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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CAÇADOR DE PALAVRAS / Walcyr Carrasco
O CAÇADOR DE PALAVRAS / Walcyr Carrasco

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CAÇADOR DE PALAVRAS

 

               Palavras compõem o universo de qualquer pessoa. As complicadas, as mais usadas, as desconhecidas, as indispensáveis, as amorosas, as de desprezo. Difícil imaginar uma situação humana sem elas.

               A descoberta da importância da palavra e dos seus inúmeros sentidos, esse o grande desafio. Que você enfrenta quando consulta um bom dicionário. Nossa personagem Júlio Malatesta, na novela O caçador de palavras, sabe disso e busca, através de múltiplas aventuras e desventuras, um sentido para a sua palavra.

 

Há semanas, ando perdendo o sono. Passo as noites olhando a lua transformada em quebra-cabeça pelas grades. Muitas vezes, acordo com o frio, ou devido a coceira provocada pelas pulgas que povoam meu esburacado colchão. Também sou despertado pelos roncos sonoros de meus colegas de prisão, que parecem ter engolido alguns motores a diesel. Mas não posso reclamar. Apesar desse desconforto, fui colocado junto a prisioneiros pouco violentos, como eu. Já é uma vantagem para quem está numa situação onde tudo é desvantajoso. O pessoal daqui costuma dividir as bananas e laranjas que ganham das famílias. Para mim, é outra vantagem, pois sou o que menos visitas recebe.

Resolvi aproveitar as madrugadas insones para escrever meu relato. Um tanto por vaidade, mas também com a esperança de que um possível juiz mais poético saiba me compreender. Quero deixar registrada a minha saga, para que algum dia eu seja lembrado como autor de um feito sublime: ser o dono de uma palavra que escolhi, divulguei e imprimi na fala das pessoas como uma tatuagem.

A grande aventura da minha vida começou de forma absolutamente inesperada. Há pouco tempo atrás, relativamente, eu era um sujeito como outro qualquer. Tinha um emprego chato, desenhando gráficos de vendas em um escritório. Ganhava razoavelmente. Pelo menos, podia pagar um pequeno apartamento no centro de São Paulo, e comer em uma boa pensão perto do trabalho. Algumas das minhas meias, confesso, tinham um furo no dedão, ou o cano um tanto esgarçado. Mas eu refletia: quem é que olha para meias? Pode parecer coisa de porco, já que também não tinha o hábito de lavá-las com frequência. Confesso: nunca tive muito talento para as atividades domésticas.

Apesar de não ser mais um adolescente, eu sempre tive muito a ver com quem ainda não chegou aos vinte anos. Explico: em geral, com uma certa idade, as pessoas se acomodam, ficam sérias, e deixam de, às vezes, olhar a noite e pensar sobre as estrelas.

Admiro os bem jovens porque todos eles, de certa maneira intuitiva, sabem que a vida é uma página em branco, e que somos nós mesmos quem escrevemos nossa história. Naqueles dias, eu me sentia exatamente assim: uma página em branco, como se o livro de minha vida não tivesse sido realmente iniciado. Eu esperava, enfim, descobrir um sentido, um objetivo, uma atividade que me desse paixão. Os dias, porém, sucediam-se calmamente, sem mudanças, sem nuances.

Perdi minha família muito cedo. Sou sozinho no mundo, tenho apenas alguns primos distantes. Trabalhava em uma empresa pequena, conhecia pouquíssima gente. Sofria com a solidão, é claro. Quem não? A maior parte das noites, eu comia um sanduíche em um bar, ou tomava um copo de leite quente, e entrava em um cinema. Se pudesse, escolhia algum com sessão dupla, para ficar horas e horas em frente à tela mágica. Muitas vezes, assistia ao mesmo filme duas vezes seguidas: a primeira, para entender a história. A segunda, se o filme fosse bom, para observar cenários, figurinos, a interpretação dos atores.

Foi por causa de minha mania de ir ao cinema que tudo aconteceu.

Naquela noite, eu estava cansado. E o filme era bem aborrecido, para dizer a verdade. Só fiquei para a segunda sessão porque estava chovendo, e não queria molhar os sapatos. Nos primeiros dez minutos de filme, adormeci. Meu corpo escorregou da cadeira, e dormi tão confortavelmente como em minha cama.

Acordei em plena escuridão e silêncio. No início, nem sabia onde estava. Aos poucos, meus olhos foram se acostumando com a falta de luz. Vi a tela branca, o letreiro de saída apagado. Não entendi, imediatamente, o que estava acontecendo. Levantei, atordoado. Com dificuldade, empurrei a porta de entrada. Pesada. Saí no saguão. Só então percebi o que havia acontecido: haviam esquecido de mim, no cinema. Completamente. Talvez não tivessem me visto. Olhei o relógio, estava no meio da noite.

Quis telefonar. Fui até o escritório, estava trancado. Pensei em quebrar o vidro. Nunca senti tamanho desespero.

É incrível como um cinema vazio, à noite, pode ser tétrico. Olhava para as paredes, via sombras. Ouvia ruídos. Ao mesmo tempo, tentei raciocinar. Arrombar a porta, ou qualquer coisa do tipo, poderia terminar em confusão. Chamar a polícia também: como explicar minha presença, se todos pensariam, no primeiro instante, que eu era um ladrão? O ideal, sem dúvida, era aguardar algumas horas, e esperar, pacificamente, que alguém viesse abrir o cinema. Poderia, então, sair calmamente.

Como passar aquelas horas difíceis? Foi quando vi, no canto do balcão da doceira, ajudando a apoiar uma lata, um livro grosso. Fui até ele. Peguei. Era bem pesado.

Saí do saguão, onde só entrava a luz do luar, e fui ao banheiro. Acendi a luz. No hall de entrada que levava aos dois toaletes, havia um sofazinho velho. Sentei, e abri o livro. Era um dicionário com a origem e o significado das palavras. No primeiro instante, pensei:

— Bem que eu preferia um livro policial.

Puro engano. Só para me distrair, comecei a folheá-lo. Pouco a pouco, fui sendo envolvido pelo universo fascinante das palavras. Elas começaram a brilhar para mim como estrelas no céu. Da mesma forma que todas as pessoas, sempre vivi cercado por verbos, substantivos, adjetivos. Com eles, dei forma a sentimentos, expressei vontades, descobri risos, comuniquei emoções. Mas, assim como não se pensa conscientemente nos dedos cada vez que se pega um garfo, também não me detinha nas palavras. Elas faziam parte de mim como os olhos, os cabelos e as unhas. Eram tão enredadas no cotidiano como o elevador do prédio, o ônibus, o cartão de ponto. Apesar de fluírem através da vida com tanta facilidade quanto o ar que respirava, as palavras eram um instrumento que eu usava mecanicamente.

De repente, tudo mudou.

Naquela noite, descobri que as palavras guardam histórias. Percorrem os tempos, registrando emoções, atravessam vidas. Entendi, pela primeira vez, o fascínio dos poetas ao brincar com elas, criando versos e rimas que trazem os sons das marés, a cadência dos sentimentos, o colorido das primaveras. A paixão de quem faz letras de músicas, sonoras por si sós, onde as palavras remetem umas às outras, dançam entre si. Senti o encanto dos escritores, que as usam para criar mundos e vidas, como se fossem bilhetes para viagens fulgurantes. E então, eu também me apaixonei, porque descobri, mais que tudo, o quanto as palavras são vivas.

Deixei de ouvir os ruídos, de olhar as sombras daquele cinema vazio. Era como se eu estivesse lendo um romance que falava de todas as pessoas, de toda a humanidade. Quis seguir a trilha das palavras. O livro me ensinava a desvendar os pequenos mistérios ocultos em termos prosaicos. A palavra bebê, tão simples, revelou a vida de uma corte misteriosa. Sua origem, provavelmente, aconteceu com os balbucios infantis. Mas ela só entrou para a língua através de um personagem: Bébé (lê-se Bebé). Foi um anão célebre de uma corte imperial. Viveu entre 1739 e 1764. Na época, os anões eram usados para divertir os nobres com palhaçadas e piadas. Usavam roupas de guizos, davam cambalhotas, faziam comentários venenosos. Bébé foi famoso, um artista da galhofa, cujas piadas eram repetidas por todos. Incorporou seu nome na língua francesa. O termo acabou desembarcando no português, e hoje todo mundo fala em bebês, embora a corte tenha desaparecido e o anão com guizos e roupas de veludo não seja mais do que uma lembrança no idioma.

Descobri que as palavras ganham e perdem significados, como se fossem pedaços de argila modeláveis com a história de cada povo. Alguém hoje fala em camisinha para dizer que a camisa está pequena? Mais que isso: outdoors, panfletos, livros, falam abertamente na importância dos preservativos. No entanto, houve época em que a simples menção da camisa-de-vênus — nome dado por nossos avós à camisinha — era motivo de escândalo, principalmente diante de uma dama. Quantos duelos terão sido travados por isso?

Aquela noite mudou minha forma de ser. Passei horas lendo o dicionário, e quando amanheceu eu estava absolutamente encantado. Entrou um servente com um balde. Ele me olhou espantado: jamais esperaria encontrar alguém lendo de madrugada, na porta do banheiro, dentro do cinema. Aproveitei sua surpresa para me levantar e sair sem dar maiores explicações.

Levei o dicionário comigo. Como um livro tão fascinante podia estar sendo usado como apoio para uma reles lata de biscoitos? De fato, sentia que pela primeira vez na vida alguma coisa me despertava, me fazia vibrar. Finalmente, podia escrever nas páginas em branco da minha vida. Eu tinha me apaixonado pelas palavras.

Muitos mestres esotéricos garantem que as grandes mudanças da vida acontecem assim, de uma forma que parece construída pelo acaso. Sábio é o homem que aprende a ver nos acontecimentos que o cercam as indicações de um caminho mais profundo. Acredito ter ocorrido exatamente isso comigo. Fiquei fascinado pelas palavras, e pressenti que nesta paixão estava cravado meu destino. Mesmo agora, na cadeia, não me arrependo. Não vejo o tempo que passarei na prisão como um porto final, mas como um contratempo em um caminho que, se não me trouxe a felicidade, tal como as pessoas falam, pelo menos me deu sede de viver. Errei, é certo, em muitos aspectos. Mas sei que agora poderei orientar a experiência para horizontes mais amplos, corno mostrarei com a minha história. Há quem diga aqui na cela, porém, que fui preso por causa das palavras.

Só eu sei: não foi exatamente por culpa delas. Mas devido a uma descoberta pessoal. Concluí que as palavras valem mais que roupas ou outros artifícios sociais. Quem fala como malandro, é encarado como tal. Quem usa termos de economia, passa por conhecedor dos mecanismos financeiros. Os que falam pausadamente, com termos elegantes, são considerados chiques.

Todas essas ideias surgiram porque pesquisar palavras tornou-se uma mania em minha vida. Dia e noite, eu me deliciava com elas. Fiquei tão entregue às minhas novas ideias que, em pouco tempo, tive minha primeira vitória: fui demitido. A verdade é,que passava todo o expediente fazendo gráficos não de vendas, mas da história das palavras. Tudo aconteceu quando resolvi estudar o termo mameluco.

Desde a escola de primeiro grau, aprendera que mameluco define os filhos de índios e brancos.

Numa incursão à etimologia —- ciência que estuda a origem das palavras —-, descobri que mameluco vem do árabe mamluk. Originalmente, o soldado de uma milícia turca egípcia formada por escravos. Refleti durante dois dias sobre a trajetória do termo. Imaginei um grupo de árabes desembarcando no Brasil, conservando entre si sua língua, vivendo em casas próximas umas das outras. Olham com preconceito os nativos, de pele acetinada, olhos ligeiramente amendoados. Os primeiros filhos de índios e brancos eram marginalizados na sociedade brasileira — só encontravam trabalhos subalternos. Os árabes, ao vê-los inferiorizados, começam a chamá-los de mamluks — um exército de trabalho quase escravo. A palavra vai sendo absorvida. Perde a conotação malvada, e entra para os livros de escola.

No dia da demissão, eu estava traçando, distraidamente, a história da palavra numa folha de papel. Em um canto, coloquei as pirâmides. Depois, desenhei um barco, com o grupo de árabes deixando o Cairo. Nesse momento, senti a folha deslizar de minha mão. Mais exatamente, para os dedos de meu chefe.

— Júlio, que história é essa?

Tentei explicar. Ele perguntou pelos gráficos, atrasadíssimos, razão pela qual viera falar comigo. Eu me confundi. Quis dizer que não era apenas um mamluk, um escravo. Tentei falar de meus desejos e aspirações. Inútil. Há semanas estava de olho em mim. Se eu tivesse conseguido me explicar, talvez me perdoasse. Mas as palavras transformaram-se em uma teia de confusão. Muitas vezes as ingratas nos faltam, quando mais as necessitamos. Recebi o bilhete azul.

Sei que deveria ter ficado preocupado, principalmente num momento em que as pessoas falam tanto de crise financeira. Nunca me senti tão feliz. Aliviado, até. Eu estava ávido para viver a grande aventura da minha vida.

Porque naqueles meses de paixão por verbos e substantivos, um sonho tomara meu coração. Meu nome teve muito a ver com isso. Júlio era o nome do imperador romano Júlio César, por quem Cleópatra se enamorou. Além de legar o nome e a lista das batalhas que venceu para a posteridade, Júlio César deixou um mês, julho. Seu sucessor, o imperador Augusto, fez o mesmo: batizou agosto. Meu sobrenome também tem significado, embora não seja tão charmoso: Malatesta. É de origem italiana. Em bom português, Júlio Malatesta significa Júlio, o pirado. Desde que me apaixonei pelas palavras, sabia que não seria escritor ou poeta. Apesar disso, tinha a ambição de deixar uma marca de minha passagem pelo mundo. Inspirei-me em Bébé, o anão, e no imperador de quem herdei o nome.

Decidi deixar uma palavra. Nem mesmo fazia questão de que soubessem que era minha. Só queria difundir uma palavra que se incorporasse à língua. Para ser falada na rua, lida nos discursos, livros e poemas, chorada nas novelas. Queria apenas ser o proprietário secreto de uma simples palavra. Um sonho anônimo, mas para mim tão vivo quanto os grandes sonhos podem ser.

Pensei, pensei.

Era preciso dar novo rumo à minha vida. Deixei de procurar emprego, restringi meus gastos. Sequer voltei a comer na pensão: especializei-me em ovos fritos e omeletes. O que era um simples desejo foi tomando forma, e eu me propus a criar uma palavra que trouxesse alegria, felicidade, alto-astral.

Seria sinônimo para o amor, resolvi. O amor é uma palavra, sem dúvida, presente nos momentos de felicidade. Mas, de que maneira dizer amor? Antes de mais nada, deveria criar a palavra, ou dar nova vida a um termo. E, em seguida, torná-lo tão vivo quanto uma palavra deve ser.

Tão viva quanto o amor.

Criar uma palavra não é tão simples quanto parece. Quando eu era criança, tinha a mania de brincar com a língua do P. Não sei se a moda hoje continua. A gente fala acrescentando "pe" a cada sílaba. Por exemplo:

— Peme pedá peum pesan pedu peí peche?

Parecem os sons de alguma obscura língua oriental. É apenas o velho português misturado com "pes". Quando meu sonho foi tomando forma, imaginei que poderia criar a palavra a partir de qualquer som bonito ou exótico. Em vez de amor, poderia exclamar, talvez:

— Apupuru baialu!

Dificilmente alguém se apaixonaria por mim ao ouvir uma coisa dessas. Seria considerado um louco varrido e ganharia uma camisa-de-força. Não, não podia ser assim. Estudei durante meses a história das línguas. Foi um passeio interessante, que me remeteu aos tempos em que surgiram as palavras, quando os homens viviam nas cavernas envoltos em peles sangrentas e tremiam a cada estrondo do trovão.

Permitam-me essa digressão: a maior parte das línguas faladas hoje em dia tem urna raiz comum. Uma raiz tão distante que se perde na noite dos tempos. É o idioma indo-europeu. Durante séculos, línguas como o latim, o sânscrito e os idiomas germânicos pareciam tão distantes entre si quanto a Terra e a Lua. Estudiosos no século XIX descobriram que essas línguas nasceram do mesmo idioma.

O português vem do latim, um idioma, indo-europeu, assim como o francês, o espanhol, o italiano. Mesmo o inglês, língua não latina, possui um número imenso de palavras latinas. Com o passar dos anos, o português incorporou palavras de outras línguas: do francês, do inglês, do árabe, do japonês. Todos os termos ligados a computadores vêm, por exemplo, do inglês, pois a indústria de informática surgiu nos Estados Unidos. Qualquer um fala em videogame, por exemplo. Game, em inglês, quer dizer jogo. A moda da culinária japonesa, que cresceu muito no Rio de Janeiro e São Paulo, trouxe um novo termo para a língua: sashimi. É um prato feito à base de peixe cru, que nenhum restaurante japonês deixa de servir. Mas a palavra é nipônica.

Descobri, nas minhas investigações, que eu não poderia usar qualquer palavra para falar de amor, simplesmente tentando lhe imprimir um novo significado. Como chegar para uma namorada, por exemplo, e dizer:

— Você é um sashimi.

— Está me achando com cara de peixe cru?

Horrível.

Não, eu deveria descobrir uma palavra esquecida e trazê-la de volta para a língua.

Onde caçar uma palavra?

Lembrei, então, dos escravos.

O Brasil teve um dos maiores contingentes de escravos do mundo. Vergonhosamente, foi o último país a abolir a escravatura. Navios cheios de negros atracaram em nossos portos. Apesar disso, poucas são as palavras de origem africana em nosso vocabulário.

Pobres negros! Aqui chegaram, perdendo a família, a terra, a liberdade. Deixaram sua marca na música, e também na religião, com o candomblé, a umbanda e a quimbanda. Criaram pratos como a feijoada, que se tornou uma instituição nacional. Boa parte dos brasileiros, como eu, tem uma pele amorenada, um cabelo cacheado, que indicam uma bisavó africana, ou um tataravô escravo. Mas, e as palavras?

Há uma grande briga, hoje, criada pelos líderes negros, contra a palavra mulato, que querem abolir do idioma. Criada para definir o mestiço de branco com negro, teria sido inventada a partir de mula! Como se fosse um xingamento. Tal como chamar hoje alguém de burro, ou coisa pior. Para os negros, hoje ern dia, uma prova de preconceito gravada na língua como os grilhões na carne dos escravos.

Não tenho poder para retirar palavras do idioma. Mas achei que poderia prestar uma homenagem aos negros, introduzindo uma nova. Seria também uma forma de lembrar meus antepassados desconhecidos, de quem herdei este tom amorenado que tantos elogios já recebeu, modéstia à parte. Fui a um centro de línguas negras. Pesquisei.

Horrorizado, descobri que além dos nomes dos santos das religiões afro-brasileiras e termos ligados a elas, pouca influência havia dos escravos na língua. A palavra acarajé vem do iorubá, língua falada por um grande contingente de escravos. Resolvi buscar no iorubá a palavra que seria a razão de minha vida.

Ifes nessa língua, quer dizer amor.

Bonita, pensei. Hoje, depois de tudo que aconteceu, sei que na época fui absolutamente ingênuo. Achava que com uma palavra charmosa na cabeça, não seria difícil fazer com que fosse falada. Imaginei cenas românticas, como eu, numa canoa, pegando na mão de uma bela jovem e dizendo:

— Ife.

Até aquele momento, não tinha um plano.

Pensava em me apaixonar, em falar ife aqui e ali.

Também não podia imaginar que, menos de um ano depois, estaria diante de um tribunal, tentando dar explicações para um juiz implacável. Embora seja obrigado a reconhecer que uma coisa tenha levado a outra. Prefiro acreditar que os acontecimentos se sucederam como uma bola de neve que foi crescendo, crescendo, e que não pude mais deter.

Tudo começou a se precipitar quando fui despejado do apartamento. Foi humilhante. Já tinham cortado a luz, mas eu me mantinha com velas. Depois foi a água, mas por bondade do zelador do prédio tomava um banho semanal no apartamento dele. Ganhava pãezinhos na padaria, do português que era um velho amigo meu. De nada mais precisava: bastava passar os dias nas bibliotecas, estudando as palavras.

Durante meses, deixei de pagar o aluguel. Não que planejasse dar um calote tão grande. Passivo diante dos acontecimentos, talvez aguardasse alguma solução mágica. Esperava que um raio caísse, algo acontecesse, para me tirar daquela situação. Finalmente, depois de idas e vindas à imobiliária, descobri que tinham trocado a fechadura do apartamento. Não podia sequer pegar minhas coisas, pois fora interditado pela lei.

Naquela noite, abriguei-me na sala do pequeno apartamento do zelador. Foi ele também quem me ajudou a entrar em meu antigo quarto através da janela de um vizinho. Consegui pegar algumas roupas e uns livros, mas foi só.

Sei que, judicialmente, eu poderia lutar. Mas seria incapaz de encarar os olhos magoados de minha fiadora, uma velha amiga de minha mãe, que além de viver com dificuldades, herdara minha dívida. Era melhor que vendessem as poucas coisas que eu tinha, para diminuir o valor do pagamento com que ela teria de arcar. Prometi a mim mesmo, um dia, pagar com juros a safadeza que eu estava aprontando agora.

Não fosse o remorso por desfalcar a pobre senhora, até me sentiria bem. Pois estava completamente livre. Toda a minha vida se resumia a uma mochila, algumas roupas, um dicionário e um caderno de anotações. Melhor não ser dono de nada do que só possuir grilhões, pensei.

Já ouvira dizer que, muitas vezes, a gente precisa se libertar de tudo para, do nada, construir uma coisa nova. Resolvi partir, sem saber para onde. O zelador me emprestou uns trocados. Eu o abracei, emocionado — era o único amigo que me restava na cidade. Em seguida, peguei um ônibus e desci no ponto final, onde começava a estrada.

Olhei o asfalto sob o sol.

Estendi o braço, fechei a mão, ergui o dedão, à espera de uma carona.

Minha riqueza era ife.

Minha vida era um sonho prestes a começar.

Meu destino, decidi, as palavras iriam dizer.

Um carro parou. Corri até ele e parti para o desconhecido.

 

Quando conto minha história para os companheiros de cela, eles se admiram pelo fato de eu ter conseguido pegar uma carona. Nesses tempos violentos, quase ninguém pára na estrada. Ainda mais para um rapaz de porte, como eu. Mas ninguém estranharia se conhecesse Pedro Cuatá. Logo que entrei no carro, eu é que tive certo receio, para dizer a verdade. Era um tipo completamente original: cabelos pretos, puxados, formando um rabo de cavalo. Óculos redondos, jeans rasgados e um casaco feito de retalhos coloridos. Ouvia rock no último volume. Ao me abrir a porta, notei que colocava uma valise no banco de trás. Também joguei minha mochila. Logo que começou a conversar, notei um acento estranho no seu português. Começamos a falar aos berros, acima da música. Logo entendi toda a história.

Pedro Cuatá morava há anos fora do país. Trabalhava em uma universidade próxima a Nova York, em um instituto de pesquisas econômicas. Era, por incrível que pareça, um dos mais respeitados economistas do mundo. De tanto falar inglês, adquirira aquela espécie de sotaque. Não que seu português fosse ruim: apenas, falava com cuidado, como se escolhesse os termos, dando uma pequena pausa entre eles. Divertido, sorridente, Cuatá estava há apenas uma semana no Brasil. Entendi, com alguma dificuldade, que visitara os pais, em São Paulo, e que ia para o Rio de Janeiro participar de um simpósio sobre os rumos econômicos da América Latina. Perguntou o que eu fazia.

Respondi que não estava fazendo nada. Observei, sem prestar muita atenção, que era apenas um pouco mais velho do que eu. Pouco a pouco, a conversa foi terminando. Na verdade, eu já estava um pouco rouco, de tanto gritar para ser ouvido acima da música. Deitado no banco, quase cochilei.

Fui acordado pelo som de pneus rasgando o asfalto, um rangido insuportável. Apavorado, constatei que o carro dava voltas sobre si mesmo, desgovernado. Cuatá tentava, desesperado, segurar o volante, mas o carro dava guinadas. Vi, em um instante, uma árvore se aproximando rapidamente do capo. Tudo ficou escuro, e eu esqueci de mim mesmo.

Acordei em um quarto de hospital. A perna estava com pequenas ataduras. O braço, dolorido. Quando me mexi, parecia, por um momento, que todo o corpo estava deitado em vidro moído. Um rapaz vestido de branco entrou no quarto, com duas chapas na mão.

— Que aconteceu? — quis saber.

Não vou me deter em detalhes. Depois de uma derrapagem, o carro batera em uma árvore. O jovem médico examinou as chapas e verificou o que meu corpo já sabia: apesar do choque e da dor causada pela tensão, eu estava inteiro. Seu amigo, ele explicou, também não estava mal. Sofrera uma intervenção cirúrgica leve, para repor um osso da perna no lugar, e estava sedado. Deveria ficar em absoluto repouso durante uma semana.

— O carro está destruído. Vocês tiveram sorte.

Nesse instante, ele fez a pergunta que mudou tudo:

— Desculpe, mas qual dos dois é você? Pela identidade não deu para descobrir.

Mil ideias passaram por minha cabeça, em um ziguezague. Tínhamos idades próximas, cabelos pretos e o ar um tanto enlouquecido. Os cabelos dele estavam tão compridos que a foto da identidade deveria estar completamente diferente. E eu, de fato, tinha um tipo muito próximo ao dele. Quase sem perceber o que estava dizendo, afirmei:

— Sou Pedro Cuatá.

Reconheço que do ponto de vista judicial, essa primeira mentira pesou muito contra mim. Houve até quem me acusou de ter provocado o acidente. Não é verdade: apenas aproveitei o que parecia ser o destino, como se fosse um ônibus passando em direção ao futuro.

Dita a primeira frase, as outras me vieram naturalmente. Expliquei que tinha importantes compromissos no Rio de Janeiro, e devia viajar o mais rápido possível. Ainda pedi para usar um telefone, do qual fingi ligar para a família de Júlio, para que alguém viesse acompanhá-lo no hospital. Peguei a valise de Cuatá. Não foi difícil abri-la, nem chave tinha. Havia pouca coisa: algumas peças de roupa, um envelope com passaporte e outros documentos, e uma grande pasta, cheia de papéis. Também me apropriei, reconheço, de um maço de dólares, e de alguns cruzeiros, com os quais comprei às pressas uma passagem de ônibus e parti, não sem antes recomendar que cuidassem muito bem de meu amigo acidentado, até a chegada de seus familiares.

Sim, eu sei que não fui muito honesto. Para ser mais preciso, nâo fui nem um pouco honesto. Mas sabia que o verdadeiro Cuatá estava fora de perigo. Era questão de tempo para se recuperar, retornando às atividades normais. E eu... confesso agora... descobrira que tinha um plano na cabeça.

Francamente, eu não sei como essas coisas acontecem comigo. Mas, muitas vezes, começo a agir de uma determinada maneira, sem pensar muito no assunto. Mais tarde, descubro que é como se tivesse um plano anterior, bem formulado. Foi o que aconteceu com a troca de identidades. No ônibus, durante a viagem, apesar do corpo dolorido, eu não conseguia dormir. Pois resolvera assumir, integralmente, o papel de Cuatá, e queria me preparar para isso.

Há um conto de Lima Barreto que me influenciou demais. Chama-se "O homem que sabia javanês". É a história de um sujeito que não fala uma palavra dessa língua. Mas, por falta de dinheiro, aceita um emprego de professor de javanês. Logo, torna-se uma celebridade, por conhecer um idioma tão difícil. Transforma-se em uma sumidade nacional, sem jamais ter falado uma palavra sequer da língua. E mais: nunca chega a ser obrigado, realmente, a ensiná-la.

O conto ajudou a completar o meu plano. Se eu queria divulgar uma palavra, fazer com que ela fosse minha passagem para uma vida cheia de significado, eu não podia me restringir ao pequeno mundo dos empregos subalternos, dos escritórios fechados, dos apartamentos apertados. Não, eu devia me envolver com as pessoas que detêm os cordões do mundo, que influenciam a sociedade de maneira definitiva. O mundo dos economistas, nesta época em que tanto se fala das atividades financeiras, seria um deles. Os economistas falam nos jornais, fazem planos, inventam medidas. Tudo o que dizem está na ordem do dia.

Respirei fundo. Eu iria dar a conferência no lugar de Cuatá. Aproveitaria para conhecer meus pares. Perigo havia, é verdade. Mas Cuatá vivia fora do país há anos. Quantos poderiam conhecê-lo intimamente? Era um risco mas, na minha situação, como não deixar de corrê-lo?

Uma última coisa me decidiu. Na pasta com os papéis, havia um texto, aparentemente escrito pelo próprio Cuatá, que serviria de base para a palestra. Junto a ele, a lista dos participantes. Ela estava lá, como oradora principal.

Ela! A economista mais famosa do país, no momento. Nélia Fragoso. Assessora especial do governo brasileiro. Cabelos cacheados, que lhe davam um charme todo especial quando se virava para falar. Alguém que merecia ouvir, de coração, a palavra ife.

Nunca pretendi ser um vigarista, acreditem. Foi o nome dela que me balançou. Depois de meses estudando as palavras, eu sabia que poderia falar como um empresário, um malandro ou um economista. Ninguém duvidaria de minha identidade, imaginei.

Desembarquei no Rio de Janeiro e fui para um hotel, onde me registrei com minha nova personalidade. A conferência seria para o dia seguinte. Aproveitei para descansar e ler, muitas e muitas vezes, a palestra de Cuatá. Também fiz uma lista dos termos que ele mais empregava. Nem dormi. Passei a noite diante do espelho, escolhendo os termos que devia usar ao me dirigir às pessoas, com voz pausada. Não poderia, por exemplo, falar gírias. Alguém que vive fora do país fala, por incrível que pareça, um português mais correto, cuidadoso, sem nenhuma das imperfeições gramaticais que dominam o cotidiano.

Quando chegou a manhã, eu estava pronto. Vesti as roupas de Cuatá: as mangas eram um pouco longas, ele era mais alto do que eu. Mas lembrei de seu estilo relaxado, e as dobrei, com naturalidade. Na rua, comprei um par de óculos redondos, sem grau, para ficar mais parecido. Peguei um táxi e fui para o simpósio.

É claro que sentia um frio na barriga. No entanto, tudo foi muito mais fácil do que eu pensava. Havia lugares reservados para Pedro Cuatá na mesa principal, com hora para falar, e, depois, junto a importantes empresários para o almoço. Na primeira oportunidade, durante a sobremesa, consegui me aproximar da beldade dos números, que comia ao lado de dois senadores. Fui cumprimentá-la:

— Gostei muito da forma como analisa o desenvolvimento da América Latina — expliquei. — É uma visão macro que se apóia em subsídios importantes das teorias econômicas secundárias.

Eu não sabia o que estava dizendo. Mas as pessoas gostam de elogios feitos com palavras difíceis. Economistas sempre falam em macro, micro, subsídios, e coisas do gênero. Ela sorriu deliciada:

— Também tive muito prazer em ouvi-lo, embora discorde da ênfase que coloca na questão das taxas de juro.

Devolvi o sorriso, como se tivesse ouvido o maior elogio do mundo. Ao ler a conferência, percebera que Cuatá falava em taxas de juro o tempo todo. Portanto, ela devia ter entendido o que eu dissera embora, pessoalmente, eu não compreendesse uma linha. Ficamos assim, por alguns instantes, sorrindo um para o outro.

Tudo poderia ter terminado aí. Com um belo almoço, alguns elogios. Podem não acreditar, mas eu estava até arrependido de ter abandonado o simpático Cuatá no hospital. Foi então que ela disse, com naturalidade:

— Mas teremos muita oportunidade de conversar sobre isso no fim de semana, não é?

— Fim de semana?

Ela me olhou, curiosa:

— Esqueceu?

Tomei uma golfada de ar. Por sorte, uma jovem loira, de tailleur, se aproximava, e me tomou pelo braço. Queria que eu conversasse com determinado empresário, de quem era assessora. Fui, meio tonto. Onde é que eu deveria estar no fim de semana? Notei que Nélia me encarava, curiosa.

Logo acabou a confusão. Quando falava com o empresário, outra jovem me procurou, nervosa.

— A doutora Nélia pediu que eu falasse com o senhor. Teve a impressão de que há algum problema em relação ao fim de semana.

— É que estou sem minha agenda e... — murmurei, espertamente.

Surpresa, a mocinha me encarou como se eu fosse doido:

— Talvez tenha se confundido. O senhor está sendo esperado para o fim de semana em Angra.

Percebi que a moça era apenas uma secretária. Era melhor me fazer de distraído — tipo que, aliás, tinha tudo a ver com o verdadeiro Cuatá. Nervosamente, ela pegou o endereço de meu hotel. Um carro passaria para me pegar na manhã seguinte, para alguns dias na casa de praia de um importante industrial. Aparentemente, Cuatá aceitara o convite por telefone, quando ainda estava nos Estados Unidos. Na ocasião, estariam presentes vários empresários e economistas importantes. Percebi também que Cuatá parecia ser uma peça fundamental do encontro. Por quê?

Se eu tivesse um pingo de juízo, reconheço que deveria ter fugido de toda aquela situação. Mas... e meu ife? E meu sonho? Era a chance de estar perto das pessoas que decidiam a vida de toda a nação, em muitos aspectos. Não poderia haver lugar melhor para tornar viva uma palavra. Aceitei tudo que surgia alegremente. E, no dia seguinte, um carro com motorista passou em meu hotel. No cais de Angra, uma lancha me esperava, e me levou a uma casa, em uma ilha particular.

Casa? Parecia um castelo, de tão grande. Muros cobertos por densa vegetação. Porto próprio. Praia de areias brancas.

Ife! Seria esse o rumo que as palavras tinham escolhido para esse seu pobre servo?

Resolvi aproveitar a oportunidade para conhecer um tipo de vida que só vira em livros, revistas e reportagens de televisão. Sabia, entretanto, que seria perigoso me trair. O primeiro passo era dar a impressão de que estava acostumado a tudo aquilo. Muitas vezes as pessoas se traem por ficarem surpresas com tudo que está a sua volta. Adotei um ar enfastiado, como se tudo aquilo fosse comum e cansativo. Como um grande economista, só deveriam me interessar as teses, as teorias, números e livros. Sabia exatamente como devia ser minha expressão: é o que se chama, nos livros, de um ar blasé. Só quem não está acostumado com o luxo passa o tempo inteiro dizendo: "Que lindo!"

Ninguém suspeitaria, pelo meu olhar cheio de naturalidade, que eu fora despejado de um apartamento menor do que qualquer dos banheiros da mansão. Nem que passara o último mês sustentado por pãezinhos amanhecidos.

Mal entrei, ouvi uma voz entusiasmada:

— Cuatá!

Era Nélia, de biquini, com o dono da mansão — um empresário chamado Alcebíades — e alguns amigos. Aproximou-se, sorridente:

— Ficamos com medo de que tivesse desistido de vir.

Pela expressão de todos, percebi duas coisas. Ela realmente estava interessada em me ver, do ponto de vista pessoal. Os outros também, por uma razão que eu não conhecia. Deveria estar ligada ao trabalho de Cuatá. Mas por que tanto interesse?

Aparentemente, era um encontro agendado há alguns meses. O grupo era bem específico: dois outros empresários, e suas esposas, Nélia e três economistas, ligados a grandes bancos e firmas de exportação. E eu... ou seja, Pedro Cuatá.

Observei cuidadosamente as pessoas: por detrás daqueles sorrisos, havia um grande mistério. Alguma coisa queriam de mim. Notei — detalhe que terá grande importância depois — que um dos economistas possuía um anel de brasão no dedo mindinho.

O primeiro dia foi glorioso. Passeamos de lancha no maravilhoso mar de Angra dos Reis. Tomamos sol. Não falamos muito de economia. Mas o segredo das palavras está em nunca se traírem. Mesmo ao fazerem piadas, aquelas pessoas envolvidas em um mundo de números e teorias de crescimento usavam termos de um jargão que eu poderia chamar de eco-nomês. Do tipo:

— Você está tão vermelho como as curvas de consumo.

— Sua barriga cresceu mais do que a inflação.

Logo descobri qual seria o papel de Cuatá naquele fim de semana. Pelo que percebi, ele trabalhava também como assessor de projetos na América Latina para um grande banco americano. Com a sutileza de elefantes, todos procuravam, aqui e ali, decifrar os segredos do banco — o que, para economistas e empresários, poderia gerar investimentos de milhões de dólares. Até hoje não sei se Cuatá havia aceito o convite sem desconfiar das intenções, ou por ter interesse em fazer negócios secretos em Angra. Fiz o que ele deveria ter feito, se fosse honesto: permaneci no mais absoluto silêncio, sempre que tocavam no assunto. Lembro até hoje do economista de anel de brasão comentando:

— Muitas decisões do banco em que trabalho dependem do que as instituições financeiras do exterior estão planejando em relação ao Brasil. Uma informação desse tipo é muito valiosa... acho que me entende.

Fingi que não compreendia a clara proposta de suborno. Por dentro, morria de rir. Eu, que nem tinha talão de cheques, discutindo os rumos da América Latina. Como diz o ditado, o silêncio pode ser de ouro: quando as pessoas querem acreditar em alguma coisa, colocam as palavras na boca da gente. Quanto mais eu me guardava, mais imaginavam que sabia de segredos importantíssimos.

Vivi dias de rei. Se eu estendia a mão, logo vinha um empregado com um suco, um drinque, um salgadinho. Comentei que estava sem roupas de verão, e no dia seguinte Alcebíades me enviou um guarda-roupa completo — que infelizmente não pude levar, quando tudo terminou. Comi como um rei: camarões, lagostas, frutos do mar. Meu único trabalho era falar em economês e adquirir uma expressão misteriosa, quando necessário.

Nélia me olhava com admiração.

— Estou encantada com seu profissionalismo — dizia.

Passávamos as tardes na praia, conversando sobre nossas vidas. Descobri que era uma pessoa solitária, apaixonada por falar de si mesma. O que foi uma sorte: eu podia me comprazer em ouvi-la, sem ser necessário imaginar muitos detalhes de minha carreira nas universidades americanas.

As palavras podem levar alguém muito longe. Se eu fosse um vigarista de fato, teria chances de ter dado um golpe maior. Mas meu objetivo era claro, definido. Viver situações românticas era apenas o caminho para expressar meu ife. Assim, certa tarde peguei as mãos de Nélia, beijei-as e disse:

— Ife.

Você tossiu?

Parecia um início pouco promissor para difundir uma palavra tão bela. Expliquei que não era tosse: apenas falara com ternura a palavra mais bela da língua iorubá. Amor. Os lábios de Nélia se esticaram como um chiclete.

— Você é tão criativo. Se não vivesse no exterior, eu o convidaria para participar de um projeto que estou desenvolvendo para o Congresso Nacional.

Cautelosamente, respondi que era apaixonado pelo projeto que desenvolvia. Suas pupilas brilhavam: por mais apaixonada que estivesse, continuava muito curiosa a respeito de meu pretenso trabalho nos Estados Unidos. Tentou especular a respeito, embora também me confidenciasse estar fascinada pela minha discrição. Mudei de assunto, como sempre fazia quando falavam de meu projeto secreto:

— Meus sentimentos são macro — murmurei.

Ela sorriu, terna.

— Você é meu ife — repeti.

— Você também é meu ife — ela disse.

Quanta emoção! Todos os grandes artistas devem ter vivido a mesma situação, ao criarem uma obra. Saímos passeando de mãos dadas. Confesso que sentia também um certo desespero.

Porque eu já colocara a palavra na vida de Nélia. De agora em diante, quando pensasse em mim, pensaria em ife. E eu, por quanto tempo mais poderia evitar as conversas sobre meu projeto econômico? Missão cumprida: eu devia partir.

Mesmo porque já tinha um novo objetivo. Lera em um jornal que os membros da família real brasileira e outros nobres estariam fazendo uma grande convenção em Parati, quando seriam expostas as jóias da Coroa. Parati e Angra estão próximas: não seria uma indicação do destino para meu próximo passo?

Novamente, eu não formulara um plano em todos os detalhes. Mas, desde o princípio, o anel de brasão do outro economista me atraía...

As coisas, porém, precipitaram-se logo no final da tarde. Quando eu e Nélia voltamos, sorrindo como dois adolescentes, encontramos Alcebíades na sala da mansão, surpreso, com um telegrama na mão. Olhava demoradamente para o papel. Em seguida, me encarou, e deu uma gargalhada.

— Apareceu um maluco — contou-nos.

Simplificando: um economista paulistano, velho conhecido de Alcebíades, avisava que chegaria na manhã seguinte, acompanhado por... Pedro Cuatá!

Nélia comentou que deveria haver algum engano. Certamente, ao anotarem o telegrama, deviam ter entendido mal. O economista devia querer dizer que iria ao encontro de Pedro Cuatá. Todos rimos, divertidos. Mas senti um friozinho na barriga.

No íntimo, estava satisfeito em saber que o simpático Cuatá estava bem. Mas devia sair de lá o mais rapidamente possível, sem dar na vista.

É uma situação difícil: se eu pedisse para ir embora, desconfiariam. Se demorasse muito, seria pior. Sorri, com um nó no estômago, e disse que ia trocar de roupa para o jantar. Subi ao meu quarto. Observei, ao longe, os outros passeando de lancha. Pensei durante algum tempo. Cuidadosamente, abri a porta do quarto de meu colega que usava anel de brasão. Como eu imaginava, o anel estava lá, sobre um móvel: ele não se arriscaria a sair de lancha com uma jóia tão preciosa. Coloquei o anel no bolso da bermuda. Também não podia me vestir muito, para executar meu plano de fuga. Peguei o pacote de dólares que me restava, enfiei na cueca.

Desci para o jantar. Eu precisava impedir que o economista subisse, e desse pela falta do anel, fundamental para meu novo plano.

Nunca fui tão divertido, jamais brinquei tanto com as palavras. Degustei pela última vez o suflê de lagostas, namorei Nélia abertamente. Alcebíades chegou a erguer brindes para nós dois. Eu, secretamente, planejava minha fuga.

Observei o pessoal enquanto todos bebiam. Depois, incluí o economista do anel em um grupo que jogava cartas. Como essas partidas demoram, no meio de uma rodada disse que estava com dor de cabeça e aproveitei para subir, deixando o dono do anel mergulhado em uma confusão de canastras. Ainda troquei um último beijo com Nélia, e entrei em meus aposentos.

Eis agora a prova de que tenho um lado honesto. Coloquei em um envelope todos os documentos de Pedro Cuatá, com um bilhete desculpando-me pelos inconvenientes causados. Mais tarde, o próprio Cuatá deu um depoimento atenuando minhas faltas, em função da delicadeza de meu gesto — embora jamais tenha me perdoado pelos dólares extraviados e por tê-lo deixado sozinho no hospital, logo após o acidente.

Saí cuidadosamente pelos fundos e me escondi nos rochedos. Se ouvisse o grito do economista do brasão, partiria imediatamente. Mas ele deve ter capotado após a noite animada. Assim, pude esperar a madrugada, pois seria perigoso pegar o mar à noite, Aos primeiros raios do sol, parti na lancha. Já tinha verificado como chegar próximo a Parati. Não era fácil, para quem, como eu, não estava acostumado a navegar. Contei com a sorte, e não me dei mal.

Algumas horas depois, podia avistar a pequena cidade histórica. Aí, dei o lance final. Com uma ferramenta que levara, furei o fundo da lancha. Agarrei uma bóia, e deixei que ela afundasse. Vestido apenas com uma bermuda, uma camiseta e o anel de brasão, permiti que as ondas me levassem.

Eu podia ser tragado pelo mar. Ou vencer.

Tudo ou nada, eis a questão.

 

Nunca vou saber exatamente o que aconteceu. Fiquei horas ao sabor das ondas. Ao contrário do que esperava, não fui levado até a praia, como um náufrago. O mar me conduziu para a direção errada. O sol batia no meu rosto, inclemente. Perdi a consciência, de tanta angústia e desespero ao perceber que meu plano estava dando errado. Com um último alento, cravei os dedos na bóia, e isso foi o que me salvou.

Só fui resgatado no fim do dia, por uma lancha de turistas. O condutor me examinou, surpreso. Não me conhecia. Um dos passageiros observou o anel e disse a frase mágica, por que eu tanto ansiava;

— Olhe o anel. Deve ser de família nobre.

O dono da lancha fez o que eu tinha previsto: levou-me diretamente para o ninho de nobres que vivia em Parati, acreditando que eu seria parente deles.

Acordei em um confortável quarto de hotel, limpo e fresco. Uma jovem vestida em um traje azul, de seda, longo e esvoaçante, me encarava. Não posso dizer que fosse bonita: na verdade, além da pele cheia de crateras, causadas por uma acne pior que o grande Canyon, tinha um leve bigode. Ela sorria:

— Que bom que estás bem.

Expliquei que não sabia onde estava. Ela perguntou quem eu era. Respondi, simplesmente:

— Julius Castellana.

Eu escolhera, ao formular o plano, um sobrenome italiano, porque as famílias tradicionais brasileiras se conhecem bem entre si. Têm paixão por nomes como Caio, Fábio, João, Mariana, Fernanda, Maria Isabel. Castellana é um nome ligado à nobreza, pois lembra castelos, condes e brasões. Além disso, ouvira o verdadeiro dono do anel comentar que era de família italiana.

Não preciso entrar em detalhes sobre a conversa que se seguiu: Maria Isabel — esse era o nome da jovem — pertencia à família dos Condes da Barca, que têm, inclusive, direitos sobre a coroa portuguesa.

Como várias famílias da nobreza, andava um tanto arruinada. Ela e os irmãos haviam montado aquele hotel em Parati, com os restos da fortuna familiar. Também era no hotel que, atualmente, se reuniam os membros da aristocracia vindos de outras cidades para a grande festa e a inauguração do museu com as jóias da coroa, sobre a qual eu lera no jornal, e que me dera a ideia inicial para o plano.

Eu nunca tinha estado diante de uma princesa de verdade. É interessante, porque desde crianças ouvimos histórias de fadas, nas quais sempre um plebeu encontra uma princesa, ou vice-versa. Confesso: Maria Isabel era bigoduda, tinha voz fanhosa, e um perfume que lembrava bolor. Verdade. Tudo nela parecia antigo. Eu me apaixonei irremediavelmente. Seria impossível explicar por quê. Só posso entender aquele amor súbito porque, de certa forma, desde criança eu sonhara com uma princesa. Era como se pudesse dizer:

— Cheguei lá!

E por essa expressão se entenda: subi na vida!

Soube imediatamente que seria fácil lhe falar de ife.

Havia assuntos urgentes a explicar: ela e todos os outros membros da nobreza acreditaram piamente na minha versão do naufrágio, de um iate próximo ao Rio de Janeiro. Houve quem estranhasse não ter lido nada nos jornais. Mas eu sorri tristemente e comentei:

— Os jornais só.falam de crimes.

Todos concordaram, gravemente. Mais uma vez desde que começara minha saga, fingi ir ao telefone para falar com minha família, em Nápoles. Pedi à telefonista o código da Itália, e falei com um número qualquer. Ainda me lembro da algaravia assustada de quem me atendeu do outro lado do mundo.

Naturalmente, eu criara um simpático sotaque italiano para me expressar. Contei que vivia no Brasil há alguns anos, sozinho, mas me dedicava à ecologia — algo que combina bem com príncipes. Apenas ligara para a família com o objetivo de tranquilizá-los. Pessoalmente, gostava de viajar pela selva amazônica. Tomei o cuidado de entremear minhas frases com algumas palavras italianas, que aprendera no bairro do Bexiga, em São Paulo. Deu certo.

Só corri certo risco quando um dos nobres presentes comentou animado:

— Conheço alguém de tua família. O conde Ugo.

Engoli em seco. Como seria o tal conde? Comentei:

— Há tempos que não o vejo.

Uma frase genérica como essa sempre ajuda quando não se sabe o que dizer. O nobre sorriu:

— Eu também. Mas tenho muita estima por ele. Sempre que vou a Roma, lhe faço uma visitinha.

Sorri intimamente. Escapara por pouco. Achei divertido o "sempre que vou a Roma". Coisa de ricos, que vão à Europa como eu ao ponto de ônibus.

Todos estavam encantados pela minha presença, pude perceber. A maioria era aparentada entre si: para não se misturar com a plebe, as famílias nobres vivem trocando casamentos. Eu era a novidade, o tempero, que dava charme ao encontro. Horrorizados com a minha tragédia, solidários com meu sofrimento, convidaram-me a passar alguns dias no hotel, até que me recuperasse. Também poderia participar da festa de abertura da exposição das jóias em trajes de gala — que pertenciam há séculos à família de Maria Isabel.

Novamente, foram dias de glória. Discretamente, eu examinava diariamente os jornais. Foi assim que soube do interesse da polícia em localizar um certo Júlio Malatesta... eu! Pedro Cuatá fora um traidor, pensei, ao dar à polícia meus documentos verdadeiros que deixara no hospital, como se fossem dele. Não devia me preocupar, no momento. Sem documento algum, mas com um anel no dedo e doces palavras na boca, eu era o mais recente membro da aristocracia em Parati.

Logo eu e Maria Isabel ficamos íntimos. Na minha loucura, não percebi que, com aquele bigodinho, ela deveria estar louca para achar um galã — e eu parecia um bom partido. Ela me emprestou trajes de seus irmãos (e também gastei alguns dólares que estavam escondidos em um saquinho plástico, na bermuda, na butique de Parati), e eu a ajudei a organizar a festa e a exposição. Soube que as jóias eram valiosíssimas, e que o governo pagara um grande seguro para ressarcir a família, se fossem roubadas. Olhei encantado para a coroa: jamais vira uma de perto. Imaginei Isabel com a coroa na cabeça, sentada em um trono. E eu, ao lado.

Triste, eu sabia que meu destino não era ser rei. Com o coração partido, não era capaz de me iludir: o fim de minha missão estava próximo. Só não poderia partir sem deixar minha palavra para sempre cravada na vida da aristocracia. Assim, certa noite em que passeávamos na praia sob o luar, tomei as mãos de Isabel e disse:

— Ife.

Ela me olhou com ar esquisito:

— Doeu alguma coisa?

— Ife quer dizer amor, em iorubá, Maria Isabel.

— Amor? — Ela suspirou. — Nunca tinha ouvido essa palavra.

— Ife, iorubá, Isabel — repeti. — Se sua antepassada libertou os escravos, você deveria homenagear a raça negra com essa palavra.

Ela sorriu nervosamente:

.— É que nunca ninguém me falou de amor.

Eu a abracei emocionado.

— Eu nunca a esquecerei, Maria Isabel.

— Nem eu, Julius Castellana.

Mal sabia ela o quanto de verdade havia naquelas palavras. Nós nos beijamos romanticamente. Confesso que fiquei um pouco incomodado pelo roçar do bigodinho — mas a paixão é cega.

No dia seguinte, aconteceu a grande festa de gala. Foi aberta a exposição, com um jantar digno de reis e príncipes. Eu ajudei em tudo: na organização, no menu, na escolha dos vinhos — já que, como nobre italiano, todos acreditavam ser imenso meu conhecimento sobre enologia. Para não dar na vista, pedi, na lista que me deram, os mais caros. Se não fosse um detalhe, talvez eu pudesse ter ficado meses a fio em Parati. Durante o jantar, cometi um engano fatal. Eu estudara as palavras, mas não os gestos. Não sabia o que fazer com os caroços de azeitona. Disfarçadamente, coloquei o primeiro no bolso. Era pouco. No prato, várias outras azeitonas me encaravam — o prato principal era um tipo de bacalhau. Rapidamente engoli todas e escondi os caroços. Finalmente, suspirei aliviado. Ninguém havia notado.

Azeitonas traiçoeiras!

Mal terminou o jantar, minha princesa adorada levantou-se: quis fazer um discurso.

— É com imensa alegria que, nesta noite fundamental para todos aqueles que ainda amamos nossos reis, recebemos aqui um rapaz que em tudo contribuiu para o engrandecimento desta festa. Um rapaz que veio dar nessas praias trazido pelas ondas do mar, sem cujo apoio não teríamos tal deslumbramento. Nosso amigo Julius Castellana vai lhes falar sobre a causa monarquista italiana, como convidado especial, e, em seguida, falará o herdeiro presuntivo ao trono brasileiro, o príncipe de Orleans e Bragança.

Eu? Sorri habilmente. Maria Isabel já me preparara, para falar, pois todos estavam muito interessados nas palavras de um nobre italiano. Notei que alguns jornalistas me fotografavam. Sorri vaidosamente — mais tarde as fotos foram provas no processo, mas naquele momento não pensei no assunto —-, mexi delicadamente no anel de brasão, para que todos vissem. E iniciei meu discurso:

— Sou muito grato a todos os que me acolheram, em um momento tão difícil. Espero, antes de mais nada, que meus outros companheiros de desventura tenham sido recolhidos do mar por gente tão bondosa, embora estranhe a falta de notícias a respeito. Gostaria de falar sobre meus esforços junto à nobreza italiana, em prol da causa monarquista, e da minha admiração pela família de Orleans e Bragança que...

Plim!

Um caroço de azeitona caiu de meu bolso. O paletó estava furado. Por uma dessas tragédias inexplicáveis, o bolso ficara em cima do prato. O carocinho bateu na porcelana com um tinido. Aterrorizado, vi que todos me encaravam, surpresos.

Plim!

Outro carocinho desabou sobre a mesa. E outro. E outro. Ouvi um murmúrio. Os aristocratas estavam chocados. Pode haver coisa mais plebeia do que um caroço de azeitona caindo do bolso em um jantar elegante?

Perdi o controle das palavras. Nem sei o que mais disse. Ouvia os nobres murmurarem:

— É falso... não tem sangue azul...

E os caroços... plim, plim!

Pretextei alguma coisa. Nem me ouviram. Levantei, como se me sentisse muito mal, saí. Eles me olhavam como a um pária.

Corri para meu quarto no hotel. Devia fugir antes que chamassem a polícia. Peguei minhas roupas atabalhoadamente. Nesse instante, gelei. Alguém abria a porta.

Era Maria Isabel, totalmente descomposta. Lágrimas rolavam pelas suas faces. Tinha nas mãos uma valise: Sem dizer uma palavra, me entregou. Eu lhe perguntei, surpreso:

— Já sabe de tudo?

Ela abanou a cabeça, infeliz. Fui até ela.

— Venha comigo, princesa. Sempre serás uma rainha.

— Não, não posso. Só me digas quem és, na verdade.

— Júlio.

Maria Isabel depositou alguma coisa sobre a cômoda, foi até a porta, olhou para mim.

— Há um ônibus que parte em uma hora. Até amanhã, impedirei que o denunciem. Ife, Júlio.

Foi-se embora, com o porte de princesa que eu tanto admirava. Olhei para a cômoda. Era incrível! Havia deixado as chaves do museu, onde estavam em exposição as jóias da coroa.

De fato, nem ela deveria ter as chaves. Mas, durante a organização da mostra, usamos muito a entrada de serviço. Não entendi, quando terminamos a montagem da exposição, por que ela guardara a chave. Com o coração apertado de emoção, percebi o quanto ela me queria. Sabia que eu era um farsante, e deixava que levasse as jóias da coroa, que há tanto tempo estavam com sua família. Podia haver maior prova de ife?

Peguei a valise, saí correndo. Naquela noite de festa, ninguém estava cuidando especialmente do museu. Havia um guarda na frente, e um segurança na parte de dentro. Eu me esgueirei pelos fundos, e abri a porta cuidadosamente. Quase derrubei o segurança, que dormia numa cadeira junto à pia da cozinha do museu, ao lado da garrafa térmica. Sem fazer um ruído, tranquei a porta do cômodo pelo lado de fora, usando a própria chave que ele esquecera na fechadura. O segurança nem se mexeu: roncava. Eu mesmo ajudara a montar as vitrines. Sabia que não tinham alarme especial: com uma chave de fenda, tirei o vidro das molduras. Coloquei as jóias na valise e fugi.

De ônibus. Quando procurassem o assaltante, jamais pensariam em uma fuga tão simples. Parariam carros em estrada, mas jamais um tranquilo viajante de ônibus. Refleti que Maria Isabel também nisso quisera facilitar minha fuga, dando o horário do ônibus.

Fui embora com o coração partido. Minha princesa mostrara uma paixão inenarrável. Nunca pensei que o ife pudesse ser tão bonito.

Também nunca pensei que fosse um asno tão grande quanto fui, como se verá mais tarde.

Naquele momento, porém, só sabia de uma coisa: eu devia me esconder, se não quisesse ser pego.

O ponto final do ônibus era no Rio de Janeiro. Cidade grande, ideal para desaparecer e, a bordo de palavras novas, tornar-me outra pessoa. Da rodoviária, peguei um ônibus e desci em frente à favela.

Ife!

Eu estava pronto para viver dias bem arriscados.                                                                                                                                                            

 

— Moço, ô moço, me dá uma ajudazinha aqui? O sinhô sabe, mas é que eu num sô daqui do Rio não sinhô, e tô tendo de voltar pra minha terrinha, lá pras bandas de Pinda, o sinhô conhece?

— Não, mas... estou com pressa.

— Mas é disso mesmo que eu tava falando, porque também tô que tô numa pressa desgramada, porque minha mãe tá doente lá na terrinha, e eu tô que não me aguento pra voltar, e é por isso que eu tô muito precisado de falar com o moço, me desculpe se tomo seu tempo. Mas é que comprei esse bilhetinho aqui da loteria, trás anteontem, e deu o milhar inteiro, o sinhô pode conferir, mas não sei nem onde receber e eu tava querendo que o sinhô me ajudasse...

— Bem...

— É só me dar um adiantamento, e o sinhô fica com o bilhete, que eu nem sei mesmo onde receber!

— Só estou com alguns trocados.

— Ah, mas eu vi logo pelos seus olhos que o sinhô é dos honestos, vai me pagar direitinho o que vale, verdade?

— Isso! Vou pagar exatamente o que vale.

O sujeito me pagava e partia, certo de ter dado o golpe do ano no caipira. Eu esquecia meu sotaque e voltava para o barraco do morro onde me abrigara. É incrível o número de pessoas que ainda querem bancar as espertas e compram um bilhetinho premiado. Foi assim que sobrevivi, com a barba por fazer, tênis sujo de terra, camisa xadrez. Mais uma vez, eu provava minha tese: o modo de falar me dava credibilidade.

A vida na favela é dura. Um estranho como eu demora a se adaptar. Fui lento, cauteloso. Fiz poucos amigos. Andava cercado de malandros, mas nenhum sabia exatamente do que o outro vivia. A linguagem dos malandros é cautelosa e repleta de termos que funcionam como um código. Muitas palavras que todos usam nascem no meio da malandragem. Curtir, no sentido de viver um grande prazer, é uma delas. Da gíria dos malandros, passou a ser aceita no dia-a-dia das pessoas mais sérias. Outra palavra que vem sendo dita cada vez com maior frequência: galera. No vocabulário atual, quer dizer turma, grupo de pessoas afins. Foram os malandros que a tornaram viva, novamente. Porque, no sentido original, galera era um barco propulsionado pela força dos reinos de escravos condenados por algum crime.

Com cautela, fiz amizade com o pessoal do morro. Fui ajudado por uma nova paixão, que conheci numa roda de samba, no fim de semana: Valdete.

Não quero que.se pense que sou volúvel. Francamente, sempre coloquei minha missão acima de qualquer inclinação pessoal. Se me interessei por tantas mulheres, foi também pela chance de falar em ife, de divulgar minha palavra pessoal. Mas, desde o começa, senti uma vibração por Valdete. Morena, cabelo pixaim, blusa vermelha e bermudas brancas, ela, se contorcia na quadra da escola de samba. Era alguém, a quem gostaria de falar sobre ife. Cheguei até ela, no melhor estilo da malandragem:

— Tá a fim de uma loira gelada?

Ela me olhou surpresa:

— Qual é a tua, não vê que estou com meu gato?

Esfriei. Não queria levar tapas de namorados raivosos. Examinei quem estava na direção de seu olhar. Um garotinho preto me encarou, com ar selvagem:

— Não mexe com a minha mãe!

Estiquei meu melhor sorriso:

— Dá um tempo, simpatia. Deixa a tua mãe se divertir.

Ela riu, alegre. Um rapaz aproximou-se.

— Esse aí tá te torrando, Dete?

— Deixa ele falar, Pinhão. Falar num mata.

Logo nos apresentamos. Ela era Valdete, sambista de fim de semana e cozinheira em um bufê elegante de segunda a sexta. O menino, Bruno Giordano, era seu filho —, mas ela estava viúva desde que o marido morrera em um tiroteio no morro. Pinhão era seu mano. Começamos a conversar e nos tornamos amigos. Eu me apresentei como Ju. Somente Ju.

Ninguém me reconheceu, é claro. Mesmo porque, no morro, as pessoas fazem questão de não se reconhecer, principalmente se topam com alguém procurado pela polícia. Eu havia acompanhado meu caso pelos jornais. As fotos ao lado de Maria Isabel estavam um tanto desfocadas. Mas o escândalo do roubo das jóias da Coroa demoraria a ser esquecido pela imprensa. Comovido, eu era capaz de ler nas entrelinhas das notícias: Maria Isabel dava detalhes errados a meu respeito, na investigação. Como se fizesse questão de que eu não fosse descoberto. Ife! Como é grande a paixão.

Por precaução, eu saía pouco. Comecei a frequentar as rodas de samba, iniciei um namoro com Valdete. Nunca, porém, consegui que ela dissesse ife.

— Ife — eu dizia.

— Arre, que palavra mais esquisita, parece espirro!

— Quer dizer amor.

— Então por que você não diz amor de uma vez?

— Prefiro ife.

— Pois olha que eu não prefiro coisa nenhuma, que vocês homens são todos assim: já vão falando

de amor, amor, mas quando a gente precisa, somem. Todos vocês somem!

Tentava fazer com que ela acreditasse no meu ife. Vivia desconfiada.

Um dos meus objetivos, ao me refugiar no morro, era entrar em contato com alguém que comprasse as jóias da Coroa. Não se pode, com pedras tão raras, bater em uma joalheria: logo descobririam o furto. Queria encontrar um receptador.

Meus novos amigos me ajudaram. Expliquei que eram jóias de alto valor. Numa noite escura, tomamos um carro e fomos até uma mansão, em Niterói.

Junto com Pinhão, que deveria receber uma comissão pela ajuda, encontramos um senhor elegante, grisalho. Ele pegou peça por peça, cuidadosamente. Com uma lente, examinou as pedras. Raspou o ouro da coroa. Testou os diamantes da gargantilha, sempre com ar sério. Eu me sentia sufocado.

Havia decidido mudar de vida. Com aquele dinheiro, pretendia me mudar para Manaus, junto com Valdete e o filho. Lá, poderia abrir um negócio e divulgar minha palavra de forma menos arriscada. Queria, enfim, sossego e paz.

— São falsas.

— Ah!?

Todas as pedras, todos os metais, falsos.

Quase urrei. Eu fora enganado! É por isso que a víbora de Maria Isabel, facilitara o roubo e a fuga. Imagino que ao longo dos anos aquela família nobre, mas arruinada, fora vendendo pedra por pedra, diamante por diamante, e refazendo as peças com imitações. Ninguém jamais desconfiaria, já que há séculos as jóias estavam na família. A pérfida planejara tudo: com minha fuga, receberia o seguro milionário. (Com o coração partido, sou obrigado a reconhecer que seu plano deu certo. Ninguém jamais acreditou que eu levei jóias de latão. Maria Isabel e a família receberam o seguro, venderam o hotel em Parati e hoje vivem em um castelo na Espanha, à minha custa. Pior: a pérfida casou com o tal segurança que roncava — tinham combinado tudo, os fingidos.)

Nunca eu tivera tamanho choque. Era um golpe financeiro, e moral. Nem consigo supor quando ela descobriu que eu era um farsante. Talvez no momento em que falei que era um nobre italiano. Ou quando murmurei meu primeiro ife. Eu fora cruelmente golpeado. Só consegui sair do joalheiro ajudado por Pinhão, pois mal me aguentava nas pernas. Levamos as jóias, que foram doadas para a escola de samba.

De repente, tudo parecia piorar. Desisti do golpe do caipira, subitamente, ao chegar na rodoviária e ver um grupo de policiais vigiando as pessoas. Com informações recolhidas aqui e ali, descobri que procuravam um vigarista que dava o golpe do bilhete premiado. Eu.

O dinheiro que me restava era pouco. Diminuiu mais ainda, porque tive um ataque de consciência e lembrei de minha fiadora, que fora obrigada a pagar meu aluguel atrasado. Pus uma boa quantia em um envelope e enviei para ela. Senti um certo alívio.

Se eu quisesse, poderia ter me integrado a um dos bandos que viviam no morro. Sei que ninguém considerará isso uma atenuante, mas já tinha descoberto que as palavras podiam me levar para um beco sem saída. Chegara à conclusão de que as palavras eram como um barco, capazes de me levarem a qualquer mar. O capitão, porém, sempre seria eu, e desejava tomar novos rumos.

Quem sabe, casar com Valdete, criar o menino, me acalmar.

A ambição, mais uma vez, foi a responsável por minha perda.

Sem fundos, à beira da falência completa, li no jornal uma notícia que me interessou. Um famoso contraventor, conhecido patrono das escolas de samba, iria dar uma festa para receber uma atriz americana em visita pela cidade, Shirley Mac Britton. Junto à notícia, vi a foto da atriz.

Ainda era bela, apesar da idade. Lembrei com carinho de seu rosto nos filmes de minha adolescência.

E, subitamente, minha ambição ficou desmesurada.

Não queria mais gravar ife simplesmente no português. Não! Eu levaria ife para o inglês, turco, japonês. Minha palavra poderia ser a única falada em todos os idiomas. Já imaginava os astros de Hollywood falando:

— Ife, all rightl

— Ok, ife!

Ah, que delícia!

Só precisava entrar na festa, que seria oferecida em um dos mais fechados clubes da cidade. Lá, eu me aproximaria da atriz, conduzido pelo charme das palavras. Pensei com tristeza em Valdete. De todos os meus ifes, era quem mais tinha me tocado. Mas eu estava cego de ambição, toldado pelo projeto de ser um patrono de todos os idiomas. Confiava em mim, sabia que ao encontrar a atriz eu diria as palavras certas.

Procurei o endereço do clube na lista telefônica. Em seguida, fui até uma loja de aluguel de roupas chiques e escolhi um smoking. Não havia dúvida: eu ficava lindo de smoking!

Na noite da festa, fui até o barraco de Valdete. Bruno estava dormindo sozinho —, a mãe saíra para trabalhar e não voltara. Dei um beijo no garoto, e deixei um presente. Talvez nunca mais voltasse a vê-los.

Ainda não tinha vestido o smoking, é claro. Na verdade, estava com um macacão sujo de graxa.

O smoking? Eu o levava muito bem guardado em uma maleta pequena, dessas que usam técnicos de aparelhos de som.

Cheguei ao local uma hora antes do início da festa. Na entrada, havia uma garota loira, com um impecável vestido preto. Terminava de se arrumar, pronta para receber os convidados. Aproximei-me, confiando no meu jeito de falar:

— E aí, gata, tudo certo? Vim dar um truque no grilo do som.

— Que problema de som é esse, não me avisaram nada!

Ela pegou o telefone. Se ligasse para o gerente, eu não entraria nunca. Virei de costas, fingi que ia embora.

— Tudo certo, beleza. Se não tem grilo, não tem. Eu tô é doido pra voltar pro meu canto, que esses problemas de última hora só me dão dor de cabeça. Cê dá um ok pra gerência e diz que me dispensou, certo?

Imediatamente, ela abanou a franja loira.

— Não vá embora de jeito nenhum, esta festa é importantíssima. Onde já se viu? Entre e conserte esse som depressa, antes que os convidados cheguem. Senão eu falo com o chefe da manutenção e você vai ver!

Sorri, deliciado, e entrei.

Corri para o banheiro, tirei o macacão, pus o smoking e fiquei trancado durante uma hora e meia, lendo o jornal. Quando ouvi o barulho dos convidados, saí.

Era uma festa deslumbrante. Mesmo eu que já começava a me acostumar com a vida elegante, fiquei de boca aberta. Cascatas de camarões, nas mesas. Coquetéis de todos os tipos. As paredes forradas com panos dourados. Mulheres que pareciam de cristal, de tão chiques. Homens de smoking, sérios.

Por que me aprofundar nos detalhes?

Tudo correu às mil maravilhas. Até mesmo junto à atriz eu consegui chegar. Novamente, encontrei a palavra certa. Ela acabara de lavar as mãos, e contemplava o mar, do terraço. A noite estava linda, romântica. Lembrei dos milhares de filmes de Hollywood e fiz o que qualquer astro teria feito. Simplesmente me aproximei dela, que estava sozinha, com ar melancólico, e disse:

— Ife.

Ela me olhou espantada, pois não entendia uma palavra de português ou iorubá. Em seguida, a tomei nos meus braços e a beijei. De tão surpresa, ela se abraçou a mim. Sorrimos um para o outro. Eu me sentia o próprio Robert Redford.

Peguei sua mão, e ela deixou que eu a tocasse, doce. Juntinhos, voltamos à festa. Em torno de nós, o ar parecia feito de estrelas.

Foi quando ouvi o grito:

— É ele!

Reconheci a voz. Nélia! Estava no centro de uma roda, me apontando histérica. A seu lado, Alcebíades e o verdadeiro Pedro Cuatá, com os cabelos presos em um rabo-de-cavalo. Surpreso, virei o rosto em direção à saída: haveria tempo de correr?

— Julius!

Maria Isabel, com um grupo de nobres, me encarava, apavorada. Menos por me descobrir do que por receio de que eu a denunciasse, creio. É claro que se comportou como vítima, porque de boba não tinha nada. Estendeu os dedos cheios de anéis — agora verdadeiros —, e me apontou.

Houve um grande alarido. Ouvi as palavras "peguem, peguem". Os empregados vieram da cozinha, e... surpresa! Valdete fixava-me em lágrimas, com uma colher de pau na mão:

— Ju, seu safado!

Era a cozinheira da festa! Que vexame. Rapidamente, arrastaram a atriz, que não entendia coisa alguma. Senti braços que me rodeavam. Algemas.

Seria inútil desfilar todos os itens da minha prisão. Todos me abandonaram, menos Valdete e Pinhão. Se não fosse por eles, sequer advogado teria. Tentei me explicar, dizendo que tudo não passava de um sonho intelectual. Fiquei detido, cercado por palavras desagradáveis: falsa identidade, peculato, apropriação indébita, estelionato, vigarice.

A cada mês, sou julgado por uma nova contravenção.

Sou culpado, reconheço. Menos perante a lei do que diante de mim mesmo. Porque tive um sonho intelectual e os pensamentos não bastam, quando se tratam de palavras. Eu vi a vida como se fosse um grande dicionário, e por isso nunca pude supor que a economista famosa estaria na festa do contraventor, que a atriz importante dividisse o mesmo espaço que minha namorada do morro. Pensei nas palavras como diamantes solitários e, no entanto, elas criam relações, promovem mundos. Se as palavras passam de pessoa para pessoa, é porque os seres se conhecem, se comunicam, fazem trocas. Palavras são pontes entre todos nós.

Eu podia ter escrito um livro, criado uma poesia. Escolhi outro caminho e terminei aqui, na prisão.

Prefiro não falar sobre a dura rotina da cadeia. Dentro de dois anos estarei livre, e espero usar as palavras como velas enfunadas de um barco que me levará para outro destino. Talvez, volte a estudar, mas não abandonarei os meus sonhos.

Só tenho uma certeza: ife!

Que seria de mim sem a Dete? Vem toda semana, com um frango assado e uma dúzia de laranjas. Não se cansa de me recriminar.

— Eu devia saber que era muita areia pro meu caminhão. Mas fui deixando me levar pelas palavras doces que você disse... e olha eu aqui, na cadeia, cuidando de safado. Destino de mulher de morro é sofrimento, sempre me disseram.

Sempre tomo sua mão, beijo e peço:

— Dete, não me deixa sozinho. Volta sempre, por favor.

— Só se eu for louca, devia esquecer que você existe... Safado... Além de malandro, já tava correndo atrás da estrela de cinema. Safado, safado!

— Dete, eu te amo. Você é meu ife.

Posso garantir: foi a primeira vez que senti verdade nessa palavra. Com Nélia, Maria Isabel, a atriz americana e até mesmo com Valdete, no morro, tudo era mais encantamento pela palavra, pelo sonho. Agora, tudo se transformara em sentimento puro. Talvez, por isso, ela tenha compreendido, finalmente.

Disse, pela primeira vez:

— Tá certo, Júlio, safado. Você também é meu ife, e de hoje em diante só vou chamar você desse jeito que gosta tanto, de ife.

Enxugou uma lágrima e partiu.

Desde esse dia, só me chama de ife. Os outros presos ficaram curiosos pela palavra, e expliquei o significado. E brincam de usar ife com as namoradas, nas visitas semanais.

Eu sou ife. E também ouço, quando eles murmuram, de mãos dadas.

— Ife, ife.

Foi só assim que entendi: caçar as palavras simplesmente pouco significou. Inventar uma também. Porque as palavras precisam do nosso sangue para viverem e brilharem na constelação das existências. Sobrevivem com nossos sentimentos, sonhos, mágoas e aspirações. Sozinhas, são ocas. Junto com nossas vidas, atingem a eternidade. Não era suficiente inventar um termo, mas torná-lo tão vivo quanto o sentimento que representava. Hoje, sei que ife vale porque descobri seu significado em minhas entranhas.

Eu, Dete e o garotinho Bruno. Sei que um dia estaremos juntos, reunidos, e que tudo que estou passando agora será só o passado. Minha vontade de criar também não será exterminada pelos caminhos tortos que escolhi. Porque, assim como milhares de palavras, há milhares de emoções e experiências para serem vividas. Algumas, talvez, nem tenham nome. Há receitas de cozinha, cores, produtos, máquinas que ainda vão ser inventadas, e que vão precisar de nomes. E eu estarei sempre pronto, caçando novas palavras, criando o novo a partir do velho, descobrindo a melhor forma de dizer uma emoção.

Eu serei sempre um caçador de palavras.

E agora que ife está germinando, vou descobrir uma, ou mais palavras, para espalhá-las pela língua como as sementes da paineira levadas pelo vento.

Tudo vai começar igual e diferente.

Muito, muito melhor.

Só por pensar nisso ganho forças para me defender. A semana passada tive uma nova audiência com o juiz, e sei que ele se emocionou. Talvez as palavras consigam me levar, agora, para a liberdade.

— Errei, excelentíssimo — eu disse. — Tentei apenas custear meu sonho de maneira atrevida, quem sabe sonhei alto demais. Garanto porém que minha passagem por este mundo não será inútil. Ainda penso em realizar meu sonho.

— E qual o seu sonho? — perguntou o juiz.

— Ife! — respondi. — O senhor não vai entender. É apenas um sonho de amor.

 

                                                                                Walcyr Carrasco  

 

                      

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