Martins Pena
PERSONAGENS: MANUEL (primeiro caixeiro) ANGÉLICA (dona de casa) DEOLINDA (costureira) FRANCISCO (oficial de latoeiro) QUINTINO (sargento de fuzileiros) ANTÔNIO (caixeiro) JOSÉ (caixeiro, personagem muda)
A cena passa-se na cidade do Rio de Janeiro.
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ATO ÚNICO
CENA I O teatro, na antecena, representa uma sala com portas laterais e suas no fundo, pelas quais se vê o interior de uma taverna com seu balcão, onde estará um caixeiro e mais arranjos necessários tudo distribuído de modo tal, que fiquem bem a vista do espectador as pessoas de diferentes condições que entram na taverna durante a representação. De um e outro lado da sala, haverão algumas pipas, como é costume nas tavernas. No primeiro plano, à esquerda, uma escrivaninha apropriada ao lugar, etc. Ao levantar do pano, Manuel estará sentado a escrivaninha, verificando contas.
MANUEL (continuando a somar) ...E 4 são 10, e 9, 19, e 7, 26, soma tudo... duzentos e sessenta e oito mil trezentos e vinte réis... que deve o Sr. Laurindo da Costa à Viúva Pereira, por gêneros comprados em sua taverna durante cinco meses. Este é bom pagador, dinheiro seguro. (Pegando em outra conta) O Major José Felix deve à Viúva Pereira, etc., cento e vinte e nove mil e oitocentos réis... Contem com este... dinheiro perdido... É isto, querem todos comer a boa manteiga, o queijo frescal, o gordo paio... É só mandar um bilhetinho: Sr. Manuel, mande-me isto; Sr. Manuel, mande-me aquilo; mas quando chega a ocasião de pagar as contas é que são elas. Este não paga, aquele desculpa-se, outro descompõe, quer dar no pobre cobrador... É um inferno!... Ora, deste pobre major tenho eu pena. Mal lhe chega o soldo para pagar casa e educar quatro filhos que tem; mas, bem pensando, a venda de minha ama não é montepio militar... A nação que pague! (Chamando) Ó José? José?
CENA II Entra um menino de doze anos, de calça e em mangas de camisa, calçado de tamancos e muito sujo.
MANUEL Toma estas contas, vai cobrá-las. Os nomes aí estão (Dá um maço de papéis) Se algum dos devedores não quiser pagar, dize-lhe que o mandarei por no Jornal do Comércio. Anda, vai. (O menino sai) É o que se vê – tudo anda pingando. (Levantando-se) É boa! Quem come, pague! E quem não pode pagar, não coma... Ó Sr. Antônio? Sr. Antônio?
ANTÔNIO (dentro) Senhor?
MANUEL Chegue cá.
CENA III Manuel a Antônio, que entra do mesmo modo que José. – Chegou a pipa de aguardente que se foi buscar Trapiche da Ordem?
ANTÔNIO Já, sim senhor.
MANUEL Pois recolha-a, e logo à noite tempere-a com quatro barris de água.
ANTÔNIO Sim senhor.
MANUEL Os direitos cada vez estão mais subidos, e como não podemos encurtar as medidas, aumentamos o líquido... Em que estado estão aquelas pipas de vinho de Lisboa?
ANTÔNIO Ambas pelo meio.
MANUEL Pois acabe de as encher com água fresca e bote-lhe dentro dois engaços de bananas e uma porção de pau-campeche para lhe dar cor e tom; e quando o vender, diga aos fregueses que é vinho superior da Companhia do Alto-Douro.
ANTÔNIO Sim senhor.
MANUEL E não se esqueça de pendurar à porta este letreiro. (Tira de sobre a carteira um rótulo com letras grandes, que digam: único depósito da companhia do Alto-Douro) O público deixa-se levar por estas imposturas. Pode ir.
(Antônio sai com o rótulo)
CENA IV Manuel e depois Francisco.
MANUEL Estou fatigado! Muito custa dirigir-se uma venda bem afreguesada como esta. Mas, ah, se eu dela fosse dono, outro galo cantaria... Há seis anos que cheguei do Porto e ainda sou caixeiro. Não pensei, quando vim para o Brasil, que fizesse fortuna tão devagar. É verdade que sou primeiro caixeiro da taverna da viúva de meu amo, mas o que é isto para mim? Para mim, que sou ambicioso? Sim, uma ambição roedora me estraga a alma, dorme e acorda comigo, não me deixa um só instante tranquilo; traz-me em delírio, confunde-me as ideias. Ah, quantas vezes tenho eu vendido aguardente de França por aguardente do Reino, linguiças por paios e cebolas por alhos! Ambição, horrível martírio, quando te verei satisfeita?
(Entra Francisco)
FRANCISCO Adeus, Manuel.
MANUEL Como estás, Chico?
FRANCISCO Vamos remando, contra a maré.
MANUEL Chico, tu és bem feliz!
FRANCISCO Eu? estás enganado; no mundo não se pode ser feliz sem dinheiro, e eu não o tenho.
MANUEL Trabalha e terás.
FRANCISCO Trabalha! Sou, como bem sabes, oficial de latoeiro, e já por muitas vezes te tenho dito o que presentemente ganha um oficial de latoeiro. Olha, Manuel, minha avó dizia que no tempo dos vice-reis e mesmo no tempo de el-rei, qualquer que tivesse um ofício ganhava a vida e ainda ajuntava dinheiro. Agora o caso é outro.
MANUEL Deixa-te disso.
FRANCISCO Ora, dize-me, o que pode fazer um pobre latoeiro de país, quando a Rua do Ouvidor está cheia de latoeiros e lampistas franceses? Meu caro, se não fossem as seringas que fazemos para os moleques brincarem o entrudo, não sei o que seria de nós.
MANUEL Se vocês trabalhassem tão bem como eles...
FRANCISCO É um engano, é uma mania, e todos vão com ela; é obra estrangeira, e basta! Não se vê por esta cidade senão alfaiates franceses, dentistas americanos, maquinistas ingleses, médicos alemães, relojoeiros suíços, cabeleireiros franceses, estrangeiros de todas as seis partes do mundo. E resistem os artistas do país, se são capazes, a essa torrente! Porém meu pai é que é o culpado de estar eu hoje como estou.
MANUEL Como assim?
FRANCISCO Em lugar de ensinar-me o seu ofício, como ensinou-me, podia terme mandado para S. Paulo estudar leis. Bem podia estar deputado.
MANUEL Ah, ah, ah! Deste modo podemos ser tudo...
FRANCISCO Manuel, tu és filho de Portugal e não está bem ao fato da nossa Constituição. Ela diz: A lei é igual para todos. Isto quer dizer que todos podem ser tudo.
MANUEL Ah, entendes assim?
FRANCISCO No talento é que está a diferença. O homem de talento pode ser tudo quanto quiser, e tu bem sabes que eu tenho talento... Ainda ninguém pôde fazer, como eu, uma seringa de entrudo que esguiche água mais longe.
MANUEL Ora, Chico! (Sorrindo-se)
FRANCISCO Ora, Manuel, não sei o que te diga; às vezes custa mais fazer-se uma seringa de esguicho do que certas leis.
MANUEL Estás hoje pregador.
FRANCISCO Estou zangado; tu és feliz.
MANUEL Feliz?
FRANCISCO Há oito meses que teu amo morreu e a viúva não poderia continuar com a taverna aberta sem o teu auxílio. Eras o único, como primeiro caixeiro, que sabia das transações do defunto.
MANUEL (à parte e concentrado) E ainda sou caixeiro.
FRANCISCO Manuel, um negócio aqui me traz. És meu amigo, devo comunicarte, até porque és nele interessado.
MANUEL Interessado? E como?
FRANCISCO Estou resolvido a casar-me.
MANUEL Queres-me dar interesse no teu casamento?
FRANCISCO Não. A mulher escolhida por mim é tua ama.
MANUEL Minha ama?
FRANCISCO Ela mesma, e tenho razões para supor que lhe não sou indiferente.
MANUEL (pegando-lhe no braço) Chico, és meu amigo?
FRANCISCO Duvidas? Experimenta.
MANUEL Desiste desse casamento.
FRANCISCO Que eu desista? E por quê?
MANUEL Por quê? Não te posso dizer.
FRANCISCO Percebo... Queres-te casar com ela. Pois bem, mostrarei que sou teu amigo. Casa-te; tens mais direito do que eu... já estás em casa.
MANUEL (abraçando-o) Obrigado, amigo.
FRANCISCO Pois bem, casar-me-ei com a nossa vizinhança Deolinda.
MANUEL Chico, tu não te casará com Deolinda!
FRANCISCO Hein?
MANUEL Digo-te que não casarás com ela.
FRANCISCO Essa agora é melhor! E por que não me casarei?
MANUEL A Deolinda já está casada.
FRANCISCO Casada? E com quem?
MANUEL (em voz baixa) Comigo.
FRANCISCO Contigo? Mas que diabo de trapalhada é essa? És casado e queres casar?
MANUEL Chico, olha atentamente para mim.
FRANCISCO Estou olhando.
MANUEL Vês em mim um homem profundamente ambicioso...
FRANCISCO Tu?
MANUEL Sim, eu! E de uma ambição tão frenética, que me levará à sepultura se a não vejo realizada... De uma ambição ambiciosa!
FRANCISCO Tu me assustas! Acaso queres ser major da Guarda Nacional?
MANUEL (com desprezo) Não.
FRANCISCO Chefe de legião?
MANUEL Não.
FRANCISCO Tenente-general?
MANUEL Não.
FRANCISCO Conde? Marquês? Ministro?
MANUEL Não.
FRANCISCO Manuel, Manuel, que queres tu ser?
MANUEL (com mistério) Sócio de minha ama!
FRANCISCO (rindo-se) Ah, ah! E só isso?
MANUEL Só, dizes tu? E que felicidade pode haver no mundo maior para mim? Ah, não sabes que satisfação será a minha, quando escrever em uma conta: Fulano deve a Manuel Pacheco e Viúva Pereira a quantia de tanto, por gêneros comprados em sua venda. Sua, amigo, sua! Ela será também minha!
FRANCISCO Enfim, cada um tem lá ambição a seu modo.
MANUEL E ainda sou caixeiro! Caixeiro! Sabes tu o que é um caixeiro? É um traste que paga imposto à Câmara Municipal, como qualquer carruagem ou burro.
FRANCISCO Mas não vejo por que não queres que eu case com tua ama.
MANUEL Não vês?
FRANCISCO Logo que estiver casado, prometo dar-te sociedade.
MANUEL Sabes tu se ela te ama?
FRANCISCO Julgo que não lhe sou indiferente.
MANUEL Pois digo-te eu que ela não te ama, porque ama-me.
FRANCISCO A ti?
MANUEL Sim, e de uma maneira desesperada e danada. Amigo, Deus te guarde de amor de mulher velha; é pior do que carrapato em orelha de burro. Compreendes agora a minha posição?
FRANCISCO Ainda não muito bem.
MANUEL Por amor – maldito amor! casei-me em segredo com Deolinda; nem o seu próprio irmão, o Sargento Quintino, já sabe. Pensa agora o que será de mim, se minha ama desconfiar que a desprezei por causa de outra mulher... Raivosa, expulsar-me-á desta casa e minhas esperanças serão malogradas. É preciso enganá-la até o dia em que assinarmos a escritura de sociedade.
ANGÉLICA (dentro) Manuel?
MANUEL Ela que me chama! Vai-te embora!
FRANCISCO Adeus, e estimo que sejas bem sucedido.
MANUEL Nem palavra...
FRANCISCO Fica descansado. (Sai)
CENA V Manuel e depois Angélica.
MANUEL Ela aí vem. Estou frio! Ai, que bocado amargoso! Ei-la.
ANGÉLICA (entrando) Manuel?
MANUEL Senhora minha ama?
ANGÉLICA Ah, já estava inquieta...
MANUEL Oh, isso é bondade de minha ama. Trabalhava.
ANGÉLICA Não quero que trabalhes tanto, que podes adoecer. Far-me-ias muita falta.
MANUEL Ninguém faz falta.
ANGÉLICA As pessoas como tu fazem sempre falta.
MANUEL (à parte) Temo-la!
ANGÉLICA Não se encontram muitos caixeiros como tu.
MANUEL Oh, minha ama, dá licença que vou ver aquilo lá pelo balcão como vai.
ANGÉLICA Espera! Tens sempre tanta pressa quando falo contigo...
MANUEL Acudir as minhas obrigações.
ANGÉLICA Já te disse que não quero que te mates. Não acharei outra pessoa com as tuas qualidades.
MANUEL Oh, minha ama, não mereço.
ANGÉLICA Merece tudo. A experiência do mundo tem-me feito conhecer os homens.
MANUEL (à parte) Que tal a experiência?
ANGÉLICA É todo o meu cuidado zelar a tua saúde.
MANUEL Tanta bondade!
ANGÉLICA (suspirando e olhando para ele) Ai, ai!
MANUEL Minha ama, sente alguma dor?
ANGÉLICA Não.
MANUEL (à parte) O caso está mau.
ANGÉLICA Manuel, uma coisa te quero eu pedir.
MANUEL É uma ordem que recebo.
ANGÉLICA Espero que não frequentes certas ruas desta cidade e que, sobretudo, não arranches para essas patuscadas dos domingos, que fazem os caixeiros no Jardim Botânico, nos canos da Carioca e nas Paineiras. Tens visto o resultado.
MANUEL Nunca gostei desses pagodes.
ANGÉLICA Nem deves do mesmo modo frequentar os bailes mascarados.
MANUEL Bailes? Não sei dançar.
ANGÉLICA Manuel, nos bailes mascarados não se dança, joga-se! Dever-se-iam antes chamar jogos mascarados, ou outro nome que eu não quero dizer. Aí é que a perdição é certa... E o jogo tem levado muita gente boa a forca; vê lá se queres também...
MANUEL Morrer enforcado? Nada!
ANGÉLICA Tu morreres? Ah! (Chegando-se para ele) O que seria de mim, quero dizer, da minha venda, Manuel? Não fales em morrer. (Pegando-lhe na mão) Eu te seguiria...
MANUEL (à parte) Oh, homem, até depois de morto!
ANGÉLICA (caindo em si, à parte) Ia traindo-me (Alto) Digo-te isto, porque se me faltares, o meu negócio vai por água abaixo.
CENA VI Manuel, Angélica e Quintino (com farda de sargento de fuzileiros).
QUINTINO (entrando) Licença.
MANUEL (à parte) Abençoada visita!
ANGÉLICA Quem é?
QUINTINO Um criado.
MANUEL (reconhecendo-o em parte) Oh, diabo, é o irmão de minha mulher e meu cunhado sem o saber!
ANGÉLICA Deseja alguma coisa?
QUINTINO Dois dedos de conversa ali com o senhor...
MANUEL Comigo?
QUINTINO Sim senhor.
MANUEL Pois vamos cá para fora.
ANGÉLICA Espera, Manuel, onde vais?
QUINTINO Podemos falar aqui mesmo.
MANUEL (à parte) Eu tremo...
QUINTINO (pondo a barretina à cabeça, de lado) Dizem neste quarteirão que o senhor namora minha irmã.
MANUEL Não há tal.
ANGÉLICA Como é lá isso?
MANUEL (à parte) Estou arranjado...
QUINTINO Foi a primeira notícia que hoje tive, assim que cheguei da Praia Vermelha. O sapateiro da esquina disse-me...
ANGÉLICA (enfurecida) Como é isto, Manuel?
MANUEL O senhor está enganado. (Para Angélica) Não sabe o que diz, está bêbado.
QUINTINO O sapateiro da esquina disse-me que o viu entrar ontem à noite lá.
ANGÉLICA Entrar lá?
MANUEL E o que prova isso?
ANGÉLICA O que prova? E esta!...
MANUEL Sua irmã não cose para fora?
QUINTINO Cose, sim senhor, e com muita honestidade.
MANUEL Pois então? Mandei fazer por ela umas camisas e fui ontem ver se estavam prontas; se quiser, vá perguntar-lhe.
QUINTINO Se foi só por isso, o caso é outro...
MANUEL E por que mais havia de ser? Importo-me cá com sua irmã? O que tenho eu com sua irmã? Faço lá caso dela? (À parte) E não me quer deitar a perder?
ANGÉLICA Manuel!
MANUEL Deixe-me.
QUINTINO Está bom, homem.
ANGÉLICA Manuel!
MANUEL Estou zangado! Assim se desacredita ao homem de bem.
QUINTINO Em uma palavra, não a namora?
MANUEL Vá-se com todos os diabos você, sua irmã e toda a sua parentalha.
QUINTINO Mais respeito!
MANUEL Pois não me esquente a cabeça! Ora, não tenho eu mais que fazer! Deixar de cuidar nos interesses de minha boa ama, para namorar sua irmã. Era o que me faltava... Diga ao sapateiro que vá conversar com os defuntos. Irra!
QUINTINO Basta. Como não se importa com ela...
MANUEL Nem com você, sô barbaças!
QUINTINO (puxando da espada) Barbaças?
(Manuel corre para trás de Angélica)
ANGÉLICA (para Quintino) Senhor!
QUINTINO Barbaças? Eu te ensinarei.
ANGÉLICA Senhor sargento...
QUINTINO Deixe-me sangrá-lo.
MANUEL (à parte) Quer fazer a irmã viúva...
ANGÉLICA (para Quintino) Tranquilize-se, embainhe essa espada.
QUINTINO (para Manuel) Já eu te rezava por alma. Respeito as senhoras; é o que te salva.
MANUEL (à parte) Belo cunhado!
ANGÉLICA O senhor sargento pode ficar descansado; o Sr. Manuel, meu primeiro caixeiro, não é capaz de desinquietar sua irmã.
MANUEL Que dúvida!
ANGÉLICA Tem outras coisas em que cuidar.
MANUEL Sim, tenho outras muitas coisas. (Assim dizendo, pega na mão de Angélica e beija)
ANGÉLICA Ah! (Pondo a mão sobre o coração)
QUINTINO Muito estimo, porque tenho cá certas vistas a seu respeito... Quero casá-la...
MANUEL (à parte) Casar minha mulher!
QUINTINO (continuando) ...com o alferes de minha companhia.
MANUEL Casá-la com o alferes?
QUINTINO Sim. E tem que dizer?
MANUEL Casá-la!
ANGÉLICA E o que tens tu com isto?
MANUEL (constrangendo-se) Nada, nada! (À parte) E então? (Alto) Pode casá-la com quem quiser. (À parte) O diabo é se ela se esquece que está casada comigo...
QUINTINO Meu menino, esta espada corta muito bem orelhas... E guarde-os Deus. (Sai)
CENA VII Manuel e Angélica.
MANUEL Ora, aí está como se bota um homem a perder. Vem o diabo de um Ferrabrás destes provocá-lo.
ANGÉLICA É um desaforo!
MANUEL Se não fosse o respeito que tenho a esta casa, tinha-lhe cortado com aquela pipa à cabeça.
ANGÉLICA Soldado de Tarimba!
MANUEL Case lá a irmã com quem quiser.
ANGÉLICA Mas tu te surpreendeste, quando ele disse que a ia casar com alferes.
MANUEL Foi surpresa de compaixão. Quem pode ver de sangue frio entregar uma pobre menina daquelas a um extravagante como é o alferes?
ANGÉLICA É extravagante?
MANUEL Xi, como não faz ideia! Já foi coronel, e por causa de sua má cabeça tem descido de postos; breve soldado raso. Mas deixá-lo...
ANGÉLICA Assim o querem, assim o tenham. Tratemos de nós.
MANUEL (à parte) Ai!
ANGÉLICA Manuel, eu estou resolvida a dar sociedade nesta minha venda a certa pessoa...
MANUEL (à parte) Meu Deus!
ANGÉLICA Uma mulher, por si só, pouco representa. Que dizes do meu projeto?
MANUEL Que só resta-me sair desta casa.
ANGÉLICA Sair de minha casa?
MANUEL Enquanto sois dela única senhora, sirvo com prazer; mas quando tiverdes um sócio, um homem estranho, não posso, não devo.
ANGÉLICA (sorrindo-se) Não sejas tão precipitado; espera um instante. Eu vou lá dentro escrever um papel; não te digo mais nada... Lerás... Espera, Manuelinho, espera; lerás... (Sai)
CENA VIII Manuel, só, e depois Deolinda.
MANUEL Será possível? Ouviram bem meus ouvidos suas palavras? Espera, Manuelino, espera e lerás. Ó dita! Ó fortuna! Serei sócio! Sócio! Oh, o prazer sufoca-me; daqui a uma hora já não serei caixeiro; vou andar de cabeça levantada, orgulhoso, ufano... Sócio! Palavra mágica! Ninguém, ninguém no mundo perturbará a minha felicidade.
DEOLINDA (entrando) Manuel?
MANUEL Oh, que havia-me esquecido de minha mulher!
DEOLINDA Ouve...
MANUEL Vai-te embora!
DEOLINDA Hein?
MANUEL (empurrando-a) Vai-te embora, diabo!
DEOLINDA Assim me recebes? Queres que me vá?
MANUEL Sim, sim.
DEOLINDA Sabes que mais? Isto assim não pode durar... É preciso que declares o nosso casamento.
MANUEL (com cólera e falando baixo) Desgraçada, cala-te, cala-te!
DEOLINDA Se és meu marido...
MANUEL (tapando-lhe a boca com a mão) Cala-te, ou meto-te esta mão pela boca dentro.
DEOLINDA (chorando alto) Hi! hi! hi!
MANUEL (raivoso e falando entre os dentes) Olha que te mato!
DEOLINDA Hi! hi! hi!
MANUEL (na maior aflição) Se minha ama chega, estou arranjado! (Raivoso) Mulher! (Indo espiar a porta) Hoje me perco! Ainda estará escrevendo? (Com ternura) Deolinda...
DEOLINDA Hi! hi! hi!
MANUEL Deolinda, não chores, tem compaixão de teu marido, que tanto te ama.
DEOLINDA Deixe-me! Hi! hi! hi!
MANUEL (à parte) Se a velha chega... (Para Deolinda) Amanhã ou depois tudo declararei, mas hoje, oh!
DEOLINDA E até lá, meu irmão estará maltratando-me e atrapalhando-me para que eu me case com o alferes.
MANUEL Mas tu não te casarás!
DEOLINDA Quem sabe!
MANUEL Quem sabe! Isso são graças? vê lá...
DEOLINDA Tenho muito medo de meu irmão, e demais, meu marido está tão misterioso... Não quer declarar-se...
MANUEL E julgas que não tenho razões para assim fazer? Deolinda, minha cara Deolinda, escuta-me. Minha ama quer dar-me sociedade nesta venda, mas se ela souber que estou casado, tudo desfará.
DEOLINDA E por quê?
MANUEL Ela julga que um homem casado não deve ter sociedade com outra mulher e nem pode dirigir com todo o cuidado uma casa como esta. A mulher, os filhos, a família... tomam tempo...
DEOLINDA E logo que fores sócio...
MANUEL Oh, então declarar-me-ei...
DEOLINDA Pois, esperarei, visto que esse é o motivo.
MANUEL E que outro poderia ser? Não és tu a minha querida mulher? Dá-me um abraço e vai-te embora. Dá-me.
(Abre os braços para abraçar Deolinda. Angélica entra neste momento)
CENA IX Angélica com um papel e os ditos
ANGÉLICA Manuel?
(Manuel, ouvindo a voz de Angélica, fica com os braços abertos na ação de abraçar Deolinda)
DEOLINDA Ah!
ANGÉLICA O que é isto? Com os braços abertos?
MANUEL (confuso) Estava mostrando o comprimento dos braços, para medida das camisas.
ANGÉLICA Ah, a senhora é a Sra. Deolinda, que cose para fora e com muita honestidade?
DEOLINDA Uma sua criada.
ANGÉLICA E que vem em pessoa tomar medida aos fregueses... em suas próprias casas... e tudo com muita honestidade?...
MANUEL (à parte) Elas pegam-se! (Alto) Minha ama!
DEOLINDA Minha senhora, a honestidade guarda-se em toda a parte quando se é honesta; e quando não se é...
MANUEL (para Deolinda) Deolinda!
DEOLINDA (continuando) ...mesmo sem que seja necessário sair-se de casa, praticam-se atos que envergonham...
ANGÉLICA O quê?
MANUEL (para Deolinda) Cala-te!
DEOLINDA ...e dizem-se palavras indignas de uma senhora de bem...
ANGÉLICA A menina fala comigo?
DEOLINDA ...e só próprias de uma vendelhona!
ANGÉLICA Insolente!
MANUEL Minha ama!
ANGÉLICA Já desta porta para fora... Já!
DEOLINDA (com zombaria) Ofendi a duquesa?
ANGÉLICA (querendo ir sobre ela) Desavergonhada!
MANUEL (retendo-a) Prudência!
DEOLINDA Será ela...
MANUEL (afastando-as) Prudência... Senhora minha ama! Sra. Deolinda!
ANGÉLICA Deixa-me ensinar esta malcriada!
DEOLINDA Malcriada será ela, velha de uma figa!
ANGÉLICA Velha?
(Angélica e Deolinda forcejam para ir uma contra a outra)
MANUEL (para Deolinda, enganando-se) Senhora minha ama! (Para Angélica, do mesmo modo) Deolinda! Diabo!...
CENA X Francisco e os ditos.
FRANCISCO Então, o que temos?
MANUEL Prudência, que aí vem gente.
FRANCISCO Senhora D. Angélica... (À parte, vendo Deolinda) Deolinda por cá? Mau!
ANGÉLICA Senhor Francisco, isto é um horror, um desaforo! O Sr. Manuel traz as suas costureiras – costureiras! – para casa e elas vem insultaremme.
MANUEL Eu, senhora minha ama? Eu, Manuel Pacheco? Pois bem, hoje mesmo sairei desta casa.
ANGÉLICA Saíres de minha casa?
MANUEL Desconfiam de mim... Que faço aqui? Não faço nada. Vou-me, voume com cem mil milhões de diabos!
ANGÉLICA Manuel!
MANUEL Adeus, senhora.
ANGÉLICA (retendo-o) Não, tu não sairás... não posso... meu negócio não pode estar sem ti.
MANUEL Deixe-me!
ANGÉLICA Não! Sr. Francisco, ajude a segurá-lo
FRANCISCO Então, Manuel, o que é isto?
DEOLINDA Desgraçada de mim! Ela o ama! (Vai a sair pelo fundo)
ANGÉLICA Manuel, Manuel, não me abandones.
CENA XI Quintino e os ditos.
QUINTINO (encontrando-se a porta com Deolinda) Espere lá.
ANGÉLICA Quem é?
MANUEL (à parte) Meu cunhado...
FRANCISCO (à parte) Temos!...
QUINTINO (trazendo Deolinda para frente) Preciso de uma explicação.
DEOLINDA Deixe-me!
ANGÉLICA (para Quintino) Mas o que é isto, senhor?
MANUEL Sim, o que é isto? Assim se entra por uma casa?
QUINTINO (para Deolinda, sem dar atenção aos demais)
Não estavas em casa. Muito estimo encontrar-te aqui. É preciso que todos me ouçam: Deolinda, disseram-me que tu te casaste ocultamente...
DEOLINDA Eu?
MANUEL (à parte) Mau!
ANGÉLICA Casada!
QUINTINO Não procures enganar-me; estou bem informado.
DEOLINDA Pois bem, confessarei: Sou casada.
QUINTINO Ah, confessas?
MANUEL (à parte) Estou perdido!
FRANCISCO (à parte e ao mesmo tempo) No que dará isto?
ANGÉLICA É possível?
QUINTINO Agora quero saber quem é teu marido.
DEOLINDA Ah, ainda não sabe? Pois então pergunta ali o Sr. Manuel.
MANUEL A mim?
ANGÉLICA (ao mesmo tempo) A ele?
DEOLINDA Sim; diga a meu irmão quem é meu marido.
MANUEL Que eu diga?
ANGÉLICA Que horrível desconfiança... E esta escritura? (Querendo rasgar o papel)
MANUEL (Pegando-lhe na mão) Espere!
DEOLINDA (à parte) O que ia eu fazendo?
MANUEL (para Quintino) Senhor sargento, eu queria guardar segredo, porque assim mo pediram; mas como o negócio está meio divulgado, falarei. Fui padrinho do casamento...
ANGÉLICA Tu?
MANUEL E assim, sei quem é o marido.
QUINTINO E quem é?
MANUEL O Sr. Francisco.
FRANCISCO Hein?
DEOLINDA O que diz?
ANGÉLICA (ao mesmo tempo) O Sr. Francisco?
QUINTINO Ah, o senhor é meu cunhado?
FRANCISCO Eu, senhor?
MANUEL (abraçando-se com Francisco) Amigo, perdoa se falei... (À parte para ele) Salva-me, Chico, salva-me! (Alto) O negócio estava meio sabido... (À parte) Dize que te casaste...
FRANCISCO Mas, se tu...
MANUEL Está zangado porque falei. (À parte) Salva-me, Chico!
FRANCISCO (à parte) Tranquiliza-te... (Alto) Enfim, como já se sabe, que remédio?... Estou casado com a senhora... A senhora... é minha mulher... (À parte) Já que assim quer seu marido...
ANGÉLICA (à parte) Aqui há mistério...
QUINTINO O que está feito, está feito. Lograram-me. Cunhado, aperta esta manopla. Quisera antes que a Deolinda se casasse com o alferes; mas enfim, também és bom rapaz. Vou ao "Gradil" encomendar um jantar; há de haver bebedeira grossa. Com licença da companhia; volto. (Vai-se)
MANUEL (à arte) Escapei de boas!
ANGÉLICA Com que, o Sr. Francisco é casado!
FRANCISCO O homem sacrifica-se, as vezes.
ANGÉLICA (para Manoel) E nunca me disseste nada.
MANUEL Segredo de um amigo.
DEOLINDA (à parte) Que papel faço eu aqui?
ANGÉLICA (à parte) Estou desconfiada; aqui engana-se alguém. Ah, se for a mim... (Alto) Manuel, vem comigo; o Sr. Francisco quererá ficar só com sua mulher...
MANUEL Só, com ela!
ANGÉLICA E o que tem isso?
MANUEL (à parte) Pergunta o que tem... (Alto) Nada, nada!
ANGÉLICA Pois segue-me. (À parte) Há mistério!
MANUEL Eu vou. (À parte, para Francisco) Chico!...
(Angélica sai. Manuel acompanha Angélica, fazendo sinais para Francisco)
CENA XII Francisco e Deolinda.
FRANCISCO Pobre Manuel, a quanto o obriga a ambição!
DEOLINDA Belo marido tenho eu, que me entrega a outro.
FRANCISCO Então, Sra. Deolinda, que me diz a esta? Deve-me estar agradecida; salvei seu marido.
DEOLINDA Que marido! Envergonha-se de ter-me por mulher.
FRANCISCO Não é vergonha, é medo.
DEOLINDA Medo? Antes me tivesse casado com outro.
FRANCISCO Não me quiseste a mim por marido...
DEOLINDA Vou-me embora.
FRANCISCO (retendo-a) Espere.
DEOLINDA Não posso mais estar aqui.
FRANCISCO Devagar, não comprometa seu marido.
DEOLINDA Deixe-me.
FRANCISCO Sinto passos; aí vem ela. Dê-me um abraço. (Abraça-a)
DEOLINDA (esforçando-se por sair de seus braços) Senhor!
CENA XIII Os ditos, Angélica, seguida de Manuel, que traz algumas garrafas. Param à porta vendo Francisco abraçar Deolinda.
FRANCISCO Não se espante. Isto é por conta dele. Abrace-me, que ela nos vê.
DEOLINDA (vendo Manuel) Ah, pois bem, abracemo-nos. (Abraça-o) Assim me vingarei dele.
MANUEL (à parte) Isto não pode ser!...
ANGÉLICA (retendo-o) E que te importa que o Sr. Francisco abrace sua mulher?
MANUEL É indecente!
ANGÉLICA Deixa-os lá e vem comigo.
(Vai atravessando a cena e sai. Manuel vai acompanhando Angélica)
DEOLINDA (correndo e retendo Manuel no momento deste sair) Vem cá!
MANUEL Traidora!
DEOLINDA Ah, está zangado?
MANUEL Abraçando-o!
DEOLINDA Fiz muito bem; é para teu ensino.
FRANCISCO Pateta, não vês que era para melhor enganar tua ama?
MANUEL Ah, era para isso? Perdoa-me, Deolinda. Chico, pega nestas garrafas. (Dando-as a Francisco) Se soubesses, Deolinda, o que tenho sofrido hoje!
FRANCISCO Agora abracem-se.
MANUEL Perdoa-me se te dei outro marido? Era para nosso bem. Dá cá um abraço.
DEOLINDA (abraçando-o) Sou muito boa em perdoar-te!
(Francisco, enquanto os dois se abraçam, desarrolha uma garrafa e bebe)
MANUEL Minha mulherzinha, aperta!
CENA XIV Angélica e os ditos.
ANGÉLICA (da porta) Que escândalo! Que escândalo! (Francisco, Manuel e Deolinda ficam espantados) Assim deixa abraçar sua mulher? E vê isso bebendo? Que imoralidade! Que escândalo!
FRANCISCO Foi por distração e sede.
MANUEL É afilhada... Sou padrinho, e bem vê...
ANGÉLICA Sim é afilhada! (Para Francisco) O senhor, pelo que vejo, não é ciumento... E a menina... Está bonito!
FRANCISCO Entre amigos não deve haver ciúmes – e quando há confiança na amizade, bebe-se.
ANGÉLICA E dorme-se... Tem razão. Mas olhe que há muita gente que assim se perde pela confiança que tem nos amigos... (À parte) Eu saberei como isto é. (Para Manuel) Vai acabar de arrumar as garrafas.
MANUEL (à parte, para Francisco)
E cuidado com a bicha. (Vai-se)
ANGÉLICA (para Francisco) Tinha que lhe dar uma palavra... Mas ao senhor só.
FRANCISCO Deolinda, vai-me esperar lá em casa.
DEOLINDA Eu vou. (À parte, para Francisco) Diga a Manuel que lá o espero. (Sai)
CENA XV Angélica, e Francisco, e depois Manuel e Quintino.
ANGÉLICA (à parte) Hei de saber como isto é... Empregarei um meio...
FRANCISCO A Sra. Angélica está tão pensativa!
ANGÉLICA E tenho motivos para isso. Sr. Francisco, é preciso que eu seja sincera com o senhor.
FRANCISCO Há muito que isso desejo.
ANGÉLICA O senhor tem-me dado a entender que minha mão lhe seria agradável...
FRANCISCO Senhora...
ANGÉLICA Não tenho correspondido às suas finezas, porque, enfim... uma mulher vexa-se... Esperava poder confessar um dia esse segredo, mas ah, enganei-me, enganei-me!
FRANCISCO D. Angélica!
ANGÉLICA Foi uma zombaria! Eu, que o amava...
FRANCISCO A mim?
ANGÉLICA Sim, ingrato, a ti.
FRANCISCO Oh! (À parte) O Manuel que se arranje como puder; eu falo.
ANGÉLICA A mim, semelhante traição! A mim, que já havia feito esta escritura de casamento; vê... Só o nome está em branco. O lugar era para o teu.
FRANCISCO Dá-me!
ANGÉLICA Agora de nada serve. (Quer rasgar)
FRANCISCO Não rasgue!
ANGÉLICA Estás casado.
FRANCISCO Casado! (À parte) Leve o diabo o Manuel! (Alto) Angélica, quem te disse que estava casado, mentiu.
ANGÉLICA Mentiu?
FRANCISCO Eu não estou casado.
ANGÉLICA Não estás casado? E quem é o marido de Deolinda?
FRANCISCO Não lhe posso dizer, mas juro-lhe que estou tão solteiro como quando nasci. Eis-me a seus pés! (Ajoelha) Dê-me essa promessa.
ANGÉLICA Levanta-te.
(Quintino aparece à porta do fundo e fica surpreendido, vendo Francisco aos pés de Angélica)
FRANCISCO Não me levantarei enquanto não me der a sua palavra que me fará ditoso.
QUINTINO O marido de minha irmã ao pés de outra mulher?
ANGÉLICA Lá de fora podem ver-nos...
FRANCISCO E que vejam! Não serei eu seu esposo?
(Manuel aparece à porta da direita e, vendo Francisco de joelhos. Fica estupefato)
ANGÉLICA Talvez, mas levanta-te.
FRANCISCO Não.
MANUEL Muito bem, muito bem! Amigo falso!
FRANCISCO (levantando-se) Ah!
ANGÉLICA Ah!
MANUEL Muito bem!
FRANCISCO Desculpa-me... Ela me ama e eu também a amo.
QUINTINO (que nesse tempo tem-se se aproximado, segura a Francisco pela gola da jaqueta, dizendo) Ah! Tu a amas? E minha irmã, tua mulher?
FRANCISCO Ai!
QUINTINO Assim a enganas, patife?
FRANCISCO Sua irmã não é minha mulher.
QUINTINO Negas?
ANGÉLICA (para Manuel) Quem é o marido?
MANUEL Não sei.
(Angélica toma a Manuel pelo braço. Quintino faz o mesmo a Francisco, todos falam ao mesmo tempo)
ANGÉLICA (para Manuel) Quem é o marido? Para que me enganaste? Dize já, quero saber. Ah, não dizes? Eu me vingarei, me vingarei.
MANUEL (para Angélica) Não sei... Posso lá saber quem é o marido de todas as mulheres? Disse o que me disseram; pode ser que me engane. Senhora minha ama, deixe-me, assim não nos entendermos.
QUINTINO (para Francisco, a quem ameaça com a espada) Pensas que assim hás de mangar com o Sargento Quintino? Primeiro hei de tirar-te as tripas, pô-las ao sol. Enganar minha irmã! Tira as mãos... enfio-te... mariola... tira as mãos!
FRANCISCO (esforçando-se para sair das mãos de Quintino) Deixe-me, não sou seu cunhado, já lhe disse. Ai, ai, não me mate! Ai, quem me acode? Juro que não é minha mulher! Ai, ai!
(Todos acabam gritando)
CENA FINAL Antônio e José, armados de achas de lenha, Deolinda e os ditos.
ANTÔNIO (entrando) O que aconteceu?
DEOLINDA O que é, Quintino?
ANTÔNIO Senhora minha ama!
DEOLINDA O que foi?
QUINTINO (para Deolinda) O que foi? Vim encontrar teu marido aos pés desta senhora.
DEOLINDA Meu marido de joelhos a seus pés?
QUINTINO Sim, dizendo que a amava.
DEOLINDA (indo para Manuel) Traidor!
MANUEL Hein?
DEOLINDA Assim é que me guardavas fidelidade?
ANGÉLICA Ah!
QUINTINO Olha que te enganas!
DEOLINDA Não, não me engano; este é o meu marido.
QUINTINO Seu marido?
ANGÉLICA (ao mesmo tempo) O Seu marido?
MANUEL (à parte) Ai, ai, ai!
FRANCISCO (à parte e ao mesmo tempo) Pobre Manuel!
ANGÉLICA (para Manuel) Ah, tu eras casado e enganavas-me!
DEOLINDA A mim é que enganava.
QUINTINO Então, com todos os diabos, quem é aqui meu cunhado?
MANUEL (apontando para Francisco) É ele! É ele!
FRANCISCO (apontando para Manuel ao mesmo tempo) É ele! É ele!
QUINTINO (para Deolinda) Ambos?
ANGÉLICA Espere Sr. Sargento, que eu porei estas coisas em ordem. (À parte, para Manuel) – Ingrato, tudo está explicado e eu me vingarei!
MANUEL Minha ama!
ANGÉLICA (repelindo-o com gesto desprezador)
Senhor Francisco, aqui está a escritura de nosso casamento. (Dá-lhe o papel)
FRANCISCO Quanto sou ditoso!
MANUEL Mas senhora...
ANGÉLICA (interrompendo-o) O Sr. Manuel terá a bondade de procurar outro arranjo, porque hoje deixa de ser o meu caixeiro. Tenho um marido e nele um sócio.
MANUEL Um sócio! (Para Francisco, na maior desesperação) Amigo infiel e pérfido, és a causa da minha desgraça e perdição!
FRANCISCO Eu, Manuel?
MANUEL Sim.
FRANCISCO Fiz o que pude por ti, fui marido de tua mulher... Tu és o culpado, eu não.
MANUEL (voltando-se para Deolinda) Então foste tu, mulher traidora!
DEOLINDA Eu? Não guardei segredo? Queixa-te de ti; de mim, não.
MANUEL (para Quintino) Então foste tu, barbaças do diabo!
QUINTINO (ameaçando-o)
Passe de largo!
MANUEL (voltando-se para Angélica) Ou tu, carocha do inferno!
ANGÉLICA Maroto! Já por esta porta fora e vai ser caixeiro de Belzebu!
MANUEL (como louco) Caixeiro, sempre caixeiro! Oh, afastem-se de mim, que estou louco, desesperado, furibundo! Para longe! Serei sempre caixeiro, caixeiro, caixeiro! Pagarei sempre imposto, como uma saca de café, um burro, um cavalo. Não sou nada no mundo. Cortem-me esta cabeça, pendurem-me na porta do açougue. Sou um boi; paguei direitos na barreira. Sou um boi. (Assim dizendo, principia a berrar como um boi)
TODOS Manuel! (Manuel berra)
DEOLINDA Meu Deus, está louco!
TODOS Louco!
(Manuel berra)
DEOLINDA Que desgraça!
FRANCISCO (ao mesmo tempo) Coitado!
QUINTINO (ao mesmo tempo) Pobre homem!
ANGÉLICA (ao mesmo tempo)
Faz-me pena!
MANUEL (traz Antônio pelo braço para a frente do teatro) Antônio, eis-me de joelhos a teus pés. (Ajoelha) Lembra-te da amizade que nos uniu e faze-me o último favor. (Abre a camisa) Enterra-me no coração essa acha de lenha, traspassa-me o peito com ela. Não queres?
ANGÉLICA Manuel!
MANUEL Quem me chama?
ANGÉLICA É tua ama! Manuel, esqueço-me da afronta que me fizeste e lembrarme-ei somente dos serviços que me tens prestado... Será nosso sócio, não é assim, Chiquinho?
FRANCISCO Sim, serás nosso sócio.
DEOLINDA Serás sócio!
(Manuel levanta-se pouco a pouco, como procurando fixar-se no sentido das palavras que lhe dizem)
ANGÉLICA Serás nosso sócio, ficarás conosco. Eu te perdoo.
MANUEL Sócio! Ouviram bem meus ouvidos? Serei sócio! (Caindo de joelhos e levantando as mãos para o céu) Oh, meu Deus, está satisfeita a minha ambição!
(Todos falam ao mesmo tempo)
DEOLINDA Está salvo!
QUINTINO Pobre sócio!
ANGÉLICA Pobre Manuel!
FRANCISCO Pobre amigo!
MANUEL Serei sócio!
Martins Pena
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