CRIADA - Porque contraria o Sr. Júlio e como se atreve a arrancar-Lhe as hortaliças, Brás?
BRÁS - Garanto-lhe, minha senhora, que não quero arrancar nada e que não quero contrariar o Sr. Júlio. Ele mesmo é que se contraria.
CRIADA-Aí está! Sempre a mesma história! O Sr. Júlio a causar desgostos a si próprio, não é verdade?
Brás quis responder, mas a criada não Lhe deu tempo; agarrou-o por um braço, deu-lhe um safanão, fê-lo dar uma reviravolta e ordenou-Lhe que se fosse embora para casa e não voltasse lá. Brás saiu sem dizer nada, prometendo a si mesmo recusar, de futuro, qualquer convite para o solar.
O gato fantasma
Brás era corajoso; não tinha medo da escuridão e, quando estava bom tempo, gostava de passear só, à tarde, nos prados atravessados por um lindo regato.
Que lhe agradava tanto no campo?
Em primeiro lugar, ficava só, ia para onde lhe apetecia; depois, seguindo a margem do regato, via uma longa fila de fornos de cal, escavados na montanha que ficava ao lado dos prados e da grande estrada. Estes fornos estavam acesos todas as tardes e deles saltavam faíscas. Os homens que atiravam a lenha para os braseiros pareciam-Lhe diabos no meio das chamas do inferno. Outra criança teria medo, mas Brás não se assustava tão facilmente; parava e olhava, contente, os fogos acesos, com longos feixes de faíscas, os homens a atiçar o fogo com os forcados. Seguia lentamente ao longo da ribeira até ao moinho, cujo pátio atravessava para regressar pela grande estrada ao longo dos fornos de cal.
Alguns dias depois da sua primeira visita ao solar, Brás preparava-se para dar o seu passeio favorito, quando viu aproximar-se Júlio.
- Brás; Brás! - gritou-lhe. -Queres vir brincar comigo? Estou só e aborreço-me.
- Muito obrigado, Sr. Júlio - respondeu Brás, mas vou passear para o prado; não quero voltar a sua
casa, porque é capaz de inventar outra história para ralharem comigo!
JÚLIO- Oh! Brás! Peço-te, vem. Vou ser muito bom, não digo nada a ninguém.
BRÁS - Não, Sr. Júlio. Gosto mais de passear do que de brincar.
JÚLIO - Então, vou contigo.
BRÁS - Não posso levá-lo sem licença de seu pai, Sr. Júlio.
JÚLIO - Deixa-te disso! Que estupidez! Imaginas que o papá e a mamã me têm preso como a um cão? Quero ir contigo e vou mesmo.
Como Brás não podia impedir que Júlio o acompanhasse, decidiu-se a deixá-lo ir e partiram juntos; Júlio encantado por sair do jardim, que o aborrecia, e Brás, contrariado de ter Júlio por companheiro.
A lua começava a nascer e a iluminar o atalho. Os fornos estavam todos acesos. Júlio, a princípio, teve medo, mas as explicações de Brás sossegaram-no; não tirava os olhos dos fornos e dos homens que se ocupavam em atiçar o fogo. Chegaram assim ao moinho. Brás quis abrir o portão para atravessar o pátio, como era seu costume; dois enormes cães de fila apareceram a ladrar, assim que ele pôs a mão no portão, mostrando duas fileiras de dentes formidáveis. Júlio ficou cheio de medo. Brás chamou, mas ninguém lhe respondeu; meteu a mão pelas grades do portão para lhe fazer festas e poder passar. Os cães atiraram-se ao portão, tentando morder a mão que Brás retirou rapidamente.
Como haviam de voltar, sem passar pelo mesmo caminho? Havia realmente outro, mas Brás evitava-o, porque passava ao lado do cemitério; os avós dele estavam lá enterrados e causava-lhe desgosto passar diante da campa.
BRÁS - Temos de voltar pelo mesmo caminho, Sr. Júlio. Os cães não nos deixam passar e mordiam-nos se entrássemos no pátio do moinho.
JÚLIO - Isso é aborrecido; eu gostava de passar ao pé dos fornos de cal.
BRÁS - Há realmente uma maneira, Sr. Júlio, mas olhe que vai ter medo.
JÚLIO - Porquê? É perigosa?
BRÁS - Não tem perigo nenhum se não se assustar.
JÚLIO - Diz depressa como é!
BRÁS - É atravessar o cemitério; vai ter à estrada grande, mesmo no sítio onde começam os fornos.
JÚLIO - Contigo não tenho medo; vai adiante.
BRÁS - Vamos depressa para chegarmos quanto antes.
Tomaram o caminho do cemitério, situado por trás do moinho. Andando rapidamente, de olhos fixos no muro e na porta do cemitério, Júlio sentia o coração a bater; os seus olhos escancarados não desfitavam o muro branco; de repente, estacou e soltou um grito de terror; a sua mão apontou involuntariamente para o cemitério na direcção do objecto que o aterrorizava.
Brás olhou Júlio com surpresa, seguiu a direcção da mão, viu uma grande forma branca, um fantasma que se elevava lentamente acima do muro e que se imobilizou assim que a cabeça e a parte superior do corpo ficaram visíveis. Júlio gritou; o fantasma voltou para ele uns olhos flamejantes. Júlio tinha o corpo todo a tremer; Brás não estava também muito tranquilo e conservava-se imóvel como o fantasma; por fim reuniu toda a sua coragem e fez o sinal da cruz. O fantasma nem se mexeu.
- Não é um mau fantasma, Sr. Júlio, porque se fosse um espírito mau teria fugido com o sinal da cruz. Em todo o caso vou atirar-lhe uma pedra.
Brás abaixou-se, apanhou uma grande pedra ponteaguda e atirou-a com toda a força e com grande pontaria à cabeça do fantasma, que soltou uma espécie de urro medonho e caiu junto do muro, por fora do cemitério, continuando aos gritos e a rebolar-se por terra. Brás julgou reconhecer o miar de um gato e quis correr para ele, para ter a certeza; mas Júlio, pálido e a tremer, segurou-o pela camisa e não o deixou avançar.
BRÁS - Deixe-me, Sr. Júlio, deixe-me ir ver. JÚLIO - Não, não vais; não quero que me deixes só; tenho medo, tenho medo do fantasma.
BRÁS - É por isso que eu quero ir ver; não é um fantasma, parece-me que é um gato. Venha comigo se tem medo de ficar só.
JÚLIO - Não, não quero ir lá.
- Então, faça como quiser - disse Brás, e, dando um safanão para arrancar a camisa das mãos de Júlio, correu para a forma branca estendida por terra.
Júlio preferia aproximar-se do fantasma com Brás do que ficar só; correu atrás dele e alcançou-o no momento em que o companheiro, ao abaixar-se soltava um grito, dando um grande salto para trás; tinha sido arranhado. Júlio encontrava-se junto dele; o salto de Brás fê-lo tropeçar e foi cair em cima do fantasma que, dando outro urro, arranhou a cara de Júlio como fizera à mão de Brás. O terror de Júlio atingiu o cúmulo; quis gritar, mas a voz não lhe saía da garganta; quis levantar-se, mas não teve força, ficando por terra com os sentidos perdidos.
No primeiro momento de surpresa, Brás não pensou em Júlio e examinou o corpo estendido diante de si; a lua saía de trás de uma nuvem e viu distintamente um gato branco de enorme tamanho. Fora ele que saltara para cima do muro do cemitério; a meia obscuridade fizera-o parecer ainda maior e mais branco, e dera-lhe à cabeça e ao corpo a aparência da cabeça e dos ombros de um homem. Brás viu com desgosto que o pobre animal ficara com um olho vasado e um lado do crânio partido; tinham cessado as convulsões e já não se movia.
- Vamos, Sr. Júlio, - disse Brás, empurrando o gato - continuemos o caminho; não fiz bom trabalho ao atirar a pedra; vou perguntar aos operários dos fornos de cal a quem pertence este animal. Então, Sr. Júlio, não vem?
E, virando-se para Júlio, viu-o estendido por terra, pálido e sem movimento.
- Ah! Meu Deus! Que aconteceu? Perdeu os sentidos! Que lhe hei de fazer, meu Deus! Mas para que o deixei vir comigo? Estes meninos fidalgos são uns medrosos; sempre gostava de saber que razão teve ele para desmaiar ou sequer para se assustar!
O pobre Brás estava realmente embaraçado; soprou-lhe na cara, bateu- lhe nas mãos, atirou-lhe água ao rosto. Por fim, Júlio suspirou e fez um movimento; Brás levantou-lhe a cabeça; Júlio abriu os olhos, olhou em volta, viu o gato branco estendido por terra, ficou assustado e quis fugir.
- Não tenha medo, Sr. Júlio, é um gato, nada mais que um pobre gato que eu matei com uma pedra e que, antes de morrer, se vingou na sua cara e na minha mão.
Júlio, um pouco mais calmo, levantou-se lentamente e agarrou a mão de Brás para se afastar quanto antes daquele gato que tomara por um fantasma e lhe causara tão grande medo.
- Espere, Sr. Júlio - disse- lhe Brás - deixe-me levar o morto para que possa ser reconhecido por alguém. Um belo gato! - acrescentou, levantando-o.
JÚLIO - Então por onde vamos passar para ir ter à estrada?
BRÁS - Pelo cemitério, pois que não há outro caminho. Não podemos ir pelo pátio do moinho por causa dos cães.
JÚLIO - Não quero passar pelo cemitério... não, não, não quero, tenho muito medo.
BRÁS - Mas, de que tem medo, Sr. Júlio, se afinal o fantasma não era mais do que um gato?
JÚLIO - Quero voltar pelo caminho da ribeira, por onde viemos.
BRÁS - Mas assim não passamos pelos fornos da cal! É o mais bonito do passeio.
JÚLIO - Não, não quero ir por aí, quero voltar imediatamente. Se não vens comigo, grito tanto que há- de aparecer toda a gente.
BRÁS- Ora essa! Seria uma vergonha gritar por isto. Mas, apesar de tudo, como podiam julgar que eu o fazia gritar, tenho que voltar consigo e deixar o gato sem saber a quem pertence.
E Brás, pouco contente por renunciar aos fornos de cal, seguiu Júlio, que caminhava muito depressa para regressar a casa o mais cedo possível. A cem passos da avenida do solar encontraram Helena e a sua criada, que os procuravam por toda a parte.
HELENA - Onde estiveste, Júlio? A mamã não está contente; soube que tinhas saído com o Brás; tinha medo que te tivesse acontecido algum desastre; é muito tarde e já devíamos estar deitados há muito tempo; vamos, meu irmão, voltemos depressa: - vão ralhar contigo.
JÚLIO - A culpa não é minha. Foi o Brás que me levou para muito longe, por caminhos perigosos. Por pouco que não fui comido por cães enormes e estrangulado pelos fantasmas do cemitério!
HELENA - Que estás a dizer? Os fantasmas do cemitério! Bem sabes que não há fantasmas!
BRÁS - Não faça caso, minha menina; quanto a fantasmas, só vimos um grande gato branco em cima do muro do cemitério. Infelizmente, matei-o com uma pedrada. E quanto a levar o Sr. Júlio, foi ele que quis forçosamente ir comigo e eu bem gostaria que ele não fosse. Fiz tudo para o impedir de me acompanhar.
HELENA - Júlio, estás sempre a dizer mentiras a respeito do Brás; isso é muito mal feito; não repitas à mamã o que me disseste, porque farias que ralhassem, injustamente, com o pobre Brás.
BRÁS - Muito obrigado, minha menina; não tenho medo do que o Sr. Júlio possa dizer de mim, contando que diga a verdade.
Helena não respondeu e suspirou; sabia que Júlio mentia muitas vezes e temia que fizesse com que ralhassem com o pobre Brás, que ela sabia inocente.
A Sr. a Trénilly descera ao pátio para saber notícias de Júlio, por quem estava inquieta; ao vê-lo regressar com a irmã, foi ter com eles e perguntou com inquietação porque se demorara tanto tempo.
JÚLIO - Mamã, foi o Brás que me levou para muito longe; eu tinha medo, mas ele não queria voltar e obrigou-me a ir ao cemitério.
CONDESSA - Ao cemitério! Para quê? E que tens no fato? As costas estão cheias de terra como se tivesses rebolado pelo chão. Caíste? Magoaste-te?
JÚLIO - Foi o Brás que me fez cair ao matar um soberbo gato branco.
CONDESSA - Mas, para que matou ele o gato? E como foi que, por causa disso, te fez cair? Então esse Brás é mau?
JÚLIO - Sim, mamã, ele é muito mau e mente muitas vezes, mente sempre.
- Mamã, - interrompeu Helena, indignada - o Brás é muito bom e não mente. O Júlio é que mente e é mau. O Brás disse-me que o Júlio quis por força acompanhá-lo e que matou o gato porque imaginaram que era um fantasma; mas ele não queria matá-lo e está muito aborrecido com isso.
CONDESSA- O Brás pode mentir tanto como o Júlio. Porque desculpas um estranho para acusar o teu irmão?
HELENA - Porque conheço o Júlio, mamã! E sei que ele mente muito.
CONDESSA - Helena, tu que pretendes ser bondosa, deves ser mais indulgente para teu irmão. Vamos para o salão; amanhã tratarei de saber quem é o mentiroso e prometo-vos que será castigado como merece.
Júlio teria gostado mais que sua mãe não tornasse a falar nesse assunto; mas Helena, que tinha pena do Brás assim caluniado, ficou satisfeita com a promessa da mãe. Antes de se deitar repreendeu Júlio pelo seu mau procedimento; mas ele respondeu, como de costume, com injúrias e pontapés.
No dia seguinte, a condessa foi só a casa de Anfry; mandou chamar o Brás, a quem fez muitas perguntas, e ficou com a certeza da inocência de Brás e da maldade de Júlio; mas o medo de colocar mal o filho, dando razão a um camponiozito, não a deixou castigar Júlio, como ele merecia.
Uma desgraça
Certo dia, Brás cavava e regava o jardim de Helena, quando se ouviram gritos lancinantes que vinham de uma casa situada do outro lado do caminho, e habitada por uma pobre mulher e seus cinco filhos. Brás largou a enxada e correu para a casa de onde partiam os gritos; Helena seguiu-o; chegaram no momento em que a pobre mulher retirava de um tanque cheio de água, o seu pequeno de dois anos, que ela deixara ir brYncar para um pomar, no meio do qual se encontrava a casa. Num canto do pomar fizera um tanque onde lavava a roupa do filho mais novo, de três meses. Viera a casa para dar de comer ao pequeno e, durante esta curta ausência, o rapaz, que tinha dois anos, caíra no tanque; não pudera sair de lá e submergira-se. A mãe soltava gritos lancinantes. Os vizinhos acorreram: uns amparavam a mãe, que se debatia em convulsões; outros, levantaram o pequeno despiram-no e enxugaram-lhe a água, que escorria dos cabelos e de todo o corpo. Brás correu a toda a pressa à procura de um médico. Helena, apesar de impressionada e a tremer, ajudava a enxugar a criança e a envolvê-la em roupas quentes e secas. Pensou depois que outros vizinhos da pobre mulher poderiam, enquanto se esperava o médico, ajudar a fornecer vida e calor àquele infeliz pequeno, e correú a preveni-los da desgraça que acontecera. Dois vizinhos, o Sr. e a Sr. Renou, arranjaram em casa diferentes remédios que podiam ser úteis e dirigiram-se para casa da infeliz mãe. Enquanto a Sr. a Renou procurava consolar e animar a pobre mulher, o Sr. Renou fez estender a criança num cobertor de lã diante do fogo; esfregaram-na com aguardente e mostarda, fizeram-na respirar sais e amoníacos, empregaram, enfim, todos os meios de que dispunham, mas sem resultado: a criança estava sem vida e gelada. Quando a sua desgraça se tornou uma certeza, a pobre mulher lançou-se sobre o corpo do filho, cobriu-o de beijos e lágrimas, apertou-o nos braços, chamando-lhe os nomes mais ternos. Pretenderam em vão levantá-la e tirar-lhe o filho; ela segurava-o com força e não consentia em largá-lo. Por fim, perdeu os sentidos e caiu nos braços das pessoas que a rodeavam. Aproveitaram o desmaio para a despir, deitá-la na cama e transportar a criança para um quarto vizinho. A boa Helena não fora inútil durante esta cena desoladora: embalava e cuidava do pequenito de três meses, de que ninguém se ocupara e que gritava desalmadamente no seu berço. Helena acabou por acalmá-lo e adormecê-lo. Quando já tudo acabara para a criança afogada e quando já ela estava deitada na cama, envolvida em cobertores, chegou o médico.
- Então - disse ele - a criança ainda respira?
- Parece-me que está morta - respondeu o Sr. Renou - mas talvez se possa fazer qualquer coisa que eu desconheça; experimente e veja se torna esta criança à vida.
O médico descobriu o corpo e colocou o ouvido sobre o coração; após um exame de alguns minutos, levantou-se.
- A criança está bem morta! - disse. - Não ouço bater o coração.
- Mas não haverá qualquer remédio para a reanimar?
- Não conheço nenhum! Continue com o que tem feito: sopre-lhe ar na boca, esfregue-lhe o corpo com amoníaco, experimente reanimar-lhe o coração; mas creio que tudo será inútil, pois a criança está morta, sem dúvida.
Dizendo estas palavras, e olhando com compaixão a mãe consternada, abandonou o quarto e foi ver outros doentes. A Sr.a Renou, desolada com esta sentença do médico e com a sua rápida partida, gritou:
- Um pouco de coragem ainda! Já se têm reanimado afogados depois de duas horas de tratamento; até agora não fomos felizes, mas, se continuarmos, talvez tenhamos mais sorte.
A Sr.a Renou, ajudada por vizinhos caridosos, que não tinham deixado de prestar todos os seus cuidados à mãe e à criança, recomeçou o que fizera em vão durante uma hora. A pobre mãe ficou com alguma esperança, ao ver que continuavam os socorros interrompidos pela chegada do médico.
Durante mais de uma hora não se deixou de friccionar e aquecer a criança, mas sem obter qualquer resultado favorável. Quando a Sr.a Renou viu a inutilidade dos seus esforços, envolveu a criança nos lençóis que haviam de ser a sua mortalha e deixou-a em cima da cama, no quarto para onde fora transportada.
- Meu filho, meu querido filho! - gritou a mãe, ao ver regressar a Sr.a Renou. - Abandonaram-no!
- Tudo acabou, minha pobre senhora - disse a Sr. a Renou. - Deus chamou seu filho para sua maior felicidade; está no Céu a pedir por si e pelos irmãos e irmãs.
-Meu filho, meu querido filhinho! -gritava a pobre mãe, soluçando. -Perdê-lo assim; vê-lo a morrer à minha vista, a dez passos de mim! Oh! É horroroso demais! Seria menos horrível se ele morresse na sua cama.
- Minha pobre senhora, pense que se o seu filho morresse na cama, seria por doença e teria visto o seu cruel sofrimento durante dias; era ainda mais horrível; Deus poupou-lhe esta dor.
Durante muito tempo ainda, a Sr. a Renou ficou junto da pobre mãe sem conseguir acalmar o seu desespero. Deixou-a, por fim, entregue às vizinhas que a consolavam com mais rudeza mas com melhor resultado.
- Ora vamos, minha boa Maria, - disse-lhe uma - não está a ser razoável. Já que Deus quis, não tem que se opor.
- Para que lhe serve afligir- se assim? - disse outra. - Não são as lágrimas que dão vida à criança.
- Seja razoável - disse a terceira- e veja que ainda lhe ficam quatro crianças; há muitas que não têm nenhuma.
- E o inocentinho que vai acordar e que precisa do seu leite? Que proveito lhe vai dar se se desespera dessa maneira?
- Faz-se o que se puder para a aliviar, minha pobre Maria; olhe, aqui está a Sr. a Desidéria que vai dar o peito ao seu menino.
Realmente a Sr. a DesidériaThorel, boa e agradável rapariga, que morava muito perto e tinha uma criança de meses, correra assim que soubera da desgraça sucedida a Maria. Ajudara a Sr.a Renou, com bondade e inteligência, nos cuidados prestados à criança afogada; ao despertar do pequeno, que Helena tinha adormecido, pegou-lhe, embrulhou-o nos cobertores e levou-o para sua casa, alimentando-o e cuidando dele ao mesmo tempo que do seu; só o trouxe horas depois, quando a mãe, voltando um pouco mais a si e à recordação dos seus outros filhos, pediu o mais pequeno, o único que podia estar junto dela; os outros andavam na escola ou numa quinta, onde se empregavam a guardar perus e patos.
Durante vários dias esteve inconsolável; o tempo acabou por exercer a sua acção neste desgosto como em todas as coisas: esgotando-o e diminuindo-o insensivelmente. A Sr. a Renou e Helena foram todos os dias e várias vezes por dia consolá-la, atenuar a sua dor e ajudá-la nas suas necessidades e nas da familia. Helena ocupava-se das crianças: penteava- as, lavava-as, arrumava o vestuário disperso, punha aquela casa em or dem, enquanto a Sr. a Renou conversava com Maria e procurava dar-lhe a resignação de uma piedosa cristã, submetida à vontade de Deus.
Júlio aproveitava-se das ausências mais frequentes de Helena para multiplicar os seus disparates, de que o pobre Brás era sempre a vítima inocente, como se verá nos capítulos seguintes.
Vingança de um elefante
Brum, brum, brum. Vejam, meus senhores e minhas senhoras, o maior animal de todos os animais que Deus criou e, apesar do seu enorme tamanho, o mais sossegado, o mais obediente. Venham, meus senhores e minhas senhoras, admirar este animal e as suas habilidades.
O homem que assim falava tinha entrado no pátio do solar acompanhado de um elefante, um dos maiores da sua espécie e, como dizia o dono, um dos mais sossegados. Num momento, uma dúzia de cabeças apareceu às janelas, entre outras a de Júlio que acorreu imediatamente para ver o animal de mais perto; Helena e sua mãe seguiram-no depois, assim como todos os criados. Quando se encontrava no pátio bastante gente para admirar uma demonstração das habilidades do elefante, o dono passou com uma bandeja diante de todos os presentes, onde cada um depositou a sua dádiva. Uma vez a bandeja suficientemente cheia, o homem obrigou o elefante a exibir todos os seus talentos: atirar uma enorme bola e apanhá-la na extremidade da tromba; cumprimentar a assistência; desrolhar uma garrafa de vinho, encher um copo e bebê-lo sem desperdiçar uma gota, encher um segundo copo e molhar dentro uma fatia de pão que engoliu como se fosse uma pilula; quebrar nozes com o seu grande pé dianteiro; transportar, em monte, pedras que dois homens mal podiam levantar e que o elefante ergueu com a mesma facilidade com que uma criança transportaria uma noz. Fê-lo, enfim, executar muitas outras coisas mais ou menos di fíceis, que excitavam a admiração de todos os espectadores.
Terminado o espectáculo, o dono aproximou-se do Sr. Trénilly e pediu- lhe licença para dormir num dos seus celeiros. O Sr. Trénilly acedeu, com grande alegria das crianças, que esperavam assim ver o elefante no seu alojamento e dar-lhe de comer.
- Que jantar dá ao seu elefante? - perguntou Júlio ao homenzinho.
- Bolos de farinha e ovos, senhor, e um balde de farelo com couves e cenouras.
- Onde estão os bolos? - perguntou Júlio.
- Vou prepará-los, senhor; ainda não estão feitos.
- Brás, Brás, vamos ver fazer os bolos do elefante e ver como ele os come.
- Agora não tenho tempo; tenho um trabalho para o sr. professor, que me encomendou modelos de escrita para os novos alunos.
- Ora! fazes isso depois; vem, vem depressa!
- Impossível, menino; depois não tenho tempo.
- Papá, papá, - disse Júlio ao Sr. Trénilly - diga ao Brás para vir brincar comigo; ele imagina que Lhe ralha se não for trabalhar.
- Vai brincar, Brás - disse o Sr. Trénilly. - Trabalharás noutro dia.
- Mas, Sr. Conde...
- Vai lá, sou eu que te digo - insistiu o Sr. Trénilly com certa impaciência -, é bom gostar de trabalho, mas também é preciso saber brincar; cada coisa a seu tempo.
Brás não se atreveu a replicar e seguiu, de má vontade e lentamente, o Júlio que corria para a granja a fim de ver fazer os bolos e a sopa do elefante.
-Brás, Brás, despacha-te; vem ver tudo que se põe nos bolos do elefante.
Brás não se despachava; quando chegou, os bolos estavam quase feitos; eram bolas do tamanho de melões; em cada uma estava uma dúzia de ovos, uma garrafa de leite, meio quilo de manteiga e um de pão, tudo isto misturado, amassado e enrolado. A sopa compunha-se de meio tonel de água onde coziam dois enormes cestos de couves, cenouras, nabos e batatas com uma grande mão cheia de sal e meio quilo de manteiga.
- Este elefante deve ficar caro pelo sustento - disse Brás. - Come numa só refeição o que nos bastaria para oito dias, a mim, ao meu pai, e à minha mãe.
JÚLIO - Bem vês que ele não come carne; vocês precisam de carne para viver, creio eu.
BRÁS - Carne, Sr. Júlio! Não a comemos senão ao domingo e não precisamos de muita. Com um bocado do tamanho de um punho ainda nos sobeja para o dia seguinte.
- Pode lá ser! - exclamou Júlio, espantado. - Por mim, não como senão carne. Que comes então, nos dias de semana?
BRÁS - Queijo, um ovo cozido, hortaliças, com pão, está claro. Quanto a pão tenho o que quero.
JÚLIO - Ah, a mim, se não me dessem carne, não comia nada.
BRÁS - Pior para si, Sr. Júlio, porque passava fome. Quando se tem fome, acha-se bom tudo o que é de comer. Mas veja: levam a comida ao elefante; vamos vê-lo engolir os bolos.
Júlio correu à granja e quis entrar.
- Não entre, meu menino -disse-lhe o guarda.
- Enquanto o elefante come não é seguro; podia fazer-lhe mal.
- É aborrecido -respondeu Júlio, batendo o pé. - Queria vê-lo comer.
- Olhe, Sr. Júlio - disse Brás -, suba a este banco de pedra que está debaixo da janela; pode ver bem lá para dentro sem correr nenhum perigo.
Júlio subiú para o banco; a janela estava abérta. Viu perfeitamente o elefante agarrar os bolos com a tromba e levá-los à boca e proceder da mesma maneira com a sopa. A tromba servia-lhe de colher e de garfo.
Quando terminou a refeição, voltou a cabeça para Júlio e Brás, que estavam à janela, e estendeu para eles a tromba como que a pedir qualquer coisa.
- Parece que está a pedir sobremesa - disse Brás. - Tenho aqui meia dúzia de maçãs, que apanhei ao pé da porta; vou ver se ele gosta.
E Brás estendeu uma maçã à tromba do elefante; o animal cheirou-a um momento, agarrou-a e engoliu-a; uma outra, depois uma terceira tiveram o mesmo êxito; quando as seis estavam comidas e ele continuou a estender a tromba para pedir mais, Júlio tirou da algibeira um comprido alfinete, com que espetava as pobres borboletas e besoiros que caçava, e picou fortemente a extremidade da tromba do elefante. Este pareceu ficar irritado; sacudiu a tromba e a cabeça, levantou as pernas uma após outra como que a esmagar qualquer coisa, mas acalmou-se prontamente e estendeu mais uma vez a tromba, dirigindo-a para o Brás.
- Não tenho mais, meu amigo! - disse o pequeno, mostrando-lhe as mãos vazias e acariciando-lhe a tromba.
- Mas eu tenho aqui uma coisa para ti, meu caro!
- gritou Júlio - Toma, toma, toma.
Dizendo isto, picava a tromba do animal com fortes alfinetadas.
Desta vez o animal soltou um grito rouco e olhou em volta como que a procurar meio de vingança. Depois virou-se para uma selha, cheia de água, que tinham posto ali para ele beber.
- Está a beber! Está a beber! - gritou Júlio. Meu Deus, tanta água que ele engole!
Quando o elefante já tinha quase despejado a selha, virou-se para a janela, onde continuavam Júlio e Brás; estendeu a tromba para Júlio e lançou-lhe um jacto de água com tal força que o atirou abaixo do banco onde subira. A tromba do elefante perseguiu-o por terra a inundá-lo de tal maneira que ele não podia gritar nem levantar-se.
O excelente Brás, assustado com os movimentos convulsivos de Júlio, e não sabendo como suspender a vingança do elefante, lançou-se-lhe para a frente da tromba, juntando as mãos e gritando:
- Oh! Elefante, meu querido elefante, pára, peço-te! Vais asfixiá-lo!
Assim que o elefante viu que Brás, que se atirara para diante de Júlio, ia ficar inundado, suspendeu a vingança e recolhendo a tromba, despejou na selha, donde a tirara, a água que ainda lá tinha.
Brás ajudou Júlio a leantar-se; este, mal ficou de pé, empunou Brás com cólera, gritando:
- A culpa é tua, malandro, patife; foste tu que me fizeste subir ao banco, foste tu que atraíste o elefante
com as maçãs que naturalmente roubaste. Vai-te embora; vou fazer queixa ao papá.
- Como, Sr. Júlio? -respondeu Brás, surpreendido. - Que fiz eu? Disse-lhe que subisse ao banco a fim de ver melhor; dei as maçãs ao elefante para lhe ser agradável; as maçãs eram muito minhas, caíram de uma macieira de meu pai.
Júlio continuava a gritar e a empurrar, com pontapés e murros, o pobre Brás, que pretendia ajudá-lo a andar, com o fato escorrendo água.
Toda a gente acorrera aos gritos de Júlio. Quando Helena o viu encharcado dos pés à cabeça, assustou-se e pensou num acidente.
- Não, a culpa é deste Brás - disse Júlio, chorando, enquanto o conduziam. - Ele é que fez tudo.
HELENA- Como, Brás? Então atiraste o Júlio à água?
BRÁS - Não, minha menina; não percebo porque é que o Sr. Júlio deita as culpas para cima de mim; não fiz mal nenhum, que eu saiba.
HELENA - Como é que ele se molhou assim? BRÁS - Foi o elefante, minha menina, que lhe atirou água à cara.
HELENA - Ah! ah! ah! Gostava de ter visto! Ah! ah ah Deve ser divertido, pois com certeza que não é perigoso.
BRÁS - Palavra de honra, minha menina, o elefante estava zangado deveras, e se eu não me atiro para diante do Sr. Júlio, a água teria acabado por asfixiá-lo, porque não o deixava respirar.
HELENA - Porque estava o elefante zangado e porque foi que não te atirou água como ao Júlio?
Brás contou a Helena o que tinha acontecido e Helena prometeu-lhe repeti-lo à mãe, para que ela não acreditasse nas mentiras de Júlio.
Assim que Helena, depois de deixar o Brás, voltou para casa tristemente, encontrou o pai com aspecto irritado.
CONDE - Sabes onde está o Brás, Helena? Ando à procura desse mariola para Lhe puxar as orelhas; não faz senão parvoíces e maldades.
HELENA - Então que fez ele, meu pai? CONDE - Por pouco não fazia com que o elefante matasse o Júlio! Obrigou-o a subir para uma janela donde não podia descer e depois o tratante pôs-se a excitar o elefante; quando este estava furioso o Brás fugiu e o pobre Júlio, de cima da janela, foi atirado ao chão pelo elefante que lhe lançou à cara toda a água que pôde juntar na tromba.
HELENA - Papá, receio que o Júlio tenha mentido mais uma vez; o Brás acaba de me contar como as coisas se passaram e ele tem toda a razão.
Helena contou ao pai o que acabara de dizer o pobre Brás. O Sr. Trénilly ficou muito embaraçado, pois, mais uma vez, um dos dois mentia; e como saber qual? Depois de uns instantes de reflexão, disse:
- Contudo acho estranho que sempre que o Júlio sai com o Brás lhe aconteça qualquer aventura desagradável; quando vai só ou com outros, não se passa nada de extraordinário.
HELENA - É verdade, papá, mas, apesar disso, estou certa de que Brás procede bem e de que Júlio inventa.
CONDE - Mais dia menos dia saberemos isso; entretanto obrigarei Júlio a brincar o menos possível com esse Brás, que me parece um velhaco.
O pântano das sanguessugas
Júlio ficou efectivamente alguns dias sem chamar o Brás; mas o Sr. Trénilly acabava de lhe dar um burro e ele precisava de alguém para o acompanhar nos seus passeios.
- Papá - disse ele ao pai, - quer que vá procurar o Brás para brincar comigo?
CONDE- Sabes que não gosto de te ver com o Brás; acontece-te sempre qualquer coisa desagradável.
JÚLIO - Papá, eu queria andar de burro e preciso dele para me acompanhar.
CONDE - Tens montado o burro todos estes dias e passado bem sem o Brás.
JÚLIO - Sim, papá, porque não saí do parque, mas queria ir para o campo e a mamã não quer que eu vá só.
CONDE - Vai procurá-lo, meu rapaz, mas não lhe dês ouvidos e não consintas que ele faça disparates.
- Oh! Papá, fique tranquilo - disse Júlio, precipitando-se para fora da sala ao encontro de Brás.
Chegou ofegante a casa de Anfry.
- Onde está o Brás? Preciso dele!
- O Brás não está - respondeu Anfry, secamente. JÚLIO - Onde está ele? Quero falar-lhe imediatamente
ANFRY - Está no campo, a apanhar batatas.
JÚLIO - Vá procurá-lo.
ANFRY- Não posso, tenho um trabalho urgente. JÚLIO - Então vou dizer ao papá que não quer que o Brás venha comigo; o papá ralha consigo e fico muito contente.
ANFRY - Diga o que quiser; não tenho medo nenhum porque faço o meu dever.
JÚLIO - Para que lado está o Brás?
ANFRY- Para o lado do pântano das sanguessugas.
JÚLIO - Porque lhe chamam o pântano das sanguessugas?
ANFRY - Porque tem sanguessugas lá dentro, está claro.
Júlio resolveu ir sozinho procurar o Brás; voltou a casa, fez selar o burro e partiu como se fosse passear no parque, mas, saindo por uma pequena vedação, fez galopar o burro para o lado do pântano das sanguessugas; a estrada era pedregosa, má e bastante comprida e, como não conhecia bem o caminho, levou perto de uma hora para lá chegar. Efectivamente encontrou o Brás, que trabalhava com ardor na apanha das batatas do pai; punha-as aos montes para as transportar, em cestos ou em sacos, em cima de um carrinho. Trabalhava com tanto afinco que não ouviu nem viu chegar Júlio e o burro.
- Brás! Brás! - gritou Júlio.
Brás levantou-se, viu Júlio e continuou o trabalho, sem responder.
- Brás! - repetiu Júlio com impaciência. - Não ouves?
BRÁS - Sim, Sr. Júlio; mas não me pergunte nada quando eu não tenho que lhe responder.
JÚLIO - Mas se eu te chamo é porque preciso de ti. BRÁS - Para quê, Sr. Júlio? Tenho este trabalho urgente a fazer.
JÚLIO- Para me acompanhares num passeio de burro. A minha mãe não quer que eu vá só para os campos.
BRÁS - Então porque veio até aqui? E já que veio só pode voltar da mesma maneira.
JÚLIO - És um patife, um ordinário, um impertinente. Vou dizer ao meu pai.
BRÁS - Oh! Pff! Diga o que quiser; não é a primeira vez que inventa histórias; não posso impedi- lo... Deus está lá em cima para me proteger.
JÚLIO - Vou-me embora, malandro, mas nunca, ouve bem, te deixarei montar o meu burro.
BRÁS - Eu preciso porventura do seu burro? Tenho duas pernas que valem mais que as quatro do seu burro.
- Imbecil! Insolente! - gritou-lhe Júlio, virando- Lhe as costas.
Brás continuou o trabalho rindo da cólera de Júlio e este retomou o passeio praguejando contra Brás. Procurava, sem encontrar, a maneira de ralharem com ele e não queria confessar que tinha desobedecido, indo sozinho para o campo; não podia dizer que Brás o acompanhara à saída porque os criados o tinham visto partir só.
Vamos ver - disse para si - esse pântano onde há sanguessugas: gostava de ter algumas.
Chegou-se junto da água, mas, por mais que olhasse, não viu nenhuma. A inclinação do terreno era suave e fez entrar o burro na água, pensando que as sanguessugas teriam medo do chapinhar das patas do burro e que por esse motivo se mostrariam; mesmo assim não viu nada. Fez avançar um pouco mais o burro até ele ficar com água a meio das pernas; viu então uns animais negros, achatados, do tamanho de dedos que nadavam em volta do burro e iam pousar-lhe nas pernas. Júlio divertia-se a vê-las a correr de todos os lados, até que o burro se pôs a saltar e a escoicear; Júlio perdeu o equilíbrio, caiu à água e o burro saiu do pântano e dirigiu-se a correr para o solar com todas as suas forças.
Não havia muita água no sítio onde Júlio caíra; levantou-se lentamente e sentiu três ou quatro picadas no rosto; julgou que era uma vespa e levou a mão à cara para a enxotar; a sua mão encontrou qualquer coisa fria que não pôde arrancar e as picadas tornavam-se cada vez mais dolorosas; sentiu uma coisa na mão e viu, com terror, que era uma sanguessuga que estava agarrada, assim como na cara. Júlio soltou gritos agudos. Brás, esquecendo as suas ameaças, correu em seu auxílio; vendo-o sair do pântano com três sanguessugas no nariz e nas bochechas, aproximou-se rapidamente dele e arrancou-lhas, mais a outras catorze que tinha no fato e que subiam por ele acima para lhe atingir o pescoço, as mãos e a cara.
- Dispa-se depressa, Sr. Júlio; pode ter outras nas calças.
Júlio, a tremer de medo, não teria podido despir o fato sem o auxilio de Brás, que em dois segundos lhe tirou tudo o que tinha no corpo; encontrou ainda algumas sanguessugas por baixo das calças e do casaco. Depois de bem espremido o fato, despiu-se e entregou a Júlio as suas roupas secas e os seus tamancos, vestindo-se ele com a roupa molhada de Júlio.
BRÁS - Desculpe-me, Sr. Júlio, de o vestir tão grosseiramente, mas ao menos assim fica com roupas secas e quentes e não apanha frio. Agora o que temos a fazer é voltar para casa a correr.
JÚLIO - Não posso correr com estes malditos tamancos, e as picadelas das sanguessugas doem-me.
BRÁS - Mas temos que ir para sua casa, Sr. Júlio. JÚLIO - A culpa é tua, porque me deixaste ir só, em vez de vires comigo.
BRÁS - Mas, Sr. Júlio, soube vir só, e eu tinha que trazer as batatas; eu não podia adivinhar que se ia atirar ao pântano das sanguessugas.
JÚLIO - Se viesses comigo não me tinhas deixado cair.
BRÁS - Como é que eu havia de o evitar? Não me teria dado atenção.
JÚLIO - Não, mas quando o burro se pôs aos saltos na água, agarravas-lhe nas rédeas e tinha-lo trazido para terra.
BRÁS - Havia então de entrar no pântano, para trazer cinquenta sanguessugas nas pernas? Era o que faltava!
JÚLIO - Que desgraça se te picassem nas pernas! Não fui eu mordido na cara e na mão?
BRÁS - Muito bem! Assim me agradece o ter-lhe evitado de trazer ainda uma dúzia de sanguessugas em cima do corpo e ter-lhe dado o meu fato seco em lugar do seu que me está a gelar o corpo!
JÚLIO - É bonito o teu fato! Uma camisa grossa e porca, umas calças ordinárias e remendadas e uns ta mancos medonhos, que me incomodam. Tens muita sorte em estar com a minha linda roupa; nunca tiveste uma camisa tão fina e umas calças tão bonitas!
- Está bem! Fique cada um com o que é seu disse Brás, parando, indignado com tanto egoísmo, orgulho e ingratidão - e arranje-se como puder.
- Não, não quero! - gritou Júlio, com medo de ter frio com o seu lindo fato molhado - dispo-me em casa.
Brás poderia tirar à força o seu fato, mas não quis castigar assim Júlio e, sentindo cada vez mais frio, pôs-se a andar rapidamente para chegar a casa, sem dar atenção aos gritos de Júlio que vinha atrasado, a arrastar os tamancos e gritando:
- Espera-me, espera-me, malvado egoísta! Ladrão, dá-me a minha roupa! O meu pai te obrigará a restituir-ma. Vais ver o que lhe vou contar! Brás entrou em casa por uma pequena porta do parque, enquanto Júlio entrava também na sua, envergonhado e inquieto. O sangue das sanguessugas, que escorria das picadas, incomodava-lhe a cara. O pai estava à porta quando o viu entrar naquele estado lamen tável.
CONDE- Que tens, Júlio, meu rapaz? Estás ferido?
JÚLIO - Foi o Brás, meu pai; a culpa é dele. CONDE - Outra vez esse patife! Eu tinha razão em não te querer deixar ir com ele. Meu pobre filho, em que estado tu vens!
Tomando-o nos braços, levou-o para o quarto, onde a boa Helena lhe prestou os primeiros cuidados. Lavando o sangue que lhe cobria a cara, viu com surpresa as picadas das sanguessugas.
- Quem te pôs sanguessugas na cara! - gritou o Sr. Trénilly, espantado.
- Foi o Brás, que me obrigou a ir ao pântano das sanguessugas, que me atirou para dentro, depois de ter feito lá entrar o burrinho, e que me forçou a vestir este fato velho para ficar com o meu, que ele quer para vestir aos domingos.
- Havemos de ver isso - disse o Sr. Trénilly, profundamente irritado. - Vou obrigá-lo a entregar tudo já e o pai há-de chicoteá-lo.
Um criado bateu à porta.
- Entre! - disse a criada.
- É um pacote com o fato do Sr. Júlio, que o Anfry veio trazer; pede o do Brás, e pergunta como está o Sr. Júlio.
- O teu fato! - disse com certa emoção o Sr. Trénilly. - Mas tu dizias que o Brás o queria para ele!
JÚLIO (embaraçado) - Naturalmente foi o pai que o obrigou a entregá-lo. Teve medo de si; eu disse ao Brás que ia contar tudo.
- Diz a Anfry que me venha falar à sala - ordenou o Sr. Trénilly, ao criado.
O criado saiu.
A criada tinha estancado o sangue e tornado a vestir Júlio. O pai queria levá-lo, mas Júlio teve medo de se encontrar em presença de Anfry, e pediu que o deixassem ficar na cama.
- Como está o Sr. Júlio, Sr. Conde - perguntou Anfry ao entrar. - O Brás contou-me o que aconteceu e receio que esteja indisposto.
- Não está doente, mas não está bem - respondeu o Sr. Trénilly - Admiro-me que o seu filho se tenha atrevido a falar-lhe de um acidente de que ele foi a única causa, e com o ignóbil fim de se apropriar das roupas de Júlio.
ANFRY - Não compreendo o que o Sr. Conde quer dizer! O Brás não fez coisa alguma que possa merecer censura. Pelo contrário, ele é que foi em socorro do Sr. Júlio.
CONDE - Bonito socorro, não haja dúvida! Empurrá-lo para um pântano cheio de sanguessugas!
ANFRY - Mas, Sr. Conde, como podia o meu filho empurrar o Sr. Júlio se não estava ao pé dele?
CONDE - Não estava? Essa é forte. A troca dos fatos prova claramente que se encontravam juntos.
ANFRY - Perdão, Sr. Conde; entendamo-nos: Brás deu a sua roupa ao Sr. Júlio, que tremia de frio, porque o ouviu gritar e foi socorrê-lo. Tanto não estavam juntos, que o Sr. Júlio foi para os lados do pântano à procura do meu filho.
CONDE-Foi o malvado do seu filho que lhe contou isso e acreditou-o, como pai fraco que é.
ANFRY (com emoção) - Perdão, o Sr. Conde é o patrão, eu sou um seu servidor, e não devo responder-lhe como faria a um meu igual, para justificar meu filho; mas posso, sem faltar ao respeito que devo ao Sr. Conde, afirmar que Brás está inocente das falsas acusações que o Sr. Júlio dirigiu contra ele.
CONDE (com cólera) - Quer dizer que Júlio mentiu?
ANFRY (com calma) - Assim o temo, Sr. Conde. CONDE (com ironia e uma cólera retraida) - Não é delicado, mas ao menos é franco. Mas diga-me então, Sr. Anfry, que lhe contou o Sr. Brás, para lhe dar uma tão triste opinião da sinceridade do meu filho?
ANFRY (com calma e firmeza) - Aqui tem, Sr. Conde, e não serei longo.
E, em poucas palavras, Anfry contou o que se passara, sem esquecer a visita que lhe fizera Júlio à procura de Brás e a partida de Júlio só, montado no burro.
A narrativa franca e segura de Anfry impressionou o Sr. Trénilly, que começou, por sua véz, a duvidar da verdade da exposição de Júlio, mas sem poder admitir no seu filho uma tal falsidade.
- Está bem - disse, quando Anfry acabou de falar. - Hei-de saber a verdade; tornarei a falar ao Júlio. Pode retirar-se. Anfry - acrescentou, - se Brás é culpado, como creio e como já o tem sido mais de uma vez perante meu filho, exijo, sob pena de o despedir, que o castigue energicamente.
ANFRY - O Sr. Conde não precisa de me recomendar se ele se tornasse culpado de maldade, de calú nia ou de mentira. Se eu visse meu filho por tão mau caminho, saberia tirá-lo de lá por minha própria vontade. Deus seja louvado! Meu filho é franco e honesto: não tenho que me envergonhar dele.
Ditas estas palavras, Anfry saudou e retirou-se cheio de indignação contra as mentiras de Júlio e a fraqueza do pai.
O Sr. Trénilly voltou para junto de Júlio, interrogou-o de novo e contou-lhe o que ouvira a Anfry. Júlio, não podendo negar a sua ida a casa de Anfry e a sua partida na ausência de Brás, confessou estes dois factos, que não tinha ousado revelar, disse, com medo que lhe ralhassem por ter ido sozinho para o campo; mas tornou a afirmar que depois de encontrar Brás no local indicado por Anfry, tudo se passara como já tinha contado.
O Sr. Trénilly ficou sem saber em que e em quem acreditar. Havia nas confissões tardias de Júlio qual quer coisa que abalava a sua confiança no resto; mas não podia nem ousava admitir tanta falsidade e maldade no seu filho muito amado. Na dúvida, não falou mais no caso, por não poder castigar injustamente o Brás nem querer dar-lhe razão.
As flores
Passou-se assim algum tempo; Júlio recebeu proibição expressa de brincar com Brás, que as pessoas do solar observavam com desconfiança. Ninguém lhe falava; voltavam-lhe as costas quando lá ia em serviço; recusavam secamente os seus oferecimentos de serviços. Helena era a única que lhe dava ums amigável bons-dias, ao passar pelo portão. O Sr. Trénilly empurrava-o asperamente quando Brás, sempre prestável, se precipitava para lhe abrir a porta.
O pobre Brás entristecia-se muitas vezes com a má opinião que tinham dele; mais do que nunca dava o seu passeio favorito e solitário ao longo dos fornos de cal. Chegando lá, sentava-se e chorava.
Deus sabe - dizia - que estou inocente daquilo que me acusam; mas tenho cometido muitos erros na minha vida e Deus faz-me espiá-los... Devo agradecer-lhe em vez de me revoltar... Ele me dará coragem para suportar tudo, para não odiar ninguém, nem mesmo o Sr. Júlio, que tanto mal me faz... Pobre Sr. Júlio: é bem infeliz por ser tão mau; deve ter sempre medo de que a verdade se saiba!.. Pobre rapaz! vou pedir a Deus para que ele mude e se torne bom... Meu pai acredita-me, felizmente; devo agradecer isto a Deus! Teria verdadeiro desgosto se o pai e a mãe me julgassem mau e mentiroso.
Consolado com estas reflexões, Brás continuava o seu passeio, mas estava triste sem querer e pensava no feliz tempo em que tinha o bom Tiago como patrão e como amigo.
Júlio, durante este tempo, aborrecia-se muito; brincava pouco com Helena, à qual fazia maldades constantemente e que gostava mais de brincar só ou trabalhar e conversar com a mãe.
Dois meses pelo menos depois da última aventura, Júlio pediu um dia tão insistentemente a seu pai para mandar vir o Brás ajudá-lo a cavar o jardim, que o Sr. Trénilly consentiu. Júlio não se atreveu a ir pessoalmente procurá-lo, pois tinha medo de Anfry, mas disse a um criado para chamar Brás da parte do Sr. Trénilly e levá-lo ao jardinzinho.
Brás ficou muito surpreendido com a ordem do Sr. Conde; seu pai disse-lhe que devia obedecer e, apesar da sua repugnância, dirigiu-se para o jardim de Júlio e de Helena, onde julgava encontrar o conde. Vendo Júlio, quis retirar-se, mas Júlio correu para ele e conduziu-o para um canteiro de hortaliças.
- O papá mandou-me dizer-te para arrancar estas hortaliças, cavar tudo isto e plantar-lhe flores do quintal.
- Não trouxe a minha enxada - disse Brás.
- Não faz mal; tens aqui a de Helena - disse Júlio alegre e pressuroso, pois esperava uma recusa, sentindo bem que Brás devia achar-se gravemente ofendido.
O pobre Brás, não querendo desobedecer a uma ordem que vinha da parte do Sr. Trénilly, agarrou na enxada sem dizer palavra e começou o trabalho.
JÚLIO - Porque não falas, Brás? És sempre tão alegre e conversador.
BRÁS - Deixei de o ser, senhor.
- Porquê? - perguntou Júlio, corando, pois sabia perfeitamente a causa do silêncio e da seriedade de Brás.
BRÁS - Desde que me caluniou, Sr. Júlio; mas não lhe quero mal por isso; só peço a Deus que o corrija. Mas não gosto de estar só consigo.
- Porventura tens medo de que te coma? - disse Júlio, troçando.
- Não Sr. Júlio, mas receio que torne a dizer de mim qualquer coisa que não seja verdadeira, e isso faz-me pena por causa do papá e da mamã, e depois... Brás calou-se.
- Acaba - disse Júlio - e depois quê?
- Pois bem, e depois, Sr. Júlio, porque ofende a Deus quando me calunia e Deus há-de castigá-lo mais dia menos dia. Gostaria mais de vê- lo pedir perdão a Deus e resolver nunca mais me ofender.
Júlio corou; sentia a generosidade dos sentimentos de Brás e a verdade das suas palavras; mas o seu orguLho revoltou-se.
JÚLIO - Peço-te que não te apoquentes tanto comigo e que não te armes em santo rezando por mim. Sei bem rezar sozinho.
BRÁS - Parece que não, Sr. Júlio, porque, se soubesse rezar, Deus havia de escutá-lo e então havia de se emendar.
JÚLIO - Vamos, acaba com as tuas parvoíces e vai buscar-me vasos de flores para encher o canteiro.
BRÁS - Que flores devo pedir?
JÚLIO-Hortências, dálias, gerânios, margaridas, amores-perfeitos.
BRÁS - Não sei se me lembrarei de tudo isso, Sr. Júlio; em todo o caso farei o possível.
Brás partiu e não tardou a regressar com um carrinho cheio de toda a espécie de flores.
- Não vêm amores-perfeitos - disse Júlio. - Vai buscar amores-perfeitos.
Brás tornou a ir e voltou com muitas flores, mas sem amores-perfeitos.
JÚLIO - Então eu não te mandei buscar amores- perfeitos? Que porcaria trazes aí?
BRÁS - O jardineiro já não tem amores-perfeitos, Sr. Júlio. Murcharam, mas manda-lhe em troca as flores mais lindas do seu jardim. Pede para as tratar bem e restituir as que não quiser.
- Assim é que eu as trato - gritou Júlio, atirando-se para cima das flores, espezinhando-as e quebrando- as com cólera.
BRÁS - Ah! Sr. Júlio! O que o senhor fez! O jardineiro recomendou-me tanto para ter muito cuidado, porque são flores raras, que o seu papá lhe confiou!
JÚLIO - Não me interessa; e que tens tu com isso? O jardineiro não tem o direito de me recusar as flores que o meu pai paga e que me pertencem.
BRÁS - Oh! Por mim, Sr. Júlio, tanto me faz. Como diz que é o seu pai que paga as flores, pior para ele. Eu nem sequer as vejo. Quanto ao pobre jardineiro, é diferente; ele é que é o responsável e vão ralhar com ele.
JÚLIO- Quero lá saber do jardineiro, não tenho nada com isso; foi ele quem tas deu e foste tu que as pediste e as trouxeste.
BRÁS- O Sr. Júlio sabe muito bem que as pedi para lhe obedecer; só tive o trabalho de as trazer.
JÚLIO - Não sei disso; arranja-te como quiseres. Se o papá ralhar, pior para ti.
BRÁS - Se o seu pai ralhar, direi que foi o senhor que mandou trazer as flores.
JÚLIO - E eu digo que mentes, que não fui eu.
BRÁS - Homessa! Essa é forte! Não o julgava capaz de tanta maldade.
JÚLIO - Não me fartei de dizer que queria amores-perfeitos? Ouves? Amores-perfeitos! Isto é tão verdade que quando me trouxeste essas flores, irritei-me e espatifei tudo.
BRÁS - Assim foi; mas sabe muito bem que o jardineiro as mandou com boa intenção e eu também julguei que estas flores lhe agradariam mais que amores-perfeitos.
JÚLIO - Mas não me agradam. Leva-as, se quiseres.
BRÁS - Neste estado o jardineiro não as quer: esmagadas e partidas.
JÚLIO - Então, leva-as porque não as quero ver no meu jardim: Dou- tas e faz delas o que quiseres.
E virou costas ao pobre Brás, consternado. Que hei-de eu fazer destas flores? Não me atrevo a levá-las ao jardineiro; podia pensar que fui eu que as deixei cair e esmagarem-se na estrada. Gostava de as levar para o nosso jardim; talvez o pai as pudesse recompor e depois eu restituía-as ao jardineiro... Creio que é melhor para poupar uma descompostura ao pobre homem... Contanto que o Sr. Júlio não me arranje alguma história com as flores... Como ele é mau, na verdade!
Falando consigo, Brás juntava as flores, envolvia-as em terra húmida e colocava-as no carrinho. Levou-as até ao jardim onde seu pai trabalhava.
- Pai, trago-lhe aqui um trabalho urgente; são flores para consertar, se for possível.
- Que lindas flores! - disse Anfry, examinando-as no carrinho. - Mas que lhes aconteceu? Como estão partidas e murchas!
- É por isso que eu as trago; é outra proeza do Sr. Júlio que eu queria remediar.
E Brás contou ao pai o que se tinha passado.
- Parece, meu rapaz - disse Anfry - que fizeste mal em trazer as flores; antes apodrecessem onde estavam.
- Mas, pelo que disse o Sr. Júlio, tinha medo que ralhassem com o pobre jardineiro. O Sr. Trénilly não olha muitas vezes para as suas flores; se em dois ou três dias pudermos arranjá-las e levá-las ao jardineiro, tudo ficará em bem e não ralham com ele.
- Isso era bom, mas tenho o palpite de que esta história acaba mal para nós. Enfim, Deus nos proteja. Temos que fazer o que for melhor e deixar correr as coisas.
Anfry e Brás prepararam profundos buracos no melhor terreno do seu jardim; colocaram lá as flores, com precaução, depois de envolverem as hastes quebradas, em estrume. Anfry regou-as e deixou-as depois aos cuidados de Brás.
Ao fim de três dias as flores tinham-se recomposto perfeitamente e Brás resolveu levá-las ao jardineiro:
Nesse mesmo dia, o Sr. Trénilly foi visitar o seu jardim, acompanhado pelo jardineiro.
CONDE - Então onde pôs as últimas flores que mandei vir de Paris? Não as vejo em parte alguma.
JARDINEIRO - Não estão aqui, Sr. Conde; dei-as ao Sr. Júlio para o seu jardim.
CONDE - Porque lhas deu? E como se permitiu dar a uma criança flores tão raras e que eu mandei vir por tanto dinheiro?
JARDINEIRO - Sr. Conde, tive medo de aborrecer o Sr. Júlio, que me mandou o Brás duas vezes a pedir flores bonitas.
CONDE - É uma desculpa muito má! Que isso se não repita! Quando compro flores quero-as só para mim. Vá procurá-las e traga-as imediatamente; fico à espera.
O jardineiro partiu acto contínuo e voltou muito envergonhado, dizendo ao Sr. Trénilly que as flores tinham desaparecido, não deixando vestígios. O Sr. Trénilly, muito descontente, mandou procurar Júlio. Quando o viú chegar perguntou-lhe de mau humor o que tinha feito das flores que o jardineiro lhe mandara três dias antes.
JÚLIO - Plantei-as no meu jardim, papá, e estão lá. JARDINEIRO - Não, Sr. Júlio; venho de lá e no seu jardim só estão dálias, margaridas e outras flores vulgares.
JÚLIO - Nunca tive outras; mandei-lhe pedir amores-perfeitos, que não me quis dar; não recebi outras flores.
JARDINEIRO- Mas, Sr. Júlio, fui eu próprio que carreguei o carrinho do Brás.
CONDE - Como, outra vez o Brás! Mas esse rapaz é um demónio! Não percebo como isto é, mas, sempre que ele aparece, há disparate.
JARDINEIRO - Mas, apesar disso, é um rapaz bom e honesto, Sr. Conde. Conheço-o de nascença e nunca ninguém teve que se queixar dele.
- Pois queixo-me eu, - insistiu o Sr. Trénilly, com altivez - e não é sem razão. Mas, Júlio, que fez ele a essas flores?
JÚLIO - Deve-as ter guardado para si, porque não as trouxe ao jardineiro nem estão no meu jardim.
O Sr. Trénilly disse ainda ao jardineiro algumas palavras de censura e saiu precipitadamente, dirigindo-se para casa de Anfry. Como não o encontrasse, foi ao jardim para ver se Brás tivera realmente a ousadia de ficar com as flores; entrou no jardim, no momento em que Anfry e Brás alinhavam os vasos de flores para os colocar no carrinho.
- Agora apanhei-te enfim, ladrão, vadio! - disse o Sr. Trénilly, avançando encolerizado para Brás.
- Perdão Sr. Conde -disse Anfry, colocando-se respeitosa, mas resolutamente diante de Brás, para o pôr ao abrigo do primeiro movimento de cólera do Sr. Trénilly -, Brás não é ladrão nem vadio. O Sr. Conde foi uma vez mais induzido em erro.
- Erro, quando a prova está aí diante dos meus olhos? - disse o conde a tremer de cólera.
ANFRY - Mil perdões, Sr. Conde, se tomo a liberdade de Lhe perguntar o que está a pensar.
CONDE - Penso que o seu filho é um vadio e você um insolente. Estas flores são minhas, foram roubadas pelo seu filho, que inventou qualquer história para lhes chamar suas.
ANFRY - O Brás nunca disse que as flores fossem dele, e a prova é que estão ali prontas a ser colocadas no carrinho, para as levar ao jardineiro do Sr. Conde. O Brás apanhou-as depois de partidas e espezinhadas pelo Sr. Júlio, e trouxe- mas para as pôr em bom estado e entregá-las ao seu jardineiro antes que o Sr. Conde notasse o que se passara com elas. Esta é toda a verdade e, se quer ter o incómodo de examinar as hastes, verá ainda a marca dos sítios quebrados.
O Sr. Trénilly estava muito embaraçado com a sua acusação precipitada; entrevia qualquer coisa desfavorável para Júlio e, não querendo aprofundar mais o assunto, voltou costas sem dizer palavra e foi-se tão depressa como viera.
- Obrigado, meu pai, por me ter defendido tão bem - disse Brás. - De outra maneira tinha-me batido com a bengala.
- Se ele te tocasse, despedia-me imediatamente - respondeu Anfry - e não digo que fique cá muito tempo; o filho arranja-te complicações sempre que pede para brincar contigo, e o pai... enfim, não fico a apodrecer por aqui.
Desta vez, Brás prometeu a si próprio nunca mais aceitar qualquer convite de Júlio.
Os pintainhos
- Mamã - disse um dia Helena, - encontrei numa moita quatro ovos de galinha; a caseira diz que há umas galinhas que perdem os ovos; gostava de fazer uma omoleta para comer esta noite com o Júlio.
- Em lugar de comeres os ovos, que provavelmente não são frescos, farias melhor em chocá-los respondeu a Sr. a Trénilly.
- É verdade, mamã, não tinha pensado nisso! Vou levá-los já à quinta para os chocarem.
Helena correu a levar os ovos à quinta, mas ficou desconsolada ao saber, pela caseira, que naquela altura não havia galinha para os chocar.
- Mas - acrescentou a caseira - pode levar os ovos a casa de Anfry, menina; ele tem uma excelente galinha no choco; basta mostrar-lhe os ovos que ela põe-se imediatamente a chocá- los.
Helena agradeceu e correu para casa de Anfry.
- Minha boa Sr. a Anfry trago- lhe quatro ovos que peço para os pôr a chocar na sua galinha. Espero que isto não a incomode.
- Não incomoda, menina. Justamente a minha galinha está choca e não tenho ovos para lhe deitar. Se quiser vir, menina, vamos pô-los já a chocar.
Helena agradeceu-lhe a amabilidade e seguiu-a. A galinha apareceu assim que a dona a chamou; esta mostrou-lhe os ovos e pô-los num cesto; a galinha saltou para cima deles, estendeu as asas, e começou a sua missão, da melhor vontade.
Helena ficou encantada e agradeceu à Sr. a Anfry.
- Quantos dias são precisos para os pintos nascerem? - perguntou.
-Vinte dias, pelo menos, menina. Com certeza que vem ver como se porta a chocadeira?
- Sim, decerto; virei todos os dias trazer-Lhe cevada e aveia. Até amanhã, Sr. a Anfry; saudades ao Brás.
Helena voltou todos os dias a casa da Sr. a Anfry para saber notícias dos ovos; tinha o cuidado de levar sempre um cesto cheio de cevada e aveia. Pedira à mãe para nada dizer a Júlio, a fim de lhe fazer uma surpresa, disse ela, mas a verdadeira razão era o medo de que Júlio lhe fizesse alguma partida, quebrando os ovos ou impedindo a galinha de os chocar.
Passados vinte e um dias, Brás, que esperava sempre Helena à porta, anunciou-lhe que tinham saído dois pintos. Helena correu à cabana onde a galinha chocava, atirou-lhe um pouco de cevada para a obrigar a sair do cesto, e viu, com grande alegria, os dois pintainhos virem comer os grãos de cevada que a galinha Lhes esmagava com o bico, antes de os deixar comer.
Os pintainhos eram muito bonitos: pretos, com uma poupa preta e branca.
- Menina, amanhã, com certeza, saem os outros dois - disse Brás.
HELENA - E, quando todos estiverem cá fora, não os posso levar para casa?
BRÁS - Não, menina; têm de ficar com a mãe até terem idade para não precisarem dela.
HELENA - Quanto tempo é preciso esperar? BRÁS - Quinze dias ou três semanas, pelo menos, menina.
HELENA - É muito tempu! Mas prefiro tê-los aqui, porque em casa...
Helena não acabou.
BRÁS - Não tem onde os guardar durante a noite? HELENA - Oh! O lugar não me falta, mas tenho medo que o Júlio...
Helena tornou a calar-se. Brás olhou-a e, adivinhando o seu pensamento, não lhe perguntou mais nada; disse-lhe somente:
- Eles ficarão melhor aqui do que em qualquer outra parte, menina. A minha mãe e eu tratamo-los da melhor vontade para lhe sermos agradáveis, pois não poderemos esquecer que só a menina acredita sempre nas minhas palavras e na minha inocência, quando toda a gente me acusa e me julga culpado. Não esquecerei a sua bondade.
HELENA - Não é bondade, meu excelente Brás, é só justiça. Gostaria que toda a gente pensasse de ti como eu e tenho um grande desgosto ao lembrar-me que foi o meu irmão quem provocou essa má opinião a teu respeito.
BRÁS - Mas a menina não acredita, pois não? HELENA - Por mim, creio que és o mais honesto, o melhor, o mais prestável e amável rapaz que é possível encontrar, e creio que Júlio te caluniou indignamente.
Um clarão de alegria e de reconhecimento brilhou nos olhos do rapaz.
BRÁS - Muito obrigado, minha boa e querida menina. Deus recompensa-me de não ter protestado contra o mal que Ele consentiu. Rezo todos os dias para que a abençoe e torne o Sr. Júlio parecido consigo.
HELENA - O quê, pobre Brás? Tu tens a generosidade de rezar por Júlio que é a causa de todo o mal que se diz e se pensa de ti?
BRÁS - Decerto, menina, não tenho rancor contra ele; faz aquelas coisas sem pensar. Se soubesse como ofende Deus, com certeza não as fazia e por isso rezo a Deus para que o ilumine.
HELENA - Excelente Brás! Vou dizer ao papá e à mamã tudo o que acabas de me dizer; não poderão du vidar da tua sinceridade.
BRÁS - Como queira, menina, mas isso agora não me serve de muito. Desde que aprendo catecismo para fazer a primeira comunhão no ano que vem, sei que Nosso Senhor sofreu com os maus e isso consola-me de sofrer um pouco.
Helena estendeu a mão a Brás, que lhe agradeceu mais uma vez, com reconhecimento e afecto, e voltou lentamente para casa. Ao chegar, contou ao pai e à mãe o que Brás lhe dissera e qual a sua impressão a respeito dele.
- Nunca vi - disse ela - tão excelente rapaz e sentir-me-ei feliz quando mudarem de opinião.
- Para isso, minha querida Helena - disse o Sr. Trénilly, friamente-, era preciso que pensássemos muito mal do teu irmão, que diz justamente o contrário de Brás e que, segundo o que tu afirmas, seria um mentiroso, um caluniador, um patife. Prefiro ter esta má opinião de Brás, a tê-la do meu filho.
HELENA (com calor) - Isso depende de que lado está a verdade, meu pai; se, contudo, Brás está inocente, veja que mal lhe tem feito, que injustiça comete.
- Esqueces que falas a teu pai, Helena - disse a Sr. a Trénilly, com severidade.
HELENA - Não tinha a intenção de faltar ao respeito ao papá, mas tenho tanta pena de ver o meu irmão a proceder tão mal e o pobre Brás a sofrer tanto!..
HELENA - Contudo, tenho-o encontrado muitas vezes cheio de lágrimas, enquanto trabalha e quando está só, e assim que me vê procura disfarçar e sorri. Um dia perguntei-lhe porque chorava; respondeu-me que era porque não podia encontrar nenhum dos seus companheiros sem que lhe chamassem ladrão, mentiroso, miserável. Ninguém quer brincar nem passear com ele!
- Só tem aquilo que merece! - exclamou secamente o Sr. Trénilly.
Helena não disse mais nada. Sentia que só fazia irritar o pai continuando a defender Brás, e retirou-se para o seu quarto, a fim de trabalhar sozinha, como de costume.
Os pintos tornavam-se grandes e fortes. Helena combinara com Brás que eles podiam dispensar a galinha e ser levados para o pátio do solar, onde se abrigariam numa casota de cão que estava vazia. No dia seguinte, Brás devia levá-los e transformar a casota em capoeira. Por fatalidade, Júlio encontrou o pobre Brás quando este transportava os pintos num cesto, para a sua nova morada.
JÚLIO - Que levas aí no cesto?
BRÁS - É uma encomenda, Sr. Júlio.
JÚLIO - Mostra-me o que é.
BRÁS - Não tenho tempo, senhor. Estou com pressa.
JÚLIO - Porque é essa pressa?
BRÁS - A minha mãe está à espera para o almoço, senhor.
JÚLIO - Então que espere mais dois minutos. Brás não Lhe queria mostrar os pintainhos, porque temia que Júlio Lhes fizesse mal ou os deixasse fugir; quis, portanto, continuar o seu caminho, mas Júlio agarrou a asa do cesto e tentou arrancar-lho da mão. Brás segurava-a com toda a força e ia a tirá-lo das mãos de Júlio, quando este, sentindo-se o mais fraco, apanhou uma mão cheia de areia e atirou-lha aos olhos. A dor fez com que Brás largasse o cesto. Júlio agarrou-o e levou-o em triunfo. Correu para uma moita, perto de um charco, para ver o que tinha o cesto. Qual não foi a surpresa ao ver os pintos que estavam lá dentro!
-O ladrão do Brás! - gritou. - Aqui está porque não queria deixar-me ver o que tinha no cesto. São pintos que roubou na nossa capoeira e que levava ao pai para os comerem juntos. Ah! Imaginas que comes os meus pintos, malvado? Toma, vem buscar o teu almoço.
Dizendo estas palavras, Júlio tirou os pintos do cesto uns atrás dos outros e arremessou-os para a poça. Os pobres animais debateram-se alguns instantes; depois ficaram imóveis, de asas abertas, flutuando na água.
Júlio ficou encantado com o seu triunfo e voltou tranquilamente para casa. Procurou o pai.
- Papá - disse ele -, devia proibir o Brás de pôr os pés no nosso quintal; acabo de o descobrir a levar num cesto quatro pintos roubados na nossa capoeira.
JÚLIO - Então é da quinta, porque eu vi-os e tirei-lhos.
Júlio não esperava esta pergunta; corou e atrapalhou-se, pois não queria confessar que tinha afogado os pobres animais.
- Porque não respondes? - disse o Sr. Trénilly examinando-o, surpreendido. - Entregaste-os ao Brás, porventura?
- Sim, papá - balbuciou Júlio.
Júlio começava a temer que se encontrassem os pintos na água; quis atirar a culpa para Brás e disse:
- Não papá, ele... ele... atirou-os para a água.
JÚLIO - Não sei; parece-me que foi para a escola. Júlio sabia muito bem que Brás não voltara à escola mas julgou impedir assim que o pai interrogasse Brás e Anfry.
Durante este tempo o pobre Brás, cego pela areia, não pudera sair do lugar onde tinha caído; à força de esfregar os olhos, cheios de lágrimas por causa da areia, conseguiu entreabri-los e pôde dirigir-se ao poço; tirou um pouco de água e lavou os olhos até se livrar da areia. Pensou então em procurar Júlio e o cesto. Mas ao procurar Júlio, encontrou Helena, que ia ver se a pequena capoeira estava pronta a receber os seus queridos pintainhos.
Helena parou estupefacta ao ver os olhos vermelhos e inchados de Brás.
- Que tens, meu pobre Brás? - perguntou, apiedada. - Porque choraste?
- Não é nada, menina, é areia que o Sr. Júlio me atirou aos olhos. O pior é que eu fiquei cego, ele arrancou-me o cesto em que eu levava os seus pintainhos e fugiu, por isso tenho medo de que lhes tenha acontecido qualquer desgraça.
- Os meus pintainhos, os meus pobres pintainhos?
- gritou Helena. - Oh! Brás, meu querido Brás, ajuda-me a procurá-los. Oxalá o Júlio não os tenha morto ou largado no parque! Os meus pobres pintainhos!
Helena e Brás puseram-se a correr por toda a parte; ao procurar na moita, Brás encontrou o cesto vazio.
- Menina Helena! - gritou. - Está aqui o meu cesto mas não tem nada dentro.
- É porque Júlio os abandonou ou os matoudisse Helena. - Desta vez o papá não há-de tomar partido por ele; vou-lhe pedir para mandar procurar os meus pintos.
Mal dera alguns passos em direcção a casa, encontrou o pai.
- Papá, papá, peço-lhe que mande procurar os meus pintainhos; o Brás levava-os num cesto e o Júlio tirou-lhos e fugiu.
Mas se o Brás os levava, porque deixou o Júlio tirar-lhos?
É pouco provável que o Brás, que é mais forte que o Júlio, tenha largado o cesto sem se defender.
HELENA - Ele não queria deixar, mas o Júlio atirou-lhe areia aos olhos e o pobre Brás teve que abandonar o cesto.
HELENA - É impossível, papá. O Brás tratou dos meus pintos desde que nasceram; arranjou-lhes uma capoeira numa velha casota de cão e trazia- os para os pormos lá.
HELENA - Eu e o Brás procurámo-los por toda a parte. Meu Deus, meu Deus, seria o Júlio tão mau que os atirasse à água?
A pobre Helena, sem esperar a resposta do pai, correu para o lado do charco, chamando Brás com todas as forças; aproximando-se do charco viu- o tentanto com uma vara comprida, puxar para si qualquer coisa que não podia ainda distinguir; assim que viu Helena, gritou-lhe:
- Venha depressa, menina; venha ajudar-me a reanimar os pobres pintos, que encontrei agora na água. Já tirei três; estou a ver se agarro o quarto. Já cá está... Não, tornou a escorregar da vara... Ah! Agora! Desta vez agarrei-o.
Baixando-se, apanhou o quarto pinto que aproximara da borda com a vara.
Helena chorava junto dos seus pobres pintos, deitados por terra sem movimento, com o bico aberto, as asas estendidas, os olhos entreabertos. Brás levou-os para cima da erva, secou-os o melhor que pôde com musgo e com o seu lenço e o de Helena; mas, por mais que os esfregasse e rebolasse na areia quente, os pintos continuavam sem vida. Vendo todos os seus esforços inúteis, Helena e Brás levantaram-se.
- Que faremos destes pobres animais? - disse Brás. - Pintos tão pequenos não são bons para comer e até doi comer animais tratados por nós.
- É preciso enterrá-los - disse tristemente Helena. - Não os deixemos aqui porque os gatos comem-nos.
Ouça, menina, vamos ainda tentar uma coisa; ouvi dizer que talvez se salvassem cobrindo-os com cinza ainda quente; há um grande caixote dela na lavandaria, aqui perto. Pomos os pintos lá dentro até amanhã; em qualquer caso não lhes faz mal nenhum e talvez... quem sabe?.. a cinza pode aquecê-los e reanimá-los.
- Vamos tentar... - disse Helena. - Temos tempo de os enterrar amanhã.
Helena e Brás apanharam cada um dois pintos; levaram-nos à lavandaria, onde encontraram efectivamente um caixote de cinza e onde tinham acabado de deitar alguma ainda quente. Brás fez quatro buracos, Helena pôs dentro os pintos e Brás cobriu-os de cinza até à cabeça deixando de fora o bico e os olhos. Fecharam em seguida a lavandaria e foram cada um para sua casa, Helena muito triste com a morte dos seus lindos pintainhos e Brás muito pesaroso com o desgosto de Helena, ambos lamentando a maldade de Júlio. Quando Helena voltou para o seu quarto, encontrou lá o Júlio que a esperava com certa inquietação, para saber o que tinha dito o pai.
- Tornaste a dar-me um verdadeiro desgosto, Júlio - disse-lhe ela - e fizeste mais uma maldade ao pobre Brás.
- Eu, uma maldade? - respondeu Júlio com ar inocente. - Então que fiz eu, Helena? Acusas-me sempre sem saber como as coisas se passaram.
HELENA - Sei muito bem que afogaste os meus pobres pintos, que os tiraste ao Brás depois de lhe atirares areia aos olhos e que disseste mentiras ao papá.
JÚLIO - Não fiz nada disso, menina. O Brás roubou os pintos; eu não sabia que eram teus; quis tirar-lhos; e, para que eu não os agarrasse, ele atirou-os para a água.
- Mentiroso! - gritou Helena, com indignação. É abominável mentir com tanto descaramento! Podias reservar as mentiras para o papá, que tem a bondade de te acreditar; quanto a mim, sabes que te conheço e que não acredito numa palavra do que me dizes.
JÚLIO (colérico) - Má Peste! Hei-de contar ao papá que me dizes cinquenta parvoíces para desculpar o Brás, que é um estúpido e um impertinente; há-de ser despedido com o patife do pai.
HELENA - És bem capaz disso; nada me admira da tua parte. É muito triste, para mim, ter um irmão como tu.
Helena voltou-lhe as costas e pôs-se à mesa para escrever. Júlio ficou um instante indeciso se ficaria para contrariar Helena ou se iria queixar-se ao pai; acabou por abandonar o quarto e dirigiu-se para o gabinete do Sr. Trénilly que estava nessa altura ocupado a ler.
Papá - disse, entrando-, venho dizer-lhe que é muito triste para mim ter uma irmã tão má; ela acredita em todas as mentiras do Brás e vem dizer-me toda a espécie de injúrias, pretendendo que eu minto, que o Brás vale cem vezes mais do que eu, que gostava de o ter por irmão e que ficaria encantada se o pai me expulsasse para me meter no colégio.
- A Helena é uma estúpida - respondeu o Sr. Trénilly. - Subiu-lhe à cabeça esse patife do Brás; mas hoje desculpo-a e não lhe digo nada porque está irritada por ter perdido os pintos.
- Mas, papá, não tenho culpa do Brás ter roubado os pintos. Porque hei-de eu ser injuriado por o Brás ter mentido?
- Que queres que faça, meu rapaz? Sabes que não me intrometo na educação da tua irmã; vai queixar- te à tua mãe, sé quiseres, e deixa-me acabar um trabalho muito sério que tem de estar terminado esta semana. Vai, Júlio, vai, meu rapaz.
Júlio saiu meio contente: esperara fazer com que ralhassem com a irmã e não tinha conseguido. Não quis queixar-se à mãe, porque esta não estava sempre disposta a acreditá-lo e a aprová-lo, como o Sr. Trénilly, sempre cego de ternura pelo filho. Quanto a Helena, não receava que ela o denunciasse porque sabia como era boa. Resolveu, portanto, calar-se e não tornar a falar de pintos, nem de Brás nem de Helena.
No dia seguinte, após o almoço, Helena pediu à mãe licença para enterrar os pintos e chamar o Brás para a ajudar. A Sr. a Trénilly consentiu, com a condição de Brás não pôr os pés no solar nem no jardim do Júlio. Helena prometeu-o e acrescentou, sorrindo, que a proibição seria provavelmente muito bem recebida, pois o pobre Brás não devia ter a menor vontade de se avistar com Júlio. Encontrou Brás no meio da avenida; vinha procurar os pintos para lhes preparar uma cova.
- Vens ajudar-me a enterrar os pintos, não é verdade, meu caro Brás? Não passamos diante do solar para que Júlio não te veja e não venha ter connosco.
- Não tenho vontade nenhuma de o ver, menina pode ter a certeza. Pediria para nos acompanhar e eu recusava. Incomoda-me dizê-lo, menina, porque ele é seu irmão: - mas nunca encontrei rapaz tão mau, para mim, como o Sr. Júlio... Mas já chegámos; vamos buscar os nossos mortos.
Brás deu volta à chave, empurrou a porta e soltou um grito de surpresa, imediatamente repetido por Helena. Os pintos, que julgavam mortos, estavam vivos e bem vivos, saltando em cima da cinza e abrindo o bico a pedir de comer.
- Foi a cinza! - gritou Brás.
- Foi evidentemente a cinza - repetiu Helena. Que bom vê-los outra vez vivos e que boa ideia tiveste, meu excelente Brás! Sem o teu conselho, tê-los-ia perdido, porque os enterrava logo a seguir. Vai depressa buscar-lhes de comer. Entretanto, levo-os para a capoeira. Vai lá ter comigo.
- Quer que vá à cozinha pedir pão e leite?
- Não, não vás à cozinha. A mamã proibiu que entres no solar.
- Quer dizer: julgam-me sempre um malvado, um gatuno - disse Brás, suspirando. - É triste mas é bom, pois assim farei melhor a minha primeira comunhão, suportando estas afrontas com coragem e resignação... Vou pedir à mãe a comida para os pintos. Não se impaciente, menina, se me demorar; ainda é longe.
Helena ficou junto dos seus pintos; também estava triste, pois sentia como era injusta a má opinião que os outros tinham de Brás e afligia-se por ter sido o irmão o causador de tanto mal.
- Pobre Brás! - murmurou, vendo-o a afastar-se.
- Deus com certeza tornará conhecida a sua inocência; antes disso ele sofre e Júlio triunfa. Oh! Se Júlio pudesse compreender como é mau! No próximo ano tem de fazer a primeira comunhão; como há-de ser se ele não reconhece as suas faltas?
Helena teve tempo de reflectir, porque Brás só voltou ao fim de meia hora.
- Aqui está - gritou ele de longe - a comida feita pela minha mãe. Demorei-me porque foi preciso prepará-la e depois voltar com cuidado para não entornar o tacho, que vem cheio; os pintos vão-se regalar.
Pôs o tacho no meio da capoeira; os quatro pintos esfomeados precipitaram-se para ele e debicaram até não ficar migalha.
Brás aconselhou Helena a ter os pintos fechados dois ou três dias, para que eles se habituassem à sua nova morada. Em poucas semanas tornaram-se uns belos e fortes frangos. Júlio informava-se deles com interesse, de tempos a tempos; Helena ficou-lhe grata e julgou que era um começo de arrependimento e de renovação. Um dia em que a Sr. a Trénilly determinara o jantar, Júlio disse- lhe:
- Então quando comemos os frangos da Helena? O cozinheiro faria com eles um belo guisado.
- Comer os meus frangos? - gritou Helena assustada. - Estou certa, mamã, que não pensou nisso e que é uma invenção de Júlio.
- Eu pensava, como Júlio, que os criavas para os comer, Helena - disse a Sr. a Trénilly.
- Mas não, mamã, eu nunca tive ideia de os comer. Quero guardá-los para porem ovos e chocarem; hão-de morrer de velhice. Lembre-se de que o Brás e eu criamos e salvámos da morte os pobres animais.
JÚLIO - Como és parva! Acreditas que o Brás queria salvá-los? Deve ter ficado muito arreliado quando viu que em lugar de os comer ao jantar, ainda tinha que tratar deles!
Helena abriu a boca para responder à letra, mas conteve-se e, lançando ao irmão um olhar que o fez corar, contentou-se em dizer:
-Não fales mal do Brás diante de mim, Júlio; sabes a boa opinião que eu tenho dele, e a amizade que lhe dedico. Devo-lha em compensação do mal que lhe tens feito, e não suporto que o calunies na minha presença, senão defendo-o e digo as coisas como elas são.
Júlio ficou emudecido perante o olhar fixo e firme da irmã. Limitou-se a dizer, levantando os ombros:
- Como és estúpida!
E saiu.
A Sr.a Trénilly tinha acabado de dar as ordens ao cozinheiro para o almoço e para o jantar; não prestou atenção ao fim da discussão de Helena e de Júlio, e continuou a leitura que interrompera.
Não se tornou a falar dos pintos. Helena levou-os para casa da Sr.a Anfry, com medo que Júlio tivesse a fantasia de lhes deitar a mão e fazê-los comer. No Outono, os pintainhos eram galinhas que começaram a pôr; na Primavera chocaram os ovos e tiveram por sua vez pintainhos para cuidar. Helena acabou por oferecê-los à Sr. a Anfry com grande vantagem para esta que, de tempos a tempos, dava a comer a Helena um dos pintos das suas galinhas. Eram tenros e gordos e todos apreciavam a sua boa qualidade.
O regresso de Júlio
Com a aproximação do Inverno, o Sr. Trénilly partiu para Paris com toda a gente da casa. Anfry, a mulher e Brás, ficaram encantados por se encontrarem sós; o Inverno passou-se mais agradavelmente para Brás, a quem todos começavam a reconhecer piedade, bondade e honestidade. Brás podia ter aproveitado esta face de tranquilidade para brincar e passear com os seus colegas de escola, mas preferia trabalhar em casa com o pai e a mãe. Conversavam, muitas vezes, a respeito dos seus antigos patrões, mas nunca se referiam aos novos, pois não podiam dizer bem deles e Brás pedira a seus pais que antes não falassem a seu respeito para não terem que dizer mal.
- Se eu falasse ou ouvisse falar deles talvez não pudesse evitar de Lhes querer mal pela sua injustiça, sobretudo ao Sr. Júlio, e sentiria cólera, talvez até ódio. E como poderia eu então fazer a minha primeira comunhão e receber Nosso Senhor, se não perdoasse de boa vontade àqueles que me fazem mal? Nosso Senhor perdoou aos seus carrascos! até rezou por eles. Quero tentar fazer o mesmo!
-É certo o que dizes, meu pequeno Brás? - perguntou-lhe o pai, beijando-o. - És mais sensato do que eu e do que tua mãe... Mas não é fácil perdoar àqueles que fizeram mal ao nosso filho, que o fizeram passar por ladrão, malandro...
- Papá, papá, peço-Lhe - disse Brás com ar suplicante -, fale só da menina Helena, que foi tão boa para mim.
- Ah, sim! Essa é uma boa menina! Pode-se falar dela à vontade; não há perigo de dizer qualquer injustiça a seu respeito.
- Uma carta! - disse o correio entrando certa manhã. E entregou-a a Anfry, que a abriu, e leu o seguinte:
Tenha o solar pronto para nos receber, Anfry; chego com meu filho na próxima segundafeira... Cuide em especial do quarto do Júlio, que está doente, em consequência de uma queda de cavalo. Os meus cumprimentos.
Conde Trénilly
- Segunda-feira é daqui a quatro dias - disse Anfry. - Não tenho tempo para preparar tudo. Temos que começar todos a trabalhar hoje.
- É estranho - disse Brás - que ele fale só do Sr. Júlio, e não da menina Helena. Não virá ela?
- E onde queres que ela fique? - disse a Sr. a Anfry. - O lugar de uma menina é junto de sua mãe! De resto, havemos de ver quando eles chegarem.
Os três, durante quatro dias no solar, não fizeram senão esfregar, limpar e arrumar. Por fim, tudo ficou pronto segunda-feira de manhã.
- Não sei que mais hei-de fazer - dissera Anfry
- para cuidar em especial do quarto do Sr. Júlio. Esfreguei-o e limpei-o como os outros; não posso fazer melhor.
- Deixe-me arranjá-lo, papá - disse Brás. - Vou lá pôr flores para ficar mais alegre.
Efectivamente, duas horas depois, o quarto de Júlio estava com outro aspecto; tinha flores nas jarras e ramos de flores nas janelas e na cómoda. Brás fizera o melhor que sabia e saíra-se bem.
Desceram a avenida para regressar a casa, mas não esperaram muito tempo pela chegada do conde. Como no ano anterior, um correio a cavalo anunciou-o; abriu-se o portão e a carruagem rodou pela avenida. Brás viu o Sr. Trénilly no fundo; junto dele estava Júlio, pálido e magro. A condessa e Helena não vinham. Brás já sabia pelas pessoas que tinham vindo antes do conde que Helena estava no convento para repetir a comunhão e que sua mãe não a levaria senão em Julho, dois meses mais tarde. O Sr. Trénilly tinha um aspecto ainda mais sombrio e mais severo do que no ano anterior.
- A alegria não os acompanha! -disse Anfry à mulher, ao fechar o portão.
- Contando que não chamem o nosso pobre Brás para entreter o Sr. Júlio - respondeu a Sr. a Anfry. É que não havia maneira de recusar.
- Ora! Nem sequer pensam nisso - replicou Anfry. - Então esqueceste o que disseram dele?
A Sr.a Anfry tinha adivinhado; no dia seguinte, um criado veio chamar Brás.
- Brás saiu - respondeu secamente Anfry. CRIADO - Onde está ele? Não se pode ir buscá-lo? O Sr. Conde recomendou-me que o levasse comigo. ANFRY - Está no catecismo; só volta para almoçar. CRIADO - Que aborrecimento! O Sr. Conde vai ficar zangado, com certeza, e o Sr. Júlio mais aborrecido do que o costume.
ANFRY - Ah! É então o Sr. Júlio que o chama? Esqueceu o mal que disse dele no ano passado?
CRIADO - O ano passado não é este ano; mudaram de ideias e o Sr. Júlio só pensa no Brás. A menina Helena contou muitas coisas que não se sabiam; falou tanto da bondade do Brás e dos seus bons sentimentos para a primeira comunhão, que o senhor e a senhora já não se importam que ele faça companhia ao Sr. Júlio.
ANFRY-Mas o Brás é que se importa com a companhia do Sr. Júlio e gostava também que cada um ficasse em sua casa.
CRIADO - Como queira, Sr. Anfry. Vou dizer ao Sr. Conde que o Brás não está.
O criado retirou-se, deixando Anfry e sua mulher muito contrariados com esta fantasia de Júlio.
Quando Brás voltou e soube que o tinham mandado chamar do solar, teve medo e pediu ao pai que o deixasse ir para o campo logo a seguir ao almoço.
- Mas para onde vais, meu pobre Brás?
- Vou trabalhar para os campos com os criados da quinta, meu pai; o caseiro justamente perguntou-me se eu não queria ir trabalhar para lá. Eu já sou um rapaz crescido; posso bem trabalhar como os outros.
- Faz como quiseres, meu pobre Brás! lá vem o criado na avenida; com certeza que é por tua causa.
Brás levantou-se de um salto e saiu por uma porta traseira para não ser visto pelo criado. Correu para a quinta com toda a força e pediu trabalho; entregaram-lhe vacas para levar ao pasto e guardar até à noite. O criado chegou a casa de Anfry cinco minutos depois de Brás ter saído.
- Então, onde está o seu rapaz? - disse, olhando em volta. - Ainda não veio almoçar? O Sr. Conde mandou-mo buscar.
- Brás veio almoçar, mas tornou a sair para ir trabalhar na quinta, onde está ocupado durante o Verão
- disse Anfry, com ar satisfeito e um tanto trocista. CRIADO - Porque o deixou sair, se eu o preveni de que o Sr. Conde o mandava chamar?
ANFRY - Ele está na idade de trabalhar e é necessário que se acostume a ganhar o seu pão. Não tenho meios para o deixar andar à boa vida como os filhos do Sr. Conde.
CRIADO - Está bem, o Sr. Conde vai ficar contente! Vai- me pregar um raspanete e você ainda apanha por tabela.
ANFRY - Seja o que Deus quiser! Não tenho medo dos ralhos que não mereço.
O criado retirou-se novamente, resmungando, e Anfry foi para o seu jardim, enquanto cavava, sorria e dizia para si:
- O Brasinho teve uma bela ideia, mesmo assim! Não é parvo, o rapaz!
Mas o Sr. Trénilly não desistia facilmente; percebeu que Brás não vinha, porque não queria e que o trabalho na quinta era só um pretexto. Esta resistência irritava-o mas não o surpreendia. Depois do que Lhe contara Helena para justificação do pobre Brás, ficara com estima por ele e começava a acreditar que Júlio podia ter-se enganado com as aparências e não perceber as intenções de Brás. Júlio, por seu lado, que não podia deixar de reconhecer a bondade e a condescendência de Brás, falava muitas vezes do desejo que tinha de o tornar a ver e de o ter para companheiro de brincadeiras. O Sr. Trénilly admirava a generosidade do filho, que esquecia as culpas de Brás, e prometia a si próprio satisfazer aquele desejo logo que regressassem ao campo. A doença de Júlio, depois de uma queda de cavalo, apressou este regresso. Júlio pediu o Brás logo que chegou e ficou muito contrariado de ter que esperar pelo dia seguinte.
Muito pior quando, no dia seguinte, soube que o Brás estava no catecismo e que tinha de esperar até ao meio-dia. Mas quando viu outra vez o criado sem o rapaz e soube que seria assim todos os dias, pôs-se a chorar amargamente. O pai ofereceu-lhe, em vão, livros, tintas e tudo o que pudesse entretê-lo. Júlio chorava sempre, recusava toda a distracção e não cessava de reclamar Brás. O Sr. Trénilly, que o amava com uma fraqueza que nunca mostrara senão por este filho, indigno da sua ternura, prometeu-lhe fazer com que Brás ficasse livre do trabalho da quinta e viesse dentro de uma hora. Júlio acalmou-se depois desta promessa e ficou tranquilamente estendido na sua poltrona. O Sr. Trénilly dirigiu-se precipitadamente para casa de Anfry, mas este tinha saído para partir lenha no bosque.
Cada vez mais contrariado, mas disfarçando o seu mau humor, o Sr. Trénilly foi à quinta e perguntou por Brás. Disseram-lhe que ele estava nos prados a guardar vacas.
- Vá procurá-lo - disse o Sr. Trénilly. - Substitua-o por outro qualquer; preciso dele imediatamente; espero aqui.
Sentou-se numa cadeira que lhe ofereceu a caseira, assustada com o ar sombrio e descontente do conde, tanto que não tardou a esquivar-se com um pretexto insignificante; foi prevenir os filhos que não entrassem na sala, com medo que o conde se zangasse, pois não estava com aspecto de satisfeito - dizia ela - e foi ver quem poderia ir ocupar o lugar de Brás.
As crianças, das quais a mais velha tinha oito anos e a mais nova quatro, dispensaram-se a princípio de entrar na sala, mas em breve o medo cedeu o lugar à curiosidade; o mais velho, Roberto, foi sorrateiramente espreitar à janela para ver como era a cara zangada do conde. Recomendou aos irmãos que o esperassem e não se mexessem. Poucos minutos depois voltou para junto deles e disse-lhes em voz baixa:
- Já o vi, é terrível; tem um ar mesmo mau. levantou os olhos e eu escapei-me a toda a pressa.
- Agora vou eu lá ver - disse Francisco. - Deve ser medonho.
- Vai, mas não faças barulho; cuidado que ele não te ouça - disse Roberto - porque então batia-te.
Francisco foi imediatamente e voltou como o seu irmão, mas ainda mais assustado.
- Os olhos brilham como luzes - disse ele. - Parece que me viu; levantou-se e olhou para a janela como se quisesse saltar por ela; fugi logo; fiquei cheio de medo.
- Deixa-me ir também - disse o mais novo. Gostava tanto de ver os olhos dele a brilhar!
- Vai, Alcindo, mas toma cuidado para ele não te ver. Volta logo a seguir.
Alcindo partiu, encantado, apesar do coração lhe palpitar de medo. Aproximou-se da janela, nas pontas dos pés, e tentou espreitar; mas como era muito pequeno não conseguiu ver nada. Quis então trepar ao parapeito da janela, conseguindo-o depois de muitos esforços. O barulho que fez atraiu a atenção do conde, que se levantou e se dirigiu para a janela, no momento em que Alcindo a tinha alcançado. A pobre criança soltou um grito de terror ao ver, junto de si, aquele papão de que os irmãos tinham tanto medo. O conde, ao ver a criança quase a dar um trambulhão; abriu precipitadamente a janela e agarrou-a. O pobre Alcindo julgou que era para o devorar e pôs-se a gritar com toda a força, pedindo socorro aos irmãos.
- Ele agarrou-me! Ele vai-me comer! Socorro! Socorro! Roberto, Francisco, socorro!
O conde, espantado com o efeito produzido, pôs a criança no chão no momento em que os irmãos, afrontando o perigo, apareceram armados, um com um forcado e o outro com um ancinho. Abriram precipitadamente a porta e atiraram-se ao conde, que, não esperando este ataque, só teve tempo de recuar de um salto até ao fundo do quarto. Armou-se com uma cadeira para com ela fazer escudo contra o forcado e o ancinho que ameaçavam espetá-lo e desancá-lo, enquanto Alcindo, a tremer, se levantava e se esgueirava. Roberto e Francisco, vendo o irmão em segurança, atiraram-se mais uma vez ao conde, sempre armado com a cadeira; o forcado e o ancinho ficaram presos à palha; Roberto, ao ver- se desarmado, arrastou o irmão que estava também desarmado, precipitaram-se ambos para fora de casa com tanta pressa como tinham entrado. O conde, passada a surpresa, quis saber o que tinha provocado este ataque inexplicável; saiu, deu a volta à casa, espreitou todas as dependências da quinta e não viu ninguém. As crianças encontravam-se realmente longe; tinham corrido todos a juntar-se à mãe, que regressava com Brás; contaram-lhe que o conde era tão mau e estava tão furioso, que tinha querido comer o Alcindo.
- E comia-o, mamã, se Roberto e eu não tivésse mos acudido com um forcado e um ancinho...
- Um forcado e um ancinho contra o Sr. Conde!
- gritou a mãe, aterrada. - Jesus! Meu Deus! Que vai ser de nós?
ROBERTO - Já o tinha atirado ao chão, mamã; abria uma boca enorme e tinha uns dentes grandes e brancos como os dos lobos!
FRANCISCO - E os olhos pareciam queimar tudo o que fitavam!
CASEIRA - Jesus! Misericórdia! Desgraçados! O que vocês fizeram! Tomar o Sr. Conde por um lobo. Mas pode-se acreditar nessa estupidez?.. Ele nunca nos perdoará. Meu Deus! O que ele vai dizer! Palavra de honra, meu Brás, vai lá sozinho, tu. Eu não posso, de pois disto.
ROBERTO - Bem vê, mamã, também está com medo.
CASEIRA - Mas é por causa do que vocês fizeram, palermas. Se não fosse isso não tinha medo.
FRANCISCO - Então, porque foi que quando te foste embora, disseste para não irmos lá? É porque tinhas medo que ele nos fizesse mal.
CASEIRA - Ai de mim! Meu Deus, que hei-de fazer? Vai depressa, Brás, porque ele perguntou por ti; procura-o na sala e conta-nos o que ele disser; vai ter connosco ao celeiro.
Brás gostaria mais de não ir, ou, pelo menos, de não ir só, mas não se atreveu a desobedecer às ordens do conde e da caseira e dirigiu-se para a quinta sem se apressar muito. Entrou na sala e deu um suspiro de alívio: o conde já não estava.
- Ele foi-se embora, ele foi-se embora! - gritou Brás à caseira e aos filhos. - Podem vir, já não há perigo.
Mal acabara estas palavras, viu o conde a dez passos de distância, a sair de um estábulo. Reconhecera a voz do Brás e acorria a falar-lhe para o levar, quando ouviu o alegre apelo à familia do caseiro:
- Ele é isso! - disse, franzindo o sobrolho. - Por quem me tomam aqui? Um garotelho que eu salvo de cair da janela, julga que eu vou comê-lo. Outros dois, atacam-me com um forcado e um ancinho, como se eu fosse um animal feroz. E agora tu, Brás, imaginas que eu me fui embora, e clamas, a gritar, que já não há perigo! Que quer isto dizer?
- Sr. Conde - disse Brás, embaraçado. - As crianças tiveram medo de o incomodar, e... e...
CONDE (com cólera e ironia) - E foi para não me incomodarem que quiseram desancar-me?
BRÁS - Mas não, Sr. Conde; eles só quiseram defender o irmãozinho.
CONDE - Defendê-lo, contra quem? Então eu fazia-Lhe mal? Esse palerminha gritava sem saber porquê.
BRÁS - Sr. Conde, foi por ser muito pequeno e... CONDE - Mas os outros são bastante crescidos para saberem que não se agride uma pessoa com um forcado, principalmente quando essa pessoa é o dono da casa. Mas onde está a mãe? Traga-a cá com os filhos.
Brás, contente por se desembaraçar de uma conversa tão pouco agradável, correu à procura da caseira que foi encontrar agachada a um canto do celeiro, rodeada pelos filhos, que mal ousavam respirar. BRÁS - O Sr. Conde mandou-me chamá-la e
também aos seus filhos.
CASEIRA - Jesus! Maria! Que irá acontecer! Que vai ele dizer? Que vai ele fazer! Venham, meus filhos, meus pobres filhos; temos que ir porque ele mandou.
Os pequenos, a tremer e a chorar, seguiram a mãe, agarrando-se-Lhe ao avental; ela entrou na sala, arrastando os filhos, cujo medo redobrou quando se viram em frente do terrível conde. Ele esperava-os em pé, no meio do aposento, de braços cruzados e com uma bengala na mão. A caseira cumprimentou, balbuciou al gumas palavras de desculpa e esperou que o conde falasse.
- Cheguem-se cá, vadios! - disse o conde, com voz seca. - Como se atrevem a ameaçar-me com os forcados?
ALBERTO - Julguei que o senhor ia comer o Alcindo; foi por isso que nos atirámos a si, para o salvar.
FRANCISCO - Eu julguei que era um papão, porque tinha uma cara de mau... e zangado.
CONDE (à caseira) - Diz-lhe boas coisas a meu respeito; dou-lhe os parabéns. Pode dizer ao seu mari do que escusa de se incomodar a vir assinar a renovação do arrendamento. Estão despedidos. E quanto a estes patifes, vou ensiná-los a terem-me respeito.
E, erguendo a bengala, bateu nos pequenos, dizendo:
- Cada um por sua vez; este é pelo forcado, agora pelo ancinho!
As pobres crianças fugiram, gritando; a mãe seguiu-os resmungando mas contente por se ter livrado de um patrão tão mau.
O Sr. Trénilly chamou Brás e ordenou-Lhe que o seguisse. Brás hesitou um momento, mas não se atreveu a resistir e seguiu-o silenciosamente, de cabeça baixa.
O papagaio
Após alguns minutos de marcha, o Sr. Trénilly voltou-se e, vendo o ar infeliz de Brás, não pôde deixar de sorrir e de Lhe perguntar se ele também pensava que ia ser comido.
Brás corou e balbuciou algumas palavras incompreensíveis.
- Escuta, Brás - disse o Sr. Trénilly - sabes, com certeza, que o meu pobre Júlio está doente e que precisa de ti para o distraíres?
Brás não respondeu; o conde continuou:
- Sei que no ano passado fizeste algumas tolices, mas quero esquecê- las por causa dos bons sentimentos que depois manifestaste, segundo me disse Helena. Desejo que venhas todos os dias brincar e trabalhar com o Júlio do meio-dia até à noite e que não voltes à quinta. Estás de acordo?
- Sr. Conde - respondeu Brás, balbuciando - tenho pena mas... não posso. O meu pai deseja que eu trabalhe, que ganhe...
- Oh! quanto ao teu ganho, prometo que não ficas a perder; dou-te o dobro do que recebes na quinta.
- Sr. Conde - disse Brás, retomando um pouco de coragem - não poderei entrar no solar com a opinião que tem de mim. Não mereci as censuras que me dirigiu o ano passado e não posso prometer-lhe que vou proceder este ano de maneira diferente. O Sr. Júlio não gosta de mim; não digo que ele não tenha razão; mas não posso estar com ele com os sentimentos que lhe conheço.
CONDE - Pelo contrário, Júlio gosta de ti, é ele mesmo que pede a tua companhia; quanto ao passado, o melhor é não falar nisso. Estamos a chegar; vem comigo, o Júlio vai ficar contente por te ver.
O pobre Brás não disse mais nada; resignou-se por aquele dia, tencionando pedir ao pai para recusar todas as propostas do conde.
Chegaram junto de Júlio, que esperava o regresso do pai com viva impaciência.
- Então, papá, o Brás vem?
- Aqui está, meu rapaz! Custou-me a encontrá-lo. Como vês, Brás, Júlio estava à tua espera.
- Bons dias, Brás! - gritou Júlio. - Vamos brincar muito. Faz-me um papagaio de papel, para eu lançar ao ar assim que puder sair.
BRÁS- Bons dias, Sr. Júlio; lamento que esteja doente.
JÚLIO - Pede papel para um papagaio, cana, cola e tinta.
BRÁS - Mas eu não sei a quem hei-de pedir tudo isso, Sr. Júlio.
JÚLIO - Ao cozinheiro ou ao criado de quarto. BRÁS - Não me atrevo; não me davam ouvidos. JÚLIO - Gostava de ver isso! Só tens a dizer: é o Sr. Júlio que ordena. E então verás se eles te msndam passear.
Brás foi à antecâmara pedir com que fazer um papagaio de papel; mas esqueceu-se de dizer que ia da parte do Sr. Júlio. Todos os criados que se encontravam na antecâmara desataram a rir.
- Um papagaio! Vais ver o papagaio! Então o senhor quer um papagaio? Eu então sou o teu fornecedor? Tenho muita honra, na verdade! Sirvam este senhor! E despachem-se! S. Ex.a espera e está com pressa!
- Aí tem, Sr. Brás, aqui está o papel - disse um dos criados, embrulhando-lhe a cabeça num papel sujo e gorduroso.
- Sr. Brás, aqui tem a cola - disse outro, despejando-lhe em cima uma tigela com água suja.
- Sr. Brás, agora as tintas - disse um terceiro, enchendo-lhe a cara e as mãos de graxa.
O pobre Brás conseguiu escapar àqueles criados maus e grosseiros. Não julgou conveniente voltar, no estado em que se encontrava, para junto de Júlio e correu a casa a fim de se lavar e mudar de roupa. O pai e a mãe ficaram assustados por vê-lo molhado e enfarruscado, mas ele sossegou- os, explicando que o único mal era a humilhação pelos maus tratos recebidos, que Lhes contou a seguir.
- E quanto a isto, papá, - disse ele - devo considerar-me feliz, porque Nosso Senhor foi ainda mais humilhado para nos salvar.
ANFRY- Isso não impede, meu pobre rapaz, que não tornes a voltar a essa casa maldita.
BRÁS - Pelo contrário, meu pai, peço-lhe que me dê licença para voltar, porque desta vez a culpa não é do Sr. Júlio; ele está à minha espera e deve estranhar muito que eu leve tanto tempo a fazer o recado.
ANFRY-Acontecem-te outros aborrecimentos com o Sr. Júlio, meu rapaz, acredita-me. Deixa-me ir procurar o Sr. Conde, que eu digo-lhe porque não voltas lá.
BRÁS - Oh, não! peço-lhe; ralhavam com os criados e talvez os despedissem.
ANFRY - Despedi-los! Por causa das maldades que te fizeram, não?
BRÁS - Por causa de mim não, papá, mas porque fizeram esperar o Sr. Júlio que, com certeza, está aborrecido.
ANFRY - Mas porque não disseste que aquilo que pedias era para o Sr. Júlio?
BRÁS - Não me deram tempo para isso; às primeiras palavras perdi a cabeça e não pensei mais em falar no Sr. Júlio. Afinal a culpa é minha. Era estúpido eu pedir àqueles senhores para me servirem como se eu fosse o patrão.
ANFRY- Estás sempre pronto a acusar-te, Brás, desculpando os outros. Está certo, mas ninguém faz como tu.
BRÁS - Pior para eles, papá. Mas isso não é uma razão para que eu deixe de confessar os meus erros. Adeus, papá e mamã; vou ver se me não demoro muito.
Brás, limpo e vestido de lavado, correu ao solar e foi ter com Júlio sem passar pela antecâmara. Foi encontrá-lo aborrecido e encolerizado por ter esperado tanto.
JÚLIO - De onde vens? Porque não fizeste o que te mandei? Para que é essa beleza de fato? Não precisava que mudasses de roupa. Para eu estar à tua espera há uma hora.
BRÁS - Não tive outro remédio, Sr. Júlio; sujei-me na antecâmara e não podia apresentar-me cheio de graxa diante de si.
JÚLIO - És parvo! Besuntares- te com graxa quando eu estou à espera que faças o papagaio! E onde estão o papel, a cola, as canas, a tinta e o cordel.
BRÁS - Não os tenho, Sr. Júlio; não quiseram dar-mos.
- Não quiseram dar-tos? - gritou Júlio, vermelho de cólera. - Não quiseram? E fui eu que mandei! Eles vão ver! Hão-de ser todos despedidos!
BRÁS - Perdão, Sr. Júlio, a culpa não é dos criados, é minha porque não disse que era para o senhor.
JÚLIO - Imbecil! Foste pedir para ti! Como se aqui tivesses direito a qualquer coisa! Volta depressa à antecâmara e traz tudo que é preciso.
BRÁS (embaraçado) - Sr. Júlio, se não se importa vou buscar um criado e o senhor explicar-lhe-á o que deseja.
JÚLIO - Não, não quero; exijo que peças tudo. Vai já. Meu Deus! Como é aborrecido lidar com um rapaz estúpido e teimoso como tu! Estou farto de repetir a mesma coisa.
Brás não respondeu; o excelente rapaz não quis que ralhassem com os criados, dos quais tanto tinha a queixar-se desde há um ano, e, apesar da sua relutância, voltou à antecâmara a repetir o pedido, mas tendo o cuidado de acrescentar que era para o Sr. Júlio.
- Para o Sr. Júlio? Imediatamente! Augusto, dá-me o papel... Este não! O melhor, o maior... corre à cozinha a fazer cola e traz um novelo de cordel. Jorge, vai depressa ao jardim e pede ao jardineiro canas para fazer um papagaio ao Sr. Júlio. Mas... -acrescentou, voltando-se precipitadamente para Brás, -quando vieste há bocado pedir com que fazer um papagaio era para o Sr. Júlio?
BRÁS - Sim, senhor, era para o Sr. Júlio. CRIADO - E porque não o disseste, desgraçado? Estamos em bons lençóis. O Sr. Júlio vai fazer com que nos ponham na rua, porque despenteámos, regámos e pintámos o seu mensageiro.
BRÁS - Eu não disse nada ao Sr. Júlio.
CRIADO - Não disseste? Não te queixaste de nós? BRÁS - Não senhor, absolutamente nada. CRIADO - Como é que explicaste a tua ausência e a mudança de fato?
BRÁS- Disse que me tinha sujado com graxa e que não levava as coisas precisas para fazer o papagaio, porque me tinha esquecido de dizer que era para o Sr. Júlio.
CRIADO - Ora bem, és um belo rapaz apesar de tudo; temos de confessar que não tens maldade nenhuma. Apanhei um destes sustos! O lugar é bom; não que os patrões sejam bons; pelo contrário, são detestáveis, mas pagam bem e não fiscalizam nada; fazem-se belos lucros sem dar a perceber; e tu, Brás, já que és tão bom rapaz, havemos de te presentear algumas vezes com uma garrafa de vinho ou de licor, café, bolos, um bocado de galinha, muitas coisas.
Brás não compreendeu bem o que lhe oferecia o criado, mas viu que tinha boa intenção e agradeceu, enquanto levava os objectos que se haviam apressado a trazer-lhe.
- Aqui está, Sr. Júlio, tudo com que fazer um papagaio - disse ele, pondo as coisas em cima de uma mesa.
JÚLIO- Então porque estás aí sem fazer nada? Começa a trabalhar.
BRÁS - Eu julgava, Sr. Júlio, que se queria entreter a fazê-lo.
JÚLIO - Eu? Imaginas que vou estragar as mãos a cortar canas e sujar os dedos a colar papéis, cansar-me e aborrecer- me a arranjar tudo isso? Mandei-te vir para tu o fazeres; divirto-me a ver-te trabalhar.
Brás não ficou contente com o tom de desprezo de Júlio e pensou um momento em abandoná- lo e ir-se embora.
Mas não, - disse para si - seria orgulho; eu sou um servidor, na verdade; devo fazer a vontade dos patrões. Tanto pior para o Sr. Júlio se é egoísta e áspero; tanto melhor para mim se o servir com submissão e paciência.
Fazendo estas reflexões, desdobrava as folhas de papel e preparava as canas para as atar em forma de coração. Passou uma longa hora a fazer os preparativos, a colar as folhas de papel e a prendê-las na armação de cana. Quando acabou de colocar tudo e só faltava fazer a cauda e pintar o papagaio, Brás disse a Júlio:
- Quer entreter-se a pintar os bonecos no papagaio, Sr. Júlio? Entretanto eu faço a cauda; Não tenho jeito para pintar.
Júlio não respondeu; Brás, levantando os olhos, viu que ele tinha adormecido.
Vou pintar como souber - disse consigo. - Não vai ficar bom, mas faço o melhor que me for possível.
E Brás atirou-se à obra, procurando pintar homens e animais no papagaio. Ele não tinha ideia nenhuma de pintura nem de desenho e ficou tudo, portanto, muito feio. Os homens pareciam postes de estrada a indicar o caminho a quem passava; os coelhos pareciam carneiros; as vacas lembravam gatos; as aves podiam passar por borboletas; as árvores por telhados; as montanhas por casotas de cães, etc. Mas Brás, com a alegria de brincar com tintas, achava a sua pintura soberba e esperava com impaciência o despertar de Júlio para lha fazer admirar. Enfim, Júlio despertou, estendeu os braços bocejando e chamou Brás.
BRÁS - Estou aqui, Sr. Júlio; acabei o papagaio; está muito bonito. Olhe, Sr. Júlio, veja: todo coberto de pinturas.
JÚLIO - Mas que horror é esse? Quem pintou esses bonecos horríveis?
- Fui eu, Sr. Júlio; fiz o melhor que pude, parecia-me que estava bonito.
- Digo-te que está horrível; não quero isso. Dá-me esse papagaio.
Brás entregou-lhe com alguma inquietação. Quando Júlio o teve nas mãos, deu um grande soco no papel, rebentando-o; pôs tudo em bocados, quebrou as canas e fez a cauda em pedaços. O pobre Brás soltou um grito desolador.
- Ai de mim! Sr. Júlio, que está a fazer? Todo o trabalho perdido! O trabalho de três horas!
- Olha a grande desgraça! Recomeça e trata de fazer melhor.
- Não posso; verdade que não posso, Sr. Júlio - disse o pobre Brás, soluçando... - Fiz o melhor que podia... não tenho mais coragem... não posso recomeçar; é absolutamente impossível.
- Preguiçoso! Imbecil! Estás aqui para me divertir. Quero outro papagaio!
Brás caíra em cima de uma cadeira; continuava a soluçar, com a cabeça entre as mãos; a sua paciência e a sua resignação estavam vencidas pela dureza e o egoísmo de Júlio; a tristeza, por muito tempo comprimida no seu coração, explodiu e não pode reter as lágrimas.
- Põe-te a andar, choramingas - disse-lhe o malvado do Júlio. - Vai-te embora para casa e volta amanhã cedo.
Brás não lhe deu tempo a repetir; levantou-se sem poder dizer palavra e saiu precipitadamente. Correu até um pequeno bosque junto da sua casa; sentou-se ao pé de uma árvore e chorou ainda algum tempo.
Mas que lhe fiz eu - dizia - para que ele seja tão mau para mim? Empreguei todos os esforços para lhe agradar, vira-se sempre contra mim; nunca ouço da sua boca uma palavra de bondade, de gratidão! Sempre censuras, injúrias, ingratidão. Meu Deus, meu Deus acrescentou, redobrando os soluços - perdoai-me estas queixas; seja feita a Vossa vontade e não a minha. Fazei com que o pobre Sr. Júlio se emende; transformai o seu coração; tornai-o bom e caritativo para que eu possa gostar dele como quereria e servi-lo com afeição como ao meu bom Sr. Tiago. Meu bom, meu queridinho Sr. Tiago, porque se foi embora? Eu era tão feliz consigo, eu gostava tanto de si!.. Mas... - disse secando as lágrimas - porquê este desgosto? Então eu não devia ser feliz por sofrer para expiar as culpas que cometo e para me assemelhar a Nosso Senhor? Vamos, nada de fraquezas... coragem! Vou lavar os olhos no tanque e ser outra vez alegre. Afinal o Sr. Júlio tem razão! É bem verdade que sou um imbecil. Lá porque partiu o papagaio, não é razão para este desgosto. Vou fazer outro amanhã... O outro não era realmente bonito - disse, sorrindo - as pinturas eram muito disparatadas... É natural, eu não sei pintar. Agora sim, estou a pensar como deve ser; fiquei simplesmente ofendido por não me terem admirado; tudo isto é orgulho. Quando me for deitar, vou pedir perdão a Deus.
E o excelente Brás retomou todo o seu bom humor e voltou para casa a cantar.
- Ora viva! - disse Anfry. - Aqui está o nosso Brás todo contente. Então desta vez não houve tempestade, meu rapaz?
BRÁS (rindo) - É verdade, mamã, chorei; mas desta vez a culpa foi minha; sou um pateta e um orgulhoso.
ANFRY - Pateta, é possível; orgulhoso, não. BRÁS - Vai ver, papá, que valho menos do que imagina. E Brás contou exactamente o que se tinha passado, suprimindo somente as injúrias de Júlio.
Anfry examinava atentamente a fisionomia expressiva de Brás durante a sua narrativa. Quando ele acabou, puxou-o para si e beijou-o várias vezes, enquanto grandes lágrimas lhe caíam pela face.
- Tu és a alegria e o orgulho de teus pais, meu querido Brás; compreendo tudo... mesmo aquilo que não disseste. Quanto às gentilezas que os criados te prometeram, não aceites nada; fazendo generosidades à custa dos patrões, tornam-se culpados de roubo; não nos façamos seus cúmplices.
BRÁS - Se é assim, meu pai, não aceitarei absolutamente nada, nem mesmo um bocadinho de açúcar ou de bolo.
ANFRY - Fazes bem, Brás; se fores honesto nas pequenas coisas também o serás nas grandes.
A voz da verdade
No dia seguinte, sem esperar que o chamassem, Brás foi ao solar e pediu novamente o que era necessário para fazer um papagaio. Os criados, em lugar de o maltratarem como tinham feito na véspera, receberam-no com amizade, em reconhecimento da sua discrição. Enquanto reuniam os objectos necessários, o criado, que na véspera prometera tantas coisas a Brás, perguntou-lhe se ele já tinha almoçado.
- Sim, senhor, muito obrigado - disse Brás delicadamente - comi antes de sair.
CRIADO - Que comeste?
BRÁS - Pão com rabanetes, senhor.
CRIADO - Pobre almoço, meu rapaz; vou dar-te outro melhor: uma boa chávena de café com leite e uma fatia de pão com manteiga.
BRÁS - Muito obrigado, senhor, já não tenho fome, não como mais nada.
CRIADO - Ora! As coisas boas comem-se sem fome.
BRÁS - Não, senhor, de verdade, não me apetece nada.
CRIADO - Então um cálice de vinho moscatel, com um bolo?
BRÁS - Também não, senhor, e muito obrigado pela sua amabilidade.
- Até devoras, meu amigo; olha, aqui tens os bolos - disse, colocando diante de Brás um prato com bolos
- e aqui está o vinho - acrescentou pondo-lhe ao lado um cálice de moscatel.
No momento em que pousava a garrafa, ouviu o ruído bem conhecido de uma porta; era a do conde; num segundo o criado e os outros companheiros desapareceram, deixando Brás sozinho, diante da garrafa e dos bolos.
O conde entrou para mandar procurar o Brás, a pedido de Júlio. Foi grande o seu espanto ao vê-lo só, os armários abertos e o moscatel e os bolos na sua frente.
- Apanhei-te em flagrante - disse o conde, passada a surpresa. - Sr. Brás assentou praça na gatunagem? Bonita conduta, na verdade! Não te falta descaramento nem audácia, meu rapaz. Vir aqui para roubar o meu vinho e os meus bolos na ausência do pessoal! Muito bem! Muito bem!
- Sr. Conde, está enganado - disse Brás com as lágrimas nos olhos. - Eu não mexi em nada; não fui buscar o vinho nem os bolos!
CONDE - E quem foi então? Se calhar fui eu?
BRÁS - Não, Sr. Conde, sei que não foi; mas, acredite em mim: também não fui eu.
CONDE - Mas quem foi? Que fazes aqui? Porque estás só, diante destes armários abertos, com esta garrafa em frente de ti e o copo cheio, pronto a ser bebido?
BRÁS - Dizer quem foi, Sr. Conde, não posso dizer mesmo que saiba. Estou aqui à espera das coisas necessárias para fazer um papagaio para o Sr. Júlio. Quanto aos armários e ao resto, não tenho culpa disso, e peço-lhe que me acredite.
Este rapaz é incompreensível - dizia o conde para consigo -; impõe- se mesmo sem a gente querer; aqui estou eu pronto a acreditá-lo, apesar do meu raciocínio e da evidência dos factos. Depois acrescentou em voz alta:
- Está bem, vai ter com o Júlio, que está à espera. BRÁS - Sr. Conde, acredita em mim? Preciso de saber para poder ficar em sua casa e sobretudo ao pé do seu filho.
- Pois bem,.. sim! acredito em ti - disse o Sr. Trénilly, com vivacidade, depois de um instante de hesitação. - Acredito porque não posso fazer outra coisa e, sem querer, estimo-te.
- Obrigado, Sr. Conde, obrigado - disse Brás com os olhos brilhantes de felicidade. - Que Deus o recompense na pessoa de seu filho pelas suas boas palavras! Obrigado.
E Brás saiu para ir ter com Júlio, deixando o Sr. Trénilly emocionado e surpreendido com a impressão que este rapaz produzia nele e a autoridade que exercia a sua palavra.
- O quê? Estás aqui, Brás? - gritou Júlio, vendo-o entrar. - Julgava que não vinhas.
BRÁS - Então porquê, Sr Júlio? Tinha que vir emendar a minha estupidez de ontem e fazer-Lhe outro papagaio.
JÚLIO - Como te foste embora a chorar, julguei que te tinhas zangado com o que eu disse.
BRÁS - De maneira nenhuma, Sr. Júlio. É verdade que fiquei... não zangado... mas... contrariado, triste, e chorei ainda por muito tempo depois de o ter deixado; acabei afinal por compreender que era um orgulhoso e, além disso, um estúpido, e aqui estou pronto a fazer-lhe um papagaio, que será o melhor que eu puder...
- E que tu tens de pintar - interrompeu vivamente Júlio.
- E que eu evitarei pintar - replicou Brás, sorrindo. - É preciso concordar que era muito feio aquele que eu fiz; teve razão em rasgá-lo.
- Não acho, não me parece, - disse Júlio balbuciando, comovido, sem querer, com a humildade e a bondade de Brás - podia-se ter arranjado, forrava-se, tornava-se a pintar.
- Deixe lá; Não vale a pena pensar no que se podia ter feito e vamos começar outro novo. Quer ajudar-me, Sr. Júlio? Vai mais depressa.
- Pois sim - disse Júlio com mais suavidade do que o costume.
Brás começou a ajustar os bocados de cana, enquanto Júlio preparava o papel, de tão boa vontade que em menos de uma hora estava terminado o papagaio. Só faltava fazer a cauda e Júlio tentou pintalgar alguns bonecos no papagaio. Brás achou- os admiráveis, apesar da falta de cores e de forma. Júlio, muito lisonjeado com a admiração de Brás, tornou-se cada vez mais amável e propôs- lhe lançarem o papagaio no terraço da casa. Brás não recusou e prepararam-se para sair. Brás ofereceu-se para levar o papagaio.
JÚLIO - Não, deixa-me levá-lo; terei todo o cuidado.
BRÁS - Levante-lhe bem a cauda, Sr. Júlio; se ela arrasta e lhe põe um pé em cima, parte-a.
Júlio tinha posto o papagaio em cima do fogão, segurou-o com as duas mãos e deu alguns passos para estender a cauda e enrolá-la no braço. Ao puxar a cauda para a enrolar, não reparou que se tinha prendido a um dos candelabros do fogão; sentiu resistência e puxou com força; a cauda partiu-se e o candelabro caiu ao chão com estrondo; velas, arandelas e bronzes, tudo ficou partido.
- Ai, meu Deus! - gritou Brás, correndo para o candelabro. - Está tudo partido! Que aborrecimento esta fatalidade!
JÚLIO - Que tem isso? Dão-me outro; imaginas que vou chorar por causa de qualquer candelabro!
BRÁS - Mas, Sr. Júlio, com certeza que o Sr. Conde se vai zangar.
JÚLIO - Zangar? Comigo? É boa! De resto, se quiser ralhar, que ralhe contigo e terá toda a razão.
- Comigo! - disse Brás, estupefacto.
JÚLIO - Está claro, contigo. Não é uma parvoíce fazer uma cauda tão comprida e com tantas voltas que nem se sabe o que se há-de fazer? Se não quisesses armar em sábio e mostrar as tuas habilidades, não se tinha feito isto assim e o candelabro não se partiria.
BRÁS - Sr. Júlio, mas não foi por orgulho que eu fiz esta cauda, foi para ser agradável, para enfeitar o seu papagaio. E se tivesse reparado, tinha puxado com menos força e não se partia nada.
- Muito bem! Agora a culpa é minha! - gritou Júlio, encolerizado e batendo com o pé. - Digo-te que é só tua; és um desastrado; ainda há pouco dizias que és um estúpido e um orgulhoso! E é bem verdade.
BRÁS - Ontem fui estúpido e orgulhoso, tem razão, Sr. Júlio; mas creio que hoje não fui.
JÚLIO- Imaginas sempre que és perfeito, sei isso muito bem; pois eu digo-te que és antipático e insuportável.
BRÁS - Para que quer então que eu venha brincar consigo, Sr. Júlio? Não sou eu que o peço; bem sabe, tenho já tanto em que me entreter!
JÚLIO - Que queres dizer com isso? Que eu sou mau, que te torno infeliz?.. Isso não é verdade; tu é que me fazes zangar e me aborreces com a tua cara palerma.
BRÁS - Não se incomode, Sr. Júlio, é fácil contentá-lo; boas tardes e desta vez é para não voltar, porque não lhe sirvo para nada.
- Põe-te a andar, não quero nada de ti, nem nada que venha de ti - disse Júlio fazendo em pedaços o papagaio e atirando-o à cara de Brás.
Depois, tomado pela cólera, rebolou-se no sofá gritando e injuriando Brás. O Sr. Trénilly entrou precipitadamente no quarto de Júlio e ficou assustado ao vê-lo naquele estado, que julgou ser de desgosto. Notou o candelabro partido e os destroços do papagaio, que Brás procurava reunir" mas só se ocupou de Júlio e perguntou-Lhe, com inquietação, o que tinha.
Júlio ficou um momento sem responder; balbuciou por fim:
- Foi o Brás; a culpa é do Brás!
- Outra vez! - disse o Sr. Trénilly com severidade. - Que aconteceu? Fala, Brás.
No momento em que Brás abria a boca para responder, Júlio apressou-se a tomar a palavra:
- Foi o Brás que quis fazer habilidades, fez uma cauda tão grande que se prendeu ao candelabro e o partiu. E agora zanga-se; não quer arranjar o meu papagaio; diz que se vai embora e não volta mais, porque eu sou mau e insuportável. Ontem estragou-me as tintas e um papagaio; hoje quebra tudo e ainda por cima zanga-se!
CONDE - Brás, isto é muito mal feito; se continuas assim, mando-te castigar.
BRÁS - Não fiz nada do que disse o Sr. Júlio, Sr. Conde; julgo não merecer nenhum castigo.
CONDE - Havemos de ver, maroto.
JÚLio - Não, papá, não; perdoa-lhe ainda por esta vez, suplico-lhe; para outra vez, se ele continuar, deixo castigá-lo; mas, hoje não quero.
CONDE - Como queiras, meu rapaz; é por ti que lhe perdoo a insolência e quero crer que se emendará.
- Sr. Júlio - disse Brás, retirando-se - perdoo-lhe sinceramente, e a si também, Sr. Conde, por muito poderoso que seja e tão pequeno que eu sou. Se alguma vez souber a verdade, podem crer que estão perdoados, sinceramente perdoados.
Brás abriu a porta, saiu e tornou a fechá-la antes que o conde se recompusesse da sua estupefacção.
Depois da partida de Brás, o conde ficou por muito tempo pensativo, olhando muitas vezes para Júlio, cuja atitude embaraçada e ar assustado indicavam alguma coisa de mau na consciência.
- Júlio - disse por fim o conde, sentando-se a seu lado - Júlio, peço-te, diz-me a verdade. Desde já te perdoo, diz-me se o Brás está inocente e se tu o caluniaste num momento de zanga e despeito. Diz-me a verdade; qualquer coisa me segreda que o Brás tem razão e que tu me enganas.
Júlio ficara muito embaraçado com as primeiras palavras do conde, pois começava a sentir, por vezes, remorsos da sua injustiça e da sua crueldade para com Brás; mas o medo de perder a confiança do pai, de não tornarem a acreditar nele de futuro, suspendeu a confissão prestes a escapar-se-lhe e disse com voz baixa e hesitante:
- Na verdade, papá, não sei porque julga que eu minto e porque acredita nas impertinentes palavras do Brás e não nas minhas; e eu sou o seu filho e ele é só o filho do porteiro: um campónio.
- É verdade, Júlio, mas há nos seus olhos, na sua voz, em todo o seu aspecto qualquer coisa que não posso explicar, mas que desperta amizade, confiança, que aumentam sempre que tenho qualquer discussão com ele. E é por isso, meu Júlio, que te peço ainda uma palavra, com todo o interesse. O Brás tem qualquer coisa a perdoar-nos a ti e a mim? Prometo que não pergunto mais nada; sim ou não?
.. Sim... - respondeu enfim Júlio, baixando a cabeça e os olhos.
Quando Júlio levantou a cabeça, o pai tinha desaparecido.
Inquieto, assustado, foi procurá-lo ao quarto; não encontrou ninguém. Chamou um criado.
- Onde está o papá? Saiu?
- Sim, Sr. Júlio; o Sr. Conde saiu agora mesmo; desceu a avenida para o lado da casa de Anfry.
A inquietação de Júlio aumentou. Que iria ele fazer a casa de Anfry? Com certeza que quis interrogar Brás.
E o patife do Brás conta- lhe tudo o que se passou
- dizia Júlio para consigo - e o papá vai ficar furioso comigo. É impossível que o Brás não lhe conte tudo; eu fui mau para ele e agora fica satisfeito por se vingar... E o papá acredita em tudo o que ele diz, não sei porquê... quer dizer, sei muito bem porquê... a verdade é que não se pode deixar de acreditar quando ele fala, tem um ar tão honesto... e realmente ele é bom... pobre rapaz! Como eu o tratei ontem!.. E ele é que vem dizer-me que foi orgulhoso e estúpido, com o ar de quem vem pedir perdão... Pobre Brás!
Enquanto Júlio fazia estas reflexões, o Sr. Trénilly caminhava a passos precipitados para casa de Anfry. Foi lá encontrar Brás, de olhos vermelhos e muito triste, no momento em que ia começar a contar ao pai a causa do seu novo desgosto. O Sr. Trénilly caminhou direito a Brás, com grande medo deste, que recuou alguns passos para evitar o contacto do conde. Ficou muito surpreendido quando viu o conde agarrar-lhe a mão, apertá-la fortemente e dizer-lhe com voz emocionada!
- Júlio e eu fomos injustos, Brás; aceito o teu perdão e agradeço-te; és um rapaz direito e honesto; gosto de ti e acredito em ti. Volta ao solar sem medo, quando quiseres e para o que quiseres. Adeus, Brás, até à vista e até breve, espero. Boas tardes, Anfry; dou-lhe os parabéns por ter um filho assim.
- Obrigado, Sr. Conde; é uma honra que nos faz. O conde segurava ainda a mão de Brás; o pobre rapaz, a tremer e comovido, permitiu-se por seu lado apertar a mão que segurava a sua. Quando sentiu que o conde lhe retribuía este aperto, agarrou-lhe na mão e cobriu-a de beijos e de lágrimas. O conde, também comovido, abraçou-o. Depois saiu sem acrescentar palavra, mas cumprimentando com um gesto amigável. Depois de ter saído, Anfry exclamou:
- Pois bem, ele tem coisas boas, apesar de tudo! Foi bonito ter vindo pessoalmente e logo reconhecer os seus erros. Foi Deus que recompensou a tua paciência e a tua humildade, meu querido Brás.
- Deus foi muito bom para mim. É espantoso o prazer que me deu a visita do Sr. Conde e tudo o que ele disse; e a mão que ele me apertou com tanta força e a sua cara tão diferente. Ele que tem um ar tão severo, estava amável e terno! Mas então foi o Sr. Júlio que lhe disse qualquer coisa? Belo procedimento, o seu!
O pobre Brás dormiu bem naquela noite; o seu coração estava cheio de reconhecimento a Deus, ao conde e a Júlio. Já não se lembrava das severidades do conde, das maldades e das calúnias de Júlio; só pensava nas boas palavras que ouvira e que atribuía a uma confissão completa de Júlio. No dia seguinte acordou alegre e feliz. A tristeza fora substituída por um sorriso radioso; o pai e a mãe, felizes com esta transformação, beijaram-no com ternura. O pai perguntou-lhe se ia ao solar.
- Sim, papá, depois de comer; anseio por ver o Sr. Conde e agradecer a Júlio a sua franqueza.
O remorso
Brás dirigiu-se para o solar quando pensou que Júlio estava levantado e vestido, pronto a recebê-lo. Entrando no vestíbulo e subindo a escada, ficou surpreendido de não ver criados. Era, contudo, a hora em que eles todos se ocupavam em arrumar a casa. Aproximando-se do quarto de Júlio, ouviu um movimento extraordinário e um ruído confuso de vozes. Empurrou a porta, entrou e viu o Sr. Trénilly sentado junto da cama de Júlio, que parecia dominado por febre violenta e falava com vivacidade que parecia de delírio.
- Não quero que Brás venha - gritava elenão... ele conta tudo. Ponham a Helena na rua; o Brás contou- lhe tudo. Não digam nada ao papá... Vão todos para a rua... Mas o Brás, afinal, é bom... Ele perdoou-me com certeza... ele disse... não quero vê-lo, tenho vergonha. Ele sabe, eu menti, eu menti, eu menti.
E Júlio caiu nos braços do pai, desolado; calou-se: virara a cabeça para todos os lados.
- Que dor - disse ele - que dor... É o Brás!.. A culpa é dele... é dele a partir-me a cabeça... Ai, ai! Que é que queres? Ele não diz, mas eu sei... Quer que eu seja como ele,.. quer que eu diga tudo ao papá, a toda a gente... Não, é impossível... impossível... Deixa-me, Brás! Não posso... bem vês que não posso,.. ficavam a saber tudo, tudo... Que vergonha!.. Não posso.
Mais um silêncio, mas a agitação não cessava. Brás continuava à porta, a tremer, assustado, sem saber se havia de aparecer ou ir-se embora. O Sr. Trénilly esperava com impaciência o médico que mandara chamar.
Na véspera, quando voltara da casa de Anfry, nada tinha dito a Júlio, cuja inquietação aumentava de hora a hora vendo o ar severo e preocupado do pai.
O Brás teria falado ao papá? - perguntava a si próprio. - Que diria ele?
O seu terror aumentou, quando, à noite, ao despedir-se, o seu pai, pela primeira vez na vida, recusou beijá-lo e disse-lhe:
- Vai-te deitar, mas antes de adormeceres pensa no teu procedimento e arrepende-te.
O papá sabe tudo - disse para si próprio. - Que irá ele fazer, que é tão severo? Vou ser um infeliz; vai ser para mim, como é para Helena e para toda a gente: severo até fazer tremer de medo. Maldito Brás! Para que foi ele justificar-se! A grande desgraça, que o papá não goste dele e o não julgue mentiroso e ladrão! O papá não é pai dele! Podia ter despedido os Anfry e pronto... Meu Deus, que irá acontecer amanhã? Tenho medo! Oh! tenho medo! Já estou assim agora, amanhã vai ser muito pior!
Depois de ter passado uma parte da noite nesta cruel inquietação, Júlio, mal restabelecido da sua doença, foi assaltado pela febre e pelo delírio. Quando a criada de Helena veio no dia seguinte abrir as persianas e trazer-lhe o necessário para os arranjos matinais, achou-o tão doente que correu a avisar o conde. Este mandou imediatamente procurar o melhor médico da cidade próxima e foi junto do filho sem saber que cuidados e remédio lhe dar. As palavras incoerentes de Júlio revelaram-lhe a causa da doença; qualquer coisa de grave perturbava a sua consciência. Não sabia que fazer para o libertar do peso que o oprimia. Ninguém da casa tinha domínio sobre Júlio nem possuía o seu afecto. Na sua angústia, o infeliz conde voltou-se como que a procurar socorro; reparou em Brás, sempre imóvel, em pé, junto da porta. Os criados tinham saído todos.
- Brás, meu amigo - disse o Sr. Trénilly, a meia voz -, é Deus que te envia. Vem ajudar-me a curar a alma doente do meu pobre Júlio. Vem, é o remorso que o mata; o remorso do mal que te fez. Diz-lhe que lhe perdoas e diz-me que também me perdoas. Deus vingou-te, iluminando-me a razão.
O conde estendeu a mão a Brás, que quis beijá-la, mas o conde, puxando-o a si, apertou-o contra o coração.
- Brás, Brás! Pede a Deus que nos perdoe, que não me leve o meu filho, que lhe abra os olhos como abriu a mim, que lhe dê tempo para se arrepender, para poder reparar o mal que te fez! Brás, meu filho, reza por nós, tu, que sabes rezar.
E o conde caiu de joelhos, junto da cama de Júlio, que Lhe partia o coração com os seus gemidos e as suas palavras entrecortadas.
Brás, por sua vez, ajoelhou junto do conde; rezou e chorou. A sua prece, fervente e generosa, conseguiu obter uma ligeira atenuação para o sofrimento de Júlio. Quando o conde se levantou, Júlio dormia sossegadamente.
O conde olhou-o com esperança e felicidade; levantou Brás, ainda ajoelhado ao lado da cama de Júlio; apertou-lhe as mãos entre as suas e disse-lhe em voz baixa:
- Fica junto dele, meu filho, enquanto me vou vestir. Se despertar, vai-me chamar.
Júlio dormiu perto de uma hora; o conde viera novamente para junto dele, conservando Brás consigo. O médico não chegava; o conde não sabia que fazer para aliviar aquela cabeça tão perturbada. A criada também não sabia nada disso; a Sr. a Trénilly ficara em Paris por causa da comunhão de Helena.
Júlio despertou; abriu uns grandes olhos e fitou seu pai e Brás, sem os reconhecer.
- Quero o Brás,.. - disse ele - preciso de lhe falar... Não deixem entrar o papá... não quero que ele ouça... Chamem o Brás; quando eu lhe falar já a cabeça não me arde tanto;.. a cabeça tão pesada... Isto que eu quero dizer, pesa às vezes na cabeça e no coração.
- Sr. Júlio, estou aqui ao pé de si - disse Brás, aproximando-se timidamente.
- Quem és tu? Vai-te!.. Quero o Brás.
- Sou eu o Brás, Sr. Júlio; venho tratar de si.
- Então não és o Brás... O Brás detesta-me... Sabes o que disse dele? Pois não era verdade... Tudo, tudo falso... Sabes os pintainhos... Fui eu que os afoguei... E aquela roupa molhada? Foi ele que me deu a sua; foi ele que me tirou da água; ele foi sempre bom e eu mau... Sabes das flores? Fui eu que parti tudo; fui eu que mandei o Brás buscá-las... Sabes do papagaio? Eu é que fui mau, muito mau!.. Brás foi tão bom que me transformou o coração,.. mas não basta,.. não,.. não basta... Pobre Brás!.. Ouviste como ele me perdoou?.. E ao papá também,.. Brás perdoou-lhe!.. O papá foi mau para o Brás! A culpa é minha,.. eu menti. Oh! a minha cabeça!.. Brás! Quero o Brás!
O pobre conde estava num estado deplorável. Cada palavra era, para ele, uma terrível revelação da sua própria fraqueza, da sua própria injustiça e da maldade do filho. De cabeça entre as mãos, soluçava que metia dó; as suas lágrimas passavam entre os dedos crispados e iam cair sobre a cabeça de Brás, ajoelhado junto de si.
Meu Deus - pensava Brás - consola este pobre conde; meu Deus, tu és bom! Perdoa ao pobre Sr. Jú lio, dá-lhe o arrependimento das suas faltas, não o arrependimento que desola mas o que consola e nos torna melhores. Dá-lhe o conhecimento para que ele possa libertar o coração, confessando os erros que o oprimem. Meu Deus, não o deixes morrer sem perdão, sem o teu perdão, Jesus bom e misericordioso, sem o perdão de seu pai que ele enganou e ofendeu gravemente. Por mim, meu Deus, sabes que já lhe perdoei há muito, desde que a ofensa foi cometida. Mas tu meu Deus, e nosso pai, perdoa-lhe, que ele arrependeu-se.
Esta prece de um coração nobre e piedoso não podia ser desatendida. Deus acolheu-a na sua misericórdia e Júlio salvou-se; a sua cura devia ser completa, como se verá, mas fez- se esperar; o pai tinha que expiar com angústia as injustiças da sua fraqueza. Deus quis que a doença de Júlio fosse longa e cruel.
Quando o médico chegou, declarou, após uma observação prolongada e inteligente, que Júlio estava atacado por uma febre cerebral. Depois de ter ouvido algumas frases, que revelavam uma consciência perturbada, recomendou que o doente fosse tratado só pelas duas pessoas que preocupavam constantemente a sua imaginação doente, para que, ao despertar a sua razão, só visse essas duas pessoas e não pudesse temer ter sido ouvido por outras. Receitou depois repouso absoluto, bebidas refrigerantes, quarto arejado, dieta rigorosa, luz velada e silêncio.
0dia foi terrível; de uma prostração que parecia mortal, Júlio passava para a maior agitação, soltando uma onda de palavras acusadoras; revelou assim ao seu infeliz pai todo o negrume da sua alma. O arrependimento, que Júlio testemunhava cada vez mais, suavizava um pouco o terrivel golpe sofrido pelo seu amor de pai. Quanto mais descobria a iniquidade de Júlio, mais amava e admirava a caridade, a bondade tão cristã de Brás. Dez vezes ao dia, apertava-o contra o coração, inundava-o de lágrimas e pedia-lhe novamente perdão, por Júlio e por si próprio. Brás beijava as mãos do conde, animava-o, consolava-o, falava-lhe de Deus, ensinava-lhe a prece do coração, a verdadeira prece do cristão. Quando não podia acalmar o desespero do conde, punha-se de joelhos junto dele e rezava em voz alta as orações mais comoventes, que acabavam sempre por atenuar a agitação do conde e dar-Lhe esperança.
O estado de Júlio mantinha-se estacionário havia seis dias: alternavam as melhoras e as fases de delírio e de febre. No sétimo dia, depois de um sono de três horas, aproveitadas, pelo conde e por Brás, para descansarem nas poltronas, Júlio despertou e chamou Brás, como de costume.
- Estou aqui, Sr. Júlio! - disse Brás, saltando para junto dele e segurando-lhe a mão.
JÚLIO - Ah! És tu? Ainda bem! Precisava tanto de te ver e de te falar! Pobre Brás! Fui mau para ti! Como perdoar-me?
BRÁS - Meu bom Sr. Júlio, do fundo do coração, perdoei-lhe há muito tempo. Não perdoou Nosso Senhor a todos que o ofenderam? Não devemos fazer todos o mesmo? Esteja tranquilo, Sr. Júlio, não se inquiete; mais tarde falamos dessas coisas.
JÚLIO - Estou tão fraco. Estive muito doente não estive?
BRÁS - Esteve, mas agora está melhor. Beba alguma coisa e durma.
Júlio bebeu laranjada.
- É boa - disse ele. - E tu, Brás, és tão bom em estar ao pé de mim! Fui tão mau para ti! Oh! Se soubesses como tudo isso me queimava a cabeça e o coração.
- Schiu, Sr. Júlio; não fale; faz-lhe mal.
O conde, feliz pelo regresso de Júlio ao uso da razão, não podendo dominar a sua alegria, esteve a ponto de aparecer para beijar o filho, que ele julgava perdido, quando Júlio voltou a cabeça e disse:
- Brás, não digas ao papá que eu te falei; não o deixes vir; se o vejo, morro de vergonha e de medo.
BRÁS - Não, não, Sr. Júlio; não direi nada, fique descansado; mas o seu pai é tão bom para si, gosta tanto de si, que não deve ter medo dele.
JÚLIO - Mas a vergonha Brás, a vergonha? BRÁS - Pois bem, Sr. Júlio, essa será a expiação da sua falta: há-de ser bonito confessar tudo. Mas tem tempo de pensar nisso, Deus louvado. Trate agora de dormir; mais tarde conversaremos.
Brás ficou contente por ter despertado na alma de Júlio o primeiro pensamento da confissão com expiação; punha nas suas mãos o meio de apaziguar a consciência, de reencontrar a calma perdida.
Júlio recebeu as palavras de Brás com alguma surpresa misturada de satisfação; sentia vagamente que podia reparar tudo; mas, fraco de mais para reflectir seriamente, deixou-se adormecer durante duas boas horas. O Sr. Trénilly mal ousava mexer-se, tal era o medo de perturbar o repouso de Júlio; desejava dizer algumas palavras a Brás mas não se atrevia a falar. Brás, notan-do a sua angústia, levantou-se sem ruído, chegou atéele nas pontas dos pés; quando estava ao alcance do Conde, este puxou-o docemente para si, estreitou-o vivamente nos seus braços e disse-lhe ao ouvido: - Diz-lhe que sei tudo, que lhe perdoo, que o amo, que transformaste o meu coração, que és o irmão dele, o meu segundo filho. - Dir-lhe-ei como o Sr. Conde é bom – respondeu Brás, muito baixinho. CONDE - Conforta-o e encoraja-o, meu amigo, meu excelente Brás, para que ele deixe de ter medo de mim. Ah! Este pensamento mata-me. BRÁS - Conseguirei tudo com a ajuda de Deus, meu bom Sr. Conde tenha confiança, que será recompensado.0conde não o reteve mais, e, escondendo a cabeça entre as mãos, reflectiu na piedade de Brás e nas virtudes, verdadeiramente admiráveis, desta criança. Como teria ele aprendido tudo isto? - perguntava a si próprio com surpresa. - Este pobre filho de um porteiro tem os sentimentos elevados de um príncipe, a ciência de um sábio, a generosidade, a caridade de um santo. Quando fala, comove-me; quando me consola, as suas palavras enchem-me o coração de tão suaves sentimentos que deixo de sentir as minhas inquietações e a minha infelicidade. Quando me censura, faz-me corar como se tivesse autoridade sobre mim. Porquê tudo isto?.. Porquê? - acrescentou. - Porque é piedoso, porque segue com proveito os ensinamentos do catecismo, porque vai fazer a primeira comunhão, porque é um santo filho de Deus... E o meu Júlio, o meu pobre Júlio, que é ele ao pé desta criança? Um infeliz pecador, um miserável como eu. Ah! Que Deus me dê o meu filho e eu me confessarei com ele, e receberei o Senhor junto dele, e tornar-me-ei melhor com ele e o mestre de nós dois será esta pobre criança caluniada, ultrajada, maltratada por nós... Amo este pequeno como ao meu filho, respeito-o, admiro-o; ele será o meu modelo e o meu guia.
O conde olhou com ternura o pobre Brás que adormecera numa poltrona, e cuja fisionomia exprimia tão bem a calma de uma boa consciência. Levantou-se, pôs-se ao lado da cama de Júlio e contemplou com dolorosa emoção o seu rosto contraído e agitado.
- Meu Deus - disse - torna-o semelhante ao piedoso e sensato Brás e perdoa-me tê-lo educado tão mal. Que só eu seja castigado e o meu filho poupado!
O conde ficou por muito tempo junto de Júlio, seguindo ansiosamente os seus menores movimentos, pronto a esconder-se quando ele despertasse. Júlio dormiu ainda por muito tempo; estava evidentemente melhor. Despertou por fim, abriu os olhos e soltou um grito fraco que fez saltar Brás da sua poltrona. O conde retirara-se e escondera-se atrás da cortina da cama.
- Brás, Brás, parece-me que vi o papá... Sonhei com certeza - acrescentou, levantando-se e olhando para todos os lados... - Julguei que estáva aqui... Tive medo, muito medo.
BRÁS - E porque há-de ter medo do seu papá, meu bom Sr. Júlio? Imagina que ele teria coragem de ralhar consigo depois de o ter visto tão doente?
JÚLIO - Brás, eu disse alguma coisa durante a minha doença? Diz-me a verdade! Que disse eu? Lembro-me que falava muito.
BRÁS - Ouça, meu querido Sr. Júlio, não se assuste, não tenha medo de nada. Tudo vai pelo melhor. Enquanto esteve muito mal, disse tudo o que tinha feito; contou tudo; o seu papá chorava, beijava-o, apertava-o nos braços e rezava a Deus para que o salvasse. Vê bem que ele não lhe quer mal.
- Então toda a gente sabe o que eu sou? - perguntou Júlio, oprimido.
BRÁS - Ninguém, Sr. Júlio, ninguém a não ser o seu papá e eu. Só nós os dois estávamos junto de si.
JÚLIO- E o papá sabe tudo! Como ele deve desprezar-me!
- Júlio, meu querido filho - gritou o conde, incapaz de resistir por mais tempo ao desejo de o tranquilizar. - Júlio Continuo a amar-te mais do que antes da tua doença, porque vejo os teus remorsos e por isso gosto ainda mais de ti! Oh! Júlio! Meu querido filho! Eu sou o verdadeiro culpado porque nunca te falei de Deus e dei-te um triste exemplo. Júlio! Perdoa, meu filho; o teu pai é que precisa de ser perdoado, porque é o verdadeiro, o grande culpado!
Júlio, espantado, enternecido, não podia falar, mas respondia ao abraço apaixonado do pai cobrindo-o de lágrimas. O conde teve medo ao vê-lo assim a chorar, mas estas lágrimas eram um bálsamo para a alma doente de Júlio; estas lágrimas aliviavam-no.
- Papá! Papá! Deixa-me chorar - disse Júlio, retendo o pai que tentava afastar-se - deixa-me chorar nos teus braços!.. Que bem me fazem estas lágrimas! Como me sinto melhor! Que alívio, que felicidade não ter já nada a esconder, saber que conheces a verdade, toda a verdade! Pobre Brás!
- Sim, pobre Brás, realmente! Mas no futuro havemos de amá-lo tanto, havemos de o tornar tão feliz, que ele não será mais o pobre Brás. Devo-lhe muito, pois é a ele que devo a transformação do meu coração, que devo o saber amar a Deus e rezar. E tu também, meu filho, meu querido filho: foi ele o primeiro a dar-te sentimentos de arrependimento; ele comoveu-te com a sua paciência, a sua caridade, a sua generosidade, a sua admirável humildade.
- É verdade, papá! Mas então sabes tudo? acrescentou Júlio, sorrindo.
- Tudo, meu bom amigo, tudo - disse o conde, encantado com este sorriso, o primeiro que via nos lábios do seu querido Júlio desde há algumas semanas. - E agora que estás descansado quanto aos meus sentimentos a teu respeito, trata de sossegar; estás fraco, muito fraco ainda.
- Papá, tenho fome. Quando comer qualquer coisa descanso melhor.
- Tens fome? Ainda bem, meu filho. Brás, meu amigo, vai-Lhe buscar uma canja.
Brás precipitou-se para a porta; correu a anunciar a boa nova da convalescença de Júlio e pediu a canja, que foram aquecer apressadamente.
Durante a sua ausência, Júlio pegou na mão de seu pai, beijou-a repetidas vezes, olhou-o fixamente e disse com hesitação:
- Papá... papá, o Brás é como se fosse meu irmão.
- É o meu segundo filho, meu querido Júlio; sinto-me feliz por vires ao encontro do meu pensamento.
Brás voltou com a canja, que Júlio bebeu avidamente. A partir deste momento principiou a convalescença, que progrediu rapidamente. O Sr. Trénilly continuou a velar junto de Júlio, mas não quis que Brás continuasse a perder as noites com ele. Mandou-o dormir naquela mesma noite a casa dos pais. Brás tinha realmente necessidade de repouso; mal dormitara durante os sete dias de perigo para Júlio; noite e dia estava ao lado do conde, sempre à cabeceira da cama. O conde quisera várias vezes mandá-lo passar pelo menos uma noite a casa dos pais, mas Brás tinha recusado sempre; limitava-se a ir lá num salto de manhã e à noite para dar notícias de Júlio, lavar-se e mudar de roupa; Brás contou aos pais tudo o que se passara naquele dia; estendeu-se, feliz, na sua cama, depois de agradecer a Deus; não tardou a adormecer, acordando só no dia seguinte, já tarde.
Os criados
Os pais de Brás tinham já acabado de almoçar quando ele entrou na cozinha, um pouco envergonhado de tanto dormir; mas o pai sossegou-o dizendo-lhe que este sono fora necessário para o repousar de tantos dias e noites de inquietação e de vigília. Brás almoçou depressa e correu ao solar para retomar o seu posto junto de Júlio. A noite tinha sido excelente e o sono de Júlio só fora interrompido duas vezes pela necessidade de tomar alimento; bebera canja; o médico, que ia a sair naquele momento, permitira alguns caldos e Júlio preparava-se para comer quando Brás entrou. O Sr. Trénilly foi ao seu encontro e beijou-o ternamente, com grande surpresa do criado que trouxera a sopa. Júlio estendeu-lhe a mão, sorrindo, o que aumentou o espanto do criado.
- Pois, meus caros amigos - disse ele aos colegas quando voltou à copa - grande novidade! Se não tivesse visto não acreditava! O Sr. Conde a beijar o pequeno Anfry e o Sr. Júlio a estender-lhe a mão e a sorrir-lhe.
-Essa é boa! Não há dúvida, grande novidade!
Então o Sr. Conde, tão orgulhoso que nem sequer olha para nós e que imagina que é superior a toda a gente, a beijar o pequeno Anfry? Boa novidade, dizes bem,
Adriano.
- Como estes Anfry vão ficar orgulhosos! - continuou Adriano - E o pequeno, como não vai ficar insolente!
- E temos que nos curvar até ao chão à sua passagem
- E servi-lo como a um patrão, como ao Sr. Júlio!
- Pois bem: - disse o primeiro criado de quarto - eu cá não sou da vossa opinião. Não me parece que o pequeno mude de feitio lá por isso. Ele é bom e honesto.
- Honesto e bom! Deixa-te disso! Já esqueceste as histórias do ano passado?
- Palavra, meus amigos! para lhes dizer a verdade, é claro, aqui entre nós, nunca acreditei muito nessas histórias. Nós conhecemos bem o Sr. Júlio e do que ele é capaz.
- Realmente, ele é mau, e mesmo perverso.
- E o Sr. Conde? Também não é boa prenda. Um orgulhoso!
- E severo! E duro! E desagradável! E exigente!
- E por isso me espanta o que contou o Adriano!
Como é que ele foi capaz de beijar o pequeno do porteiro?
- Como e porquê, não sabemos, mas a verdade é que o fez. Vamos a ter cuidado e a ser correctos, até mesmo amáveis, com este novo favorito.
- Oh! Cá por mim, nunca fiz mal a esse garoto.
- Tu? Ora, vamos! Até o besuntaste de graxa no dia do papagaio.
- Pois sim; e tu despejaste- lhe água suja pela cabeça.
- Está bem, está bem! Não falem mais nisso, e sejamos prudentes para o futuro. Delicadezas, mimos.
- Para principiar, começo por lhe dar todo o café que ele quiser.
- E eu licores!
- E eu doces!
- E já que eu sou o chefe, mando-lhe todos os dias os restos do jantar. Sabem muito bem o que são os restos de uma cozinha para os amigos; chega para uma casa de família e à vontade.
- Ah! ah! ah! Sim, são divertidos esses restos. Há dias, foi uma perna de carneiro inteira para a Luciazinha, a engomadeira. Ontem, um pastelão por encetar, para a mulher da carne. Esta manhã, um pacote de manteiga para a vizinha.
- Escusas de falar tão alto - disse o chefe de cozinha, trocista. -No outro dia soubeste levar umas garrafas de vinho para a vila!
- Parece que sim; mas era para honrar o banquete oferecido pelo merceeiro.
Um toque de campainha pôs fim a esta conversa íntima; um dos criados precipitou-se para responder à chamada.
- O Sr. Conde chamou? - disse, abrindo cautelosamente a porta de Júlio.
- Chamei. Traga almoço para dois! Brás, almoça comigo.
- Sim, Sr. Conde, imediatamente.
Cinco minutos depois, o criado trazia uma mesa pequena com dois pratos, uma galinha, presunto, manteiga fresca e fruta.
CONDE - Vamos, Brás; é a primeira vez que como com apetite desde que o meu pobre Júlio adoeceu.
BRÁS - O Sr. Conde é muito bom, mas eu acabei de almoçar e não tenho fome.
CONDE - Que almoçaste?
BRÁS - Pão com queijo, Sr. Conde, como de costume.
CONDE - Mas, meu filho, isso não é um almoço, depois de todas as fadigas que tiveste, das noites que passaste.
- Oh! Sr. Conde, eu descansei bem esta noite; estou como se nada fosse.
- Pode retirar-se - disse o conde, ao criado. - Se precisar chamo.
- Então não queres aceitar nada de mim, Brás? De mim, que tanto aceitei e recebi de ti? - continuou o conde. - Toma cuidado que isso não seja orgulho - acrescentou, sorrindo e passando amigavelmente a mão pela cabeça e pelo rosto de Brás.
- Não, Sr. Conde! De verdade, não é orgulho. Receberei de si com melhor vontade do que de qualquer outro, terei mesmo prazer em lhe ser agradável. Porque
- acrescentou com ar pensativo - sei que o seu coração transborda de reconhecimento pelos cuidados que dispensei ao Sr. Júlio e que não sabe o que há-de fazer para mo testemunhar... Mas espere, espere... Dê-me um fato para a primeira comunhão, daqui a um mês. Terei muito prazer e o papá também, porque é caro para pessoas como nós... Quer? Quer? - disse, com vivacidade. - Quanto à galinha, realmente não tenho fome.
- És um bom rapaz - replicou o Sr. Trénilly, enternecido. - Sim, adivinhaste bem com o teu excelente coração a necessidade que tenho de te exprimir o meu reconhecimento; agradeço-te o teres-me dito com tanta franqueza o que te daria prazer. Mando-te fazer um fato completo, igual ao do Júlio.
BRÁS - Oh não! Não, Sr. Conde! não, tão bonito não! Não seria correcto, bem vê. Eu próprio não ficava à vontade. Não; deixe-me encomendar o fato como se fosse o meu pai a pagá-lo, e depois o Sr. Conde paga-o. Está combinado?
CONDE - Sim, meu amigo. Como quiseres. O que dizes é justo.
BRÁS - Obrigado, Sr. Conde. Agora, outra coisa,.. mas... não se zangue se peço de mais... Diga só isto: não, Brás, és muito ambicioso.
CONDE - Então que queres pedir? Vamos,.. fala! Diz, meu filho.
BRÁS - Sr. Conde,.. Sr. Conde,.. dê-me licença que o beije, mas não ao de leve, mas como... como eu beijo quando gosto...
- Vem, meu querido filho, vem! - disse o conde, abrindo os braços para receber Brás, que neles se lançou com alegria, beijando o conde repetidas vezes.
Júlio tinha visto e ouvido tudo com ternura e quis por sua vez beijar Brás, como a um irmão, a um amigo.
- Papá - disse ele -, como há- de ser para que o Brás não nos deixe nunca?
- É conservá-lo connosco, fazer dele o meu segundo filho, o teu companheiro de estudos e de brincadeiras.
- É impossível isso - disse Brás, com resolução -, impossível. Eu também tenho pai e mãe. Devo ficar na sua companhia e seria infeliz longe deles como eles o seriam longe de mim. Ficaríamos separados não só de facto, mas também por hábitos, educação, maneiras de vestir e de proceder. Já não seria como um filho deles.
Não, Sr. Conde, gosto de si, respeito-o, gostaria de passar a vida a servi-lo e a testemunhar-lhe o meu afecto e respeito, mas deixar os meus pais, ir para Paris, isso nunca.
O conde considerava com emoção o belo rosto de Brás, animado pelos sentimentos que exprimia com energia e nobreza.
Esta criança está acima da sua idade – pensava ele - mas tem razão, sempre razão; e o que me surpreende é que não me sinto humilhado.
- Brás tem razão, meu Júlio - disse por fim. -
O que ele diz é justo e sensato. É preciso achar outra solução; mas nada faremos sem te consultar, Brás. Tu é que nos guias, como fizeste há pouco a respeito do fato.
O conde acabara de almoçar; tocou a campainha para levarem a bandeja. O criado viu, com surpresa, que Brás não tinha comido.
- Ora vejam, meus amigos - disse ele, voltando à copa- uma nova maravilha! O Sr. Brás recusou o convite, do conde e não almoçou; aqui está o prato, o copo e o pão; nem lhes tocou:
- Mas então que é isso? Este rapaz do porteiro, a viver a pão com queijo, recusa galinha, vinho, bolos!
Não se pode pescá-lo pela boca. Lembro-me bem que me recusou um belo vinho moscatel e bolachas. Com certeza que ele nunca tinha comido nada tão bom. E a propósito, como seria que ele se arranjou com o Conde? Nunca o soubemos.
- Mas foi a partir desse dia que ficou muito bem com o Sr. Conde, que permitiram que ele ajudasse a tratar o Sr. Júlio e que se meteu no solar para sempre.
- Ah, sim! Um rapaz como ele, quando se instala junto de homem rico e grande senhor como o Sr. Conde, está pronto; nunca mais arreda... Isto é de acreditar? O Sr. Conde a beijá-lo, a convidá-lo para almoçar!
- E o Sr. Brás a deixar, claro! Deixou-se beijar! Parecia que queria dar ao Sr. Conde um grande beijo! Por pouco, saltava-lhe ao pescoço.
- A moral de tudo isto é que o Sr. Conde tomou-lhe amizade e o Sr. Júlio da mesma forma, que ele passa a patrão da casa e nós o que temos é que tomar cuidado e tratar de o fazer nosso amigo. Darmos o que podermos sem dar a entender donde vem.
- Ora, ora! Isso não dura muito, nada de entusiasmos; o ano passado fazia cinquenta malandrices e este ano é uma pessoa ajuizada, um santo! Veremos daqui a pouco alguma partida do Sr. Brás e lá vai ele; tenhamos cuidado e nada de descobrir o jogo.
Quando se iam a separar para irem ao seu trabalho, Brás apareceu à porta e disse que o Sr. Júlio pedia que fossem à vila procurar meio cento de berlindes para ele brincar.
- Imediatamente, menino Brás - disse um deles.
- Trago um cento.
- Não, não; meio cento foi o que disse o Sr. Júlio.
- Meio cento para ele, meio cento para ti, meu pequeno.
- Para mim não, senhor; não quero; não tenho com que pagar.
- Alguém te pede para pagares, trocista! - respondeu o criado. - Põe-se na conta do Sr. Júlio.
- Mas não, isso não seria honesto; o Sr. Júlio zangava-se e com razão.
- O Sr. Júlio nem saberia, pateta!
- Mas tem que saber, porque vai para a sua conta.
- És muito inocente! Não se põe na conta do Sr. Júlio; se um cento custa três francos, põe-se: meio cento, três francos. Aqui está como os teus são pagos como se do dele.
- O que o senhor me está a propor é simplesmente um roubo. Nunca me prestarei a uma trapalhice, por pequena que seja. Deus nunca mais me protegeria; então eu seria infeliz e desprezível.
- Ora aqui está o Sr. Brás poço de virtudes! Parece que esqueceste as trapalhices do ano passado.
- Não fiz trapalhices - respondeu Brás com calma e dignidade. -Deus protegeu-me sempre contra o mal.
- Pois sim, vai-te com a tua moral; afinal estás a aborrecer-nos. Brincava contigo e tomaste a sério, como um palerma.
- Tanto melhor para si - disse Brás, retirando-se.
- Não há nada a fazer com este rapaz! – disseram os criados, passados instantes. - Não devemos oferecer-lhe mais nada. Esperemos que ele peça. Podíamo-nos comprometer.
Confissão pública
A convalescença de Júlio caminhou rapidamente; recuperou a alegria que o abandonara havia muito tempo; conversava com o pai acerca da vida passada, do mal que fizera ao pobre Brás, das suas tiranias para com a irmã sempre boa e meiga. Achara não ter reparado ainda suficientemente os seus erros em face do Brás; parecia meditar um projecto que não queria revelar a ninguém.
- Papá - disse ele - espero o regresso da mamã e da Helena para concluir a minha reparação ao Brás. Será uma boa maneira de me preparar para a primeira comunhão que vamos fazer juntos.
CONDE - Que queres fazer então de melhor do que aquilo que estás fazendo, meu pobre Júlio? Brás parece-me sentir-se perfeitamente feliz.
JÚLIO - Papá, o Brás contenta-se sempre com pouco; mas ele falou-me muito, desde que estive doente, dos seus deveres para com Deus, para com os homens e para comigo próprio; ele explicou-me, acerca dos motivos do seu procedimento, coisas que eu nunca teria sabido sem ele; o Sr. Abade vem aqui todos os dias dizer-me também coisas boas; vai ver, papá, que o que quero fazer é bem feito e vai-lhe dar prazer. Pois também o meu querido papá está muito mudado. Desde que dorme no meu quarto, tenho reparado como reza e como chora enquanto reza; vi muito bem que tem conversado com o Sr. Abade; tudo isto faz bem, papá; o seu exemplo dá-me coragem e sugere-me bons pensamentos que nunca tinha tido. É estranho...
CONDE - Não, meu filho... É muito natural. Como te disse no dia em que me viste pela primeira vez junto da tua cama de moribundo, era eu o culpado das tuas faltas; eu é que devia pagá-las. Deus serviu-se do Brás para me iluminar; a tua doença, suavizando o meu coração, permitiu-me compreender os meus enormes erros para com a tua pobre alma, que eu estava a lançar na perdição, com a minha fraqueza e a minha falta de religião. Deus tocou- me por intermédio de Brás e tu fizeste como teu pai, que amas e que tornaste feliz com a tua transformação.
Pai e filho beijaram-se com ternura; Brás chegou pouco tempo depois; continuou a passar toda a tarde com Júlio e o conde.
As forças de Júlio aumentavam sensivelmente; começava a dar passeios bastante compridos no campo; admiravam-se na vila por Brás o acompanhar sempre e ser tratado amigavelmente pelo conde.
Esperava-se para breve o regresso da Sr. a Trénilly com Helena; nem uma nem outra tinham sabido da gravidade da doença de Júlio nem do regresso do Brás ao solar, nem da transformação do conde e de Júlio. Helena repetira a sua primeira comunhão com grande piedade e rezara ardentemente pela conversão do pai e de Júlio. No solar faziam-se os preparativos para as receber com interesse desacostumado. Fixado o dia dachegada, Júlio pediu a seu pai para reunir toda a gente da casa, no salão, no dia da chegada da condessa e de Helena; o pai perguntara-lhe em vão qual era o seu projecto ao convocar assim toda a gente incluindo An fry, a mulher deste e Brás.
- Vai ver, papá, vai ver. É para a recepção da mamã e de Helena; vão ficar todos contentes tenho a certeza.
Chegou o dia. Júlio pedira a Brás para só vir no momento da convocação geral.
- Não te preocupes - disse-lhe ele - se parece que te desprezo e não gosto de ti como dantes. É por pouco tempo, prometo, só durante as primeiras horas depois da chegada da mamã e de Helena. Depois ficas comigo o mais possível, como desde que eu estive doente.
BRÁS - Não estou inquieto, Sr. Júlio, tenho confiança em si; já não é como dantes. Respondo por si como por mim.
JÚLIO - A Helena vai ficar espantada e contente com a nossa amizade.
BRÁS - Ela é boa, a menina Helena! Quantas vezes me consolou quando me via chorar!
JÚLIO - Meu pobre Brás, então tu choravas? BRÁS - Muitas vezes, Sr. Júlio! Imagine que eu passava aos olhos de todos por um malandro, um mentiroso, um ladrão.
- Pobre Brás! - repetiu Júlio. - E era eu a causa de todo o mal. Mas hei-de vingar-te, fica descansado! Estou mais do que nunca decidido a isso.
BRÁS - Ah! Meu Deus, Sr. Júlio! Mas contra quem me vai vingar? Não preciso de vingança. Então eu não sou agora feliz, junto de si e do Sr. Conde? Agora parece-me divertido pensar que tinha tanto medo dele. Se não fosse o receio de o aborrecer, beijava-o dez vezes ao dia! Quando ele me chama e me beija abraço-o até o abafar.
JÚLIO - Meu bom Brás, como gosto de ti! BRÁS - E eu também, Sr. Júlio, gosto de si. Quero-lhe como meu irmão perante Deus.
JÚLIO - Perante Deus e perante os homens, meu querido Brás! Verás, quando fizermos juntos a nossa primeira comunhão, nada jamais poderá separar-nos.
BRÁS - Mesmo que estivéssemos separados na terra, Sr. Júlio, estaríamos reunidos em Deus e encontrar- nos-íamos no céu.
Júlio agarrou na mão de Brás, apertou-a e entraram assim no solar; então Júlio despediu-se do seu amigo, que esperou com impaciência a convocação para saber o que Júlio iria fazer.
Aproximava-se a hora; o Sr. Trénilly e Júlio esperavam, passeando diante do solar, a chegada da Sr. a Trénilly e de Helena. A carruagem apareceu, enfim, na
avenida, e parou diante do patamar. Helena saltou para o chão com a agilidade da sua idade, enquanto que sua mãe descia mais solenemente. O Sr. Trénilly recebeu a filha nos braços e beijou-a com uma efusão que surpreendeu agradavelmente Helena, pouco habituada aos testemunhos de afecto do pai; olhou-o com espanto; o Sr. Trénilly reparou e beijou-a outra vez, sorrindo.
- Sinto-me feliz por te tornar a ver, minha filha, depois da Santa Cerimónia a que não pude, infelizmente, assistir.
A surpresa de Helena redobrou, mas esforçou-se por não a denunciar; foi depois beijar Júlio, que tinha já cumprimentado a mãe. Foi outra admiração quando viu Júlio atirar-se-lhe ao pescoço e beijá-la repetidas vezes dizendo palavras afectuosas.
- Minha boa Helena! Minha querida irmã! faltava o teu regresso para a minha alegria ser completa. Estou tão contente por te tornar a ver! Gosto muito de ti, agora que sei apreciar-te melhor.
HELENA - Como estás mudado, meu querido Júlio! Estiveste então mais doente do que imaginámos?
JÚLIO - Sim, estive muito doente, Helena! Muito doente do corpo e da alma. Mas agora estou curado, graças a Deus... e ao Brás - acrescentou para si.
Helena cumprimentou os criados reunidos; os seus olhos pareciam procurar alguém; atreveu-se a perguntar timidamente.
- Onde está o Brás? Bem olho para todos os lados, mas não o vejo entre o pessoal da casa.
- Logo hás-de vê-lo; vem depois do jantar.
- Ah! Então ele agora vem ao solar?
- Sim, às vezes - disse Júlio, sorrindo. Este sorriso despertou a atenção de Helena; não era o sorriso trocista e mau de outrora, mas um sorriso doce e bom que nunca vira ao seu irmão. Notou então como Júlio estava mais belo e a transformaçãoque sofrera toda a sua pessoa e sobretudo a sua fisionomia.
- Mas então que tens hoje? Nunca te vi assim! Tens um ar diferente...
- A doença modifica-nos - respondeu Júlio, gravemente.
- E depois,.. e depois... tu vais em breve fazer a tua primeira comunhão - disse Helena, hesitante.
JÚLIO - Sim, Helena, e tu vais ajudar-me a fazê-la dignamente; conto contigo para isso, minha querida irmã, e também com um amigo que te vou apresentar esta noite.
HELENA- Um amigo? Mas quem? Há vizinhos novos cá na terra?
JÚLIO - Não, nada mudou na vizinhança; no meu coração é que se deu a mudança.
HELENA - Meu querido Júlio, como estou contente por te ver assim!
Enquanto os dois irmãos conversavam e se arranjava o quarto de Helena, o Sr. Trénilly conduzira sua mulher e contara- lhe a terrivel doença do filho, as penosas revelações que tinham tido como consequência a transformação operada na alma de Júlio e na sua, os imensos serviços que lhes prestara Brás, a bondade e a piedade admirável desta criança e a impressão que as suas virtudes haviam produzido no coração de Júlio e dele próprio.
A Sr. a Trénilly ficou surpreendida com tudo o que lhe contara o marido; pareceu descontente de não ter sabido o perigo que correra o filho e mostrou-se incrédula quanto às virtudes extraordinárias de Brás.
O desgosto e a inquietação - disse ela - dispuseram os vossos corações para a ternura e para a credulidade; o rapazinho, que não é parvo, aproveita a ocasião para vos fascinar e instalar-se na casa. Espero que tudo isso acabe com o meu regresso e que cada um fique no seu lugar.
CONDE-Entristeces-me muito, minha querida, com essa frieza e essa injustiça. O pobre Brás, muito longe de abusar e mesmo de utilizar o seu ascendente sobre mim e o Júlio, recusou as ofertas vantajosas que lhe fizemos, e conserva-se numa recusa de que poucos homens seriam capazes.
CONDESSA - Tanto melhor para ele e principalmente para nós, porque, sem conhecer as ofertas que Lhe fizeram, presumo que eram de natureza a eu não concordar com elas.
CONDE - Júlia, Júlia! Estás a dizer uma injustiça!
Se soubesses como me desgostas profundamente, como feres os meus sentimentos paternais!
CONDESSA - Os teus sentimentos paternais
levaram-te sempre a amimar os filhos, principalmente
Júlio, que tornaste odioso.
CONDE - Nisso tens razão, Júlia; eu tinha-o tornado mau e odioso; Brás tornou-o bom e amável.
CONDESSA - Na verdade! Mas a doença de Júlio fez-te perder a razão; não me digas mais tolices.
- Meu Deus, que me estás a castigar! E eu mereci o castigo! - disse o conde, com um gesto de desolação, deixando o aposento.
A condessa chamou a criada de quarto, vestiu-se, pediu o jantar e entrou no salão com o ar frio e calmo que lhe era habitual.
O jantar decorreu silencioso e solene; o ar triste do conde perturbou e inquietou os filhos. Acabada a refeição, Júlio pediu ao pai a execução da promessa. O conde beijou-o e saiu, dizendo-lhe ao ouvido:
- Toma cuidado, meu Júlio; poupa a tua mãe. Passados poucos minutos, as portas abriram-se e entrou toda a gente da casa atrás do conde, que trazia Brás a seu lado. Ainda a condessa e Helena não se tinham recomposto da surpresa quando Júlio, pálido e comovido, se aproximou de Brás, tomou-lhe a mão, conduziu-o ao meio do salão e disse com voz alta, mas a tremer de emoção:
- Meus amigos, fi-los vir aqui todos com a aprovação do papá, para reparar, tanto quanto puder, a injustiça que tenho cometido, desde há dois anos, perante o meu amigo Brás...
- Sr. Júlio, Sr. Júlio! Por favor - interrompeu o rapazinho, com ar suplicante.
- Deixa-me acabar, Brás! Deixa-me, para descanso da minha consciência, para satisfação do meu coração, dizer aqui diante da mamã e de Helena, diante de todos como eu os enganei a teu respeito, maldosamente, indignamente; virei contra ti todas as tuas boas acções; caluniei-te e injuriei-te sempre! Tu perdoaste-me nobre e generosamente. Em lugar de te justificares acusando-me, deixaste perder a tua reputação na casa e nesta terra. Helena foi a única pessoa que te fez justiça; to mou sempre partido por ti, isto é, pela verdade, pela bondade, pelo conjunto de todas as tuas virtudes. Desejo que se ouça a confissão que me é arrancada pelo arrependimento; que se diga a toda a gente como eu sou vil e desprezível. Quero que todos saibam que neste momento perante o papá, a mamã e todas as pessoas da casa, que tantas vezes ofendi com as minhas exigências, insolências e maldades, peço perdão, de joelhos, por toda a minha vida passada. Quero que se saiba que é ao Brás que eu devo a minha conversão; a sua virtude comoveu-me, os seus conselhos excitaram o meu arrependimento, o seu exemplo provocou-me o horror de mim próprio.
Júlio pusera-se efectivamente de joelhos ao pronunciar as últimas palavras; Brás precipitou-se para ele a fim de o erguer; Júlio lançou-se nos seus braços e beijou-o repetidas vezes; todos os criados choravam e o conde, que se contivera até aí, não pôde reter por mais tempo a sua comoção. Aproximou-se de Júlio e de Brás e tomou-os nos braços.
- Meu pobre Júlio! - dizia ele entre soluços. Que coragem! Deus te recompensará, querido filho!
- Querido Brás, é a ti que devo esta alegria!
Os criados pediram licença para apertar a mão do seu jovem patrão. Júlio correu para eles e a todos apertou a mão com efusão. Sentia-se feliz e de coração aliviado.
Sua mãe ainda não tinha dito nada. Às primeiras palavras de Júlio, sentira-se encolerizada contra o que lhe parecia uma humilhação ridícula. À medida que ele falava a nobreza da acção de seu filho, o tom sincero das suas palavras comoveram-na, mas sem a convencerem a aprovar esta confissão pública das suas faltas. Revoltou-se contra o pobre Brás, causa bem inocente desta confissão, e quando o viu nos braços de Júlio e depois do conde, o descontentamento preponderou e ficou fria e imóvel, retendo Helena, que quisera precipitar-se nos braços do irmão e chorava comovidamente.
Os criados saíram lançando a Júlio olhares de afectuosa admiração e não falaram de outra coisa em toda a noite; vários deles ficaram tão profundamente impressionados que mudaram completamente de vida e tornaram-se servidores honestos e fiéis.
Quando o conde e Júlio ficaram em família com Brás, que Júlio não deixara sair, Helena lançou-se a seu irmão e beijou-o com efusão; depois virando-se pa ra o conde:
- Papá, dá-me licença que beije este excelente Brás que foi a causa de toda esta felicidade?
- Decerto minha filha! minha querida; Helena; beija-o; deve ser para ti um segundo irmão.
Brás deixou-se beijar timidamente por Helena e beijou-lhe a mão com ternura.
A condessa levantara-se encolerizada e, aproximando-se de Helena, puxou-a violentamente, dizendo:
- Helena, esqueces que te permites beijar o filho de um porteiro na minha frente. Não consinto que esta cena ridícula se prolongue por mais tempo; Helena, vem comigo e deixa o teu pai e teu irmão fazerem deste rapaz sem educação o seu amigo e confidente.
O conde olhava sua mulher com dor e piedade.
- Júlia - disse-lhe - como são infelizes o ingrato e o orgulhoso!
- Malditos sejam os intrigantes e os estúpidos! respondeu ela, deixando a sala e arrastando Helena.
O conde caiu numa poltrona, com o rosto escondido entre as mãos. A rispidez orgulhosa de sua mulher feria-o. Tinha-lhe sempre censurado a secura e a falta de coração; mas, seco e egoísta também nunca por essa razão sofrera como nesse dia, em que tudo mudara para ele.
Previa as lutas de todos os dias, as cenas, as censuras que, de futuro, haviam de envenenar a sua vida. A felicidade tão nova e tão pura que gozara junto de Júlio e de Brás, havia um mês, desaparecera; seu filho e ele próprio ficariam privados da companhia de Brás, cuja piedade lhes era tão útil e cuja alegria, afectividade e complacência se lhes tornavam tão agradáveis.
A condessa estaria sempre entre eles e Brás, esse pobre Brás destinado a encontrar sempre ingratos na família do conde.
Reflectia com profundo pesar nesta situação inesperada, quando se sentiu apertado nos braços de Júlio ao mesmo tempo que as suas mãos eram tocadas pelos lábios de Brás; as pobres crianças choravam, pois adivinhavam uma separação; Brás sentia que voltaria a ser o pobre Brás.
JÚLIO - Papá! Querido papá, que fazer agora? Como e onde poderia passar as minhas tardes com Brás e contigo?
CONDE - Querido filho, é preciso ceder um pouco a tua mãe até que ela tenha fé naquilo em que cremos e do que tanto aproveitamos; quero dizer as excelentes qualidades, as virtudes de Brás e o reconhecimento que lhe devemos.
BRÁS - Meu querido, meu bom Sr. Conde, não fale de reconhecimento; depois do que o Sr. Júlio fez hoje, o reconhecimento está todo da minha parte...
JÚLIO - Não, não! Eu só fiz uma reparação; tu perdoaste e tornaste-te delicado antes da reparação...
CONDE - Júlio tem razão, Brás; admitamos que estamos quites contigo, o que não é nem nunca será verdade; sofremos sempre no nosso afecto por ti, primeiro por estarmos privados muitas vezes da tua presença, depois por te sabermos ignorado por aquela que devia apreciar-te melhor que ninguém.
BRÁS - Querido Sr. Conde: Deus procede sempre bem; o que está a acontecer talvez seja para o bem de nós todos. E afinal não é uma felicidade sofrer neste mundo para receber na outra vida uma recompensa maior? Podemos continuar a estimarmo-nos sem nos vermos tanto e com o mérito de aceitarmos com resignação e doçura, este sofrimento que Deus nos envia.
Querido Sr. Conde, gosto de si, bem sabe, com toda a ternura do meu coração, mas resignava-me a nunca mais o ver se fosse essa a vontade de Deus! Ai de mim! Talvez nunca mais o beije, nunca mais, nem ao Sr. Júlio.
-Beijar-me-ás esta noite e sempre que queiras, meu filho - disse o conde, apertando-o contra o peito.
Brás aproveitou-se largamente da autorização; mas já era tarde e tempo de se separarem, Brás despediu-se de Júlio e do conde e retirou-se soluçando. Papá - disse Júlio - continua a dormir no meu quarto, para eu o ter perto de mim?
- Enquanto não recuperares as forças e a saúde habitual, dormirei junto de ti, meu querido filho; quando estiveres inteiramente bem, volto para o meu quarto. É preciso habituares-te aos sacrifícios, meu Júlio; este será menos penoso do que ficarmos condenados à falta da companhia de Brás.
- Vai ser mais um sacrifício, papá - disse Júlio tristemente.
- E não será provavelmente o último nem o maior, meu amigo. Vai despedir-te de tua mãe e de Helena e depois vamo-nos deitar. Não esqueçamos que no meio da nossa tristeza temos muito que agradecer a Deus: tu pela coragem de fazer a confissão pública dos teus er ros e eu por ter recebido esta consolação. Vem, meu Júlio, e serás tão afectuoso quanto puderes com tua mãe, para lhe mostrares que a piedade abre o coração em vez de o fechar.
Obediência
Júlio fora recebido secamente pela mãe quando foi dar-lhe as boas- noites; contudo beijou-o, sorrindo.
- Espero - disse-lhe - que recuperarás o bom senso que a doença te fez perder e que não repetirás a cena teatral com que me brindaste esta noite. Quanto ao teu novo amigo, não é companhia conveniente para ti e peço-te que amanhã lhe faças saber que o proíbo de pôr os pés em minha casa, que é também a de Helena e a tua. Se o teu pai quiser recebê-lo não posso impedi-lo, mas não consinto que esse pequeno camponês se instale nos meus aposentos ou nos dos meus filhos.
- Obedeço-lhe mamã - respondeu Júlio, com tristeza - mas o que me ordena é muito doloroso e tira-me uma grande consolação.
CONDESSA - Desde quando tens necessidade de consolação?
JÚLIO - Desde que senti como era mau e como ofendera a Deus.
CONDESSA (sorrindo) - Que maravilha, meu amigo! Tornaram-se agora muito devotos, teu pai e tu! Só falam em ar de sermão. Mas peço-te que me poupes às tuas sentenças religiosas; ainda não cheguei à altura de te compreender.
- Oh! mamã! - exclamou involuntariamente Helena.
CONDESSA - Porventura vais também entrar neste jogo? Sabes que não suporto as tuas advertências. Pensa como teu pai e teu irmão, reza com eles se isso te dá prazer, mas ao menos que eu não veja nem ouça. Adeus, meus filhos, deixem-me só! estou fatigada.
Júlio e Helena retiraram-se para os seus aposentos: os seus quartos eram contíguos. Ao entrarem no de Júlio viram o conde que os esperava.
CONDE - Então, meus filhos: a vossa mãe modificou a sua primeira impressão? Teria ela compreendido, enfim, a beleza e a nobreza da tua confissão, Júlio? Perdoa ao pobre Brás a parte que teve no nosso aperfeiçoamento?
JÚLIO - Creio que não, papá; a mamã falou da mesma maneira que no salão. Chegou a ralhar com a Helena por ter dito um: Oh! mamã! muito expressivo.
- Pobre Helena! - disse o conde, passando-lhe repetidamente a mão pela cabeça. - Pobre Helena! repetiu com ar triste e pensativo. - Deves ter sofrido muito durante este tempo!
HELENA - Papá, eu estava no convento! As Irmãs são tão piedosas e tão boas! As minhas companheiras eram também tão boas! Sentia-me lá feliz.
CONDE - E aqui?
HELENA - Aqui?.. Ainda não sei, papá. Depende de si e do Júlio.
CONDE- Minha filhinha, farei tudo o que puder pela tua felicidade; verás a transformação que se operou em mim. A minha antiga má disposição, a minha severidade, a minha frieza desapareceram. Não tornarás a ter medo de mim, quero crer.
- Oh! Não, não, papá! - disse Helena lançando-se nos seus braços. - Amá-lo-ei com todo o coração e digo-lhe sem medo.
JÚLIO - Há-de ser como o Brás, que beija agora o papá como se ele fosse o seu verdadeiro pai.
- O Brás beija o papá - disse Helena, rindo. Oh! Que engraçado! Gostava de ver.
CONDE - Verás amanhã, se quiseres vir connosco a casa do Anfry.
HELENA - Mas que transformação, meu Deus!
Nunca imaginei que fosse possível o Brás atrever-se a beijar o papá!
JÚLIO - Compreenderás tudo, Helena, quando eu te contar o que devemos ao Brás e quais são as suas admiráveis virtudes. Para mim, ele foi um verdadeiro amigo.
CONDE - O resto da conversa fica para amanhã, meus queridos filhos. Deves estar fatigada da viagem,
Helena; e tu, meu filho, de tudo o que se passou esta noite.
JÚLIO - É verdade, papá, sinto-me cansado; não me importo nada de ir para a cama.
HELENA- E eu também; vou com todo o gosto.
Boas-noites, papá, até amanhã!
CONDE - Até amanhã, minha filha! Que Deus te abençoe. Adeus, Júlio. Adeus, Helena.
Beijaram-se e separaram-se.
Quando Júlio ficou só com o pai, aproximou-se dele, abraçou-o ternamente e disse-lhe:
- Papá, vamos rezar pela mamã, pedir a Deus que a modifique como nos modificou a nós... Posso dizer assim, não é verdade, papá? Consigo eu penso em voz alta e não posso deixar de considerar uma grande infelicidade para a mamã ser como foi esta noite.
O conde não respondeu mas as lágrimas que lhe caíam dos olhos, mostravam a Júlio que o pai pensava como ele.
- Rezemos - disse somente o conde, e ajoelhou ao lado do filho.
Enquanto rezavam, a condessa, um pouco inquieta por não ter visto o marido desde o descontentamento que lhe mostrara, e, depois de o procurar inutilmente, entrou no quarto de Júlio e ficou imóvel ao ver o marido ajoelhado ao lado do filho; nenhum dos dois a ouvira. A condessa ficou uns minutos hesitante no que havia de fazer; depois tornou a fechar a porta cuidadosamente e retirou- se, pensativa, para o seu quarto.
Estão doidos - dizia consigo - esta doença de Júlio, transformou-os, positivamente... Hei-de mandar vir o médico um dia destes para os tratar... A Helena também está a tornar-se extravagante. Então há dias, não me falava da felicidade da vida religiosa? Eles vão-lhe acabar com o resto do juízo... Se pudesse impedi-los de a verem, mas é impossível!.. Um pai e um irmão!.. Havia um meio!.. Levá-la a fazer uma viagem à Suíça... Sim... Mas é preciso esperar a primeira comunhão de Júlio; antes disso não me posso ir embora.
E a condessa deitou-se com a resolução de ter paciência, de deixar correr as coisas até se realizar a primeira comunhão e depois de libertar Helena de uma influência que ela considerava prejudicial.
No dia seguinte o conde levou os filhos a ver o Brás. Entraram em casa de Anfry.
- É estranho que o Brás não nos tenha visto chegar - disse o conde. - Devia ter pensado que vínhamos a casa dele, uma vez que ele não pode ir à nossa.
Mas o Brás não estava. O conde chamou Anfry, que trabalhava no jardim.
CONDE - Onde está o Brás? Já saiu? ANFRY - Há muito tempo, Sr. Conde.
CONDE - Aonde foi ele?
ANFRY- À igreja, Sr. Conde. Passou uma noite triste e foi procurar consolação junto de Deus; faz isto bastantes vezes, como sabe.
CONDE - Vamos ter com ele, meus filhos; nós também temos necessidade de força e de consolação.
O conde despediu-se de Anfry e dirigiu-se para a igreja, que era perto. Entraram sem ruído, ajoelharam e viram Brás também de joelhos nas lajes, com a cabeça entre as mãos, parecendo nada ver nem ouvir. Esperaram muito tempo um movimento que indicasse que a sua ardente prece terminara, mas Brás não se mexia; não reparava no tempo quando rezava. Por fim, deixou cair as mãos, levantou lentamente a cabeça e disse a meia voz: Sim, meu Deus, meu bom Jesus, meu querido Salvador, eu obedecerei; farei o sacrifício, não procurarei vê-los mais senão com longos intervalos; porei nas minhas palavras e nos meus actos a reserva de um servidor perante os seus patrões. Deus os proteja, aos meus queridos patrões! Meu querido Sr. Conde, meu bom Sr. Júlio! Continua, meu Deus, a iluminá-los, a dirigi-los para o bem. E a boa menina Helena! Que ela me substitua junto deles! Meu Deus, modifica o coração da Sr. a Condessa; mais uma alma para salvar, meu bom Jesus! Faz com que ela te ame e tudo terminará bem.
Brás ergueu-se, enxugou os olhos inchados de chorar, fez o sinal da cruz e, virando-se para se retirar, viu o conde e os filhos. O seu rosto iluminou-se; esteve prestes a correr para eles, mas o respeito pela casa de Deus conteve este primeiro impulso. O conde levantara-se ao mesmo tempo; dirigiu-se para a porta, seguido pelos filhos e por Brás. Só depois de sair da igreja é que Brás, soltando um grito de alegria, se lançou nos braços que o conde Lhe estendeu, com grande satisfação de Helena, que os olhava, rindo.
HELENA - Então já não tens medo do papá, Brás? BRÁS - Medo? Veja se isto é medo, menina Helena. Medo? Pode-se ter medo de quem se gosta tanto?
- Agradeço-te a tua prece, meu querido filho disse-lhe o conde apertando-lhe as mãos.
- Ouviu-me? - exclamou o rapaz corando. - Então eu falei alto?
CONDE - Alto, não, mas o suficiente para nós ouvirmos.
BRÁS - Sr. Conde, acabo de prometer a Deus não fazer nada que possa desagradar à Sr. a Condessa; não só procurarei ver poucas vezes o Sr. Júlio e a menina Helena, mas também hei-de evitá-los, fugir-lhes, se for preciso.
JÚLIO - Fugir de nós? Ah! Brás, já não gostas de mim?
BRÁS - Se soubesse como isto me custa, querido Sr. Júlio! Por favor, peço-lhe que não abale a minha resolução; pelo contrário, ajude-me a mantê-la. Mas vamos a ver o pensamento que Deus me sugeriu, ou, pelo menos, o meu anjo da guarda: Sr. Conde pode vir ver-me e trazer algumas vezes o Sr. Júlio e a menina Helena, não é verdade? Perdoe-me se peço muito, mas eu não Lhe oculto os meus pensamentos, e parece-me que este não traz culpas para mim nem para o Sr. Júlio e à menina Helena.
- Nem para mim - disse o conde, rindo - Sim, meu amigo, o teu pensamento é bom, e hei-de pô-lo em execução; virei ver-te muitas vezes e trarei os meus prisioneiros, a não ser que eles fujam pelo caminho.
JÚLIO-Oh! Eu fujo com certeza mas é para correr ao encontro de Brás.
CONDE - Quando viermos ver- te será sempre entre o meio-dia e as duas ou três horas.
BRÁS - Assim, esperá-los-ei todos os dias; quando não vierem, espero- os no dia seguinte.
CONDE - Parece que não esperarás em vão muitas vezes, meu amigo.
A correspondência
- Uma carta para o Sr. Brás - disse um dia o carteiro apresentando a Anfry uma carta, com um lindo sinete.
Anfry pegou na carta e entregou-a a Brás, que se apressou a abri-la, surpreendido de a receber.
- É do Sr. Tiago! - exclamou, olhando a assinatura.
- Ah! Vamos a ver Que diz ele?
Brás leu, alto:
Meu caro Brás, há tanto tempo que nos separámos que talvez me tenhas esquecido; mas eu penso muitas vezes em ti e não te esqueço. Quando parti, escrevia tão mal e tão devagar que não te podia mandar cartas; agora, tenho nove anos, estudo muito e começo a tornar-me um sábio! Aconteceu uma coisa muito divertida em casa de um senhor que mora perto de nós; a casa dele ardeu (isto não foi divertido, como deves calcular); depois do incêndio, todos os ratos se tornaram brancos; havia muitos e ainda há bastantes; dantes eram cinzentos, como todos os ratos. O papá não queria acreditar; então o sr Roussel apanhou alguns com um cãozinho que tem muita habilidade para isso e o papá e eu vimos que todos os ratos que foram caçados eram realmente brancos. Divirto-me bastante, mas não tanto como tu; o que é estranho e muito desagradável, é que eles são todos um pouco mentirosos; quando fazem uma tolice, nunca querem confessá-la e dizem: não fui eu. Eu continuo a dizer sempre a verdade, como tu me aconselhaste, toda a gente acredita em mim. Escreve-me quando fores fazer a primeira comunhão, dizendo o dia, para que eu pense em ti e reze por ti nesse dia. Diz-me também o que fazes, se estás contente, se os filhos do senhor que comprou o solar são bons para ti e se te estimam. Disseram ao papá que o tal senhor era mau; isto assustou-me por ti, meu pobre Brás, que és tão bom. Se ele for mau, não vás lá a casa, porque é capaz de te tratar mal.
Conta-me o que fazes e pensa muitas vezes em mim, como eu penso muitas vezes em ti. Adeus, meu querido Brás; beijo-te de todo o meu coração; beija por mim o teu papá e a tua mamã.
Teu amigo, Tiago.
- Que linda carta! - exclamou Brás! - Não me esquece, este excelente Sr. Tiago! Se ele me interrogasse no ano passado sobre o Sr. Conde e os filhos, ficaria muito embaraçado para responder; mas hoje... é diferente. Há uma coisa, na carta do Sr. Tiago, que me parece divertida como ele diz. - Acrescentou Brás, rindo! - É que um incêndio tenha podido mudar a cor aos ratos.
ANFRY- Contudo é muito possível, pois ouvi contar muitas vezes ao teu avô, que quando foi do incêndio de Moscovo em 1812, ao entrarem nas casas que o fogo não destruíra, todos os ratos que corriam nelas estavam brancos como coelhos brancos.
BRÁS - É estranho que o medo possa produzir esse efeito nos animais.
ANFRY - Vais responder ao Sr. Tiago?
BRÁS - Sim papá, hoje mesmo, porque já não espero a visita do Sr. Júlio; assim tenho tempo.
ANFRY- Diz-lhe que lhe mandamos cumprimentos e os nossos respeitos.
BRÁS - Não me esqueço, papá.
E o Brás foi buscar papel e caneta, respondendo desta maneira:
Meu querido Sr Tiago
Fiquei contente e surpreendido com a sua amável carta. Agradeço-lhe não me ter esquecido; eu também tenho pensado em si e por isto chorei mais de uma vez. Consolei-me com o pensamento de que era a vontade de Deus estarmos separados: é talvez o sacrifício que ele me pede para a primeira comunhão. Obrigado, meu bom Sr. Tiago, pelo seu magnifico pensamento de rezar por mim neste santo e feliz dia. Peça a Nosso Senhor que me torne semelhante a Ele, que me dê coragem nos tempos de tristeza, força para resistir à alegria a fim de eu não me esquecer de que me encontro neste mundo só de passagem e que a minha verdadeira vida só começará quando já não puder morrer Reze, meu bom Sr. Tiago, para que eu não esqueça nunca nenhum dos meus deveres e para que me esQueça sempre de mim e me dedique aos outros; reze para que eu nunca conserve recordações do mal que me fazem e para que nunca esqueça os beneficios que recebo. Enganaram o seu papá, dizendo que o Conde Trénilly era mau; ele é bom como o melhor dos homens; amo-o como se fosse meu pai. O filho, o Sr. Júlio, é também excelente, assim como a filha, a menina Helena. O Sr. Júlio e eu, vamos fazer a nossa primeira comunhão daqui a três semanas, a 8 de Setembro. O Sr. Conde e a menina Helena prometeram-nos comungar connosco nesse dia, o que prova como eles são realmente bons e piedosos. Sou muito feliz, meu bom Sr. Tiago, feliz por tudo que Deus quer enviar-me, sejam tristezas ou alegrias. O papá e a mamã agradecem-lhe a sua lembrança e mandam-lhe cumprimentos respeitosos. Quanto a mim, Sr. Tiago, sei bem que a minha posição me proibe beijá-lo, mas posso permitir-me assegurar-Lhe que o estimo com o mais terno e devotado afecto.
Humilde e obediente servidor,
Brás
Assim que Brás acabou e leu alto a carta, um criado entrou em casa de Anfry.
- A Sr. a Condessa manda chamar o Brás.
- A mim? A Sr. a Condessa? - repetiu Brás, muito admirado.
- Sim, sim, e imediatamente. Vai procurar Brás e traz-mo o mais depressa possível, disse-me ela.
- Para que será? - perguntou Anfry, inquieto. Vai lá, Brás; vai, não tens outra coisa a fazer... mas volta depressa para me dizeres o que se passou, porque não fico sossegado.
- Não se atormente, papá; que me poderá acontecer? E mesmo que me aconteçam coisas desagradáveis, Deus aí está para me socorrer e devo sentir-me contente em me conformar com a Sua vontade. Adeus, papá; demoro-me o menos que puder.
Brás partiu alegremente e depressa, para voltar quanto antes. Fizeram-no entrar imediatamente nos aposentos da condessa, que o esperava com impaciência. Ele cumprimentou-a; a condessa fez-lhe um pequeno aceno de cabeça, despediu o criado, sentou-se e disse a Brás, com ar frio e altivo:
- Sei que aproveitaste a minha ausência para dominares o espírito do meu marido e do meu filho; triunfaste plenamente; só vejo caras enfiadas nos dias em que eles não podem pretextar um passeio para te visitarem; para ficarem bem dispostos têm que ter sempre o Sr. Brás ao pé de si. Sei que a minha filha é impelida por eles a proceder do mesmo modo. Este estado de coisas contraria-me e não pode continuar.
Mandei-te chamar para te dizer que ainda tenho uma opinião bastante boa da tua lealdade para esperar ser obedecida, proibindo-te toda a iniciativa que possa aproximar-te dos meus filhos; quanto ao conde, podes passar a vida a beijar-Lhe as mãos e a abraçá-lo, que isso não me preocupa absolutamente nada; mas não quero esta estúpida amizade dos meus filhos com o filho de um porteiro e intriguista. Se queres obedecer à proibição que te faço, podes contar comigo para o teu futuro; dar-te- ei uma educação e asseguro-te uma renda que te porá ao abrigo da pobreza. Aceitas?
- Sr. a Condessa, não desrespeito a proibição que me faz, por muito que isso me desgoste; pedirei ao Sr. Conde para me ajudar a obedecer às suas ordens. Quanto à pensão, à educação e às vantagens que me oferece, dê-me licença que as recuse. Não preciso de nada; não quero sair da minha condição nem fazer vida de preguiçoso; ganharei o meu pão como faz o meu pai e, com a ajuda de Deus, chegarei ao fim da vida sem nunca vender o meu coração nem a minha consciência. Posso afirmar à Sr. a Condessa que se engana pensando que intriguei para alcançar a amizade do Sr. Conde e do Sr. Júlio. Nada fiz para isso; fez-se tudo por si nem sei como, pois sei como estou longe de merecer os favores do Sr. Conde, do Sr. Júlio e da menina Helena. Deus fez tudo isso. Talvez me tenha dado tanto amor por eles a fim de me experimentar e dar-me o mérito do sacrifício no momento da minha primeira comunhão... Mas prometo-lhe, Sr.a Condessa, só verei os seus filhos com autorização sua.
Acabando de proferir estas palavras, o pobre Brás, que até aí conseguira manter o sangue frio, desfez-se em lágrimas. Quis dizer algumas palavras de desculpa, mas as palavras não podiam sair-lhe dos lábios. Com vergonha de prolongar uma cena que podia irritar a condessa, Brás tomou o partido de se retirar sem mais explicações e, cumprimentando à pressa, avançou para a porta. Antes de a abrir, lançou um último olhar à condessa, que se levantara dando um passo para ele; uma certa ternura manifestava-se-lhe no rosto; a um movimento que fez Brás de parar, ela retomou o seu ar altivo e traçou um gesto imperioso para terminar a visita.
O pobre rapaz evitou a antecâmara, para ocultar as lágrimas aos criados, e saiu por uma pequena escada que comunicava com os aposentos do conde e dos fiLhos. Mal transpusera os primeiros degraus, esbarrou com o Sr. Trénilly, em quem não reparara por causa das lágrimas que Lhe obscureciam a vista.
- Onde vais tão precipitadamente, meu amigo, e como é que vieste ao solar? - disse-lhe o Sr. Trénilly, retendo-o.
Como única resposta, Brás encostou-se ao peito do conde, dando livre curso aos soluços.
- Brás, meu filho, porquê estas lágrimas, estes soluços? - perguntou o conde inquieto. - Que te aconteceu? Diz-me; fala sem medo.
- Perdão Sr. Conde, meu bom Sr. Conde - respondeu Brás, dominando os soluços. - Eu não estava prevenido... fui apanhado de surpresa... não resisti... mas vou ser mais razoável,.. mais resignado.
- Resignado! Mas porquê, meu querido filho? De que se trata?
- A Sr. a Condessa proibiu-me ver o Sr. Júlio e a menina Helena e eu prometi obedecer-lhe. Como vê tenho razão para chorar.
- Outra vez! - disse o conde, zangado. - Sempre o mesmo ódio contra esta pobre e generosa criança!
O conde ficou algum tempo imóvel e pensativo, segurando Brás com ambas as mãos.
- Meu querido filho: - disse por fim com tristeza
- não sei que resolução tomar para vos poupar este novo desgosto, a ti e ao Júlio. Não posso contrariar a vontade de minha mulher; não posso aconselhar os meus filhos a desobedecerem à mãe. E contudo é cruel sacrificá-los a esta vontade imperiosa e insensata.
- Querido Sr. Conde, temos de nos submeter ao que nos acontece por vontade de Deus. É muito, muito penoso, na verdade; sei que é triste para si e para o Sr. Júlio quase tanto como para mim, pois que me estimam, sinto-o no meu coração. Mas não sabemos quanto tempo vai durar esta separação. Talvez Deus comova o coração da Sr.a Condessa. Ajude-me e ajude o Sr. Júlio e a menina Helena a obedecer-lhe; a nossa submissão há-de abrandá-la e mudará as suas ideias a meu respeito. Penso que ela me julga falso, hipócrita, intri guista; ela teme talvez que eu corrompa o Sr. Júlio e a menina Helena; uma mãe, como sabe, Sr. Conde, tem sempre medo e inquietação! Ela é mais para lastimar que para censurar pode crer. Assim, Sr. Conde, prometa-me que me ajudará a cumprir a promessa e que não me levará o Sr. Júlio e a menina Helena sem o consentimento da Sr.a Condessa... Vamos, querido Sr. Conde, coragem! Vejo bem que isso lhe custa, pela amizade ao Sr. Júlio e a mim e também... porque custa sempre ceder. Mas é para descanso da Sr. a Condessa para a sua felicidade, querido Sr. Conde. Acredite-me, seremos mais felizes cedendo do que resistindo.
- Meu excelente Brás - disse o conde - é sempre de ti que vêm as opiniões sensatas e boas. Creio que tens razão;.. ceder, é melhor... Mas tu, tu, pobre filho, não pensas nunca em ti e no que vais sofrer.
- Não tanto como julgava, porque posso vê-lo, Sr. Conde... pois... vai continuar a visitar-me e a dar-me notícias do Sr. Júlio e da menina Helena, sempre tão boa para mim.
- Oh! Todos os dias, meu pequeno! Todos os dias! É uma necessidade, para o meu coração. Sabes como te quero! Se fosses meu filho, não poderia gostar mais de ti.
O conde beijou uma última vez o pobre Brás, que se retirou muito triste, mas um pouco consolado pelas palavras afectuosas do conde.
- Então, meu Brás? - gritou-lhe Anfry, assim que o avistou.
- Nada de bom, papá - respondeu Brás - mas também nada de muito mau.
- Outra vez com os olhos vermelhos, meu pobre rapaz! Essa gente do inferno mata-te com desgostos!
- Não há perigo, papá - disse Brás, esforçando-se por sorrir. - Só o primeiro momento nos atrapalha... com a reflexão a gente resigna-se...
ANFRY - Então vais passar a vida a resignar-te? BRÁS - Com certeza, papá, e é uma verdadeira felicidade a tristeza, porque nos conduz sempre a Deus. Reza-se melhor aprendendo a sofrer; Deus lá está para nos ajudar e para nos consolar!
ANFRY - Mas choraste E continuas a chorar. Olha, as lágrimas a correr pela tua cara tão magra.
BRÁS - Não é nada, papá; é um resto que desaparecerá quando eu visitar Deus em sua casa.
Brás contou ao pai a causa do seu novo desgosto, atenuando com a habitual bondade as palavras duras e injuriosas da condessa. Anfry mal continha a cólera; conhecia a condessa o suficiente para adivinhar o que a caridade de Brás ocultava. Terminada a narrativa, apertou Brás nos seus braços repetidas vezes, sem dizer palavra, e deixou-o ir procurar junto de Deus a costumada consolação para os desgostos que ele suportava com uma firmeza superior à sua idade.
A Condessa Trénilly
A condessa ficara de pé no meio do aposento, surpreendida e perturbada com as palavras de Brás, com o seu tom digno e firme que a tinha subjugado contra vontade; e com a explosão de tristeza com que ele terminara as suas palavras.
Esta recusa é singular - pensou ela. - Ofereço-Lhe um futuro... e recusa... Rejeitou mesmo as minhas propostas com certa indignação... É pena que tudo isto venha do filho de um porteiro... Seria belo e nobre numa classe mais elevada... Mas começo a compreender a influência que ele exerce sobre o meu marido e os meus filhos... Na verdade, eu própria fiquei quase convencida. Ter-me-ia enganado? Será ele realmente o belo e nobre coração de que me falou o meu marido? Mas não! Impossível! Um filho de porteiro... É absurdo!
A condessa ficou por muito tempo pensativa e indecisa; resolveu-se por fim a deixar correr as coisas, a observar Brás e os filhos e agir depois consoante as circunstâncias.
Se este rapaz falta à promessa que me fez, se procura ver os meus filhos às escondidas, não terei piedade dele: expulso-o e mais os pais... Mas se for fiel à sua palavra, se aceitar com lealdade e resignação o desgosto que lhe impus, então,.. então verei o que hei-de fazer.
E a condessa, sacudindo a cabeça, procurou não pensar mais no rapaz. Agarrou num livro e pôs-se a ler, sem poder, contudo expulsar do espírito a imagem de Brás indignado, mas calmo, e depois chorando desolado.
No regresso do passeio, os filhos correram aos aposentos do conde, cuja companhia procuravam tanto como a evitavam outrora. Acharam-no triste e pensativo; atiraram-se-lhe ao pescoço, perguntando a causa da sua tristeza.
- Mais um sacrifício que temos de fazer, meus pobres filhos; - disse o conde, beijando-os com ternura - a vossa mãe proibiu o Brás de vos ver, seja onde for; o pobre rapaz prometeu obedecer; pediu-me para o ajudar a manter a promessa; eu prometi-o, por muito doloroso que isto seja. Parece-me que a melhor maneira de o ajudar é comunicar-vos esta resolução tão penosa. Estou certo de que vocês não o farão quebrar a sua palavra, e não aumentarão o seu desgosto, obrigando-o a repelir ocasiões de aproximação, provocadas por vocês.
- Pobre Brás! Pobre Brás! - exclamaram Helena e Júlio com os olhos cheios de lágrimas. - Tem razão, papá - acrescentou Júlio - não devemos tornar o seu sacrifício mais doloroso, forçando-o a fugir de nós. Evi taremos passar em frente da casa dele e não lhe mandamos recados para não Lhe dar a tentação de responder ou o desgosto de não responder. Mas o papá diga-lhe como nos custa este esforço, com que tristeza pensamos nele, nas nossas boas conversas de outrora. Pobre Brás! Ele sofre com esta separação injusta e
cruel. Não compreendo como a mamã pode ser injusta com este excelente rapaz. Devia atraí-lo, em vez de o repelir; amá-lo, em vez...
CONDE - Júlio, Júlio, respeita a tua mãe, meu filho; conforma-te com as suas ordens sem as apreciar nem as censurar. Recorda-te de que nós próprios partilhámos das suas reservas; que ainda há poucos meses eu proíbia o Brás de entrar no solar; que foi a tua doença que mudou tudo e que, sem as tuas confissões, o pobre rapaz sofreria a opinião tão falsa que eu tinha a seu respeito.
JÚLIO - Sim, papá, tudo isso por minha culpa, por causa das minhas maldades, das minhas calúnias contra o Brás. Eu apreciei-o sempre, porque o conheci desde o princípio; mas criei-lhe má fama por ciúme e pela má vontade que tinha contra todos que eram bons. A pobre Helena bem sabe o que eu era; foi o remorso que me pôs doente e estou certo de que foram as preces do meu querido Brás que transformaram o meu coração... e o seu - acrescentou, beijando ternamente o pai. - Não é verdade, papá, que estamos muito mudados?
CONDE - Sim, meu querido filho. E agora, em vez de nos irritarmos contra a tua mãe, vamos pedir a Deus para lhe abrir os olhos, como nos fez a nós.
Instantes depois o conde e os filhos penetraram no salão, onde encontraram a condessa que os esperava para entrar ao mesmo tempo que eles na sala de jantar. Olhou atentamente para os filhos, baixou os olhos ao ver os seus olhos vermelhos e os rostos tristes; levantando os olhos para o marido, sentiu-se corar diante da sua fisionomia severa e pensativa.
- Vamos jantar - disse, levantando-se - tenho
pressa.
- Será tarde? - perguntou o conde. - Parece-me que fomos pontuais, como de costume.
- Não é para matar a fome que tenho pressa de acabar de jantar, mas para poder recolher-me.
- Estás doente, Júlia? - interrogou o conde com solicitude.
CONDESSA - Não, não estou doente, mas aborrecida, farta desse pequeno Brás, que os enfeitiçou a todos e que é a causa das vossas caras tristes e pensativas.
CONDE - Que culpa tem o Brás das nossas caras aborrecidas?
- Que culpa? Que pergunta! - exclamou a condessa com calor. - Então não foi depois da minha proibição de ele vir ao solar que vocês ficaram como três almas penadas?
- Ou três amas peladas, como dizia uma senhora do teu conhecimento - interrompeu o conde, rindo.
CONDESSA - Deixa-me falar; as tuas interrupções não me impedem de dizer que o Brás é um estúpido que os tornou a vocês todos tão tolos como ele e que eu vejo muito bem que vocês tomaram esses ares de mártires, porque esse cavalheiro foi-se queixar da proibição que eu lhe fiz de ver os meus filhos, proibição que mantenho e que saberei fazer respeitar.
- Não há-de ser difícil, Júlia - respondeu o conde com calma - porque Helena e o Júlio estão decididos...
- A desobedecer-me com a tua protecção? - interrompeu a condessa, com vivacidade.
- A obedecer-te - respondeu o conde, friamente - e a ajudar assim o Brás a executar as tuas ordens, que respeita e de que me deu conhecimento, como era seu dever. Não fez nenhuma queixa; chorou, porque sofre, mas sem nenhum sentimento ofensivo contra ti, causa do seu sofrimento.
A condessa perturbou-se e corou. Passou para a sala de jantar. A refeição decorreu silenciosa; a condessa procurou várias vezes entabular conversação; foi amável e solícita, contrariamente ao seu costume, procurando entreter Helena e Júlio e pôr bem-humorado o marido.
- Voltaste a ter um ar terrível, - disse ao marido quando regressaram ao salão - tínha-lo perdido; espero que não o conserves; metes-me medo esta noite.
- Helena e Júlio já não me temem - respondeu o conde, apertando os filhos nos braços; - eles sabem que tudo mudou em mim, e que o meu ar severo, que lamento e pelo qual me censuro, não é mais do que um sintoma exterior de uma tristeza que não posso dominar. Espero que um dia me compreendas, minha querida Júlia, e então ficarás triste com o passado e contente com o presente, como eu.
A condessa correspondeu ao de leve ao beijo do marido; corou outra vez, reflectiu uns momentos e, voltando-se para Júlio, disse-Lhe com esforço:
- Júlio... tenho pena do desgosto que te causo; se eu tivesse do Brás a opinião que tem o teu pai, nunca teria proibido a vossa intimidade... apesar de ele não ser mais do que o filho de um porteiro; mas... por ti, por Helena... tenho medo... parece-me... quero evitar...
A condessa calou-se, não sabendo como acabar e temendo ter falado demasiado; o marido encorajava- a com um sorriso afectuoso, os filhos olhavam-na com expressões cheias de esperança.
- Mantenho a minha proibição - disse ela com maior energia - até que tenha a prova da obediência de Brás.
Os rostos perderam a sua expressão alegre; a condessa ficou perturbada; Helena pegou no seu trabalho, Júlio num lápis, o conde num jornal e a condessa num livro, que se pôs a ler com os olhos mas sem saber o que lia; o seu pensamento estava todo no bom impulso que reprimia e no desgosto de não o ter seguido.
A entorse
Nos dias seguintes o conde foi pontualmente passar uma hora com Brás, levando-o a passear pelo campo; dava-lhe conta de tudo que podia interessá-lo, mas não tornou a falar na condessa.
Um dia, Brás pôs um pé em falso numa pedra, caiu e sentiu uma dor violenta num tornozelo. Levantou-se dificilmente com a ajuda do conde e voltou a custo para casa, amparado e quase transportado pelo conde. A Sr. a Anfry apressou-se a tirar-lhe o sapato e a meia, sendo obrigada a rasgar esta, de tal maneira o pé estava inchado.
- Que vai fazer para o aliviar, enquanto não chega o meu médico? - perguntou o conde, ansiosamente, à Sr. a Anfry.
- Não estou embaraçada com o tratamento, Sr. Conde, e não é preciso o seu médico. Em três dias fica bom.
CONDE - Mas que remédio vai usar? Tome cuidado não aumente o mal por querer curá-lo sem médico.
CONDE - Tem tudo o que é necessário? Mando-lhe o que for preciso.
- Deus queira que o nosso pobre Brás melhore com isso, porque está a sofrer muito - respondeu o conde, rindo.
BRÁS-Agora menos, desde que estou deitado, Sr. Conde; isto não é nada; não se apoquente.
CONDE - Voltarei para saber notícias tuas, meu amigo, e vou contar o que te aconteceu à Helena e ao Júlio, que vão ter muita pena.
BRÁS - Obrigado, meu bom Sr. Conde; não lhes mando dizer nada, mas sabe que eu penso muito neles. Nunca a obediência me foi tão penosa - acrescentou com um suspiro.
CONDE - Por isso é mais meritória, meu amigo; com certeza terás a recompensa.
O conde saiu, depois de lhe ter apertado a mão. Quando ele já estava longe, Brás chamou a mãe.
- Mamã, dói-me imenso; diante do Sr. Conde procurei dissimular o meu sofrimento para o não inquietar; mas tenho medo de ter mais do que uma entorse, parece-me que tenho um pé partido.
BRÁS - Não quis assustá-lo; ele é bom e gosta muito de mim; atormentava-se, e o Sr. Júlio e a menina Helena ficavam tristes.
Anfry largou a enxada, correu para junto de Brás, examinando o pé e saiu precipitadamente para ir buscar o médico. Felizmente encontrou-o em casa e levou-o a ver o filho.
Quando o dr. Taillefort viu o pé de Brás, reconheceu, apesar do inchaço, que havia, realmente, mais do que uma entorse.
- Vai ser muito doloroso o tratamento, meu pobre rapaz - disse ele a Brás -, mas é rápido; tem coragem e deixa-me trabalhar; não demora nada.
- A coragem não me há-de faltar, com a ajuda de Deus, sr. doutor; pode começar quando quiser.
Brás fez o sinal da cruz e esperou de olhos fechados.
Anfry estava pálido como um cadáver; mal teve forças para executar a ordem, que lhe deu o médico, de segurar fortemente a perna de Brás enquanto ele trabalhava.
Brás não soltou nem um grito; escapou-lhe apenas um gemido no momento da dor mais viva.
- Está pronto - disse o médico. Tiveste uma grande coragem, meu amigo - acrescentou, envolvendo o tornozelo numa cataplasma. - Não há muitos que suportem este tratamento sem gritos e tu podes gabar-te... Ah! Meu Deus! Ele desmaiou! Sr. Anfry, traga vinagre, depressa, para lhe banhar a testa.
Anfry quis ir ao armário mas faltaram-lhe as forças; caiu numa cadeira: a emoção fora demasiado forte.
- Essa agora! Você não vale mais do que o seu rapaz - observou o dr. Taillefort. - Onde está o vinagre? Também o rego a si.
Anfry apontou para o armário. O doutor abriu-o e tirou de lá uma garrafa.
- Mas onde está a mãe? Também teria caído em qualquer canto? Preciso de uma toalha para embrulhar o pé.
- Aqui estou, sr. doutor - respondeu a Sr. a Anfry, que se escondera para não ser testemunha dos sofrimentos do filho.
- Uma toalha, se faz favor, ou um lenço, para segurar a cataplasma; enquanto eu ligo o pé, ensope-lhe a testa e as fontes com vinagre.
A Sr.a Anfry deu ao médico a toalha que ele pedira e friccionou com vinagre o rosto descorado de Brás, o qual não tardou a recuperar os sentidos. Deu um suspiro, abriu os olhos e olhou em redor de si para reconstituir os factos.
- Olá! Está pronto e bem - disse o médico. Repouso, calma, é questão de oito dias.
- Oito dias! - exclamou o Brás assustado. - Oito dias sem andar! E o meu retiro para a primeira comu nhão que começa daqui a oito dias!
- Bom, bom! Começa mas não acaba. Daqui a oito dias podes experimentar ir até à igreja. E dentro de duas semanas podes andar como os outros. Calma, calma, meu rapaz, sem isso aparece-te febre.
O médico cumprimentou e saiu.
Brás tornou a cair no travesseiro e repetia baixinho: uMeu Deus! Seja feita a Vossa vontade e não a minha! Cinco minutos depois, retomara a calma e a alegria.
- Não se aflija, mamã - disse à mãe, que estava a chorar. - Sinto-me bastante melhor do que antes do tratamento, como diz o dr. Taillefort, daqui a oito dias estou a pé.
- Daqui a oito dias! Digo que estás a pé dentro de quatro dias, sem desprimor para o médico, vou-te tirar essa porcaria da cataplasma e pôr- te a que eu fiz. Não é o primeiro pé que ela cura, garanto-te.
- Tens a certeza de que não fará mal? - disse Anfry com inquietação.
-Mal, esta cataplasma? Bem se vê que não a conheces, meu amigo; terás mais confiança nela quando vires o rapaz curado.
Brás adormeceu desde que a mãe lhe aplicou o remédio e dormiu tão bem que não ouviu o conde chegar depois do jantar para saber notícias do doente.
-Ah! Está a dormir! - disse em voz baixa lançando um olhar para a cama onde Brás dormia. Tanto melhor! Não sofre enquanto dorme... Pobre criança! - acrescentou depois de o olhar atentamente.
- Como está pálido!
CONDE (com inquietação) - Um médico? Mas ele recusou-me o médico e disse-me que se sentia melhor.
CONDE (com voz comovida) - Pobre Brás! Que desprezo de si próprio e que coragem! Tira-a da sua grande confiança e da sua perfeita submissão a todas as vontades de Deus... Que belo exemplo nos dá esta criança!
O conde ficou alguns minutos silencioso junto da cama de Brás. Antes de o deixar, tocou ao de leve com os lábios na sua testa pálida, abençoou a criança no seu sono e recomendou a Anfry que lhe mandasse dizer, depois de Brás acordar, qual o seu estado.
A prova
O conde entrou na sala, onde se encontrava a condessa com os filhos, e contou-lhes o acidente do pobre Brás, os seus sofrimentos e a sua coragem para dissimular a dor e para suportar o tratamento. Helena e Júlio estavam desolados e não podiam ocultar o vivo desejo de o tratar e distrair durante a sua doença, o seu amargo desgosto de não poderem satisfazer este anseio.
A condessa nada dissera; de cabeça baixa sobre o seu trabalho, parecia impassível com a narrativa do marido e as lamentações dos filhos.
- Helena - disse, levantando a cabeça -vai buscar papel e uma caneta para escreveres uma carta que eu te vou ditar.
Ainda que Helena não estivesse com boa disposição para fazer a correspondência da sua mãe, obedeceu sem hesitar.
HELENA - Estou pronta, mamã.
CONDESSA (ditando) Meu caro Brás... Helena levantou vivamente a cabeça; Júlio deu um salto na cadeira; o conde olhou, surpreendido, para a mulher.
CONDESSA - Escreveste: Meu caro Brás? HELENA - Não, mamã; fiquei admirada...
CONDESSA (com calma) - Escreve e não interrompas, se puderes.
Meu caro Brás, o papá contou-nos o teu desastre e a tua coragem; Júlio e eu estamos tão tristes por sabermos que sofres, que não resistimos ao desejo de te ver.
Helena pousou novamente a caneta e fitou a mãe com ar embasbacado; Júlio estava de pé, de olhar fixo, ouvindo atento; o conde, extremamente surpreendido e não menos intrigado, não desfitava a mulher.
CONDESSA- Continua, Helena: que não resistimos ao desejo de te ver e amanhã...
Dois gritos de alegria escaparam-se dos lábios de Júlio e de Helena; o conde levantou-se.
CONDESSA (sempre calma) - e amanhã vamos a tua casa, antes das nove horas, para a mamã não saber. Se queres, podemos lá voltar todos os dias, de manhã e à tarde, fazendo do papá nosso cúmplice. Beijamos-te ternamente, meu bom Brás; amanhã levamos-te livros, tintas, bonecos para pintar e tudo o que possa divertir-te.
A caneta caiu das mãos de Helena, estupefacta; o conde aproximou-se da condessa, tomou-lhe a mão e disse-lhe com emoção:
-Júlia, a tua intenção é boa, não há dúvida, agradeço-te; mas propões às crianças uma acção desleal e fazes com que eles desempenhem junto de Brás o papel de demónio tentador.
CONDESSA-Sei isso, muito bem; além de que não é sério porque os pequenos não farão a visita de que falo.
CONDE (com ar de censura) - Então para que lhes hás-de dar, assim como ao Brás, a angústia dessa proposta? É uma brincadeira cruel, Júlia.
CONDESSA - Não é uma brincadeira; é uma prova. Quero ver se Brás é realmente aquilo que imaginaram: se ele tem a coragem de recusar a visita dos pequenos, a minha opinião fica fortemente abalada; se aceita, é porque eu tinha razão.
CONDE - Não, isso não seria mais do que uma fraqueza bem natural numa criança terna, enfraquecida pelo sofrimento. Mas eu conheço bastante o seu leal e nobre carácter para esperar que sairá vitorioso da armadilha que lhe preparas.
CONDESSA - Veremos. Assina a carta, Helena! HELENA- Oh! Mamã! Por favor. O pobre Brás! Ele gosta tanto de nós! E se ele diz que sim?
JÚLIO - Diz que não, tenho a certeza. Vi-o em muitas provas, causadas pela minha maldade, e ele sempre fez o que era melhor e mais nobre.
CONDESSA - Então, assina, Helena... Vá, assina - repetiu, impaciente, vendo a hesitação de Helena. Amanhã, de manhã cedo, mando-lhe esta carta e peço-te encarecidamente - disse ela, dirigindo-se ao marido - que não contraries a minha experiência, que é no interesse de Brás, já que vocês estão todos tão seguros dele.
- Faz o que quiseres - disse o conde, com frieza e tristeza. - Mas repito que a brincadeira é cruel e que o momento é mal escolhido para atormentar essa pobre criança.
A condessa mandou Helena entregar a carta a um criado, com a recomendação de a levar a Brás no dia seguinte, cedo.
Helena executou a ordem da mãe e recomeçou, tristemente, o seu trabalho; Júlio desenhava sem dizer pa lavra; o conde ficou pensativo e silencioso. Como Anfry não viesse, mandou saber notícias de Brás; disseram-Lhe que Anfry esperava o despertar do filho, que dormia ainda sossegadamente.
O serão estava adiantado; pouco tempo depois o conde advertiu os filhos de que a hora do repouso chegara; retirou-se com eles, deixando a mulher entregue às suas reflexões.
No dia seguinte, quando o conde acabava de se vestir e se dispunha a ir saber notícias do pobre Brás, um criado entregou-lhe um sobrescrito; abriu-o e viu que continha a carta que a condessa ditara na véspera a Helena. Outra folha estava escrita por Brás. Leu então o seguinte:
Caro Sr. Conde
Recebi agora mesmo a carta que me permito enviar-Lhe juntamente; sinto-me reconhecido com a amizade que me testemunham a menina Helena e o Sr. Júlio, mas suplico-Lhe encarecidamente, meu muito querido Sr Conde, que impeça a visita que eles me querem fazer às escondidas da Sr.a Condessa. Não lhes posso fugir, porque estou retido na cama pelo acidente que Deus me enviou. E como teria eu força para não Lhes falar, para não Lhes agradecer um afecto que me comove tão profundamente e que eu retribuo tão vivamente? Que havia eu de fazer para não faltar à minha palavra, para não desobedecer à proibição da Sr.a Condessa? Meu bom Sr Conde, venha em meu socorro; nisto como em tudo, seja o meu guia, o meu protector, o meu bom patrão. Não os deixe pensar numa ingratidão da minha parte; não, de modo nenhum: o meu coração está cheio de ternura e de reconhecimento por eles, por si; mas veja, Sr Conde, posso eu honestamente, lealmente receber esta visita, dada a proibição da Sr.a Condessa?
É para mim uma grande tristeza, um terrivel esforço, repeli-los quando eles me procuram; sinto-me infeliz e as lágrimas, que não posso reter caem-me no papel. Querido Sr. Conde, venha dar-me coragem, venha estender-me a sua mão para que eu a cubra de beijos e a aperte contra o coração, este coração que bate por vós com amor tão profundo, tão devotado e tão respeitoso.
Seu muito dedicado e humilde servidor, Brás.
O coração do conde batia com violência enquanto lia a carta; a admiração, a ternura misturaram-se à irritação que lhe causava a prova cruel a que a condessa submetera o pobre Brás; as lágrimas desta criança caíram-lhe no coração; sofria por ele e com ele. Apesar de estar com pressa de ir consolá-lo e tranquilizá-lo, quis, antes de sair, mostrar à Helena e ao Júlio a nobre e bela resposta do seu amigo.
- Eu estava certo disso! - gritou Júlio, triunfante.
- Não duvide nunca do Brás, papá, e não tenha medo de qualquer prova; ele sair-se-á sempre com honra e glória.
- Excelente Brás! - disse Helena. - Que desgosto não o ver!
- Esperamos que a vossa mãe acabe por se comover com tantas qualidades admiráveis - disse o conde.
- Quem sabe o efeito que a primeira comunhão de Júlio poderá produzir!
O conde foi em seguida aos aposentos de sua mulher.
- Toma! - disse-lhe, entregando a carta de Brás.
- Vê quais são os sentimentos desta admirável criança! A condessa pegou na carta, leu-a e releu-a; o conde observava-a durante esta leitura e viu, com alegria, uma sensível emoção animar o rosto da condessa e de pois uma lágrima cair ao longo da face e juntar-se aos vestígios das lágrimas do pobre Brás.
O conde inclinou-se para ela e pousou os seus lábios no rosto humedecido por aquela lágrima.
- Pobre rapaz! - disse a condessa deixando-se arrastar pela comoção. - Pobre rapaz! Como fui injusta para com ele!
CONDE- Fizeste como eu, minha querida Júlia; todos nós fomos cruéis com ele, exceptuando a Helena, que sempre tomou a sua defesa e que soube distinguir a verdade no meio de todas as calúnias. É agora a ocasião de reparar o mal que fizeste.
CONDESSA - Que hei-de fazer? Como emendar aquilo que tantas vezes disse e redisse?
CONDE - É sempre fácil reconhecer um erro, Júlia. Só custa o primeiro impulso.
CONDESSA - Deixa-me ainda alguns dias, meu amigo; dá-me tempo para reflectir e para me decidir.
CONDE - Dou-te o tempo que quiseres, minha querida, mas não te esqueças de que enterraste espinhos no coração de Brás e dos teus filhos, e que só tu podes curar as feridas que fizeste.
CONDESSA - É verdade, é verdade. Que fazer, meu Deus, que fazer?
CONDE - Reza, minha boa Júlia, reza a Deus misericordioso, que invocaste agora involuntariamente para que te inspire, para que te dirija no regresso à justiça; dar-te-á o seu auxílio, podes crer...
-Mas... mas... eu não sei rezar! - exclamou a condessa, atirando-se ao pescoço do marido.
CONDE - Pobre Júlia! Tal como eu, minha amiga: eu também não sabia rezar quando o Júlio esteve tão doente; Brás foi o meu mestre; por ele vi tudo, compreendi tudo, com ele aprendi a verdadeira felicidade neste mundo, a consolação que se pode tirar dos desgostos, a doçura que dá uma prece. Júlia, querida Júlia, eu serei agora o teu mestre, se tu quiseres.
CONDESSA - Sim, sim, meu mestre e sempre meu amigo. Sinto o coração transformado, suavizado; começo a compreender e a amar a tua transformação, a de Júlio, as virtudes de Helena e a admirar as do pobre Brás. Como está ele hoje? Viste-o.
CONDE - Ia lá quando recebi a carta, que não quis deixar de te mostrar.
CONDESSA - Obrigado, meu amigo, obrigado. Diz a esse pobre rapaz que eu; não, não digas nada; eu própria direi; mas por enquanto não... Vou-Lhe mandar os pequenos; diz- lhe que, por estar doente, levanto a proibição e deixo-o ver os meus filhos. Manda-mos cá, meu amigo; não Lhes digas nada; deixa-me ser eu a dizer-Lhes.
O conde respondeu unicamente abraçando-a de encontro ao coração e beijando-a ternamente repetidas vezes; foi chamar os filhos, que estavam conversando acerca do desgosto de não ver Brás.
- A vossa mãe chama-os, meus amigos, vão depressa, depressa, meus queridos filhos.
JÚLIO - Como tem um ar contente papá! Há boas novidades?
CONDE - Depois verão. Vão dar os bons-dias à mamã.
HELENA- Oh! Papá, temos tempo; a mamã não gosta que entremos muito cedo nos seus aposentos.
CONDE (rindo)- Que cabeçudos, estes patetas! Então eu não estou a dizer para irem lá depressa, depressa; é que...
JÚLIO - É que, o quê, papá?
- É que... é que dou graças a Deus do fundo do meu coração e todos devemos agradecer a Deus! - exclamou o conde, apertando os filhos nos braços e beijando-os com dobrada ternura.
O conde fugiu rindo e deixou as crianças surpreendidas com esta explosão de alegria, que não lhe era habitual desde o regresso da condessa.
- Vamos à mamã - disse Helena. - Talvez ela nos explique o ar radioso do papá.
JÚLIO - Não ficamos lá muito tempo; nunca sei o que hei-de dizer diante da mamã; tenho sempre medo que se zangue.
HELENA - É porque ela não pensa como nós e como o papá. Se pudesse modificar-se como o papá e tu, seríamos tão felizes!
JÚLIO -- Sim, mas para isso seria preciso que ela visse muitas vezes o Brás, que ouvisse o Brás, que gostasse do Brás! Infelizmente, detesta- o.
Conversando sempre, tinham chegado à porta do quarto da mãe. Com grande surpresa, viram que ela, em lugar de os esperar, viera ao encontro deles e os beijava repetidamente com vivacidade.
- Helena e Júlio, meus queridos filhos - disse-lhes ela com voz comovida-, o vosso pai deu-me a ler a carta do pobre Brás...
A este epíteto de pobre Brás, Helena e Júlio escutaram com ansiedade.
CONDESSA (continuando) - Fiquei muito comovida; reconheço que fiz dele um mau conceito, e não só consinto como os convido a ir vê-lo...
- Ver o Brás! Ir a casa do Brás! - gritaram as crianças com entusiasmo.
- Sim meus filhos: podem ir ver o Brás o mais cedo que puderem; digam-lhe que sou eu que os mando; expliquem-lhe que esta mudança foi provocada pela sua resposta à carta que eu mandei a Helena escrever, e que verei com prazer a vossa intimidade com ele.
- Obrigado, obrigado, mamã! - exclamou Helena e Júlio, lançando-se-lhe ao pescoço e beijando-a com efusão. - Obrigados pela felicidade que nos dá e ao nosso pobre Brás!
- Pobres filhos! Vocês têm-me feito dó já há algum tempo. Várias vezes estive a ponto de levantar a proibição, mas não estava ainda bem convencida e queria esperar. Vão lá, corram, meus filhos; levem a alegria ao coração do vosso querido doente.
As crianças beijaram mais uma vez a condessa e correram para casa de Anfry: Júlio entrou à frente e precipitou-se no quarto, gritando:
- Brás, meu querido Brás, aqui estamos, Helena e eu.
O conde estava junto da cama de Brás, ao qual ainda nada dissera; achava-o febril e temia que uma nova emoção redobrasse a sua agitação. Às primeiras palavras de Júlio, Brás agarrou as mãos do conde e, com um tom de aniquilamento, disse-lhe:
- Sr. Conde, Sr. Conde, ajude-me, salve-me! CONDE - Sossega, meu filho: é a minha mulher que te manda os seus filhos depois de ter lido a tua carta.
BRÁS - Será possível?.. Que felicidade!.. Meu Deus, que felicidade!.. Meu Deus, como vos agradeço!
Helena juntou-se a Júlio que não cessava de beijar Brás; ambos lhe contaram a transformação que se dera nos sentimentos da condessa. Brás estava tão contente como o conde e os filhos. A felicidade impedia-o de sentir as dores no pé e a agitação da febre. O conde teve de usar a sua autoridade para arrastar Helena e Júlio; temia que a febre aumentasse com a comoção que lhe causava a presença dos seus amiguinhos, prometeu a Brás levá-los à tarde e recomendou-lhe que ficasse muito quieto. Com efeito, Brás radioso, não se esqueceu de agradecer longamente a Deus a felicidade que lhe enviara e, rezando sempre, adormeceu. O sono durou duas horas; ao despertar, a febre desaparecera. A cataplasma tinha feito cessar quase completamente a dor do pé. Assim, entregava-se sem reservas à alegria que lhe inundava o coração.
Pouco tempo depois de acordar um criado veio trazer a Brás a seguinte carta, dizendo que esperava a resposta:
O teu último inimigo está vencido, meu caro Brás. A nobreza do teu procedimento, a virtude que evidenciaste nos recentes acontecimentos que eu provoquei e lamento, mudaram inteiramente a opinião que tinha formado de ti. Em vez de te considerar intriguista, mau, ladrão e mentiroso, vejo-te tal qual és: piedoso, bom, paciente, generoso, desinteressado e dedicado. Já recebeste as desculpas de meu marido e de meu filho. Recebe agora as minhas e perdoa-me o desgosto que te causei e pelo qual me censuro vivamente. Escreve-me e diz-me se a minha visita te dá prazer. Não gostaria de juntar mais uma contrariedade a todas que já te causei. Beijo-te, meu pobre rapaz, e abençoo-te pelos cuidados que prestaste ao Júlio durante a sua doença, cuidados que eu tive a cegueira de não julgar desinteressados.
Reza a Deus por mim para que me torne semelhante ao meu marido, aos meus filhos e a ti próprio.
Condessa Trénilly
Brás, enternecido com o conteúdo desta carta, que muito devia ter custado ao orgulho da condessa, pousou os lábios na assinatura, pediu ao pai uma caneta e papel e escreveu a resposta seguinte:
Sr.a Condessa
A sua bondade encheu-me de alegria; realizaram- se todos os meus votos. Eu sofria com a má opinião que tinha provavelmente provocado sem querer e sem saber. Agora sou feliz, muito feliz, graças às boas, excelentes palavras que quis dirigir-me. Se quer honrar-me com uma visita, ficarei por isso tão reconhecido como contente; uni-a já no meu coração ao meu querido, Sr. Conde, à menina Helena e ao Sr. Júlio. Agradeço-Lhe, Sr.a Condessa, por ter querido dar a seus filhos autorização para virem ver-me; a alegria que senti fez-me passar a febre e nem me deixa sentir dores no pé. É a primeira consequência da sua bondade, Sr.a Condessa.
Creia no sincero reconhecimento e no profundo respeito do seu muito humilde e obediente servidor,
Brás Anfry.
O criado pegou na carta de Brás e apressou-se a levá-la à condessa, que estava no salão com o marido e os filhos, esperando todos com impaciência a resposta, que não tinham dificuldade em adivinhar.
JÚLIO - Vamos vê-lo imediatamente, não é verdade, mamã?
- Sim, se ele aceitar a minha visita, meu querido filho. Mas é possível que ele me peça que aguarde o seu restabelcimento.
HELENA - E porquê, mamã? Para que havia ele de adiar a alegria que a mamã lhe quer dar?
CONDESSA - Alegria! Alegria! Esqueces então, minha boa Helena, o desgosto que lhe causei e todos os desdéns e humilhações que lhe fiz sofrer?
CONDE - Ele perdoou tudo, esqueceu tudo, tenho a certeza. É uma alma tão boa, tão generosa, tão sinceramente cristã!
JÚLIO - Mamã, aqui está o José com a resposta. A condessa foi ao encontro do criado que entrava e, agarrando a carta, abriu-a precipitadamente. Depois de a ler entregou-a ao marido.
- Generosa criança - disse ela. - Tão simples na sua grandeza, tão modesta, tão humilde no seu triunfo! Parece que recebe um favor e que a gratidão deve partir dele.
- Bela e nobre alma, na verdade! - disse o conde, passando a carta aos filhos. - Sempre o mesmo, sem reservas. O coração cheio de caridade e de ternura... Que belo modelo a seguir!
- Vamos depressa - disse a condessa, pondo o chapéu. - Tenho pressa de beijar este pobre rapaz e de lhe ouvir dizer que não está ressentido comigo.
O conde deu o braço a sua mulher, depois de a beijar ternamente, e dirigiram-se para casa de Brás, onde não tardaram a chegar.
- Aqui estamos todos, meu querido amigo - disse o conde com ar alegre, ao entrar.
Brás voltou-se vivamente; o seu rosto tornou-se radioso e corou ao ver a condessa aproximar-se dele e beijá-lo várias vezes.
- Venho apresentar-te desculpas de viva voz, pobre criança caluniada e ultrajada: eu não tinha virtude suficiente para compreender a tua, nem bastante critério para adivinhar o móbil das tuas acções.
Oh! Sr. a Condessa, por favor! Não diga isso! Não, não, peço-lhe, não repita isso - disse Brás, vendo que a condessa se preparava para falar. - Eu poderia ter a infelicidade de tomar a sério o que é ditado somente pela sua grande indulgência e pela sua bondade. E que seria a minha primeira comunhão sem espírito de humildade? Agradeço-lhe mil vezes a sua bondade, Sr.a Condessa! Tornou-me tão feliz!
CONDESSA - Eu gostava de ter sempre felicidade para te dar. Como te disse na carta, pede a Deus que os meus olhos se abram inteiramente para o que é bom e cristão.
- Tens melhor aspecto que esta manhã, meu amigo. - disse o conde com ar afectuoso. - É a felicidade que faz esquecer os teus males.
- Já não sofro, Sr. Conde. A Sr. a Condessa acaba de fechar a minha última ferida.
- Espero não tornar a abri-la, meu filho - disse a condessa, sorrindo:
- Diz-nos qualquer coisa - exclamou Júlio, agarrando a cabeça de Brás e virando-a para o seu lado. Só falas com o papá e a mamã e nós estamos para aqui à espera de um olhar, de um sorriso, que nunca mais vem.
- Perdão Sr. Júlio e menina Helena; estava ocupado com o Sr. Conde e a Sr. a Condessa - disse Brás sorrindo. - Como sabem, o general passa à frente dos oficiàis.
HELENA (rindo) - E onde estão os soldados?
BRÁS - O soldado sou eu, pronto a executar as vossas ordens.
CONDE - Todos nós somos soldados de Deus e a nossa bandeira é a cruz.
BRÁS - Gloriosa bandeira de que nunca se deve desertar e que tem muitas doçuras, não é verdade, menina Helena?
Helena respondeu somente com uma inclinação de cabeça e um sorriso; ela não quis dizer diante da mãe que tinha sofrido com a sua frieza e a sua severidade passadas; mas a condessa adivinhou-o, puxou-a a si, beijou-a e disse-lhe:
- Daqui para o futuro tratarei de aliviar a tua cruz, minha filha. Mas, quanto à primeira comunhão o Sr. Abade já marcou a data?
JÚLIO - É de domingo a oito dias, mamã; é tempo de tratar do fato que o papá prometeu ao Brás.
CONDE - Está já encomendado segundo as indicações de Brás; e o teu também, Júlio.
JÚLIO - Que pediste para ti, Brás?
BRÁS - Uma coisa soberba, para honrar o Sr. Conde. HELENA - Que livro tens para o teu retiro e para o dia da tua primeira comunhão?
BRÁS - Não tenho nenhum; tenho um rosário que me deu o Sr. Abade e que foi benzido pelo Papa, disse-me ele.
HELENA - Mamã, dá-me licença que dê ao Brás uma Imitação de Cristo? É um livro tão bonito e tão bom!
CONDESSA - Dá-lhe o que quiseres, minha filha; eu sou bom tesoureiro e podes tirar da caixa o que precisares.
CONDE - Havemos de lhe arranjar uma biblioteca boa e piedosa, para passar o tempo nas longas noites de Inverno.
BRÁS - Como é bom, Sr. Conde! É tudo o que eu desejava. Gosto tanto de ler! O Sr. Abade empresta-me alguns livros, mas não tem os que eu posso compreender.
CONDE - Mas porque não tinhas dito? Sabes que eu teria um verdadeiro prazer em te satisfazer esse gosto tão sensato e tão útil.
BRÁS - O Sr. Conde foi já tão bom para mim, que tinha medo de abusar da sua indulgência tão grande perante os meus desejos.
CONDE - Terás os teus livros para a primeira comunhão, meu rapaz. Estou contente por ter tido uma ideia tão boa.
O conde e a condessa ficaram algum tempo ainda junto de Brás; retiraram-se, prometendo-lhe voltar no dia seguinte. Helena e Júlio obtiveram, sem custo, licença para ficar junto do seu querido doente. Helena propôs ler qualquer coisa interessante, o que ele aceitou reconhecido.
Quando ficou só, Brás agradeceu a Deus, do fundo do coração, a felicidade que lhe enviara naquele dia. Conversou muito com o pai e a mãe, jantou com apetite e passou uma noite tranquila. No dia seguinte, como já não sentisse dores no pé, pediu para se levantar; a mãe tirou a cataplasma e viu, com prazer, que o inchaço desaparecera; ligou-lhe o pé antes de lho deixar pôr no chão. Quando Brás se encontrou de pé, tentou apoiar-se sobre o pé doente; a dor foi tão ligeira que quis dar alguns passos, apoiado no braço do pai. Como esta tentativa foi bem sucedida, pediu para ficar levantado; a partir deste dia a cura caminhou rapidamente.
Durante o retiro, Júlio vinha a casa somente às refeições. Com a ajuda do conde e de Helena, arranjaram no quarto de Júlio uma pequena capela ornamentada com imagens, velas, um crucifixo e uma estátua da Virgem. Três vezes por dia faziam perante este altar uma leitura religiosa e preces improvisadas por Brás e que comoviam profundamente o coração do conde e de Helena, que tinham pedido para assistir.
Na véspera do retiro, chegaram os fatos de Júlio e de Brás, de maneira que só tinham que preparar os seus corações para receber com humildade e amor, o corpo do seu divino Salvador.
O grande dia
Brilhava o sol com todo o seu esplendor, os sinos da aldeia repicavam desde manhã; a própria aldeia parecia um formigueiro em plena actividade; andava e corria gente pelas ruas; passavam mulheres e crianças com círios, toucas, fitas, procurava-se uma vizinha para ajudar a tudo; de uma casa a outra prestava-se auxílio ao vestuário e à refeição que se devia seguir à Santa Cerimónia. O solar estava calmo; o conde não quisera nenhuma exibição de luxo; todos deviam ir a pé para a igreja. Júlio pedira para ficar junto de Brás; Helena devia permanecer com o pai e amãe. Júlio estava com seu pai no quarto, esperando Brás, que tinha prometido ir buscá-los e que foi pontual. Às nove horas precisas entrou, aproximou-se do conde e, pondo-se de joelhos, disse-lhe:
- Sr. Conde, venho pedir-lhe a sua benção; peço-lha como um favor, como uma prova de amizade com que quer honrar-me; recebendo-a, sinto que a recebo de um pai venerado e querido; abençoe-me, Sr. Conde, abençoe o pobre Brás, que será sempre o mais devotado, o mais respeitoso dos seus servidores, e que todos os dias rezará a Deus pela sua eterna felicidade.
- Querido filho - disse o conde levantando-o e apertando-o nos braços - recebe a bênção de um cristão que tu reconduziste a Deus, de um pai a quem salvaste o filho único e muito amado. Dou-ta do fundo do meu coração. Faço o juramento de te amar sempre com um afecto paternal, de velar pelo teu bem-estar, pela tua felicidade. Júlio, meu filho, vem beijar o teu irmão, mais que nunca teu irmão em Deus, porque vais hoje a seu lado receber o Senhor, que é o pai de nós todos.
Júlio precipitou-se nos braços de Brás; fizeram entre si a promessa de uma amizade fiel e de uma constante lembrança perante Deus.
- É tempo de partir - disse o conde. - Júlio, toma o teu livro; e aqui está o teu, meu amigo - acrescentou, apresentando a Brás um belo livro encadernado ricamente, com lindas ilustrações e fechos de ouro.
- Não é meu, Sr. Conde; eu não tenho livros tão bonitos. Aqui está o meu - disse Brás, tirando da algi beira um livro pequeno e modesto, bastante usado.
- Sou eu que te dou este - disse o conde, - faz parte da colecção que te prometi.
- Oh! obrigado, Sr. Conde - respondeu Brás, corado e com olhos brilhantes de felicidade. - Obrigado; parece-me que rezarei melhor neste livro dado por si; e sobretudo com ele rezarei sempre por si e pelos seus.
- Vamos embora, meus queridos filhos - disse o conde - mas, antes de partir, recebam uma última bênção.
E o conde, pondo as mãos nas suas cabeças, abençoou os dois; depois, abraçando-os, deu-lhes um beijo na testa, enxugou uma lágrima, e os três, recolhidos e silenciosos, puseram-se a caminho da igreja. Esta estava já bem cheia, a condessa e Helena estavam nos seus bancos, esperavam o conde, que devia ir ter com elas depois de conduzir Júlio e Brás à residência do Sr. Abade, onde se reuniam todas as crianças. Foi realmente tomar o seu lugar entre as duas. A igreja não tardou a encher-se por completo e ouviu-se o som longínquo dos cânticos que as crianças entoavam, marchando processionalmente. Entraram dois a dois com o sacerdote à frente; Júlio e Brás vinham a seguir. Depois do desfile de dezoito rapazes e vinte e duas raparigas, cada um dirigiu-se para a cadeira que lhe estava destinada. O Sr. Abade foi à sacristia vestir os trajes sacerdotais. O serviço divino começou pela procissão, que foi seguida pelas crianças da comunhão; depois veio a primeira parte da missa, a seguir a homilia, que o padre não prolongou além de um quarto de hora; por fim a última parte da missa, a do sacrifício e da comunhão. Júlio e Brás estiveram muito recolhidos durante toda a cerimónia. No momento de deixar o seu lugar, para se aproximar do altar, Júlio agarrou vivamente a mão de Brás e disse-Lhe baixinho:
- Pela última vez, perdoa-me, meu irmão. Brás respondeu com simplicidade e doçura:
- Perdoo-te, meu irmão, e abençoo-te.
Poucos minutos depois, tinham recebido, apoiados um no outro, o Deus da misericórdia e da paz, o Deus consolador.
A sua atitude recolhida impressionou todos os olhares, emocionou todos os corações. Houve na igreja um movimento geral de surpresa quando, depois da comunhão das crianças, se viu o conde, a condessa e Helena abandonarem os seus lugares e aproximarem-se do altar.
- O Sr. Conde vai comungar! - dizia-se em voz baixa.
- A Sr.a Condessa também! E a menina Helena também.
- Como eles estão comovidos!
- O Sr. Conde está completamente mudado - disseram.
- A Sr. a Condessa também; parece que foi o pequeno Anfry que os transformou a todos.
- A terra só tem a ganhar. Eles fazem muito bem desde que se emendaram.
- Foi o pequeno Anfry que pediu ao conde para conservar a caseira Francisca, que estava despedida. Tem um novo arrendamento por seis anos e está muito contente.
- Chut, acabaram; vão para os seus lugares. Terminada a missa e quando a igreja estava quase vazia, ficaram ainda lá cinco pessoas, que rezavam com fervor.
O sacerdote, antes de sair da igreja, foi ajoelhar-se uma última vez perante o altar; viu os dois rapazes de joelhos nas lajes, com as mãos dadas, os olhos fechados e um ar tão recolhido que se deteve para os contemplar.
- Meus filhos - disse-lhes por fim - levantem-se; uma prece demasiado longa de joelhos na pedra pode fatigá-los; guardem Deus no vosso coração e lembrem-se de que toda a vossa vida pode tornar-se uma prece contínua, praticando todas as vossas acções por amor a Deus.
Júlio e Brás levantaram-se, em silêncio, e seguiram o abade que se dirigia para o conde e a condessa.
Às primeiras palavras de felicitações do sacerdote, o conde levantou o rosto banhado de lágrimas e, vendo a inquietação que transparecia nas feições do abade disse:
- As lágrimas que vê são o transbordar de um coração inundado de alegria e felicidade. É a Brás que as devo e o meu reconhecimento aumenta à medida que avanço no caminho em que ele me fez entrar.
SACERDOTE - Brás é uma santa criança, Sr. Conde; mais que ninguém posso apreciar a grandeza das suas virtudes e a beleza dos seus sentimentos. Digo-o em voz baixa, com medo que ele me ouça e se orgulhe com as minhas palavras; mas, na verdade, esta criança tem a sensatez, a virtude e a piedade de poucos.
CONDE- É bem verdade. Na altura em que tive dele uma opinião tão má e tão injusta, senti o poder da sua palavra, da sua voz e do seu próprio olhar. Minha mulher sentiu a mesma impressão sempre que o ouviu explicar, mas não justificar, o seu procedimento, e Júlio sentiu também o poder desta virtude.
Conversando sempre, tinham saído da igreja. Helena seguia um pouco atrás com Júlio e Brás; estavam silenciosos, mas os seus rostos irradiavam felicidade. O abade despediu-se do conde. Puseram-se a caminho de casa. As crianças caminhavam na frente; o conde e a condessa contemplavam-nos com ternura.
- Que felicidade eu ia perdendo, meu amigo! disse a condessa, enxugando os olhos ainda húmidos.
- E que vida diferente e feliz vamos agora levar; minha querida Júlia! - replicou o conde, apertando-lhe as mãos entre as suas. - Nós tínhamos todos os elementos da felicidade e não sabíamos utilizá-los; os nossos corações dormiam dentro de nós e vegetávamos miseravelmente.
CONDESSA (com alegria) - Mas agora estão bem acordados, meu querido! Não deixemos voltar o sono.
CONDE - Respondo pelo meu, com a ajuda de Deus. De futuro, ele será todo para Deus, para ti, Júlia, e para os nossos filhos.
Ao aproximarem-se da casa de Anfry, as crianças, viram com surpresa, um vaivém de criados. Brás ficou comovido.
- É uma boa acção, a deles, - disse - lembrarem-se de felicitar os meus pais pela minha primeira comunhão. Não os julgava tão amáveis.
Chegados junto da porta, ficaram surpreendidos ao verem uma mesa posta na sala. A baixela era muito simples; era a de Anfry: uma toalha grosseira, pratos e copos modestos, garrafas, talheres de ferro estanhado, etc. Algumas garrafas de vinho velho punham nota discordante nesta quase pobreza. Estavam postos sete talheres e os criados colocaram na mesa as travessas que traziam do solar.
BRÁS - Mas que é isto? Porque estão sete talheres e porque são os criados do Sr. Conde que trazem estas travessas?
CONDE (sorrindo) - Porque nós nos fizemos convidados para almoçar em casa dos teus pais, meu querido filho. Pensamos, tua mãe e eu, que num dia de primeira comunhão é preciso ter coragem para suportar a contrariedade e impusemos-te a de almoçares connosco em tua casa, Brás.
- Que bom! Que bom! - exclamaram as três crianças, perdendo toda a gravidade e saltando em redor da mesa.
- Oh! Sr. Conde! - disse Brás. - Desculpe, mas tenho de o beijar com toda a força.
E, lançando-se ao pescoço do conde, Brás beijou-o várias vezes. O conde sentia-se feliz com o êxito da sua ideia.
- Vamos para a mesa - disse ele. - Tenho uma fome de selvagem.
- E eu também! - exclamaram a um tempo as três crianças.
Anfry e a mulher conservavam-se de lado, não se atrevendo a aproximarem-se da mesa. A condessa dirigiu- se a Anfry e, tomando-lhe o braço, disse-lhe, rindo:
- Anfry, estou em sua casa; compete-lhe dar-me o braço para me conduzir ao meu lugar, à sua direita.
Anfry balbuciou algumas palavras de desculpa e de respeito, mas a condessa arrastou-o para o lugar de honra e pôs-se à sua direita.
O conde, rindo com a boa ideia de sua mulher, fez como ela e foi buscar a Sr.a Anfry, que se encostara à parede, muito embaraçada. Deu-lhe o braço, conduziu-a para a mesa e, colocando-a em frente de Anfry, pôs-se também à sua direita. Helena deu o braço ao Brás, que se sentou entre ela e Júlio. A refeição começou.
Nos primeiros momentos, o conde e a condessa não notaram o embaraço de Anfry, que limpava a testa inundada de suor e não se atrevia a comer nem a levantar os olhos de cima do prato, que continuava intacto. A Sr.a Anfry tomara outro partido: a fome vencera a timidez.
Brás reparou na perturbação do pai e inclinando-se para Helena, disse-lhe em voz baixa:
- Menina Helena, o meu pobre pai está com medo; não se atreve a comer e, contudo, está com muita fome, tenho a certeza.
Helena, levantando os olhos, viu Anfry e sorriu do seu ar infeliz. Inclinando-se por sua vez para o ouvido do pai, fez-lhe notar o mal-estar do pobre Anfry, que enxugava a cara, cada vez mais envergonhado.
- Então, meu caro Anfry, é assim que presta homenagem à refeição da primeira comunhão dos nossos filhos? Vamos, não seja tímido, não se envergonhe; nós somos todos irmãos, hoje mais do que nunca. Coma a sua sopa, meu excelente Anfry. Espere, vou dar-lhe coragem.
E o conde, levantando-se, agarrou uma garrafa de vinho da Madeira, desrolhou-a ele próprio, e encheu os copos de Anfry e da Sr. a Anfry. Depois de ter servido também sua mulher e de ter deitado um pouco de vi nho nos copos das crianças, encheu o seu e, levando-o aos lábios, exclamou:
- À saúde de Brás e de Júlio!
- À saúde do Sr. Conde! - exclamou Anfry, levantando-se por sua vez.
- À saúde de Anfry e da Sr. a Anfry - exclamou Júlio.
- À saúde do Sr. Abade! - disse Brás, por fim.
- Muito bem, meu rapaz - aprovou o conde. Bebamos à saúde do nosso bom abade, a quem todos devemos um grande reconhecimento. Vamos, Anfry, agora estamos mais à vontade; continuemos o nosso almoço como pessoas que conservam no coração a recordação das primeiras horas da manhã de hoje.
A refeição continuou alegre, mas calma; as crianças falaram muito das suas impressões antes e depois da santa comunhão. A condessa e o conde escutavam-nos, felizes; adivinhava-se nos sentimentos evidenciados pelas crianças um futuro santo e feliz. Anfry e a sua mulher comiam sem falar; mal ouviam, de tal forma estavam impressionados com a excelência dos pratos e a qualidade dos vinhos; comiam e repetiam tudo; o seu embaraço tinha-se dissipado inteiramente: - sentiam-se felizes. A Sr. a Anfry pensava na posição de destaque que ia ter na terra por causa deste almoço oferecido, em sua casa, aos patrões. No seu êxtase interior, imaginava ter presenteado o conde e a condessa e pensava que a honra que sentia era simplesmente a justa paga do trabalho que lhe dera a organização da refeição.
Acabado o almoço, o conde e a condessa foram sentar-se num banco em frente da casa, depois de terem ordenado aos criados que deixassem aos Anfry tudo o que sobrara dos manjares e dos vinhos, o que redobrou a alegria e o reconhecimento da Sr. a Anfry.
As crianças examinaram com interesse a biblioteca que o conde dera ao Brás e onde figurava em lugar de honra um soberbo volume de Imitação de Cristo, oferecido por Helena. Depois de ter lido o título de todas as obras, em número de cem, Júlio disse a Brás:
- Meu querido Brás, ainda não te dei uma lembrança; aqui está: aceita-a como prova de amizade que há- de durar tanto como eu.
Acabando estas palavras, pôs- lhe ao pescoço um bonito fio de ouro com um pequeno crucifixo e uma medalha da Santa Virgem, de ouro também.
- Foi benzida por um santo prelado que ficou subitamente cego, e que dá a todos o exemplo de uma resignação tão doce, que só vê-lo comove.
- Obrigado, meu querido Sr. Júlio; se não fosse oferecido por si e benzido por um santo, não me atrevia a usar coisa tão bonita; espero que o crucifixo me fará recordar o que devo a Deus, e a imagem da Santa Virgem dar-me-á o desejo de amar o meu divino Salvador como Ela O amou neste mundo e como O ama na eternidade.
Brás beijou o crucifixo e a medalha e, escondendo-os no peito, disse a Júlio:
- Todos os dias, de manhã e à noite, rezarei por si, diante desta cruz e desta medalha.
O conde e a condessa tinham vindo ao encontro dos filhos; a condessa, entregando a Brás uma pequena caixa, disse-lhe, beijando-o na testa:
- Não posso ser a única pessoa de quem não recebes nada, meu querido filho; aqui está uma pequena coisa, mas que deve ser-te agradável e útil, tenho a certeza.
Brás beijou as mãos da condessa, recebendo a pequena caixa que ela lhe estendia; abriu-a com entusiasmo e viu, com uma alegria que não tentou dissimular, um lindo relógio de ouro com a respectiva corrente.
Soltou um grito de alegria e partiu como uma flecha, para o pai e a mãe partilharem da sua felicidade.
- Papá, mamã, vejam o que eu tenho, que me deu a Sr. a Condessa!
Por pouco, Anfry e sua mulher repetiam o grito de Brás ao verem o relógio e a corrente; nem um nem outro ousaram tocar-Lhe, com medo de o avariarem ou de o partirem. Só ao fim de alguns minutos pensaram em ir agradecer à condessa o seu belo presente.
- E eu também, nem sequer lhe disse obrigado! exclamou Brás. - Tão contente fiquei. Vou já a correr.
- Não tens que andar muito, meu rapaz - disse o conde, que se aproximava com a condessa sem ele dar por isso. - Dá os teus agradecimentos - acrescentou dirigindo-o para os braços da condessa, que o recebeu sorrindo, e o beijou muito afectuosamente.
- Oh! Sr. Conde, Sr. a Condessa... são tão bons... tão bons, na verdade... Não sei como exprimir a minha felicidade e o meu reconhecimento.
E Brás, o feliz Brás, lançou-se nos braços que lhe estendia o conde. Sentia-se tão comovido com tantas amabilidades que teve dificuldade em conter o entusiasmo do seu reconhecimento.
- Meu Deus! Meu Deus! dizia ele. - Sou tão feliz! Os Srs. Condes são tão bons. todos. todos. Eu não mereço... Que Deus lhes pague!.. Oh! Sim! Hei-de rezar, rezar tanto por vós que Deus vai ouvir-me. Ele é tão bom!
O conde procurava acalmar a emoção de Brás; quando o conseguiu, lembrou às crianças que se aproxi mava a hora das vésperas.
- É preciso que não se veja que eu tenho os olhos encovados - disse Brás; - julgariam que estou triste. Tristeza num dia como este! Não podia ser! Tudo é felicidade para mim! O meu coração está tão cheio que às vezes penso que ele vai rebentar. O amor a Deus e às suas criaturas é mais do que eu posso suportar.
- Acalma-te, meu filho! Deus quer-te pagar o que tens sofrido e recompensar a tua paciência para os desgostos que te enviou. Agradecer-lhe-ás na igreja e nós juntaremos os nossos agradecimentos aos teus.
Encaminharam-se todos para a aldeia, que conservava o seu ar festivo; os sinos repicavam com toda a força; de toda a parte vinham grupos silenciosos e recolhidos em direcção à igreja. Todos cumprimentavam o conde e a condessa à sua passagem. O ofício da tarde terminou pela bênção do Santíssimo Sacramento e este belo e feliz dia deixou impressões cristãs e salutares em mais de um coração rebelde, até aí, ao apelo de Deus.
Conclusão
Desde este dia, Brás fez, mais do que nunca, parte da família do conde. A vida que levava no solar era calma e feliz; o serviço de Deus nunca mais foi desprezado, assim como o serviço dos pobres. A fortuna do conde era toda empregada em socorrer as misérias dos seus semelhantes. Quando Brás se tornou um homem, ajudou o conde na administração da sua fortuna e tornou-se o seu homem de confiança, o seu conselheiro íntimo. Brás nunca perdeu o respeito que devia aos seus patrões, que eram ao mesmo tempo os seus melhores amigos. Júlio tornou-se um perfeito rapaz; Helena, à medida que crescia, transformava-se no modelo das meninas.
Brás recebeu várias cartas do seu antigo patrão. Tiago propôs-lhe, com autorização do pai, ir tomar a direcção da sua casa; mas Brás não aceitou nunca deixar os pais, que acabaram os seus dias ao serviço do conde. Ia, contudo, todos os anos, passar alguns dias junto de Tiago. Um dia, este exprimiu a Brás o desejo de unir as duas famílias pelo casamento de Júlio com sua irmã Joana, que Júlio tinha encontrado muitas vezes na sociedade, em Paris. Disse-lhe que toda a sua família ficaria contente com este casamento. Júlio exprimira já o mesmo desejo a Brás.
Este, no seu regresso, reproduziu ao conde e a Júlio as palavras do amigo. O conde e Júlio receberam-nas com alegria, e esta união, desejada pelas duas famílias, não tardou a realizar-se.
Foi um dia feliz para Brás aquele em que viu a família do Sr. Berne no solar de Trénilly. Tiago, que não deixava o seu antigo amigo Brás; ambos se tinham tornado homens e sólidos cristãos. Tiago viu com prazer o respeito de que Brás estava rodeado. Ele era árbitro de todas as questões da terra; o que o Sr. Brás decidia era religiosamente executado.
O próprio Brás casou, com a idade de vinte e oito anos: desposou a sobrinha do Sr. Abade. O conde encarregou-se do dote de Brás, e a condessa dos presentes de noivado e da mobília. O dote foi uma boa quantia, mais uma linda casa nos arredores da aldeia, muito perto do solar. A condessa mobilou a casa e deu à noiva todos os vestidos.
O jantar de casamento foi oferecido pelo conde no solar.
Helena, que tinha inspirado uma grande estima e uma viva afeição a um irmão mais velho de Tiago, que parecia corresponder a estes sentimentos, consentiu com prazer em tornar-se a companheira da sua vida. Viveram muito felizes durante vários anos, após os quais Helena teve a dor de perder o seu marido. Como não tivesse filhos, resolveu consagrar-se inteiramente ao serviço dos pobres, fundando obras de caridade.
Foi assim que viveu esta família cristã, feliz e unida, amada e estimada por todos.
Condessa de Ségur
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