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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CALIFA DA RUA DO SABÃO / Artur Azevedo
O CALIFA DA RUA DO SABÃO / Artur Azevedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Artur Azevedo

 

 

 

 

PERSONAGENS: NATIVIDADE NEGOCIANTE CUSTÓDIO (guarda-livros) O PRIMO (alferes) JOSÉ (moço de hotel) JOSEFINA (modista francesa) DONA SIMPLÍCIA
A ação se passa no Rio de Janeiro. Atualidade.

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CENA I
 
CUSTÓDIO (só, sentado no divã, de chapéu na cabeça e com as mãos apoiadas num grande guarda-chuva) Não sei o que pensar de tudo isto! Ainda ontem era eu guardalivros em casa do Senhor Natividade, à Rua da Alfândega... quando o patrão que, na véspera, chegara da Turquia, onde tinha ido buscar um bonito sortimento de artigos turcos, pôs-me no olho da rua, pelo simples fato de eu ter deixado cair do nariz no varão, um pequeno pingo de tabaco. (Erguendo-se) O Senhor Natividade devia lembrarlhe que há dezessete anos sou guarda-livros e é o primeiro pingo de tabaco que me cai na escrituração. Verdade seja que há apenas um mês que eu gasto. Não me quis atender o bárbaro! E disse-me com um gesto de Grão-turco: — Saia, Senhor Custódio, saia! Tomei então o meu guarda-chuva e o bonde, e fui para casa desconsolado e murcho! Mas ontem à noite, recebi do meu ex-patrão este misterioso bilhete: (Lendo) “Custódio, esteja amanhã às nove horas da manhã, no quarto andar da casa da Rua do Sabão, número tal. O primeiro que chegar espere pelo outro. Mistério! Mistério!! Mistério!!!" Repito, não sei o que pensar de tudo isto! Aqui estou no quarto andar, fazendo quarto, e como são nove horas e um quarto, e o ex-patrão não aparece, vou pôr os quartos na rua. (Dispõe-se a sair, quando Natividade entra misteriosamente pelo fundo)
 
 
CENA II Custódio e Natividade.
 
DUETINO
 
NATIVIDADE  Psit! Psit! (3 vezes)
 
CUSTÓDIO  O patrão! (3 vezes)
 
NATIVIDADE  Psit! Psit! Cala a boca, Pois é pouca Toda a tua discrição!
 
CUSTÓDIO Temos mistério! (Bis)
 
NATIVIDADE  Mas muito sério! Ninguém deve Nem de leve O que vim fazer  Saber! Psit! Psit! Mas muito sério.
 
JUNTOS Ninguém deve  Nem de leve o que vim fazer  o que veio Saber.
 
NATIVIDADE Eu tomei três tílburis, Dobrei mil esquinas, Abaixei cortinas E afinal cá estou; Ai, meu bom Custódio, Serás surdo e mudo, Senão lá vai tudo Quanto Marta fiou!
 
CUSTÓDIO Tanto mistério, patrão, patrão, Trata-se acaso de um crime?... de um crime?...
 
NATIVIDADE Adivinhaste: de um crime!
 
CUSTÓDIO (querendo desmaiar)  Segura-me, eu caio  De ventas no chão!
 
NATIVIDADE  Cala, cala, Pois é pouca Toda a tua discrição!
 
JUNTOS  Ninguém deve Nem de leve Saber desta reunião,
 
Ninguém deve Nem de leve Saber desta reunião! reunião! reunião!
 
CUSTÓDIO (amedrontado)  Um crime, patrão!
 
NATIVIDADE Silêncio! Um crime, é verdade...
 
CUSTÓDIO (correndo)  Ó da guarda!
 
NATIVIDADE (agarrando-o pelo fato)  Vem cá. Não te precipites! Um crime que não é previsto pelo Código. Trata pura e simplesmente de trair a minha fé conjugal.
 
CUSTÓDIO (repreensivo)  Oh! patrão!
 
NATIVIDADE Que queres? Fraquezas da humanidade.
 
CUSTÓDIO E a patroa, a Senhora Dona Simplícia?
 
NATIVIDADE Custódio, se és meu amigo, não me fales de Simplícia. Não imaginas o que é a minha vida privada!
 
CUSTÓDIO Deveras?
 
NATIVIDADE Já chegamos ao ponto de não nos falarmos senão no dia primeiro, que é quando caio com os cobres para a despesa da casa... e ainda assim, sempre acabamos brigando! Resolvi, portanto, fazer outra família à parte.
 
CUSTÓDIO Patrão! Patrão!
 
NATIVIDADE Foi uma ideia que me ocorreu há dois meses, em Constantinopla. Disse comigo: — Natividade, eis-te na pátria das huris, na terra das formosas escravas.
 
CUSTÓDIO Hein? Comprou uma mulher?
 
NATIVIDADE Eu nunca fui abolicionista, e há muito tempo desejava realizar esta transação oriental! Vesti-me de turco e dirigi-me...
 
CUSTÓDIO A uma casa de comissão.
 
NATIVIDADE A um bazar, para efetuar a minha compra. Tomou-me a passagem no caminho um respeitável muçulmano, que me disse em muito bom francês: — Monsieur, j’ai une occasion magnifique, une circassienne superbe! Levou-me à sua tenda, bateu três vezes numa portinha, e a formosa Zetublé apareceu, envolvida em gazes!
 
CUSTÓDIO Transparentes?
 
NATIVIDADE Maganão! Não regateei... O turco pediu-me cinco mil francos: deilhe dois mil e quinhentos.
 
CUSTÓDIO Barata feira!
 
NATIVIDADE Dois mil e quinhentos francos, entenda-se. 
 
CUSTÓDIO Ah!
 
NATIVIDADE E mais três quilos de tabaco de Goiás... Nesse mesmo dia, parti para Marselha com a minha esplêndida cativa. (Mostrando a porta do primeiro plano à direita) Ela está ali... naquela alcova... envolvida nos seus gases, quero dizer, nas suas gazes.
 
CUSTÓDIO Pode-se entrar?
 
NATIVIDADE Maganão! E aqui tens o meu serralho.
 
CUSTÓDIO Na Rua do General Câmara!
 
NATIVIDADE Antiga do Sabão, é verdade.
 
CUSTÓDIO Mas permita uma observação, Senhor Natividade, no Brasil já não há escravas.
 
NATIVIDADE E que tem isso?
 
CUSTÓDIO Ela é livre, e se quiser passar o pé...
 
NATIVIDADE Então eu caio de cavalo magro? Primeiro que tudo, ela não sabe que está no Rio de Janeiro!
 
CUSTÓDIO Homessa!
 
NATIVIDADE Quando chegamos a Marselha, ela achava-se bastante incomodada pelo enjoo do mar.
 
CUSTÓDIO Pobre huri!
 
NATIVIDADE Logo no dia seguinte, estávamos a bordo do navio que nos trouxe para cá... Desembarcamos à noite, meti-a num carro fechado, trouxe-a para este quarto andar, fechei a porta, abri aquela janela, e disse-lhe, apontando para o zimbório da Candelária: — Estamos em Túnis! Ali está a grande mesquita...
 
CUSTÓDIO Em Túnis! E ela engoliu a pílula?
 
NATIVIDADE Ora essa. Se eu lhe dissesse Chapéu d’Uvas, engoli-la-ia da mesma forma. As circassianas não sabem geografia.
 
CUSTÓDIO (à parte)  Este patrão é de força! (Alto) Mas o que não vejo, é para quê me mandou chamar! Em que lhe poderei ser útil?
 
NATIVIDADE Custódio, tu és um bom velhote. Presta-me toda a atenção. (Vão sentar-se no divã)
 
CUSTÓDIO Sou todo ouvidos.
 
NATIVIDADE Tu, como guarda-livros, és bananeira que já deu cacho.
 
CUSTÓDIO Mas...
 
NATIVIDADE Pus-te no andar da rua... para dar-te outro emprego.
 
CUSTÓDIO Deveras?
 
NATIVIDADE Uma sinecura, não te digo mais nada. Casa, comida, cem bagarotes por mês, para não fazer nada.
 
CUSTÓDIO Oh! Senhor Natividade! Não sei como lhe agradeça... Mas, que vem a ser o tal emprego?
 
NATIVIDADE Meu velho, na Europa é costume fazer uns bonecos de palha, que se colocam nas cerejeiras...
 
CUSTÓDIO Sim, senhor, na minha terra chamam-se espantalhos.
 
NATIVIDADE É isso mesmo. Discretos ao último ponto, esses manequins são incapazes de tocar nas cerejas, mas espantam os passarinhos que tentam aproximar-se delas.
 
CUSTÓDIO Mas não atino...
 
NATIVIDADE Vais atinar... Nos serralhos há uma classe de funcionários... espantalhos, incumbidos de vigiar as cerejas do sultão.
 
CUSTÓDIO (levantado-se vivamente)  Alto lá, não sou de palha!
 
NATIVIDADE És o homem que me convém. Tomarás conta do teu novo emprego hoje mesmo. (Consultando o relógio) São dez horas... Começas a vencer o ordenado.
 
CUSTÓDIO (à parte)  Ora esta, que bonito emprego para um cidadão que ainda gosta de cerejas!
 
NATIVIDADE (abrindo a primeira porta da esquerda)  É este o teu quarto... Ali encontrarás uma vestimenta de turco, um alfanje e umas barbas.
 
CUSTÓDIO É preciso que eu me disfarce em turco?
 
NATIVIDADE Pois se estamos em Túnis!
 
CUSTÓDIO Mas se eu não sei uma palavra da língua turca.
 
NATIVIDADE Nem eu.
 
CUSTÓDIO Nesse caso a Zetublé percebe logo que...
 
NATIVIDADE Não percebe tal, ela só sabe o idioma da Circássia. Podes falar-lhe todas as línguas! Ah, é verdade, não te esqueças de que eu me chamo Ben-Cid-Natividade.
 
CUSTÓDIO Tem graça, tem... mas eu também precisava de um nome oriental.
 
NATIVIDADE Tu chamas-te Omã.
 
CUSTÓDIO Custódio Omã! Não soa mal. Custódio Omã.
 
NATIVIDADE Vai, vai mudar de fato. Preciso apresentar-te a Zetublé.
 
CUSTÓDIO (à porta da esquerda)  Hein! O meu quarto está cheio de sacos!!
 
NATIVIDADE Já disse ao senhorio que mandasse tirar esses sacos de rolhas, aqui deixadas por um sujeito que aqui morou.
 
CUSTÓDIO Daqui a pouco levo-as para o corredor. (Natividade toma-o pela mão, trá-lo ao proscênio e cantam ambos misteriosamente o último motivo do dueto. Cantam)
 
NATIVIDADE Cala, cala,
 
JUNTOS  Cala a boca, (bis) Pois é pouca Toda a tua discrição! Toda a minha discrição!
 
NATIVIDADE  Psit! Psit! ninguém deve
 
JUNTOS  Ninguém deve Nem de leve Saber desta reunião, desta reunião, desta reunião.
 
(Custódio sai pela esquerda)
 
 
CENA III Natividade, depois Josefina.
 
NATIVIDADE (consultando o relógio)  Dez horas e um quarto... São horas de vestir-me de califa. (Toma a vestimenta que está pendurada e veste por cima de suas roupas. Arma-se com um enorme alfanje. Enquanto se veste) O bonito é que fiquei de estar com minha mulher, às dez horas, na Rua Direita, ao pé do Correio, para irmos juntos ver uma casa que, durante a minha ausência, ela comprou não sei em que bairro. Ora! Irá com o primo, um primo alferes, que sempre me substitui nestas estopadas. Por isso disse-lhe que fosse ter com ela à Rua Direita... e o rapaz é de uma condescendência, coitado! (Deitando na cabeça um enorme turbante) São horas de irmos ter com a nossa fantástica Zetublé! (Chamando) Zetublé! Ó Zetublé! Não responde... Chamemo-la com uma serenata bem apaixonada. (Canta fazendo do alfanje guitarra)
 
I Doce filha da Circássia, Branca per’la do Oriente, Vem ouvir a voz plangente De teu senhor; (bis)  Quero estreitar-te em meus braços,  Quero gozar-te as carícias  E as inefáveis delícias
 
De teu amo! (6 vezes) Ah! Ó Zé...Zé....Zé... Ó Zetublé,  Vem cá,  Vem já,  Vem cá, Vem fazer-me cafuné! Ó Zé...Zé....Zé... Ó Zetublé, Vem cá, Vem já, Vem fazer-me cafuné. Vem cá, Vem fazer-me cafuné.
 
II Não, não tardes, minha amada,  Circassiana flor bonita,  Que por ti de amor palpita Meu coração! (Bis)  A nívea face mimosa  Quero cobrir-te de beijos,  Vem saciar os desejos De teu sultão (6 vezes) Ah! etc. etc., etc.
 
(Abre-se a porta da direita e Josefina aparece vestida à circassiana, e envolta num véu) Ei-la. (À parte) É uma estrela! (Alto) Vou fingir que falo turco. (Com um tom de voz muito suave) Hoc opus hic labor est. Taubaté. Guarapuava.
 
JOSEFINA Miau trá lá cá dá cá.
 
NATIVIDADE (à parte) 
 
Que idioma! É um regato de mel serpeando suavemente numa planície de veludo! (Alto) I an very glad, very well! Titire, tu patulé recubans sub tegmine fagi.
 
JOSEFINA Miau trá dá cá dá cá.
 
NATIVIDADE (à parte)  Miau trá dá cá dá cá... Diz sempre a mesma coisa... Isto aposto que significa... Eu te amo. Declaremo-nos. (Alto. Com ímpeto) Ó Estambul! Cabul! Liverpool! (Com explosão) Rio Grande do Sul!
 
JOSEFINA Miau trá dá cá dá cá.
 
NATIVIDADE (à parte)  Já amola! Hei de dizer ao Custódio que lhe vá ensinando o português nas horas vagas. Se almoçássemos? Um calicezinho de champanhe talvez... quem sabe? (A Josefina, fazendo gestos de comer) Usted mangiare!
 
JOSEFINA  Cuic! Cuic!
 
NATIVIDADE (à parte)  Ela disse cuic! É o oui das circassianas! (Consentimento) Ah! Quando me dará o seu cuic? Vou ao hotel ali defronte encomendar um almoço. (Sai pelo fundo, fazendo a Josefina sinal que espere)
 
 
CENA IV
 
JOSEFINA (só) Ah! Voilà un chinois de turc qui me embête. (Apresentando-se) Josefina Bataille; ex-modista no Rio de Janeiro e ex-artista em Constantinopla. Não sou circassiana, mas parisienne! No Rio de Janeiro apaixonei-me por um garçon d’hotel: José, o meu José!
 
Enganada por ele, resolvi expatriar-me. Em Paris, deu-me a mosca e fui para Constantinopla em companhia de uma companhia de zarzuela-buffe. Ferraram-nos a mais tremenda pateada. Ficamos todos a tocar leques por bandurra. Mas um dos nossos atores, um espertalhão, descobriu um turco que, tendo de embarcar daí a dias para o Rio de Janeiro, pretendia levar consigo algumas escravas. Disse comigo. Estou arranjada! O homem paga-me a passagem, e logo que chegarmos ao Rio de Janeiro, tomo às de vila-diogo. Agradei-lhe, e ele comprou-me por dois mil e quinhentos francos, que embolsei. Embarcamos.... chegamos... e, no momento em que eu me dispunha a passar-lhe o pé, abre esta janela, diz-me: — Estamos em Túnis! O animal mudará de resolução? Estamos em Túnis, debaixo do pavilhão maometano, e pela lei, sou sua escrava! Que posição! E o diabo é que o diabo torna-se exigente como o diabo! Já começa a agitar o lenço. (Remonta)
 
 
CENA V Josefina, Custódio, depois Natividade.
 
CUSTÓDIO (entra pela primeira porta da esquerda. Está vestido de turco, grande e alto toucado de eunuco. Não traz barbas. Um grande sabre, chinelas turcas)  Esta roupa é quente como os demônios, e este chanfalho é muito incômodo.
 
JOSEFINA (à parte)  Olá! outro turco... Algum amigo.
 
CUSTÓDIO (à parte)  A sultana! Oh! que é esplêndida e robusta. Aí está, é das mulheres que aprecio.
 
JOSEFINA (à parte)  Como é feio!
 
CUSTÓDIO (à parte) 
 
Vou fingir que falo turco. (Aproximando-se dela, e cumprimenta, dizendo) Trum, trum, trum!
 
JOSEFINA (à parte)  Que estará ele dizendo?
 
CUSTÓDIO (à parte)  Decididamente inda gosto de cerejas! (Fazendo festas a Zetublé) Trum, trum, trum!
 
JOSEFINA Que tipo. Ah! Mais est-ce qu ‘il ne va pas finir ce vieux debardeur.
 
NATIVIDADE (entrando pelo fundo. À parte)  Está encomendado o almoço. (Alto a Custódio) Omar, vil escravo! Aproxima-te!
 
CUSTÓDIO (que tem tomado a extrema, aproximando-se)  Aqui estou, grandeza do sol!
 
NATIVIDADE (indicando-lhe o fundo)  Vai para a sala dos eunucos.
 
CUSTÓDIO (à parte)  Para o corredor.
 
NATIVIDADE De cimitarra em punho! Degolarás todo aquele ou aquela que pretenda entrar ou sair!
 
JOSEFINA (à parte)  Saprelotte.
 
NATIVIDADE Estás nomeado eunuco-mor do harém!
 
JOSEFINA (à parte) 
 
Eunuco? (Alto) Isto é demais!
 
NATIVIDADE e CUSTÓDIO Hein?!
 
NATIVIDADE Ela fala português!
 
CUSTÓDIO Mas tem sotaque turco.
 
NATIVIDADE Ah! aqui vão se passar coisas extraordinárias. (A Custódio) Retira-te e retira da bainha a tua cimitarra. (Cantam)
 
JUNTOS
 
NATIVIDADE  Ela disse: isto é demais, Ela falou português! Explicar-me a coisa vais Em minutos dois ou três! (Bis)
 
CUSTÓDIO  Ela disse: isto é demais, Ela falou português! A pequena é das tais, Hei de ter a minha vez! (Bis)
 
JOSEFINA  Sim, eu disse: isto é demais, Sim que falo português! E se daqui saio, jamais No Oriente ponho os pés! (Bis)
 
(Repetem 3 vezes; na 3ª duas, vezes. Custódia sai)
 
 
 
CENA VI Natividade e Josefina.
 
NATIVIDADE Fala! Quem tem ensinou a falar a língua de Camões?
 
JOSEFINA Foi meu pai, que esteve muitos anos em Portugal.
 
NATIVIDADE Pois ainda bem, assim nos poderemos entender melhor.
 
JOSEFINA Quero pedir-te dois favores, trono de esplendor! pirâmide de sabedoria!
 
NATIVIDADE Fala, andorinha de minha primavera!
 
JOSEFINA Dispensa o eunuco.
 
NATIVIDADE O meu fiel Omar! E depois?
 
JOSEFINA Empresta-me uns cobres para ir comprar um par de ligas?
 
NATIVIDADE Queres sair?! Pela couraça de Maomé! Proíbo-te!
 
JOSEFINA Então hei de levar todo o santo dia metida entre estas quatro paredes?
 
NATIVIDADE Recalcitras?
 
JOSEFINA Recalcitro!
 
NATIVIDADE Vou mandar-te açoitar!
 
JOSEFINA Não, não! Já cá não está quem falou!
 
NATIVIDADE (à parte)  Hein! o que é a mulher no Oriente! (Alto) Pois não sabes, ó desgraçada, que se um homem se atrever a olhar para ti, estou no meu direito de degolá-lo?
 
JOSEFINA Oh!
 
NATIVIDADE E de coser-te ali num saco, como um macaco, um galo, uma serpente, e um coelho e de lançar-te ao mar! Hum!
 
JOSEFINA (à parte)  Ora esta!
 
NATIVIDADE Agora sorri!
 
JOSEFINA Mas...
 
NATIVIDADE Ordeno-te que sorrias!
 
JOSEFINA (sorrindo)  Pronto!
 
NATIVIDADE Ah! Ah!
 
 
CENA VII Os mesmos e Custódio.
 
CUSTÓDIO (entrando pelo fundo, de cimitarra em punho)  Montanha de cortesia!
 
NATIVIDADE Que há?
 
CUSTÓDIO (baixo)  O inquilino do terceiro andar diz que está aí a nova proprietária, que vem examinar o prédio.
 
NATIVIDADE (a Josefina)  É o cádi que me vem visitar... Vai para o teu quarto.
 
JOSEFINA Obedeço, cornija da abóbada celeste. (Sai pela direita, primeiro plano)
 
 
CENA VIII Natividade, Custódio, depois Simplícia e o primo alferes.
 
ALFERES (dentro)  A casa é bem boa!
 
SIMPLÍCIA (dentro)  Construção muito sólida!
 
NATIVIDADE (que subiu, olhando para o fundo)  Céus! Minha mulher!
 
CUSTÓDIO A patroa!
 
NATIVIDADE Com o primo alferes.
 
CUSTÓDIO Vão ver-nos vestidos de turcos! Onde nos devemos meter?
 
NATIVIDADE Prudência! Estas vestimentas podem salvar-nos! (Fazendo Custódio sentar-se à turca no divã da esquerda) Senta-te aí.... cruza as pernas... fuma neste cachimbo! (Dá-lhe um grande cachimbo turco, que vai tirar do cabide)
 
CUSTÓDIO Mas eu não fumo. O tabaco faz-me mal!...
 
NATIVIDADE Tanto melhor! (Sentando-se num coxim, do outro lado) E eu aqui... e bico! (Cruza as pernas e acende um cachimbo. Simplícia aparece ao fundo, seguida pelo primo alferes, que está fardado)
 
QUARTETO
 
SIMPLÍCIA  Olé? dois turcos! dois!
 
ALFERES   Dois turcos, é verdade!
 
SIMPLÍCIA  Isto pra mim é novidade! Eu não sabia que os meus inquilinos Fossem turcos!
 
ALFERES   São turcos genuínos!
 
(Juntos)
 
SIMPLÍCIA e ALFERES  Oh! que tipos  Que tipões, Me parecem Dois sultões. (Bis)
CUSTÓDIO e NATIVIDADE Para ver-me Nos sertões,  Dava agora  Dez tostões. (Bis)
 
SIMPLÍCIA (aproxima-se)   Sou sua senhoria!
 
NATIVIDADE (falando)   Mamamut, mamamut, mamamut!
 
ALFERES  Jesus! Que algaravia.
 
NATIVIDADE  Trombuctu, trombuctu. (Bis)
 
SIMPLÍCIA   Não sabem português.
 
ALFERES   Talvez saibam francês... Elle est la propriétaire.
 
CUSTÓDIO  Mmamut, mamamut, mamamut, mamamut.
 
SIMPLÍCIA  Nous ne pouvons rien faire!
 
CUSTÓDIO  Tombuctu, tombuctu, tombuctu, tombuctu!
 
ALFERES  Não sabem o francês.
 
SIMPLÍCIA  Inglês sabem talvez. I am the proprietary.
 
NATIVIDADE  Mamamut, mamamut, mamamut!
 
ALFERES   Não sabe o que é proprietary!
 
CUSTÓDIO e NATIVIDADE Tombuctu, tombuctu, tombuctu!
 
TODOS  Mamamut! Tombuctu!   SIMPLÍCIA e ALFERES Mamamut, tombuctu, Mamamut, tombuctu, Mamamut, tombuctu, Tom, tom, tom, tombuctu! CUSTÓDIO e NATIVIDADE É língua de zulu, Mamamut, tombuctu; É língua de zulu, É língua de zulu!
 
ALFERES Não sabem português... podemos falar sem receio. Prima Simplícia, eu continuo a amá-la com todas as forças de minha alma!
 
CUSTÓDIO e NATIVIDADE Hein?
 
ALFERES e SIMPLÍCIA (voltando-se)  O que é?
 
NATIVIDADE Mamamut!
 
CUSTÓDIO Tombuctu!
 
ALFERES  Lembra-se daquela vez... seu marido estava na Europa... em que jantamos juntos no Bragança, em tête-à-tête... num gabinete que dava para a Rua do Cano?
 
SIMPLÍCIA Cale-se.
 
NATIVIDADE (à parte)  E esta?
 
ALFERES  À sobremesa, a prima Simplícia sempre vigorosa, não me quis atender; pôs a capa e o chapéu e...
 
SIMPLÍCIA Tinha-me esquecido de fechar as gavetas, e não me fio em criados.
 
NATIVIDADE (à parte)  Felizmente.
 
ALFERES  Para a outra vez não se esqueça de fechar as gavetas sim, prima Simplícia?
 
SIMPLÍCIA Cale-se!
 
ALFERES  Outro cálice! A prima Simplícia está hoje inesgotável! (Beija-lhe a mão)
 
NATIVIDADE Mamamut! Mamamut!
 
CUSTÓDIO Tombuctu! Tombuctu!
 
SIMPLÍCIA Que tipos, vamos ver o resto da casa.
 
ALFERES  Às suas ordens, prima Simplícia. (Dirigindo-se à porta da direita) Uma alcova... Oh!...
 
SIMPLÍCIA O que foi?
 
ALFERES (disfarçando)  Nada! Apertei o dedo na porta! (À parte) Uma odalisca! Um harém ali dentro!
 
SIMPLÍCIA (que tem pegado na bengala de Natividade, dá-lhe com ela) Ah!
 
ALFERES  O que é?
 
SIMPLÍCIA Nada! (À parte) Dir-se-ia a bengala de meu marido! Hei de cá voltar...
 
ALFERES (à parte)  Vou e volto!
 
SIMPLÍCIA Vamos, primo alres?
 
ALFERES  Às suas ordens, prima Simplícia. (Saem)
 
 
CENA IX Natividade, Custódio, depois José.
 
NATIVIDADE (levantando-se)  Foram-se.
 
CUSTÓDIO (idem)  Há muito tempo. Já estou tonto de tanto fumar!
 
NATIVIDADE Instalei Zetublé na casa que minha mulher comprou na minha ausência. Amanhã mudamo-nos.
 
CUSTÓDIO E o priminho a fazer o seu pé-de-alferes! 
 
NATIVIDADE (muito sério)  Custódio, eu não sou homem de preconceitos... mas vou fechar a porta ao tal priminho. (Entra pelo fundo José, vestido de moço de restaurante, com um almoço servido numa mesinha, deixando ficar perto da porta da esquerda uma cesta com vinho)
 
NATIVIDADE Ah! bem, bem! (Chamando) Zetublé, Zetublé!  
 
CENA X Os mesmos e Zetublé.
 
ZETUBLÉ (entrando) 
 
Chamou-me!
 
NATIVIDADE Para almoçarmos.
 
JOSÉ (a Natividade)  Não deseja mais nada?
 
JOSEFINA (à parte)  Ah! meu Deus! esta voz! (Reconhecendo) José?!
 
JOSÉ (à parte, estupefato)  Josefina!
 
NATIVIDADE O que tem você, homem?
 
JOSÉ (palpitante)  Nada!
 
NATIVIDADE Então, deixe-nos. (Sai José pelo fundo, olhando para Josefina)
 
JOSEFINA (à parte)  José em Túnis!
 
NATIVIDADE (a Josefina)  Senta-te à minha direita. (Sentam-se à mesa)
 
CUSTÓDIO (procurando lugar para sentar-se)  E então eu?
 
JOSEFINA (dando-lhe o prato de arroz)  Tome; vá para o seu quarto.
 
CUSTÓDIO (consigo) 
 
Vá lá! cá levo o champanhe para digerir o arroz. (Toma, sem ser visto, um cesto de garrafas, que José tem posto, ao entrar, perto da porta da esquerda, primeiro plano. Sai por essa porta).
 
 
CENA XI Natividade, Josefina, depois José.
 
NATIVIDADE Finalmente estamos sós... sozinhos!
 
JOSEFINA É verdade. (À parte) Como é feio!
 
NATIVIDADE (com ímpeto)  Ó Zé, Zé!
 
JOSEFINA (friamente, erguendo-se)  O que há?!
 
NATIVIDADE (acompanhando-a)  Fala-me, dize-me coisas açucaradas... Canta-me uma cantiga da tua terra!
 
JOSEFINA Ah! quer que lhe cante uma cantiga! Então lá vai! Os dois pombinhos. (À parte) Vou impingir-lhe um couplet do repertório da ópera-bouffe.
 
NATIVIDADE Vamos lá.
 
I JOSEFINA   Conheci dois namorados, Cada qual o mais discreto, Quem os via tão chegados Invejava aquele afeto.
 
A trocarem mil carinhos, mil carinhos, Pareciam dois pombinhos, dois pombinhos!  E até diziam Que assim faziam. (Bis)
 
JOSEFINA   Quando sozinhos, (Rolando) Ru, ru! Ru, ru! Ru, ru!
 
NATIVIDADE  Ru, ru! Ru, ru! Ru, ru!
 
JOSEFINA  Ru, ru! Ru, ru! Ru, ru! Ru, ru!
 
NATIVIDADE  Rucutucu! Rucutucu! Rucutucu! Rucutucu!
 
JOSEFINA   Pombo gentil, gentil pombinha, Hás de ser meu, hás de ser minha!  Hás de ser meu!
 
II Mas depois de bem casados,  Adeus, minhas encomendas! Eram só por seus pecados, Discussões e mil contendas, Dele um murro, dela um soco Não ficava sem ter troco, E, assim diziam, Já não faziam (bis) Muito nem pouco! Ru... ru... etc., etc., etc.
 
NATIVIDADE (tomando-a pela cintura com explosão)  Ó Zé, ó Zé, ó Zé, ó Zetublé!
 
JOSÉ (aparecendo ao fundo)  O senhor chamou?
 
NATIVIDADE Vai-te embora, garçom! Não me esfries a cena!
 
JOSÉ Parece-me que tinha ouvido: Ó Zé! (Sai)
 
JOSEFINA (à parte)  E nunca foi tão bonito!
 
NATIVIDADE Em que pensas?
 
JOSEFINA (sentando-se à mesa)  Penso que... que estou com o estômago a dar horas.
 
NATIVIDADE (à parte, sentando-se)  Pois, senhores, a pequena fala o português como Fernão Mendes Pinto. (Com explosão) Ó Zé... tublé!
 
JOSEFINA Quieto!
 
JOSÉ (entrando)  O senhor chamou?
 
NATIVIDADE Deixa-nos, por Maomé. (José sai) Este garçom é insuportável! Huri do meu coração, uma taça de champanhe, vai?
 
JOSEFINA Duas ou três, se quiser.
 
NATIVIDADE (procurando as garrafas)  Ora esta! Onde diabo está o champanhe?
 
JOSEFINA Chame o garçom.
 
NATIVIDADE Qual garçom! Estou farto do tal garçom! Provavelmente Omar levou as garrafas para o seu quarto! Vou buscá-las. Volto já! (Enviando-lhe um beijo) Volto já!... (Entra no quarto de Custódio)
 
 
CENA XII Josefina, José, depois Natividade.
 
JOSÉ (aparecendo)  O senhor chamou?
 
JOSEFINA José!!
 
JOSÉ Josefina! Estás só?
 
JOSEFINA Oh! leva-me daqui! leva-me daqui!
 
JOSÉ Para onde?
 
JOSEFINA Para onde quiseres! Para o inferno! Ainda me amas?
 
JOSÉ Oh! sempre! (Ajoelha-se-lhe aos pés. Natividade entra)
 
NATIVIDADE Aqui está o champ... (Vendo-os, com um grito) Oh! (Arrolha o champanhe que salta com a explosão)
 
TERCETINO
 
NATIVIDADE Que vejo! (Bis)
 
JOSEFINA e JOSÉ Nós fomos apanhados Co'a boca na botija!
 
NATIVIDADE (puxa o alfanje)  Oh! desgraçados, É natural que disto explicação exija! Por Maomé!
 
JOSEFINA (protegendo José)  José! Meu José!
 
NATIVIDADE (avançando para eles)  Zetublé!
 
JOSÉ Zetublé! Eu não me posso ter em pé!
 
JOSEFINA   Meu José, meu José! Dá neste turco um pontapé!
 
NATIVIDADE  Maomé! (Bis)
 
Eu vou matar este José! (A Josefina)  Sem mais demora, Para o meu quarto  Vá senhora. (Empurra Josefina para o quarto, depois avança para José. Tragicamente) E nós, agora!...
 
(Vai como que cantar uma grande ária, avançando para José, que se defende, levantando a mesa. A orquestra para subitamente interrompendo o ritornello da ária, que deve ser a Tosca)
 
 
CENA XIII Natividade, José, depois Custódio.
 
NATIVIDADE (muito calmo)  Não sejas tolo... não te quero mal... (Dando-lhe uma nota) Aqui tens cinco bagarotes.
 
JOSÉ (admirado)  Não percebo...
 
NATIVIDADE Solta um grande grito... Assim como se te estivessem matando!
 
JOSÉ Está doido?
 
NATIVIDADE Solta um grito! (Lembrando-se) Ah! espera lá! (Dá-lhe um pontapé. José solta um grito e foge pelo fundo) Pronto!
 
CUSTÓDIO (entrando com um grande saco às costas)  Cá vou deitar no corredor o primeiro saco de rolhas!
 
 
 
CENA XIV Os mesmos e Josefina.
 
JOSEFINA Ouvi um grito... Mon Josef!... (Vendo o saco às costas de Custódio, solta um grito de pavor) Ah! ele está naquele saco! Assassinado! (Custódio tem saído pelo fundo)
 
NATIVIDADE Fiz justiça! (Para fora) Omar, manda lançar esse cadáver ao mar!
 
JOSEFINA Assassino! Malvado! Odeio-te! Detesto-te!
 
NATIVIDADE (tomando-a pela cintura)  Façamos as pazes, louquinha!
 
JOSEFINA Não te aproximes de mim. Eu mordo-te!
 
NATIVIDADE Fica assim! És sublime nas tuas fúrias! (Excitando-a) Kis! Kis, enfurece-te mais, de vez em quando hei de mandar matar um garçom, para te ver assim furiosa! (Com graça) Até logo, alma da minha vida, até logo! (Sai pela direita)
 
 
CENA XV Josefina, depois o Alferes.
 
JOSEFINA Oh! Jé comprendo Judith et Olofernes!
 
ALFERES (entrando cautelosamente)  Entrei pela outra porta, de que tenho uma chave! Oh! a sultana...
 
JOSEFINA (à parte) 
 
Um militar!
 
ALFERES  Fala português?
 
JOSEFINA Falo! (À parte) Aqui em Túnis, muito se fala o português!
 
ALFERES (caindo-lhe aos pés)  Nesse caso, amo-a!
 
JOSEFINA Senhor!
 
ALFERES (com volubilidade)  Eu nunca tinha visto sultana senão nas mágicas... Desde a primeira vez que tive a ventura suprema de vê-la, senti circular-me nas veias um fogo estranho, eu...
 
JOSEFINA (atalhando)  Desgraçado, pois não sabe?
 
ALFERES  O quê?
 
JOSEFINA Nessa casa corta-se a cabeça a um homem...
 
ALFERES  Virgem Maria!...
 
JOSEFINA ...com a mesma facilidade com que a uma galinha!
 
ALFERES  Valha-me Deus! (Cai sentado. Natividade e Custódio, que aparecem, soltam ambos um grande grito ao dar com ele. Forte na orquestra. O alferes foge pela esquerda, primeiro plano)
 
 
CENA XVI Josefina, Natividade e Custódio.
 
NATIVIDADE (solene)  Omar?
 
CUSTÓDIO Patrão! (Emendando) Ben-Cid-Natividade?
 
NATIVIDADE Desembainha o teu alfanje, vai ao encalço desse alferes, e corta-lhe a cabeça.
 
CUSTÓDIO Sim, fonte de suavidade! (Sai pela esquerda, primeiro plano)
 
JOSEFINA Perdão, perdão para ele! Eu não o conheço! Juro-lhe que está inocente!
 
NATIVIDADE Pelo bigode do Profeta. Não o defendas, mulher! (Custódio reaparece com outro saco às costas e sai pelo fundo) Ali vai o saco do alferes.
 
JOSEFINA (com um grito)  Outro! Dois homens perderam a cabeça por meu respeito. (Vai desmaiar. Natividade sustém-na)
 
NATIVIDADE Como és bela assim! Deixo-te entregue às tuas reflexões... Mas pelo umbigo de Maomé! Não recebas visitas, se é que a espécie humana te merece alguma consideração! Vai encomendar mais sacos! (Sai pelo fundo e fecha a porta. Simplícia aparece no segundo plano, esquerda)
 
 
CENA XVII Josefina e Simplícia.
 
JOSEFINA Estamos num belo país, não há que ver.
 
SIMPLÍCIA (à parte)  Aqui anda coisa... Aquela bengala!
 
JOSEFINA Uma senhora!
 
SIMPLÍCIA Uma turca! Josefina, que foi minha costureira!
 
JOSEFINA Oh! Uma freguesa fluminense! E esta!
 
SIMPLÍCIA Que faz você aqui? E assim vestida?
 
JOSEFINA Estou em poder de dois tigres... dois turcos! dois degoladores!
 
SIMPLÍCIA Meu Deus!
 
JOSEFINA Salve-me, madama, salve-me das garras de Ben-Cid-Natividade!
 
SIMPLÍCIA Hein? ! Chama-se Natividade?
 
JOSEFINA E o outro Custódio... Custódio Omar.
 
SIMPLÍCIA O guarda-livros.
 
JOSEFINA Não é essa precisamente a sua profissão!
 
SIMPLÍCIA Ah! desavergonhados! tratantes... Sossegue, que arrancá-la-ei ao jugo dos seus algozes! Ouvi rumor, esconda-me... esconda-me, que ele vai ver o bom e o bonito!
 
JOSEFINA No meu quarto, ali...
 
SIMPLÍCIA Nem uma palavra, e conte comigo! Ah! Maroto! (Entra no quarto de Josefina)
 
JOSEFINA Mas como diabo...
 
 
CENA XVIII Josefina, José, depois o Alferes.
 
JOSÉ Psit! Psit, Josefina, Aqui estou, mulher divina! Pois que adorar-te é meu fraco.
JOSEFINA   Pois não estás no saco?
 
ALFERES (aparecendo)  Psit! Psit, ó menina! Aqui estou, huri divina! Pois adorar-te é meu forte!
 
JOSEFINA  Também escapou à morte? (Assustando-se)   Escondam-se!
 
ALFERES e JOSÉ  Oh! (Desaparecem ambos, forte na orquestra)
 
JOSEFINA Vivants tous deux, ces farceurs de turcs m‘ont fait poser! (Entra Custódio um pouco embriagado)
 
 
CENA XIX Josefina, Custódio, depois Natividade.
 
CUSTÓDIO O champanha é bom, mas é velhaco. Fiz como o patrão, tomei uma turca. (A Josefina) Meu amo, o décimo terceiro raio do sol, mandou dizer a vossemecê que... (Procurando lembrar-se) O que diabo mandou ele dizer? Ora esta?
 
JOSEFINA Durma um poucochinho.
 
CUSTÓDIO Isso não! Não posso dormir ao pé de um prato de cerejas.
 
JOSEFINA Pobre turco!
 
CUSTÓDIO (à parte)  É esplêndida! (Toma-lhe a mão e beija-a) Tombuctu! Tombuctu!
 
JOSEFINA O quê? Ah! Quer a outra! (Dá-lhe a outra mão. Custódio beija-a) Pobre mamamuth!...
 
NATIVIDADE (entra pelo fundo com o turbante enviesado)  Não sei o que tenho... Eu não sou turco, mas também parece-me que não estou lá muito cristão! (Alto) Omar, sola dos meus sapatos! (Toma-lhe o braço e encostam-se um ao outro rindo) Que a minha vontade seja a tua lei! (Tirando um lenço da algibeira) Chegou o momento. Leva esta mensagem à sultana!
 
JOSEFINA (à parte)  Rigri... et demande l’addition!
 
CUSTÓDIO (à parte, com o lenço na mão, aproximando-se de Josefina, a cambalear)  Estou com vontade de lhe dar também o meu. (Tira da algibeira um lenço de tabaco e, dobrando o joelho, apresenta os dois lenços a Josefina) Branca filha da branca Circássia... aceita este testemunho da consideração e respeito com que somos... de vossa senhoria... atentos, veneradores e criados...
 
JOSEFINA Dois lenços! eu não estou endefluxada!
 
NATIVIDADE (aproximando-se desta com amor)  Preciso dizer-te tantas coisas?!
 
JOSEFINA Permite, grande luz, que eu vá vestir os meus vestidos de gala.
 
NATIVIDADE Que te acompanhem as graças e te conduzam amores. Tens três minutos para mudar a fatiota. (Josefina sai pela direita média)
 
 
 
CENA XX Natividade e Custódio.
 
CUSTÓDIO É pena que o patrão só tivesse comprado uma. 
 
NATIVIDADE Omar!
 
CUSTÓDIO (sem dar-lhe ouvidos)  Se ele ma quisesse ceder pelo custo...
 
NATIVIDADE Omar!...
 
CUSTÓDIO Patrão!...
 
NATIVIDADE Inunda-me de perfumes. Quero embriagá-la.
 
CUSTÓDIO Perfumes? Então, com licença: vou até os Dois Oceanos.
 
NATIVIDADE Quais Dois Oceanos! Toma! (Tira da algibeira dois vidros de perfumarias) Derrama-me essas águas nos cabelos... no pescoço...
 
CUSTÓDIO Eu também sou filho de Deus! (Derrama um vidro sobre Natividade e outro sobre si)
 
NATIVIDADE Derrama... Nos olhos não, desgraçado! (Tendo-se acabado a perfumaria, derrama Custódio sobre Natividade o champanha de uma garrafa que trouxe debaixo do braço)
 
CUSTÓDIO Acabou-se! (Desfaz-se da garrafa e dos vidros)
 
NATIVIDADE Escravo, é a festa dos mirtos! Vai buscar a formosa Zetublé.
 
 
CENA XXI Natividade, Custódio, Dona Simplícia, depois José, o Alferes e Zetublé.
 
(Música na orquestra. Dona Simplícia aparece vestida de circassiana e com o rosto coberto por um véu. Custódio toma-a pela mão, eleva-a solenemente para junto de Natividade)
 
NATIVIDADE Aproxima-te, sol das minhas noites! (Beija-lhe a mão)
 
CUSTÓDIO (beijando-lhe a outra mão)  Lua dos meus dias.
 
SIMPLÍCIA (afastando o véu)  Vocês são dois patifes!
 
NATIVIDADE (recuando)  Minha mulher!
 
CUSTÓDIO A patroa! (Josefina, Alferes e José apareceram)
 
SIMPLÍCIA (tirando um lenço do bolso)  Então foi para isto que lhe marquei duas dúzias de lenços. (A Josefina) Venha, Josefina!
 
NATIVIDADE Josefina!
 
SIMPLÍCIA Minha ex-modista.
 
NATIVIDADE Pois não é circassiana?
 
JOSEFINA Parisiense!
 
NATIVIDADE Parisiense. Passe já para cá os meus dois mil e quinhentos francos.
 
SIMPLÍCIA É o seu dote, porque vai casar.
 
JOSÉ (tomando a mão de Josefina)  Comigo. Ah! Eu já estava para atirar-me (Aponta para a janela) ali do zimbório da Candelária abaixo.

 

 

                                                                  Artur Azevedo

 

 

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