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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O BRILHO DAS ESTRELAS / Sidney Sheldon
O BRILHO DAS ESTRELAS / Sidney Sheldon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Em "O brilho das Estrelas" seguimos o percurso da bela Lara Cameron, jovem com um passado obscuro e que, a partir do nada, consegue construir um verdadeiro império. Numa acção que envolve locais como Escócia, Londres, Nova Iorque e Roma, somos conduzidos aos meandros do mundo complexo da construção civil e ao maravilhoso mundo da música clássica, num enredo empolgante de acção e romance.

 

 

 

 

Quinta feira, 10 de Setembro de 1992, 8 da manhã

O 727 estava perdido num mar de cúmulos que sacudia o avião como se ele não passasse de uma gigantesca pena prateada. A voz preocupada do piloto fez-se ouvir pelo altifalante.

- Tem o cinto apertado, Miss Cameron?

Não houve resposta.

- Miss Cameron. Miss Cameron.

A voz arrancou-a a um devaneio profundo.

- Sim.

O pensamento tinha-a arrastado para momentos e locais mais felizes.

- Sente-se bem? Não devemos tardar a sair desta tempestade.

- Eu estou óptima, Roger.

"Talvez tenhamos a sorte de nos despenharmos", pensou Lara Cameron. Seria um final condigno. Não sabia como, nem quando, tudo tinha começado a desandar. É o Destino, pensou Lara. Não se pode lutar contra o Destino. No decorrer do último ano, a vida dela entrara em queda vertiginosa e incontrolável. Estava em risco de perder tudo. Pelo menos não há mais nada que me possa correr mal, pensou com amargura. Não existe mais nada.

A porta da cabina abriu-se e o piloto saiu. Ficou um momento parado a admirar a passageira. Era uma linda mulher, com os cabelos escuros e brilhantes a formar-lhe uma coroa no alto da cabeça, a pele lisa e macia, os olhos inteligentes, cinzentos como os de um gato. Depois de saírem de Reno tinha mudado de fato e envergava agora um vestido de noite branco de Scasai que lhe descobria os ombros e acentuava a figura esbelta e sedutora. Em volta da garganta trazia um colar de rubis e diamantes. Como é que ela consegue mostrar-se tão calma quando tudo se está a desmoronar à sua volta? perguntou a si mesmo. Ao longo de todo aquele mês osjornais tinham-na atacado desapiedadamente.

- O telefone já funciona, Roger?

- Receio bem que não, Miss Cameron. Há muitas interferências por causa da tempestade. Vamos chegar a La Guardia com uma hora de atraso. Lamento.

Vou chegar atrasada à minha festa de aniversário, pensou Lara. Vão lá estar todos, incluindo o vice- presidente dos Estados Unidos, o governador de Nova Iorque, o presidente da Câmara, celebridades de Hollywood, atletas famosos e financeiros de meia dúzia de países. Ela própria tinha dado a aprovação final à lista dos convidados.

Já começava a visualizar o Salão de Baile do Cameron Plaza, onde a festa se ia realizar. Do tecto pendiam lustres de cristal e prismas de luz reflectindo um brilho estonteante e diamantino. Haveria lugares para duzentos convidados, espalhados em vinte mesas. Cada um dos lugares estaria adornado com os linhos mais finos, porcelanas, pratas e cristais e no centro de cada mesa um arranjo floral com orquídeas brancas e frésias igualmente brancas.

Cá fora, em ambas as extremidades do átrio, estava instalado o serviço de bar. No meio do átrio, sobre uma mesa comprida, havia um cisne esculpido em gelo e rodeado por caviar BeLuga, camarão, lagosta, santola e baldes com garrafas de champanhe a gelar. Na cozinha, um bolo de anos com dez andares aguardava a sua chegada. Naquela altura já os criados, chefes de mesa e guardas da segurança deviam estar nos seus lugares.

Na sala de baile, uma orquestra ligeira encontrava-se preparada para tentar os convidados a dançar pela noite fora, celebrando o seu quadragésimo aniversário. Tudo devia estar a postos.

Ojantar ia ser delicioso. Ela própria escolhera a ementa. Foiegras para começar, seguido de um creme de cogumelos delicadamente gratinado, filetes John Dory e depois o prato principal: cordeiro com rosmaninho e soufflé de batata com feijão verde e salada com óleo de avelã. Depois haveria queijo e uvas, seguidos do bolo de anos e do café.

Ia ser uma festa espectacular. E ela ia apresentar-se com a cabeça bem erguida, enfrentando os convidados como se não existisse qualquer problema. Afinal, ela era Lara Cameron.

Quando o jacto particular aterrou finalmente em La Guardia, estava com um atraso de hora e meia.

Lara voltou-se para o piloto.

- Voltamos ainda esta noite para Reno, Roger.

- Cá estarei, Miss Cameron.

A limusina e o chauffeur aguardavam-na na rampa.

- Estava a ficar preocupado, Miss Cameron.

- Tivemos muito mau tempo, Max. Agora vamos para o Plaza o mais depressa possível.

- Muito bem, Miss.

Lara pegou no telefone e marcou o número de Jerry Townsend. Era ele que se tinha ocupado da organização da festa, e Lara queria ter a certeza de que os convidados estavam a receber o tratamento devido. Ninguém atendeu. Deve estar na Sala de Baile, pensou Lara.

- Depressa, Max.

- Sim, Miss Cameron.

A visão do imerso Cameron Plaza Hotel nunca deixava de provocar em Lara um surto de satisfação por aquilo que ela própria criara, mas naquela noite estava com demasiada pressa para poder pensar nisso. Tinha toda a gente à espera no Grande Salão de Baile.

Empurrou a porta giratória e atravessou rapidamente o vestibulo amplo e espectacular. Carlos, o sub-gerente, viu-a e aproximou-se correndo.

- Miss Cameron.

- Depois - disse Lara. Sem parar, dirigiu-se para a porta fechada do Grande Salão de Baile e parou para respirar fundo. Estou pronta para ir ao encontro deles, pensou Lara. Empurrou a porta, com um sorriso estampado na cara, e estacou imediatamente, em estado de choque. A sala estava completamente às escuras. Estariam a preparar-lhe alguma surpresa? Estendeu a mão para o interruptor, atrás da porta, e accionou- o. A sala imensa ficou inundada de luz. Lá dentro não se encontrava ninguém. Nem uma única pessoa. Lara ficou imóvel, como que fulminada.

Que é que podia ter acontecido a duzentos convidados? Os convites eram para as oito horas. Como era possível que tantas pessoas tivessem desaparecido sem deixar rasto? Era muito estranho. Percorreu com o olhar a imensa sala vazia e estremeceu. No ano anterior, na sua festa de aniversário, aquela mesma sala tinha-se enchido com os seus amigos, com música e risos. Lembrava-se tão bem desse dia...

 

Um ano antes, a agenda de Lara Cameron para esse dia era simples rotina.

10 de Setembro de 1991

5: 00 Exercícios com o treinador

7: 00 Aparição no Bom Dia América,

7: 45 Reunião com banqueiros japoneses

9: 30 Jerry Townsend

10: 30 Comissão de Planeamento

11: 00 Faxes, telefonemas Europa, correio

11: 30 Reunião construção

12: 30 Reunião S&L

13: 00 Almoço - Entrevista Revista Fortune - Hugh Thom

14: 30 Banqueiros Metropolitan Union

16: 00 Comissão de Planeamento da Cidade

17: 00 Reunião presidente da Câmara - Gracie Mansion

18: 15 Reunião arquitectos

18: 30 Departamento Habitação

19: 30 Cocktails com grupo investimentos Dallas

20: 00 Festa de Aniversário - Salão de Baile, Cameron Plaza

Já estava devidamente equipada, aguardando cheia de impaciência, quando Ken, o treinador, chegara.

- Está atrasado.

- Desculpe, Miss Cameron, mas o despertador não tocou.

- Tenho um dia muito ocupado. É melhor começarmos.

- Claro.

Tinham feito flexões durante meia hora e depois tinham passado para os exercícios de aeróbica.

Ela tem o corpo de uma rapariga de 20 anos, pensou Ken. Ele gostaria de a levar para a cama. Era-lhe agradável ir ali todas as manhãs, só para olhar para ela, para lhe sentir a proximidade. As pessoas perguntavam-lhe constantemente como era Lara Cameron. E ele respondia: É o máximo.

Lara suportava com facilidade a rotina árdua, mas naquela manhã tinha o espírito distante.

Quando a sessão finalmente terminou, Ken disse:

- Vou vê-la no Bom Dia América.

- O quê? - Por momentos, Lara tinha-se esquecido do programa. Os seus pensamentos estavam na reunião com os banqueiros japoneses.

- Até amanhã, Miss Cameron.

- Não se atrase outra vez, Ken.

Lara tomou duche, mudou de roupa e tomou o pequeno-almoço sozinha no terraço do seu apartamento, um pequeno-almoço de toranja, cereais e chá verde. Quando acabou, retirou-se para o estúdio.

Tocou a campainha para chamar a secretária.

- Faço os telefonemas para a Europa do escritório - disse Lara. - Tenho de estar na ABC às sete. Max que me traga o carro.

A sequência do Bom Dia América, correu bem. A entrevista foi conduzida por Joan Lunden, simpática como sempre.

- Da última vez que esteve neste programa - disse Joan Lunden

- acabava de abrir as fundações para o arranha-céus mais alto do mundo. Isso foi há perto de quatro anos.

Lara fez um sinal de assentimento.

- É verdade. As Torres Cameron ficarão concluídas no próximo ano.

- Que é que sente uma pessoa na sua posição... uma pessoa que já conseguiu realizar coisas tão espantosas como você e no entanto continua tão bela e jovem? Podemos dizer que é um exemplo para muitas mulheres.

- É muito lisonjeiro da sua parte - ripostou Lara, rindo. - A verdade é que não tenho tempo para pensar nesse meu papel de mulher exemplo. Estou sempre demasiado ucupada.

- Mas você é uma das pessoas que maiores êxitos tem conseguido no campo da urbanização e da construção, geralmente considerado como um domínio estritamente masculino. Como é que trabalha? Como é que decide, por exemplo, onde deve construir determinado edifício?

- Eu não esculh o os locais - disse Lara -, eles é que me escolhem a mim. Geralmente vou no cairo, passo por um terreno baldio... mas não é isso que vejo ali. Vejo um magnífico edifício de escritórios ou um delicioso bloco de apartamentos, cheio de pessoas que vivem confortavelmente num ambiente agradável. O que acontece é que eu sonho.

- E faz com que os seus sonhos se tornem realidade. Voltamos a seguir à publicidade.

Os banqueiros japoneses eram esperados às sete e quarenta e cinco. Tinham chegado de Tóquio na noite anterior e Lara marcar a reunião para o princípio da manhã para os apanhar ainda sob efeito do voo de doze horas e meia e da diferença horária. Quando eles protestaram, tinha-lhes dito:

- Lamento muito mas é a única hora de que disponho. Parto para a América do Sul logo a seguir à reunião.

E eles concordaram, ainda que com certa relutância. Eram quatro, diminutos e cortèses, com os espíritos aguçados como as lâminas das espadas dos saris. Em décadas anteriores, a comunidade financeira subestimara fortemente osjaponeses. Actualmente já não cometia esse erro.

A reunião teve lugar no Centro Cameron, na Avenida das Américas. Os quatro homens estavam ali para investir cem milhões de dólares num novo complexo hoteleiro que Lara estava a planear. Fizeram-nos entrar na vasta sala de conferências. Cada um deles era portador de uma oferta. Lara agradeceu e por sua vez deu um presente a cada um. Dera instruções à secretária no sentido de providenciar para que os presentes fossem embrulhados em papel liso, castanho ou cinzento. O branco, para os japoneses, representava morte e um papel vistoso seria inaceitável.

A assistente de Lara, Licia, trouxe chá para os visitantes e café para ela. Os japoneses teriam preferido café, mas eram demasiado delicados para o dizerem.

Quando acabaram o chá, Lara encarregou-se de lhes mandar encher novamente as chávenas.

Howard Keller, associado de Lara, entrou na sala. Era um homem de 50 anos, pálido e magro, com os cabelos cor de areia, vestido com um fato amarrotado e com o ar de quem acabara de sair da cama. Lara fez as apresentações. Keller distribuiu cópias da proposta de investimento.

- Como vêem, meus senhores - disse Lara -, já temos uma primeira hipoteca. O complexo disporá de acomodações para setecentos e vinte hóspedes, uma área de convívio com cèrca de noventa mil metros quadrados e garagem para mil carros.

A voz de Lara estava carregada de energia. Os banqueiros

japoneses estudavam a proposta de investimento, lutando para se manterem acordados.

A reunião terminou em menos de duas horas e foi um êxito total. Lara aprendera havia muito tempo que era mais fácil concluir um negócio de cem mil dólares que fazer um empréstimo de cinquenta mil.

Logo que a delegação japonesa saiu, Lara reuniu com Jerry Townsend. O ex-publicitário de Hollywood, alto e dinâmico, era o encarregado das relações públicas da Cameron Enterprises.

- A entrevista desta manhã para o Bom Dia América foi excelente. Tenho recebido imensos telefonemas.

- E a Forbes?

- Está tudo arranjado. Vão pô-la na capa da People na próxima semana. Viu o artigo do The New Yorker a seu respeito? Não achou óptimo?

Lara foi até junto da secretária.

- Não está mau.

- A entrevista para a Fortune está marcada para esta tarde.

- Fiz uma alteração.

Ele mostrou-se surpreendido.

- Porquê?

- Convidei o repórter deles para almoçar aqui.

- Para o trabalhar um bocado?

Lara carregou no botão do intercomunicador.

- Chegue aqui, Kathy.

Uma voz impessoal replicou:

- Sim, Miss Cameron.

Lara Cameron levantou o olhar.

- É tudo, Jerry. Quero que você e a sua equipa se concentrem nas Torres Cameron.

- Já estamos a fazer.

- Façam mais. Quero que se fale delas em todas as revistas e jornais que existem. Caramba, vai ser o edifício mais alto do mundo. Do mundo! Quero que as pessoas falem disso. Quando estiverem prontas quero que as pessoas se batam por um apartamento ou uma loja nas Torres Cameron.

Jerry Townsend pôs-se de pé.

- Está certo.

Kathy, a assistente de Lara, entrou no gabinete. Era uma mulher de cor, com pouco mais de 30 anos, atraente e bem vestida.

- Descobriu o que é que ele gosta de comer?

- O indivíduo é umgourmet. Gosta de cozinha francesa.

Telefonei para Le Cirque e pedi ao Sirio que servisse aqui um almoço para dois.

- Óptimo. Comemos na minha sala de jantar privativa.

- Faz ideia de quanto tempo demorará a entrevista? Tem de se encontrar com os banqueiros do Metropolitan às duas e meia.

- Mude para as três e eles que venham cá.

Kathy tomou nota.

- Quer que lhe leia os recados?

- Pode ler.

- A Fundação de Auxílio às Crianças pede-lhe que seja a convidada de honra no dia 28.

- Não. Diga-lhes que fiquei muito sensibilizada. Mande um cheque.

- A reunião em Tulsa foi marcada para terça-feira às.

- Cancele.

- Está convidada para um almoço napróxima sexta-feira por um tal Grupo de Mulheres de Manhattan.

- Não. Se querem dinheiro, mande-lhes um cheque.

- A Liga de Alfabetização gostaria que dissesse alguma coisa num almoço no dia 4.

- Veja se há alguma possibilidade.

- Tem um convite para aparecer como convidada de honra numa festa para angariação de fundos a favor da distrofia muscular, só que há uma coincidência de datas. Nessa altura vai estar em São Francisco.

- Mande-lhes um cheque.

- Os Srbs dão um jantar no próximo sábado.

- Vou tentar ir - disse Lara. Kristian e Deborah Srb eram divertidos, além de bons amigos, e Lara gostava de estar com eles. Kathy, quantas pessoas está a ver diante de si?

- O quê?

- Olhe bem.

Kathy olhou para ela.

- Só uma, Miss Cameron.

- Exactamente. Eu sou uma só. Como é que pensou que pudesse reunir-me hoje às duas e meia com os banqueiros do Metropolitan, com a Comissão de Planeamento às quatro, depois com o presidente da Câmara às cinco, os arquitectos às seis e um quarto, Departamento da Habitação às seis e meia, estar num cocktail às sete e meia e no meujantar de aniversário às oito? Da próxima vez que organizar a minha agenda, tente usar a cabeça.

- Desculpe. Como queria que eu.

- O que eu queria era que pensasse. Não preciso de gente estúpida à minha volta. Faça novas marcações com os arquitectos e com o Departamento da Habitação.

- Muito bem - disse Kathy com frieza.

- Como é que está o pequeno?

A pergunta apanhou a secretária de surpresa.

- David? Está. está óptimo.

- Já deve estar crescido.

- Tem quase 2 anos.

- Já pensou numa escola para ele?

- Ainda não. É muito cedo para.

- Pelo contrário. Se quer metê-lo numa escola decente em Nova Iorque, tem de pensar nisso antes de ele nascer.

Lara fez uma anotação num bloco que tinha em cima da secretária.

- Eu conheço o director de Dalton. Vou arranjar maneira de matricular lá o David.

- Muito obrigada.

Lara não se deu ao trabalho de levantar os olhos.

- É tudo.

- Muito bem, Miss Cameron.

Kathy saiu do gabinete sem saber se devia sentir afeição pela patroa ou detestá-la. Na altura em que começara a trabalhar na Cameron Enterprises tinham-na prevenido quanto a Lara Cameron.

- A Borboleta de Ferro é um estupor com rodas - disseram-lhe.

- As secretárias não controlam o emprego pelo calendário... usam cronómetros. Essa mulher vai comê-la viva.

Kathy lembrava-se da primeira entrevista com ela. Já vira fotografias de Lara Cameron em diversas revistas, mas nenhuma lhe faziajustiça. Em pessoa, Lara era de uma beleza surpreendente.

Lara Cameron tinha lido o currículo de Kathy. Depois levantou os olhos e disse:

- Sente-se, Kathy. - Tinha uma voz rouca e vibrante. Toda a sua pessoa irradiava uma energia que quase sufocava.

- Tem um currículo notável.

- Obrigada.

- Até que ponto é que isto é autêntico?

- Perdão?

-A maior parte dos que me passam pelas mãos são fictícios. Você é realmente boa naquilo que faz?

- Sou muito boa naquilo que faço, Miss Cameron.

- Duas das minhas secretárias acabam de se ir embora. É capaz de aguentar a pressão?

- Acho que sim.

- Isto não é nenhum jogo de probabilidades. É capaz de aguentar a pressão ou não é?

Naquele momento Kathy não teve a certeza de querer realmente o emprego.

- Sou capaz, sim.

- Óptimo. Fica uma semana à experiência. Vai ter de assinar uma declaração em como em circunstância alguma discutirá a minha pessoa ou o seu trabalho na Cameron Enterprises. Isso quer dizer que lhe estão interditas as entrevistas, livros, etc. Tudo o que acontece aqui é confidencial.

- Compreendo.

- Óptimo.

Era assim que tinha começado, cinco anos antes. Durante esse tempo, Kathy aprendera a estimar, odiar, admirar e desprezar a patroa. No princípio, o marido de Kathy tinha-lhe perguntado.

- Como é que é essa lenda?

Era uma pergunta difícil.

- Maior que a vida - respondera Kathy. - É de uma beleza inacreditável. Trabalha mais que qualquer pessoa que eu jamais conheci. Só Deus sabe quando é que ela dorme. É uma perfeccionista e como tal torna infelizes todos os que a rodeiam. À sua maneira é um génio. Consegue ser ao mesmo tempo mesquinha, vingativa e incrivelmente generosa.

O marido sorrira.

- Por outras palavras, é uma mulher.

Kathy olhara para o marido e respondera, sem sorrir.

- Não sei o que é que ela é. Às vezes faz-me medo.

- Vamos lá, minha querida, estás a exagerar.

- Não. Com franqueza, acho que se alguém se atravessasse no caminho de Lara Cameron, ela não hesitaria em matar.

Quando Lara terminou com os faxes e as chamadas internacionais, tocou para chamar Charlie Hunter, umjovem ambicioso que estava à frente da contabilidade.

- Venha aqui, Charlie.

- Sim, Miss Cameron.

Um minuto depois, ele entrava no gabinete.

- Faz favor, Miss Cameron?

- Li a entrevista que deu ao New York Times esta manhã - disse Lara.

Ele mostrou-se sorridente.

- Ainda não a li. Como é que está?

-Você falou da Cameron Enterprises e de alguns problemas que estamos a enfrentar.

Charlie franziu a testa.

- Bom, sabe como é, o repórter deve ter falseado algumas das minhas.

- Está despedido.

- O quê? Porquê? Eu.

- Quando foi contratado, assinou um papel em como concordava em não dar entrevistas. Quero-o daqui para fora ainda esta manhã.

- Eu. Não pode fazer isso. Quem é que iria para o meu lugar?

- Já tratei disso - replicou Lara.

O almoço estava quase terminado. O repórter da Fortune, Hugh Thompson, era um homem vivo, com ar de intelectual e com uns olhos castanhos perspicazes por detrás dos óculos de aros de tartaruga.

- Foi um almoço excelente - disse. - Com todos os meus pratos favoritos. Muito obrigado.

- Estou contente que tenha gostado.

- Não precisava de se ter incomodado por minha causa.

- Não foi incómodo nenhum. O meu pai dizia sempre que o caminho para o coração de um homem era através do estômago.

- Quer dizer que queria chegar ao meu coração antes de começarmos a entrevista?

Lara sorriu.

- Exactamente.

- Até que ponto é que a sua empresa está em dificuldades? O sorriso de Lara desvaneceu-se.

- Desculpe?

- Então. É uma coisa que não pode esconder. Corre por aí que algumas das suas propriedades estão à beira do colapso por causa dos pagamentos das suas obrigações. A senhora tem conseguido vários balões de oxigénio para a Cameron Enterprises, e com a crise do mercado a empresa deve estar a braços com bastantes dificuldades.

Lara riu-se.

- É isso o que corre por aí? Acredite em mim, Sr. Thompsonfaria melhor em não dar ouvidos a todos esses boatos. Eu digo-lhe o que é que vou fazer. Vou mandar-lhe uma cópia da minha folha de balanço para que possa corrigir os seus dados. Certo?

- Certo. A propósito, não vi o seu marido na festa de inauguração do novo hotel.

Lara suspirou.

- Philip gostaria imenso de ter podido ir, mas infelizmente teve de se ausentar para dar uma série de concertos.

- Fui a um dos seus recitais há cerca de três anos. Ele é brilhante. Estão casados há um ano, não é?

- Sim, o ano mais feliz da minha vida. Sou uma mulher de sorte, Viajo muito e o Philip também, mas quando estamos separados posso ouvir as gravações dele onde quer que esteja.

Thompson sorriu.

- E ele pode ver as suas construções para onde quer que vá.

Lara riu-se.

- É muito lisonjeiro da sua parte.

- Mas é verdade, não é? Miss Cameron tem feito erguer edifícios por toda a parte neste nosso belo país. Blocos de apartamentos, escritórios, uma cadeia de hotéis. Como é que consegue?

Ela sorriu.

- Com espelhos.

- A senhora é um enigma.

- Acha? Porquê?

- Neste momento a sua empresa é indiscutivelmente a sociedade construtora de maior êxito em Nova Iorque. Pode ler-se o seu nome em metade dos empreendimentos imobiliários desta cidade. Tem en construção o arranha-céus mais alto do mundo. A concorrência pôs-lhe o nome de Borboleta de Ferro. Conseguiu uma posição de des taque numa área tradicionalmente masculina.

- E isso incomoda-o, Sr. Thompson?

- Não. Aquilo que me incomoda, Miss Cameron, é não ser capaz de perceber exactamente quem a senhora é. Quando falo a seu respeito com duas pessoas, oiço três opiniões diferentes. Todos estão de acordo em que é uma mulher de negócios brilhante. Quer dizer. O êxito não lhe caiu do céu aos trambolhões. Conheço bastante bem o pessoal ligado à construção. são, a todos os níveis, indivíduos duros, de contacto difícil. Como é que uma mulher como a senhora conseguiu mantê-los na linha?

Lara sorriu.

-Não há mulheres como eu. Falando a sério, limito-me a contratar os melhores em todos os campos e a pagar-lhes bem.

Demasiado simplista, pensou Thompson. Demasiado simplista, na verdade. O que ela não me conta é o que está por detrás de tudo isso. Decidiu mudar o curso da entrevista.

- Todas as revistas que se publicam falam do seu sucesso. Eu gostaria de fazer qualquer coisa de mais pessoal. Pouco se tem escrito sobre os seus antecedentes.

- Tenho muito orgulho nos meus antecedentes.

- Óptimo. Fale-me deles. Como foi que se lançou no negócio da construção?

Lara sorriu e ele notou que era um sorriso genuíno. De repente, parecia uma garotinha.

- Uma questão de genes.

- Os seus?

- Os do meu pai. - Apontou para um retrato que estava na parede, atrás dela. Representava um homem bem parecido com uma cabeça leonina adornada de cabelos prateados. - Este é o meu pai: James Hugh Cameron. - A voz tornara-se-lhe mais suave. - É ele o responsável pelo meu êxito. Sou filha única. A minha mãe morreu quando eu ainda era pequena e foi o meu pai que me criou. A minha família deixou a Escócia há muito tempo, Sr. Thompson, e emigrou para a Nova Escócia, Glace Bay.

- Glace Bay?

- É uma aldeia de pescadores na parte nordeste de Cape Breton, na costa do Atlântico. O nome foi-lhe dado pelos primeiros exploradores franceses. Quer dizer baía de gelo. Mais café?

- Não, obrigado.

- O meu avô tinha muitas terras na Escócia e o meu pai comprou ainda mais. Era um homem muito rico. Ainda temos o nosso castelo perto de Loch Morlich. Aos 8 anos de idade eu tinha o meu próprio cavalo, todos os meus vestidos eram comprados em Londres e vivíamos numa casa enorme cheia de criados. Para uma rapariguinha da minha idade era como viver num conto de fadas.

A voz dela vibrava com os ecos das memórias antigas.

- De Inverno, íamos patinar no gelo e ver osjogos de hóquei, e no Verão nadávamos no Grande Lago de Glace Bay. E havia bailes no Forum e nos Jardins de Veneza.

- O meu pai fez a construção de edifícios em Edmonton, Calgary, Ontário. O negócio de imobiliários era como umjogo para ele, umjogo que adorava. Quando eu ainda era muito nova, o meu pai ensinou-me esse jogo e eu aprendi a amá-lo também.

A voz dela encheu-se de paixão.

-É preciso que compreenda uma coisa, Sr. Thompson. Aquilo que eu faço não tem nada a ver com o dinheiro, os tijolos e o aço que fazem o edifício. O que conta são as pessoas. Eu consigo dar-lhes um sítio confortável para trabalharem ou onde viverem, um lugar onde podem criar uma família e ter uma vida decente. Era isso que contava para o meu pai e que passou a contar para mim também.

Hugh Thompson levantou os olhos.

- Lembra-se de qual foi o seu primeiro empreendimento? Lara inclinou-se para a frente.

- Claro. Quando fiz 18 anos, o meu pai perguntou-me que prenda eu gostaria de receber. Entretanto muita gente começara a afluir a Glace Bay e a cidade estava a ficar congestionada. Já me tinha apercebido de que era preciso arranjar mais sítios para essa gente viver. Disse ao meu pai que queria construir um pequeno prédio de apartamentos. Ele deu-me o dinheiro como presente, mas dois anos depois eu consegui reembolsá-lo. Depois, pedi dinheiro a um banco para construir um segundo imóvel. Quando fiz 21 anos, já tinha três prédios e todos eles tinham sido um sucesso.

- O seu pai deve ter-se sentido muito orgulhoso.

Aquele sorriso genuíno apareceu de novo no rosto dela.

- Sentia, sim. Ele é que me deu o nome de Lara. É um velho nome escocês que vem do latim. Quer dizer conhecido ou famoso. Desde pequena que o meu pai sempre me disse que eu havia de ser famosa um dia. - O sorriso apagou-se. - Morreu demasiado novo, de um ataque cardíaco. - Fez uma pausa. - Vou à Escócia todos os anos visitar a campa dele. Tornou-se-me muito difícil continuar lá em casa sem ele e resolvi mudar-me para Chicago. Tinha uma ideia para a construção de pequenos hotéis e convenci um banco a financiar-me. Os hotéis tiveram grande sucesso. - Encolheu os ombros.

- E o resto, como costuma dizer-se, é história. Suponho que um psi quiatra diria que não criei todo este império só para mim. De certa forma, é um tributo ao meu pai. James Cameron foi o homem mais maravilhoso que jamais conheci.

- Deve tê-lo amado muito.

- É verdade. Como ele me amou a mim. - Um sorriso aflorou-lhe aos lábios. - Contaram-me que no dia em que eu nasci o meu pai ofereceu uma bebida a todos os homens de Glace Bay.

- Portanto tudo começou em Glace Bay - disse Thompson.

- É verdade - disse Lara com suavidade. - Tudo começou em Glace Bay. Foi aí que tudo começou, há quase quarenta anos.

 

Glace Bay, Nova Scotia 10 de Setembro de 1952

James Cameron encontrava-se num bordel, embriagado, na noite em que o filho e a filha nasceram. Estava na cama, deitado no meio das gémeas escandinavas, quando Kirstie, a madame do bordel, bateu à porta.

- James! - chamou. Depois empurrou a porta e entrou.

- Och, ye auld hen - gritou James, indignado. - Já um homem não pode ter a sua privacidade nem mesmo aqui?

- Desculpa-me que interrompa o teu prazer, James. É por causa da tua mulher.

- A minha mulher que se foda - rosnou Cameron.

- Tu é que a fodeste - replicou Kirstie -, e ela está a ter o teu filho.

- O quê? Pois que o tenha. É para isso que servem as mulheres, não é?

- O médico telefonou agora mesmo. Tem andado desesperado à tua procura. Ela não está bem. É melhor que vás lá depressa.

James Cameron sentou-se e deslizou para a borda da cama, com o olhar nublado, tentando aclarar as ideias.

- Maldita mulher. Nunca me deixa estar sossegado. - Voltou-se para a madame, - Está bem, eu vou. - Depois olhou para as raparigas nuas em cima da cama. - Mas não vou pagar por essas duas aí.

- Não penses nisso agora. É melhor voltares depressa para a pensão. - Virou-se para as raparigas. - Vocês venham comigo.

James Cameron era um homem que em tempos fora bem parecido e cujo rosto reflectia agora os pecados satisfeitos. Parecia ter cerca de 50 anos. Na realidade tinha 30 e era gerente de uma das pensões que pertenciam a Sean MacAllister, o banqueiro da cidade. Ao longo dos últimos cinco anos, James Cameron e a mulher, Peggy, tinham dividido as tarefas: Peggy lavava e cozinhava para as duas dúzias de hóspedes e James bebia. Todas as sextas- feiras, estava encarregado de ir receber as rendas das outras quatro pensões de Glace Bay que pertenciam a MacAllister. Esse era mais um pretexto, se é que alguma vez precisara de algum, para sair e embriagar-se.

James Cameron era um homem azedo que gozava o seu próprio azedume. Era um falhado e estava convencido de que a culpa era de todos menos dele. Ao longo dos anos, aprendera a saborear o falhanço. Dava-lhe uma aura de mártir. Quando James tinha 1 ano de idad a família emigrara da Escócia para Glace Bay, sem nada a não ser os poucos haveres que podiam levar consigo e lá tinham lutado para sobreviver. O pai tinha posto James a trabalhar nas minas de carvão; quando o rapaz ainda tinha 14 anos de idade. Aos 16 anos, James magoara-se ligeiramente nas costas num acidente de trabalho e tinha abandonado imediatamente a mina. Um ano mais tarde, os pais foram mortos num desastre de caminho de ferro. E foi assim que James Cameron decidiu que não era responsável pelas suas adversidades - o Destino é que estava contra ele. Mas por outro lado tinha duas coisas importantes a seu favor: era extraordinariamente bem parecido e, quando queria, sabia ser encantador. Durante um fim-de-semana em Sydney, uma cidade próxima de Glace Bay, conheceu uma jovem americana impressionável, de nome Pegsy Maxwell, que estava a passar férias com a familia. Não era uma rapariga atraente, mas os Maxwells eram muito ricos e James Cameron era muito pobre. Ele arrebatou o coração de Peggy Maxwéll e esta casou com ele, contra a vontade do pai.

- Vou dar a Peggy um dote de cinco mil dólares - disse este pai a James. - Esse dinheiro dar- lhá a oportunidade de fazer algurma coisa na vida. Pode investi-lo em terras. Em cinco anos elas valerão o dobro. Eu ajudo.

Mas James não estava interessado em esperar cinco anos. Sem consultar ninguém, investiu o dinheiro, juntamente com um amigo, numa pesquisa duvidosa de petróleo e passados sessenta dias estava falido. O sogro, furioso, recusou-se a continuar a ajudá-lo.

- Você é um pateta, James, e eu não tenciono desperdiçar o meu dinheiro.

O casamento que deveria ter sido a salvação de James Cameron transformou-se num desastre, pois agora tinha a mulher para sustentar e estava sem emprego.

Foi Sean MacAllister quem veio em seu auxílio. O banqueiro da cidade era um homem de cinquenta e poucos anos, um indivíduo

atarracado e pomposo a quem só faltavam alguns gramas para ser considerado obeso e que costumava usar coletes adornados com 28

uma pesada corrente de relógio em ouro. Chegara a Glace Bay vinte anos antes e vira imediatamente as potencialidades do local. Mineiros e madeireiros acorriam em grande número à cidade e não encontravam alojamento adequado. MacAllister podia ter financiado a construção de habitações para eles, mas arranjou um plano ainda melhor. Resolveu que lhe sairia mais barato reuni-los em pensões. No espaço de dois anos tinha construído um hotel e cinco pensões e todos eles estavam permanentemente cheios.

Encontrar gerentes era tarefa difícil porque o trabalho era exaus tivo. As funções do gerente consistiam em manter os quartos ocupados, supervisionar a cozinha, organizar as refeições e providenciar para que tudo estivesse razoavelmente limpo. Com respeito a salários, Sean MacAllister não era homem que esbanjasse o seu dinheiro.

O gerente de uma das pensões acabava de se despedir e MacAllister achou que James Cameron seria um candidato a considerar. Cameron tinha feito pequenos empréstimos ao banco de tempos a tempos e tinha um pagamento em atraso. MacAllister mandou-o chamar.

- Tenho um emprego para si - disse o banqueiro.

- Tem?

-Você está cheio de sorte. Apresentou-se uma oportunidade excelente.

- Para trabalhar no banco, não? - perguntou Cameron. A ideia de trabalhar num banco agradava-lhe. Num sítio onde havia muito dinheiro, havia sempre a possibilidade de que algum se lhe agarrasse aos dedos.

- Não é no banco - disse MacAllister. - Você é uma pessoa muito sociável, James, por isso acho que estaria bem num sítio onde tivesse de lidar com pessoas. Gostaria que dirigisse a minha pensão da Avenida Cablehead.

- Umapensão? - Havia uma nota de desprezo na voz dojovem.

- Você precisa de um tecto - continuou MacAllister. - Haverá alojamento e alimentação para si e para a sua mulher e um pequeno salário.

- Pequeno?

- Vou ser generoso consigo, James. Vinte e cinco dólares por semana.

- Vinte e cinco.

- É pegar ou largar. Tenho outras pessoas à espera.

James Cameron não tinha alternativa.

- Aceito.

- Óptimo. A propósito, às sextas-feiras terá de receber as rendas dasoutras pensões e entregar-me o dinheiro no sábado.

Quando James Cameron deu a notícia a Peggy, ela ficou consternada.

- Mas nós não fazemos ideia de como é que se dirige uma pensão, James.

- Havemos de aprender. Dividimos o trabalho entre os dois. E ela acreditou.

- Está bem. Havemos de nos arranjar. E, à sua maneira, tinham-se arranjado.

Ao longo dos anos, tinham-se apresentado a James Cameron várias oportunidades de arranjar melhores empregos, situações que lhe teriam conferido dignidade e ao mesmo tempo mais dinheiro, mas ele estava a gostar demasiado do seu falhanço para lhe voltar as costas.

- Para que é que eu me hei-de maçar? - resmungava. Quando o Destino está contra nós não se pode esperar nada de bom!

E agora, naquela noite de Setembro, pensou: Nem sequer me deixam gozar em sossego a companhia das prostitutas. Raios partam a minha mulher.

Quando saiu do estabelecimento de Madame Kirstie, soprava un vento gelado de Setembro.

O melhor é eu arranjar forças para o que está para vir, decidiu James Cameron. Parou no Ancient Mariner.

Uma hora depois, pôs-se a caminho da pensão de New Aberdeen, o bairro mais pobre de Glace Bay.

Quando finalmente chegou, era aguardado ansiosamente por meia dúzia de hóspedes.

- O doutor está lá dentro com a Peggy - disse um dos homens

- Será melhor você despachar-se.

James entrou cambaleante no minúsculo e triste quarto das traseiras que partilhava com a mulher. Vindo de outro quarto ouvia-se o choro de um recém-nascido. Peggy jazia na cama, imóvel. O Dr Duncan estava inclinado sobre ela. Voltou-se quando ouviu James entrar.

- Que é que está a acontecer aqui? - perguntou James. O médico endireitou-se e olhou-o com desagrado.

- Devia ter-me levado a sua mulher para eu a ver.

- E para que é que eu havia de gastar esse dinheiro? Ela só vai ter uma criança. Qual é o grande...

- Peggy está morta. Eu fiz tudo o que podia. Ela teve gémeos. Não consegui salvar o rapaz.

- Oh, meu Deus - gemeu James Cameron. - É outra vez o Destino.

- O quê?

- É o Destino. Sempre contra mim. Agora tirou-me o filho. Eu não.

Uma enfermeira entrou, trazendo um bebé embrulhado num cobertor.

- Aqui tem a sua filha, Sr. Cameron.

- Uma filha? Que raio é que eu vou fazer com uma filha? - A voz tornava-se-lhe cada vez mais entaramelada.

- Você mete-me nojo, homem - disse o Dr. Duncan. A enfermeira voltou- se para James.

- Eu fico aqui até amanhã e mostro-lhe como deve tratar dela. James olhou para a figurinha minúscula e encarquilhada envolta no cobertor e pensou, esperançado: Talvez ela morra também.

Durante as primeiras três semanas ninguém sabia se o bebé iria sobreviver. Uma ama de leite veio tomar conta dela. E por fim chegou o dia em que o médico pôde anunciar:

- A sua filha vai sobreviver.

E, olhando para James Cameron, acrescentou entredentes:

- Que Deus tenha piedade da pobre criança.

A ama de leite disse:

- Sr. Cameron, tem de dar um nome à criança.

- Quero lá saber disso. Dê-lhe um nome qualquer.

- Por que é que não lhe chamamos Lara? É tão bonito.

- Faça como raio lhe apetecer. E a criança foi baptizada Lara.

Não havia ninguém no mundo que tratasse de Lara ou que lhe desse de comer. Apensão estava cheia de homens demasiado ocupados com as suas próprias vidas para prestarem atenção ao bebé. A única mulher que lá havia era Bertha, a sueca enorme que tinha sido contratada para cozinhar e fazer os outros trabalhos.

James Cameron estava decidido a não se ocupar da filha. O maldito Destino tinha-o traído mais uma vez ao deixá-la viver. À noite sentava- se na sala com a sua garrafa de uísque e lamuriava.

- Ela matou-me a mulher e o filho.

- Você não devia dizer isso, James.

- Mas é isso mesmo. O meu filho ter-se-ia tornado num homem forte. Teria sido inteligente e rico e teria tomado conta do pai na velhice.

E os hóspedes deixavam-no falar.

James Cameron tentou por várias vezes entrar em contacto con Maxwell, o sogro, na esperança de que ele lhe tirasse a criança das mãos, mas o velho tinha desaparecido. É mais uma vez a minha sorte. O velho deve ter morrido, pensou.

Glace Bay estava cheia de gente de passagem que entrava e saía das pensões. Vinham de França, da China e da Ucrânia. Eram italia nos, irlandeses e gregos, carpinteiros, alfaiates, canalizadores e sa pateiros. Enchiam a Main Street, Bell Street, North Street e Wate Street, junto do porto. Vinham trabalhar nas minas, cortar madeira e pescar no mar. Glace Bay era uma cidade de fronteira, primitiva i rude. O clima era insuportável. Os invernos eram rigorosos, sujeitos a fortes nevões que se estendiam até Abril e, por causa do gelo na zona do porto, até mesmo Abril e Maio eram frios e ventosos e de Julho a Outubro chovia.

Existiam dezoito pensões na cidade, algumas delas com setenta e dois hóspedes. Na pensão dirigida por James Cameron, havia vinte e quatro hóspedes, na sua maioria escoceses.

Lara estava faminta de afeição, sem saber qual era a sua fome. Não tinha brinquedos nem bonecas, nem companheiros com quem brincar. Não tinha ninguém a não ser o pai. Fazia- lhe pequenas dá divas infantis, desesperada para lhe agradar, mas ele ou as ignorav ou troçava delas.

Quando Lara tinha 5 anos, ouviu o pai dizer a um dos hóspedes:

- Morreu a criança errada. O meu filho é que devia ter vivido. Nessa noite Lara chorou até adormecer. Amava tanto o pai. E odiava-o tanto.

Quando Lara tinha 6 anos, parecia uma pintura de Keane, com os olhos enormes num rosto pálido e magro. Nesse ano veio um novo hóspede. Chamava-se Mungo McSween e era grande como um urso. Sentiu imediatamente uma grande afeição pela criança.

- Como é que te chamas, minha pequenina?

- Lara.

-Ah, que bonito nome para uma rapariguinha tão bonita. Andas na escola, não?

- Escola? Não.

- E por que não?

- Não sei.

- Bom, temos de ver isso.

E foi procurar James Cameron.

- Ouvi dizer que a sua filha não vai à escola.

- E por que é que havia de ir? Não passa de uma rapariga. Não precisa de ir à escola.

- Você está enganado, homem. Ela tem de aprender alguma coisa. Tem de ter uma oportunidade na vida.

- Esqueça - disse James. - Seria um desperdício. Mas McSween era persistente e por fim, para se ver livre dele, James Cameron concordou. Pelo menos, ia ver-se livre da rapariga durante algumas horas.

Lara sentiu-se aterrorizada com a ideia de ir para a escola. Passara a sua curta existência num mundo de adultos, praticamente sem qualquer contacto com outras crianças.

Na segunda-feira seguinte, a Grande Bertha levou-a até à Escola Primária de St. Anne e Lara foi conduzida ao gabinete da directora.

- Esta é Lara Cameron.

A directora, Mrs. Cunning, era uma viúva de meia-idade, de cabelos grisalhos, que tinha ela própria três filhos. Analisou a rapariguinha pobremente vestida que tinha diante dela.

- Lara. É um nome muito bonito - disse, sorrindo. - Quantos       

anos tens, minha querida?

- Seis. - Esforçava-se desesperadamente por conter as lágrimas.     

A criança está aterrorizada, pensou Mrs. Cunning.

- Bom, estamos muito contentes por teres vindo para cá, Lara.

Vais divertir-te bastante e vais aprender muitas coisas.      

- Mas eu não posso ficar - disse ela de um fôlego.      

E porquê?

- Não?

- O meu papá sente muito a minha falta. - Estava ferozmente decidida a não chorar.    

- Mas tu só ficas aqui algumas horas por dia.      

Lara deixou que a levassem a uma sala de aula cheia de crianças e indicaram-lhe um lugar ao fundo da sala.     

Miss Terkel, a professora, estava ocupada a escrever letras no quadro.

- A" de Ana. - dizia. - B, de barco. Alguém sabe uma palavra com C"?

Uma mãozita pequena ergueu-se no ar.

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- E com d?

- Dado.

- E com E?

- Escola.

- Excelente. E alguém se lembra de uma palavra que seja começada com F?

Lara ergueu a voz.

- Foda-se.

Lara era a mais nova da aula, mas Miss Terkel achava-a em muitos aspectos a mais velha. Havia na criança uma maturidade inquietante.

- Ela é um adulto em ponto pequeno, à espera de crescer - disse a professora a Mrs. Cunning.

No primeiro dia, ao almoço, as outras crianças puxaram das suas pequenas lancheiras coloridas e tiraram de lá maçãs, bolos e sanduíches embrulhadas em papel de celofane.

Ninguém pensara em preparar o almoço para Lara.

- Onde está o teu almoço, Lara? - perguntou Miss Terkel.

-Não tenho fom. -respondeu obstinada. - Comi muito ao pequeno-almoço.

A maior parte das rapariguinhas na escola andavam bem vestidas, com saias e blusas limpas. Lara já não cabia nos seus vestidos desbotados nem nas blusas puídas. Tinha ido ter com o pai.

- Preciso de roupa para a escola - disse Lara.

- Ah, sim? Pois bem, eu não me posso fazer em dinheiro. Vai ao Exército de Salvação.

- Isso é pedir esmola, pagá.

E o pai dera-lhe uma bofetada com força.

As crianças na escola sabiam jogos de que Lara nunca ouvira falar. As outras rapariguitas tinham brinquedos e bonecas e algumas não se importavam de lhos emprestar, mas ela tinha a consciência dolorosa de que nada lhe pertencia. E havia mais. Nos anos que se seguiram, Lara apercebeu-se da existência de um mundo diferente um mundo em que as crianças tinham mães e pais que lhes davam presentes e festas de aniversário, que as amavam, abraçavam e beijavam. E pela primeira vez Lara começou a compreender tudo o que lhe era negado na vida. Isso só a tornou ainda mais solitária.

A pensão era uma escola diferente. Era um microcosmos internacional. Lara aprendeu a reconhecer de onde vinham os hóspedes através dos nomes. Mac era escocês. Hodder e Pyke eram da Terra Nova. Chiasson e Aucoin de França. Dudash e Kosick da Polónia. Os hóspedes eram madeireiros, pescadores, mineiros e negociantes. Reuniam-se de manhã na grande sala de jantar para o pequeno-almoço e ao fim da tarde para ojantar, e a conversa deles era fascinante para Lara. Cada um dos grupos parecia ter a sua própria linguagem misteriosa.

Havia centenas de madeireiros em Nova Scotia, espalhados por toda a península. Os madeireiros da pensão cheiravam a serradura e a casca queimada e falavam de coisas misteriosas como machados, enxós e plainas.

- Este ano devemos arranjar uns bons pés de tábua - anunciou um deles ao jantar.

- Mas para que é que uma pessoa há-de querer ter pés de tábua? - perguntou Lara.

Largaram todos a rir.

- Ó pequena, estamos a falar de pés, comprimento das tábuas de madeira. Quando cresceres e te quiseres casar, vais precisar de uns bons pés de tábua para construir uma casa com cinco divisões.

- Nunca me hei-de casar - garantiu Lara.

Os pescadores eram diferentes. Voltavam para a pensão a cheirar a mar e falavam da nova experiência dos viveiros de ostras no Lago Bras d'Or, ao mesmo tempo que se vangloriavam entre si das suas pescarias de bacalhau, arenque, cavala e haddock.

Mas os hóspedes que mais fascinavam Lara eram os mineiros. Havia três mil e quinhentos mineiros em Cap Breton, a trabalhar nas minas de Lingan, Prince e Phalen. Lara adorava os nomes das minas. Havia a Jubileu, a Última Oportunidade, a Diamante Negro e a Dama Feliz.

Fascinava-a a discussão do trabalho do dia.

- Fazem ideia do que me contaram acerca do Mike?

- Eu sei. O pobre diabo ia por ali abaixo quando um vagão saltou dos carris e lhe esmagou a perna. O filho da puta do capataz disse que a culpa era do Mike por não se ter desviado a tempo e apagou-lhe a lanterna.

Lara ficou estupefacta.

- Apagou-lhe a lanterna? - perguntou. - Assim é que ele não vê nada.

O mineiro riu-se.

- Apagar a lanterna, quer dizer que o suspendeu.

Aos 15anos, Lara entrou para a Escola Secundária de St. Michael. Era magrizela e desajeitada, com as pernas compridas, o cabelo negro e liso, e uns olhos cinzentos e inteligentes que continuavam a ser demasiado grandes para o rosto pálido e magro. Ninguém percebia lá muito bem no que é que viria a dar. Estava à beira de se tornar uma mulherzinha e tudo nela estava em estado de metamorfose. Tanto podia vir a ser bastante feia como uma autêntica beleza.

Para James Cameron, a filha era feia.

- Farás melhor em casar com o primeiro homem que seja suficientemente tolo para dizer que quer casar contigo - disse-lhe.      Com esse teu ar não podes esperar grande coisa.

Lara ficou a olhar, sem dizer nada.

- E diz ao pobre diabo que não conte que eu te dê nenhum dote.

Mungo McSween entrou na sala e ficou parado à escuta, furioso.

- É tudo, rapariga, - disse James Cameron. - Volta lá para

a cozinha.

Lara saiu a correr.

- Por que é que você trata assim a sua filha? - perguntou

McSween.

James Cameron fitou-o com o olhar toldado.

- Não é da sua conta.

- Você está bêbado.

- Pois estou. E que mais é que uma pessoa pode estar? Se não é mulher é uísque, que mais é que há?

McSween foi até à cozinha onde Lara se encontrava a lavar a loiça. Tinha os olhos congestionados das lágrimas. McSween pôs-lhe o braço em volta dos ombros.

- Não ligues - disse. - Ele falou só por falar.

- Ele odeia-me.

- Não, não é verdade.

- Nunca me disse uma palavra carinhosa. Nem uma! Nunca!

McSween não foi capaz de dizer nada.

No Verão, os turistas afluíam a Glace Bay. Vinham nos seus carros luxuosos, bem vestidos, iam às compras em Castle Street 36

e jantavam no Cedar House e no Jasper's, visitavam a praia de Ingonish, Cape Smoky e Bird Islands. Eram seres superiores, vindos de um outro mundo, e Lara invejava-os e ansiava por fugir com eles quando se fossem embora no fim do Verão. Mas como?

Lara já ouvira diversas histórias acerca do Avô Maxwell.

- O velho patife tentou impedir-me de casar com a preciosidade da filha - queixava-se James Cameron sempre que algum dos hóspedes se dispunha a ouvi-lo. - Era podre de rico, mas julgam que era capaz de me dar alguma coisa? Ná. Mas mesmo assim eu tomei bem conta da sua Peggy.

E Lara punha-se a imaginar que um dia o avô havia de vir para a levar até às cidades esplendorosas acerca das quais já tinha lido: Londres, Roma, Paris. E hei-de ter fatos bonitos para vestir. Centenas de vestidos e sapatos novos.

Mas à medida que os meses e os anos passavam, sem que viessem quaisquer notícias do avô, Lara acabou por compreender que nunca iria conhecê-lo. Estava condenada a passar o resto da vida em Glace Bay.

 

Havia milhentas actividades para qualquer adolescente que crescesse em Glace Bay: havia jogos de futebol e de hóquei, ringues de patinagem e bowling e, no Verão, natação e pesca. O Carl's Drug Store era o ponto de encontro favorito para depois das aulas. Havia dois cinemas e, para dançar, os Jardins Venezianos.

Lara não tinha a possibilidade de usufruir de nenhuma dessas coisas. Levantava-se todos os dias às cinco da manhã para ajudar Bertha a preparar o pequeno-almoço para os hóspedes e a fazer as camas antes de sair para a escola. À tarde, voltava para casa a toda a pressa para começar a fazer ojantar. Ajudava Bertha a servi-lo e, depois do jantar, Lara levantava a mesa e lavava e secava a loiça.

A pensão servia alguns pratos escoceses muito apreciados: howtowdie e hairst bree, cabbieclaw e skirlie. Black Bun era também muito apreciado, uma mistura com diversas especiarias servida numa forma de massa feita com meio quilo de farinha.

A conversa dos escoceses durante o jantar fazia com que as Highlands da Escócia surgissem vivas no espírito de Lara. Os seus antepassados tinham vindo das Highlands e as histórias que ouvia iam-se transformando nas suas únicas raízes. Os hóspedes falavam do Great Glen onde havia o Loch Ness, Lochy e Linnhae e das ilhas escarpadas junto à costa.

Havia um velho piano na sala e por vezes à noite, depois dojantar, meia dúzia de hóspedes reuniam-se em volta dele e cantavam as canções da pátria: Annie LauriQ e Comin'Through the Rye, The Hills of Home e The Bonnie Banks O'Loch Lomort.

Uma vez por ano, havia um desfile na cidade e todos os escoceses de Glace Bay vestiam orgulhosamente os seus kilts ou tartans e marchavam pelas ruas, acompanhados pelo som roufenho das gaitas de foles.

- Por que é que os homens vestem saias? - perguntou Lara a Mungo McSween.

Ele franziu a testa.

- Não é uma saia, pequena. É um kilt. Os nossos antepassados é que o inventaram, há muito tempo. Nas Highlands, o tecido cobria o corpo de um homem, protegendo-o do frio agreste, mas deixava-lhe as pernas livres para ele poder correr pelo meio da urze e da turfa e fugir aos seus inimigos. E à noite, se estava ao ar livre, o pano, com todo o seu comprimento, servia-lhe ao mesmo tempo de cama e de tenda.

A nomenclatura escocesa era como poesia aos ouvidos de Lara. Havia Breadalbane, Glenfinnan e Kilbride, Kilminver e Kilmichael. Lara aprendeu que kil se referia a uma cela monacal nos tempos medievais. Se um nome começava por inuer ou aber, isso queria dizer que a povoação se encontrava na foz de um curso de água. Se começava com strath, ficava num vale. Bad queria dizer que a povoação era num bosque.

Todas as noites havia discussões acaloradas à mesa dojantar. Os escoceses discutiam a propósito de tudo. Os seus antepassados tinham pertencido a clãs nos quais tinham grande orgulho e eles continuavam a defender ferozmente a sua história.

-A Casa de Bruce só produziucobardes: Agachamse diante dos ingleses que nem cães bajuladores.

- Como de costume não sabes do que é que estás a falar. Foi o grande Bruce em pessoa que fez frente aos ingleses: Quem os bajulou foi a Casa de Stuart.

- Ah, tu és um pateta e o teu clã vem de uma linhagem completa de patetas.

E a discussão tornava-se mais acesa.

- Sabes de que é que a Escócia precisava? De mais chefes como Robert II. Esse é que foi um grande homem. Pai de vinte e umfilhos!

- Metade deles bastardos!

E assim se gerava outra discussão.

Lara nem podia acreditar que estivessem a discutir por causa de acontecimentos que se tinham dado havia mais de seiscentos anos.

Mungo McSween disse para Lara:

- Não te preocupes com isso, pequena. Um escocês é sagaz e começa uma discussão numa casa vazia.

Foi um poema de Sir Walter Scott que inflamou a imaginação de Lara:

Oh, o jovem Lochinuar chegou vindo do oeste:

Por toda a vasta fronteira o seu corcel foi o melhor; E arma não tinha outra além da sua boa espada:

Cavalgava sozinho, sem armas e sem companheiros. Tão elegante no amor e tão destemido na guerra.

Nunca houve cavaleiro como ojouem Lochinvar.

E o poema glorioso passava a descrever como Lochinvar tinha arriscado a vida para salvar a sua amada, que estava a ser obrigada a casar com outro homem.

Tão ousado no amor, tão destemido na guerra,

Já ouvistes falar de galanteria como a dojovem Lochinvar?

Um dia, pensava Lara, um galante Lochinvar há-de vir salvar-me.

Uma vez, quando Lara estava a trabalhar na cozinha, deparou-se- lhe um anúncio numa revista que lhe cortou a respiração. Representava um homem alto e bem parecido, louro, elegantemente vestido de casaca e gravata branca. Tinha olhos azuis e um sorriso carinhoso e tudo nele fazia lembrar um príncipe. O meu Lochinvar há-de ser assim, pensou Lara. Ele está algures, à minha procura. Há-de vir e salvar-me de tudo isto. Eu vou estar aqui a lavar a loiça e ele chega por detrás de mim, põe-me os braços à volta do corpo e murmura: Posso ajudar-te? Eu volto-me e olho-o nos olhos. E de pois digo: Sabes limpar a loiça?

A voz de Bertha fez-se ouvir:

- Se eu sei o quê?

Lara rodou sobre si mesma. Bertha estava atrás dela. Lara não se apercebera de que estava a falar em voz alta.

- Nada.

E Lara corou.

Para Lara, as histórias mais fascinantes da hora dojantar eram as que giravam à volta das Highlands. Já as ouvira vezes sem conta, mas nunca parecia fartar-se.

- Conte outra vez - pedia. E Mungo Mc Sween tinha todo o gosto em lhe fazer a vontade.

- Bom, tudo começou no ano de 1792 e durou mais de sessenta anos. A princípio chamaram-lhe Bliadhna nan Co- arach. O Ano dos Carneiros. Os proprietários das Highlands tinham decidido que as terras seriam mais rendosas com carneiros que arrendadas a camponeses, por isso levaram rebanhos de carneiros para as Highlands e descobriram que eles conseguiam sobreviver aos invernos gelados.

A palavra de ordem era Mo thruaighe ort a thir, tha'n caoraich

mhor a' teachd! Ai de ti, ó terra, vêm aí os carneiros!

Primeiro havia cem carneiros, depois mil, depois dez mil. Uma autêntica invasão.

Os senhores da terra começaram a ver uma riqueza que ultrapassava todos os seus sonhos, mas primeiro tinham de se desembaraçar dos rendeiros, que semeavam minúsculas parcelas de terreno.

Deus sabe que eles tinham bem pouca coisa. Viviam em pequenas casas de pedra sem chaminés nemjanelas. Mas os senhores obrigaram-nos a deixá-las.

A rapariga abria os olhos de espanto.

- Como?

- Os regimentos do governo receberam ordens para atacar as aldeias e expulsar os rendeiros. Os soldados chegavam a uma pequena aldeia e davam às pessoas seis horas para retirarem o gado e os haveres e saírem dali. Tinham de abandonar as colheitas. Depois os soldados queimavam-lhes completamente os casebres. Mais de duzentos

e cinquenta mil homens, mulheres e crianças foram obrigados a deixar tudo e enxotados para a orla marítima.

- Mas como é que podiam enxotá-los das suas próprias terras?

- Ah, a questão é qe as terras não lhes pertenciam. Os senhores deixavam-nos usar uma parcela, mas a terra nunca era deles.   

Pagavam em géneros ou em trabalho para poderem cultivá-la e tirar dela alguma coisa para comer e para alimentar algum gado.     

- E que é que acontecia se as pessoas não se fossem embora? - perguntava Lara, sufocada.      

- Os mais velhos que não se iam embora a tempo eram queimados com as casas. O governo era impiedoso. Ah, foram tempos terríveis.    

As pessoas não tinham que comer. Veio a cólera e as doenças alastravam como o fogo.  

- Que horror - disse Lara.      

- É verdade, pequena. A nossa gente vivia de pão e cereais, quando os conseguiam arranjar. Mas há uma coisa que o governo nunca conseguiu tirar aos habitantes das Highlands... o seu orgulho.   

Lutaram o melhor que puderam. Nos dias a seguir aos fogos, os pobres desalojados deixavam-se ficar no vale, tentando salvar o que podiam no meio dos escombros. Punham oleados em cima da cabeça para se protegerem das chuvas da noite. O meu quadrisavô e a minha quadrisavó estiveram lá e sofreram tudo isso. É parte da nossa história e foi gravada a fogo nas nossas almas.

Lara imaginava os milhares de pessoas desesperadas e escorraçadas, roubadas de tudo o que possuíam, aturdidas perante o que lhes estava a acontecer. Ouvia-lhes os choros e lamentações e os gritos das crianças aterrorizadas.

- Que é que aconteceu finalmente a essas pessoas? - perguntou Lara.

- Partiram para outras terras em navios que eram armadilhas mortais. Os passageiros, apinhados, morriam de febre ou desenteria. Por vezes os navios defrontavam-se com tempestades que os atrasavam semanas e os mantimentos acabavam-se. Só os mais fortes continuavam vivos quando os navios atracavam no Canadá. Mas uma vez que conseguiam desembarcar aqui tinham aquilo que nunca lhes fora dado antes.

- A sua própria terra.

- É verdade, pequena.

Um dia, pensava Lara com fúria, hei-de ter a minha própria terra e ninguém, ninguém, ma vai tirar.

Numa noite dos princípios de Julho, James Cameron estava na cama com uma das prostitutas do estabelecimento de Madame Kirstie quando sofreu um ataque cardíaco. Estava completamente embriagado e quando de repente caiu para o lado a companheira partiu do princípio de que ele tinha simplesmente adormecido.

- Ah não, isso não! Tenho outros clientes à minha espera. Acorda, James! Acorda!

Ele respirava com dificuldade, as mãos crispadas de encontro ao peito.

- Pelo amor de Deus - gemeu - chama o médico. Foi levado numa ambulância para o pequeno hospital de Quarry Street. O Dr. Duncan mandou chamar Lara. Ela entrou no hospital com o coração a bater. Duncan estava à espera dela.

- Que foi que aconteceu? - perguntou precipitadamente. - O meu pai está morto?

- Não, Lara, mas receio que tenha tido um ataque cardíaco.

Ela ficou como que petrificada.

- E ele. ele salva-se?

- Não sei. Estamos a fazer tudo o que nos é possível.

- Posso vê-lo?

- Seria melhor vires cá de manhã, minha filha.

Ela voltou para casa, entorpecida pelo medo. Por favor, meu

Deus, não deixes que ele morra. Eu não tenho mais ninguém.

Quando Lara chegou à pensão, Bertha estava à espera dela.

- Que é que aconteceu?

Lara contou-lhe.

- Oh, Céus! - exclamou Bertha. - E hoje é sexta-feira.

- O quê?

- Sexta-feira. O dia de ir receber as rendas. Ou eu me engano

muito ou Sean McAllister vai usar isso como pretexto para nos pôr a todos na rua.

Já pelo menos uma dúzia de vezes, quando James Cameron estava demasiado bêbado para conseguir fazê-lo, ele tinha mandado Lara receber as rendas das outras pensões de MacAllister. Lara

tinha dado o dinheiro ao pai e no dia seguinte ele levava-o ao banqueiro.

- Que é que vamos fazer? - gemeu Bertha.

E de repente Lara percebeu o que tinha de ser feito.

- Não se preocupe - disse. - Eu trato disso.

Nessa noite, a meio do jantar, Lara disse:

- Meus senhores, querem ouvir-me, por favor? - Todas as conversas pararam e os homens puseram-se a olhar para ela. - O meu pai teve... teve uma ligeira tontura. Está no hospital. Querem que fique algum tempo em observação. Portanto, enquanto ele não voltar, sou eu que recebo as rendas. Depois do jantar, espero-os na sala.     

- E ele vai ficar bom? - perguntou um dos hóspedes.  

- Ah sim - replicou Lara, com um sorriso forçado. - Não é nada de grave.

Depois do jantar os homens dirigiram-se à sala e entregaram a Lara o seu pagamento semanal.

- Espero que o teu pai fique bom depressa, minha filha.

- Se eu puder fazer alguma coisa é só dizeres.

- És uma boa rapariguinha paraestares a fazer tudo isto pelo teu pai...

- E as outras pensões? - perguntou Bertha. - Ele tem de receber as rendas em mais quatro.

- Eu sei - replicou Lara. - Se me tratar da loiça, eu vou receber as rendas.

Bertha olhou-a duvidosa.

- Desejo-te boa sorte.

Foi mais fácil do que Lara esperava. A maior parte dos hóspedes foram simpáticos e mostraram-se satisfeitos por poderem ajudar a rapariga.

Cedo, na manhã seguinte, Lara pegou nos sobrescritos com o dinheiro e foi procurar MacAllister. O banqueiro estava sentado no seu gabinete quando Lara entrou.

- A minha secretária disse-me que querias falar comigo.

- Sim, senhor.

MacAllister pôs-se a estudar a rapariguinha magrizela e mal arranjada que tinha diante dele.

- Tu és a filha do James Cameron, não és?

- Sim senhor.

- Sara.

- Lara.

- Lamento o que aconteceu ao teu pai - disse MacAllister. A voz dele era fria e impessoal. - Vou ter de me organizar de outra forma, agora que o teu pai está demasiado doente para continuar com as suas funções. Vou...

-Ah, não, por favor! - disse Lara rapidamente. - Ele pediu-me que tratasse de tudo por ele.

- Tu?

- Sim senhor.

- Receio bem que não.

Lara pôs os sobrescritos em cima da mesa.

- Aqui tem as rendas desta semana.

MacAllister olhou-a, surpreendido.

- Todas?

Ela fez que sim com a cabeça.

- Tu é que as foste receber?

- Sim senhor. E vou fazer isso todas as semanas até o meu pai melhorar.

- Estou a ver.

MacAllister abriu os sobrescritos e contou o dinheiro cuidadosamente. Lara ficou a vê-lo lançar a importância num grande livro verde.

Há algum tempo que MacAllister vinha a pensar em substituir James Cameron por causa do problema da embriaguês e da irregularidade de comportamento e agora parecia-lhe ser a altura indicada para se desembaraçar da família.

Tinha a certeza de que a rapariguita que estava ali diante dele não seria capaz de se encarregar das tarefas do pai, mas ao mesmo tempo já sabia qual seria a reacção da cidade se pusesse James Cameron e a filha fora da pensão, no meio da rua. Tomou uma decisão.

- Vou experimentar durante um mês - disse. - Nessa altura veremos como estão as coisas.

- Obrigada, Sr. MacAllister. Muito obrigada.

- Espera. - Entregou a Lara vinte e cinco dólares. - Isto é para ti.

Lara segurou o dinheiro na mão e sentiu como que um gosto de li berdade. Era a primeira vez que lhe pagavam por aquilo que fazia.

Do banco, Lara foi ao hospital. O Dr. Duncan vinha a sair do quarto do pai. Lara sentiu uma súbita sensação de pânico.

- Ele não está.

- Não. não. ele vai ficar bom, Lara. - Depois hesitou. Quando eu digo bom, quero dizer que não vai morrer. pelo menos por enquanto, mas vai ter de ficar algumas semanas de cama. E vai precisar de alguém que tome conta dele.

- Eu tomo conta dele - replicou Lara.

O médico ficou a olhá-la e depois disse, com suavidade:

- O teu pai não se dá conta disso, minha querida, mas é um homem com muita sorte.

- Posso ir vê-lo agora?

- Podes.

Lara entrou no quarto do pai e ficou parada, a olhar para ele. James Cameron estava estendido na cama, pálido e com ar indefeso e, de repente, pareceu-lhe muito velho. Lara sentiu-se envolvida numa onda de ternura. Ia finalmente conseguir fazer alguma coisa pelo pai, alguma coisa que faria com que ele a apreciasse e a amasse. Aproximou-se da cama:

- Paizinho.

Ele levantou os olhos e balbuciou:

- Que raio estás tu a fazer aqui? Tens trabalho lá na pensão.

Lara ficou como que petrificada.

- Eu. eu sei, paizinho. Só queria dizer-lhe que falei com o Sr. MacAllister. Disse-lhe que me encarregava de receber as rendas até o pai melhorar e.

- Tu receberes as rendas? Não me faças rir. - Foi sacudido por um espasmo repentino. Quando falou de novo, a voz dele estava fraca. - É o Destino -gemeu. - Vou ser posto no olho da rua.

Nem por um momento pensou no que lhe aconteceria a ela. Lara deixou-se ficar um bocado a olhá-lo. Depois voltou-se e saiu.

James Cameron foi levado para casa três dias depois e meteram- no directamente na cama.

- Durante pelo menos duas semanas não se pode levantar - disse o Dr. Duncan. - Dentro de um ou dois dias passo por cá para o ver.

- Eu não posso ficar na cama - protestou James Cameron. Sou um homem muito ocupado. Tenho muito que fazer.

O médico olhou para ele e disse calmamente:

- A escolha é sua. Ou se deixa ficar na cama e vive ou se levanta e morre.

A princípio, os hóspedes de MacAllister ficaram encantados quandoviram uma rapariguinha inocente apresentar-se para receber as rendas. Mas passada a primeira novidade começaram a arranjar milhentas desculpas:

- Esta semana estive doente e tive de pagar o médico e os remédios.

- O meu filho manda-me dinheiro todas as semanas, mas houve um atraso no correio.

- Tive de gastar dinheiro em equipamento.

- Para a semana de certeza que tenho o dinheiro para lhe pagar.

Mas a rapariguinha estava a lutar pela sua própria sobrevivência. Escutou tudo delicadamente e depois disse:

- Lamento muito, mas o Sr. MacAllister disse-me que o dinheiro tem de ser pago hoje e que se não o tiverem terão de desocupar imediatamente os quartos.

E de alguma forma todos eles apareceram logo com o dinheiro. Lara era inflexível.

- Era mais fácil lidar com o seu pai - resmungou um dos hóspedes. - Ele não se importava de esperar uns dias.

Mas ao fim e ao cabo não podiam deixar de admirar a coragem da rapariga.

Se Lara alguma vez tinha pensado que a doença do pai os aproximaria, estava redondamente enganada. Lara tentava adivinhar-lhe todas as necessidades, mas quanto mais solícita se mostrava, pior era o comportamento dele.

Trazia-lhe flores frescas todos os dias e pequenos mimos.

- Pelo amor de Deus! - gritou-lhe. - Deixa de andar para aí às voltas. Não tens trabalho para fazer?

- Eu só pensei que gostasse.

- Ah! - exclamou e voltou a cara para a parede.

Odeio-o, pensou Lara. Odeio-o.

No final do mês, quando Lara entrou no gabinete de Sean MacAllister com os sobrescritos recheados com o dinheiro das rendas, ele, depois de contar o dinheiro, voltou-se para a rapariga e disse:

- Tenho de admitir que estou muito surpreendido contigo, pequena. Estás a sair-te bem melhor que o teu pai.

Aquelas palavras deixaram-na encantada.

- Muito obrigada.

- A verdade é que este é o primeiro mês em que todos pagaram a tempo e horas e por inteiro.

- Quer dizer que o meu pai e eu podemos continuar lá na pensão? - perguntou Lara, ansiosa.

MacAllister ficou uns momentos a observá-la.

- Acho que sim. Tu deves gostar muito do teu pai.

- Então até sábado, Sr. MacAllister.

 

Aos 17 anos de idade, a rapariguinha magra e esgrouviada tinha-se transformado numa mulher. Lara tinha estampada no rosto a marca da sua ascendência escocesa: a pele luminosa, as sobrancelhas finas e arqueadas, os olhos cinzentos e sombrios, o cabelo negro como a tempestade. E além disso havia como que uma aura de melancolia que parecia pairar sobre ela, a ferida incurável da história trágica de um povo. Era difícil desviar os olhos do rosto de Lara Cameron.

A maior parte dos hóspedes da pensão não tinham qualquer companhia feminina, a não ser aquela que compravam na casa de Madame Kirstie ou em qualquer outra casa de prostituição e ajovem e atraente Lara constituía um alvo natural para eles. Às vezes acontecia um dos homens barrar-lhe a passagem na cozinha ou num dos quartos, quando ela andava a fazer a limpeza, e dizer:

- Por que é que não és mais simpática comigo, Lara? Eu podia fazer muito por ti.

Ou então:

- Tu não tens namorado, pois não? Deixa-me mostrar-te o que é realmente um homem.

Ou:

- Não gostavas de ir para Kansas City? Eu vou-me embora para a semana e tinha muito gosto em te levar comigo.

Cada vez que algum dos hóspedes tentava convencer Lara a ir para a cama com ele, a rapariga entrava no quartinho onde o pai se encontrava imobilizado pela doença e dizia:

- O senhor estava enganado, pai. Todos os homens me querem.

- E saía, deixando-o a olhar para ela.

James Cameron morreu de manhã cedo num dia de Primavera e Lara levou-o a enterrar no Cemitério de Greenwood, na área de Passiondale. A única pessoa presente além dela era Bertha. Não houve lágrimas.

Um novo hóspede deu entrada na pensão, um americano de nome Bill Rogers. Era um homem na casa dos 70, careca e gordo, um indivíduo afável que gostava de conversar. Depois dojantar, costumava ficar sentado a tagarelar com Lara.

- Tu és demasiado bonita para estar enfiada neste fim de mundo - comentou. - Devias ir para Chicago ou Nova Iorque. Aí sim.

- Hei-de ir, um dia - disse Lara.

- Tens a vida toda à tua frente. Já decidiste o que é que queres fazer com ela?

- Quero ter coisas.

- Ah, roupas bonitas e.

- Não. Terra. Quero ter terras minhas. O meu pai nunca teve nada. Toda a vida foi obrigado a viver dos favores dos outros.

O rosto de Bill Rogers iluminou-se.

- As propriedades e a construção eram o meu negócio.

- De verdade?

- Fiz prédios por todo o oeste central. Cheguei mesmo a ter uma cadeia de hotéis. - O tom da voz dele era melancólico.

- E que foi que aconteceu?

Encolheu os ombros.

- Tornei-me demasiado ambicioso. Perdi tudo. Mas não há dúvida de que enquanto durou foi bom.

Depois falaram do negócio de propriedades durante quase toda a noite.

- A primeira regra nesse jogo - disse Rogers - é o DO. Nunca te podes esquecer disso.

-QueéoDO?

- Dinheiro dos Outros. O que faz do negócio imobiliário um grande negócio é que o governo dá facilidades em termos de juro e depreciação enquanto que o património está sempre a ser valorizado. Os três factores mais importantes a considerar são a localização, a localização e ainda a localização. Um bonito edifício no alto de uma montanha é perda de tempo. Um edifício feio no centro da cidade vale uma fortuna.

Rogers explicou a Lara como se trabalhava com hipotecas, financiamentos e empréstimos bancários. Lara ouvia, aprendia e retinha tudo o que ouvia. Era como uma esponja, sorvendo avidamente os mínimos detalhes.

A coisa mais significativa que Rogers lhe disse foi:

- Sabes uma coisa, Glace Bay tem uma enorme falta de casas. É uma oportunidade óptima para qualquer pessoa. Se eu fosse vinte anos mais novo.

A partir desse momento, Lara começou a ver Glace Bay com outros olhos, imaginando prédios de escritórios e de habitação nos terrenos baldios. Era excitante, mas ao mesmo tempo deixava-a frustrada. Os sonhos estavam ali, mas ela não tinha dinheiro para os concretizar.

No dia em que Bill Rogers se foi embora da cidade, disse-lhe:

- Não te esqueças, o dinheiro dos outros. Boa sorte, pequena.

Uma semana depois, Charles Cohn instalou-se na pensão. Era um homem minúsculo, na casa dos 60, com um ar cuidado e bem vestido. Sentava-se à mesa dojantar com os outros hóspedes, mas falava pouco. Parecia estar fechado no seu próprio mundo.

Ficava a olhar para Lara que andava de um lado para o outro na pensão, fazendo o seu trabalho sem nunca se queixar.

- Quanto tempo pensa ficar connosco? - perguntou Lara a Charles Cohn.

- Não sei bem. Tanto pode ser uma semana como um ou dois meses.

Cohn era um enigma para Lara. Não tinha nada a ver com o resto dos hóspedes. Tentou imaginar em que é que se ocupava. Não havia dúvida de que não era mineiro nem pescador e também não tinha o ar de um negociante. Parecia superior aos outros hóspedes, mais culto. Disse a Lara que tinha tentado arranjar lugar no único hotel da cidade mas que estava cheio. Lara notou que ele não comia pratica mente nada às refeições.

- Se tivesse um pouco de fruta - dizia, embaraçado -, ou de legumes.

- Está a fazer dieta? - perguntou Lara.

- De certa forma. Eu só como kosher e parece-me que isso é coisa que não existe em Glace Bay.

No dia seguinte, quando Charles Cohn se sentou à mesa do jantar, puseram diante dele uma travessa com costeletas de cordeiro. Cohn levantou os olhos para Lara, surpreendido.

- Desculpe. Eu não posso comer isto - disse. - Julgava que lhe tinha explicado.

Lara sorriu.

- Explicou. Isto é kosher.

-Oquê?

Kosher: o que é preparado segundo as normas tradicionais judaicas. (N. do T.)

 

- Descobri um mercado de carne kosher em Sydney. o shochet é que me vendeu isto. Coma à vontade. A renda que está a pagar inclui duas refeições por dia. Amanhã vai comer bife.

A partir daí, sempre que Lara tinha uns momentos livres, Cohn fazia questão de falar com ela, de lhe ensinar coisas. Estava impressionado com a inteligência rápida da rapariga, o seu espírito de independência.

Um dia, Charles Cohn confiou a Lara a razão que o levara a Glace Bay.

- Sou um dos directores da Continental Supplies. - Era uma cadeia nacional muito conhecida. - Estou aqui para estudar a localização da nossa nova loja.

- Isso é formidável - disse Lara. Eu sabia que ele estava em Glace Bay por uma razão importante. - Vão construir?

-Não. Havemos de arranjar alguém que o faça. Nós só alugamos. Às três horas da manhã, Lara acordou de um sono profundo e sentou-se na cama com o coração a bater desordenadamente. Teria sido sonho? O espírito dela corria veloz. Estava demasiadamente excitada para voltar a adormecer.

Quando Charles Cohn saiu do quarto para ir tomar o pequeno-almoço, Lara estava à espera dele.

- Sr. Cohn. eu sei de um sítio óptimo - disse precipitadamente. Ele ficou a olhá-la, espantado.

- O quê?

- Para aquilo que anda à procura.

- Ah? E onde é?

Lara não respondeu à pergunta.

- Diga-me uma coisa. Se eu fosse dona de um sítio que lhe agradasse e se construísse lá um edifício, estaria disposto a alugar-mo por cinco anos?

Ele sacudiu a cabeça.

- É uma questão um bocado hipotética, não acha?

- Mas alugava? - insistiu Lara.

- Lara, que é que tu sabes de construção?

- Eu não ia construir - respondeu ela. - Contratava um arquitecto e uma boa empresa de construção para isso.

Charles Cohn observava-a com atenção.

- Estou a ver. E onde é que fica esse terreno maravilhoso?

- Eu mostro-lho - disse Lara. -Acredite no que eu lhe digo, vai adorá-lo. É perfeito.

Depois do pequeno-almoço, Lara levou Charles Cohn até à cidade. E á esquina da rua Principal e da rua do Comércio, no centro de Glace Bay, havia um espaço quadrado vazio. Era um sítio que Cohn tinha examinado dois dias antes.

- É este o sítio que eu tinha na ideia - disse Lara. Cohn fingiu que estudava o local.

- Tu tens faro. É uma boa localização.

Já se tinha informado discretamente e ficara a saber que o terreno era propriedade de um banqueiro, Sean MacAllister. A missão de Cohn era descobrir um sítio, arranjar alguém que construísse o edifício e depois tratar do contrato de aluguer. À firma não interessava quem fazia a construção, desde que ela correspondesse àquilo que desejavam.

Cohn observava Lara. É demasiado jovem, pensava. É uma ideia louca. E no entanto. Descobri um mercado de carne kosher em Sydney. Amanhã vai comer bife. A rapariga tinha talento.

Entretanto Lara dizia, cheia de entusiasmo:

- Se eu conseguir comprar o terreno e fazer a construção de acordo com as suas especificações, faz-me um contrato de aluguer por cinco anos?

Cohn fez uma pausa e depois acrescentou, falando devagar:

- Não, Lara. Teria de ser um contrato por dez anos.

Nessa mesma tarde, Lara foi procurar Sean MacAllister. Ele levantou os olhos surpreendido, ao vê-la entrar no gabinete.

- Vens adiantada, Lara. Hoje ainda é quarta-feira.

-Queria pedir-lhe um favor, Sr. MacAllister.

Sean MacAllister continuava sentado a observá-la. Ela transformou-se numa bonita rapariga. Uma rapariga, não, uma mulher. Via-lhe a curva dos seios de encontro à blusa de algodão.

- Senta-te, minha querida. Que é que posso fazer por ti? Lara estava demasiado excitada para conseguir sentar-se.

- Quero fazer um empréstimo.

Ele foi apanhado de surpresa.

- O quê?

- Gostava de pedir algum dinheiro emprestado.

MacAllister teve um sorriso indulgente.

- Não vejo por que não. Se precisas de comprar um vestido ou outra coisa assim, não me importo de adiantar.

- Preciso de duzentos mil dólares.

O sorriso de MacAllister desvaneceu-se.

- Estás a brincar?

- Não, Sr. MacAllister. - Lara inclinou-se para a frente e acrescentou, muito séria: - Quero comprar um terreno para construir um edifício. Tenho um inquilino importante que está disposto a fazer um contrato de aluguer por dez anos. Isso garante o preço do terreno e da construção.

MacAllister estudava-a com a testa franzida.

- Já discutiste a questão com o proprietário do terreno?

- Estou a fazê-lo neste momento - disse Lara.

Foram precisos alguns instantes para ele compreender.

- Espera aí. Quer isso dizer que estás a falar de um terreno que me pertence a mim?

- Sim. É o lote que fica à esquina da rua Principal e da Rua do Comércio.

- E tu vieste aqui para me pedir dinheiro a mim para comprar o meu terreno?

- Aquele terreno não vale mais de vinte mil dólares. Já me informei. E eu ofereço-lhe trinta. Já está a ganhar os dez mil dólares do terreno mais o juro dos duzentos mil dólares que me vai emprestar para a construção.

MacAllister sacudiu a cabeça.

- Estás a pedir-me que te empreste duzentos mil dólares sem qualquer garantia. Está fora de questão.

Lara inclinou-se para a frente.

- Mas há uma garantia. O senhor terá a hipoteca sobre o edifício e o terreno. Não tem nada a perder.

MacAllister deixou-se ficar sentado a estudá-la, ao mesmo tempo que analisava a proposta em pensamento. Depois sorriu.

- Sabes uma coisa - disse -, tu és de um descaramento inaudito. Mas eu nunca seria capaz de explicar um empréstimo desses ao meu conselho de administração.

- O senhor não tem nenhum conselho de administração - retorquiu Lara.

O sorriso tomou uma ponta de ironia.

- Isso é verdade.

Lara inclinou-se para a frente e ele viu-lhe os seios a tocarem a orla da secretária.

- Se disser que sim, Sr. MacAllister, nunca se há-de arrepender. Prometo.

Ele não conseguia desviar o olhar dos seios da rapariga.

- Tu não és nada parecida com o teu pai, pois não?

- Não senhor. - Nem um bocadinho", pensou ferozmente.

- Suponhamos, apenas como uma hipótese - disse MacAllister, cauteloso -, que eu me interessava. Quem é esse tal potencial locatário?

- O nome dele é Charles Cohn. É director da Continental Supplies.

- A cadeia de armazéns?

- Sim.

MacAllister ficou de repente muito interessado.

Lara continuou.

- Eles querem ter aqui um grande armazém para fornecer equipamento aos mineiros e aos madeireiros.

Para MacAllister aquilo tinha o cheiro do êxito imediato.

- Onde foi que encontraste esse homem? - perguntou com ar natural.

- Está hospedado lá na pensão.

- Estou a ver. Deixa-me pensar no caso, Lara. Amanhã voltamos a falar.

Lara quase tremia com a excitação.

- Obrigada, Sr. MacAllister. Vai ver que não se há-de arrepender. Ele sorriu.

- Também me parece.

Nessa tarde, Sean MacAllister foi até à pensão para conhecer Charles Cohn.

- Passei por aqui para lhe dar as boas-vindas a Glace Bay - disse MacAllister. - Sou o dono do banco local e ouvi dizer que o senhor estava cá. Mas na verdade não devia estar na minha pensão; devia estar mas era no meu hotel. É muito mais confortável.

- O hotel estava cheio - explicou o Sr. Cohn.

- Isso foi por não sabermos quem o senhor era.

O Sr. Cohn repetiu com ar prazenteiro.

- Quem eu sou?

Sean MacAllister sorriu.

- Não vale a pena estarmos a fingir, Sr. Cohn. Tudo se vem a saber. Segundo me contaram o senhor está interessado em alugar um edifício que se venha a construir numa propriedade minha.

- E que propriedade é essa?

- O lote que faz esquina com a rua Principal e a Comercial. É um local estupendo, não é verdade? Não creio que vamos ter qualquer dificuldade em chegar a acordo.

- Eu já fiz um acordo com uma pessoa.

Sean MacAllister riu-se.

- Lara? É uma bonita rapariga, não é? Por que é que o senhor não vem comigo até ao banco e lá fazemos o contrato?

-Acho que não está a entender, Sr. MacAllister. Eu disse que já fiz um acordo.

- E eu acho que o senhor é que não está a entender, Sr. Cohn. Lara não é dona desse terreno. O dono sou eu.

- Ela está a tentar comprar-lho, não é verdade?

- Sim. Mas eu não sou obrigado a vender-lho.

- E eu não sou obrigado a decidir-me por esse lote. Já vi mais três lotes que me podem servir perfeitamente. Obrigado pela sua visita.

Sean MacAllister ficou a olhá-lo longamente.

- Quer dizer que está a falar sério?

- Muito a sério. Nunca entro num acordo que não seja kosher e nunca falto à minha palavra.

- Mas Lara não sabe nada de construção. Ela.

- Ela tenciona encontrar pessoas que saibam. Evidentemente a aprovação final cabe-nos a nós.

O banqueiro ficou pensativo.

- É verdade que a Continental Supplies está disposta a assinar um contrato de arrendamento por dez anos?

- Exactamente.

- Bom, nesse caso, eu. vou pensar no caso.

Quando Lara chegou à pensão, Charles Cohn contou-lhe a conversa que tivera com o banqueiro.

Lara mostrou-se decepcionada.

- Quer dizer que o Sr. MacAllister veio por detrás de mim e.

- Não te preocupes - tranquilizou-a Cohn -, ele faz o acordo contigo.

- Acha que sim?

- MacAllister é banqueiro. O interesse dele é o lucro.

- E o senhor? Por que é que está a fazer tudo isto por mim? perguntou Lara.

Charles Cohnjá fizera a mesma pergunta a si próprio. Por causa dessa tua juventude torturante, pensou. Porque não tens nada a ver com esta cidade. E porque o meu desejo seria ter uma filha como tu.

Mas não repetiu nada daquilo em voz alta.

- Eu não tenho nada a perder, Lara. Descobri outros lotes que seriam igualmente bons. Se conseguires comprar aquele que me mostraste, terei muito gosto em te ajudar. Para a minha empresa não interessa com quem eu faço o acordo. Se arranjar o empréstimo e eu aprovar o plano de construção, fazemos o negócio.

Uma onda de felicidade invadiu Lara.

- Eu. eu não sei como lhe hei-de agradecer, Sr. Cohn. Vou falar com o Sr. MacAllister e.

- Se eu fosse a ti não ia - aconselhou Cohn. - Deixa que seja ele a vir ter contigo.

Lara mostrou-se preocupada.

- E se ele não vier?

Cohn sorriu.

- Vem sim.

Apresentou-lhe um contrato impresso.

-Aqui está o contrato de aluguer por dez anos de que já falámos. Compreende que está sujeito a que sejam satisfeitos todos os nossos requisitos relativamente à construção. - Entregou-lhe depois uma série de esboços. - Estas são as nossas especificações.

Lara passou a noite a estudar os desenhos e as instruções. Na manhã seguinte, MacAllister telefonou a Lara.

- Podes vir falar comigo, Lara? O coração dela bateu com força.

- Estou aí dentro de um quarto de hora.

MacAllister estava à espera dela.

- Tenho estado a pensar na nossa conversa - começou. Preciso de um acordo escrito por parte do Sr. Cohn relativamente ao arrendamento por dez anos.

- Tenho-o comigo - disse Lara. Abriu a carteira e puxou do contrato.

Sean MacAllister examinou-o cuidadosamente.

- Parece que está em ordem.

- Então é negócio feito? - perguntou Lara, contendo a respiração. MacAllister sacudiu a cabeça.

- Não.

- Mas eu julguei.

Os dedos dele batiam na mesa, irrequietos.

- Para dizer a verdade, eu não tenho pressa de vender o terreno. Quanto mais tempo o conservar, mais ele vale.

Lara olhou-o atónita.

- Mas o senhor.

- O teu pedido é completamente sui generis. Tu não tens qualquer experiência. Preciso de um motivo muito especial que me leve a fazer-te esse empréstimo.

- Não entendo. que espécie de motivo.

- Chamemos-lhe. um pequeno bónus. Diz-me uma coisa, Lara, já tiveste algum amante?

A pergunta apanhou-a completamente desprevenida.

- Eu. não. - Sentia que a oportunidade lhe estava a escapar.

- Que é que isso tem.

Mas Allister inclinou-se para a frente.

- Vou ser franco contigo, Lara. Acho-te uma mulher muito atraente. Gostaria de ir contigo para a cama. Isso quer dizer.

- Eu sei o que isso quer dizer. - O rosto dela parecia feito de pedra.

- Encaremos as coisas desta forma. Esta é a tua oportunidade de fazeres alguma coisa por ti própria, não é verdade? De teres alguma coisa, de seres alguém. De provares a ti própria que és diferente do teu pai.

O espírito de Lara corria célere.

- Provavelmente nunca mais terás uma oportunidade como esta, Lara. Talvez queiras pensar melhor e.

- Não. - A voz dela soou vazia aos seus próprios ouvidos. Posso dar-lhe já a minha resposta. - Apertou muito os braços de encontro ao corpo para não tremer. Todo o seu futuro, a sua própria vida, estavam suspensos do que dissesse a seguir.

- Eu vou consigo para a cama.

Sorrindo, MacAllister levantou-se e encaminhou-se para a rapariga, estendendo os braços gordos.

- Ainda não, - disse Lara. - Depois de eu ver o contrato.

No dia seguinte, MacAllister entregou a Lara o contrato para o empréstimo bancário.

- É um contrato muito simples, minha querida. Um empréstimo de duzentos mil dólares por dez anos, ao juro de oito por cento. - Pôs-lhe uma caneta na mão. - Basta assinares aqui na última página.

- Se não se importa, gostava de o ler primeiro - disse Lara. Olhou para o relógio. - Mas agora não tenho tempo. Posso levá-lo comigo? Amanhã já lho trago de volta.

Sean MacAllister encolheu os ombros.

- Está bem. - Baixou a voz. - Quanto à nossa combinação, no sábado tenho de ir a Halifax. Pensei que talvez pudéssemos ir juntos.

Lara olhou-lhe para o sorriso lascivo e sentiu uma onda de náusea.

- Está bem - a resposta saiu-lhe num murmúrio.

- Óptimo. Assina o contrato e traz-mo de volta e temos o negócio feito. - Ficou um momento a pensar. - Depois vais precisar de um bom construtor. Conheces a Nova Scotia Construction Company?

O rosto de Lara iluminou-se.

- Sim. Conheço o encarregado deles, Buzz Steele.

Ele tinha construído alguns dos principais edifícios de Glace Bay.

- Óptimo. É uma empresa excelente. Recomendo-ta.

- Amanhã vou falar com Buzz.

Nessa noite Lara mostrou o contrato a Charles Cohn. Não ousou falar-lhe do acordo secreto que fizera com MacAllister. Sentia-se demasiado envergonhada. Cohn leu cuidadosamente o contrato e quando terminou devolveu-o a Lara.

- Aconselho-te a não assinar nada disto.

Ela ficou espantada.

- Porquê?

- Está aqui uma cláusula estipulando que o edifício terá de ficar concluído até ao dia 31 de Dezembro, caso contrário o título reverte para o banco. Por outras palavras, o edifício ficará a pertencer a MacAllister e a minha empresa passará a ser inquilino dele. Tu perdes o direito ao contrato e continuas com a obrigação de pagar o empréstimo e o juro. Deves pedir-lhe que altere isso.

As palavras de MacAllister ecoaram novamente nos ouvidos de Lara. Eu não tenho pressa de vender o terreno. Quanto mais tempo o conservar, mais ele vale.

Lara sacudiu a cabeça.

- Ele não vai modificar nada.

- Então vais tentar uma grandejogada, Lara. Podes acabar por ficar sem nada e com uma dívida de duzentos mil dólares, além dos juros.

- Mas se eu acabar o edifício a tempo.

- Isso é uma incógnita. Quando se constrói qualquer coisa, fica-se à mercê de uma data de gente. Não faz ideia de quantas coisas podem correr mal.

- Há uma boa empresa de construção em Sydney. Já construíram muitos edifícios aqui em Glace Bay. E eu conheço o encarregado. Se ele disser que consegue pôr o edifício de pé na data prevista, eu vou para a frente.

Havia uma tal ansiedade e um desespero na voz de Lara que ele resolveu não levantar mais dúvidas.

- Está bem - disse por fim -, fale com ele.

Lara foi encontrar Buzz Steele a andar sobre as vigas mestras de um edifício de cinco andares que estava a construir em Sydney. Steele era um indivíduo de cabelo grisalho, na casa dos 40, em cujo aspecto se via que estava habituado a trabalhar ao ar livre. Saudou Lara afectuosamente.

- Que surpresa agradável - disse. - Como é que deixaram uma rapariga tão bonita sair de Glace Bay?

- Escapei-me - replicou Lara. - Tenho um trabalho para si, Sr. Steele.

Ele sorriu.

- Ah sim? E que é que nós vamos fazer. uma casa de bonecas?

- Não. - Ela puxou dos desenhos que Charles Cohn lhe tinha dado. - É este prédio.

Buzz Steele ficou uns momentos a estudá-los. Depois olhou-a, surpreendido.

- É uma coisa em grande. Que é que isto tem a ver consigo?

- Fui eu que arranjei o contrato. O prédio vai ser meu. Steele soltou um assobio.

- Ainda bem, minha filha.

- Há dois problemas.

- Ah?

- A construção tem de estar terminada no dia 31 de Dezembro, senão passa a ser propriedade do banco e o custo não pode ir além de cento e setenta mil dólares. É possível?

Steele olhou novamente para os desenhos. Lara ficou a vê-lo fazer os cálculos em silêncio.

Por fim ele falou de novo.

- É possível.

Lara teve de se controlar para não soltar um brado de alegria.

- Então está combinado.

Apertaram-se as mãos.

-Você é o patrão mais bonito que eujá tive em toda a minha vida - disse Buzz Steele.

- Obrigada. Quando é que pode começar?

- Olhe, amanhã vou a Glace Bay para dar uma olhadela ao terreno. E vou fazer-lhe um prédio de que você se há-de orgulhar.

Quando saiu dali, Lara sentia-se como se tivesse asas.

Lara voltou a Glace Bay e deu a novidade a Charles Cohn.

- Tem a certeza de que a empresa é de confiança, Lara?

- Eu sei que é - garantiu-lhe ela. - Já construíram vários prédios aqui e em Sydney e Halifax.

O entusiasmo dela era contagioso.

Cohn sorriu.

- Bom, então parece que é negócio arrumado.

- É verdade. - Lara estava radiante. E nessa altura lembrou-se do acordo que fizera com Sean MacAllister e o sorriso morreu-lhe nos lábios. No sábado tenho de ir a Halifax. Pensei que podiamos ir juntos. Sábado era apenas daí a dois dias.

Lara assinou os contratos na manhã seguinte. Ao vê-la sair do escritório, MacAllister sentiu-se muito satisfeito consigo mesmo. Não tinha qualquer intenção de a deixar ficar com o imóvel. Quase riu em voz alta perante a ingenuidade dela. Ia emprestar-lhe o dinheiro mas na realidade estaria a emprestá-lo a si próprio. Pensou em como seria fazer amor com aquele maravilhoso corpo jovem e começou a ficar com uma erecção.

Lara só estivera duas vezes em Halifax. Comparada com Glace Bay, Halifax era uma cidade movimentada, cheia de peões, automóveis e lojas a abarrotar de mercadoria. Sean MacAllister conduziu Lara para um motel à entrada da cidade. Meteu o carro no estacionamento e deu-lhe uma pancadinha no joelho.

- Espera aqui enquanto eu vou à recepção, minha querida.

Lara ficou sentada no carro, à espera, em pânico. Estou a vender-me, pensou. Como uma prostituta. Mas é tudo aquilo que tenho para vender, e pelo menos ele pensa que eu valho duzentos mil dólares. O meu pai nunca viu duzentos mil dólares em toda a sua vida. Foi sempre demasiado...

A porta do carro abriu-se e lá estava MacAllister, a rir- se.

- Está tudo tratado. Vamos.

De repente, Lara sentiu dificuldade em respirar. O coração batia-lhe com tanta força que pensou que lhe ia saltar do peito. Vou ter um ataque cardíaco", pensou.

- Lara. - Ele olhava-a de uma maneira estranha. - Sentes-te bem?

Não. Estou a morrer. Vão levar-me para o hospital e eu vou morrer lá. Virgem.

- Estou óptima - disse.

Lentamente, saiu do carro e foi atrás de MacAllister para um cubículo miserável com uma cama, duas cadeiras, um toucador já muito estragado e um quarto de banho minúsculo.

Lara sentia que estava a viver um pesadelo.

- Então é a primeira vez, ein? - disse MacAllister. Ela pensou nos rapazes lá na escola que a tinham acariciado e lhe tinham beijado os seios, tentando pôr-lhe as mãos entre as pernas.

-Sim - replicou.

- Bom, não precisas ficar nervosa. O sexo é a coisa mais natural do mundo. - Lara ficou a ver MacAllister despir-se. O corpo dele era gorducho e atarracado.

- Despe-te - ordenou MacAllister.

Devagarinho, Lara tirou a blusa, a saia e os sapatos. Estava agora em calcinhas e soutien.

MacAllister olhou-lhe para a figura e aproximou-se dela.

- És muito bonita, sabias, pequena?

Ela sentiu-lhe a rigidez do órgão masculino de encontro ao corpo. MacAllister beijou-a na boca, fazendo-a sentir repulsa.

- Despe-te toda - disse apressado. Depois dirigiu-se para a cama e tirou as cuecas. Tinha o pénis rígido e vermelho.

Aquilo não vai caber dentro de mim, pensou Lara. Vai matar-me.

- Despacha-te.

Devagarinho, Lara tirou o soutien e depois as calcinhas.

- Meu Deus, és fantástica. Vem cá.

Lara dirigiu-se para a cama e sentou-se. MacAllister apertou-lhe os seios com força e ela gritou de dor.

- Foi bom, não foi? Agora é que tu encontraste um homem. MacAllister obrigou-a a deitar de costas e abriu-lhe as pernas.

Lara sentiu-se de repente tomada de pânico.

- Eu não pus nada - disse. - Posso. posso engravidar.

- Não te preocupes - prometeu MacAllister -, eu não vou entrar em ti.

Logo a seguir, Lara sentiu-o fazer força para penetrar nela, ao mesmo tempo que a magoava.

- Espere! - gritou. - Eu...

MacAllister já não podia esperar. Enfiou-se dentro dela e a dor foi terrível. Agora batia com o corpo no dela, cada vez com mais força, e Lara tapou a boca com a mão para não gritar. Dentro de um minuto tudo estará acabado, pensou, e eu vou ser dona de um prédio. E depois posso construir outro. E outro...

A dor tornava-se insuportável.

- Mexe-me esse rabo - berrou MacAllister. - Não fiques para aí parada. Mexe-te!

Ela tentou mexer-se, mas era impossível. Doía-lhe de mais. De repente MacAllister arquejou e Lara sentiu o corpo dele estremecer. Depois soltou um suspiro de satisfação e deixou-se ficar inerte de encontro a ela.

Lara estava horrorizada.

- Tinha dito que não.

Ele ergueu-se nos cotovelos e disse muito sério:

- Minha querida, não pude conter-me, tu és tão bela. Mas não te preocupes. Se ficares grávida, eu conheço um médico que vai tratar de ti.

Lara voltou a cara para o outro lado para que ele não lhe visse a expressão de repulsa. Arrastou-se até à casa de banho, dorida e a sangrar. Depois, ficou debaixo do chuveiro, deixando que a água quente lhe lavasse o corpo ao mesmo tempo que pensava: Acabou-se. Já fiz o que tinha a fazer. O terreno é meu. Vou ficar rica. Agora só tinha de se vestir e voltar para Glace Bay e começar a construir.

Saiu do quarto de banho e Sean MacAllister disse:

- Foi tão bom que havemos de fazer isto mais vezes.

 

Charles Cohn tinha inspeccionado seis edifícios construídos pela Nova Scotia Construction Company.

- É uma empresa de primeira categoria - disse para Lara. Não vais ter problemas com eles.

Agora Lara, Charles Cohn e Buzz Steele estavam a inspeccionar o local da construção.

- É perfeito - disse Buzz Steele. - As medidas dão quarenta e três mil quinhentos e sessenta pés quadrados. Isso dá-lhes o edifício com vinte mil pés quadrados que pretendem.

Charles Gohn perguntou:

- Conseguem ter o trabalho pronto a 31 de Dezembro? - Estava decidido a proteger Lara.

- Antes - disse Steele. - Posso prometer-lho para a véspera de Natal.

Lara estava radiante.

- Quando é que começam?

- Ponho cá o meu pessoal em meados da próxima semana.

Ver o novo edifício a subir foi a coisa mais excitante que Lara alguma vez experimentara.

Ia lá todos os dias.

- Quero aprender - disse para Charles Cohn. - Para mim isto é apenas o princípio. Hei-de conseguir pôr de pé uma centena de edifícios.

Gohn perguntava a si mesmo se Lara saberia realmente aquilo em que se estava a meter.

Os primeiros indivíduos que puseram os pés no local foram os agrimensores. Determinaram os limites geométricos legais da propriedade e enterraram estacas no chão em cada um dos cantos, todas elas pintadas numa cor fluorescente para facilitar a identificação. As medições ficaram terminadas em dois dias e logo bem cedo na manhã seguinte chegou ao local a maquinaria pesada para remoção de terras - um Caterpillar com pá dianteira montado em cima de uma camioneta.

Lara já lá estava à espera.

- Que é que se segue? - perguntou a Buzz Steele.

- Vamos limpar o terreno. Lara ficou a olhar para ele.

- Que é que isso quer dizer exactamente?

- O Caterpillar vai arrancar as raízes das árvores e alisar o chão. A peça de equipamento que apareceu em seguida foi uma escavadora para abrir os alicerces, valas para condutas e esgotos.

Entretanto, os hóspedes da pensãojá estavam ao corrente do que se estava a passar e o assunto tornara-se o tópico principal de todas as conversas à mesa do pequeno-almoço e do jantar. Todos se regozijavam por Lara.

- Que é que vão fazer a seguir? - perguntavam.

Ela estava a tornar-se uma especialista.

- Esta manhã vão colocar todas as canalizações subterrâneas. Depois vão começar a fazer as cofragens para poderem encher os pilares. - Sorriu. - Estão a entender o que eu digo?

A fase seguinte foi a do enchimento dos caboucos e, depois de o cimento estar seco, começaram a chegar enormes carregamentos de madeira e logo veio uma equipa de carpinteiros que lançou mãos ao trabalho. O barulho que faziam era tremendo, mas aos ouvidos de Lara soava como se fosse música. O ritmo das marteladas ressoava por toda a parte, bem como o ranger das serras mecânicas. Ao fim de duas semanas, as paredes, semeadas de aberturas para as portas e janelas, erguiam-se firmes como se o prédio tivesse sido repentinamente soprado pelo lado de dentro.

Para quem passava, ele não era mais que um labirinto de madeira e aço, mas para Lara ele apresentava-se como uma coisa totalmente diferente. Era o seu próprio sonho tornado realidade. Todas as manhãs e todas as tardes ela ia à cidade e ficava a contemplar a obra. Eu é que sou a dona disto, pensava Lara. Isto pertence-me.

Depois do episódio com MacAllister, Lara ficara aterrorizada com a possibilidade de estar grávida. A simples ideia dava-lhe a volta ao estômago. Quando o período lhe apareceu, quase perdeu as forças de alívio. Agora só tenho de me preocupar com o prédio.

Continuou a receber as rendas de Sean MacAllister, pois precisava de um lugar para viver, mas só com grande esforço conseguia entrar no escitório dele e enfrentá-lo.

- Foi bom lá em Halifax, não foi? Temos de lá ir outra vez.

- Agora estou muito ocupada com o meu prédio - respondeu Lara com firmeza.

O nível de actividade subiu bastante quando o pessoal do aço, da cobertura e os carpinteiros começaram a trabalhar ao mesmo tempo. O número de operários, de materiais e de camiões triplicou.

Charles Cohnjá não estava em Glassay, mas telefonava a Lara uma vez por semana.

- Como é que vai a obra? - perguntou da última vez que lhe telefonou.

- Muito bem! - exclamou Lara, cheia de entusiasmo.

- Dentro dos prazos?

- Com um certo avanço.

- Óptimo. Agora á te posso dizer que estava com um certo receio de que não conseguisses.

- Mas mesmo assim deu-me uma oportunidade. Obrigada, Charles.

- Uma boa vontade merece outra. Não te esqueças que se não fosses tu eu podia ter morrido à fome.

De tempos a tempos, MacAllister encontrava-se com Lara na obra.

- Está a correr muito bem, não está?

- É verdade - dizia Lara.

MacAllister parecia genuinamente satisfeito. Lara pensou: O Sr. Cohn estava enganado a respeito dele. MacAllister não está a tentar enganar-me.

Em finais de Novembro, os trabalhos avançavam rapidamente. Asjanelas e portas tinham sido colocadas, as paredes exteriores estavam prontas. A estrutura encontrava-se preparada para receber a sua rede de nervos e artérias.

Numa segunda-feira, na primeira semana de Dezembro, o trabalho começou a abrandar. Lara foi à obra de manhã e encontrou apenas dois homens, que não pareciam estar a fazer grande coisa.

- Onde é que está hoje o resto do pessoal? - perguntou.

- Estão noutra obra - esclareceu um dos homens. - Amanhãjá vêm para cá.

No dia seguinte não havia lá ninguém. Lara apanhou o autocarro para Halifax para ir falar com Buzz Steele.

- Que é que se passa? - perguntou ela. - A obra está parada.

- Não há motivo para preocupações - garantiu-lhe Steele. Tivemos um problemazito noutra obra e tive de retirar de lá o pessoal temporariamente.

- Quando é que eles voltam?

- Para a semana. Não vai haver atraso.

- Buzz, você sabe como isto é importante para mim.

- Claro, Lara.

- Se o prédio não estiver pronto na data fixada fico sem ele. Fico sem nada.

- Não se preocupe. Eu não vou deixar que isso aconteça. Na semana seguinte os operários continuaram a não aparecer. Lara foi a Halifax para falar com Steele.

- Lamento muito - disse a secretária - O Sr. Steele não está.

- Tenho de falar com ele. Quando é que volta?

- O Sr. Steele teve de sair da cidade em serviço. Não sei quando volta.

Lara teve pela primeira vez uma sensação de pânico.

- Mas é muito importante - insistiu Lara. - Ele está a construir um prédio para mim. E a obra tem de estar concluída daqui a três semanas.

- Se fosse a si não me preocupava, Miss Cameron. Se o Sr. Steele disse que o acabava, é porque acaba mesmo.

- Mas está tudo parado - gritou Lara. - Não está lá ninguém a trabalhar.

- Quer falar com o Sr. Ericksen, o assistente dele?

- Sim, por favor.

Ericksen era uma espécie de gigante, de ombros largos e afável. Todo ele irradiava confiança.

- Eu sei o que a trouxe cá - disse -, mas Buzz pediu-me que lhe garantisse que não tem razão para estar preocupada. Tivemos um pequeno atraso porque nos surgiram alguns problemas numa obra importante que temos em mãos, mas o seu prédio só precisa de mais três semanas de trabalho.

- Ainda falta tanta coisa!

- Não se preocupe. Na segunda-feira de manhãjá lá tem o pessoal necessário.

- Obrigada - disse Lara, com um suspiro de alívio. - Desculpe tê-lo incomodado, mas estou um bocado nervosa. É uma questão muito importante para mim.

- Não vai haver problema. - Ericksen sorriu. - Volte para casa sossegada. Está em boas mãos.

Na segunda-feira de manhã continuava a não haver um único operário na obra. Lara estava frenética de inquietação. Resolveu telefonar a Charles Cohn.

- Os homens pararam de trabalhar - disse-lhe - e eu não consigo descobrir porquê. Já me fizeram várias promessas mas não as cumpriram.

- Qual é o nome da firma. Nova Scotia Construction?

- Isso mesmo.

- Eu já volto a ligar-te - disse Cohn.

Charles Cohn telefonou duas horas mais tarde.

- Quem foi que te recomendou a Nova Scotia Construction?

Lara fez um esforço para se recordar.

- Sean MacAllister.

- Tinha de ser. A empresa é dele.

Lara sentiu-se desfalecer.

- E agora ele está a impedir que os homens acabem a obra dentro do prazo...

- Receio bem que sim.

- Oh, meu Deus.

- Ele é uma nahash tzefa. uma cobra venenosa.

Era demasiado generoso para lhe recordar que já a tinha prevenido. Limitou-se a dizer:

- Talvez. talvez aconteça qualquer coisa.

Admirava a coragem e ambição da rapariga e ao mesmo tempo desprezava MacAllister. Mas era impotente para fazer o que quer que fosse.

Lara ficou acordada toda a noite a pensar na sua própria loucura. O prédio que ela fizera construir acabaria por pertencer a Sean MacAllister e entretanto ficava com uma pesada dívida que lhe custaria o trabalho de uma vida inteira. A ideia de como MacAllister poderia exigir-lhe o pagamento fê-la estremecer.

Quando Lara acordou, foi procurar MacAllister.

- Bom dia, minha querida. Hoje estás encantadora. Lara foi direita ao assunto.

- Preciso de um prolongamento. O prédio não vai estar pronto no dia 31.

MacAllister recostou-se na cadeira e franziu a testa.

- A sério? Isso é uma notícia muito desagradável, Lara.

- Preciso de mais um mês.

MacAllister suspirou.

- Receio bem que não seja possível. Não, realmente não pode ser. Assinámos um contrato. Um acordo é um acordo.

- Mas...

- Lamento, Lara. No dia 31 a propriedade reverte para o banco. Quando os pensionistas souberam o que estava a acontecer ficaram furiosos.

- Filho da puta! - exclamou um deles. - Ele não pode fazer- lhe uma coisa dessas.

- Mas fez - disse Lara, desesperada. - Acabou-se.

- E nós vamos deixá-lo levar a melhor?

- Não, co'os diabos! Quanto tempo é que lhe resta. três semanas? Lara sacudiu a cabeça.

- Menos. Duas semanas e meia.

O homem voltou-se para os outros.

- Vamos até lá ver como estão as coisas.

- Mas de que serve...

- Logo se vê.

Daí a pouco meia dúzia de hóspedes encontravam-se na obra, analisando-a cuidadosamente.

- Faltam as canalizações - disse um dos homens.

- E a electricidade.

E ficaram lá os seis, a tiritar sob o vento glacial de Dezembro, a discutir o que ainda faltava fazer.

Um dos homens voltou-se para Lara.

- O seu banqueiro é um safado. Deixou a obra chegar quase ao fim para não ter de fazer muita coisa depois de expirado o tempo do contrato. - Depois virou-se para os outros. - Eu por mim acho que isto se podia acabar em duas semanas e meia.

Houve um clamor de concordância.

Lara sentia-se espantada.

- Não estão a perceber. Os operários não vêm.

- Olhe aqui, lá na pensão você tem canalizadores, carpinteiros e electricistas e nós temos amigos na cidade que se podem encarregar do resto.

- Mas eu não tenho dinheiro para lhes pagar - disse Lara. MacAllister não me vai dar.

- É o nosso presente de Natal para si.

O que aconteceu depois foi incrível. A notícia do que estava a acontecer espalhou-se rapidamente em Glace Bay. Trabalhadores de outras obras vieram inspeccionar a propriedade de Lara. Alguns vieram porque gostavam de Lara, outros porque tinham tido contactos com MacAllister e odiavam o homem.

- Vamos lixar esse patife - disseram.

Vinham dar uma ajuda depois das horas de trabalho e ficavam até depois da meia-noite e vieram também aos sábados e aos domingos. O barulho da construção fez-se ouvir de novo, enchendo o ar de ruídos que ressoavam a alegria. Acabar a obra a tempo transformou-se num desafio e o edifício não tardou a encher-se de carpinteiros, electricistas e canalizadores, todos eles ansiosos por fazer alguma coisa. Quando Sean MacAllister soube do que se estava a passar, acorreu à obra.

E ficou ali especado, cheio de espanto.

- Que é que se passa? - perguntou. - Aqueles não são os meus homens.

- São meus - replicou Lara, em tom de desafio. - Não há nada no contrato que diga que eu não posso usar os meus próprios operários.

- Bom, eu. - tartamudeou MacAllister. - Mas acho bem que o prédio seja acabado segundo as especificações.

- Vai ser - garantiu Lara.

No dia anterior ao Ano Novo, o edifício ficou terminado. Erguia-se altivo de encontro ao céu, sólido e robusto, e era a coisa mais bela que Lara alguma vez vira na vida. A rapariga deixou-se ficar a contemplá-lo, deslumbrada.

- É todo seu - disse um dos trabalhadores com orgulho. Vamos festejar ou quê?

Nessa noite parecia que toda a cidade de Glace Bay estava a celebrar a primeira construção de Lara Cameron.

Foi o princípio.

Depois daquilo, já nada conseguiria parar Lara. O espírito dela transbordava de ideias.

- Os seus novos empregados vão precisar de um sítio para viver em Glace Bay - disse ela para Charles Cohn. - Gostava de construir casas para eles. Está interessado?

Cohn fez que sim com a cabeça.

- Estou muito interessado.

Lara foi procurar um banqueiro de Sydney e fez um empréstimo sobre o prédio para financiar o novo projecto.

Quando as casas ficaram concluídas, disse para Charles Cohn:

- Sabe o que faz falta nesta cidade, Charles? Pequenas residências para acomodar os turistas que aqui vêm no Verão para pescar. Sei de um sítio magnífico perto da baía onde podia construir.

Charles Cohn passou a ser o consultor financeiro não oficial de Lara Cameron e durante os três anos que se seguiram ela construiu um prédio de escritórios, meia dúzia de pequenas casas à beira mar e um centro comercial. Os bancos de Sydney e Halifax tiveram todo o gosto em lhe emprestar o dinheiro.

Dois anos depois, quando Lara vendeu as suas propriedades, recebeu um cheque visado de três milhões de dólares. Tinha então 21 anos de idade.

No dia seguinte, despediu-se de Glace Bay e partiu para Chicago.

 

Chicago foi uma revelação. Até então, Halifax era a cidade maior que Lara tinha visitado, mas comparada com a metrópole gigantesca do Midwest não passava de uma aldeia. Chicago era uma cidade efervescente e ruidosa, cheia de vida e de energia, e toda a gente parecia dirigir-se a toda a pressa para um destino importante.

Lara hospedou-se no Stevens Hotel. Deitou uma olhadela às mulheres elegantemente vestidas que se passeavam pelo hotel e tomou consciência daquilo que ela própria trazia vestido. Em Glace Bay, sim, pensou Lara. Mas não em Chicago. Na manhã seguinte, entrou em acção. Comprou vestidos no Kane's e no Ultimo, sapatos no Joseph's, roupa interior no Saks Fifth Avenue e Marshall Field's, jóias na Trabert e Hoeffer e um casaco de peles na Ware. E cada vez que comprava alguma coisa, ouvia a voz do pai dizer-lhe: Não me posso fazer em dinheiro. Vai ao Exército de Salvação. Antes mesmo de ela ter acabado a sua ronda de compras, já tinha os armários da suite onde se instalara a abarrotar de roupas lindíssimas.

A iniciativa seguinte foi procurar nas páginas amarelas os Agentes de Compra e Venda de Propriedades. Escolheu aquele que tinha o anúncio maior, Parker & Associates. Lara telefonou e pediu para falar com o Sr. Parker.

- Posso saber quem devo anunciar?

- Lara Cameron.

Passados momentos, uma voz dizia:

- Fala Bruce Parker. Em que posso ser-lhe útil?

- Procuro um sítio para construir um bom hotel - disse Lara. A voz tornou-se mais cordial.

- Bom, isso é a nossa especialidade, Mrs. Cameron.

- Miss Cameron.

- Muito bem. Tem na ideia alguma zona em especial?

- Não. Para falar verdade, nem conheço muito bem Chicago.

- Isso não é problema. Tenho a certeza de que poderemos apresentar-lhe algumas propostas muito interessantes. Só para me dar uma ideia daquilo que procura, pode dizer-me de quanto dispõe?

Lara replicou cheia de orgulho:

- Três milhões de dólares.

Seguiu-se um silêncio prolongado.

- Três milhões de dólares?

- Sim.

- E pretende construir um bom hotel?

- Sim.

Novo silêncio.

- Estaria interessada em construir ou em comprar qualquer coisa no centro da cidade, Miss Cameron.

- Nada disso - disse Lara. - O que eu tenho na ideia é precisamente o oposto. Quero construir um pequeno hotel de luxo numa boa localização.

- E dispõe para isso de três milhões de dólares? - Parker soltou uma risadinha. - Receio bem que não possamos ajudá-la.

- Obrigada - replicou Lara. Pousou o auscultador. Era evidente que tinha ligado para a agência errada.

Voltou às páginas amarelas e fez mais meia dúzia de chamadas. Ao fim da tarde, Lara viu-se obrigada a enfrentar a realidade. Nenhuma agência estava interessada em tentar arranjar-lhe o local adequado para construir o seu hotel mediante uma entrada de três milhões de dólares. Tinham-lhe feito as mais variadas sugestões e todas elas iam dar no mesmo: um hotel barato no meio da cidade. Nunca, pensou Lara. Antes voltar para Glace Bay.

Havia meses que sonhava com o hotel que queria construir e no seu espírito ele era já uma realidade - viva, magnífica, tridimensional. O seu plano era fazer um hotel que se pudesse considerar como uma verdadeira casa. Seria na sua maior parte constituído por suites, cada uma com a sua sala de estar e biblioteca com fogão de sala, tudo mobilado com sofás confortáveis, poltronas e um piano de cauda. Haveria dois quartos grandes e um terraço exterior a toda a largura do apartamento. Haveria tambémjacuzzi e minibar. Lara sabia exactamente aquilo que queria. A questão agora era como conseguir arranjá-lo.

Entrou numa tipografia em Lake Street.

- Gostaria de mandar fazer cem cartões comerciais.

- Com certeza. E o texto?

- Miss Lara Cameron e na parte de baixo Propriedades. Compra, Venda e Construção.

- Muito bem, Miss Cameron. Daqui a dois dias estão prontos.

- Não. Preciso deles esta tarde, se faz favor.

O passo seguinte foi familiarizar-se com a cidade.

Lara percorreu a Michigan Avenue, State Street e La Salle, passeou por Lake Shore Drive e Lincoln Park, com o seujardim zoológico, o campo de golfe e a lagoa. Visitou Merchandise Mart e foi à Kroch-Brentano's comprar livros sobre Chicago. Fez leituras sobre as figuras famosas que tinham vivido em Chicago: Carl Sandburg, Frank Lloyd Wright, Louis Sullivan, Saul Bellow. Leu as vidas das famílias de pioneiros de Chicago - os John Bairds e os Gaylord Donnelleys, os Marshall Fields e os Potter Palmers, os Walgreens, passou pelas residências deles em Lake Shore Drive e pelas suas imensas propriedades na parte suburbana de Lake Forest. Visitou a parte sul da cidade e sentiu-se em casa no meio dos diferentes grupos étnicos: suecos, polacos, irlandeses, lituanos. Fez-lhe lembrar Glace Bay.

Saiu novamente para a rua, à procura de prédios assinalados    Para Venda e contactou as respectivas agências.

- Qual o preço daquele prédio?

- Oitenta milhões de dólares.

- Sessenta milhões de dólares.

- Cem milhões de dólares.

Os seus três milhões de dólares pareciam cada vez mais insignificantes. Lara sentou-se no quarto do hotel para analisar as suas opções. Ou se voltava para uma das zonas mais pobres da cidade e construía aí um pequeno hotel ou regressava a casa. Nenhuma das duas hipóteses lhe agradava.

Já fui longe de mais para desistir agora, pensou.

Na manhã seguinte, Lara entrou num banco da rua La Salle e dirigiu-se a um funcionário que estava atrás do balcão.

- Gostaria de falar com o vice-presidente, por favor. Estendeu um cartão ao empregado.

Cinco minutos depois, estava no gabinete de Tom Peterson, um homem de meia-idade, flácido, com um tique nervoso. Peterson analisava o cartão que o funcionário lhe tinha entregado.

- Em que é que a posso ajudar, Miss Cameron?

- Tenho um projecto para a construção de um hotel em Chicago. Preciso de um empréstimo.

Ele dirigiu-lhe um sorriso acolhedor.

- É para isso que nós aqui estamos. Que espécie de hotel pretende construir?

- Um pequeno hotel de luxo, bem situado.

- Parece-me interessante.

- Devo dizer-lhe - continuou Lara - que só tenho três milhões de dólares para começar e.

Ele sorriu.

- Isso não é problema.

Sentiu percorrê-la uma onda de entusiasmo.

- A sério?

- Três milhões de dólares dão para muita coisa, sabendo aplicá-los. - Olhou para o relógio. - Agora tenho outro compromisso. Talvez pudéssemos jantar juntos e discutir o assunto.

- Claro - disse Lara. - Seria óptimo.

- Onde é que está hospedada?

- Palmer House.

- E se eu a fosse buscar às oito?

Lara pôs-se de pé.

- Agradeço-lhe muito. Não faz ideia como me sinto melhor. Já estava a ficar um tanto decepcionada.

- Nada disso - replicou. - Eu vou ajudá-la.

Às oito horas, Tom Peterson foi buscar Lara e levou-a ajantar ao Henrici's. Quando já estavam sentados à mesa, voltou-se para ela e disse:

- Sabe, estou contente por ter vindo procurar-me. Podemos fazer muita coisa um pelo outro.

- Podemos?

- Sim. Há muito mulherio nesta cidade, mas nada que se compare consigo, minha querida. Você pode abrir um bordel de luxo e servir exclusivamente.

Lara ficou petrificada.

- Desculpe.

- Se conseguir arranjar meia dúzia de raparigas, nós. Lara já se tinha ido embora.

No dia seguinte, Lara visitou mais três bancos. Quando expôs os seus planos ao gerente do primeiro banco, ele disse:

-Vou dar-lhe o melhor conselho que já recebeu em toda a sua vida: esqueça tudo isso. O negócio de propriedades é um jogo só para homens. Não há nele lugar para mulheres.

- E qual é a razão? - perguntou Lara, impassível.

- É que ia ter de enfrentar um bando de duros machistas. Eles comiam-na viva.

- Não me comeram viva em Glace Bay - disse Lara. Ele inclinou-se para a frente:

- Vou confiar-lhe um pequeno segredo. Chicago não é Glace Bay.

No banco seguinte, o gerente disse:

- Teremos muito prazer em a ajudar, Miss Cameron. Claro que aquilo que tem na ideia é absolutamente impraticável. A nossa sugestão é que nos confie o seu dinheiro e nós investi-lo-emos.

Lara saiu do gabinete antes que ele tivesse tempo de concluir a frase.

No terceiro banco, Lara foi introduzida no gabinete de Bob Vance um homem grisalho de aspecto agradável que tinha exactamente o aspecto que se poderia esperar do presidente de um banco. No mesmo gabinete encontrava-se um indivíduo pálido e magro, com os cabelos cor de areia, de pouco mais de 30 anos de idade, que vestia um fato amachucado e parecia completamente deslocado ali.

- Este é Howard Keller, Miss Cameron, um dos nossos vice-presidentes.

- Muito prazer.

- Em que posso ser-lhe útil? - perguntou Bob Vance.

- Estou interessada em construir um hotel em Chicago - disse Lara - e procuro um financiamento.

Bob Vance sorriu.

- Veio bater à porta certa. Tem algum local na ideia?

- Sei aquilo que quero de uma maneira geral. Perto do Loop, não muito longe de Michigan Avenue.

- Excelente.

Lara falou-lhe da ideia do pequeno hotel de luxo.

- Parece muito interessante - disse Vance. - E qual o capital de que dispõe?

- Três milhões de dólares. O resto quero pedi-lo emprestado. Houve uma pausa de ponderação.

- Receio não poder ajudá-la. O seu problema é que tem as ideias maiores que a bolsa. No entanto, se quiser deixar-nos investir o seu dinheiro.

- Não, muito obrigada - replicou Lara. -Agradeço o tempo que

me dispensaram. Boa tarde, meus senhores. - Voltou-se e saiu do gabinete, em estado de fúria. Em Glace Bay, três milhões de dólares era uma fortuna. Ali as pessoas pareciam achar que não era nada.

Quando Lara chegou à rua, ouviu uma voz.

- Miss Cameron!

Voltou-se. Era o homem que lhe tinha sido apresentadoHoward Keller.

- Sim?

- Gostava de falar consigo - disse. - Talvez pudéssemos ir tomar um café.

Lara contraiu-se. Seria que em Chicago só havia tarados sexuais?

- Há um bom café mesmo ao virar da esquina.

Lara encolheu os ombros.

- Está bem.

Depois de pedirem os cafés, Howard Keller disse:

- Se me perdoa a intromissão, gostaria de lhe dar alguns conselhos.

Lara observava-o, cautelosa.

- Pode continuar.

- Em primeiro lugar, a sua ideia está errada.

- Não acha que possa resultar? - perguntou friamente.

- Pelo contrário. Um pequeno hotel de luxo é uma excelente idéia.

Ela ficou surpreendida.

- Então por que...

-Um hotel como esse seria muito interessante em Chicago, mas não acho que devesse construí-lo.

- Que é que quer dizer?

- Sugiro-lhe que descubra antes um velho hotel bem situado e que faça a remodelação. Existem bastantes hotéis degradados que é possível comprar por bom preço. Os seus três milhões de dólares chegariam à vontade para um primeiro pagamento. Depois poderia pedir a um banco o dinheiro necessário para os melhoramentos e para a reconversão.

Lara ficou sentada, a pensar. Ele tinha razão. Era uma solução muito melhor.

- Há mais uma coisa. Nenhum banco se vai interessar em a financiar a menos que se apresente com um arquitecto e um construtor idóneos. Querem uma proposta bem definida.

Lara pensou em Buzz Steele.

- Entendo. Conhece algum arquitecto e algum construtor idóneos? Howard Keller sorriu.

- Conheço vários.

- Obrigada pelo conselho - disse Lara. - Se eu encontrar o local certo, posso voltar a procurá-lo para discutirmos o assunto?

- Quando quiser. E boa sorte.

Lara esperava que ele dissesse qualquer coisa como Por que é que não discutimos o caso no meu apartamento? Em vez disso, Howard Keller limitou-se a perguntar:

- Quer outro café, Miss Cameron?

Lara voltou a percorrer as ruas do centro, mas desta vez à procura de uma coisa diferente. A poucos quarteirões da Avenida Michigan, em Delaware, Lara passou por um hotel para viajantes, de construção anterior à guerra e com ar decadente. Um letreiro anunciava:

HOTEL DOs CONGRESSISTAS. Lara preparava-se para passar adiante, mas de repente parou. Olhou com mais atenção. A fachada de tijolo estava tão suja que seria difícil dizer qual teria sido a cor primitiva. O prédio tinha oito pisos. Lara virou-se e entrou no hotel. O interior estava ainda pior que o exterior. Um empregado vestindojenns e uma camisola rota estava a empurrar um maltrapilho pela porta fora. A recepção parecia mais uma bilheteira que a zona de acolhimento de um hotel. Numa das extremidades do vestíbulo havia uma escada que levava à zona que estivera antes reservada a salas de reuniões e que se transformara agora numa série de escritórios de aluguer. Na parte de cima, Lara viu uma agência de viagens, uma agência de venda de bilhetes de teatro e uma agência de emprego.

O empregado regressou ao balcão de recepção.

- Deseja algum quarto?

- Não. Queria saber. - Foi interrompida por uma mulher ainda nova, muito maquilhada e com uma saia justa.

- Dá-me uma chave, Mike. -Ao lado dela estava um homem de certa idade.

O empregado entregou-lhe uma chave.

Lara ficou a ver os dois dirigirem-se para o elevador.

- Em que posso ser-lhe útil? - perguntou o empregado.

- Estou interessada neste hotel - disse Lara. - Está à venda?

- Suponho que tudo é para venda. O seu pai negoceia em propriedades?

- Não - replicou Lara. - Eu é que negoceio.

O homem olhou-a, surpreendido.

- Ah, bom. A pessoa com quem deve falar é um dos irmãos Diamond. São os donos de uma cadeia de lixeiras como esta.

- E onde é que os posso encontrar? - perguntou Lara. O homem deu-lhe um endereço em State Street.

- Importa-se que eu dê uma vista de olhos por aqui? Ele encolheu os ombros.

- Esteja à vontade. - Sorriu. - Quem sabe, talvez ainda acabe por vir a ser minha patroa.

Nem morta, pensou Lara.

Deu uma volta, examinando tudo com atenção. A entrada era acompanhada por uma série de velhas colunas de mármore. Lara levantou uma ponta da carpete suja e gasta. Por baixo, o chão era de um mármore sombrio. O papel de parede cor de mostarda despegava-se às tiras. Lara puxou por uma ponta e por baixo encontrou o mesmo mármore. Estava a ficar cada vez mais excitada. O corrimão da escada estava pintado de negro. Depois de se ter voltado, certificando-se de que o empregado não estava a observá-la, pegou na chave do Stevens Hotel e raspou um pouco de tinta. Encontrou aquilo que esperava, uma barra de latão maciço. Dirigindo-se para os elevadores, que estavam igualmente pintados de preto, raspou um bocadinho de tinta e encontrou mais latão.

Lara encaminhou-se novamente parajunto do empregado, tentando disfarçar o entusiasmo.

- Será que poderia ver um dos quartos?

Ele encolheu os ombros.

- Por mim. - Estendeu-lhe uma chave. - Quatrocentos e dez.

- Obrigada.

Lara meteu-se no elevador. Era lento e antiquado. Mando-o arranjar, pensou. E ponho-lhe um painel decorativo no interior.

Em pensamento, já começara a redecorar o hotel.

O quarto 410 estava um verdadeiro desastre, mas as possibilidades tornaram-se logo evidentes. Era surpreendentemente espaçoso, embora as instalações fossem antiquadas e a mobília de mau gosto. O coração de Lara começou a bater acelerado. É perfeito, pensou.

Desceu novamente. A escada era velha e cheirava a mofo. Os tapetes estavam gastos, mas por baixo encontrou o mesmo revestimento de mármore.

Lara devolveu a chave ao recepcionista.

- Viu aquilo que queria?

- Sim - disse Lara. - Obrigada.

Ele sorriu-lhe.

- Vai mesmo comprar esta espelunca?

- Sim - respondeu -, vou mesmo comprar esta espelunca.

- Fixe - disse ele.

A porta do elevador abriu-se e ajovem prostituta e o seu cliente idoso saíram lá de dentro. Ela entregou a chave e algum dinheiro ao empregado.

- Obrigada, Mike.

- Um bom dia para ti - retorquiu Mike. Depois voltou-se para Lara.

- Tenciona voltar?

- Ah sim - garantiu Lara. - Eu vou voltar.

A próxima paragem de Lara foi na Conservatória do Registo Predial. Pediu para ver os registos que lhe interessavam. Mediante o pagamento de dez dólares, foi-lhe facultado um dossier relativo ao Hotel dos Congressistas. Tinha sido vendido aos irmãos Diamond, cinco anos antes, por seis milhões de dólares.

O escritório dos irmãos Diamond ficava num velho imóvel de esquina em State Street. Uma recepcionista oriental com uma saia vermelha muito justa cumprimentou Lara logo que esta entrou.

- Em que posso ser-lhe útil?

- Gostaria de falar com o Sr. Diamond.

- Qual deles?

- Não importa.

- Vou anunciá-la ao John.

Pegou no telefone e disse:

- Está aqui uma senhora para falar consigo, John. - Ficou um momento à escuta e depois levantou os olhos para Lara. - Qual é o assunto?

- Quero comprar um dos hotéis dele.

A recepcionista falou de novo para o telefone:

- Diz que quer comprar um dos seus hotéis. Está bem. - desligou. - Pode entrar.

John Diamond era um homem enorme, de meia-idade e cabeludo, com o rosto espalmado de quem em tempos jogara bastante futebol. Vestia uma camisa de mangas curtas e estava a fumar um grande charuto. Levantou os olhos quando Lara entrou.

-A minha secretária disse-me que queria comprar um dos meus hotéis. - Ficou um momento a estudá-la. - Mas nem sequer tem ar de quem já tenha idade para votar.

-Ah, garanto-lhe que já tenho idade para votar - afirmou Lara.

- E também já tenho idade para comprar um dos seus prédios.

- Ah sim? Qual?

- O Hotel dos Congressistas.

-Oquê?

- É o que está no letreiro. Parto do princípio de que deve querer dizer Congressistas.

- Sim, sim.

- Está à venda?

Ele abanou a cabeça.

- Não sei. Aquilo dá-nos muito dinheiro. Não tenho a certeza se o podemos deixar ir assim.

- Tem de o deixar ir - continuou Lara.

- Ah sim?

- Está num estado horrível. Pode dizer-se que está a cair aos bocados.

- Então para que raio é que você o quer?

- Gostava de o comprar e de lhe dar um arranjo. Claro que tinham de mo entregar vazio.

- Isso não é problema. Não nos comprometemos com ninguém por mais de uma semana.

- Quantos quartos tem o hotel?

- Cento e vinte cinco. A área total do edifício são trinta mil metros quadrados.

Tem quartos a mais, pensou Lara. Mas se eu os juntar de maneira a formar suites, acabo com umas sessenta a setenta e cinco chaves. Pode resultar.

Era a altura de discutir o preço.

- Se eu decidir comprá-lo, quanto quer por ele?

Diamond disse:

- Se eu decidir vendê-lo, quero dez milhões de dólares, seis milhões de entrada em dinheiro.

Lara sacudiu a cabeça.

- Ofereço-lhe.

- Nada feito. Não aceito contra-ofertas.

Lara deixou-se ficar sentada, calculando mentalmente os custos da renovação. Ia importar em cerca de duzentos e cinquenta dólares por metro quadrado, oito milhões de dólares, em números redondos, mais o mobiliário, acessórios e equipamento.

O espírito de Lara corria célere. Tinha a certeza de que poderia conseguir um financiamento do banco. O problema era arranjar os seis milhões de entrada e ela só tinha três milhões. O preço de Diamond era exagerado, mas ela queria o hotel. Mais do que alguma vez quisera o que quer que fosse em toda a sua vida.

- Vou fazer-lhe uma proposta - disse Lara.

Ele escutava-a.

- Sim?

- Eu dou-lhe o preço que está a pedir.

Diamond sorriu.

- Até aí tudo bem.

- Dou-lhe uma entrada de três milhões em dinheiro. Ele sacudiu a cabeça.

- Não é possível. Quero seis milhões à cabeça.

- E vai tê-los.

- Ah sim? De onde é que vêm os outros três milhões?

- De si.

- O quê?

- O senhor vai conceder-me uma segunda hipoteca por três milhões.

- Quer dizer que pretende pedir-me dinheiro emprestado a mim para comprar o meu prédio?

Era a mesma pergunta que Sean MacAllister lhe fizera em Glace Bay.

-Veja as coisas desta forma-disse Lara. -Na realidade estará a emprestar o dinheiro a si próprio. O prédio continuará a ser seu até que eu lhe pague tudo. Não tem nada a perder.

Ele ficou um momento a pensar e depois sorriu.

- Está bem. Pode dizer que acabou de comprar o seu hotel.

O gabinete de Howard Keller no banco era um cubículo com o nome dele na porta. Quando Lara entrou, o vice-presidente pareceu-lhe ainda mais mal vestido que da primeira vez.

- Já de volta?

- Disse-me que viesse procurá-lo quando arranjasse um hotel. Já encontrei um.

Keller recostou-se na cadeira.

- Conte-me como é.

- Descobri um velho hotel chamado Hotel dos Congressistas. Fica em Delaware, a poucos quarteirões de Michigan Avenue. Está num estado deplorável e eu quero comprá-lo e transformá-lo no melhor hotel de Chicago.

- Explique-me lá o negócio.

Lara contou-lhe tudo.

Keller ficou sentado, a pensar.

-Vamos pôr a questão a Bob Vance.

Bob Vance ouviu e tomou algumas notas.

- Pode ser viável - disse - mas. - olhou para Lara. - Já alguma vez dirigiu um hotel, Miss Cameron?

Lara pensou em todos os anos que passara a dirigir a pensão em Glace Bay, a fazer as camas, a lavar o chão, a roupa e a loiça, a tentar agradar às diferentes personalidades e a manter a paz.

- Dirigi uma pensão cheia de mineiros e madeireiros. Um hotel vai ser brincadeira.

Howard Keller disse:

- Gostava de ir ver a propriedade, Bob.

O entusiasmo de Lara era irresistível. Howard Keller observou o rosto de Lara à medida que visitavam os miseráveis quartos do hotel e via-os através dos olhos dela.

- Aqui vai haver uma suite magnífica, com sauna - dizia Lara com excitação. - A lareira vai ser ali e o piano de cauda fica naquele canto. - Pôs-se a andar de um lado para o outro. - Quando os viajantes abastados vêm a Chicago, ficam nos melhores hotéis, que são todos iguais. com os seus quartos frios e incaracterísticos. Se nós lhes pudermos oferecer tudo isto, ainda que lhes custe um pouco mais, não há dúvidas quanto à escolha que farão. Será realmente como estar em casa, fora de casa.

- Parece-me formidável.

Lara voltou-se para ele, ansiosa.

- Acha que o banco me vai emprestar o dinheiro?

- Vamos ver.

Meia hora depois, Howard Keller conferenciava com Vance.

- Que é que acha? - perguntou Vance.

- Acho que ela está a ver bem. Agrada-me essa ideia de um hotel diferente de todos os outros.

- Também a mim. O único problema é ela ser tão jovem e inexperiente. É uma grande jogada. - Passaram a meia hora seguinte a discutir os custos e os ganhos previstos.

- Acho que podemos levar a coisa por diante - disse finalmente Keller. - Não temos nada a perder. - Sorriu. - Na pior das hipóteses, podemos mudar-nos os dois para lá.

Howard Keller telefonou para Palmer House e falou com Lara.

- O banco acaba de aprovar o seu empréstimo.

Lara soltou um brado.

- A sério? Isso é uma maravilha. Ah, obrigada, muito obrigada!

- Temos de falar de umas quantas coisas - disse Howard Keller.

- Está livre hoje ao jantar?

- Estou.

- Óptimo. Vou buscá-la às sete e meia.

Jantaram no Imperial House. Lara estava tão excitada que mal tocou na comida.

- Não consigo explicar-lhe quanto estou entusiasmada. Vai ser o hotel mais bonito de Chicago.

- Calma - preveniu Keller -, há muito que fazer. - Hesitou.

- Posso ser franco consigo, Miss Cameron?

- Lara.

- Lara. É um verdadeiro salto no desconhecido. Não faz ideia daquilo em que se vai meter.

- Em Glace Bay.

- Isto aqui não é Glace Bay. Se me permite a metáfora, aqui estará a jogar completamente fora de casa.

- Então por que é que o banco aceitou? - perguntou Lara.

- Não faça confusão. Nós não somos nenhuma instituição de caridade. O pior que nos pode acontecer é não ganharmos nada, mas também não vamos perder. Mas eu acredito em si. Acho que vai conseguir. E que isto pode ser apenas o começo. Não é sua intenção contentar-se em ficar com este hotel, pois não?

- Claro que não - respondeu Lara.

- Era o que eu pensava. O que eu queria dizer-lhe é que quando fazemos um empréstimo, não costumamos ter qualquer envolvimento pessoal com o projecto. Mas neste caso gostaria de lhe dar todo o auxílio de que possa precisar.

E Howard Keller tencionava envolver-se pessoalmente com ela. Sentira-se atraído por Lara desde o primeiro momento em que a vira. Sentira-se cativado pelo seu entusiasmo e determinação. Era uma mulher-criança de uma grande beleza. Ansiava de uma forma desesperada conseguir impressioná-la. Talvez um dia, pensou Keller, eu lhe venha a contar como estive à beira de me tornar famoso.

 

Era ojogo da Final e Wrigley Field estava apinhado com 38 710 simpatizantes aos gritos. É o momento máximo da nona partida com o resultado de um para os Cubs, zero para os Yankees. Os Yankees têm um batimento a mais, com duas eliminações. As bases estão ocupadas por Tony Kubek na primeira, Whitey Ford na segunda e Yogi Berra na terceira.

No momento em que Mickey Mantle entra na casa base, a multidão manifesta-se ruidosamente. Mick tinha 304 batimentos convertidos para a temporada e quarenta e duas voltas completas para o ano.

Jack Brickhouse, o locutor de Wrigley Field, disse, cheio de excitação: Oh, oh. parece que vão mudar de lançadores. Estão a retirar Moc Drabowsky. O capitão dos Cub, Bob Scheffing, está a falar com o árbitro. vamos a ver quem vai entrar. É Howard Keller! Kellerestá a avançar para o lugar do batedor e a multidão grita Todo o peso da Final está sobre os ombros deste jovem. Será que ele consegue eliminar o grande Mickey Mantle? Não tardaremos a saber! Keller está no seu lugar. olha para as bases. respira fundo e toma impulso. Aqui está o lançamento. Mantle leva o taco atrás. toma impulso e falha! Primeira tentativa!

Fez-se silêncio entre a multidão. Mantle avança um pouco, com o rosto sombrio, o taco de lado, pronto para o batimento. Apressão era enorme, mas Howard Kellerparecia calmo e senhor de si. Voltou-se para o defesa-recuado, aguardou o sinal e preparou-se para outro lançamento.

Aí está gritou o locutor. É o famoso lançamento em curva de Keller. Mantle toma impulso e falha. Segunda tentativa. Se o jovem Keller conseguir eliminar Mick, os Chicago Cubs ganham a Final. Estamos a ver David e Golias, senhoras e senhores! O jovem Keller só jogou um ano nas grandes ligas, mas durante esse tempo criou uma reputação invejável. Mickey Mantle é o Golias: será que o principiante Keller o consegue bater? Tudo depende do próximo lançamento.

Keller olha novamente para os corredores. toma impulso. e aí está! É a curva... Mantle avança enquanto a bola descreve a sua curva sobre a parte central da casa base. Terceira tentativa! - O locutor está aos gritos. Mantle é apanhado a olhar! O famoso Mick é eliminado, senhoras e senhores! Ojovem Howard Keller eliminou o grande Mickey Mantle! Terminou o jogo. a Final pertence aos Chicago Cubs! Os fãs, depé, aplaudem como loucos!

No campo, os companheiros de equipa de Howard Keller correram para ele, ergueram-no sobre os ombros e começaram a atravessar o.

- Howard, que diabo estás tu a fazer?

- Os trabalhos de casa, mãezinha.

Com ar culpado, Howard Keller, de 15 anos de idade, desligou o aparelho de televisão. De qualquer forma o jogo estava quase a terminar.

O basebol era a paixão de Howard, a sua vida. Sabia que um dia ainda havia de jogar nas Ligas Maiores. Aos 6 anos já competia com rapazes que tinham o dobro da idade dele em stickball e aos 12 anos começou a jogar como lançador para uma equipa da American Legion. Quando Howard fez 15 anos, um indivíduo dos Chicago Cubs ouviu falar dele.

- Nunca vi nada assim - disse-lhe o informador. - O rapaz tem um batimento e uma curva inacreditáveis!

O outro manteve-se céptico. Um pouco contra vontade, disse:

- Está bem. Eu vou vê-lo.

E foi ao próximojogo da American Legion em que Howard Keller participou, ficando imediatamente convertido. Depois do jogo foi procurar o rapaz.

- Que é que tu queres fazer da tua vida, rapaz?

- Quero jogar basebol - replicou Keller com prontidão.

- Alegra-me ouvir isso. Vamos dar-te um contrato para a nossa equipa de juniores.

Howard nem podia esperar para dar aos pais aquela novidade espantosa.

Os Kellers eram uma família de católicos ferrenhos. Iam todos os domingos à missa e faziam questão que o filho frequentasse a igreja. Howard Keller pai era vendedor de máquinas de escrever e passava muito tempo fora de casa. Quando não andava em viagem, passava todo o tempo que podia com o filho. Howard era muito chegado aos pais. A mãe fazia questão de assistir a todos os jogos em que o filho participava, juntando-se às vozes de encorajamento. Howard teve a sua primeira luva e equipamento aos 6 anos de idade. Howard era um fanático pelo basebol. Tinha uma memória enciclopédica para as estatísticas dos jogos que se tinham realizado antes mesmo de ele nascer. Conhecia todos os feitos dos grandes lançadores e ganhava

dinheiro a apostar com os colegas que era capaz de nomear os primeiros lançadores de qualquer formação.

- Mil novecentos e quarenta e nove.

- Essa é fácil - dizia Howard. - Newcombe, Roe, Hatten e Branca pelos Dodgers. Reynolds, Raschi, Byrne e Lopat pelos Yankees.

- Está bem - ripostava um dos rapazes, desafiando-o. - Quem é que fez osjogos mais consecutivos na história das ligas maiores? Aquele que fazia a pergunta tinha diante dele um exemplar do Guinness Book ofRecords.

Howard Keller nem sequer parava para pensar.

- Lou Gehrig... dois mil cento e trinta.

- A quem pertence o record do maior número de eliminações?

- Walter Johnson... cento e treze.

- Quem conseguiu fazer mais voltas completas ao campo durante a sua carreira?

- Bobe Ruth... setecentas e catorze.

As notícias sobre a habilidade dojovem começaram a circular e os observadores profissionais vieram assistir às proezas dojovem fenómeno que jogava na equipa de juniores dos Chicago Cubs. Ficaram espantados. Quando Keller fez 17 anos, já tinha sido contactado pelos St. Louis Cardinals, pelos Baltimore Orioles e pelos New York Yankees.

O pai de Howard sentia muito orgulho nele.

- Sai ao pai - gabava-se. - Quando eu era rapaz tambémjoguei basebol.

Durante o Verão do seu último ano no liceu, Howard Keller trabalhou num banco que pertencia a um dos patrocinadores da sua equipa da American Legion. Howard tinha um namoro a sério com uma colega muito bonita chamada Betty Quinlan. Estava assente que quando saíssem da universidade se casariam. Howard falava constantemente de basebol com ela e a rapariga, que gostava dele, escutava-o pacientemente. Howard adorava todas as historietas e anedotas relativas aos seus jogadores favoritos e sempre que ouvia uma nova corria a contá-la a Betty.

- Case Stengel disse O segredo é manter os cinco tipos que nos odeiam afastados dos cinco que estão indecisos,

Alguém perguntou as horas a Yogi Berra e ele retorquiu Neste momento?

Quando umjogador ficou magoado num ombro por ter sido atingido por uma bola, um colega de equipa disse: É só por dizer que o ombro lhe dói um bocado... de resto não fez diferença.

O jovem Keller sabia que em breve se iria juntar ao panteão dos grandes jogadores. Mas os deuses tinham outros planos a seu respeito.

Um dia, Howard regressou a casa depois das aulas com o seu melhor amigo, Jesse, que era o defesa recuado da equipa. Havia duas cartas à espera de Keller. Uma oferecia-lhe uma bolsa como jogador de basebol em Princeton e a outra em Harvard.

- Caramba, é fantástico! - disse Jesse. - Parabéns! - E estava a ser sincero. Howard Keller era o seu ídolo.

- Qual é que achas que vais aceitar? - perguntou o pai de Howard.

- Mas por que é que eu hei-de ter de ir para a universidade? perguntou Howard a si mesmo. - Neste momento já posso ir para uma equipa das ligas maiores.

A mãe replicou com firmeza:

- Tens muito tempo para isso, meu filho. Primeiro vais acabar os teus estudos; assim, quando deixares o basebol estarás preparado para fazer o que quiseres.

- Está bem - ripostou Howard. - Vou para Harvard. A Betty vai para Wellesley e assim fico mais perto dela.

Betty Quinlan ficou encantada quando Howard lhe disse o que tinha resolvido.

-Vamos poder ver-nos aos fins-de-semana! - comentou.

O amigo, Jesse; disse:

- Vou sentir a tua falta.

Um dia antes da partida de Howard Keller para a universidade, o pai fugiu com a secretária de um dos seus clientes.

O rapaz ficou como que fulminado.

- Como é que ele pôde fazer uma coisa destas?

A mãe estava em estado de choque.

- Ele deve. deve estar a passar uma fase crítica - balbuciou.

- O. O teu pai gosta muito de mim. Ele vai. vai voltar. Verás. No dia seguinte, a mãe de Howard recebeu uma carta de um advogado, declarando formalmente que o seu cliente, Howard Keller, Sr. queria o divórcio e, como não tinha dinheiro para lhe dar qualquer pensão de alimentos, estava disposto a deixá-la ficar com a casa.

Howard abraçou a mãe.

- Não te preocupes, mãezinha. Eu fico cá e tomo conta de ti.

- Não. Não quero que deixes de ir para a universidade por causa de mim. Desde o dia em que tu nasceste que o teu pai e eu planeámos mandar-te para a universidade. - E, passado um momento, acrescentou tranquilamente. -Amanhã falamos. Agora estou muito cansada.

Howard ficou toda a noite a pé, pensando no que poderia fazer.

Podia ir para Harvard com a bolsa de jogador de basebol ou aceitar a oferta de um dos clubes da Liga Maior. De qualquer das formas, teria de deixar a mãe sozinha. Era uma decisão difícil.

Quando viu que a mãe não aparecia para tomar o pequeno-almoço na manhã seguinte, Howard foi até ao quarto dela. Estava sentada na cama, sem conseguir mexer-se, com o rosto crispado de um dos lados. Tinha tido uma trombose.

Sem dinheiro para pagar o hospital e os médicos, Howard voltou a trabalhar no banco, agora a tempo inteiro. Acabava às quatro da tarde e corria para casa, para tratar da mãe.

O ataque não tinha sido muito forte, garantira-lhe o médico, e dentro de algum tempo a mãe iria recuperar.

- Teve um choque terrível, mas vai recompor-se.

Howard continuava a ser contactado pelos clubes, mas sabia que não podia deixar a mãe.

Quando ela estiver melhor eu vou, dizia para si próprio. As contas do médico e dos remédios acumulavam-se. A princípio, falava para Betty Quinlan uma vez por semana, mas passados alguns meses os telefonemas foram-se tornando cada vez menos frequentes.

A mãe de Howard não parecia estar a melhorar. Howard falou com o médico.

- Quando é que ela fica boa?

- Num caso como este é difícil dizer, meu rapaz. Pode ficar assim meses, ou mesmo anos. Tenho muita pena, mas não posso ser mais específico.

O ano terminou, outro ano começou e Howard continuava a viver com a mãe e a trabalhar no banco. Um dia recebeu uma carta de Betty Quinlan dizendo-lhe que se tinha apaixonado por outro e que esperava que a mãe dele estivesse melhor. Os telefonemas dos clubes começaram a tornar-se menos frequentes e acabaram por parar. A vida de Howard centrou-se nos cuidados que tinha de prestar à mãe. Fazia as compras, cozinhava e mantinha o emprego. Deixara de pensar no basebol. Já era bastante difícil fazer face ao dia a dia.

Quando a mãe morreu, quatro anos depois, Howard Keller deixara de se interessar pelo basebol. Dedicara-se totalmente ao banco.

E as suas probabilidades de alcançar a fama tinham-se apagado.

 

Howard Keller e Lara estavam a jantar juntos.

- Por onde é que vamos começar? - perguntou Lara.

- Em primeiro lugar, vamos arranjar-lhe a melhor equipa que houver. Para começar, precisamos de um advogado especializado em questões imobiliárias para elaborar o contrato com os irmãos Diamond. Depois queremos arranjar-lhe um bom arquitecto. Já tenho um na ideia. Em seguida, precisamos de uma empresa de construções de primeira categoria. Já fiz alguns cálculos por minha conta. Devemos contar com cerca de trezentos mil dólares por quarto. O custo do hotel vai ficar em cerca de sete milhões de dólares. Se planearmos tudo como deve ser, vai resultar.

O nome do arquitecto era Ted Tuttle. Quando ele ouviu os planos de Lara, sorriu e disse:

- Felizmente. Tenho estado à espera de alguém que avance com uma ideia como esta.

Passados dez dias úteis, apresentou os desenhos. Estava lá tudo aquilo com que Lara sonhava.

- Originariamente o hotel tinha cento e vinte e cinco quartos - disse o arquitecto. - Como vê, reduzi-os para setenta e cinco chaves, como me pediu.

No desenho havia cinquenta suites e vinte e cinco quartos de luxo.

- Está perfeito - disse Lara.

Lara mostrou os planos a Howard Keller, que ficou igualmente entusiasmado.

- Mãos à obra. Jà marquei uma reunião com um construtor. O nome dele é Steve Ries.

Steve Riee era um dos melhores construtores de Chicago. Lara gostou logo dele. Era um indivíduo de aspecto duro, directo e terra-a-terra.

Lara disse:

- Howard Keller diz-me que os senhores são os melhores.

- E tem razão - replicou Rice. - O nosso lema é Construir para a posteridade.

- É um lema interessante.

Rice sorriu.

- Veio-me à cabeça agora mesmo.

O primeiro passo consistiu em desdobrar cada elemento numa série de desenhos. Os desenhos foram enviados a potenciais subempreiteiros: fabricantes de aço, pedreiros, fabricantes de janelas, empresas de instalações eléctricas. Ao todo, os trabalhos envolviam mais de sessenta subempreiteiros.

No dia em que todos os cadernos de encargos ficaram entregues, Howard Keller tirou a tarde para celebrar com Lara.

- O banco não se importa que se ausente assim? - perguntou ela.

- Não - mentiu Keller. - Faz parte do meu trabalho. - A verdade era que tudo aquilo lhe estava a dar um prazer que não sentia havia alguns anos. Gostava de estar com Lara, gostava de falar com ela, de olhar para ela. Perguntava a si mesmo o que é que ela pensaria do casamento.

Lara disse:

- Li esta manhã que estão quase a terminar as Torres da Sears. São cento e dez andares. o edifício mais alto do mundo.

- É verdade - disse Keller.

Lara acrescentou num tom grave:

- Um dia vou construir um ainda mais alto, Howard. Ele acreditava.

Estavam a almoçar com Steve Rice no Whitehall.

- Diga-me o que é que vai acontecer a seguir - pediu Lara.

- Bom - disse Rice -, primeiro vamos limpar o interior. Mas conservamos o mármore. Arrancamos asjanelas e despejamos as casas de banho. Retiramos toda a instalação eléctrica para instalar as novas condutas e renovar as canalizações. Quando a empresa demolidora tiver terminado, poderemos começar a construir o seu hotel.

- Quantas pessoas vão trabalhar nisso?

Rice soltou uma risada.

- Uma multidão, Miss Cameron. Vem uma equipa para as janelas, outra para as casas de banho e outra para os corredores. Essas equipas vão trabalhar piso por piso, geralmente a partir de cima. Estão previstos dois restaurantes e serviço de quartos.

- Quanto tempo é que tudo isso vai levar?

- Digamos. com equipamento e mobiliário. dezoito meses.

- Dou-lhe um bónus se o acabar num ano - disse Lara.

- Óptimo. O Hotel dos Congressistas.

- Vou mudar-lhe o nome. Vai chamar-se Cameron Palace.

Lara sentiu um arrepio de entusiasmo só de pronunciar o nome. Era quase uma emoção sexual. O nome dela ia figurar num edifício para ser visto pelo mundo inteiro.

Às seis da tarde, numa manhã chuvosa de Setembro, começou a reconstrução do hotel. Lara estava no local, observando cheia de ansiedade os operários que entraram no vestíbulo e começaram a desmanchá-lo.

Com grande surpresa sua, Howard Keller apareceu também.

- Levantou-se cedo - disse Lara.

- Não conseguia dormir - replicou ele sorrindo. - Tenho a sensação de que isto vai ser o princípio de uma coisa em grande.

Doze meses mais tarde, o Cameron Palace abriu, para deleite da comunicação social e dos serviços de turismo.

O crítico arquitectónico do Tribune de Chicago escreveu "Chicago dispõe finalmente de um hotel à altura do lema A sua casa longe de casa! Lara Cameron é uma pessoa a não perder de vista."

No final do primeiro mês o hotel estava cheio e tinha uma longa lista de espera.

Howard Keller transbordava de entusiasmo:

- Por este andar, o hotel fica pago em doze anos. É uma maravilha. Nós.

- Não acho assim tão bom - disse Lara. -Vou aumentar os preços. - Vendo a expressão no rosto de Keller, acrescentou: - Não se preocupe. Eles pagam. Em que outro lugar podem ter dois fogões de sala, sauna e um piano de cauda?

Duas semanas após a abertura do Cameron Palace, Lara teve uma reunião com Bob Vance e Howard Keller.

- Descobri outro sítio excelente para um hotel - disse Lara. Vai ser como o Cameron Palace, apenas maior e melhor.

Howard Keller sorriu.

- Eu vou até lá dar uma vista de olhos.

O local era perfeito, mas havia um problema.

- Chegou tarde de mais - disse o agente para Lara. - Um construtor de nome Steve Murchison esteve cá esta manhã e já me fez uma oferta. Vai comprar.

- Quanto é que ele lhe ofereceu?

- Três milhões.

- Dou-lhe quatro. Trate dos papéis.

O agente só pestanejou uma vez.

- Está certo.

Lara recebeu um telefonema na tarde seguinte.

- Lara Cameron?

- Sim.

- Fala Steve Murchison. Desta vez vou deixar as coisas ficarem assim, sua cabra, porque acho que você não sabe que raio anda a fazer. Mas de futuro afaste-se do meu caminho, pois pode dar-se mal.

E a ligação foi cortada.

Estava-se em 1974 e pelo mundo fora ocorriam acontecimentos significativos. O presidente Nixon demitia-se para evitar a moção de desconfiança e Gerald Ford entrava na Casa Branca. A OPEC punha fim ao embargo do petróleo e Isabel Perón tornava-se presidente da Argentina. Em Chicago, Lara Cameron começava a construção do seu segundo hotel, o Chicago Cameron Plaza. Oito meses depois, a construção estava terminada e o sucesso foi ainda maior que o do Cameron Palace. A partir daí nada podia deter Lara. Como a revista Forbes viria a escrever mais tarde: Lara Cameron é um fenómeno. As suas inovações estão a modificar o conceito tradicional daquilo que é um hotel. Miss Cameron invadiu o território tradicionalmente masculino da construção e da urbanização e provou que uma mulher pode realmente levar a melhor.

Lara recebeu um telefonema de Charles Cohn.

- Parabéns - disse ele. - Tenho orgulho em ti. Nunca me tinha acontecido ser o conselheiro de alguém.

- E eu nunca tinha tido quem me aconselhasse. Sem a sua ajuda, nada disto teria sido possível.

- Terias arranjado maneira - disse Cohn.

Em 1975, o filme O Tubarão foi exibido no país inteiro e as pessoas deixaram de procurar o oceano. A população mundial ultrapassava os quatro biliões, menos um, quando o presidente da Teamster James Hoffa desapareceu. Quando Lara ouviu referir os quatro biliões, disse para Keller:

-Já se deu conta do que isso representa em termos de alojamento? Howard Keller não percebeu muito bem se ela estaria a brincar. Ao longo dos três anos seguintes, foram construídos dois prédios de apartamentos e um condomínio.

- A seguir quero construir um prédio de escritórios - disse Lara para Keller -, aqui mesmo no coração do Loop.

- Há uma propriedade interessante para venda - replicou Keller. - Se lhe agradar, nós financiamo-la.

Nessa mesma tarde foram ver o local. Ficava junto ao cais, uma localização excelente.

- Quanto é que isto vai custar?

- Já fiz as contas. Fica na casa dos cento e vinte milhões de dólares.

Lara engoliu em seco.

- Isso assusta-me.

- Lara, neste campo o segredo é pedir dinheiro emprestado.

O dinheiro dos outros, pensou Lara. Era o que Bill Rogers lhe tinha dito uma vez lá na pensão. Tudo isso parecia agora tão distante, tanta coisa tinha acontecido desde então. E isto é apenas o princípio, pensou. É apenas o princípio.

- Há quem levante prédios sem dispor praticamente de capital nenhum.

- Estou a ouvir.

- A ideia é alugar ou revender o prédio por um preço tal que dê para cobrir a dívida e ainda ficar com o capital suficiente para comprar outra propriedade e voltar a pedir dinheiro emprestado. É uma pirâmide invertida. a pirâmide da compra e venda de propriedades. que pode ser construída sobre um capital inicial mínimo.

- Estou a perceber - disse Lara.

- Claro que é preciso ter cuidado. A pirâmide é construída sobre papel. as hipotecas. Se alguma coisa corre mal, se o lucro de um investimento não consegue cobrir o débito do segundo, a pirâmide pode desmoronar-se e enterrar o seu construtor.

- Está certo. Como é que eu posso comprar essa propriedade junto ao cais?

- Vamos arranjar um empreendimento conjunto. Eu falo com o Vance. Se for de mais para o nosso banco, vamos a uma companhia de seguros ou a uma instituição de poupança e fomento. Você faz uma hipoteca de cinquenta milhões de dólares. Paga-lhes ojuro habitual, além da amortização e eles serão seus sócios. Os primeiros dez por cento dos lucros pertencem- lhes a eles, mas você terá a sua propriedade e o financiamento de que precisa. Pode repor o seu capital e guardar os cem por cento da depreciação; as instituições financeiras não querem nada com as perdas.

Lara escutava-o, absorvendo todas as suas palavras.

- Está a seguir-me?

- Estou.

- Dentro de cinco ou seis anos, depois de ter o prédio alugado, vende. Se a propriedade se vender por setenta e cinco milhões, depois de paga a hipoteca, terá doze milhões e meio limpos. Além disso, terá ainda um fluxo regular de oito milhões, livres de impostos, respeitantes à depreciação, e que poderá usar para reduzir os impostos sobre o restante rendimento. Tudo isto com um investimento em dinheiro da ordem dos dez milhões.

- Fantástico! - exclamou Lara.

Keller sorriu.

- O governo quer que você ganhe dinheiro.

- E você não gostaria de ganhar também algum, Howard? Dinheiro que se visse?

- Que é que quer dizer?

- Quero que você venha trabalhar para mim.

Keller ficou silencioso de repente. Sabia que estava perante uma das decisões mais importantes de toda a sua vida, mas que não tinha nada a ver com dinheiro. A questão era Lara. Keller estava apaixonado por ela. Tinha havido um episódio assaz doloroso em que ele tentara dizer-lho. Tinha passado a noite a ensaiar a sua proposta de casamento e na manhã seguinte fora direito a ela e gaguejara:

- Lara, eu gosto muito de si - e antes que pudesse acrescentar o que quer que fosse, ela beijara-o na face e ripostara:

- Eu também gosto muito de si, Howard. Veja só este novo programa de produção. - E ele nunca mais tivera coragem de recomeçar.

E agora Lara pedia-lhe que se juntasse a ela. Iriam trabalhar lado a lado, dia após dia, sem que pudesse tocar-lhe, sem que pudesse.

- Você acredita em mim, Howard?

- Era preciso ser louco para não acreditar, não acha?

- Pago-lhe o dobro do que está a ganhar actualmente e dou-lhe cinco por cento da empresa.

- Posso. posso pensar no assunto?

- Pensar em quê, não me diz?

E ele tomou uma decisão.

- Acho que tem razão. Não preciso pensar mais. sócia. Lara deu-lhe um abraço.

- Que bom! Os doisjuntos vamos construir coisas maravilhosas. Há prédios tão feios por toda a parte. E não há necessidade disso. Cada prédio que se constrói devia ser um tributo a esta cidade.

Keller pôs-lhe a mão no braço.

- Nunca mude, Lara.

Ela olhou-o bem de frente:

- Pode ter a certeza de que não.

 

O final da década de 70 foram anos de crescimento, mudança e excitação. Em 1976, o raid israelita a Entebbe foi coroado de êxito, Mao Tsetong morreu e James Earl Carter, Jr, foi eleito presidente dos Estados Unidos.

Lara ergueu um novo edificio de escritórios.

Em 1977 Charlie Chaplin morreu e Elvis Presley morreu temporariamente.

Lara construiu o maior centro comercial de Chicago. Em 1978 o reverendo Jim Jones e 911 seguidores cometeram suicídio em massa na Guiana. Os Estados Unidos reconheceram a China Comunista e os tratados do Canal do Panamá foram ratificados.

Lara construiu uma série de prédios de condomínios, bem altos, em Rogers Park.

Em 1979, Israel e o Egipto assinaram um tratado de paz em Camp David, houve um acidente nuclear em Three-Mile Island e os fundamentalistas maometanos ocuparam a embaixada dos Estados Unidos no Irão.

Lara construiu um arranha-céus, uma estância de férias elegante e um clube de campo em Deerfield, a norte de Chicago.

Lara raramente saía em sociedade e quando o fazia ia geralmente a um clube onde se tocava músicajazz. Agradava-lhe o Andy's, um clube onde actuavam os melhores músicos de jazz. Ouviu Von Freeman, o grande saxofonista, Eric Shneider, o flautista, Anthony Braxton e Art Hodes ao piano.

Não tinha tempo para se sentir só. Passava os dias com a sua família: os arquitectos e o pessoal da construção, os carpinteiros, os electricistas, os encarregados e os canalizadores. Estava obcecada pelos edifícios que construía. Chicago era o palco e ela a vedeta.

A sua vida profissional progredia para além do que alguma vez sonhara, mas não tinha vida pessoal. A experiência que tivera com MacAllister pusera-lhe um sabor amargo no campo das relações sexuais e nunca conheceu ninguém por quem se sentisse interessada para além de uma ou duas noites. No fundo do espírito de Lara existia uma imagem fugidia, alguém que encontrara uma vez e desejava encontrar de novo. Mas nunca conseguia fixar essa imagem. Surgia-lhe de modo fugidio e desaparecia de novo.

Havia muitos pretendentes. Iam de directores comerciais e homens do petróleo a poetas, incluindo mesmo alguns dos seus empregados. Lara era afável para todos os homens, mas nunca permitia que qualquer relação fosse além de um aperto de mão de boas noites à porta da sua residência.

A dada altura sentiu-se atraída por Pete Ryan, o encarregado principal de uma das suas obras, um jovem bem parecido e robusto com um sotaque irlandês e um sorriso vivo, e Lara começou a visitar o local de trabalho dele com cada vez mais frequência. Falavam dos problemas da construção, mas no fundo ambos tinham consciência de que estavam a falar de outras coisas.

- Vem jantar comigo? - perguntou Ryan.

A palavra jantar, foi ligeiramente prolongada. Lara sentiu o coração dar-lhe um salto no peito.

- Vou.

Ryan foi buscá-la ao apartamento, mas não chegaram a ir jantar.

- Meu Deus, você é um encanto - disse. E apertou-a nos braços fortes.

Lara estava pronta para ele. Havia meses que se preparavam para aquele momento. Ryan levantou-a do chão e levou-a para o quarto. Despiram-se juntos, depressa, com urgência. O corpo dele era magro e musculado e Lara reviu rapidamente em pensamento o corpo pesado e gorducho de Sean ManAllister. Logo a seguir estava na cama e Ryan em cima dela, percorrendo-lhe o corpo com as mãos e a língua e ela gritou de alegria com o que lhe estava a acontecer.

Quando ambos estavam exaustos, deixaram-se ficar nos braços um do outro.

- Meu Deus - disse Ryan suavemente -, você é um verdadeiro milagre.

- Você também - sussurrou-lhe Lara.

Não se lembrava de alguma vez se ter sentido tão feliz. Ryan era tudo o que sempre desejara. Era inteligente e meigo e compreendiam-se um ao outro, falavam a mesma língua.

Ryan apertou-lhe a mão.

- Estou faminto.

- Também eu. Vou arranjar umas sanduíches.

- Amanhã à noite - prometeu Ryan -, levo-a a jantar como deve ser.

Lara apertou-o mais.

- Está combinado.

Na manhã seguinte, Lara foi visitar Ryan na obra. Viu-o lá no alto sobre uma viga de áço, a dar ordens ao pessoal. Quando Lara se dirigia para o elevador de serviço, um dos operários sorriu-lhe.

- Bom dia, Miss Cameron. - Havia qualquer coisa de estranho na voz dele.

Outro operário passou por ela e sorriu também:

- Bom dia, Miss Cameron.

Dois outros trabalhadores sorriram-lhe de soslaio:

- Bom dia, Miss Cameron.

Lara olhou em volta. Havia outros homens a observá-la, todos com um sorriso irónico. O rosto de Lara ruborizou-se. Meteu-se no elevador de serviço e dirigiu-se para o piso onde se encontrava Ryan. Quando saiu, este viu-a e sorriu.

- Bom dia, minha querida - disse Ryan -, a que horas é hoje o jantar?

- Bem pode morrer de fome primeiro - ripostou Lara ferozmente. - Está despedido.

Cada edifício que Lara punha de pé era um desafio. Ela erigia pequenos prédios de escritórios, com uma área de mil e quinhentos metros quadrados por piso e grandes blocos de escritórios e hotéis. Mas fosse qual fosse o tipo de construção que estava a fazer, o mais importante para ela era a localização.

Bill Rogers estava certo. Localização, localização, localização. O império de Lara não parava de crescer. Começava a ser reconhecida pelos vereadores da cidade, pela imprensa e pelo público. Era uma figura que dava nas vistas e quando ia a alguma festa de caridade, à ópera ou a um museu, os fotógrafos ficavam ansiosos por a fotografar. Começou a aparecer cada vez mais nos meios de comunicação social. Todos os seus empreendimentos eram êxitos e mesmo assim não se sentia satisfeita. Era como se aguardasse que alguma coisa de maravilhoso lhe viesse a acontecer, como se esperasse que uma porta se abrisse, esperando ser tocada por uma magia desconhecida.

Keller mostrava-se espantado.

- Que é que você quer, Lara?

- Mais.

E não conseguia arrancar-lhe mais nada.

Um dia, Lara disse para Keller:

- Howard, sabe quanto estamos a pagar por mês aos porteiros, lavandarias e lavagem de janelas?

- Faz parte dos serviços.

- Então vamos comprar os serviços.

- Que é que quer dizer com isso?

- Que vamos abrir uma filial. Passamos a prestar todos esses serviços a nós próprios e a outras firmas.

A ideia foi um sucesso desde o início. Os lucros acumulavam-se.

Keller tinha a impressão de que Lara construíra uma barreira emocional em volta de si própria. Tinha com ela uma relação mais estreita que qualquer outra pessoa e, no entanto, Lara nunca lhe falara da família ou do passado. Era como se tivesse emergido tal como era de uma bruma sem princípio nem fim. A princípio, Keller tinha funcionado como mentor de Lara, ensinando-a a orientando-a, mas agora ela tomava todas as suas decisões sozinha. A aluna tinha ultrapassado o mestre.

Lara não permitia que nada se lhe atravessasse no caminho. Estava a tornar-se uma força irresistível e não havia nada que a fizesse parar. Era uma perfeccionista. Sabia o que queria e insistia em consegui-lo.

A princípio, alguns dos trabalhadores tentaram aproveitar- se dela. Nunca tinham trabalhado para nenhuma mulher e a ideia parecia-lhes divertida. Mas iam ter uma surpresa desagradável. Quando Lara apanhou um dos encarregados de caneta em punho a assinar trabalhos que não tinham sido feitos, chamou-o diante de todos e despediu-o. Aparecia nas obras todas as manhãs. O pessoal chegava às seis e já a encontravam lá, à espera. O sexismo era gritante. Os homens esperavam que Lara estivesse suficientemente perto para os ouvir e trocavam anedotas indecentes.

- Sabes aquela da rata do campo que era lésbica? Apaixonou- se por uma pila.

- E então a rapariga perguntou à mãe: Pode-se ficar grávida por ter engolido o sémen de um homem? Não, minha querida, respondeu a mãe, Geralmente fica-se é com umasjóias verdadeiras.

Havia também alguns gestos significativos. Uma vez por outra, um trabalhador que passava perto de Lara roçava-lhe acidentalmente com o braço pelos seios ou encostava-se-lhe ao traseiro.

- Oh, desculpe.

- Não tem importância - dizia Lara. - Vá buscar o seu cheque e desapareça daqui.

E os gracejos acabaram por se transformar em respeito.

Um dia Lara seguia de carro pela Kedzie Avenue, com Howard Keller, quando se lhe deparou um quarteirão inteiro cheio de pequenas lojinhas.

Parou o carro.

- Este quarteirão está a ser desperdiçado - comentou. - Aqui devia haver um edifício com vários andares. Estas pequenas lojas não devem dar grande rendimento.

- Sim, mas o problema é que teria de persuadir cada um destes inquilinos a sair - disse Keller. - Alguns deles podem não estar dispostos a isso.

- Paga-se-lhes - disse Lara.

- Lara, se lhe aparecer um que seja mais teimoso, pode ficar num beco sem saída. Depois de ter comprado uma porção de lojinhas em que não está interessada, pode ver que não consegue construir o prédio que desejava. E se os inquilinos souberem que vai ser construído aqui um prédio, vão tentar fazer contra-corrente.

- Não vamos deixar que eles percebam o que nós pretendemos - disse Lara. Estava a começar a ficar excitada. - Vamos fazer que os donos das lojas sejam contactados por pessoas diferentes.

- Já passei por situações semelhantes - preveniu Keller. - Se de alguma forma se vem a saber, eles esmifram-lhe tudo o que puderem.

- Isso só quer dizer que precisamos agir com cautela. Primeiro temos de conseguir a opção sobre a propriedade.

Aquele quarteirão da Kedzie Avenue era constituído por mais de uma dúzia de pequenos armazéns e lojas. Havia uma padaria, uma casa de ferragens, uma barbearia, uma loja de roupa, um talho, um alfaiate, uma drogaria, uma papelaria, um café e toda uma série de outras coisas.

- Não esqueça o risco - preveniu novamente Keller. -Basta que um não queira sair e você perde todo o dinheiro que gastou com os outros.

- Não se preocupe - disse Lara. - Eu trato disso.

Uma semana depois, um desconhecido entrou na barbearia, com as suas duas cadeiras. O barbeiro estava a ler uma revista. Quando a porta se abriu, levantou os olhos e fez um aceno de cabeça:

- Em que posso servi-lo? Deseja cortar o cabelo?

O desconhecido sorriu.

- Não - replicou. - Sou novo cá na cidade. Tinha uma barbearia em Nova Jérsia, mas a minha mulher quis mudar-se para cá, para ficar mais perto da mãe. Estou à procura de uma loja para comprar.

- Esta é a única barbearia que há aqui para estes lados - disse o barbeiro. - E não está à venda.

O desconhecido sorriu.

- No fundo, pode dizer-se que tudo está à venda, não é verdade? Pelo preço certo, claro. Quanto é que vale esta loja cinquenta, sessenta mil dólares?

- À volta disso - admitiu o barbeiro.

- A verdade é que estou ansioso por montar de novo o meu próprio estabelecimento. Olhe, dou-lhe setenta e cinco mil dólares por este.

- Não, nem me passa pela cabeça vendê-lo.

- Cem.

- Não, francamente, eu não.

- E deixo-o levar todo o equipamento consigo.

O barbeiro olhava-o fixamente.

- Dá-me cem mil dólares e deixa-me levar as cadeiras e o resto do equipamento?

- Isso mesmo. Compreende, eu tenho as minhas próprias coisas.

- Posso pensar no assunto? Tenho de falar com a minha mulher.

- Claro. Eu amanhã passo por cá.

Dois dias depois a barbearia tinha sido comprada.

- Essa já se foi - disse Lara.

A seguir foi a padaria. Era um pequeno negócio de família que pertencia a um casal. Os fornos, na sala do fundo, enchiam a loja com o cheiro a pão fresco. Uma mulher conversava com um dos proprietários.

- O meu marido morreu e deixou-me o dinheiro do seguro. Tínhamos uma padaria na Florida. Tenho andado à procura de um sítio exactamente como este. Gostava de o comprar.

- Dá-nos para viver decentemente - disse o proprietário. - A minha mulher e eu nunca pensámos em vender.

- E se pensassem quanto é que pediriam?

O proprietário encolheu os ombros.

- Não faço ideia.

- Acha que a padaria vale sessenta mil dólares?

- Pelo menos setenta e cinco - replicou o proprietário.

- Olhe - disse a mulher -, eu dou-Lhe cem mil.

O homem ficou a olhar para ela.

- Está a falar sério?

- Nunca disse nada mais sério em toda a minha vida. Na manhã seguinte, Lara disse:

- Já temos dois.

O resto das transacções decorreram com a mesma facilidade. Puseram em campo uma dúzia de homens e mulheres que se faziam passar por alfaiates, padeiros, farmacêuticos e cortadores. No decorrer dos seis meses seguintes, Lara comprou as lojas e depois contratou pessoas para virem ocupar-se dos diferentes ramos. Os arquitectos já tinham começado a fazer os projectos para o edifício.

Lara estudou os últimos relatórios.

- Parece que conseguimos - disse para Keller.

- Receio bem que ainda tenhamos um problema.

- Porquê? Só falta o café.

- É esse o nosso problema. O homem tem um contrato por cinco anos e não pretende desistir dele.

- Ofereçam-lhe mais dinheiro.

- Ele diz que não desiste por dinheiro nenhum.

Lara olhava-o fixamente.

- O homem já sabe alguma coisa acerca do prédio que vai ser construído?

- Não.

- Está bem. Eu vou falar com ele. Não se preocupe que ele sai. Descubra quem é o proprietário do prédio.

Na manhã seguinte, Lara foi ao local. O Haley's Coffee Shop ficava na extremidade sudoeste do bloco. Era uma loja pequena, com meia dúzia de bancos altos ao longo do balcão e seis compartimentos. Um homem que Lara tomou como sendo o proprietário encontrava-se por detrás do balcão. Parecia ter perto de 70 anos. Lara sentou-se num dos compartimentos.

- Bom dia - disse o homem em tom afável. - Que é que posso servir-lhe?

- Sumo de laranja e café, por favor.

- Vai já.

Lara ficou a vê-lo espremer o sumo de laranja.

-A minha empregada hoje não veio. É difícil arranjar pessoal em condições hoje em dia. - Tirou o café e saiu de detrás do balcão. Andava numa cadeira de rodas. Não tinha pernas. Lara ficou a olhá-lo em silêncio enquanto trazia o café e o sumo de laranja para a mesa.

- Obrigada - disse Lara. Depois olhou em volta. - O seu estabelecimento é muito agradável.

- É sim senhora. Gosto muito dele.

- Há quanto tempo está aqui?

- Dez anos.

- Já alguma vez pensou em se reformar.

Ele sacudiu a cabeça.

- É a segunda pessoa que me faz essa pergunta esta semana. Não, não tenciono reformar-me.

- Talvez não lhe tenham oferecido dinheiro suficiente - sugeriu Lara.

- Não tem nada a ver com dinheiro, menina. Antes de vir para aqui, passei dois anos num hospital de veteranos. Sem amigos. Sem uma finalidade na vida. Depois uma pessoa convenceu-me a alugar esta loja. - Sorriu. - Isso modificou totalmente a minha vida. Toda a gente das vizinhanças aparece por cá. Tornaram-se meus amigos, é quase como se fossem a minha familia. Passei a ter uma finalidade na vida. - Sacudiu a cabeça. - Não. O dinheiro não tem nada a ver. Posso trazer-lhe mais café?

Lara estava em reunião com Howard Keller e com o arquitecto.

- Nem sequer temos de o indemnizar - dizia Keller. - Falei há pouco com o senhorio. Há uma cláusula de rescisão se a loja não fizer uma determinada quantia por mês. Nos últimos meses, não tem atingido essa importância, portanto podemos fechar-lhe o café.

Lara voltou-se para o arquitecto:

- Quero fazer-lhe uma pergunta. - Olhou para os desenhos que estavam espalhados em cima da mesa e apontou para o canto sudoeste. - E se fizéssemos aqui um recesso, eliminássemos esta pequena área e deixássemos ficar o café? O edifício não ia sofrer nada com isso?

O arquitecto estudou o projecto.

- Acho que seria possível. Podia fazer-se um declive desse lado e contrabalançá-lo do outro. Claro que ficaria melhor sem isso...

- Mas pode fazer-se?

- Pode.

Keller atalhou:

- Lara, já lhe disse que podemos obrigar o homem a sair. Lara sacudiu a cabeça.

- Já comprámos o resto do quarteirão, não comprámos? Keller fez que sim com a cabeça.

- Sem dúvida. Você é proprietária de uma loja de vestuário, uma alfaiataria, uma papelaria, uma drogaria, uma padaria, uma...

- Muito bem - disse Lara. - Os ocupantes do novo prédio vão ter um café mesmo ao fundo das escadas. E nós também havemos de lá ir. O Haley fica.

No dia do aniversário do pai, Lara disse para Keller:

- Howard, queria que me fizesse um favor.

- Claro.

- Quero que vá à Escócia por mim.

- Vamos construir alguma coisa na Escócia?

- Vamos comprar um castelo. Ele ficou parado, a escutá-la.

- Há um sítio nos Highlands chamado Loch Morlich. Fica na estrada de Glenmore, perto de Aviemore. Há castelos aí por todo o lado. Compre um deles.

- Uma residência de Verão?

- Não tenciono habitá-lo. Quero enterrar lá o meu pai. Keller disse lentamente:

-Quer comprar um castelo na Escócia para enterrar lá o seu pai?

- Precisamente. Não tenho tempo para ir lá eu própria tratar disso e você é a única pessoa em quem posso confiar para fazer uma coisa dessas. O meu pai está no cemitério de Greenwood, em Glace Bay.

Era a primeira vez que Keller ficava a saber alguma coisa sobre os sentimentos de Lara em relação à família.

- Devia gostar muito do seu pai?

- Faz-me o que lhe pedi?

- Claro.

- Depois de ele ter sido enterrado, arranje alguém que se encarregue de tomar conta do túmulo.

Três semanas depois, regressouda Escócia e disse:

- Está tudo tratado. Você é dona de um castelo. O seu pai repousa dentro da propriedade. É um sítio muito bonito, perto das montanhas e de um pequeno lago. Vai adorar. Quando é que tenciona lá ir?

Lara olhou-o, surpreendida.

- Eu? É coisa que não tenciono fazer.

 

Em 1984, Lara Cameron decidiu que chegara a altura de conquistar Nova Iorque. Quando expôs o seu plano e Keller, ele ficou espantado.

- Não me agrada a ideia - disse friamente. - Você não conhece Nova Iorque. E eu também não. É uma cidade diferente, Lara. Nós.

- Foi o que me disseram quando vim de Glace Bay para Chicago

- comentou Lara. - Os edifícios são os mesmos, quer os construam em Glace Bay, em Chivago, Nova Iorque ou Tóquio. As regras dojogo são as mesmas.

- Mas você está a ter tanto êxito aqui - protestou Keller. - Que é que procura?

- Já lhe disse. Mais. Quero o meu nome na linha do horizonte de Nova Iorque. Vou construir lá um Cameron Plaza e um Centro Cameron. E um dia, Howard, vou construir o arranha-céus mais alto do mundo. É isso que eu quero. A Cameron Enterprises vai mudar-se para Nova Iorque.

Nova Iorque encontrava-se em plena fase de desenvolvimento no campo da construção, era lá que estavam todos os gigantes da construção e da urbanização - os Zeckendorfs, Harry Helmsley, Donald Trump, os Urises e os Rudins.

- Vamos entrar para o clube deles - disse Lara para Keller. Instalaram-se no Regency e começaram a explorar a cidade. Lara estava rendida perante o tamanho e o dinamismo da metrópole irrequieta. Era uma falésia de arranha-céus, atravessada por rios de carros.

- Vista daqui, Chicago parece Glace Bay! - disse Lara. Mal podia esperar para começar a trabalhar.

- A primeira coisa que vamos fazer é reunir uma equipa. Havemos de descobrir o melhor advogado de Nova Iorque em questões imobiliárias. Depois arranjamos uma grande equipa de gestão. Descubra quem é o pessoal de Rudin. Veja se consegue conquistá-los para nós.

- Certo.

Lara acrescentou:

- Aqui está uma lista de edifícios cujo aspecto me agradou. Descubra quem foram os arquitectos. Quero conhecê-los.

Keller começava a sentir a excitação de Lara.

- Vou abrir uma linha de crédito com os bancos. Com os bens que temos em Chicago, não há qualquer problema. Quero entrar em contacto com alguns bancos de poupança e fomento e com agentes de compra e venda de propriedades.

- Óptimo.

- Lara, antes de nos envolvermos em tudo isto, não acha que deveríamos decidir qual vai ser o seu próximo projecto?

Lara olhou para ele e perguntou com toda a inocência:

- Eu não lhe disse? Vamos comprar o Hospital Central de Manhattan.

Alguns dias antes, Lara tinha ido a um cabeleireiro em Madison Avenue. Enquanto lhe arranjavam o cabelo, escutara uma conversa no compartimento ao lado.

- Vamos sentir a sua falta, Mrs. Walker.

- Também eu, Darlene. Há quanto tempo é que eujá aqui vinha?

- Há quase quinze anos.

- Como o tempo voa. Vou sentir muitas saudades de Nova Iorque.

- Quando é que se vai embora?

- Já de seguida. Recebemos a informação esta manhã. Imagine, um hospital como o Manhattan Central a fechar por falta de dinheiro. Há quase vinte anos que trabalho lá como supervisora e mandam-me um simples memorando a dizer-me que estou dispensada! Podiam ao menos ter a delicadeza de mo dizer pessoalmente, não acha? Realmente, hoje em dia.

Lara estava agora a escutar com atenção.

- Não vi nada nos jornais.

- Não. Não têm querido dar publicidade ao caso. Querem dar primeiro a notícia aos empregados.

A cabeleireira estava a secar o cabelo de Lara com o secador de mão. Lara preparou-se para se levantar.

- Ainda não acabei, Miss Cameron.

- Não faz mal - disse Lara. - Estou com muita pressa.

O Hospital Central de Manhattan era um edifício delapidado e de aspecto horrível situado no East Side e que ocupava todo um quarteirão. Lara ficou largo tempo a olhá-lo e aquilo que via em espírito era um majestoso arranha-céus com lojinhas elegantes no rés-do-chão e condomínios de luxo nos andares superiores.

Lara entrou no hospital e informou-se sobre o nome da corporação à qual pertencia. Enviaram-na para o escritório de um tal Roger Burnham, em Wall Street.

- Em que posso servi-la, Miss Cameron?

- Ouvi dizer que o Hospital Central de Manhattan está à venda. Ele olhou-a surpreendido.

- Onde foi que ouviu isso?

- É verdade?

Ele defendeu-se.

- É possível que seja.

- E eu posso estar interessada em comprá-lo - disse Lara. Qual é o seu preço?

- Olhe, eu não a conheço de lado nenhum. Não pode entrar por aqui dentro e esperar que eu me ponha a discutir consigo um negócio de noventa milhões. Eu.

- Noventa milhões? - Lara tinha a sensação de que o preço era alto, mas ela queria a localização. Seria um começo excitante. - É isso que estamos a discutir?

- Nós não estamos a discutir coisa nenhuma.

Lara entregou a Roger Burnham uma nota de cem dólares.

- Para que é isto?

- Para cobrir uma opção de quarenta e oito horas. A única coisa que eu peço são quarenta e oito horas. De qualquer forma não estava preparado para tornar público que o hospital estava à venda. Que é que tem a perder? Se eu for ao encontro do seu preço, tem aquilo que queria.

- Mas eu não sei nada a seu respeito.

- Ligue para o Mercantile Bank em Chicago. Peça para falar com Bob Vance. É o presidente do banco.

Ele ficou a olhá-la longamente, sacudiu a cabeça e murmurou qualquer coisa em que figurava a palavra loucos. Procurou ele mesmo o número de telefone. Lara deixou-se ficar sentada no mesmo sítio enquanto a secretária dele fazia a ligação para Bob Vance.

- Sr. Vance? Daqui Roger Burnham, em Nova Iorque. Tenho aqui Miss. - levantou os olhos para ela.

- Lara Cameron.

- Miss Lara Cameron. Diz que está interessada em comprar uma propriedade nossa e diz que o senhor a conhece.

Ficou à escuta.

- Ah, sim. Estou a ver. Não, não sabia. Certo. Certo.

Passado um bom bocado, disse: - Muito obrigado. Pousou o auscultador e ficou a olhar para Lara.

- Parece que fez sensação lá em Chicago.

- E tenciono fazer sensação em Nova Iorque.

Burnham olhou para a nota de cem dólares.

- Que é que quer que eu faça com isto?

- Compre charutos cubanos. Tenho a opção se me dispuser a pagar o preço que pede?

Ele continuava sentado, a estudá-la.

- Não é muito ortodoxo, mas está bem. Dou-lhe 48 horas.

- Neste caso temos de andar depressa - disse Lara para Keller.

- Temos quarenta e oito horas para preparar o financiamento.

- Tem alguns números?

- Fiz uma estimativa. Noventa milhões pela propriedade e calculo que sejam mais uns duzentos milhões para demolir o hospital e construir o edifício.

Keller olhava-a fixamente.

- Isso são duzentos e noventa milhões de dólares.

- Você sempre foi rápido a fazer contas - disse Lara. Ele ignorou o comentário.

- Lara, de onde é que vem esse dinheiro todo?

- Pedimo-lo emprestado - disse Lara. - Com todos os bens que tenho em Chicago e a nova propriedade, não deve haver problema.

- É um grande risco. Há centenas de coisas que podem correr mal. Vai apostar tudo aquilo que tem.

- É isso que torna tudo tão excitante - ripostou Lara. - Apostar. E ganhar.

Conseguir o financiamento para um prédio em Nova Iorque era ainda mais fácil que em Chicago. O presidente da Câmara, Koch, tinha criado um programa de impostos chamado 421-A, segundo o qual um construtor que substituísse um edifício funcionalmente obsoleto, podia pedir isenção de impostos, ficando livre dos mesmos nos primeiros dois anos.

Quando os bancos e outras empresas financeiras tiraram informações sobre Lara Cameron, ficaram mais que ansiosos por fazer negócio com ela.

Antes de passadas as quarenta e oito horas, Lara entrou no escritório de Burnham e entregou-lhe um cheque de três milhões de dólares.

- Este é o pagamento inicial, para firmarmos o acordo - disse Lara. - Vou pagar-lhe o preço que pediu. A propósito, pode guardar os cem dólares.

No decorrer dos seis meses seguintes, Keller trabalhou com os bancos por causa do financiamento e Lara com os arquitectos por causa do projecto.

Tudo decorria normalmente. Os arquitectos, os construtores, os financeiros, todos estavam a funcionar dentro dos prazos previstos. Os trabalhos iam começar com a demolição do hospital e a construção do novo edifício devia ter início em Abril.

Lara estava impaciente. Todos os dias, às seis da manhã, estava no local a ver o novo edifício começar a subir. Sentia-se frustrada porque naquela fase o edifício pertencia aos operários. Não havia nada que ela pudesse fazer. Estava habituada a mais acção. Gostava de ter uma meia dúzia de projectos em curso ao mesmo tempo.

- Por que é que não procuramos outro empreendimento? - perguntou a Keller.

- Porque vocêjá está enterrada até ao pescoço com este. Basta-lhe respirar com um pouco mais de força para que tudo se desmorone. Sabe que enterrou até ao último tostão para conseguir pôr esta obra de pé? Se alguma coisa corre mal.

- Nada vai correr mal. - Lara observou a expressão dele. - Que é que o está a preocupar?

- O acordo que fez com o banco de poupança e fomento.

- Que é que tem? Conseguimos o financiamento, não conseguimos?

-Não me agrada a cláusula sobre a data de conclusão da obra. Se o edifício não estiver terminado até 15 de Março, eles tomam posse dele e você perde tudo o que tem.

Lara pensou no prédio que tinha construído em Glace Bay e como os amigos tinham posto mãos à obra e acabado o trabalho para ela.

- Não se preocupe - disse para Keller. - Vai ficar tudo pronto a tempo. Tem a certeza de que não podemos começar a procurar um novo projecto?

Lara estava a falar com o pessoal do banco.

- As lojas do rés-do-chão já estão todas reservadas - disse- lhe o director de marketing. - E mais de metade dos condomínios já foram comprados. Segundo os nossos cálculos, três quartos devem estar vendidos antes de terminada a construção e o resto sê-lo-á pouco depois.

- Quero que fiquem todos vendidos antes de o edifício estar pronto - disse Lara. - Active a publicidade.

- Muito bem.

Keller entrou no gabinete.

- Tenho de me render à evidência, Lara. Você tinha razão. Os prazos estão a ser cumpridos.

- Isto vai ser uma máquina de fazer dinheiro.

A 15 de Janeiro, seis dias antes da data final, a estrutura estava completa e os operários andavam a instalar os fios eléetricos e as canalizações.

Lara ficou ali a ver os homens trabalhar sobre as vigas mestras. Um deles parou para puxar de um maço de cigarros e nessa altura uma chave enorme escorregou-lhe das mãos e veio bater cá em baixo, no chão. Ele fez-lhe um gesto que significava desculpe.

Com ar carrancudo, Lara meteu-se no elevador da obra e fê-lo subir até ao nível onde se encontrava o homem. Ignorando a altura vertiginosa a que se encontrava, avançou até junto do operário.

- Foi você que deixou cair esta chave?

- Fui. Peço desculpa.

Ela deu-lhe uma bofetada com força.

- Está despedido. Saia daqui imediatamente.

- Eh - disse o homem -, foi um acidente, eu.

- Já daqui para fora.

O homem olhou-a por momentos com ar furioso, depois afastou-se e tomou o elevador para descer.

Lara respirou fundo, para se controlar. Os outros operários tinham os olhos postos nela.

- Continuem com o vosso trabalho - ordenou.

Lara estava a almoçar com Sam Gosden, o advogado de Nova Iorque que lhe tratava dos contratos.

- Oiço dizer que tudo está a correr bastante bem - disse Gosden. Lara sorriu.

- Bastante bem é pouco. Faltam-nos poucas semanas para tudo ficar pronto.

- Posso confessar-lhe uma coisa?

- Sim, mas tenha cuidado para não se incriminar. Ele riu.

- Estive quase a apostar que você não ia conseguir.

- Ah sim? E porquê?

- O negócio de propriedades, ao nível a que você está a trabalhar, é assunto para homens. As únicas mulheres que deviam actuar nesse campo são aquelas senhoras idosas de cabelo cinzento que vendem pequenos condomínios.

- Quer dizer que não acreditava em mim? - disse Lara. Sam Gosden sorriu.

-É verdade.

Lara inclinou-se para a frente.

- Sam.

- Sim?

- Não aceito ninguém na minha equipa que não acredite em mim. Está despedido.

Ele deixou-se ficar sentado, de boca aberta, enquanto Lara se levantava e saía do restaurante.

Na segunda-feira seguinte, logo de manhã, quando Lara se dirigia para a obra, sentiu que havia no ar alguma coisa de errado. E de repente percebeu o que era. Era o silêncio. Não se ouviam martelos nem brocas. Quando Lara chegou ao local, ficou a olhar, incrédula. Os trabalhadores estavam a reunir o equipamento e a ir-se embora. O capataz estava igualmente a arrumar as suas coisas. Lara foi apressadamente ao encontro dele.

- Que é que se passa? - perguntou. - São apenas sete horas da manhã.

- Vou levar os homens daqui.

- Que é que está a dizer?

- Houve uma queixa, Miss Cameron.

- Que espécie de queixa?

- A senhora deu uma bofetada a um dos homens?

- O quê? - Já se tinha esquecido. - Sim. Ele merecia. E despedi-o.

- Tem alguma licença especial para andar a esbofetear as pessoas que trabalham para si?

- Espere aí - disse Lara. - As coisas não se passaram assim.

Ele deixou cair uma chave. Quase me matou. Acho que perdi a cabeça. Tenho muita pena, mas não o quero cá mais.

- Ele também não vai voltar - replicou o capataz. - Nem nenhum de nós.

Lara ficou a olhar para ele.

- Isso é alguma brincadeira?

- O meu sindicato não pensa que seja uma brincadeira - replicou o capataz. - Deu-nos ordens para que nos puséssemos a andar. E é o que nós estamos a fazer.

- Mas vocês têm um contrato.

- A senhora é que o quebrou - disse o capataz. - Se tem alguma queixa a fazer, dirija-se ao sindicato.

E preparava-se para se ir embora.

- Espere aí. Eu já disse que lamento o que sucedeu. Olhe. Eu estou até disposta a pedir desculpa ao homem e ele pode voltar para cá.

- Miss Cameron, acho que não está a perceber a situação. Ele não quer voltar a trabalhar para si. Todos nós temos outros empregos à nossa espera. Nesta cidade há muito trabalho. E também lhe posso dizer mais uma coisa. Não temos necessidade de deixar que os nossos patrões nos ponham as mãos na cara.

Lara ficou parada a vê-lo afastar-se. Era o pesadelo maior que jamais vivera.

Voltou precipitadamente ao escritório para contar tudo a Keller. Antes mesmo que ela tivesse tempo de falar, ele disse:

- Já soube. Tenho estado em contacto com o sindicato pelo telefone.

- Que é que eles disseram? - perguntou Lara, ansiosa.

- Vão fazer uma sessão para o mês que vem.

O rosto de Lara traduziu o seu desalento.

- Para o mês que vem! Mas nós temos menos de dois meses para acabar o prédio.

- Foi o que eu lhes disse.

- E que é que eles responderam?

- Que o problema não era deles.

Lara deixou-se cair no sofá.

- Oh, meu Deus. Que é que nós vamos fazer?

- Não sei.

- Talvez pudéssemos persuadir o banco a. - Viu a expressão no rosto dele. - Pois, acho que não. - O rosto de Lara iluminou-se de repente. -Já sei. Contratamos uma equipa de trabalhadores diferentes e.

- Lara, não há um único operário sindicalizado que toque com um dedo naquele prédio.

- Eu devia era ter morto aquele malandro.

- Sim, isso teria ajudado bastante - replicou Keller, secamente. Lara pôs-se de pé e começou a andar de um lado para o outro.

- Podia pedir ao Sam Gosden que. - Mas de repente lembrou-se. - Não, eu despedi-o.

- Porquê?

- Não tem importância.

Keller pensava agora em voz alta.

- Talvez se pudéssemos arranjar um bom advogado em questões laborais. alguém influente.

- Isso é uma boa ideia. Uma pessoa que possa agir com rapidez. Conhece alguém?

- Não. Mas Sam Gosden citou um nome numa das nossas reuniões. Paul Martin. O nome era Paul Martin.

- Quem é?

- Não sei bem, mas estávamos a falar de problemas com sindicatos e ele citou esse nome.

- E sabe a que firma ele pertence?

- Não.

Lara tocou para a secretária.

- Kathy, há um advogado em Manhattan chamado Paul Martin. Arranje-me o endereço dele.

Keller disse:

- Não quer o telefone dele para marcar um encontro?

- Não há tempo. Não posso ficar aí sentada à espera que ele resolva receber-me. Vou hoje mesmo falar com ele. Se nos puder ajudar, muito bem. Se não puder, temos de arranjar outra solução.

Mas entretanto pensava consigo mesma: Não há outra solução.

 

O escritório de Paul Martin ficava no vigésimo quinto andar de um prédio de escritórios em Wall Street. Na porta lia-se: Paul MARTIN, ADVOGADO.

Lara respirou fundo e entrou. O gabinete de recepção era mais pequeno do que ela esperava. Continha uma mesa velha e riscada e, por detrás dela, uma secretária loura.

- Bom dia. Em que posso servi-la?

- Venho falar com o sr. Martin - disse Lara.

- Ele está à sua espera?

- Está sim. - Não havia tempo para entrar em explicações.

- E o nome?

- Cameron. Lara Cameron.

A secretária olhou-a com ar intrigado.

- Só um momento. Vou ver se o Sr. Martin a pode receber. Depois levantou-se e desapareceu do outro lado.

Ele tem de me receber, pensou Lara.

Passado um momento, a secretária voltou.

- O Sr. Martin vai recebê-la.

Lara disfarçou um suspiro de alívio.

- Obrigada.

Encaminhou-se para o gabinete por detrás da recepção. Era pequeno e estava mobilado com simplicidade. Uma secretária, dois sofás, uma mesinha baixa e algumas cadeiras. Não é propriamente uma cidadela de poder, pensou Lara. O homem que se encontrava sentado à secretária parecia ter à volta de 60 anos. Tinha o rosto marcado por rugas fundas, nariz adunco e os cabelos brancos e abundantes. Havia nele uma vitalidade feroz, animal. Vestia um fato antiquado, cinzento às riscas finas, com o casaco acertuado, e uma camisa branca de colarinho estreito. Quando falou fê-lo numa voz áspera e baixa, um tanto dominadora.

- A minha secretária disse-me que eu estava à sua espera.

- Peço desculpa - disse Lara. - Precisava absolutamente de lhe falar. É uma emergência.

- Sente-se, Miss.

- Cameron. Lara Cameron. - E instalou-se numa das cadeiras.

- Em que é que posso ser-lhe útil?

Lara respirou fundo.

- Estou com um pequeno problema. - Um esqueleto com vinte e quatro andares de aço e cimento por acabar, de pé sem servir para nada. - É por causa de um prédio.

- Qual é o problema?

- Eu negoceio em propriedades, Sr. Martin. Estou a meio da construção de um edifício em East Side e tenho um problema com o sindicato.

Ele escutava sem dizer nada.

Lara continuou.

- Descontrolei-me e dei uma bofetada a um dos operários e o sindicato mandou-os parar com o trabalho.

Ele observava-a, espantado.

- Miss Cameron. que é que tudo isso tem a ver comigo?

- Ouvi dizer que me poderia ajudar.

- Receio que tenha compreendido mal. Sou advogado de empresas. Não tenho nada a ver com a construção e não trato com sindicatos.

O coração de Lara quase lhe parou no peito.

- Pensei. Não pode realmente fazer nada?

Ele colocou as palmas das mãos em cima da mesa, como se fosse levantar-se.

- Posso dar-lhe alguns conselhos. Arranje um advogado especializado em questões laborais. Peça-lhe que ponha o sindicato em tribunal e.

- Não há tempo para isso. Tenho um prazo a cumprir e. Qual era o outro conselho?

- Deixe o negócio da construção. - Tinha os olhos postos nos seios dela. - Não está devidamente equipada para isso.

- O quê?

- Não é lugar para uma mulher.

- E que é que é lugar para uma mulher? - perguntou Lara, furiosa. - Descalça, grávida, na cozinha?

- Uma coisa assim.

Lara pôs-se de pé. Mal conseguia controlar-se.

- O senhor deve descender de uma longa linhagem de dinossauros. Provavelmente ainda não sabe a novidade. As mulheres agora são livres.

Paul Martin sacudiu a cabeça.

- Não. São apenas mais barulhentas.

- Bom dia, Sr. Martin. Desculpe ter-lhe tomado o seu precioso tempo.

Lara deu meia volta e saiu do gabinete batendo com a porta atrás dela. Parou já no corredor e respirou fundo. Tinha sido um erro, pensou. Tinha chegado finalmente a um beco sem saída. Arriscara tudo aquilo que tinha levado anos a construir, perdendo tudo num só impulso. Não tinha ninguém a quem recorrer. Nenhum sítio onde ir.

Estava tudo acabado.

Lara percorreu a pé as ruas frias e chuvosas, sem se aperceber do vento que soprava gelado ou daquilo que a rodeava. Tinha o espírito cheio com a ideia do desastre terrível que se abatera sobre ela. A advertência de Howard Keller ressoava-lhe aos ouvidos: Constroem-se os edifícios e pede-se dinheiro sobre eles. É como uma pirâmide, mas se não houver cuidado a pirâmide pode desmoronar-se. E era isso que tinha acontecido. Os bancos de Chicago iam tomar conta das propriedades que possuía lá e ela perderia todo o dinheiro que investira na construção mais recente. Teria de começar tudo de novo, a partir do nada. Pobre Howard, pensou. Ele acreditou nos meus sonhos e eu deixei-o ficar mal.

A chuva tinha parado e o céu começava a aclarar. Um sol desmaiado abria caminho por entre as nuvens. De repente, compreendeu que estava a amanhecer. Tinha caminhado a noite inteira. Lara olhou em volta e apercebeu-se pela primeira vez do sítio onde se encontrava. Estava apenas a dois quarteirões da propriedade condenada. Vou vê-la pela última vez, pensou com resignação.

Estava ainda a um quarteirão de distância quando começou a ouvir aquilo. Era o som de brocas pneumáticas e martelos e o rugir das misturadoras de cimento que enchiam o ar. Lara ficou parada um instante, à escuta, depois começou a correr em direcção ao local da obra.

Quando lá chegou ficou especada, a olhar, incrédula. Todos os operários se encontravam lá, trabalhando azafamados.

O capataz veio ao encontro dela, sorridente.

- Bom dia, Miss Cameron.

Finalmente, Lara conseguiu retomar o uso da palavra.

- O. o que é que está a acontecer? Julguei que ia retirar todos os homens da obra.

Ele replicou, um tanto embaraçado:

- Houve um pequeno mal-entendido, Miss Cameron. Bruno podia tê-la morto quando deixou cair aquela chave.

Lara engoliu em seco.

- Mas ele.

- Não se preocupe. Já cá não está. Não volta a acontecer uma coisa daquelas. E não se preocupe. Está tudo outra vez a correr normalmente.

Lara sentia-se como se estivesse a viver um sonho. Deixou-se ficar a ver os homens, como abelhas, que percorriam o esqueleto do edifício e pensou Tenho tudo de volta outra vez. Tudo. Paul Martin.

Telefonou-lhe logo que voltou para o escritório. A secretária informou:

- Lamento muito mas o Sr. Martin não se encontra.

- Pode pedir-lhe que ligue para mim, por favor? - Lara deixou o número.

Às três da tarde ainda não recebera nenhuma chamada dele. Ligou-lhe de novo.

- Lamento muito, mas o Sr. Martin não se encontra. Martin nunca chegou a ligar para ela.

Às cinco da tarde, Lara foi ao gabinete de Paul Martin. Disse para a secretária loura:

- Importa-se de dizer ao Sr. Martin que Lara Cameron está aqui para falar com ele?

A secretária levantou os olhos, indecisa.

- Bom, eu. é só um momento.

Desapareceu no gabinete interior e voltou um minuto depois:

- Pode entrar, se faz favor.

Paul Martin levantou os olhos quando ela entrou.

- Faz favor, Miss Cameron. - A voz dele era fria, nem agradável nem desagradável. - Em que posso ser-lhe útil?

- Vim agradecer-lhe.

- Agradecer-me o quê?

- Ter-me ajudado a resolver as coisas com o sindicato. Ele franziu a testa.

- Não sei do que é que está a falar.

- Os trabalhadores voltaram todos esta manhã. O trabalho está novamente dentro dos prazos.

- Bom, parabéns.

- Agradeço que me mande a conta dos seus honorários.

- Miss Cameron, acho que está um bocado confusa. Se o seu problema está resolvido, fico muito satisfeito. Mas eu não tive nada a ver com isso.

Lara ficou a olhá-lo longamente.

- Está bem. Desculpe tê-lo incomodado.

- Não há problema. - E ficou a vê-la sair do gabinete. Momentos depois a secretária entrou:

- Chegou esta encomenda para si, Sr. Martin.

Era um pequeno embrulho com uma fita vistosa. Curioso, abriu. Lá dentro, via-se um cavaleiro em prata, vestido com a sua armadura, pronto para a batalha. Um pedido de desculpas. Que foi que ela me chamou? Um dinossauro. Parecia-lhe ouvir ainda a voz do avô. Eram tempos perigosos, Paul. Os jovens decidiram assumir o controlo da Mafia, desembaraçar-se dos velhos, dos Petes de grandes bigodes, os dinossauros. Foi uma tarefa sangrenta, mas eles conseguiram.

Mas tudo isso se passara havia muito, muito tempo, na velha Sicília.

 

Gibelline, Sicilia -1879

Os Martinis eram stranieri - forasteiros, na pequena aldeia siciliana de Gibelline. Era uma região desolada, uma terra árida de morte, banhada por um sol escaldante e impiedoso, uma paisagem pintada por um artista sádico. Numa terra onde as grandes propriedades pertenciam aos gabelloti, os senhores ricos, os Martinis tinham comprado uma pequena quinta e tentavam ocupar-se dela.

O soprintendente tinha ido um dia visitar Giuseppe Martini.

- Esta sua quintinha - disse - tem um chão tão pedregoso. Não vai conseguir ganhar a vida a cultivar oliveiras e vinha.

- Não se preocupe comigo - replicou Martini. - Toda a minha vida tenho trabalhado na terra.

- Mas nós estamos todos preocupados consigo - insistiu o soprintendente. - Don Vito tem algumas boas terras de cultura que está disposto a arrendar-lhe.

- Já ouvi falar em Don Vito e nas suas terras - disse Guiseppe Martini com uma risada. - Se eu assinar uma mezzadria para lhe cultivar a terra, ele leva-me três quartos das colheitas e faz-me pagar cem por cento de juros pela semente. E eu acabo por ficar sem nada como os outros patetas que fazem negócio com ele. Diga-lhe que a minha resposta é não, muito obrigado.

- Está a cometer um erro, signore. Isto aqui é perigoso. Podem vir a acontecer-lhe acidentes graves.

- Está a ameaçar-me?

- De maneira nenhuma, signore. Estava apenas a chamar-lhe a atenção.

- Saia das minhas terras - disse Giuseppe Martini. O outro olhou-o longamente, depois sacudiu a cabeça com ar de desalento.

- O senhor é um homem teimoso.

O filho de Giuseppe Martini, Ivo, disse:

- Quem era aquele homem, Pai?

- É o capataz de um dos grandes proprietários.

- Não gostei nada dele - disse o rapazito.

- Nem eu, Ivo.

Na noite seguinte, as plantações de Giuseppe Martini arderam e o pouco gado que tinha desapareceu.

Foi nessa altura que Giuseppe Martini cometeu o seu segundo erro. Foi à aldeia procurar a guardia.

- Venho pedir protecção - disse.

O chefe da polícia estudou-o, impassível.

- É para isso que nós aqui estamos - replicou. - Qual é o seu problema, signore?

- A noite passada, os homens de Don Vito pegaram fogo às minhas plantações e roubaram-me o gado.

- Isso é uma acusação grave. Pode prová-la?

- O soprintendente de Don Vito veio procurar-me e ameaçou-me.

- E disse que iam queimar-lhe as plantações e roubar-lhe o gado?

- Claro que não - retorquiu Giuseppe Martini.

- Que foi que ele lhe disse?

- Que eu devia desistir da quinta e arrendar terras a Don Vito.

- E o senhor recusou?

- Naturalmente.

- Signore, Don Vito é um homem muito importante. Quer que eu o prenda só porque ele se ofereceu para partilhar consigo as suas terras férteis?

- O que eu quero é que me protejam - suplicou Giuseppe Martini. - Não vou permitir que eles me expulsem das minhas terras.

- Signore, pode contar com a minha boa vontade. Vou ver o que é que posso fazer.

- Ficar-lhe-ia muito grato.

- Pode contar com isso.

Na tarde seguinte, o jovem Ivo regressava da cidade quando viu meia dúzia de homens a cavalo que se dirigiam para a quinta do pai. Desmontaram e encaminharam-se para a casa.

Minutos depois, Ivo viu o pai ser arrastado cá para fora. Um dos homens puxou de uma arma.

- Vamos dar-te a possibilidade de fugires. Corre!

- Não! Esta terra é minha! Eu.

Ivo ficou a ver, aterrorizado, enquanto o homem disparava para o chão, junto dos pés do pai.

- Corre!

Giuseppe Martini começou a correr.

Os campieri montaram nos seus cavalos e começaram a galopar à volta de Martini, ao mesmo tempo que soltavam brados.

Ivo escondeu-se, contemplando, horrorizado, a cena que se desenrolava diante dos seus olhos.

Os cavaleiros ficaram a ver o homem correr de um lado para o outro pelo campo fora, tentando fugir. Cada vez que ele chegava perto da estrada, um deles corria a barrar-lhe o caminho, atirando-o ao chão. O camponês estava exausto e ensanguentado. Corria cada vez mais devagar.

Os campieri decidiram que já se tinham divertido bastante. Um deles pôs uma corda em volta do pescoço do homem e arrastou-o na direcção do poço.

- Porquê? - perguntava ele arquejante. - Que foi que eu fiz?

- Foste procurar a guardia. Não devias ter feito isso. Os campieri baixaram as calças da vítima e um deles puxou de uma faca enquanto os outros o agarravam.

- Que isto te sirva de lição.

O homem gritou:

- Não, por favor! Eu peço desculpa.

O campiero sorriu:

- Pede desculpa mas é à tua mulher.

Depois estendeu a mão, agarrou o membro do homem e cortou-o com a faca.

Os gritos dele atroavam os ares.

- Já não vais precisar mais dele - garantiu-lhe o chefe do bando. Pegou no membro e enfiou-o na boca do homem. Este teve um vómito e cuspiu-o para o chão.

O capitão olhou para os outros campieri.

- Não lhe agrada o gosto.

Um dos campieri desceu do cavalo e apanhou do chão umas quantas pedras pesadas. Depois puxou para cima as calças ensanguentadas da vítima e encheu-lhe as algibeiras com as pedras.

- Vamos embora. - Levantaram o homem e transportaram-no até à parte de cima do poço. - Desejo-te boa viagem.

E atiraram-no lá para dentro.

- Amanhã a água vai saber a mijo - disse um deles. Outro riu-se.

- Os campónios nem dão por nada.

Deixaram-se ficar um momento a ouvir os sons cada vez mais espaçados e depois o silêncio. Em seguida montaram nos cavalos e dirigiram-se para a casa.

Ivo Martini manteve-se à distância, assistindo a tudo, horrorizado, escondido pela vegetação. Depois o rapazito de 10 anos correu para o poço.

Olhou lá para baixo e sussurrou:

-Pai...

Mas o poço era fundo e não se ouvia nada.

Depois de terem acabado com Giuseppe Martini, os camperi foram procurar a mulher dele, Maria. Estava na cozinha quando eles entraram.

- Onde está o meu marido? - perguntou.

Um sorriso irónico.

- A beber água.

Dois dos homens começaram a aproximar-se dela. Um deles disse:

- Tu és bonita de mais para estares casada com um tipo tão feio.

- Saiam imediatamente da minha casa! - ordenou Maria.

- É assim que tratas as visitas? - Um dos homens estendeu a mão e rasgou-lhe o vestido. - Vais ter de te vestir de viúva, esta roupa agora já não te faz falta.

- Besta!

Havia uma cafeteira ao lume com água a ferver. Maria pegou nela e atirou-a à cara do homem.

Ele gritou de dor.

- Fica - Puxou da arma e disparou sobre ela. A mulher morreu antes mesmo de tocar no chão.

O capitão berrou:

-Idiota! Primeiro servias-te dela, depois é que a matavas. Bom, vamos apresentar-nos a Don Vito.

Meia hora depois estavam de volta à propriedade de Don Vito.

- Tratámos da saúde ao homem e à mulher - informou o capitão.

- E o filho?

O capitão olhou para Don Vito, surpreendido.

- Não nos tinha dito nada acerca do filho.

- Cretino! Eu disse que despachassem a família.

- Mas ele não passa de um rapaz, Don Vito.

- Os rapazes transformam-se em homens. E os homens pensam em vingança. Matem-no.

- Muito bem.

Dois dos homens regressaram à quinta dos Martini.

Ivo estava em estado de choque. Assistira ao assassinato do pai e da mãe. Estava sozinho no mundo, sem ter nenhum sítio para onde ir e ninguém a quem recorrer. Alto! Havia uma pessoa a quem podia recorrer: o irmão do pai, Nunzio Martini, em Palermo. Ivo sabia que tinha de se despachar. Os homens de Don Vito não tardariam a aparecer de novo para o matar. Perguntava a si mesmo por que é que não o tinham feito já. O rapazito meteu alguma coisa de comer numa mochila, pô-la ao ombro e saiu dali a toda a pressa.

Ivo dirigiu-se para a pequena estrada de terra batida que levava à aldeia e pôs-se a andar veloz. Sempre que ouvia o ruido de alguma carroça, saía da estrada e escondia-se no meio das árvores.

Uma hora depois de se ter metido a caminho, viu um grupo de campieri que seguiam pela estrada a cavalo, à procura dele. Ivo deixou-se ficar escondido, sem se mexer, mesmo muito depois de eles terem desaparecido. Depois começou novamente a sua caminhada. À noite, dormia nos pomares e alimentava-se com os frutos das árvores e os vegetais das hortas. Viajou assim durante três dias.

Quando sentiu que já estava em segurança no que dizia respeito a Don Vito, aproximou-se de uma aldeia. Uma hora depois, seguia na parte de trás de uma carrinha que ia para Palermo.

Ivo chegou a casa do tio a meio da noite. Nunzio Martini vivia numa casa espaçosa, de aspecto abastado, nos arrabaldes da cidade. Tinha uma grande varanda, um terraço e um pátio. Ivo bateu com força na porta principal. Houve alguns momentos de silêncio e depois uma voz funda bradou:

- Quem diabo está aí?

- É o Ivo, tio Nunzio.

Momentos depois, Nunzio Martini abria a porta. O tio de Ivo era um homem grande, de meia-idade, com um generoso nariz romano e cabelos brancos e soltos. Estava em camisa de noite. Olhou para o rapaz, surpreendido.

- Ivo! Que fazes tu aqui a meio da noite? Onde estão o teu pai e a tua mãe?

- Estão mortos - soluçou Ivo.

- Mortos? Entra, entra. Ivo entrou a cambalear.

- Isso é uma notícia terrível. Foi algum acidente? Ivo sacudiu a cabeça.

- Foi Don Vito que os mandou matar.

- Mandou-os matar? Mas porquê?

- O meu pai recusou-se a arrendar as terras dele.

- Ah.

- Por que é que ele os mandou matar? Nunca lhe fizeram nada de mal.

- Não foi nada de pessoal - disse Nunzio Martini. Ivo ficou a olhar para ele.

- Nada de pessoal? Não entendo.

- Toda a gente conhece Don Vito. Tem a sua reputação. É um uomo rispettato. um homem de respeito e poder. Se deixasse o teu pai desafiá-lo, outros poderiam tentar desafiá- lo também e ele perderia o prestígio. Não há nada a fazer.

O rapaz ficou a olhar para ele, espantado.

- Nada?

- Neste momento não, Ivo. Neste momento não. Entretanto, tu precisas de dormir.

No dia seguinte, ao pequeno-almoço, voltaram a falar.

- Gostarias de viver nesta casa e trabalhar para mim? - Nunzio Martini era viúvo.

- Acho que gostava - disse Ivo.

- Fazia-me jeito ter por cá um rapazinho esperto como tu. E ao mesmo tempo pareces forte.

- Eu sou forte - corroborou Ivo.

- Óptimo.

- Que é que o senhor faz, Tio? - perguntou Ivo.

Nunzio Martini sorriu.

- Protejo as pessoas.

A Mafia tinha surgido por toda a Sicília e noutras regiões igualmente pobres de Itália para proteger as pessoas de um governo impiedoso e autocrata. A Mafia corrigia as injustiças e vingava os maleficios e acabou por se tornar tão poderosa que era temida pelo próprio governo e recebia tributos dos comerciantes e agricultores.

Nunzio Martini era o capo da Mafia em Palermo. Encarregava-se de fazer com que fossem recebidos os tributos devidos e com que fossem punidos aqueles que não pagavam. A punição ia de um braço ou uma perna partidos a uma morte lenta e dolorosa.

Ivo foi trabalhar para o tio.

No decorrer dos quinze anos seguintes, Palermo foi a escola de Ivo e o tio Nunzio o seu professor. Ivo começou como moço de recados, depois passou a cobrador e por fim tornou-se um dos homens de confiança do tio. Aos 25 anos, Ivo casou com Carmela, uma siciliana sadia, e um ano depois tiveram um filho, Gian Carlo. Ivo mudou-se com a familia para a sua própria casa. Quando o tio morreu, Ivo passou a ocupar a posição dele e tornou-se ainda mais bem sucedido e próspero. Mas ainda tinha um negócio inacabado.

Um dia disse para Carmela:

- Começa a fazer as malas. Vamos para a América. Ela olhou-o surpreendida.

- Por que é que nós vamos para a América?

Ivo não estava habituado a que lhe fizessem perguntas.

- Faz o que eu te digo. Agora vou sair e volto daqui a dois ou três dias.

- Ivo.

- Faz as malas.

Três macchine pretas pararam diante da esquadra daguardia de Gibellina. O capitão, que entretanto engordara uns quinze quilos, estava sentado diante da secretária quando a porta se abriu e seis homens entraram por ali dentro. Todos eles bem vestidos e com ar próspero.

- Bom dia, meus senhores. Em que posso servi-los?

- Nós é que viemos para o servir a si - disse Ivo. - Lembra-se de mim? Sou o filho de Giuseppe Martini.

Os olhos do capitão da polícia abriram-se desmedidamente.

- O senhor - disse. - Que é que está aqui a fazer? Isso é perigoso para si.

- Vim por causa dos seus dentes.

- Dos meus dentes?

- Sim. - Dois dos homens de Ivo aproximaram-se do capitão e prenderam-lhe os braços ao lado do corpo. - Está a precisar de um tratamento. Eu faço-lho.

Ivo enfiou a pistola na boca do homem e puxou o gatilho. Depois voltou-se para os companheiros.

- Vamos.

Quinze minutos depois, os três automóveis aproximavam-se da casa de Don Vito. Havia dois guardas à porta, que observavam a procissão cheios de curiosidade. Quando os carros pararam, Ivo saiu.

- Bom dia. Don Vito está à nossa espera - disse.

Um dos guardas franziu a testa.

- Ele não nos disse que.

No mesmo instante os guardas foram baleados. As armas estavam carregadas com lupare, cartuchos com grandes bolas de chumbo, um truque dos caçadores para espalhar os chumbos. Os guardas ficaram feitos em pedaços.

Dentro de casa, Don Vito ouviu os tiros. Quando olhou pela janela e viu o que estava a acontecer, dirigiu-se rapidamente a uma gaveta e tirou de lá um revólver.

- Franco! - chamou. - António! Depressa.

Ouviram-se mais tiros lá fora.

Uma voz disse:

- Don Vito.

Ele rodou sobre si mesmo.

Ivo estava diante dele, de pistola na mão.

- Largue a arma.

-Eu...

- Largue-a.

Don Vito deixou cair a pistola.

- Leve o que quiser e saia daqui.

- Não quero nada - disse Ivo. - Para falar verdade, vim aqui porque estou em dívida para consigo.

Don Vito replicou:

- Seja o que for, estou pronto a esquecer.

- Mas eu não. Sabe quem eu sou?

- Não.

- Ivo Martini.

O velho franziu a testa, tentando lembrar-se. Encolheu os ombros.

- Não me diz nada.

- Já lá vão mais de quinze anos. Os seus homens mataram a minha mãe e o meu pai.

- Isso é horrível - exclamou Don Vito. - Vou mandá-los castigar e.

Ivo estendeu o braço e bateu-lhe com a arma no nariz. O sangue começou a correr.

- Não é preciso nada disto - arquejou Don Vito. - Eu.

Ivo puxou de uma faca.

- Baixe as calças.

- Não! - A voz saiu-lhe num grito. - Pense no que está a fazer. Eu tenho filhos e irmãos. Se me fizer mal, eles vão atrás de si e matam-no como um cão.

- Se conseguirem encontrar-me - comentou Ivo. - As calças.

- Não.

Ivo disparou-lhe para um dos joelhos. O velho gritou de dor.

- Eu ajudo-o - disse Ivo. Estendeu os braços e baixou as calças ao velho, depois as cuecas. - Já não há aí grande coisa, pois não? Bom, temos de nos arranjar como pudermos. - Agarrou o membro de Don Vito e cortou-lho com a faca.

Don Vito desmaiou.

Ivo agarrou no pénis e enfiou-lho na boca.

- Desculpe, mas não tenho aqui nenhum poço para o atirar lá para dentro - disse. Antes de se ir embora, deu-lhe um tiro na cabeça, depois voltou-se e encaminhou-se para o carro. Os amigos estavam à espera dele.

- Vamos.

- Ele tem uma familia numerosa, Ivo. Vão persegui-lo.

- Que persigam.

Dois dias mais tarde, Ivo, a mulher e o filho, Gian Carlo, seguiam de barco a caminho de Nova Iorque.

Nos finais do século passado, o Novo Mundo era uma terra de oportunidades. Nova Iorque tinha uma larga população de italianos. Muitos dos amigos de Ivo já tinham emigrado para a grande cidade e decidido usar a sua habilidade naquilo que conheciam melhor: o jogo da protecção. A Mafia começava a estender os seus tentáculos. Ivo anglicizou o seu nome de familia mudando de Martini para Martin e gozou de uma prosperidade ininterrupta.

Gian Carlo foi uma grande decepção para o pai. Não tinha qualquer interesse pelo trabalho. Aos 27 anos engravidou uma rapariga italiana, casou com ela numa cerimónia discreta e apressada e três meses mais tarde tiveram um filho, Paul.

Ivo tinha grandes planos para o neto. Os advogados eram muito importantes na América e Ivo decidiu que o neto devia estudar Direito. O rapaz era ambicioso e inteligente e aos 22 anos de idade foi admitido na Faculdade de Direito de Harvard. Logo que Paul se formou, Ivo arranjou maneira de ele entrar para uma prestigiada firma de advogados da qual não tardou a tornar-se sócio. Cinco anos depois, Paul abriu a sua própria firma de advocacia. Nessa alturajá Ivo fizera investimentos importantes em negócios legítimos, mas continuava a manter os seus contactos com a Mafia e o neto tratava-lhe dos assuntos comerciais. Em 1967, o ano da morte de Ivo, Paul casou com uma rapariga italiana e um ano mais tarde a mulher teve dois gémeos.

Na década de 70 Paul tinha muito que fazer. Os seus principais clientes eram os sindicatos e por essa razão ocupava uma posição de poder. As figuras máximas do comércio e da indústria estavam dependentes dele.

Um dia, Paul estava a almoçar com um cliente, Bill Rohan, um banqueiro respeitável que não sabia nada da ascendência de Paul.

- Devia fazer-se membro do Sunnyvale, o meu clube de golfe - disse Bill Rohan. - Joga golfe, não joga?

- Ocasionalmente - replicou Paul. - Quando arranjo tempo.

- Óptimo. Eu faço parte do comité de admissão. Quer que apresente o seu nome como candidato a membro?

- Ficar-lhe-ia grato.

Na semana seguinte, a direcção do clube reuniu para discutir as novas propostas. Veio à baila o nome de Paul Martin.

- Posso recomendá-lo - disse Bill Rohan. - É bom homem. John Hammond, outro membro da direcção, disse:

- É italiano, não é? Acho que não precisamos de mais spaghetti neste clube, Bill.

O banqueiro olhou para ele.

- Vai dar-lhe a bola preta?

- Pode ter a certeza disso.

- Okay, passamos ao seguinte.

E a reunião continuou.

Duas semanas mais tarde Paul Martin almoçou novamente com o banqueiro.

- Tenho andado a aperfeiçoar-me no golfe.

Bill Rohan mostrou-se embaraçado.

- Houve um pequeno problema, Paul.

- Um problema?

- Eu fiz a proposta do seu nome, mas um dos directores deu-lhe a bola preta.

- Ah? Porquê?

- Não é nada de pessoal. Ele é que é intolerante e não gosta de italianos.

Paul sorriu.

- Isso não me faz diferença nenhuma, Bill. Há muita gente que não gosta de italianos. Esse tal...

- Hammond. John Hammond.

- O negociante de carnes?

- Sim. Mas ele vai mudar de ideias. Tenciono falar com ele... Paul sacudiu a cabeça.

- Não se incomode. Para falar verdade eu nem ligo muito ao golfe.

Seis meses depois, em pleno mês de Julho, quatro camiões refrigerados da Hammond Meat Packing Company, carregados com lombos de porco, bifes e pernas de porco, que se dirigiam da fábrica de embalagem do Minnesota para os supermercados de Buffalo e Nova Jérsia, encostaram à berma da estrada. Os condutores abriram as portas de trás e foram-se embora.

Quando John Hammond soube do que tinha acontecido, ficou furioso. Mandou chamar o gerente.

- Que diabo é que se está a passar? - perguntou. - Um milhão e meio de dólares de carne estragada ao sol. Como é que pode ter acontecido uma coisa destas?

- O sindicato convocou uma greve - disse o encarregado.

- Sem nos dizer nada? E qual é o motivo da greve? Mais dinheiro?

O encarregado encolheu os ombros.

- Não sei. Não me disseram nada. Limitaram-se a abandonar os carros.

- Diga ao delegado sindical que venha falar comigo. Eu resolvo a questão - disse Hammond.

Nessa tarde o delegado sindical foi introduzido no gabinete de Hammond.

- Por que é que ninguém me preveniu de que ia haver greve? perguntou este.

O delegado replicou, desculpando-se:

- Eu próprio também não sabia, Sr. Hammond. Os homens puseram-se furiosos e foram-se embora. Foi tudo muito rápido.

- O senhor sabe que eu tenho sido sempre razoável em todas as negociações. Que é que eles querem? Um aumento?

- Não senhor. É o sabonete.

Hammond ficou parado a olhar para ele.

- Foi sabonete que disse?

- Precisamente. Eles não gostam do sabonete que lhes põem nas casas de banho. É demasiado forte.

Hammond nem conseguia acreditar no que ouvia.

- O sabonete era demasiado forte? E foi por isso que eu perdi um milhão e meio de dólares?

- Eu não tenho culpa - disse o encarregado. - Os homens é que disseram.

- Santo Deus - exclamou Hammond. - Eu não posso acreditar. Que espécie de sabonete é que eles gostariam. lanolina pura? Deu um murro na mesa com o punho fechado. - Da próxima vez que os homens tiverem um problema venha primeiro falar comigo. Ouviu?

- Muito bem, Sr. Hammond.

- Diga-lhes que voltem para o trabalho. Antes do fim do dia terão o melhor sabonete que houver no mercado. Estamos entendidos?

- Eu digo-lhes, Sr. Hammond.

John Hammond ficou ali sentado durante bastante tempo, a espumar de raiva. Não admira que este país vá de mal a pior, pensou. Sabonete!

Duas semanas mais tarde, às doze horas de um dia escaldante de Agosto, cinco camiões da Hammond Meat Packing que iam entregar carne a Siracusa e Bóston encostaram à berma da estrada. Os condutores abriram as portas traseiras dos camiões frigoríficos e foram-se embora.

John Hammond soube da notícia às seis da tarde.

- Que raio é que me está a dizer? - gritou. - Não pôs lá o novo sabonete?

- Pus, sim, logo no mesmo dia em que me mandou.

- Então que diabo é que temos desta vez?

O gerente respondeu, desesperado:

- Não sei. Ninguém se queixou. Ninguém me disse nada.

- Vá-me chamar esse estupor do delegado sindical. Às sete da noite, Hammond estava a falar com o delegado sindical.

- Esta tarde estragaram-se dois milhões de dólares de carne por causa dos seus homens - berrou Hammond. - Será que eles endoideceram?

- Quer que transmita a sua pergunta ao presidente do sindicato, Sr. Hammond?

- Não, não - replicou apressadamente Hammond. - Até aqui, nunca tive problemas com vocês. Se os homens querem mais dinheiro, que venham ter comigo para nós discutirmos a questão como pessoas razoáveis. Quanto é que eles estão a pedir?

- Nada.

- O quê?

- Não se trata de dinheiro, Sr. Hammond.

- Oh? Então que é?

- As luzes.

- Luzes? - Hammond pensou que não tinha ouvido bem.

- Sim. Os homens queixam-se de que as luzes nos vestiários são muito fracas.

John Hammond recostou-se na cadeira e ficou silencioso de repente.

- Que é que se está a passar? - perguntou com voz branda.

- Já expliquei, os homens acham.

- Deixe-se dessas tretas. Que é que se está a passar? O delegado sindical respondeu:

- Se eu soubesse, dizia-lhe.

- Alguém está a tentar torpedear-me o negócio? É isso? O delegado sindical manteve-se silencioso.

- Muito bem - disse John Hammond. - Dê-me um nome. Com quem é que eu posso falar?

- Há um advogado que talvez pudesse ajudá-lo. O sindicato recorre muitas vezes a ele. O nome é Paul Martin.

- Paul. - E de repente John Hammond lembrou-se. - Um patife de um chantagista. Saia imediatamente daqui - gritou. Saia!

Hammond ficou sentado, a ferver. Ninguém faz chantagem comigo. Ninguém.

Uma semana depois, mais seis dos seus camiões frigoríficos foram abandonados em desvios.

John Hammond arranjou um almoço com Bill Rohan.

- Tenho estado a pensar no seu amigo Paul Martin - disse Hammond. - Acho que foi um bocado de maldade da minha parte ter-lhe dado a bola preta.

- Bom, acho que está a ser muito generoso em admitir uma coisa dessas, John.

- Vamos fazer uma coisa. Proponha o nome dele para membro na próxima semana que eu dou-lhe o meu voto.

Na semana seguinte, quando o nome de Paul Martin foi citado, a sua aceitação foi unânime por parte do comité.

John Hammond em pessoa fez uma chamada para Paul Martin:

- Parabéns, Sr. Martin - disse. - Acaba de ser aceite como membro do Sunnyvale. Estamos encantados por o ter connosco.

- Obrigado - replicou Paul. - Obrigado por ter telefonado. A seguir, John Hammond ligou para o promotor de Justiça. Marcou hora para ser recebido na semana seguinte.

No domingo, John Hammond e Bill Rohan encontraram-se no clube, jogando no mesmo grupo de quatro.

- Ainda não conhece o Paul Martin, pois não? - perguntou Bill Rohan.

John Hammond sacudiu a cabeça.

- Não. Mas também não creio que ele vá ter muito tempo para jogar golfe. O tribunal vai mantê-lo ocupado.

- Que é que quer dizer com isso?

- Vou dar algumas informações ao promotor de Justiça que certamente vão interessar ao tribunal.

Bill Rohan ficou chocado.

- Sabe o que está a fazer?

- Garanto-lhe que sei. Esse tipo é um verme, John. E eu vou esmagá-lo.

Na segunda-feira seguinte, quando se dirigia para o gabinete do promotor de Justiça, John Hammond foi morto por atropelamento e o causador pôs-se em fuga. Não houve testemunhas e a polícia nunca encontrou o culpado.

A partir daí, todos os domingos Paul Martin levava a mulher e os gémeos a almoçar no Sunnyvale Clube. O buffet era delicioso.

Paul Martin tomava os seus votos matrimoniais muito a sério. Por exemplo, nunca lhe passaria pela cabeça humilhar a mulher levando-a a frequentar os mesmos restaurantes que frequentava com a amante. O casamento era uma parte da sua vida; as suas aventuras eram a outra parte. Todos os amigos de Paul Martin tinham amantes. Fazia parte de um estilo de vida instituído. O que incomodava Paul Martin era ver homens de idade saírem com raparigas novas. Era uma falta de dignidade e Paul Martin dava grande valor à dignidade. Decidira que quando chegasse aos 60 anos deixaria de ter amantes. E ao chegar ao seu sexagésimo aniversário, havia dois anos, tinha parado. A mulher, Nina, era uma boa companheira para ele. Isso bastava. Dignidade.

Era este o homem a quem Lara Cameron fora pedir auxílio. Martin conhecia Lara Cameron de nome, mas ficou espantado ao constatar como era jovem e bonita. Era ambiciosa e ferozmente independente e, apesar disso, muito feminina.

Sentiu-se fortemente atraído por ela. Não, pensou, é apenas uma rapariga. Eu sou um velho. Demasiado velho.

Quando Lara saíra impetuosamente do gabinete depois da sua primeira visita, Paul Martin ficara sentado bastante tempo, a pensar nela. Depois, tinha pegado no telefone e feito uma chamada.

 

O novo edifício avançava dentro dos prazos. Lara visitava a obra todas as manhãs e todas as tardes e havia um novo respeito na atitude dos homens para com ela. Sentia-o na maneira como a olhavam, como falavam com ela, como trabalhavam para ela. Sabia que era por causa de Paul Martin e, de uma forma que a deixava perturbada, deu consigo a pensar cada vez mais naquele homem simultaneamente feio e atraente e com uma voz estranhamente insinuante.

Lara telefonou-lhe de novo.

- Estava a pensar se poderíamos almoçar juntos?

- Tem mais algum problema?

- Não. Mas pensei que seria agradável se nos pudéssemos conhecer melhor.

- Lamento muito, Miss Cameron, mas eu nunca almoço.

- E que tal jantarmos?

- Sou um homem casado, Miss Cameron. Costumojantar com a minha mulher e os meus filhos.

- Compreendo. Se. -A ligação foi interrompida. Que é que se passa com ele?, perguntou Lara a si própria. Não estou a tentar ir para a cama com ele. Só quero encontrar uma maneira de lhe agradecer. Tentou tirá-lo da ideia.

Paul Martin ficou perturbado com o prazer que sentiu ao ouvir a voz de Lara Cameron.

Disse à secretária:

- Se Miss Cameron voltar a telefonar, diga-lhe que não estou. Não precisava de tentações e Lara Cameron era uma verdadeira tentação.

Howard Keller estava encantado com a maneira como as coisas avançavam.

- Tenho de admitir que a certa altura você me deixou um bocado preocupado - disse. - Parecia que as coisas iam dar para o torto. Mas conseguiu um milagre.

O milagre não foi meu", pensou Lara. Foi do Paul Martin. Talvez estivesse zangado com ela por não lhe ter pago o serviço.

Num impulso momentâneo, Lara enviou a Paul um cheque de cinquenta mil dólares.

No dia seguinte, o cheque foi devolvido sem qualquer comentário. Lara voltou a telefonar-lhe. A secretária disse:

- Lamento muito, o Sr. Martin não pode atender.

Mais uma recusa. Era como se não quisesse incomodar-se com ela. E se ele não quer incomodar-se comigo, perguntava Lara a si própria, por que é que se incomodou a ajudar-me?

Nessa noite sonhou com ele.

Howard Keller entrou pelo gabinete de Lara.

- Tenho dois bilhetes para o novo espectáculo musical de Andrew Lloyd Webber, Cantar & Dançar, mas tenho de ir a Chicago. Quer fazer alguma coisa com os bilhetes?

- Não. Espere. - Ficou uns momentos a pensar. - Sim, acho que posso fazer alguma coisa com eles. Obrigada, Howard.

Nessa tarde, Lara pôs um dos bilhetes num sobrescrito e dirigiu-o a Paul Martin, com o endereço do escritório.

Quando recebeu o bilhete no dia seguinte, ficou a olhá-lo, espantado. Quem é que podia ter-lhe mandado um bilhete para o teatro? A tal Cameron. Tenho de acabar com isto, pensou.

- Estou livre na sexta-feira à noite? - perguntou à secretária.

- Tem um jantar com o seu cunhado, Sr. Martin.

- Cancele.

Lara assistiu ao primeiro acto e o lugar a seu lado permaneceu vazio. Ele não vem, pensou. Bom, que vá para o diabo. Já fiz tudo o que podia.

Quando a cortina desceu no final do primeiro acto, Lara perguntou a si própria se deveria ficar para o segundo acto ou ir-se embora. Uma figura apareceu no lugar ao lado do dela.

- Vamo-nos embora daqui para fora - ordenou Paul Martin. Jantaram num pequeno restaurante de East Side. Ele sentou-se em frente de Lara, estudando-a em silêncio, cautelosamente. O empregado veio saber o que desejavam tomar.

- Uísque com soda - disse Lara.

- Para mim nada.

Lara olhou-o surpreendida.

- Não bebo.

Depois de terem pedido o jantar, Paul Martin disse:

- Miss Cameron, que é que quer de mim?

- Não gosto de dever nada a ninguém - replicou ela. - Devo-lhe uma coisa que não me quer deixar pagar e isso incomoda-me.

- Já lhe disse que não me deve nada.

- Mas eu...

- Oiço dizer que a sua obra está a avançar muito bem.

- Sim. - Esteve prestes a acrescentar graças a si, mas achou

melhor calar-se.

       - É boa naquilo que faz, não é?

Lara fez que sim com a cabeça.

- Faço com gosto. Não há nada mais excitante no mundo que

ter uma ideia e vê-la transformar-se em aço e cimento e tornar-se numa construção onde as pessoas trabalham e vivem. De certa forma, é como se se tornasse num monumento, não é?

O rosto dela estava vibrante e cheio de vida.

-Acho que sim. E de um monumento tenciona passar para outro e assim por diante?

- Exactamente - disse Lara, entusiasticamente. - Tenciono

vir a ser a maior construtora desta cidade.

Toda a sua pessoa irradiava uma sexualidade espantosa.

Paul Martin sorriu.

- Não me admirava nada.

- Por que foi que resolveu vir hoje ao teatro? - perguntou Lara.

Ele tinha vindo para lhe dizer que o deixasse em paz, mas agora que estava com ela, perto dela, não conseguia dizê-lo.

- Ouvi boas referências acerca do espectáculo.

Lara sorriu.

- Talvez possamos lá ir outra vez e vê-lo juntos, Paul.

Ele sacudiu a cabeça.

- Miss Cameron, eu não sou apenas um homem casado, sou

muito bem casado. Acontece que eu gosto da minha mulher.

- Admiro-o por isso - replicou Lara. - O prédio deve ficar

pronto no dia 15 de Maio. Vamos dar uma festa para celebrar. Não quer vir?

Ele hesitou bastante, tentando arranjar uma maneira simpática de recusar. Por fim disse:

- Está bem, eu vou.

A inauguração do novo edifício foi um êxito relativo. O nome de Lara Cameron não era suficientemente grande para atrair muitos membros da imprensa ou os principais dignitários da cidade. No entanto, esteve presente um dos assistentes do presidente da Câmara e um repórter do Post.

- O edifício está quase todo alugado - disse Keller para Lara. E temos rios de pedidos.

- Óptimo - disse Lara distraidamente. Estava a pensar noutra coisa. Pensava em Paul Martin e perguntava a si mesma se ele viria. Por alguma razão isso era importante para ela. Paul era um mistério que a intrigava. Negava tê-la ajudado e no entanto. Andava a perseguir um homem que tinha idade para ser pai dela. Afastou do espírito essa ideia.

Lara voltou-se para os convidados. Estavam a ser servidos hors d óeuvres e bebidas e todos pareciam satisfeitos. No meio das celebrações, Paul Martin fez a sua aparição e o tom da festa mudou imediatamente. Os operários saudaram-no como se ele pertencesse à realeza. Era evidente que tinham um imenso respeito por ele.

Sou advogado empresarial. Não tenho nada a ver com sindicatos. Martin apertou a mão ao assistente do presidente da Câmara e a alguns dos representantes sindicais ali presentes e depois foi ao encontro de Lara.

- Estou satisfeita que tenha podido vir - disse ela. Paul olhou em volta, para o edifício imenso, e disse:

- Parabéns. Fez um bom trabalho.

- Obrigada. - Baixou a voz. - Peço-lhe que aceite o meu muito obrigada.

Paul olhava-a fixamente, confuso perante o ar encantador dela e por aquilo que sentia ao olhá-la.

- A festa está quase a terminar - disse Lara. - Estava com esperança que me levasse ajantar.

- Já lhe disse que janto com a minha mulher e os meus filhos. Olhava-a nos olhos. - Convido-a para tomar uma bebida.

Lara sorriu.

- Também está bem.

Foram a um pequeno bar da Terceira Avenida. Falaram, mas depois nenhum dos dois conseguia lembrar-se de quê.

As palavras eram apenas uma camuflagem para a tensão sexual entre ambos.

- Fale-me de si - disse Paul Martin. - Quem é você? De onde veio? Como é que se lançou neste negócio?

Lara pensou em Sean McAllister e no seu corpo repulsivo em cima do dela. Foi tão bom que havemos de fazer isto mais vezes.

- Venho de uma cidadezinha da Nova Scotia - disse Lara. Glace Bay. O meu pai cobrava as rendas de umas pensões locais.

Quando ele morreu, substituí-o. Um dos hóspedes ajudou-me a comprar um lote e eu construí lá um prédio. Foi o princípio.

Ele escutava-a atento.

- Depois fui para Chicago e fiz lá algumas construções. Saí-me bem e vim para Nova Iorque. - Sorriu. - E é tudo. - Para não fa lar na agonia de crescer ao lado de um pai que a odiava, a vergonha da pobreza, de nunca ter nada, de ter de dar o próprio corpo a Sear McAllister.

Como se estivesse a ler-lhe os pensamentos, Paul Martin disse:

- Aposto que não foi assim tão fácil, pois não?

- Não me queixo.

- Qual é o seu próximo projecto?

Lara encolheu os ombros.

- Não tenho bem a certeza. Já encarei uma série de possibilidades, mas nada que me entusiasmasse muito.

Ele não conseguia desviar os olhos dela.

- Em que é que está a pensar? - perguntou Lara. Paul respirou fundo.

- A verdade? Estava a pensar que se não fosse casado dizia-lhe que é uma das mulheres mais excitantes que alguma vez conheci. Mas sou casado, portanto vamos ser apenas amigos. Faço-me entender?

- Perfeitamente.

Ele olhou para o relógio.

- São horas de ir. - Voltou-se para o empregado. - A conta, por favor. - E pôs-se de pé.

- Podemos almoçar na próxima semana? - perguntou Lara.

- Não. Talvez volte a vê-la quando terminar a sua próxima construção.

E foi-se embora.

Nessa noite Lara sonhou que faziam amor. Paul Martin estava em cima dela, acariciando-lhe o corpo com as mãos e sussurrando-lhe ao ouvido. Quero-te, oh, como eu te quero. Deus me perdoe, minha querida, por nunca te ter dito que te amo, que te amo, que te amo. E falava-lhe em dialecto escocês.

Depois entrou dentro dela e o corpo de Lara cedeu completamente. Gemeu e os próprios gemidos acordaram-na. Sentou-se na cama, a tremer.

Dois dias depois Paul Martin telefonou.

- Acho que sei de um sítio que poderia interessar-lhe - disse num tom casual. - Fica no West Side, Rua Sessenta e Nove. Ainda não está no mercado. Pertence a um dos meus clientes que quer vendê-lo.

Lara e Howard Keller foram ver o local nessa manhã. Era uma propriedade excelente.

- Como é que soube disto?

- Paul Martin.

- Ah, sim. - Havia um tom de reprovação na voz dele.

- Lara. informei-me acerca desse Martin. Está ligado à Mafia. Não se aproxime dele.

Ela mostrou-se indignada.

- Paul Martin não tem nada a ver com a Mafia. É um bom amigo. E de qualquer forma que é que isso tem a ver com esta propriedade? Gosta?

- Acho-a excelente.

- Então vamos comprá-la.

Dez dias depois fecharam o negócio.

Lara enviou a Paul Martin um grande ramo de flores. Junto às flores seguia um bilhete: Paul - Por favor, não mas devolva. São muito sensi veis.

Nessa tarde recebeu um telefonema dele.

- Obrigado pelas flores. Não estou habituado a receber flores de mulheres bonitas. - A voz dele parecia mais brusca que o habitual.

- Sabe qual é o seu problema? - perguntou Lara. - Nunca foi suficientemente mimado.

- E é isso que você pretende fazer, mimar-me?

- Estragá-lo.

Paul riu-se.

- Estou a falar a sério.

- Eu sei que está.

- Por que não discutimos isso durante o almoço? - perguntou Lara.

Paul Martin não tinha conseguido tirá-la da ideia. Sabia que poderia facilmente apaixonar-se por ela. Havia na pessoa de Lara uma vulnerabilidade, uma inocência e ao mesmo tempo qualquer coisa de ferozmente sensual. Sabia que o melhor seria não voltar a vê-la, mas não conseguia controlar-se. Alguma coisa de mais forte que a sua própria vontade o atraía para Lara Cameron.

Almoçaram no Clube 21.

- Quando se está a tentar esconder alguma coisa - advertiu Paul Martin -, o melhor é fazê-lo abertamente. Assim ninguém desconfia de que haja algo de errado.

- Quer dizer que está a tentar esconder alguma coisa? - perguntou ela suavemente.

Paul olhou-a em silêncio e tomou uma decisão. É uma mulher bonita e inteligente, mas há milhares de mulheres como ela. Vai-me ser fácil esquecê-la. Vou com ela uma vez para a cama e depois acabou-se.

Mas aconteceu que estava enganado.

Quando chegaram ao apartamento de Lara, Paul estava indescritivelmente nervoso.

- Sinto-me como um rapazinho - disse Paul. - Falta de prática.

- É o mesmo que andar de bicicleta - murmurou Lara. - Nunca se esquece. Deixa-me despir-te.

Tirou-lhe o casaco e a gravata e começou a desabotoar- lhe a camisa.

- Sabes que isto nunca pode vir a ser nada de sério, Lara.

- Eu sei.

- Tenho 62 anos. Podia ser teu pai.

Ela ficou imóvel por momentos, recordando o sonho que tivera.

- Eu sei. - E acabou de o despir. - Tens um corpo muito bonito.

- Obrigado. - A mulher nunca lhe tinha dito aquilo. Lara deixou deslizar os braços ao longo das coxas dele.

- Tu és muito forte, não és?

Paul deu consigo a endireitar o corpo.

- Joguei basquetebol quando estava.

Os lábios de Lara comprimiram os dele e logo a seguir estavam estendidos em cima da cama e Paul teve uma experiência que nunca conhecera antes. Era como se tivesse o corpo em chamas. Faziam amor e não havia princípio nem fim, era como se um rio o levasse cada vez mais depressa e a maré começou a puxá-lo, sugando-o cada vez mais para o fundo, para uma escuridão de veludo que explodiu em milhares de estrelas. E o milagre foi que isso aconteceu outra vez e depois mais outra, até ele ficar estendido, a arquejar e exausto.

- Não posso acreditar - disse.

Quando fazia amor com a mulher tudo era convencional e rotineiro. Mas com Lara a experiência tornava-se incrivelmente sensual. Paul Martinjá tinha tido muitas mulheres, mas nunca conhecera nenhuma como Lara. Tinha-lhe feito uma dádiva que nenhuma mulher fizera antes: fizera com que ele se sentisse jovem.

Quando Paul se estava a vestir, Lara perguntou:

- Vou voltar a ver-te?

- Sim. - Que Deus me ajude. - Sim.

A década de 80 foi uma época de mudança. Ronald Reagan foi eleito presidente dos Estados Unidos e Wall Street teve o dia mais cheio de toda a sua história. O xá do Irão morreu no exilio e Anwar Sadat foi assassinado. A dívida pública chegou a um trilião de dólares e os reféns americanos detidos no Irão foram libertados. Sandra Day O'Connor tornou-se na primeira mulher a exercer no Supremo Tribunal.

Lara estava no sítio certo no momento certo. O negócio imobiliário estava florescente. O dinheiro abundava e os bancos estavam dispostos a financiar projectos que fossem ao mesmo tempo especulativos e altamente rentáveis.

As instituições de crédito e poupança eram uma grande fonte de capital. As obrigações de alta rentabilidade e de alto risco tinham sido popularizadas por um jovem génio financeiro chamado Mike Milken e constituíram um autêntico maná para a indústria imobiliária. O financiamento estava ali à espera de quem o quisesse.

- Vou construir um hotel no lote da Rua Sessenta e Nove, em vez de um prédio de escritórios.

- Porquê? - perguntou Howard Keller. - É o sítio ideal para um prédio de escritórios. Com um hotel, uma pessoa tem de o dirigir vinte e quatro horas por dia. Os locatários vão e vêm como as formigas. Num prédio de escritórios só é preciso pensar no aluguer de cinco em cinco ou de dez em dez anos.

- Eu sei, mas num hotel tem-se muito mais poder, Howard. Podem dar-se suites às pessoas importantes, acolhê-las devidamente no nosso próprio restaurante. Essa ideia agrada-me. Vai ser um hotel. Quero que me marque entrevistas com os principais arquitectos de Nova Iorque: Skidmore, Owings e Merrill, Peter Eisenman e Philip Johnson.

As reuniões tiveram lugar nas duas semanas seguintes. Alguns dos arquitectos tomaram um ar condescendente. Nunca tinham trabalhado para uma mulher que estivesse ligada à construção.

Um deles disse:

- Se quiser que copiemos.

- Não. Vamos construir um hotel que os outros hão-de querer copiar. Se querem uma palavra de ordem, pensem em elegância. Estou a ver uma entrada com uma fonte de cada lado, um vestíbulo em mármore italiano, com porta para uma confortável sala de conferências onde.

No final da reunião os arquitectos tinham mudado de atitude. Lara formou uma equipa. Contratou um advogado chamado Terry Hill, um assistente de nome Jim Belon, um director de projecto chamado Tom Chriton e uma agência de publicidade dirigida por Tom Scott. Contratou a firma de arquitectos Higgins, Almont & Clark e o projecto começou a ser trabalhado.

- Vamos reunir uma vez por semana - disse Lara para o grupo.

- Mas quero receber relatórios diários de cada um de vós. Quero que este hotel se ponha de pé dentro do prazo e do orçamento. Seleccionei-os a todos por serem os melhores dentro da vossa especialidade. Não me deixem ficar mal. Querem fazer alguma pergunta?

As duas horas seguintes foram passadas a responder-lhes. Mais tarde, Lara perguntou a Keller:

- Como é que achou que correu a reunião?

- Foi óptima, chefe.

Era a primeira vez que a tratava assim. E Lara gostou do tratamento.

Charles Cohn telefonou.

- Estou em Nova Iorque. Talvez pudéssemos almoçar?

- Claro que podemos. Almoçaram no Sardi's.

- Estás com um aspecto maravilhoso - disse Cohn. - O sucesso fica-te bem, Lara.

- Isto é apenas o princípio - replicou Lara. - Charles. que É que pensa de passar a fazer parte da Cameron Enterprises? Eu dou-lhe uma parte.

Ele sacudiu a cabeça.

- Obrigado, mas não aceito. Tu estás no princípio de tudo. Eu es tou a chegar ao fim da jornada. No próximo Verão reformo-me.

- Mas temos de manter o contacto - disse Lara. - Não quero perdê-lo.

Na próxima vez em que Paul Martin foi ao apartamento de Lara, ela disse-lhe:

- Tenho uma surpresa para ti, meu querido.

Entregou-lhe meia dúzia de embrulhos.

- Eh! Eu não faço anos!

- Abre.

Lá dentro havia uma dúzia de camisas da Bergdorf Goodman e uma dúzia de gravatas Pucci.

- Eu tenho camisas e gravatas. - Riu-se.

- Mas não como estas - disse Lara. - Vão-te fazer sentir mais novo. Também te vou dar o nome de um bom alfaiate.

Na semana seguinte Lara tinha também um novo corte para o cabelo de Paul.

Paul Martin olhou para si próprio no espelho e pensou: Pareço realmente mais novo. A vida tinha-se tornado excitante. E tudo por causa de Lara, disse para si próprio.

A mulher de Paul tentou não reparar na modificação do marido.

Estavam todos presentes para a reunião: Keller, Tom Chriton, Jim Belon e Terry Hill.

- Vamos acelerar a construção do hotel - disse Lara. Os homens entreolharam-se.

- Isso é perigoso - disse Keler.

- Não, se fizermos as coisas como deve ser.

Tom Chriton tomou a palavra.

- Miss Cameron, o caminho mais seguro é ir completando uma fase de cada vez. Alisa-se o chão, em seguida começa-se a escavar as fundações. Depois instalam-se as condutas e as canalizações. Depois.

Lara interrompeu-o:

- Depois fazem-se as cofragens. Eu sei tudo isso.

- Então porque.

- Porque assim levamos dois anos. E eu não quero esperar dois anos.

Jim Belon disse:

- Para acelerarmos o processo teremos de começar todas as fases ao mesmo tempo. Se algo correr mal, as coisas não vão encaixar umas nas outras. Pode vir a ter um prédio torto com os circuitos eléctricos nos sítios errados e.

- Então temos de fazer com que tudo corra bem, não é? - atalhou Lara. - Se fizermos as coisas desta forma, podemos ter a construção feita dentro de um ano em vez de dois e poupamos perto de vinte milhões de dólares.

- Isso é verdade, mas também é um grande risco.

- Eu gosto de correr riscos.

 

Lara falou a Paul Martin da sua decisão de acelerar a construção do hotel e da discussão que tivera com a equipa de trabalho.

- Eles são capazes de ter razão - disse Paul. - O que tu estás a fazer pode ser perigoso.

- Trump fá-lo. Uris também.

Paul disse com brandura:

- Minha querida, tu não és Trump nem Uris.

- Vou ser maior que qualquer deles, Paul. Vou construir mais edifícios em Nova Iorque do que jamais alguém construiu. Vai ser a minha cidade.

Ele ficou a olhá-la, por momentos.

- Acredito em ti.

Lara fez instalar uma linha de telefone directa no gabinete dela. O número não vinha na lista e só Paul Martin o conhecia. Ele instalou também um telefone no seu gabinete para as chamadas de Lara. Falavam um com o outro várias vezes por dia.

Sempre que conseguiam libertar-se durante a tarde, iam para o apartamento de Lara. Paul Martin sonhava com aqueles encontros, mais do que alguma vez julgara possível. Lara tornara-se uma obsessão para ele.

Quando Keller se apercebeu do que se estava a passar, ficou preocupado.

- Lara - disse -, acho que você está a cometer um grande erro. Esse homem é perigoso.

- Você não o conhece. Ele é maravilhoso.

- Está apaixonada por ele?

Lara ficou a pensar. Paul Martin preenchia uma necessidade na sua vida. Mas quanto a estar apaixonada por ele...

- Não.

- E ele está apaixonado por si?

- Acho que sim.

- Tenha cuidado. Tenha muito cuidado.

Lara sorriu.

Impulsivamente, beijou Keller na face.

- Adoro a maneira como você toma conta de mim, Howard.

Lara estava no local da obra, a estudar um relatório.

- Vejo que estamos a pagar uma enorme quantidade de madeira

- disse Lara. Estava a falar com Pete Reese, o novo director de projecto.

- Ainda não tinha querido falar nisso, Miss Cameron, porque não tinha bem a certeza. mas é como diz. Desapareceu uma grande parte da madeira. Tivemos de repetir a encomenda.

Lara olhou para ele.

- Quer dizer que alguém está a roubar a madeira?

- É o que tudo indica.

- Faz alguma ideia de quem?

- Não.

- Nós temos guardas da noite, não temos?

- Um.

- E ele não viu nada?

- Não. Mas com tanto movimento, isso pode acontecer durante o dia. Pode ser não importa quem.

Lara ficou pensativa.

- Estou a ver. Obrigada pela informação, Pete. Vou tratar do assunto.

Nessa tarde, Lara contratou um detective particular, Steve Kane.

- Como é que uma pessoa sai da obra em pleno dia com um carregamento de madeira? - perguntou Kane.

- É o que eu quero saber.

- Diz que tem um guarda da noite?

- Sim.

- Talvez ele esteja metido nisso.

- Não estou interessada em conjecturas - disse Lara. - Descubra quem está por detrás disso e depois diga-me.

- Consegue fazer-me contratar para a equipa de construção?

- Vou tratar disso.

No dia seguinte, Steve Kane estava a trabalhar na obra. Quando Lara contou a Keller o que se estava a passar, ele disse:

- Você não precisava de se ter envolvido nisso. Eu podia ter tra tado do caso.

- Eu gosto de tratar das coisas pessoalmente - replicou Lara. E a conversa ficou por ali.

Cinco dias mais tarde, Kane apareceu no gabinete de Lara.

- Descobriu alguma coisa?

- Descobri tudo - disse ele.

- Era o guarda da noite?

- Não. A madeira não era roubada na obra.

- Que é que quer dizer com isso?

- Quero dizer que não chegava a ser mandada para lá. Era desviada para uma outra obra em Jersey e facturada duas vezes. As facturas eram viciadas.

- Quem é que está por detrás disto? - perguntou Lara. Kane informou-a.

No dia seguinte houve uma reunião da equipa. Terry Hill, o advogado de Lara, estava presente, assim como Howard Keller, Jim Belon, o director de projecto, e Pete Reese. Estava ainda presente um desconhecido. Lara apresentou-o como o Sr. Conroy.

- Quero ouvir o vosso relatório - disse Lara.

Pete Reese informou:

- Estamos dentro do prazo. Calculamos que sejam precisos mais quatro meses. Tinha razão em acelerar os trabalhos, Miss Cameron. Tem corrido tudo sobre rodas. Já começámos com a parte eléctrica e as canalizações.

- Óptimo - disse Lara.

- E quanto à madeira roubada? - perguntou Keller.

- Ainda não se sabe mais nada - respondeu Pete Reese. Continuamos com os olhos bem abertos.

-Acho que já não precisamos de nos preocupar mais com isso - anunciou Lara. - Já descobrimos quem é que tem andado a roubar a madeira. - Fez um aceno de cabeça na direcção do desconhecido.

- O Sr. Conroy faz parte da Brigada de Investigação Criminal. É o detective Conroy.

- E que é que ele está a fazer aqui? - perguntou Pete Reese.

- Veio buscá-lo.

Reese levantou os olhos, sobressaltado.

- O quê?

Lara voltou-se para o grupo.

- O Sr. Reese tem vendido a nossa madeira para outra obra. Quando se apercebeu de que eu andava a controlar os relatórios resolveu dizer-me que havia um problema.

- Espere um momento - atalhou Pete Reese. - Eu. Eu. Isso é falso.

Lara voltou-se para Conroy.

- Quer fazer-me o favor de o levar daqui para fora? Depois voltou-se para os outros:

- Agora vamos discutir a inauguração do hotel.

À medida que o hotel se aproximava da fase final, a pressão tornava-se mais intensa. Lara estava a ficar impossível. Embirrava constantemente com todos. Fazia chamadas telefónicas a meio da noite.

- Howard, sabe se o carregamento de papel de parede já chegou?

- Pelo amor de Deus, Lara, são quatro horas da manhã.

- Faltam noventa dias para a inauguração do hotel. Não se pode abrir um hotel sem papel de parede.

- Eu de manhã vejo isso.

- Já é de manhã. Veja isso agora.

O nervosismo de Lara aumentava à medida que o prazo final se aproximava. Reuniu com Tom Scott, director da agência de publicidade.

- Tem filhos pequenos, Sr. Scott?

Ele olhou-a, surpreendido.

- Não. Porquê?

- Porque estive há momentos a analisar a nova campanha de publicidade e pareceu-me que devia ter sido concebida por uma criança atrasada. Não posso acreditar que indivíduos adultos tenham concebido uma porcaria destas.

Scott franziu a testa.

- Se há alguma coisa que não lhe agrade.

- Não há nada que me agrade - disse Lara. - Falta-lhe entusiasmo. É morna. Podia referir-se a não importa que hotel, onde quer que fosse. Não se trata de um hotel qualquer. Trata-se do hotel mais moderno e mais bonito de Nova Iorque. Parece que está a falar de um edifício frio e incaracterístico. Este hotel tem o calor e o encanto de uma casa. É isso que temos de pôr a circular. Acha que é capaz?

- Garanto-lhe que sim. Vamos rever toda a campanha e daqui a duas semanas.

- Segunda-feira - atalhou Lara friamente. - Quero ver a nova campanha na segunda-feira.

Os novos anúncios foram espalhados pelos jornais, revistas e locais de afixação do país inteiro.

- Acho que a campanha acabou por ficar excelente - disse Scott. - Miss Cameron tinha razão.

Lara olhou-o de frente e replicou com toda a calma.

- Eu não quero ter razão. Quero é que seja o senhor a tê-la. É para isso que lhe pago.

Voltou-se para Jerry Townsend, que era quem estava encarregado da publicidade.

- Os convites já foram todos enviados?

- Sim. E já temos a maior parte das respostas. Vem toda a gente. Vai ser uma grande festa.

- Bem pode - resmungou Keller -, para o dinheiro que está a custar.

Lara sorriu.

- Deixe de ser banqueiro. A publicidade vai-nos dar um milhão de dólares de lucro. Vamos ter dúzias de celebridades e.

Keller pôs a mão no ar.

- Pronto, pronto.

Duas semanas antes da inauguração, tudo parecia estar a acontecer ao mesmo tempo. O papel de parede tinha chegado e as alcatifas estavam a ser colocadas; os corredores estavam a ser pintados e os quadros pendurados nas paredes. Lara inspeccionou cada uma das suites, acompanhada por cinco empregados.

Entrou numa delas e disse:

- Os cortinados não caem bem aqui. Troquem-nos com os da suite do lado.

Numa outra, experimentou o piano.

- Está desafinado. Tratem disso.

Numa terceira suite a lareira eléctrica não funcionava.

- Arranjem-na.

Lara parecia querer ocupar-se de tudo. Esteve na cozinha, na lavandaria e nos armários de arrecadação. Andava por toda a parte, exigindo, queixando-se, compondo.

O homem que ela contratara para gerir o hotel disse:

- Não fique tão excitada, Miss Cameron. Na inauguração de qualquer hotel há sempre umas quantas pequenas coisas que não correm bem.

- Nos meus hotéis não - ripostou Lara. - Nos meus hotéis não. No dia da inauguração, levantou-se às 4 da manhã, demasiado excitada para conseguir dormir. Sentia uma vontade desesperada de falar com Paul Martin, mas não era possível ligar para ele a uma hora daquelas.

Vestiu-se e foi dar uma volta.

Tudo vai correr bem, dizia para si própria. O computador das reservas vai ser arranjado. Vão conseguir pôr o terceiro fogão a funcionar. A fechadura da Suite Sete vai ser reparada. Vamos arranjar substitutas para as criadas que se foram ontem embora. O ar condicionado do último piso há-de estar a funcionar.

Às seis da tarde, os convidados começaram a chegar. Antes de lhes ser permitida a entrada, os convites eram examinados por guardas de uniforme colocados em cada uma das entradas do hotel. Havia uma mistura de celebridades, atletas famosos e directores de empresas. Lara estudara a lista com todo o cuidado, eliminando os nomes dos oportunistas e dos penduras.

Naquele momento, encontrava-se no vestíbulo amplo, saudando os recém-chegados, à medida que iam entrando.

- Sou Lara Cameron. Foi muito amável em ter vindo. Pode visitar o hotel à sua vontade.

Lara chamou Keller à parte.

- Por que é que o presidente da Câmara não vem?

- É um indivíduo muito ocupado, sabe, e.

- Quer dizer que ele acha que eu não sou suficientemente importante.

- Um dia ele há-de mudar de opinião.

Um dos assistentes do presidente da Câmara chegou entretanto.

- Muito obrigada por ter vindo - disse Lara. - É uma honra para o hotel.

Continuava a procurar nervosamente com o olhar Todd Grayson, o crítico de arquitectura do New York Times, que tinha sido convidado. Se ele gostar do hotel, pensou Lara, o êxito é garantido.

Paul Martin chegou com a mulher. Era a primeira vez que Lara via a Sr. á Martin.

Era uma mulher atraente e de aspecto elegante. Lara sentiu uma ferroada inesperada de remorso.

Paul dirigiu-se a Lara.

- Miss Cameron, o meu nome é Paul Martin. Esta é a minha mulher, Nina. Obrigado por nos ter convidado.

Lara apertou-lhe a mão um segundo mais que o necessário. - Estou encantada por terem vindo. Espero que se sintam em

casa.

Paul olhou em volta. Já o tinha visto pelo menos meia dúzia de vezes.

- Está uma beleza - exclamou. - Acho que vai ter muito sucesso.

Nina Martin tinha os olhos pregados em Lara.

- Tenho a certeza de que vai.

E Lara perguntou a si mesma se ela saberia.

Os convidados começaram a chegar num caudal ininterrupto.

Uma hora depois, Lara ainda estava de pé na entrada quando Keller veio ter com ela, apressadamente.

- Pelo amor de Deus - disse -, anda toda a gente à sua procura. Estão todos na sala de baile, a comer. Por que é que você ainda não foi para lá?

- Todd Grayson ainda não chegou. Estou à espera dele.

- O crítico de arquitectura do Times? Faz uma hora que eu o vi.

- O quê?

- Sim. Foi visitar o hotel com os outros.

- Por que é que não me avisou?

- Julguei que soubesse.

- Que foi que ele disse? - perguntou Lara, ansiosa. - Com que ar é que ele estava? Pareceu bem impressionado?

- Não disse nada. Parecia bem. E não faço a menor ideia se ficou bem impressionado.

- Ele não disse nada?

- Não.

Lara franziu a testa.

- Se tivesse gostado teria dito qualquer coisa. Isso é mau sinal, Howard.

A festa foi um enorme sucesso. Os convidados comeram e beberam e brindaram ao hotel.

Quando a noite terminou, Lara foi literalmente bombardeada com elogios.

- É um hotel encantador, Miss Cameron.

- Quando voltar a Nova Iorque não deixarei de me hospedar aqui.

- Que ideia maravilhosa, pôr um piano em cada uma das salas.

- Adoro as lareiras.

- Não deixarei de recomendar o hotel a todos os meus amigos. Bom, pensou Lara, mesmo que o New York Times o deteste, o hotel vai ser um sucesso.

Lara viu Paul Martin e a mulher quando se preparavam para sair.

-Acho que vai ser um êxito, Miss Cameron. Em Nova Iorque não se vai falar de outra coisa.

- É muito amável, Sr. Martin - disse Lara. - Agradeço-lhes muito terem vindo.

Nina Martin disse calmamente:

- Boa noite, Miss Cameron.

- Boa noite.

No momento em que atravessavam a porta, Lara ouviu-a dizer:

- Ela é uma mulher muito bonita, não é Paul?

Na quinta-feira seguinte, quando saiu a primeira edição de The New York Times, Lara estava na banca dos jornais da Rua Quarenta e Dois às quatro da manhã, para comprar um exemplar. O artigo de Todd Grayson começava assim:

Manhattan precisava há muito de um hotel que não fizesse lembrar aos viajantes que estão hospedados num hotel. As suites do Cameron Plaza são espaçosas e cuidadas, feitas con extremo bom gosto. Lara Cameron deu finalmente a Nova Iorque.

Ela soltou um brado de alegria. Telefonou a Keller e acordou-o.

- Estamos lançados! - disse. - O Times adorou. Ele sentou-se na cama, estremunhado.

- Que bom. Que é que eles dizem?

Lara leu-lhe o artigo.

- Óptimo - comentou. - Agora já pode dormir descansada.

- Dormir? Você deve estar a brincar. Já descobri um novo local. Logo que os bancos abrirem quero que comece a negociar um empréstimo.

O Cameron Plaza de Nova Iorque foi um triunfo. Estava completamente cheio e havia lista de espera.

- Isto é apenas o começo - disse Lara para Keller. - Há dez mil construtores na área metropolitana. mas apenas um punhado com alguma estatura. os Tisches, os Rudins, os Rockfellers, os Sterns. Bom, quer eles gostem quer não, nós vamos entrar nojogo a sério. Vamos mudar a linha do horizonte. Vamos inventar o futuro.

Lara começou a receber telefonemas dos bancos a oferecerem-lhe empréstimos. Ela cultivava as relações no meio dos agentes imobiliários de primeiro plano, convidando-os para jantares e para o teatro. Fazia pequenos-almoços de negócios no Regency e recebia informação sobre as propriedades que estavam para ser postas no mercado. Adquiriu mais dois lotes no centro e começou a construir.

Paul Martin telefonou-lhe para o escritório.

- Já viste a Business Week? O teu nome é fogo - disse ele. - Já se diz por aí que mexes com o mercado. Que levas as coisas por diante.

- Tento.

- Estás livre ao jantar?

- Passo a estar.

Lara estava numa reunião com um dos sócios de uma importante firma de arquitectos. Estava a examinar os desenhos e esboços que ele lhe trouxera.

- Vai gostar disto - disse o arquitecto. - Tem graça e simetria e está no âmbito daquilo que pediu. Deixe-me explicar-lhe alguns pormenores.

- Não é necessário - disse Lara. - Eu compreendo-os. Depois levantou os olhos. - Quero que entregue estes planos a um artista.

- Como?

- Quero grandes desenhos a cor, do edifício. Quero os desenhos da entrada, dos corredores, dos escritórios. Os banqueiros não têm imaginação. Eu vou mostrar-lhes como vai ser o edifício.

- É uma excelente ideia.

A secretária de Lara entrou.

- Peço desculpa pelo atraso.

- A reunião estava marcada para as nove, Kathy. São nove e um quarto.

- Peço desculpa, Miss Cameron, o despertador não tocou e.

- Depois falamos.

Voltou-se novamente para os arquitectos.

- Quero que façam algumas alterações...

Duas horas depois, tinha acabado de discutir as alterações que pretendia. Quando a reunião terminou, disse para Kathy:

- Não se vá embora. Sente-se.

Kathy sentou-se.

- Gosta deste emprego?

- Gosto, Miss Cameron.

- É a terceira vez que chega atrasada esta semana. Não vou suportar isso mais vez nenhuma.

- Lamento muito, mas. não me tenho sentido muito bem.

- Qual é o seu problema?

- Não é nada.

- É o suficiente para a impedir de chegar a horas. Que é?

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- Ultimamente não tenho dormido lá muito bem. Para falar verdade, estou. estou assustada.

- Assustada com quê? - perguntou Lara, impaciente.

- Tenho. um alto.

- Oh. - Lara ficou silenciosa por momentos. - Que foi que disse o médico?

Kathy engoliu em seco.

- Não fui ao médico.

- Não foi ao médico! - explodiu Lara. - Pelo amor de Deus, você vem de alguma família de avestruzes? Claro que tem de ir ao médico!

Lara pegou no telefone.

- Ligue-me para o Dr. Peters.

Pousou o auscultador.

- Não deve ser nada, mas não pode ficar de braços cruzados.

- A minha mãe e um irmão morreram de cancro - disse Kathy com desespero. - Não quero ouvir o médico dizer-me que tenho a mesma coisa.

O telefone tocou. Lara levantou o auscultador.

-Alô? Ele o quê?. Isso não me interessa. Diga que eu quero falar com ele agora.

Pousou o auscultador.

Momentos depois, o telefone voltou a tocar. Lara pegou no auscultador.

- Olá, Alan. não, eu estou óptima. Vou mandar-lhe a minha secretária para um exame. O nome dela é Kathy Turner. Dentro de meia hora está aí, quero que seja vista ainda hoje. E quero que você siga de perto o caso dela. Eu sei que é. e agradeço-lhe muito. Obrigada.

Pousou o auscultador.

- Vá já ao Sloan-Kettering Hospital. O Dr. Peters está à sua espera.

- Nem sei que dizer, Miss Cameron.

- Diga que amanhã vai chegar a horas.

Howard Keller entrou no gabinete.

- Temos um problema, chefe.

- Continue.

- É a propriedade da Rua Catorze. Já retirámos os locatários do quarteirão inteiro, com excepção de uma casa de apartamentos. Os Dorchester Apartments. Seis dos locatários recusam-se a sair e a Câmara não nos deixa obrigá-los.

- Ofereçam-lhes mais dinheiro.

- Não é uma questão de dinheiro. Essa gente vive ali há muito tempo. Não querem ir-se embora. Sentem-se lá bem.

- Então vamos fazer com que se sintam mal.

- Que é que quer dizer com isso?

Lara levantou-se.

- Vamos dar uma vista de olhos ao edifício.

No caminho passaram por mulheres velhas e vagabundos sem casa que vagueavam pelas ruas, pedindo alguma coisa para comer.

- É uma vergonha - disse Lara - num país tão rico como este. Os Apartamentos Dorchester estavam instalados num prédio em tijolo, de seis andares, no meio de um quarteirão cheio de velhas construções que aguardavam os bulldozers.

Lara ficou em frente dele, a examiná-lo.

- Quantos locatários é que ainda ali estão?

- Já fizemos sair dezasseis. Os outros seis continuam lá.

- Quer dizer que temos dezasseis apartamentos livres. Keller ficou a olhar para ela, espantado.

- Sim, é isso. Porquê?

- Vamos tratar de encher esses apartamentos.

- Quer dizer alugá-los? Qual é a ideia.

- Não vamos alugar nada. Vamos oferecê-los a pessoas sem casa. Há milhares de pessoas em Nova Iorque que não têm um tecto. Vamos ajudar alguns deles. Metam lá dentro tantos quanto for possível. Arranje-lhes de comer.

Keller franziu a testa.

- Que será que me leva a pensar que esta não é uma das suas ideias mais brilhantes?

- Howard, vamos tornar-nos benfeitores. Vamos fazer uma coisa que a cidade não pode fazer... Dar abrigo aos sem lar.

Lara estudava agora o edifício com mais atenção, olhando para as janelas.

- Quero que ponham madeiras nas janelas.

- O quê?

- Vamos fazer com que o prédio pareça uma velha casa abandonada. O apartamento do último andar ainda está ocupado, aquele que tem o terraço?

- Está.

- Ponha um grande reclamo no telhado, para tapar a vista.

-Mas...

- Comece já a tratar disso.

Quando Lara regressou ao escritório, havia um recado para ela.

- O Dr. Peters pediu que ligasse para ele - disse Tricia.

- Faça a ligação.

Ele apareceu imediatamente.

- Lara, já examinei a sua secretária.

- Então?

- Ela tem um tumor. Receio que seja maligno. Recomendo uma mastectomia imediata.

- Quero ouvir uma segunda opinião - disse Lara.

- Claro, se quiser, mas eu sou o chefe do departamento e.

- Mesmo assim quero ouvir outra opinião. Faça-a examinar por outra pessoa e volte a ligar para mim o mais depressa possível. Onde é que está a Kathy neste momento?

- Vai a caminho do escritório.

- Obrigada, Alan.

Lara pousou o auscultador. Carregou no botão do intercomunicador.

- Quando a Kathy chegar mandem-na ter comigo.

Lara estudou o calendário que tinha em cima da secretária. Só dispunha de trinta dias para despejar os Apartamentos Dorchester antes da data prevista para o início da construção.

Seis inquilinos teimosos. Muito bem, pensou, vamos lá ver quanto tempo é que eles aguentam.

Kathy entrou no gabinete de Lara. Tinha o rosto inchado e os olhos vermelhos.

- Já sei tudo - disse Lara. - Lamento muito.

- Vou morrer - disse Kathy.

Lara levantou-se e pôs os braços em volta da rapariga, apertando-a de encontro a si.

- Não vai nada. Tem havido progressos enormes em relação ao cancro. Vai ser operada e vai ficar boa.

- Miss Cameron, eu não tenho possibilidades.

- Já está tudo tratado. O Dr. Peters vai fazer com que seja examinada por outra pessoa. Se o diagnóstico se confirmar, terá de ser operada imediatamente. Agora vá para casa descansar. Os olhos de Kathy encheram-se novamente de lágrimas.

- Muito. muito obrigada.

Enquanto saía do gabinete pensou: Ninguém conhece verdadeiramente esta mulher.

 

Na segunda-feira seguinte, Lara recebeu uma visita.

- Está aqui o Sr. O'Brian do gabinete de planeamento da cidade que deseja falar-lhe, Miss Cameron.

- Qual é o assunto?

- Não disse.

Lara chamou Keller pelo intercomunicador.

- Pode chegar aqui, Howard? - Depois voltou-se para a secretária. - Mande entrar o Sr. O'Brian.

Andy O'Brian era um irlandês corpulento, de rosto avermelhado e com um ligeiro sotaque.

- Miss Cameron?

Lara continuou sentada por detrás da secretária.

- Sim. Em que posso ser-lhe útil, Sr. O'Brian?

- Receio bem que a senhora esteja a cometer uma infracção, Miss Cameron.

- Não entendo. De que é que está a falar?

- É proprietária dos Apartamentos Dorchester, na Rua Catorze Leste?

- Sim.

- Estamos informados de que cerca de uma centena de pessoas sem casa ocuparam esses apartamentos...

- Ah, essa história. - Lara sorriu. - Sim, pensei que uma vez que a cidade não estava a fazer nada por essa gente, eu poderia ajudá-los. Dei-lhes abrigo.

Howard Keller entrou no gabinete.

- Sr. O'Brian, este é o Sr. Keller.

Os dois homens apertaram-se as mãos.

Lara voltou-se para Keller.

- Estava precisamente a explicar até que ponto nós estamos a ajudar a cidade, facultando o alojamento:

- Foi a senhora que os chamou, Miss Cameron?

- Sim, fui eu.

- Tem licença da Câmara?

- Licença para quê?

- Se resolveu criar uma casa de acolhimento, isso tem de ser aprovado pela municipalidade. Há condições que são obrigatórias.

- Lamento muito, mas não tinha conhecimento de nada disso. Vou imediatamente providenciar a licença.

- Não me parece.

- Que é que quer dizer com isso?

- Recebemos queixas dos inquilinos do prédio. Dizem que a senhora está a tentar forçá-los a sair.

- Disparate.

- Miss Cameron, a Câmara dá-lhe quarenta e oito horas para fazer sair do imóvel todos esses indigentes. E depois de eles saírem temos uma ordem para que sejam retiradas todas as tábuas dasjanelas.

Lara estava furiosa.

- Mais alguma coisa?

- Não, é tudo. O inquilino que tem o terraço diz que a senhora colocou lá um reclamo que lhe tapa a vista. Também vai ter de o retirar.

- E se eu não tirar nada?

- Acho que tira. Tudo isto pode causar aborrecimentos. Vai poupar a si própria uma porção de incómodos e de publicidade indesejável se não nos obrigar a levá-la a tribunal. - Fez um aceno de cabeça e acrescentou: - Desejo-lhes um bom dia.

Ficaram os dois a vê-lo sair do gabinete.

Keller voltou-se para Lara.

- Temos de pôr essa gente toda dali para fora.

- Não. - Deixou-se ficar sentada, a pensar.

- Que é que quer dizer com esse não? O homem explicou.

- Eu sei o que ele queria dizer. O que você vai fazer é trazer para lá mais indigentes. Quero o edifício a abarrotar de gente saída das ruas. Vamos ganhar tempo. Ligue para Terry Hill. Explique-lhe o problema. Ele que arranje um adiamento ou o que for. Temos de fazer que esses seis inquilinos saiam dali até ao fim do mês, senão isso vai custar-nos três milhões de dólares.

O intercomunicador soou.

- O Dr. Peters ao telefone. Lara pegou no auscultador.

- Olá, Alan.

- Só queria dizer-lhe que terminámos a operação. Estamos convencidos de que conseguimos tirar tudo. A Kathy vai ficar óptima.

- Isso é uma excelente notícia. Quando é que posso ir visitá-la?

- Pode passar por cá hoje à tarde.

- Está bem. Obrigada, Alan. Faça com que todas as contas me sejam enviadas a mim, está bem?

- Pode ficar descansada.

- E pode dizer ao hospital que conte com um donativo. Cinquenta mil dólares.

Lara voltou-se para Tricia.

- Encham-lhe o quarto de flores.

Olhou para a agenda.

- Tenciono ir vê-la às quatro. Terry Hill entrou no gabinete.

- Vem aí um mandato de captura contra si.

- O quê?

- Não a preveniram para que tirasse de lá todos aqueles desalojados?

- Sim, mas.

- Desta vez não pode levar a melhor, Lara. Há um velho ditado: Contra a Câmara Municipal ninguém consegue ganhar.

- Vão mesmo prender-me?

- Pode crer. Recebeu ordens para pôr toda aquela gente dali para fora.

- Está bem - disse Lara. - Então vamos mandá-los embora. Voltou-se para Keller. - Tire-os de lá, mas não os ponha no meio da rua. Não está certo. Temos aquelas casas vazias que estão para ser remodeladas em West Twenties. Podemos pô-los aí. Arranje quem o ajude. Quero-os dali para fora no espaço de uma hora.

Voltou-se para Terry Hill.

- Vou-me embora daqui para eles não me encontrarem. Entretanto o problema fica resolvido.

Nesse momento ouviu-se o intercomunicador.

- Estão aqui dois senhores que vêm da parte do promotor de Justiça.

Lara fez sinal a Howard Keller. Ele aproximou-se do intercomunicador e disse:

- Miss Cameron não está.

Fez-se silêncio.

- Quando pensa que estará de volta?

Keller olhou para Lara. Ela sacudiu a cabeça. Keller respondeu para o intercomunicador:

- Não faço ideia.

Desligou o aparelho.

- Vou sair pelas traseiras - disse Lara.

Lara odiava hospitais. Um hospital representava o pai estendido na cama, doente e repentinamente envelhecido. Que diabo estás a fazer aqui? Tens trabalho lá na pensão.

Lara entrou no quarto de Kathy. Estava cheio de flores. Kathy encontrava-se sentada na cama.

- Como é que se sente? - perguntou Lara.

Kathy sorriu.

- O médico disse que eu vou ficar óptima.

- Bem pode. Tem o trabalho a acumular-se. Preciso lá de si.

- Não. não sei como agradecer-lhe.

- Não agradeça.

Lara pegou no telefone colocado à cabeceira da cama e ligou para o escritório. Falou com Terry Hill.

- Eles ainda aí estão.

- Estão. E tencionam ficar até ao seu regresso.

- Fale com o Howard. Logo que ele tirar todos os indigentes do prédio, eu vou para aí.

Lara pousou o auscultador.

- Se precisar de alguma coisa, telefone - disse Lara. - Amanhã volto cá.

A paragem seguinte de Lara foi no gabinete de arquitectura de Higgins, Almont & Clark. Foi levada à presença de Clark. Este levantou-se quando a viu entrar no gabinete.

- Que agradável surpresa. Em que posso ser-lhe útil, Miss Cameron?

- Tem os planos do projecto da Rua Catorze?

- Sim, sim.

Encaminhou-se para o estirador.

- Aqui estão eles.

Era um esboço de um belo conjunto de prédios de andares, completos com apartamentos e lojas a toda a volta.

- Quero refazer o desenho - disse Lara.

- Como?

Lara apontou para um espaço no meio do bloco.

- Há um edificio que ainda se encontra nesta área. Quero que sigam a mesma ideia, mas fazendo a construção em volta desse edifício.

- Quer dizer que pretende fazer a construção com um prédio antigo ali no meio? Não resulta. Em primeiro lugar, ficava com um aspecto horrível e.

- Faça isso, por favor. Mande o desenho ao meu escritório esta tarde.

E saiu.

Do carro, telefonou para Terry Hill.

- O Howard já deu notícias?

- Sim. Os intrusos já foram retirados.

- Óptimo. Ligue para o promotor de Justiça. Diga-lhe que eu tinha mandado sair esses indivíduos há dois dias e que entretanto não tinha sabido mais nada. Logo que tive conhecimento hoje de que ainda lá estavam dei ordens para que os obrigassem a sair e que vou neste momento a caminho do escritório. Veja se ele ainda me quer mandar prender.

Depois disse para o chauffeur.

- Vá pelo parque. Sem pressa.

Meia hora depois, quando Lara chegou ao escritório, os homens com o mandato de captura já se tinham ido embora.

Lara estava em reunião com Howard Keller e Terry Hill.

- Os inquilinos continuam a recusar-se a sair - disse Keller. Já lá estive outra vez e ofereci-lhes mais dinheiro. Não querem ir-se embora. Só nos restam cinco dias antes de começarmos as terraplenagens.

Lara disse:

- Pedi ao Sr. Clark que refizesse o projecto.

- Eu vi-o - disse Keller. - Não tem pés nem cabeça. Não podemos deixar um edificio velho no meio da nova construção gigantesca. Vamos ter de ir ao banco e pedir-lhes que prorroguem a data para o começo dos trabalhos.

- Não - disse Lara. - Eu quero mas é avançá-la.

-Oquê?

- Ligue para o empreiteiro. Diga-lhe que comece as terraplenagens amanhã.

- Amanhã, Lara.

- Logo de manhã. E leve esse projecto e entregue ao capataz.

- Para quê?

- Vamos a ver.

Na manhã seguinte, os últimos inquilinos dos Apartamentos Dorchester foram acordados pelo roncar de um bulldozer. Olharam pelas janelas.

A pouca distância do sítio onde se encontravam, um Hércules mecânico avançava em direcção a eles, arrasando tudo no seu caminho. Os inquilinos ficaram espantados.

O Sr. Hershey, que vivia no último andar, correu para a rua e dirigiu-se ao capataz.

- Que é que pensa que está a fazer? - gritou-lhe. - Não pod levar isto por diante.

- Quem é que disse que não?

-A Câmara. - Hershey apontou para o prédio onde vivia. - Não podem tocar naquele prédio.

O capataz olhou para o desenho que tinha diante dele.

- Está certo - disse. - Temos ordens para deixar esse edifício de pé.

Hershey franziu a testa.

- O quê? Deixe-me ver isso. - Olhou para o projecto e conteve a respiração. - Vão construir o resto e deixar este prédio ali

de pé?

- É precisamente isso.

- Mas não podem fazer uma coisa dessas! O barulho e a poeira..

- Isso já não me diz respeito. E agora, se me dá licença, vou con tinuar com o trabalho.

Meia hora depois, a secretária de Lara disse:

- Está o Sr. Hershey na linha dois, Miss Cameron.

- Diga-lhe que não posso atender.

Quando Hershey ligou pela terceira vez nessa tarde, Lara finalmente pegou no telefone e falou com ele.

- Sim, Sr. Hershey. Em que posso ser-lhe útil?

- Gostava de ir falar consigo, Miss Cameron.

- Sabe que estou bastante ocupada. Será melhor que me diga o que tem a dizer pelo telefone.

- Bom, certamente vai gostar de saber que falei com os outros locatários do prédio e que concordámos que talvez seja melhor acei tarmos a sua oferta e sairmos dos apartamentos.

-A oferta perdeu a validade, Sr. Hershey. Podem continuar ond estão.

- Mas se vão construir à nossa volta nunca mais vamos poder dormir!

- E quem foi que lhe disse que íamos construir aí à volta? - perguntou Lara. - Quem lhe deu essa informação?

- O capataz que anda aqui a trabalhar mostrou-me o projecto e...

- Pois bem, o capataz vai ser despedido. - O tom de Lara era furioso. - A informação era confidencial.

- Espere um momento. Vamos falar como duas pessoas razoáveis, okay? O seu projecto só teria a ganhar se nós saíssemos daqui e nós também faríamos melhor em sair. Não me interessa viver enterrado no meio de um arranha-céus.

Lara replicou:

- Para mim não tem importância que o senhor fique ou se vá embora, Sr. Hersey. - A voz dela tornou-se mais branda. - Mas podemos combinar uma coisa. Se o seu prédio ficar vago até ao princípio do mês, estou disposta a manter a nossa primeira oferta.

Podia dizer-se que o ouvia pensar.

Finalmente ele replicou, com certa relutância.

- Okay, eu falo com os outros, mas tenho a certeza de que não vai haver problema. Fico-lhe agradecido, Miss Cameron.

Lara disse:

- Tive muito prazer, Sr. Hersey.

No mês seguinte os trabalhos do novo projecto começaram a sério.

A reputação de Lara continuava a crescer. A Cameron Enterprises estava a construir um arranha-céus em Brooklyn, um centro comercial em Westchester, outro em Washington, D. C. Havia um bairro de construções económicas em curso em Dallas e um bloco de condomínios em Los Angeles. O capital afluía vindo dos bancos, organizações de crédito e poupança e de investidores privados cheios de entusiasmo. Lara tornara-se um Nome.

Kathy retomou o trabalho.

- Estou de volta.

Lara ficou um momento a observá-la.

- Como é que se sente?

Kathy sorriu.

- Óptima. Graças a.

- Com bastante energia?

A rapariga ficou admirada com a pergunta.

- Sim. Eu.

- Óptimo. Vai precisar dela. Quero fazê-la minha assistente de direcção. Vai ter um bom aumento.

- Não sei que dizer. Eu.

- Foi você que conquistou a sua posição.

165

Lara viu o memorando na mão de Kathy.

- Que é?

- A revista Gourmet gostaria de publicar a sua receita favorita. Está interessada?

- Não. Diga-lhes que estou demasiado... não, espere aí.     Deixou-se ficar um momento absorta nos seus pensamentos. Depois disse, com voz branda: - Está bem. Eu dou-lhes uma receita.

A receita apareceu na revista três meses depois.

Começava:

Bolo preto - Receita tradicional escocesa. Invólucro de massa fina feita com duzentos e cinquenta gramas de farinha cento e vinte e cinco gramas de manteiga, um pouco de água fria e meia colher de chá de fermento e recheado com um quilo de passas, duzentos e cinquenta gramas de amêndoas picadas, duzentos e cinquenta gramas de farinha, duzentos e cinquenta gramas de açúcar, duas colheres de chá de especiarias, uma colher de chá de gengibre moído, uma colher de chá de canela meia colher de chá de fermento e meio cálice de brande...

Lara ficou a olhar longamente para o artigo enquanto ele Ihe trazia de volta o paladar antigo, o cheiro da cozinha da pensão e o barulho dos hóspedes à mesa do jantar. O pai na cama, perdido de bê bado. Pôs a revista de lado.

As pessoas reconheciam Lara na rua e quando ela entrava nun restaurante havia sempre murmúrios de excitação. Havia meia dúzia de pretendentes prováveis que a acompanhavam em diversas ocasiões e recebia constantemente propostas lisonjeiras. Mas ela não estava interessada. De uma forma estranha e quase inacreditável, continuava à procura de alguém. Alguém que lhe fosse familiar. Alguém que ela nunca tinha encontrado.

Lara acordava todas as manhãs às cinco horas e fazia- se conduzir pelo seuchauffeur, Max, a um dos edifícios em construção. E deixava-se ficar ali, a olhar para aquilo que estava a criar, enquanto pensava: Estavas enganado, Pai. Eu sei cobrar as rendas.

Para Lara os sons do dia começavam com o bater dos martelos mecânicos, o roncar dos bulldozers, o tilintar dos metais pesados. Subia a gingar, no elevador da obra, até à parte mais alta, e ficava sobre as vigas de aço, com o vento a bater-lhe na cara, pensando: Esta cidad é minha.

Paul Martin e Lara estavam na cama.

- Ouvi dizer que hoje descarregaste a valer nuns operários lá da obra.

- Era o que eles estavam a merecer - disse Lara. - Pela maneira como estavam a trabalhar.

Paul sorriu.

- Pelo menos já aprendeste a não lhes dar bofetadas.

- Vê só o que aconteceu quando dei uma bofetada a um. Cingiu-se mais de encontro a ele. - Acabei por te conhecer.

- Tenho que ir a L. A. - disse Paul. - Gostava que viesses comigo. Podes dispor de dois ou três dias?

- Gostava muito, Paul, mas é impossível. Os meus dias são planeados ao cronómetro.

Ele sentou-se na cama e olhou-a.

- Talvez estejas a trabalhar de mais, minha filha. Não comeces a dizer-me que não tens tempo para mim.

Lara sorriu e pôs-se a acariciá-lo.

- Não penses nisso. É uma coisa que nunca vai acontecer.

Estava ali diante dela desde sempre e ela nunca tinha reparado. Era uma enorme propriedade à beira de água, na área de Wall Street, perto do World Trade Center. E estava para venda. Lara passara por aquele sítio uma dezena de vezes, mas só agora o via e imaginava o que deveria ter ali estado desde sempre: o edifício mais alto do mundo. Sabia o que Howard iria dizer: Você está a ficar enterrada até ao pescoço, Lara. Não se pode meter nisso. Mas ela sabia que nada poderia detê-la.

Quando chegou ao escritório, convocou uma reunião do seu pessoal.

- Falando da propriedade de Wall Street, àbeira de água - disse -, vamos comprá-la. Vamos construir o arranha-céus mais alto do mundo.

- Lara.

- Antes de você falar, Howard, deixe-me chamar-lhe a atenção para umas quantas coisas. A localização é perfeita. Está mesmo no coração da zona onde tudo acontece. As pessoas vão disputar o privilégio de alugar um espaço ali. E não se esqueçam, vai ser o arranha-céus mais alto do mundo. É um acontecimento. Vai ser o nosso navio almirante. Chamar-lhes-emos as Torres Cameron.

- E de onde é que vem o dinheiro?

Lara estendeu-lhe um pedaço de papel.

Keller examinou os números.

- Está a ser optimista.

- Estou a ser realista. Não estamos a falar de um edifício qualquer. Estamos a falar de uma jóia, Howard.

A cabeça dele não parava de trabalhar.

- Vai esticar-se até ao limite.

Lara sorriu.

- Já fizemos isso antes, não foi?

Keller repetiu, pensativo:

- O arranha-céus mais alto do mundo.

- Precisamente. E os bancos telefonam-nos todos os dias, atiram-nos com dinheiro. Vão atirar-se a esta oportunidade.

- É possível - disse Keller. Olhou para Lara. - Você quer mesmo fazer isso, não quer?

- Quero.

Keller suspirou. Percorreu o grupo com o olhar.

- Está bem. O primeiro passo é conseguir uma opção sobre a propriedade.

Lara sorriu.

- Já fiz isso. E tenho mais uma novidade para si. Steve Murchison estava a negociar a propriedade.

- Eu lembro-me de Steve Murchison. Tirámos-lhe aquele lote do hotel em Chicago.

Desta vez vou deixar passar, sua cabra, porque estou convencido de que você não sabe o que está a fazer. Mas de futuro mantenha-se afastada do meu caminho, senão pode dar-se mal.

- Exactamente. - Murchison tinha-se tornado um dos construtores mais impiedosos e mais bem sucedidos de Nova Iorque.

Keller disse:

- Lara, isso não é uma boa notícia. Ele gosta de destruir as pessoas.

- Você preocupa-se de mais.

O financiamento para as Torres Cameron processou-se sem dificuldades. Lara tinha razão. Os banqueiros sentiam o crepitar do êxito em volta do mais alto arranha-céus do mundo. E o nome de Cameron era mais um elemento a contribuir para essa emoção. Estavam ansiosos por se associar a ela.

Lara era mais que uma figura brilhante. Era um símbolo para todas as mulheres do mundo, um exemplo. Se ela consegue isto, porque é que eu não hei-de conseguir também? Deram o nome dela

a um perfume. Era convidada para todas as ocasiões sociais mais importantes e as anfitriãs famosas desejavam sentá-la à mesa nos seusjantares. Um edifício a que fosse dado o nome dela parecia destinado ao sucesso.

-Vamos criar a nossa própria empresa de construção - decidiu um dia. - Temos o pessoal. Depois alugamo-lo a outros construtores.

- Não me parece má ideia - disse Keller.

-Vamos a isso. Quando é que começam a abrir as fundações para as Torres Cameron?

- O acordo está feito. Portanto acho que daqui a uns três meses. Lara recostou-se na cadeira.

- Consegue imaginá-lo, Howard? O arranha-céus mais alto do mundo.

Howard perguntava a si próprio que leitura Freud teria feito daquilo.

A colocação da primeira pedra para as Torres Cameron fez-se num ambiente de circo de três pistas. A princesa da América, Lara Cameron, era a atracção principal. O acontecimento tinha sido largamente divulgado nosjornais e na televisão e uma multidão de mais de duzentas pessoas aguardava a chegada de Lara. Quando a limusina branca parou em frente ao local, ouviu-se um brado da multidão.

- Ela aí está!

Quando Lara saiu do carro e avançou para saudar o presidente da Câmara, a polícia e os guardas da segurança contiveram a multidão. As pessoas tentavam aproximar-se, gritando e chamando-a pelo nome e os flashes dos fotógrafos começaram a disparar.

Numa área especial, dividida por cordões, encontravam-se os banqueiros, directores de agências de publicidade, directores de empresas, industriais, directores de projecto, representantes da comunidade e arquitectos. A uns trezentos metros de distância, encontravam-se os enormes bulldozers e as escavadoras, prontos para começar a trabalhar. Havia cinquenta camionetas alinhadas para levar o entulho.

Lara estava de péjunto do presidente da Câmara e do presidente da área de Manhattan. Tinha começado a chuviscar. Jerry Townsend, chefe de relações públicas da Cameron Enterprises, dirigiu-se apressadamente para junto de Lara com um chapéu de chuva. Ela sorriu e fez-lhe sinal para que se afastasse.

O presidente falou para as câmaras:

- Hoje é um grande dia para Manhattan. A cerimónia da colocação da primeira pedra para as Torres Cameron marca o início de um dos maiores projectos imobiliários da história de Manhattan. Seis quarteirões de Manhattan vão ser convertidos numa comunidade moderna na qual estarão incluídos blocos de apartamentos, centros comerciais, um centro para convénios e o arranha-céus mais alto do mundo.

Houve aplausos da multidão.

- Para onde quer que olhemos - continuou o presidente -, podemos ver a contribuição de Lara Cameron escrita em cimento. Apontou. - Na parte alta, temos o Centro Cameron. Perto dele, o Cameron Plaza e meia dúzia de projectos residenciais. E por todo o país a grande cadeia dos Hotéis Cameron.

O presidente voltou-se para Lara e sorriu.

- E ela não é apenas inteligente como também muito bonita. Houve risos e mais aplausos.

- Meus senhores e minhas senhoras, Lara Cameron. Lara olhou para as câmaras de televisão e sorriu.

- Muito obrigada, Sr. Presidente. Sinto-me muito satisfeita por ter dado uma pequena contribuição a esta nossa fabulosa cidade. O meu pai dizia sempre que a razão por que nós fomos postos neste mundo foi. - Hesitou. Pelo canto do olho, vira uma figura conhecida no meio da multidão. Steve Murchison. Vira a fotografia dele nos jornais. Que estaria a fazer ali? Lara continuou. - foi para o tornar melhor do que o encontrámos. Bom, só espero que, dentro do pouco que posso fazer, tenha conseguido alguma coisa. Houve mais aplausos. Deram a Lara um capacete simbólico e uma

pá cromada.

- Mãos ao trabalho, Miss Cameron.

Os flashes dispararam de novo.

Lara enterrou a pá e retirou a primeira porção de terra. Terminada a cerimónia, foram servidos refrescos enquanto as câmaras de televisão faziam a cobertura do acontecimento. Quando Lara olhou de novo em volta, Murchison tinha desaparecido. Meia hora depois, Lara estava de novo na limusina, a caminho do escritório. Jerry Townsend ia sentado ao lado dela.

- Acho que correu tudo optimamente - disse ele. - Foi uma maravilha.

- Não foi mal - disse Lara sorrindo. - Obrigada, Jerry.

Os gabinetes da direcção da Cameron Enterprises ocupavam todo o quinto piso do Centro Cameron.

Lara saiu no quinto piso e nessa altura já por toda a parte se tinha espalhado a notícia da sua chegada. As secretárias e o resto do pessoal estavam atarefados a trabalhar.

Lara voltou-se para Jerry Townsend.

- Venha ao meu gabinete.

A suite de Lara ocupava toda uma esquina com vista para a cidade.

Depois de deitar uma olhadela a alguns papéis, voltou-se para Jerry.

- Como é que está o seu pai? Algumas melhoras?

Que é que Lara sabia sobre o pai dele?

- Bom. ele não está lá muito bem.

- Eu sei. Ele tem coreia fibrilar não tem, Jerry?

- Tem.

Era uma doença terrível, progressiva e degenerativa, caracterizada por movimentos espasmódicos e involuntários do rosto e das extremidades, acompanhados pela perda de faculdades mentais.

- Como é que sabe da doença do meu pai?

- Faço parte da direcção do hospital onde ele está a ser tratado. Ouvi os médicos discutirem o caso dele.

Jerry disse secamente.

- É incurável.

- Tudo é incurável até se descobrir a cura - disse Lara. - Eu já me informei. Há um médico na Suíça que está a fazer pesquisas muito avançadas sobre essa doença e que está disposto a aceitar o caso do seu pai. As despesas são por minha conta.

Jerry ficou parado, estupefacto.

- Okay.

Ele sentia dificuldade em falar.

- Okay. - Eu não a conheço, pensou Jerry Townsend. Ninguém a conhece.

A história estava a ser feita, mas Lara andava demasiado ocupada para se aperceber. Ronald Reagan tinha sido reeleito e um homem chamado Mikhail Gorbachev sucedera a Chernenko como dirigente da URSS.

Lara construiu residências para famílias com baixos rendimentos em Detroit.

Em 1986, Ivan Boesky tinha sido multado em cem milhões de dólares, por causa do escândalo de negócios da bolsa baseado em informações internas e condenado a três anos de prisão.

Lara começou a construir condomínios em Queens. Os investidores estavam ansiosos por participar da magia do nome dela. Um grupo em que estavam representados alguns bancos de investimento alemães deslocaram-se de avião a Nova Iorque para falar com Lara.

Ela arranjou maneira de a reunião se efectuar logo que o avião aterrou. Eles tinham protestado, mas Lara disse:

- Lamento muito. É a única hora que tenho. Estou de partida para Hong-Kong.

Os alemães tomaram café. Lara bebeu chá. Um deles queixou-se do paladar do café.

- É uma mistura especial feita para mim - explicou. - Uma pessoa acaba por se habituar ao gosto. Tome mais uma chávena.

Quando acabaram as negociações Lara tinha conseguido tudo o que queria.

Avida era uma sucessão de acontecimentos agradáveis, à excepção de um incidente desagradável. Lara já tinha tido diversas confrontações com Murchison por causa de propriedades e ela sempre conseguira levar a melhor.

- Acho que nós devíamos recuar - preveniu Keller.

- Ele que recue.

E uma manhã um embrulho lindíssimo, em papel cor-de-rosa, chegou da Bendel's. Kathy pô-lo em cima da mesa de Lara.

- É pesadíssimo - disse Kathy. - Se for um chapéu não sei como é que vai fazer.

Cheia de curiosidade, Lara abriu o embrulho e levantou a tampa. A caixa estava cheia de terra. No interior, um cartão da agência Funerária Frank E. Campbell.

Todos os trabalhos de construção estavam a correr bem, quando Lara leu a notícia do parque infantil que pretendiam construir num dos bairros mais desfavorecidos e que ficou em nada por causa da burocracia, tomou a iniciativa de o mandar construir pela sua própria empresa e o doou à cidade. Num título de primeira página lia-se

LARA CAMERON SIGNIFICA MÃOS À OBRA.

Encontrava-se com Paul uma ou duas vezes por semana e falava com ele todos os dias.

Lara comprou uma casa em Southampton e vivia num mundo fantástico de jóias caras, peles e limusinas. Tinha os armários cheios de fatos dos melhores estilistas. Preciso de roupa para levar para a escola. Bom, eu não me posso fazer em dinheiro. Vai ao Exército de Salvação.

E Lara encomendava outro modelo.

Os empregados eram a sua única familia. Preocupava-se com eles e tratava-os com generosidade. Eram tudo o que tinha. Lembrava-se dos aniversários de todos eles. Ajudava-os a meter os filhos em boas escolas e ela própria lhes atribuía bolsas de estudo. Quando tentavam agradecer-lhe, ficava embaraçada. Era-lhe difícil exprimir as suas emoções. O pai sempre a ridicularizara quando ela tentava. Lara criara uma barreira protectora em volta de si própria. Nunca mais ninguém me há-de magoar, prometera. Ninguém.

 

- Parto para Londres de manhã, Howard.

- Que é que se passa? - perguntou Keller.

- Lorde MacIntosh convidou-me para ir ver uma propriedade em que ele está interessado. Quer entrar numa sociedade.

Brian MacIntosh era um dos mais ricos construtores ingleses.

- A que horas partimos?

- Resolvi ir sozinha.

- Ah?

- Quero que você fique de olho no que se passa por cá. Ele fez que sim com a cabeça.

- Está bem, pode ficar descansada.

- Eu sei. Posso sempre contar consigo.

A viagem a Londres não teve quaisquer incidentes. O 727 particular que ela tinha comprado levantou de manhã e aterrou no Terminal Magec no Aeroporto de Luton, à saída de Londres. Nesse momento ainda não fazia ideia de que a sua vida se ia modificar.

Quando Lara chegou ao vestíbulo do Claridges, Ronald Jones, o gerente, estava à espera dela para a cumprimentar.

- É um prazer tê-la de volta, Miss Cameron. Vou acompanhá-la à sua suite. A propósito, temos algumas mensagens para a senhora.

Na realidade, havia mais de duas dúzias. A suite era encantadora. Havia flores de Brian MacIntosh e de Paul Martin e champanhe e hors d'oeuvres da gerência. O telefone começou a tocar logo que Lara entrou. As chamadas eram de todas as partes dos Estados Unidos.

- O arquitecto quer fazer algumas alterações nos planos. Vai custar uma fortuna.

- Há uma demora nas entregas de cimento.

- O First National Savings and Loan quer entrar no nosso próximo investimento.

- O major quer saber se pode ir a L. A. para a inauguração. Gostava de organizar uma grande cerimónia.

- As sanitas ainda não chegaram.

- O mau tempo está a atrasar-nos. Não estamos dentro dos prazos.

Cada problema requeria uma decisão e quando Lara terminou finalmente todas as chamadas estava exausta. Jantou sozinha no quarto e ficou sentada a olhar pela janela, vendo os Rolls Royces e os Bentleys pararem junto à entrada de Brook Street, ao mesmo tempo que um sentimento de euforia se apoderava dela. A rapariguinha de Glace Bayjá foi bem longe, Papá.

Na manhã seguinte, Lara foi ver a propriedade em questão com Brian MacIntosh. Era enorme - duas milhas de frente para o rio, cheias de velhas construções em ruínas e barracões de arrecadação.

- Com isto o governo britânico dá-nos enormes benefícios fiscais - explicou Brian MacIntosh -, porque nós vamos reabilitar toda esta parte da cidade.

- Gostava de pensar no assunto - disse Lara. A verdade é que já tinha tomado a sua decisão.

- A propósito, tenho bilhetes para um concerto hoje à noite - disse Brian MacIntosh. - A minha mulher tem uma reunião no clube. Gosta de música clássica?

Lara não tinha o menor interesse pela música clássica.

- Gosto.

- Philip Adler vai tocar Rachmaninoff - Olhou para Lara como se esperasse que ela dissesse alguma coisa. Lara nunca tinha ouvido falar em Philip Adler.

- Parece-me excelente - disse.

- Bom, vou buscá-la às sete. Depois podemos cear no Scotts. Por que é que fui dizer que gostava de música clássica? , perguntou Lara a si própria. Ia ser uma noite bem aborrecida. Teria preferido tomar um banho quente e ir dormir. Bom, mais uma noite não é grave. De manhã volto para Nova Iorque.

A sala de concertos estava cheia de aficionados da música. Os homens vestiam smoking, as mulheres exibiam magníficos vestidos de noite. Era uma soirée de gala e por toda a parte pairava um sentimento de expectativa e de excitação.

Brian MacIntosh comprou dois programas ao arrumador e sentaram-se nos seus lugares. Estendeu um dos programas a Lara. Ela olhou-o, vagamente.

A Orquestra Filarmónica de Londres- Philip Adler toca o Concerto 3 em Dó Menor, Opus 30, para Piano, de Rachmaninoff.

Tenho de telefonar ao Howard a lembrar a revisão das estimativas para o lote da Quinta Avenida.

O maestro apareceu no palco e a assistência aplaudiu. Lara não prestou atenção. O empreiteiro de Bóston está a ir muito devagar. Precisa ser estimulado. Tenho de dizer ao Howard que lhe ofereça um bónus.

Houve mais um aplauso ruidoso por parte da assistência. Um homem estava a sentar-se ao piano no meio do palco. O maestro deu uma pancadinha e a música começou.

Os dedos de Philip Adler voaram sobre as teclas.

Uma mulher que estava sentada atrás de Lara disse com um forte sotaque texano:

- Ele não é fantástico? Eu tinha-te dito, Agnes!

Lara tentou concentrar-se de novo. Londres está posto de lado. A localização não interessa. As pessoas não vão querer viver ali. Localização. Localização. Localização. Pensou num projecto que lhe tinham levado, perto de Columbus Circle. Esse poderia interessar.

A mulher que estava atrás de Lara disse, bastante alto:

- A expressão dele. É fabuloso! É um dos mais. Lara tentou não a ouvir.

O custo de um prédio de escritórios naquele sítio seria aproximadamente mil e quinhentos dólares por metro quadrado rentável. Se eu conseguir fazer a construção por cento e cinquenta milhões, o terreno custa cento e vinte e cinco milhões, os acabamentos.

- Meu Deus! - exclamou a mulher por detrás de Lara. Esta foi arrancada aos seus pensamentos.

- Ele é absolutamente brilhante!

Houve um rufar de tambores na orquestra, Philip Adler tocou quatro acordes sozinho e a orquestra começou a tocar cada vez mais depressa. Os tambores começaram a soar.

A mulher não conseguiu conter-se.

- Ouve aquilo! A música vai depiù vivo apiù mosso. Já ouviste coisa mais excitante?

Lara rangeu os dentes.

Sem pôr nada muito elaborado, pensou, o custo da superfície rentável seria de trezentos e cinquenta milhões, o juro, a dez por cento, seria de trinta e cinco milhões, mais dez milhões de despesas de administração.

O ritmo da música aumentava, reverberando por toda a sala. Depois houve um clímax repentino e foi o fim. A assistência estava de pé, aplaudindo. Ouviam-se gritos de bravo! O pianista pusera-se de pé e fazia vénias.

Lara nem sequer se deu ao trabalho de levantar os olhos. Os impostos importariam em seis, as concessões de rendas livres em dois. Estamos a falar em cinquenta e oito milhões.

- Ele é incrível, não acha? - disse Brian Macintosh.

- É sim. - Lara ficou aborrecida por lhe interromperem os pensamentos.

- Vamos aos bastidores. Philip é meu amigo pessoal. - Bom, eu não.

Ele pegou na mão de Lara e começaram a avançar para a saída.

- Estou satisfeito por ter a oportunidade de lho apresentar - disse Brian Macintosh.

São seis horas em Nova Iorque, pensou Lara. Vou poder telefonar ao Howard e dizer-lhe que comece a negociar.

- Ele é uma experiência única.

Eu certamente não tenho vontade de a repetir, pensou Lara.

- Sim, sim.

Estavam diante da entrada dos artistas. Havia uma multidão à espera. Brian Maclntosh bateu à porta. Um porteiro veio abrir.

- Faz favor?

- Lorde Macintosh para falar com o Sr. Adler.

- Com certeza, my lord. Façam o favor de entrar. -Abriu a porta o suficiente para deixar passar Brian Macintosh e Lara, depois fechou novamente a multidão lá fora.

- Que é que esta gente quer? - perguntou Lara. Ele olhou-a surpreendido.

- Estão aqui para ver o Philip.

Ela perguntou a si mesma para quê.

O porteiro disse:

- Podem ir directamente para a sala dos artistas, my lord.

- Obrigado.

Cinco minutos, pensou Lara, e depois digo que tenho de me ir embora.

A sala dos artistas estava cheia de barulho e de pessoas. Estas aglomeravam-se à volta de uma figura que Lara não conseguia ver. Mas a multidão deslocou-se e, por um instante, ele ficou bem visível Lara estacou e como que sentiu o coração parar-lhe no peito. A imagem vaga e difusa que ao longo dos anos estivera sempre presente no mais recôndito do seu espírito materializara-se agora de forma repentina e inesperada. Lochinvar, a visão das suas fantasias ganhara vida! O homem que se encontrava rodeado pela multidão,

era alto e louro, com as feições delicadas e sensíveis. Estava de gravata branca e de fraque e Lara experimentou um forte sentimento de déjà vu: Ela estava napensão, depé emfrente do lava-loiça, e ojovem bem parecido de gravata branca e de fraque aparecia por detrás dela e sussurrava-lhe: Posso ajudá-la?

Brian MaiIntosh observava Lara, preocupado.

- Sente-se bem?

- Eu. eu estou óptima. - Sentia uma certa dificuldade em respirar.

Philip Adler avançava para eles, sorrindo, e era o mesmo sorriso caloroso que Lara tinha imaginado. Estendeu a mão.

- Brian, foi muito amável em ter vindo.

- Não ia perder uma coisa destas por nada deste mundo - replicou MacIntosh. - Você foi simplesmente espantoso.

- Obrigado.

- Ah, Philip, gostava de lhe apresentar Lara Cameron. Lara olhava-o nos olhos e as palavras saíram-lhe sem ela querer.

- Sabe secar?

- Perdão?

- Nada. Eu. - De repente sentiu a língua presa. As pessoas apinhavam-se em volta de Philip Adler, cumulando-o de elogios.

- Nunca tocou como hoje.

- Acho que Rachmaninoff estava consigo esta noite. E os elogios continuaram no mesmo tom. As mulheres juntavam-se cada vez mais à volta dele, tocando-o e puxando-o. Lara deixou-se ficar parada, a olhá-lo, cheia de espanto. O sonho da sua infância tornara-se realidade. A fantasia que concebera surgia-lhe agora em carne e osso.

- Está pronta para nos irmos embora? - perguntou Brian Mac Intosh.

Não. O seu único desejo era ficar ali mais tempo. Queria falar de novo com a visão, tocá-lo, certificar-se de que ele era real.

- Sim, estou pronta - disse com relutância.

Na manhã seguinte Lara regressou a Nova Iorque. Perguntava a si mesma se voltaria a ver Philip Adler.

Não conseguia afastá-lo do pensamento. Tentou dizer a si própria que era ridículo, que estava a tentar reviver um sonho da infância, mas em vão. Continuava a ver o rosto dele, a ouvir-lhe a voz. Tenho de o voltar a ver, pensou Lara.

No dia seguinte, logo de manhã cedo, Paul Martin telefonou.

- Olá, minha querida. Senti a tua falta. Que tal a viagem a Londres?

- Boa - respondeu cautelosa. - Foi boa.

Quando acabaram de falar, Lara ficou sentada à secretária a pensar em Philip Adler.

- Esperam-na na sala de reuniões, Miss Cameron.

- Vou já.

- Perdemos o negócio de Queens - disse Keller.

- Porquê? Pensei que estivesse tudo resolvido.

- Também eu, mas a junta recusa-se a apoiar a mudança de zona.

Lara olhou em volta para o Comité de Direcção reunido na sala. Havia arquitectos, advogados, homens da publicidade e engenheiros de construção civil.

Lara disse:

- Não compreendo. Esses locatários têm um rendimento médio de nove mil dólares por ano e estão a pagar menos de duzentos dólares de renda por mês. Nós vamos reabilitar os apartamentos para eles, sem aumento de renda, e vamos construir novos apartamentos para alguns dos outros residentes das vizinhanças. Estamos a dar-lhes um presente de Natal em pleno mês de Julho e eles recusam? Qual é o problema?

- Não é tanto a junta de uma maneira geral como a presidente. Uma senhora chamada Edith Benson.

- Arranjem uma nova reunião com ela. Eu vou lá pessoalmente.

Lara levou o encarregado principal, Bill Whitman, à reunião. Começou por dizer:

- Francamente, fiquei espantada quando soube que ajunta nos tinha recusado. Nós vamos investir mais de cem milhões de dólares para melhorar esta área e mesmo assim recusam-se a.

Edith Benson interrompeu-a.

- Sejamos francas, Miss Cameron. Não vão investir esse dinheiro para melhorar a área. Vão investi-lo, sim, para que a Cameron Enterprises possa ganhar mais dinheiro.

- Claro que contamos ganhar dinheiro - disse Lara. - Mas a única forma de o conseguir é colaborando convosco. Vamos melhorar as condições de vida na sua área e.

- Desculpe, mas eu não concordo. Neste momento, somos uma pequena comunidade tranquila. Se os deixarmos introduzir- se aqui, a densidade populacional vai aumentar: vai haver mais trânsito, mais automóveis, mais poluição. E nós não queremos nada disso.

- Nem eu - disse Lara. - Não tencionamos construir caixotes que ficarão degradados dentro de poucos anos. Estamos interessados em construções que não aumentem a poluição sonora, nem reduzam a luminosidade ou alterem o carácter do local. Não queremos uma arquitectura baráta e espaventosa. Já contratei Stanton Fielding, o melhor arquitecto do país, para desenhar este projecto. E Andrew Burton, de Washington, para a parte paisagística.

Edith Benson encolheu os ombros.

- Lamento muito. Não vale a pena. Não me parece que tenhamos mais nada a discutir. - E fez menção de se levantar.

Não posso perder isto, pensou Lara desesperada. Será que não conseguem perceber que é para o bem da comunidade? Estou a tentar fazer alguma coisa por eles e eles não me deixam. E de repente teve uma ideia desvairada.

- Espere um minuto - disse Lara. - Tanto quanto sei, os outros membros da junta estão dispostos a fazer o acordo e a senhora é a única que está a bloqueá-lo.

- É certo.

Lara respirou fundo.

- Há uma coisa que temos de discutir. - Hesitou. - É muito pessoal. - E começou à procura das palavras. - Diz que eu não estou preocupada com a poluição e com o impacto que terá nesta área o facto de nós começarmos a construir aqui? Pois eu vou dizer-lhe uma coisa que espero que não divulgue. Eu tenho uma filha de 10 anos que adoro e que vai viver com o pai no novo edifício. Ela ficou com o pai.

Edith Benson olhava-a surpreendida.

- Eu. eu não sabia que a senhora tinha uma filha.

- Ninguém sabe - disse Lara tranquilamente. - Eu nunca cheguei a casar. Por isso lhe pedi que não divulgasse esta nossa conversa. Se se vier a saber, pode ser muito prejudicial para mim. Tenho a certeza de que compreende isso.

- Compreendo, sim.

- Eu adoro a minha filha e garanto-lhe que nunca faria o que quer que fosse que pudesse prejudicá-la. Tenciono fazer tudo o que estiver ao meu alcance para tornar este projecto maravilhoso para todas as pessoas que aqui vivem. E ela vai ser uma dessas pessoas.

Houve um silêncio compreensivo.

- Bom, tenho de admitir que isto. isto torna a situação bastante diferente, Miss Cameron. Gostava de ter algum tempo para pensar.

- Obrigada. Fico-lhe muito grata. - Se eu tivesse realmente uma filha, pensou Lara, este seria um lugar seguro para ela viver.

Três semanas mais tarde, Lara recebeu a aprovação da Comissão de Planeamento da Cidade para levar por diante o projecto.

- Óptimo - disse Lara. - Agora temos de entrar em contacto com Stanton Fielding e Andrew Burton para ver se estão interessados em colaborar no projecto.

Howard Keller nem acreditava no que ouvia.

- Já sei o que aconteceu - disse. - Você levou-a à certa! É incrível. Você não tem filha nenhuma!

- Eles precisam deste projecto - disse Lara. - Foi a única coisa que me ocorreu para os fazer mudar de opinião.

Bill Whitman escutava-os.

- Vai ser o diabo se eles chegam a descobrir.

Em Janeiro ficou terminada a construção de um novo imóvel na Rua Sessenta e Três Leste. Era um bloco de apartamentos de quarenta e cinco andares e Lara reservou o último andar, um duplex, para si própria. Os quartos eram grandes e o apartamento tinha terraços que cobriam todo um quarteirão. Chamou um dos melhores decoradores para lhe acabar o apartamento. Cem pessoas foram con vidadas para a festa de inauguração.

- A única coisa que falta aqui é um homem - disse uma das convidadas, maldosamente.

E Lara pensou em Philip Adler e interrogou-se sobre o que ele estaria a fazer e onde.

Lara e Howard Keller estavam no meio de uma discussão quando Bill Whitman entrou no escritório.

- Escute, chefe, tem um minuto?

Lara levantou os olhos da secretária.

- Mais ou menos, Bill. Qual é o problema.

- É a minha mulher.

- Se está com problemas conjugais.

- Não é isso. Ela acha que nós devíamos ir passar férias a qualquer lado. Talvez passar umas semanas em Paris.

Lara franziu a testa.

- Paris? Temos uma boa meia dúzia de trabalhos em meio.

- Eu sei, mas ultimamente tenho trabalhado até tarde e quase não vejo a minha mulher. Sabe o que foi que ela me disse esta manhã?

Bill, se fosses promovido e conseguisses um bom aumento já não terias de trabalhar tanto. - E sorriu.

Lara recostou-se na cadeira, observando-o.

- Você só tem direito à promoção no próximo ano.

Whitman encolheu os ombros.

- Sabe-se lá o que pode acontecer no espaço de um ano. Podemos vir a ter problemas com aquele projecto de Queens, por exemplo. Essa tal Edith Benson pode vir a saber alguma coisa que a faça mudar de ideias. Não acha?

Lara deixou-se ficar sentada, completamente imóvel.

- Estou a ver.

Bill Whitman pôs-se de pé.

- Pense nisso e depois diga-me qualquer coisa.

Lara teve um sorriso forçado.

- Está bem.

Ficou a vê-lo sair do gabinete, com ar carregado.

- Céus - disse Keller. - Que conversa era aquela?

- É o que se chama chantagem.

No dia seguinte, Lara almoçou com Paul Martin. Lara disse:

- Paul, tenho um problema. Não sei bem o que fazer. - E contou-lhe a conversa que tivera com Bill Whitman.

- E achas que ele ia mesmo procurar essa tal senhora? - perguntou Paul Martin.

- Não sei. Mas se ele for eu posso vir a ter grandes problemas com o Departamento de Habitação.

Paul encolheu os ombros.

- No teu lugar, não me preocupava com ele. O indivíduo deve estar a fazer bluff.

Lara suspirou.

- Espero bem que sim.

- E que é que tu achavas de ir até Reno? - perguntou Paul.

- Adorava, mas não posso sair daqui.

- Não te estou a pedir que saias daqui. Estou a tentar saber se gostarias de comprar um hotel e um casino em Reno.

Lara pôs-se a observá-lo.

- Estás a falar sério?

- Fui informado de que um dos hotéis vai perder a concessão. Aquilo é uma mina de ouro. Quando a notícia se espalhar, toda a gente vai querer deitar-lhe a mão. O hotel vai ser leiloado, mas eu acho que posso arranjar maneira de seres tu a ficar com ele.

Lara hesitou.

- Não sei. Já tenho tantos compromissos. Ioward Keller diz que os bancos não me vão emprestar mais dinheiro enquanto eu não liquidar alguns dos empréstimos.

- Mas tu não tens de ir a nenhum banco.

- Então onde.

- Obrigações de segunda. Há muitas firmas de Wall Street a oferecê-las. Há as instituições de poupança e crédito. Tu entras com um capital de cinco por cento e uma dessas firmas entra com sessenta e cinco por cento em papéis de alta rentabilidade. Ficam trinta por cento de fora. Podes ir buscá-los a um banco estrangeiro que invista em casinos. Tens por onde escolher... Suíça, Alemanha, Japão. Há meia dúzia de bancos que entram com esses trinta por cento em notas comerciais.

Lara estava a começar a entusiasmar-se.

- Parece-me óptimo. Achas mesmo que consegues que eu fique com o hotel?

Paul sorriu.

- Vai ser o teu presente de Natal.

- Tu és maravilhoso. Por que é que és tão bom para mim?

- Não faço a menor ideia - retorquiu gracejando. Mas a verdade é que sabia. Estava obcecado por ela. Lara fazia-o sentir-se outra vez jovem e tornava tudo excitante para ele. Não quero perder-te nunca, pensou.

Keller estava à espera de Lara quando ela entrou no escritório.

- Por onde é que andou? - perguntou. - Havia uma reunião às duas horas que.

- Fale-me das obrigações de segunda, Howard. Nunca as usámos. Como é que são cotadas?

- Bom, no topo da escala temos o Triplo A. Depois vem o Duplo A, A Simples, BAA, e no fim de tudo o Duplo B... é isso. Uma obrigação de investimento paga-lhe nove por cento, uma obrigação de segunda, catorze por cento. Por que é que pergunta?

Lara contou-lhe.

- Um casino, Lara? Santo Deus! Paul Martin está por detrás disso, não está?

- Não, Howard. Se eu levar isto por diante eu é que estou por detrás de tudo. Recebemos alguma resposta quanto à nossa proposta para a propriedade de Battery Park?

- Sim. Ela não nos quer vender.

- A propriedade está para venda, não está?

- De certa maneira.

- Pare de falar em círculos.

- A proprietária é a viúva de um médico. Eleanor Royce. Todos os construtores da cidade têm feito ofertas para essa propriedade.

- E houve alguma oferta melhor que a nossa?

- Não é isso. A viúva não está interessada em dinheiro. É podre de rica.

- E em que é que ela está interessada?

- Ela quer qualquer coisa que seja um monumento à memória do marido. Parece estar convencida de que foi casada com Albert Schweitzer. Quer manter viva a memória dele. Não quer ver a propriedade transformada em qualquer coisa de grosseiro e comercial. Ouvi dizer que Steve Murchison tem andado a tentar convencê-la a vender.

- Ah?

Lara ficou bem um minuto sentada em silêncio. Quando falou, perguntou:

- Quem é o seu médico, Howard?

- O quê?

- Quem é o seu médico?

- Seymour Bennett. É o chefe do pessoal no Midtown Hospital.

Na manhã seguinte, o advogado de Lara, Terry Hill, estava sentado no gabinete do Dr. Seymour Bennett.

- A minha secretária disse-me que queria falar urgentemente comigo e que o assunto não tem nada a ver com nenhum problema médico.

- De certa forma - disse Terry Hill - trata-se de um problema médico. Eu represento um grupo de investimento que pretende criar uma clínica não lucrativa. Desejamos poder ocupar-nos daqueles que não têm a possibilidade de pagar os serviços de saúde.

- Isso é uma ideia esplêndida - disse o Dr. Bennett. - Em que é que posso ser-lhes útil?

Terry Hill explicou-lhe.

No dia seguinte, o Dr. Bennett estava a tomar chá em casa de Eleanor Royce.

- Pediram-me que contactasse consigo em nome deste grupo, Sr. á Royce. Querem construir uma clínica óptima e dar-lhe o nome do seu falecido marido. Consideram-na como uma espécie de santuário dedicado a ele.

O rosto da Sr. á Royce iluminou-se.

- A sério?

Discutiram os planos do grupo durante uma hora e no fim a Sr. á Royce disse:

- O George teria adorado isto. Diga-lhes que o acordo está feito. A construção começou seis meses depois. Quando terminou, era uma obra gigantesca. A área foi preenchida com enormes blocos de apartamentos, um imenso centro comercial e um complexo teatral. Num canto distante da propriedade via- se um pequeno edifício de tijolo com um único piso. Num letreiro despretencioso sobre a porta lia-Se: CLÍNICA MÉDICA GEORGE ROYCE.

 

No dia de Natal Lara ficou em casa. Tinha sido convidada para uma dúzia de festas, mas Paul Martin tinha ficado de aparecer.

- Hoje tenho de estar com a Nina e os pequenos - explicara - mas quero passar por lá para te ver.

Lara perguntava a si mesma o que faria Philip Adler naquele Natal.

Estava um dia de bilhete postal. Nova Iorque encontrava-se coberta por um manto de neve alvíssimo, que a envolvia em silêncio. Quando Paul Martin chegou, trazia um saco de compras cheio de presentes para Lara.

- Tive de passar pelo escritório para ir buscar isto - disse. Para a mulher não desconfiar de nada.

- Tu dás-me tanta coisa, Paul. Não precisavas de ter trazido nada.

- Mas eu quis. Abre-os.

Lara sentiu-se comovida com o interesse dele pela sua reacção. Os presentes tinham sido escolhidos com cuidado e eram caros. Um colar de Cartier, lenços Hermès, livros da Rizzoli, um relógio de carrilhão antigo e um pequeno sobrescrito branco. Lara abriu-o. Dizia: Hotel & Casino Cameron Reno, em grandes letras de forma. Ela levantou os olhos, surpreendida.

- Já tenho o hotel?

Ele fez um aceno de cabeça confiante.

- Vais tê-lo. O leilão começa para a semana. Vais-te divertir - afirmou Paul Martin.

- Mas eu não faço a menor ideia de como se dirige um casino.

- Não te preocupes. Eu arranjo pessoal especializado para o dirigir. Quanto ao hotel, isso é contigo.

- Não sei como te hei-de agradecer. Tens feito tanta coisa por mim.

Ele pegou-lhe nas mãos.

- Não há nada neste mundo que eu não fizesse por ti. Não te esqueças disso.

- Não esqueço - afirmou Lara em tom solene.

Paul olhou para o relógio.

- Tenho de voltar para casa. Quem me dera. - Hesitou.

- Sim?

- Não tem importância. Feliz Natal, Lara.

- Feliz Natal, Paul.

Lara foi até àjanela e olhou para fora. O céu parecia agora uma cortina delicada de trémulos flocos de neve. Inquieta, aproximou-se do rádio e ligou-o. Um locutor anunciava: e agora, continuando o nosso programa festivo, a Orquestra Sinfónica de Bóston apresenta o Concerto para piano n.o 5 em mi bemol de Beethoven, solista Philip Adler.

Lara escutou-o com os olhos, vendo-o ao piano, bonito e elegante. Quando a música chegou ao fim, pensou: Tenho de voltar a vê-lo.

Bill Whitman era um dos melhores encarregados no campo da construção civil. Fizera carreira por si próprio e agora era procurado por todos. Trabalhava regularmente e era bem pago, mas sentia-se insatisfeito. Ao longo dos anos vira os construtores ganharem fortunas enormes enquanto ele tinha de se contentar com um salário. De certa forma, pensou, estão a ganhar dinheiro à minha custa. O dono ganha o bolo; eu fico com as migalhas. Mas no dia em que Lara se apresentara perante a vereação da Câmara tudo tinha mudado. Lara mentira para conseguir a aprovação da Câmara e essa mentira podia destruí-la. Se eu fosse procurar a vereação e lhes contasse a verdade, ela ficava arrumada.

Mas Bill Whitman não tinha a menor intenção de fazer tal coisa. Tinha um plano melhor. Tencionava usar o sucedido em seu benefício. A patroa ia ter de lhe dar tudo o que ele pedisse. Apercebera-se, logo da primeira vez, quando lhe pedira a promoção e respectivo aumento, que ela iria ceder. Não tinha outro remédio. A princípio vou devagarinho, pensou Bill Whitman satisfeito, e depois começo a apertar.

Dois dias depois do Natal recomeçaram os trabalhos com o projecto do East Side Plaza. Whitman olhou em volta, para a vastidão do local, e pensou: Este vai ser uma autêntica máquina de fazer dinheiro. Só que desta vez eu também vou arrecadar algum.

O terreno estava cheio de equipamento pesado. Guindastes escavavam a terra e transportavam-na às toneladas para os camiões que aguardavam à volta. Um dos guindastes, que manobrava uma gigantesca pá dentada, parecia estar encravado. O braço enorme quedara-se suspenso no ar. Whitman encaminhou-se para a cabina do operador, por debaixo da enorme pá de metal.

- Eh, Jesse - chamou. - Que é que se passa aí?

O homem murmurou qualquer coisa que Whitman não conseguiu ouvir.

Aproximou-se mais.

- O quê?

Tudo aconteceu no espaço de um segundo. Uma corrente deslizou e a enorme pá de metal abateu-se sobre Whitman, esmagando-o de encontro ao chão. Vários homens acorreram, mas não havia nada a fazer.

- O travão de segurança escorregou - explicou mais tarde o operador do guindaste. - Caramba, sinto-me mesmo mal. Eu gostava muito do Bill.

Quando soube da notícia, Lara telefonou imediatamente a Paul Martin.

- Já sabes o que aconteceu ao Bill Whitman?

- Sim. Deram na televisão.

- Paul, tu não.

Ele riu-se.

- Não te ponhas a imaginar coisas. Andas a ver filmes de mais. Não te esqueças. No fim, os bons ganham sempre.

E Lara perguntou a si mesma: Será que eu pertenço ao número dos bons?

Havia mais de uma dúzia de interessados para o hotel de Reno.

- Quando é que eu faço a minha oferta? - perguntou Lara a Paul.

- Não fazes. Enquanto eu não disser. Deixa os outros precipitarem-se.

As ofertas eram secretas e as propostas seladas, para serem abertas na sexta-feira seguinte. Chegou-se a quarta-feira e Lara ainda não tinha feito qualquer oferta.

Telefonou a Paul Martin.

- Deixa-te estar sossegada - replicou ele. - Quando chegar a altura eu digo-te.

Continuavam a telefonar-se várias vezes por dia.

Às cinco da tarde, uma hora antes de terminar o prazo para o concurso, Lara recebeu um telefonema.

- Bom, a oferta mais alta é de cento e vinte milhões. Quero que ofereças mais cinco milhões.

Lara conteve a respiração.

- Mas se eu fizer uma oferta dessas vou perder dinheiro.

- Confia em mim - disse Paul. - Depois de o hotel ser teu, e quando começares a remodelá-lo, podes reduzir as alterações. Vai ser tudo endossado pelo engenheiro encarregado. Vais recuperar os cinco milhões e não só.

No dia seguinte, Lara foi informada de que a oferta dela tinha ganho o concurso.

Agora Lara e Keller iam a caminho de Reno.

O hotel chamava-se Reno Palace. Era grande e sumptuoso, com mil e quinhentos quartos e um enorme e deslumbrante casino que se encontrava vazio. Lara e Howard Keller foram acompanhados na sua visita ao casino por um homem chamado Tony Wilkie.

- Os antigos donos fizeram um mau negócio.

- Que espécie de mau negócio? - perguntou Keller.

- Bom, parece que dois dos rapazes se estavam a governar por conta própria.

- A falsear os lucros - entrepôs Keller.

- Sim. Claro que os proprietários não sabiam de nada.

- Claro que não.

- Mas houve quem desse com a língua nos dentes e a Inspecção Geral de Jogos puxou-lhes o tapete debaixo dos pés. É uma pena. O negócio era muito rendoso.

- Eu sei. - Keller já tinha estudado os livros.

Quando a visita terminou e Lara e Howard ficaram sozinhos, ela disse:

- Paul Martin tinha razão. Isto é uma mina. - Depois notou a expressão no rosto de Keller. - Que é que há?

Ele encolheu os ombros.

- Não sei. Mas não me agrada que estejamos envolvidos numa coisa destas.

- Que é que quer dizer uma coisa destas? É a galinha dos ovos de ouro, Howard.

- Quem é que vai dirigir o casino?

- Havemos de arranjar alguém - disse Lara num tom evasivo.

- Onde? Vamos buscá-los aos escuteiros? Só osjogadores sabem    como isto deve funcionar. Eu não conheço nenhum, você conhece?

Lara ficou silenciosa.

- Mas aposto que Paul Martin conhece.

- Não o meta nisto - disse Lara.

- Era o que eu gostava de fazer e também gostava que você estivesse de fora. A ideia não me parece lá muito boa.

- Tal como o projecto de Queens não lhe parecia que fosse uma boa ideia, não é verdade? Nem o centro comercial da Rua Houston. Mas tudo isso está a dar dinheiro, ou não?

- Lara, eu nunca disse que não fossem bons negócios. O que eu disse é que acho que estamos a ir depressa de mais. Você está a engolir tudo o que vê, mesmo sem ter ainda digerido nada.

Lara deu-lhe uma pancadinha na cara.

- Descontraia-se.

Os membros da Inspecção Geral de Jogos receberam Lara com uma cortesia elaborada.

- Não é costume recebermos a visita de mulheres bonitas - disse o presidente. - Este é um dia especial.

Lara estava realmente muito bonita. Vestia um fato de lã bege de Donna Karan, com uma blusa de seda creme e, para lhe dar sorte, um dos lenços que Paul lhe oferecera pelo Natal. Sorriu.

- Obrigada.

- Em que podemos ser-lhe úteis? - perguntou um dos membros da comissão. Todos eles sabiam perfeitamente aquilo em que podiam ser-lhe úteis.

- Estou aqui porque gostaria de fazer alguma coisa a favor da cidade de Reno - replicou Lara muito séria. - Gostaria de lhe oferecer o maior e melhor hotel de Nevada. Gostaria de acrescentar cinco pisos ao Reno Palace e de criar um importante centro de conferências para atrair mais turistas às salas de jogos.

Os membros da comissão entreolharam-se.

O presidente disse:

- Estou convencido de que uma coisa dessas seria benéfica para a cidade. Claro que o nosso papel é garantir que uma operação deste tipo seja conduzida de uma forma absolutamente transparente.

- Nem eu sou propriamente uma criminosa. - Lara sorriu. Eles soltaram uma risada em resposta ao gracejo de Lara.

- Nós conhecemos o seu estatuto, Miss Cameron, e podemos dizer que é admirável. Contudo, não tem qualquer experiência no que diz respeito a casinos.

- Isso é verdade - admitiu. - Mas, por outro lado, creio que deve ser fácil arranjar empregados qualificados que mereçam a aprovação desta Inspecção Geral. Eu pela minha parte ficaria certamente muito grata se me quisessem orientar.

Um dos membros da comissão tomou a palavra.

- No que diz respeito ao financiamento, pode garantir. O presidente interrompeu-o.

- Isso já está tratado, Tom. Miss Cameron já apresentou um relatório financeiro. Vou fornecer uma cópia a cada um de vós.

Lara continuava sentada, à espera.

O presidente disse:

- Neste momento, não lhe posso prometer nada, Miss Cameron, mas creio poder afirmar que não vejo quaisquer entraves a que lhe seja concedida uma licença de exploração.

O rosto de Lara iluminou-se.

- Isso é óptimo. Gostava de começar o mais depressa possível.

- Receio bem que as coisas aqui não andem assim tão depressa. Terá de haver um período de espera de um mês até podermos dar-lhe uma resposta definitiva.

Lara mostrou-se desanimada.

- Um mês?

- Sim. Temos de colher certas informações.

- Compreendo -concluiu Lara. - Não há problema. Havia uma loja de música no complexo comercial do hotel. Na montra, estava exposto um grande poster de Philip Adler, anunciando o seu último CD.

Lara não estava interessada na música. Comprou o CD por causa da fotografia de Philip que vinha na parte de trás da caixa.

Na viagem de regresso a Nova Iorque, Lara disse:

- Howard, que é que você sabe acerca de Philip Adler?

- Aquilo que toda a gente sabe. Hoje em dia ele deve ser o maior pianista do mundo. Toca com as melhores orquestras. Li em qualquer parte que ele criou uma fundação para atribuir bolsas aos músicos sem recursos das cidades do interior.

- Como é que se chama?

- Acho que é a Fundação Philip Adler.

- Gostava de fazer um donativo - disse Lara. - Mande- lhes um cheque de dez mil dólares em meu nome.

Keller olhou-a surpreendido.

- Julgava que você não se interessava pela música clássica.

- Estou a começar a interessar-me - replicou Lara.

O título da notícia era assim:

PROMOTOR DE JUSTIÇA ABRE INQUÉRITO A PAUL MARTIN...     JULGA-SE QUE O ADVOGADO TEM LIGAÇÕES COM A MAFIA.

Lara leu o artigo, cheia de espanto, e telefonou imediatamente a Paul.

- Que é que se está a passar? - perguntou.

Ele soltou uma risada.

- O promotor de Justiça anda outra vez a tentar pescar em águas turvas. Há anos que andam a querer estabelecer uma ligação, mas sem resultado. Cada vez que há eleições, tentam usar-me como bode expiatório. Não te preocupes com isso. E se jantássemosjuntos esta noite?

- Óptimo - disse Lara.

- Conheço um sítio em Mulberry Street onde ninguém nos vai incomodar.

Durante o jantar, Paul Martin disse:

- Ouvi dizer que a reunião com a Inspecção Geral de Jogos correu muito bem.

- Acho que sim. Eles pareceram-me simpáticos, eu é que nunca me tinha metido em nada disto.

- Não creio que vás ter problemas. Eu arranjo-te uns indivíduos como deve ser para o casino. O homem que tinha a licença tornou-se demasiado ganancioso. - Mudou de assunto. - Como é que vão as obras, de uma maneira geral?

- Muito bem. Tenho três projectos em curso, Paul.

- Não estás a ficar afogada, pois não, Lara?

Parecia-lhe que estava a ouvir Howard Keller.

- Não. Todas as obras estão a ir segundo o orçamento e os prazos têm sido respeitados.

- Ainda bem, minha filha. Não quero que nada te corra mal.

- Não vai correr. - Pôs a mão sobre a dele. - Tu és a minha rede de segurança.

- Podes contar sempre comigo. - E estreitou-lhe a mão.

Passaram-se duas semanas e Lara não tinha notícias de Philip Adler. Mandou chamar Keller.

- Chegou a mandar a tal contribuição de dez mil dólares para a Fundação Adler?

- Sim, logo no mesmo dia.

- Estranho. Sempre pensei que ele me telefonasse. Keller encolheu os ombros.

- Deve andar em viagem em qualquer lado.

- É possível. - Tentou disfarçar o desapontamento. - Falemos agora da obra de Queens.

- Isso vai ser um grande corte financeiro para nós - disse Keller.

- Tenho um plano para nos proteger. Gostava de envolver um dos inquilinos no negócio.

- Tem alguém na ideia?

- Sim. A Mutual Security Insurance. O presidente é um indivíduo chamado Horace Guttman. Ouvi dizer que andam com vontade de se mudar. Gostaria que o fizessem para o nosso edifício.

- Vou saber - disse Keller.

Lara reparou que ele não tomava notas.

- Você espanta-me a todo o momento. Consegue lembrar-se de tudo, não consegue?

Keller sorriu.

- Tenho uma memória fotográfica. Costumava usá-la para as estatísticas de basebol. - Parece que foi tudo há tanto tempo, pensou Howard. O rapaz com o braço milagroso, a vedeta da liga menor dos Chicago Cubs. Outra pessoa noutro tempo. - Às vezes torna-se um castigo. Há coisas na minha vida que eu gostaria de esquecer.

- Howard, diga ao arquitecto que avance com os planos para o edifício de Queens. Veja se sabe de quantos pisos a Mutual Security vai precisar e qual o espaço por piso.

Dois dias depois Keller entrou no gabinete de Lara.

- Receio bem ter de lhe dar uma notícia desagradável.

- Qual é o problema?

- Andei por aí a farejar. Você tinha razão quanto à Mutual Security Insurance. Estão realmente à procura de novas instalações para a sede, mas Guttman está a pensar num prédio da Union Square. Um prédio que pertence ao seu velho amigo Steve Murchison.

Outra vez Murchison! Lara tinha a certeza de que a caixa de terra tinha sido mandada por ele. Não vou deixar que ele me passe por cima.

- Guttmanjá se comprometeu? - perguntou Lara.

- Ainda não.

- Óptimo. Eu trato disso.

Nessa tarde Lara fez uma dezena de telefonemas. O último acertou em cheio. Barbara Roswell.

- Horace Guttman? Claro que conheço, Lara. Qual é o seu interesse nele?

- Gostava de o conhecer. Sou uma grande admiradora de Horace Guttman. Queria que me fizesse um favor. É capaz de o convidar para jantar no sábado à noite, Bárbara?

- Combinado.

O jantar foi simples mas elegante. Havia catorze pessoas na residência dos Roswell. Alice Guttman não se sentia bem nesse dia e Horace Guttman teve de ir sozinho. Lara ficou sentada ao lado dele. Era um homem na casa dos 60 anos, mas parecia muito mais velho. Tinha um rosto duro e gasto e um queixo determinado. Lara estava encantadora, provocante. Tinha um vestido preto decotado de Halston e asjóias eram espantosas, apesar de simples. Tomaram cocktails e finalmente sentaram-se à mesa do jantar.

- Tenho andado desejosa de o conhecer - confessou Lara. Tenho ouvido falar muito de si.

- Eu também tenho ouvido falar muito de si. Causou uma verdadeira sensação nesta cidade.

- Espero que a minha contribuição seja positiva - disse Lara com modéstia. - É uma cidade tão maravilhosa.

- De onde é?

- De Gary, Indiana.

- Sério? - Ele olhou-a, surpreendido. - Foi também onde eu nasci. Indiana, ein?

Lara sorriu.

- É verdade. Tenho excelentes recordações de Gary. O meu pai trabalhava para o Post-Tribune. Eu andei no Liceu Roosevelt. Aos fins-de-semana íamos para Gleason Park fazer piqueniques e ouvir os concertos ao ar livre. Outras vezes íamos jogar bowling para o Twelve and Twenty. Tive muita pena de sair de lá.

- Mas tem feito carreira, Miss Cameron.

- Lara.

- Lara. Que é que tem em mãos agora?

- O projecto que mais me entusiasma - disse Lara - é um novo edifício que estou a construir em Queens. Vai ter trinta andares e seiscentos mil metros quadrados de área coberta.

- Interessante - disse Guttman, pensativo.

- Por que diz isso? - perguntou Lara inocentemente.

- Acontece que estamos à procura de um edifício mais ou menos com essa área para a nossa nova sede.

- Ah sim? E já decidiu alguma coisa?

- Não propriamente, mas.

- Se quiser, posso mostrar-lhe os planos. Já estão prontos. Ele ficou um momento a estudá-la.

- Sim, gostaria de os ver.

- Posso levá-los ao seu escritório na segunda-feira de manhã.

- Fico à sua espera.

O resto da noite correu muito bem.

Quando Horace Guttman chegou a casa, dirigiu-se ao quarto da mulher.

- Como é que te sentes? - perguntou.

- Melhor, querido. Como é que foi o jantar?

Ele sentou-se em cima da cama.

- Bom, todos sentiram a tua falta, mas eu conheci uma pessoa interessante. Já alguma vez ouviste falar de Lara Cameron?

- Claro. Toda a gente ouviu falar de Lara Cameron.

- É uma mulher espantosa. Um bocado estranha. Diz que nasceu em Gary, Indiana, tal como eu. Sabia tudo sobre Gary. Gleason Park, o Twelve and Twenty.

- Que é que há de estranho nisso?

Guttman olhou para a mulher e sorriu.

- É que essa criaturinha nasceu na Nova Scotia.

Ao princípio da manhã de segunda-feira, Lara apareceu no escritório de Horace Guttman, levando os desenhos do projecto de Queens. Fizeram-na entrar imediatamente.

- Prazer em vê-la, Lara. Sente-se, por favor.

Ela pousou os desenhos em cima da secretária e sentou-se em frente dele.

- Antes de lhe mostrar isto - disse Lara - quero fazer-lhe uma confissão, Horace.

Guttman recostou-se na cadeira.

- Sim?

- Aquela história que lhe contei no sábado, acerca de Gary, Indiana.

- Que é que tem?

- Eu nunca estive em Gary, Indiana. Estava só a tentar impressioná-lo.

Ele riu-se.

- Bom, agora conseguiu baralhar-me. Não tenho a certeza se vou conseguir aguentar-me consigo. Bom, vamos lá ver esses desenhos.

Meia hora depois acabou de os examinar.

- Sabe uma coisa - disse em tom pensativo -, eu já estava bastante inclinado para um sítio muito diferente.

- Estava?

- Por que é que eu hei-de mudar de ideias e decidir-me pelo seu prédio?

- Porque se vai sentir muito mais feliz nele. Eu encarrego-me de fazer com que possa ter tudo aquilo de que precisa. - Sorriu. - Além disso, vai custar à sua companhia menos dez por cento.

- Na verdade? Você não sabe qual é o meu acordo em relação ao outro prédio.

- Não importa. Basta-me a sua palavra.

-Você podia mesmo ter vindo de Gary, Indiana- disse Guttman.

- Acordo fechado.

Quando Lara regressou ao escritório, aguardava-a uma mensagem: Philip Adler tinha telefonado.

 

A sala de baile do Waldorf Astoria estava apinhada com os frequentadores de Carnegie Hall. Lara deslocava-se por entre a multidão, à procura de Philip. Recordava a conversa telefónica que tinham tido havia alguns dias.

- Miss Cameron, daqui é Philip Adler.

Ela sentiu a garganta secar-se-lhe de repente.

- Lamento não ter podido agradecer-lhe mais cedo o donativo que enviou à fundação. Acabo de chegar da Europa e só agora tive conhecimento disso.

- Foi um prazer - disse Lara. Tinha de fazer com que ele continuasse a falar. - A. a verdade é que gostava de saber mais al guma coisa acerca da Fundação. Talvez pudéssemos encontrar-nos e falar sobre isso.

Houve uma pausa.

-Vai haver umjantar de caridade no Waldorf, no sábado à noite. Podíamos encontrar-nos lá.

Lara deitou um olhar rápido à agenda. Tinha umjantar de negócios nessa noite com um banqueiro do Texas.

Tomou uma decisão rápida.

- Sim. Terei muito prazer.

- Óptimo. Haverá um bilhete à porta para si.

Quando Lara pousou o auscultador tinha um ar radioso.

Philip Adler não estava visível em parte nenhuma. Lara percorreu a enorme sala de baile, escutando as conversas à sua volta.

e o tenor principal disse: Dr. Klemperer, só me restam dois dós de peito. Quer ouvi-los agora ou logo à noite durante o espectá culo?

oh, eu admito que ele tem uma excelente batuta. A dinâmica e as tonalidades são muito boas... mas os tempi! Tempi! Pelo amor de Deus!

... você está louco! Stravinsky é demasiado estruturalista.

A música dele podia ter sido escrita por um robot. Refreia todos os seus sentimentos. Bartók, pelo contrário, abre as comportas e nós somos banhados pelas emoções.

francamente não compreendo a maneira como ela toca. Chopin torna-se um exercício, um arranjo torturado, com as estruturas dilaceradas, uma paixão purpúrea.

Era uma linguagem misteriosa, totalmente fora da compreensão de Lara. E nesse momento viu Philip, rodeado por uma corte de admiradoras. Lara abriu caminho por entre a multidão. Uma mulher jovem e atraente dizia:

- Quando tocou a Sonata em si bemol menor senti que Rachmaninoff sorria. O seu tom, as nuances suaves da leitura. Maravilhoso!

Philip sorriu.

- Obrigado.

Uma dama de meia-idade arrulhava:

- Não paro de ouvir a sua gravação do Hammerklavier. Meu Deus! Que vitalidade irresistível! Acho que deve ser o único pianista que nos resta neste mundo que compreende que as sonatas de Beethoven.

Philip viu Lara.

- Desculpe - disse.

Dirigiu-se para o sítio onde ela estava e pegou-lhe na mão. O contacto dele excitou-a.

- Olá. Estou contente que tenha podido vir, Miss Cameron.

- Obrigada. - Olhou em volta. - Que multidão.

Ele fez um sinal de assentimento com a cabeça.

- É verdade. Presumo que seja uma apreciadora de música clássica?

Lara pensou nas canções populares que tinham acompanhado a sua infância e adolescência: Annie Laurie, Comin through the Rye, The HiIIs ofHome.

- Ah, sim - replicou. - O meu pai fez-me crescer a ouvir música clássica.

- Quero agradecer-lhe mais uma vez o seu donativo. Foi na verdade muito generoso.

- A sua fundação pareceu-me tão interessante. Gostaria de saber mais coisas sobre ela. Se.

- Philip, querido! Não há palavras! Magnífico! - A multidão submergira-o de novo.

Lara ainda conseguiu fazer-se ouvir.

- Se tiver alguma noite livre na próxima semana. Philip sacudiu a cabeça.

- Tenho muita pena, mas parto para Roma amanhã. Lara experimentou uma sensação de perda.

- Oh.

- Mas volto dentro de duas semanas. Talvez nessa altura pudéssemos.

- Óptimo! - exclamou Lara.

Vou passar uma noite a falar de música.

Lara sorriu.

- Está bem. Fico à espera.

Nessa altura foram interrompidos por dois homens de meia-idade. Um deles tinha o cabelo amarrado num rabo de cavalo, o outro usava um brinco numa orelha.

- Philip! Tens de servir de árbitro numa questão. Quando tocas Liszt, que é que achas mais importante. um piano que se afirme fortemente e que dê um som cheio de cor ou uma acção ligeira em que possas conseguir uma manipulação colorida?

Lara não fazia a menor ideia do que eles estavam a dizer. Afastaram-se numa discussão sobre a sonoridade neutra, os sons prolongados e a transparência. Ficou a observar a animação no rosto de Philip enquanto falava e pensou: Este é o mundo dele. Tenho de arranjar maneira de entrar nele.

Na manhã seguinte, Lara apareceu na Escola de Música de Manhattan. Disse para a mulher que estava na recepção:

- Gostaria de falar com um dos professores de música, por favor.

- Alguém em especial?

- Não.

- Só um momento, por favor. - Desapareceu noutra sala. Passados alguns minutos, um homenzinho baixo e grisalho apareceujunto de Lara.

- Bom dia. O meu nome é Leonard Meyers. Em que posso ser-lhe útil?

- Estou interessada na música clássica.

- Ah, e pretende matricular-se aqui. Qual é o instrumento que toca?

- Não toco instrumento nenhum. Só quero aprender alguma coisa sobre música clássica.

- Receio que não tenha vindo procurar o lugar certo. Esta escola não é para principiantes.

- Pago-lhe cinco mil dólares por duas semanas do seu tempo. O professor Meyers pestanejou.

- Desculpe, Miss... Não percebi o seu nome.

- Cameron. Lara Cameron.

- Quer pagar-me cinco mil dólares por uma discussão de duas semanas sobre a música clássica? - Via-se que sentia dificuldade em dizer aquilo.

- Exactamente. Pode usar o dinheiro para bolsas de estudo, se quiser.

O professor Meyers baixou a voz.

- Não é preciso. Isto pode ficar entre nós.

- Está bem.

- Quando. desejaria começar?

- Agora.

- Neste momento estou a dar uma aula, mas dê-me cinco minutos.

Lara e o professor Meyers estavam sentados, sozinhos, numa sala de aula.

- Comecemos pelo princípio. Sabe alguma coisa sobre a música cldássica?

- Muito pouco.

- Estou a ver. Bom, há duas maneiras de compreender a música

- começou o professor. -A intelectual e a emocional. Alguém disse uma vez que a música revela ao homem a parte secreta da sua alma. Todos os grandes compositores conseguiram realizar isso.

Lara escutava-o, atenta.

- Está familiarizada com alguns compositores, Miss Cameron? Ela sorriu.

- Não muitos.

O professor franziu a testa.

- Para falar verdade não compreendo o seu interesse em.

- Quero ficar com as noções indispensáveis para conseguir manter uma conversa inteligente com um músico profissional acerca dos clássicos. Estou particularmente interessada no piano.

- Compreendo. - Meyers ficou um momento a pensar. - Já sei como havemos de começar. Vou dar-lhe alguns CDs para ouvir.

Lara ficou a vê-lo dirigir-se a uma prateleira e tirar de lá alguns compactos.

- Vamos começar com estes. Quero que escute com atenção o allegro do Concerto para Piano número vinte e um em dó, de Mozart, Kóchel 467 e o adagio do concerto para piano número um de Brahms e o moderato do Concerto para piano número dois em dó menor, Opus quinze, de Rachmaninoff e, para terminar, a romanza do Concerto número um para piano de Chopin. Estão todos assinalados.

- Óptimo.

- Se quiser ouvi-los e voltar daqui a uns dias...

- Volto amanhã.

No dia seguinte, quando Lara chegou, levava consigo meia dúzia de CDs dos concertos e recitais de Philip Adler.

- Ah, esplêndido! - disse o professor. - Mestre Adler é o maior. Está particularmente interessada nas interpretações dele?

- Sim.

- Ele gravou sonatas magníficas.

- Sonatas? Ele suspirou.

- Não sabe o que é uma sonata?

- Acho que não.

- Uma sonata é uma peça musical, geralmente com vários movimentos, que tem uma forma musical básica. E quando essa forma é usada para um solo de um instrumento, como o piano ou o violino, a peça é chamada sonata. Uma sinfonia é uma sonata para orquestra.

- Entendo. - Não devia ser difícil usar aquilo numa conversa. - O piano era originariamente conhecido como pianoforte. Em italiano isso quer dizer suavezlto.

Passaram os dias que se seguiram a discutir as gravações de Philip - Beethoven, Liszt, Bartók, Mozart, Chopin.

Lara escutava, absorvia e recordava.

- Ele gosta de Liszt. Fale-me dele.

- Franz Liszt era um menino prodígio. Toda a gente o admirava. Era brilhante. Era tratado como favorito pela aristocracia e por fim acabou por se queixar de que se tornara uma espécie de ilusionista ou de cãozinho de circo.

- Fale-me de Beethoven.

- Um homem difícil. Era uma pessoa de tal maneira infeliz que, no meio do seu grande êxito, decidiu que não gostava do trabalho que fizera e mudou para composições mais longas e mais emotivas, como: a Eroica e a Patética.

- Chopin?

- Chopin era criticado por escrever música para piano, por isso os críticos do seu tempo consideravam-no limitado.

Mais tarde Liszt tocava Chopin melhor que o próprio Chopin.

Noutro dia:

- Há uma diferença entre os pianistas franceses e os pianistas americanos. Os franceses gostam da clareza e da elegância. Tradicionalmente, a sua formação técnica baseia-se nojeu perlé. uma articulação de uma macieza nacarada aliada a um pulso firme.

Em cada dia tocavam um dos discos de Philip e discutiam-no. Ao fim de duas semanas, o professor Meyers disse:

- Devo confessar que estou impressionado, Miss Cameron. É uma aluna verdadeiramente aplicada. Acho que deveria tentar um instrumento.

Lara riu.

- Não exageremos. - Estendeu-lhe um cheque. - Aqui tem. Mal podia esperar que Philip regressasse a Nova Iorque.

 

O dia começou com uma boa notícia. Terry Hill ligou- lhe.

- Lara?

- Sim?

- Acabamos de receber notícias da Inspecção Geral de Jogos. Já tem a sua licença.

- Isso é uma maravilha, Terry!

- Conto-lhe tudo em pormenor quando falar consigo, mas a verdade é que já tem luz verde. Parece que causou uma profunda impressão neles.

- Vou já pôr tudo em andamento - disse Lara. - Obrigada. Lara contou a Keller o que tinha acontecido.

- Isso é excelente. Não há dúvida de que bem precisamos do fluxo de liquidez. Isto vai resolver muitos dos nossos problemas.

Lara olhou para o calendário.

- Podemos meter-nos no avião na terça-feira e ir até lá pôr as coisas em andamento.

Kathy ligou-lhe pelo intercomunicador.

- Está o Sr. Adler na linha dois. Que é que lhe digo. De repente, Lara ficou nervosa.

- Eu atendo. - Pegou no auscultador. - Philip?

- Olá. Já voltei.

- Ainda bem. - Senti a sua falta.

- Eu sei que é muito em cima da hora, mas será que está livre para jantarmos hoje?

Ela tinha combinado jantar com Paul Martin.

- Sim. Estou livre.

- Óptimo. Onde é que gostaria de ir?

- Tanto me faz.

- La Côte Basque?

- Está bem.

- Por que é que não nos encontramos lá? Oito horas?

- Sim.

Quando desligou o telefone, Lara sorria.

- Era o Philip Adler? - perguntou Keller.

- Mm-mm. Vou casar com ele.

Keller olhou-a espantado.

- Está a falar sério?

- Estou.

Foi um grande abalo. Vou perdê-la, pensou Keller. E daí? A quem é que eu estou a tentar enganar? Ela nunca poderia ser minha.

- Lara. você mal o conhece!

Conheço-o desde sempre.

- Não quero que cometa nenhum erro.

- Mas eu não estou a cometer nenhum erro. Eu. - O telefone particular tocou. Aquele que ela tinha instalado para Paul Martin. Lara levantou o auscultador.

- Alô, Paul.

- Olá, Lara. A que horas é que gostarias dejantar logo? Às oito? Ela experimentou um repentino sentimento de culpa.

- Paul. acho que não vou poder jantar contigo hoje. Surgiu-me uma coisa. Ia agora mesmo telefonar-te.

- Ah? Está tudo bem?

- Sim. Mas chegaram umas pessoas de Roma - aquela parte, pelo menos, era verdade - e eu tenho de me encontrar com eles.

- Azar meu. Fica para outro dia.

- Claro.

- Ouvi dizer que já recebeste a licença para o hotel de Reno.

- Já.

- Vamos divertir-nos com aquilo.

- Estou ansiosa por isso. Desculpa a questão dojantar. Telefono-te amanhã.

A ligação desfez-se.

Keller olhava-a. Lara viu o ar de reprovação no rosto dele.

- Há alguma coisa a preocupá-lo?

- Há. Todo este equipamento moderno.

- De que é que está a falar?

- Acho que tem telefones a mais no seu escritório. Ele não é para graças, Lara.

Ela empertigou-se.

- O Sr. Não-É-Para-Graças já nos salvou a pele várias vezes, Howard. Mais alguma coisa?

Keller abanou a cabeça.

- Não.

- Óptimo. Então vamos ao trabalho.

Philip já estava à espera quando ela chegou ao La Côte Basque. As pessoas voltaram-se para olhar para Lara quando ela entrou no restaurante. Philip levantou-se para a cumprimentar e ela sentiu o coração saltar-lhe no peito.

- Espero não me ter atrasado - disse.

- De maneira nenhuma. - Philip olhava-a com admiração. Você está encantadora.

Lara tinha mudado de fato meia dúzia de vezes. Será que devo pôr uma coisa simples, elegante ou sexy? Acabou por se decidir por um Dior simples.

- Obrigada.

Depois de se sentarem, Philip disse:

- Sinto-me como um idiota.

- Ah? Porquê?

- Não tinha relacionado. Você é a tal Cameron.

Ela riu-se.

- Declaro-me culpada.

- Meu Deus! Você é uma cadeia de hotéis, prédios de apartamentos, de escritórios. Quando viajo vejo o seu nome por toda a parte.

- Ainda bem. - Lara sorriu. - Assim lembra-se de mim. Ele estudava-a.

- Não me parece que isso seja necessário. Não está cansada de ouvir as pessoas dizerem-lhe como é bonita?

Lara ia dizer: Fico satisfeita por me achar bonita.

O que acabou por dizer foi:

- Você é casado? - Sentiu vontade de morder a língua. Ele sorriu.

- Não. Não me seria possível casar.

- Porquê? - Conteve momentaneamente a respiração. Com certeza que ele não é...

- Porque passo a maior parte do tempo em tournée. Uma noite estou em Budapeste, na noite seguinte em Londres, Paris ou Tóquio.

Teve uma enorme sensação de alívio.

- Ah. Philip, fale-me de si.

- Que é que quer saber?

- Tudo.

Philip riu.

- Isso levava pelo menos cinco minutos.

- Não, estou a falar sério. Quero mesmo ouvi-lo falar de si.

Philip respirou fundo.

- Bom, os meus pais eram vienenses. O meu pai era chefe de orquestra e a minha mãe professora de piano. Deixaram Viena para fugir a Hitler e instalaram-se em Bóston. Foi aí que eu nasci.

- Sempre soube que queria vir a ser pianista?

- Sim.

Tinha 6 anos de idade. Estava a praticar ao piano quando o pai entrou de rompante pela sala. Não, não, não! Tu não distingues um acorde em tom menorde um em tom maior? E apontava furiosamente com o dedo peludo para a pauta musical. Isso é um acorde em tom menor. Menor. Estás a perceber?

Pai, por favor, agora posso ir? Os meus amigos estão lá fora à minha espera.

Não. Ficas aí até tocares isso bem.

Tinha 8 anos de idade. Tinha praticado durante quatro horas nessa manhã e tivera uma discussão terrivel com os pais. Odeio o piano, gritou. Nunca mais quero pôr as mãos num piano.

A mãe disse: Está bem. Agora quero ouvir mais uma vez o andante.

Tinha 10 anos de idade. O apartamento estava cheio de convidados, a maior parte deles velhos amigos dos pais, dos tempos de Viena. Todos eles eram músicos.

Agora o Philip vai tocar para nós", anunciou a mãe. Gostávamos muito de ouvir o pequeno Philip, disseram num tompaternalista.

Toca aquela peça de Mozart, Philip.

Philip olhou para os rostos entediados e sentou-se ao piano, furioso. Eles continuaram a conversar entre si.

Começou a tocar, deixando correr velozmente os dedos sobre o teclado. As conversas pararam repentinamente. Philip tocava uma sonata de Mozart e a música estava viva. Nesse momento ele era Mozart, enchendo a sala com a magia do mestre.

Quando os dedos de Philip tocaram o último acorde, houve um silêncio cheio de admiração. Os amigos dospaisprecipitaram- se parajunto dopiano, falando com excitação, efusivos nos seus louvores. Ele escutou o aplauso e a adulação e esse foi o momento da sua epifania, quando ele compreendeu quem era e o que queria fazer com a sua vida.

- Sim, sempre soube que queria ser pianista - disse Philip dirigindo-se a Lara.

- Onde foi que estudou piano?

-A minha mãe ensinou-me até eu ter 14 anos e depoismandaram-me para o Curtis Institute em Filadélfia.

- E gostou?

- Muito.

Tinha 14 anos e estava sozinho e sem nenhum amigo. O Curtis Institute of Music estava instalado em quatro mansões do principio do século perto de Rittenhouse S'tane, em Filadélfia. Era o mais próximo equivalente americano ao Conservatory de Viardo, Egorov e Toradze. Formou individuos como Samuel Barber, Leonard Bernstein, Gian Carlo Nlenotti, Peter Serkin e dezenas de outros músicos brilhantes.

- Não se sentia muito só?

- Não.

Philip sentia-se profundamente infeliz. Nunca tinha estado longe de casa. Fizera um teste para o Curtis Institute e, quando foi aceite, apercebeu-se de que estava à beira de começar uma vida nova, que nunca mais voltaria para casa. Os professores reconheceram imediatamente o talento do jovem.

- Dei o meu primeiro concerto aos 18 anos com a Orquestra Sinfónica de Detroit.

- Sentiu medo?

Sentira-se aterrorizado. Descobriu que era uma coisa diferente tocar para um grupo de amigos. Outra era enfrentar um auditório cheio de pessoas que tinham pago dinheiro para ir escutá-lo. Caminhava nervosamente de um lado para o outro nos bastidores quando o director de cena o agarrou por um braço e disse: Agora vá. É a sua altura. Nunca mais esquecera aquilo que tinha sentido quando entrou no palco e a assistência começara a aplaudi-lo. Sentou-se ao piano e o nervosismo desapareceu instantaneamente. A partir daí a

sua vida tinha-se tornado uma maratona de concertos. Percorrera toda a Europa e a Ásia e, após cada tournée, a sua reputação aumentava. William Ellerbee, um importante agente artistico, aceitou representá-lo. No espaço de dois anos, Philip Adler passou a ser solicitado por toda a parte.

Philip olhou para Lara e sorriu.

- Sim. Continuo a sentir-me assustado antes dos concertos.

- Como é que são as tournées?

- Não há um momento de monotonia. Uma vez andei em tournée com a Sinfónica de Filadélfia. Estávamos em Bruxelas e íamos a caminho de Londres, onde devíamos dar um concerto. O aeroporto estava fechado por causa do nevoeiro, de forma que nos levaram de autocarro para o Aeroporto de Schiphol, em Amsterdão. O organizador da viagem explicou que o avião que tinham fretado para nós era pequeno e que os músicos tinham de optar entre levar os seus instrumentos ou a bagagem. Naturalmente escolheram os instrumentos. Chegámos a Londres mesmo a tempo de começar o concerto. Tocámos dejeans, sapatos de ténis e com a barba por fazer.

Lara riu-se.

- E tenho a certeza de que o público adorou.

- É verdade. Noutra ocasião, eu ia dar um concerto em Indiana e o piano estava fechado numa arrecadação e ninguém tinha a chave. Tivemos de arrombar a porta.

Lara soltou uma risada.

- O ano passado tinha um concerto marcado em Roma, para tocar Beethoven, e um dos críticos musicais escreveu: Adler deu um concerto espantoso, em que o fraseado do final foi totalmente falseado. O ritmo foi demasiado arrastado, quebrando completamente o andamento da peça.

- Isso foi horrível - disse Lara, compreensiva.

- A parte pior é que eu nem cheguei a dar o concerto. Tinha perdido o avião!

Lara inclinou-se para a frente, interessadíssima.

- Conte mais coisas.

- Bom, uma vez, em São Paulo, caíram-me os pedais do piano a meio de um concerto de Chopin.

- E que é que fez?

- Terminei a sonata sem pedais. Noutra altura o piano deslizou-me pelo palco fora.

Quando Philip falava do seu trabalho, a voz enchia-se-lhe de entusiasmo.

- Eu tenho muita sorte. É maravilhoso podermos tocar as pessoas e transportá-las para um outro mundo. A música dá a cada um o seu sonho. Ás vezes penso que a música é tudo o que resta de sanidade num mundo louco. - Teve um riso um tanto embaraçado. Não estou a querer ser pomposo.

- Não. A verdade é que torna felizes milhões de pessoas. Adoro ouvi-lo tocar. - Respirou fundo. - Quando o oiço tocar Voiles de Debussy é como se estivesse numa praia deserta e vejo o mastro de um navio vogando ao longe.

Ele sorriu.

- Também eu.

- E quando oiço o seu Scarlatti, sou transportada para Nápoles, oiço os cavalos e as carruagens, vejo as pessoas a andar nas ruas...

- Via-lhe a expressão de contentamento no rosto ao escutá- la. Lara trazia à superfície tudo o que conseguia recordar das sessões que tivera com o professor Meyers.

- Com Bartók, leva-me às aldeias da Europa Central, aos camponeses da Hungria. É como se estivesse a pintar quadros e eu me perdesse dentro deles.

- Você é muito lisonjeira - disse Philip.

- Não. Tudo o que estou a dizer é sincero.

Entretanto veio o jantar. Chateaubriand com batatas fritas, salada Waldorf, espargos frescos e tarte de fruta para a sobremesa. Havia um vinho diferente para cada prato. Durante ojantar, Philip disse:

- Lara, nós não paramos de falar de mim. Agora fale-me de si. Qual é a sensação de erguer todos esses edifícios enormes por toda a parte?

Lara ficou um momento em silêncio.

- É difícil de descrever. Você cria com as mãos, eu crio com o espírito. Você não constrói nada no sentido físico, mas eu torno isso possível. Eu concebo sonhos de tijolo, cimento e aço e torno-os realidade.

Crio postos de trabalho para centenas de pessoas: arquitectos e pedreiros, desenhadores, carpinteiros e canalizadores. Graças a mim, eles têm os meios para prover ao bem-estar das famílias. Dou às pessoas locais cheios de beleza para viverem e torno-lhes a vida mais confortável. Construo lojas agradáveis onde as pessoas podem comprar aquilo de que precisam. Construo monumentos para o futuro.

Sorriu com uma certa timidez. - Não era minha intenção fazer um discurso.

- Você é uma pessoa notável, sabia?

- É isso que eu quero que pense de mim.

Foi uma noite de encantamento e quando terminou Lara sabia, pela primeira vez na vida, que estava apaixonada. Tivera tanto medo de se sentir decepcionada, de não existir nenhum homem que pudesse corresponder à imagem que concebera na sua imaginação. Mas ali estava Lochinvar em carne e osso e isso emocionava-a.

Quando chegou a casa, Lara estava tão excitada que não conseguiu dormir. Reviu em espírito todos os momentos daquela noite, repetindo uma vez e outra e outra tudo aquilo de que tinham falado. Philip Adler era o homem mais fascinante que jamais conhecera. O telefone tocou. Lara sorriu e levantou o auscultador.

Ia a dizer: Philip... quando Paul Martin se fez ouvir:

- Só queria ter a certeza de que tinhas chegado bem a casa.

- Sim - retorquiu Lara.

- Como é que correu a reunião?

- Foi bem.

- Óptimo. Podemos jantar amanhã à noite?

Lara hesitou.

- Está bem. - Será que vai haver problema?

 

Na manhã seguinte, uma dúzia de rosas vermelhas foram entregues no apartamento de Lara. Quer dizer, pensou, feliz, que ele também gostou da noite. Rasgou apressadamente o sobrescrito para ler o cartão que acompanhava as flores. O cartão dizia: Querida, aguardo com impaciência o nosso jantar desta noite. Paul.

Lara sentiu uma profunda decepção. Aguardou toda a manhã um telefonema de Philip. Tinha o tempo muito ocupado, mas não conseguia concentrar-se no trabalho.

Às duas horas Kathy disse:

- As novas secretárias estão aqui para as entrevistas.

- Vá-as mandando entrar.

Eram meia dúzia, todas elas altamente qualificadas. Gertrude Meeks foi a eleita daquele dia. Andava na casa dos 30, era inteligente e rápida e nutria uma admiração óbvia por Lara.

Lara passou os olhos pelo currículo. Era impressionante.

- Já trabalhou na área da construção e dos imóveis?

- Sim, Miss Cameron, mas nunca trabalhei para ninguém como a senhora. Para falar verdade, estou disposta a aceitar o lugar mesmo sem remuneração!

Lara sorriu.

- Não há necessidade disso. Tem muito boas referências. Vamos dar-lhe uma oportunidade.

- Muito obrigada. - A jovem quase corou.

- Vai ter de assinar uma declaração em como nunca dará entrevistas nem discutirá nada do que acontece nas nossas firmas. De acordo?

- Claro.

- Kathy vai indicar-lhe a sua secretária.

Havia uma reunião sobre questões de publicidade marcada para as onze, com Jerry Townsend.

- Como é que está o seu pai? - perguntou Lara.

- Está na Sùíça. O médico diz que ele talvez tenha hipóteses. Se as tiver, deve-as a si.

Espero que ele recupere.

- Obrigado. - Pigarreou. - Eu. Eu não sei como demonstrar-lhe a minha gratidão.

Lara pôs-se de pé.

- Já estou atrasada para uma reunião.

E saiu, deixando-o ali de pé, a segui-la com os olhos.

Era uma reunião com os arquitectos por causa de um projecto para Nova Jérsia.

- Fizeram um bom trabalho - disse Lara -, mas gostava que me fizessem algumas alterações. Quero uma arcada elíptica com patamares em três lados e paredes de mármore. Mudem o telhado dando-lhe a forma de uma pirâmide de cobre, com um farol para acender à noite. Algum problema com isso?

- Não me parece, Miss Cameron.

Quando a reunião terminou, o intercomunicador fez-se ouvir.

- Miss Cameron, Raymond Duffy, um dos capatazes, está em linha. Pretende falar-lhe e diz que é urgente.

Lara pegou no telefone.

- Olá, Raymond.

- Temos um problema, Miss Cameron.

- Diga.

- Acabam de entregar um carregamento de blocos de cimento. Não estão em condições e não vão ser aceites pela fiscalização. Estão estalados. Vou devolvê-los, mas quis falar consigo primeiro.

Lara ficou um momento a pensar.

- Estão em muito mau estado?

- Bastante. A questão é que não estão de acordo com as nossas especificações e.

- Podem ser arranjados?

- Penso que sim, mas ia ficar bastante caro.

- Arranjem-nos - disse Lara.

Fez-se silêncio do outro lado da linha.

- Está bem. A senhora é que manda.

Lara desligou. Havia apenas dois fornecedores de cimento na cidade e seria um suicídio incompatibilizar-se com eles.

Às cinco da tarde Philip ainda não tinha telefonado. Lara marcou o número da fundação.

- Philip Adler, por favor.

- O Sr. Adler não está. Anda em tournée. Posso ser-lhe útil

nalguma coisa?

Ele não dissera que ia ausentar-se da cidade.

- Não, obrigada.

É isso, pensou Lara. Por agora.

Odia terminou com uma visita de Steve Murchison. Era um

homem enorme que fazia lembrar uma pilha de tijolos. Entrou

abruptamente no gabinete de Lara.

- Em que posso ser-lhe útil, Sr. Murchison? - perguntou

Lara.

- Pode parar de meter o nariz nos meus negócios - disse

Murchison.

Lara olhou-o calmamente.     

- Qual é o seu problema?

- Você. Não gosto que as pessoas lixem os meus acordos.

- Se está a referir-se ao Sr. Guttman...

- Sabe muito bem que estou.

-... ele preferiu o meu prédio ao seu.

- A senhora é que o arrastou para lá. Já me anda a chatear há muito tempo. Preveni-a uma vez e não vou voltar a preveni-la. Não há espaço bastante para nós dois nesta cidade. Não sei onde é que tem os tomates, mas o melhor é escondê-los, porque se volta a fazer-me uma coisa dessas arranco-lhos.

E saiu como um furacão.

O jantar nessa noite, no apartamento de Lara, com Paul, foi um bocado tenso.

- Pareces-me preocupada, minha querida - disse Paul. Algum problema?

Lara forçou-se a sorrir.

- Não. Está tudo bem. - Por que é que o Philip não me disse que ia partir em tournée?

- Quando é que começas com o projecto de Reno?

- Volto lá com o Howard na próxima semana. Deve ser possível abrir dentro de nove meses.

- Dentro de nove meses podias ter um filho.

Lara olhou-o surpreendida.

- O quê?

Paul Martin pegou-lhe na mão.

- Sabes que eu sou doido por ti, Lara. Modificaste toda a minha vida. Gostava que as coisas tivessem sido diferentes. Gostava de ter tido filhos contigo.

Não havia nada que Lara pudesse responder.

- Tenho uma surpresa para ti. - Meteu a mão na algibeira e tirou de lá uma pequena caixinha de jóias.

- Abre-a.

- Paul, já me deste tanta coisa.

- Abre-a.

Dentro da caixa havia um magnífico colar de diamantes.

- É lindo.

Ele pôs-se de pé e Lara sentiu-lhe o toque das mãos enquanto lhe punha o colar em volta do pescoço. Depois as mãos deslizaram, acariciando-lhe os seios, e ele disse com voz rouca:

- Vamos experimentá-lo.

Paul encaminhava-a para o quarto. O espírito de Lara corria rápido. Nunca estivera apaixonada por Paul e ir para a cama com ele era fácil - uma forma de pagamento por tudo aquilo que fizera por ela -, mas agora havia uma diferença. Ela estava apaixonada. Sou uma tola, pensou. Provavelmente nunca mais volto a pôr a vista em Philip.

Despiu-se lentamente, com relutância, e de seguida estavam na cama e Paul Martin estava em cima dela, dentro dela, a gemer, Minha querida, sou doido por ti. E ela levantou os olhos e foi o rosto de Philip que viu.

As coisas avançavam sem problemas. A renovação do hotel de Reno progredia rapidamente, as Torres Cameron estariam prontas dentro do prazo e a reputação de Lara não parava de crescer. Tinha telefonado diversas vezes para Philip Adler nos últimos meses, mas ele andava sempre por fora em tournée.

- O Sr. Adler está em Pequim.

- O Sr. Adler está em Paris.

- O Sr. Adler está em Sydney.

Que vá para o diabo, pensou Lara.

Durante os seis meses seguintes, Lara conseguiu levar a melhor a Steve Murchison em três propriedades que ele estava a tentar apanhar.

Keller foi procurar Lara, preocupado.

- Corre na cidade que Murchison lhe anda a fazer ameaças.

Talvez devêssemos deixar esfriar as coisas com ele. Murchison é um inimigo perigoso, Lara.

- Também eu sou - replicou Lara. - Talvez ele devesse mudar de ramo.

- Não é questão para brincadeiras, Lara.

- Esqueça-se dele, Howard. Acabei de saber algo sobre uma propriedade em Los Angeles que nos pode interessar. Se formos rápidos, talvez a consigamos. Amanhã devemos voar para lá.

E foram. O agente que lha mostrou dizia:

- É uma oportunidade única.

Pode construir uma pequena cidade nesta área. Apartamentos, centros comerciais, teatros.

- Não.

Ele olhou para Lara surpreendido.

- Perdão?

- Não estou interessada.

- Não está? Porquê?

- A localização - disse Lara. - Não acho que as pessoas queiram mudar-se para este sítio. Los Angeles está a crescer para oeste. As pessoas são como os lemingues. Não se consegue fazê-las voltar na direcção oposta.

-Mas...

Lara voltou-se para Howard.

- Lamento termos perdido este tempo. Tomamos o avião de volta esta tarde.

Quando voltaram ao hotel, Keller comprou um jornal.

- Vamos ver como é que está hoje o mercado.

Deram uma vista de olhos pelo jornal. Na secção dos espectáculos havia um grande anúncio que dizia: ESTA NOITE NO HOLLYWOOD BOWL - PHILIP ADLER. O coração de Lara deu um salto.

- Voltamos antes amanhã - disse.

Keller ficou um momento a observá-la.

- Está interessada na música ou no músico?

- Arranje dois bilhetes.

Lara nunca estivera no Hollywood Bowl. O maior anfiteatro natural do mundo está rodeado pelas colinas de Hollywood e a área circundante forma um parque que encanta os visitantes durante todo o ano.

O anfiteatro tem lugares para mil e oitocentas pessoas. O programa dessa noite era o seguinte:

ORQUESTRA FILARMÓNICA DE LOS ANGELES

André Previn, Maestro

Philip Adler, Piano

MOZART Abertura de Cosi fan tutte

  1. 588

Debuci

Intervalo

BEETHOVEN  Concerto para piano n.o 5 em mi bemol maior, Opus 3, Imperador

PHILIP ADLER

O anfiteatro estava completamente cheio e Lara sentiu toda a expectativa da multidão. Os músicos começaram a entrar no palco e foram saudados com aplausos entusiastas. Em seguida fez-se silêncio e o público irrompeu de novo em aplausos quando Philip Adler pisou o palco, elegante com a sua gravata branca e de fraque.

Lara apertou o braço de Keller.

- Não é bem parecido? - sussurrou.

Keller não respondeu.

Philip sentou-se ao piano e o programa começou. A magia dele impôs-se imediatamente, envolvendo a assistência. Havia como que um misticismo na noite. As estrelas brilhavam lá no alto, iluminando as colinas escuras que rodeavam o Bowl. Milhares de pessoas estavam sentadas em silêncio, tocadas pela majestade da música. Quando as últimas notas do concerto se apagaram no ar, houve um aplauso estrondoso, as pessoas puseram-se de pé, aplaudindo e aclamando. Philip deixou-se ficar de pé, agradecendo com vénias sucessivas.

- Vamos aos bastidores - disse Lara.

Keller voltou-se para olhar para ela. A voz tremia-lhe de excitação.

A entrada do palco ficava ao lado da orquestra. À porta havia um guarda que impedia o avanço da multidão. Keller disse:

- Está aqui Miss Cameron para falar com o Sr. Adler.

- Ele espera-a? - perguntou o guarda.

- Sim - replicou Lara.

- Um momento por favor. - Instantes depois, o guarda voltou.

- Pode entrar, Miss Cameron.

Lara e Keller entraram na sala dos artistas. Philip estava no meio de uma multidão que o felicitava.

- Meu querido, nunca tinha tocado Beethoven de maneira tão divina. Foi incrível.

Philip dizia:

- Muito obrigado.

obrigado. com música daquela é fácil estar inspirado. obrigado: André é um maestro de tal forma brilhante. obrigado. agrada-me sempre tocar no Hollywood Bowl. Levantou os olhos e viu Lara. Dirigiu-lhe um sorriso, como da vez anterior.

- Desculpem-me - disse.

Abriu caminho por entre a multidão para chegar junto dela.

- Não fazia a menor ideia de que estivesse em L. A.

- Viemos de avião esta manhã. Este é o meu sócio, Howard Keller.

- Olá - disse Keller secamente.

Philip voltou-se para um homem baixo e forte que estava atrás dele.

- Este é o meu agente, William Ellerbee. - Trocaram saudações. Philip tinha os olhos postos em Lara.

- Há uma festa esta noite no Beverly Hilton. Será que.

- Teremos muito prazer - replicou Lara.

Quando Lara e Keller chegaram ao Salão Internacional de Baile do Beverly Hilton, a sala encontrava-se cheia de músicos e amantes da música, que falavam de música.

Já repararam que quanto mais nos aproximamos do equador, mais demonstrativos e calorosos são os fãs.

não estou de acordo consigo. O talento de De Groot não é para estudos de Lizst ou de Paganini, é mais para um Beethoven.

tem de dominar a paisagem emocional do concerto.

Músicos falando as suas línguas, pensou Lara.

Philip estava rodeado, como de costume, por pessoas que o veneravam. Só de olhar para ele, Lara sentia-se envolvida numa onda de calor.

Quando Philip a viu chegar, acolheu-a com um grande sorriso.

- Sempre veio. Estou tão contente.

- Não teria faltado por nada.

Howard Keller ficou a vê-los conversar e pensou: Talvez eu devesse ter aprendido a tocar piano. Ou talvez devesse apenas acordar para a realidade. Parecia-lhe que fora há tanto tempo que conhecera a rapariguinha inteligente, entusiasta e ambiciosa. O tempo tinha sido generoso para ela e para ele tinha parado.

Lara dizia:

- Tenho de voltar para Nova Iorque amanhã, mas talvez pudéssemos ver-nos ao pequeno-almoço.

- Gostava muito. Mas tenho de partir de manhã cedo para Tóquio.

Ela experimentou uma profunda decepção.

- Porquê? Ele riu-se.

- É o meu trabalho, Lara. Dou cento e cinquenta concertos por ano. Às vezes duzentos.

- Quanto tempo se vai demorar desta vez?

- Oito semanas.

- Vou sentir a sua falta - disse Lara tranquilamente. Nem fazes ideia até que ponto.

 

Nas semanas que se seguiram, Lara e Keler tomaram o avião para Atlanta para ver duas propriedades em Ainsley Park e uma em Dunwoody.

- Saiba-me os preços de Dunwoody - disse Lara. - Talvez possamos construir lá alguns condomínios.

De Atlanta, voaram para Nova Orleães. Passaram dois dias a explorar a zona comercial e um dia em Lake Pontchartrain. Lara descobriu duas propriedades que lhe agradaram.

Um dia depois de regressarem Keller entrou no gabinete de Lara.

- Tenho más notícias quanto ao projecto de Atlanta - disse.

- Que é que está a querer dizer-me?

- Houve alguém que se nos adiantou.

Lara olhou-o, surpreendida.

- Como é que é possível? As propriedades nem sequer estavam no mercado.

- Eu sei. Alguém deve ter falado.

Lara encolheu os ombros.

- Também não se pode ter tudo.

Nessa tarde Keller trouxe de novo uma má notícia.

- Perdemos o negócio de Portchartrain.

Na semana seguinte tomaram o avião para Seattle e esploraram Mercer Island e Kirkland. Houve uma propriedade que interessou Lara e, quando voltaram a Nova Iorque, ela disse para Keller:

- Vamos agarrar esta. Acho que pode dar dinheiro.

- Certo.

Durante uma reunião no dia seguinte, Lara perguntou:

- Fez a oferta para Kirkland?

Keller sacudiu a cabeça.

- Houve alguém que chegou primeiro.

Lara ficou pensativa.

- Howard, veja se descobre quem é que se nos anda a atravessar no caminho.

Não foram precisas vinte e quatro horas.

- Murchison.

- Foi ele que nos tirou todos esses negócios?

- Foi.

- Há alguém neste escritório que anda a falar de mais.

- É o que parece.

O rosto dela estava sombrio. Na manhã seguinte contactou uma agência de detectives para encontrar o culpado. Não conseguiram nada.

- Tanto quanto conseguimos ver, todos os nossos empregados estão inocentes, Miss Cameron. Nenhum dos gabinetes está sob escuta, nem nenhum dos seus telefones.

Tinham chegado a um beco sem saída. Talvez tenham sido meras coincidências, pensou Lara. Mas não estava convencida disso.

A torre residencial de sessenta e oito andares, em Queens, estava meio acabada e Lara tinha convidado os banqueiros para irem inspeccionar os seus progressos. Quanto maior o número de pisos, mais caro o conjunto. Os sessenta e oito pisos de Lara só tinham na realidade cinquenta e sete andares. Era uma habilidade que aprendera com Paul Martin.

- Toda a gente faz isso - dissera Paul, rindo. -A única coisa que se faz é mudar os números dos pisos.

- E como é isso?

- É muito simples. O primeiro grupo de elevadores vai desde a entrada até ao piso vinte e quatro. O segundo vai do piso trinta e quatro ao sessenta e oito. Faz-se sempre isso.

Por causa dos sindicatos, todas as obras tinham meia dúzia de fantasmas a serem pagos - pessoas que não existiam. Havia um director de Práticas de Segurança, o coordenador da Construção, o supervisor de Materiais e outros com títulos impressionantes. A princípio Lara tinha posto em causa essa prática.

- Não te preocupes - dissera-lhe Paul. - Tudo isso faz parte dos CO. Custos Operacionais.

Howard Keller vivia num pequeno apartamento em Washington Square e uma tarde em que Lara o tinha visitado, olhara em volta e dissera:

- Isto é uma toca. Você tem de sair daqui.

A instâncias de Lara, ele tinha-se mudado para um condomínio na parte alta da cidade.

Uma noite, Lara e Keller estavam a trabalhar já bastante tarde e quando finalmente chegaram ao fim ela tinha-lhe dito:

- Você está exausto. Por que é que não vai para casa dormir um bocado, Howard?

- Boa ideia - replicara ele, bocejando. - Vemo-nos de manhã.

- Venha mais tarde - disse Lara.

Keller meteu-se no carro e pôs-se a caminho de casa. Pensava num negócio que acabavam de fechar e em como Lara o tinha conduzido bem. Era excitante trabalhar com ela. Excitante e frustrante. De certa forma, lá bem no fundo, ele continuava a ter esperança de que acontecesse um milagre. Fui cega em não ter percebido antes, querido Howard. Eu não estou interessada no Paul Martin nem no Philip Adler. Foi de ti que eu sempre gostei.

Pouco provável.

Quando Keller chegou ao seu apartamento, puxou da chave e meteu-a na fechadura. Não entrava. Espantado, tentou de novo. De repente a porta abriu-se, abruptamente, pelo lado de dentro e um desconhecido apareceu diante dele.

- Que raio é que você está a fazer? - perguntou o homem. Keller olhou, espantado.

- Eu vivo aqui.

- Vive aqui uma ova.

- Mas eu. - de repente, teve consciência de tudo. - Eu. Eu peço imensa desculpa - gaguejou, corando. – Eu já vivi aqui. Eu.

Bateram-lhe com a porta na cara. Keller continuou ali especado, tentando absorver a experiência desconcertante. Como é que eu me posso ter esquecido de que mudei de casa? Ando a trabalhar de mais.

Lara estava no meio de uma reunião quando o telefone particular tocou.

- Tens estado muito ocupada, querida. Tenho sentido a tua falta.

- Tenho andado de um lado para o outro, Paul. - Não conseguiu forçar-se a dizer que tinha sentido a falta dele.

- Vamos almoçar hoje.

Lara pensou em tudo o que Paul fizera por ela.

- Gostava muito - disse. A última coisa neste mundo que ela queria era magoá-lo.

Almoçaram no Mr. Chow's.

- Estás maravilhosa - disse Paul. - Seja o que for que tens andado a fazer, tem sido bom para ti. Como é que vai o hotel de Reno?

- Vai lindamente - replicou Lara com entusiasmo. Passou os quinze minutos seguintes a descrever o avançar do trabalho. - Devemos poder abrir daqui a uns dois meses!

Um homem e uma mulher, do outro lado da sala, preparavam-se para sair. O homem estava de costas para Lara, mas mesmo assim pareceu-lhe familiar. Quando se voltou por instantes, ela viu-lhe o rosto de relance. Steve Murchison. A mulher que o acompanhava também lhe pareceu familiar. Inclinou-se para pegar na carteira e o coração de Lara teve um sobressalto. Gertrude Meeks, a minha secretária.

- Bingo - disse Lara em voz baixa.

- Algum problema? - perguntou Paul.

- Não. Está tudo óptimo.

E continuou a descrever o hotel.

Quando chegou de novo ao escritório, mandou chamar Keller.

- Lembra-se daquela propriedade em Phoenix que fomos ver há uns meses?

- Sim. Desistimos dela. Você disse que não prestava.

- Mudei de ideias. - Carregou no botão do intercomunicador. Gertrude, pode chegar aqui, por favor?

- Sim, Miss Cameron.

Gertrude Meeks entrou no gabinete.

- Quero ditar-lhe uma carta - disse Lara. - Para a Baron Brothers, de Phoenix.

Gertrude começou a escrever.

- Exmos. Senhores, Reconsiderei o caso da propriedade de Scottsdale e resolvi fechar o negócio imediatamente. Acho que no futuro se vai tornar num dos meus melhores negócios. - Keller olhava-a fixamente. - Dentro de poucos dias voltarei a entrar em contacto convosco sobre a questão do preço. Com os meus melhores cumprimentos. Eu depois assino.

- Sim, Miss Cameron. É tudo?

- É tudo.

Keller ficou a ver Gertrude sair da sala. Depois voltou-se para Lara.

- Que é que você está a fazer? Mandámos analisar a propriedade. Ela não vale nada! Se você.

- Calma. Nós não vamos fechar o negócio.

- Então por que...

- A menos que eu esteja muito enganada, Steve Murchison é quem vai fechá-lo. Vi a Gertrude a almoçar com ele hoje.

Keller não tirava os olhos dela.

- Raios me partam.

- Quero que você espere dois ou três dias e depois ligue para a Baron a pedir esclarecimentos sobre a propriedade.

Dois dias depois Keller entrou sorridente no gabinete de Lara.

- Você tinha razão - disse. - Murchison mordeu o isco. o isco, a linha e o anzol. E é agora o feliz possuidor de cinquenta acres de terra sem qualquer valor.

Lara mandou chamar Gertrude Meeks.

- Sim, Miss Cameron.

- Está despedida - disse Lara. Gertrude olhou-a surpreendida.

- Despedida? Porquê?

- Não gosto das companhias em que anda. Vá ter com Steve Murchison e repita-lhe o que eu disse.

O rosto de Gertrude empalideceu.

- Mas eu.

- É tudo. Vou mandar alguém acompanhá-la à porta.

À meia-noite, Lara Ligou para Max, o chauffeur.

- Traga o carro para a entrada principal.

- Sim, Miss Cameron.

Ocarro estava à espera dela.

- Onde deseja ir, Miss Cameron? - perguntou Max.

- Dê uma volta por Manhattan. Quero ver aquilo que fiz. Ele estava parado a olhá-la.

- Perdão?

- Quero olhar para os meus prédios.

Deram a volta à cidade e pararam no centro comercial, na zona residencial, no arranha-céus.

Havia a Praça Cameron, o Cameron Plaza, o Centro Cameron e o esqueleto das Torres Cameron. Lara ficou sentada no carro, a olhar para cada edificio, pensando nas pessoas que lá viviam e lá trabalhavam.

Tinha tocado nas suas vidas.

Tornei esta cidade melhor" pensou. Fiz tudo o que queria fazer. Então por que é que me sinto inquieta? Que é que me falta?

Mas ela sabia a resposta.

Na manhã seguinte, Lara telefonou a William Ellerbee, o agente de Philip.

- Bom dia, Sr. Ellerbee.

- Bom dia, Miss Cameron. Em que posso ser-lhe útil?

- Gostava de saber onde é que Philip Adler vai tocar esta semana.

- Ele tem um programa um bocado apertado. Amanhã à noite vai estar em Amsterdão, depois segue para Milão, Veneza e. quer saber o resto dos lugares...

-Não, não. Chega. Foi só uma questão de curiosidade. Obrigada.

- De nada.

Lara entrou no gabinete de Keller.

- Howard, tenho de ir a Amsterdão.

Ele olhou-a, surpreendido.

- Que é que nós temos lá?

- É só uma ideia - disse Lara evasiva. - Se se concretizar alguma coisa eu digo-lhe. Por favor mande preparar o jacto.

- Mandou o Bert ir a Londres nele, lembra-se? Eu digo-lhes que estejam de volta amanhã e.

- Quero ir ainda hoje. - Havia uma urgência na voz dela que o apanhou totalmente de surpresa. - Vou tomar um voo comercial.

Lara voltou ao seu gabinete e disse para Kathy:

-Arranje-me um lugar no primeiro voo da KLM para Amsterdão.

- Sim, Miss Cameron.

- Vai demorar-se? - perguntou Keller. - Entretanto temos uma série de reuniões marcadas.

- Volto dentro de um ou dois dias.

- Quer que vá consigo?

- Obrigada, Howard, mas desta vez não.

- Falei com um amigo meu que é senador em Washington. Informou-me de que há hipóteses de virem a aprovar uma lei que cancela a maior parte dos incentivos fiscais no campo da construção. Se essa lei for aprovada, vai modificar os impostos sobre mais valias e acaba-se a depreciação acelerada.

- Isso seria uma estupidez - comentou Lara. - Ia paralisar a indústria imobiliária.

- Eu sei. Ele também não concorda.

- Muita gente vai votar contra. Essa lei não chega a ser aprovada - vaticinou Lara. - Em primeiro lugar.

O telefone particular que estava em cima da secretária fez-se ouvir. Lara olhou-o fixamente. O toque repetiu-se.

- Não vai atender? - perguntou Keller.

Lara sentia a boca seca.

- Não.

Paul ficou a ouvir o toque repetir-se uma dúzia de vezes antes de pousar o auscultador. Depois continuou sentado a pensar em Lara. Parecia-lhe que ultimamente ela andava menos acessível, um pouco mais fria. Seria possivel que houvesse outra pessoa? Não, pensou Paul Martin. Ela pertence-me. Há-de pertencer-me sempre.

A viagem na KLM foi agradável. Os lugares de primeira classe no amplo 747 eram espaçosos e confortáveis, e os assistentes de bordo atentos e amáveis.

Lara estava demasiado nervosa para conseguir comer ou beber alguma coisa. Que é que eu estou a fazer? perguntava a si própria. Aqui vou eu a caminho de Amsterdão sem ser convidada e ele provavelmente vai estar demasiado ocupado para poder sequer falar comigo. Andar atrás dele desta forma vai provavelmente destruir qualquer hipótese que eu pudesse ter tido. Mas agora é demasiado tarde.

Hospedou-se no Grand Hotel em Oudezijds Voorburgwal 197, um dos mais belos hotéis de Amsterdão.

- Temos uma suite encantadora para si, Miss Cameron.

- Obrigada. Ouvi dizer que Philip Adler dá um recital esta noite. Sabe onde é?

- Sim, Miss Cameron. No Concertgebouw.

- Pode arranjar-me um bilhete?

- Com todo o prazer.

Quando Lara entrou na suite, o telefone tocou. Era Howard Keller.

- Fez boa viagem?

- Sim, obrigada.

- Pensei que gostaria de saber que já falei com dois bancos por causa do projecto da Quinta Avenida.

- E então?

A voz dele era vibrante.

- Estão entusiasmados.

Lara ficou encantada.

- Eu disse-lhe! Vai ser em grande. Quero que comece já a reunir uma equipa de arquitectos, empreiteiros. o nosso grupo de construção. o habitual.

- Certo. Eu falo-lhe amanhã. - Lara pousou o auscultador e pensou em Howard Keller. Era tão querido. Tenho tanta sorte. Posso sempre contar com ele. Tenho de arranjar alguém maravilhoso para o Howard.

Philip Adler sentia-se sempre nervoso antes de tocar. Tinha ensaiado com a orquestra de manhã, comera um almoço ligeiro e depois, para afastar a ideia do concerto, acabara por ir ver um filme inglês. Enquanto olhava para o filme tinha o espírito cheio da música que iria tocar nessa noite. Inconscientemente, pôs-se a tamborilar com os dedos no braço do assento, até que a pessoa que se encontrava ao lado dele lhe disse:

- Importa-se de parar com esse som horrível?

- Desculpe - disse Philip delicadamente.

Levantou-se, saiu do cinema e vagueou pelas ruas de Amsterdão. Visitou o Rijksmuseum, passeou nos Jardins Botânicos da Universidade Livre e andou a ver montras na Stadhouderskade. Às quatro horas, voltou ao hotel para dormir um bocado. Não fazia ideia de que Lara Cameron estivesse na suite mesmo por cima da sua.

Às sete da tarde, Philip chegou à entrada dos artistas do Concertgebouw, o delicioso velho teatro mesmo no coração da cidade. O vestíbulojá estava cheio de pessoas que tinham chegado mais cedo.

Nos bastidores, Philip encontrava-se no seu camarim, vestindo-se de fraque. O director do Concertgebouw entrou triunfante no camarim.

- Estamos completamente esgotados, Sr. Adler! E ainda havia tanta gente à procura de bilhetes. Se lhe fosse possível ficar mais um dia ou dois, eu. Eu sei que tem o seu tempo todo tomado. Vou falar ao Sr. Ellerbee sobre a possibilidade de voltar cá para o ano e talvez...

Philip nem o ouvia. O seu espírito estava concentrado no recital que iria seguir-se. O director acabou por encolher os ombros, como que a desculpar-se, e saiu com uma vénia. Philip tocou repetidamente a música em pensamento. Bateram à porta do camarim.

- Está tudo pronto para a sua entrada em palco, Sr. Adler.

- Obrigado.

Chegara o momento. Philip pôs-se de pé. Estendeu as mãos.

Tremiam ligeiramente. O nervosismo que antecedia o espectáculo nunca desaparecera. Acontecia a todos os grandes pianistas.      Horowitz, Rubenstein, Serkin. O estômago de Philip contraía-se, o coração batia-lhe. Por que é que eu me forço a suportar esta agonia? perguntou a si próprio. Mas ele conhecia a resposta. Dei  tou uma última olhadela ao espelho, saiu do camarim, avançou pelo corredor comprido e começou a descer os trinta e três degraus que levavam ao palco. Enquanto avançava na direcção do piano havia um foco dirigido para ele. Os aplausos eram tempestuosos. Philip sentou-se ao piano e como que por magia o nervosismo desapareceu. Era como se outra pessoa estivesse a tomar o seu lugar, uma pessoa

calma, pausada e totalmente senhora de si. Começou a tocar.

Lara, sentada no meio do público, sentiu uma onda de emoção ao ver Philip entrar no palco. Havia nele uma presença que a deixava atordoada. Vou casar com ele, pensou Lara. Eu sei. Recostou-se no assento e deixou que a música a submergisse.

O recital foi um triunfo e no final as pessoas apinharam-se em

volta dele. Há muito que começara a dividir essas pessoas convidadas para a sala de estar dos artistas em dois grupos: os admiradores e os outros músicos. Os admiradores eram sempre entusiastas quando o concerto era um êxito, as felicitações dos outros músicos eram cordiais. No caso de ser um fracasso, as felicitações tornavam-se muito cordiais.

Philip tinha muitos fãs ávidos em Amsterdão e naquela noite

a sala estava cheia deles. Philip encontrava-se no meio, sorridente, a assinar autógrafos, a mostrar-se pacientemente delicado para com uma centena de desconhecidos. Invariavelmente alguém perguntava: Lembra-se de mim? E Philip fingia que se lembrava: A cara é-me tão familiar...

Lembrava-se da história de Sir Thomas Beecham, que arranjara uma artimanha para disfarçar a sua fraca memória. Quando alguém lhe perguntava: Lembra-se de mim? o grande maestro replicava:

Claro que me lembro! Como tem passado e como é que está o pai, que é que ele tem feito ultimamente? A artimanha resultou até que uma vez em Londres uma jovem lhe disse: O concerto foi magnífico, Maestro. Lembra-se de mim? e Beecham replicou, galante: Claro que me lembro, minha querida. Como é que está o seu pai e que é que ele tem feito ultimamente? A jovem replicou: O meu pai está óptimo, muito obrigada. E continua a ser o rei de Inglaterra.

Philip estava ocupadíssimo a assinar autógrafos, enquanto

escutava as frases familiares:

- Fez-me sentir como se estivesse a ouvir o próprio Brahms!

- Não consigo dizer-lhe até que ponto me tocou!

- Tenho todos os seus álbuns.

- Importava-se de assinar um autógrafo também para a minha mãe? Ela é a sua maior admiradora. - quando alguma coisa o fez levantar o olhar. Lara estava de pé à entrada, a observá-lo. Ele abriu os olhos de espanto.

- Com licença.

Foi ao seu encontro e pegou-lhe na mão.

- Que surpresa maravilhosa! Que é que está a fazer em Amsterdão?

Cuidado, Lara.

- Tinha uns assuntos a tratar aqui e quando soube que dava um recital não pude deixar de vir. - Suficientemente inocente. -Você foi maravilhoso, Philip.

- Obrigado. Eu. - Parou para assinar mais um autógrafo. Olhe, se está livre para o jantar.

- Estou livre - apressou-se a dizer Lara.

Jantaram no Haesje Claes em Spuistraat.

Quando entraram no restaurante, os clientes levantaram-se e aplaudiram. Nos Estados Unidos, pensou Lara, os aplausos -ser-me-iam dirigidos a mim. Mas sentia-se envolta numa onda de calor só por estar ao lado dele.

- É uma grande honra tê-lo connosco, Sr. Adler - disse o chefe de mesa enquanto os conduzia ao seu lugar.

- Obrigado.

Quando se sentaram, Lara olhou em volta para todas as pessoas que fitavam Philip com admiração.

- Gostam muito de si, não gostam?

Ele abanou a cabeça.

- Do que as pessoas gostam na realidade é da música. Eu sou apenas o mensageiro. Fiquei a saber isso há muito tempo. Quando ainda era muito novo, e talvez um pouco arrogante, dei um concerto e, quando acabei o meu solo, houve um aplauso tremendo. Eu curvava-me perante a assistência e sorria-lhes presunçosamente, quando o maestro se voltou para o público com a partitura erguida acima da cabeça, para lembrar a todos que na realidade quem estavam a aplaudir era Mozart. Foi uma lição que eu nunca esqueci.

- Nunca se cansa de tocar sempre as mesmas músicas, noite após noite?

- Não, porque nunca há dois recitais iguais. A música pode ser a mesma, mas o condutor é diferente e a orquestra é diferente.

Encomendaram um jantar de rijstafel e Philip disse:

- Tentamos fazer com que cada recital seja perfeito, mas nunca

nenhum pode ser um êxito completo porque estamos a lidar com música que é sempre melhor que nós. Temos de repensar a música cada vez que a tocamos para recriar o som do compositor.

- E nunca fica satisfeito?

- Nunca. Cada compositor tem o seu som distinto. Quer seja Debussy, Brahams, Haydn, Beethoven... a nossa finalidade é apreender esse som especial.

Trouxeram o jantar. O rijstafel era uma festa indonésia constituída por vinte e um pratos que incluíam carnes variadas, peixe, frango, massa e duas sobremesas.

- Como é que uma pessoa pode comer tudo isto? - riu-se Lara.

- Os holandeses têm um apetite saudável.

Philip tinha dificuldade em tirar os olhos de Lara. Sentia-se

ridiculamente satisfeito com a presença dela. Já se tinha envolvido com um bom número de mulheres bonitas, mas Lara não se parecia com ninguém que alguma vez tivesse conhecido. Era forte e apesar disso muito feminina e totalmente inconsciente da sua própria beleza. Agradava-lhe a voz dela, gutural e sexualmente excitante.

A verdade é que tudo nela me agrada", admitiu Philip para si próprio.

- Daqui para onde vai? - perguntou Lara.

- Amanhã estarei em Milão. Depois Veneza, Viena, Paris, Londres e finalmente Nova Iorque.

- Tudo isso me parece muito romântico.

Philip riu-se.

- Não sei bem se romântico é a palavra que eu escolheria.

Estamos a falar na contingência dos horários dos aviões, em horários desconhecidos, em comer em restaurantes todas as noites. Eunão me importo porque o acto de tocar é, só por si, tão maravilhoso. É o lado exibicionista que eu odeio.

- Exibicionista?

- Sim, ser constantemente exibido como uma atracção, sorrir a pessoas que não significam nada para mim, viver a vida num mundo de desconhecidos.

- Eu sei o que isso é - disse Lara devagarinho.

Quando estavam a acabar de jantar, Philip disse:

- Olhe, eu fico sempre um bocado tenso a seguir a um concerto. Não quer vir dar uma volta no canal?

- Com muito gosto.

Meteram-se na embarcação fechada que percorria o Amstel. Não havia luar, mas a cidade pulsava com milhares de luzinhas cintilantes. A viagem no canal foi um verdadeiro encantamento. Um altifalante ia despejando as informações em quatro idiomas.

- Estamos agora a passar casas de mercadores com séculos de existência e com os coruchéus ricamente decorados. Em frente, vêem-se as antigas torres da igreja. Há mil e duzentas pontes e os canais, todos eles sombreados pelas magníficas avenidas de elmos.

Passaram a Smalste Huis - a casa mais estreita de Amsterdão -, que tinha apenas a largura da porta principal, a Westerkerk com a coroa do imperador Maximiliano de Habsburgo, passaram por baixo da ponte levadiça de madeira que atravessava o Amstel e da Magerre Brug - a ponte magrizela - e passaram dezenas de barcos que serviam de residência a centenas de famílias.

- É uma cidade maravilhosa - disse Lara.

- Nunca cá tinha estado?

- Não.

- E veio numa viagem de negócios?

Lara respirou fundo.

- Não.

Ele olhou-a espantado.

- Pensei que tinha dito.

- Vim a Amsterdão para me encontrar consigo.

Ele teve um estremecimento de prazer.

- Eu. eu sinto-me muito lisonjeado.

- E tenho mais uma confissão a fazer-lhe. Disse-lhe antes que me interessava pela música clássica. Não é verdade.

Um sorriso desenhou-se aos cantos da boca de Philip.

- Eu sei.

Lara olhou-o surpreendida.

- Sabe?

- O professor Meyers é um velho amigo meu - disse com suavidade. - Telefonou-me a dizer que lhe estava a dar um curso acelerado sobre Philip Adler. Estava preocupado se você teria ideias a meu respeito.

Lara replicou em voz branda:

- E estava certo. Você tem alguma ligação?

- Quer dizer uma ligação a sério?

Lara sentiu-se de repente embaraçada.

- Se não está interessado, eu vou-me embora e.

Philip pegou-lhe na mão.

- Vamos descer na próxima paragem.

Quando regressaram ao hotel, havia uma dúzia de mensagens de Howard Keller. Lara guardou-as na carteira, sem as ler. Naquele momento mais nada na vida lhe parecia importante.

- O seu quarto ou o meu? - perguntou Philip com naturalidade.

- O seu.

Lara sentia uma premência que a queimava.

Parecia-lhe que tinha esperado toda a sua vida por aquele momento. Era aquilo que lhe faltava. Tinha encontrado o desconhecido de quem estava enamorada. Entraram no quarto de Philip e havia a mesma urgência em ambos. Philip tomou-a nos braços e beijou-a, suavemente e com ternura, procurando-a. Lara murmurou: Oh, meu Deus, e começaram a despir-se um ao outro.

O silêncio do quarto foi interrompido pelo súbito ribombar da trovoada no exterior. Lentamente, as nuvens cinzentas que vogavam no céu abriram as saias em leque, afastando-as cada vez mais, e a chuva começou a cair de mansinho. Começou devagar, suavemente, acariciando com erotismo o ar quente, lambendo as fachadas dos edifícios e chupando a erva tenra, beijando todos os recantos escuros da noite.

Era uma chuva quente, arrojada e sensual, que deslizava devagarinho, muito devagarinho, até que o ritmo começou a aumentar, transformando-a numa tempestade impetuosa e persistente, compulsiva, entrando a um ritmo firme e selvagem num calor orgíaco, mergulhando cada vez mais fundo, movendo-se cada vez mais depressa até explodir finalmente num trovejar poderoso. E de repente, tão depressa como tinha começado, terminou.

Lara e Philip estavam deitados nos braços um do outro, enquanto Philip apertava Lara de encontro a si e sentia-lhe o bater do coração.

Pensou numa frase que ouvira em tempos num filme: A terra

tremeu debaixo de ti? Santo Deus, tremeu mesmo, pensou Philip.

fosse música, seria a Barcarolle de Chopin ou a Fantasia de Schumann. Philip sentia-lhe os contornos delicados do corpo colados ao seu e começou a ficar excitado de novo.

Philip. - A voz dela era meio rouca.

- Sim?

- Gostavas que eu fosse contigo para Milão?

Ele deu consigo a sorrir.

- Ah, meu Deus, gostava sim!

- Óptimo - murmurou Lara: Inclinou-se sobre ele e dixou que os cabelos macios lhe deslizassem ao longo do corpo magro.

Começou outra vez a chover.

Quando Lara regressou finalmente ao quarto dela, telefonou a Keller.

- Acordei-o, Howard?

- Não. -A voz dele era insegura. - Estou sempre a pé às quatro da manhã. Que é que se passa por aí?

Lara estava desejosa de lhe dizer, mas limitou-se a afirmar:

- Nada. Vou para Milão.

- O quê? Não estamos a fazer nada em Milão.

Ah isso é que estamos, pensou Lara, feliz.

- Viu os meus recados?

Esquecera-se de olhar para eles. Sentindo-se culpada, disse:

- Ainda não.

- Tenho andado a ouvir uns rumores quanto ao casino.

- Qual é o problema?

- Tem havido queixas por causa do concurso.

- Não se preocupe. Se houver algum problema, o Paul Martin trata disso.

- Você é que manda.

- Olhe, quero que me mande o jacto para Milão. Os pilotos que me aguardem lá. Eu entro em contacto com eles no aeroporto.

- Está bem, mas.

- Vá dormir.

Às quatro da manhã, Paul Martin estava bem desperto. Tinha deixado várias mensagens no gravador particular de Lara, no apartamento dela, mas nenhuma das suas chamadas tinha obtido resposta. No passado, ela costumava avisá-lo sempre quando se ausentava. Estava a acontecer algo. Em que é que ela se teria metido? Tem cuidado, minha querida, sussurrou. Tem muito cuidado.

 

Em Milão, Lara e Philip Adler instalaram-se no Antica Locanda Solferino, um hotel encantador que tinha apenas doze quartos, e passaram a manhã a fazer amor, apaixonadamente. Depois foram de carro até Cernobbia e almoçaram no Lago de Como, na magnífica Villa d'Este.

O concerto dessa noite foi um triunfo e a sala dos artistas no La Scala Opera House encheu-se de admiradores solícitos.

Lara deixou-se ficar de lado, a olhar, enquanto as admiradoras de Philip o rodeavam, tocando-lhe, adorando-o, pedindo autógrafos, entregando-lhe pequenos presentes. Lara sentiu uma ferroada de ciúme. Algumas daquelas mulheres eram jovens e belas e parecia-lhe que todas elas eram óbvias. Uma americana, elegantemente vestida por Fendi, dizia timidamente:

- Se estiver livre amanhã, Sr. Adler, eu dou um pequenojantar íntimo na minha villa. Muito íntimo.

Lara teve vontade de a estrangular.

Philip sorriu.

- Mmm... muito obrigado, mas acho que não estou livre. Outra mulher tentou passar a Philip a chave do seu quarto do hotel. Ele sacudiu a cabeça. Philip olhou para Lara e sorriu. As mulheres continuavam a afluir.

- Era magnifico, maestro!

- Molto gentile da parte sua - replicou Philip.

Uma mulher agarrava-o pelo braço.

- Sarebbe possibile cenare insieme?

Philip sacudiu a cabeça.

- Ma non credo che sarai impossibile.

Para Lara, aquilo parecia demorar uma eternidade. Finalmente Philip dirigiu-se para onde ela estava e sussurrou-lhe:

- Vamos embora daqui para fora.

- Si! - replicou Lara, sorrindo.

Foram ao Biffy, o restaurante do teatro da ópera e, no momento em que entraram, os clientes, vestidos de fraque para o concerto, puseram-se de pé e começaram a aplaudir. O chefe de mesa conduziu Philip e Lara para uma mesa no meio da sala.

- É uma grande honra tê-lo connosco, Sr. Adler.

Trouxeram uma garrafa de champanhe em sinal de homenagem e eles fizeram um brinde.

- A nós - disse Philip calorosamente.

- A nós.

Philip pediu duas especialidades da casa, osso buco e penne all'arrabbiata. Conversaram durante todo ojantar e era como se se conhecessem desde sempre.

Eram constantemente interrompidos pelas pessoas que se aproximavam da mesa para cumprimentar Philip e pedir-lhe autógrafos.

- É sempre assim, não é? - perguntou Lara.

Philip encolheu os ombros.

- Faz tudo parte do mesmo. Por cada duas horas que se passa no palco, gastam-se muito mais a assinar autógrafos ou a dar entrevistas.

Como que para ilustrar o que estava a dizer, parou uma vez mais para assinar um autógrafo.

- Fizeste com que esta tournée fosse maravilhosa para mim - suspirou Philip. - Mas tenho uma má notícia. Amanhã sou forçado a partir para Veneza. Vou sentir muito a tua falta.

- Eu não conheço Veneza - disse Lara.

Ojacto de Lara aguardava-os no aeroporto de Linate. Quando lá chegaram, Philip olhou, espantado, para o enorme jacto.

- Este é que é o teu avião?

- É. E vai levar-nos para Veneza.

- Acho que me vais estragar com mimos.

Lara retorquiu com voz branda.

- É precisamente isso que tenciono fazer.

Trinta e cinco minutos depois, aterraram em Veneza, no aeroporto Marco Polo, onde eram aguardados por uma limusina na qual deviam fazer o percurso breve até ao cais. Aí tomariam um barco a vapor para a ilha de Giudecca, onde ficava situado o Hotel Cipriani.

- Reservei duas suites para nós - disse Lara. - Achei que seria mais discreto.

No barco a motor, a caminho do hotel, Lara perguntou:

- Quanto tempo é que vamos ficar aqui?

- Só uma noite. É uma pena, mas eu tenho um recital no Fenice e depois sigo para Viena.

A palavra nós encheu Lara de emoção. Tinham discutido a situação na noite anterior.

- Gostaria que ficasses comigo enquanto pudesses – disse Philip -, mas tens a certeza de que não estou a desviar-te de coisas mais importantes?

- Não há nada mais importante.

- Não te importas de passar a tarde sozinha? Eu vou ter de ensaiar.

- Não há problema - garantiu-lhe Lara.

Depois de se terem instalado nas suas suites, Philip tomou Lara nos braços.

-Agora tenho de ir para o teatro, mas aqui há muitas coisas para ver. Saboreia Veneza. Vemo-nos mais logo. - Beijaram-se. Oquei?

- Era para ser apenas um beijo rápido de despedida que se transformou   num beijo longo e demorado. - O melhor é eu sair daqui enquanto posso - murmurou Philip -, senão não vou conseguir atravessar a entrada.

- Bom ensaio - disse Lara, sorrindo.

E Philip saiu. Lara telefonou a Howard Keller.

- Onde é que você está? - perguntou Keller. - Tenho estado a tentar contactá-la.

- Estou em Veneza.

Houve uma pausa.

- Vamos comprar algum canal?

- Estou a fazer umas sondagens. - Lara riu-se.

- Você já devia estar de volta - disse Keller. - Há uma série de coisas. O jovem Frank Rose trouxe-nos uns planos novos. Agradaram-me, mas preciso da sua aprovação para podermos...

- Se lhe agradam - interrompeu Lara - não espere.

- Não quer vê-los? - A voz de Keller denotava surpresa.

- Agora não, Howard.

- Está bem. Quanto às negociações para a propriedade de

Side, preciso do seu okay para...

- Já o tem.

- Lara... sente-se bem?

- Nunca me senti melhor em toda a minha vida.

- Quando é que pensa voltar?

- Não sei. Eu volto a falar. Adeus, Howard.

Veneza era o tipo de cidade mágica que podia ter sido criada por Próspero. Lara passou o resto da manhã e toda a tarde a explorá-la. Deambulou pela Praça de São Marcos, visitou o Palácio dos Doges e a Torre do Sino e passeou pela concorrida Riva degli Schiavroni. Por toda a parte por onde andou pensou em Philip. Caminhou pelas pequenas ruelas serpenteantes, apinhadas dejoalharias, artigos de couro e restaurantes e parou para comprar camisolas, lenços de pescoço e roupa interior, tudo artigos caros, para as empregadas do escritório, e carteiras e gravatas para Keller e alguns dos outros. Parou numa joalharia para comprar um relógio Piaget com pulseira de ouro para Philip.

- Podia mandar gravar Para o Philip com Amor da Lara? - O simples facto de pronunciar o nome dele enchia-a de saudades.

Quando Philip regressou ao hotel, tomaram café nojardim verdejante do Cipriani.

Lara olhou para Philip e pensou: Este seria o lugar ideal para uma lua de mel.

- Tenho um presente para ti - disse. E estendeu-lhe a caixa com o relógio.

Philip abriu-a e ficou parado, a olhar.

- Meu Deus! Isto deve ter custado uma fortuna. Não devias ter feito isso, Lara.

- Não gostas?

- Claro que gosto. É lindo, mas.

- Ssh! Usa e pensa em mim.

- Não preciso disto para pensar em ti, mas obrigado.

- A que horas tens de sair para ir para o teatro? - perguntou Lara.

- Às sete.

Ela olhou para o relógio novo de Philip e disse inocentemente:

- Temos duas horas.

O teatro estava apinhado.

O público estava entusiasmado, aplaudindo e aclamando todos os números.

Quando o concerto terminou, Lara foi ter com Philip à sala dos artistas. Era tudo exactamente como em Londres, Amsterdão e Milão e as mulheres pareciam ainda mais disponíveis e ansiosas. Havia pelo menos meia dúzia de mulheres lindíssimas na sala e Lara perguntava a si mesma com qual delas Philip teria passado a noite se ela não estivesse ali.

Cearam no famoso Harry's Bar e foram entusiasticamente acolhidos pelo proprietário afável, Arrigo Cipriano.

- Que prazer em vê-lo, signore. E signorina. Por favor! Encaminhou-os para uma mesa de canto. Pediram BelIinis, a especialidade da casa. Philip disse para Lara:

- Recomendo que comecemos com apasta fagioli. É a melhor do mundo.

Mais tarde Philip não conseguia lembrar-se do que tinha comido nessa noite. Estava fascinado por Lara. Sabia que se estava a apaixonar por ela e isso aterrorizava-o. Não posso assumir um compromisso, pensou. É impossível. Sou um nómada. Detestava pensar no momento em que ela o iria deixar para regressar a Nova Iorque. Queria prolongar o mais possível aqueles momentos.

Quando acabaram de comer, Philip disse:

- Há um casino no Lido. Jogas?

Lara riu-se em voz alta.

- Qual é a graça?

Lara pensou nas centenas de milhões de dólares que costumava jogar nas suas construções.

- Nenhuma - replicou. - Gostava de ir até lá.

Tomaram um barco a motor para a Ilha do Lido. Passaram frente do Hotel Excelsior e entraram no enorme edifício branco onde se encontrava instalado o casi no. Estava cheio de jogadores ansiosos.

- Sonhadores - disse Philip.

Philip jogou na roleta e em meia hora ganhou dois mil dólares. Voltou-se para Lara.

- Nunca tinha ganho na minha vida. És tu que me dás sorte. Jogaram até às três da manhã e a essa hora já estavam novamente com fome.

Um barco a motor levou-os de volta para a Praça de São Marcos. Vaguearam pelas pequenas ruelas estreitas até que chegaram à Cantina do Mori.

- Este é um dos melhores bacari de Veneza - disse Philip. Lara replicou.

- Acredito. Que é um bacari.

- É um bar onde se pode beber vinho e onde servem pequenas tapas e pratinhos com especialidades locais.

As portas envidraçadas davam para um espaço escuro onde havia tachos de cobre suspensos do tecto e as travessas se alinhavam sobre uma bancada comprida.

Só regressaram ao hotel ao alvorecer. Despiram-se e Lara disse:

- Falando em especialidades.

No dia seguinte de manhã cedo, Lara e Philip foram de avião para Viena.

- Ir a Viena é como viajar para outro século - explicou Philip.

- Diz-se que os pilotos das companhias aéreas costumam dizer: Meus senhores e minhas senhoras, estamos a aproximar-nos do aeroporto de Viena. Verifiquem por favor se os encostos das cadeiras e os tabuleiros estão na posição vertical, não fumem enquanto não estiverem no interior do terminal e atrasem os relógios cem anos.

Lara riu-se.

- Os meus pais nasceram aqui. Costumavam falar-me dos velhos tempos e eu invejava-os.

Seguiam agora pela Ringstrasse e Philip estava excitadíssimo, como um rapazinho desejoso de partilhar com ela os seus tesouros.

- Viena é a cidade de Mozart, Haydn, Beethoven, Brahms. Olhou para Lara e sorriu. - Ah, já me esquecia. tu és especialista em música clássica.

Instalaram-se no Imperial Hotel.

- Tenho de ir ao teatro - disse Philip para Lara -, mas resolvi que amanhã vamos ter o dia todo para nós. Vou mostrar-te Viena.

- Agrada-me muito a ideia, Philip.

Ele abraçou-a.

- Gostava que tivéssemos mais tempo agora - disse em tom pesaroso.

- Também eu.

Ele beijou-a ao de leve na testa.

- Logo à noite desforramo-nos.

Lara apertou-o mais.

- Promessas, promessas.

O concerto teve lugar na Musikverein. O recital era constituído por composições de Chopin, Schumann e Prokofiev e foi mais um triunfo para Philip.

A sala dos artistas encheu-se como de costume, mas desta vez a língua era o alemão.

- Sie waren wunderbar, Herr Adler!

Philip sorriu.

- Das ist sehr nett von Ihnen, Danke.

- Ich bin ein grosser Anhcinger von Ihnen.

Philip sorriu de novo.

- Sie sind sehr freundlich.

Continuava a falar com eles, mas não conseguia tirar os olhos de Lara.

Depois do recital, Lara e Philip cearam no hotel. Foram recebidos pelo chefe de mesa.

- Que honra! - exclamou. - Estive esta noite no concerto! Foi magnífico! Magnífico!

-É muito amável - disse Philip com modéstia.

A comida estava deliciosa, mas sentiam-se ambos demasiado excitados para conseguirem comer. Quando o criado perguntou Desejam sobremesa? Philip respondeu rapidamente: Sim. E não tirava os olhos de Lara.

O instinto dizia-lhe que havia qualquer coisa de errado. Ela nunca tinha estado fora tanto tempo sem lhe dizer para onde ia. Seria que estava a evitá-lo deliberadamente? Se assim fosse só pode haver uma razão. E eu não posso consentir nisso, pensou Martin.

Um pálido raio de lua atravessava ajanela desenhando sombras suaves no tecto. Lara e Philip estavam deitados na cama, nus, observando as sombras que se moviam por cima das suas cabeças. O ondear das cortinas fazia dançar as sombras num movimento léve e balançado. As sombras juntavam-se devagar, depois separavam-se e voltavam ajuntar-se, até que se entrelaçavam formando uma só e o movimento da dança tornava-se mais rápido, cada vez mais rápido, numa batida frenética e selvagem, para parar de repente, ficando apenas o ondear suave das cortinas.

No dia seguinte de manhã cedo, Philip disse:

- Temos um dia e uma noite aqui. Tenho muita coisa para te mostrar.

Tomaram o pequeno-almoço na sala de jantar do hotel e dirigiram-se para a Karntnerstrasse, onde não era permitido trânsito automóvel. As lojas estavam cheias de roupas bonitas e antiguidades.

Philip alugou um fiacre puxado por um cavalo e foi assim que percorreram as ruas mais largas da cidade ao longo de Ring Road.

Visitaram o Palácio de Schnbrunn e admiraram a vistosa colecção de coches imperiais. À tarde compraram bilhetes para a Escola de Equitação Espanhola e admiraram os cavalos Lipizzaner. Andaram na gigantesca roda de Ferris no Prater e depois Philip disse:

- Agora vamos cometer um pecado!     

- Ooh!     

- Não - Philip riu-se. - Tinha outra coisa na ideia.        

Conduziu Lara ao Demel's para provar a pastelaria incomparável acompanhada de café.  

Lara estava fascinada com a mistura arquitectónica de Viena:

magníficos edifícios barrocos com alguns séculos de idade defrontavam-se com outros pós-modernos.

Philip estava interessado nos compositores.

- Sabias que Franz Schubert começou aqui a sua carreira musical como cantor, Lara? Fazia parte do coro da Capela Imperial é quando mudou de voz, aos 17anos, puseram-no fora. Foi aí que decidiu começar a compor.

Jantaram tranquilamente num pequeno restaurante e pararam numa taverna para beber vinho, em Grinzig. Depois Philip disse:

- Gostavas de fazer um cruzeiro no Danúbio?

- Gostava muito.

A noite estava perfeita, com a lua cheia a iluminar a terra e uma suave brisa estival. As estrelas brilhavam lá no alto. Estão a brilhar para nós, pensou Lara, por estarmos tão felizes. Lara e Philip entraram num dos barcos e do altifalante de bordo vieram os compassos suaves do Danúbio Azul. Ao longe, viram uma estrela cadente.

- Depressa! Pede um desejo! - disse Philip.

Lara fechou os olhos e ficou alguns momentos em silêncio.

- Pediste o teu desejo?

- Sim.

- Que foi que pediste?

Lara levantou os olhos para ele e respondeu, muito séria:

- Não posso dizer, se não não se realiza. - Vou fazer com que

ele se realize, pensou.

Philip encostou-se para trás e sorriu-lhe.

- Isto é perfeito, não achas?

- As coisas podem ser sempre assim, Philip.

- Que é que tu queres dizer?

- Podemos casar-nos.

Pronto, as palavras tinham sido ditas. Nos últimos dias ele não tínha pensado noutra coisa. Estava profundamente apaixonado por Lara, mas sabia que não podia assumir qualquer compromisso com ela.

- Lara, isso é impossível.

- Impossível? Porquê?

- Já te expliquei, minha querida. Eu ando praticamente todo o tempo em viagem. E tu não podias viajar sempre comigo, pois não?

- Não - disse Lara -, mas.

- Já vês. Não ia ser possível. Amanhã em Paris vou mostrar-te...

- Eu não vou contigo para Paris, Philip. Ele pensou que não tinha entendido bem.

- O quê?

Lara respirou fundo.

- Não vou voltar a ver-te.

Foi como se lhe tivessem batido em cheio no estômago.

- Porquê? Eu amo-te, Lara, eu.

- E eu também te amo. Mas não quero ser apenas mais uma

dessas admiradoras que te seguem por toda a parte. Essas podes ter quantas quiseres.

- Lara; eu apenas te quero a ti. Mas tu não vês, minha querida, que o nosso casamento nunca iria resultar. Temos vidas separadas que são importantes para qualquer de nós. Eu havia de querer que estivéssemos sempre juntos e isso não ia ser possível.

- Então está decidido, não é verdade? - disse Lara secamente.

- Não voltaremos a ver-nos, Philip.

- Espera. Por favor! Temos de falar. Vamos para o teu quarto.

- Não, Philip. Amo-te muito, mas não quero continuar assim. Acabou-se.

- Mas eu não quero que acabe - insistiu Philip. - Muda de ideias.

- Não posso. Tenho muita pena. É tudo ou nada.

Fizeram o resto do caminho até ao hotel em silêncio. Quando estavam na entrada, Philip disse:

- Por que é que não vamos até ao teu quarto? Podíamos falar sobre o assunto e.

- Não, meu querido. Não temos mais nada a falar. Philip ficou a vê-la meter-se no elevador e desaparecer. Quando Lara chegou à suite, o telefone tocou. Ela apressou-se a atender.

- Philip.

- Daqui Howard. Tenho estado todo o dia a tentar entrar em contacto consigo.

Ela conseguiu disfarçar a decepção.

- Há algum problema?

- Não. Era só para falarmos. Está a acontecer muita coisa por

aqui. Quando é que pensa voltar?

- Amanhã - disse Lara. - Amanhã estarei de volta a Nova

Iorque.

Lentamente, Lara voltou a pousar o auscultador.

Deixou-se ficar sentada, a olhar para o telefone, como que para o forçar a tocar. Duas horas depois, ele continuava silencioso:

Cometi um erro, pensou Lara tristemente. Fiz-lhe um ultimato e perdi-o. Se ao menos eu tivesse esperado... Se tivesse ido com ele até Paris... se... se... Tentou visualizar a vida sem Philip. Era demasiado penoso para continuar a pensar nisso. Mas também não podemos continuar assim. Quero que pertençamos um ao outro. No dia seguinte teria de regressar a Nova Iorque:

Lara estendeu-se no sofá, vestida, com o telefone ao lado. Sentia-se vazia. Sabia que lhe seria impossível dormir:

Adormeceu.

No seu quarto, Philip andava de um lado para o outro como um animal enjaulado. Estava furioso com Lara, furioso consigo próprio. Não conseguia suportar a ideia de não a tornar a ver, de não poder apertá-la nos braços. Raios partam as mulheres, todas as mulheres! - pensou. Os pais bem o tinham prevenido. A tua vida é a música: Se quiseres ser o melhor, não há lugar para mais nada. E até ter encontrado Lara, ele estava convencido

de que era verdade. Mas agora tudo tinha mudado. Raios partam! O que nós tinhamos era maravilhoso. Por que é que ela havia de ter destruído tudo? Amava-a, mas sabia que nunca poderia casar-se com ela.

Lara foi acordada pelo toque do telefone. Sentou-se no sofá, meio estonteada, e olhou para o relógio de parede. Eram cinco da manhã. Sonolenta, pegou no auscultador.

- Howard?

Era a voz de Philip.

- Que tal se nos casássemos em Paris?

 

O casamento de Lara Cameron e Philip Adler encheu as primeiras páginas dos jornais de todo o mundo. Quando Howard Keller soube da notícia, saiu e embebedou-se pela primeira vez na vida. Sempre dissera para si próprio que a enfatuação de Lara por Philip Adler acabaria por passar. Lara e eu somos uma equipa. Temos de ficar juntos. Ninguém nos pode separar. Ficou bêbado durante dois dias e quando recuperou telefonou para Lara, em Paris:

- Se é verdade, diga ao Philip que ele é o homem com mais sorte que jamais existiu.

- É verdade - garantiu-lhe Lara esfusiante.

- Você parece muito feliz.

- Nunca estive tão feliz em toda a minha vida!

- Estou. estoú contente por si, Lara. Quando volta?

- Philip dá um concerto em Londres amanhã e depois vámos para Nova Iorque.

- Falou com o Paul Martin antes do casamento? Ela hesitou.

- Não.

- E não acha que devia falar agora?

- Sim, claro. - Estava mais preocupada com esse assunto do que lhe agradava admitir mesmo para si própria. Não estava certa sobre como ele iria aceitar a notícia do casamento. - Falo com ele quando voltar.

- Vai ser bom voltar a vê-la. Tenho saudades suas.

- Eu também tenho saudades suas, Howard. - E era verdade. Ele era tão querido. Sempre fora um grande amigo, um amigo leal.       Não sei que seria de mim sem ele, pensou Lara.

Quando o 727 se aproximou do Butler Aviation Terminal, o aeroporto de La Guardia, em Nova Iorque, a imprensa já lá estava em força.

Havia repórteres de jornais e câmaras de televisão.

O director do aeroporto conduziu Lara e Philip para o gabinete da recepção.

- Posso fazê-los sair sem serem vistos - disse - ou. Lara voltou-se para Philip.

- Vamos despachá-los, querido. Se não nunca mais nos deixam em paz.

- Se calhar tens razão:

A conferência de imprensa durou duas horas.

- Onde foi que se conheceram.

- Sempre se interessou pela música clássica, Sr. á Adler.

- Há quanto tempo se conhecem.

- Tencionam viver em Nova Iorque...

- Vai deixar de fazer tournées, Sr. Adler.

Por fim, acabou.

Havia duas limusinas à espera deles. A segunda era para a bagagem.

- Não estou habituado a viajar com todo este estilo - disse Philip.

Lara riu-se.

- Habitua-te.

Quando já estavam na limusina, Philip perguntou:

- Para onde é que vamos? Tenho um apartamento na Rua Cinquenta e Sete.

- Acho que deves ficar mais confortável em minha casa, querido. Vê tudo bem e, se te agradar, mandamos buscar as tuas coisas.

Chegaram ao Cameron Plaza. Philip levantou os olhos para o edifício enorme.

- Isto pertence-te?

- A mim e a alguns bancos.

- Estou impressionado. Lara apertou-lhe o braço.

- Óptimo. É isso que eu quero.

O vestíbulo tinha sido propositadamente decorado com flores. Havia meia dúzia de empregados à espera para os saudar.

- Bem-vindos a casa, Sr. á Adler, Sr. Adler.

Philip olhou em volta e disse:

- Meu Deus! Tudo isto é teu?

- É nosso, meu querido.

- O elevador levou-os até ao último andar, que cobria todo o quadragésimo nono piso. A porta foi aberta pelo mordomo.

- Bem-vinda a casa, Sr. á Adler.

- Obrigada, Simms.

Lara apresentou Philip ao resto do pessoal e mostrou-lhe todo o duplex. Havia uma grande sala de estar branca, cheia de antiguidades, um grande terraço fechado, uma sala de jantar, quatro quartos de cama e três quartos para o pessoal, seis casas de banho, uma cozinha, uma biblioteca e um escritório.

- Achas que ficarias confortável aqui, querido? - perguntou Lara.

Philip sorriu.

- É um bocado pequeno, mas eu cá me arranjo.

No meio da sala havia um magnífico piano Bechstein novo. Philip aproximou-se dele e deixou correr os dedos pelas teclas.

- É maravilhoso! - exclamou. Lara foi colocar-se ao lado dele.

- É o teu presente de casamento.

-A sério? Philip estava comovido. Sentou-se ao piano e começou a tocar.

- Mandei-o afinar para ti. - Lara escutava enquanto a cascata

de notas enchia a sala. - Gostas?

- Adoro! Obrigado, Lara.

- Podes tocar enquanto te apetecer.

Philip levantou-se do piano.

- Acho que tenho de telefonar ao Ellerbee. Ele tem andado a tentar contactar-me.

- Há um telefone na biblioteca, querido.

Lara foi até ao escritório e ligou o gravador de chamadas: Havia meia dúzia de mensagens de Paul Martin. Lara, onde estás? Tenho saudades túas, minha querida. Lara, presumo que estejas fora do país, senãojá me terias dado noticias. Estou preocupado contigo, Lara. Liga para mim. Depois o tom modificava-se. Acabo de ver a noticia do teu casamento. É verdade? Temos de falar.

Philip tinha entrado entretanto.

- Quem é o personagem misterioso que faz tantas chamadas? perguntou.

Lara voltou-se.

- Um. um velho amigo meu.

Philip aproximou-se e pôs os braços em volta dela.

- Alguém de quem eu deva ter ciúmes?

Lara replicou em voz suave.

- Não tens de ter ciúmes de ninguém neste mundo. És o homem melhor que eu alguma vez amei. E é verdade.

Philip estreitou-a nos braços.

- E tu és a única mulher que eu alguma vez amei.

Nessa tarde, enquanto Philip estava sentado ao piano, Lara voltou ao escritório e respondeu aos telefonemas de Paul Martin.

Ele apareceu quase imediatamente em linha.

- Já voltaste. - O tom dele era seco.

- Sim. - Lara receava aquela conversa.

- Não me acanho de te confessar que a notícia foi um grande choque, Lara.

- Desculpa-me, Paul. Eu. aconteceu tudo muito depressa.

- Teve de ser.

- Sim. - Lara tentava descobrir qual o estado de espírito dele.

- Sempre pensei que havia alguma coisa de bom entre nós. Zualquer coisa de especial.

- E era, Paul, mas.

- Acho que temos de falar sobre isso.

- Bom, eu.

- Vamos almoçar amanhã. No Vitello's. À uma. - Era uma ordem.

Lara hesitou. Seria loucura antagonizá-lo mais:

- Está bem, Paul. Lá estarei.

A ligação foi interrompida. Lara deixou-se ficar sentada; inquieta. Seria que Paul estava muito zangado? Seria que ia tomar álguma atitude?

 

Na manhã seguinte, quando Lara chegou ao Cameron Center

todo o pessoal a aguardava para a felicitar.

- Uma notícia maravilhosa!

- Foi uma surpresa tão grande para todos nós!.

- Tenho a certeza de que vai ser muito feliz...

E assim por diante.

Howard Keller aguardava-a no gabinete dela. Deu-lhe um grande abraço.

- Para alguém que não gosta de música clássica, saiu-se muito bem!

Lara sorriu.

- É verdade, não acha?

- Vou ter de me habituar a tratá-la por Sr. a Adler.

O sorriso de Lara desapareceu.

-Acho que seria melhor por razões profissionais se eu continuasse a usar Cameron, não lhe parece?

- Como queira. Estou bem contente por a ter de volta. Há tanta coisa pendente.

Lara sentou-se em frente de Howard.

- Okay, conte-me o que se tem passado.

- Bom, o hotel de West Side é para perder dinheiro. Temos

um comprador do Texas que estaria interessado, mas eu estive lá ontem e ohotel está em péssimo estado. Precisa de ser totalmente renovado e isso vai importar em cinco ou seis milhões.

- O comprador já o viu?

- Não. Disse-lhe que lho ia mostrar amanhã.

- Mostre-lho na próxima semana. Mande para lá uma equipa

de pintores. Dê-lhe um ar de limpo. Arranje uma data de gente que esteja no vestíbulo quando ele lá for.

Howard sorriu.

- Certo. Frank Rose está cá com uns desenhos novos. E

espera no meu gabinete.

- Eu dou-lhes uma vista de olhos.

- A Midland Insurance Company que ia ocupar o prédio novo?

- Sim.

- Ainda não assinaram nada. Estão um bocado hesitantes. Lara tomou nota.

- Eu falo com eles. A seguir?

- O empréstimo de setenta e cinco milhões do Gothám Bank sobre o novo projecto?

- Sim.

- Estão a recuar. Acham que já tem demasiados encargos.

- Que juro é que eles nos iam cobrar?

- Dezassete por cento.

- Arranje uma reunião com eles. Vamos oferecer-lhes vinte por cento.

Keller olhava-a, espantado.

- Vinte por cento? Meu Deus, Lara! Ninguém paga vinte por cento.

- Eu prefiro continuar viva a vinte por cento que morta a dezassete por cento. Faça isso, Howard.

- Está bem.

A manhã passou veloz. Às doze e trinta, Lara disse:

- Vou encontrar-me com o Paul Martin para almoçar. Howard mostrou-se preocupado.

- Tome cautela não seja você o almoço.

- Que é que quer dizer com isso?

- Quero dizer que ele é siciliano. Os sicilianos não perdoam e não esquecem.

- Está a ser melodramático. O Paul nunca me faria mal.

- Esperemos que tenha razão.

Paul Martinjá estava à espera de Lara no restaurante quando ela chegou. Parecia magro e abatido, com grandes olheiras, como se andasse a dormir mal.

- Olá, Lara. - Não se levantou.

- Paul. - Lara sentoú-se em frente dele.

- Deixei algumas mensagens estúpidas no teu gravador. Desculpa. Não fazia ideia. - Encolheu os ombros.

- Eu devia ter-te prevenido, Paul, mas foi tudo tão rápido.

- É - Observava-a. - Estás com óptimo aspecto.

- Obrigada.

- Onde foi que conheceste Adler?

- Em Londres.

- E apaixonaste-te por ele assim de repente? - Havia um ton amargo nas palavras dele.

- Paul; aquilo que tu e eu tivemos foi maravilhoso; mas para mim não era o suficiente. Eu precisava de qualquer coisa mais. Precisava de alguém qe voltasse para casa todas as noites.

Ele escutava, observando-a.

- Eu seria incapaz de fazer o que quer que fosse que pudésse magoar-te, mas isto. isto aconteceu e pronto!

Silêncio.

- Peço-te que compreendas.

- É. - Um sorriso gelado atravessou-Lhe o rosto. - Acho que não tenho outro remédio, não é? O que está feito, está feito. Só que foi assim um grande choque ler a notícia nos jornais e vê-la na televisão. Sempre pensei que tivéssemos uma relação mais próxima.

- Tens razão - disse novamente Lara. - Eu devia ter- te dito! Paul estendeu a mão e acariciou-lhe o queixo.

Eu era doido por ti, Lara. Acho que continuo a ser. Tu eras o meu miracolo. Eu podia ter-te dado tudo neste mundo excepto o que ele te deu. uma aliança de casamento: Amo-te o suficiente para querer a tua felicidade.

Lara sentiu ùma onda de alívio.

- Obrigada, Paul.

- Quando é que vou conhecer o teu marido?

- Na próxima semana vamos dar uma festa para os amigos. Queres vir?

- Lá estarei. E. diz-lhe que te trate como deve ser, se não vai ter de me prestar contas a mim.

Lara sorriu.

- Eu digo-lhe!

Quando Lara regressou ao escritório, Howard Keller estava à espera dela.

- Como é que correu o almoço? - perguntou, nervoso.

- Muito bem. Estava enganádo a respeito do Paul. Ele portou-se lindamente.

- Óptimo. Ainda bem que eu estava enganado. Marquei-lhe umas quantas reuniões para amanhã de manhã, com.

Cale-se. - respondeu Lara. - Amanhã vou ficar em casa com o meu marido.

- Fico contente que esteja tão feliz - disse Howard.

- Howard, estou tão feliz que até me assusta. Tenho medo de acordar e descobrir que foi tudo um sonho. Não sabia que uma pessoa se pudesse sentir assim tão feliz.

Ele sorriu.

- Está bem, eu encarrego-me das reuniões.

- Obrigada. E beijou-o na cara. - O Philip e eu vamos dar uma festa na próxima semana. Contámos consigo.

A festa teve lugar no sábado seguinte, em casa de Lara. Havia um buffet copioso e mais de cem convidados. Lara tinha convidado os ho mens e as mulheres com quem trabalhava: banqueiros, construtores, arquitectos, chefes de obra, pessoal da câmara, encarregados do planeamento e os dirigentes dos sindicatos. Philip convidara os amigos. músicos e os apreciadores e benfeitores da música. A combinação revelou-se desastrosa.

Não porque os dois grupos não tivessem tentado misturár-se. O problema era que a maior parte deles não tinham nada em comum. Os construtores estavam interessados em construção e arquitectura e os músicos estavam interessados em música e em compositores.

Lara apresentou um dos responsáveis pelo planeamento da cidade a um grupo de músicos. O indivíduo ficou ali especado a tentar seguir a discussão.

- Sabe que é que Rossini achava da música de Wagner? Um dia sentou o rabo em cima do teclado do piano e disse: Para mim é isto a música de Wagner.

- Wagner merecia-o. Quando deflagrou um incêndio no Ring Theater de Viena, durante uma representação dos Contos de Hoffmann, quatrocentas pessoas morreram, queimadas. Quando Wagner soube o que tinha acontecido, disse: É o resultado de terem ido ouvir uma opereta de Offenbach.

O funcionário da Câmara afastou-se rapidamente.

Lara apresentou alguns dos amigos de Philip a um grupo de agentes imobiliários.

- O problema - disse um deles - é que são precisas trinta e cinco por cento das assinaturas dos locatários para entrar no regime de propriedade horizontal.

- Se quer a minha opinião, é uma regra bastante estúpida.

- Concordo. Agora vou mudar para os hotéis. Sabia que os hotéis em Manhattan estão agora a fazer uma média de duzentos dólares por quarto e por noite? No próximo ano.

Os músicos afastaram-se. As conversas pareciam estar a desenrolar-se em dois idiomas diferentes.

- O problema dos vienenses é que eles adoram compositores mortos.

- Há um hotel que está a ser construído em dois blocos, entre a Rua Quarenta e Sete e a Quarenta e Oito. Está a ser financiado pelo Chase Manhattan.

- Talvez ele não seja o maior chefe de orquestra do mundo, mas a sua técnica de batuta é gennuína.

recordo-me que muitos especialistas disseram que o crash da bolsa em 1929 não foi assim tão mau. Serviu para ensinar as pessoas a porem o seu dinheiro em imóveis.

e Horowitz ficou anos sem tocar porque estava convencido de que tinha dedos de vidro.

já vi os planos. Há uma base clássica que surge de três pisos na Oitava Avenida e no interior fica a arcada elíptica com patamares em três lados.

Einstein adorava o piano. Costumava tocar com Rubenstein, mas Einstein tocava sempre fora de compasso. Quando Rubenstein já não conseguia aguentar mais, gritava: Albert, não sabes contar?

o Congresso deve ter bebido de mais para aprovar o decreto da reforma dos Impostos. Vai paralisar completamente a indústria da construção.

e no final da noite, quando Brahms saiu da festa, disse: Se está aqui alguém que eu me tènha esquecido de insultar, peço desculpa.

A Torre de Babel.

Paul Martin chegou sozinho e Lara precipitou-se para a porta para o receber.

- Estou tão contente por teres podido vir, Paul.

- Não faltaria por nada. - Olhou em volta. - Quero conhecer o Philip.

Lara levou-o atéjunto de Philip, que se encontrava no meio de um grupo.

- Philip, este é um velho amigo meu, Paul Martin. Philip estendeu-lhe a mão.

- Tenho muito prazer em conhecê-lo.

Os dois homens trocaram um aperto de mão.

- O senhor é um homem com muita sorte, Sr. Adler. Lara é uma mulher notável.

- É o que eu estou sempre a dizer-lhe - comentou Lara, a sorrir.

- Ela não precisa de mo dizer - acrescentou Philip. - Eu sei a sorte que tenho.

Paulobservava-o.

- Sabe?

Lara sentiu a tensão repentina.

- Vou buscar-te um cocktail - disse para Paul.

- Não, obrigado. Já te esqueceste? Eu não bebo.

Lara mordeu o lábio.

- É verdade. Deixa-me apresentar-te algumas pessoas. - E acompanhou-o através da sala, apresentando-o a diversos convidados.

Um dos músicos dizia:

- Leon Fleisher dá um recital amanhã à noite. Não o perderia por nada deste mundo. -Voltou-se para Paul Martin que estava ao lado de Howarcl Keller. - Já o ouviu tocar?

- Não.

- É extraordinário. Toca apenas com a mão esquerda, claro.

Paul Martin mostrou-se espantado.

- E porquê?

- Fleisher tem uma síndroma do carpo, na mão direita, hájá dez anos.

- Mas como é que ele pode dar um recital só com uma mão?

- Meia dúzia de compositores escreveram concertos para a mão esquerda. Há um de Demuth, Franz Schmidt, Korngold e ainda um concerto magnífico de Ravel.

Alguns dos convidados pediam a Philip que tocasse para eles.

- Está bem. Esta é para a minha noiva. - Sentou-se ao piano e começou a tocar um tema do concerto para piano de Rachmaninoff: Fez-se silêncio na sala. Todos pareciam hipnotizados pelos acordes maravilhosos que enchiam a casa. Quando Philip se levantou ecoaram fortes aplausos.

Uma hora depois, os convidados começaram a sair. Depois de terem acompanhado à porta as últimas pessoas, Philip disse:

- Foi uma grande festa.

- Tu detestas recepções com muita gente, não é?

Philip abraçou-a e sorriu:

- Notou-se muito?

- Só voltamos a fazer outra daqui a dez anos - prometeu Lara.

- Philip, não tiveste a impressão de que os nossos convidados vinham de dois planetas diferentes?

Ele encostou-lhe os lábios à face:

- Não faz mal. Nós temos o nosso próprio planeta. Vamos fazê-lo girar.

 

Lara decidiu passar a trabalhar em casa na parte da manhã.

- Quero que estejamosjuntos todo o tempo possível - disse para Philip.

Lara pediu a Kathy que lhe arranjasse entrevistas com umas quantas secretárias, no apartamento, e falou com meia dúzia delas antes de Marian Bell aparecer. Ela tinha cerca de 25 anos, feições atraentes, o cabelo de um louro suave e uma personalidade cativante.

- Sente-se - disse Lara.

- Obrigada.

Entretanto Lara analisou-lhe o curriculum.

- Formou-se na universidade de Wellesley?

- Sim.

- Tem um bacharelato. Por que é que quer um emprego de secretária?

- Acho que posso aprender muito consigo. Quer consiga o lugar quer não, soú uma grande admiradora sua, Miss Cameron.

- A sério? Porquê?

- Considero-a como o meu modelo. Realizou tanta coisa e conseguiu tudo sozinha.

Lara estudava a jovem.

- Este emprego implica muitas horas de trabalho. Eu levanto-me cedo. Viria trabalhar aqui no meu apartamento, começando às seis da manhã.

- Isso não é problema. Eu gosto de trabalhar.

Lara sorriu. Gostava de Marian.

- Dou-lhe uma semana à experiência.

No fim da semana, Lara sabia que tinha encontrado uma preciosidade. Marian era capaz, inteligente e agradável. Pouco a pouco, nasceu uma rotina. A menos que houvesse alguma emergência, Lara passava as manhãs a trabalhar em casa. De tarde ia para o escritório.

Todas as manhãs Lara e Philip tomavam o pequeno-almoço juntos e depois Philip sentava-se ao piano, com uma camisola sem mangas ejeans, para praticar durante duas ou três horas, Enquanto Lara, no escritório, ditava o expediente a Marian. Por vezes Philip tocava velhas melodias escocesas para Lara: Annie Laure, e Comin'Through the Rye. Ela ficava comovida. E almoçavam juntos.

- Conta-me como era a tua vida em Glace Bay - dizia Philip.

- Levava pelo menos cinco minutos - replicava Lara, sorrindo.

- Não, estou a falar sério. Gostava mesmo de saber. Ela falava-lhe da pensão, mas não conseguia falar-lhe do pai. Contou a Philip a história de Charles Cohn e Philip disse:

- Sorte dele. Ainda gostava de o conhecer.

- Vais conhecê-lo um dia.

Lara falou-lhe da sua experiência com Sean MacAllister e Philip disse:

- Patife! Gostava de o matar! - Abraçou Lara e disse: - Nunca mais ninguém há-de voltar a magoar-te.

Philip estava a preparar um concerto. Lara ouvia-o tocar três notas de cada vez, repetidamente, e depois continuar, lentamente, apanhando o ritmo, até que as diferentes frases se uniam finalmente.

A princípio Lara costumava entrar na sala enquanto Philip praticava e interrompia-o.

- Querido, temos um convite para Long Island para o fim-de-semana. Apetece-te ir? - Ou, - Howard Keller gostava de nos convidar para jantar no sábado.

Philip tentou mostrar-se paciente. Por fim, disse:

- Lara, por favor não me interrompas quando estou ao piano. Perco a concentração.

- Desculpa - disse Lara. - Mas não entendo por que é que praticas todos os dias. Não te estás a preparar para nenhum concerto.

- Pratico todos os dias para poder dar um concerto. Compreendes, minha querida, quando tu constróis um edifício e alguém comete um erro, ele pode ser corrigido. Podes modificar os planos ou refazer as canalizações ou a instalação eléctrica, ou o que for. Mas num recital isso não é possível, nunca há uma segunda oportunidade. Estás ali perante o público e cada nota tem de ser perfeita.

- Desculpa - repetiu Lara. - Eu entendo.

Philip tomou-a nos braços.

- Há uma anedota sobre um homem em Nova Iorque, que levava o estojo de um violino. Estava perdido. A certa altura, dirigiu-se a um desconhecido e perguntou: Como é que eu chego a Carnegie Hall? Praticando, - disse o desconhecido - praticando.

Lara riu-se.

- Volta para o piano que eu não te interrompo mais. Ficou no escritório a ouvir os acordes suaves tocados por Philip e pensou: Tenho tanta sorte. Milhares de mulheres me invejariam por estar aqui a ouvir Philip Adler tocar.

Só desejava que ele não tivesse de praticar com tanta frequência.

Ambos gostavam de jogar o gamão e à noite, depois do jantar, sentavam-se em frente da lareira e fingiam que eram adversários ferozes. Lara adorava aqueles momentos, sozinha com ele.

O casino de Reno estava a ficar pronto para a abertura. Seis meses antes, Lara tinha tido uma reunião com Jerry Townsend.

- Quero que a notícia da inauguração chegue a Timbuktudisse. - Vou levar lá o chefe do Maxim's para a inauguração. Quero que me arranje os maiores talentos. Comece com Frank Sinatra e vá descendo na escala. Quero que a lista dos convidados inclua os principais nomes de Hollywood, Nova Iorque e Washington. Quero que as pessoas se degladiem para ter o nome nessa lista.

Enquanto passava tudo em revista, Lara disse: - Fez um bom trabalho. Quantas recusas já tivemos?

- Umas vinte - replicou Townsend. - O que não é mau para uma lista de seiscentos nomes.

- Nada mau - concordou Lara.

De manhã, Keller telefonou a Lara.

- Uma boa notícia - disse. - Recebi uma chamada dos banqueiros suíços. Vêm amanhã de avião para se encontrarem consigo e discutirem a questão do empreendimento conjunto.

-Óptimo - exclamou Lara. - Às nove no meu gabinete.

- Eu trato disso.

Nessa noite, ao jantar, Philip disse:

- Lara, amanhã tenho uma sessão de gravação. Nunca viste nenhuma, pois não?

- Não.

- Gostavas de assistir?

Lara hesitou, pensando na reunião com os suíços.

- Claro - replicou.

Depois telefonou a Keller.

- Comecem a reunião sem mim. Logo que possa, eu apareço.

O estúdio de gravação ficava na parte Oeste da Rua Trinta e Quatro, num imenso armazém cheio de equipamento electrónico. Havia cento e trinta músicos sentados na sala e uma cabina de controlo forrada a vidro, onde trabalhavam os engenheiros de som. Parecia a Lara que a gravação avançava muito devagar. Estavam constantemente a parar e a começar de novo. Num dos intervalos ligou para Keller.

- Onde é que você está? - perguntou Howard. - Tenho estado a entretê-los, mas eles querem falar consigo.

- Daqui a uma ou duas horas estou aí - disse ela. - Converse com eles.

Duas horas depois a sessão de gravação ainda se arrastava. Lara telefonou novamente à Keller.

- Lamento muito, Howard, mas não posso sair daqui. Eles que voltem amanhã.

- Mas que é que há de tão importante? - perguntou Keller.

- O meu marido - disse Lara. E pousou o auscultador do telefone.

Quando regressaram ao apartamento, Lara disse:

- Para a semana vamos a Reno.

- Que é que há em Reno?

- É a inauguração do hotel e do casino: Vamos de avião na quarta-feira.

A voz de Philip encheu-se de pesar.

- Caramba!

- Que é que há?

- Tenho muita pena, minha querida, mas não posso. Lara tinha os olhos fixos nele.

- Que é que queres dizer com isso?

- Julgava que já te tinha dito. Parto em tournée na segunda-feira.

- O quê?

- Ellerbee marcou-me uma tournée de seis semanas. Vou à Austrália e.

- À Austrália?

- Sim e depois ao Japão e Hong Kong.

- Não podes, Philip. Quer dizer. por que é que vais fazer isso? Não precisas. Eu quero estar contigo.

- Então vem comigo, Lara. Eu adorava que viesses.

- Tu sabes que não posso. Pelo menos, neste momento. Há muitas coisas em curso - disse Lara cheia de infelicidade. - Eu não quero que tu me deixes.

- Eu também não quero deixar-te. Minha querida, antes de casarmos eu preveni-te de que a minha vida é assim.

- Eu sei - disse Lara -, mas isso era antes. Agora é diferente. Tudo mudou.

- Nada mudou - disse Philip suavemente -, excepto o facto de eu ser absolutamente louco por ti e quando me vou embora me fazeres uma falta dos diabos.

Não havia nada que ela pudesse responder.

Philip partiu e Lara nunca se sentira tão só. No meio de uma reunião, pensava de repente em Philip e sentia o coração despedaçar-se.

Queria que ele continuasse com a sua carreira, mas precisava de o ter junto dela. Pensava no tempo maravilhoso que tinham passado juntos, nos braços dele, a abraçá-la, no seu calor e ternura. Não sabia que alguma vez pudesse amar tanto alguém. Philip telefonava-lhe todos os dias, mas de certa forma isso aumentava-lhe a solidão.

- Onde é que estás, meu querido?

- Ainda estou em Tóquio.

- Como é que está a correr a tournée?

- Lindamente: Sinto muito a tua falta.

- Também eu. - Lara nem conseguia dizer-lhe até que ponto.

- Sigo para Hong Kong amanhã e depois.

- Só queria que voltasses para casa. - Arrependeu-se do que dissera mal as palavras lhe saíram da boca.

- Sabes que não posso.

Houve um silêncio.

- Claro que não.

Falaram durante meia hora e quando Lara pousou o auscultador sentiu-se mais só que nunca. A diferença horária era de enlouquecer. Às vezes a terça-feira dela era a quarta-feira dele e era frequente ele ligar-lhe a meio da noite ou de madrugada.

- Como é que está o Philip? - perguntou Keller.

- Óptimo. Por que é que ele faz isto, Howard?

- Por que é que ele faz o quê?

- A tournée. Não era preciso. O que eu quero dizer é que ele não precisa do dinheiro.

- Ora, tenho a certeza de que ele não o faz por dinheiro. É aquilo que ele gosta de fazer, Lara.

As mesmas palavras que Philip usara. E ela compreendia-o intelectualmente, mas não emocionalmente.

- Lara - disse Keller -, você só casou com o homem. não é dona dele.

- Eu também não quero ser dona dele. Mas tinha esperanças de ser mais importante para ele que. - Parou a meio da frase. Esqueça. Eu sei que estou a ser pateta.

Lara telefonou a William Ellerbee.

- Está livre hoje ao almoço? - perguntou Lara.

- Posso passar a estar - disse Ellerbee. - Há algum problema?

- Não, não. Pensei que talvez devéssemos conversar. Encontraram-se no Le Cirque.

- Tem falado com o Philip ultimamente? - perguntou Ellerbee.

- Falo com ele todos os dias.

- Está a ter uma excelente tournée.

- Sim.

Ellerbee acrescentou:

- Francamente, nunca pensei que o Philip alguma vez viesse a casar. Ele é como um sacerdote. dedicado àquilo que faz.

- Eu sei - Lara hesitou. - Mas não acha que ele está a viajar de mais?

- Não percebo.

- Philip agora tem um lar. Não há razão para que ande a correr mundo. - Notou a expressão no rosto de Ellerbee. - Não, não quero dizer que ele devesse limitar-se a ficar em Nova Iorque. Tenho a certeza de que conseguiria arranjar-lhe concèrtos em Bóston, Chicago, Los Angeles. Está a ver, em sítios em que ele não fosse obrigado a ficar tão longe de casa.

Ellerbee disse, cauteloso:

- Discutiu esse assunto com Philip?

- Não. Quis falar consigo primeiro. Seria possível, não é verdade? Philip não precisa do dinheiro, agora já não precisa.

- Sr.a Adler, Philip recebe trinta e cinco mil dólares por cada actuação. O ano passado esteve quarenta semanas em tournée:

- Eu compreendo, mas.

- Faz alguma ideia do reduzido número de pianistas que conseguem chegar ao topo e de como têm de lutar para o conseguir? Há milhares de pianistas por esse mundo fora que se matam a trabalhar, mas as grandes estrelas são apenas quatro ou cinco. E o seu marido é uma delas. A senhora não conhece bem o mundo dos concertos. Há uma concorrência feroz. Muitas vezes as pessoas vêem um solista no palco, de fraque, com ar próspero e elegante, mas quando sai dali, ele mal pode pagar a renda e comprar qualquer coisa decente para comer. Philip teve de lutar durante muito tempo para se tornar um pianista de categoria mundial. E agora está a pedir-me que o prive disso.

- Não, de maneira nenhuma. Era apenas uma sugestão.

- Aquilo que está a sugerir iria destruir a carreira dele: E não creio que deseje fazer uma coisa dessas, pois não?

- Claro que não. - disse Lara. Depois hesitou. - Segundo creio, quinze por cento do que o Philip ganha é para si.

- Exactamente.

- Eu não quereria de forma nenhuma que ficasse prejudicado se o Philip passasse a dar menos concertos - acrescentou Lara cautelosamente. - Teria muito gosto em cobrir a diferença e...

- Sr.a Adler, acho que tudo isso são coisas que terá de discutir com o Philip. Vamos pedir o almoço?

 

A coluna de Liz Smith anunciava:

BORBOLETA DE FERRO PRESTES A FICAR DE ASAS CORTADAS. Quem é a

bela primeira dama dos negócios imobiliários que está à beira de bater com a cabeça no tecto do seu magnífico andar de luxo quando souber que um livro a seu respeito, escrito por um antigo empregado seu, vai ser publicado pela Camelot Press? Corre por aí que vai ser qualquer coisa! Que coisa! Que coisa! Lara atirou com ojornal para cima da mesa. Só podia ser Gertrude Meeks, a secretária que ela tinha despedido! Lara mandou chamar Jerry Townsend.

- Já leu a coluna da Liz Smith esta manhã?

- Já, acabei de a ler agora. Não podemos fazer grande coisa, chefe. Se.

- Podemos fazer muita coisa. Todos os meus empregados assinam um acordo em como não escreverão nada sobre mim durante ou depois do tempo em que trabalham aqui. Gertrude Meeks não tem o direito de fazer isto. Vou processar o editor e acabar com ele.

Jerry Townsend sacudiu a cabeça.

- No seu lugar, eu não faria nada disso.

- E porque não?

- Porque tudo isso cria uma porção de publicidade desfavorável. Se deixar as coisas como estão, é uma brisa que há-de passar como o vento. Tentando pará-la, transforma-a num furacão.

Lara escutou-o sem se deixar convencer.

- Saiba quem é o proprietário da empresa - ordenou. Uma hora depois, Lara falava pelo telefone com Henry Seinfeld, o proprietário e editor da Camelot Press.

- Daqui fala Lara Cameron. Estou informada de que tencionam publicar um livro a meu respeito.

- Leu o artigo de Liz Smith, ein? Sim, é verdade, Miss Cameron.

- Quero preveni-lo de que, se publicar o livro, vou processá-los por invasão de privacidade.

A voz do outro lado da linha disse:

- Acho que devia trocar impressões com o seu advogado, Miss Cameron. A senhora é uma figura pública. Não tem direito à privacidade. E segundo o manuscrito de Gertrude Meeks é uma figura muito colorida.

- Gertrude Meeks assinou um papel que a proibe de escrever o que quer que seja a meu respeito.

- Bom, isso é entre Miss Cameron e Gertrude. Pode processá-la.

Mas entretanto, claro, o livro já teria saído.

- Não quero que esse livro seja publicado. Se eu conseguir compensá-lo pelo facto de não o publicar.

- Um momento. Acho que está a pisar terreno escorregadio. Sugiro que a nossa conversa fique por aqui. Adeus. - E a ligação foi interrompida.

Raios o partam! Lara deixou-se ficar sentada, a pensar. Mandou chamar Howard Keller.

- Que é que sabe acerca da Camelot Press?

Ele encolheu os ombros.

- É uma empresa pequena. Vivem de sensacionalismo e escândalo. Já se atiraram à Cher, à Madonna.

- Obrigada. É tudo.

Howard Keller estava com dores de cabeça. Parecia-lhe que isso estava a acontecer com muita frequência nos últimos tempos. Falta de sono. Andava sob pressão e sentia que as coisas iam depressa de mais. Tinha de arranjar uma maneira de fazer com que Lara abrandasse o ritmo. Talvez fosse uma dor de cabeça devido à fome. Tocou para a secretária.

- Bess, mande-me vir qualquer coisa para eu almoçar, por favor. Fez-se silêncio.

- Bess?

- Está a brincar, Sr. Keller?

- A brincar? Não, porquê?

- Acabou de almoçar há bocadinho.

Keller sentiu um arrepio percorrê-lo da cabeça aos pés.

- Mas se ficou com fome.

- Não, não. - Lembrava-se agora. Tinha comido uma salada e uma sanduíche de roast-beefe. Meu Deus pensou, que é que se está a passar comigo?

- Foi brincadeira, Bess - disse. Com quem estarei eu a brincar?

A inauguração do Cameron Palace de Reno foi de arromba. O hotel estava cheio e o casino apinhado de jogadores. Lara não se furtara a despesas para ter a certeza de que as celebridades convidadas eram tratadas como convinha. Toda a gente lá estava. Só falta uma pessoa, pensou Lara. Philip. Ele mandara-lhe um imenso bouquet de flores com um bilhete: Tu és a música da minha vida. Adoro-te e tenho saudades tuas.

Paul Martin chegou. Foi ao encontro de Lara.

- Parabéns. Ultrapassaste-te a ti própria.

- Graças a ti, Paul. Não teria conseguido nada disto sem ti. Ele olhou em volta.

- Onde está o Philip?

- Não pôde vir. Está em tournée.

- Está aí em qualquer lado a tocar piano? Esta é uma grande noite para ti, Lara. Ele devia estar a teu lado.

Lara sorriu.

- Ele queria estar.

O gerente do hotel dirigiu-se a Lara.

- É uma noite memorável. O hotel está completamente cheio para os próximos três meses.

- Pois vamos mantê-lo assim, Donald.

Lara tinha contratado um agente japonês e outro brasileiro para trazerem grandes jogadores estrangeiros.

Tinha gasto um milhão de dólares em cada uma das suites de luxo, mas ia valer a pena.

- Tem aqui uma mina de ouro, Miss Cameron - disse o gerente. Olhou em volta. - A propósito, onde está o seu marido? Tenho andado desejoso de o conhecer.

- Ele não pôde vir - disse Lara: Está aí em qualquer lado à tocar piano.

A organização da festa esteve brilhante, mas Lara é que foi a estrela da noite. Sammy Cahn tinha escrito um poema especial para a canção Uma cidade como eu gosto. Era assim: Uma rapariga como eu gosto, essa é a Lara. Ela levantou- se para fazer um discurse e hoúve aplausos entusiásticos. Toda a gente queria conhecê-la, tocá-la. A imprensa estava lá em força e Lara deu entrevistas para a televisão, a rádio e osjornais. Tudo correu bem até que os entrevistadores perguntaram: Onde está o seu marido esta noite? E Lara deu consigo a ficar cada vez mais perturbada. Ele deveria estar aqui ao meu lado. O concerto podia esperar. Mas não deixou de sorrir com todo o encanto e respondeu: Philip ficou tão decepcionado por não poder estar aqui.

Quando terminou o espectáculo, houve baile. Paul Martin dirigiu-se para a mesa de Lara.

- Vamos dançar?

Lara levantou-se e deixou que ele a tomasse nos braços.

- Qual é a sensação de seres dona de tudo isto?

- É maravilhosa. Obrigada pela ajuda.

- Para que servem os amigos? Já reparei que tens por cá alguns indivíduos daqueles que jogam forte. Tens de ter atenção com eles, Lara. Alguns vão perder muito dinheiro e tu tens de os fazer sentir como se estivessem a ganhar. Arranja-lhes um carro novo, mulheres, qualquer coisa que os faça sentir importantes.

- Não me hei-de esquecer - replicou Lara.

- É bom sentir-te outra vez nos meus braços - disse Paul.

- Paul.

- Eu sei. Lembras-te do que eu disse se o teu marido não tomasse bem conta de ti?

- Sim.

- Ele não parece estar a portar-se lá muito bem.

- O Philip queria ter vindo - disse Lara na defensiva: E depois de o ter dito, pensou Seria que queria mesmo?

Ele telefonou-lhe já pela noite dentro e o som da voz dele fê-la sentir-se duas vezes mais sozinha.

- Lara, tenho pensado em ti o dia inteiro, minha querida. Como é que correu a inauguração?

- Lindamente. Tenho pena de que não estivesses cá, Philip. - Também eu. Tenho umas saudades loucas de ti.

Então por que é que não estás ao pé de mim?

- Eu também tenho saudades tuas. Volta depressa.

Howard Keller entrou no gabinete de Lara com um sobrescrito de papel pardo bem recheado.

- Você não vai gostar disto - disse Keller.

- Que é que há?

Keller pôs o sobrescrito em cima da secretária de Lara.

- Isto é uma cópia do manuscrito de Gertrude Meeks. Não me pergunte como foi que o arranjei. Podemos ir ambos parar à cadeia.

- Já o leu?

Ele fez que sim com a cabeça.

- Já.

- E depois?

- Acho melhor que veja por si própria. Ela nem sequer estava a trabalhar aqui quando se passaram algumas destas coisas. Deve ter feito uma boa investigação.

- Obrigada, Howard.

Lara esperou até ele sair do gabinete; depois carregou no botão do intercomunicador.

- Não atendo chamadas.

Abriu o manuscrito e começou a ler.

Era arrasador. Paçáva o retrato de uma mulher manipuladora e prepotente que conquistara ferozmente o seu lugar no topo. Descrevia-lhe os acessos de mau humor e a maneira imperiosa como tratava os empregados. Revelava um espírito mesquinho e estava cheio de pequenos episódios maliciosos. Aquilo que o manuscrito deixara de lado era o espírito de independência e a coragem de Lara, o seu talento, visão e generosidade. Ela prosseguiu com a leitura.

Um dos truques da Borboleta de Ferro era marcar as suas reuniões de negócios logo ao princípio da manhã para apanhar os outros ainda sob o efeito da diferença horária enquanto a Cameron estava fresca.

Numa reunião com osjaponeses mandou servir=-hes chá com Valium, enquanto Lara Cameron bebia chá com Ritalin, um estimulante que acelera o processo mental.

Numa reunião com uns banqueiros alemães, eles beberam café com Valium, enquanto ela tomava chá com Ritalin.

Quando Lara Cameron estava em negociações com a propriedade de Queens e ajunta de freguesia vetou o projecto, ela levou-os a mudar de opinião inventando uma história que tinha uma filha ainda pequena que ia viver num dos prédios...

Quando os locatários se recusaram a sair dos Apartamentos

Dorchester, Lara Cameron encheu o prédio de gente sem casa que apanhou na rua.

Nada tinha ficado de fora. Quando acabou de ler, Lara deixou-se ficar um bom bocado sentada à secretária, sem se mexer. Depois mandou chamar Howard Keller.

- Quero saber o que consta a nível de Dun and Bradstreet sobre Henry Seinfeld. É o dono da Camelot Press.

- Certo.

Voltou daí a quinze minutos.

- Seinfeld tem uma classificação D-C.

- Que é que isso quer dizer?

- É a classificação mais baixa que há. Um crédito de quarta linha já é mau, mas ele está quatro pontos mais abaixo. Um sopro mais forte e o homem vai pelos ares. Vive livro a livro. Um só falhanço e ele está arrumado.

- Obrigada, Howard. Telefonou a Terry Hill, o seu advogado.

- Terry, agradava-lhe ter uma editora?

- Que é que você tem na ideia?

- Quero que compre a Camelot Press em seu nome. Pertence a um tal Henry Seinfeld.

- Não creio que seja difícil. Quanto é que quer pagar?

- Tente comprá-lo por uns duzentos mil. Se for preciso, vá até um milhão. Certifique-se de que o acordo inclui todos os direitos que ele possui. Mantenha o meu nome afastado disso.

Os escritórios da Camelot Press eram num prédio antigo da Rua Trinta e Quatro. As instalações consistiam num pequeno gabinete de expediente e úm outro gabinete ligeiramente maior para Henry Seinfeld.

- A secretária dele disse:

- Está aqui um senhor Hill que deseja falar-lhe, Sr Seinfeld:

- Mande entrar.

Terry Iill tinha telefonado antes.

Entrou no pequeno gabinete miserável. Seinfeld estava sentado atrás da secretária.

- Em que posso ser-lhe útil, Sr: Hill?

- Represento uma editora alemã que estaria eventualmente

interessada em comprar a sua firma.

Seinfeld, sem se apressar, acendeu um charuto.

- A minha firma não está à venda - replicou.

- Oh, é uma pena. Estamos a tentar introduzir-nos no mercado

americano e agrada-nos a sua organização.

- Criei esta empresa a partir do nada - disse Seinfild. - É como um filho para mim. Detesto pensar em me separar dela.

- Compreendo os seus sentimentos - disse o advogado com simpatia. Estaríamos dispostos a pagar-lhe quinhentos mil dólares.

Seinfeld quase se engasgou com o charuto.

- Quinhentos? Caramba, tenho agora um livro a sair que só ele vale úm milhão de dólares. Não. A sua oferta é um insulto.

- A minha oferta é uma dádiva dos céus. O senhor não tem bens e tem um passivo que vai acima dos cem mil dólares. Fiz as minhas investigações. Olhe, eu vou fazer uma coisa. Vou até aos seiscentos mil. É a minha oferta final.

- Nunca o perdoaria a mim próprio. Se conseguisse ir até aos setecentos.

Terry Hill pôs-se de pé.

- Adeus; Sr. Seinfild. Hei-de arranjar outra firma.

E encaminhou-se para a porta.

- Espere um momento - disse Seinfeld. - Não nos precipitemos. A verdade é que a minha mulher tem andado atrás de mim     

para eu me reformar. Talvez seja uma boa altura.

Terry iill aproximou-se da secretária e tirou um contrato da algibeira.

- Tenho aqui um cheque de seiscentos mil dólares. Assine onde está marcado com um X.

Lara mandou chamar Keller.

- Acabãmos de comprar a Camelot Press.

- Óptimo. Que é que quer fazer com ela?

- Em primeiro lugar destrua o livro de Gertrude Meek. Há muitas maneiras de ir empatando o assunto. Se ela nos processar para recuperar os direitos, podemos fazê-la andar em tribunal durante anos.

- Quer liquidar a empresa?

- Claro que não. Arranje alguém para a dirigir: Conservàmo-la para reduzir impóstos.

Quando Keller voltou ao seu gabinete, disse para a secretária:

- Quero ditar-lhe uma carta. Jack iéllmán, Hellmán Reálty. Caro Jack; discuti a sua oferta com Miss Cameron e achamos que não seria prudente entrarmos nesse negócio no momento actual. No entanto, queremos que saiba que estaríamos interessados em futuros.

A secretária parara de escrever.

Keller olhou para ela.

- Já escreveu?

Ela olhava-o fixamente.

- Sr. Keller?.

- Sim.

- O senhór ditou-me essa carta ontem.

Keller engoliu em seco.

- O quê?

- Já foi para o correio.

Howard Keller tentou sorrir.

- Acho que é o efeito da sobrecarga.

Às quatro da tarde Keller estava a ser examinado pelo Dr. Seymour Bennett.

- O senhor parece estar em excelente forma - disse o Dr. Bennett. - Fisicamente, não tem qualquer problema.

- Então e estes lapsos de memória?

- Há quanto tempo não faz umas férias, Howard? Keller tentoú lembrar-se.

- Acho que já lá vão uns anos - disse. - Tenho andado muito ocupado.

O Dr. Bennett sorriu.

- Aí tem. É uma questão de sobrecarga - Outra vez essa palavra. - Isto é mais comum do que você pensa. Vá para qualquer lado onde possa descansar uma ou duas semanas. Esqueça os negócios. Quando voltar, estará como novo.

Keller pôs-se de pé, aliviado.

Keller foi procurar Lara no gabinete dela.

- Pode dispensar-me durante uma semana?

- É praticamente o mesmo que dispensar o meu braço direito. Qual era a sua ideia?

- O médico acha que eu preciso de umas pequenas férias, Lara. Para falar verdade, tenho tido alguns problemas de memória.

Ela observava-o com ar preocupado.

- É alguma coisa de grave?

- Não, não propriamente. Só que é aborrecido. Pensei ir passar uns dias no Havai.

- Leve o jacto.

- Não, não. Você precisa dele. Eu vou num avião comercial.

- A empresa paga-lhe todas as despesas.

- Obrigado. Eu entro em contacto consigo todos.

- Não, nada disso. Quero que esqueça aempresa. Tome conta de si. Não quero que lhe aconteça nada de mal. - Espero que ele esteja bem, pensou Lara. Ele tem de estar bem.

Philip telefonou no dia seguinte. Quando Marian Bell disse: O Sr. Adler está a ligar de Taipei, Lara agarrou precipitadamente no auscultador.

- Philip.

- Olá, querida. Houve uma greve dos telefones. Há horas que estou a tentar falar contigo. Como é que te sentes?

Só.

- Optimamente. Como é que vai a tournée?

- O costume: Sinto a tua falta.

Ao fundo, Lara ouvia música é vozes.

- Onde é que estás?

- Fizeram aqui uma festazinha para mim. Sabes como é. Lara ouviu um riso de mulher.

- Sim, eu sei como é.

- Chego na quarta-feira.

- Philip?

- Sim?

- Nada, querido. Vem depressa.

- Vou com certeza. Adeus.

Ela pousou o telefone. Que é que ele iria fazer depois da festa? Quem era a mulher? Encheu-se de um sentimento de ciúme de tal maneira forte que quase a sufocava. Nunca sentira ciúmes de ninguém em toda a sua vida.

É tudo tão perfeito", pensou Lara. Não quero perdê-lo. Não posso perdê-lo.

Ficou acordada a pensar em Philip e no que ele estaria a fazer.

Howard Keller estava estendido em Kona Beach, num pequeno hotel na grande ilha de Havai. O tempo tinha estado ideal. Nadara todos os dias. Tinha-se bronzeado, jogado golfe e recebera massagens diárias. Estava perfeitamente descontraído e nunca se sentira melhor. O Dr. Bennett tinha razão, pensou. Sobrecarga. Vou ter de ter um bocado de calma quando voltar. A verdade era que os episódios de perda de memória o tinham assustado mais do que estava disposto a admitir.

Finalmente chegou a altura de regressar a Nova Iorque. Tomou o voo da meia-noite e chegou a Manhattan às quatro da tarde. Foi directamente para o escritório. A secretária dele estava lá, sorrindo.

- Bem-vindo, Sr. Keller. Está com óptimo aspecto.

- Obrigado. - E ficou ali parado, com o rosto branco como a cal. Não conseguia lembrar-se do nome dela.

 

Philip chegou na quarta-feira à tarde e Lara levou a limusina ao aeroporto para ir esperá-lo. Philip saiu do avião e a imagem de Lo chinvar sugiu imediatamente no espírito de Lara.

Meu Deus, como ele é belo! E correu para os braços dele.

- Senti muito a tua falta - disse, abraçando-o.

- Também eu senti a tua, minha querida.

- Muito?

Ele ergueu o polegar e o indicador, separando-os apenas um centímetro.

- Assim.

- Malvado - disse Lara. - Onde está a tua bagagem?

- Vem aí.

Uma hora depois, estavam no apartamento. Marian Bell abriu-lhes a porta.

- Bem-vindo, Sr. Adler.

- Obrigado, Marian. - Olhou em volta. - Sinto-me como se tivesse estado um ano fora.

- Dois anos - disse Lara. Ia acrescentar Não voltes a deixar-me, mas mordeu o lábio.

- Quer que faça alguma coisa, Sr. á Adler? - perguntou Marian.

- Não. Estamos óptimos. Pode ir. De manhã hei-de ditar-lhe umas cartas. Hoje não vou ao escritório.

- Está bem. Até amanhã. - Marian saiu.

- Muito boa rapariga - disse Philip.

- É verdade. - Lara deslizou para os braços de Philip. - Agora móstra-me até onde sentiste a minha falta.

Lara manteve-se afastada do escritório durante os três dias seguintes. Queria estar com Philip, falar com ele, tocar-lhe, assegurar-se de que ele era real. Tomaram o pequeno-almoço logo de manhã e, enquanto Lara ditava algumas cartas a Marian, Philip sentou-se ao piano para praticar.

No terceiro dia, ao almoço, Lara falou a Philip da inauguração do casino.

- Como eu gostava que tivesses podido ir, querido. Foi fantástico.

- Eu também tenho pena de não ter lá estado.

Está aí em qualquer lado a tocar piano.

- Bom, vais ter a tua oportunidade para o mês que vem. O presidente da Câmara vai dar-me as chaves da cidade.

Philip disse, num tom infeliz:

- Minha querida, acho que também vou perder isso. Lara ficou petrificada.

- Que é que estás a dizer?

- Ellerbee reservou-me uma nova tournée. Parto para a Alemanha daqui a três semanas.

- Não podes! - disse Lara.

- Os contratos já estão assinados. Não posso fazer nada.

- Acabaste de chegar. Como podes ir embora tão depressa?

- É uma tournée muito importante, minha querida.

- E o nosso casamento não é importante?

- Lara.

- Mas tu não precisas de ir - disse Lara, zangada. - Eu quero um marido, não um part-time.

Marian Bell entrou na sala trazendo algumas cartas.

- Peço desculpa. Não queria interromper, mas tenho estas cartas prontas para assinar.

- Obrigada - disse Lara secamente. - Quando precisar de si, chamo-a.

- Sim, Miss Cameron.

Ficaram a ver Marian retirar-se para o seu gabinete.

- Eu sei que tens de dar concertos - disse Lara -, mas não precisas de os dar tão seguidos. Não és propriamente um caixeiro viajante.

- Não, realmente não sou. - O tom dele era glacial.

- Por que é que não ficas aqui para a cerimónia e depois fazes a tua tournée?

- Lara, eu sei que isso é importante para ti, mas tens de compreender que as minhas tournées são importantes para mim. Sinto-me muito orgulhoso de ti e de tudo o que estás a fazer, mas também quero que te sintas orgulhosa de mim.

- E sinto - retorquiu Lara. - Perdoa-me, Philip, mas eu.

Fazia um enorme esforço para não chorar.

- Eu sei, minha querida. - Abraçou-a. - Havemos de arranjar maneira. Quando eu voltar vamos fazer umas grandes férias juntos.

Fazer férias é impossível, pensou Lara. Há demasiados projectos em curso.

- Onde vais desta vez, Philip?

- Vou estar na Alemanha, Noruega, Dinamarca, Inglaterra e depois volto.

Lara respirou fundo.

- Estou a ver.

- Gostava muito que pudesses vir comigo, Lara. Sinto-me muito só por lá sem ti.

Ela pensou na mulher que ria.

- A sério? - Fez um esforço para sacudir aqueles pensamentos e conseguiu mesmo sorrir.

- Sabes uma coisa? Por que é que não levas ojacto? É mais confortável para ti.

- Tens a certeza de que.

- Absoluta. Não me vai fazer falta até tu voltares.

- Não há ninguém no mundo igual a ti - disse Philip. Lara deixou correr um dedo devagarinho ao longo da face dele.

- Não te esqueças disso.

A tournée de Philip foi um enorme sucesso.

Em Berlim o público mostrou-se entusiasmadíssimo e as críticas foram delirantes.

Depois dos concertos as salas dos artistas enchiam-se sempre de fãs ávidos, na sua maioria mulheres:

- Viajei quinhentos quilómetros para o ouvir tocar.

- Tenho um pequeno castelo, não muito longe daqui, estava a pensar.

- Preparei uma ceia só para nós dois.

Algumas eram ricas e bonitas e a maior parte muito disponíveis. Mas Philip estava apaixonado. Telefonou a Lara depois do concerto na Dinamarca.

- Sinto muito a tua falta.

- Também eu, Philip. Como é que foi o concerto?

- Foi bom, ninguém saiu enquanto eu estava a tocar. Lara riu-se.

- Isso é bom sinal. Olha, querido, eu estou no meio de uma reunião. Daqui a uma hora telefono-te para o hotel.

Philip disse:

- Eu não vou direito para o hotel, Lara. O director do teatro organizou um jantar para mim e.

-Ah sim? E ele não tem uma filha bonita? - Lamentou a pergunta logo que a fez.

- O quê?

- Nada. Tenho de desligar. Falamos mais tarde.

Desligou e voltou-se para os homens reunidos no seu gabinete. Keller tinha os olhos postos nela.

- Está tudo bem?

- Óptimo - disse em tom ligeiro. Sentiu dificuldade em se concentrar na reunião. Não parava de imaginar Philip no meio da festa e todas as mulheres bonitas a darem-lhe as chaves dos seus quartos de hotel. Estava consumida de ciúme e odiava-se a si própria por isso.

A cerimónia em que o presidente da Câmara homenageou Lara foi breve e formal. A imprensa esteve presente em força.

- Poderíamos tirar-lhe uma fotografia ao lado do seu marido? E Lara foi obrigada a dizer:

- Ele gostaria tanto de ter podido vir.

Paul Martin estava presente.

- Ele foi viajar outra vez, ein?

- Ele gostava mesmo de ter podido vir, Paul.

- Tretas! Isto é uma grande honra para ti. Ele devia estar ao teu lado. Que espécie de marido é esse? Alguém devia ter uma conversa com ele.

Nessa noite, Lara ficou estendida na cama sem conseguir dormir. Philip estava a sessenta mil quilómetros dali. A conversa com Paul Martin não lhe saía da ideia. Que espécie de marido é esse? Alguém devia ter uma conversa com ele!

Quando Philip voltou da Europa parecia feliz por estar novamente em casa. Trouxe a Lara uma carrada de presentes. Uma graciosa figurinha de porcelana da Dinamarca, bonecas graciosíssimas da Alemanha, blusas de seda e uma bolsa em ouro de Inglaterra. Dentro da bolsa havia uma pulseira de diamantes.

- É linda - disse Lara. - Obrigada, querido.

Na manhã seguinte, Lara disse para Marian Bell.

- Vou ficar todo o dia a trabalhar em casa.

Lara sentou-se no escritório a ditar a Marian enquanto ouvia os sons de Philip ao piano, na sala. A nossa vida assim é tão perfeita, pensou Lara. Por que é que Philip há-de querer estragá-la?

William Ellerbee telefonou a Philip.

- Parabéns - disse. - Já sei que a tournée foi maravilhosa.

- É verdade. O público europeu é magnífico.

- Recebi uma chamada da direcção do Carnegie Hall. Têm uma oportunidade inesperada de sexta a oito dias no dia 17, e gostariam de o reservar para um recital. Está interessado?

- Muito.

- Óptimo. Vou tratar de tudo. A propósito - disse Ellerbee -, está a pensar em reduzir o número dos seus concertos?

Philip ficou estupefacto.

- Reduzir? Não. Porquê?

- Tive uma conversa com Lara e ela deu a entender que você talvez quisesse limitar-se a fazer tournées dentro dos Estados Unidos. Seria melhor falar com ela e.

Philip replicou.

- Eu falo. Obrigado.

Philip pousou o auscultador e dirigiu-se para o escritório de Lara. Esta estava a ditar a Marian.

- Dá-nos licença por um bocadinho? - disse Philip. Marian sorriu.

- Claro. - E saiu da sala. Philip voltou-se para Lara.

- Acabei de receber uma chamada de William Ellerbee. Falaste com ele sobre uma possível diminuição das minhas tournées ao estrangeiro?

- Posso ter mencionado qualquer coisa nesse sentido, Philip. Pensei que seria melhor para ambos se.

- Por favor, não voltes a fazer isso - disse Philip. - Sabes quanto te amo. Para além da nossa vida em comum, eu tenho a minha carreira e tu tens a tua. Vamos estabelecer uma regra. Eu não interfiro na tua carreira e tu não interferes na minha. Está certo?

- Claro que está - disse Lara. - Desculpa-me, Philip. É só porque eu sinto tanto a tua falta quando estás longe. - Deslizou para os braços dele. - Perdoas-me?

- Está perdoado e esquecido.

Howard Keller foi ao apartamento levar a Lara alguns contratos para assinar.

- Como é que vai tudo?

- Optimamente - replicou Lara.

- O menestrel errante está em casa?

- Está.

- Portanto de momento a música é a sua vida?

- O músico é que é a minha vida. Não faz ideia como ele é maravilhoso, Howard.

- Quando é que vai ao escritório? Precisamos de si lá.

- Daqui a poucos dias.

Keller fez que sim com a cabeça.

- Okay. Puseram-se a examinar os papéis que ele tinha levado.

Na manhã seguinte, Terry Hill telefonou.

- Lara, acabo de receber uma chamada da Inspecção Geral de Jogos de Reno - disse o advogado. - Vai haver uma auditoria à sua licença de jogo.

- Porquê? - perguntou Lara.

- Tem havido alegações de que o concurso foi viciado. Querem-na lá para testemunhar no dia 17.

- Até que ponto é que isto é grave? - perguntou Lara. O advogado hesitou.

- Tem conhecimento de alguma irregularidade no concurso?

- Não, claro que não.

- Então não há razão para preocupações. Eu vou consigo a Reno.

- Que é que acontece se eu não for?

- Eles intimam-na. Causaria melhor impressão se fosse agora.

- Está bem.

Lara telefonou para o número particular de Paul Martin no escritório.

Ele atendeu imediatamente.

- Lara?

- Sim, Paul.

- Há muito tempo que não usavas este número.

- Eu sei. Estou a ligar por causa de Reno.

- Já ouvi falar.

- O problema é grave?

Ele riu-se.

- Não. Só que os que perderam estão furiosos por tu os teres derrotado.

- Tens a certeza de que não há problema, Paul? - Hesitou. Nós discutimos as outras propostas.

- Podes acreditar em mim. Isso acontece constantemente. De

qualquer forma eles não têm maneira de provar nada. Não te preocupes.

Está bem. Não me preocupo.

Pousou o auscultador e deixou-se ficar, preocupada.

Ao almoço Philip disse:

- A propósito, ofereceram-me um concerto no Carnegie Hall. Aceitei.

- Óptimo. - Lara sorriu. - Vou comprar um vestido novo. Quando é?

- No dia 17.

O sorriso de Lara desapareceu.

- Oh.

- Que é?

- Acho que não vou poder estar presente, querido. Tenho de ir a Reno. Tenho muita pena.

Philip pôs as mãos sobre as dela.

- Os nossos horários parece que andam desfasados. Bom, não te preocupes. Há-de haver muitos mais recitais.

Lara estava no seu gabinete no Cameron Center. Howard Keller tinha-lhe ligado para casa naquela manhã.

- Acho que será melhor vir até cá - dissera. - Temos aqui uns problemas.

- Estou aí dentro de uma hora.

Encontrou-os no meio de uma reunião.

- Foram-se alguns acordos por água abaixo - disse Keller. - A companhia de seguros que ia para o prédio de Houston faliu. E eram eles os nossos únicos inquilinos.

- Arranjamos outro - disse Lara.

- Não vai ser assim tão simples. A nova lei sobre a reforma dos impostos está a afectar-nos. É o diabo, está a afectar toda a gente. O congresso acabou com as facilidades para as empresas e eliminou a maior parte das deduções. Acho que estamos a caminhar para uma recessão a sério. As instituições de crédito e poupança com quem trabalhávamos estão com dificuldades. A Drexel Burnham Lambert pode mesmo acabar por fechar as portas. As obrigações de segunda não dão nada. Estamos a ter problemas com uma meia dúzia de obras. Duas estão apenas em meio. Sem financiamentos, isso vai levar-nos tudo.

Lara ficou sentada, a pensar.

- Nós aguentamo-nos. Vendam todas as propriedades que temos para fazer os pagamentos das hipotecas.

- O lado bom da questão é que temos um fluxo de liquidez vindo de Reno que nos dá perto de cinquenta milhões por ano.

Lara não disse nada.

Na sexta-feira 17 Lara seguiu para Reno. Philip acompanhou- a ao aeroporto. Terry Hill aguardava-a no avião.   

- Quando é que voltas? - perguntou Philip.

- Provavelmente amanhã. Isto não deve demorar.

- Vou sentir a tua falta - disse Philip.

- Também eu, querido.

Philip ficou a ver o avião descolar. Vou sentir falta dela, pensou Philip. É a mulher mais fantástica do mundo.        

Nos escritórios da Inspecção Geral de Jogos de Nevada, Lara encontrou-se perante o mesmo grupo de homens que conhecera quando fizera o pedido de licença para o casino. No entanto, desta vez eles não se mostraram tão simpáticos.

Lara teve de prestar juramento e um escrivão do tribunal tomou nota do testemunho dela.

O presidente disse:

- Miss Cameron, foram feitas alegações muito desagradáveis quanto à licença do seu casino.

- Que espécie de alegações? - perguntou Terry Hill.

- Já lá chegaremos, na devida altura. - O presidente voltou as atenções novamente para Lara. - Tanto quanto sabemos esta foi a sua primeira experiência na aquisição de um casino.

- É verdade. Disse-lhes isso da primeira vez.

- Como é que chegou aos valores que pôs na sua proposta? O que eu quero dizer é como foi que chegou exactamente àquele número? Terry Hill interrompeu.

- Gostaria de conhecer as razões da pergunta.

- Dentro de momentos. Quer dar à sua cliente a oportunidade de responder à pergunta?

Terry Hill olhou para Lara e fez-lhe um sinal de assentimento com a cabeça.

Lara disse:     

- Pedi aos meus serviços de contabilidade que me fizessem um cálculo de quanto nos podíamos arriscar a oferecer, depois, juntámos-lhe uma pequena margem de lucro e essa foi a minha proposta. O presidente estudou o papel que tinha diante dele.

- A sua proposta era superior em cinco milhões de dólares à segunda mais alta.

- Ah, sim?

- Não tinha conhecimento disso quando fez a proposta?

- Não. Claro que não.

- Miss Cameron, a senhora conhece Paul Martin?

Terry Hill interrompeu.

- Não vejo a relevância deste tipo de interrogatório. - Já lá vamos. Entretanto gostaria que Miss Cameron respondesse à pergunta.

- Não ponho qualquer objecção - disse Lara. - Sim. Conheço Paul Martin.

- Alguma vez teve ligações de negócios com ele? Lara hesitou.

- Não. É apenas um amigo.

- Miss Cameron, é do seu conhecimento que Paul Martin tem fama de estar envolvido com a Mafia e.

- Objecção. Trata-se de rumores e isso não tem lugar aqui.

- Muito bem, Sr. Hill. Retiro a pergunta. Miss Cameron, quando foi a última vez que viu ou falou com Paul Martin?

Lara hesitou.

- Não tenho bem a certeza. Para ser franca, desde que me casei tenho-o visto muito pouco. Encontramo-nos ocasionalmente em

festas e mais nada.

- Mas não era hábito seu falar-lhe regularmente ao telefone?

- Depois que me casei, não.

- Alguma vez discutiu o negócio do casino com Paul Martin? Lara olhou para Terry Hill. Ele fez-lhe que sim com a cabeça.

- Sim, acho que depois de ter ganho o concurso ele me telefonou a dar-me os parabéns. E o mesmo quando eu obtive a licença para abrir o casino.

- E não falou com ele em nenhuma outra ocasião?

- Não.

- Recordo-lhe que está sob juramento, Miss Cameron.

- Sim.

- Sabe qual é a penalidade para casos de perjúrio?

- Sim.

Ele brandiu uma folha de papel.

- Tenho aqui uma lista de quinze telefonemas entre a senhora e Paul Martin, feitos durante o período em que estavam a ser apresentadas as propostas seladas para o casino.

 

A maior parte dos solistas são afectados pelo imenso espaço de dois mil e oitocentos lugares que é Carnegie Hall. Não há muitos músicos que consigam encher a prestigiada sala, mas na sexta-feira à noite ela estava completa. Philip Adler entrou no vasto palco por entre os aplausos clamorosos da assistência. Sentou-se ao piano, fez uma breve pausa e começou a tocar. O programa era constituído por sonatas de Beethoven. Ao longo dos anos, tinha-se disciplinado a concentrar-se apenas na música. Mas naquela noite o pensamento de Philip desviava-se para Lara e para os seus problemas. Por uma fracção de segundo os dedos tornaram-se-lhe inseguros e ele cobriu-se de um suor gelado. Tudo aconteceu tão depressa que o público não deu por nada. Houve aplausos sonoros no fim da primeira parte do recital.    

Durante o intervalo, Philip foi para o camarim.     

O director disse- lhe:     

- Magnífico, Philip. Teve-os perfeitamente hipnotizados. Quer

que lhe traga alguma coisa?

- Não, obrigado. - Philip fechou a porta. Desejou que o concerto tivesse terminado. Estava profundamente perturbado com a situação entre ele e Lara. Amava-a profundamente e sabia que ela o amava, mas pareciam ter chegado a um impasse. Tinha havido uma grande tensão entre ambos antes da partida de Lara para Reno. Tenho de fazer qualquer coisa, pensou Philip, mas o quê? Como é que podemos arranjar um equilíbrio? Estava ainda a pensar naquilo quando bateram à porta e o director de cena disse:       

- Cinco minutos, Sr. Adler.    

- Obrigado.     

A segunda parte do programa consistia na sonata Hamozerklavier.  

Era uma peça comovente, muito emotiva e quando as últimas notas ecoaram pela enorme sala o público, frenético, aplaudiu de pé.        

Philip ficou no palco, agradecendo com vénias profundas, mas o seu espírito estava longe.

Tenho de ir para casa e ter uma conversa com Lara. Depois lembrou-se de que ela não estava. Temos de resolver o assunto agora", pensou Philip. Não podemos continuar assim.

Os aplausos prosseguiam. O público gritava bravo e bis. Normalmente, Philip teria tocado mais uma selecção, mas naquela noite estava demasiado perturbado. Voltou ao camarim e vestiu o fato de sair. Lá fora, ouvia-se o ribombar distante do trovão. Os jornais tinham vaticinado chuva, mas nem isso impedira a multidão de comparecer. A sala dos artistas estava cheia de admiradores que aguardavam para o felicitar. Era sempre excitante sentir e ouvir a aprovação dos fãs, mas naquela noite não estava com disposição para isso. Deixou-se ficar no camarim até ter a certeza de que se tinham ido todos embora. Quando finalmente resolveu sair, era quase meia-noite. Caminhou pelos corredores vazios e saiu pela porta dos artistas. A limusina não estava lá. Apanho um táxi, decidiu.

Saiu para a chuva torrencial. Soprava um vento frio e a Rua Cinquenta e Sete estava escura. Quando Philip avançou para a Sexta Avenida, um homem grande de gabardina saiu da sombra.

- Desculpe - disse -, como é que se vai para Carnegie Hall? Philip pensou na velha piada e sentiu-se tentado a responder        praticando, mas em vez disso apontou para o edifício que se erguia atrás dele.

- É aqui mesmo.

Quando Philip se voltou, o homem empurrou-o com força de encontro à parede. Na mão tinha uma navalha de aspecto mortífero. - Dê-me a carteira.

O coração de Philip batia com força. Olhou em volta à procura de auxílio. A rua chuvosa estava deserta.

- Está bem - disse. - Não se excite. Eu dou-lhe a carteira. Tinha a navalha encostada à garganta.

- Oiça, não é preciso.

- Cale-se! Dê cá isso e pronto.

Philip levou a mão ao bolso e tirou de lá a carteira. O homem arrancou-lha com a mão que tinha livre e meteu-a na algibeira. Tinha os olhos postos no relógio de Philip. Estendeu o braço e arrancou-lho. Enquanto tirava o relógio, agarrou a mão esquerda de Philip e fez-lhe um traço à altura do pulso com a faca afiadíssima, abrindo- lhe o braço até ao osso. Philip soltou um grito de dor. O sangue começou a correr abundantemente. O homem fugiu.

Philip ficou um momento encostado à parede, em estado de choque, a ver o sangue misturar-se com a chuva e pingar para o chão.

Depois desmaiou.

Lara recebeu a notícia acerca de Philip em Reno.

Marian Bell falou-lhe ao telefone, quase histérica.

- Ele está muito magoado? - perguntou Lara.

- Ainda não temos pormenores. Está no Roosevelt Hospital, nos serviços de urgência.

- Vou imediatamente para aí.

Quando Lara chegou ao hospital, seis horas mais tarde, Howard Keller estava à espera dela. Parecia abalado.

- Que foi que aconteceu? - perguntou Lara.

- Ao que parece Philip foi assaltado quando saiu do Carnegie Hall. Encontraram-no caído na rua, inconsciente.        

- E está mal?  

- Tem o pulso cortado. Está sob o efeito de sedativos, mas está consciente.        

Entraram no quarto. Philip estava estendido na cama, a receber soro.      

- Philip. Philip. - Era a voz de Lara que o chamava de muito longe. Abriu os olhos. Lara e Howard Keller estavam ali. Parecia que havia dois de cada um. Tinha a boca seca e sentia-se como que embriagado.

- Que é que aconteceu? - murmurou Philip.

- Ficaste magoado - disse Lara. - Mas tudo vai ficar bem.

Philip baixou os olhos e viu o pulso ligado. A memória voltou-lhe.

- Fui. Está muito mal?

- Não sei, meu querido - replicou Lara. - Mas tenho a certeza de que vais ficar bom. O médico já vem aí.

Philip começou novamente a adormecer.

- Eu disse-lhe que levasse o que quisesse. Ele não devia ter-me magoado no pulso - murmurou. - Não devia ter-me magoado no pulso.

Duas horas depois, o Dr. Dennis Stanton entrou no quarto de Philip e logo que este viu a expressão no rosto do médico percebeu o que ele lhe ia dizer.

Philip respirou fundo.

- Diga-me tudo.

O Dr. Stanton suspirou.

- Receio bem não ter boas notícias para lhe dar, Sr. Adler.

- É muito mau?

- Os tendões flectores foram cortados, por isso perdeu os movimentos da mão, que vai ficar com uma dormência permanente. Além disso, os nervos mediano e ulnar foram atingidos. - Exemplificou com a própria mão. - O nervo mediano afecta o polegar e os primeiros três dedos. O lunar tem que ver com todos os dedos.

Philip fechou os olhos com força para parar a onda de desespero que se apoderava dele. Passados momentos, falou:

- Quer dizer que eu. que eu nunca mais vou poder usar a mão esquerda?

- Precisamente. Mas posso dizer-lhe que tem muita sorte em estar vivo. Quem lhe fez isto, cortou a artéria. É espantoso que não se tenha esvaído em sangue. Foram precisos sessenta pontos para lhe coser o pulso.

Philip disse, desesperado:

- Meu Deus, não há nada que possam fazer?

- Sim. Podíamos fazer-lhe uma implantação na mão esquerda para recuperar alguns movimentos, mas seriam extremamente limitados.

Mais valia que me tivesse morto, pensou Philip, desesperado.

- À medida que a mão for sarando, vai ter muitas dores. Vamos dar-lhe alguns medicamentos para o ajudar a suportá-las, mas posso garantir-lhe que com o tempo vão desaparecer.

Mas não a verdadeira dor, pensou Philip. Não a verdadeira dor. Estava a viver um pesadelo. E não tinha como escapar a ele.

Um detective foi procurar Philip no hospital. Ficou de pé ao lado da cama. Era dos da velha guarda, na casa dos 60 e cansado, com olhos de quem já vira tudo duas vezes.

- Tenente Mancini. Lamento muito o que lhe sucedeu, Sr. Adler

- disse. - É uma pena que não lhe tenham quebrado antes uma perna. Quero dizer: já que tinha de acontecer.

- Eu percebo o que quer dizer - atalhou Philip com secura.        

Howard Keller entrou no quarto.

- Estou à procura de Lara. - Viu o desconhecido. - Ah, desculpe.      

- Ela está por aí - disse Philip. - Este é o tenente Mancini.

Howard Keller.

Mancini olhava-o fixamente.

- A sua cara parece-me familiar. Não nos conhecemos já?

- Não creio.    

O rosto de Mancini iluminou-se.    

- Keller! Claro, o senhor jogou basebol em Chicago.

- É verdade. Mas como é que...

- Fui angariador dos Cubs durante um Verão. Ainda me lembro 

dos seus lançamentos. Podia ter feito uma grande carreira.

- É verdade. Bom, se me dão licença... - Olhou para Philip. Fico lá fora à espera de Lara. - Saiu.

Mancini voltou-se para Philip.

- Viu o homem que o atacou?

- Era do tipo caucasiano. Grande. Perto de um metro e noventa.

À volta dos 50 anos.      

- Conseguiria identificá-lo se o voltasse a ver?    

- Sim. - Era um rosto que nunca mais iria esquecer.    

- Sr. Adler, eu podia pedir-lhe que passasse em revista uma     

série de estrelas do roubo, mas para falar com franqueza acho que seria uma perda de tempo. Isto não foi propriamente um crime de alta escola. Há centenas de assaltantes espalhados pela cidade. A menos que alguém os apanhe com a boca na botija, em geral conseguem safar-se. - Puxou do bloco de apontamentos. - Que foi que lhe tiraram?

- A carteira e o relógio de pulso.

- Que espécie de relógio?     

- Um Piaget.   

- Tinha alguma coisa de especial? Uma gravação, por exemplo?

Era o relógio que Lara lhe tinha dado.

- Sim. Na parte de trás estava escrito Para o Philip com Amor da Lara,

Mancini anotou tudo.

- Sr. Adler, é uma pergunta que eu tenho de lhe fazer. Já alguma vez na sua vida tinha visto esse homem?

Philip olhou-o surpreendido.

- Se já o tinha visto antes? Não. Porquê?

- Era só uma ideia. - Guardou o bloco. - Bom, vamos a ver o que conseguimos fazer. O senhor é um homem de sorte, Sr. Adler.

- Ah sim? - A voz de Philip estava carregada de amargura.

- É. Temos milhares de assaltos ao longo do ano nesta cidade e não podemos dar-nos ao luxo de lhes dedicar muito tempo, mas acontece que o nosso capitão é um grande admirador seu. Tem todos os seus discos. Ele vai fazer tudo o que puder para apanhar o FP que lhe fez isto. Vamos enviar uma descrição do relógio a todas as casas de penhores.

- Se o apanharem acha que ele me pode dar outra vez a minha mão? - perguntou Philip com amargura.

- O quê?

- Nada.

- Há-de receber notícias nossas. Um bom dia para si.

Lara e Keller estavam no corredor à espera do detective.

- Disse que queria falar comigo? - perguntou Lara.

- Sim. Gostava de lhe fazer algumas perguntas - replicou o tenente Mancini. - Sr. á Adler, sabe se o seu marido tem inimigos?

Lara franziu a testa.

- Inimigos? Não. Porquê?

- Ninguém que pudesse ter ciúmes dele? Outro músico, talvez? Alguém que quisesse fazer-lhe mal?

- Que é que está a querer dizer? Foi um simples assalto de rua, não foi?

- Para ser absolutamente franco, isto não condiz com o esquema habitual. O homem cortou o pulso do seu marido depois de lhe ter tirado a carteira e o relógio.

- Não vejo a diferença.

- Foi uma coisa sem sentido, a menos que tenha sido deliberado. O seu marido não ofereceu resistência. Bom, claro que um miúdo drogado podia fazer uma coisa dessas, mas. - Encolheu os ombros.

- Eu depois digo qualquer coisa.

Ficaram a vê-lo afastar-se.

- Céus! - disse Keller. - Ele acha que foi planeado. Lara empalideceu.

Keller olhou para ela e disse lentamente:

- Meu Deus, um dos capangas do Paul Martin! Mas por que faria ele uma coisa destas?

Lara sentia dificuldade em falar.

- Ele. ele pode ter pensado que estava a fazer isto por mim. O

Philip tem. tem andado tanto por fora e o Paul dizia sempre que não estava certo, que alguém tinha de ter uma conversa com ele. Oh, Howard! - escondeu a cabeça no ombro dele, tentando afastar as lágrimas.

- O filho da puta! Eu preveni-a que não se aproximasse dele. Lara respirou fundo.

- O Philip vai ficar bom. Tem de ficar.

Três dias depois, Lara levou Philip para casa. Ele estava pálido e abatido. Marian Bell aguardava-os à porta. Tinha ido ao hospital todos os dias ver Philip e levar-lhe todos os recados. Tinha havido um grande movimento de simpatia de todas as partes incluindo - postais, cartas e chamadas telefónicas de admiradores preocupados. Os jornais tinham trabalhado a história, condenando a violência nas ruas de Nova Iorque.

Lara estava na biblioteca quando o telefone tocou.

- É para si, Sr. á Adler - disse Marian Bell. - O Sr. Paul Martin.

- Eu. eu não posso falar com ele - disse Lara. E ficou ali parada, a lutar para não começar a tremer dos pés à cabeça.

Da noite para o dia as suas vidas modificaram-se.

Lara disse para Keller.

- A partir de agora vou trabalhar em casa. Philip precisa de mim.

- Claro. Eu compreendo.

As chamadas e os cartões a desejar as melhoras não paravam de chegar e Marian Bell tornou-se uma bênção dos céus. Não era intrometida e fazia por nunca atrapalhar.

- Não se preocupe com eles, Sr. á Adler. Eu encarrego-me disso, se quiser.

- Obrigada, Marian.

William Ellerbee ligou várias vezes, mas Philip recusou- se a atendê-lo.

- Não quero falar com ninguém - disse para Lara. O Dr. Stanton tinha razão quanto às dores. Eram dilacerantes. Philip tentava evitar os analgésicos até não poder suportar mais.

Lara estava sempre a seu lado.

- Vais ter os melhores médicos do mundo, meu querido. Tem de haver alguém que consiga restabelecer a tua mão. Ouvi falar de um médico na Suíça.

Philip abanava a cabeça.

- Não vale a pena. - Olhava para a mão ligada. - Sou um aleijado.

- Não fales assim - dizia Lara ferozmente. - Há milhares de coisas que podes continuar a fazer. Eu culpo-me pelo que te aconteceu. Se eu não tivesse ido para Reno naquele dia, se tivesse estado contigo no concerto, isto nunca teria acontecido. Se.

Philip sorria amargamente.

- Bom, tu querias que eu ficasse mais tempo em casa. Agora não tenho outro sítio para onde ir.

Lara disse com voz rouca.

- Alguém disse É preciso ter cuidado com o que desejamos, porque podemos consegui-lo. Eu desejei que tu ficasses em casa, mas não desta forma. Não aguento ver-te sofrer.

- Não te preocupes comigo - disse Philip. - Só preciso de organizar um pouco as ideias. Aconteceu tudo tão depressa. Acho. acho que ainda não me capacitei bem do sucedido.

Howard Keller foi ao apartamento com alguns contratos.

- Olá, Philip. Como é que se sente?

- Óptimo - ripostou Philip. - Às mil maravilhas.

- Foi uma pergunta estúpida. Desculpe.

- Não dê atenção ao que eu digo - desculpou-se Philip. Ultimamente tenho andado fora de mim. - Bateu com a mão direita na cadeira. - Se ao menos os estupores me tivessem cortado a mão direita. Há meia dúzia de concertos para a mão esquerda que eu podia tocar.

E Keller lembrou-se da conversa durante a festa. Meia dúzia de compositores escreveram concertos para a mão esquerda. Há o de Demuth, Franz Schmidt, Korngold, e um concerto lindissimo de Ravel.

E Paul Martin estava lá e tinha ouvido tudo.

O Dr. Stanton foi ao apartamento ver Philip.

Cautelosamente, retirou as ligaduras, deixando à vista uma grande cicatriz bem feia.

- Consegue dobrar a mão?

Philip tentou. Impossível.

- E as dores? - perguntou o Dr. Stanton.

- É difícil, mas eu não quero tomar mais desses malditos comprimidos.

- De qualquer maneira, deixo-lhe outra receita. Pode tomá-los se precisar. Pode ter a certeza de que as dores vão desaparecer nas próximas semanas. - Levantou-se para sair. - Sinceramente, lamento muito. Acontece que sou um grande admirador seu.

- Compre os discos - disse Philip secamente.      

Marian Bell fez uma sugestão a Lara.

- Acha que ajudaria o Sr. Adler se um terapeuta lhe viesse fazer exercícios à mão?

Lara ficou a pensar.

- Podemos sempre tentar. Logo se vê o que acontece. Quando Lara fez a sugestão a Philip, ele sacudiu a cabeça.

- Não. Para quê? O médico disse.

- Os médicos também se enganam - disse Lara com firmeza. Vamos tentar tudo.

No dia seguinte, umjovem terapeuta apareceu no apartamento. Lara levou-o até junto de Philip.

- Este é o Sr. Rossman. Trabalha no Hospital de Columbia e vai tentar ajudar-te, Philip.

- Boa sorte - replicou Philip com amargura.

- Vamos lá ver essa mão, Sr. Adler.

Philip estendeu-lhe a mão. Rossman examinou-a cuidadosa mente.

- Parece que houve grandes estragos nos músculos, mas vamos ver o que se pode fazer. Consegue mexer os dedos?

Philip tentou.

- Não tem grande mobilidade, pois não? Vamos lá tentar exercitá-la.

Era incrivelmente doloroso.

Trabalharam durante meia hora e no fim Rossman disse:

- Volto amanhã.

- Não - atalhou Philip. - Não se incomode.

Lara tinha entrado na sala.

- Philip, não queres tentar?

- Já tentei - respondeu mal humorado. - Não entendes? A minha mão está morta. Nada a vai fazer reviver.

- Philip... - Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

- Desculpa - disse Philip. - Eu tenho. tenho de me habituar, é só isso.

Nessa noite Lara foi acordada pelo som do piano.

Levantou-se da cama e caminhou devagarinho até à entrada da sala.

Philip estava em roupão, sentado ao piano, a tocar ao de leve com a mão direita. Levantou os olhos quando viu Lara.

- Desculpa se te acordei. Lara aproximou-se dele.

- Meu querido.

- É uma verdadeira anedota, não achas? Casaste com um pianista e acabaste com um aleijado.

Lara abraçou-o e apertou-o de encontro a ela.

- Tu não és um aleijado. Há tantas coisas que podes fazer.

- Deixa de ser boa menina!

- Desculpa. Eu só queria dizer.

- Eu sei. Perdoa-me, eu. - Ergueu a mão mutilada. - Eu não me consigo habituar a isto.

- Vem para a cama.

- Não. Vai tu. Eu prefiro ficar aqui um bocado.

Ficou toda a noite a pé, a pensar no seu futuro e a interrogar-se amargamente Que futuro?

Lara e Philip jantavam jnntos todas as noites e depois dojantar liam ou viam televisão e depois iam dormir.

Philip dizia; desculpando-se:

- Eu sei que não estou a ser um marido à altura, Lara. Só que. só que não me apetece sexo. Podes crer que não tem nada a ver contigo.

Lara sentou-se na cama, com a voz a tremer.

- Eu não casei contigo por causa do teu corpo. Casei contigo porque estava loucamente apaixonada por ti. E continuo a estar. Mesmo que nunca mais voltemos a fazer amor, eu não me importo. A única coisa que eu quero é que me abraces e me ames.

- Eu amo-te, sim - disse Philip.

Recebiam constantemente convites parajantares e festas de caridade, mas Philip recusava-os a todos.

Não queria sair do apartamento.

- Vai tu - dizia para Lara. - É importante para o teu negócio.

- Para mim, nada é mais importante que tu. Jantamos tranquilamente em casa.

Lara encarregava-se de fazer com que o cozinheiro preparasse todos os pratos favoritos de Philip. Ele estava sem apetite. Lara arranjava maneira de ter todas as suas reuniões no apartamento.

Quando precisava de sair durante o dia, dizia a Marian:

- Tenho de sair por umas horas. Vigie o Sr. Adler.      

- Pode ficar descansada - garantia-lhe Marian.

Uma manhã Lara disse:

- Querido, não me apetece nada deixar-te, mas tenho de ir a     

Cleveland por um dia. Achas que ficas bem?      

- Claro - disse Philip. - Eu não estou incapacitado. Vai, por favor. Não te preocupes comigo.        

Marian trouxe algumas cartas a que tinha acabado de responder em nome de Philip.     

- Quer assiná-las, Sr. Adler?

Philip replicou:       

- Claro. Ainda é bom eu não ser esquerdino, não é? – Havia um tom amargo na voz dele. Olhou para Marian e acrescentou: Desculpe. Não queria ser desagradável consigo.

Marian respondeu tranquilamente.

- Eu sei, Sr. Adler. Não acha que seria uma boa ideia se saísse e fosse visitar alguns amigos?

- Os meus amigos estão todos a trabalhar - atalhou Philip. São músicos. Estão ocupados a tocar em concertos. Como é que pode ser tão estúpida?

E saiu tempestuosamente da sala.

Marian ficou parada a vê-lo ir-se embora.

Uma hora mais tarde, Philip entrou no escritório.

Marian estava a escrever à máquina.

- Marian?

Ela levantou os olhos.

- Sim, Sr. Adler?

- Perdoe-me. Eu ando fora de mim. Não foi minha intenção ser malcriado.

- Eu compreendo - disse ela calmamente.

Philip sentou-se em frente dela.

- A razão por que eu não saio é que me sinto diferente dos outros. Tenho a certeza de que toda a gente vai ficar a olhar-me para a mão. Não quero que sintam piedade de mim.

Ela olhava-o, sem dizer nada.

- Você tem sido muito amável e eu agradeço-lhe, a sério. Mas ninguém pode fazer nada. Conhece a expressão: Quanto mais alto é o voo, maior a queda?

Pois bem, eu voei muito alto, Marian, muito alto. Toda a gente vinha para me ouvir tocar. reis e rainhas e. - Faltou-lhe a voz.

- Pessoas nos quatro cantos do mundo ouviram a minha música. Dei recitais na China, e na Rússia, na Índia e na Alemanha. - Ficou meio sufocado e as lágrimas começaram a correr-lhe pela cara. - Já reparou que ultimamente choro com muita facilidade? - disse, lutando para se controlar.

Marian disse com voz suave:

-Não chore, por favor. Tudo se há-de arranjar.

- Não. Nada se vai arranjar. Nada! Não passo de um inválido.

- Não diga isso. A Sr. á Adler tem razão, sabe. Há centenas de coisas que pode fazer. Quando lhe passar a dor, vai começar a fazê-las.

Philip puxou de um lenço e limpou os olhos.

- Meu Deus, estou a tornar-me um bebé chorão.

- Se isso o faz sentir-se melhor.

Philip olhou para ela e sorriu.

- Que idade tem você?

- Vinte e seis.

- É muito sensata para a sua idade, não é?

- Não. Mas compreendo aquilo por que está a passar e dava tudo para que isso não lhe tivesse acontecido. Mas aconteceu e também sei que vai descobrir qual há-de ser a melhor maneira de o enfrentar.

- Você está a perder o seu tempo aqui - disse Philip. - Devia ter sido psiquiatra.

- Quer que lhe prepare uma bebida?

- Não, obrigado. Está interessada num jogo de gamão? - perguntou Philip.

- Gostava muito, Sr. Adler.

- Se vai ser a minha parceira de gamão, então será melhor que comece a tratar-me por Philip.

- Philip.

A partir dessa altura, jogaram gamão todos os dias.

Lara recebeu um telefonema de Terry Hill.

- Lara, receio bem ter uma notícia desagradável para si.

Lara preparou-se.

- Sim?

- A Inspecção Geral de Jogos de Nevada votou a suspensão da sua licença de jogo até conclusão das investigações. Pode estar perante uma acusação de crime.

Foi um choque.      

Pensou nas palavras de Paul Martin. Não te preocupes. Eles não podem provar nada.

- Não há nada que possamos fazer, Terry?

- De momento, não. Há que esperar. Estou a trabalhar no caso. Quando Lara deu a notícia a Keller, ele disse:   

- Meu Deus! Estamos a contar com o fluxo de liquidez do casino para pagar as hipotecas de três prédios. Vão dar-lhe de novo a licença?    

- Não faço ideia.    

Keller ficou pensativo.   

- Está bem. Vendemos o hotel de Chicago e usamos o capital para pagar a hipoteca sobre a propriedade de Houston. O negócio imobiliário está de rastos. Uma porção de bancos e instituições de crédito e poupança estão em apuros. A Drexel Burnham Lambert foi dissolvida. É o fim de uma era.      

- As coisas hão-de dar uma volta - disse Lara.    

- Então será melhor que o façam depressa. Tenho andado a receber telefonemas dos bancos por causa dos nossos empréstimos.

- Não se preocupe - disse Lara em tom confidencial. - Se dever a um banco um milhão de dólares, está nas mãos deles, se lhes dever cem milhões de dólares são eles que estão nas suas mãos. Os bancos não podem permitir que nada me aconteça.

No dia seguinte apareceu um artigo na Business Week. O título era: IMPÉRIO CAMERON ABALADO - LARA CAMERON ENFRENTA POSSÍVEL ACUSAÇÃO CRIMINAL EM RENO. CONSEGUIRÁ A BORBOLETA DE FERRO MANTER DE PÉ O SEU IMPÉRIO?

Lara bateu com o punho fechado na revista.

- Como é que eles ousam publicar uma coisa destas? Vou processá-los.

Keller disse:

- Não seria boa ideia.

Lara perguntou muito séria:

- Howard, as Torres Cameron estão quase totalmente alugadas, certo?

- Setenta por cento até este momento, e esse número vai aumentar. A Southern Insurance ficou com vinte pisos e a International Investment Banking com dez.

- Quando a construção estiver terminada, vai dar-nos o dinheiro suficiente para resolver todos os nossos problemas. Quanto nos falta para acabar?

- Seis meses.

A voz de Lara vibrou de excitação.

- Veja só o que teremos nessa altura. O maior arranha-céus do mundo! Vai ser maravilhoso.

Voltou-se para o esboço emoldurado que tinha atrás da secretária. Representava um monolito altíssimo envolto em vidro, cujas facetas reflectiam os edifícios circundantes. Nos pisos inferiores havia um passeio e um átrio com lojas caras. Em cima havia apartamentos e os escritórios de Lara.

- Vamos fazer uma grande promoção publicitária - disse Lara.

- Boa ideia. - Keller franziu a testa.

- Qual é o problema?

- Nada. Só estava a pensar no Steve Murchison. Ele estava muito interessado nesta propriedade.

- Bom, nós conseguimos levar a melhor, não foi?

- Sim - replicou Keller lentamente. - Nós conseguimos levar a melhor.

Lara mandou chamar Jerry Townsend.

- Jerry, quero fazer qualquer coisa de especial para a inauguração das Torres Cameron. Alguma ideia?

- Tenho uma grande ideia. A inauguração vai ser a 10 de Setembro?

- Sim.

- Isso não lhe lembra nada?

- Bom, é o dia dos meus anos.

- Exacto. - Um sorriso espalhou-se no rosto de Jerry Townsend.

- Por que é que não organizamos uma grande festa de aniversário para celebrar a conclusão do arranha-céus?

Lara ficou um momento pensativa.

- Gosto. É uma excelente ideia. Vamos convidar toda a gente! Faremos tanto barulho que se há-de ouvir no mundo inteiro. Jerry, quero que me faça a lista dos convidados. Duzentas pessoas. Quero que trate disso pessoalmente.

Townsend sorriu.

- Pode ficar descansada. Depois mostro-lhe a lista para ver se aprova.

Lara bateu de novo com o punho fechado em cima da revista.

- Vamos mostrar-lhes como é.

- Desculpe, Sr. á Adler - disse Marian. - Tenho o secretário da Associação Nacional de Construtores na linha três. Não respondeu ao convite deles para o jantar de sexta-feira.

- Diga-lhes que não posso ir - respondeu Lara. - Apresente-lhes as minhas desculpas.

- Muito bem, Mrs. Adler. - Marian saiu da sala.

Philip disse:

- Lara, não podes transformar-te numa eremita por minha

causa. É importante para ti que vás a essas coisas.

- Não há nada mais importante para mim que estar aqui contigo. Aquele homenzinho divertido que nos casou em Paris disse: Para o bem e para o mal. - Franziu a testa. - Pelo menospenso que foi isso que ele disse. Não falo francês.  

Philip sorriu.   

- Gostava que soubesses como te aprecio. Sinto que estou a transformar a tua vida num inferno.     

Lara aproximou-se mais.       

- Escolheste mal a palavra - disse. - Um paraíso.        

Philip estava a vestir-se. Lara ajudava-o com os botões da camisa. Philip olhou-se no espelho.

- Pareço um diabo de um hippie - comentou. - Preciso de cortar o cabelo.

- Queres que diga à Marian que te marque uma hora no teu barbeiro?

Ele sacudiu a cabeça.

- Não, Lara. Desculpa. Ainda não me sinto preparado para sair. Na manhã seguinte, o barbeiro de Philip e uma manicura apareceram no apartamento. Philip ficou surpreendido.

- Que é isto?

- Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé. Eles vão passar a vir aqui todas as semanas para tratar de ti.

- Tu és espantosa - disse Philip.

- E isto ainda não é nada - retorquiu Lara sorrindo. No dia seguinte, chegou um alfaiate com amostras de tecidos para fatos e para camisas.

- Que é que se passa? - perguntou Philip.

Lara disse:

- Tu és o único homem que eu conheço que tem seis fraques, quatro smokings e dois fatos. Acho que vai sendo tempo de arranjares um guarda roupa como deve ser.

- Para quê? - protestou Philip. - Não tenciono ir a lado nenhum.

Mas deixou que lhe tirassem as medidas para os fatos e para as camisas.

Alguns dias mais tarde apareceu um fabricante de sapatos.

- Que é que há agora? - perguntou Philip.

- Já é tempo de arranjares sapatos novos.

- Já te disse que não vou a lado nenhum.

- Eu sei, querido. Mas quando fores, já tens os sapatos prontos. Philip abraçou-a.

- Eu não te mereço.

- É o que eu estou sempre a dizer-te.

Estavam numa reunião no escritório. Howard Keller dizia:

- Vamos perder o centro comercial de Los Angeles. Os bancos resolveram reclamar os empréstimos.

- Eles não podem fazer isso.

- Estão a fazê-lo - disse Keller. - Temos um excesso de responsabilidades bancárias.

- Podemos pagar-lhes fazendo um empréstimo sobre os outros prédios.

Keller replicou pacientemente:

- Lara, você está enterrada até ao pescoço. Não tarda temos um pagamento de sessenta milhões de dólares sobre o arranha-céus.

- Eu sei isso, mas ele fica terminado daqui a quatro meses. Podemos arranjar uma prorrogação. A construção está dentro do prazo, não está?

- Sim. - Keller estudava-a, pensativo. Era uma pergunta que ela nunca teria feito um ano antes. Nesse tempo sabia exactamente em que ponto se encontravam as coisas.

- Acho que seria melhor se você passasse mais algumas horas aqui no escritório - disse Keller. - Há muitas coisas a resolver e há decisões que só você pode tomar.

Lara fez um sinal de assentimento com a cabeça.

- Está bem - afirmou com relutância. - Amanhã de manhã venho para cá.

- William Ellerbee está ao telefone - anunciou Marian.

- Diga-lhe que não posso falar com ele.

Philip ficou a vê-la aproximar-se do telefone.

- Lamento muito, Sr. Ellerbee. O Sr. Adler não pode atender

neste momento. Deseja deixar algum recado? - Ficou um momento à escuta. - Eu digo-lhe. Muito obrigada. - Pousou o auscultador e olhou para Philip. - Ele está desejoso de almoçar consigo.      

- Provavelmente quer falar das comissões que deixou de receber.

- Talvez tenha razão - disse Marian com voz branda. - Tenho

a certeza de que ele o odeia por ter sido atacado.

Philip replicou calmamente:

- Desculpe. Era isso que eu parecia estar a querer dizer?

- Era.

- Como é que você me suporta?   

Marian sorriu.

- Não é muito difícil.       

No dia seguinte, William Ellerbee voltou a telefonar. Philip não estava presente. Marian falou com Ellerbee durante alguns minutos e depois foi procurar Philip.

- Era o Sr. Ellerbee - anunciou.

- Para a próxima vez diga-lhe que pare de telefonar.

- Talvez seja melhor ser o senhor a dizer-lhe - retorquiu Marian. - Tem um almoço com ele na quinta-feira à uma hora.

- Tenho o quê?

- Ele sugeriu o Le Cirque, mas eu pensei que seria melhor um restaurante mais pequeno. - Olhou para o bloco que tinha na mão. - Ele vai ter consigo ao Fu's à uma. Eu combino com o Max para o levar lá.

Philip olhava-a, furioso.

- Marcou-me um almoço sem me consultar?

Ela replicou calmamente:

- Se eu o tivesse consultado, ter-se-ia recusado a ir. Pode despedir-me se quiser.

Ele ficou a olhá-la longamente, com ar furioso, e depois deixou transparecer um sorriso lento.

- Sabe uma coisa? Há muito tempo que não como comida chinesa.

Quando Lara chegou do escritório, Philip disse:

- Na quinta-feira vou almoçar com o Ellerbee.

- Isso é uma notícia maravilhosa, querido! Quando foi que decidiste?

- A Marian é que decidiu por mim. Pensou que me faria bem sair.

- Na verdade? - Mas tu não quiseste sair quando fui eu a sugeri-lo. - Foi muito inteligente da parte dela.

- É verdade. É uma mulher formidável.

E eu tenho sido estúpida, pensou Lara. Não devia tê-los deixado aproximar desta forma. O Philip está tão vulnerável.

Foi nesse momento que Lara compreendeu que tinha de se desembaraçar de Marian.

Quando Lara chegou a casa no dia seguinte, Philip e Marian estavam a jogar gamão na sala de jogo.

O nosso jogo, pensou Lara.

- Como é que eu posso ganhar-lhe se você está sempre a ter duplos? - dizia Philip, rindo.

Lara ficou à porta, a olhar. Há muito tempo que não ouvia Philip rir.

Marian levantou os olhos e viu-a.

- Boa tarde, Sr. á Adler.

Philip levantou-se de um salto.

- Olá, querida. - Beijou-a. - Ela está a dar cabo de mim.

Por cima do meu cadáver, pensou Lara.

- Ainda vai precisar de mim hoje, Sr. á Adler?

- Não, Marian. Pode ir. Vemo-nos amanhã de manhã.

- Obrigada. Boa noite.

- Boa noite, Marian. Ficaram a vê-la sair.

- É uma boa companhia - disse Philip.

Lara acariciou-lhe a face.

- Fico contente, meu querido.

- Como é que vão as coisas lá no escritório?

- Bem. - Não tinha qualquer intenção de sobrecarregar Philip com os seus problemas. Ia ter de voltar a Reno para comparecer de novo perante a Inspecção Geral de Jogos. Se fosse obrigada a isso havia de arranjar maneira de sobreviver sem a concessão da sala de jogo do hotel, mas as coisas tornar-se-iam bem mais fáceis se conseguisse dissuadi-los das acusações.

- Philip, receio bem ter de começar a passar mais tempo no escritório. O Howard não pode tomar todas as decisões sozinho.

- Não tem problema. Eu fico bem.

- Dentro de um ou dois dias tenho de ir a Reno - disse Lara. Por que é que não vens comigo?

Philip sacudiu a cabeça.

- Ainda não estou preparado. - Olhou para a mão esquerda paralisada. - Vou ter de me habituar a isto.

- Está bem, querido. Eu não fico lá mais de dois ou três dias. Na manhã seguinte, logo cedo, quando Marian Bell chegou para trabalhar, Lara estava à espera dela. Philip ainda dormia.

- Marian. Sabe aquela pulseira de diamantes que o Sr. Adler me deu pelos meus anos?

- Sim, Sr. á Adler?

- Quando foi a última vez que a viu?

A rapariga parou para pensar.

- Estava em cima do toucador no quarto.

- Quer dizer que a viu?

- Sim, vi. Há algum problema?              

- Receio bem que sim. A pulseira desapareceu. Marian olhava-a fixamente.

- Desapareceu? Quem é que pode ter.

- Já  interroguei o pessoal. Não sabem de nada.

- Quer que chame a polícia?

- Não é preciso. Não quero fazer nada que possa ser embaraçoso para si.

- Não entendo.

- Não? Para seu bem, acho melhor deixarmos as coisas como estão.

Marian fitava-a, chocada.

- Sabe muito bem que eu não tirei a pulseira. Sr. á Adler.

- Eu não sei nada. Mas sei que vai ter de se ir embora. - Ao mesmo tempo detestou-se a si própria pelo que estava a fazer. Mas ninguém me vai separar do Philip. Ninguém.

Quando Philip desceu para tomar o pequeno-almoço, Lara disse:

- Vou ter de arranjar uma nova secretária para trabalhar aqui no apartamento.

Philip olhou-a surpreendido.

- Que foi que aconteceu à Marian?

- Despediu-se. Ofereceram-lhe um. um lugar em São Francisco. Philip olhou-a surpreendido.

-Ah, é uma pena. Semprejulguei que ela gostasse de trabalhar aqui.

-Acho que gostava, mas não podíamos prejudicá-la na sua carreira, não é?

Que me perdoem, pensou Lara.

- Não, claro que não - disse Philip. - Gostava de lhe desejar boa sorte. Ela está.

- Já se foi embora.

Philip comentou:

- Bom, vou ter de arranjar uma nova parceira para o gamão.

- Quando tudo estiver mais calmo, tens-me a mim.

Philip e William Ellerbee estavam sentados numa mesa de canto no Fu's. Ellerbee disse:

- É bom voltar a vê-lo, Philip. Tenho-lhe telefonado várias vezes, mas.

- Eu sei. Desculpe. Não tenho tido vontade de falar com ninguém, Bill.

- Só espero que apanhem o patife que lhe fez isso.

- A polícia teve a gentileza de me explicar que os assaltos não são propriamente uma prioridade para eles. Situam-nos logo abaixo dos gatos desaparecidos. Não vão apanhá-lo nunca.

Ellerbee acrescentou, hesitante.

- Pelo que sei, não vai poder voltar a tocar.

- É precisamente isso. - Philip levantou a mão aleijada. - Está morta.

Ellerbee inclinou-se para a frente e disse muito sério:

- Mas você não está, Philip. Ainda tem uma vida à sua frente.

- Para fazer o quê?

- Ensinar.

Philip esboçou um sorriso amargo.

- É irónico, não acha? Tinha pensado em fazer isso um dia, quando já não desse mais concertos.

Ellerbee continuou, calmamente.

- Bom, esse diajá chegou, não é verdade? Tomei a liberdade de falar com o director da Escola de Música de Rochester. Dariam tudo para o ter lá a ensinar.

Philip franziu a testa.

- Para isso teria de me mudar para Rochester. Os escritórios de Lara são em Nova Iorque. - Sacudiu a cabeça. - Não posso fazer-lhe uma coisa dessas. Você não faz ideia de como ela tem sido maravilhosa para mim, Bill.

- Sim, não duvido.

- Abandonou praticamente os negócios para se ocupar de mim. É a mulher mais atenciosa e mais ponderada que eu alguma vez conheci. Sou louco por ela.

- Philip, não quer pelo menos pensar na oferta de Eastman?

- Diga-lhes que fico muito grato, mas acho que a resposta é não.

- Se mudar de ideias, avisa-me? Philip fez que sim com a cabeça.

- Será o primeiro a saber.

Quando Philip regressou ao apartamento, Lara tinha saído para o escritório. Pôs-se a andar de um lado para o outro, inquieto.

Pensava na conversa que tivera com Ellerbee. Adoraria ensinar, pensou, mas não posso pedir a Lara que se mude para Rochester e também não posso ir para lá sem ela.

Ouviu abrir a porta principal.

- Lara?

Era Marian.    

- Desculpe, Philip. Não sabia que estava alguém em casa. Vim devolver a chave.

- Julgava que já estivesse em São Francisco.

Ela olhou-o, espantada.

Porquê São Francisco?

- O seu novo emprego não é em São Francisco?

- Eu não tenho nenhum novo emprego.       

- Mas a Lara disse.

De repente, Marian compreendeu tudo.

- Estou a ver. Lara não lhe disse por que é que me despediu?

- Despediu-a? Ela disse-me que você se tinha ido embora. Que lhe tinham oferecido um lugar melhor.

- Isso não é verdade.

Philip disse lentamente.

- Acho melhor sentar-se.

Ficaram um em frente do outro.

- Que é que se passa? - perguntou Philip.

Marian respirou fundo.

- Acho que a sua mulher pensou que eu. que eu tinha ideias a seu respeito.

- O quê?

-Acusou-me de ter roubado a pulseira de diamantes que lhe ofereceu, como desculpa para me despedir. Tenho a certeza de que a pôs em qualquer lado.

- Não posso acreditar - protestou Philip. - A Lara nunca faria uma coisa dessas.

- Ela faria não importa o quê por sua causa.

Philip olhava-a, espantado.

- Não. não sei que dizer. Deixe-me falar com a Lara e.

- Não. Por favor não. É mesmo melhor que não lhe diga que eu estive aqui. - Pôs-se de pé.

- Que é que você vai fazer agora?

- Não se preocupe. Eu arranjo outro emprego.

- Marian, se eu puder fazer alguma coisa.

- Não, não é preciso.

- Tem a certeza?

- Tenho a certeza. Passe bem, Philip. - E saiu.

Philip ficou a vê-la ir-se embora, perturbado. Não podia acreditar que Lara tivesse inventado tal coisa e perguntava a si mesmo por que é que ela não lhe tinha dito nada. Talvez, pensou, talvez Marian tivesse roubado a pulseira e Lara não tivesse querido incomodá-lo. Marian estava a mentir.

 

A casa de penhores ficava na rua de South State, no coração do Loop. Quando Jesse Shaw entrou, o velho que se encontrava por detrás do balcão levantou os olhos.

- Bom dia. Em que posso servi-lo?

Shaw colocou um relógio de pulso em cima do balcão.

- Quanto é que me dá por isto?

O homem pegou no relógio e pôs-se a estudá-lo.

- Um Piaget. Um belo relógio.

- Sim. Detesto ter de me separar dele, mas tenho andado com um bocado de azar. Entende o que eu quero dizer?

O penhorista encolheu os ombros.

- O meu negócio é entender. Nem ia acreditar se lhe contasse todas as histórias de azares que oiço aqui.

-Dentro de poucos diasjá venho buscá-lo. Começo num emprego novo na segunda-feira. Entretanto, preciso de todo o dinheiro que me puder dar por ele.

O penhorista olhou para o relógio com mais atenção. Na parte de trás havia qualquer coisa escrita que tinha sido riscada. Olhou para o cliente.

- Desculpe-me um instante, para eu ir ver o mecanismo. Às vezes estes relógios são feitos em Banguecoque e eles esquecem-se de pôr algumas peças lá dentro.

Levou o relógio para a sala do fundo e estudou as marcas na parte de trás. O velho abriu uma gaveta e tirou de lá uma circular da polícia. Fazia uma descrição do relógio e da gravação na parte de trás: To Philip with Love from Lara. Ia pegar no telefone quando o cliente gritou.

- Eh, estou cheio de pressa. Quer o relógio ou não quer?

-Voujá - disse o homem. Voltou para junto do balcão. - Posso emprestar-lhe quinhentos dólares sobre este relógio.

- Quinhentos? O relógio vale.

- É pegar ou largar.

- Está bem - disse Shaw contrariado. - Aceito.

- Tem de preencher este impresso - disse o prestamista.

- Claro. - Escreveu John Jones, 21 Hunt Street. Tanto quanto o homem sabia, não havia nenhuma Hunt Street em Chicago, nem o outro se chamava John Jones. Meteu o dinheiro na algibeira. Daqui a uns dias venho buscá-lo.

- Certo.

O prestamista pegou no telefone e fez uma chamada.

Um detective chegou à casa de penhores vinte minutos depois.

- Por que é que não ligou para mim enquanto ele cá estava? perguntou.

- Eu tentei, mas ele estava com pressa e muito nervoso. O detective analisou o impresso que o cliente tinha preenchido.

- Isso não vai ajudá-lo em nada - disse o prestamista. - O nome e o endereço devem ser falsos.

O detective soltou um grunhido.

- A sério? Foi ele mesmo que preencheu isto?

- Foi.

- Então deitamos-lhe a mão.

Na esquadra da polícia, o computador levou menos de três minutos a identificar a impressão do polegar no impresso. Jesse Shaw.

O mordomo entrou na sala de estar.

- Desculpe, Sr. Adler, está um senhor ao telefone que deseja falar-lhe. Tenente Mancini. Quer que...

- Eu atendo. - Philip pegou no telefone. - Alô?

- Philip Adler?

- Sim?

- Daqui tenente Mancini. Falei consigo no hospital.

- Eu lembro-me.

- Queria pô-lo ao corrente do que se está a passar. Tivemos um bocado de sorte. Disse-lhe que o nosso chefe ia mandar circulares a todas as casas de penhores com uma descrição do seu relógio?

- Sim.

- Encontraram-no. O relógio foi empenhado em Chicago. Estão atrás da pessoa que o empenhou. O senhor disse que seria capaz de identificar o seu assaltante, não disse?

- Disse.

- Óptimo. Depois contactamos consigo.

Jerry Townsend entrou no gabinete de Lara.       

Estava excitado.    

- Já fiz a lista dos convidados para a festa. Quanto mais penso nisso mais a ideia me agrada. Vamos celebrar o seu quadragésimo aniversário no dia da inauguração do arranha-céus mais alto do mundo. - Estendeu a lista a Lara. - Inclui o vice-presidente. É um grande admirador seu.

Lara passou o papel em revista. Estavam lá os nomes de todas as personalidades mais importantes de Washington, Hollywood, Nova Iorque e Londres. Havia funcionários do governo, celebridades do mundo do cinema, estrelas de rock... era impressionante.

- Agrada-me - disse Lara. - Vamos com isto para a frente.

Townsend meteu a lista na algibeira.

- Óptimo. Vou mandar imprimir os convites e metê-los no

correio. Já liguei para o Carlos e disse-lhe que reservasse a Grande sala de Baile e que arranjasse a sua ementa favorita. Vamos preparar-nos para duzentas pessoas. Podemos sempre acrescentar ou retirar algumas, se for necessário. A propósito, teve mais notícias sobre a situação em Reno?

Lara tinha falado com Terry Hill nessa manhã.

- Umjúri de acusação está a investigar, Lara. Há apossibilidade de ajulgarem porprocedimento criminoso.

- Como é que eles podem? O facto de eu ter falado com Paul Martin não prova nada. Podiamos estar a falar do que vai pelo mundo, da úlcera dele ou de milhentas outras coisas.

- Lara, não se zangue comigo. Eu estou do seu lado.

- Então faça alguma coisa. Você é o meu advogado. Safe-me

desta embrulhada.

- Não. Está tudo bem - disse Lara para Townsend.

- Óptimo. Tanto quanto sei, você e o Philip vão ao jantar do presidente da Câmara no sábado à noite.

- Vamos. - A princípio ela tinha querido recusar o convite, mas Philip insistira.        

- Tu precisas desta gente. Não podes dar-te ao luxo de os ofender. Quero que vás.

- Mas não vou sem ti, meu querido.

Ele tinha respirado fundo antes de responder.

- Está bem. Eu vou contigo. Acho que já é tempo de deixar de ser eremita.        

No sábado à noite Lara ajudou Philip a vestir-se. Pôs-lhe os botões na camisa e nos punhos e deu-lhe o nó da gravata. Ele deixou-se ficar em silêncio, maldizendo a sua incapacidade.

- É como o Ken e a Barbie, não é?

- O quê?

- Nada.

- Pronto, querido. Vais ser o homem mais elegante da festa.

- Obrigado.

- Agora é melhor eu ir-me vestir - disse Lara. - O presidente não gosta que o façam esperar.

- Eu estou na biblioteca - respondeu Philip.

Meia hora depois, Lara entrou na biblioteca. Estava encantadora. Pusera um lindíssimo vestido de Oscar de la Renta, branco. No braço, tinha a pulseira de diamantes que Philip lhe dera.

Philip teve dificuldade em dormir nessa noite de sábado. Olhava para Lara e perguntava a si mesmo como é que ela podia ter acusado Marian de roubar a pulseira, sabendo que era uma acusação falsa. Sabia que ia ter de levantar a questão, mas primeiro queria falar com Marian.

Domingo de manhã, muito cedo, quando Lara ainda dormia, Philip vestiu-se e saiu. Tomou um táxi para o apartamento de Marian.

Tocou a campainha e ficou à espera.

Uma voz sonolenta perguntou:

- Quem é?

- Philip. Tenho de falar consigo.

A porta abriu-se e Marian ficou diante dele.

- Philip? Há algum problema?

- Temos de falar.

- Entre.

Ele entrou no apartamento.

- Desculpe se a acordei - disse Philip -, mas isto é importante.

- Que foi que aconteceu? Ele encheu o peito de ar.

- Você tinha razão quanto à pulseira. A Lara usou-a a noite passada. Tenho de lhe pedir desculpa, Marian. Pensei. que talvez você. só queria pedir-lhe desculpa.

Marian disse calmamente:

- Claro, é natural que tenha acreditado nela. Lara é sua mulher.

- Vou discutir o assunto com Lara ainda esta manhã, mas primeiro quis falar consigo.

Marian voltou-se para ele.

- Ainda bem que veio. Não quero que toque nesse assunto.

- Por que não? - perguntou Philip. - E por que é que ela fez uma coisa destas?

- Não sabe, pois não?

- Francamente não. Não faz sentido.

- Acho que a compreendo melhor que você mesmo. Lara está loucamente apaixonada por si. Faria não importa o quê para não o perder. Você é provavelmente a única pessoa de quem ela gostou em toda a vida. Precisa de si. E você precisa dela. Você ama-a muito, não é verdade, Philip?

- Sim.

- Então vamos esquecer tudo isto. Se levantar a questão com ela, não vai fazer bem a ninguém e só tornará as coisas piores entre vocês dois. Eu posso arranjar outro emprego com toda a facilidade.

- Mas não é justo para si. Ela teve um sorriso triste.

- A vida não éjusta, não acha? - Se fosse, seria eu a Sr. á Philip Adler. - Não se preocupe. Eu não vou ter qualquer problema.

- Pelo menos deixe-me fazer alguma coisa por si. Deixe-me dar-lhe algum dinheiro para compensar.

- Obrigada, mas não.

Havia tanta coisa que ela quereria dizer, mas sabia que não valia a pena. Philip era um homem apaixonado. Tudo o que disse foi:

- Volte para junto dela, Philip.

A construção estava a ser feita na Wabash Avenue de Chicago, a sul do Loop. Era um prédio de escritórios com vinte e cinco pisos e estava meio acabado.

Um carro da polícia sem distintivo parou à esquina e de lá saíram dois detectives. Aproximaram-se da obra e fizeram parar um dos operários que passava nesse momento.

- Onde está o encarregado?

Ele apontou para um homem enorme e corpulento que praguejava contra um dos operários.

- Além.

Os detectives foram ao encontro dele.

- O senhor é que é o encarregado?

Ele voltou-se e disse em tom impaciente:

- Não só sou o encarregado, como tenho imenso que fazer. Que é que desejam?

- Tem aqui um homem chamado Jesse Shaw?

- Shaw? Tenho sim. Está ali. - O capataz apontou para um

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homem que estava a trabalhar numa viga de aço, à altura de doze andares.

- Pode pedir-lhe que venha cá abaixo, por favor?

- Não, que raio. Ele tem trabalho para fazer.

Um dos detectives exibiu um distintivo.

- Diga-lhe que desça.

- Qual é o problema? O Jesse está metido nalgum sarilho?

- Não, só queremos falar com ele.

- Okay. - O capataz voltou-se para um dos homens que estavam a trabalhar ali perto. - Vai lá acima e diz ao Jesse que desça.

- Certo.

Alguns minutos depois Jesse Shaw caminhava ao encontro dos dois detectives.

- Estes homens querem falar contigo - disse o capataz e afastou-se.

Jesse sorriu-lhes.

- Obrigado. Esta pausa sabe-me bem. Em que é que posso ser-lhes útil?

Um dos detectives puxou de um relógio de pulso.

- Este relógio é seu?

O sorriso de Shaw desapareceu.

- Não.

- Tem a certeza?

- Tenho. - Apontou para o pulso. - O meu é um Sesko.

- Mas no entanto empenhou este relógio.

Shaw hesitou.

-Ah sim. Empenhei-o. O patife só me deu quinhentos dólares e ele vale pelo menos.

- Disse-nos que o relógio não era seu.

- E é verdade. Não é meu.

- Onde foi que o arranjou?

- Encontrei-o.

- Ah sim? Onde?

- No passeio, perto do prédio onde moro. - Estava a começar a embalar-se na história. - Estava no meio da erva e eu saí do carro e vi-o. O sol bateu na pulseira e fê-la brilhar. Foi isso que me chamou a atenção.

- Que sorte não estar um dia enevoado.

- É verdade.

- Sr. Shaw, gosta de viajar?

- Não.

- É uma pena. Vai ter de fazer uma pequena viagem a Nova Iorque. Nós ajudamo-lo a fazer as malas.

Quando chegaram ao apartamento de Shaw, os dois detectives puseram-se a olhar em volta.

- Parem com isso! - disse Shaw. - Trazem algum mandato de busca?

- Não precisamos. Estamos só a ajudá-lo a fazer as malas. Um dos homens pôs-se a revistar um roupeiro. Numa prateleira alta havia uma caixa de sapatos.

Tirou-a para baixo e abriu-a.

- Santo Deus! - disse. - Vejam só o que o Pai Natal aqui deixou!

Lara estava no gabinete dela quando a voz de Kathy se fez ouvir pelo intercomunicador.

- O Sr. Tilly está na linha quatro, Miss Cameron. Tilly era o chefe de projecto das Torres Cameron.

Lara pegou no telefone.

- Alô?

- Tivemos um problemazinho esta manhã, miss Cameron.

- Sim?

- Tivemos um fogo. Mas já foi extinto.

Que foi que aconteceu?

- Houve uma explosão na unidade de ar condicionado. Um transformador que rebentou. Houve um curto circuito. Parece que alguém fez mal as ligações.

- É grave?

- Bom, parece que vamos perder um ou dois dias. Deve chegar para limpar tudo de novo e refazer as ligações.

- Não abandone o assunto e mantenha-me informada.

Nessa tarde Lara chegou tarde a casa, preocupada e exausta.

- Estou preocupado contigo - disse Philip. - Há alguma coisa que eu possa fazer?

- Nada, querido. Obrigada. - Conseguiu esboçar um sorriso. Apenas uns problemas lá no escritório.

Ele tomou-a nos braços.

- Alguma vez te disse que sou louco por ti?

Ela olhou-o e sorriu.

- Diz-me outra vez.

- Sou louco por ti. Ela apertou-o de encontro a si e pensou: É isto que eu quero. É disto que eu preciso.

- Querido, quando eu tiver resolvido esses problemazitos, vamos para qualquer lado. Só nós os dois.

- Combinado.

Um dia, pensou Lara, tenho de lhe contar o que fiz com a Marian. Sei que não foi bonito. Mas se o perdesse morria.

No dia seguinte, Tilly voltou a ligar.

- Cancelou a encomenda do mármore para o chão das entradas? Lara replicou lentamente:

- Por que é que eu havia de fazer uma coisa dessas?

- Não sei. Alguém o fez. O mármore devia ter sido entregue hoje. Quando telefonei disseram-me que tinha sido cancelado há dois meses por sua ordem.

Lara estava furiosa.

- Estou a ver. Qual é o nosso atraso?

- Ainda não sei bem.

- Diga-lhes que se apressem.

Keller entrou no gabinete de Lara.

- Receio bem que os bancos estejam a ficar nervosos, Lara. Não sei por quanto tempo mais vou conseguir aguentá-los.

- Só até as Torres Cameron estarem concluídas. Estamos quase lá, Howard. Só faltam três meses.

- Eu disse-lhes isso - suspirou. - Está bem. Vou falar com eles outra vez.

A voz de Kathy fez-se ouvir no intercomunicador.

- O Sr. Tilly na linha um.

Lara olhou para Keller.

- Não vá. - Levantou o auscultador. - Sim? - disse Lara.

- Temos outro problema, Miss Cameron.

- Estou a ouvi-lo.

- Os elevadores estão a funcionar mal. Os programas estão dessincronizados e os sinais estão todos baralhados. Carrega-se no botão para descer e o elevador sobe. Carrega-se no dezoito, ele vai parar à cave. Nunca vi uma coisa assim.

- Pensa que foi feito deliberadamente?

- É difícil dizer. Pode ter sido falta de cuidado.

- Quanto tempo é preciso para os pôr como deve ser?

- O pessoal já vem a caminho.

- Depois diga qualquer coisa. - Pousou o auscultador.

- Algum problema? - perguntou Keller.

Lara evitou a resposta.

- Howard, tem sabido alguma coisa do Steve Murchison ultimamente?

Ele olhou-a, surpreendido.

- Não. Porquê?

- Por nada.

O consórcio de banqueiros que financiava a Cameron Enterprises tinha boas razões para se preocupar. Não era só a Cameron Enterprises que estava com problemas; isso acontecia com a maioria das empresas suas clientes. O declínio das obrigações de segunda tinha-se tornado um desastre generalizado e era um golpe fatal para as empresas que dependiam delas. Havia seis banqueiros na sala com Howard Keller e o ambiente era soturno.

- Temos notas de pagamento vencidas num valor de quase cem milhões de dólares - disse o porta-voz. - Receio bem que não possamos continuar a dar facilidades à Cameron Enterprises.

- Estão a esquecer-se de várias coisas - observou Keller. - Primeiro, esperamos que a licença de jogo do casino de Reno seja renovada a todo o momento. Esse fluxo de liquidez será o bastante para cobrir qualquer défice. Segundo, as Torres Cameron estão dentro dos prazos. Setenta por cento são para alugar e podem ter a certeza de que no dia em que ficarem terminadas as pessoas se vão bater para lá entrar. Meus senhores, o vosso dinheiro não podia estar mais seguro. Estão a lidar com a magia de Lara Cameron.

Os homens entreolharam-se. O porta-voz disse:

- Bom, por que é que não discutimos isto entre nós e depois voltamos a falar consigo?

- Óptimo. Eu digo a Miss Cameron.

Keller apresentou-se de novo no gabinete de Lara.

- Acho que eles não vão pôr-se contra nós - disse-lhe. - Mas entretanto vamos ter de vender mais património para nos aguentarmos.

- Faça isso.

Lara estava a chegar ao escritório de manhã cedo e só se ia embora pela noite dentro, lutando desesperadamente para salvar o seu império. Ela e Philip viam-se muito pouco. Lara não queria que ele soubesse até que ponto as coisas estavam a ser difíceis. Ele já tem problemas que lhe cheguem, pensava. Não posso sobrecarregá-lo com mais.

Às seis horas da manhã de segunda-feira, Tilly estava ao telefone.

- Acho que devia vir até cá, Miss Cameron.

Lara sentiu-se fortemente apreensiva.

- Que é que se passa?

- Preferia que visse por si própria.

- Vou imediatamente. Lara telefonou a Keller.

- Howard, há mais um problema nas Torres Cameron. Eu passo por aí a buscá-lo.

Meia hora mais tarde iam a caminho da obra.

- Tilly não disse qual era o problema? - perguntou Keller.

- Não, mas eujá não acredito em acidentes. Tenho andado a pensar naquilo que você disse. Steve Murchison desejava muito aquela propriedade e eu tirei-lha.

Quando chegaram viram grandes painéis de vidro de cor em grades, espalhadas pelo chão, e mais vidros a serem transportados em camiões. Tilly apressou-se a ir ao encontro de Lara e Keller.

- Ainda bem que chegaram.

- Qual é o problema?

- Estes não são os vidros que nós encomendámos. Nem na cor nem no corte. Não dão de maneira nenhuma para o prédio.

Lara e Keller entreolharam-se.

- Podemos modificar o corte aqui?

Tilly sacudiu a cabeça.

- Nem pensar. Acabávamos com um monte de silicato. Lara perguntou:

- A quem foi que encomendámos isto?

- The New Jersey Panel and Glass Company.

- Eu ligo para eles - disse Lara. - Qual é o prazo máximo? Tilly pôs-se a fazer contas.

- Se os tivéssemos cá daqui a duas semanas, ainda podíamos concluir a obra a tempo. Ia ser uma trabalheira, mas conseguia-se.

Lara voltou-se para Keller.

- Vamos.

Otto Karp era o gerente da New Jersey Panel and Glass Company. Apareceu quase instantaneamente ao telefone.

- Sim, Miss Cameron? Ao que parece está com um problema.

- Não - atalhou Lara. - Os senhores é que estão com um problema. Entregaram-nos os vidros errados. Se eu não receber a encomenda correcta dentro de duas semanas, vou processar a vossa companhia de tal maneira que nunca mais se endireitam. Estão a atrasar um projecto de trezentos milhões de dólares.

- Não compreendo. Importa-se de aguardar um momento, por favor?

Demorou-se cinco minutos. Quando voltou à linha, disse:

- Peço-lhe imensa desculpa, Miss Cameron. Houve um engano na transcrição da encomenda. O que aconteceu foi.

- Não me interessa o que aconteceu - interrompeu Lara. - A única coisa que eu quero que façam é que executem correctamente a encomenda e a façam seguir imediatamente.

- Com muito gosto.

Lara teve uma forte sensação de alívio.

- Quando é que podemos contar com ela?

- Dentro de dois ou três meses.

- Dois ou três meses! Isso é impossível. Eu preciso dos vidros agora.

- Teria todo o prazer em lhe ser agradável, Miss Cameron, mas infelizmente estamos atrasados com todas as nossas encomendas.

- Não está a perceber - disse Lara -, isto é uma emergência e.

- Tomarei isso em conta e vamos fazer tudo o que pudermos. Terá a sua encomenda dentro de dois ou três meses. Lamento não podermos fazer melhor.

Lara atirou com o telefone.

- Não posso acreditar - disse. Olhou para Tilly. - Há mais alguma empresa à qual possamos recorrer?

Tilly esfregou a mão na testa.

- Não assim em cima da hora. Se fôssemos procurar outro fabricante, eles iriam começar tudo do princípio e os outros clientes estariam à nossa frente.

Keller disse:

- Lara, posso falar-lhe um minuto? - Puxou-a para o lado. Detesto sugerir isto, mas.

- Diga.

o seu amigo Paul Martin talvez conheça lá alguém. Ou talvez conheça alguém que conheça alguém.

Lara fez um sinal de assentimento com a cabeça.

- Boa ideia, Howard. Vou saber.

Duas horas depois, Lara estava sentada no gabinete de Paul Martin.

- Não fazes ideia como estou feliz por teres telefonado - disse o advogado. - Há tanto tempo! Céus, como estás bonita, Lara.

- Obrigada, Paul.

- Em que posso ser-te útil?

Lara hesitou:

- Parece que só te procuro quando estou em apuros.

- E sempre me encontraste pronto para te ajudar, não é verdade?

- Sim. És um bom amigo. - Suspirou. - E neste momento eu preciso de um bom amigo.

- Qual é o problema? Outra greve?

- Não. É por causa das Torres Cameron.

Ele franziu a testa.

- Ouvi dizer que estava dentro dos prazos.

- Está. Ou antes, estava. Acho que o Steve Murchison está empenhado em sabotar o projecto. Ele tem uma vendetta contra mim. De repente, as coisas começaram a correr mal lá na obra. Até aqui temos conseguido resolver os problemas, mas agora. Temos um grande problema. Que nos pode fazer ultrapassar os prazos. Os nossos dois principais locatários saltavam fora. E eu não posso deixar que isso aconteça.

Respirou fundo, tentando controlar a irritação.

- Há seis meses encomendámos vidros de cor à New Jersey Panel and Glass Company. Recebemos a mercadoria esta manhã. Não eram os vidros que tínhamos pedido:

- Falaste com eles?

- Sim, mas disseram-nos que levam dois ou três meses. Eu preciso dos vidros dentro de quatro semanas. Enquanto não tivermos os vidros, os homens não podem fazer nada. Já pararam de trabalhar. Se esse prédio não estiver pronto dentro do tempo, perco tudo aquilo que tenho.

Paul Martin olhou para ela e disse calmamente:

- Não, não vais perder nada. Deixa-me ver o que posso fazer. Lara teve uma enorme sensação de alívio.

- Paul, eu. - Era-lhe difícil pôr em palavras aquilo que sentia. - Obrigada.

Ele pegou-lhe na mão e sorriu.

- O dinossauro ainda não está morto - disse. - Amanhã devo poder dizer-te alguma coisa.

Na manhã seguinte o telefone particular de Lara tocou pela primeira vez em vários meses. Ela pegou-lhe, ansiosa.

- Paul?

- Olá, Lara. Tive uma conversa com alguns dos meus amigos.

Não vai ser fácil, mas pode ser feito. Eles prometeram fazer uma entrega de segunda a oito dias.

No dia em que os vidros deviam chegar, Lara telefonou novamente a Paul Martin.

- Os vidros ainda não chegaram, Paul - disse Lara.

- Oh? - Fez-se silêncio. - Eu vou ver o que há. - A voz dele tornou-se mais suave. - Sabes uma coisa, o único lado bom de tudo isto é que finalmente volto a falar contigo.

- Sim. Eu. Paul. se não recebemos os vidros a tempo.

- Vais receber. Não desistas.

No fim da semana continuava a não haver nada.

Keller entrou no gabinete de Lara.

- Acabei de falar com o Tilly. O nosso último prazo é sexta-feira. Se os vidros chegarem até lá, tudo bem. Caso contrário, é o fim.

Na quinta-feira nada tinha mudado.

Lara foi visitar as Torres Cameron. Não estava lá nenhum operário. O arranha-céus erguia-se majestosamente em direcção ao céu, dominando tudo o que o rodeava. Ia ser um edifício magnífico. O seu monumento. Não vou deixar que isto falhe, pensou Lara ferozmente.

Telefonou de novo a Paul Martin.

- Lamento - disse a secretária. - O Sr. Martin não está no escritório. Alguma mensagem?

- Por favor peça-lhe que ligue para mim - disse Lara. Voltou-se para Keller. - Tenho um pressentimento que gostava de tirar a limpo. Veja se o proprietário dessa fábrica de vidros não é Steve Murchison.

Passados trinta minutos, Keller voltou ao gabinete de Lara. Estava pálido.

- Então? Descobriu a quem pertence a fábrica dos vidros?

- Sim - replicou ele com voz lenta. - Está registada no Delaware. É propriedade dos Empreendimentos Etna.

- Empreendimentos Etna?

- Sim. Foi comprada há um ano. Empreendimentos Etna quer dizer Paul Martin.

A publicidade negativa acerca da Cameron Enterprises continuava. Os repórteres, que antes se tinham mostrado tão ansiosos por tecer louvores a Lara, voltavam-se agora contra ela.

Jerry Townsend foi procurar Howard Keller.

- Estou preocupado - disse Townsend.

- Qual é o problema?

- Tem lido os jornais?

- Sim. Estão a atacar em força.

- Estou preocupado com a festa de aniversário, Howard. Já mandei os convites. Desde que começou toda esta publicidade negativa, só tenho recebido recusas. Os patifes têm medo de ser contaminados. É um fiasco.

- Que é que sugere?

- Que cancelemos a festa. Eu arranjo uma desculpa qualquer.

- Acho que tem razão. Não quero que ela se sinta vexada.

- Óptimo. Vou tratar de cancelar tudo. É capaz de prevenir a Lara?

- Está bem.

Terry Hill telefonou.

- Acabo de saber que vai ser notificada para testemunhar perante o tribunal de acusação depois de amanhã. Eu vou consigo.

Transcrição de interrogatório de Jesse Shaw pelo tenente Sal Mancini.

M: Bom dia, Sr. Shaw. Sou o tenente Mancini. Sabe que a nossa conversa está a ser anotada por um estenógrafo?

S: Claro.

M: E prescindiu do seu direito a um advogado?

S: Não preciso de advogado nenhum. A única coisa que eu fiz foi encontrar um relógio, pelo amor de Deus, e arrastaram-me até aqui como se eu fosse um animal.

M: Sr. Shaw, sabe quem é Philip Adler?

S: Não. Porquê? Devia saber?

M: Ninguém lhe pagou para o atacar?

S: Já lhe disse que nunca ouvi falar nele.

M: A polícia de Chicago encontrou cinquenta mil dólares em dinheiro no seu apartamento. De onde veio esse dinheiro?

S: (Silêncio)

M: Sr. Shaw.

S: Ganhei-o ao jogo.

M: Onde?

S: Apostas. futebol, está a ver.

M: O senhor é um homem de sorte, não é?

S: Sim. Acho que sim.

M: Actualmente tem um emprego em Chicago. Certo?

S: Sim.

M: Alguma vez trabalhou em Nova Iorque?

S: Sim, em tempos.

M: Tenho aqui um relatório da polícia que diz que o senhor estava a trabalhar numa obra em Queens com o guindaste que matou um capataz de nome Bill Whitman. Certo?

S: Sim. Foi um acidente.

S: Há quanto tempo trabalhava ali?

S: Não me recordo.

M: Deixe-me avivar-lhe a memória. Esteve naquele emprego setenta e duas horas. Veio de avião de Chicago na véspera do acidente com o guindaste e voltou de avião para Chicago dois dias depois. Não foi isso?

  1. Deve ter sido.

M: Segundo os registos das Linhas Aéreas Americanas, voou novamente de Chicago para Nova Iorque dois dias antes de Philip Adler ter sido atacado e regressou a Chicago no dia seguinte. Qual foi o propósito de uma visita tão curta?

S: Queria ver umas peças de teatro.

M: Lembra-se dos nomes das peças que viu?

S: Não. Já foi há algum tempo.

M: Na altura do acidente com o guindaste para quem estava a trabalhar?

S: Para a Cameron Enterprises.

M: E quem é o proprietário da obra em que está a trabalhar em Chicago?

S: A Cameron Enterprises.

Howard Keller estava em reunião com Lara. Havia uma hora que falavam das medidas a tomar para atenuar a má publicidade de que a empresa estava a ser alvo. Quando a reunião se aproximava do fim, Lara disse:

- Mais alguma coisa?

Howard franziu a testa. Alguém lhe tinha pedido que dissesse qualquer coisa a Lara, mas não conseguia lembrar-se do que era. Bom, provavelmente não é importante.

Simms, o mordomo, disse:

- Há uma chamada telefónica para o senhor, Sr. Adler. Tenente Mancini.

Philip levantou o auscultador.

- Tenente Mancini. Em que posso ser-lhe útil?

- Tenho novidades para si, Sr. Adler.

- Que é? Encontraram o homem?

- Preferia falar pessoalmente com o senhor. Seria possível?

- Claro.

- Estou aí dentro de meia hora.

Philip pousou o auscultador, perguntando a si mesmo o que seria que o detective não queria dizer pelo telefone.

Quando Mancini chegou, Simms fê-lo entrar na biblioteca.

- Boa tarde, Sr. Adler.

- Boa tarde. Que é que se passa?

- Apanhámos o homem que o atacou.

- Ah sim? Estou surpreendido - replicou Philip. - Pensei que me tinha dito que era impossível deitar a mão a assaltantes.

- Ele não é nenhum assaltante.

Philip franziu a testa.

- Não estou a perceber.

- É um operário da construção civil. Tem trabalhado em Chicago e Nova Iorque. Tem cadastro na polícia. Ele empenhou o seu relógio e foi assim que lhe conseguimos as impressões digitais. - Mancini apresentou-lhe um relógio de pulso. - Este é o seu relógio, não é verdade?

Philip ficou a olhar para o relógio, sem querer tocar-lhe. A visão trazia de volta o momento horrível em que o homem lhe tinha agarrado o pulso e o cortara barbaramente. Com relutância, estendeu a mão e pegou no relógio.

Olhou para a parte de trás, onde algumas das letras tinham sido riscadas.

- Sim, é meu.

O tenente Mancini pegou novamente no relógio.

- De momento, precisamos dele como prova. Gostaria que viesse até à esquadra amanhã para identificar o homem.

A ideia de voltar a ver o assaltante, face a face, encheu Philip de raiva.

- Lá estarei.

- É na Esquadra Número Um, Sala Duzentos e Doze. Às dez.

- Óptimo. - Philip franziu a testa. - Que é que queria dizer quando afirmou que o homem não era um assaltante?

O tenente Mancini hesitou.

- Ele foi pago para o atacar. Philip olhava-o, estupefacto:

-Oquê?

- O que lhe aconteceu não foi nenhum acidente. O homem recebeu cinquenta mil dólares para lhe fazer aquele golpe.

- Não acredito - disse Philip lentamente. - Quem é que ia pagar a alguém cinquenta mil dólares para me inutilizar?

- Ele foi contratado pela sua mulher.

 

Ele foi contratado pela sua mulher! Philip estava atordoado.       Lara? Seria possível que Lara tivesse feito uma coisa tão terrível? Por que motivo?

Não entendo por que é que tens de praticar todos os dias. Não vais dar nenhum concerto agora.

Nãoprecisas de ir. Eu quero um marido. Não quero um part- time. Não és propriamente um caixeiro viajante.

Acusou-me de ter roubado a pulseira de diamantes que o Philip lhe deu. Ela faria não importa o quê para não o perder.

E Ellerbee: Está a pensar em reduzir o número dos seus concertos?. Tive uma conversa com Lara.

Lara.

Na Esquadra Número Um estava em curso uma conferência entre o promotor de Justiça, o comissário de polícia e o tenente Mancini.

O promotor de Justiça dizia:

- Não se trata propriamente de Jane Doe. Essa senhora tem muita influência. Tem o caso bem fundamentado, Tenente?

Mancini disse:

- Falei com o pessoal da Cameron Enterprises. Jesse Shaw foi contratado a pedido de Lara Cameron. Perguntei se ela já alguma vez contratara pessoalmente algum operário de construção e a resposta foi negativa.

- Que mais?

- Há rumores de que um capataz de nome Bill Whitman se gabava aos colegas de que sabia qualquer coisa sobre Lara Cameron que ia fazer dele um homem rico. Pouco tempo depois, o capataz foi

morto por um guindaste manobrado por Jesse Shaw. Shaw tinha sido deslocado do seu trabalho em Chicago para vir para Nova Iorque. Depois do acidente voltou directamente para Chicago. Não há dúvidas que não tenha sido planeado. Mais, o bilhete de avião de Shaw foi pago pela Cameron Enterprises.

- E quanto ao ataque contra Adler?

- A mesma situação. Shaw veio de avião de Chicago dois dias antes e partiu de novo no dia seguinte. Se não tivesse sido ganancioso e não resolvesse arranjar mais algum dinheiro empenhando o relógio, em vez de o deitar fora, nunca o teríamos apanhado.

O comissário da polícia perguntou:

- E o motivo? Por que é que ela havia de querer fazer uma coisa dessas ao marido?

- Falei com alguns dos criados. Lara Cameron era louca pelo marido. A única coisa que às vezes os levava a discutirem era quando ele tinha de se ausentar em tournée por causa dos concertos. Ela queria-o sempre em casa.

- E agora tem-no em casa.

- Exactamente.

O promotor de Justiça perguntou:

- Qual é a versão dela? Nega tudo?

- Ainda não a interrogámos. Queríamos falar consigo primeiro.

- Diz que Philip Adler consegue identificar o Shaw?

- Sim.

- Óptimo.

- Por que é que não manda um dos seus homens interrogar Lara Cameron? Vejamos o que ela tem para dizer.

Lara estava numa reunião com Howard Keller quando o intercomunicador se fez ouvir.

- Está aqui o tenente Mancini que deseja falar-lhe. Lara franziu a testa.

- Sobre quê?

- Não disse.

- Mande entrar.

O tenente Mancini estava numa posição difícil. Sem nenhuma prova concreta, ia ser difícil arrancar alguma coisa a Lara Cameron. Mas tenho de tentar, pensou. Só não esperara encontrar Howard Keller com ela.

- Boa tarde, Tenente.

- Boa tarde.

- Conhece Howard Keller.

- Conheço com certeza. O melhor lançador de Chicago.

- Em que posso ser-lhe útil? - perguntou Lara.

Aquela era a parte mais difícil. Primeiro chegar à conclusão de que ela conhecia Jesse Shaw e depois conduzi-la a partir daí.

- Prendemos o homem que atacou o seu marido. - Mancini estudava-lhe o rosto.

- O quê?

Howard Keller interrompeu:

- Como foi que o apanharam?

- Ele empenhou o relógio que Miss Cameron deu ao marido. Mancini voltou novamente o olhar para Lara. - O nome do homem é Jesse Shaw.

Não houve qualquer mudança de expressão.       Ela é boa, pensou Mancini. É mesmo boa.

- Conhece-o?

Lara franziu a testa.

- Não. Devia conhecer?

Primeira escorregadela, pensou Mancini. Já a apanhei.

- Trabalhava na construção de um dos seus prédios em Chicago. Também esteve numa obra sua em Queens. Estava a trabalhar com um guindaste que matou um homem. - Fingiu que consultava um caderno de apontamentos. - Um tal Bill Whitman. O médico legista disse tratar-se de um acidente.

Lara engoliu em seco.

-Sim...

Antes que ele pudesse continuar, Keller fez-se ouvir.

- Olhe, Tenente, temos centenas de pessoas a trabalhar para a empresa. Não pode esperar que os conheçamos a todos.

- O senhor não conhece Jesse Shaw?

- Não. E tenho a certeza de que Miss Cameron.

- Preferia que fosse ela a responder-me, se não se importa. Lara afirmou:

- Nunca ouvi falar nesse homem.

- Pagaram-lhe cinquenta mil dólares para atacar o seu marido.

- Eu. eu não posso acreditar! - O rosto dela ficou subitamente muito pálido.

Agora estou a aproximar-me, pensou Mancini.

- Não sabe nada sobre isso?

Lara olhava-o fixamente, com o olhar em chama.

- Está. a sugerir. Como é que se atreve? Se alguém arquitectou uma coisa dessas, quero saber quem foi!

- O seu marido também, Miss Cameron.

- Discutiu este assunto com o Philip?

- Sim. Eu.

Daí a um instante Lara saía do escritório como um pé de vento.

Quando Lara chegou ao apartamento, Philip estava no quarto a fazer as malas, com certa dificuldade por causa da mão aleijada.

- Philip. que é que estás a fazer?

Voltou-se para ela, como se estivesse a vê-la pela primeira vez.

- Vou-me embora.

- Porquê? Certamente não acreditaste nessa. nessa história horrível?

- Acabemos com as mentiras, Lara.

- Eu não estou a mentir. Tens de me ouvir. Não tive nada a ver com o que te aconteceu. Não seria capaz de te fazer mal por nada deste mundo. Eu amo-te, Philip.

Ele voltou-se, ficando de frente para Lara.

- A polícia diz que o homem trabalhou para ti. Que recebeu cinquenta mil dólares para. para fazer aquilo que fez.

Ela sacudiu a cabeça.

- Não sei nada sobre esse assunto. Só sei que não tive nada a ver com o que se passou. Acreditas em mim?

Philip ficou a olhá-la em silêncio.

Lara permaneceu ali um bom momento, depois voltou-se e saiu do quarto, às cegas.

Philip passou uma noite de insónia num hotel da cidade. Imagens de Lara acudiam-lhe constantemente ao espírito.

Estou interessada em saber mais sobre a fundação. Talvez pudéssemos encontrar-nos para discutir esse assunto.

Você é casado? Fale-me de si.

Quando oiço o seu Scarlatti, é como se estivesse em Nápoles.

Eu sonho um sonho de tijolo, cimento e aço, e faço com que ele se torne realidade.

Vim a Amsterdão para o ver.

Gostaria que eu fosse consigo para Milão.

Você vai estragar-me com mimos. É o que tenciono fazer. E a ternura, a compaixão, o carinho de Lara. Será possível que eu me tenha enganado tanto a seu respeito?

Quando Philip chegou à esquadra da polícia, o tenente Mancini estava à espera dele. Conduziu Philip a um pequeno auditório com uma plataforma mais alta ao fundo.

- Apenas precisamos que o identifique naquela fila. Para eles poderem estabelecer a ligação com Lara, pensou Philip.

Havia seis homens na fila, todos aproximadamente com a mesma estatura e idade. Jesse Shaw estava no meio. Quando Philip o viu, a cabeça começou-lhe de repente a latejar. Era como se estivesse a ouvir-lhe a voz: Dê-me a carteira. Sentia a dor terrível da faca a cortar-lhe o pulso. Será possível que Lara me tenha feito uma coisa daquelas? Tu és o único homem que alguma vez amei.

O tenente Mancini começou a falar.

- Olhe bem, Sr. Adler.

A partir de agora passo a trabalhar em casa. O Philip precisa de mim.

- Sr. Adler.

Vais ter os melhores médicos do mundo. Ela estivera presente a todos os momentos, alimentando-o, tratando-o. Se Maomé não vai à montanha.

- É capaz de me indicar qual deles é?

Casei contigo porque estava loucamente apaixonada por ti. E ainda estou. Se nunca mais voltarmos a fazer amor, não me importo. A única coisa que quero é que me abraces e que me ames. E estava a ser sincera.

E depois a última cena no apartamento.

Não tive nada a ver com o que te aconteceu. Não seria capaz de te fazer mal por nada deste mundo.

- Sr. Adler.

A polícia deve estar enganada, pensou Philip. Meu Deus, eu acredito nela. Lara não podia ter feito uma coisa destas!

Mancini falou de novo:

- Qual deles é?

Philip voltou-se para ele e respondeu:

- Não sei.

-Oquê?

- Não o vejo.

- Mas disse-me que tinha olhado bem para ele.

- É verdade.

- Então diga-me qual deles é.

- Não posso - replicou Philip. - Ele não está ali. O rosto do tenente Mancini tornou-se sombrio.

- Tem a certeza disso?

Philip pôs-se de pé.

- Absoluta.

- Bom, então acho que não é preciso mais nada. Obrigado pela sua colaboração.

Tenho de ir à procura de Lara, pensou Philip. Tenho de ir à procura de Lara!

Ela estava sentada à secretária a olhar para a rua. Philip não tinha acreditado nela. Era isso que lhe doía mais. E Paul Martin. Claro que ele estava por detrás daquilo. Mas po rque o fizera? Lembras-te do que eu disse a respeito do teu marido ter de tomar bem conta de ti? Não me parece que ele se esteja a portar lá muito bem. Alguém devia ter uma conversa com ele! Seria porque a amava? Ou seria um acto de vingança porque a odiava?

Howard Keller entrou. Tinha o rosto pálido e vincado.

- Venho agora mesmo do telefone. Perdemos as Torres Cameron, Lara. Tanto a Southern Insurance como a Mutual Overseas Investment desistem do acordo porque nós não podemos cumprir o nosso prazo. Não temos maneira de fazer o pagamento das hipotecas. Estivemos quase a conseguir, não foi? O maior arranha-céus do mundo. Lamento. lamento muito. Sei o que isso significava para si.

Lara voltou-se e Keller ficou chocado com o ar dela. Tinha o rosto pálido e círculos negros em volta dos olhos. Parecia estonteada, como se lhe tivessem tirado toda a energia.

- Lara. ouviu o que eu disse? Perdemos as Torres Cameron. Quando Lara falou, fê-lo numa voz extraordinariamente calma.

- Ouvi tudo. Não se preocupe, Howard. Vamos pedir dinheiro sobre outros prédios e havemos de pagar tudo.

Agora ela assustava-o.

- Lara, não temos mais nada sobre que pedir. Você vai ter de abrir falência e.

- Howard?

- Sim?

- Pode uma mulher amar demasiado um homem?

- O quê?

A voz dela perdera o timbre.

- O Philip deixou-me.

E aquelas palavras explicavam muita coisa.

- Eu. eu lamento muito, Lara.

Ela tinha um sorriso estranho.

- É engraçado, não é? Estou a perder tudo ao mesmo tempo. Primeiro o Philip, agora os meus prédios. Sabe o que é, Howard? É o Destino. Ele está contra mim. E não se pode lutar contra o Destino, pois não?

Howard nunca a tinha visto sofrer tanto. Sentia-se despedaçado.

- Lara.

-Ainda não acabaram comigo. Tenho de tomar o avião para Reno esta tarde. Há uma sessão no tribunal. Se.

O intercomunicador fez-se ouvir.

- Está aqui o tenente Mancini.

- Mande-o entrar.

Howard olhou para Lara, admirado.

- Mancini? Que é que ele quer?

Lara respirou fundo.

- Vem prender-me, Howard.

- Prendê-la? De que é que você está a falar?

A voz dela era muito calma.

- Eles estão convencidos de que fui eu que preparei a cilada a Philip.

- Isso é ridículo! Eles não podem...

A porta abriu-se e o tenente Mancini entrou. Ficou um momento parado, a olhar para ambos, depois avançou.

- Tenho aqui uma ordem de prisão.

O rosto de Howard Keller estava lívido. Com voz rouca, disse:

- Não podem prendê-la. Ela não fez nada.

- Tem razão, Sr. Keller. A ordem de prisão não é para ela. É para si.

Transcrição do Interrogatório de Howard Keller pelo tenente detective Sal Mancini:

M: Já foi informado dos seus direitos, Sr. Keller?

K: Sim.

M: E abdicou do direito à presença de um advogado?

K: Não preciso de advogado. De qualquer forma tencionava vir entregar-me: Não podia permitir que acontecesse alguma coisa a Lara.

M: O senhor pagou a Jesse Shaw cinquenta mil dólares para atacar Philip Adler?

K: Sim.

M: Porquê?

K: Ele estava a torná-la infeliz. Ela pedia-lhe que ficasse em casa, mas ele estava constantemente a deixá-la.

M: Por isso arranjou maneira de o deixar inválido.

K: Não foi bem assim. Eu não queria que o Jesse fosse tão longe.

M: Fale-me de Bill Whitman.

K: Era um patife. Estava a tentar fazer chantagem com Lara. Eu não podia deixá-lo fazer isso. Podia tê-la arruinado.

M: Por isso mandou que o matassem?

K: Para o bem de Lara, sim.

M: Ela tinha conhecimento do que o senhor estava a fazer?

K: Claro que não. Ela nunca o teria permitido. Não. Eu é que tinha de a proteger, entende? Tudo o que fiz, fi-lo por ela. Era capaz de morrer por ela.

M: Ou de matar por ela.

K: Posso fazer-lhe uma pergunta? Como foi que soube que eu estava envolvido nisto?

Fim do Interrogatório.

 

Na Esquadra número Um, o capitão Bronson disse para Mancini:

- Como foi que soube que Keller estava por detrás de tudo?

- Ele deixou uma ponta da meada e eu desenredei-a. Por pouco não chegava lá. O cadastro de Jesse Shaw mencionava que ele tivera uma condenação aos 17 anos por ter roubado equipamento de basebol de uma equipa dejuniores dos Chicago Cubs. Verifiquei os factos e acontece que ele e Keller estavam na mesma equipa. Foi aí que Keller cometeu um deslize. Quando lhe perguntei, ele disse-me que nunca tinha ouvido falar em Jesse Shaw. Liguei para um amigo meu que em tempos foi repórter desportivo do Sun Times de Chicago. Ele lembrava-se de ambos. Eram amigos. Calculei logo que tinha sido Keller quem arranjara a Shaw o emprego na Cameron Enterprises. Lara Cameron contratou Jesse Shaw a pedido de Howard Keller. O mais provável é que nem nunca o tenha visto.

- Bom trabalho, Sal.

Mancini sacudiu a cabeça.

- Sabe uma coisa? Não fez grande diferença. Mesmo que eu não o tivesse desmascarado e tivéssemos acusado Lara Cameron, Howard Keller teria confessado tudo.

O mundo de Lara estava a desintegrar-se. Custava-lhe a acreditar que Howard Keller, sobretudo Howard Keller, pudesse ser responsável pelas coisas horríveis que tinham acontecido. Ele fê-lo por mim, pensou Lara. Tenho de tentar ajudá-lo.

Kathy ligou pelo intercomunicador.

- O carro está aqui, Miss Cameron. Está pronta?

- Estou.

Pôs-se a caminho de Reno para testemunhar perante o tribunal de acusação.

Cinco minutos depois de Lara ter saído, Philip telefonou para o escritório.

- Lamento muito, Sr. Adler. Desencontraram-se por pouco. Ela vai a caminho de Reno.

Ele experimentou um forte sentimento de decepção. Estava ansioso por a ver, por lhe pedir perdão.

- Quando falar com ela diga-lhe que eu fico à espera.

- Eu digo-lhe.

Philip fez uma segunda chamada, falou durante dez minutos e depois ligou para William Ellerbee.

- Bill. Vou ficar em Nova Iorque. Vou ensinar em Juilliard.

- Que é que eles me podem fazer? - perguntou Lara. Terry Hill disse:

- Depende. Primeiro vão ouvir as suas declarações. Depois tanto podem chegar à conclusão de que está inocente, e nesse caso terá o casino de volta, como achar que há provas suficientes para a condenar. Se for esse o veredicto, serájulgada em processo crime e estará sujeita a prisão.

Lara murmurou qualquer coisa.

- Como?

- Eu disse que o meu pai tinha razão. É o Destino.

A sessão durou quatro horas. Lara foi interrogada sobre a aquisição do Cameron Palace Hotel & Casino. Quando saíram da sala de audiências, Terry Hill apertou a mão de Lara.

- Você saiu-se muito bem, Lara. Acho que conseguiu impressioná-los. Eles não têm nenhuma prova contra si, portanto há boas hipóteses que. - Ele parou, estupefacto. Lara voltou-se. Paul Martin tinha entrado na antessala. Vestia um fato fora de moda com casaco assertoado e colete e tinha o cabelo branco penteado no mesmo estilo que usava quando Lara o conhecera.

Terry Hill exclamou:

- Oh, céus! Ele está aqui para depor. - Voltou-se para Lara. Até onde vai o ódio dele contra si?

- Que é que quer dizer?

- Lara, se lhe prometeram indulgência para ele testemunhar contra si, está perdida. Vai parar à prisão.

Lara tinha os olhos postos em Paul Martin.

- Mas assim. estaria a destruir-se a si próprio também.

- Foi por isso que lhe perguntei até onde vai o ódio dele contra si. Seria capaz de fazer isso a si próprio só para a destruir?

Lara replicou, atordoada.

- Não sei.

Paul Martin avançava em direcção a eles.

- Olá, Lara. Ouvi dizer que as coisas não te andam a correr lá muito bem. - O olhar dele não deixava transparecer nada. Lamento muito.

Lara recordou as palavras de Howard Keller. Ele é siciliano. Eles nunca esquecem e nunca perdoam. Paul andara a acalentar aquela sede ardente de vingança e ela não sabia.

Paul Martin começou a afastar-se.

- Paul. Ele parou.

- Sim?

- Preciso de te falar.

Ele hesitou um momento.

- Muito bem.

Fez um gesto com a cabeça na direcção de um gabinete vazio ao fundo do corredor.

- Podemos falar ali dentro.

Terry Hill ficou a ver os dois entrarem no gabinete. A porta fechou-se atrás deles. Teria dado tudo para ouvir o que diziam.

Lara não sabia como começar.

- Que é que tu queres, Lara?

Era muito mais difícil do que ela tinha calculado. Quando falou, a voz saiu-lhe toldada.

- Quero que me libertes. Ele ergueu as sobrancelhas.

- Como é que eu te posso libertar se não te tenho presa. - Estava a troçar dela.

Lara sentia dificuldade em respirar.

- Não achas que já me castigaste o suficiente?

Paul Martin deixou-se ficar impassível, com uma expressão impenetrável.

- O tempo que tivemos juntos foi maravilhoso, Paul. À parte o Philip, tu significaste mais para mim que qualquer outra pessoa na minha vida. Devo-te mais do que alguma vez conseguiria pagar. Nunca quis magoar-te. Tens de acreditar nisso.

Era difícil continuar.

- Tens poder para me destruir. É realmente isso que queres? Ficas feliz se me mandares para a prisão? - Debatia-se para conter as lágrimas. - Estou a suplicar-te, Paul. Dá-me outra vez a minha vida. Por favor, deixa de me tratar como inimiga.

Paul Martin continuava no mesmo sítio, com os olhos pretos insondáveis.

- Estou a pedir-te perdão. Estou. estou demasiado cansada para lutar, Paul. Ganhaste. - Faltou-lhe a voz.

Nesse momento ouviu-se uma pancada na porta e o oficial de diligências espreitou para dentro da sala.

- O tribunal está preparado para o ouvir, Sr. Martin. Ele ficou ainda um grande bocado a olhar para Lara; depois voltou-se e saiu sem dizer uma palavra.

Acabou-se, pensou Lara. Está tudo acabado.

Terry entrou apressadamente no gabinete.

- Como eu desejava saber o que ele vai testemunhar ali dentro. Agora não há nada a fazer se não esperar.

Esperaram. Pareceu uma eternidade. Quando Paul Martin finalmente emergiu da sala de audiências tinha um ar cansado e gasto.    Ele envelheceu, pensou Lara. E culpa-me por isso. Paul tinha os olhos postos nela. Hesitou e depois apromou-se.

- Nunca hei-de perdoar-te. Fizeste de mim parvo. Mas foste a melhor coisa que alguma vez me aconteceu. Acho que estou em dívida contigo por causa disso. Não lhes disse nada ali dentro, Lara.

Os olhos dela encheram-se de lágrimas.

- Oh, Paul. Eu não sei como.

- Digamos que é o meu presente de aniversário para ti. Parabéns, pequena.

Ela ficou a vê-lo afastar-se e de repente compreendeu as palavras dele. Era o dia do seu aniversário! Tinha acontecido tanta coisa ao mesmo tempo que acabara por se esquecer. E a festa. Duzentos convidados estariam à espera dela no Manhattan Cameron Plaza!

Lara voltou-se para Terry Hill.

- Tenho de voltar para Nova Iorque esta noite. Há uma grande festa em minha honra. Acha que eles me deixam ir?

- Só um momento - disse Terry Hill e desapareceu no interior da sala de audiências. Quando saiu de lá, passados cinco minutos, disse: - Pode ir para Nova Iorque. O júri de acusação dará o seu veredicto amanhã de manhã, mas agora é uma mera formalidade. Pode voltar para cá à noite. A propósito, o seu amigo falou verdade. Não lhes disse nada ali dentro.

Meia hora depois, Lara ia a caminho de Nova Iorque.

- Você está bem? - perguntou Terry Hill.

Lara olhou para ele e disse:

- Claro que estou. - Haveria centenas de pessoas importantes na festa em sua honra nessa noite. Apareceria de cabeça bem erguida. Era Lara Cameron.

Ficou parada no meio da Grande Sala de Baile deserta e olhou em volta. Fui eu que criei isto. Criei monumentos que se erguiam em direcção ao céu, que mudaram a vida de milhares de pessoas por toda a América. E agora tudo vai pertencer a banqueiros sem rosto. Ouvia nitidamente a voz do pai. É o Destino. Ele sempre esteve contra mim. Pensou em Glace Bay e na pequena pensão onde crescera. Lembrou-se de como se sentira aterrorizada no primeiro dia em que fora à escola. Alguém se lembra de uma palavra começada por f? Lembrava-se dos hóspedes da pensão, Bill Rogers. A primeira regra nos negócios de propriedades é o DO. Nunca te esqueças. E Charles Cohn: Só como comida kosher e receio bem que isso não exista em Glace Bay.

Se eu pudesse comprar esta terra: dava-me um contrato de aluguer por cinco anos?

Não, Lara. Teria de ser por dez anos.

E Sean MacAllister: Seria preciso uma razão muito especial para eu te fazer esse empréstimol! Já tiveste algum amante?

E Howard Keller. Não está a irpelo caminho certo. Quero que você venha trabalhar comigo.

E depois os êxitos. Os êxitos maravilhosos, retumbantes. E Philip. O seu Lochinvar. O homem que ela adorava. Essa era a maior perda de todas.

Uma voz chamou-a:

- Lara.

Ela voltou-se.

Era Jerry Townsend.

- O Carlos disse-me que você estava aqui. - Aproximou-se dela. - Lamento muito quanto à festa de aniversário.

Lara olhou-o.

- O. o que foi que aconteceu? Townsend olhava-a fixamente.

- O Howard não lhe disse?

- Não me disse o quê?

- Que havia tantas desistências por causa da má publicidade que resolvemos que seria melhor cancelar tudo. Pedi ao Howard que lhe dissesse.

Para falar verdade, tenho andado a ter problemas com a memória. Lara disse com voz branda.

- Não tem importância. - Deu uma última olhadela à sala esplendorosa. - Tive os meus quinze minutos, não tive?

- O quê?

- Nada. - E encaminhou-se para a porta.

- Lara, vamos ao escritório. Há umas coisas que precisam ser resolvidas.

- Está bem. - Provavelmente não voltarei a entrar neste edifício, pensou Lara.

No elevador, a caminho dos escritórios, Jerry disse:

- Soube do que se passou com o Keller. Custa a acreditar que ele fosse responsável pelo que se passou.

Lara sacudiu a cabeça.

- Eu é que fui responsável. Nunca perdoarei a mim própria.

- A culpa não foi sua.

Sentiu de repente uma imensa solidão.

- Jerry, se ainda não jantou.

- Lamento muito, Lara. Esta noite tenho que fazer.

- Não faz mal.

A porta do elevador abriu-se e eles saíram.

- Os papéis que tem para assinar estão em cima da mesa da sala de conferências - disse Jerry.

- Óptimo.

A porta da sala de conferências estava fechada. Ele deixou que Lara a abrisse, ao mesmo tempo que quarenta vozes começavam a cantar:

- Feliz aniversário, feliz aniversário.

Lara estacou, meio atordoada. A sala estava cheia com as pessoas com quem trabalhara ao longo dos anos - os arquitectos e empreiteiros, os chefes de obra. Charles Cohn estava lá, e o professor Meyers. Horace Guttman e Kathy e o pai de Jerry Townsend. Mas o único que Lara viu foi Philip, Philip que avançava para ela, de braços abertos. E Lara de repente sentiu-se meio sufocada.

- Lara. - Era uma carícia.

Deslizou para os braços dele, lutando para reprimir as lágrimas e pensou, Estou em casa. Este é o meu lugar, e sentiu uma reconfortante e abençoada sensação de paz. Sentia-se radiosa ao abraçá-lo. Isto é a única coisa que importa, pensou.

As pessoas rodeavam-na e todos pareciam falar ao mesmo tempo.

- Feliz aniversário, Lara.

- Estás maravilhosa.

- Ficou surpreendida?

Lara voltou-se para Jerry Townsend.

- Jerry, como é que você.

Ele sacudiu a cabeça.

- O Philip é que arranjou tudo.

- Oh, meu querido!

Os criados tinham começado a chegar com os hors d'oeuvres e as bebidas.

Charles Cohn disse:

-Aconteça o que acontecer, sinto-me orgulhoso de si, Lara. Dizia que queria mudar as coisas e mudou.

O pai de Jerry Townsend dizia:

- Devo a minha vida a esta mulher.

- Também eu. - Kathy sorriu.

- Vamos fazer um brinde - disse Jerry Townsend. - À melhor patroa que eu já tive ou alguma vez poderei vir a ter!

Charles Cohn ergueu o copo.

- A uma rapariguinha maravilhosa que se tornou uma mulher maravilhosa!

Os brindes prosseguiram e finalmente foi a vez de Philip. Havia muita coisa para dizer e ele pôs tudo em cinco palavras:

- Á mulher que eu amo.

Os olhos de Lara estavam cheios de lágrimas. Tinha dificuldade em falar.

- Eu. eu devo tanto a todos vós - disse. - Não poderei pagar-vos. Apenas quero dizer... - A voz faltou-lhe, não a deixando continuar. - Obrigada.

Lara voltou-se para Philip.

- Obrigada por este momento, querido. Foi o melhor aniversário que jamais tive. - De repente, lembrou-se: - Tenho de voltar para Reno ainda esta noite!

Philip olhou para ela e sorriu:

- Eu nunca estive em Reno.

Meia hora depois iam na limusina a caminho do aeroporto. Lara segurava a mão de Philip e pensava. Afinal não perdi tudo. Vou passar o resto da minha vida a compensá-lo. Nada mais importa. A única coisa importante é estar com ele e cuidar dele. Não preciso de mais nada.

- Lara.

Ela olhava pela janela.

- Pare, Max!

Philip olhou-a, espantado.

Tinham parado em frente de um grande lote vazio, coberto de erva. Lara olhava-o fixamente.

- Lara.

- Olha, Philip! Olha!

Ele voltou a cabeça.

- Que é?

- Não estás a ver?

- A ver o quê?

- Oh, como é bonito! Um centro comercial ali, naquele canto! No meio construímos apartamentos luxuosos. Há espaço para quatro edifícios. Agora já estás a ver, não estás?

Ele continuava a olhar para Lara, atónito.

Lara voltou-se para ele e disse, numa voz carregada de excitação:

Bom, o meu plano é o seguinte.

 

 

                                                                  Sidney Sheldon

 

 

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