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O CADÁVER FUGITIVO / Erle Stanley Gardner
O CADÁVER FUGITIVO / Erle Stanley Gardner

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CADÁVER FUGITIVO

 

Della Street, secretária particular de Perry Mason, entrou no gabinete do advogado e anunciou:

-Estão ali duas senhoras que desejam falar-lhe com urgência.

- A respeito de quê, Della?

- Não quiseram dizê-lo a uma simples secretária.

- Nesse caso, diga-lhes que não posso recebê-las.

- Fazem uma curiosa parelha... Trazem malas de viagem e olham constantemente para os relógios de pulso, como quem tencione partir de comboio ou de avião e deseje consultá-lo primeiro.

- Descreva-mas, mais ou menos - pediu Mason, cujo interesse começava a despertar.

- Mrs. Davenport tem um ar apagado, quase furtivo. É uma mulher nova, bastante bem vestida.

- De que idade?

- Talvez trinta anos.

- E a outra?

- É do género oposto. Deve ter cerca de cinquenta anos e chama-se Mrs. Ansel.

- Mãe e filha?

- É possível.

- Calculo o que seja. A pobre menina casou com um bruto. A querida mãezinha veio reconfortá-la com a sua presença e o vilão insultou-a. Resolveram então deixá-lo para sempre e pretendem consultar um advogado, urgentemente, para que os seus direitos sejam salvaguardados.

-Provavelmente é isso... mas...

- Diga-lhes que não me encarrego de divórcios e que é preferível que corram ao cartório de qualquer colega meu, antes que percam o avião.

Della Street foi transmitir o recado e voltou quase imediatamente.

- Mrs. Ansel esclarece que se trata de um caso de assassínio e acrescentou julgar que o patrão gostava dos casos de homicídio.

- Nesse caso, mande-as entrar. Conseguiram excitar-me a curiosidade.

No instante imediato, Mason viu entrar no gabinete uma mulher jovem, delgada, de aspecto reservado e olhar baixo, carregando uma mala de viagem. Ergueu os olhos apenas para dizer "Bom dia, doutor" e sentou-se numa cadeira, junto à parede. Apareceu então uma outra mulher no limiar da porta, empurrando-a com uma mala idêntica que deixou cair ruidosamente no chão, antes de consultar o relógio e declarar:

- Temos apenas vinte minutos, Mr. Mason.

- Muito bem. Queiram sentar-se. É Mrs. Ansel, não é verdade?

- Sim. Sara Ansel. E esta senhora é Mrs. Davenport.

- Sua filha?

- De forma alguma, não! - respondeu Sara Ansel. - Nunca nos tínhamos visto até há coisa de alguns meses. Ela vivia no campo, em companhia do marido que trabalhava e minas, e eu estava no Oriente, em Hong-Kong. Venho a ser sua tia por afinidade, isto é, o marido de minha irmã era seu tio.

- Peço-lhe desculpa - pigarreou Mason.- Segundo percebi, deseja consultar - me a respeito de um homicídio, não é verdade?

- Exactamente. O nome de William C. Delano diz-lhe alguma coisa? - inquiriu Sara Ansel.

- É um grande proprietário de minas...

- Era, sim... morreu há coisa de seis meses. Pois bem, o marido de minha irmã, John Delano, era irmão de William. Tanto minha irmã como John já morreram. Myrna, aqui presente, é sobrinha de John e de William Delano. - Compreendo. Fale-me agora desse crime.

- O marido de Myrna, Ed Davenport, escreveu uma carta acusando-a de querer matá-lo. - E a quem enviou ele essa carta?

- Ainda não a enviou, a ninguém. Está endereçada ao procurador do Distrito ou à Polícia, não sabemos ao certo, para o caso de vir a falecer. Acusa a mulher de ter envenenado Hortense Paxton, a sobrinha que deveria ter herdado a fortuna de William, e teve o descaramento infernal de escrever que Myrna, sabendo-o ao corrente desse crime tenciona igualmente envenená-lo a ele. Também pede à Polícia que investigue a sua morte eventual.

Mason olhou curiosamente Para Mrs- Davenport, que se mantinha completamente imóvel, na sua cadeira. Como se tivesse sentido a insistência desse olhar, levantou os olhos, tornando a baixá-los imediatamente para examinar as mãos enluvadas.

- Que razão poderia ele ter para chegar a uma tal conclusão? - perguntou o advogado. -Tinha, porventura, algum motivo Para acusar Mrs. Davenport, dessa maneira?

Finalmente, esta declarou:

- Entretenho-me muito com jardinagem e possuo alguns produtos para destruir os insectos nocivos e as ervas daninhas produtos esses que são extremamente tóxicos. Ora o meu marido tem a mania de mexer em tudo. Tive já por duas vezes, de adverti-lo de que deve ter cuidado ao manuseá-los. Isso deve tê-lo impressionado e como é um homem que não raciocina normalmente, quando uma ideia se lhe mete na cabeça, não há maneira de desconvencê-lo. , "

- É um tarado - interveio Sara Ansel. - Passa a vida a imaginar coisas- consigo mesmo, e, ainda por cima, bebe. Depois encoleriza-se, e de que maneira!

- À primeira vista essa história parece-me muito confusa. Preciso de uma explicação mais pormenorizada, mas vejo que estão com pressa..-. , . _ - - Sim, temos um táxi à espera, lá em baixo. Tomamos o avião, das onze- Para Fresno.

- Nessas condições seria talvez melhor retardar um pouco a vossa partida• • - É impossível. Ele está agonizante.

- Ed Davenport, o marido desta senhora?

- Sim.

- E deixou uma carta que deverá ser entregue às autoridades, se vier a falecer?

- Exactamente.

- Na realidade, isso complica a situação!

- É o que nos preocupa - confessou Sara Ansel.

- Está à morte, com quê? - inquiriu Mason.

- Ora, porque não tem o juízo todo! - respondeu Mrs. Ansel, sentando-se na borda da cadeira. - Peço-lhe que me escute com atenção, pois não terei tempo de repetir a história toda.

- Nesse caso, a minha secretária, Miss Street, tomará algumas notas para que eu possa estudar o caso mais tarde, com vagar.

Mrs. Ansel concordou com um aceno de cabeça.

- William C. Delano era um homem muito rico e ao mesmo tempo muito solitário. Dois anos antes de morrer, sua sobrinha Hortense Paxton- veio morar com ele. William apagava-se pouco a pouco e tinha consciência disso. No seu testamento, legava, por assim dizer, tudo a Hortie. Ela cuidava dele, o que não era tarefa fácil. Por isso acabou por escrever a Myrna que, acompanhada pelo marido, correu em seu auxílio.

"Pouco tempo depois, Hortie adoeceu e morreu no espaço de uma semana. Nessa altura, Ed não fez qualquer comentário, mas, mais tarde, disse a Myrna que, na sua opinião, Hortie fora envenenada. Aonde foi ele buscar essa ideia, não o posso explicar, mas é bem uma ideia própria de um tarado do seu género!

- A que atribuíram a morte de Miss Paxton?

- A excesso de trabalho. A morte de Hortie foi um golpe terrível para William, visto que era a sua sobrinha preferida. Tinha-lhe legado quatro quintos da fortuna e um quinto a Myrna.

- Não lhe deixava nada a si, Mrs. Ansel?

- Só mais tarde, quando modificou o testamento, mas eu e ele nunca nos tínhamos dado bem.

- Parece, portanto, estar convencida de que Miss Paxtor" morreu de morte natural?

- Certamente! Ela contraíra uma gripe intestinal de que estava convalescente e, no estado de fraqueza em que se encontrava, não resistiu.

- Teve ocasião de vê-la antes de morrer?

- Sim. Quando soube que estava doente, resolvi fazer essa viagem e cheguei três ou quatro dias antes de ela falecer, mas não me demorei. William e eu éramos amigos, mas ele irritava-me e creio que o meu temperamento também o incomodava. Myrna afirmara-me que se desembaraçaria, sozinha, com a governanta e com a enfermeira e por isso resolvi partir.

- Quando voltou?

- Pouco tempo depois da morte de William.

- Fizeram alguma autópsia após a morte de Miss Paxton?

- Não, como era natural. O médico assistente tinha assinado a certidão de óbito e tudo decorreu normalmente, até que Ed Davenport começou a pensar disparates! Na minha opinião esse homem não regula bem... e, em suma, procura um pretexto para que não se ponham a pensar no que tem feito, por aí, com o dinheiro de Myrna. Porém, levou o jogo ao ponto de escrever uma carta destinada a ser aberta no caso de morrer, quando, afinal de contas, sabe que a sua tensão cardíaca o traz à mercê de qualquer ataque. Se morrer, só Deus sabe o que poderá acontecer!

- Onde está essa carta?

- Algures, no seu escritório.

- E onde fica isso?

- Em Paradise, numa colina, perto de Chico. Tem o escritório instalado numa casa onde viveu com Myrna, durante algum tempo, depois de terem regressado da América do Sul. Depois instalaram-se em Los Angeles, na companhia de William, e Ed alugou essa casa para instalação de um escritório de uma companhia de minas. Pelo menos, é o que ele diz. Conservou, porém, um quarto de cama e uma cozinha. Passa aí muito do seu tempo, chegando a ausentar-se durante uma semana ou mesmo mais. Desde que estou com Myrna, raras vezes o vi. Passava a vida a andar por montes e vales, armado em grande negociante e em magnate, porque conseguira essa mina por uma "tuta e meia"!

- Posso perguntar-lhe como se achou metida em toda essa embrulhada? - interveio Mason.

- Porque sou muito amiga de Myrna e também porque, segundo o último testamento, fiquei sendo co-proprietária da casa que nos legou. Fiquei com um quinto do que deixou aos seus herdeiros. Não ia portanto consentir que Ed Davenport me pusesse na rua! Dessa maneira pude verificar como ele tratava Myrna. Ora, hoje de manhã, telefonaram-nos a dizer que Ed estava em Crampton e que...

- Adoeceu, segundo compreendi?

- Tal como lhe disse, está à morte... e escreveu essa carta insensata!

- Como sabe que ele acusa, nessa carta, Mrs. Davenport?

Foi Myrna quem respondeu, numa voz calma e grave, quase murmurada:

- Foi ele quem mo disse.

- Portanto, Mr. Davenport está neste momento em Crampton?

- Sim. Deixou Paradise para vir para aqui e adoeceu no caminho. Está instalado num motel (1). O médico mostra-se deveras inquieto quanto ao seu estado de saúde e receia o pior.

- E no caso de Mr. Davenport se restabelecer?

- Eu não quero dar conselhos a ninguém. Myrna agirá como entender. Na minha opinião, Ed tem andado a traficar com o dinheiro de Myrna e eu, no caso dela, sei bem o que faria.

- E no caso de Mr. Davenport morrer?

Sara Ansel olhou para a companheira. Esta respondeu num sussurro:

- Se morrer, a carta será entregue ao procurador do Distrito.

- Nessas circunstâncias, que pretendem de mim?

- perguntou Mason.

- Que consiga obter essa carta - respondeu imediatamente Mrs. Ansel.

O advogado sorriu e abanou a cabeça:

- Receio não poder ser-vos útil.

- E porque não?

- Porque não posso roubar essa carta.

- Mas ela contém acusações falsas e difamatórias - indignou-se Mrs. Ansel.

 

(1) Grupo de pequenos bangalôs que são alugados ao dia. (N. do T.)

 

- Todavia, essa carta não deixa de ser propriedade de Mr. Davenport, enquanto viver.

- E depois da sua morte?

- Ele deve ter deixado, certamente, instruções para que a carta seja enviada à Polícia.

- Acontece - insistiu Sara Ansel- que todos os seus bens pertencem à comunidade conjugal e, de resto, foram adquiridos com a fortuna de Myrna... embora Ed se tenha dado ao trabalho de estabelecer suficiente confusão nos seus negócios, de forma que, agora, ninguém saiba de onde vem o dinheiro... Dizia eu que, se ele morrer, Myrna tem o direito de entrar na posse de todos os bens, não é verdade?

- Para administrá-los e salvaguardá-los - precisou Mason prudentemente.

- Nesse caso, a carta pertence, por direito, a Myrna!

- O endereço do sobrescrito pode ter, nessas circunstâncias, grande importância. Basta que esteja destinado à Polícia, para ser aberto em caso de morte... ou à secretária particular de Mr. Davenport, para ser entregue às autoridades...

- E isso faz diferença, do ponto de vista jurídico?

- Assim o julgo, mas não posso afirmá-lo.

- Dá-me cá a chave, Myrna! - pediu Mrs. Ansel, levantando-se bruscamente.

Sem dizer palavra, Myrna abriu a mão enluvada e entregou uma chave a sua tia que a depôs sobre a secretária de Mason, declarando:

- Aqui está a chave do escritório de Paradise.

- Que pretendem, finalmente, que eu faça?

- Queríamos apenas que, no caso de Ed morrer, conseguisse apoderar-se dessa carta.

- As acusações formuladas por Ed Davenport, contra sua mulher, têm qualquer fundamento?

- Não seja ridículo! Myrna é incapaz de fazer mal a uma mosca. Tanto ela como Hortie estafaram-se a tratar de William. Hortie morreu de esgotamento e é tudo.

- E Mr. Delano?

- William estava condenado pelos médicos que lhe tinham dado apenas seis meses de vida. Sobreviveu ainda um ano e talvez tivesse podido resistir ainda mais algum tempo senão fosse a morte da sobrinha, que foi para ele um golpe fatal.

- Nesse caso, se as acusações são absurdas, porque não deixar a carta seguir o seu caminho e esclarecer devidamente a Polícia?

As duas mulheres trocaram um rápido olhar que Mason não soube como interpretar.

- Acontece que a situação não é assim tão simples - explicou, por fim, Mrs. Ansel.- Outros factos vêm complicá-la.

- Hem?

- Sim. O coroner recebeu um telefonema- certamente anónimo! - aconselhando-o a examinar mais minuciosamente as circunstâncias do falecimento de Hortie. Qualquer denunciante maníaco, a não ser que fosse o próprio Ed. O que é certo é que isso pode causar aborrecimentos...

- Myrna é mulher de Ed Davenport. Se ele a acusa de ter assassinado Miss Paxton, arrisca-se a fazê-la perder o dinheiro que herdou... e do qual fez largo uso, segundo depreendi. Já pensaram nisso?

- Nós já, mas Ed parece que não. Ele não raciocina; reage, apenas! Nunca houve a menor lógica em todos os seus actos! Se a tivesse, por que razão escreveria uma tal carta, quando se sabe, há muito tempo, à mercê de uma congestão?

- O tempo urge - cortou Mason. - Eis o que vos proponho: Se Davenport morrer, tentarei tomar conhecimento do conteúdo dessa carta. Se me parecer tratar-se da obra de um nevrótico estudarei o caso e, se tudo estiver em ordem, devolvê-la-ei a Mrs. Davenport. Caso contrário, se descubro qualquer coisa de suspeito, remetê-la-ei à Polícia, não deixando porém de providenciar no sentido de evitar que se cometa qualquer injustiça.

- Ah! Se o senhor conhecesse Ed! - exclamou Mrs. Ansel. - É um doente, um egoísta, um nevrótico, unicamente preocupado consigo mesmo, mas esperto, esperto como tudo!

- Tenho a impressão de que não conhece Mr. Davenport há muito tempo...

- Conheço-o há tempo suficiente para poder apreciá-lo- cortou Mrs. Ansel, secamente. - Tenho, de resto, falado muito com Myrna e não nasci ontem, Mr. Mason.

O advogado permaneceu um instante pensativo e, depois, disse à secretária:

- Você, Della, vai fazer o favor de escrever uma carta que Mrs. Davenport assinará e na qual me são dados plenos poderes para representá-la na defesa dos seus interesses e para agir como eu bem entender em salvaguarda dos mesmos. No caso de seu marido morrer - e torna-se necessário mencionar que está gravemente enfermo, neste momento - representarei Mrs. Davenport em tudo quanto se relacione com a herança dos bens comuns ou por ele adquiridos posteriormente. Agirei em seu nome e poderei tomar posse de todos os bens dessa herança, a fim de que lhe sejam entregues integralmente.

Mason fitou a jovem cliente:

- Está disposta a assinar uma carta redigida nestes termos?

Foi Sara quem respondeu:

- Certamente!

Mas Mason não ligou a menor importância a essa intervenção e aguardou a resposta de Myrna Davenport. Esta acabou por olhar para ele e declarou numa voz abafada:

- Certamente, Mr. Mason. Meu marido já não me ama. Interessa-se unicamente pelo meu dinheiro e, cada dia que passa, rouba-me mais. Esforça-se, continuamente, por embaralhar a situação financeira, de forma que não seja possível compreender a progressão dos negócios.

Sara Ansel consultou o relógio de pulso:

- Bem! Agora porque esperamos?

Perry Mason limitou-se a fazer um sinal a Della Street.

 

Nesse mesmo dia, por volta das quinze horas, a telefonista de Perry Mason preveniu Della Street de que tinha uma chamada de Crampton, para o advogado, que diziam ser da mais alta importância.

Mason pegou no telefone e ouviu Mrs. Ansel impacientando-se com a telefonista.

- Estou a ouvi-la, Mrs. Ansel - avisou Mason.

- Já não era sem tempo! Essa rapariga nunca mais...

-Que se passa?

- Ele morreu.

- Davenport?

- Sim. E no seu testamento deixa tudo a Myrna. Era o menos que podia fazer nessas circunstâncias!

- Quando morreu ele?

- Há coisa de um quarto de hora. Estive todo este tempo a espera. A sua telefonista...

- Está bem, está bem. Quanto à carta em questão...?

- A morada é Crestview Drive, em Paradise. Terá de tomar o avião em Chico e de alugar, aí, um automóvel. Fica apenas a doze milhas de Chico... Como é melhor que se não veja obrigado a andar à procura do caminho, vou indicar-lho. Toma a estrada nacional...

Quando ela terminou, Mason inquiriu:

- Não está ninguém em casa?

- Não. A secretária, a essa hora, já terá terminado o serviço. Agora, desculpe-me, mas tenho de desligar. Até à vista.

Mason pousou o auscultador e olhou para Della Street. Esta interessou-se:

- Vai partir para Paradise?

Mason confirmou com um aceno de cabeça.

- E quando lá chegar, que vai fazer?

- Tratarei o melhor que puder dos interesses de Mrs. Davenport.

- Procurando essa carta?

- Talvez.

- E depois?

- Isso dependerá do conteúdo do sobrescrito. Trate de arranjar dois bilhetes, no primeiro avião, para Chico.

- Dois?

- Há-de calcular que não me vou meter numa empresa dessa natureza sem uma testemunha!

- Estas casas são, na verdade, encantadoras - apreciou Della Street, admirando a paisagem iluminada pelo luar. - Acha que a casa de Davenport é deste género?

- Sabê-lo-emos dentro de um minuto - respondeu o advogado, virando à esquerda, conforme as instruções de Mrs. Ansel.

Deixaram a estrada alcatroada, rodaram sobre um caminho que serpeava entre pinheiros e pararam em frente do portal de uma casa que, a despeito da obscuridade, tinha um aspecto acolhedor. Mason apagou os faróis, desligou o motor e, deixando o carro, cruzou o portal, acompanhado de Della Street.

- É melhor tocarmos, primeiro.

O polegar enluvado da jovem secretária premiu o botão e um carrilhão harmonioso soou no interior. Quando ela repetiu a operação, depois de alguns instantes de espera, Mason introduziu a chave na fechadura. A porta abriu-se.

- Servimo-nos da lanterna? - inquiriu a secretária.

- Não. É preferível acendermos as luzes - respondeu Mason. - A utilização de uma lanterna eléctrica implicaria um carácter furtivo a esta visita e tenderia a indicar que nos sentimos em falta.

O advogado accionou o interruptor. O átrio surgiu, com um belo tapete Navajo, móveis rústicos e um grande espelho antigo. A atmosfera cheirava a tabaco, como se o ocupante habitual daquele lugar fosse um fumador inveterado de cachimbo.

Mason e a secretária percorreram a habitação, que tinha um só piso, e iluminaram todas as dependências.

- E agora? - perguntou Della Street.

- Oficialmente, tomamos posse do local, em nome de Mrs. Davenport. Na realidade vamos procurar uma carta que se julga estar aqui escondida. Resta saber onde...

- Ele deve ter arranjado as coisas de maneira que essa carta fosse encontrada e expedida logo a seguir à sua morte. Portanto, não se deve ter limitado a deixá-la por qualquer canto.

- Exactamente. Vamos pois começar as nossas buscas pela escrivaninha da secretária.

Nas gavetas dessa escrivaninha havia apenas papel de máquina, químicos e uma pasta cheia de correspondência com o título: para classificar. Mason deu uma vista de olhos pelas datas e comentou:

- Pelos vistos, esta secretária não se dá grandes pressas quanto à classificação do expediente!

Todas as gavetas do lado direito estavam fechadas à chave.

- Tem aí uma lima de unhas, Della?

- Quer forçar a fechadura? Mason confirmou.

- Mas... Acha que temos o direito de fazê-lo?

- Porque não? Não andamos à procura de papéis, por conta da viúva?

Contra vontade, Della Street deu-lhe a lima e Perry não demorou a libertar o sistema que segurava o fecho.

- São utensílios pessoais da secretária - comentou Della, reprovativamente.

- Bem sei, mas nós procuramos qualquer coisa de preciso... Ora, por exemplo, que será isto?

- É, evidentemente, um cofrezinho fechado à chave. Mason sacudiu a caixa e anunciou:

- Tem um papel cá dentro. Apesar do seu ar reprovador, querida Della, sinto que a curiosidade se sobrepõe a todos os meus escrúpulos. Você não terá, por acaso, um desses objectos, fora de moda, que se chamam ganchos de cabelo?

Della sacudiu a cabeça negativamente e Perry tentou introduzir a ponta da lima na fechadura.

- Preciso de qualquer coisa mais fina... Um pedaço de arame...

- Não lhe conhecia tais méritos!

- Foi  um cliente quem me ensinou esta técnica. Fê-lo em troca dos meus honorários, por tê-lo defendido num caso de arrombamento.

- Suponho que conseguiu a sua absolvição!

- Estava inocente.

- Ah,   pois,   certamente!   Aprendera   a   arrombar fechaduras num curso por correspondência.

- Embora lhe possa parecer estranho, estava completamente inocente. Esta técnica era tudo quanto conservava de um passado tenebroso. Ah! Aqui está uma caixa cheia de grampos. Seguro um, rodo-o lentamente... Ora aqui está, Della!

Mason levantou a tampa do cofre e retirou do interior um largo sobrescrito sobre o qual tinham redigido com mão firme: Para ser aberto caso eu venha a morrer e o seu conteúdo entregue às autoridades. Por baixo lia-se uma assinatura: Ed Davenport.

- O   patrão   poderia   esclarecer-me   quanto  a  um pormenor da lei? Este sobrescrito pertence à viúva, às autoridades   ou   à   secretária   em   cuja   caixa   estava fechado?

- Quando soubermos o que contém  este sobrescrito, talvez possamos responder à sua pergunta.

- Talvez fosse melhor responder desde já. Mason sorriu, sacudindo a cabeça.

- Carecemos  de  conhecer  o seu   conteúdo  para podermos  avaliar o  limite da nossa  responsabilidade.

O advogado dirigiu-se à cozinha, encheu de água uma cafeteira e pô-la ao lume, num fogareiro eléctrico.

- Está a comportar-se como se estivesse em sua casa!

- Minha querida Della. Quando se olha para a água, esta  nunca mais  aquece!  Volte para o  gabinete onde estava, e espere um momento.

Mason seguiu-a segundos depois e rebuscou as gavetas e as pastas de expediente, lendo, de quando em quando, um documento.

- Ao certo, o que procura?

- Tento descobrir a natureza daqueles que habitualmente trabalham neste local. É evidente que Davenport tem uma enorme confiança na sua secretária. Pelos vistos, é ela quem preenche os seus cheques. Presentemente, tem um saldo positivo de 1.291 dólares no Banco de Paradise. A maior parte das cartas referem-se a negócios de minas, e quer se dirijam a Mrs. Davenport ou ao marido, é sempre ele quem responde, dizendo que sua mulher entende fazer isto ou aquilo... Não! Não me venha com a história de que ele lhe pediu autorização para fazê-lo. Se a data é verdadeira, algumas destas cartas foram respondidas hoje mesmo.

- Pode ser que ele lhe tenha telefonado a consultá-la...

- O total de chamadas telefónicas do mês anterior não foi superior a 23 dólares e 95 cêntimos, incluindo o aluguer do telefone. Não, Della! Não deve tê-la consultado muitas vezes... talvez nenhuma!

- Dizer que receava ser envenenado e acabar por morrer de morte natural!

- Ainda não está provado.

- O quê?! Pensa porventura... que foi...

- Porque não?

- Mas nesse caso... meu Deus, que fazemos nós aqui?

- Protegemos os interesses de Mrs. Davenport. Contudo, isso não chega ao ponto de destruirmos uma prova condenatória, mas, para sabermos se, efectivamente, se trata de uma prova condenatória, precisamos de saber o conteúdo daquele sobrescrito, não é verdade? Vamos lá ver se a água ferve.

Na cozinha, depois de ter exposto o papel, por segundos, ao vapor, Mason abriu o sobrescrito e retirou um pequeno maço de folhas de papel, que desdobrou.

- Como vê, minha filha,- exclamou alegremente - são apenas seis folhas de papel em branco!

- Acha que teria usado uma tinta "simpática", patrão?

Mason aqueceu uma das folhas sobre a chapa incandescente, mas sem resultado.

- Talvez seja uma tinta que só revele a escrita ao vapor de iodo. Nada nos permite supô-lo, mas, por outro lado, torna-se perigoso admitir que nada tenham escrito!

- Por que razão um homem deixaria um sobrescrito, para ser aberto após a morte, contendo apenas folhas em branco?

- Eis uma pergunta para a qual seria muito útil achar resposta. Enquanto a não descobrirmos, vamos pôr tudo como estava com o cuidado de não deixar impressões digitais. Vejo ali, sobre a secretária, um frasco de cola e vou fechar cuidadosamente esta carta.

Alguns minutos mais tarde, utilizando a lima de unhas, Mason fechava de novo a caixa e as gavetas.

- Parece-me que tem uma ideia sobre o caso...

- Que tudo está a correr demasiado favoravelmente? Sim. Ed Davenport morre e...

Uma voz feminina soou subitamente em tom imperioso:

- Que estão aqui a fazer? Mason voltou-se.

Uma rapariga fresca e bonita, que se achava no limiar do aposento, voltou-lhes as costas e dirigiu-se para o telefone do átrio, sem esperar resposta. Mason ouviu-a accionar o marcador, sorriu para Della Street e escutou no telefone interior.

- Por favor, menina, ligue-me depressa à Polícia - pediu ela à telefonista da rede geral. - Daqui fala Mafoel Norge, da casa Davenport em Crestview Drive. Está aqui alguém tentando assaltar o escritório. Chame a Polícia, imediatamente!

Momentos depois, ouviu-se bater a porta de entrada.

- Chamou a Polícia? - perguntou Della Street, arqueando as sobrancelhas.

Mason poisou o auscultador do telefone interior e confirmou.

- Tentamos escapar antes que cheguem? - sugeriu Della.

- Não, de maneira nenhuma! Esperamos por eles para trocarmos algumas impressões - declarou Perry Mason, sentando-se confortavelmente na cadeira que estava por detrás da secretária de Ed Davenport.- Neste momento a rapariga já deve ter tomado nota do número do carro que alugámos. Ela disse o nome ao telefone: Mabel Norge. É, portanto, a secretária de Ed Davenport.

- Não sei porquê, patrão, mas não gosto disto! E se fosse uma armadilha?

- Até agora limitámonos a fazer o que nos competia. Tratemos pois de nos mostrarmos um pouco mais independentes.

- Que quer dizer com isso? Vai...

Ouviram o ruido de uma sereia aproximando-se rapidamente.

- A Polícia que chega. Um ponto a favor da sua rapidez! Deixe-se estar sentada tranquilamente, minha filha, porque podem vir muito nervosos e puxar o gatilho sem mais nem menos.

A porta de entrada foi aberta com ruido de passos apressados. Um homem surgiu no limiar da sala, mostrando um distintivo no verso da lapela e apontando um revólver para o interior do aposento:

- Mãos ao ar!

Inclinado na cadeira de braços, Mason tirou teatralmente o cigarro da boca.

- Boa noite, chefe - saudou. - Entre e sente-se. O polícia permaneceu no enquadramento da porta com a arma na mão:

- Quem são e que fazem aqui?

- Eu sou Perry Mason, advogado. Dê-me licença que lhe apresente Miss Della Street, minha secretária. Estou tratando de tomar posse do local, em nome da viúva de Ed Davenport.

- Ele morreu? - exclamou a rapariga. - ele morreu?

Mason inclinou a cabeça.

- Foi, portanto, assassinado! - gritou ela.

- Cuidadinho! - advertiu Mason em sinal de censura. Os seus nervos estão agitados, mas é preciso, de qualquer forma, evitar fazer declarações dessa natureza, que a podem comprometer.

- O senhor representa Mrs. Davenport? - inquiriu o polícia.

- Sim. Aqui tem uma procuração de plenos poderes e a chave desta casa que essa senhora me entregou.

O polícia olhou para a rapariga:

- Conhece estas pessoas, Miss Norge? Ela sacudiu a cabeça negativamente.

- Suponho que a menina seja a secretária de Mr. Davenport, e cujas iniciais são M. N. - disse Mason.

- Efectivamente. Sou Mabel Norge, secretária de Mr. Davenport, e se ele morreu... tenho qualquer coisa para entregar à Polícia.

- Sim? - inquiriu Perry Mason mostrando-se interessado.

- Mr. Davenport previu essa circunstância.

- Que circunstância?

- O seu assassínio.

- Assassínio!? - exclamou o advogado.

- Foi exactamente isso que eu disse - proferiu desafiadoramente Miss Norge.- E tenho uma certa coisa que o provará. Certo documento que entregarei à Polícia.

- Nesse caso, porque espera? Tem um representante da Polícia em sua frente - indicou Mason.

A rapariga aproximou-se da sua escrivaninha e o advogado interveio:

- Alto lá! Que vai fazer?

- Vou entregar à Polícia o que tenho em meu poder. Mason sorriu e abanou a cabeça lentamente:

- Tenho muita pena, mas você não pode tocar em coisa alguma que pertença à herança, isto é, à viúva.

- Vejo que soube arranjar bem as coisas à sua maneira - comentou a secretária, contrariada.

- Porque não? Limito-me a representar a viúva. Ela é, desde sempre, proprietária de uma metade dos bens comuns e a outra metade reverterá a seu favor, por direito de sucessão.

- O senhor... o senhor...!

- Então, calma! - aconselhou Mason.

O polícia repôs o revólver no coldre e inquiriu:

- Afinal de contas, de que se trata?

- Ela matou-o! - declarou Miss Norge. - Mas ele deixou uma carta que o prova.

- Que quer dizer, precisamente, com "ele deixou"? - perguntou Mason.

- Quero dizer que me confiou um sobrescrito que eu deveria abrir e entregar à Polícia, caso viesse a morrer.

- E a menina abriu-o, porventura, antes da sua morte?

- Certamente que não!

- Nesse caso, ignora o que contém esse sobrescrito?

- Ele... ele disse-mo!

- Ele disse-lhe o que continha o sobrescrito?

- Pelo menos, disse-me o suficiente para que eu saiba que ele esperava morrer de um momento para outro!

- O que não era para admirar, com uma tensão arterial tão alta, como ele tinha! Ainda por cima, agravada com uma complicação renal. Nessas condições, é absolutamente normal que qualquer homem pense...

- De forma alguma! Não é uma carta desse género. Ele recomendou-me que a entregasse à Polícia, caso viesse a morrer, mas especificou que, se alguém tentasse apoderar-se dela, enquanto vivesse, eu deveria destruí-la.

- Compreendo. Portanto, se ele, em vida, a reclamasse novamente, a menina teria de devolver-lha, não é verdade?

- Evidentemente. A carta era dele.

- Onde está ela?

Miss Norge ia dizer-lho, mas arrependeu-se.

- Tirá-la-ei quando muito bem entender. Mason reprimiu um bocejo.

- Não tenho a menor dúvida quanto às suas intenções!- e virando-se para o polícia, observou: - Não vejo motivo para que nos demoremos neste local, Chefe. Todavia, já que Miss Norge diz que uma carta, contendo certa acusação, se encontra neste escritório, creio que se torna necessário vigiar o local de forma que nada possa vir a desaparecer.

- Nesse caso vou abrir esse sobrescrito agora mesmo e entregar, desde já, o conteúdo...

- De maneira nenhuma! - interveio Mason, sorridente.- A menina estava ao serviço de Mr. Davenport e, visto que ele morreu, o seu cargo terminou no momento da sua morte. Terá certamente direito a uma indemnização, mas já não tem o direito de tocar, seja no que for que esteja dentro desta casa.

- Um momento - interveio o polícia. - Em face das circunstâncias, ninguém pode sair daqui.

- Absolutamente de acordo! Foi por essa razão que sugeri que mandasse fechar todas as portas e, visto que Miss Norge tem uma chave...

- E o senhor, como entrou? - atacou a rapariga, exaltada.

- Tive já ocasião de dizer-lho: por meio da chave que me entregou Mrs. Davenport.

- Estou certa de que ela nunca lhe daria a chave! Mason sorriu:

- Nesse caso, Chefe, visto que Mrs. Davenport não me deu a chave, eu não posso encontrar-me cá dentro. Queira, portanto, fazer o favor de considerar-me noutro local.

- Se Mr. Davenport deixou efectivamente uma carta susceptível de esclarecer as condições em que se verificou a sua morte, é melhor que a mesma seja entregue ao procurador do Distrito-declarou o polícia.

- Mas ninguém sabe se esse famoso sobrescrito contém uma acusação ou quaisquer indícios. Pode muito bem resguardar apenas um testamento.

- Podemos muito bem ver isso. A secretária do falecido está aqui, o senhor representa a viúva e eu represento a lei.

- Não se deve abrir esse sobrescrito antes que a viúva dê autorização para tal. Quer que se proceda legalmente ou não?

- Certamente que sim! O meu nome é Sidney Boom e pertenço ao gabinete do xerife.

- Nesse caso, compreende que metade de quanto se encontra aqui é propriedade da viúva e que a outra metade lhe virá a pertencer por direito; contudo, não poderá dispor dessa metade até à liquidação legal da herança.

- Não percebo nada desses truques jurídicos, mas, se há aqui uma prova de acusação, creio que deverá ser salvaguardada.

- Concordo plenamente! Por outro lado, se esse sobrescrito contém títulos ou qualquer outro valor, não poderá sair daqui.

- Para o sabermos, o mais simples é abrir-se esse sobrescrito.

- Na verdade, seria assim, mas acontece que ele pode conter qualquer matéria de carácter confidencial.

- Davenport dera-o à secretária!

- Não, precisamente. Dera-lho apenas a guardar.

Miss Norge ainda há pouco declarou que, se Mr. Davenport lho tornasse a pedir, devolver-lho-ia.

- Não era isso o que eu queria dizer! - protestou a secretária. - Ele dera-mo para que o entregasse à Polícia, caso viesse a morrer.

- Ele disse-lhe para o entregar à Polícia?

- Disse que, se morresse, esse sobrescrito deveria ser aberto.

- Mas não lhe disse para entregá-lo à Polícia?

- Ele... Agora não me lembro precisamente das suas palavras.

- Ora vê?! - exclamou triunfantemente Perry Mason.

- Ela está a tomar notas! -gritou subitamente Miss Norge, apontando para Della Street. - Está a estenografar tudo quanto dizemos!

- E esse facto incomoda-a? - inquiriu Mason.

- Acho que não é leal.

- Por que razão não é leal? Faz tenção de negar quanto acaba de dizer, quando tiver tido ocasião de reflectir?

- O senhor é um homem odioso!

- Há muita gente que compartilha da sua opinião.

- Tudo isso é muito bonito! - insistiu o polícia com teimosia. - Mas esta menina, que era a secretária do falecido, diz que há aqui um sobrescrito com informações susceptíveis...

- ...de permitir a prisão do assassino! - completou Mabel Norge, com veemência.

- Afirma, portanto, que Mr. Davenport foi assassinado?- sublinhou Mason.

- Pode muito bem ter sido!

- Mas ignora se o foi ou não?

- Sei que ele esperava ser assassinado.

- Sabe também que era vigiado, de perto, por um médico?

- Certamente que sei...

- ... e que a sua tensão, o estado das suas artérias, o tornavam susceptível de morrer de um momento para outro?

- Ele não me contava todos os seus assuntos pessoais.

- Contava-lhe apenas os que diziam respeito à mulher?

- Isto é... não precisamente...

- Nesse caso, tudo quanto declara acerca do conteúdo dessa carta não passa de suposições da sua parte?

- Essas suposições são fáceis de verificar.

- Onde está essa carta? - inquiriu Boom.

- Na minha escrivaninha, fechada num pequeno cofre.

- Dê-me cá.

- Um momento! Tal gesto será absolutamente ilegal.

- Eu tomo a responsabilidade - declarou o polícia. - Velarei porque esta menina não toque em mais nada, mas, se efectivamente existe uma carta nessa escrivaninha, insisto em que seja salvaguardada. Ignoro quem o senhor seja. Disse-me representar a viúva mas acho que chegou muito depressa ao local.

- Felicito-me por tê-lo conseguido - murmurou Mason afavelmente -, porquanto verifico que esta menina também apareceu por cá, em estranhas condições.

- Ela trabalha aqui.

- De noite? - admirou-se Mason. O polícia franziu o sobrolho.

- Olá! Como se explica que tenha aqui vindo, a esta hora?

- Eu... eu passava por aqui, acidentalmente, de carro, e vi todas as luzes acesas.

- Aonde é que ia? - perguntou Mason.

- Passei por passar.

- Mas esta estrada é um beco sem saída! Se a tomou é porque tencionava vir aqui. Por que motivo?

- Não tem nada com isso.

- Está a ver isto, Chefe?! Veio cá, embora não tivesse nada que fazer por estes sítios, a esta hora da noite!

- Bem! Eu próprio vou tomar conta da carta - decidiu o polícia, vendo que a rapariga abrira a gaveta da escrivaninha.

- Está dentro deste cofre mas está fechado à chave.

- Não, não está! Veja - disse o polícia, abrindo a tampa.

- Julguei que estivesse fechado à chave. Pelo menos, devia estar!

- Aconselho-o, uma vez mais, a não tocar nesse sobrescrito, Chefe.

O polícia olhou para o sobrescrito e resolveu fechar, de novo, lentamente, o cofre.

- Que devo, portanto, fazer, para ter a certeza de que ele não desaparece?

- Fechar esse cofre e confiá-lo ao juiz para que o abra na presença dos herdeiros.

Mabel Norge bateu com o pé no chão, enquanto os olhos se lhe inundavam de lágrimas de desespero:

- Abra-a, lá! Não lhe dê ouvidos! Mason, calmamente, declarou:

- Suponha, Chefe, que esse sobrescrito contém dinheiro que Mr. Davenport desejasse legar à sua secretária, por exemplo, notas de mil dólares. Se abrir esse sobrescrito terá de testemunhar, perante os representantes fiscais, acerca do seu conteúdo, para fins de avaliação dos direitos de transmissão. Gostaria que o tornassem suspeito de ter desviado parte do conteúdo? Na minha opinião seria mais atilado, de todos os pontos de vista, confiá-lo ao juiz.

- Ele tem razão - concordou Boom, virando-se para Mabel Norge.

- Mas você é idiota! - gritou Mabel ao polícia, cujas faces enrubesceram. - Repito-lhe que ele esperava ser assassinado pela mulher e que a prova do que lhe digo se encontra aí dentro!

Mason encolheu os ombros.

- Já o avisei, Chefe. Agora, faça o que quiser!

- Abra-o! Abra-o! Não compreende que ele pretende apenas defender a sua cliente, porque esse sobrescrito contém provas capazes de fazê-la condenar por...

- Escute, Chefe. Afinal de contas, você não tem que receber directivas, nem de mim, nem de Miss Norge. Há neste condado um procurador do Distrito. Telefone-lhe, peça-lhe instruções sobre o que deve fazer.

- Isso é uma ideia! -concordou Boom, recuperando a serenidade.

Dirigiu-se ao telefone e quando conseguiu a ligação disse ao procurador do Distrito:

- Daqui fala o oficial da Polícia, Boom. Peço desculpa de vir incomodá-lo, mas estou, neste momento, em Paradise e...

Resumiu a situação e tendo escutado o seu interlocutor invisível, exclamou:

- Oh! Perry Mason...! Já ouviu falar dele? Bem, perfeitamente. Muitíssimo obrigado.

Boom desligou e anunciou:

- O senhor procurador vai tomar conta do cofre-zinho e do seu conteúdo. Eu próprio lho entregarei.

- Imediatamente? - perguntou Mason.

- Não. Não imediatamente, visto que tenho uma outra missão a desempenhar, mas indicou-me que lho levasse amanhã. Entretanto, encarregar-me-ei dele, pessoalmente. Já agora, para que tudo esteja em ordem, Doutor, queira dar-me um dos seus cartões. Se por acaso acontecesse o senhor não representar a viúva... Bem, para encurtar, o senhor é advogado e não tenho necessidade de explicar o que lhe aconteceria.

- Tem razão - disse Mason jovialmente. - Aqui tem o meu cartão.

Boom, com o cofre debaixo do braço, encaminhou-se para a porta.

- Vou consigo - declarou Mabel Norge.

Della Street esperou que a porta se fechasse e olhou para o advogado.

- Vamos, depressa. Toca a tirar a cafeteira do lume e a limpar tudo convenientemente, de forma que não fiquem quaisquer impressões digitais.

Della correu à cozinha e, momentos depois, voltou anunciando que tudo estava em ordem.

- Perfeito. Agora, apagamos as luzes e vamo-nos embora.

- Tenho a impressão de que essa rapariga vai convencer Boom a abrir o sobrescrito.

- Não imediatamente. Faço votos para que o rebordo gomado tenha tempo de secar antes disso. Se assim não for, perceberão que abrimos o sobrescrito, ao vapor, e o tornámos a colar.

- Na minha opinião, digo-lhe que ela vai convencê-lo a abrir a carta.

- Não antes dele falar com o procurador do Distrito.

- Quer apostar?

Bruscamente, a campainha do telefone retiniu no aposento. Mason fitou Della Street.

- Respondemos? - perguntou a secretária.

- Atenda você, Della, mas mantenha-se na reserva. Descubra quem fala, antes de formular uma resposta.

- Está lá? - contactou Della, segurando o auscultador. Manteve-se um momento silenciosa e depois disse: - Sim. - E pousando a mão sobre a placa sensível, informou Mason:

- A chamada foi feita de uma cabina de Bakers-field. Estou a ouvir meterem as moedas e... Está lá? - tornou a descobrir a placa.

A jovem mostrou-se intrigada e, em seguida, pegando num lápis, riscou algumas palavras numa folha de papel que tinha à mão.

- Está lá... Está lá? Menina... cortaram a ligação. Estava a falar com Bakersfield... Está certa disso?...

Repousou lentamente o auscultador no suporte.

- O que era? - inquiriu Mason.

- Mal eu disse: "Está lá", uma voz de homem desfiou: "Pacific Palisade Motor Court. San Bernardino, Bangalô 13", e, depois, desligou.

- Sem mesmo dizer o nome?

A secretária aquiesceu e Mason começou a percorrer a sala, de um lado para o outro. Della seguia-o com um olhar ansioso e perguntou:

- Que acontecerá se Mabel Norge convenceu Boom a abrir o sobrescrito?

- Suspeitarão de que eu me tenha apropriado das provas que ele continha, para substituí-las por folhas em branco.

- Darão porque o sobrescrito tenha sido aberto, ao vapor?

- Certamente. Para o Laboratório, isso é uma brincadeira de crianças.

-E então?

- Nesse caso achar-nos-emos implicados num crime num condado em que não contamos amigos e onde as autoridades são susceptíveis de tomar medidas imediatas.

- Por outras palavras, prender-nos-ão?

- Pelo menos, a mim, como é natural.

- Não seria, portanto, conveniente... Novamente o telefone tocou. Mason fez um sinal a

Della Street para que atendesse.

- Está lá?... Sim...-depois, cobrindo a placa com a mão, perguntou: -Quer atender uma comunicação de Fresno, patrão? É Mrs. Davenport.

No instante imediato, Mason ouviu a voz de Myrna Davenport dizer-lhe:

- Mr. Mason? Cometemos um erro terrível! Imagine que ele desapareceu!

- Ele, quem?

- O meu marido.

- Como? Mrs. Ansel informou-me de que ele morreu esta tarde.

- Não! Meu marido partiu, a sério.

- Como foi isso?... Não está, portanto, morto?

- Exactamente. Não está morto. Não podia ter morrido, visto que partiu.

- Para onde?

- Não o sei.

- Quando partiu ele?

- Também não sei. Subiu para um carro e desapareceu.

Contendo-se com dificuldade, Mason perguntou:

- Afinal de contas, que diabo vem a ser essa história? Se se trata de uma brincadeira, parece-me de muito mau gosto. Esta tarde, por volta das três horas, Mrs. Ansel telefonou informando-me que Ed Davenport tinha morrido, um quarto de hora antes.

- Era o que nós julgávamos! Foi o que o médico nos disse! Porém, Ed devia estar apenas inconsciente... Não nos foi possível comunicar consigo antes que chegasse a Paradise e, entretanto...

- Onde é que está, neste momento?

- Numa loja, mas vamos partir imediatamente. Regressamos a Los Angeles.

- Não... Não façam nada. Tomem o avião, o comboio ou um automóvel... o que partir primeiro... e vão para S. Francisco. Aí, dírijam-se ao aeroporto, sentem-se na sala de espera e aguardem. Compreendeu bem?

- Sim, mas tenho de perguntar à tia Sara...

- Onde está ela?

- Está aqui...

- Está bem. Pergunte-lhe o que quiser, mas depressa. Fico à espera.

Sob o olhar ansioso de Della, o advogado permaneceu durante alguns segundos com o telefone na mão até que ouviu, de novo, a voz de Myrna Davenport:

- Está combinado. Seguiremos as suas instruções.

- Não falem a ninguém e, se alguém vos fizer quaisquer perguntas, não respondam. A ninguém, entendido?

- Compreendo o que me diz, mas não compreendo por que motivo mo diz.

- Façam o que lhes digo, sem procurarem compreender!- desfechou Mason, desligando o aparelho.

Em seguida, caminhou raivosamente, em direcção ao interruptor eléctrico e anunciou à secretária:

- Creio que estamos metidos num lindo assado!

- Ed Davenport não morreu ?

- Segundo as últimas informações, está vivo e bem vivo! Desapareceu! Quem sabe se não estará a caminho daqui e se não teria sido ele quem nos fez aquele telefonema enigmático!?

- Em que posição isso nos coloca?

- Na posição de uma pessoa que se apossou de uma herança, antes que houvesse herança, e que remexeu os papéis de um morto que se encontra vivo da costa. Vamo-nos embora daqui. Della.

- Para onde?

- Voltemos a Chico a devolver o carro que alugámos. Partiremos daí no primeiro transporte disponível. Perderemos apenas o tempo de telefonar para a Agência Drake, a fim de pedirmos a Paul que mande vigiar por dois dos seus homens o bangalô 13 da Pacific Palisarfe Motor Court, em S. Bernardino. Que

lhe indiquem quem é o locatário, logo que o bangalô seja ocupado. Vamos também pedir a Paul que nos cace Ed Davenport.

 

Eram três horas menos um quarto da manhã, quando Perry Mason e Della Street Chegaram ao aeródromo de S. Francisco.

- Suba até à sala de espera -indicou o advogado à secretária. - Se elas lá estiverem, faça-me um sinal, a não ser que se aperceba de que estão a ser vigiadas por alguém. Nesse caso, desça a prevenir-me.

Alguns minutos depois, Della voltou e anunciou:

- Estão lá em cima, patrão, e parecem dormir. Porém, não longe delas está um homem a ler o jornal, com uma tal atenção que me pareceu suspeita.

- Bem, Della. Às três horas e cinco há um avião para Los Angeles. Compre quatro bilhetes. Creio que poderemos apanhá-lo. Vou lá acima buscá-las. Se estão a ser seguidas, tanto pior!

Mason subiu à sala de espera,, com um ar despreocupado, e viu o homem do jornal virar uma página e continuar a leitura, sem levantar os olhos. O advogado deu alguns passos, como se hesitasse em ficar ali, e, em seguida, sentou-se ao lado de Sara Ansel, que ressonava suavemente, com a cabeça de Myrna apoiada no seu ombro.

Mason, vigiando o homem do jornal, tocou no braço de Mrs. Ansel, que se agitou ainda a dormir. Sara Ansel acordou sobressaltada.

- Desculpe-me, minha senhora - disse Mason metendo um cigarro entre os lábios - mas não terá, porventura, um fósforo que me dê?

Mrs. Ansel ia protestar, mas reconheceu o advogado:

- Eu... eu...

- Deseja fumar? - cortou Mason, apresentando-lhe a cigarreira.

Aparentemente, nada conseguia distrair o homem da sua leitura. Myrna Davenport acordou ao som da sua voz e exclamou:

- Ah! é o senhor...

O franzir de sobrolho de Mason reduziu-a ao silêncio.

- Alguma das senhoras teria lume, por favor? Myrna Davenport tirou um isqueiro da mala e Mason acendeu o cigarro:

- Muito obrigado.

O advogado expeliu uma fumaça, bocejou, e recostou-se confortavelmente na poltrona, antes de segredar a Sara Ansel:

- Às três horas e cinco há um avião para Los Angeles. A minha secretária já comprou os bilhetes e espera-se à entrada da cabina de verificação. Subam para esse avião e aí poderemos falar à vontade.

Mason consultou o relógio de pulso, tornou a bocejar e continuou a fumar calmamente, enquanto as duas mulheres partiam. O homem do jornal levantou-se e dirigiu-se à varanda como que a assegurar-se de que não •chovia; em seguida, tornou a sentar-se.

Momentos depois, Mason, sempre com o ar de quem procura matar o tempo, dirigiu-se para a escada e reuniu-se a Della Street, dois minutos antes de o aparelho levantar voo.

- Elas estão a bordo? - inquiriu. Della fez um sinal afirmativo.

- Nesse caso, subamos também.

No avião, puderam ocupar os lugares exactamente atrás das duas mulheres. Sara Ansel voltou-se para dizer qualquer coisa ao advogado, mas este sacudiu impercep-tivelmente a cabeça, dissuadiindo-a dessa intenção.

Apertaram os cintos de segurança, os motores roncaram e o aparelho, após ter descrito um semicírculo sobre a pista, descolou, deixando atrás de si as luzes de S. Francisco. Então Sara Ansel voltou-se e disse prazenteiramente:

- Levou tempo a vir ter connosco! Por que razão nos faz fugir desta maneira, como se fôssemos criminosas?

- Trazem as vossas malas convosco?

- Como não sabíamos quais eram as suas intenções, expedimo-las directamente.

- Bravo. Sem malas, podemos deslocar-nos mais rapidamente. Agora vão contar-me o que se passou. Della, faça o favor de trocar o seu lugar com Mrs. Ansel.

A troca efectuou-se sem despertar a atenção dos outros passageiros, quase todos já instalados para dormir.

- Aproxime a boca da minha orelha - aconselhou Mason a Sara Ansel-e fale em voz baixa. Antes de mais nada, conte-me a história, por alto; depois pedir-lhe-ei esclarecimentos dos pontos que me interessam.

- Pois bem - começou a companheira de viagem-, parece que Ed deixou o escritório de Paradise, no domingo, à tarde. Telefonou a Myrna, dizendo-lhe que dormiria no caminho. Deve ter passado a noite em Fresno, donde partiu para Crampton, que fica a trinta ou quarenta milhas de Fresno, mas deve ter-se sentido aí demasiado doente para continuar a viagem.

- Que espécie de doença?

- Não o sabemos, ao certo. Com a sua tensão, Ed não devia beber, mas parece que o fez, em grande quantidade. Parece, também, que comeu qualquer coisa que lhe fez mal. Instalou-se nesse motel de Crampton e pediu que lhe mandassem um médico da vizinhança. A proprietária deu-lhe a direcção de três e ele chamou um tal Dr. Renault. Este veio examiná-lo imediatamente e achou-o muito mal. Isto passou-se esta manhã, entre as oito e as nove horas. Eu não me admiraria que Ed se tivesse deitado, em Fresno, com uma prostituta qualquer, que lhe tivesse dado qualquer droga a beber. Em todo o caso, devem-no ter roubado.

- Que é que a leva a pensá-lo?

- Já lá vamos! O Dr. Renault, vendo o estado em que Ed se encontrava, telefonou-nos, pedindo-nos que fôssemos ter com ele imediatamente. Achava-o tão mal que julgou ser melhor não o deslocar do motel para uma clínica ou para um hospital. Parece que não há por ali muitas enfermarias e que seria difícil arranjar uma. Considerou, portanto, a nossa presença indispensável. Quando lá chegámos, Ed estava num estado de prostração total e o médico foi-se embora, dizendo-nos que voltaria dentro de uma hora, mas que não deixássemos de chamá-lo caso Ed piorasse. Este adormeceu e pareceu um pouco mais sossegado. Eu aproveitei a oportunidade para arranjar-me um pouco, no meu bangalô, e deixei Myrna com ele. Então, quase logo a seguir, Ed teve uma espécie de crise, mal conseguindo respirar, e chamámos o médico, que veio imediatamente. Disse-me que o estado do doente piorava e mandou-me telefonar para uma farmácia, encomendando certo medicamento. Myrna, que estava a tomar duche, enfiou apenas um penteador e veio a correr para o pé de Ed, mas já o encontrou morto. Então, a atitude do médico deu-nos a entender que Ed deveria ter-lhe contado qualquer coisa, visto ter fechado a porta do bangalô à chave e ter-nos dito que deveríamos esperar pela chegada do xerife, do procurador do Distrito ou do coroner, e que as circunstâncias em que a morte se verificara não lhe permitiam passar a certidão de óbito e autorizar a inumação, antes de se praticar a autópsia. Deu^nos a entender, nitidamente, que, na sua opinião, Ed fora assassinado.

- E então, que fez?

- Não liguei grande importância. Logo que pude atravessei a rua e telefonei-lhe a si, Mr. Mason, depois do que voltei para o pé de Myrna. Certamente que Ed já nada representava para Myrna, visto que estavam para divorciar-se, porém tudo aquilo constituiu um grande choque para a minha pobre amiga.

- Continue, continue.

- Só uma hora mais tarde chegou o coroner, acompanhado de um delegado do procurador do Distrito e um ajudante do xerife. Fizeram uma quantidade de perguntas ao Dr. Renault, que lhes entregou a chave do bangalô, e, finalmente, quando o ajudante do xerife entrou no quarto onde ficara Ed Davenport, verificou que este deveria ter recobrado os sentidos, pois a janela estava escancarada e ele fora-se embora.

Mason emitiu um ligeiro assobio entre dentes.

- Os investigadores ficaram furiosos, tanto mais que já tinham tido aborrecimentos anteriores com o Dr. Renault.

- E o médico, que disse?

- Não voltou com a palavra atrás, insistindo que Ed estava morto e bem morto. Chegou até a insinuar que nós poderíamos ter feito desaparecer o cadáver, a fim de evitarmos que se procedesse à autópsia.

Como Sara Ansel se calasse, Mason incitou:

- Continue, por favor. Conte-me o que se seguiu.

- Ora, o Dr. Renault continuou a afirmar que não tinha dúvidas quanto ao falecimento de Ed, mas o ajudante do xerife, que interrogara algumas pessoas do motel, descobriu alguém que o vira saiir, em pijama, pela janela, e, depois, entrar para um automóvel e partir.

- É inacreditável!-exclamou Mason.

- Absolutamente! Era preciso que Ed se sentisse verdadeiramente muito melhor. A testemunha afirmou que o vira sair, em pijama, pela janela das traseiras. Estava aí um automóvel estacionado. Ed instalou-se ao volante, pôs o motor em marcha e partiu. Deve ter sido um carro roubado, visto que o dele continua no motel.

- E ele estava em pijama?

- Sim. Foi isso que despertou a curiosidade da testemunha. Pensou que Ed procurava fugir a uma rusga da Polícia ou qualquer coisa desse género...

- Essa testemunha estava suficientemente próxima para poder identificá-lo por meio de fotografias?

- Não, não podia. Estava a cerca de trinta metros. Apenas viu a silhueta de um homem envergando um pijama. Um pijama com pintas vermelhas e, efectivamente, o pijama de Ed tinha desenhos vermelhos. Depois disso, tentámos entrar em contacto consigo, mas tivemos de esperar que chegasse ao escritório de Ed.

- Um momento... Como sabe que Mr. Davenport foi roubado?

- Ah, pois! Imagine que lhe encontrámos nas algibeiras cerca de quarenta e cinco dólares e a proprietária do motel declarou que Ed lhe pagara com uma nota de cinquenta dólares, dobrada em quatro, como se tivesse sido passada a ferro. Ora, como lhe disse, Ed bebia muito. Sabendo que se arriscava a ser roubado, e a ficar sem as malas, quando já não estava no seu estado normal, costumava guardar, de reserva, uma nota de cinquenta dólares, sob a palmilha do sapato direito, a fim de poder voltar para casa, no caso de lhe terem tirado também a carteira. O aluguer do bangalô era de cinco dólares e isso perfaz a conta certa.

- Mas por que razão teria saído pela janela? E como poderia tê-lo feito se se achava tão mal, como o médico afirma?

- Cá para nós, não me parece que o médico fale verdade. Como sabe, quando uma pessoa está para morrer, os médicos costumam dar uma injecção qualquer, uma espécie de estimulante poderoso para animar o coração e creio que o Dr. Renault não esperou o tempo suficiente para ver a reacção. Por outro lado, estava deveras interessado em fazer-nos perguntas acerca daquilo que Ed lhe dissera a respeito de Myrna. Sob a acção dessa droga, Ed pode muito bem ter-se sentido melhor e, descobrindo que se achava fechado, pode ter-se enchido de pânico e fugido no primeiro carro que encontrou à mão. O Dr. Renault concluiu, ou, pelo menos, disse-o, que Myrna teria enfiado um pijama a Ed e, com o meu auxílio, teria feito desaparecer o cadáver. É absolutamente ridículo. Por que motivo quereríamos evitar a autópsia? Ed adoeceu muito antes de nós termos chegado.

- Onde estão os fatos e as malas de Mr. Davenport?

- O ajudante do xerife tomou conta de tudo. Nós viemos embora ainda durante a investigação e demos a direcção para onde poderiam enviar as coisas, quando já não precisassem delas.

- Onde supõe que Mr. Davenport possa estar?

Sara Ansel encolheu os ombros:

- Não faço a mais pequena ideia, mas não pode ter ido muito longe, em pijama, sem dinheiro e sem carta de condução... Em todo o caso, os seus sinais foram difundidos à Polícia das estradas.

- Sabe se o Dr. Renault pensa ser provável que Mr. Davenport venha a ter outro ataque?

- O médico - cortou Sara Ansel, em tom firme-, pensa apenas que Ed está morto.

- E parece, portanto, que Mr. Davenport lhe fez confidências que o incitam a suspeitar de Myrna.

- Certamente! Chegou até a fazer-lhe perguntas acerca dos bombons.

- Dos bombons?

- Sim. Myrna contou-me uma vez que, quando Ed se sentia à beira de uma crise de alcoolismo, conseguia evitá-la, comendo chocolates, tinha sempre consigo uma caixa de bombons e suponho que, antes de chegar a Fresno, sentindo desejo de beber, começou a comê-los.

- Que espécie de chocolates?

- Desses que contêm uma ginja e aguardente. Pelo que Myrna me disse, actuam como uma espécie de vacina! Quando não os comia e começava a beber, não parava antes de estar completamente saturado de álcool.

- Bem! Agora tome atenção. Estou a ver daqui alguns assentos livres, lá à frente. Miss Street e eu vamos instalar-nos neles e, quando aterrarmos em Los Angeles, torna-se conveniente que a senhora e Mrs. Daveniport desçam antes de nós. Tomarão um táxi e irão, directamente, do aeroporto para vossa casa.

- Porquê? Não seria mais natural tomar o autocarro da companhia de aviação e só depois o táxi?

- Não, porque quero ver se estão a ser seguidas, por alguém que venha neste avião. O xerife de Fresno pode ter decidido fazer-vos vigiar.

- Mas por que razão? Seria absolutamente absurdo! Se Ed se embriagou na companhia de uma mulher qualquer que lhe deu uma droga a beber, Myrna não pode ser, de forma alguma, culpada disso.

- O problema não é só esse. No estado em que se encontra, Davenport pode ter um acidente de automóvel e morrer nesse acidente.

- De qualquer maneira, a culpa não seria nossa! Se fugiu pela janela e acabou por matar-se na estrada, o responsável seria apenas o médico e não nós. Se Ed estava num estado de prostração, não deveria ter-lhe dado essa injecção de adrenalina, ou lá o que foi. Segundo compreendi, essa droga é uma espécie de dinamite que apenas se dá aos moribundos, em estado desesperado! De qualquer maneira o Dr. Renault deveria ter esperado pelo seu efeito!

Mason aquiesceu com um ar sonhador.

- Cada vez que me lembro que o senhor, Mr. Mason, julgando Ed morto, estava em Paradise! Que sarilho, se ele fosse directamente para o escritório e o tivesse encontrado a mexer-lhe nos papéis! Doido como é, só Deus sabe o que teria feito! Não calcula o medo que sentimos de que o senhor viesse a ter aí complicações!

- E tive! - murmurou Mason.

- De que género?

- Nada de grave. Contar-lhes-ei isso, às duas, quando vir em que param as modas, depois de aterrarmos. Entretanto, não se preocupe e trate de reconfortar Mrs. Davenport.

- Ora! Agora, já está refeita do choque. Mas vai ser preciso fazer qualquer coisa por ela, Mr. Mason. Estou certa de que Ed andou às voltas com o dinheiro dela e, enquanto ela se ocupava das flores...

- A quanto montava a herança de Delano?

- Primeiro, fizeram uma distribuição de cem mil dólares, segundo me parece, mas depois estavam sempre a chegar cheques. Por outo lado, Ed já recebera um adiantamento, por meio de um documento assinado por Myrna. Disse-lhe tratar-se unicamente de um pró-forma, mas eu, que não nasci ontem, e que conheço os homens...

- Não tenho a menor dúvida. Por agora, não se preocupe. Depois da aterragem, façam o que vos disse e, senão houver novidade, estejam no meu escritório' às duas da tarde.

Perry Mason e Della Street foram instalar-se nas cadeiras da frente.

- Mrs. Davenport pô-la ao corrente do que se passou?

- Sim, por alto. Davenport deve ter andado na paródia, como é seu costume, e deve ter adoecido, quase ao ponto do estado de coma. O médico deve ter-lhe dado uma injecção que o reanimou. Então, vendo-se fechado, julgou-se ameaçado e fugiu num carro qualquer, depois de ter saltado, em pijama, pela janela.

- Aonde acha que ele possa ter ido?

- Para casa.

- A Polícia das estradas foi alertada e procura um homem em pijama, conduzindo um carro roubado. Deverá ter sido preso antes de chegar a Los Angeles.

- E o patrão, o que pensa?

- Tudo depende do que Paul Drake tenha descoberto no motel de S. Bernardino e daquilo que acontecerá após a nossa chegada a Los Angeles.

- Supõe que elas tenham sido seguidas, desde S. Francisco?

Mason fez um sinal afirmativo.

- O homem do jornal tinha todo o aspecto de um chui. Tratemos agora de dormir um pouco. Pressinto que, dentro de hora e meia, careceremos de toda a nossa vivacidade de espírito!

 

Mason e Della Street viram um carro de tipo comercial, com uma antena exterior de rádio, seguir o táxi que Sara Ansel e Myrna Davenport tinham tomado.

- Polícia? - inquiriu a secretária. Mason aquiesceu.

- Nesse caso, porque não as detiveram? - Devem estar a tentar descobrir o significado de toda esta história.

- Que vamos nós fazer, agora?

- Cada um de nós tomará um táxi diferente, para despistar qualquer espia que esteja por aí. Você irá para sua casa e eu para a minha. Tome um banho e durma até se sentir com forças de voltar para o escritório... ou até que eu a chame.

- E, durante esse tempo, que vai fazer?

- Vou tomar igualmente um banho, barbear-me e esperar os acontecimentos.

- Espera que suceda qualquer coisa de especial?

- É muito possível. Talvez vá a Pacific Palisade Motor Court, de S. Bernardino.

- Fazer o quê?

- O ocupante do bangalô nº 13 pode saber qualquer coisa acerca de Ed Davenport.

- E não vai dormir umas horas?

- Se for a S. Bernardino, não. Mas só irei se Paul Drake me informar que o bangalô nº 13 está ocupado.

Um outro carro equipado com antena de rádio arrancou quando o táxi de Della Street partiu, mas Mason impôs-se não olhar para trás para ver se, igualmente, era seguido.

Mal chegou a casa, tomou um banho, vestiu um roupão turco e telefonou para a Agência Drake. A telefonista da noite declarou que tinha informações a transmitir-lhe.

- Diga lá.

- O bangalô nº 13 foi alugado telefonicamente por alguém que declarou chamar-se Frank L. Stanton. Tencionando chegar muito tarde pediu que a porta do bangalô fosse deixada aberta, para não ter que acordar alguém por causa da chave. Não contava poder estar em S. Bernardino antes das duas horas da manhã. Perguntou o preço do aluguer e, tendo-lhe sido dito que era de seis dólares, enviou um vale telegráfico de doze dólares. Todavia, quando, há coisa de meia hora, o homem encarregado de vigiar o bangalô telefonou, Stanton ainda não tinha chegado. Assinalou, porém, um facto interessante.

- O que foi?

- Uma outra agência de Polícia particular anda interessada no caso.

- Também vigia o bangalô?

- Sim.

- O nosso vigilante deu pormenores?

- Não está bem certo, mas julga tratar-se de um tal Jason L. Beckmeyer, detective particular de Bakers-field. Pelo menos, esse nome corresponde ao do seu carro. Eu própria telefonei para Bakersfield e os sinais de Beckmeyer correspondem aos do homem em questão.

- Bom trabalho. Mandem alguém que siga Beckmeyer, quando este se for embora. Quando tiver terminado a sua vigilância fará provavelmente um telefonema e estou interessado em saber com quem se porá em contacto. Como o fará, certamente, de uma cabina pública, o nosso homem poderá descobri-lo.

- É sempre difícil, mas faremos o melhor que pudermos.

- Estou certo disso. Agora, uma outra coisa. Estou a tratar de um caso que diz respeito a um certo Edward Davenport que faleceu em circunstâncias ainda não esclarecidas. O problema está no facto de o seu cadáver ter saído por uma janela e ter fugido ao volante de um automóvel.

- Co'os diabos!

- Gostaria de saber o que terá feito Davenport na noite anterior a morte. Provavelmente achava-se em Fresno. A Polícia está a tratar do caso, mas, como deve procurar saber onde um tal Ed Davenport terá passado a noite, admirar-me-ia muito se descobrisse alguma coisa. O registo nesse motel de Crampton dá-nos já um indício: Frank L Stanton. Deve ser o nome que Davenport utilizou. Veja se consegue que o vosso correspondente em Fresno procure saber o que teria feito um homem com este nome. Empreguem os homens que forem necessários mas façam-no confidencialmente. Será possível?

- Creio que sim. Temos um excelente correspondente, em Fresno.

- O. K. Estarei no escritório, por volta das dez horas, mas poderá ligar para minha casa, se houver novidades, antes disso.

Depois de se ter barbeado e bebido um copo de leite quente, Mason adormeceu numa poltrona, até que a campainha do telefone o acordou.

- Está lá? - atendeu o advogado, ainda ensonado.

- Viva! Geralmente é você quem costuma acordar-me- disse a voz de Paul Drake. - Coube-me agora a vez!

- Eu só o faço por motivos importantes. Espero que se dê agora o mesmo caso.

- Myrna Davenport acaba de ser presa e interrogada acerca de um caso de assassínios... no plural!

- Assassínios de quem?

- São dois! De Ed Davenport, seu marido, e de Hortense Paxton, sua prima.

- Como aconteceu isso?

- Ontem fora assinada uma ordem secreta de exumação. Dizia respeito a Hortense Paxton, que era sobrinha de...

- Estou a par do caso. E depois?

- O corpo continha arsénico em quantidade capaz de matar um cavalo. Não há dúvida acerca do envenenamento, embora o médico tenha passado uma certidão de óbito normal. Mrs. Davenport foi imediatamente detida para ser interrogada acerca deste homicídio e também do de seu marido.

- Encontraram o cadáver de Ed Davenport?

- Não, ainda não. Mas parece terem encontrado novos indícios. Ao princípio, julgaram tratar-se de um erro de diagnóstico por parte do médico, mas este conseguiu convencê-los de que o seu paciente fora envenenado.

- Nesse caso, o cadáver do dito paciente saltou por uma janela e fugiu ao volante de um automóvel! É um cadáver deveras fugitivo!

- Não conheço todos os pormenores. Apenas lhe digo o que consegui saber até agora.

- Onde está Mrs. Davenport?

- Foi detida pela Polícia daqui, mas pode dar-se o caso de ter sido enviada de avião para Fresno a fim de ser aí interrogada.

- Conseguiu descobrir alguma coisa a respeito de Ed Davenport, sob o nome de Stanton, e onde teria passado a noite, em Fresno?

- Ainda não, Perry, mas estamos a tratar disso. Agora, passemos a um ponto mais delicado. Tenho grande receio de que você arranje aborrecimentos com este assunto.

- Sim? Porquê?

- Davenport tinha um escritório em Paradise. Alguém telefonou ao xerife para que fosse até lá e descobriram que você também lá estava, com o fim de tomar posse do local e seu conteúdo, em nome da viúva. Parece, porém, que Davenport teria deixado um sobrescrito que deveria ser aberto no caso de vir a falecer. Abriram-no e apenas encontraram folhas em branco. Seis folhas, para ser mais preciso. O laboratório descobriu que o sobrescrito fora aberto, e recolado, havia menos de vinte e quatro horas. Está a ver em que situação isso o deixa, Perry? Aí está o motivo por que me apressei a avisá-lo. Devem fazer-lhe agora uma série de perguntas embaraçosas.

- Quando as farão?

- Mal o encontrem. Pensam que você encontrou uma declaração capaz de inculpar a sua cliente e que a teria substituído por folhas em branco.

- Mrs. Davenport foi mesmo presa ou apenas detida como testemunha?

- Foi presa.

- E Sara Ansel?

- Está fora do assunto, mas Della Street pediu-me que o informasse de que Mrs. Ansel tem assediado o escritório...

- Della está, portanto, no escritório?

- Desde as nove horas da manhã.

- O diabrete! Tinha-lhe dito que descansasse um pouco.

- Ela pensou que era você quem precisava de dormir e veio para o escritório a fim de evitar que o incomodassem com assuntos menos importantes.

- Ela está ao corrente do que me acaba de dizer?

- Somente em parte. Preferi telefonar-lhe a si primeiro sobre o assunto. Logo que desligar, vou, corredor fora, contar-lhe o que se passa.

- Por favor, diga-lhe que estarei no escritório dentro de vinte ou vinte e cinco minutos, o mais tardar.

- Se não o prenderem antes disso!

- Diga-lhe que estarei aí dentro de vinte minutos - repetiu Mason e desligou.

Pouco tempo depois, Mason hesitou à porta do escritório de Paul Drake, mas dirigiu-se para a porta do seu gabinete e entrou.

Quando o viu, Della Street pôs um dedo nos lábios e fechou a porta de comunicação com a antecâmara.

- Patrão - começou ela em voz baixa. - Creio que estamos metidos num sarilho dos diabos!

- Porquê?

- Sara Ansel está danada. Descobriu que Myrna Davenport não era a menina boazinha e inocente que julgava.

- E como foi que o descobriu?

- É o que ela lhe quer dizer. Acho, patrão, que não tem necessidade de representar Mrs. Davenport. Contrataram-no para um caso de transmissão de bens e agora trata-se de um caso de assassínio...

- Não, Della! Quando aceito tomar a defesa de um cliente, não o abandono dessa maneira.

- Bem sei... Mas quando tiver ouvido o que Sara Ansel diz...

- Ela expôs-lhe a situação?

- Sim, por alto. E o caso afigura-se-me mau, muito mau!

- O. K. Suponhamos que Myrna Davenport é culpada: tem, da mesma maneira, direito a um defensor, não é verdade? Faça agora entrar Mrs. Anse!. Mas por que diabo não dormiu um pouco?

- Porque o patrão tinha mais necessidade disso do que eu. Posso muito bem fazer uma sestazinha, depois do almoço. Há mais telefonemas, vindos da província, e, especialmente, um do procurador do Distrito do condado de Butte, de que depende Paradise.

- Gostaria de saber que diabo me quer! - disse Mason, sorrindo.

- Também eu - acrescentou Della, sem pestanejar.

- Em todo o caso, procedamos por ordem. Vou receber, primeiramente Sara Ansel. Se telefonarem, responda que estou em conferência e que não posso ser incomodado, antes de meia hora.

Mrs. Ansel tinha uma expressão exaltada e a testa enrugada.

- Mr. Mason! - exclamou, precipitando-se no gabinete e apertando a mão do advogado. - Tem de fazer qualquer coisa! Temos que sair deste sarilho! É terrível!

- Tenha calma e sente-se, Mr. Ansel. Conte-me o que se passou.

- Meu Deus! Nunca me perdoarei ter sido tão cega e acreditado nessa patifa... Ainda por cima, meti-o a si neste caso! Conhecia-a há pouco tempo, mas considerava-a, como se fosse minha filha!... Afinal de contas, saiu-me uma lucrécia-bórgia, uma envenenadora, uma assassina, Mr. Mason!

- Vamos lá, vamos lá, Mrs. Ansel! Conte-me factos.

- Para começar, o coroner mandou exumar o corpo de Hortense Paxton. Descobriram que fora envenenada por Myrna!

- Quando soube isso?

- Quando chegámos a casa. Estava um telegrama debaixo da porta. Uma amiga de Myrna pedia-lhe que lhe telefonasse logo que chegasse. Myrna ligou para ela e foi então que soubemos tudo. Não me lembro, Mr. Mason, de ter recebido um tal choque, em toda a minha vida! Mas Myrna ficou muito calma e disse: "Antes de deitar-me, tia Sara, vou ainda jardinar um pouco."

Vendo que Mason erguia as sobrancelhas, Sara Ansel explicou:

- Ela passava a vida a tratar do jardim. Era o seu único entretenimento... Mas oiça o resto! Todas estas viagens, com a minha idade, tinham-me deixado estafada. Mal me tinha de pé! Mas quis tomar um duche, antes de ir para a cama. Devo dizer-lhe que o meu quarto fica no primeiro andar e dá para o jardim. Adivinhe o que Myrna estava, aí, a fazer?

- Diga lá! - pediu Mason, impaciente.

- Fazia um buraco no chão, um buraco profundo. Aquilo não era jardinagem! Enquanto a observava, colocou vários sacos de papel no fundo do buraco, tapou-os com terra e, finalmente, cobriu o sítio com uma porção de relva que cortara para abrir a cova. Um trabalho perfeito, pode acreditar!

- E depois?

- Então, desci, antes que ela tivesse tempo de esconder tudo completamente, e perguntei-lhe o que estava a fazer. Respondeu-me que tinha arranjado umas estacas de flores e que, tendo-as já plantado, se dispunha a dormir doze horas a fio.

- Que lhe disse a senhora?

- Pedi-lhe que me mostrasse onde tinha plantado essas flores. Respondeu-me que isso não tinha importância e que estava ansiosa por deitar-se. Insisti, mas gostaria que Mr. Mason a tivesse visto! Baixara os olhos e mantinha-os fixos como se fossem de pedra! Um verdadeiro muro!

-E depois?

- Não estive com mais rodeios. Perguntei-lhe porque me mentia e porque cavara aquele buraco. Ela retorquiu-me que não abrira buraco algum!

- Ela disse isso?

- Ao ouvir aquilo, tirei-lhe o sacho das mãos e dirigi-me ao sítio onde a vira cavar um esconderijo. Então, ela declarou no tom mais natural deste mundo: "Sim, tia Sara. Fiz aí um buraco, mas não o revolva; tive imenso trabalho em pôr a relva no seu lugar e, se lhe mexer, percebe-se que enterrei aí qualquer coisa."

- E depois?

- Perguntei-lhe então o que enterrara e sabe o que me respondeu?

- Diga lá!

- "Uns cartuchinhos de arsénico e de cianeto de potássio"! Não acha isto "encantador", Mr. Mason?

- Continue.

- Pois bem, esse diabinho teve o arrojo de contar-me que costumava entreter-se com experiências para destruir os parasitas que lhe infestavam as flores. Utilizava nessas experiências «ingredientes muito activos», especificou. Comprara o arsénico e obtivera o cianeto no laboratório da mina. Em virtude dos resultados da autópsia de Hortense, receava ter esses venenos em seu poder e, para evitar suspeitas da Polícia, preferira desembaraçar-se deles...

- A senhora que fez?

- Embora  possa  parecer  insensato,  de  momento, acreditei. Ela mostrava-se tão tranquila, tão sincera! Cheguei a lamentá-la, receando que não pudesse resistir a tantas provas implicativas. Acompanhei-a à cama, antes de  me deitar,  e tinha acabado de  adormecer,  quando bateram à porta. Eram dois polícias que vinham informar ter sido encontrado arsénico no corpo de Hortense e que o  procurador do  Distrito  desejava  interrogar  Myrna  a esse respeito.

- E depois?

- Levaram-na ao gabinete do procurador do Distrito.

- E a senhora?

- Fizeram-me apenas algumas perguntas, especialmente, desde quando eu ali estava, e eu respondi-lhes.

- De que maneira recebeu Myrna a notícia?

- Como costuma aceitar todas as coisas: muito calmamente. Declarou estar pronta a acompanhá-los e apenas lamentou não poder dormir um pouco, antes disso.

Quando ela partiu, comecei a reflectir no caso e lembrei-me dos bombons que Ed costumava levar sempre consigo. Myrna dissera-me que lhe arranjara a mala de viagem, visto ele não saber dobrar os fatos e as camisas...

- É o que faz a maioria das esposas...

- Sim, mas isso significava que ela teria também arrumado os bombons, como de costume. Resolvi então dar uma vista de olhos pela casa.

- Especialmente  pelo quarto de  Mrs.  Davenport?

- Sim, e, na gaveta da cómoda, encontrei uma caixa de bombons semelhantes aos que Ed costumava levar, sempre, com ele. A própria Myrna é muito gulosa e lembro-me de ter visto, muitas vezes, caixas desse género espalhadas pela casa.

Quantas vezes me pediu que a ajudasse a comer essas guloseimas, meu Deus! Como tenho de cuidar da minha linha, raras vezes aceitei... mas está a ver o que isso podia significar? Ela insistia tanto, tanto!... Foi o céu que me guiou a mão para os bombons inofensivos! Uma lucrécia-bórgia, é o que ela é!

Mason permaneceu alguns segundos pensativo e depois inquiriu:

- Segundo depreendi, a senhora e Myrna andaram sempre juntas durante todo o tempo que estiveram em Crampton?

- De maneira nenhuma! Ela ficou sozinha com o marido, enquanto tomei um duche! Depois, quando o médico anunciou a morte de Ed e fechou o bangalô à chave, fui telefonar-lhe, a si, do outro lado da rua. Lembro-me agora de ter visto Myrna falar com um homem qualquer. Separaram-se logo a seguir e nessa altura não liguei a menor importância ao caso, pensando tratar-se de qualquer outro locatário do motel, que lhe estaria apresentando condolências. Porém, agora, admito a possibilidade de tratar-se de um cúmplice. Este pode ter-se introduzido no bangalô, ter enfiado um pijama e passado o corpo de Ed pela janela. Bastar-lhe-ia escondê-lo, depois, num carro que estivesse próximo, ter-se instalado ao volante e partido.

- Parece que os seus sentimentos para com Mrs. Davenport mudaram subitamente!

- Pode bem dizê-lo! Agora vejo tudo claramente! Que vai fazer?

- Ainda não sei.

- Pois bem! Eu vou tratar de salvaguardar o meu nome e a minha reputação.

- Por outras palavras, vai falar aos inquiridores?

- Não! Não tenciono procurá-los, mas não os evitarei quando quiserem interrogar-me.

- E que lhes dirá a meu respeito?

- Quanto à sua ida a Paradise e à famosa carta? Mason acenou com a cabeça e Sara Ansel aguentou-lhe o olhar.

- Dir-lhes-ei a verdade.

- É o que supunha - declarou Mason, secamente.

- Não estou a achá-lo muito cooperante, Mr. Mason. - Sou advogado, minha senhora, e só coopero com os meus clientes.

- Os seus clientes? Quer dizer que vai continuar a defender essa mulher? Mesmo depois de todas as mentiras que ela lhe contou? Depois de...

- Ela tem direito a um advogado que vele porque seja julgada racionalmente. Portanto, defendê-la-ei.

- Já devia ter adivinhado que perderia o meu tempo!

- guinchou Sara Ansel, levantando-se e fulminando Mason com o olhar. Junto da porta, virou-se para dizer:

- E eu que pretendia apenas ajudá-lo!

Quando ela saiu, Mason ficou, durante alguns segundos, contemplando a porta e disse a Della Street:

- Eis o que acontece a um advogado que aceita os seus clientes tal como se lhe apresentam!

- Que quer dizer com isso?

- Que aquilo que um cliente declara ao seu advogado, é considerado confidencial. Um padre ou a secretária do advogado podem estar presentes sem que - segundo a lei - se perca o sentido da confidência, mas, se uma outra pessoa assiste à reunião, esta perde automaticamente o carácter confidencial.

- Mas, patrão, foi essa mulher que lhe trouxe Mrs. Davenport e quem, afinal de contas, relatou tudo...

- Bem sei. Nessa altura, Mrs. Davenport julgou preferível a presença de Sara Ansel, mas eu, como advogado, deveria ter exigido uma consulta privada.

- E como isso não aconteceu...?

- Como isso não aconteceu, a consulta não goza de qualquer privilégio e serei obrigado a responder a quantas perguntas as entidades competentes resolvam fazer-me sobre o assunto.

- Entretanto...?

- Daqui até lá, tenho o direito de calar-me.

- Nesse caso, que fazemos em relação ao procurador do Distrito, do condado de Butte?

- Quanto a esse, estamos prontos a falar com ele. Ligue-me para lá, por favor.

Quando se estabeleceu a comunicação, o advogado anunciou:

- Fala Perry Mason.

Do outro lado do fio, a voz denunciou certo embaraço e procurou mostrar-se autoritária:

- Sou Jonathan Halter, Mr. Mason, procurador do Distrito do condado de Butte, e desejo interrogá-lo, assim como à sua secretária, acerca de uma viagem que fizeram a Paradise. - Ah, sim? - admirou-se Mason, o mais cordealmente possível. - Estou à sua inteira disposição, Mr. Halder, mas não vejo motivo para qualquer interrogatório.

- Certamente que posso levar a coisa perante um tribunal e...

- Que coisa?

- O que foram fazer a Paradise.

- Deus do Céu! - exclamou Mason, como se falasse com um velho amigo para quem se não guardam segredos. - Se está, porventura, interessado naquilo que Miss Street e eu possamos ter feito no seu condado, asseguro-lhe que nada nos custa responder, seja a que perguntas forem, sem necessidade de quaisquer convocações!

- Ainda bem que me diz isso - declarou Halder, cujo tom se tornou um pouco mais normal. - Talvez não o tenha julgado bem. Esta gente daqui disse-me que o senhor era terrivelmente torcido e que, se eu precisasse de interrogá-lo, teria de recorrer a meios coercivos.

Mason pôs-se a rir:

- Co'os diabos! Parece que as reputações, tal como as imagens, podem ser deformadas pela distância. Se isso é tão importante, quando deseja ver-me?

- É imensamente importante, Mr. Mason, e desejaria vê-lo o mais depressa possível.

- Muito bem! Ora vejamos... Tenho agora imenso que fazer, mas Miss Street e eu vamos arranjar as coisas de forma que... Há um avião para S. Francisco dentro de meia hora e daí...?

- Creio que não estamos muito bem servidos de transportes...

- Sim. Estou a ver isso, ao consultar os horários. Nessas condições, como não tenho tempo a perder, o mais prático é fretar um avião a partir de S. Francisco ou de Sacramento. Têm algum campo de aterragem em Oroville?

- Oh, sim! Certamente.

- Magnífico. Nesse caso, chegaremos por volta das cinco horas e meia...

- Bem! Não é preciso, também, fazer uma corrida contra-relógio...

- Meu caro Mr. Halder. Creio que temos, ambos, muito que fazer e, quanto mais depressa tenhamos encerrado este assunto mais vantajoso será para toda a gente. Quer ter a bondade de esperar-me, às cinco e meia, no campo de aterragem?

- Certamente! - assegurou Halder, antes de acrescentar num tom desculposo: - Lamento tê-lo incomodado desta maneira. Regularemos depressa o assunto... Quero dizer que certamente Mr. Mason explicará o caso, de forma absolutamente satisfatória... mas, compreende... estamos sempre sujeitos a certas pressões...

- Compreendo perfeitamente! - anuiu Mason, com cordialidade. Tenho muito prazer em ser-lhe prestável. Até logo, Mr. Halder.

Mal o advogado pousou o auscultador, Della Street suspirou fundo, com ar desiludido:

- Enfim! É o que se chama ceder sem luta! Mason sorriu:

- Minha querida. Encontramo-nos numa situação delicada e esforço-me por ganhar tempo.

- É a isso que chama ganhar tempo? Até se propõe fretar um avião para...

- A Imprensa local, a Polícia ou o procurador de Distrito daqui poderiam deitar-nos a mão em alguns minutos, mas, desta maneira, poderemos escapar-lhes...

- Indo meter-nos nos braços do procurador de Distrito do condado de Butte. Não se esqueça de que, mal responda a certas perguntas, passam-lhe uma corda ao pescoço!

- Se agíssemos de outra forma, acabariam por fazer-nos essas perguntas, aqui e não no condado de Butte. Sempre ganhamos algumas horas que nos permitirão, talvez, descobrir qualquer coisa por intermédio de Paul Drake. Se você deixasse, por um momento, de pensar na triste realidade, minha querida Della, veria como a situação se tornaria menos desagradável. Antes de mais nada, o que interessa é sairmos daqui, precipitadamente, sem ter tempo, sequer, para responder às perguntas seja de quem for, em virtude do nosso encontro urgente com o procurador de Distrito do condado de Butte. Que excelente publicidade a nosso favor! Mal soubemos que Mr. Halder desejava interrogar-nos, pusemos tudo de parte e chegámos até a fretar um avião para acorrermos à sua chamada. Marcámos-lhe uma hora de chegada que nos permite ganhar fôlego, mas deixámos este gabinete, sem perda de um segundo. Por outro lado, graças à hora de chegada que indicámos, teremos a Imprensa de Oroville à nossa espera e não lhe passará desapercebido o cuidado que tivemos em não retardar o nosso encontro.

- Com efeito, isso deixa-nos uma margem de cinco ou seis horas e, sob esse aspecto, aprecio imenso a sua astúcia, mas... o que nos acontecerá quando chegarmos ao condado de Butte?

- Isso, minha filha, também eu gostaria de saber.

- Vai responder às perguntas que se refiram ao que fez em Paradise?

- Deus me guarde disso!

- Como poderá evitá-lo?

- Ainda não sei, mas vou dedicar alguns minutos a folhear certos alfarrábios sobre Leis... e depois, reflectirei pelo caminho!

 

O avião que tinham fretado em Sacramento aproximava-se de Oroville através de uma paisagem montanhosa. Della Street consultou o relógio de pulso:

- Seremos de uma pontualidade militar.

- Sem nos termos apressado demasiadamente e conseguido escapar aos inquiridores de Los Angeles.

- A Imprensa dali não dará a entender que o senhor fugiu para evitar ser interrogado?

- Não, pois descobrirão que viemos para Oroville. Isto há-de calar-lhes o bico. Pedirão à Imprensa local que lhes telegrafe e, declarando não terem conseguido encontrar-nos, ver-se-ão obrigados a dizer que a nossa ausência se deve ao facto de nos dirigirmos para o norte, a fim de sermos ouvidos pelas autoridades locais. O avião começou a descer.

- Dentro de alguns momentos - disse Della-, terá de arranjar maneira de não responder a certas perguntas.

Mason confirmou com um aceno de cabeça.

- Como vai fazer?

- Ainda não sei, pois ignoro que perguntas sejam. O que importa é que eu seja o primeiro a ser interrogado. Se eles quiserem começar por si, diga-lhes que, em virtude de ser minha secretária, acha que devo ser eu o primeiro a responder. Depois disso, dar-lhes-á todos os dados que eles acharem necessários acerca dos assuntos que já tiverem tratado comigo, mas não se arrisque a responder a perguntas relacionadas com um assunto que eu Julgue beneficiar de segredo profissional.

- Julgava que a presença de Sara Ansel nos privava desse privilégio em relação à conversa que teve com Myrna Davenport.

- É exacto, mas dei uma vista de olhos aos precedentes que constituiriam bases de jurisprudência a esse respeito e achei neles alguns motivos, embora fracos, para argumentar nessas circunstâncias. Ah! Como estou arrependido de não ter pedido a Mrs. Ansel que voltasse para a antecâmara!

- O senhor não podia prever que o caso tomaria este aspecto.

- Ora, porque não? Um advogado deve prever tudo quanto possa ocorrer. O menos que pode fazer é prever o que efectivamente acontece. Nada há de extraordinário em que as melhores amigas um dia se zanguem e, quando nenhuma razão motiva a sua presença, um advogado não deveria tolerar que uma terceira pessoa...

- Mas, patrão, foi Mrs. Ansel que falou durante todo o tempo! Myrna Davenport, praticamente, não disse nada!

- Mas como não era muda e falava inglês, não precisava da ajuda de Sara Ansel...

O avião começou a descrever um arco de círculo e o advogado interrompeu-se para dizer à secretária:

- Estamos a chegar, Della. Prepare-se para opor resistência.

Mal o avião começou a rodar na pista, um grupo de homens, à frente dos quais resplandeciam várias máquinas fotográficas da Imprensa, precipitou-se na sua direcção. Este primeiro grupo era seguido de um segundo, mais pequeno, que se comportava com maior dignidade.

O advogado e a secretária permitiram que os fotógrafos pudessem operar à sua vontade e depois foram abordados por um repórter:

- Pode dizer-me o seu nome, por favor?

- Perry Mason - respondeu o advogado, sorrindo.

- E a senhora?

- Della Street.

- É a secretária particular de Mr. Mason?

- Sim.

- Obrigado! - agradeceu o repórter, apertando a mão de Mason.

- Não tem de quê - respondeu o advogado, cujo sorriso vacilou por um momento, ao sentir o outro meter-lhe um bilhetinho na palma da mão.

Mason meteu a mão direita na algibeira do casaco e voltou a sorrir quando um homem novo, bastante corpulento, rompeu por entre os repórteres.

- Mr. Halder?

- Sou eu. Estes senhores são o xerife deste condado e um dos meus assistentes. Se não vê inconveniente, Mr. Mason, gostaria de o levar imediatamente ao meu gabinete.

- Com certeza! Como lhe convier melhor! - assegurou-lhe Mason, com cordialidade.

- Temos um carro lá fora e espero podermos tratar rapidamente do nosso assunto.

- Perfeito. O meu piloto está autorizado a navegar sem visibilidade e diz-me que podemos voltar de noite.

- Aborrece-me tê-lo feito fretar um avião, Mr. Mason, mas o nosso orçamento é tão limitado e...

- Por favor, não falemos disso!

Halder voltou-se então para os jornalistas:

- Lamento desapontá-los, meus senhores, mas desejo conduzir este inquérito à minha maneira. Não os poderei autorizar a fazer perguntas a Mr. Mason senão depois da nossa conversa e com a condição de ele não pôr objecções.

- Quando se trata da Imprensa, nunca levanto objecções - afirmou Mason, sorrindo aos repórteres.- Digo-lhes sempre tudo o que sei... a não ser, evidentemente, se se trata de coisas confidenciais ou se, por motivos estratégicos, me reservo para as usar só na altura do julgamento.

- Óptimo! Não sei como dizer-lhe quanto apreciámos o seu espírito de compreensão e a sua cooperação, Mr. Mason. Agora, se Miss Street e o senhor querem ir para o carro...

- Peço-lhe só um minuto - disse Mason. -Pode ser que tenha de mandar um telegrama...

Tirou uma agenda da algibeira direita do casaco, no interior da qual tinha conseguido meter o papel do repórter, e fingiu consultá-la, enquanto lia a mensagem. O texto desta era dactilografado e dizia:

"Sou Peter Ingram, repórter do Oroville Mercury. Mabel Norge, a secretária de Ed Davenport, desapareceu. Ninguém sabe onde está. Ontem, à tarde, ela retirou todo o dinheiro que se encontrava na conta de Davenport, no banco de Paradise. Não me pergunte como soube. É confidencial. Previno-o por julgar que esta informação lhe será útil e que me poderá agradecer, dando-me uma vantagem sobre os colegas."

Mason voltou a meter a agenda na algibeira e, encontrando no grupo de jornalistas o olhar interrogador de Ingram, fez com a cabeça um sinal quase imperceptível.

- Se deseja expedir um telegrama - começou Hal-der-, nós...

- Oh!, parece-me que isso pode esperar. De qualquer maneira, suponho que não demoraremos muito tempo...

- Espero que não - disse Halder, com fervor.- Se não vê inconveniente, a conversa será no gabinete pessoal do xerife.

- Repito-lhe, meu caro Mr. Halder, que proceda como melhor entender - declarou amavelmente Mason.

Quando entraram no gabinete em questão, Mason viu as cadeiras cuidadosamente dispostas e ficou convencido de que uma máquina de gravação estava dissimulada em qualquer parte.

Acedendo ao cordial convite do xerife, Halder ocupou o lugar atrás da secretária e esperou, para fazer a primeira pergunta, que o ruído de passos e cadeiras acabasse por completo. Isto acabou de convencer Mason de que a conversa seria registada.

Halder aclarou então a garganta e tirou da algibeira um documento que desdobrou sobre a mesa, dizendo:

- Mr. Mason, esteve ontem à noite em Paradise, com a sua secretária, Miss Street?

- Deixe-me ver- reflectiu Mason-, foi realmente ontem à noite? É verdade, tem razão... segunda-feira... doze. Passaram-se tantas coisas, entretanto, que já me parecia há muito tempo.

- E entrou na casa de Edward Davenport, em Crestview Drive?

- Ah! -fez Mason, sem abandonar o seu ar afável.

- Estou vendo que lê as perguntas, Mr. Halder. Deduzo daí que este interrogatório tem carácter oficial.

- Isso faz diferença? - perguntou amavelmente o procurador do Distrito.

- Com certeza, e grande! Conversarmos, os dois, não tem inconvenientes, mas, se me faz perguntas provenientes de uma lista já preparada e portanto maduramente reflectidas, tenho de ser prudente nas respostas.

- Porquê? - perguntou Halder, imediatamente suspeitoso.- A verdade não é a mesma em qualquer dos casos?

- Claro que é. Mas veja, por exemplo, a última pergunta que acaba de fazer-me. Perguntou-me se entrei em casa de Edward Davenport.

- Pergunta a que se pode responder: sim ou não.

- Engana-se; não é assim tão simples.

- Porquê?

- Como este interrogatório tem carácter oficial, as minhas respostas devem ser de extrema precisão.

- Com certeza! É assim que eu entendo e o senhor também, não é verdade?

- Devo pois dizer-lhe que entrei numa casa pertencente a Mrs. Edward Davenport.

- Vejamos,   essa   casa   era   aquela   onde   Edward Davenport tratava dos seus negócios e...

- Sim - cortou Mason -, é justamente o que quero fazer notar.

- Não estou a acompanhar a sua ideia.

- Muito bem, se se tratasse de uma conversa puramente amigável e me perguntasse se entrei em casa de Ed Davenport, eu teria respondido: «Sim, com efeito.» Mas  este   interrogatório tem  carácter  oficial   e  devo, portanto, pesar bem as  minhas respostas. Represento Myrna Davenport, a viúva de Ed Davenport. Se a casa fazia parte dos bens do casal, a minha cliente tornou-se inteiramente sua proprietária no momento da morte do marido. Se pertencia ao marido, mas lhe é legada em testamento, o resultado será o mesmo desde a validação do testamento. Por consequência, se me perguntam oficialmente: «Entrou, segunda-feira, à noite, na casa que pertence a Ed Davenport» e eu respondo afirmativamente, pode-se inferir que duvido da validade do testamento ou que, em minha opinião, a casa não fez parte dos bens do casal. Compreende?

Halder pareceu perplexo:

- Compreendo o seu ponto de vista, Mr. Mason, mas isso não é - como direi - uma bizantinice?

- Desde o momento em que esta conversa toma carácter oficial, a jurisprudência é tal que a precisão nunca será demasiada - assegurou Mason, com um sorriso desarmante.

- Gostaria que respondesse, sem comentários, às minhas perguntas, Mr. Mason.

- Esse é o problema. No fim de contas, represento Mrs. Davenport. Ignoro ainda se vai ser posta em justiça uma acção contra ela, mas deram-mo a entender. Por consequência, se eu responder à sua lista de perguntas, as minhas respostas poderão ser utilizadas legalmente, na sua exacta fraseologia, o que pode ser contrário aos interesses da minha cliente. Por exemplo, o senhor pode talvez perguntar-me se ela assassinou o marido, Ed Davenport. Em face das circunstâncias, isso nada teria de extraordinário, não é verdade?

- Não sei dizer-lho.

- Certamente! Mas enfim, pelo telefone, o senhor não me escondeu que age em obediência a instâncias de autoridades superiores.

- Certamente.

- Portanto, não se trata simplesmente de saber se eu tinha ou não direito de entrar nessa casa de Paradise. É mais provável que, nas altas esferas, se julgue que Ed Davenport morreu e que Mrs. Davenport - não estou a exprimir a minha opinião, bem entendido, mas aquela que eu suponho ser da pessoa que o levou a tomar estas medidas - e que Mrs. Davenport, dizia eu, tem alguma coisa ver com isso. Não é exacto?

- Lamento, Mr. Mason, não poder responder francamente a essa pergunta.

- Segundo os meus conhecimentos legais, um assassino não pode herdar da própria vítima, não é assim?

- Assim é, com efeito.

- Então, imagine ao que uma resposta imprudente da minha parte poderia induzi-lo! Se eu desse a entender que - no meu espírito -, a casa onde entrei não pertencia a Mrs. Davenport, poder-se-ia concluir que a julgo culpada de ter assassinado o marido! O senhor não, evidentemente, Mr. Halder. Tenho por si uma consideração suficientemente elevada para julgá-lo incapaz de aproveitar-se de um lapso deste género, mas o senhor age sob pressão exterior; uma pessoa que se cingisse apenas à forma da minha resposta - e não ao seu espírito- poderia concluir que reconheci Mrs. Davenport culpada de ter assassinado o marido, visto que aparentemente lhe negava a propriedade de um bem que lhe cabia por direito.

Mason recostou-se, sorrindo, às costas da poltrona e, retirando da algibeira uma cigarreira, apresentou-a aos seus três desconcertados interlocutores:

- Fumam, meus senhores?

Como nenhum lhe respondesse, o advogado tirou um cigarro, acendeu-o e expeliu uma baforada, mantendo uma atitude amena.

- Em matéria de interrogatório - observou Halder - até agora fui eu quem respondeu às suas perguntas.

- Isso deve-se ao facto de eu pretender, acima de tudo, que o carácter desta conversa seja preciso. Ora vejamos, Mr. Halder, tal como eu, o senhor é um homem de leis. Acha que me posso permitir dizer coisas susceptíveis de induzirem, seja quem for, a pensar que duvido dos direitos da minha constituinte à herança do marido?

- Certamente que não. Ninguém lhe pede isso.

- Ora, muito bem. Então, queira prosseguir no seu interrogatório, a que procurarei responder-lhe na medida do possível.

Halder consultou o papel.

- Enquanto se encontrou nessa casa, na casa pertencente a Davenport, em Paradise, não forçou a fechadura  de  uma  secretária,  não  abriu um  pequeno cofre nela guardado e não retirou deste um sobrescrito, com uma   indicação  escrita   pelo   punho  de   Ed   Davenport, dizendo: «Para ser aberto, caso eu venha a morrer, e o seu conteúdo entregue às autoridades»?

Mason permaneceu calado e pensativo.

- Não pode responder-me?

- Essa  pergunta  envolve vários  factores  e  estou tentando separá-los no meu espírito.

- Vários factores?

- Para começar, o senhor põe em causa a propriedade dessa casa.

- Bem. Entenda-se que, quando falo da casa de Ed Davenport, faço-o unicamente para designá-la e que isso não pode implicar qualquer conclusão no plano jurídico.

- Tudo isso estaria muito certo, entre nós dois, Mr. Halder, mas veja o partido que o advogado de um outro herdeiro poderia tirar daí!

- Que outro herdeiro?

- Oh! Disse isso por dizer... Mas há, por exemplo, Sara Ansel, cuja irmã casara com o irmão de William Delano. Suponha que Myrna Davenport não pode herdar os bens de Delano...

- Por que razão?

- Teoricamente, poderia haver múltiplas razões. Por exemplo - trata-se de uma pura hipótese, bem entendido- se Myrna Davenport viesse a ser acusada da morte de William Delano.

- Não se trata disso. Ela é acusada da morte de Hortense Paxton, mas Delano não foi assassinado. Estava condenado pelos médicos.

- Pode então garantir-me que não é acusada da morte de William Delano e que este nem sequer foi assassinado?

- Não posso garantir-lhe seja o que for.

- Lá voltámos ao ponto de partida! Acho-me numa situação verdadeiramente muito particular, Mr. Halder. Não se pode estar mais desejoso de cooperar consigo do que eu estou, Mr. Halder, mas...

- O que o aborrece é Sara Ansel poder apresentar-se como pretendente a sucessão Delano?

- Supondo que Myrna Davenport não possa herdar de William Delano, por ser acusada de tê-lo assassinado, Sara Ansel não poderia reivindicar a parte que normalmente teria cabido ao irmão de William? Confesso-lhe não ter relido a lei respeitante a sucessões...

- Eu também não - declarou Halder.

- Pois bem, quer dar-lhe uma vista de olhos comigo?

- Não, não! Ainda complicaríamos mais o assunto. As minhas perguntas são simples e gostaria que as suas respostas fossem igualmente simples e precisas.

- É esse também o meu desejo - assegurou-lhe Mason - mas o facto de esta conversa se revestir de carácter oficial complica terrivelmente a situação.

- Afinal de contas, foi o senhor que considerou esta conversa oficial por eu estar a ler as perguntas numa folha de papel.

- Mas que razões o levaram a redigir previamente essas perguntas em papel? Ora, vamos, seja franco, meu caro colega.

- Sim, reconheço - confessou o outro, embaraçado- ter consultado certas autoridades que me sugeriram algumas perguntas...

- Nesse caso, tudo me leva a crer que essa pergunta que acabou de fazer-me foi sugerida pelo procurador do Distrito de Los Angeles e sabe Deus as coisas a que a minha resposta o induzirá no que se refere ao caso de que anda a tratar.

- A sua constituinte não é acusada do assassínio de seu tio, William Delano, mas do de sua prima, Hor-tense Paxton.

- E esse hipotético assassínio ter-lhe-ia permitido receber a maior parte da herança de William Delano?

- Aparentemente, sim.

- Mas não desenterraram o corpo de William Delano?

- Não.

- E porque não?

- Porque morreu de morte natural.

- Como o sabe?

- Havia meses que Delano estava às portas da morte.

- Um moribundo está imunizado contra o veneno?

- Está procurando insinuar que a sua constituinte envenenou William Delano?

- Não, co'os diabos! - exclamou Mason. - Sei que ela nada fez de semelhante.

- Como pode afirmá-lo?

Porque sei que não envenenou ninguém.

- Envenenou Hortense Paxton e pode ter envenenado Edward Davenport.

- Ora, òra - disse Mason -, isso é uma acusação gratuita.

- Nada disso. Estou na posse de informações que nos permitem fazê-la.

- Informações que eu ignoro?

- Certamente.

- Nesse caso - observou Mason - lá volta a situação a complicar-se.

- As perguntas que lhe faço são muito simples - exasperou-se Halder - e o senhor está continuamente a fazer rodeios e não lhes responde!

- Não veja os factos sob esse prisma, Mr. Halder! Peço-lhe apenas que se ponha, um só instante, no meu lugar. Responderia a perguntas susceptíveis de comprometer os direitos de herança da sua cliente?

- Eu não posso pôr-me no seu lugar nem tão-pouco aconselhá-lo seja ao que for. Já tenho problemas de sobra.

- Ora, escute - pediu Mason, cujo rosto se iluminou, como se uma solução lhe tivesse surgido.- Pode assegurar-me que, no caso de eu responder a perguntas referentes aos direitos de herança da minha cliente, as minhas respostas não serão usadas, de forma alguma, contra ela?

Halder hesitou:

- Penso que... Não vejo como poderiam as suas respostas ser usadas...

- Está em posição de poder garantir-mo? Pode tomar isso à sua inteira responsabilidade?

- Certamente que não.

- Ora aí está! Era o que eu receava.

O advogado recostou-se novamente na poltrona, fumando pensativamente, como se procurasse uma solução para o problema apresentado.

Halder olhou para o xerife, depois para o adjunto e disse bruscamente:

- Mr. Mason e Miss Street, poderão dispensar-me por alguns instantes? Gostaria de conferenciar com estes senhores, no gabinete contínuo.

Quando a porta de comunicação se fechou atrás deles, Della Street virou-se para Mason, mas este levara rapidamente um dedo aos lábios e desviava os olhos, de forma bem expressiva.

- Estou deveras aborrecido, Della -começou Mason-, por não poder satisfazer os desejos de Mr. Halder, mas francamente, não posso responder sem rodeios enquanto tiver responsabilidades para com uma cliente. Mesmo uma simples resposta - como essa, por exemplo, acerca de a casa ser propriedade de Mrs. Davenport ou do marido - se for dada de espírito leve, pode arrastar-nos a complicações infernais!

- Sim - colaborou Della - e já reparei que o procurador do Distrito tem várias páginas cheias de perguntas.

- Vou fazer o possível para ajudá-lo no seu inquérito, Della, mas não podemos esquecer que temos muito mais coisas a fazer e podemos estagnar aqui, indefinidamente. Espero que eles descubram uma maneira de acelerar tudo isto. Quer um cigarro, Della? - acrescentou, piscando um olho.

- Não, obrigado, patrão - retorquiu ela, imitando-o. Durante um momento, Mason fumou em silêncio e depois, disse:

- Espero que essa conferência não se prolongue demasiadamente. Não só o avião está à nossa espera, mas também temos os assuntos do escritório... - novamente, piscou um olho. - Não, minha pobre amiga, não tente lutar. Compreendo muito bem que esteja morta de cansaço. Deixe-se passar pelas brasas e, mesmo que durma apenas alguns minutos, isso far-lhe-á bem.

- Desculpe, patrão! Sem querer, fechei os olhos...

- Durma à vontade, sou eu que lho digo - continuou o advogado, levando novamente o dedo aos lábios. - Já que temos de esperar...

A rapariga bocejou audivelmente e, em seguida, fingiu dormir, apoiando a cabeça ao encosto da poltrona. Mason continuou a fumar, fitando meditativãmente a ponta incandescente do cigarro. Por fim, a porta de comunicação abriu-se e os três homens reapareceram, seguidos de um quarto personagem.

Halder parecia ter adoptado nova linha de ataque e começou por dirigir-se a Boom:

- Na sua qualidade de oficial da Polícia, Mr. Boom, foi na noite passada à residência de Edward Davenport?

- É a casa que se encontra em Crestviev Drive?

- Não me faça perguntas. Sou eu quem interroga.

- É que eu não sei quem é o proprietário dessa casa... Ah, sim, já sei. A secretária, Mabel Norge, disse-mo.

- Um momento! - interveio Mason. - Sou obrigado a protestar contra essa forma de estabelecer quem é o proprietário da casa.

- Não é isso o que eu pretendo. Procuro, simplesmente, confrontá-lo com certas provas que possuímos.

- Todavia, não deixou de ser posta em causa a atribuição nominal dessa propriedade.

- Seja assim! Não é verdade, Mr. Boom, que, ontem à noite, se dirigiu à casa sita no nº 31 de Crestview Drive?

- Sim.

- A pedido de quem?

- De Mabel Norge.

- Quem é ela?

- Pelo que me foi dito, é a secretária de Ed Daven-port. Em todo o caso, só a vi em Paradise.

- Conheceu Davenport, em vida?

- Sim. Falei com ele em várias ocasiões.

- E foi a essa casa, unicamente a pedido de Mabel Norge?

- Sim.

- Que factos pôde aí verificar?

- Encontrei a porta de entrada aberta, as luzes acesas e Mr. Mason e Miss Street, parecendo estarem ali como em sua casa.

- E depois que aconteceu?

- Conforme indicações de Mabel Norge, procurei um sobrescrito que Mr. Davenport lhe confiara e no qual escrevera destinar-se a ser entregue às autoridades, caso ele viesse a falecer. Encontrei o referido sobrescrito num pequeno cofre e tomei conta dele.

- Tem-no aqui?

- Não. O senhor é que o tem.

- Mas foi você que mo entregou?

- Sim, exactamente.

- Tenho-o aqui na secretária. Se lho mostrasse, seria capaz de reconhecê-lo?

- Sim.

- Porquê?

- Porque escrevi nele a minha assinatura e a data.

- Sabe o que fiz a esse sobrescrito quando mo entregou?

- Fechou-o no cofre.

- E esta manhã tirámo-lo ambos dali?

- Sim.

- Considerámos então ser melhor verificar o seu conteúdo?

- Sim.

- Abrimo-lo?

- Sim.

- E verificámos que continha apenas folhas de papel em branco?

- Exactamente.

- E, depois de termos examinado minuciosamente o sobrescrito, ficámos com a impressão de que este devia já ter sido, anteriormente, aberto?

- Exactamente.

- Por consequência, submetemo-lo ao exame de um perito. Este declarou-nos que esse sobrescrito fora descolado a vapor e novamente colado, menos de vinte e quatro horas antes, não é verdade?

- Efectivamente.

- Pois bem - disse Halder, virando-se para Mason - que tem a dizer?

- Tenho a dizer que o senhor fez essas perguntas de uma maneira muito rápida e que Mr. Boom lhes respondeu sem a menor hesitação.

- Não se trata disso. Tem alguma coisa a dizer quanto à exactidão destas declarações?

- Estou convencido de que não são exactas - respondeu Mason. - Um momento, Mr. Boom, não se encolerize! Estou certo de que o senhor as julga exactas.

- Porque não as considera exactas? - inquiriu Halder.

- Por exemplo - disse Mason, virando-se para Boom - o senhor apenas viu Davenport enquanto vivia?

- Sim.

- Por conseguinte, não sabia que morrera?

- Nem sequer neste momento o sei. Disseram-me que morreu.

- Ora, muito bem! - disse Mason, sorrindo. - Isso é que é responder, Mr. Boom: não afirmando nada que não tenha verificado pessoalmente. Outra coisa: o senhor declarou que Mr. Davenport escrevera qualquer coisa no sobrescrito, mas ignora se era a sua caligrafia?

- Disse-mo Mabel Norge.

- Sim, evidentemente, mas também não o sabe, pois não?

- Não.

- Calma! - Interveio Halder.- Eu não trouxe aqui Boom para o sujeitarem a um contra-interrogatório!

- Faço notar apenas a falta de exactidão das suas declarações.

- É o que eu chamo um contra-interrogatório. Mas desafio-o a apontar uma única das suas declarações que não seja verdadeira! O que o senhor pretende é complicar a situação!

- Mr. Halder, considero essa insinuação insultuosa - declarou Mason, com dignidade. - O senhor está muito enganado. Eu apenas procuro esclarecer a situação. Sou eu quem o desafia a apontar qualquer declaração minha tendente a complicar a situação. Vim aqui com o desejo de ajudá-lo, quando podia muito bem tê-lo mandado passear e obrigado a convocar-me a comparecer perante um tribunal... onde me seria perfeitamente possível notar as inexactidões das suas perguntas!

"Em vez disso, porém, fretei um avião à minha custa e fechei o meu escritório numa altura em que estou cheio de trabalho. Expliquei-lhe a minha posição e pedi-lhe que se pusesse, por um instante, no meu lugar. Como homem de Lei que também é, o senhor não pôde indicar-me outra maneira de agir e agora acusa-me de complicar a situação! Isto não me agrada... não me agrada absolutamente nada! Já não me sinto disposto a cooperar consigo e retiro-me...

- Não pode fazê-lo. O senhor acha-se agora no meu condado e não pode partir sem minha autorização.

- Que quer dizer com isso?

- Quer dizer que posso obrigá-lo a... que posso detê-lo!

- Deter-me? Sob que acusação?

- Cumplicidade antes... depois do facto.

- Cumplicidade em quê?

- No assassinato.

- No assassinato de quem?

- Ed Davenport.

- Onde encontra provas de assassinato? O senhor nem sequer dispõe do elemento primordial: um cadáver.

- Pois não! Ainda não descobrimos o cadáver, mas não tardará.

- Ora, deixe-se disso! Acorde, co'os diabos!

- Acorde?

- Sim, abra os olhos e veja se compreende que Ed Davenport saltou por uma janela a fim de fugir com a sua sedutora secretária, Mabel Norge. Onde está Mabel Norge? Descubra-a! Traga-a aqui! Ela acusou-me de ter aberto um sobrescrito. Pois que venha repetir essa acusação na minha frente!

- Eu... Ainda não conseguimos contactar com Miss Norge.

- Esse ainda é capaz de prolongar-se sine die!

- Ela ficou muito transtornada com o que aconteceu.

- Não duvido! - proferiu Mason, encolerizado. - Mas eu sou um advogado e não vou ficar de braços cruzados e consentir que Miss Mabel Norge me acuse de um crime que não pratiquei. Quero ser acareado com ela! O senhor serve-se dessas acusações e não me põe em presença dos meus acusadores.

- Mr. Boom está aqui.

- As declarações de Mr. Boom não passam de referências a acusações de terceira pessoa. Como é do conhecimento geral, o "diz-se" não faz fé!

- Nem todas as acusações se baseiam nas declarações de terceiros...

- Baseiam-se, sim! - cortou Mason, virando-se bruscamente para Boom. - Que motivo lhe apresentou Mabel Norge para justificar a sua presença naquela casa, a tal hora da noite?

- Disse-me que passara por ali, de carro, casualmente.

- E o senhor bem sabe que isso não é possível: Crestview Drive constitui um beco sem saída.

- Miss Norge podia tencionar voltar para trás, em seguida.

- Não se chama isso passar casualmente, e quando, nessa altura, lho observei, ela não encontrou qualquer justificação racional. Não é isto verdade?

- Eu... não me lembro exactamente dos termos...

- Não lhe declarou, ela, já lá ter estado nessa mesma noite?

- Co'os diabos! Ela trabalhava ali e eu supus que...

- ...que ela já lá estivera, meia hora antes de eu chegar?

- O quê? Ela esteve lá, meia hora antes de o senhor chegar? - exclamou Boom.

- Ela não lho disse?

- Não!

Ela não lhe contou ter tirado o sobrescrito do cofre e tê-lo substituído por outro?

- Não, não me fez qualquer declaração a esse respeito. De resto, o senhor estava presente, ouviu bem o que ela declarou.

- Sim, mas depois disso? Quando saiu consigo?

- Não. Não me disse coisa alguma.

- Nem sequer lhe comunicou tencionar passar pelo Banco, esta tarde? Não lhe contou que iria utilizar um cheque em branco, assinado por Ed Davenport, com o fim preconcebido de levantar, na sua totalidade, todo o dinheiro depositado na conta do patrão?

- Não! - articulou Boom, embaraçadamente.- Ela não me contou nada disso. Só o soube mais tarde, no Banco...

- Ora aí está! - exclamou Mason, iradamente, dirigindo-se novamente a Halder. - Por que razão não se ocupa antes do comportamento de indivíduos que pertencem ao seu condado, em vez de permitir que o procurador de Distrito de Fresno lhe dite o que tem a fazer? Não seria mais simples o senhor mesmo regularizar este caso, ocupando-se de pessoas que estão sob a sua jurisdição, do que incomodar um advogado de Los Angeles, unicamente para pedir-lhe que justifique acusações formuladas por uma mulher que fugiu?

- Como diabo soube que a conta de Ed Davenport fora saldada e que Mabel Norge fugiu? - perguntou Halder, confuso.

- Porquê? E por que razão não deveria sabê-lo?

- Esse facto fora considerado secreto. Dei ordens nesse sentido.

- Mas, meu caro Mr. Halder, quase lho poderia ter dito antes, de tal forma isso me parecia evidente, desde o princípio! Contudo, se me foi dado compreender bem, parece que o senhor tinha a intenção de dissimular esse facto?

Halder mordeu os lábios.

- Não queria dar^lhe publicidade.

- Especialmente, não queria que eu fosse informado.

- Se quer levar as coisas por esse lado, sim!

- Muito bem! Nessas condições, nada mais tenho a dizer. Vim aqui para ajudá-lo, mas já lhe dispensei mais de uma hora e parece-me tempo mais do que suficiente. Vou regressar ao meu escritório.

- O senhor não poderá deixar este condado sem que eu o autorize. ;

- Julga isso? Pois bem, tente impedir-me, se quer ver!

- Tenho imensos meios de o fazer...

- Experimente o que melhor lhe aprouver e eu aposto a minha carteira profissional em como amanhã, de manhã, uma lagosta cozida parecerá pálida, ao lado da sua cara!

Perry Mason fez um sinal a Della Street e ambos saíram do gabinete, deixando atrás de si um grupo completamente aturdido.

Mal o advogado saiu do edifício, os jornalistas rodearam-no.

Mason declarou-lhes, sorrindo:

- Estou certo, meus caros senhores, de que o procurador de Distrito está absolutamente disposto a responder a todas as vossas perguntas e, em face das circunstâncias, prefiro que seja ele a fazê-lo.

Mason cruzou o olhar com o repórter do Oroville Mercury e piscou-lhe disfarçadamente um olho. Enquanto os outros se precipitavam no interior da casa, Pete Ingram juntou-se a Mason, que lhe disse:

- Subamos para o seu carro e conduza-nos rapidamente ao aeródromo. Contar-lhe-ei a coisa, no caminho.

Sem hesitar, o jornalista levou-os para o carro e, enquanto desembraiava, inquiriu:

- Que foi que se passou? Pelo que nos foi dado perceber, cá de fora, o encontro começou satisfatoriamente, mas terminou - digamos - num tom deveras azedo.

- Toda a conversa foi registada num gravador de som, muito embora não no-lo tenham dito. Porque não procura antes o procurador de Distrito...

- Seria inútil. Nem confessaria ter gravado a discussão.

- Bem. Nesse caso, deixe-me conduzir. Dessa maneira, poderá fazer-me as perguntas que entender e tomar nota das minhas respostas, visto que - desde já o previno-levantaremos voo, mal cheguemos ao aeródromo!

O jornalista parou o carro e trocou de lugar com o advogado que, seguidamente, lhe resumiu o encontro. Quando chegaram ao aeródromo, Ingram estava de posse de todos os factos essenciais. Mason e Della Street foram dar com o piloto entretido a ouvir rádio.

- O senhor está interessado neste caso de Fresno? - perguntou o piloto. - Afinal, já acharam o cadáver.

- Que cadáver?

- O corpo desse Davenport que foi morto pela mulher.

- Onde foi que o encontraram?

- Enterrado num buraco a duas ou três milhas de Crampton. Pelo menos, pensam que é o corpo de Davenport. Tinha um pijama com pintas vermelhas. Acabaram de descobri-lo. E a notícia foi logo difundida porque estava presente um repórter da rádio.

Mason olhou para Ingram e este sorriu.

- Bom! - disse Mason para o piloto - aqueça depressa os motores, ou melhor, rode com o aparelho até ao fim da pista e aqueça-os lá em baixo. Descole logo que lhe for possível e, se alguém tentar fazê-lo parar, não faça caso. Estão aqui cem dólares suplementares se conseguirmos partir sem obstruções!

Subiram para o aparelho que o piloto conduziu até à extremidade da pista. Aí, fez meia volta e começou a aquecer os motores.

- Isso leva ainda muito tempo? - gritou Mason, para poder ser ouvido.

- Apenas alguns segundos.

- Um automóvel acaba de chegar à pista. Desejaria que descolássemos antes que ele chegasse aqui...

- O.K.! - gritou o piloto.

O avião começou a rodar sobre a pista. O automóvel acelerou, ao mesmo tempo que se ouviu o som de uma sereia.

Nesse momento, o avião descolou e o piloto sorriu, de lado, para Mason.

- Estes motores fazem um tal banzé, que nada mais se pode ouvir, hem?

- Com efeito, assim é!

- Volta para Sacramento?

- Não. Conduza-nos a Fresno e, se puder largar-nos, sem formalidades, de forma que ninguém possa saber, ao certo, onde aterrámos, ficarei encantado!

 

Quando o avião já estava perto das luzes que indicavam Fresno, Mason inquiriu:

- Poderia continuar até Los Angeles?

- Certamente, mas precisarei de meter gasolina.

- Então, aterre em Fresno, como se o fizesse só para isso. Eu desço e, mal tenha enchido o depósito, siga com Miss Street para Los Angeles.

- Entendido.

- Quando chegar a Los Angeles, se lhe for possível evitar os jornalistas e não ser entrevistado, ficar-lhe-ei muito grato. Antes de aterrar, Miss Street pagar-lhe-á os seus honorários por meio de um cheque. Combinado?

- Combinado.

- Procure dormir, Della. Pôr-me-ei em contacto consigo logo que me for possível.

- E Paul?

- Vou telefonar-lhe daqui.

- Quando estará de volta? - perguntou a rapariga, segurando-lhe a mão.

- Talvez amanhã de manhã. Tenho aqui trabalho à minha espera.

Pouco depois da aterragem, Mason dirigiu-se a uma das cabinas telefónicas do aeródromo, de onde ligou para a agência Drake e, alguns minutos mais tarde, ouvia a voz do detective no outro extremo da linha:

- Que diabo está a fazer em Fresno? Não me diga que o caçaram.

- Quem?

- Os chuis de Fresno.

- A que propósito?

- Pensam que você tem o documento deixado por Davenport no sobrescrito, onde apenas encontraram folhas em branco.

- Ora vejam. E onde está Mrs. Davenport?

- Em Fresno, segundo parece.

- Encontraram o corpo?

- Sim.

- Têm a certeza de que seja o de Davenport?

- Absoluta. Estava enterrado numa cova que - pormenor curioso - tinha sido aberta há dois ou três dias, como que a prever o caso.

- Realmente? Como o sabem?

- Uns miúdos que tinham descoberto esse buraco utilizaram-no para brincar "às guerras". Quando deram com ele ocupado, participaram o facto aos pais. O pai de um deles teve a curiosidade de ir dar uma vista de olhos ao local. A terra estava solta. Escavou um pouco e apareceu um pé. Foi então avisar a Polícia e esta acabou por desenterrar Ed Davenport.

- Há quanto tempo morreu?

- Ontem. Ao que parece, o Dr. Renault sempre tinha razão e as autoridades, agora, desfazem-se a apresentar-lhe desculpas.

- E essa testemunha que vira o cadáver fugir pela janela?

- A Polícia desconfia que um cúmplice - o que carregou com o cadáver para dentro do carro - vestira o pijama, a fim de complicar as buscas, no caso de ser visto.

- Que mais?

- Você não se enganou a respeito do nome dado por Davenport e, quanto a isso, creio que levámos dianteira à Polícia. Frank L. Stanton alojara-se no Welchburg Motel em Fresno. Há todas as provas de que seja Davenport. A sinalética corresponde e o número do carro também, mas não bebia. Recebeu uma visita e a conversa prolongou-se até uma hora bastante adiantada da noite, o que levou um casal alojado no bangalô contíguo a protestar.

- Essa visita, foi homem ou mulher?

- Homem, mas pouco mais sabemos. Se tivéssemos perguntado mais pormenores, poderíamos ter alarmado Mrs. Welchburg e tê-la levado a prevnir a Polícia. Preferimos ser prudentes.

- Fizeram bem.

- Outra coisa. Como essa sua amiga Sara Ansel aparecia continuamente na sua sala de espera, Gertie enviou-ma, dizendo-lhe que, se tinha algum recado para si, provavelmente eu poderia dar-lho.

- Que me quer ela?

- Mostra-se muito contrita e declara ter agido impulsivamente, quando perdeu a confiança em Myrna. Agora, diz que está arrependida de tudo quanto disse!

- Infelizmente, antes de sentir-se contrita, foi contar tudo à Polícia, não é verdade?

- Sim, absolutamente tudo. Mas os chuis não a trataram muito bem e foi isso que provocou a reviravolta. Considerou ter condenado Myrna, baseada apenas nas aparências e ficou cheia de remorsos. Quis que você soubesse que pode contar com ela e pede que lhe telefone, mal eu contacte consigo.

- Julga que foi a Polícia quem lhe encomendou o sermão, Paul?

- É possível, mas, nesse caso, representa muito bem. Quer o número do telefone dela?

- Não, co'os diabos! Não quero que a Polícia saiba que estou em Fresno.

- Também pensei isso. Que vai fazer?

- Vou Instalar-me no motel e procurar extorquir algumas informações a Mrs. Welchburg.

- Vai registar-se com nome falso?

- Não. Isso daria a impressão de que me escondo. Mesmo dando o meu nome, terei pelo menos uma folga de vinte minutos antes de a Polícia me vir pescar. Há quanto tempo disse você que esse buraco fora cavado?

- Há três dias, pelo menos, se acreditarmos nos garotos que o utilizavam.

- A coisa está feia! O procurador do Distrito concluirá, daí, que o assassínio foi premeditado.

- Já o concluiu. Declarou à Imprensa nunca ter tratado de um assassínio premeditado com um tão diabólico sangue-frio.

- O.K. Paul. Até depois.

Mason pousou o auscultador no descanso e permaneceu alguns minutos na cabina telefónica, até se certificar de que não fora descoberto. Em seguida, chamou um táxi e dirigiu-se para o Welchburg Motel.

A mulher que se achava sentada no bangalô da gerência aparentava cinquenta anos. As comissuras labiais denotavam bondade, mas o olhar denunciava um espírito inquiridor.

- Bom dia, minha senhora - cumprimentou Mason. - Venho sem bagagens porque não tencionava parar aqui. Trago apenas dinheiro.

- É tudo quanto desejamos. Há dois bangalôs vagos. Pode escolher um deles, mediante cinco dólares por dia.

Mason estendeu-lhe uma nota de cinco dólares, juntamente com um cartão de visita:

- Sou advogado e ando a fazer algumas indagações acerca de um caso de que estou a tratar.

- Ah, sim?

- Estou interessado num certo Frank L. Stanton, que aqui dormiu, há dois dias.

- Com efeito, assim foi. O senhor é a segunda pessoa que pretende informar-se dele. Fez alguma coisa?

- Que eu saiba, não. Mas tenho que entregar-lhe alguns papéis.

- Oh! - exclamou a criatura, subitamente desconfiada. - Divórcio?

Mason abanou a cabeça.

- Não. Não posso fornecer-lhe pormenores, mas trata-se de uma opção respeitante a uma mina. Esta opção termina dentro de dois dias e, se o comprador quisesse renová-la, seria aborrecido não encontrar a tempo Mr. Stanton.

- Compreendo... Passou aqui apenas uma noite, mas deixou a direcção de Los Angeles.

- Conheço-a; porém, não está em casa. Enfim, a opção é válida ainda por dois dias... Em todo o caso, gostaria de encontrar Mr. Stanton quanto antes... Lembra-se bem dele?

- Muito bem, não. Mas sei que, efectivamente, se ocupava em negócios de minas. Tinha com ele duas malas bastante pesadas e disse-me que continham amostras.

- De minério?

- Suponho que sim. Levava também um saco de viagem novo, por estrear, ainda embrulhado em papel. Percebia-se bem que estava vazio, mas as malas, essas estavam cheias, de certeza.

- Disse duas malas? Gostava de saber se estava só, ou ia acompanhado...

- Estava só... disso lembro-me eu perfeitamente. Mas recebeu umas visitas. Às onze e meia, o locatário vizinho - os meus bangalôs são gémeos - telefonou-me a queixar-se de que no bangalô de Mr. Stanton estavam a conversar e que isso não o deixava dormir. Pediu-me que lhes desse uma telefonadela a preveni-los de que tinham vizinhos.

- Porquê, havia alguma discussão no bangalô de Stanton?

- Parece que não. Mas o senhor sabe como é... quando se procura dormir. O ruído monótono do gotejar de uma torneira ou de uma conversa acaba por adquirir maiores proporções e por enervar uma pessoa.

- Isso é verdade! Ignora a que horas ele partiu, na manhã seguinte?

- Sim. Como raramente me deito antes das duas ou três horas da manhã, levanto-me tarde. São as criadas de quarto quem se ocupa dos bangalôs.

- Que respondeu Mr. Stanton, quando a senhora lhe telefonou a comunicar que estava a incomodar os vizinhos?

- Disse-me que a conversa estava no fim. De facto, alguns minutos mais tarde, o carro que estava parado em frente da porta foi-se embora.

- Não reparou na marca desse carro?

- Não. O meu marido consegue dizer, logo à primeira vista, a marca e o ano de um automóvel, mas eu não. Em todo o caso, era um carro vulgar, como há tantos.

- Mr. Stanton não pediu comunicações interurbanas?

- Devo dizer-lhe que não nos agrada que as comunicações interurbanas sejam feitas dos bangalôs. Uma vez por outra, quando conhecemos as pessoas, consentimo-lo, mas, de resto, dizemos aos hóspedes que se sirvam das cabinas públicas. Há duas instaladas no átrio.

Por conseguinte, é possível que Mr. Stanton as tenha utilizado, mas estou certa de que não pediu qualquer chamada interurbana do bangalô, pois, nesse caso, teria sido incluída na conta.

- Pois bem, minha senhora, eu próprio vou utilizar uma dessas cabinas - anunciou Mason, sorrindo.

Fechou-se numa delas, introduziu uma moeda na ranhura do aparelho e pediu ligação para o posto do xerife. A chamada foi atendida pelo adjunto do xerife.

- Daqui fala o advogado Perry Mason. Vim até cá para ter uma conversa com a minha constituinte, Mrs. Edward Davenport, que os senhores encarceraram.

- É... é... Perry Mason?

- Sim.

A voz do adjunto do xerife tornou-se subitamente muito amável:

- E onde se encontra neste momento, Mr. Mason?

- No Welchburg Motel. Vou meter-me num táxi e seguir para aí...

- Não se dê a esse incómodo, Mr. Mason. Deixe-se ficar onde está que nós mandaremos um carro buscá-lo. Espere, não saia...

Seguiram-se cerca de trinta segundos de silêncio, findos os quais a mesma voz prosseguiu:

- Vai já sair um carro, Mr. Mason. Estávamos desejosos de encontrá-lo.

- Ah, sim?

- Sim. Foi a casa de Mr. Davenport, em Paradise, não foi?

- Não.

- Não? - repetiu a voz, incredulamente.

- Não. Fui a casa de Mrs. Davenport e, caso o conteúdo do sobrescrito vos interesse, aconselho-os a interrogar Mabel Norge, secretária de Mr. Davenport. Ainda, no caso de isto vos interessar, ele passou aqui a noite que precedeu a sua morte. Estava cá registado no Welchburg Motel, com o nome de Frank L. Stanton.

- Tem a certeza disso?

- A sinalética corresponde e o número do automóvel é o mesmo.

- Porque nos dá estas informações?

- Por que razão havia de vo-las ocultar?

- Sim, certamente, mas...

- Vem ali um automóvel da Polícia. Suponho que seja o que me enviaram. Pode dizer-se que não perdem tempo!

- Esforçamo-nos sempre por agir depressa, Mr. Mason. Um carro de rádio-patrulha achava-se nessas vizinhanças- procurando precisamente descobrir o sítio onde Mr. Davenport dormira quando esteve em Fresno.

- Pois bem, agrada-me ter podido evitar-lhes buscas inúteis!-disse Mason.

Desligou, no momento preciso em que dois polícias de arcabouço taurino entravam no átrio.

 

Quando Perry Mason penetrou no edifício da Polícia, um homem de estatura elevada e de rosto amável veio ao seu encontro, de mão estendida:

- Perry Mason? - Sim. - Respondeu o advogado, apertando-lhe a mão.

- Sou Talbert Vandling, procurador de Distrito de Fresno. Tenho pressentimento de que vou tratar de um caso em que o terei, a si, do outro lado da barricada.

Mason apreciou o seu interlocutor com um olhar crítico:

- Dá-me a impressão de ser um adversário perigoso.

- Sim, esforço-me por sê-lo - confirmou Vandling. - Agora diga-me lá que história é essa da carta que abriu no condado de Butte?

- Julgam que abri alguma carta?

- É essa a opinião do meu colega de Butte.

- Pois bem, deixe-o com as suas opiniões. O senhor já deve ter aqui bastante que fazer, não acha?

Vandling começou a rir, meneando a cabeça.

- Segundo compreendi, Mrs. Edward Davenport acha-se aqui encarcerada - prosseguiu Mason - e, como é minha constituinte, vim encontrar-me com ela e aconselhá-la.

Vandling deixou de rir.

- Neste caso, há umas coisas que não compreendo, Mason. Acredite que não tenho interesse nenhum em perseguir uma pessoa inocente. Mrs. Davenport pretende sê-lo. Infelizmente, certos factos impedem-me de a acreditar quando declara nada saber do assassínio.

- Não apareceu uma testemunha que afirma ter visto o "cadáver" fugir, em pijama, pela janela?

- Vou ser franco consigo, Mason. Neste ponto, a Polícia cometeu um erro crasso, ao deixar fugir essa testemunha.

- Como foi isso?

- Deu uma morada falsa e, provavelmente, também um nome falso.

- E a Polícia deixou-se enrolar?

- Bem vê, esse homem não estava só e inscrevera-se com a companheira no registo das entradas, declarando-se marido e mulher. A Polícia dali contentou-se em perguntar-lhe o nome e em verificá-lo no registo de entradas, em vez de se preocupar com a licença de condução, número do carro, etc! Esta negligência deve-se ao facto de, naquele momento, não se acreditar num cadáver. Pensava-se ser apenas um doente que, verificando estar fechado, fugira pela janela. Evidentemente que a testemunha em questão não devia estar com a mulher legítima e, ao aperceber-se que corria o risco de ser citada, deu um nome falso e tratou imediatamente de safar-se. O endereço declarado e o número de matrícula do carro, inscritos no registo, não são verdadeiros.

- Como o sabem?

- O proprietário do carro, correspondente a este número, vive no sul, é casado, pai de família e não sai de casa há uma semana. Não pode ser o homem que procuramos e não emprestou o carro a ninguém.

- Esse homem constituía uma testemunha de importância capital para a defesa.

Vandling meneou a cabeça e Mason prosseguiu:

- Se tivesse qualquer utilidade para a acusação, não creio que tivesse podido escapar à Polícia com tanta facilidade.

- Meu caro Mason, se esse homem tivesse constituído uma testemunha de acusação era sinal de que o crime fora estabelecido a partir desse momento e, evidentemente, os inquiridores teriam estado muito mais no âmago dos factos. Dito isto, reconheço que, nas circunstâncias presentes, a Polícia cometeu um erro e pode crer que isso de modo nenhum me alegra. Tal como a situação se apresenta, actualmente, devo acusar Myrna Davenport como implicada na morte do marido e é evidente que não estou interessado em fazê-lo se, realmente, o "cadáver" fugiu pela janela. Mas, se chegarmos a encontrar essa testemunha, tudo quanto ela poderá dizer será que viu um homem em pijama e descalço sair pela janela e fugir ao volante de um automóvel. Um homem cuja sinalética, no conjunto, corresponde à de Ed Davenport.

- Encontraram o corpo?

- Sim. E é indubitavelmente o de Davenport.

- Vestido de que modo?

- Com o famoso pijama de pintas vermelhas. Estava descalço e foi enterrado num fosso, escavado dois ou três dias antes.

- Quer dizer: num buraco previamente aberto?

- Isso é o seu ponto de vista. Na minha opinião, esse fosso foi aberto propositadamente para receber o corpo.

- E de que morreu Davenport?

- Quanto a isso não temos a certeza, mas é muito provável que tenha sido envenenado.

- Com arsénico?

- Com cianeto de potássio. Tadavia, ainda não recebemos os resultados da autópsia.

- Nesse caso, a morte deve ter sido praticamente instantânea.

Vandling aquiesceu com um movimento de cabeça.

- Bombons? - inquiriu o advogado.

- A maioria deles continha arsénico, mas nalguns havia cianeto de potássio. Belo trabalho. Tinham extraído uma parte do licor - provavelmente por meio de uma seringa - para o substituírem por veneno.

- Mas, por que diabo, duas espécies de veneno?

- Isso gostava eu de saber!

- Sobretudo um veneno de acção lenta e outro que podemos classificar como fulminante.

- Oh, sim! Tudo isso me inquieta. Se devo requerer a pena de morte para Mrs. Davenport, quero primeiramente ter a certeza de que é culpada de um assassínio do primeiro grau, preditado e cometido a sangue-frio.

Mason meneou aprovativamente a cabeça.

- Li muitos artigos a seu respeito, Mr. Mason. Sei que é um adversário cheio de recursos e a perspectiva de defrontá-lo, num caso em que eu próprio não conto com muito sólidas bases de apoio, não nos entusiasma.

- E então?

- Então - prosseguiu Vandling voltando a sorrir - por ora, é tudo quanto tenho a dizer-lhe.

- Mas não será possível fazermos uma pequena ideia do modo como as coisas vão correr na audiência?

- Não sou profeta e também não sei ler nas borras de café.

- Contudo, existem certos precedentes que permitem augurar o futuro...

- Certamente que sim. Qualquer de nós sabe que quando o Ministério Público encontra elementos inexplicáveis, nem por isso deixa de conseguir uma condenação. Outras vezes, propõe um acordo.

- Que espécie de acordo?

- Ora! Há acordos de todo o género. Pode, por exemplo, decidir não requerer a pena capital, desde que o defensor admita a culpabilidade. Ou então, pode permitir que o defensor admita tratar-se apenas de um crime do segundo grau. Por vezes, se o defensor se comporta bem, pode chegar até a aceitar a hipótese de homicídio por imprudência.

- E no caso presente? - perguntou Mason.

- No caso presente, não me acho, por ora, à altura de mostrar-me mais preciso.

- Pois bem, julgo que nos compreendemos - declarou Mason.

- Deseja falar com a sua cliente? Mason confirmou.

- Muito bem. Vim cá propositadamente para conhecê-lo e assegurar-lhe que pode contar com todas as facilidades a este respeito. Dou-lhe a minha palavra de que, na sala onde conversar com Mrs. Davenport, não haverá qualquer microfone. O que disserem um ao outro, ficará estritamente entre os dois. Neste condado não somos apologistas do método do terceiro grau e velamos para que os direitos da defesa sejam respeitados.

- Obrigado - proferiu Mason.

-- Mas, se os factos indicarem que a sua constituinte envenenou deliberadamente o marido, requererei a pena de morte.

Mason fez um sinal de cabeça aprovativo.

- E se aqui for declarada inocente - prosseguiu Vandling-o procurador do Distrito de Los Angeles inculpá-la-á do assassínio de Hortense Paxton.

Mason voltou a acenar aprovativamente.

- Pensei ser conveniente informá-lo destas coisas - continuou o procurador do Distrito - sobretudo se tiver necessidade de recorrer à aceitação de culpabilidade por parte de Mrs. Davenport. Neste caso, dado o desaparecimento de uma testemunha de defesa importante, por erro de Polícia, direi ao tribunal que a acusação se satisfaz com a comutação da pena de morte em prisão perpétua.

- Depois do que, será inculpada em Los Angeles do crime de Hortense Paxton - disse Mason - e quando ela se declarar inocente, o Procurador do Distrito dir-lhe-á: "Foi reconhecida culpada do envenenamento de seu marido, no condado de Fresno?" E ela será obrigada a responder: "Sim". Ao ouvir isto, o júri de Los Angeles concluirá que é useira e vezeira no assunto e, sem ligar mais nenhuma ao que poderá ser apresentado a seu favor, atribuir-lhe-á o envenenamento de Hortense Paxton. É a pena de morte!

Vandling coçou o queixo e meneou lentamente a cabeça.

- Sim - concordou, por fim. - Vejo que a sua parte não é menos espinhosa do que a minha.

- É por isso que careço de falar com a minha constituinte. Agradeço ter posto as cartas na mesa, da forma como o fez. No entanto, isso é mais uma prova indicativa de que será um adversário difícil.

A mão de Vandling apertou a de Mason.

- Farei o possível para que assim seja - confirmou e, pouco depois, inquiriu. - E quanto ao que se passou em Paradise? Quanto a esse sobrescrito, que continha folhas de papel em branco e fora descolado ao vapor? Tem alguma declaração a fazer?

Mason abanou negativamente a cabeça.

- É precisamente o que eu pensava. O procurador do Distrito do condado de Butte telefonou-me a prevenir-me de que, possivelmente, você se mostraria loquaz, mas evasivo; que falaria muito, mas não diria nada.

- Muda-se de táctica conforme as pessoas e as circunstâncias. Creio, no entanto, que me seria mais difícil ser loquaz e evasivo consigo.

- Agora vá ter com a sua constituinte, Mr. Mason, e, se precisar de qualquer coisa, não hesite em pedir-ma. Dito isto, boa sorte. Julgo que precisará dela. Talvez até ambos precisemos!

 

Mrs. Davenport esperava Mason numa pequena sala mobilada com uma mesa e algumas poltronas confortáveis, onde apenas um persistente odor a desinfectante evocava a atmosfera da prisão.

Myrna Davenport levantou-se para ir ao encontro do advogado e apoiou-se-lhe ao braço, como se esse contacto lhe transmitisse forças.

- Sinto-me contente por ter vindo - disse na sua voz monótona. - O procurador do Distrito é muito gentil...

- Conversou com ele?

- Sim.

- Que lhe disse?

- Tudo quanto sabia.

- Assinou alguma coisa?

- Não.

- Bem. A partir de amanhã, não torne a abrir a boca; deixe os outros falar.

- E se me fizerem perguntas?

- Mande-os ter comigo. Diga que estou aqui para responder a quantas perguntas fizerem.

- Mas, Mr. Mason, gostaria que este caso ficasse esclarecido...

- Certamente! Quem o não quer? Mas quando for esclarecido, será transferida para Los Angeles onde terá de responder pelo assassínio de Hortense Paxton.

- Não o farão, em qualquer dos casos? Mason abanou a cabeça e prosseguiu:

- Se for reconhecida culpada num dos condados, não se livra da pena de morte no outro. É preferível falar francamente e pôr as cartas na mesa.

Myrna Davenport sentou-se com um movimento brusco, como se as pernas já não pudessem sustentá-la.

- Custa muito?

- O quê?

-A morte por asfixia. Mason olhou-a e respondeu:

- Dizem que é uma morte que não dá o mínimo sofrimento. Respira-se uma baforada de gás e morre-se num segundo.

- Isso já me consola, Mr. Mason. Tinham-me falado num sofrimento atroz, que se sufocava, que se atabafava.

- Quem lho disse? Os polícias?

- Não, uma outra presa.

- Pois bem, evite-a e sobretudo não lhe fale. Não se dê com ninguém. Confie em mim.

- Certamente, Mr. Mason. Tinha tanto medo de que... que o senhor desistisse...

- Isso está fora de questão. Ainda que seja culpada, tem direito a um advogado, para que este vele de forma a que o seu processo decorra legalmente. É essa a minha tarefa.

- Obrigada.

- É culpada do envenenamento de Hortense Paxton?

- Não.

- E do de seu marido?

- Também não.

- Não serão poucas as coisas que terá a explicar-me - disse Mason, sentando-se.

- Bem sei.

- A sua amiga Sara Ansel virou-se contra si.

- Sim, mas já está outra vez do meu lado.

- Como o sabe?

- Telefonou-me.

- Deixaram-na receber uma chamada telefónica? Então, é porque estavam à escuta! - exclamou Mason, aborrecido. - Que lhe disse ela?

- Simplesmente que, como duvidara da minha inocência, fora contar à Polícia tudo quanto sabia e até o que não sabia; mas que, depois disso, começara a reflectir e se arrependera do seu procedimento.

- Declarou à Polícia que a viu cavar um buraco no seu jardim para aí esconder venenos.

Myrna Davenport ergueu para Mason um olhar apavorado.

- Ela disse-lhes isso?

O advogado aquiesceu e a mulher voltou a pousar o olhar nas mãos cruzadas sobre a saia.

- Certamente... Ela tinha toda a razão para duvidar de mim...

- Quando seu marido se ausentava, era a senhora quem lhe preparava a bagagem?

- Sim.

- Levava bombons com ele?

- Sim, sempre.

- Era a senhora quem lhos comprava?

- Sim.

- Os que foram encontrados na bagagem de seu marido estavam envenenados.

- Bem sei. Eles disseram-mo.

- Visto que declara não ser culpada, quem poderia tê-lo feito?

- Ignoro-o.

- Disse-me que quando vieram instalar-se em Los Angeles, por altura em que William Delano adoeceu gravemente, seu marido continuava a passar a maior parte do tempo em Paradise, não é verdade?

- Sim.

- Essa instalação em Los Angeles desagradava a seu marido?

- Sim. Dizia-me que era estúpida, que haviam de abusar de mim, de transformar-me em enfermeira e que, por morte do tio William, eu não receberia um chavo.

- Porque dizia ele isso?

- Pensava que tudo seria para Hortense. Mas, mesmo depois da morte de minha prima, continuou a opor-se à minha estada em Los Angeles. Não gostava da tia Sara e estava sempre a dizer-me que ela havia de arranjar-se de modo a ficar com tudo.

- Se a senhora for reconhecida culpada do assassínio de Hortense Paxton, é possível que ela venha a herdar tudo.

- Não assassinei Hortie. Gostava até muito dela.

- Por conseguinte, praticamente, seu marido não habitou a casa de Los Angeles, não é assim?

- Até meu tio morrer, não; mas depois, sim. Simplesmente, como os seus negócios eram em Paradise, continuou a ter lá a sua verdadeira pousada.

- Da última vez que partiu, que lhe meteu na mala?

- Poucas coisas, pois a maior parte do seu vestuário achava-se em Paradise. Meti apenas algumas camisas, peúgas, um pijama...

- Lembra-se desse pijama?

- Sim, era branco com desenhos vermelhos.

- Que género de desenhos?

- Qualquer coisa como flores-de-lis.

- Quando descobriram o cadáver, não lhe mostraram o pijama com que estava vestido?

- Não.

- Não lhe pediram que visse o corpo?

- Não.

- Ainda o farão, provavelmente. Tem de preparar-se para essa prova. Acha-se capaz de aguentar o golpe?

- Oh, sim, certamente.

- Porque está tão certa disso?

- Porque não sou muito emotiva.

- Com efeito, já dei por isso! Meteu uma caixa com bombons na mala de seu marido?

- Sim.

- Onde a comprara?

- Numa confeitaria. Comprei duas e deixei a outra numa gaveta da cómoda.

- Abriu alguma dessas caixas?

- Não.

- Tem a certeza?

- Tenho, sim. Retirei apenas o papel de embrulho, mas as caixas estavam envolvidas por celofane e neste não toquei.

- Então, está certa de que não poderão encontrar as suas impressões digitais em nenhum dos bombons?

- Evidentemente!

- Esses bombons foram envenenados. Recorreram a duas espécies de veneno.

- Sim, a Polícia disse-me isso.

- Ora, é muito difícil manipular chocolates sem deixar neles impressões digitais. Certamente encontrarão algumas.

- Tanto melhor! Não serão minhas.

- Posso confiar?

- Absolutamente. Dou-lhe a minha palavra de honra.

- Quantas malas levava seu marido, quando partiu?

- Só uma.

- Que género de mala?

- Uma mala grande, vulgar.

- Seu marido comprou um saco de viagem, antes de chegar a Fresno.

- Não compreendo realmente porque o teria feito.

- E tinha duas malas com ele.

- Sim? Isso surpreende-me. Como quase todos os seus interesses se achavam em Fresno, levava sempre muito pouca coisa...

- Quando partiu de Paradise, ficou lá alguma mala?

- Não, creio que não. Devemos ter levado todas para Los Angeles e ainda lá estão.

- Quantas são?

- Quatro ou cinco.

- Sabe se, por vezes, seu marido transportava amostras de minerais nas malas?

- Não, mas é possível.

- Sabia se ele tinha de encontrar-se com alguém no decurso desse deslocamento?

- Dissera-me simplesmente que estava prestes a vender uma mina e que, se fechasse negócio, tiraria um belo lucro. Nada mais.

- Seu marido não lhe telefonou de Paradise para dar-lhe mais pormenores?

- Não.

- Mas telefonou-lhe de Paradise?

- Sim, uma vez. Era domingo. Avisou-me de que partia e que chegaria a casa na segunda-feira à noite, isto é, ontem.

- Só lhe telefonou dessa vez?

- Sim.

- E há quanto tempo estava ausente?

- Há dez dias.

- Por que razão não lhe telefonava mais vezes?

- Creio que era por causa da tia Sara. Desconfiava que ela escutava as nossas conversas pelo outro aparelho. Antes, telefonava-me mais vezes, mas depois meteu-se-lhe na cabeça que alguém nos escutava e, desde então, as suas chamadas foram sempre raras e breves. Não gostava da tia Sara.

- E ela pagava-lhe na mesma moeda?

- Sim.

- A senhora não estava muito ao corrente dos negócios de seu marido?

- Oh, não!

- Onde deveria realizar-se essa transacção de que ele lhe tinha falado?

- Para esses lados, pelo que julguei compreender... em Fresno ou Modesto, um lugar assim.

- Sabia se tinha de encontrar-se com alguém em San Bernardino?

- Não. Nem sequer devia por lá passar, pois dissera-me pelo telefone que tencionava voltar directamente para casa.

- É capaz de descrever-me a mala que lhe preparou e que ele levou?

- Era uma mala de couro castanho escuro com as suas iniciais em ouro.

Mason levantou-se, arredando a poltrona.

- Aonde vai? - perguntou Myrna Davenport.

- Informar-me noutra parte, pois desse modo saberei certamente mais coisas do que por seu intermédio. A senhora não me diz nada.

- Porque nada sei.

- Esperemos que o júri acredite nisso!

 

Mason conseguiu apanhar o comboio da noite e chegou ao escritório às onze horas da manhã seguinte.

- Então, patrão? - perguntou Della Street, que estava ocupada em examinar cuidadosamente uma carta. - Correu-lhe tudo bem?

- Sim. O procurador do Distrito de Fresno parece ser um tipo catita, mas vai dar-nos certamente que fazer. Que há nessa carta que parecia intrigá-la tanto?

- É uma carta de um detective de Bakersfield.

- Que quer ele?

- Dinheiro.

Mason pegou na folha de papel e leu:

"Caro Mr. Mason,

Escrevo-lhe esta, na minha máquina portátil, em San Bernardino. Acabo de saber pela rádio que Ed Davenport, de Paradise, morreu, que a mulher foi acusada de tê-lo assassinado e que o senhor a representa. Suponho que seja também o senhor o advogado encarregado da transmissão dos bens. Estava a trabalhar por conta de Ed Davenport, quando tive conhecimento da sua morte.

"Não estou em circunstâncias que me permitam esperar pela regularização do assunto da transmissão para receber o meu dinheiro. E, como Mr. Davenport atribuía uma importância enorme à tarefa que me confiara, talvez lhe interesse e a Mrs. Davenport saber do que se trata.

"Visto que morreu, já não existe qualquer contrato entre mim e ele e por isso envio-lhe o relatório incluso. Se lhe for útil, lembre-se de mim quando precisar dos serviços de um detective particular.

"Junto nota dos meus honorários e despesas, no valor de 225 dólares, por ter vigiado o bangalô nº 13 da Pacific Palisadle Motor Court, em San Bernardino.

"No caso de lhe interessar, conheci Mr. Davenport por ocasião de outro trabalho, relacionado com um negócio de minas e de que me incumbira há uns dois anos. Não voltei a vê-lo desde então, más suponho que o meu nome figura no seu ficheiro.

"Terei um prazer enorme em poder ser-lhe útil.

Cumprimentos cordiais de Jason L Beckmèyer"

- Pois bem - disse Mason-, esta carta veio tirar-nos de um mistério para mergulhar-nos noutro. Por que diabo havia Davenport de querer que um detective vigiasse esse famoso bangalô? Ora, vejamos esse relatório.

- Della estendèu-lhe outra folha dactilografada, concebida nos seguintes termos:

"De acordo com instruções recebidas pelo telefone, no dia onze do corrente, pelas 21 h e 15 m, emanadas de Edward Davenport que me falou de Fresno, comprovando-me a sua identidade, dirigi-me a San Bernardino, na noite do dia 12, para vigiar o bangalô nº 13 da Pacific Palisadie Motor Court. Cheguei ali pouco depois da meia-noite e, a partir dessa hora, foi impossível a qualquer pessoa entrar ou sair do bangalô sem eu dar por isso. As dez e meia da manhã seguinte, uma criada de quarto entrou no bangalô, servindo-se de uma gazua, depois de previamente ter batido à porta. Levava consigo um par de lençóis e toalhas lavados.

"Fui imediatamente bater a porta que ela deixara entreaberta, dizendo querer falar à criada de quarto que acabara de tratar do bangalô nº 10. Como anteriormente a vira sair dali, sabia que era a mesma.

"Mostrou-se perturbada e perguntou-me o que queria.

Contei-lhe que era polícia, sem mais qualquer pormenor, e pedi-lhe que me dissesse em que estado encontrara o bangalô nº 10, quantas pessoas o tinham ocupado e se ficara com a impressão de que essas pessoas tomavam estupefacientes ou se se entregavam a esse tráfico. Acreditou na história e pôs-se imediatamente a falar com loquacidade. Aproveitei-me disso para examinar o interior do bangalô nº 13. Não fora ocupado durante a noite. Procurando informar-me discretamente, soube que fora reservado, na véspera à noite, pelo telefone e o montante do aluguer enviado telegraficamente. A criada de quarto ignorava o nome do locatário.

"Depois de ter recomendado à rapariga que não falasse de mim a quem quer que fosse, voltei para o carro e continuei de vigia, sem qualquer outro resultado. Como Mr. Davenport se mostrara certo de que esse bangalô estaria ocupado na noite de 12 para 13, eu devia comunicar-lhe telefonicamente o meu relatório, na manhã do dia 13, mas o facto de o bangalô poder estar desocupado, não fora previsto. Para não correr qualquer risco, decidi continuar de vigia até à uma hora da manhã. Como a prudência me aconselhara a prover-me com uma garrafa-termo de café e sanduíches, nem sequer tive de sair dali para comer. Cerca das seis da tarde, quando estava a ouvir rádio, soube que Ed Davenport morrera na véspera, que a viúva estava sob suspeita de tê-lo assassinado e que Perry Mason era o advogado.

"Dirigi-me então à estação dos correios de San Bernardino, onde reclamei não terem entregue um vale telegráfico, por mim endereçado à Pacific Palisades Motor Court, com o fim de reservar um bangalô. A empregada consultou o registo e perguntou-me se o meu nome era Stanton. Respondi-lhe afirmativamente e mostrou-se então o recibo de entrega de um telegrama expedido por Frank L Stanton, de Fresno. Desculpei-me e fui-me embora.

"Tenho a certeza de que o bangalô nº 13 não foi ocupado na noite de 12 para 13. Segundo as indicações dadas pela criada de quarto, se em qualquer altura, depois das 16 horas, tivesse estado ocupado, não o teriam arrumado antes da manhã do dia seguinte.

Jason L Beckmeyer"

- Isso concorda com as informações dadas por Paul Drake - observou Della Street.

Mason aquiesceu, dizendo:

- Mas por que diabo Ed Davenport estaria tão desejoso de saber quem ocuparia um bangalô que ele próprio reservara por telefone?

- Talvez fosse uma armadilha preparada a alguém - Sugeriu Della. - Talvez alguém de cuja lealdade duvidasse.

- Mas quem?

- Isso é mais um assunto para Paul Drake desvendar.

- Tem razão, Della.

- Esse Beckmeyer parece absolutamente disposto a colaborar nas buscas e não menos desejoso que lhe paguem. Envie-lhe um cheque, que o deixará devedor para connosco, dizendo-lhe ser possível que ulteriormente necessitemos dos seus serviços. Assine a carta como se a ideia fosse sua.

Della aquiesceu.

- Há mais alguma coisa no correio?

- Nada de importante.

- Então, telefone a Drake e peça-lhe que venha aqui imediatamente, se puder.

Passados alguns minutos, o detective entrava no gabinete de Mason e este mostrava-lhe o relatório de Beckmeyer.

Quando Drake terminou a leitura, o advogado inquiriu:

- Que pensa disto?

- Palavra, Perry, que não percebo nada! É espantoso! Tem a certeza absoluta de que Frank L. Stanton e Ed Davenport sejam a mesma pessoa?

- Não tenho a certeza absoluta, apenas uma certeza relativa. A sinalética condiz e tanto o carro de um como o do outro tinham o mesmo número de matrícula. Mas será melhor mandar examinar o registo do motel por um perito de caligrafia.

- Você instalou-se mesmo nesse motel, em Fresno?

- Sim. Stanton chegara lá na véspera, ao começo da noite, carregado com duas malas pesadas. Andava a tratar de um negócio de minas e as malas continham provavelmente amostras de minério. Comprara também um saco de viagem que ainda estava embrulhado quando chegou ao motel e que devia estar vazio.

- Que é feito dessas malas? - informou-se Drake.

- Se estavam no carro ou no bangalô de Crampton, nada sei, pois os inquiridores nada disseram a esse respeito.

- Julga que alguém lhes possa ter deitado a mão?

- Não sei. Parece que Davenport fora aliviado da carteira, enquanto se encontrava em Fresno. Se isso é exacto, a mesma pessoa pode ter-se apropriado das malas, que eram susceptíveis de conter minério precioso. Contudo, ainda que se trate de amostras minerais, o seu valor não merece o risco a que essa pessoa se expôs.

-- A menos que essas amostras possam apoiar uma acção qualquer, relacionada com a mina donde provêm, não acha?

- Talvez... - respondeu Mason, sem grande convicção. Depois relatou ao detective a conversa que tivera com o procurador do Distrito de Fresno e fez-lhe notar a situação crítica em que se encontrava Myrna Davenport.- Ora aí tem - concluiu - por que razão precisamos de descobrir o maior número possível de factos e, se for possível, antes da Polícia.

- Isso é pedir muito, pois a Polícia oficial dispõe de todos os poderes e conhece todas as manhas do Ofício -disse Drake, meneando a cabeça.

- Pois sim, mas naturalmente ignora a importância que a pista Stanton pode ter. Uma coisa é certa: Davenport tinha em mãos um negócio em que depositava muitas esperanças. Provável mente, a mulher não estava a par de nada. Ora, na noite do dia 12, quando Della e eu nos achávamos no seu escritório, o telefone tocou. Della pegou no auscultador e ouviu imediatamente um homem dizer: "Pacific Palisades Motor Court, San Ber-nardino, Bangalô nº 13" e depois desligar.

- Foi tudo quanto disseram?

- Apenas isso.

- Confirma-se, portanto, que o bangalô deveria ser utilizado para algo muito importante. Mas por que razão Davenport o alugou e o mandou vigiar se fazia tenção de ele próprio o ocupar?

- A mulher está convencida de que ele não contava passar por San Bernardino, mas sim regressar a casa por um caminho directo.

- Não nos podemos fiar no que Myrna Davenport diz. Suponha que ela é culpada...

- Sim, evidentemente. Mas depois reflecti numa coisa: esse tipo de Bakersfield não procurou saber se estava realmente a falar com Mabel Norge. Mal ouviu a voz de Della, deu-lhe o recado. Se tivesse sido Davenport, teria dado pela diferença de voz ou então dito mais alguma coisa, para certificar-se da identidade do seu interlocutor. De resto, sabemos agora que Ed Davenport já se achava morto no momento em que fizeram o telefonema. Por outro lado, se se tratasse de alguém encarregado de transmitir esse recado, a primeira coisa que teria a fazer era assegurar-se da identidade da pessoa a quem o transmitia. Ora, não fez nada disso.

- Por que razão não o fez?

- Vejo apenas uma explicação: esse tipo não fazia a menor ideia de quem poderia atender o telefone. Não conhecia Mabel Norge, nem a sua voz. Telefonou simplesmente para transmitir o recado e, mal o fez, desligou imediatamente, sem se preocupar com mais nada.

Drake considerou por momentos a argumentação de Mason e acabou por menear aprovativamente a cabeça.

- Isso significa - concluiu - que concentrará agora a sua atenção em Sara Ansel, pois, no fim de contas, a morte de Hortense Paxton tornou-a herdeira de uma soma bastante substancial.

- Não há dúvida, mas ela não podia ter a certeza de que Delano modificaria completamente o seu testamento e a incluiria no número dos seus beneficiários.

- Por ora, não nos parece que ela pudesse ter essa certeza, mas é possível que venhamos a descobrir alguma coisa que nos prove o contrário.

- Se ela percebe que estamos interessados nela, é muito capaz de nos enrolar, Perry...

- Ora, de qualquer maneira, acabaria por consegui-lo... Mãos à obra, Paul, e não hesite em ocupar, neste caso, quantos homens forem necessários. A audiência preliminar realiza-se amanhã de manhã.

- Não está a deixá-los precipitar muito os acontecimentos?

- Pelo contrário: sou eu quem os precipita, pois quero fazer algumas perguntas antes que o procurador do Distrito saiba responder-lhes.

 

Não restava dúvida de que, se Talbert Vandling cometesse um erro, esse não seria o de não apreciar devidamente Perry Mason. Cortesmente, mas com prudência, expôs o caso como se já estivesse perante um júri e não apenas numa audiência preliminar.

- A minha primeira testemunha - declarou - será George Medford.

George Medford tinha nove anos. Fora ele que com o camarada Jimmy Eaton descobrira o famoso buraco.

- Quando foi isso, George? - perguntou-lhe Vandling.

- Na sexta-feira, por volta das quatro horas, senhor.

- Iam muitas vezes para aquele sítio?

- Sim, senhor, porque os nossos pais não queriam que andássemos de bicicleta nas estradas por causa dos automóveis e também por ali ser um sítio sossegado.

- Há quanto tempo iam para aqueles lados? - Pouco depois de termos as bicicletas. Vai fazer seis meses.

- Tinham lá ido na véspera, na quinta-feira?

- Não, senhor.

- E na antevéspera, na quarta-feira?

- Sim, senhor.

- O buraco já lá estava?

- Não, senhor. Foi na sexta-feira que o vimos pela primeira vez. Antes disso, não estava lá.

- Como era o buraco?

- Oh, era um buraco estupendo, senhor. Sobre o comprido e com o fundo plano. Era um buraco onde uma pessoa crescida podia deitar-se à vontade.

- Era profundo?

George levantou-se e levou a mão à altura do estômago.

- A mim dava-me por aqui.

- Onde estava a terra que tinham tirado para fora?

- Estava à beira do buraco, senhor, de cada lado.

- Voltaram lá no dia seguinte, no sábado, com Jimmy?

- Sim, senhor, e fartámo-nos de brincar no buraco. Deitámo-nos lá dentro e os pássaros, como não nos viam, aproximavam-se muito pertinho... Oh, era estupendo!

- E, no domingo, voltaram a brincar nesse sítio?

- Não, senhor. E, na segunda-feira, também não. Só na terça.

- Na última terça-feira, no dia 13?

- Sim, senhor.

- E que fizeram vocês?

- Como o buraco já estava cheio de terra, brincámos como dantes e depois voltámos para casa.

- Mas tornaram a lá ir?

- Sim, senhor, com o paizinho e Jimmy.

- O teu pai é o senhor Martin Medford, aqui presente?

- Sim, senhor.

- Muito bem, é tudo, George - disse Vandling.

- Por ora, não tenho perguntas a fazer - declarou Mason--mas gostaria que me fosse concedido poder voltar a chamar certas testemunhas, se isso parecer de utilidade para a defesa.

- A acusação não opõe qualquer objecção, Senhor Doutor Juiz. Sinto-me tão desejoso como o meu eminente colega de ver este assunto totalmente esclarecido.

O juiz Siler, que presidia à audiência, declarou:

- Fica pois estipulado que a defesa terá possibilidade de voltar a chamar certas testemunhas.

- A minha testemunha seguinte - anunciou Vand-ling - será Martin Medford.

Martin Medford declarou que no dia 13, ao regressar a casa para jantar, o filho lhe contara que o buraco onde brincava com Jimmy estava tapado. Aquilo parecera^lhe curioso e, pegando numa enxada, resolvera ir com os dois garotos ver o local onde se achava a cova. Notara aí a terra solta e, levado pela curiosidade, começara a cavar. A cerca de sessenta centímetros de profundidade, a enxada topara com um obstáculo e, depois de afastar a terra com a mão, verificara tratar-se da perna de um homem. Deixara imediatamente de cavar e correra a telefonar ao xerife.

- Contra-interrogatório - disse Vandling.

- Voltou ao local na companhia do xerife? - perguntou Mason.

- Sim.

- E estava presente quando desenterraram o corpo?

- Sim, cheguei até a ajudar a desenterrá-lo.

- O cadáver estava nu?

- Não, tinha um pijama vestido.

- Apenas um pijama?

- Sim.

- É tudo - declarou Mason. - Obrigado.

O xerife contou como procedera para desenterrar o corpo e transferi-lo para a morgue. Como o chão nesse local era bastante firme, fora possível determinar as dimensões exactas do buraco, embora tivesse sido tapado e nivelado, depois de enterrado o cadáver. Tinha um metro de largura por dois metros de comprido. Em resposta a uma pergunta feita por Vandling, o xerife declarou que tinha tentado colher impressões de pegadas mas que isso fora impossível porque as crianças e Martin Medford tinham calcado demasiado o terreno.

- Contra-interrogatório.

- Por ora, não tenho perguntas a fazer - declarou Mason.

- Quero fazer notar - interveio Vandling- que se a defesa foi autorizada a chamar posteriormente certas testemunhas, poderá retardar sistematicamente todos os seus contra-interrogatórios.

- Posso assegurar ao meu eminente colega que a defesa nunca teve a intenção de abusar da sua cortesia - replicou Mason - e que só voltará a chamar testemunhas, quando isso for necessário.

- Obrigado - agradeceu Vandling. - É tudo, xerife. A testemunha seguinte foi o Dr. Milton Hoxie, médico-cirurgião e toxicólogo, como ele próprio declarou. Fora chamado à morgue, na noite do dia 13, para autopsiar o cadáver de um homem de um metro e oitenta de altura, com o peso de setenta quilos e com cerca de trinta e cinco anos, sofrendo de artério-esclerose, mas que aparentemente morrera envenenado. Procedendo a certos testes, conseguira descobrir a presença de um veneno no organismo: cianeto de potássio. No momento da autópsia, a morte devia datar de vinte e quatro horas, pelo menos, mas não mais que trinta e seis horas.

- Contra-interrogatório! - proferiu bruscamente Vandling.

- Descobriu no organismo unicamente a presença de cianeto de potássio? Não encontrou outros venenos?

- Sim, encontrei também arsénico, mas em quantidade tão ínfima que não merece ser mencionado.

- Além do cianeto e do arsénico, não verificou a presença de mais qualquer veneno?

- Não, senhor.

- Procedeu-se ao levantamento das vísceras?

- Sim, senhor. Foram expedidas para o laboratório da Universidade da Califórnia para aí serem analisadas.

- A Universidade já enviou o seu relatório?

- Que eu saiba, não.

- Então, ainda não sabe se a causa da morte foi o veneno que o senhor descobriu, não é verdade?

- Sei apenas que encontrei no cadáver cianeto de potássio em quantidade suficiente para provocar a morte.

- Por que motivo enviou as vísceras à Universidade da Califórnia?

- Porque achei preferível submetê-las a uma análise mais completa, a fim de saber se conteriam ou não outros venenos.

- Então não tinha a certeza de que o cianeto de potássio tivesse causado a morte?

- Sim, mas queria certificar-me de que a vítima não teria sido obrigada a absorver "gotas K. O.", como vulgarmente se lhes chama, ou qualquer outro barbitúrico que a tivesse tornado inconsciente e, consequentemente, permitido ministrar-lhe o veneno com maior facilidade.

Mason ficou pensativo, e de sobrolho franzido.

- Continue - incitou o juiz Si ler. - Um momento, Senhor Doutor Juiz. O que acabei de ouvir parece-me abrir novas perspectivas ao caso presente.

- Não vejo como - retorquiu o juiz.

- Senhor Doutor Juiz: em princípio, o gabinete do xerife devia ter elaborado uma teoria quanto ao modo como o veneno fora ministrado. E algo, nas verificações realizadas pelo Dr. Hoxie, não condizia com essa teoria.

- Ah! - exclamou o juiz. - Não reparara nisso. Faça o favor de continuar.

- Obrigado, Senhor Doutor Juiz. Procurou averiguar se o estômago da vítima continha chocolate, doutor?

- Sim. Entreguei-me, de resto, a uma verificação minuciosa do conteúdo do estômago.

- Pode declarar o que encontrou?

- Verifiquei que esse homem morrera cerca de uma hora depois de ter ingerido ovos com presunto. Mas o estômago conservava apenas vestígios de chocolate.

- Verificou a percentagem de álcool existente no sangue?

- Sim. O sangue do morto continha 0,1 1/2 por cento de álcool.

- Pode explicar-nos, precisamente, o que isso significa, doutor?

- Considera-se normal a existência de 0,1 por cento de álcool no sangue. A intoxicação começa a 0,2 por cento. A 0,3 por cento, o andar torna-se cambaleante e a fala imprecisa. A 0,4 por cento, cai-se num estado de entorpecimento. De 0,5 a 0,6 por cento fica-se completamente embriagado. Para cima de 0,6 por cento, morre-se. Por conseguinte, a 0,1 1/2 por cento, o homem em questão começava a sentir os efeitos do álcool.

- E isso percebia-se?

- Sim. Um médico tê-lo-ia notado imediatamente, porém, uma pessoa desprevenida podia não dar por isso.

- Permita-me, Dr., que lhe faça uma pergunta no campo das hipóteses. Admitindo que esse homem ingeriu cianeto de potássio, ministrado no recheio de bombons semelhantes a esses que foram encontrados numa caixa dentro da bagagem de Mr. Davenport, no motel de Crampton, não se teria verificado uma morte quase imediatamente?

- Pelo menos, extremamente rápida.

- Cada um desses bombons continha cianeto de potássio em quantidade suficiente para causar uma morte extremamente rápida?

- Não todos. Alguns continham arsénico...

- Não procuro estender-lhe uma armadilha, doutor. Pretendo apenas referir-me aos chocolates que continham cianeto.

- Nesse caso, sim, Mr. Mason.

- Portanto, não teria encontrado chocolate no estômago da vítima?

- Sim. Normalmente, deveria tê-lo encontrado.

- E não achou vestígios dele, não é verdade?

- Não.

- O que se pode considerar anormal, caso o veneno tivesse sido ministrado por meio desses bombons?

- Sim, francamente, a menos que a vítima lhes tivesse achado mau gosto, após tê-los mordido, embora a quantidade de veneno ingerido já fosse suficiente para causar-lhe a morte. Suponho que foi isso que deve ter acontecido, mas nada o prova. Por outro lado, não compreendo como poderia o seu corpo conter tanto veneno, se não tivesse ingerido um desses bombons inteiro.

- Quer dizer, portanto, que não sabe como poderia o veneno ter sido ministrado?

- Na verdade, não sei!

- A rigidez cadavérica já se tinha manifestado quando procedeu à autópsia, doutor?

- Nas pernas e nas coxas, sim, mas os ombros e o pescoço estavam ainda flexíveis.

- E a Lividez cadavérica?

- Já estava muito adiantada, sinal de que o corpo não fora deslocado, após a morte... Quero dizer... pode ter sido apenas removido quase imediatamente à morte.

- Segundo creio, a rigidez começa pelo rosto e estende-se depois pelo corpo.

- Exactamente.

- E desaparece da mesma maneira?

- Sim.

- Quanto tempo é necessário para que a rigidez se manifeste?

- Isso varia. Geralmente, entre oito e dez horas, após a morte.

- Portanto, neste caso especial, quando examinou o cadáver, a rigidez tinha-se não só manifestado, mas começava já a desaparecer?

- Certamente.

- No livro Investigação do Homicídio o Dr. Le Moyne Snyder estuda um caso hipotético em que - tal como no presente caso-as coxas e as pernas estão ainda em estado de rigidez. Segundo ele, isso indica que a morte sobreveio entre vinte e nove a trinta e quatro horas antes. Concorda com essa opinião?

- Em princípio, sim.

- A que horas autopsiou o cadáver?

- Por volta da meia-noite do dia seguinte à sua exumação. Tinha muitos doentes a ver, nessa tarde, e não pude despachar-me mais cedo.

- Portanto, grosso modo, esse homem deveria ter morrido na véspera, segunda-feira, dia 12, entre as duas e as sete horas da tarde?

- Sim, se considerarmos válido o exemplo dado pelo Dr. Le Moyne Snyder. Mas a rigidez cadavérica é extremamente variável. Depende de vários factores e especialmente da temperatura ambiente. Vi casos em que um corpo, cuja morte sobreviera após uma luta, entrou em estado de rigidez quase imediatamente e...

- Nada nos indica que houvesse luta no caso presente?

- Nada. Mas torno a frisar que não se pode ser muito categórico em matéria de rigidez cadavérica, pois esta varia praticamente de indivíduo para indivíduo.

- Os sintomas de envenenamento por arsénico são-lhe familiares, doutor?

- Certamente!

- Quais são?

- Geralmente, uma sensação de ardor na boca e na garganta, assim como cãibras abdominais, acompanhadas de náuseas e de vómitos. Durante a maior parte do tempo manifesta-se também diarreia. Em certos casos, os primeiros sintomas podem demorar um pouco, mas ordinariamente manifestam-se, de modo muito rápido, após a ingestão do veneno.

- Obrigado, doutor - agradeceu Mason. - Não tenho mais perguntas a fazer-lhe.

- Queira chamar Harold Fitus- pediu então Vand-ling.

Fitus avançou, prestou juramento e apresentou-se como adjunto do xerife e perito no exame de impressões digitais. Declarou ter colhido as do cadáver exumado pelo xerife e comparado a impressão do polegar com a que figurava na carta de condução de Edward Davenport. As impressões eram idênticas.

- Já anteriormente procedera a um exame dessa natureza, relacionado com o mesmo caso, num motel de Crampton?

- Sim, por volta das três horas e meia da tarde de segunda-feira, dia 12.

- Que averiguou?

- Entregaram-nos a chave de um quarto, onde deveria encontrar-se fechado um cadáver. Mas, quando entrámos, verificámos que a janela fora aberta e o corpo desaparecera. Achámos algumas peças de vestuário masculino, um saco de viagem, uma caixa de bombons e uma carteira, contendo documentos de identidade, tudo indicando claramente que aquele quarto fora ocupado por um homem chamado Edward Davenport.

- Viu nessa ocasião a ré, Myrna Davenport?

- Sim.

- Ela fez-lhe alguma declaração respeitante ao homem que ocupara esse bangalô?

- Sim. Disse-me tratar-se de Edward Davenport, seu marido.

- Referiu-se ao estado de saúde do marido?

- Sim. Disse-me que ao chegar, acompanhada pela amiga Mrs. Ansel, ambas o tinham encontrado moribundo.

- Contou-lhe se Mrs. Ansel e ela própria tinham entrado no quarto do doente?

- Sim, ambas. Mais tarde retirara-se para arranjar-se e, pouco depois, verificou que o estado do marido piorara, bruscamente. Chamaram imediatamente o médico e, quando o doente morreu, aquele achava-se a seu lado. O médico fechara então a porta do quarto à chave, declarando que aquela morte ocorrera em circunstâncias que não lhe permitiam assinar uma certidão de óbito.

- Ela disse-lhe mais alguma coisa?

- Sim, acrescentou que o Dr. Renault parecia considerá-la suspeita de assassínio o que, evidentemente, a indignava.

- Naquele momento, qual foi a sua opinião?

Fitus sorriu:

- Sabíamos que Edward Davenport tinha estado muito embriagado. A seguir, uma testemunha declarou ter visto um homem vestido com o pijama de Davenport fugir pela janela desse bangalô. Concluímos que Davenport estava simplesmente a cair de bêbado e que fora reanimado pela injecção de adrenalina que o Dr. Renault lhe dera. Todavia, devido às instâncias deste último, ficámos com a chave do quarto, enquanto procedemos a um inquérito complementar.

- Informaram a ré ou a sua amiga, Mrs. Ansell, de que deveriam ficar à disposição da Polícia?

- Não, de modo nenhum.

- Foram alvo de uma vigilância especial?

- Nessa altura, não. Mais tarde, sim.

- Porquê?

- A ré dissera-nos que tencionava passar a noite num outro bangalô, onde se instalara com a amiga. Mas, cerca das sete horas da noite, o dono do motel telefonou-nos a dizer que essas senhoras se tinham ido embora. Tornámos a achar-lhes o rasto em Fresno e descobrimos que tinham tomado o avião para San Francisco. Então, telefonámos para lá, ordenando que lhes deitassem a mão quando o avião aterrasse.

- Depois disso, quando voltou a ver a ré?

- No dia 14, por volta das quatro e meia da tarde.

- Onde foi isso?

- No meu gabinete.

- Teve alguma conversa com ela?

- Sim.

- Que lhe disse a ré a respeito da caixa de bombons que o senhor encontrou no bangalô?

- Declarou-me tê-la comprado e metido na mala do marido, pois este levava sempre bombons, por estes o ajudarem a vencer o vício do álcool.

- Ela declarou-lhe ter comprado essa caixa de bombons?

- Sim.

- Perguntou-lhe se a abrira?

- Certamente. Respondeu-me nem sequer ter tirado o invólucro de celofane e ter colocado a caixa, absolutamente como a comprara, na mala do marido.

- Examinou os bombons que ficaram na caixa em questão, para colheita de eventuais impressões digitais?

- Sim e encontrei em dois dos bombons as impressões do polegar e do indicador direitos da ré.

- Fotografou essas impressões digitais?

- Sim, aqui estão as provas fotográficas.

- Queira fazer o favor de mostrá-las ao advogado de defesa; depois pedirei que sejam consideradas elementos de acusação.

- Não faço qualquer objecção - declarou Mason depois de lançar um rápido olhar às fotografias.

- Achava-se presente quando, mais tarde, se procurou averiguar a existência de veneno nesses bombons? - prosseguiu Vandling.

- Sim. Encontrou-se cianeto de potássio em qualquer deles. Pelo menos, foi o que o toxicólogo declarou, na minha presença.

- Os outros bombons foram igualmente analisados?

- Sim. E o toxicólogo disse que todos eles continham arsénico.

- Contra-interrogatório.

Mason levantou-se e inquiriu em tom natural:

- Sabe que o arsénico é um veneno que provoca a morte por um modo, ordinariamente, bastante lento?

- Sim.

- Ao passo que o envenenamento por cianeto de potássio provoca uma morte muito rápida?

- Sim.

- Como oficial da Polícia, não procurou determinar por que razão dois bombons, que continham um veneno de efeito rápido, tinham sido misturados com outros bombons, contendo um veneno de efeito lento?

- Não. Apertei a ré com perguntas a esse respeito, mas limitou-se a repetir-me que não abrira a caixa nem tocara nos bombons.

- Bem, obrigado, é tudo - declarou Mason.

- Que Sara Ansel queira fazer o favor de avançar e de prestar juramento - disse então Vandling.

Mrs. Ansell, que se achava ao fundo da sala, ergueu-se e protestou:

- Não quero servir de testemunha neste caso. Nada sei que possa ser da mínima utilidade à acusação.

A ré é sobrinha da minha irmã e estou certa da sua inocência...

- Minha Senhora - interveio o juiz Si ler-, queira avançar e prestar juramento. Caso contrário, será acusada de ultrage à magistratura! Foi chamada a testemunhar, acha-se presente, não pode recusar-se.

De má vontade, Sara Ansel aproximou-se do assento das testemunhas, prestou juramento, dirigiu um sorriso confortante a Myrna e depois sentou-se, fulminando Vandling com o olhar.

Depois de cumpridas as formalidades habituais, o procurador do Distrito perguntou-lhe:

- Mrs. Ansel, viu o falecido William C. De lano pouco tempo antes da sua morte?

- Sim, cerca de um mês antes.

- Quem vivia com ele nessa altura?

- A sobrinha, Hortense Paxton, Myrna e o marido, e eu própria. Myrna viera para ajudar a tratá-lo.

- E que aconteceu a Hortense Paxton?

- Morreu.

- E depois da sua morte foi William Delano que morreu?

- Sim.

- Com quanto tempo de intervalo?

- Pouco mais de duas semanas.

- E durante esse tempo William Delano esteve gravemente doente?

- Sim.

- E foi durante esse tempo que fez um novo testamento?

- Não sei.

- Mas ele não lhe disse, em presença da ré, que ia fazer um novo testamento?

- De modo preciso, não. Soube apenas que o notário o visitara por causa de um documento importante.

- Nos termos desse novo testamento, a senhora herda uma certa quantia, não é verdade?

- Isso não lhe diz respeito!

- Responda à pergunta - ordenou o juiz.

- Sim! - guinchou Mrs. Ansel, raivosamente.

- Quanto herda?

- Cem mil dólares, mais um quinto da casa.

- Quando encontrou a ré, pela primeira vez?

- Quando vim visitar William Delano.

- Nessa altura, a ré coabitava com ele?

- Não exactamente. Estava lá para ajudar Hortie, mas...

- Quando diz Hortie, refere-se a Hortense Paxton, a sobrinha que morreu?

- Sim.

- Hortense Paxton governava a casa, mandava nos criados e cuidava do tio?

- Sim.

- E fazia tudo isso já havia algum tempo?

- Sim, havia mais de dois anos. William gostava muito dela. Era a sua preferida.

- E foi pouco depois da sua chegada a essa casa que a ré foi habitar sob o tecto de William Delano?

- Não sei dizer, exactamente, se foi antes ou depois da minha chegada, mas, em todo o caso, foi pouco mais ou menos por essa altura que Myrna e Ed foram instalar-se nessa casa.

- Mas Mr. Davenport adaptou a escritório o seu domicílio de Paradise?

- Sim.

- No princípio da sua estada, Ed Davenport vivia, aí, com a mulher?

- Sim.

- Mas pouco depois da sua chegada, Mr. Davenport começou a frequentar, com períodos cada vez mais prolongados, a casa de Paradise, não é verdade?

- Não sei aonde quer chegar, mas não esconderei que Mr. Davenport e eu não nos entendíamos de forma alguma. Eu era o mais possível amável para com ele, mas Ed convencera-se de que eu instigava a mulher contra ele. Na verdade, eu tentava apenas que Myrna se apercebesse do que se passava.

- E que se passava?

- Sempre que tinha oportunidade de pôr a mão no dinheiro de Myrna, Ed especulava com ele, misturando-o de tal forma nos seus negócios que ninguém podia saber, depois, o que lhe tinha feito. Se alguém lhe falasse das minas ou lhe perguntasse a quanto se elevava o montante da fortuna de Myrna, encolerizava-se e punha-se a andar. Nunca consegui que respondesse francamente. Eu sabia, porém, o que ele fazia e ele sabia que eu sabia - concluiu Sara Ansel, fitando Vand-ling com um olhar agressivo.

-A senhora sabia o que ele fazia?

-Exactamente! Não nasci ontem!

- E ele sabia que a senhora sabia?

-Certamente! Eu não guardava segredo! Fazia-lhe perguntas precisas que não deixavam dúvidas a esse respeito.

- Fazia-lhas, em frente da esposa?

- Evidentemente, pois queria que Myrna abrisse os olhos.

- Depois, aconselhou a ré a consultar um advo- gado?

-Sim.

- E que mais lhe aconselhou?

-A contratar detectives particulares, para que seguissem o marido. Ele tratava esta desgraçada como a uma criada, obrigando-a a fazer-lhe a mala quando se dispunha a andar uns dias na paródia, pretextando ir tratar de negócios de minas. Nunca dizia qual. Era mais seguro!

-Tinha, portanto, várias?

- Sim. Quando se apossou do dinheiro de Myrna, pôde alargar o seu campo de acção. Depois da morte de Delano conseguiu empréstimos, a coberto da herança que caberia à mulher, e começou a comprar e revender continuamente, de forma que já ninguém sabia a quantas andava!

- Não dava qualquer explicação à mulher, sobre as transacções feitas?

- Está claro que não! Convencera-a a depositar todo o dinheiro numa conta-corrente comum, de onde ela só tirava o necessário para as despesas da casa e para algum vestido.

- E a senhora acautelou Mrs. Davenport contra o procedimento do marido?

- Certamente!

- De modo que Myrna Davenport tinha todos os motivos e mais um para detestar o marido e desejar o seu desaparecimento, não é verdade?

- Aonde quer chegar? Nunca!

- Limito-me apenas a resumir o que acaba de dizer-me. Advertiu Mrs. Davenport de que o marido se apropriava do dinheiro da comunidade?

- Sim.

- E que a atraiçoava com outras mulheres?

- Sim, disse-lhe que estava quase certa de que ele a enganava.

- Bem. Há cerca de dez dias, Edward Davenport anunciou que ia ao escritório de Paradise e pediu à mulher que lhe arranjasse a mala, não foi?

- Sim.

- Falaram de bombons?

- Sim. Pediu à Myrna que os comprasse, pois, na outra caixa, só tinha um ou dois.

- Achava-se presente quando Mrs. Davenport comprou esses bombons ou quando os meteu na mala do marido?

- Não, mas soube posteriormente que ela comprara duas caixas.

- Uma das quais introduziu na mala?

- Creio que sim, mas não a vi fazê-lo.

- Sabia que Mrs. Davenport estava na posse de venenos?

- Myrna entretinha-se muito com jardinagem e ela própria preparava, por meio de receitas, insecticidas ou outras drogas do mesmo género.

- Com arsénico e cianeto de potássio?

- Isso, ignoro-o.

- Acaso falou alguma vez com ela a respeito de venenos?

- Sim. Contou-me ter certos preparados para destruir parasitas e ervas daninhas.

- Entre os quais arsénico e cianeto de potássio?

- Senhor Doutor Juiz - interveio Mason - isto afigura-se-me uma tentativa de intimidação da testemunha, o que prejudica o contra-interrogatório.

- Esta testemunha é hostil - declarou Vandling.

- Isso é evidente - disse o juiz Siler. - Objecção não atendida.

- Myrna Davenport declarou-lhe ter arsénico e cianeto de potássio na sua posse?

- Sim.

- Disse-lhe ter procurado fazer desaparecer esses venenos para que a Polícia não pudesse encontrá-los?

Silêncio.

- Responda à pergunta - insistiu Vandling.

- Sim - confessou Sara Ansel. - Não queria que a Polícia julgasse...

- Viu-a cavar um buraco e aí esconder os venenos?

- Vi-a cavar um buraco e enterrar qualquer coisa mas ignoro o que fosse.

- Mrs. Davenport não lhe declarou ter escondido venenos nesse buraco?

- Sim.

- Agora, peço-lhe que recorde o que se passou na segunda-feira, dia 12. Achava-se com Mrs. Davenport, na casa do falecido William Delano, e, pelas nove horas da manhã, recebeu uma chamada telefónica de um médico de Crampton, um certo Dr. Herkimer C. Renault?

- Sim.

- Foi a senhora que recebeu a chamada ou Mrs. Davenport?

-Fui eu.

- E que lhe disse esse Dr. Renault?

- Perguntou por Myrna. Respondi-lhe que era sua tia e que receberia o recado no caso de ter algum a dar-lhe. Declarou-me então que Ed Davenport estava num motel de Crampton e que se achava gravemente doente. Como Ed tinha a tensão alta e sofria de um endurecimento das artérias, o médico aconselhava Myrna a ir ter com ele, urgentemente...

- É inútil prendermo-nos com pormenores. Seguidamente a essa chamada telefónica - prosseguiu Vandling - Mrs. Davenport e a senhora fizeram as malas e reservaram dois bilhetes a bordo de um avião que devia deixá-las em Fresno, pouco depois do meio-dia. Meteram-se as duas num táxi e, durante o caminho, convenceu Mrs. Davenport a consultar um advogado. Seguiram então para o escritório de Perry Mason?

- Sim.

- Souberam pouco tempo antes que Mr. Davenport deixara uma carta que devia ser entregue às autoridades, no caso de vir a morrer?

- Sim, ele acusara Myrna de... enfim, de uma quantidade de coisas e anunciara-lhe que, se lhe acontecesse qualquer coisa, as autoridades receberiam imediatamente uma certa carta.

- Foi procurar Perry Mason na companhia de Mrs. Davenport e ficou então decidido que Mr. Mason iria a Paradise buscar essa carta, para impedir que caísse nas mãos da Polícia no caso de Mr. Davenport morrer? É exacto, não é verdade?

- Senhor Doutor Juiz - disse Mason, levantando-se- sou obrigado a intervir, pois esta parte do caso constitui uma conversa confidencial entre a cliente e o advogado.

- A senhora não pediu a Mr. Mason que a ajudasse? - inquiriu Vandling, apontando o dedo para Sara Ansel.

- Eu? Evidentemente que não! Que necessidade tinha eu de um advogado?

- Mas Mrs. Davenport apelou para ele?

- Sim.

- E a senhora disse a Mr. Mason o que ele devia fazer, não é verdade?

- Sim, Myrna estava muito transtornada com...

- Disse a Mr. Mason o que ele devia fazer, não é verdade?

- Sim, é possível que lhe tenha explicado certas coisas.

- E assistiu a toda a conversa?

- Sim.

- Faça-nos um resumo dessa conversa.

- Protesto! - exclamou Mason. - Uma conversa dessa natureza está ao abrigo do segredo profissional.

- Mas não quando teve lugar na presença de terceiros- disse Vandling.

- Essa pergunta - interveio o juiz Siler - respeita às instruções dadas a Mr. Mason na qualidade de cliente desse advogado?

- Sim, Senhor Doutor Juiz, na presença de uma terceira pessoa, Sara Ansel.

- Não acho que tenha direito a fazer essa pergunta- disse o juiz.

- Já houve precedentes deste caso e acho a pergunta absolutamente admissível.

- Nesse caso, estudarei as suas referências durante a suspensão da audiência do meio-dia. Entretanto, peça à testemunha que se retire e chame outra.

- Muito bem, Senhor Doutor Juiz - disse Vandling.- Pode retirar-se, Mrs. Ansel, mas não se esqueça de que foi regularmente citada a comparecer. Por conseguinte, não pode sair da cidade enquanto durarem os debates e deverá aqui estar presente, esta tarde, para o prosseguimento da audiência.

- Certamente! - apoiou o juiz Siler. - Compreendeu bem?

- Sim - respondeu Mrs. Ansel, com altivez.

- Então, não deixe de comparecer! - sublinhou o juiz Siler. - Pode chamar a testemunha seguinte, Mr. Vandling.

A testemunha seguinte foi o Dr. Renault, homem magro, na casa dos cinquenta, que se apresentou com a calma fria, própria da profissão. Prestou juramento, declinou a sua identidade e declarou habitar em Cramp-ton onde, havia três anos, praticava clínica geral.

- Na manhã do dia doze do corrente mês - perguntou-lhe Vandling - foi chamado ao leito de um doente instalado num motel de Crampton?

- Sim.

- Quem era esse doente?

- Edward Davenport.

- Já era seu conhecido?

- Não.

- Viu o cadáver de Edward Davenport depois de desenterrado e antes de ser autopsiado?

- Sim.

- Assistiu à autópsia?

- Não.

- Mas o cadáver que viu era realmente o da pessoa que tratou no dia 12 do corrente?

- Sim.

- Nesse mesmo dia, teve ocasião de falar com a ré?

- Sim.

- Ela viu o doente em questão?

- Sim.

- E identificou-o formalmente?

- Sim. Disse-me tratar-se do marido, Edward Davenport.

- Agora, peço-lhe que nos relate, muito exactamente, o estado em que encontrou Mr. Davenport e o modo como o tratou.

- É uma coisa que não me é possível fazer sem repetir-lhe o que o doente me disse - considerou o Dr. Renault.

- Senhor Doutor Juiz - precisou então Vandling - julgo que as palavras pronunciadas, nessa altura, pelo defunto, deveriam fazer parte do res gestae. Não se pode dizer exactamente que tenham sido pronunciadas no momento da morte, mas entram na res gestae. Consultei a este respeito os melhores autores e...

- Não faremos qualquer objecção a esse respeito - inteveio Mason, sorrindo. - Pode prosseguir.

- Ora, muito bem! - apreciou o juiz, meneando aprovativamente a cabeça. - Conte-nos, portanto, doutor, o que se passou e o que lhe disse o defunto.

- Disse-me ter-se sentido muitíssimo mal depois de ter comido um bombom e estar convencido de que a mulher procurava envenená-lo.

- Precisou o momento em que comera esse bombom?

Por volta das sete horas da manhã, desse mesmo dia.

- E a que horas o examinou, doutor?

- Entre as oito e as nove.

- E o defunto atribuía o estado em que se encontrava a esse chocolate?

- Sim.

- Que lhe disse ele, exactamente?

- Que a mulher envenenara uma das parentes para se apropriar da herança de um tio. Obtivera, recentemente, a prova disso e apercebera-se, ao mesmo tempo, de que a mulher procurava desembaraçar-se dele. Devido a isso, escrevera uma carta, para que as autoridades fossem imediatamente prevenidas, no caso de lhe acontecer qualquer coisa.

- Que fez o senhor, então?

- Julgando que ele estivesse formulando ideias preconcebidas, comecei por tratá-lo de uma intoxicação alimentar. Depois, como o seu estado não melhorasse, a ideia do envenenamento impôs-se no meu espírito e, receando um desfecho fatal, telefonei à mulher. Esta veio imediatamente, de avião, acompanhada por uma parente.

- Disse-lhes que Mr. Davenport estava moribundo?

- Disse-lhes que estava gravemente doente.

- Que se passou em seguida?

- Entre as duas e as três horas dessa tarde, elas telefonaram a pedir-me que voltasse lá, urgentemente, e, ao chegar, encontrei Mr. Davenport já em coma. Tomei-lhe o pulso e ministrei-lhe um estimulante cardíaco que não deu resultado. O coração enfraquecia cada vez mais e bruscamente Mr. Davenport morreu.

- Que disposições tomou em seguida, doutor?

- Preveni Mrs. Davenport de que, dadas as circunstâncias, não podia assinar a certidão de óbito e deveria tomar medidas para que tudo ficasse como estava até à chegada da Polícia. Por conseguinte, fechei a porta do quarto, à chave, e fui participar a morte às autoridades. Quando voltei, acompanhado por estas, tinham levado o corpo.

- Um momento, Doutor - interveio Vandling.- Disse de facto que já tinham levado o corpo?

- Sim - repetiu o médico com ênfase. - Isso mesmo! Já tinham levado o corpo.

- Que lhe permite fazer essa afirmação, doutor?

- O facto de os cadáveres não poderem deslocar-se por si próprios.

- Está convencido de que Mr. Davenport estava realmente morto, nessa altura?

- Absolutamente. Assisti à sua morte.

- Já se verificaram alguns casos em que pacientes no estado de coma foram considerados clinicamente mortos.

- Bem sei, mas, se estudar esses casos, descobrirá certamente que as pessoas em questão se achavam em estado cataléptico quando foram examinadas pelo médico e, daí, o erro. Por outras palavras, não creio que esse erro seja possível quando o médico se acha à cabeceira do doente e o vê morrer com os seus próprios olhos.

- Quanto tempo decorreu entre o momento em que anunciou a Mrs. Davenport a morte do marido e aquele em que voltou com a polícia?

- Cerca de uma hora, creio eu.

- Então, está pronto a certificar que Mr. Davenport estava morto às... a que horas, doutor?

- Mr. Davenport morreu entre as duas e meia e as três horas. Não consultei o relógio, mas estou certo de que a morte ocorreu durante essa meia hora. Por conseguinte, sou categórico a afirmar que uma ou mais pessoas, no decurso da hora que se seguiu à morte de Mr. Davenport, fizeram desaparecer o corpo do quarto onde eu o deixara.

- Contra-interrogatório - anunciou Vandling.

- Doutor - proferiu Mason, levantando-se - precisemos bem os factos. Viu Ed Davenport, pela primera vez, entre as oito e as nove horas dessa manhã?

- Exactamente.

- Ele disse-lhe ter-se sentido mal, pelas sete horas da manhã, desse mesmo dia?

- Isso mesmo.

- Que sintomas notou, quando o examinou?

- Achava-se muitíssimo fraco, à beira de um colapso fatal.

- Descobriu alguns sintomas de envenenamento por arsénico?

- Ao princípio, não. Mr. Davenport declarou-me ter expelido por cima e por baixo tudo quanto ingerira. Queixava-se de frio em todo o corpo e de cãibras abdominais.

- Esses sintomas não são característicos de envenenamento por arsénico?

- Se esse homem tivesse absorvido arsénico por volta das sete horas dessa manhã, se tivesse absorvido uma quantidade tão grande que lhe tivesse causado uma náusea imediata, é muito possível que o vómito do veneno ingerido tenha sido suficiente para provocar os sintomas que notei ao chegar.

- E foi então que Davenport lhe disse desconfiar que a mulher procurava envenená-lo?

- Sim.

- Disse-lhe ter comido um bombom proveniente de uma caixa introduzida na sua mala de viagem, pela mulher, e estar convencido de que esse chocolate fora envenenado?

- Sim, exactamente.

- Precisou-lhe por que motivo comera um bombom às sete horas da manhã?

- Sim. Explicou-me que, como gostava da bebida, chegava às vezes a vencer essa inclinação, comendo grande quantidade de bombons.

- De modo que, ao sentir-se doente, atribuiu imediatamente esse facto aos bombons?

- Não mo disse tão claramente, mas as suas declarações deram-mo a entender.

- Quando o examinou achou-o num estado de extrema fraqueza?

- Sim.

- A ponto de ter receado um resultado fatal?

- Sim.

- Bastava apenas essa fraqueza para fazer recear a morte, sem haver necessidade de arsénico?

- Sim.

- Foi por isso que telefonou a Mrs. Davenport?

- Exactamente.

- Doutor, os sintomas de envenenamento por cianeto de potássio são-lhe familiares?

-Sim.

- Nesse caso, como se explica, ou melhor, como explica que Davenport, convencido, às nove da manhã, de ter sido envenenado pelo bombom que ingerira, duas horas antes, tenha comido outro, às três horas da tarde?

- Oh! Um momento - interveio Vandling. - Essa pergunta é puramente argumentativa.

- O que peço à testemunha é uma opinião médica - retorquiu Mason.

O juiz Siler olhou para os dois advogados como se esperasse vê-los chegar a um acordo, sem a sua intervenção.

- Não o fez! - guinchou o Dr. Renault.

- De que está a falar? - inquiriu Mason.

- Davenport não comeu mais nenhum chocolate. Vandiling sorriu e voltou a sentar-se, dizendo:

- Pode prosseguir, meu caro colega. A testemunha parece-me saber desembaraçar-se sozinha.

- Doutor, o senhor ouviu o depoimento do Dr. Hoxie, segundo o qual Davenport sucumbiu em virtude de um envenenamento com cianeto de potássio?

- Sim.

- Discorda dessa afirmação?

- Não me compete pôr em dúvida as conclusões do médico que procedeu à autópsia.

- Bem, nesse caso, na sua opinião, Davenport morreu vítima de envenenamento por cianeto de potássio?

O senhor viu-o morrer e conhece os sintomas de um envenenamento desse género. O doente manifestava-os?

- Não.

- Não? - repetiu Mason.

- Não - confirmou o Dr. Renault com um movimento de queixo destinado a reforçar as palavras.

- Então, não acha que tenha morrido envenenado?

- Eh, devagar, Mr. Mason. Pelo contrário, estou convencido de que morreu envenenado.

- Mas não acha que tenha sido com cianeto de potássio?

- Efectivamente, não. Na minha opinião, morreu vítima de um estado de depressão extrema, resultado de ingestão de arsénico, veneno esse que, em seguida, foi eliminado em grande parte pelo organismo.

- Resumamos: Davenport chamou-o à cabeceira, o senhor viu-o morrer e não acha que tenha morrido envenenado com cianeto de potássio?

- Senhor Doutor Juiz, se me permite... interveio Vandling, levantando-se. - Este contra-interrogatório está a tomar uma feição que eu não previra. Efectivamente, confesso não ter interrogado o Dr. Renault quanto às causas da morte, por pensar que as verificações feitas, no momento da autópsia, não deixavam qualquer dúvida quanto a esse ponto.

- Poderá interrogar novamente a testemunha - tranquilizou-o Mason. - Faço-lhe apenas perguntas precisas que pedem respostas precisas e tudo isso será anotado pelo escrivão. Dito isto, vê alguma objecção a que eu prossiga com o meu contra-interrogatório?

- Nenhuma. A verdade é a única coisa que nos importa - declarou Vandling, voltando a sentar-se.

- Doutor - prosseguiu então Mason-, resumamos: Viu morrer Davenport, conhece os sintomas do envenenamento por cianeto de potássio e não crê que esse veneno tenha causado a morte de Davenport?

- Tenho até a certeza de que a não causou. O morto não apresentava nenhum dos sintomas do envenenamento por cianeto. Morreu porque se encontrava num estado de extrema fraqueza e não conseguira refazer-se da ingestão do arsénico.

- Mas não o viu tomar nenhum veneno, pois não?

- Sei apenas o que o doente me disse e conheço os sintomas do envenenamento por arsénico.

- Sim, mas o senhor não verificou directamente a maior parte desses sintomas; foram-lhe descritos pelo doente, não é assim?

- Sim. Os médicos pedem sempre aos doentes que lhes descrevam o que sentem. É normal.

- Davenport disse-lhe que a mulher procurava envenená-lo, que comera um bombom proveniente de uma certa caixa e que, pouco depois de tê-lo comido...

- Imediatamente após tê-lo comido - rectificou o médico.

- Seja. Imediatamente depois de tê-lo comido, ficara cheio de cólicas, de náuseas e de cãibras?

- Sim, foi isso o que ele me disse.

- E, na opinião do doente, isso devia-se a um envenenamento por arsénico?

- Ele falou de veneno, mas não tenho a certeza de que tenha precisado algum... Pode ser, contudo, que o tenha feito.

- Caso contrário, foi o senhor que pronunciou a palavra arsénico?

- Sim, é provável.

- O defunto passara um certo tempo em Paradise?

- Sim, foi isso que ele me disse.

- E estava de regresso a casa, em Los Angeles?

- Sim.

- E disse-lhe ter adoecido depois de ter comido um bombom?

- Sim. Já várias vezes me fez essa pergunta e de todas elas lhe respondi afirmativamente.

- Mas não sabe se ele comeu de facto um bombom.

- Somente o sei porque ele mo disse.

- Mas sabe que não morreu envenenado com cianeto de potássio?

- Os sintomas que o doente evidenciava não se assemelhavam aos que esse veneno provoca.

- Ora precisemos, doutor: Davenport descreveu-lhe o que sentira e o senhor calculou que esses sintomas pudessem ser os de envenenamento por arsénico?

- Exactamente.

- E quando o deixou, por volta das três da tarde, ele estava morto?

- Isso mesmo.

- Bem. Então, onde é que Davenport comeu esses ovos com presunto que o Dr. Hoxie lhe encontrou no estômago no momento da autópsia e que calcula que o defunto tenha ingerido pouco antes de morrer?

- Quer a minha opinião?

- Peço-lha.

- Quanto a mim, Mrs. Davenport, quando ficou a sós com o marido, persuadiu-o a tomar qualquer alimento e foi este que lhe causou a morte.

- De que maneira?

- Ignoro-o. Posso apenas afirmar que eu ter-me-ia oposto inteiramente a uma refeição dessa natureza. No estado em que se encontrava só deveria absorver líquidos e, de modo algum, alimentos sólidos. Eu próprio o alimentara com injecções intravenosas.

- Como é que um homem, que se achava num tal estado de fraqueza, conseguiu sentar-se na cama e comer ovos com presunto?

- Realmente, não compreendo.

- Não vê nenhuma explicação possível?

- Nenhuma.

- Poderá afirmar que o doente estaria incapacitado de ingerir uma refeição dessa natureza?

- O cadáver que foi autopsiado era, indubitavelmente, o do homem que tratei. Encontraram-lhe ovos com presunto no estômago. Por conseguinte, deve tê-los comido. Simplesmente, eu não julgaria isso possível.

- Voltemos a resumir: Como médico, está convencido de que esse homem não foi envenenado com cia-neto de potássio?

- Tenho a certeza disso.

- Pessoalmente, não sabe se comeu um bombom?

- Pessoalmente, não o sei.

- Pessoalmente, não sabe se ingeriu qualquer veneno?

- Hum... Bem, evidentemente que não posso jurá-lo. Não me achava presente.

- Pelo que sabe, Edward Davenport pode ter sucumbido a uma intoxicação alimentar, por ele atribuída erradamente a um veneno que sua mulher lhe teria ministrado?

- Por aquilo que sei, isso é possível, evidentemente.

- É frequente dar-se o caso de uma pessoa, vítima de intoxicação alimentar, pensar ter sido envenenada deliberadamente, não é verdade?

-- Já tem acontecido.

- Nunca lhe aconteceu defrontar-se com um caso desses?

- Hum... Sim, creio que sim.

- E está convencido de que Ed Davenport não sucumbiu à ingestão de cianeto de potássio?

- Absolutamente convencido.

- Nada mais, doutor, obrigado.

- Um momento! - pediu vivamente Vandling, quando o médico se preparava para levantar-se do assento das testemunhas. - Tenho umas perguntas a fazer-lhe, doutor. Já tive ocasião de falar consigo, não é verdade?

- Sim.

- E creio que nunca me disse que a morte de Mr. Davenport não poderia ter sido devida ao cianeto de potássio, não é verdade?

- Não mo perguntou - respondeu o Dr. Renault.- Disse-lhe que o defunto acusara a mulher de tê-lo envenenado e que, na minha opinião, a sua morte podia muito bem ter sido provocada pelo veneno que ingerira e expelira em grande parte ou ainda por uma segunda dose de veneno que lhe tivesse sido ministrada pouco antes da morte. Expliquei-lhe que morrera unicamente porque o seu organismo estava demasiado fraco para poder refazer-se do choque causado pela ingestão do veneno contido num bombom, comido cerca das sete horas da manhã.

- Sim, efectivamente, assim foi - reconheceu Vandling - mas não precisou que esse veneno não pudesse ter sido cianeto de potássio.

- Porque não mo perguntou. Não via qualquer razão para entrar em conflito de motu próprio, com o meu colega que fizera a autópsia. Como Mr. Mason me fez uma pergunta precisa, respondi-lhe também precisamente, como era meu dever. Repito-lhe: estava à cabeceira de Davenport quando este soltou o último suspiro. A sua morte pode talvez ter sido motivada pela ingestão de um veneno que tivesse agido sobre o coração ou ser consequência do veneno ingerido e mais tarde lançado fora, mas nesse momento, não notei qualquer dos sintomas que certamente teria notado se a morte tivesse sido provocada pelo cianeto de potássio.

- Sabe que quantidade de cianeto lhe encontraram no estômago no decurso da autópsia?

- Sim.

- Essa quantidade era mortal?

- Certamente que sim!

- Então-disse Vandling - ainda que esse homem não tenha morrido vítima do cianeto de potássio, podia, contudo, tê-lo sido. Depreendo, pelo que me disse, que o seu organismo continha cianeto de potássio em quantidade suficiente para matá-lo, ainda que não tenha morrido vítima desse veneno, não é assim?

- Objecção, Senhor Doutor Juiz - proferiu Mason. - Esta pergunta é puramente argumentativa e ambígua. O que nos interessa estabelecer não é o agente que poderia ter causado a morte de Mr. Davenport, mas sim o que lhe causou a morte.

- Realmente, assim é - apreciou o juiz Siler.- Não me parece que a pergunta possa ser feita dessa maneira.

- Senhor Doutor Juiz - defendeu-se Vandling-, achamo-nos numa situação verdadeiramente particular. O Dr. Hoxie é um médico toxicologista famoso. Declarou ter achado, no estômago do morto, cianeto de potássio em quantidade suficiente para lhe ter causado a morte e o cianeto é um veneno que age rapidamente. Mas agora, o Dr. Renault diz que na sua opinião Davenport não pode ter morrido envenenado com cianeto. Evidentemente que isto não é mais do que uma opinião...

- Trata-se da opinião de um médico - rectificou o juiz Siler.

- Que é uma testemunha sua, Mr. Vandling - acrescentou Mason.

- Senhor Doutor Juiz, numa tal situação creio que a acusação tem o direito de pedir o adiamento dos debates sequentes, visto que necessita de aprofundar, um pouco mais, os factos. Certamente, não lhe deve ter passado desapercebido, Senhor Doutor Juiz, que se eu me tivesse limitado a convocar o Dr. Hoxie como testemunha, a sua declaração adicionada ao facto de terem sido encontradas impressões digitais da ré num bombom que continha cianeto de potássio - tendo a ré declarado categoricamente não ter aberto a caixa dos bombons em questão - isso ter-me-ia permitido enviar essa mulher a julgamento.

- Deseja pedir-me autorização para fazê-lo na situação presente?

- Não sei, Senhor Doutor Juiz, pois esta situação parece-me realmente complicada. O Dr. Renault foi agora chamado como testemunha de acusação e afirmou que, na sua opinião, Davenport não podia ter morrido de envenenamento por cianeto de potássio.

- E o seu médico legista - sublinhou Mason - não encontrou qualquer vestígio de chocolate, isto é: nenhum vestígio significativo no estômago do defunto.

- Gostaria que o Dr. Renault se retirasse para eu poder chamar de novo o Dr. Hoxie a fim de fazer-lhe uma pergunta-declarou Vandling.

- Há alguma objecção? - inquiriu o juiz Siler.

- Nenhuma, Senhor Doutor Juiz - respondeu Mason, sorrindo.

Quando o Dr. Hoxie se sentou, novamente, no banco das testemunhas, Vandling perguntou-lhe:

- Ouviu o depoimento do Dr. Renault?

- Sim, ouvi - respondeu Hoxie, secamente.

- Tem qualquer dúvida quanto à causa da morte?

- Absolutamente nenhuma. O homem que eu autopsiei morreu envenenado com cianeto de potássio.

- O estômago do morto continha cianeto de potássio em quantidade suficiente para lhe ter causado a morte?

- Sim.

- Então, vou fazer-lhe outra pergunta, Doutor. Seria possível uma pessoa retirar o conteúdo do estômago de um cadáver?

- Sim, certamente.

- Muito bem. E seria possível uma pessoa introduzir, pelo processo inverso, qualquer coisa no estômago de um cadáver?

O Dr. Hoxie hesitou.

- Está a perguntar-me - inquiriu por fim - se acho possível que isso tenha acontecido no caso presente?

- Pergunto-lhe se isso é possível, falando na generalidade.

- Sim, presumo que o seja. Todavia, mantenho a opinião de que a morte de Edward Davenport foi causada pelo cianeto de potássio. Não somente o veneno se achava no estômago como era acompanhado de todos os sintomas de envenenamento. Na minha opinião, esse homem morreu quase imediatamente após ter absorvido uma forte dose de cianeto de potássio. Cerca de uma hora antes de morrer, bebera e comera ovos com presunto.

- Deseja proceder a um novo contra-interrogatório da testemunha? - inquiriu Vandling, virando-se para o adversário.

- Julga, doutor - perguntou Mason -, que o veneno tenha sido ministrado num bombom?

- Não, pois, nesse caso, como a morte foi muito rápida, teria achado chocolate no estômago.

- Nesse caso, como pensa que o veneno possa ter sido ministrado?

- Pode tê-lo sido por meio de whisky. O estômago continha whisky e no sangue havia álcool. Existe ainda outra teoria, mas não tenho qualquer empenho em expô-la.

Mason reflectiu e perguntou:

- Essa teoria basear-se-ia no facto de o veneno poder ter sido ministrado directamente ao defunto... digamos, como medicamento?

- Sim.

- Nada mais, doutor - terminou Mason, sorrindo.

- Perdão, outra pergunta, doutor! - interveio Vandling, com uma nota de triunfo na voz. - Na sua opinião, é então possível que a ré tenha dado esse veneno ao marido, pretextando ministrar-lhe um remédio?

- Não.

- Como? Não deu a entender, há pouco, que o veneno podia ter sido dado ao doente, como medicamento?

- Sim, mas não por Mrs. Davenport, pois esta não se encontrava com o marido, nessa altura. Na minha opinião, Edward Davenport não sobreviveu mais que dois minutos à ingestão do veneno.

- Contra-interrogatório? - perguntou Vandling a Mason.

- Não, obrigado - respondeu este. - Parece-me tudo bem.

- Senhor Doutor Juiz - anunciou Vandling -é quase meio-dia. Ordinariamente, a audiência é suspensa desde essa hora até às duas da tarde. Peço-lhe que prolongue essa suspensão até às quatro horas.

- A defesa opõe qualquer objecção? - informou-se o juiz Siler.

- Dadas as circunstâncias, não há objecção - respondeu Mason. - De facto, se a acusação desejar, consentiremos até que a audiência seja adiada para as dez horas de amanhã.

- Isso seria deveras conveniente - apoiou imediatamente Vandling - mas prefiro que esse pedido seja feito pela defesa...

- A defesa está de acordo - declarou Mason.

- Muito bem - anuiu o juiz Siler. - Nestas condições, a pedido da defesa, a audiência fica adiada para amanhã, às dez horas.

Enquanto o juiz se retirava e o ruído dos que também saíam enchia a sala, Vandling disse a Mason:

- Tinham-me prevenido de que, consigo, era sempre de esperar um imprevisto... mas não há dúvida que é o caso mais fantástico com que deparei em toda a minha carreira!

- Que vai fazer? - inquiriu Mason, sorrindo.

- Não sei. Posso, evidentemente, obrigar Mrs. Davenport a comparecer em tribunal, mas, com o depoimento do Dr. Renault, seria um bico-de-obra conseguir que um júri a reconhecesse culpada.

- O senhor, ao menos, é franco!

- De que serviria simular consigo? Sabe, tão bem como eu, o que aconteceria se nos encontrássemos realmente perante um júri.

- Vai renunciar ao prosseguimento da acusação?

- Não me parece. Lancei-me neste caso, de olhos fechados, mas acho que poderei levar Mrs. Davenport a julgamento, desde o momento que o senhor seja forçado a citar Renault como testemunha de defesa.

-E então?

- Então, poria em dúvida a sua competência profissional. Não creio que seja muito apreciado nos meios médicos da região. Tem andado por muitos sítios. Já não é novo, mas, só há três anos, exerce clínica em Cramp-ton. Creio até que, em dada época, teve certos aborrecimentos por causa de umas histórias de estupefacientes. Foi por isso que o Dr. Hoxie se mostrou tão indignado ao ver as suas conclusões postas em dúvida por Renault.

- Todavia, este parece deveras seguro do que diz.

- Certamente.

- Depois, há ainda essa história do cadáver a fugir pela janela.

Vandling franziu o sobrolho.

- Sim. É possível que alguém tenha passado o cadáver pela janela, tenha enfiado o seu pijama e simulado ser Davenport. Pedi o adiamento porque tenho uma ideia na cabeça. Certamente, ficaria surpreendido se soubesse o que, neste momento, estou a pensar.

- Talvez eu não saiba o que está a pensar - disse Mason- mas aposto cinco dólares em como sei o que vai fazer.

- A sério?

- Vai telefonar ao procurador do Distrito de Los Angeles, dizendo-lhe que, como há certos pormenores técnicos que o perturbam, prefere que Myrna Davenport seja primeiramente julgada em Los Angeles, por assassínio de Hortense Paxton.

Vandling desatou a rir!

- É levado da breca! Agora, se mo permite, vou telefonar.

Enquanto Vandling se afastava, Mason disse ao guarda responsável por Myrna Davenport:

- Não a leve ainda. Desejo falar com ela durante uns segundos.

Afastou a mulher para um canto e perguntou-lhe:

- Porque me disse não ter aberto essa caixa de bombons?

- Mas, Mr. Mason, é a verdade! Nunca a abri!

- Encontraram as suas impressões digitais em dois bombons.

- Deve haver engano. Não podem ser as minhas impressões digitais.

- Afirma isso porque, efectivamente, não abriu a caixa?

- Sim.

Sara Ansel, sentada ao fundo da sala, no meio dos espectadores, aproximou-se com ar agitado:

- Posso falar-lhe, Mr. Mason?

O advogado aquiesceu com um movimento de cabeça.

- Eu sei, Mr. Mason... estou certa de que Myrna está inocente de tudo quanto a acusam. Não obrigou Ed a comer os ovos com presunto. Enquanto lá estivemos, ele não tomou absolutamente nada. Mal tinha consciência do que se passava em sua volta e já não podia falar. E depois da partida do Dr. Renault, Myrna não voltou a esse quarto. Ela...

Myrna encarou friamente a tia e disse-lhe:

- Vá-se embora!

- Myrna, minha querida, procuro ajudar-te...

- Tem feito todo o possível por perder-me.

- Myrna, sabes o que estás a dizer?

- Oh, se sei!

- Não, não é possível. São os teus nervos... Myrna, minha querida, sei por que motivo as tuas impressões digitais estão nesses bombons. Tu deste realmente uma caixa intacta a Ed e meteste-lha na mala. Mas, na sala de estar, havia outra caixa meio encetada. Lembraste que até havia duas e que tu deitaste fora uma delas depois de teres passado os bombons restantes para a outra. Ora aí está como puderam encontrar as tuas impressões digitais. Ed deve ter também levado essa caixa além da que lhe puseras na mala. Depois, em Paradise, deve ter comido todos os bombons da caixa que lhe compraste e deve ter levado a outra. Eis o que deve ter acontecido. Estou certa de que a caixa apreendida pela Polícia é a que completaste na sala de estar. Quase posso jurá-lo.

Sem voltar a dirigir a palavra a Sara Ansel, Mrs. Davenport virou^se para o guarda:

- Quer fazer o favor de levar-me daqui? Sinto-me muito fatigada.

Enquanto o guarda a conduzia em direcção à porta reservada aos réus, Sara Ansel disse, indignadamente, a Mason:

- Está a ver isto? Venho aqui para tentar ajudá-la e ela trata-me como se eu fosse a última das últimas!

- Há-de concordar - observou o advogado - que a senhora fez tudo quanto era possível para ajudar o procurador do Distrito de Los Angeles a inculpá-la.

- Mas... foi porque, naquele momento, estava fora de mim. Pobre Myrna! Seria incapaz de fazer mal a uma mosca. Lamento o que disse, Mr. Mason, mas seja como for, depois da maneira como Myrna acaba de tratar-me, não vou estender-lhe a outra face. Ora pense bem! Se eu lá não estivesse, Ed Davenport tê-la-ia deixado sem camisa! Graças a Deus, conheço os homens!

- Demora-se algum tempo em Fresno?

- Certamente. Bem ouviu o que o juiz me disse. Não devo sair da cidade.

- Posso vir a precisar de falar consigo.

- Nesse caso, achar-me-á no Fresno-Hotel.

- Belo! Sim, provavelmente, terei outras perguntas a fazer-lhe... a respeito dos bombons.

 

Perry Mason, Paul Drake e Della Street reuniram-se no apartamento que o advogado ocupava no Californian Hotel.

- Finalmente, a situação esclarece-se - anunciou Mason.

- Esclarece-se?- repetiu Drake com espanto.- Diga antes que se embrulha ao ponto de já ninguém perceber coisa alguma. Pelo menos, era essa a opinião dos que estavam ao pé de mim.

- Então, Paul? Neste momento, parece evidente que uma só pessoa possa ter morto Davenport.

- Myrna? - perguntou o detective. Mason sorriu:

- Como poderia Myrna ter assassinado o marido?

- Oh! É fácil. Depois de chegar a Crampton, pode ter-lhe ministrado uma dose de cianeto e depois ter chamado urgentemente o Dr. Renault.

- E como teria feito desaparecer o cadáver?

- Com a ajuda de um cúmplice, que em seguida desempenhou o papel de Davenport. Quando viu que alguém o observava - embora a uma distância que não lhe permitisse reconhecê-lo - enfiou o pijama do morto e galgou a janela.

- Muito interessante - comentou Mason. - Mas como podia Myrna saber que o marido adoeceria, mal chegasse a Crampton?

- Ela não o saberia, mas aproveitou a ocasião para fazê-lo engolir o cianeto. É uma oportunidade.

- Sim, certamente. Mas você esquece-se da campa, Paul. Como é que Mrs. Davenport sabia que podia dispor de uma campa já aberta, a três milhas de Crampton?

- Porque ela própria a cavara!

- Quando?

- Na semana anterior, sem dúvida... A não ser que o cúmplice o tenha feito.

- Então, ela tinha a certeza de que o marido adoeceria mal chegasse a Crampton? - inquiriu o advogado, candidamente.

Drake viu-se metido num beco sem saída e coçou raivosamente a cabeça.

- Quem matou Davenport? - perguntou calmamente Della Street.

- A pessoa que sabia que ele adoeceria mal chegasse a Crampton - respondeu Mason.

- Mas quem pode ter sido?

- Preciso ainda verificar certos pontos. Todavia, parece-me que apenas uma pessoa podia saber o que iria acontecer.

- Quem? - insistiu Della Street.

- Calma. Antes de afirmar seja o que for, preciso de verificar certas coisas e vou tentar fazê-lo enquanto o nosso amigo Talbert Vandling prossegue na sua discussão com o procurador do Distrito de Los Angeles.

- Julga que estão a discutir um com o outro? - perguntou Drake.

- Evidentemente! O procurador do Distrito de Los Angeles não está agora interessado em Myrna.

- Mas porquê?

- Porque apenas pode demonstrar que Hortense Paxton morreu envenenada, que Myrna Davenport lucrava com essa morte e que a mesma Myrna estava na posse de veneno e procurou escondê-lo quando iam exumar o cadáver da prima.

- E ainda acha pouco? - observou Drake.

- Certamente que não basta. Mais um ou dois elementos e conseguiriam a condenação. Por outro lado, mais um ou dois elementos a favor da defesa tornariam o júri incapaz de pronunciar contra ou a favor.

- Que elementos poderiam favorecer a defesa?

- O envenenamento de Ed Davenport - respondeu Mason, sorrindo.

- Não compreendo.

- Quem envenenou Ed tornar-se-ia também suspeito de ter envenenado Hortense Paxton.

- E julga que o procurador do Distrito de Los Angeles vai fazer festas a Vandling, animando-o a continuar como começou?

Mason confirmou com um aceno de cabeça.

- Nesse caso, que fará Vandling?

- Tentará descobrir novos factos susceptíveis de apoiar a sua tese. Se não os encontrar, será forçado a renunciar.

- Porquê?

- Pense um pouco. Myrna Davenport meteu os bombons na mala do marido. Esses bombons estavam envenenados: uns tinham arsénico, outros cianeto de potássio. O Dr. Renault jura que o doente lhe descreveu os sintomas de um envenenamento por arsénico e que a sua morte não pode ser atribuída ao cianeto. Porém, não verificou pessoalmente os famosos sintomas e, por conseguinte, o seu testemunho, sobre esse ponto, não tem validade. Quanto ao Dr. Hoxie, jura que Davenport morreu vítima do cianeto de potássio, mas não conseguiu encontrar vestígios de chocolate no estômago do cadáver. Portanto, não morreu após ter ingerido um bombom envenenado. Ora, a única coisa que lhes permite acusar seriamente Myrna, é a caixa de bombons.

- Então, que fazemos?

- Vamos até ao local onde esses garotos costumavam brincar e procuremos encontrar qualquer coisa.

- Mas o quê?

- Vestígios de estacionamento de um veículo de seis rodas.

- Não compreendo.

- E depois disso - prosseguiu Mason, imperturbavelmente- procuremos encontrar Mabel Norge.

- Será o mesmo que procurar uma agulha num palheiro.

- Nada disso. Sabemos como é: alta, morena, de vinte e sete ou vinte e oito anos, bem feita, de olhos cinzentos e sobrancelhas finas. Mandará procurá-la nos hotéis e motéis de San Bernardino. Além disso, será bom que esteja em contacto com alguém do gabinete do procurador do Distrito do condado de Butte.

- Porquê?

- Porque julgo que Mabel Norge se porá em contacto com ele.

- Essa é boa! E por que razão há-de querer pôr-se em contacto com ele?

- Porque não quer parecer que se esconde nem dar motivo a que interpretem suspeitosamente a sua conduta. Na minha opinião, Mabel Norge telefonará ao procurador de Butte a dizer-lhe onde poderá encontrá-la mas pedindo-lhe, ao mesmo tempo, que o não diga a terceiros.

- Julga que o procurador do condado de Butte atenderá os desejos dessa menina?

- Certamente.

- Porquê?

- Porque, se for ele o único a saber onde ela se encontra, melhor levará a água ao seu moinho. Trate, portanto, de procurá-la, mas não espante a caça, Paul.

- O. K. E quanto a Sara Ansel?

- Deixe-a em paz.

- Oh! Não desejo outra coisa, mas gostaria que me explicasse como poderei ver-me livre dela.

- Provavelmente, terá de ferrar-lhe com uma moca na cabeça - respondeu Mason, sorrindo. - Venha daí, Della, vamos para o campo.

O terreno, em volta do local, fora visitado por muitos curiosos, conforme atestava o rodado entrecruzado de pneus.

- Se a minha teoria é exacta - disse Perry Mason - deve ter estado aqui, durante dois ou três dias, um automóvel com um carro atrelado. Gostaria de descobrir o sítio onde isso foi.

- Posso saber que teoria é essa?

- Você não espera, querida Della, que um prestidigitador lhe explique um truque antes de executá-lo, pois não? Assim, perderia o encanto.

- Ao menos, diga^me por que motivo pensa que tenha estado, aqui, um carro com um atrelado.

- Escute, Della. Toda a história deste crime baseia-se num facto: alguém sabia que Edward Davenport adoeceria gravemente pouco depois de ter saído de Fresno, a ponto de sentir-se incapaz de prosseguir viagem ao chegar a Crampton, ser forçado a instalar-se num motel e mandar chamar um médico. Só assim se poderá explicar a prévia abertura da campa, próximo de Crampton.

- Isso parece plausível!... Mas já mo tinha dito!

- Bem. Então, qual é a única pessoa susceptível de saber que Davenport adoeceria nesse lugar e nesse momento?

- Mabel Norge?- sugeriu Della Street. Mason pôs-se a rir:

- Minha querida Della, acha-se agora na posse de todos os elementos em que se baseia a minha teoria. Dito isto, comecemos agora as nossas buscas, dividindo o trabalho pelos dois. Você seguirá pela direita e eu pela esquerda. Os vestígios que nos interessam devem achar-se num raio de cento e cinquenta a duzentos metros.

- De acordo, mas... Não me diz mais nada a respeito da sua teoria?

- Não, minha querida! - respondeu Mason, rindo. -: Quando tirar um coelho do chapéu, não quero ver os espectadores bocejarem! Até já. Se avistar alguém ou tiver a sensação de que está a ser espiada, não hesite em chhamar-me.

- Entendido... Oh! Detesto-o quando se põe assim! - declarou a rapariga seguindo para o lado que lhe fora designado.

Um quarto de hora depois, Mason estava de volta e assobiou para chamar Della Street. A resposta veio de muito longe e teve de repetir os assobios até conseguir orientar-se e achar a pista da secretária.

- Della!-disse-lhe em tom de censura. - Não queria que se afastasse tanto! Que teria sucedido se tivesse encontrado...

- Olhe, patrão! - interrompeu-o a rapariga, apontando para o chão.

Notava-se a marca de um rodado mais estreito que o rodado normal.

- São rodas de jeep, patrão. Acha que teria rebocado um atrelado?

- Não posso afirmar seja o que for. Vamos seguir a pista.

O rasto dos pneus levou-os uma centena de metros adiante, até uma pequena clareira donde partia um caminho que ia dar à estrada. Não havia dúvida que estivera ali estacionado um atrelado de campismo.

- Já está satisfeito? - suspirou Della Street.- E agora, que fazemos?

- Vamos referenciar cuidadosamente este sítio e voltamos a Fresno. Dali enviaremos Paul Drake com dois dos seus homens para que passem esta clareira a pente fino e façam um relatório de tudo quanto nela acharem.

- De tudo? Até disto?-inquiriu Della, mostrando algumas latas de conserva vazias, amontoadas a um canto.

- De tudo, absolutamente.

- Não podemos, nós mesmos, fazer esse inventário, já que aqui estamos?

- Não, porque temos outra coisa a fazer: Antes de uma hora, estar a caminho de San Bernardino.

- Quando se dignar maravilhar-nos com o truque do coelho e do chapéu, explica-nos como adivinhou a existência do atrelado?

- Você, Della, ainda não respondeu à minha pergunta.

- Que pergunta?

- Quem poderia saber que Edward Davenport partiria de Fresno, cerca das sete horas da manhã, e viria a sentir-se terrivelmente indisposto logo após a partida e que, chegado a Crampton, ao sientir-se incapaz de ir mais longe, se meteria na cama e chamaria um médico?

- Ninguém. Ninguém podia prever isso.

- Nesse caso, o crime não foi premeditado.

- Mas deve tê-lo sido, patrão, visto que a campa fora cavada dois ou três dias antes... Se, evidentemente, a destinavam a Davenport.

- Sim, esteve-lhe sempre destinada. Venha daí, Della, voltamos a Fresno. Fretaremos um avião para San Bernardino. Quando lá chegarmos, já os homens de Drake devem ter encontrado Mabel Norge.

- Caso contrário... ?

- Caso contrário, nós próprios a procuraremos, pois não me espanta nada que tenham sido mal sucedidos. Entretanto, Paul e os seus acólitos terão que fazer por estas bandas... Latas vazias, Della!... Esta conteve feijões cozidos. Foi cuidadosamente aberta, com um instrumento qualquer. Que vê lá dentro?

- Restos de feijões.

- Sim, secos e duros.

- Significa que já aqui está há algum tempo.

- Sim, há uma semana ou talvez há dez dias.

- Muito bem, Sr. Mágico, já sei o que devo fazer. Vestida com uma malha atraente e um saiote muito curtinho, desfaço-me em reverências e arranjo um olhar maravilhado, quando se dignar tirar o coelho do chapéu. É este o papel da assistente de um mágico, não é verdade?

- Sim. O seu papel é distrair a atenção dos espectadores.

- E a do mágico, não? - inquiriu Della, num tom gracioso.

- Às vezes, isso também acontece - respondeu Mason, sorrindo.

 

Ao cair da noite, o avião aterrou no aeródromo de San Bernardino. O primeiro cuidado de Perry Mason ao descer do aparelho foi telefonar ao correspondente de Paul Drake.

- Tem sorte-disse-lhe este - encontrámos, há vinte minutos, a pessoa que procurava.

- Onde está ela?

- No Antlers Hotel, mas registou-se com o nome de Mabel Davenport.

- Óptimo! - exclamou Mason. - Tem alguém a vigiá-la?

- Sim. Andou por fora quase todo o dia. Voltou ao hotel pouco depois de lhe termos achado o rasto e, neste momento, está no quarto.

- Como poderei reconhecer o homem encarregado de vigiá-la?

- Tem cerca de trinta e cinco anos, veste fato cinzento, com gravata vermelha e azul, presa por um alfinete em forma de ferradura. Deve telefonar-me daqui a alguns minutos e preveni-lo-ei da sua chegada.

- Muito bem, obrigado.

Mason desligou e disse à secretária:

- Mabel Norge está no Antlers Hotel, registada sob o nome de Mabel Davenport.

- É a única pessoa susceptível de saber que Ed Davenport adoeceria, pouco depois de sair de Fresno.- disse Della Street, meneando a cabeça.

- Como podia sabê-lo? - inquiriu o advogado.

- Precisa que lhe ponha os pontos nos ii? Mabel acompanhara-o a Fresno e passara a noite no motel. Na manhã seguinte, quando ele ia partir, ela conseguiu fazê-lo ingerir qualquer coisa que o pôs naquele estado e...

- Mas ele estava no motel sozinho. Se estivesse acompanhado por alguma mulher, ter-se-ia registado como Frank L. Stanton e Esposa. De resto, recebeu um visitante.

- Mabel Norge pode ter-se-lhe juntado discretamente no bangalô, depois da partida desse visitante.

- Hum! Você, Della, arranja tudo muito facilmente.

Repare que, se Mabel lhe tivesse dado qualquer coisa capaz de fazê-lo adoecer no momento de pôr-se a caminho, era mais natural que Davenport tivesse voltado a Fresno, para se tratar, do que continuasse até Crampton, onde tinha uma cova à sua espera. Mabel não poderia prever a sua reacção. Della suspirou:

- Nesse caso, não compreendo! Ou melhor, apenas vejo uma pessoa capaz de saber antecipadamente que Ed Davenport adoeceria depois de sair de Fresno e que, mesmo assim, continuaria até Crampton: o próprio Ed Davenport!

- Exactamente, Della!

- O quê? - exclamou a secretária. - Quer dizer que...? Mas porque havia de...?

- Dentro de alguns minutos, se Mabel Norge quiser falar, conheceremos a resposta a várias incógnitas. E estou convencido de que falará, pois vai ficar bastante embaraçada quando a surpreendermos no hotel, onde se registou sob o nome de Mabel Davenport.

- Acha que Ed Davenport projectara, deliberadamente, adoecer?

- Era a única pessoa do mundo capaz de saber, antecipada e seguramente, que estaria doente ao chegar a Crampton. Desde o momento, bem entendido, que todo este caso tenha sido premeditado.

- Certamente que o foi, visto que a campa já estava aberta alguns dias antes do crime.

- Pelo menos, é essa a teoria da acusação - disse Mason.

Della Street permaneceu calada durante alguns instantes, procurando penetrar o pensamento do advogado, mas acabou por sacudir a cabeça:

- Não, decididamente é demasiado transcendente para mim.

- Creio que, em breve, receberemos certos dados que ajudarão a esclarecer o caso. Lembra-se daquele homem que telefonou, quando estávamos em Paradise, a dar uma indicação referente ao motel de San Bernardino e que imediatamente desligou?

- Lembro-me, sim! Se Mabel Norge andava por ali, não era certamente por acaso, como pretendeu convencer-nos, mas porque aguardava uma chamada telefónica a indicar-lhe aonde devia ir.

- Bravo, Della!

- E, como não recebeu essa chamada, ficou sem saber que fazer... Mas como deviam ter falado anteriormente de San Bernardino, decidiu esperar aqui o curso dos acontecimentos. Todavia, admira-me que não tenha voltado ao escritório, depois de nós termos saído.

- Provavelmente voltou lá, mas em vão, visto que o telefonema já fora atendido por nós. Talvez tivessem combinado que, se até uma certa hora ela não recebesse esse telefonema, deveria instalar-se no Antlers Hotel de San Bernardino, sob o nome de Mabel Davenport, e esperar aí novas instruções.

- Mas porque havia de ter roubado o dinheiro da conta de Davenport?

- Roubado? - proferiu Mason, erguendo o sobrolho.

- Praticamente, retirou tudo quanto estava depositado na conta dele, em Paradise, e depois desapareceu.

- Pois sim, Della, mas isso pode não ser roubar.

- Acha que não?

- Vamos alugar um automóvel e perguntar a Mabel Norge a sua opinião sobre esse assunto.

Mason não teve grande dificuldade em reconhecer o homem de fato cinzento e alfinete de gravata em forma de ferradura, que se encontrava no átrio do Antlers Hotel. De resto, este aproximou-se do advogado e informou:

- Acaba de entrar na sala de jantar. É capaz de reconhecê-la?

Mason fez um sinal afirmativo.

- Está no segundo compartimento, à direita. Deseja que eu continue de guarda? - perguntou o detective.

- Por ora, sim. Venha, Della.

O advogado empurrou a porta de guarda-vento do restaurante, deu alguns passos para a direita e exclamou:

- Olhe, Della: uma pessoa conhecida!

Mabel Norge, entretida a consultar a ementa, levantou maquinalmente os olhos e estes encheram-se de pânico.

- Boa-noite! - cumprimentou, em tom glacial. Mason aproximou-se da mesa, estendendo-lhe a mão:

- Como está, Miss Norge? Ouvi dizer que estava cá...

- Ouviu dizer que eu estava cá? - repetiu, num tom surpreendido, depois de ter hesitado um instante perante a mão estendida.

- Sim. Então não preveniu as autoridades do condado de Butte?

O rosto da rapariga tornou-se cor de púrpura.

- Sim, mas não deviam tê-lo dito a ninguém. Com o maior à vontade, Mason sentou-se em frente de Miss Norge e Della Street tomou lugar a seu lado.

- Estou encantado por encontrá-la num sítio onde podemos conversar...

- Não tenho intenção de conversar consigo.

- Nesse caso, Della - disse Mason, virando-se para a secretária-teremos de prevenir os jornais.

- Os jornais? - repetiu Mabel Norge.

- Sim. Talvez não esteja a par do que a Imprensa tem dito, mas, neste momento, é uma pessoa muito procurada.

Mabel Norge mordeu os lábios e acabou por dizer:

- Mr. Mason, vim aqui para jantar e não para ser incomodada.

- Cá por mim, não há inconveniente, Miss Norge. Della, telefone para os jornais locais e veja quem representa a Associated Press. Previna também...

- Mr. Mason, já lhe disse que não quero ser incomodada!

- Infelizmente, quando se trata de um assassínio...

- Nada tenho que ver com nenhum assassínio.

O que fiz, fi-lo unicamente em obediência a instruções do meu patrão.

- Sem dúvida, mas essas instruções do seu patrão constituem agora um facto de primordial importância neste caso. - Mr. Halder garantiu-me que tudo correria bem! - protestou Miss Norge.

Mason riu baixinho.

- Mr. Halder tornou-se, o que podemos chamar, uma roda sobressalente deste assunto. É Mr. Vandling, procurador do Distrito de Fresno, quem trata agora do caso. Telefone-lhe e verá o que ele lhe diz.

Mabel Norge permaneceu calada.

- Ela não me acredita, Della, não há dúvida... Olhe, há uma cabina telefónica ali ao pé da "caixa". Telefone a Vandling a dizer-lhe que Mabel Norge está neste hotel, registada com um nome falso, e pergunte-lhe o que devemos fazer. Talvez prefira pedir a intervenção da Polícia local e...

- Oh! Não, não!-exclamou Mabel Norge com lágrimas nos olhos.

- Ora, vamos, Miss Norge, não queremos transtorná-la, mas, co'os diabos, faça por compreender a situação! Ao saber que está aqui registada com o nome de Mabel Davenport, Mr. Vandling concluirá certamente que tencionava juntar-se a Ed Davenport ou, mais exactamente, que ele deveria vir ter consigo a este hotel, onde os dois passariam por marido e mulher...

- Como se atreve a dizer uma coisa dessas?

- É a sua própria conduta que os levaria a pensá-lo... A Imprensa vai certamente...

- Se a Imprensa insinuar seja o que for desse género... processá-la-ei!

- Que ganharia com isso? Quando estiver perante um júri e for interrogada, acabará por confessar que fugiu de Paradise depois de ter, praticamente, saldado a conta do seu patrão e que, em seguida, veio esperá-lo neste hotel, registada com o nome de Mabel Davenport.

- Esquece-se de que eu fora prevenida da sua morte, antes de sair de Paradise.

- Sim, mas não acreditou nessa notícia.

- Porque diz isso?

- Della, tenho a impressão de que Miss Norge não compreende que sabemos tudo.

- Sabem o quê? - inquiriu a rapariga.

- Ora, vejamos... Na segunda-feira, a senhora deveria depositar algum dinheiro e posteriormente retirar o total disponível da conta bancária de Mr. Davenport. Depois disso, deveria esperar, à noite, uma chamada telefónica no escritório de Paradise. Essa chamada deveria indicar-lhe aonde levar o dinheiro. Seria em San Bernardino, num local a estabelecer mais tarde. Se, até uma certa hora, não tivesse recebido essa chamada telefónica aguardaria novas instruções, no Antlers Hotel, de San Bernardino, onde deveria inscrever-se com o nome de Mabel Davenport.

- Como conseguiu saber tudo isso?

- Fosse como fosse, são factos. Não pode negá-lo, não é verdade?

- Para dizer a verdade, as coisas não se passaram exactamente assim.

- Isso não diminuirá o interesse do procurador do Distrito e fornecerá também um belo assunto para os jornalistas. Concluirão evidentemente que era amante de Ed Davenport e que este quisera juntar a maior quantia possível para fugir consigo.

- Mas isso é absurdo! É absolutamente ridículo! E ultrajante; Mr. Davenport tinha em mãos um negócio de minas que queria regularizar e para o qual precisava de uma grande quantia em dinheiro corrente... Mas... eu não tenho necessidade de discutir isso consigo!

- É muito justo. Dito isto, que vai fazer agora? Se utilizar uma parte desse dinheiro em seu proveito, será acusada de desvio de fundos. Se voltar a Paradise, hão-de perguntar-lhe onde estava, o que fez e porquê. Na posse desse dinheiro, dá a impressão de ter cometido um abuso de confiança.

- Pois bem, o caso não é esse e eu sei muito bem o que faço. O procurador do Distrito de Oreville declarou-me que eu procedera bem e que nada tinham a censurar-me. Telefonar-lhe-ei a dizer que não quero ser importunada.

Mason olhou para a secretária:

- Desta vez, Della, basta de graças. Eu próprio vou telefonar a Vandling.

Ambos se levantaram da mesa e Mason, depois de ter pedido na "caixa" uma moeda, fechou-se na cabina para telefonar para Fresno.

- Está? - perguntou quando ouviu a voz de Vandling no outro extremo do fio. - Daqui fala Mason. Como vai o seu caso?

- O nosso, quer dizer.

- Oh, não me meta nessa história! - protestou Mason, rindo. - Que vai fazer?

- Ainda não sei bem, mas "Los Angeles" deu-me a entender que não tencionavam tirar, por mim, as castanhas do lume. Puseram as coisas nestes termos: já que começou, só lhe resta continuar; trate de descobrir novos dados...

- Pois então, aqui os tem: Mabel Norge, secretária do falecido Ed Davenport, recebera ordem de fazer alguns depósitos de última hora e, depois, levantar o total da conta de Paradise. Ela está aqui, no Antlers Hotel de San Bernardino, sob o nome de Mabel Davenport. Estou convencido de que, se a citar como testemunha, terá muitas coisas para contar. Mas não falará de motu próprio e parece-me muito capaz de tomar uns pós de prelimpimpim e desaparecer da circulação. Talvez lhe interesse saber que ela contou uma parte da sua versão ao procurador do Distrito de Oreville. Este deu-lhe a sua bênção. Julga-se, por conseguinte, em segurança. Mas não lhe contou tudo e o que lhe ocultou ser-lhe-á, a si, provavelmente muito útil.

- Aonde quer chegar? Pretende confundir a sua cliente?

- Pretendo confundir o assassino - replicou Mason.

- Mason, eu sigo o lema de desconfiar dos Gregos quando oferecem presentes.

- Sim, isso é um traço bem comum da natureza humana. Aceitam-se todas as espécies de negócios duvidosos, mas, quando alguém aponta o cavalo vencedor da quinta corrida, desconfia-se e não se aposta. Depois, se o cavalo ganha, roem-se as unhas, mas já é tarde de mais!

Depois de disparar estas palavras, Mason desligou.

- Mabel Norge retirou-se a toda a pressa - anunciou-lhe Della Street.

- Esplêndido! Se fugir, agravará o seu caso.

- E se ficar?

- Se ficar, Vandling deitar-lhe-á a mão. Vai reflectir uns dez minutos e, depois, não se atreverá a não agir. Telefonará para as autoridades daqui, a dizer-lhes que prendam Mabel Norge, que deve ficar à disposição da justiça, para testemunhar no caso Davenport.

- E nós que vamos fazer?

- Vamos de carro até Los Angeles para podermos tomar um avião da noite que nos leve a Fresno. Deste modo, poderemos começar a trabalhar amanhã, logo de manhã, e lançarmos todos os trunfos, se Vandling persistir em prosseguir este caso perante o tribunal!

 

Pouco antes da reabertura da audiência, Talbert Vandling foi ao encontro de Mason quando este entrava na sala do tribunal, acompanhado por Della Street e Paul Drake.

- Obrigado pela sopradela a respeito de Mabel Norge.

- Mandou-a prender?

- Certamente, - Que disse ela?

- Nada.

- Como? - espantou-se Mason.

- Chegou aqui acompanhada por um adjunto do xerife de San Bernardino e, durante o caminho, tomou a resolução de não falar. Arranjou um advogado que a aconselhou a não falar.

- Mas convocou-a?

- Certamente.

- E as autoridades de Los Angeles?

- Mostram-se muito reservadas e querem que eu me desembarace como puder.

- Que vai fazer?

- Por ora, vou continuar, visto que posso renunciar em qualquer altura. É muito provável que eu possua um trunfo que não queira mostrar-lhe, em virtude de sermos adversários.

- Adversários?

- Co'os diabos! Você é o advogado de defesa e eu procuro conseguir a condenação do assassino de Ed Davenport.

- Isso também eu!

- Sem dúvida, A diferença está em que acredita na inocência da sua cliente.

- E você?

- Certamente que não!

- Se fosse um pouco mais franco comigo, revelar-lhe-ia certos factos que o deixariam surpreendido.

- Desde que se trate de revelações, conceder-lhe-ei o máximo de facilidades.

- Obrigado.

- Mas, diga lá... Não procura enganar-me, não?

Mason abanou a cabeça:

- Eu procuro conseguir a absolvição de Myrna Davenport, provocando a detenção do assassino do marido.

- O procurador do Distrito de Los Angeles preveniu-me de que você era astuto e diabolicamente hábil. Não chegou exactamente a acusá-lo de transpor os limites da legalidade para conseguir os seus fins, mas deu-me a entender que seria capaz de estrangular a sua avó para favorecer os seus clientes.

- Porque não? - sorriu Mason. - No fim de contas, o meu papel é defender os meus clientes. E, na realidade, você não é minha avó, pois não?

- Se pretendo que a sua cliente seja condenada, é porque a julgo culpada.

- Por outras palavras, não quer que seja condenada, se estiver inocente?

- Vejo que me compreendeu perfeitamente. Dito isto, estou pronto a arriscar-me, trabalhando consigo em busca da verdade!

- Esplêndido! Olhe, já aí vem o juiz.

Enquanto a assistência se levantava e o juiz Si ler ocupava o seu lugar, Mason segredou a Vandling:

- Cite Mabel Norge como primeira testemunha e veja o que lhe consegue sacar.

- E se ela me passa uma rasteira?

- Isso, meu caro, já aconteceu. Praticamente, você está destribado e apenas lhe resta saber para que lado cairá.

- Gostaria de cair de pé.

- Faça o que eu lhe disse: chame Mabel Norge.

Vandling fitou Mason por um instante e depois virou-se para o juiz:

- Se o Tribunal mo permitir, gostaria de voltar a chamar o Dr. Renault, cujo depoimento foi interrompido pelo adiamento da sessão, mas antes disso gostaria de ouvir outra testemunha.

- A defesa não faz qualquer objecção - declarou Mason.

O juiz Si ler contentou-se em menear aprovativãmente a cabeça.

- Chamo Mabel Norge - disse então Vandling.

A rapariga levantou-se de má vontade, inclinou-se o necessário para trocar mais algumas palavras com o advogado, sentado a seu lado, e, depois, dirigiu-se para o assento das testemunhas, onde prestou juramento.

- Era secretária de Ed' Davenport? - perguntou-lhe Vandling.

- Sim, senhor.

- Quando o viu pela última vez?

- No dia onze.

- Ou seja, domingo, não é verdade?

- Sim, senhor.

- E onde foi que o viu?

- Em Paradise.

- Que se passou, em seguida?

- Mr. Davenport regressava de automóvel a Los Angeles. Saiu de Paradise por volta do meio-dia e tencionava ir directamente até Frescao, onde contava chegar antes da noite.

- Antes de partir, Mr. Davenport deu-lhe algumas instruções esspeciais ?

- Não sei o que quer dizer com instruções especiais - respondeu ela, precipitadamente, como se desejasse terminar o seu relato antes de ser interrompida por qualquer das partes. - Mr. Davenport tinha-me dito que, no caso de morrer inesperadamente, eu deveria providenciar para que o conteúdo de um certo sobrescrito fosse entregue às autoridades. Tinha-me dito que a mulher procurava envenená-lo e...

- Um momento! - interrompeu-a vivamente o juiz Si ler.

- Sim - fez notar Vandling - o que Mr. Davenport lhe disse não pode implicar a ré, a não ser que esta se encontrasse presente, nesse momento.

- A defesa não opõe qualquer objecção a que estas declarações constem dos autos - interveio Mason.

- Com que fim? - perguntou, surpreendido, o juiz Si ler. - Trata-se apenas de um testemunho por "ouvir dizer" e portanto não pode ter valor.

- Talvez possa vir a ter valor - respondeu Mason. - Esta conversa pode talvez incluir-se nas excepções previstas para testemunhos de "ouvir dizer". Não levanto qualquer objecção.

Como o juiz hesitasse visivelmente, Vandling interveio:

- Senhor Doutor Juiz, vamos abordar o caso de maneira diferente. Antes de ver Mr. Davenport pela última vez, este tinha-lhe entregue algum sobrescrito? - inquiriu, virando-se para a testemunha.

- Sim, senhor.

- Que fez a senhora a esse sobrescrito, Miss Norge?

- Meti-o num pequeno cofre que se achava numa gaveta da minha secretária.

- E Mr. Davenport deu-lhe instruções precisas, referentes a esse sobrescrito?

- Sim, senhor. Disse-me que a mulher procurava envenená-lo e encarregou-me de, caso viesse a morrer, entregar esse sobrescrito às autoridades, pois a mulher já envenenara a prima e...

- Desta vez mergulhámos, indubitavelmente, em conversa de terceiros - interveio o juiz Si ler - Isso pode fazer parte do res gestae-afirmou Mason.

- Res gestae de quê?- replicou o juiz Siler caus-ticamente. - É na verdade muito estranho vermos o advogado da defesa não só consentir, mas até reclamar, a aceitação de vários "diz-se" prejudiciais à sua constituinte. O Tribunal recusa-se a consentir, por mais tempo, o relato da conversa verificada entre a testemunha e o defunto, a menos que se possa determinar que a ré assistiu a essa conversa.

- Gostaria que o meu contra-interrogatório pudesse versar sobre esse ponto - disse Mason.

- Não, não e não. No fim de contas, existem regras que regem o processo de uma audiência e este não pode modificar-se segundo os desejos das partes constituintes. O Tribunal acha que, num caso destes, o advogado da defesa deve opor-se!

- Como V. Exª entender, Senhor Doutor Juiz - anuiu Mason, inclinando-se.

Depois de ter lançado um rápido olhar ao adversário, Vandling prosseguiu:

- Combinara com Mr. Davenport proceder a certas operações pecuniárias, no caso de se verificarem certos acontecimentos?

Mabel Norge hesitou e acabou por dizer:

- Não me julgo obrigada a responder a essa pergunta.

- Porque não?

De entre a assistência levantou-se um advogado.

- Se o Tribunal me permite, represento Miss Norge. Estou pronto a fornecer alguns elementos que contribuirão para o esclarecimento desse assunto. Todavia, torna-se preferível aos interesses da minha cliente, que as presentes declarações não sejam feitas sob juramento... Por exemplo, é possível que Miss Norge, secretária leal e dedicada, tenha recebido ordem de executar certas operações que julgava contribuírem para a conclusão de uma transacção mineira da maior importância para Edward Davenport. Ao ter conhecimento da morte do patrão, pode ter procurado executar essas ordens. Porém, uma vez em contacto com o procurador do Distrito do condado em que residia, Miss Norge foi informada de que, por lei, todos os bens que faziam parte da sucessão Davenport deveriam ser confiados à guarda dos executores testamentários, até validação do testamento. Pensando que a viúva-neste caso, a ré - fosse contrária às vontades do seu patrão e o tivesse envenenado- sublinho que se trata apenas da opinião da minha constituinte e não tem qualquer validade como declaração testemunhal - é possível que Miss Norge se tenha recusado a cooperar com a viúva e os seus representantes. Tecnicamente falando, certas operações executadas por Miss Norge podem parecer ilegais e é por isso que a aconselho a não responder à pergunta que acaba de lhe ser formulada.

Vandling fez uma careta e perguntou à testemunha:

- Na segunda-feira, dia 12, fez um depósito no Banco de Paradise?

- Sim, senhor.

- Procedeu também a um levantamento?

- Sim, senhor.

- Levantamento em dinheiro corrente?

- Sim, senhor.

- E onde se encontra, agora, esse dinheiro?

- O meu advogado depositou-o num cofre bancário.

- Considera esse dinheiro como sendo sua propriedade?

- Certamente que não.

- Nesse caso, a quem julga pertencer?

- Faz parte da herança deixada por Mr. Davenport. Os depósitos e levantamentos a que procedi foram realizados em obediência a instruções que dele recebi.

Vandling olhou para Mason e este abanou a cabeça.

- Nada mais - concluiu Vandling. - contra-interrogatório?

- Sim - respondeu Mason, que acrescentou, virando-se para a testemunha. - Disse que agira apenas de acordo com instruções dadas por Mr. Davenport?

- Exactamente.

- Mr. Davenport pedira-lhe que levasse para San Bernardino o dinheiro levantado da sua conta bancária?

- Sim, senhor.

- E que se instalasse no Antlers Hotel desta cidade, para aguardar novas instruções?

- Sim, senhor.

- E que se registasse nesse hotel com o nome de Mabel Davenport?

- Sim.

- E não lhe disse que deveria entregar esse dinheiro a uma certa pessoa, acontecesse o que acontecesse, e apesar de todas as dificuldades que viessem a surgir?

O advogado de Mabel Norge levantou-se:

- Sou obrigado, uma vez mais, a aconselhar a minha constituinte a não responder. Declaro ao Tribunal que a hipótese formulada por Mr. Mason pode muito bem corresponder à realidade, mas não posso permitir que a minha cliente admita certos actos ou certos factos.

- Nesse caso, nada mais tenho a inquirir - anunciou Mason, com um sorriso.

Vandling olhou-o, espantado, mas o advogado abanou a cabeça e solicitou:

- Gostaria agora que o Dr. Renault fosse novamente ouvido.

Depois de o médico ter ocupado o banco das testemunhas, Mason levantou-se e perguntou-lhe:

- Edward Davenport telefonou-lhe, pedindo que fosse examiná-lo na manhã de segunda-feira, dia 12?

- Já tive ocasião de o confirmar, várias vezes.

- E examinou-o?

- Sim.

- Ele declarou-lhe sentir certos sintomas, característicos de envenenamento por arséniico?

- Sim.

- Mas, pessoalmente, verificou esses sintomas?

- Verifiquei certos sintomas secundários que podiam corresponder aos sintomas iniciais descritos pelo doente e por ele sentidos, antes da minha chegada.

- Aí está uma resposta precisa, doutor. Agora, permita-me que lhe faça uma pergunta que talvez o embarace um pouco. Na véspera, ou seja, domingo dia 11, já contactara com Edward Davenport?

- Isso é um assunto particular que nada tem que ver com o exercício da minha profissão.

- Tem, sim, senhor! - afirmou Mason. - O senhor visitou Edward Davenport quando ele se encontrava registado no Welchburg Motel, aqui, em Fresno, sob o nome de Frank L. Stanton, não é verdade, doutor?

- Eu... Tenho de responder a esta pergunta, Senhor Doutor Juiz? - inquiriu o Dr. Renault.

- Certamente! - proferiu com vivacidade Vandling, que imediatamente se levantara.

- Fiz a pergunta ao Meritíssimo Senhor Doutor Juiz - replicou o médico.

- A pergunta é muito pertinente. Queira, pois, responder- ordenou o magistrado.

- Sim... visitei-o.

- E discutiu certos assuntos com ele?

- Conversei com ele.

- Essa conversa versou sobre certo tratamento a que o senhor deveria submetê-lo no dia seguinte, isto é, segunda-feira, dia 12, não é verdade?

- Recuso-me a prestar declarações sobre o que possa ter sido dito entre mim e o meu doente.

- Porquê?

- Sou obrigado a respeitar o segredo profissional.

- A menos que tenha verificado sintomas que requeressem a sua intervenção médica.

- A minha conversa com Mr. Davenport referiu-se a certos sintomas...

- Mr. Davenport disse-lhe desejar morrer, não é verdade?

- Recuso-me, uma vez mais, a relatar a conversa que tive com Mr. Davenport.

- Mr. Davenport subornou-o para que o ajudasse a representar uma comédia macabra. Ficou combinado entre os dois que na manhã seguinte o chamaria para o senhor o tratar de certos sintomas - apenas descritos pelo doente e não verificados - característicos de envenenamento por arsénico. O senhor ajudá-lo-ia a simular um estado de extrema fraqueza, resultante desse envenenamento, de modo a aparentar estar moribundo na presença da mulher. Não é isto exacto?

- Não responderei a essa pergunta.

- Não pode recusar-se a responder, pois não se refere a qualquer matéria confidencial.

Vandling levantou-se e gritou:

- Se a resposta à pergunta for afirmativa, estaremos, Senhor Doutor Juiz, na presença de um conluio criminoso e o segredo profissional não poderá ser admitido como subterfúgio.

- O Tribunal é igualmente desse parecer - declarou o juiz Siler.

- Nesse caso, recuso-me a responder, visto que a resposta poderá prejudicar-me - ripostou o Dr. Renault.

- Nunca vi uma situação semelhante! - exclamou o juiz Siler.

- De acordo com o que fora combinado e minuciosamente estabelecido entre os dois - prosseguiu Mason - o senhor anunciou a morte de Davenport e declarou que as circunstâncias em que esta ocorrera o obrigavam a participá-la às autoridades. Por conseguinte, fechou o quarto à chave, tendo o cuidado de não chamar imediatamente a Polícia para dar a Davenport tempo de saltar pela janela e fugir num automóvel propositadamente estacionado nas traseiras da casa. Davenport deveria então partir apressadamente para um lugar previamente escolhido onde se achava um carro atrelado, de campismo, cuja chave Davenport possuía e que continha uma muda de roupa destinada a substituir o pijama, não é verdade?

- Recuso-me a responder.

- Ele confiara-lhe - prosseguiu Mason - ter cometido certos abusos de confiança em detrimento da mulher e que uma parente desta a incitava a exigir-lhe prestação de contas. Necessitava, pois, de desaparecer, sob pena de ver-se descoberto e ser arrastado aos tribunais. Arranjara maneira de juntar vários milhares de dólares em dinheiro corrente e pediu que o ajudasse a desaparecer, não foi assim?

- Em virtude dos direitos que me são facultados pela Constituição, recuso-me a responder.

- Não lhe disse também ter envenenado Hortense Paxton e que as autoridades, achando essa morte suspeita, ordenariam, sem dúvida, uma exumação? E, nessa previsão, preferia passar por morto, prontificando-se a remunerá-lo generosamente para que o ajudasse a sair de apuros?

- Recuso-me a responder.

- E - prosseguiu Mason - depois de Davenport ter alcançado esse carro atrelado, o senhor deu-lhe a beber whisky com cianeto de potássio. Sabia que ele levava consigo, nas malas, uma elevada quantia em dinheiro corrente e deu-lhe a beber esse whisky...

- Não fiz nada disso! - gritou o Dr. Renault.- Ignorava absolutamente o conteúdo das malas. E visto que o senhor se mostra tão astuto, melhor seria que descobrisse o terceiro membro do conluio: a pessoa que deveria conduzi-lo nesse atrelado até Nevada!

- Alude, creio eu, a Jason L. Beckmeyer, detective particular de Bakersfield, não é assim?

- Exactamente!-gritou o médico. Mason virou-se então para Vandling:

- Em consequência disto, Sr. Procurador do Distrito, sugiro-lhe que ordene a detenção do Dr. Renault e assine um mandado de captura contra Jason L. Beckmeyer. Creio que, agora, já pouco nos falta para esclarecermos este caso, completamente.

- O Ministério Público - declarou Vandling, levantando-se- deseja exprimir o seu reconhecimento a Mr. Mason pela preciosa cooperação de que deu provas e renuncia a procedimento judicial contra a ré, Myrna Davenport.

 

Mason, Della Street, Paul Drake e Talbert Vandling, sentados em volta de uma mesa de sala de estar do apartamento que Vandling ocupava no Californian Hotel, ergueram os copos.

- À nossa saúde! - disse Vandling.

Depois de terem bebido, o procurador do Distrito continuou:

- Não compreendo, porém, por que razão o meu colega de Los Angeles me pôs de sobreaviso contra vocês, considerando-os perigosos, quando, afinal de contas, agora toda a gente aplaude o meu faro e a minha habilidade!

- Sinto-me muito feliz com isso. Se todos os seus colegas preferissem entender-se comigo dessa maneira, correria tudo, sempre, muito melhor. Fale-nos agora do Dr. Renault.

- Embora nos tenhamos recusado a garantir-lhe a impunidade ou a prometer-lhe fosse o que fosse, acabou por preferir libertar a sua consciência. Neste momento, parece estar tudo esclarecido. Tal como Mr. Mason deu a entender, Davenport envenenou Hortense Paxton, a fim de que a mulher herdasse a fortuna de Delano. Pôs-se imediatamente a explorar esse capital, de forma a aumentá-lo o mais possível e procurando, ao mesmo tempo, fazer recair as suspeitas sobre a mulher, para o caso de surgir qualquer inquérito.

Mason sacudiu a cabeça.

- "Davenport apercebeu-se de que poderia ser considerado suspeito, caso não arranjasse alguém em seu lugar. Foi por isso que resolveu declarar à mulher, em frente de Sara Ansel, que escrevera uma carta que seria enviada às autoridades, caso viesse a morrer; nessa carta acusá-la-ia de ter envenenado Hortense Paxton e de procurar também envenená-lo a ele, pelo facto de tê-la desmascarado.

"Aparentemente, esse sobrescrito apenas continha folhas em branco, mas Davenport tinha a certeza de que a mulher, impelida pela vingativa Sara Ansel, diligenciaria fazer desaparecer essa carta, caso ele morresse em circunstâncias que sugerissem o envenenamento. Depois de ter dado a Mabel Norge a nítida impressão de que a mulher tinha envenenado Hortense Paxton e procurava envenená-lo a ele, levou consigo quanto dinheiro pôde meter nas malas e partiu para Fresno, a fim de representar aí a comédia da sua própria morte.

"Entendera-se, já, anteriormente, com o Dr. Renault, médico de reputação duvidosa, para que as circunstâncias da sua morte induzissem a acreditar que fora envenenado e que alguém fizera, posteriormente, desaparecer o cadáver, para anular a possibilidade de uma autópsia.

"Davenport explicou a Renault que nada deveria desaparecer das suas malas, para não levantar suspeitas. Por esse motivo, tivera o cuidado de comprar um saco de viagem no qual levava alguns artigos de toucador e a famosa caixa de bombons, cujo conteúdo sabia ter sido tocado por sua mulher.

"Por meio de uma seringa hipodérmica, Renault injectou o veneno em cada um dos bombons e tapou os orifícios, por meio de uma agulha quente. Davenport dissera-lhe que introduzisse cianeto de potássio, nuns, e arsénico, noutros, porquanto sabia que a Polícia poderia provar que Myrna Davenport tinha em seu poder certa quantidade desses venenos. Davenport fechou as duas malas, cheias de notas de banco, no porta-bagagens do carro de que se serviria para fugir, e, em seguida, o Dr. Renault ministrou-lhe um purgante e um emético, para simular os sintomas de envenenamento por arsénico.

"Como é óbvio, Davenport levou consigo todo o dinheiro que pôde, da sua conta de Paradise, e esperava ainda receber certos depósitos, na sexta-feira ou sábado, o mais tardar. Estes não chegaram a tempo e ele não podia recuar, visto que tinham sido tomadas todas as disposições para que a sua morte simulada ocorresse na tarde de segunda-feira. Contou, portanto, uma história qualquer a Mabel Norge - rapariga crédula que lhe era muito dedicada - e recomendou-lhe que lhe enviasse o saldo da sua conta, após o levantamento dos referidos depósitos, para San Bernardino, onde contactaria com alguém que se daria a conhecer por meio de uma senha combinada. Esse alguém seria Beckmeyer, a quem Davenport já incumbira de alguns trabalhos. Quando Davenport lhe dissera que talvez se achasse na obrigação de deixar o país para evitar sérias perseguições, Beckmeyer falou-lhe de um médico de Crampton, que sabia ser capaz de muita coisa, a troco de dinheiro. Pôs os dois em contacto e ambos construíram um cenário perfeito.

"Pela sua parte, Renault recebeu cinco mil dólares em moeda corrente. Não deve ter chegado a saber quanto recebeu Beckmeyer, mas foi, certamente, muito mais. Na realidade, Beckemeyer deveria fornecer o automóvel em que Davenport fugiria e também rebocar o carro de campismo em que o fugitivo se esconderia até atingir Nevada. Dessa maneira, se alguém visse Davenport fugir pela janela, levaria a Polícia a procurá-lo e não conseguiriam encontrá-lo.

"Mabel Norge recebera indicação para estar no escritório de Paradise, na tarde de segunda-feira, a fim de aí atender a um telefonema que lhe indicaria aonde levar o dinheiro, para que a famosa transacção mineira pudesse realizar-se, sem conhecimento de Myrna Davenport. Tais eram as instruções dadas por Davenport à secretária.

"Pelo que nos disse Renault, Beckmeyer deveria ter suposto que Davenport transportaria consigo cerca de duzentos mil dólares, dentro das malas. Porque não fazê-lo, desde logo, desaparecer, de verdade?

"Se a primeira parte da comédia, na qual interviera o médico, decorresse como fora previsto, o Dr. Renault não duvidaria de coisa alguma, visto que o plano já implicava o desaparecimento de Davenport sem deixar vestígios.

"Por essa razão - já que não havia cadáver para apresentar aos investigadores - o plano fora arquitectado de forma a dar a entender que Myrna Davenport incumbira um cúmplice de fazer desaparecer o corpo do marido, depois de envenená-lo com bombons e ter ultimado a sua obra macabra enquanto permaneceu ao pé dele.

"Decidido a dar o grande golpe, Beckmeyer abriu a cova, uns três ou quatro dias antes da data combinada, perto do local onde se achava o automóvel da fuga e o carro campista, atrelado. Quando Davenport alcançou esse esconderijo, Beckmeyer deu-lhe de beber e arranjou-lhe ovos com presunto, visto que o Dr. Renault aconselhara Davenport a alimentar-se bem, caso quisesse realmente evitar uma fraqueza geral.

"Davenport comeu o presunto com ovos e então Beckmeyer incitou-o a beber, para festejarem o sucesso dos seus planos. O detective arranjou maneira de deitar cianeto no copo de Davenport e este morreu quase instantaneamente. Em seguida, Beckmeyer enterrou-o na cova previamente preparada e partiu com o carro de reboque. Sabia, porém, que havia ainda cerca de trinta mil dólares a receber da conta de Paradise. Fora encarregado de telefonar a Mabel Norge indicando-lhe o local aonde deveria levar-lhe o dinheiro. Deveria desligar o telefone logo a seguir, para evitar que alguém, em Paradise, tentasse localizar essa chamada, caso tivesse sido montada alguma vigilância.

"Beckmeyer era esperto. Quando verificou que o dinheiro não vinha, compreendeu que deveria ter falado com outra pessoa e não com Mabel Norge e, portanto, que se tinha comprometido. Resolveu então fingir ter sido encarregado por Davenport de vigiar o bangalô do motel em questão e enviou-lhe, a si, Mr. Mason, um relatório que justificava a sua presença nesse local.

"Eis, por alto, o que nos contou o Dr. Renault e é, provavelmente, a verdade. Todavia, Beckmeyer tentará lançar as culpas ao médico. Jogando com um e com o outro, acabaremos por descobrir rapidamente todos os pormenores desse caso."

- Por que razão se mostrou Renault tão teimoso, a respeito do cianeto de potássio?

- Após a autópsia, quando soube terem descoberto cianeto no estômago do morto, compreendeu o que deveria ter-se passado e tratou de forjar a sua defesa. Como declarara não ter verificado o menor sintoma de envenenamento por cianeto, enquanto tratara de Davenport, ficaria em muito maus lençóis, caso se não descobrisse a verdade.

"Por outro lado, se as crianças não tivessem descoberto a cova, nunca teríamos sabido o que se tinha passado e Myrna Davenport teria sido, sem dúvida alguma, condenada."

Mason pigarreou:

- Calculo como o Dr. Renault ficou, quando encontraram o cadáver e o médico legista concluiu tratar-se de envenenamento por meio de cianeto de potássio!

- Resta-me apenas agradecer-lhe, Mr. Mason, o seu auxílio precioso - concluiu Vandling. - Graças a si, tenho sido alvo das maiores felicitações pela feliz conclusão deste caso! Só não consigo perceber a maneira como adivinhou tudo isto!

- Eu não adivinhei coisa alguma - corrigiu Mason. - Apenas compreendi que uma só pessoa poderia prever que Edward Davenport iria adoecer em Crampton: era ele próprio. Ora, se Davenport combinara um golpe dessa natureza, certamente que o Dr. Renault estaria dentro do assunto. Quando se descobriu que a cova fora previamente aberta, pareceu igualmente provável que um terceiro personagem soubesse da intenção de Davenport, de adoecer, em Crampton. Finalmente, Vandling, você está convencido de que, se Beckmeyer e Renault cometeram o crime, e que o seu instigador foi convertido em vítima...

- ...a qual já recebeu justo castigo!-concluiu, sorrindo, o procurador do Distrito.

- Exactamente! - apoiou Mason, voltando a encher os copos e erguendo o seu. - Bebamos, portanto, meus amigos, pela Justiça Imanente.

 

                                                                                            Erle Stanley Gardner  

 

                      

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