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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CADAVER DESCALÇO / Keith Luger
O CADAVER DESCALÇO / Keith Luger

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CADAVER DESCALÇO

 

Uma noite alucinante foi o que tiveram o Dr O'Connor e a sua esposa Cláudia. Ao regressar de um congresso o Dr entra em sua casa e depara-se com o ex-namorado da sua esposa já cadáver... Claudia não estava em casa, alguma coisa de muito grave se tinha passado. Tudo estava para acontecer, Claudia tinha morto Milton, sua esposa não poderia ir presa, O'Connor tinha que dar um jeito de esconder o cadaver, quando a campainha suou era dell um delegado de policia que vinha tomar um gole de uisque,. O tempo lá fora estava assombroso envolto numa enorme tempestade, a campainha suou de novo, desta vez uma loura insinuante surge diante de O'Connor, foi quando esta loura apareceu que o médico começou a entender que Milton se rodeava de espiões. Claudia que já tinha regressado a casa era agora levada como moeda de troca, seu esposo tinha que dar um jeito de a salvar e foi assim que foi visto se envolvendo com um bando de espiões que queriam um formula resgatada por Milton. Será que O'connor conseguiria salvar a sua garota, ou deixaria que a matassem?...

 

Andy O'Connor sentia-se o homem mais feliz do mundo enquanto dirigia seu automóvel dentro da noi­te, a uma velocidade de setenta milhas por hora.

Queria chegar logo a sua casa.

Havia pensado muitas vezes naquele momento, quando abrisse a porta e gritasse:

-"Cláudia!... Já estou aqui!..."

Cláudia, sua mulher, apareceria correndo, sorri­dente, os olhos a brilharem de alegria por tê-lo outra vez com ela. Os dois se abraçariam, e, naturalmente, não faltaria o prolongado beijo. O primeiro em dez longos dias.

Cheirou o ar como se procurasse sentir daquela distância, ainda a trinta milhas, de sua casa, o perfu­me de Cláudia.

Tudo correra bem. Seu trabalho apresentado e lido no Congresso de Neurocirurgia causara verdadei­ra sensação.

O Dr. French, do St. Marie Hospital de Montreal, lhe oferecera um contrato e o Dr. French era o mais eminente especialista do continente, um dos dois ou três neuro-cirurgiões mais famosos do mundo.

O congresso não se encerraria senão dois dias mais tarde, mas O'Connor resolvera livrar-se do banquete, dos últimos atos protocolares. Já tinha seu contrato no bolso e o que desejava mais ardentemente era es­tar ao lado de Cláudia.

Não lhe telefonara até agora. Sua chegada seria de surpresa, como ele preferira.

Consultou o relógio. Eram nove e vinte da noi­te. Cláudia estaria talvez dormindo. Imaginou-a es­tendida no leito, respirando compassadamente, um ombro desnudo porque aquela alça da camisola res­valava sempre.

Fechou os olhos e um automóvel passou zunindo pela esquerda, fazendo soar a buzina longamente.

Andy abriu os olhos e acertou a marcha do veí­culo, porque este quase se chocara com o bólide que acabava de passar.

Com os diabos, seria uma coisa má se morresse agora.

Chegara o dia em que Cláudia e ele iniciariam uma nova vida. O Dr. Prench lhe concedera uma se­mana de prazo para apresentar-se em Montreal. Nes­se período venderiam a casa onde viviam, no campo, a oito milhas de Unionville. Não seria nenhum pro­blema, posto que seu vizinho, Stanley Clarke, tinha muito interesse em aumentar a sua propriedade.

Tinha outro motivo para ir embora de Unionvil­le. Esse motivo se chamava Franklin Milton. Por fim, ia perdê-lo de vista.

Franklin era muito alto, muito louro e muito ele­gante e ele não tinha nada contra isso. Um homem podia ser tão alto, louro e elegante como quisesse. O defeito de Milton consistia em que fora noivo de Cláu­dia... Por que demônios Flanklin não tivera o bom senso de deixar Cláudia em paz depois que ela se casara?

Porém o certo era que, uma ou duas vezes por se­mana, Franklin visitava a sua casa... Sim, senhor, Flanklin era um desses sujeitos incômodos que se con­vidam a si próprios, e de nada valia, após a sobreme­sa, que ele, Andy, se pusesse a bocejar sem se dar o trabalho de cobrir a boca com a mão. Franklin igno­rava aqueles gestos e continuava ali, sentado, como se estivesse colado à cadeira, com seu eterno sorriso nos lábios, fazendo blagues. E o pior era que Cláudia se divertia imensamente com ele. Porém, naturalmente,. Cláudia só sentia por Franklin, uma verdadeira ami­zade. Estava enamorada era dele, Andy.

Ao chegar a este ponto dos seus pensamentos, ergueu, orgulhoso, a ponta do queixo, porque Cláudia, uma mulher tão bonita e formosa, vira nele o seu eleito.

Seu eleito. Soava maravilhosamente bem.

Pôs-se a cantar com a música de Night and Day, uma letra inventada por ele: “Cláudia, eu sou o teu tipo".

Pisou no acelerador. Já estava em casa. Podia ver as colinas à luz dos faróis.

Mexeu-se nervoso no assento. Uns minutos mais e Cláudia estaria em seus braços.

Quando se encontrou a entrar no gradeamento, fez deslizar o carro sem ruído, freou suavemente e abriu a portinhola com o mesmo cuidado.

A casa estava às escuras.

Pegou a maleta e atravessou o jardim subindo até a varanda. Em seguida pôs a chave na fechadura e abriu.

Entrou na casa e torceu o comutador da luz. En­tão gritou:

- Cláudia,..! Já estou aqui...!    

Cláudia tinha o sono muito leve.

Ficou olhando a porta do quarto de dormir, porém não ouviu ruído no interior.

Lembrou-se, então, que Cláudia algumas vezes to­mava soníferos.

Atravessou o living a grandes passadas e abriu a porta do quarto de dormir.

A cama estava iluminada pelo luar que entrava pela janela.

Andy sobressaltou-se.

A cama estava desfeita, porém Cláudia não se en­contrava nela. Fez girar o comutador e o quarto ficou iluminado.

De repente, seus olhos deram com um homem, es­tendido de bruços no chão. Ele ficou com um nó na garganta.

- Cláudia! - gritou, e lhe saiu um som agudo.

Tão pouco obteve resposta.

Por fim recuperou os movimentos e se pôs a an­dar lentamente em direção ao homem que jazia no chão. Parou muito perto. Reconheceu-o sem necessi­dade de ver-lhe o rosto, porque aquele homem era muito alto e muito louro.

Era Franklin Milton.

Pôs-se de cócoras e virou-o, embora não precisas­se fazê-lo para saber que estava morto.

Franklin Milton recebera uma bala no coração, mas, ainda não adquirira a rigidez da morte.

Não fazia ainda uma hora que Franklin se de­frontara com a pistola assassina.

Foi então quando descobriu a arma. Ali estava. Sobre a pele de urso estendida ao lado da cama.

Comprara-a cinco meses antes ao Senhor Johnson, dono de um estabelecimento comercial na rua princi­pal de Unionville. Naquele tempo as autoridades re­comendavam aos cidadãos que se precavessem. Três presos tinham fugido da penitenciária situada a quin­ze milhas ao norte. Temia-se que procurassem refúgio nas casas isoladas.

Andy comprou a pistola e entregou-a a Cláudia. Tinha que ficar sozinha em casa enquanto ele fazia suas visitas.

Tudo foi um rebate falso, visto que os três fugi­tivos se dirigiram rumo ao oeste, através dos campos, e foram capturados no entroncamento ferroviário de St. Paul.

Então guardou a arma em uma caixa de chapéus, no armário, sem suspeitar que servira, alguns meses depois, para matar Franklin Milton.

Então se deu conta de outra coisa. A lâmpada de cabeceira fora derrubada. Porém houve algo mais que lhe produziu uma estranha sensação, a de que por suas veias corria água gelada e não sangue: O peignoir de Cláudia estava junto à porta do banheiro.

Pôs-se de pé e correu em direção dele, apanhando-o com uma das mãos. Observou o peignoir de côr azul. Estava roto no ombro!

- Cláudia - gritou, irrompendo no banheiro. Porém ali tão pouco estava sua mulher. Ficou imóvel, escutando a gota de água que a cada minuto caía da torneira.

Escutou sua respiração ofegante. Não, à Cláudia não podia ter acontecido aquilo. Correu para o' outro quarto de dormir, o que só era ocupado por Enéias, o irmão de Cláudia, quando ia ali nos fins de semana.

O aposento estava intacto. Em seguida foi a cozinha e a viu limpa e asseada. Voltou ao quarto que ocupava juntamente com Cláudia e sentiu o pulsar do sangue nas têmporas.

Um grito brotou da sua garganta ao ouvir o tilintar do telefone.

Voltou ao living e ficou a olhar o telefone que estava sobre uma mesinha. Seu cérebro começou a funcionar aceleradamente.

Franklin estava morto e para matá-lo tinha sido necessário um disparo de pistola. O tiro pôde ser ouvido por alguém. Às vezes passava em frente da sua casa Dell Mille, o polícia motorizado a cujo cargo ficava a vigilância do trecho de estrada desde St. Paul a Unionville. Era frequente Dell ir a sua casa para jo­gar uma partida de xadrez com ele. Porém se Dell tivesse ouvido o disparo teria entrado imediatamen­te. Não, não podia ser Dell.

O telefone continuava a tocar.

Finalmente estendeu a mão e apanhou o fone. Enquanto o aproximava do rosto, ouviu uma voz rouquenha.

- Cláudia, o que há com você?

Identificou a pessoa que estava do outro lado. Era seu vizinho Stanley Clarke.

- Não sou Cláudia - disse uma voz muito rouca.

- Quem fala?

- Quem pode ser? - disse. - Sou Andy.

- Andy... ? Com os diabos, rapaz, quando chegou?

- Faz um bocado. A que se deve o seu telefone­ma, Stanley?

- Ocorreu à Marion perguntar a Cláudia se gos­taria de ir de manhã com ela a Safford. Quer comprar um novo lustre e você sabe como é Marion. Tratando-se de qualquer presente, precisa da aprova­ção de Cláudia.

- Muito bem, vou lhe dizer.

- Diga agora. Marion precisa saber da respos­ta. Quer ir logo.

- Mas Cláudia está dormindo... Você compre­ende, Stanley... Não quero despertá-la...

- Puxa, deve estar dormindo como uma pedra, porque deixou a campainha tocar por muito tempo.

- É verdade, hoje com certeza se cansou muito.

- Bem, rapaz, como se foi em Nova Iorque?

- Muito bem, Stanley, logo lhe contarei...

- Disponho de tempo. Pode contar-me agora.

- Stanley, eu também estou cansado... Viajei o dia inteiro...

- Se não se importa, conversaremos amanhã.

- Bem, Andy, lembre-se de dizer a Cláudia que telefone para Marion o mais cedo possível.

- Não se preocupe, Stanley, Direi a ela... Andy desligou e ficou quieto.

Durante alguns momentos pensou que aquilo não podia estar realmente acontecendo, que fosse um pe­sadelo. Voltou-lhe pouco a pouco a lucidez, e pen­sou que quando olhasse para o quarto de dormir, cuja porta deixara aberta, não veria, nenhum cadá­ver.

Porém não era um pesadelo. Ali estava Franklin, imóvel para sempre.

Santo Deus, o que acontecera à Cláudia?

Uma idéia brotou em sua mente. Como não lhe ocorrera antes?... A mãe de Cláudia vivia em Unionville. Cláudia teria ido refugiar-se em casa de sua mãe. Tinha que ser assim, mas, se se equivocasse?... Tomaria precauções ao falar.

Retirou o fone do gancho e discou nervosamen­te o número.

A campainha tocou uma, duas vezes.

Ouviu quando retiraram o fone, e em seguida a voz da mãe de Cláudia.

- Alô?

- Boa noite, Senhora Gilbert, é Andy.

- Andy? - repetiu a Senhora Gilbert, como se estivesse falando com um marciano.

- Sim, Senhora Gilbert. Sou eu.

- É Andy!... Andy!... Não se afaste daí, meu filho... Não se afaste.

Os gritos incomodaram o ouvido de Andy. Ouviu uma pancada, logo uns passos apressados, e, por fim, Cláudia.

- Andy!... Querido!...

- Cláudia, que está fazendo aí?

- Oh, Andy... - disse Cláudia, e rompeu a cho­rar .

- Querida... Acalme-se... Está me ouvindo?... Você tem que se acalmar... Quero que me conte tudo.

- Sim, Andy, sim, mas é que tenho um nó na garganta... Oh Andy... Foi horrível.

- Fale, pelo que você mais quer na vida, Cláudia.

- Franklin chegou perto das sete horas... Não pude acreditar nele, Andy... Era absurdo que ten­tasse uma coisa assim...

- Já prevenira você a esse respeito.

- Por que não fiz caso de você, Andy?...

- Perdoe, querida, agora as recriminações de na­da adiantam.

- Franklin disse coisas absurdas.

- Foi um miserável...

- Tentou me beijar... Me defendi... Bem, en­tão o ameacei... Somente o ameacei, Andy... Po­rém ele zombou de mim... Disse que eu não seria capaz de fazer mal a uma formiga... Lutamos... Ar­rancou-me o peignoir e então... - Cláudia rompeu em soluços.

Andy fechou os olhos.

- Não diga mais nada, Cláudia.

- Andy, quero que venha aqui...

Andy ia dizer que sim, que iria imediatamente para o seu lado mas se lembrou de Franklin Milton. ele não podia ir para junto de Cláudia. Pelo menos, enquanto aquele homem estivesse ali.

- Sim, querida, irei logo que possa. Dê-me um pouco de tempo.

- Mas, Andy...

- Sinto muito, querida. Não podemos mais con­tinuar a falar. Tenha confiança em mim.

Desligou imediatamente.

Bem, agora chegava o momento de agir. Avisa­ria a polícia e... Mas, como ia avisar a polícia?... Não podia fa­zê-lo.

Cláudia cometera um assassinato... Sim, ela ti­nha agido em legítima defesa, mas, como opinariam o xerife Clifton, o juiz Sullivan e os doze membros do júri?

Deus do céu, e também havia o promotor Stuart Dawson, justamente um homem que sentia grande antipatia por ele porque, em quatro ocasiões diver­sas, funcionara como médico da defesa.

Não, não seria tão fácil.

Imaginou o promotor Dawson falando na sala do tribunal com a veemência que lhe era peculiar, os olhos flamejantes.

- Vejam essa mulher... - o promotor aponta­va para Cláudia, sentada no banco dos réus. Apresentou-nos uma bonita fábula a respeito da de­fesa da sua honra... Porém... não é certo, Senho­res do júri! Existem provas e indícios que não expli­cam o que realmente aconteceu. Franklin Milton e Cláudia O'Connor já tinham sido noivos. Iam casar-se, porém ocorreu que entre eles surgiu um estranho, o doutor Andy O'Connor... Cláudia abandonou Fran­klin para casar-se com Andy O'Connor... Senhoras e senhores, o que é o normal nestes casos?... Não é certo que Cláudia O'Connor devia cortar suas relações com Franklin Milton?... Vós respondeis que sim, porém neste caso a lógica falha pela base. Por­que, saibam os presentes de uma vez, Franklin Mil­ton, o antigo noivo da acusada, continuou a frequen­tar o lar dos O'Connor..! Sim, amigos, Milton era bem recebido na casa do médico..."

O'Connor não quis mais imaginar a fala do pro­motor .

Não, não podia consenti-lo, Cláudia não iria pa­ra a cadeia. O promotor não conseguiria um triunfo â custa da sua mulher, da felicidade do seu lar.

Além disso, o que aconteceria quando o Dr. French, o mais famoso cirurgião da América, sou­besse que a esposa do seu novo colaborador havia assassinado um homem?...

Toda sua carreira, o quanto havia desejado ar­dentemente durante longos anos de atividade profis­sional, viria por terra.

E quem era Franklin Milton?... Um aproveitador de mulheres. Era o que se ha­via dito e agora estava disposto a acreditá-lo.

Ignorava que ele tivesse uma profissão. Contu­do, tinha sempre dinheiro. É bem verdade que Fran­klin garantia ter recebido uma herança de um irmão da sua mãe que morrera no Brasil, mas quem pôde comprovar aquilo? Franklin sempre fora sagaz. Ti­nha um jeito especial de tratar as mulheres. A to­das parecia simpático. Inclusive a Cláudia, santo Deus!

Havia outro detalhe: Franklin costumava via­jar. Às vezes passava seis meses sem aparecer em Unionville.

Por que não providenciar tudo para que Fran­klin fizesse uma daquelas viagens embora, neste ca­so, nunca mais voltasse? ele mesmo lhe daria o bilhete. Isso não, porque Cláudia o havia feito ao despa­char-lhe aquele pedaço de chumbo... Que bobagens estava pensando?... Não podia distrair-se um mi­nuto sequer.

Fazer desaparecer um cadáver não seria coisa fácil... Como o faria? Pensou em ácidos, mas abandonou essa idéia por­que isso exigiria tempo e sempre havia que contar com alguém que poderia aparecer, como Stanley, Ma­rion, sua mulher ou Dell Mille, o policial motorizado.

Aproximou-se da janela. Pelo céu corriam mui­tas nuvens, que de vez em quando ocultavam a lua cheia. Com um pouco de sorte, o céu terminaria por encobrir-se, Era o que ia acontecer, a julgar pelas nuvens que se vislumbravam para as bandas do ori­ente.

Então poderia cavar o buraco.

Isso estava resolvido, mas em que lugar?

Mordeu o lábio inferior, pensativo. O melhor lu­gar seria no bosque, a umas trezentas jardas da fon­te do Gran Chorro.

Podia chegar com o carro até o fundo da clarei­ra. Depois só teria que transportar o cadáver de Fran­klin por entre os arbustos. Naturalmente, poria mui­to cuidado no seu trabalho.

Lembrou-se de algo. Tinha uma picareta e uma pá, porém poucas semanas antes Stanley as havia pedido para enterrar seu cão Dick, que morrera de velhice. Agora não se recordava se Stanley as devol­vera. Teria que verificar.

A primeira coisa que tinha a fazer era apagar as luzes para dar a impressão, a qualquer pessoa que passasse por ali, de que Cláudia e ele estavam dor­mindo .

Quando ia por-se em movimento esteve a ponto de tropeçar no cadáver.

- Perdão - disse instintivamente.

Ao cabo de alguns momentos estava envolto na escuridão.

Logo pensou que, para executar bem aquele tra­balho, precisava primeiro de um bom trago. Ou tal­vez de dois.

Foi até a cozinha e não se demorou em pôr o uísque em um copo, bebendo-o na própria garrafa.

O uísque abrasou-lhe a garganta e começou a circular, e quando chegou ao estômago o pôs em ebu­lição .

Saiu pela porta de detrás e se dirigiu à garagem. Murmurou uma praga ao verificar que, tal como esperava, a picareta e a pá não se encontravam ali. Estavam em poder de Stanley.

Não podia abrir a cova para Milton com as mãos. Deu um suspiro.

Bem, tudo consistia em chegar à casa de Stanley para apanhar as ferramentas.

Mas com os diabos, como ia justificar-se perante Stanley que tinha necessidade da picareta e da pá àquela hora da noite?

Teria que dar um jeito para consegui-las sem que houvesse necessidade de que Stanley notasse.

Agora já conseguira acalmar os nervos. O uísque o ajudara muito.

Ia guardar a garrafa, porém resolveu conservá-la e meteu-a no bolso do paletó. Disse a si mesmo que, quanto mais depressa se pusesse a caminho, mais cedo acabaria.

Para chegar à casa de Stanley, na colina, tinha que percorrer um quarto de milha.

Caminhou pelo campo porque não queria que nin­guém o visse pela estrada. Dell Mille costumava às vezes passar por ali antes da meia-noite.

Parou para ver se a parte térrea da casa de Stan­ley estava iluminada.

Por que diabo Marion e Stanley não iam dormir de uma vez?... Claro, estariam discutindo sobre o novo maio de Marion...

Muito bem. Agiria por sua conta. A picareta e a pá estariam na garagem e dali podia ver que estava aberta.

Saltou o gradil, mas se deteve ao ouvir uma res­piração estranha e uns rosnados.

Olhou para a esquerda, de onde procediam, e viu aparecer dois olhos. O novo cão de Stanley Clarke... Como diabos se chamava?... Somente o vira uma vez e recordou seu aspecto selvagem e o olhar de des­prezo que o animal lhe dirigiu.

O cão ficara imóvel, farejando o ar, e começou a latir.

Um segundo mais e se lançaria contra ele.

Porém naquele momento exato o cão se pôs a la­drar furiosamente e se ouviu um entrechocar de cor­rentes .

Andy compreendeu que o animal não pudera lan­çar-se contra ele porque estava acorrentado.

Olhou para a janela e viu a sombra de Stanley que se aproximava do local.

Então se lançou de cabeça por sobre o gradil e caiu do outro lado.

- O que tem você, Lucky? - perguntou Stanley. Como resposta o cão emitiu prolongados latidos.

- Fique quieto aí, Lucky! Talvez você tenha vis­to uma coruja, mas ela não lhe fará mal.... Silêncio!

O cão se acalmou pouco a pouco.

Andy viu quando Stanley se afastava da janela.

Então deslizou sobre o estômago e os cotovelos, afastando-se- do lugar onde se encontrava Lucky.

Quando se encontrava bastante longe, saltou cui­dadosamente por sobre o gradil. Uma vez do outro lado, esperou. O cão já deixara de ladrar, talvez de­vido ao vento que soprava do lado contrário.

Teve que dar uma volta para chegar até a gara­gem e levou muito tempo nisso, porque fez o cami­nho com muita lentidão.

Encontrou a picareta e a pá nos fundos e colo­cou-as no ombro.

Dispunha-se a voltar, quando a luz da garagem se acendeu e ouviu uma voz que trovejava:

Alto ou atiro!

 

Andy voltou-se e viu Stanley Clarke empunhan­do uma arma. - Andy! - exclamou o vizinho. Stanley era um tipo cinquentão, alto, robusto, um pouco calvo, olhos azuis.

- Olá, Stanley, como vai?

- Muito bem, e você?

- Perfeitamente, rapaz. Stanley contraiu o cenho.

- Que conversa tola estamos mantendo?

- Foi você que começou, Stanley.

Quem perguntou primeiro por mim foi você.

Andy.

- Bem, deixemos de censuras, não importa quem tenha perguntado primeiro.

- Que diabo faz você aí com essa picareta e es­sa pá, Andy?

- São minhas, não?

- Sem dúvida.

- Então, vou levá-las. E deixe de me apontar esse revólver.

- Não é revólver. É uma pistola.

- Ah, sim, recordo agora. Você foi comandante durante a guerra.

- Coronel - retificou Stanley, erguendo a barbicha.

- Olhe, Stanley, tenho muita pressa - disse An­dy, e começou a andar.

Mas Stanley não se arredou da porta.

- Vamos, por que você não me pediu a picareta e a pá?

- Não queria incomodá-lo.

- É muito amável, Andy.

- Julguei que estava dormindo.

- Mas viu que estavam iluminadas as janelas do andar térreo.

- Não vim por aí.

- Não? - Stanley fez uma careta e Andy com­preendeu o que lhe ia na mente. Estava recordando o momento em que o cachorro começou a latir. - Ei, rapaz, para que quer uma picareta e uma pá a es­tas horas da noite?

- Sou eu que pergunto, para que queria você aquela loura com quem o vi há três meses, às nove horas da manhã?

- Diabos! Cale a boca - exclamou Stanley, en­colhendo a cabeça como uma tartaruga. - Marion pode ouvir e nunca acreditaria que encontrei essa fulana no bosque, caçando borboletas e que eu só queria ajudá-la...

- Eu tão pouco acreditaria - disse Andy em voz baixa.

- Todavia, não disse ainda o que vai fazer com essas ferramentas.

- Nem penso dizer. Sou um homem livre, Stan­ley... Ou crê que por ser meu vizinho pode se meter em todos os meus assuntos?...

- Ei! rapaz, que se passa? Há apenas um ins­tante que chegou... O que lhe aconteceu?

- A mim não aconteceu nada, Stanley. Só que­ro ir-me com a minha picareta e minha pá porque me pertencem. Boa noite.

Andy avançou com fúria incontida e Stanley te­ve que se afastar para não ser atropelado.

Quando deixava a   garagem Andy se deteve por um momento.

- Ah, Stanley, pode dizer a Marion que amanhã ela terá que ir sozinha a Safford para comprar o maio.

- Por quê?... Por acaso Cláudia não está pas­sando bem?

- Exatamente. Não passa bem.

- O que tem ela?

- Cachumba! - exclamou Andy e seguiu para casa.

Passado um minuto, compreendeu que o seu com­portamento para com Stanley fora absurdo.

- Diabos, se tivesse que ganhar a vida como as­sassino, seria apanhado no primeiro lance.

Aproximou-se do carro e guardou a picareta e a pá na mala do veículo. De repente foi atingido por um pingo de água e em seguida, por mais três.

Soltou uma imprecação: começava a chover.

Olhou para o céu que estava coberto de nuvens.

Exatamente há três meses que não chovia. A co­marca atravessava uma prolongada estiagem. Mas ti­nha de ser exatamente agora que começasse a chover.

Resolveu apressar-se. Com um pouco de sorte po­deria terminar o serviço dentro de uma hora. Possuía braços fortes. Estava acostumado a manejar a pi­careta e a pá, pois ajudara com o seu esforço, a cons­truir sua própria casa, a cavar os alicerces e a remo­ver as enormes pedras que havia em redor.

Atravessou o jardim e, nesse momento, o céu ilu­minou-se com um relâmpago.

Roncou um trovão distante.

Entrou no living e abriu um armário de onde re­tirou uma capa de matéria plástica.

Por via das dúvidas, precisava também de botas de canos altos. Virou-se rapidamente, dirigindo-se para o quarto de dormir.

Parou, repentinamente, ao perceber o ruído de um motor.

Levou muito tempo para atravessar, novamente, a porta e apagar a luz.

Ficou imóvel, esperando. O motor continuava roncando.

Chegou à janela e olhou para fora.

À luz de outro relâmpago, divisou o guarda Dell Mille diante do seu carro, coçando a cabeça.

Ótimo, Dell Mille era um bom sujeito que jamais o havia incomodado. Só entrava quando Cláudia ou ele estava em casa. Voltaria agora a sua motocicle­ta e partiria.

Mas o guarda entrou no jardim e caminhou pa­ra o vestíbulo.

Andy se afastou da janela.

A campainha tocou.

Muito bem, Dell Mille podia continuar chaman­do o tempo que quisesse. Não viria até à porta, pois, Cláudia e ele estavam dormindo.

Mille começou a forçar a porta.

- Vamos, senhor O'Connor, acorde, é o Dell Mille...

Andy rangeu os dentes, finalmente tirou a capa, a jaqueta, baixou o nó da gravata, despiu-se um pouco e foi abrir a porta.

O rechonchudo Dell Mille cumprimentou sorri­dente .

- Alegro-me muito por ter regressado doutor.

- Só chamou para isso, Dell?

- De modo algum, Senhor O'Connor... trata-se do seu carro.

- Que há com o meu carro, Dell?

- Deixou ligadas as chaves de contato e a janelinha está aberta. Como a casa estava às escuras, julguei ter havido esquecimento.

Andy bocejou.

- Bem, Dell, tudo pode acontecer... Cheguei muito cansado e já se sabe o que acontece quando um marido passa tantos dias fora de casa...

Dell piscou o olho e passou a cabeça por junto do braço de Andy.

- Não está em casa a patroa?

- Não, Dell, descanse... Eu gostaria de convidá-lo para uma dose de uísque; mas...

- Aceito, Senhor O'Connor. Creio que vou pre­cisar esta noite... Aproxima-se uma boa tempes­tade.

Dell já tinha começado a andar e Andy não te­ve outro remédio senão deixá-lo passar.

Sei onde está o uísque, Senhor O'Connor, não precisa se incomodar...

- Isso mesmo Dell, tomarei uma dose também. Creio que preciso tanto quanto você... Sinto frio.

- É o que notei, doutor... Parece que fez pés­sima viagem...

Entraram na cozinha e foi o próprio guarda quem preparou os uísques.

- Pela sua volta, Senhor O'Connor - brindou Dell.

- Muito gentil, Mille.

O guarda tomou um gole, enquanto Andy demo­rava um pouco.

- Vi, esta tarde, Franklin Milton.

Andy exalou um suspiro impregnado de uísque

- Caramba, engasgou-se, Senhor O'Connor - disse Dell batendo-lhe nas costas.

- Foi por onde não devia. - O'Connor quis for­çar um sorriso. - De que estava falando?...

- De Franklin Milton... Dizia que o havia vis­to... Esse malandro sabe o que faz.

- Pensa assim, Dell?...

- Sempre o tenho visto com magníficas mulhe­res. Não conheço ninguém que as conquiste com tan­ta facilidade.

Andy se mostrou irritado.

- Sucede a qualquer um, Dell... Basta que al­guém se dedique a isso como a uma profissão. Você é bom na sua, como eu na minha... Está tudo ex­plicado. Franklin Milton não teve outra profissão se­não a de se ocupar com as mulheres.

- Mas não negará que o tipo ficou perito nisso. Andy coçou o rosto.

- Quem era a mulher que acompanhava, esta tarde, Franklin Milton?...

- Uma loura.

- Por acaso, a Senhorita Joyce?

- Não, não era a Senhorita Joyce... Para dizer a verdade, nunca a tinha visto... Era estranha...

- Papagaio, este sujeito está fazendo horas ex­traordinárias - murmurou em voz baixa.

- Que disse, doutor?

- Nada, Dell... estava me lembrando que pre­ciso me levantar às seis horas, amanhã... Lembre-se que há dez dias não vejo os meus doentes...

- Compreendo, Senhor O'Connor - retrucou o guarda e apanhou, outra vez, a garrafa. - Com sua licença. O último trago.

- Pois. não, Dell, o último...

- Possui um uísque excelente, doutor.

- De verdade?... Eu quase não o pude apreciar.

- Não? - sorriu Dell. - O Senhor é vivo tam­bém, doutor. Vi o frasco no bolsinho da jaqueta que deixou no diva...

- Puxa, notou.

- Nada me escapa... Dell colocou o dedo junto ao olho direito e puxou-o para baixo.

- Sem dúvida, Dell... Você é um bom policial...

- Por sua esposa, doutor.

- Muita gentileza, Dell.

Dell bebeu de um só trago todo o conteúdo do co­po e saiu da cozinha.

Andy seguiu o guarda muito apressadamente e quase esbarrou nele quando este parou.

- Uma pergunta, doutor... Por que calçou as botas?

- Que botas? - Andy passou a vista pelas per­nas. - Ah, sim, Dell... Fui pescar... Juro que foi isso...

- A estas horas?

- Bem, tinha dúvida... Na verdade, não sei o que fazer. Cláudia está dormindo.

- O doutor fazia muito mal.

- Acha?

Faria melhor acordando-a.

- É?

- É o que aconselho -, o guarda tocou-lhe no peito com o dedo indicador. - O Senhor me entende, dou­tor?. ..

- Sem dúvida, Dell... Sem dúvida. Despertá-la... Fora com as botas...

- Conheço um provérbio, Senhor O'Connor, e lhe faço presente dele.

- Muito gentil de sua parte, Dell.

- O peixe que não se pesca hoje, pode-se pescar amanhã, mas guarde sua mulher a semana inteira.

- O peixe que não se pode pescar... - come­çou Andy a repetir. - Oh, Dell, quanta filosofia há em suas palavras...

- Mesmo?... Lembre-se e será um homem feliz.

- Ouviu-se, nesse instante, - um ruído tremendo.

- Com todos os diabos! - exclamou Dell. - Aí vem a tempestade.

- Era o que faltava - disse Andy num sussurro.

- Até amanhã, doutor. Meus respeitos a sua es­posa.

- Assim o farei. Quando a vir no quarto de dor­mir.

Dell não escutou as últimas palavras porque já abrira a porta.

Ouviu a chuva no jardim.

Fez uma saudação com a mão e pôs-se a correr.

Andy ficou parado no vestíbulo vendo como o guarda montava na motocicleta, punha-a em mar­cha e se afastava, à toda velocidade, a caminho de Unionville.

Um relâmpago iluminou o caminho quando Dell subia a colina.

Andy deu um suspiro de alívio e entrou em casa. Muito bem, o perigo passara. Devia agora apres­sar-se mais ainda. Não vestiu a jaqueta. Botou a capa e encami­nhou-se, novamente, para o quarto de dormir.

Quando, porém, já estava com a mão na maça­neta da porta ouviu, outra vez, o ruído do motor. Diabos! O que teria acontecido a Dell? Olhou em redor procurando algo de que o guar­da tivesse esquecido, mas nada encontrou. Aproximou-se, correndo, da janela e olhou atra­vés das cortinas.

Desta vez, porém, não era Dell. Um carro descia a colina. O automóvel dos Clarkes.

Andy soltou uma imprecação, tirou a capa e jo­gou-a no divã. Logo se colocou diante da porta.

A campainha tocou.

- Adiante - disse, e cruzou os braços pronto a soltar uma exclamação.

Afinal, abriu a porta e disse:

- Stanley, não estou disposto a consentir... Mas não pôde continuar, pois não era Stanley quem entrava, mas sim, Marion, a esposa de seu amigo.

- Boa noite, Andy... Com esta pose me faz lem­brar meu marido quando em uniforme militar come­ça a recordar seu passado de estrategista. Aqui en­tre nós, devo confessar, que ele nunca participou de uma única batalha sequer. Passou toda a guerra tra­balhando em escritórios.

Marion beirava os quarenta anos de idade, de al­tura mediana, rosto simpático e olhos vivos. Andy ficou tão surpreso que não podia pronun­ciar uma palavra sequer. Marion, que estava agasalhada, atravessou a ca­sa a caminho do quarto de dormir.

- Falarei com Cláudia.

- Pare! - gritou Andy.

Marion voltou-se com o cenho franzido.

- Ei, Andy, pensa que sou surda?

- Gritei? - sorriu Andy de modo formal.

- Devem até ter ouvido você no Rotary Clube e dista daqui umas doze boas milhas.

- Stanley não veio com você?

- Não, ficou em casa. - Disse que você estava muito mal humorado e estou vendo que tinha razão.

Andy aproximou-se de Marion e tomou-lhe o braço.

- Querida Marion, diga a seu marido que eu es­tava muito cansado...

- Tanto que vai pescar?

- Oh, não, calcei as botas apenas para experi­mentá-las. Tive, recentemente, uma inchação nos pés... Mas parece que me enganei.

Marion franziu o cenho.

- Está bem, Andy?

- Perfeitamente.

- Qualquer pessoa viria logo. Acho que você es­tá fazendo muitas coisas esquisitas numa noite só. Foi a nossa casa para tirar dali, às escondidas, uma picareta e uma pá...

- Que eram minhas...

- Não quero, discutir o caso da propriedade. Quando precisamos destas ferramentas, Stanley veio pedi-las e lógico seria que você as tivesse solicitado ao precisar... Venho agora encontrá-lo com botas que vêm a calhar.

Andy mordeu os lábios.

- Marion, já sabe que sou um homem que não gosta de preconceitos.

- E por isso simpatizei com você.

- Quero com isto dizer que, para mim, não há inconveniente algum em experimentar botas de pes­car durante a noite... Por conseguinte, não me ocor­reria experimentá-las num clube noturno durante o jantar. Mas sim, em minha casa, por que não?

Reinou silêncio entre ambos.

- Posso oferecer-lhe um martini, Marion? - perguntou Andy sorridente, esfregando as mãos.

- Não, só vim para falar com Cláudia. Como não pode me acompanhar a Safford, quero pedir-lhe opi­nião sobre meu maio.

- Dorme a sono solto, Marion. Não há de querer que a acorde para uma coisa dessas —, atraiu a moça, para a porta acrescentando: - Porém amanhã muito cedo, antes que parta para Safford, ela lhe chamará para dar sua opinião sobre o maio... Magnífico, hein?

- Você é muito esquecido, Andy.

- Prometo que me lembrarei.

A jovem vacilou olhando para a porta do quarto e Andy sentiu um nó na garganta.

Está bem, Andy, confio que Cláudia me telefo­nará.

Andy sentiu-se mais otimista e acompanhou Ma­rion até a porta.

- Lembranças a Stanley.

- Estava furioso com você.

- Diga-lhe que não se comporte como uma cri­ança... Boa noite, Marion.

- Até amanhã, Andy.

Continuava chovendo, porém, não muito.

Marion correu para o carro, Fez a volta e aper­tou bem o acelerador. O carro subiu o morro como uma bala. Andy entrou novamente em casa confiando que, com a visita de Marion, tivessem terminado as com­plicações .

Mas estava muito enganado.

 

Abriu a porta do quarto de dormir O cadáver estava no seu lugar. Andy lembrou-se das palavras do guarda. Sim, Franklin Milton tinha sido um conquistador.

Mas já não poderia mais divertir-se com louras... e com as mulheres alheias.

Que fazia ali perdendo seu tempo?

Curvou-se sobre os restos mortais de Franklin e passou-lhe as mãos por baixo das axilas. Mediu a distância até o vão da parta e começou a arrastar o seu fardo.

Saiu do quarto e começou a atravessar o living.

Encontrava-se na altura do diva quando ouviu ruído de passos no lado de fora. Alguém corria na direção da casa.

Teve a impressão que o frio do cadáver lhe conta­minava o corpo. Sentia-se congelar. Um pouco mais e se converteria em uma barra de gelo.

- Não! - gritou.

Mas a ordem telepática que emitira não encon­trou eco na pessoa que se encontrava no vestíbulo. A campainha tocou.

Fitou o diva a seu lado e então deu um empurrão no cadáver, deixando-o estendido no chão.

A porta abriu-se quase que nesse mesmo instante. Andy voltou-se perguntando:

- Esqueceu algo, Marion?

Mas, estava escrito, não havia de acertar uma, sequer, naquela noite. Não era Marion. Era uma lou­ra a quem jamais vira em sua vida.

Andy ficou imóvel, de boca aberta, fitando a lou­ra que era bonita, tipo incomum, de lindo rosto, faces cavadas, olhos grandes e azuis, boca pequena de lá­bios carnudos e vermelhos da côr do sangue.

- Boa noite —, cumprimentou a jovem. - Cha­mo-me Dorothy Gream.

- Dr. O'Connor —, disse o outro.

- Perdão, Doutor, mas um defeito no carro e esta tempestade prestes a se desencadear me amedronta­ram. Vi a luz acesa e julguei que me podia dar pou­sada por algum tempo.

- Pois não, senhorita Gream.

"É muito gentil, Doutor... Que há com o seu amigo?... Bebeu demais?...

Andy tinha-se esquecido de Franklin por alguns instantes. Voltou ao diva e viu o homem caído de barriga para baixo, tal como o havia deixado, com o braço esquerdo pendente.

- Isso mesmo, Senhorita Gream - se apressou em dizer, quebrando o silêncio. - É um pau-d'água... Sempre lhe digo... Franklin, deixe de beber que o uísque lhe faz mal... mas, como vê, não adianta.

Ficando aí vai se resfriar. Será melhor que o le­vemos para a cama. Eu ajudarei.

- Oh não, Srta. Gream, não posso permitir.

- É o mínimo que posso fazer para o senhor. A loura já se encaminhava para o divã. Andy sentiu, novamente, os mesmos calafrios.

- Segure nas pernas, Senhorita —, disse e apres­sou-se a agarrar Franklin pelo tórax, conservando-o de bruços.

Andy pensou em não mais colocar Franklin no quarto de dormir do casal e, assim, se dirigiu para a outra porta que abriu com o cotovelo. Respirou antes de torcer o comutador da luz.

- Puxa, seu amigo pesa muito —, disse Dorothy.

- É todo feito de músculos. Senhorita Gream. Não tem uma molé­cula de gordura.

- É um moço simpático.

- Demônios - disse Andy. Aquele Franklin Miltom conquistava qualquer mulher até transformado em presunto.

Deixou cair, sobre a cama, a parte do cadáver que transportava e a moça Fez o mesmo. Voltou-se esfregando as mãos.

- Muito bem, já está pronto.

- Vai deixá-lo assim? A posição é bastante in­cômoda .

Andy viu que Franklin estava com os dois braços por debaixo do corpo.

- Se me permite, Senhorita... quero despi-lo ou vai esfriar ainda mais.

- Mais do que já está?. .. Parece uma pedra de gelo.

- Franklin tinha suas manias quando bebia de­mais. Desta vez, deu-lhe na cabeça meter-se num re­frigerador, dizendo que era uma garrafa de genebra.

- Deve ser um tipo muito brincalhão -, sorriu Dorothy Gream.

- Em vida... - tossiu Andy, acrescentando: - Em vida de seu pai, nem sabe a senhorita como era engenhoso... Mas logo ficou órfão e isso o afetou muito...

A jovem dirigiu-lhe uma careta afetuosa e saiu do quarto.

Andy apressou-se a fechar e apoiar-se na porta. O coração continuava batendo muito depressa. Mais algumas emoções e seria a ele que teriam de enterrar.

Naturalmente que não ia incomodar-se em despir Franklin. Limitou-se a cobri-lo com um lençol.

Deu uma palmada na perna de Franklin.

- Pelo que mais amava, rapaz, comporte-se bem e deixe já de me criar problemas.

O morto pareceu que o escutou, pois, nesse mes­mo momento tocou a campainha do telefone.

Andy deu de ombros e encaminhou-se para a por­ta. Abriu-a com um puxão e fechou à chave a que dava para o living.

Deu de cara com a loura que falava.

- Espere um momento... - fitou Andy. - É uma tal de Cláudia... Pergunta pelo senhor, Dou­tor... Deve estar passando muito mal.

Andy entrou a correr e apanhou o telefone.

- Obrigado, Senhorita Gream -, balbuciou ner­voso junto ao fone. - Cláudia?...

- Quem é essa mulher?

- Que mulher?

- Não se faça de tolo. Há aí uma mulher.

- É Marion!

- Pensa que não conheço a voz de minha melhor amiga?... Não é Marion.

- Querida, você está um pouco transtornada... Já sabe qual é o nosso problema... Procuro acomodar as coisas da melhor maneira possível.

- Oh, Andy, não me despedace o coração... você e uma mulher... e confessa que tem um problema. ..

- É natural... Que queria que fizesse?... Che­go em casa e não a encontro...

- Andy, com que espécie de homem me casei?

- Amor, acalme-se... Lembro agora que deixei uns comprimidos para dormir, com sua mãe... É o que está precisando... tome três, ou melhor, quatro.

- Claro, você gostaria que eu tomasse o tubo todo.

- Não Cláudia, não faça isso, um morto só é bas­tante... Naturalmente, estava me lembrando do tio Johnny... Pobre homem...

- O meu tio Johnny morreu faz nove anos e vo­cê nem sequer o conheceu. Andy, se, de fato, significo algo para você, tire essa mulher de nossa casa.

- Prontamente, Cláudia... Logo tudo estará cla­ro... O passado ficará enterrado... O sol nascerá de novo... e já não haverá relâmpagos nem chuva... Voltarei a chamar... quando o arco-iris despontar.

Andy pendurou o fone. Estava muito nervoso. O suor caía-lhe, em bicas, pelo rosto. Fitou a loura e se apercebeu de que ela estava, por sua vez, contemplando-o com a cabeça ligeiramente inclinada para um lado.

- Shakespeare?

- Eh?

- Referia-me ao que estava recitando.

- Oh sim, realmente... Hamlet, ato terceiro, quinta cena.

Sempre desejei representar o Hamlet, mas nunca tive oportunidade.

- É atriz?

- Fui. E segundo certos críticos, já progredira muito.

- O que a impediu de prosseguir?

- Um homem - a jovem deu um suspiro. - Que outra coisa podia ser?... Quis-me somente para ele... Prometeu-me um Cadillac, dois agasalhos de vison e uma casa em Miami para tomar banhos de sol...

- Puxa, não era mau negócio.

- O Cadillac degenerou num Ford de segunda mão e os dois agasalhos de vison se converteram em um de pêlo de coelho...

- Ao menos teria a casa em Miami.

- Uma choça nos pântanos... Ficamos ali dois meses até que apareceu a polícia ele era O Pequeno Diamante... Não ouviu falar dele?

- Não. Algum tipo importante?

- Não havia outro como ele, no Meio-Oeste, para assaltar bancos. Certifiquei-me logo disso quando lhe colocaram as algemas...

- Supunha voltar ao teatro, então.

- Tarde demais. Meu empresário já encontrara uma nova Ingrid Bergman e topei com um desenhista que me acenou com a fama se me deixasse pintar... Posei como Salomé dançando com os sete véus, Judite cortando a cabeça a Helofermes, Cariota Gorday degolando Marat na banheira...

- É uma mulher de muitos atributos.

Obrigada, Doutor.

- Referia-me à sua vida artística, naturalmente.

- Compreendo, Dr. O'Connor... A propósito, essa mulher que telefonou, era sua esposa, não?

- Sim, desculpe-a... Sofreu um ataque de nervos.

- Se eu tivesse um marido como o senhor, não o deixaria a sós.

- Muito gentil, Senhorita Gream.

- Dorothy, para o Senhor...

A loura começou a caminhar em direção a Andy, parando bem perto dele.

- Ainda não sei seu nome.

- Andy...

- Que melodioso... Sua esposa é uma mulher muito feliz. . .

- Pensa assim?

- O senhor é bem másculo, Doutor.. . e lhe as­senta bem essas botas. ..

- Já notei e por isso as uso quando estou em casa.

- Não crê, Doutor, que é indecifrável o destino de cada um?...

- Estou convencido disso, Dorothy - retrucou Andy pensando na cena com que se deparara ao che­gar em casa.

- Faz apenas meia hora que nos conhecemos e bastou este tempo para que eu começasse a sentir uma emoção que jamais sentira...

- Shakespere também?

- Oh não. Coisa absolutamente original... Não acredita? Ponha a mão aqui.

- Dorothy tomou-lhe a mão sem esperar que ele o fizesse voluntariamente e colocou-a um pouco acima do coração.

Andy sentiu a garganta seca. Diabos, isso vinha acontecer justamente quando tinha um morto em casa.

Este facto veio lembrar-lhe que deveria desfazer-se de Franklin o quanto antes. Foi esse o tipo de trabalho que a loura viera interromper com sua pre­sença.

- Dorothy, acho que precisa descansar...

- Sim, Doutor.

- É este o meu quarto de dormir, isto é, onde durmo com minha mulher...

- Ela não virá?

- De modo algum e mesmo que isso sucedesse, Cláudia é muito compreensiva...

- Doutor, eu disse que só queria descansar até passar o temporal.

- Temos temporal para muito tempo. Por que não procura dormir?

Nesse instante, o telefone voltou a tocar.

- Desculpe-me, Dorothy. - Andy segurou o fo­ne e não esperou que falassem da outra extremidade do fio. - Cláudia... tenha confiança em mim.

- Não sou Cláudia, Doutor. Aqui é o guarda Dell Mille. Tem que vir logo...

- O que há, Dell?

- Um acidente... Um carro derrapou na curva dos Faisões... Há um ferido gravemente. Apresse-se, Doutor...

- Não, meu caro...

- Que disse, Dr. O'Connor?

- Nada, Dell... Falava comigo mesmo... Por que hão de suceder todas as coisas ao mesmo tempo?...

- Assim é a vida, Senhor O'Connor... Pensa que me agrada estar na estrada com um tempo assim?...

- Bem, Dell... Vou já para aí.

- Correndo, Doutor... Ah! e não se esqueça da garrafa de uísque.

- Sim, Dell. Levarei comigo. Eu também preciso. Andy pendurou o fone.

- Más notícias, Andy? - inquiriu a loura.

O médico a tinha esquecido por alguns instan­tes... Inferno, como deixaria só com o morto no quarto dos hóspedes?...

- Dorothy, você está muito pálida e recordo que as pulsações do seu coração eram anormais... Pre­cisa de tratamento...

- Como é esperto, Doutor... Mas não se preo­cupe ... Gosto dos homens sabidos.

Andy não quis tirá-la do erro. Correu ao bonheiro e tirou, do armário, um tubo de barbitúricos. Pôs na mão dois comprimidos, hesitou e acrescentou mais um.

Apanhou um copo, encheu-o de água e regressou ao living.

- Eis aqui, Dorothy. Tem de tomá-los.

- Sim, Doutor, mas antes gostaria de comer al­guma coisa.

- Não há tempo...

Andy agitou os pés nervosamente. Alguém estava gravemente ferido. Tinha que cumprir sua missão.

- Desculpe, Doutor, me encarrego do seu traba­lho... Eu mesma irei à cozinha e comerei algo. Logo tomarei os comprimidos... Prometo...

- De acordo, Dorothy, tenho que ir agora.

- Vá tranquilo, Doutor - e apertou-lhe a mão. - Mas não demore muito, por favor... Vou sentir-me muito só... O Senhor é tão forte, Doutor,

Andy pôs os comprimidos e o copo de água sobre a mesa pequena. Em seguida, vestiu o paletó, a capa e depois de apanhar a maleta, saiu às pressas de casa.

Enquanto fazia correr o automóvel para a curva dos Faisões, soltava imprecações em voz alta.

Por quê, de repente, tudo se complicava para ele?

Cláudia, Franklin Milton, a tempestade, Stanley e Marion Clarke, o guarda Dell Mille, aquela loura que fora enganada pelo Pequeno Diamante, um acidente grave!... e tudo isso com um morto em casa!

E ainda por cima, Cláudia acreditava que ele a enganava com a visitante inesperada... Como podia Cláudia pensar tal coisa depois da amarga experiên­cia sofrida com Milton? As mulheres eram incompre­ensíveis. A forma de raciocinarem, em determinadas ocasiões, era a mais surpreendente possível, sendo também animais racionais.

Viu, ao longe, a curva dos Faisões. Os faróis de um carro e os da motocicleta de Dell rasgavam a escuridão.

Pisou no freio e saiu para a chuva.

- Depressa, Doutor, ou esse tipo morre - disse o guarda. - Estava a ponto de levá-lo à sua casa.

- Pensa que aquilo é necrotério?

- Desculpe, Doutor, mas só pensei no ferido.

- Compreendo. - Andy seguiu atrás de Dell até o lugar onde se encontrava o acidentado.

Outros carros haviam parado um pouco mais aci­ma do local e dois homens estavam juntos à vítima.

- Este sujeito não conta —, dizia um dos dois. O outro replicou:

- Tinha que acontecer, como se deu com um primo de minha mulher. Seis costelas quebradas, a cabeça dependurada... e mesmo assim, venceu a ad­versidade e hoje está tão vivo como você e eu.

- Dêem passagem ao Doutor -, disse Dell.

O'Connor gastou dez minutos fazendo um curati­vo de emergência no homem. Realmente, era grave o seu estado.

- Dell, precisa levá-lo imediatamente para o hos­pital .

- Já chamei a ambulância, Doutor, mas levará uns bons dez minutos para chegar.

- Neste caso, seria preferível que se fosse ao seu encontro.

O homem cuja mulher era prima do "ressuscita­do" se ofereceu para levar o ferido.

- Eu irei com ele, Doutor, naturalmente -, co­municou o guarda.

- Assim, pois, meus serviços já não são neces­sários - disse o médico meneando a cabeça. - Vol­tarei para casa... Cláudia e eu tivemos uma discus­são e ela foi para a casa de sua mãe. - Resolveu di­zer isso para compensar o erro que cometeu ao tomar o telefone.

Safa, Doutor!,.. exclamou Dell, - Sinto muito... Espero que seja apenas uma tempestade pas­sageira como a de agora...

- Logo, Dell, tudo se esclarecerá entre mim e Cláudia e... Mas quero resolver o caso ainda esta noite.

- Felicidade, Doutor, e obrigado pela colabora­ção. Ah! dê-me a garrafa.

Andy encetou o regresso e dentro de pouco tempo estacionava o carro no mesmo local.

Chovia agora com mais intensidade e ele entrou a correr cruzando o jardim com uma exclamação. Sal­tou para o vestíbulo e deixou escorrer a água da ca­pa. Finalmente, entrou no living.

Estava deserto.

Foi ao quarto de dormir dos hóspedes e abriu a porta.

Sim, Franklin Milton continuava ali estendido na cama... Bem, que idéia estúpida lhe ocorrera?! Fran­klin não teria podido andar com os próprios pés...

Fechou a porta e foi para o outro quarto.

Abriu-o vagarosamente. A luz estava acesa, mas nada havia na cama. Foi ao banheiro e nem aí encontrou Dorothy. Correu, então, toda a casa, regressando, afinal, ao living onde parou pensativo.

A loura Dorothy desaparecera.

 

Muito bem, iam deixá-lo tranquilo, afinal, para enterrar Franklin Milton em paz. Começou, no entanto, a duvidar que isso fosse possível. Mas devia enterrá-lo uma vez por todas. O telefone tocou. Agora sim, seria Cláudia. Era uma mulher impa­ciente.

Bem, teria que explicar tudo.

Segurou o fone, porém tomou suas precauções.

- Pronto!

- Alô, rapaz.

- Que diabo quer você a esta hora, Stanley?

- Você ficou muito calado, Andy, mas devia ter confiado em mim.

- A que se refere?

- Conheço o seu segredo.

- Que está dizendo?

- Dei uma volta por sua casa há pouco... Andy estremeceu.

- Veio aqui, Stanley?

- Pois não, é o que estava dizendo... Invejo-o, rapaz... Vejo que está passando uma noitezinha di­vertida ...

- Não é bem assim.

- Claro que é... Eu a vi.

- Viu quem?

- Ela mesma, Andy... e que mulher!... Além de tudo loura como eu gosto... Onde a pescou?... Deve ser uma sereia de águas fundas, pois, Marion me disse que você teve necessidade das botas.

- É muito engraçado, Stanley, mas está labo­rando em erro.

- Sem dúvida, engano-me muitas vezes com re­lação as louras, porém, aposto dois contra um que tudo nela é autêntico... Andy, quando se cansar des­sa mulher, lembre-se do seu amigo Stanley.

- Sinto decepcioná-lo, Stanley, porém, esta mu­lher entrou em minha casa para proteger-se contra a tempestade.

Exatamente nesse instante ecoou um trovão.

- É uma magnífica desculpa, Andy, e já vejo que a preparou bem. Fez Cláudia ir para a casa da sua mamãe e foi bastante que ela lhe confirmasse pe­lo telefone e logo você apareceu com a loura...

- Tudo que está dizendo é estupidez, Stanley. Repito que Dorothy passou apenas alguns minutos aqui em casa.

- Então se chama Dorothy... muito bonito.

- Penso que falou com ela.

- Não, quando a vi compreendi que não devia perturbá-los. Perguntei por você e ela respondeu que tinha saído por um momento. Retirei-me, então, como deve fazer um cavalheiro.

- É muito compreensivo, Stanley. Mas agora vou pedir-lhe um favor.

- Todos que quiser, Andy...

- Deixe-me em paz! - gritou O'Connor e bateu com o fone no gancho.

Acendeu um cigarro nervosamente.

Maldição! Todos os elementos, terrenos e não terrenos, desencadeavam-se contra ele. Até quando? per­guntou a si próprio e a resposta veio em seguida.

Ouviu, uma vez mais, um automóvel descendo a serra.

- Não! - gritou.

- Não estava disposto a tolerar a presença de ninguém.

O carro parou em frente a casa.

Correu ao armário, apanhou uma bengala de jo­gar golfe e colocou-se junto à porta.

Ouviu passos no vestíbulo enquanto a porta abria-se bruscamente. Ia já desfechando um golpe, com o taco, na ca­beça da pessoa que entrava, quando se deteve vendo que era Cláudia.

A esposa o viu pelo canto do olho e voltou-se gri­tando .

Os dois ficaram imóveis fitando-se, ela com os olhos arregalados.

- Vamos, me mate, seu bígamo...

- Cláudia...

- Sim, sou sua mulher que volta à casa que lhe pertence para defender os últimos restos de sua feli­cidade. ..

- De que está falando, Cláudia? - e Andy dei­xou cair ao solo a bengala de golfe.

Compreendeu quanto amava a sua mulher e es­treitou-a nos braços.

A esposa deixou-se abraçar.

- Andy, onde está essa horrível mulher?

- Que mulher?

- Não seja cínico. A que me respondeu pelo te­lefone .

- Oh, essa - sorriu Andy, - era muito bonita...

- Andy!

- Mas nada tinha que ver com ela, Cláudia.

- Espera que acredite?

- Começou a tempestade e o carro dela apresen­tou um defeito. Buscou refúgio nas vizinhanças e aconteceu ser em nossa casa.

- O que eu esperava. Onde está? Quero vê-la. Andy, não a terá metido em nosso quarto...

- Já se foi.

- Mas a tempestade ainda não passou.

Acredito que lhe pareça incrível, foi assim Dell Mille me chamou para atender a um acidentado, Quando voltei, Dorothy já tinha saído.

- Já a chama de Dorothy, é?... E diz que não a conhece.

- Deu o nome...

Andy se admirou que Cláudia e ele estivessem fa­lando da loura, quando o mais importante era Fran­klin Milton.

Afastou-se da mulher.

- Cláudia... senti tanta alegria ao vê-la que mandei, mentalmente, Franklin para o inferno.

- A verdade é que o esqueci muito antes desde que a "sua" Dorothy me respondeu.

- Não é "minha" Dorothy, mas deixemos isso. Franklin está no quarto dos hóspedes.

- Ali?

- Não pude desfazer-me dele...

- Vou embora!

- Para onde?

- Outra vez para a casa de minha mãe. Não quero ficar sob o mesmo teto que Franklin Milton.

- Mas, querida, espere... Prefiro que se acal­me... Já passou tudo...

- Acredita? É sua opinião? Pensa, acaso, que posso esquecer?

- Conseguirá com o tempo, Cláudia. Estou cer­to... - deu um suspiro olhando para o quarto dos hóspedes. - Depois de tudo temos que perdoar.

- Andy... Como não sabia até esta noite?...

- O que você não sabia?

- Que sou casada com um monstro!

- Não gosto que diga isso, Cláudia... Compre­endo que esteja sentida com Milton, porém, afinal de contas ele já deixou de fazer mal.

A mulher tentou falar, mas desistiu, ficando de boca aberta.

- Andy, o que tem feito?

- Só tenho procurado conciliar as coisas, Cláu­dia. ..

- Não quero acreditar no que estou pensando agora, Andy - Não quero!... você o matou?... O homem fitou-a, pestanejando.

- Que diz?

- Matou Franklin, é isso o que você queria di­zer? Mas diga-me que me engano!... Preciso ouvi-lo dizer isso já!...

O médico gaguejava.

- Amor,... não sabe o que diz.

Cláudia sorriu, atirando-se nos braços do ma­rido.

- Oh, Andy, obrigada... Temi, por um momen­to o pior, que você tivesse feito justiça por suas pró­prias mãos matando Franklin. Foi desta forma que interpretei suas palavras...

Andy estava rígido como uma estátua.

- Cláudia... - ouviu-se dizer com voz abafada. - Não foi você que o matou?

A esposa afastou, pouco a pouco, a cabeça do om­bro do marido e ergueu o rosto.

- O que está dizendo?...

- Franklin está morto.

- O que?... Pois há um momento apenas acaba de dizer!...

- Não, Cláudia, foi, então, quando você me inter­pretou mal... Ao chegar aqui, encontrei Franklin em nosso quarto com uma bala no coração.

- Andy!

- A bala foi disparada pela pistola que comprei para que você se defendesse quando estivesse a sós.

Cláudia arregalou os olhos.

- Oh não, Andy! - ele tomou-a nos braços.

- Amor, estarei ao seu lado... Compreendo o que se passou... Lutou por ter ele avançado muito... Foi, então, que se livrou dele, apanhou a pistola e o inti­mou a comportar-se. Franklin não obedeceu... Pos­so vê-lo com o sorriso de conquistador, dizendo: "Não, garota. Não apertará o gatilho" - e riu com o tre­jeito na boca que Franklin devia ter feito.

- Sim, Andy, apanhei a pistola e o ameacei, mas ele não riu como você acaba de fazer e nem tão pouco disparei. Lançou-se contra mim e dei-lhe um em­purrão. Caiu de costas e feriu-se na parede.

- E o que mais?

- Foi tudo. Ficou desacordado... Joguei a pisto­la ao chão e me desvencilhei rapidamente. Antes de sair, olhei-o. Continuava estendido no chão, sem sen­tidos. Tirei o carro e fui a toda velocidade para a casa de minha mãe.

Andy fechou os olhos.

- Não, querida, as coisas não se passaram as­sim ...

- Contei-lhe a verdade, Andy!... Absolutamen­te a verdade!

- Garota, lembre-se que sou médico...

- Que tem isso a ver com a nossa conversa?

- Meu grande amor, você sofreu um grande aba­lo. Estava transtornada e assim, não sabia o que fa­zia... É lógico. É uma mulher honesta e não uma qualquer... Franklin a atacou... Quis abraçá-la... você chegou a pensar que era um polvo de muitos tentáculos.

- Não, Andy, ele agia sem brutalidade.... Mas eu só queria ser abraçada por você e por isso dei-lhe um soco no nariz.

- Isso o estimulou ainda mais.

- Sim, Andy... meu golpe não tirou sangue, po­rém, começou a choramingar com os olhos cheios de lágrimas... Foi até engraçado... Por isso me ri dele e mandei que se retirasse, mas foi aí que redobrou de ânimo...

- Canalha... Pobrezinha... Então, apanhou a arma.

- Sim, mas as coisas aconteceram como já lhe disse... É verdade que você o matou, Andy?

- Não, Cláudia. Afirmo que já estava morto quando cheguei.

- Querido... Eu me responsabilizo por sua rea­ção. Encontrou Franklin aqui, viu meu peignoir rasgado, sinais de luta e, não me encontrando, pensou o pior... Li um caso semelhante na revista Crime e Amor. Um homem assediou muito uma mulher e de­pois de matá-la, enterrou-a no jardim junto a um canteiro de rosas. Foi isso o que pensou Andy?...

- Não, Cláudia, até certo ponto, não pensei, pois nunca li esse conto. Mas Franklin estava já liquida­do... Juro que não o matei, Cláudia.

Os dois olharam-se fixamente, perplexos.

- E então... - disse Cláudia, - se nós ambos fa­lamos a verdade, se você não o matou nem eu tão pouco... quem atirou nele?

Nova pausa sobreveio.

A porta abriu-se, subitamente. Cláudia e Andy voltaram-se, aquela com um gri­to de espanto.

Dois homens assomaram à porta. Ambos protegi­dos com capas de gabardine gotejando água. Um, mui­to alto, de fontes e faces cavadas e o outro, mais bai­xo e robusto. O primeiro disse:

- Sou Charles Lake, tenente da Brigada de Ho­micídios e este é o sargento Alan Stone.

 

- Sejam bem-vindos, amigos - respondeu Andy O'Connor. - Foram também apanhados pela tempes­tade e procuraram minha casa como refúgio.

- Não, Senhor O'Connor. O sargento e eu esta­mos aqui a serviço.

- A serviço?... Não entendo. Charles Lake fitou Cláudia.

- É a senhorita Dorothy Gream?

- Não, tenente. Não sou essa loura. Meu nome é Cláudia O'Connor.

- É minha esposa - sorriu Andy.

- Compreendo - retrucou o tenente. - Onde está a senhorita Dorothy Gream?

- Não está aqui.

- Ei, tenente - interveio o sargento. - aposto que a levaram também.

- Que diz, sargento? - interferiu Andy, sentindo calafrios na espinha.

O tenente irritou-se.

- Vamos por partes. Em primeiro lugar, onde está o cadáver?

- O cadáver?... Que cadáver?

- É o meu dever dizer-lhe que se encontra em situação muito delicada, Senhor O'Connor. Recebemos um telefonema da Senhorita Dorothy Gream. Disse ela que aqui havia um homem morto.

Andy riu nervosamente.

- Um homem morto nesta casa?... Que tolice, não é verdade, querida?

- O maior absurdo que já ouvi em minha vida - respondeu Cláudia. - O tenente Lake é um homem muito espirituoso... aposto que quis gracejar com a sua profissão.

- Não, Senhora O'Connor. Não quis fazer graça alguma com a profissão de seu esposo... Há, nesta casa, um homem morto.

- E talvez uma morta também - assentiu o sar­gento Stone.

O tenente deu alguns passos na direção dos es­posos .

Andy tinha passado o braço pela cintura de Cláu­dia, protegendo-a instintivamente.

- Será melhor que nos diga a verdade, O'Connor. Onde está o cadáver?

Andy convenceu-se que tudo havia já vindo à to­na e que nada podia fazer.

- Tenente, quero fazer-lhe uma confissão.

- Magnífico. É o melhor que pode fazer na pre­sente circunstância.

- Eu não o matei.

- Foi sua esposa?

- Nem ela tão pouco.

- Diga-me, então, que se trata de suicídio.

- Não, tenente, é evidentemente um assassinato, porém, minha mulher e eu nada sabemos sobre quem poderia tê-lo cometido.

- Esqueçamos isso, em princípio. Onde está? Andy apresentou a chave do quarto dos hóspedes e entregou-a ao tenente.

- O último quarto à esquerda.

O tenente Lake passou a chave ao sargento.

- Encarregue-se de tudo, Alan, enquanto inter­rogo o casal.

- Sim, tenente. Agora mesmo.

Alan Stone parou em frente ao quarto e abriu a porta. Olhou para o interior e soltou um assobio.

- Puxa, essa gente é muito asseada. Deitaram-no na cama como se fosse dormir. Eu não disse, há pouco quando vínhamos: Mata-se, hoje, com todo con­forto.

Desapareceu na dependência onde Franklin dor­mia o último sono.

O tenente Lake coçou o queixo.

- A partir deste instante, tudo quanto disserem poderá ser utilizado contra vocês mesmos.

- Tenente, acredite ou não, dissemos a verdade - acrescentou Andy. - Minha mulher e eu somos inocentes.

- É comovedora a maneira por que ambos se de­fendem, mas asseguro que por aí não vão adiantai nada. Logo saberemos qual dos dois é o culpado e então, de nada valerá o abnegado sacrifício...

- Ouça, tenente, somos dois cidadãos honrados... Tive que me ausentar de casa por alguns dias e mi­nha mulher ficou só. Esse homem, Franklin Milton, aqui veio conquistar minha mulher, transformar nosso lar em ruínas... Franklin acreditava tratar-se de presa fácil, porém saiu-lhe o tiro pela culatra. Mi­nha mulher se defendeu como uma pantera... Não pode recriminá-la por isso. Defendia sua honra e a minha.

- Compreendo. Sua mulher sacou da pistola e deu-lhe um tiro.

- Não, tenente. Aí vem o melhor. Minha mu­lher só lhe deu um empurrão e Franklin feriu-se na cabeça, ficando sem sentidos.

- É muito pior. Liquidou-o logo.

- Não, tenente. Minha esposa não disparou a pistola.

- Foi o senhor, hein, Doutor O'Connor?

- Nenhum de nós dois. Já disse. Minha mulher saiu de casa depois que Franklin caiu desacordado e quando cheguei, ele já estava morto. Quero dizer que alguém entrou em casa quando eu e minha mulher estávamos ausentes. Foi essa pessoa que atirou em Franklin, arrumando-lhe uma bala no coração.

- Um visitante misteriso, hein?...

- Exatamente, tenente. Agora compreendeu bem. Todo seu trabalho consiste em descobrir o ho­mem ou a mulher que entrou quando eu e Cláudia estávamos ausentes.

- Muito simples, hein?

- Para estas bandas da comarca pouca gente vem. Se o Senhor investigar por aí, terminará por encontrar uma boa pista que o leve ao assassino.

O sargento Stone saiu do quarto.

- Tudo claro, tenente. Morte súbita, produzida por arma de fogo. Há um orifício de entrada, porém, não de saída. Tem também um "galo".

- Que me diz do "rigor mortis", sargento?

- Começou a ficar rígido. Um pouco mais e es­tará pronto para ser embalsamado.

- Está bem, sargento. Vá ao carro e traga as algemas.

- Não pode fazer isso conosco, tenente! - inter­veio Andy. - Se quer levar-nos à delegacia, pode fa­zê-lo, mas iremos de mãos livres.

- Quem manda aqui? - perguntou Charles Lake. O sargento já havia atravessado, o living e saiu pela porta.

Cláudia, soluçando, abraçou-se com o esposo.

- Andy, que vai ser de nós e nossos filhos?

- Quantos têm? - inquiriu Lake.

- Nenhum até agora... Não tivemos tempo - respondeu o marido.

- Mas pensávamos ter três - choramingou Cláu­dia, umedecendo, com lágrimas, o peito de Andy.

- Esperem aqui. Tenho que falar um momento com o sargento.

- Sim, tenente.

- Não façam asneiras. Dão-me a palavra?

- Tem-na, tenente.

Charles Lake meneou a cabeça e saiu apressada­mente.

A porta fechou-se.

Cláudia passou os braços em volta do pescoço do marido e começou a beijar-lhe o rosto.

- Oh, Andy, por que tive que passar por isto?

- Não se preocupe, garota. Lembre-se que esta­mos unidos até que a morte nos separe.

- Não chame a morte, Andy. - ele estreitou-a fortemente contra si.

- Andy...

- Sim, garota?

- Tenho sido muito feliz com você.

- Eu também...

- Enganou-me alguma vez, Andy?

- Nunca.

- Eu também tenho sido fiel.

- Eu sei, Cláudia...

- O nosso casamento tem sido perfeito, não é verdade, Andy?

- Sim, garota. Ninguém tem sido mais feliz que nós.

- Pedirei ao tenente que nos ponha na mesma cela.

- Creio que isso não pode ser. O Regulamento proíbe.

- Então, em celas contíguas.

- Isso pode ser.

- Aprenderemos a falar por sinais com o auxílio de uma caneca de latão... Vi isso em um filme, Andy.

- Sim, garota.

- Duas batidas, "quero-o muito". Com três, "pre­ciso de você".

- Sim, Cláudia.

Ouviu-se, nesse instante, o motor de um carro. O automóvel afastava-se.

- Os dois ficaram em suspenso.

Andy afastou-se da mulher e precipitou-se para a porta. Abriu-a de um puxão.

- Andy, aonde vai?

O médico gritou para fora:

- Tenente!... Ninguém respondeu.

- Sargento, onde está?

Cláudia aproximou-se do esposo

- Que há, Andy?...

- Foram-se... O tenente e o sargento desapereceram...

- Oh, Andy... É mesmo?

- Certo.

- Que policiais maravilhosos... Viram que éra­mos inocentes.

Andy voltou-se, apontando para o quarto dos hós­pedes.

- Mas deixaram o morto.

- Mandarão buscá-lo.

Andy tomou a mulher pelo braço.

- Não percebeu ainda Cláudia?...

- Se se trata de esquecimento, lembrarão, mas você e eu estaremos sempre juntos, dentro ou fora do cárcere...

- Cláudia, não são policiais.

- Não!

- Enganaram-nos, Cláudia!... É claro. Aproximou-se logo de uma mesinha, apanhou o telefone e discou o número da polícia. Atenderam em seguida.

- É o escritório do xerife?

- É, quem fala?

- Ouça, quero falar com o tenente Lake.

- O tenente Lake?... Aqui não tem ninguém com esse nome.

- Bem, talvez então, esteja aí o sargento Stone...

- Ouça, se quer me fazer de idiota, tenho um meio de evitar que isso venha a se repetir. Nem tão pouco aqui existe qualquer sargento Stone.

- Obrigado, amigo - disse Andy, e desligou. Cláudia tinha-se acercado do marido enquanto este falava ao telefone.

- Cláudia, eu tinha razão!

- Por que vieram, então?

- A loura!... Dorothy Gream... Disseram que ela havia telefonado... Era sua cúmplice... Dorothy só veio aqui para certificar-se se encontraria Franklin Milton... Logo informou aos cúmplices.

- Mas, Andy, de que está falando? - ele estava muito excitado.

- É uma conspiração!

Deu meia volta e encaminhou-se para o quarto de Milton.

Cláudia acompanhou-o.

Entraram ambos na dependência e logo pararam, olhando para Franklin Milton que jazia na cama. Os pés estavam desnudos.

- Descalçaram-no e levaram as meias - excla­mou Cláudia.

- Eis aí o motivo por que o suposto sargento fez isso.

Andy apontou para a sola do pé esquerdo de Mil­ton. Tatuado na pele, via-se, claramente, o número "G-314".

- Andy, que significa isso?

- Não sei, garota, não sei... Deram-se as mãos e abraçaram-se. Afastaram-se de súbito, quando a campainha da porta tocou.

 

- Quem será agora?...

- Fique aqui, garota. Eu vou abrir.

- Não, Andy. Não vá.

- Não se preocupe. Estou com a pistola.

- Tirou do bolso de dentro do paletó a arma com que Franklin Milton fora morto e ficou tran­quilo.

- Tenha cuidado, Andy...

Este fez um gesto afirmativo e deixou o quarto, encaminhando-se para a porta. Abriu-a de vez e saltou para trás. Um corpo avançou para diante e caiu a seus pés.

Era a loura Dorothy Gream.

Andy ouviu, por trás, a voz da esposa.

- Quem é, Andy?

- A mulher com quem você falou ao telefone... A cúmplice daqueles homens.

- Que há?

O moço guardou a pistola e acocorou-se diante da jovem que voltara. Tinha uma ferida no tórax que ainda sangrava.

- Apunhalaram-na, Cláudia.

O marido tomou a moça nos braços e conduziu-a ao divã.

- Depressa, Cláudia, ainda vive... Traga-me uma compressa.

- Cláudia correu ao pequeno consultório do ma­rido - Este retirou o vestido da jovem para deixar a ferida exposta.

Nesse momento Dorothy abriu os olhos.

- Senhor O'Connor...

- Não fale, Dorothy... Vou curá-la.

- Estou liquidada... Chegou a hora.

- Não diga isso, Dorothy... Vai ficar boa logo, verá...

- Obrigada, doutor... Comportei-me muito mal com o Senhor... É uma boa pessoa... por isso quero... dar-lhe uma mensagem. Quatro da madrugada... rua Hayes, 72... Diga uma piada para a panamenha... Tenha cuidado com o homem dos óculos escuros... Assassino...

Pendeu a cabeça e expirou. Cláudia veio correndo com as compressas e parou junto ao divã.

- Está morta?

- Está!

- Ouvi dizer algo. O que falou? Falou do homem que a matou?

- Referiu-se incoerentemente a sua infância e ao rapaz que sentava ao seu lado, na escola.

Andy, que faremos agora? A porta abriu-se naquele instante. Andy e Cláudia viram entrar o guarda Dell es­correndo água.

- Perdoem-me, amigos, pois tive que andar uma légua a pé. A motocicleta quebrou-se. Puxa, Doutor, vê-se que a única pessoa que resiste ao seu uísque sou eu - estava apontando para a loura do divã. - Por certo, Doutor, quebrou-se a garrafa antes de tomar o primeiro trago.

- Vá à cozinha, Dell, Encontrará outra garrafa na geladeira.

- Obrigado. Como está, Senhora O'Connor?

- Muito bem, Dell - sorriu Cláudia nervosa­mente .

- Alegro-me que tenha feito as pazes com o Dou­tor... Ambos constituem um casal perfeito... Sim Senhor. Não me canso de apontá-los como exemplo... Prestativos a todos e sempre dispostos a fazerem um favor...

Dell desapareceu na cozinha.

- Depressa, Cláudia, ajude-me a levá-la.

- Para onde?

- Para onde há de ser?... Quarto de hóspedes.

- Deste modo, o quarto fica cheio.

Ela segurou a loura pelas pernas e ele pelos braços.

- Espere um momento, Cláudia. O que vamos fazer?

- Levá-la com Franklin. Você disse.

- Vamos fazer asneira. Agora já não temos por que esconder alguém morto.

- É mesmo... Nenhum deles nos pertence... Andy, você é maravilhoso pensando.

- Diremos a Dell e que chame seus colegas. - É a melhor idéia.

Deixaram o corpo da loura no divã. Dell apareceu com um copo de uísque na mão, fa­zendo tilintarem os cubos de gelo.

- Eh! - digo — a loura encheu-se de molho de tomate.

- Não é molho de tomate, é sangue - retrucou Andy.

- Caiu e quebrou o nariz.

- Não, Dell. Nem é isso. Deram-lhe uma facada.

- Há cada tipo por aí... - Disse Dell e tomou um gole de uísque.

Logo quedou-se fitando o médico com a boca tor­cida.

- Que disse, Doutor?

- Que deram uma punhalada na loura.

- Dell venceu, com muita rapidez, a distância que o separava do divã.

- Está morta? - inquiriu.

- Perfeitamente.

Dell ergueu a vista para o rosto de Cláudia,

- Agora compreendo a briga. . . porém desta me encarrego eu. Basta vê-la para saber que se trata de uma aventureira... Crime passional. A Senhora apu­nhalou-a, Dona Cláudia.

- Deixe de bancar Perry Mason. Isso lhe fica muito mal.

Dell virou-se, então, para O'Connor.

- De maneira que foi o Senhor... Ela o incomo­dava... Talvez tenha feito chantagem e não teve ou­tro jeito que lhe dar o que pedia, o passaporte...

Dell, quando se cansar de fazer conjecturas, lance a vista para o outro morto.

O guarda ficou como fulminado de espanto.

- Disse outro morto?

- Sim, guarda. Foi o que disse.

Dell coçou atrás da orelha e começou a andar, novamente, mas dirigindo-se à cozinha.

Cláudia e Andy surpreenderam-se com o modo por que emborcava a garrafa de uísque.

- Ei, Dell, não acabe tudo —.gritou Andy. - É a. última que resta.

Dell saiu da cozinha.

- Ouça. Doutor, está passando bem da cabeça? - Perfeitamente bem.

- E sua mulher?

- Também.

- Então, não diga que sou louco.

- Pode confirmar a veracidade do que digo, Dell. Vá ao quarto dos hóspedes. Sabe onde é.

- O guarda atravessou o living com o copo de uísque na mão e entrou no quarto indicado. Cláudia deu um suspiro. - Crê que resistirá. Andy?

Ouviu-se a queda de um corpo na dependência.

- Não pôde - retrucou o marido, fitando sua mulher com tristeza.

- Se tiver tido um colapso, serão três... O pior é que pensariam que fomos nós que os matamos. Iriam me chamar de Cláudia. A Carniceira... Oh, Andy. até me exibiriam na revista Crime e Amor.

- Isso eu não poderia suportar.

- Que faremos, Andy?

- Devemos conservar a serenidade.

- Mas, Andy, não basta isso... Precisamos avisar a polícia.

- Já não é necessário, garota. Temos um polí­cia em casa.

- Dell é inútil.

- Nós o poremos em forma. Traga-me uma toa­lha molhada.

Andy chegou-se a Dell que estava estendido no chão e com o auxílio da toalha que Cláudia trouxe do banheiro fê-lo voltar a si.

- O que houve? Onde estou? - inquiriu.

- No cemitério.

- Meu Deus, é certo... Um morto aqui, outro ali...

- O de fora é uma mulher.

- O Senhor, é o Dr. Mabuse.

- Não, Dell... Continuo sendo Andv O'Connor. o amigo que o deleita com o melhor uísque, seu parceiro de xadrez. E esta é minha mulher, a simpática e jovial Cláudia... Levamos vida dupla - Andy põe-lhe a mão no ombro. - Dell, Cláudia e eu fomos vítimas das circunstâncias.

Dell pôs-se em pé.

- Que tenho eu com tudo isso agora?

- Só há um jeito. Avise a polícia.

- Vão prendê-los.

- Não, Dell. Somos inocentes. Daremos as expli­cações necessárias.

Dell pensou um pouco e, finalmente, fez um gesto afirmativo.

- Está bem. Falarei para o escritório do xerife. Os três passaram ao living e Dell tomou o fone.

- Que há aqui? - começou a bater no gancho. - Demônios, a tempestade estragou a linha...

Andy deu um suspiro e apanhou as chaves do carro.

- Está bem, Dell. Não há outro remédio senão ir pessoalmente. Vá ao povoado e conte tudo. Cláudia e eu esperaremos aqui por você.

Dell apanhou as chaves.

- Bem, suponho que não fugirão.

- Não, Dell, não podemos fazer isso. Estamos muito comprometidos porque os mortos estão em nos­sa casa. Só queremos que os levem e nos deixem des­cansar.

- Ouça, Doutor, está certo que possui uma boa explicação para justificar a presença aqui de dois mortos?...

- Certo, Dell. Não tem que se preocupar. Tudo ficará perfeitamente esclarecido.

- Bem, vou confiar no senhor.

- Dell Fez uma saudação com a mão e saiu da casa.

Cláudia aproximou-se do marido e o beijou na boca.

- Oh, Andy, não me sinto bem nesta casa.

- Vamos à cozinha, quero tomar uma xícara do café.

- Eu também preciso.

Seguiram para a cozinha. Andy sentou-se cm uma cadeira e Cláudia começou a preparar o café.

- Andy, que quererá dizer "G-314"?

- Não sei.

- É claro que Franklin Milton estava metido em casos de espionagem.

- Sim, e agora estão explicadas as suas ausên­cias, mas por conta de quem trabalhava?...

- Já percebo, Andy! "G-314"... Franklin Milton era um agente da FBI... Recordo, Andy... Aos ra­pazes de Hower chamam também "G-men"... Fran­klin Milton é o número 314 do plano. Na sola do pé, tinha tatuado o seu número de identificação.

Compreendo, se talhasse em pedaços e restasse apenas o pé, podiam saber do quem se tratava...

- Qualquer coisa assim, Andy. Meu Deus, estou pensando em uma coisa.... Talvez Franklin Milton vi­nha fazer-me a corte...

- Perdão, Cláudia, mas não está sendo muito con­vincente .

Ouviu-se, nesse instante, uma voz.

- Talvez possa explicar alguma coisa. Cláudia teve apenas que erguer a vista e Andy bastou virar a cabeça para verem o homem que fa­lava. Beirava os trinta e cinco anos e era alto, de ca­belos grisalhos, nariz ligeiramente torcido, óculos es­curos protegiam-lhe os olhos.

 

Andy sentiu um baque no coração lembrando-se das últimas palavras de Dorothy Gream. Esta dissera-lhe que tivesse cuidado com o homem dos óculos es­curos, fazendo o esclarecimento: assassino.

Ali estava o homem. Não podia ser outro, pois ti­nha uma pistola na mão direita.

- Boa noite - disse Andy. - Não lhe ouvimos chegar.

- Evitei que me ouvissem.

- Compreendo, é um homem a quem as surpre­sas agradam.

- Sim, Doutor O'Connor, isso mesmo.

- Já me conhece?

- A partir de hoje, será muito conhecido em cer­tos setores. Será conhecido pelo nome de O'Connor "colecionador de cadáveres".

- Será uma alta honra. Meu pai vendia caixões.

- Muito engraçado, Senhor O'Connor. Espero que não perca o senso de humor.

- Neste caso, por que não continuamos com as brincadeiras e me diz quem é o senhor?

Tenho muitos nomes, Senhor O'Connor.

- Dê-me um que já não esteja muito gasto.

- Nyarcos.

- Parece grego.

- Por parte da pistola somente. Foi na Grécia onde fiz minha primeira vítima.

- O Senhor é muito sentimental.

- Basta de esperteza, Doutor. O que sabe de tudo?

- A que se refere?

- Não procure fugir do assunto, Doutor. Ponha as cartas na mesa, quero ver seu jogo. Deu guarida a Franklin Milton e a Dorothy Gream. Algum deles pode ter-lhe dito alguma coisa.

- Senhor Nyarcos, está muito mal informado Quando cheguei em casa, já Franklin estava morto.

- Sim, acredito. O que há com Dorothy?

- Tocou a campainha da porta, fui atender e caiu-me nos braços. Eu e minha mulher a levamos para o divã, porém, quando pusemos ali, já havia exalado o último suspiro.

- Isso não me convence.

- Por que não?

- Talvez tenha vivido um minuto mais...

- Não, Senhor Nyarcos, garanto que Dorothy morreu quando eu e minha mulher a transferimos para o divã.

Nyarcos deu um risozinho por entre dentes. Logo se ouviram passos no living. Nyarcos não moveu sequer com a cabeça.

- Que é isso? - perguntou Andy.

- Estão fazendo a trasladação.

- De quê? Dos cadáveres.

- E com que autoridade faz isso, Senhor Nyarcos? Os mortos são nossos... Não pode levá-los.

- É assim que vai agradecer o meu gesto?

- Explique-se.

- Vamos levar Franklin Milton e Dorothy Gream. Por quê?

- Não é de sua conta - Nyarcos Fez uma pausa e acrescentou em voz alta: - Rapazes, limpem tam­bém o chão para que não fiquem pegadas.

Cláudia engoliu em seco.

- Posso fazer-lhe uma pergunta, Senhor Nyarcos?

- Pois não, senhora. Estou às suas ordens.

- O Senhor é do FBI? Nyarcos riu novamente.

A Senhora é tão pilhérica como seu esposo. For­mam um bom par.

- Não respondeu minha pergunta.

- Eu deixo que sejam feitas a mim, mas nunca as respondo. E agora, Senhora O'Connor, prepare-se para vir conosco.

Andy levantou-se e Nyarcos apontou-lhe a pistola.

- Calma, Doutor.

- Que disse?

- Já ouviu. Só levaremos ela!

- Não pode fazê-lo.

- Não há outro remédio.

- Por quê?

- É possível que nos tenha dito a verdade, que Franklin Milton e Dorothy Gream nada lhe tenham dito antes de morrer, mas suponho que tenha menti­do, há um recurso... Terá que calar para evitar que algo de mau suceda a sua mulher.

- Não consentirei que a levem!

- Aconselho-o a não se fazer de herói, Senhor O'Connor. Não tenho desejo de matá-lo, porém farei isso sem vacilar se tentar opor-se.

- Não quero que algo mau suceda a minha mu­lher, ouviu? Por isso não pode levá-la.

- Dou-lhe minha palavra que voltará sã e salva às suas mãos, amanhã, à meia-noite. Naturalmente, para isso o Senhor terá que cumprir o que já lhe dis­se. Há de ficar calmo, calado. Não intervenha em nada.

Cláudia correu para junto do esposo.

- Andy, por favor, fique quieto.

- Não posso consentir que este tipo lhe leve. Não tenho confiança nele...

- Convença seu esposo, Senhora O'Connor, ou não me restará outra solução senão deixá-la viúva.

- Andy, não quero ficar de luto... Pelo que mais você ama, fique quieto!... Já ouviu o Senhor Nyarcos... Não me farão mal algum e ele parece ser um cavalheiro...

- É só fachada, garota... Quando se tira a ca­pa de cima desses tipos, mostram o que realmente são.

- Vamos, senhora O'Connor, é tarde. Os rapazes já terminaram o trabalho.

Andy cerrou os dentes.

- Ouça, Nyarcos, prometo que não farei nada, fi­carei calado...

- Sinto, Senhor O'Connor, mas em nossa profis­são, temos que tomar precauções.

- Desta vez não precisa.

- Não posso fazer exceção em seu favor. - Nyar­cos firmou o dedo no gatilho. - Deixa sua esposa vir ou atiro?

- Não! - gritou Cláudia. - Irei com os se­nhores.

- Então venha cá sem interpor-se entre seu es­poso e eu.

A moça obedeceu, colocando-se ao lado de Nyar­cos. Andy respirava ofegantemente.

- Ouça, Nyarcos... Se suceder-lhe qualquer coi­sa, juro que nem todos os óculos do mundo lograriam escapar às minhas mãos.

- Bonitas palavras. Ponha-se de costas. Vou de­sarmá-lo.

- Não tenho arma.

- Claro que tem e vou dizer onde. No bolsinho esquerdo de dentro do paletó... Não acredite que te­nho radar nos olhos, Dr. O'Connor. É que estou há muitos anos na profissão...

- Pensei que a carreira de assassino fosse somen­te truque de mágico.

- Volte-se logo e ponha as mãos na cabeça... Não comece nada, lembre-se que sua mulher é quem mais sofrerá.

O médico lançou um olhar para Cláudia que lhe Fez uma súplica silenciosa. Girou, então, nos calca­nhares e pôs as mãos na cabeça.

Nyarcos aproximou-se por trás e desarmou-o. Cláudia quis saltar sobre o homem de óculos es­curos, porém, este desviou-se sorrindo.

- Bravo, Senhora O'Connor. É uma fiel compa­nheira do doutor... Com outro qualquer, talvez tives­se melhor sorte, porém comigo essas manhas não dão certo. O senhor, Doutor, ficará aqui quieto enquanto nós saímos. Que não lhe ocorra, sequer, chegar à ja­nela. Se perceber que nos vigia, sua mulher começará a sofrer as consequências.

Andy estava revoltado, porém, o que podia fazer para contrariar os desejos desse homem? Nada, abso­lutamente nada.

- Vamos, marche, Senhora O'Connor.

- Cláudia - disse Andy. - Leve o seu agasalho. O tempo esfriou.

- Não se preocupe, Dr.. O'Connor - retrucou Nyarcos. - Sua esposa terá tudo que precise para sentir-se à vontade até que regresse aos seus amoro­sos braços.

Andy viu sua mulher e Nyarcos afastarem-se para a porta. Sentiu ímpetos de sair correndo da cozinha atrás do homem, mas conteve-se rangendo os dentes.

Não devia pôr em perigo estupidamente a vida de Cláudia. Se o matassem, o que seria da esposa? Aque­le homem, Nyarcos, ficaria em liberdade para fazer com Cláudia o que quisesse. Afinal de contas, Nyarcos devia cumprir a palavra para conseguir que ficasse calado.

Tudo ficou em silêncio. Os homens desapareceram tão silenciosamente como haviam chegado.

Saiu da cozinha no momento em que ouvia um trovão.

Caminhou, lentamente, para a porta que dava pa­ra fora e a abriu pouco a pouco. A chuva caía forte­mente no jardim.

Do lado de fora havia, apenas, o carro de Cláudia banhado pelas águas.

Um relâmpago iluminou o céu.

A estrada da colina estava deserta. Voltou dando um empurrão na porta que se fe­chou.

Agora, mais que nunca, pensou estar tendo um pesadelo. Chegando em casa, não encontrou Cláudia e novamente, ficava só. Somente as manchas úmidas existentes no solo faziam-no lembrar que estava viven­do uma angustiosa realidade.

Fitou o divã onde Dorothy havia estado. Não fi­cara manchado de sangue devido a posição em que a jovem se encontrava e a em que morrera a seguir.

Continuou caminhando para o quarto dos hóspe­des e abriu a porta com ímpeto. Tinham feito até a cama e em parte alguma aparecia rastro de sangue. Parecia que, nesse leito, jamais repousara um morto.

Uma vez mais, a campainha, no living, começou a tocar. Já funcionava a linha telefônica. Preferia não atender, mas podia ser a polícia. Precisava agora ter cuidado.

Tomou o fone.

- Sim?

- Alô, filho, como está?

Andy fechou os olhos. Era a mãe de Cláudia.

- Muito bem, Senhora Gilbert... estou muito bem.

- Pensei que estivesse muito preocupado com o caso de Franklin... Foi terrível, Andy... Será que Cláudia não lhe contou o que esse selvagem queria fazer?

- É verdade, Senhora Gilbert, contou.

- Se meu esposo ainda vivesse, sabe o que faria em seu lugar?

- Não sei, Senhora Gilbert.

- Teria agarrado o velho bacamarte e enchido Franklin de chumbo.

- Os tempos mudam, Senhora Gilbert.

- Que diz filho?... Trata-se de sua mulher.

- Quero dizer que, antigamente, Franklin teria conseguido o que queria, mas, agora, com as mulheres mais atiladas e cheias de vitaminas, o trabalho dos conquistadores profissionais é um pouco mais difícil.

- Andy!... não posso conceber que sua moral se­ja tão baixa.

Boa noite. Senhora Gilbert.

- Não desligue. Quero falar com Cláudia.

- Não pode atender agora.

- Por que não?

- Está dormindo.

- Hei de falar, acorde-a.

- Perdão, Senhora Gilbert, porém, lembre-se que sua filha teve que manter luta com o sedutor e can­sou-se. Está agora recuperando as forças... Mas não deve preocupar-se. Amanhã, quando acordar, manda­rei que lhe telefone... Beijos, mamãe.

Pendurou o fone imediatamente, mas ficou com a mão sobre o mesmo.

Teve que fazer um grande esforço para não deitar tudo a perder. Não podia consentir que a mãe de Cláu­dia tivesse a menor suspeita sobre o que realmente se passava.

Nesse momento, uma sirena ecoou ao longe. A polícia acabava de chegar.

 

O guarda Dell Mill entra na casa acompanhado do xerife Lou Granam e do ajudente deste, Thomas Jackins.

- Aqui tem a equipe completa, Dr. O'Connor - disse Dell.

Andy fumava, tranquilamente, um cigarro, sentado em uma poltrona com as pernas cruzadas.

- Boa noite a todos - retrucou. - Mas diga-me, Dell, que significa tudo isso?

Dell deteve-se sorrindo e piscando os olhos.

- O que há, Dr. O'Connor?

- Aqui? Nada. Estava lendo este livro - tomou um que estava ao seu lado e leu o título: A Ilha do Te­souro, de Robert Louis Stevenson.

O xerife de Unionville andava pelos cinquenta anos de idade e era um homem de mediana estatura, robusto, cabelos e bigode brancos.

- Onde estão os mortos? - perguntou com sua costumeira voz áspera.

- Mortos?... A que mortos se refere? - replicou Andy.

O guarda Dell ficou boquiaberto. O xerife pôs-lhe a mão no ombro.

- Dell, quer dizer-me o que significa isso? Você disse que havia dois cadáveres.

- Claro que havia. Vi-os com os meus próprios olhos. Um aí no divã.

- Está vendo agora?

- Claro que não, xerife. Pensa que vejo visões?... Mas sei onde está a loura.

- Onde?

- Com o outro no quarto dos hóspedes. Acompa­nhe-me, xerife.

Andy pôs-se em pé, de um salto, interpondo-se no caminho das autoridades.

- Xerife, não compreendo uma palavra sequer. Exijo uma explicação.

O interpelado fechou os olhos.

- Dr. O'Connor, sempre tive grande admiração pelo seu trabalho.

- Obrigado, xerife, suas palavras me lisonjeiam.

- Mas não me agradam nada esses elogios, ouviu, Dr. O'Connor!

- Nem a mim.

- Dell foi ao seu escritório dizendo que aqui ha­via dois mortos, uma forasteira loura e esse tipo muito famoso pelas suas conquistas amorosas, Franklin Mil­ton .

- Tenho que lhe dar uma má notícia, xerife... sua viagem foi em vão. Aqui não há morto algum. - Dell interveio.

- Enterrou-os, foi Doutor?

- Dell, olhe-me bem nos olhos.

- Estou olhando. O que há?

- Você não está bem... suas pupilas brilham muito... Ingeriu algo.

- Uísque -, ajuntou o ajudante do xerife. - Já lhe disse, chefe, enquanto falava senti o bafo.

Dell deu um salto.

- O quê, Doutor, não diga isso... Eu vi os cadá­veres. Senti enjôo quando descobri o de Milton... Es­tá aí nesse quarto e o Senhor sabe, Doutor...

Afaste-se daí, Dr. O'Connor -, disse o xerife.

- É uma ordem?

- É.

- Muito bem. Costumo obedecer às autoridades. Mas lembre-se disso, xerife. Terá que responder por esta violação do meu domicílio.

O xerife vacilou um instante, dirigindo-se, final­mente, ao guarda.

- Insiste que os mortos estão aí?

- Sim, xerife. Estou pronto a pôr a mão no fogo.

- Vamos, então.

Dell começou a caminhar e foi ele quem empur­rou a porta. Entrou no quarto acompanhado pelo xerife.

Do living, Andy ouviu a voz do representante da lei.

- Dell, creio que você queimou a mão.

- Chefe, juro que... - tartamudeou Dell. - Basta, Dell!

O xerife e o guarda voltaram ao living.

Dell correu para o quarto de dormir do casal, cuja porta abriu com um empurrão. Desapareceu pelo vão e voltou, após alguns segundos, arrastando os pés.

- Tão pouco estão aqui.

- Mas o que tinha de estar? - perguntou Andy com a mais ingênua das vozes.

- O xerife passou a mão pelo rosto.

- Maldito seja, Dell... Você nos Fez vir de Unionville em uma noite horrível como esta.

- Xerife, eu lhe garanto...

- Não pode assegurar nada, Dell.

Lou Grahame deteve a vista no rosto de Andy.

- A propósito, Doutor, onde está sua mulher?

- Saiu.

- Para onde?

- A casa de uma amiga.

- Que amiga?

- Não sei.

- Não é estranho que não saiba onde está sua mulher?

- Posso explicar. - Andy exalou todo o ar rios pulmões e acrescentou: Cláudia e eu discutimos.

Sobre o quê?

- Não é problema seu, xerife... não quer tam­bém que lhe conte a história de minha vida?

- Quando a esposa briga, o comum é que vá para a casa da genitora. E a de Cláudia mora um Unionville.

- Cláudia não quis causar preocupações a sua mãe.

- De modo que lhe disse não ir para a casa da Senhora Gilbert.

- Exatamente. Disse-me que não a procurasse ali nem em parte alguma.

O xerife coçou atrás da orelha.

- Não gosto nada disso, Dr. O'Connor.

- A mim também não agrada que ponham em dúvida minhas palavras.

O xerife deu um gemido.

- Está bem, Doutor, se tiver razão, pedirei des­culpas... Vamo-nos de uma vez. Aqui nada temos a fazer.

- Eu vou também, xerife -, disse o guarda Dell. - Tenho que cuidar da minha motocicleta.

- Pode fazer o que quiser. Você já nos forçou a vir aqui, mas amanhã quero falar com você. Apresen­te-se muito cedo no meu escritório.

O xerife Grahame, seu ajudante e Dell Mille diri­giram-se para a porta de saída.

O guarda motorista deteve-se antes de atingir a porta.

- Ei, Doutor, não tem aí uma camisa de força?

- Sinto, Dell, mas todas estão em uso...

- Era para o Senhor, Doutor. E por favor, não ria. Não é piada. - Dito isso, Dell seguiu atrás do xerife e do ajudante.

Andy voltou a sentar na poltrona. Fechou o livro de Stenvenson e o pôs de lado.

Que fazer agora? Nyarcos lhe havia dito que sua mulher seria devolvida, no dia seguinte, à meia-noi­te. Assim pois, vinte e quatro horas teriam que trans­correr antes que voltasse a ver sua esposa, mas que garantia tinha de que voltaria a ver Cláudia viva?

Quem era, realmente, Nyarcos?... Em que espécie de confusão estava Franklin metido? Qual o significado da marca "G-314"?... E Dorothy Gream?

Tinha, no cérebro, as idéias em ebulição, mas não conseguia responder sequer a uma de suas perguntas.

Levantou-se e pôs-se a passear.

Como iria deixar transcorrer vinte e quatro horas sem fazer nada? Era absurdo. Tinha que resgatar sua mulher.

Mas deteve-se em outra pergunta. Aonde ia?

Percebeu agora que de nada lhe valeria tomar a resolução de lutar, pois se defrontava com um inimigo invisível.

Estava vencido antes de começar, cerrou os punhos, cravando as unhas na carne. Por fim, deixou-se cair na poltrona. Pela décima vez naquela noite o telefone tocou. Andy fitou-o com ódio.

Estendeu o braço e apanhou o fone raivosamente.

- Quem fala?

- Dr. O'Connor, está muito mal-humorado. Era uma voz feminina e desconhecida.

Sim, senhorita, estou de muito mau-humor. Esco­lheu o pior momento para telefonar.

- Eu diria o contrário. É o melhor momento pa­ra o Senhor.

- Por que pensa assim?

- Conheço o motivo do seu mau-humor.

- Quem é você?

- Simplesmente uma mulher que quer ajudá-lo.

- Ajudar-me em quê?

- A resgatar sua esposa.

Andy teve a impressão que corria, pelo fone, uma corrente de alta voltagem que lhe estremecia o corpo.

- O que sabe você de minha mulher?

- Sei o mais importante, que eles a levaram.

- Quem são eles?

- Nyarcos e companhia.

-- Senhorita. dê-me seu nome imediatamente. A mulher riu na outra extremidade do fio.

- Não me é possível fazer isso e não me pergun­te por que, Doutor... Compreenderá no devido tempo.

Andy sentiu que o suor lhe escorria do rosto.

- O Senhor ainda continua aí, Dr. O'Connor?

- Sim, ainda não fui embora.

- Quero lhe fazer uma proposta. O Senhor me ajuda a executar certo trabalho e eu lhe proporciono um meio de recuperar sua esposa.

- De acordo.

Desta vez não fez nenhuma pergunta relativa ao tipo do trabalho.

- Muito bem, diga.

- Agora não, Dr. O'Connor.

- Quero minha mulher ao meu lado o quanto antes.

- Acredito, Doutor... O Senhor quer muito a sua mulher, não é verdade?

- Sim, quero!

- Muito bem, Dr. O'Connor, neste caso, vai por-se a caminho imediatamente para juntar-se a ela.

- Aonde devo ir?

- A St. Paul.

- Isso fica a oitenta milhas.

- Sim, Dr., mas aposto que vence esta distância voando.

- Muito bem, suponha que já estou em St. Paul. Que hei de fazer? Onde se encontra você?

- Vá à rua Leicester n.10 196. É uma casa com jardim. Tocará a campainha três vezes.

- Você estará lá?

- Sim, imediatamente. Recebê-lo-ei pessoalmente, Doutor. Guardou o endereço?

- Guardei. Não se esquecerá?

- Quero fazer uma advertência. Tem que vir só.

- Não se preocupe. Irei sem companhia.

- E deixe também as armas de fogo em casa.

- Está bem, Senhorita.

- Poderia cair em tentação, Doutor.

- A que tentação se refere?

- A de avisar a polícia.

- De maneira alguma. Repito que irei só.

- Será melhor para a Senhora e para o bom êxi­to de sua aventura...

- Satisfarei todas as exigências.

- Coerente, Doutor. Já pode pôr-se em campo, porém, certifique-se de que ninguém lhe siga... Vindo alguém com o Senhor de nada valeria me dizer que não sabia... Compreendeu, Dr. O'Connor?

- Compreendi, Senhorita.

A desconhecida desligou e Andy fez o mesmo. Bem, tinha a intenção de lutar por sua Cláudia.

 

Tinha parado de chover. A rua Leicester era mal iluminada. Os lugares mais próximos e os lampiões brilhavam como couro envernizado. Andy estacionou o carro junto do número 196. Era uma casa ajardinada. O'Connor permaneceu sentado por alguns instan­tes, fitando a casa envolta em trevas. Finalmente, resolveu sair do automóvel e começou a andar. Abriu o portão do jardim que rangeu levemente.

Tomou a passagem cimentada, subiu ao vestíbulo e tocou a campainha da porta. Iluminou-se a janela à direita e logo Andy ouviu o ruído de saltos de sapatos. A porta abriu-se e o médico viu, emoldurada ali, uma ruiva de tipo fantástico, de rosto lindo, olhos amendoados, de cor verde muito clara. Vestia blusa vermelha e calças pretas.

- Sou o Dr. O'Connor. A jovem sorriu.

- Cumpriu as instruções?

- Pois não, ninguém veio atrás de mim, nem tão pouco deixei alguém escondido no carro.

- Muito bem, pode entrar.

Andy passou perto da jovem e aspirou-lhe o per­fume. Era bom. Caro. No living, ela sentou-se em uma poltrona.

- Sente-se, Dr. O'Connor.

Este ocupou a poltrona, ficando a moça em pé.

- Toma uísque, doutor?

- Não, obrigado.

- Por que não?

- Tenho pressa em resgatar minha mulher.

- Ao que parece, está muito enamorado dela.

- Estou, muito, Senhorita...

- Chame-me Judite, ao menos temporariamente.

- Muito bem, Judite. Onde está minha mulher?

- Em lugar muito perto daqui.

- De modo que está em St. Paul?

- Sim.

- Diga-me, positivamente, em que lugar de St. Paul.

- Por enquanto não, Dr. O'Connor.

- Ah! Sim, tenho que executar um trabalho. Di­ga-me qual.

A jovem encaminhou-se para o bar e apanhou uma garrafa de uísque.

- Não quer mesmo beber?

- Não.

- Já entendo, crê que o posso envenenar ou dar-lhe um narcótico.

- Tratando-se de vocês espiões, nada estranha­rei e preciso estar bem desperto.

- Já estabeleceu minha identidade?

- Vocês agem como espiões, de modo que, temporariamente também, a considerarei como tal, a me­nos que me demonstre o contrário.

- Não tenho o menor interesse em demonstrar o contrário, Doutor, replicou a loura, deitando uma dose de uísque em um copo muito alongado.

Virou-se com o copo na mão e tomou um gole sem deixar de fitar o visitante. Logo começou a andar pa­ra a poltrona ocupada por Andy. Com muita brandura sentou-se no braço da cadeira.

Andy teve que retirar a mão para não tocar na coxa da moca.

- Dr. O'Connor...

O médico ergueu a cabeça.

- Diga, Judite.

- O que lhe disse Dorothy Gream?

- Não compreendo.

- Dorothy Gream foi a loura que o Senhor rece­beu em sua casa, a que lhe disse que o carro estava enguiçado.

- Parece estar muito bem informada do que se passa em minha própria casa.

- Nós nos informamos perfeitamente sobre as coisas que nos interessam, Andy... Posso dar um exemplo: Andy O'Connor, nascido a 8 de maio de 1927, em Copperville (Kentucky), filho de Paul O'Connor, salsicheiro. Estudou na escola de instrução secundá­ria de Copperville. Conseguiu, por boas notas, uma bolsa de estudo da fundação Gillmore para a Univer­sidade de Havard... Graduou-se pela Faculdade de Medicina, no ano de 1950. Serviu como médico da Marinha durante três anos. Durante as férias, conhe­ceu Cláudia Gilbert, com quem se casou. É médico competente e de grande futuro.

- Você é muito amável, Judite, mas a que vem esse interesse por mim?

- O Senhor está tendo importante papel em certo setor.

- E eu sem saber.

- A vida é assim, doutor. Recebemos surpresas continuamente. Mas voltemos ao ponto de partida... O que lhe disse Dorothy Gream antes de morrer?

- Nada. Nada me disse.

- Doutor, não é esse o caminho.

- Que quer que lhe diga se Dorothy morreu sem pronunciar uma só palavra?...

- Doutor, temos plena certeza que Dorothy che­gou viva em sua casa.

- Sim, mas morreu enquanto minha mulher e eu a levávamos para o divã.

- Que casualidade -, disse Judite, e bebeu do conteúdo do copo. - Quer sustentá-lo? O'Connor tomou o copo.

Foi, então, que a ruiva se abaixou e beijou-o na boca.

- Andy, você é muito atraente.

- Uma coisa vulgar...

- Não Andy, há algo em seus olhos...

- Crê?

- Brilham de forma especial, acariciam...

- Os seus não ficam atrás. Veja, já tenho pés de galinha...

- Andy, me diz uma voz interior que é você o ho­mem de minha vida...

- Esqueça essa voz.   Está enganando você.

- Andy -, disse ela e beijou-o outra vez.

- Judite...

- Sim.

- Faça-me um favor...

- Todos que você quiser, Andy... - murmurou ela com os lábios colados aos dele.

- Procure outra posição porque se continua nesta, vai me produzir torcicolos.

Os olhos de Judite chisparam por um instante, porém, logo os lábios esboçaram um sorriso. Saltou da poltrona e se pôs de cócoras diante de Andy.

- Andy, tem que ajudar-me... Estou em situação trágica... Me matarão.

- Quem?

- Homens terríveis. Acabarão comigo se não lhes disser o que querem saber.

- Que querem saber?

- O que lhe disse Dorothy antes de morrer.

- Tenho uma solução, vá correndo à polícia e conte tudo.

- Isso não, Andy, não posso fazer isso. Não me deixariam nunca chegar ali... Estes homens são se­nhores de todos os meios... Só existe uma maneira de livrar-me e você já sabe qual é...

- Andy mediu o conteúdo do copo. Estalou a língua em seguida.

- Judite, você é uma, pequena muito matreira.

- Oh! Andy...

- Sim, garota... No molde em que a esculpiram nada faltava. Por isso saiu tão perfeita. Mas, se es­pera que eu diga algo, então, você é mais idiota do que, normalmente, é uma mulher formosa.

Judite se pôs de pé. Estava furiosa, os punhos cerrados, os olhos desprendiam chamas.

- Você tem que me dizer, Andy!

- Não.

- Pensei que era um homem compreensivo.

- E sou, amor... Compreendi tudo. Você faz parte do grupo. Quando me falou pelo telefone só pensei em resgatar minha mulher. Por isso me pus a caminho e vim a toda velocidade, como você me disse... Porém, agora já sei de que lado você está. Faz parte de um grupo rival do de Nyarcos e não são vocês que têm minha mulher, mas Nyarcos.

Andy levantou-se e pôs o copo na mesinha de centro.

- Nada posso fazer por você, Judite.

- É muito estúpido, Andy. Tem que cantar.

- Só toco violino.

- Nesse momento, Andy ouviu uma voz por detrás.

- Aqui tem o instrumento, Dr. O'Connor.

- Andy volveu a cabeça e viu o homem que havia saído de uma dependência com uma pistola na mão. Tinha cerca de quarenta anos, era franzino e de olhos salientes.

- Quem é você? - inquiriu Andy.

- Apresentar-me-ei doutor. Sou Will Garden. Há quem me chame Will, O Funerário.

- Como vai o negócio de ataúdes?

- Muito bem. Tenho a impressão de que, esta noite, vou pegar certo cliente. Você.

- Não seja tão otimista, Will... Examinei-me há dias e tenho uma saúde de ferro.

- Não pense que está salvo, doutor. Estou com uma pistola e basta um estalido. Quer experimen­tar?.. .

- Não, Will. Não sinto desejo no momento.

- Então, atenda à Judite.

- Asseguro que atenderei. Vá embora e ela e eu começaremos o romance. Will cerrou os dentes.

- Já o adverti, doutor. Se o Senhor a está enga­nando. - Levantou a arma.

- Não lhe direi nem uma palavra do que quer saber, de modo que pode disparar, Will.

- Ouça, o senhor está louco. Está vendo, Judi­te... Este tipo seria capaz de receber duas balas.

- Eu sei porque faz isso -, disse Judite. - O'Connor pensa que sua mulher só se salvará se ele guardar silêncio.

- Que faremos, garota?

- Não podemos decidir. Terá que o levar ao nos­so chefe. - Acercou-se do telefone e discou um nú­mero .

- Rex?... Aqui Cleo 0392... Apanhamos o senhor Coelho. Mas parece que engoliu a língua... Não deu resultado... Prefere o purgante... Sim, Rex, espera­remos...

Judite desligou, voltou-se para O'Connor e disse:

- Você o procurou, Andy.

- O que é que procurei?

- Dentro em pouco virão aqui outras pessoas.

- Uma festa, eh? Sim, mais que tudo, e você vai ser o homenageado.

Andy, pelo canto do olho, vigiava Will. Tinha que fugir dali antes que os outros chegassem. Metera-se na boca do lobo levado pelo impulso de salvar Cláudia, porém, agora era claro que, se toda essa gente se pu­sesse em movimento, só poderia pôr em perigo a vida de sua esposa.

- Você não devia ter-se ofendido tanto, Judite -, replicou. - Sou um homem muito modesto. Fico corado toda vez que uma pessoa fala de mim em público.

Saltou sobre Will Garden. Tinha calculado bem a distância. Esperou ouvir o estampido.   Significaria isso o fim de sua vida, porém, sua mão segurou o punho de Will sem que este tivesse tempo de fazer fogo.

No momento que caía deu um forte puxão. Will soltou um grito, enquanto voava pelos ares. A arma caiu ao solo. Andy foi cair junto de Will e foi o primeiro a re­cuperar-se. Viu, à frente, o rosto do inimigo e aplicou-lhe um soco. O golpe atingiu o adversário entre os olhos e dei­xou-o inerte.

Logo Andy ouviu alguém correndo as suas costas e viu quando a ruiva se inclinava sobre a arma.

Saltou, como se impulsionado por molas mecâni­cas, sobre Judite.

A moça já tinha a pistola na mão, porém, no mo­mento em que ia voltar-se, Andy caiu sobre ela e os dois rolaram pelo tapete.

A Luger ficou outra vez sem dono. A ruiva avançou e Andy teve a impressão de que unhas femininas lhe arrancavam o pêlo do pescoço. Comprimiu-a fortemente, pelos pulsos, contra o solo.

- Calma, fera.

- Solte, miserável... Está me machucando!

- Agora, você está em seu natural -, sorriu Andy.

- Assim me agrada um pouco mais.

- Se procurar violar-me eu lhe parto a cabeça.

- Era isso o que você queria... Estava tão amo­rosa no princípio... E violando-a, nada faço demais.

- Não me insulte.

- Perdoe, duquesa, mas o que quero de você não são beijos, mas segredos.

- Segredos?... Não sei de que fala.

- Que espécie de trama é esta?

- Está falando em japonês.

- Escute, Judite. Minha mulher está om perigo e posso perde-la. Eu seria incapaz de ofender a uma dama como você, mas na presente circunstância não vacilarei em quebrar-lhe a cara se não me disser a verdade.

- Você não se atreverá.

Andy Fez um movimento rápido com a mão e ti­rou, do bolso, uma navalha de mola que Fez funcionar.

Um estalido só e surgiu uma lâmina de aço muito afiada.

- Trago isto sempre comigo para quando esque­cer o bisturi, Judite. Quer que a deixe sem orelhas,... Será o começo -, levantou ligeiramente a mão até a altura da orelha da ruiva.

- Não, Andy, espere!

- Vá logo falando. Não podemos ficar aqui toda a noite.

- Todos estão atrás da mesma coisa.

- De quê?

- Da fórmula 3-H 2-R.

- Que significa esse 3-H 2-R?

- Uma nova fórmula de fazer ovos mexidos.

- Nada de brincadeira, garota..

- Ovos mexidos, em nossa gíria, significam deter­minada classe de foguete com cabeça de boi.

- E penso que cabeça de boi também terá outra significação em sua gíria.

- Sim, cabeças atômicas.

- Magnífico. Começamos a nos entender.

- De nada servirá a você.

- Quem tem a fórmula 3-H 2-R.

- Franklin Milton, mas ninguém sabia onde a guardou.

- Que papel representava Dorothy Gream?

- Fazia parte de um dos muitos grupos que an­dam em busca da fórmula.

- Compreendo, são jogadas distintas, cada uma faz a sua e todo aquele que cai diante de uma pistola ou de uma faca, passa para o outro mundo.

Trabalha para nós, Andy. Quem são vocês?

- Os mais fortes.

- Quem é seu chefe?

- Não precisa saber.

- Deixe que eu decida.

- Escute, Andy, ainda que não creia, nem eu tão pouco conheço o nosso cérebro pensante.

- Você falou em Rex.   Quem é?

- O cabeça conhecido, porém não o chefe. Quem matou Milton, Judite?

 

- Não sei, Andy, não sei quem matou Franklin Milton... Pode ter sido qualquer um. Milton era um homem que havia de estourar como uma bolha de sa­bão por possuir o segredo da fórmula 3-H 2-R.

- Onde ele a. encontrou?

- O espião recorre a métodos muito pessoais pa­ra conseguir seu objetivo. Já pode você estar certo que só Milton poderia responder a essa pergunta.

- Depois que assassinaram Milton, minha casa converteu-se num parque de diversões. Primeiro, che­gou Dorothy Gream, em seguida os homens que se fingiram de policiais... Se nenhum deles assassinou Milton, como sabiam que o assassino não levou a fór­mula?

- Não posso responder a esta pergunta.

- Mas está pensando o mesmo que eu. Milton guardou a fórmula em minha casa.

- Talvez sim.

- Então, Milton a conservava no corpo.

- Que disse?

- Os falsos policiais a levaram.

Andy estava lembrando a tatuagem de Milton. G-314. Esta indicaria talvez o lugar onde havia es­condido a fórmula?... Tratava-se de um verdadeiro hieroglifo, mas estava convencido que ao lado de Judi­te não poderia decifrá-lo.

- Está bem, Judite, vamos pôr um ponto final em tudo isso. Agora preciso saber onde está minha mulher.

- Ignoro.

- Você sabia que Nyarcos a havia sequestrado.

- Soubemos por casualidade.

- Diga isso a quem possa acreditar. Você sabe o lugar onde Nyarcos se encontra... Tem, que me dizer.

A porta abriu-se de uma vez. Dois homens penetraram no living de armas na mão.   O mais baixo dos dois gritou:

- Deixe ela, O'Connor, ou lhe varo a cabeça. Andy soltou uma série de imprecações por entre dentes.

Tinha-se demorado um pouco ou, talvez, não su­pôs que esses homens chegassem tão depressa a casa. Estava, novamente, como dantes.

A ruiva pespegou-lhe uma joelhada no estômago para compensar o que sofreu e se pôs em pé, crispando os dedos como uma gata.

Ouviram-se passos do lado de fora e entrou, pelo vão, um homem que devia pesar cento e vinte quilos. Vestia uma roupa escura listrada, segurando, na pe­quena boca, um cigarro do tamanho de um clarinete. Os olhos pequenos tinham a cor da água estagnada.

Fechou a porta ao passar e tirou o clarinete da boca. Falou, em seguida, e as palavras pareciam sair por um amplificador de bem pequena voltagem.

Salve a todos... Garota, ele lhe machucou?...

Se você demorasse um pouco mais me cortava a orelha.

- Oh! -, disse o gordo. - Uma cadelinha sem orelhas seria desagradável... Doutor, deveria com­preender que não se encontra onde está pensando.

Andy dirigiu-se a Judite.

- Quem é esse porco?

Um dos sujeitos armados deu um passo à frente e moveu rapidamente a mão. Andy recuou, pois não pôde evitar que o cano o alcançasse entre a orelha e o pescoço. Tropeçou e jogou-se contra a parede sufocando-se.

Fez uma massagem no pescoço até poder meter ar nos pulmões. O gordo riu, agitando as banhas que lhe cobriam o esqueleto.

- Doutor, o Senhor é corajoso... Apresentar-me-ei. Sou Rex Von Salomon.... Judite já me disse que o Senhor não queria falar... Como sinto... A esta hora costumo estar dormindo, doutor... Não gosto de trabalhar... Sou um sujeito que precisa tratar-se muito -, suspirou. - E já vê o Senhor que por sua culpa tive que abandonar a cama.

- Por mim, pode voltar ao seu quarto de dormir e por favor, uma vez ali, enforque-se no lençol.

Rex Von Salomon começou a enrubescer.

- Doutor, não me decepcione. O Senhor fez seus estudos em Harvard e esta Universidade tem fama de ser a que apresenta os mais finos cavalheiros do país.

- Oh, desculpe, Senhor Von Salomon. Não sabia que teria de falar com um homem tão educado... Aposto que quando tem que estrangular alguém o faz com as mãos enluvadas.

- Oh, doutor, o Senhor se engana. Nunca matei ninguém. Pago para que matem, porém, devo con­fessar que o faço com grande pesar... Amo a vida... Agradam-me as criaturas que são perfeitamente for­mosas... Eis aí um exemplar digno da espécie... A Judite... É como uma estátua grega... Não acha?

- Desculpe, Von Salomon, mas, até agora, só a vi vestida.

- O Senhor tem muito bom humor, Senhor O'Con­nor, e sempre tenho me entendido com as pessoas jo­viais ... Espero que compreenda sua situação.

- Compreendo perfeitamente.

- Alegro-me muito, doutor... Além de tudo, exi­gimos muito pouco do Senhor. Simplesmente, que nos diga qual a mensagem que Dorothy Gream lhe trans­mitiu!

- Como sabe que me transmitiu?

- É muito simples. Dorothy Gream estava mo­ribunda quando fugiu do homem que a tinha nas mãos...

- Confessa que um dos seus rapazes a matou.

- Minhas ordens foram mal interpretadas por esse homem, mas. não voltará a enganar-se.

- Os olhos de Von Salomon fitaram a cinza do cigarro e o homem ajuntou com voz lúgubre:

- Sim, doutor, o homem que matou Dorothy teve o fim digno que merecia. Neste mundo, descansa den­tro de um barril de cerveja... Era um grande pau-dágua e eu lhe disse a tempo: Johnny, “prometo que um dia terá um barril todo..." sorriu fitando Andy. - Sempre cumpro minhas promessas.

- E bebeu tudo?

- Não sei. Confirmaremos mais tarde. Dois dos meus homens o meteram no barril e pregaram a tampa.

- Puxa, você devia dedicar-se à exportação de cerveja. Deixe o barril quieto por alguns anos e terá uma grande cervejaria.

- Dr. O'Connor, gosto muito de seu chiste, mas queria ir-me logo para a cama.

Andy cruzou os braços.

- Vou repetir o mesmo que disse a um dos seus empregados o Will, O Funerário. Não direi sequer uma palavra.

- De modo que está disposto a morrer antes de abrir a boca.

- Certo, Von Salomon... Já pode dar ordem pa­ra que apertem o gatilho ou também reservou, para mim, um barril de cerveja? - Von Salomon riu suavemente.

- Não, Senhor O'Connor. O Senhor não pode morrer tão facilmente como eles porque, agora, estou convencido de que possui o segredo que nós queremos saber.

- Entendo. Vai me torturar.

- Não, doutor. Não fará falta. Devo dizer-lhe algo. Sou seu colega, ainda que não tenha me graduado por uma Universidade americana. Fiz meus es­tudos em uma velha faculdade europeia... Não pos­so atender a doentes como o Senhor. Empreguei es­forços em especializar-me em algo muito mais lu­crativo ...

- Em que se especializou, dr. Von Salomon?

- Em drogas.

- Compreendo. É o melhor negócio.

- Sim, O'connor. Naturalmente, o Senhor como profissional, conhece os efeitos do pentotal...

- Entrou em moda há algum tempo. Até os lei­gos conhecem os efeitos dessa droga.

- O pentotal já foi superado. Há uma droga mui­to mais forte que esta. Vem sendo aplicada com no­tável êxito e é esta a melhor oportunidade que se me oferece para conhecer suas qualidades...

Will, "O Funerário", voltou a si e começou a pôr-se em pé.

- Maldito seja, doutor, vou fazê-lo em pedaços!

- Calma, Will - ordenou Von Salomon.

- O tipo me bateu, chefe.

- Eu deveria dar-lhe uma lição por ter consen­tido que lhe tirasse o pêlo. Quero homens eficientes ao meu lado e não estúpidos que se deixem enganar como crianças.

- Perdão, chefe.

- Basta de desculpas, Will! Você é inútil.

- Sim, Will - disse Andy. - Deve ter cuidado ou acabará inchado de cerveja como um sapo.

- O homem que o golpeara com a arma estava disposto a repetir o castigo, mas desta vez Andy se achava preparado. Desviou o cano que seguia na di­reção de sua cabeça e replicou com um direto que atin­giu em cheio o estômago do valentão.

O sujeito inclinou-se para diante e Andy o alcan­çou, a nuca, com a quina da mão.

- Andy sentiu que no pé em que estavam as coi­sas agora, era melhor lutar pela sua liberdade. Conhe­cia os efeitos do pentotal. Iriam transformá-lo em um boneco sem vontade. Diria o que quisessem e já podia estar certo de que, então, Cláudia seria morta.

Assim, saltou sobre o outro homem que estava ar­mado, porém Will, O Funerário, interveio, dando-lhe um pontapé na virilha.

Andy não chegou a alcançar o outro homem, caiu ao solo e soltou uma praga. Sentiu algo estalar-lhe no crânio. Tudo, em volta, caiu em densa escuridão. Aí come­çaram a brilhar as estrelas. Havia-as de todas as co­res. Amarelas, vermelhas, alaranjadas...

Pensou que, por engano, o haviam projetado do Cabo Canaveral e que era agora um satélite que circunavegava a terra. Um satélite frio navegando num mundo negro e úmido.

Judite dirigiu-se a Von Salomon que aplicara a injeção no corpo imóvel de Andy.

- Dará resultado, Rex?

- Apliquei-lhe uma boa dose.

- E quando voltará a si?

- Dentro de alguns minutos.

A jovem tirou uma baforada do cigarro que tinha na mão.

Andy estava estendido no diva com o braço des­nudo .

Rex Von Salomon retomou seu cigarro, fitando os homens que estavam ao lado da porta empunhando a arma.

As armas já não fazem falta. Vamos guardá-las. Will Garden fitava, boquiaberto, o prisioneiro.

- Eh, chefe —, disse. - É certo o que se diz so­bre esta injeção?...

- Você mesmo comprovará, Will.

- Já injetou alguma vez?

- Lembra-se de Kathy?

- Como não, chefe?... Demônios, em que lásti­ma ficou a pequena... Sabia dirigir-se.

- Mas julgava-se muito sagaz e nos atraiçoou no caso do novo modelo do submarino atômico. Encarre­guei-a de conseguir os planos e em vez de entregá-los a mim, quis vendê-los por conta própria. Kathy quis continuar o jogo e veio ver-me em casa. Disse não ter conseguido os documentos, porém, logo imaginei que os tivesse, em seu poder, escondidos em qualquer par­te. Mandei que os homens a subjugassem e então apliquei-lhe a seringa. Dentro de dez minutos come­çou a dizer onde estavam os planos... Pobre Kathy... Disse aos rapazes que a eliminassem. Não me lembrei s que um deles Ben Spot, O Barbeiro... O bom Ben sa­cou da navalha de barbear e de um golpe a história de Kathy acabou-se.

Nesse instante, Andy começou a mover-se.

- Eh, chefe -, disse Will. - Está voltando a si. Andy abriu os olhos, olhando em volta.

- Um gole por favor , gemeu.

- Beberá água depois.

- Quem falou em água? É uísque o que preciso... e depois uma mulher...

- Eh, chefe -, disse Will. - Está certo que lhe aplicou, mesmo, droga boa?

- Cale-se, estúpido. - ordenou Von Salomon. Will coseu a boca, pois o chefe tinha brincadeiras muito duras quando perdia o controle dos nervos. Andy apertou a cabeça com as mãos.

- Quem me pôs um pepino aos ombros?

- Dr. O'Connor -, disse Von Salomon. - Sabe quem sou?

- Andy fitou-lhe o rosto com os olhos virados.

- Claro que sim... Você é a senhora Roberts... Qual o resultado das últimas pílulas que lhe receitei para a obesidade?

Von Salomon corou.

- Doutor!

- Apenas pode respirar porque aperta muito a cinta... Não lhe disse que se acalmasse, Senhora Ro­berts?...

- Will estalou a língua.

- Diga o que quiser, chefe, mas o tipo diz coisas esquisitas.

- Disse que se cale, Willl Rapazes, se voltar a fa­lar dêem-lhe alguns comprimidos.

Os carrascos que estavam por detrás fizeram ges­tos afirmativos.

Von Salomon começou a rir.

- É um homem de muito caráter. Dr. O'Connor. Sabe, perfeitamente, que lhe aplicamos a droga. Mas está lutando... Seu rosto está coberto de suor... É a luta que está sustentando contra a sua vontade... A droga vai se impondo porém, o Senhor não quer. Está cometendo um erro... Está se destroçando inutilmen­te... Não poderá vencê-la.

Andy respirava ofegantemente.

- Vá para o inferno, Von Salomon.

- Já me reconhece, eh?... Deixei de ser a Se­nhora Roberts.

- Afaste-se de mim, rã peluda. Andy debatia-se na cama.

Von Salomon deu outra risadinha.

- É inútil, doutor... Já está derrotado... por que se consome internamente, tentando opor-se à dro­ga... O senhor vai dizer-nos tudo o que queremos... Não é verdade?

- Já lhe disse, professor! - gritou Andy com os olhos cerrados.

- Eu guardei o pombo dentro da carteira escolar.

- Eh, o que disse agora esse tipo? - Perguntou Will.

- Cale a boca, imbecil. Está lembrando seu tem­po de estudante. Um homem acostumado aos efeitos desta maravilhosa droga confessa os erros praticados em toda sua vida.

Andy estremecia, agarrando-se a abertura da ca­misa. O suor escorria-lhe do rosto e pelo pescoço.

- Não, garota, ele mentiu... Não é você a única mulher a quem amou... Antes de você, gostou de Mary, Lou, Sheyle e de sua prima Carlota... Querida, que podia você esperar de um rapaz de treze anos?...

Eh, chefe, este tipo é um animal -, disse Will. - Se conta agora treze anos, vários dias se passaram pa­ra chegar aos tempos de hoje.

Von Salomon apoiou a garra no ombro de Andy e o agitou.

 

- O'Connor, deixe a infância e avance até o pre­sente.

- Não faça a cirurgia estética, Senhora McGerr. O seu mal é irremediável. A Senhora é feia e a farão ainda mais... Querida Cláudia, só visito a Senhorita William como sendo ela minha doente... Concordo que é bonita, mas só me preocupa sua saúde...

- Já está chegando -, disse Will. - Um pouco mais.

Von Salomon torturou, novamente, Andy.

- Vamos, Dr. O'Cdnnor, tem que dizer o que me interessa...

- Não votarei em você porque é um indecente... Não chegará a prefeito, Senhor Thompson.

- Vá para o inferno, O'Connor... Está falando comigo, Rex Von Salomon e não com algum Thompson.

Andy, angustiado, se debatia cada vez mais. Ti­nha-se agora agarrado ao próprio pescoço. As vezes sufocava-se. Tinha os olhos cerrados e a camisa embebida de suor.

- Tem que dizer, Andy!... Ouve-me?... Apres­se-se e acabarei com o seu tormento!

Andy rangia os dentes, porém de vez em quando era forçado a separá-los para deixar passar o ar.

- Uma piada à panamenha! - gritou.

 

- É certo o que ouvi? - perguntou Will. - Dis­se "uma cobra à panamenha."

- Disse, imbecil - retrucou Von Salomon. - Foi o que falou. Está delirando.

- Quero uma cobra à panamenha -, repetiu Andy.

- Está claro, chefe, - disse Will. - Este tipo esteve no Panamá. Há ali indígenas que comem ser­pentes. Li isso em um livro... Dizem que é muito bom...

Von Salomon Fez um gesto de enfado.

- O'Connor, não esgote minha paciência. O que lhe disse Dorothy Gream com relação a fórmula 3-H 2-R?

- Cuidado com o homem dos óculos escuros... Assassino.

- Este é Nyarcos, Rex —, disse Judite.

- O que prova que Dorothy Gream lhe transmi­tiu a mensagem tal como suspeitávamos... O'Connor, tem que dizer!

O rosto de Von Salomon apresentava agora um esgar infra-humano.

Andy tremia como um possesso.

- Fale, O'Connor -, ordenou Von Salomon, dan­do-lhe duas bofetadas.

- Não me toque, Senhor professor,.. Não conse­gui aprender a lição de solfejo...

- Voltou, então, à infância -, disse Will. Andy soltou um grito e relaxou o corpo, ficando

imóvel.

- Morreu -, informou Judite.

Von Salomon pôs a mão no peito de Andy.

- Não. O coração pulsa, se bem que fracamente.

- Dê-lhe algo que o reanime.

- Não pode ser. Está esgotado... Temos de es­perar que se reanime um pouco... Aí, então, aplica­remos outra injeção...

Arrancarei a sua pele se não disser o que eu que­ro. Vocês ficarão aqui vigiando. Volto para casa. Es­tou louco para dormir - disse, dirigindo-se aos dois homens armados. - Sua cabeça, Rutler, responde por O'Connor.

- Pode ficar tranquilo, chefe. - Disse o mais alto. - Encontrará este homem aqui quando voltar.

- Virei, amanhã, ao meio-dia fazer a segunda prova.

Judite acompanhou Rex até a porta. Uma vez ai, Von Salomon enlaçou-a pela cintura.

- Talvez você consiga um meio de fazer com que o rapaz confesse... Lembre-se que vai ganhar mui­to com isso... Vinte mil dólares.

- Você disse que me daria trinta mil, Rex.

- Está bem, garota. Se eu disse trinta mil, não será nem menos um centavo.

Beijou Judite no canto da boca e saiu de casa.

Andy teve a impressão de que flutuava numa nuvem. Mas esta era muito estreita. Movendo-se de um lado para o outro poderia cair no vazio. Tinha que se apegar a ela fortemente.

A nuvem que havia corrido velozmente durante um milhão de anos, começou a parar. Andy sentia estranha sensação por todo o corpo, como se estivesse ôco. Disse que estava sonhando e que nada daquilo era real. Tinha que fazer esforço para despertar. Conse­guindo isso estaria novamente na terra, junto à Cláu­dia. Valia a pena tentar.

Mas, por que Cláudia não o ajudava?... Por que não lhe acariciava a cabeça como fizera algumas ve­zes quando ele estivera doente?... Cláudia possuía dedos maravilhosos que o acariciavam toda vez que lhe tocavam na pele. Não podia estar muito longe.

- Cláudia! - chamou. Uma voz respondeu.

Era a sua própria voz, pelo eco. Abriu os olhos.

Não era nuvem o que lhe ficava por baixo, sim na cama.

Moveu-se um pouco, o que foi bastante para des­cobrir que não se enganara. O sofá rangeu. Era velho.

Mas ele, Andy, era um prisioneiro. Agora, estava certo que continuava em poder de Rex Von Salomon. E um prisioneiro não merecia melhor tratamento.

Estava em uma dependência. -A sós.

Quis movimentar-se e ouviu o ruído da corrente que lhe puseram aos tornozelos. A corrente estava presa ao pé da cama pela outra extremidade.

Abriu-se a porta dos fundos. Ouviu passos e viu Judite aparecer. Prendia o cigarro aos lábios.

Deteve-se e pôs o braço sobre o jarro. Estava mui­to bonita, os olhos plenos de satisfação com um meio-sorriso na boca.

- Como vai, doutor?

- Amargurado... Quero um bombom.

- Aqui estou eu.

- Prefiro aos outros.

- Se você fosse mulher não diria isso.

- Judite, não discutamos este assunto.

- Muito bem, passemos a outro. Tenho uma proposta a fazer. Eu e você podemos marchar juntos neste negócio.

- De que forma?

Judite olhou por sobre o ombro para certificar-se de que a porta estava fechada. Deu uma passada até a cama e falou com voz mais baixa.

- Você e eu podemos conseguir a fórmula por nossa conta... Conheço o homem que a comprará ao nosso chefe. Posso entender-me diretamente com ele.

- E o que ganharíamos com isso?

- Meio milhão de dólares. A metade para cada um.

- Não é mau.

- Sabia que você gostaria.

- Está bem, garota. Negócio feito. Solte-me.

- Primeiro, tem que me dizer onde está a fór­mula.

- Acha que sou idiota, Judite?

- Que garantia tenho de que você não vai me enganar?

- Nós dois corremos riscos. Também em partes iguais.

- Não, Andy. Você falará primeiro.

- Parece esquecer que sou eu o acorrentado. Su­ponha que lhe dissesse. Não poderia defender-me se você tivesse a idéia de me liquidar... Não, garota, vo­cê deve responsabilizar-se pelas circunstâncias.

A jovem tirou o cigarro da boca.

- Devia queimar-lhe os olhos.

- Que ganharia em deixar-me cego?

- Aposto que vai falar quando tiver apenas um olho bom.

- Prove isso, garota.

Judite olhou-o fixamente e aproximou o cigarro, aceso, do rosto de Andy. Mas colocou-o nos lábios.

- Você ganhou, Andy —, disse com um sorriso. O'Connor tirou uma baforada do cigarro e expe­liu a fumaça pelo nariz.

- Tem aí a chave do grilhão?

- Incumbir-me-ei disso.

Judite tirou a chave do decote e gastou, apenas, um minuto para soltar a perna de Andy. Este esfre­gou o tornozelo.

- Quantos homens estão aí fora, Judite?

- Will e os outros dois que são os mais perigo­sos. Seriam capazes de matar um ancião, se com is­so pudessem ganhar apenas uma moeda de dez cen­tavos.

- Não duvido. Por isso preciso de uma arma.

- Tenho uma na bolsa.

- Devia trazê-la.

- Irei buscar.

A jovem dirigiu-se para a porta e saiu rapida­mente .

Andy saltou da cama e, atingindo a porta, olhou pela fechadura. Pelo vão, pôde ver Will que estava sentado diante de uma mesa com os pés sobre a mes­ma, enquanto esvaziava um copo de uísque.

Os demais esbirros não estavam à vista. Logo ouviu a voz de um deles.

- Eh, garota, aonde vai?

- Vou entrar aí para falar com o preso.

- Outra vez?

- Tenho de conseguir que fale.

- Não pôde você convencê-lo com suas guinadas na primeira vez, nem tão pouco o chefe com sua droga.

- Tentarei outra vez.

A moça continuou andando. - Eh, Judite, que leva nessa bolsa? - perguntou a mesma voz.

- Vou fazer uma pequena maquilagem.

- Pois então vá ao banheiro.

- Quero fazer aí dentro. Que importa?

- Claro que me importa. Já ouviu.

- Você não me dá ordens, Butler. Isso compe­te ao chefe.

- Garota, quando se trata de presos sou respon­sável por eles e na ausência do chefe, sou eu que dou as ordens. Está claro ou preciso fazer-lhe uma ta­tuagem na pele?

Andy compreendeu que a jovem ia cometer um erro. Certo que sacaria, agora, a arma. Não podia esperar mais.

Abriu a porta no momento em que Judite tirava a mão de dentro da bolsa, segurando a arma.

Will, O Funerário, e os outros dois homens per­maneceram imóveis vendo Judite com a pistola e O'Connor no vão da porta.

- Maldita seja, que é isto? - exclamou Will.

- Está bem claro, não? - retrucou Judite. - O'Connor e eu jogamos no mesmo time.

- Traidora! - exclamou Butler e sacou a pisto­la de sob a axila.

Seu companheiro fez o mesmo.

A arma que Judite manejava começou a troar.

Uma fração de segundo depois, cuspiam chumbo também os canos do lado oposto.

Andy lançara-se sobre Will e, como da primeira vez, também agora, levou-o consigo rolando por ter­ra. Mas, desta vez, Will não perdeu a arma e lançou chumbo contra Judite. Logo se virou para transferi-lo a O'Connor.

Já não se ouviam tiros, é Andy não quis que Will rompesse o silêncio com sua pistola.

Mas Will lhe aplicou uma joelhada no ventre.

Andy caiu muito longe, indo parar junto de Ju­dite que estava imóvel. Will já começava a virar-se com a pistola na mão. Agora já não tinha tempo de jogar-se sobre ele. A mão tocou na arma de Judite. Apanhou-a de uma só vez e disparou contra Will no momento em que este fazia pontaria. O Funerário recebeu a bala na cabeça e caiu pa­ra trás. Voltou a reinar silêncio.

Andy fitou, com precaução, os dois esbirros. Ju­dite os havia-liquidado metendo-lhes balas no peito.

- Andy -, chamou a jovem. Aproximou-se e notou um orifício no estômago da moca.

- Você me teria dado a metade, Andy?

- Claro que sim, garota.

- Por fim, teria visto meu sonho converter-se em realidade.

- Qual era, Judite?

- Não depender de ninguém... Desejo que você encontre sua mulher viva.

Andy sentiu calafrios nas costas.

- Pensa que Nyarcos possa tê-la morto? Judite não lhe pôde responder porque já estava morta.

Andy apanhou a pistola que estava recarregada, guardou-a no bolso e saiu de casa.

O automóvel estava no mesmo lugar em que o deixara. Tomou-o e dentro em pouco afastava-se dali.

Não podia avisar a polícia. Nyarcos não vacilaria em matar Cláudia se corresse perigo. Por outro lado, Judite lhe falara de departamentos secretos na ga­ragem "Minerva". Nyarcos devia contar com uma saída de emergência no caso de necessidade. Tinha que fazer esse trabalho só, pois era a ele, mais que a ninguém, que interessava a vida de Cláudia.

Fitou o mostrador fosforescente do relógio. Eram quatro horas da madrugada.

 

O número 72 da rua Hayes era um bangalô en­volto em trevas, da mesma forma que o da rua Leicester.

Passavam quinze minutos das quatro da madru­gada quando Andy estacionou o carro junto ao meio fio do passeio. Atravessou o jardim e subiu ao vestíbulo. Remava silêncio em torno. Adiantou-se e premiu a campainha. Passou um minuto, dois. Afinal a porta abriu-se, rangendo.

Viu pela réstia de luz dois olhos que brilhavam.

- "Cobra à panamenha" - disse Andy. Os dois olhos fitaram-no intensamente.

- Entre, disse uma voz rouquenha.

Andy entrou. Foi, então, que se acendeu uma lâmpada no vestíbulo.

Andy viu diante de si um homem de cerca de quarenta e cinco anos, altura média, ar abobalhado, nariz aquilino e olhos escondidos nas órbitas. Vestia um roupão cor de chumbo e estava com as, mãos nos bolsos. Um dos quais, o direito, formava grande vo­lume.

- Por que não veio, Milton?

- Tive o que fazer em outra parte.

- Neste caso, Milton, devia ter encarregado Dorothy desse trabalho.

- Está de cama. Com muita febre.

- Está bem. Entre para o living.

- Você primeiro.

- Sou eu quem manda em minha casa. Andy deu um suspiro e entrou no living. Ouviu, nas costas, os passos do homem.

O tipo de ar abobalhado deu a volta ao comutador da luz. Andy virou-se e viu o anfitrião com a pistola na mão.

- A mim não pega, amigo.

- Que há com você?

- Já disse. Deveria vir Milton ou Dorothy.

- Não faça tolices, amigo. Afirmo que estou re­presentando ambos.

- Quisera acreditar.

- Não lhe dei a contra-senha?

- Sim, é certo, mas nesta classe de trabalho não basta. Diga algo mais sobre o assunto, por exemplo, que está por trás do que eu lhe devo dar...

- Nyarcos.

- Quem mais?

- Rex Von Salomon.

O interlocutor deu um suspiro.

- Bem, amigo. Já recebi o dinheiro e obriguei-me a entregar a fórmula. Convenceu-me... Darei.

- Assim, as coisas correrão muito melhor.

O homem dirigiu-se para um escritório, no fun­do da casa, abriu uma caixa de onde tirou uma car­teira de couro preto.

- Todos os documentos estão aí —, disse, e jo­gou a carteira sobre uma cadeira.

Andy se apossou da carteira.

- Já vou —, disse. - Tenho pressa.

- Espere um momento.

O homem continuava apontando-lhe a arma e Andy foi obrigado a deter-se no caminho para a porta.

- Quero que transmita uma mensagem a Milton.

- Que mensagem?

- Terminei com ele. Diga-lhe que saio daqui.

Que não temos outro trato.

- Para onde vai?

- Não faz mal que saiba, porém me retiro do ne­gócio. Quero passar o resto da minha vida garanti­do... Esta profissão é muito perigosa. Diga a Milton que se junte a outro... Posso recomendá-lo a um companheiro meu que trabalha no mesmo escritório, mas não digo a você o nome. Diga a Milton que es­creverei de qualquer parte, dizendo quem pode ser sua nova fonte de conhecimentos.

- Muito bem. Repetirei a Milton tudo que me disse.

- Agora, já pode sair. E um conselho: pise no acelerador.

- Crê que a casa está sendo vigiada?

- Não, não está. Refiro-me ao fato de que que­ro romper, o quanto antes, todos os laços que me li­gam ao passado. Você é o último elo. Quanto mais depressa se afastar, mais cedo ficarei livre.

- Encarrego-me disso. Até a vista, amigo. O interlocutor deu um gemido.

Andy saiu de casa e seguiu para o automóvel.

Antes de pôr o motor em marcha fitou o banga­lô imenso em trevas.

A uma milha de distância, Andy tinha visto um posto de serviço com o bar aberto.

Instantes depois entrava no estabelecimento. Ti­nha muito poucos fregueses, três motoristas se ali­mentavam de café com leite e bolos. O balcão ficava a cargo de um homem de pele enrugada.

- Um café -, pediu.

Segurava, na mão direita, a carteira que lhe for­necera o homem da rua Hayes.

Entrou na cabina telefônica e procurou no catá­logo a garage Minerva. Havia ali dois telefones. Um particular. Foi este que discou.

Do outro lado, soou duas vezes a campainha an­tes que atendessem.

- Quem fala?

- Quero falar com Nyarcos,

- Nyarcos?... Que nome estranho... É a pri­meira vez que o ouço. Deve haver engano, amigo.

- Não me enganei. Sei que Nyarcos está aí. Di­ga-lhe o meu nome e verá que surpresa. Sou Andy O'Connor.

- Ouça, vou perguntar aos meus parceiros de pôquer. Alguns deles aqui estão pela primeira vez es­ta noite, porém estou pronto a jurar que nenhum se chama Nyarcos. Espere à vontade...

- Muito gentil.

Transcorreram sessenta segundo e, finalmente, Andy ouviu a voz do homem dos óculos escuros.

- O'Connor?

- Como vai, Nyarcos?

- Alegro-me que continue com tão bom humor, doutor. Como me encontrou?

- Cada um tem suas relações. Como está minha mulher?

- Muito bem, mas não lhe posso dizer o mesmo dentro de pouco tempo. Adverti que ficasse quieto e o fato de ter-me localizado significa que vem se mo­vimentando de um lado para outro.

- Sim, Nyarcos, movimentei-me muito, mas vo­cê não fará nenhum mal à Cláudia.

- Fala como se pudesse evitar. Se pensou em chamar a polícia, cometeria grave erro. Eu posso fu­gir daqui quando quiser, O'Connor. Sua mulher é a única pessoa que não poderá fazê-lo porque será morta.

- Você não lhe poderá fazer qualquer mal, Ny­arcos, porque vai fazer um negócio comigo.

- Um negócio?

- É

- De que se trata?

- Você devolverá minha mulher e eu lhe darei algo, em troca, que lhe interessa muito.

- O quê?

- A fórmula 3-H 2-R.

Houve uma pausa e logo Nyarcos começou a rir.

- O Senhor é um grande homem, doutor, porém ingênuo ao mesmo tempo. Crê que me pode enga­nar? Quer tanto a sua mulher que chegou a inven­tar essa história para fazer-me ceder.

- Não, Nyarcos. Engana-se. Não inventei.

- Ouça, O'Connor, a fórmula 3-H 2-R estará em meu poder amanhã. Eu só queria evitar que caísse nas mãos dos meus rivais e isso já consegui.

- Sim, já sei que você nada teve com a morte de Milton nem com a de Dorothy Gream que ficam por conta do bando de Von Salomon. Você só remo­veu os cadáveres de minha casa porque não queria que a polícia interviesse. A propósito, apareceram lá em casa dois falsos policiais, um certo tenente Lake e um sargento Stone. Eram dois enviados de Von Sa­lomon que ali foram para revistar Milton e ver se ti­nha a fórmula gravada no corpo. Desapareceram quando se certificaram que não tinha. Um dos ho­mens de Von Salomon matara Milton, mas, ao que parece limitou-se a verificar-lhe os bolsos. Mas esse tal Von Salomon ordenou um exame mais completo. Depois de tudo, pensou ser fácil enganar a um médi­co provinciano.

- Bravos, doutor. Está fazendo tudo muito bem. Pelo que disse, parece ter entrado em contato com Rex Von Salomon.

- Entrei.

- Não estou enganado. O Senhor entrou a agir por conta própria. Não tem consideração ao pesco­ço de sua mulher?...

- Uma ruiva chamada Judite pensou que eu po­dia ajudar Von Salomon e marcou um encontro. Não posso contar-lhe tudo que ali se passou, minuciosa­mente, porém deve ser suficiente saber que o grupo Von Salomon ficou muito reduzido. Morreu Judite, um tipo chamado Will, O Funerário, uma dupla de gorilas.

- Doutor, o senhor nos está saindo um ferrabraz de primeira classe.

- Quiseram me arrancar a mensagem que Dorothy me transmitiu antes de morrer. Não sei se o con­seguiram, porque me aplicaram uma certa droga, mas se assim foi, não deram importância as minhas es­tranhas palavras. Milton e Dorothy trabalhavam juntos. Acertaram uma contra-senha com o agente que lhes devia fornecer a fórmula: "Cobra à pana­menha". Foi o que eu disse quando se me abriu cer­ta porta e isso me valeu para que eu seja agora o dono da 3-H 2-R.

- Não acredito em uma só de suas palavras, doutor.

Andy sorriu por ter Nyarcos dito isso irado.

- Você está certo agora de que eu estou dizen­do a verdade, Nyarcos.

- Esse bastardo Phillips Evert prometeu vendê-la a mim.

Farei uma descrição de Phillips Evert e se con­vencerá de que é o homem com quem tratei.

- Muito bem.

- Quarenta e cinco anos, ar de imbecil, nariz aquilino, olhos fundos...

- Sim, Andy.

- Crê agora, não é verdade, Sr. Nyarcos?

- Onde está a fórmula?

- Em minha mão direita, dentro de uma car­teira .

- Você está só?

- Inteiramente.

- Onde?

- Nos arredores de St. Paul.

- Muito bem, O'Connor. Venha aqui.

- Não me decepcione, Nyarcos. Ou é que vai também me querer dar o mesmo tratamento que Von Salomon, como médico de uma província?

- Que quer dizer?

- Que as coisas vão acontecer como eu ordenar.

- Lembre-se que tenho sua mulher.

- E eu a fórmula que valerá para você um mi­lhão de dólares?

- Está louco. Não há ninguém que dê tanto di­nheiro por uma fórmula.

- A ruiva de Von Salomon já havia conseguido uma oferta de meio milhão e ela era somente inter­mediária. Você é um gordo tubarão, Nyarcos, chefe de todo o bando. Se minha mulher sofrer a menor coisa, você ficará sem fazer o negócio. Quem estabe­lece as condições, Nyarcos?

Andy ouviu a respiração entrecortada do homem que estava na outra extremidade da linha.

- De acordo, O'Connor. Você manda. O que de­vo fazer?

- Você e minha mulher virão ao meu encontro.

- De acordo. Levarei um homem.

- Não, Nyarcos. Disse você e minha mulher. Os dois somente.

- Compreendo. Aonde devemos ir?

- Terão que tomar a estrada número trinta e se­guir por aí até St. Paul. A estrada bifurca-se a oito milhas da cidade. Parem aí no caminho à direita e esperem por mim. Tudo claro?

- Está.

- Um conselho, Nyarcos. Não traga arma algu­ma. Quero dar a isto a feição de negócio de cava­lheiros .

- Eu procederei como tal, O'Connor. Não pro­cure enganar-me.

- Deve estar ali às cinco, Nyarcos.

- Por favor não se demore muito. As cinco, co­meçará a amanhecer e quero concluir este negócio antes que rompa o dia.

- De acordo, Nyarcos. Até logo.

 

Fazia o automóvel correr a toda velocidade. A luz dos faróis, viu, pouco depois, a bifurcação da estrada da comarca n. 30. Estava deserta. Meteu o carro por entre algumas árvores, parou o motor e saltou do veículo. Com a carteira na mão esquerda e a pistola na direita, aproximou-se da margem da estrada e acocorou-se.

Consultou o relógio. Faltavam quatro minutos para as cinco.

Logo ouviu, ao longe, o ruído de um motor. Pela colina que se elevava no caminho de St. Paul, viu surgir um carro que se aproximou rapidamente.

Rangeram os pneumáticos quando o motorista comprimiu o pedal dos freios e o automóvel parou bruscamente.

Andy reconheceu sua mulher. Era ela que guiava. Abriram-se ambas as portas e os passageiros sal­taram . Andy viu Nyarcos com os seus óculos escuros e Cláudia que parava o motor.

O coração saltou-lhe no peito. Cláudia estava vi­va e ao que parecia, nada sofrerá.

Foi, então, que se deixou ver.

- Boa noite, Nyarcos.

Nyarcos voltou-se, bruscamente, levando a mão ao bolso.

- Não faça isso, Nyarcos -, disse Andy. - Te­nho a pistola apontando em sua direção.

- Eis aqui sua mulher sã e salva... Espero que cumpra a palavra.

Cláudia começou a correr para o esposo.

- Cuidado, garota. Não se interponha entre mim e Nyarcos.

Cláudia fez a volta.

- Espere um momento, Cláudia. Tenho que ter­minar com Nyarcos.

- Andy, você é um grande herói -, exclamou a jovem com orgulho.

Nyarcos deu uma risadinha.

- Faço minhas suas palavras, Senhora O'Con­nor. Tem um marido muito dinâmico. Agora, dê-me a fórmula, Andy.

Andy jogou-lhe a carteira e Nyarcos a aparou de encontro ao peito.

- Meta-se nesse carro e zarpe, Nyarcos.

- Muito bem. Alegro-me que tenha cumprido o trato. Até à vista.

Nyarcos tomou o auto e pô-lo em marcha. Fez a volta e tomou a estrada de St. Paul.

- O que fez, Andy?... Deu a fórmula que eles queriam...

- Não seja tola. Substituí o conteúdo da car­teira por papel de jornal. Agora temos que correr. Vamos.

Pegou-a pela mão e correram até onde tinha dei­xado o carro. Entraram.

Em poucos segundos Andy retomava a estrada. Comprimiu, com firmeza, o acelerador do carro, seguindo em direção oposta à que tomara Nyarcos.

- Ninguém nos segue?

- Não - Cláudia passou os braços pelo pescoço do esposo e começou a beijá-lo na boca.

- Eh! garota, assim nos arrebentamos.

- Sou a mulher mais feliz do mundo...

- Como você se arrumou com os seus raptores?

- Conquistei um deles. O lugar-tenente de Ny­arcos, um tipo chamado Arthur, muito alto, muito louro...

- Já estou cansado dos sujeitos altos e louros.

- Era também muito intrépido.

- Não diga que propôs fugir com você.

- Ia fazer quando você interveio. Menos mal que lhe evitei encrencas... Sentiria muito.

- Alguém nos segue?

- Não vejo faróis na estrada.

- Estranho muito que Nyarcos tenha confiado em mim.

- Com certeza, pensou que você fosse tolo.

- Logo Andy divisou, ao longe, os faróis de um carro parado.

- Creio que temos aí a resposta, Cláudia.

- Que há, Andy?

- Nyarcos levou em conta o lugar em que eu o deixei. Mandou os homens por aqui. Desta maneira, nos apanharam entre dois fogos. Estou certo, agora, de que Nyarcos vem atrás.

- Oh, Andy, nos matarão.

- Não duvido... se nos apanharem..

- Mas como vamos escapar se não temos um he­licóptero à mão?

- Meta a mão no bolso do meu paletó e tire a pistola.

- Que vou fazer com ela?

- Atirar em quem estiver à frente.

- Oh, Andy, posso matar alguém.

- Perdão, garota, não me lembrava que entre eles pode estar o seu admirador louro...

- Está bem, atirarei.

- Não o faça até que eu diga.

- Sim, Andy.

- Vou fazer a volta. Prefiro encontrar-me, a sós, com Nyarcos do que com os pistoleiros aí adiante. Atenção conheço a manobra...

Apertou o freio. Rangeu a carroçaria do carro, metálicamente, e os pneumáticos chiaram, Andy fez girar o volante com rapidez. Por momentos, pareceu que o carro ia virar ou correr sobre duas rodas. Cláudia deu um grito.

- Dispare! - disse Andy

- Não posso. Tenho que me segurar com as duas mãos para não cair...

O carro voltou a correr sobre as quatro rodas, po­rém, nesse instante, começaram a soar os estampi­dos.

- Abaixe-se, Cláudia!

Os vidros saltavam em frangalhos. Uma chuva de balas caiu sobre eles. Algumas atingiram a carroçaria do carro, outras entraram pelas aberturas, escondendo-se no tapete. O pára-brisa fez-se também em pedaços.

Andy comprimiu, outra vez, o pedal do acelera­dor.

O auto começou a ganhar velocidade e os ho­mens de Nyarcos deixaram de atirar.

- Eh! Andy -, disse Cláudia. - Estão nos se­guindo!

- Temos que chegar à encruzilhada primeiro que Nyarcos.

O motor roncava com toda sua força. Súbito, Andy viu-se ofuscado pelo clarão que lhe vinha pela frente.

- Nyarcos! - exclamou Cláudia.

- Sim, garota, e ele chegará à encruzilhada pri­meiro que todos nós.

- Colidiremos com ele...

- Sempre lhe quis, Cláudia,

- Eu também, Andy...

- Garota, se pararmos me tomarão a fórmula e nos matarão. Só há uma solução.

- Qual?

- Jogarei o carro contra Nyarcos.

- Vamos nos arrebentar.

- Justamente o que eu procurava explicar-lhe.

- Morreremos, Andy, e somos muito moços.

- Somos, garota, é essa a triste realidade.

- Oh, Andy, e não temos, sequer, um herdeiro.

- Imagine o que você passaria se tivesse?

- Estaria agora órfão. Pobrezinho.

- O que pretendo, garota, é transformar o carro em uma tocha.

- Você quer dizer que vamos morrer queimados?

- Não importa como se morra.

- Mas, Andy, vou ficar horrivelmente desfigura­da... Tirarão fotografias... Sairei em revistas de cri­me... E causarei nojo.

- Não pense nisso agora.

- Sempre fui orgulhosa de meu rosto e você tam­bém... O que fez você mudar?

Andy deu um suspiro.

Garota, trago, comigo, uma nova fórmula de ovos mexidos com cabeça de boi.

- Andy, esse prato deve ser horrível... Ovos e ca­beça de boi!...

- Falei na gíria dos espiões. É um foguete com cabeça atômica...

- Meu Deus... Como pode você levar isso à esta velocidade?... Se colide, explodirá... Não restará de nós nem o mais insignificante pedaço...

- Você está muito nervosa, Cláudia. O que pro­curo lhe dizer é que tenho a fórmula.

Os dois carros, o que os dois homens ocupavam e o de Nyarcos, estavam muito perto um do outro.

- Garota, abrace-me, quero morrer junto de você.

- Sim, Andy.

Cláudia passou os braços pelo pescoço do marido e este voltou a cabeça, beijando-a nos lábios.

Mas não deixou de olhar, pelo canto do olho, pa­ra o carro de Nyarcos que avançava em sua direção.

A catástrofe era inevitável. Aquela estrada muni­cipal só comportava um automóvel.

Um segundo mais e estariam mortos. Bem, tinha cumprido seu dever. Ouviu um rugido. O prelúdio do choque. Porém, logo viu a estrada limpa. Ouviu, atrás, terrível chiado e em seguida, uma explosão.

Voltou-se e divisou o carro de Nyarcos dando mui­tas voltas e envolto em chamas, arrebentando-se con­tra as árvores existentes do lado direito do caminho.

Cláudia estava agarrada ao esposo com os olhos fechados.

- Estamos no céu, Andy.

- Não, garota, mas sim, na terra. Ao que parece, Nyarcos tinha mais apego à vida que nós e isso custou-lhe a morte.

O carro que os perseguia continuava-lhes no en­calço e ia, pouco a pouco, diminuindo a distância que os separava.

- Garota, tem aí a pistola?

- Deixei-a cair a meus pés.

- Creio que chegou o momento de utilizá-la. Cláudia largou o pescoço do marido e apanhou a arma.

- Escute bem, Cláudia. Você vai tomar o meu lugar no volante.

- Para quê? Você guia melhor que eu. Não pas­sa nunca de setenta por hora e agora o automóvel já se transformou num bólide.

- Só existe uma solução para nós antes que che­guem mais perto.

- Qual?

- Quero furar um dos pneumáticos. Vamos, de­pressa .

A jovem passou por cima do esposo e deslizou-se em direção oposta.

Andy apanhou a arma da mão de Cláudia e esta tomou o volante.

- Andy, o caminho é muito estreito... Deixe frear um pouco...

- Não pode fazê-lo... vão se jogar em cima de nós.

Andy voltou-se. A janelinha traseira estava em pedaços. Viu, ao longe, o carro dos pistoleiros. Passou do assento da frente para o traseiro.

Dispararam, nesse momento, uma metralhadora. As balas atingiram a carroçaria, mas, desta vez, nenhuma entrou no carro.

- Uma curva, Andy! - gritou Cláudia. - Tenho que frear!

Fez isso ao mesmo tempo que falava e novamente o automóvel pôs-se a ranger. Andy abaixou-se sobre a janelinha traseira. Podiam matá-lo, porém devia correr o risco. Apontou a arma para o carro que se aproximava e pôs-se a disparar. Logo uma das rodas dianteiras, a da direita, ex­plodiu .

O auto ocupado pelos homens de Nyarcos come­çou a ziguezaguear pela estrada. Durante segundos, teve-se a impressão que o ho­mem que guiava lograria manter o equilíbrio do carro, porém este deixou a estrada, indo chocar-se, pela fren­te, contra uma árvore.

O motor explodiu, como sucedera antes com o car­ro de Nyarcos, e as chamas envolveram rapidamente o veículo.

Cláudia continuou apertando o pedal do freio. Andy saltou pela porta com a pistola na mão.

Correu para o local onde se encontrava o carro sinistrado. Abriu-se uma das portas por onde saiu um homem envolto em chamas, perdeu o equilíbrio e caiu imóvel.

Cláudia veio para o lado do marido que a envol­veu com os braços.

- Morreram todos -, disse.

Andrew Leder, alto funcionário da F. B. I., aper­tou a mão de Andy.

- Senhor O'Connor, prestou um grande serviço ao nosso país. Nosso chefe não pôde vir cumprimentá-lo pessoalmente porque está na Europa, porém falei com ele pelo telefone há meia hora e ele encarregou-me de lhe transmitir seus cumprimentos.

- Obrigado, Sr. Leder.

- Completando o seu trabalho, devo comunicar que dois dos nossos homens prenderam Phillips Evert, em Detroit. Estava em um hotel de terceira classe, dedicando-se à profissão de tingir cabelos. Detivemos também Rex Von Salomon. Foi fácil fazê-lo falar. Acima deste, havia outro homem muito mais impor­tante, um diplomata... Mas este fez valer suas imunidades... Não teremos outro remédio senão nos con­formar em bani-lo do país.

Andy tinha os olhos inchados pois havia passado doze horas no escritório da F. B. I. fazendo seu re­latório .

- Desculpe, Sr. Leder, porém gostaria de dormir um pouco.

- Pois não, doutor O'Connor, lamento muito tê-lo obrigado a permanecer aqui, porém já sabe como são estas coisas.

- Sei, Sr. Leder.

O funcionário da F. B. I. acompanhou Andy até a porta.

Andy parou.

- Uma pergunta, Sr. Leder. Franklin Milton ti­nha a marca G-314 tatuada no pé esquerdo. Sabe o que significa isso?

- Sim. O verdadeiro nome de Franklin era Sér­gio Andrik, um croata. Foi prisioneiro de guerra. Es­sa marca foi feita no campo de concentração, assim pois, nada tinha a ver com a profissão que abraçou posteriormente: espião internacional a serviço do me­lhor pagador.

 

- Andy, o seu êxito neste congresso foi mara­vilhoso ... Montreal... E tenho muita vontade de es­tar por lá. Andy abraçou sua mulher. Encontravam-se, em casa, no divã. Cláudia e Andy se beijaram.

Nesse momento, a campainha do telefone tocou. Andy esticou a mão e levou o fone ao ouvido.

- Quem fala?

- Olá, rapaz -, disse Stanley. - Já recuperou o juízo?

- Por que pergunta, Stanley?

- Diabos, você se atreve a perguntar? Veio aqui para apanhar uma picareta e uma pá... teve um ca­so com uma loura... e aposto que outras coisas se passaram.

- Não, Stanley. Há engano. Nada ocorreu, ab­solutamente.

- Alegro-me pelos dois. Vocês constituem um ca­sal bem feliz, como eu gosto... A propósito, que há com a loura?

Andy desligou e continuou beijando sua mulher. A campainha da porta tocou então.

- Entre - disse Andy com sua pausa.

- Bom dia -, disse o guarda Dell Mille entrando no living.

Andy virou o rosto.

- Olá, Dell.

- Doutor, gostaria que me compreendesse...

- Dói-lhe algo? A noite passada... Estava preo­cupado pensando no senhor, se vi, o que vi ou não vi.

- O que viu?

- Uma morta aqui e outro morto ali...

- Bem, Dell.   Já sabe onde está o remédio.

- Obrigado, doutor. O senhor está sempre re­ceitando...

Dell dirigiu-se à cozinha.

Andy e Cláudia continuaram beijando-se ouvindo o gluglu da garrafa de uísque que Dell Mille embor­cava.

 

                                                                                Keith Luger  

 

                      

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