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Series & Trilogias Literarias
Dormir com meu terapeuta fora má ideia.
Eu também sabia, mas realmente não consegui evitar. Havia um limite para o número de vezes que eu podia ouvir “por que você não explica isso?” e “conte-me como você se sente”. Então, finalmente me enchi e resolvi mostrar para ele como eu me sentia. Devo dizer que, considerando que ele era um cara decente que nunca havia traído a esposa, não foi muito difícil eu me aproveitar dele. E com “não muito difícil” quero dizer “ridiculamente fácil”. Os pseudoprincípios dele me proporcionaram uma dose forte de energia de súcubo e, considerando que o que fizemos tenha sido provavelmente a coisa mais produtiva que já aconteceu naquele sofá, é quase como se eu tivesse feito uma boa ação.
Mesmo assim, eu sabia que meu chefe ia ficar bravo, visto que quem me mandara procurar ajuda, para começar, havia sido ele.
- Não contem para o Jerome - adverti meus amigos, batendo meu cigarro no cinzeiro. - Não quero ter de lidar com esse tipo de consequência.
Meus amigos e eu estávamos sentados em uma mesa no Cold July, um clube noturno no distrito de Belltown, em Seattle. O lugar é escuro e barulhento, a maior parte da decoração consiste em canos que se cruzam pelas paredes e no teto. Como é um clube privado, lá não é preciso cumprir a lei da cidade que proibe fumar em lugares públicos, e isso para mim era uma vantagem. Nos últimos meses, eu tinha descoberto que a nicotina era uma das coisas essenciais para me ajudar a seguir em frente.
Outras coisas na lista das essenciais: vodca, Nine Inch Nails, um suprimento regular de homens decentes e, para todos os efeitos, um comportamento detestável.
- Olhe, Georgina - disse meu amigo Hugh. Ele é um duende, um tipo de assistente legal do inferno que leva almas para nossos mestres e faz tarefas administrativas intermediárias e variadas. Tem cabelo escuro bem curto e é grande sem ser gordo. - Não sou nenhum especialista em saúde mental, mas vou me colocar em maus lençóis e dizer que provavelmente não foi uma atitude que vai ajudá-la no caminho para a recuperação.
Dei de ombros e deixei meus olhos examinarem a sala cheia em busca de vítimas. Havia escolhas bem boas ali. - Bem, ele não era muito bom. Quer dizer, na terapia.
Além do mais, não preciso mais disso.
Um silêncio veio ao meu encontro, tanto silêncio quanto poderia me alcançar em um lugar tão barulhento. Voltei-me para meus amigos. Hugh não estava fazendo nada
para disfarçar a cara de você é totalmente louca. Nossos amigos vampiros, Peter e Cody, pelo menos tiveram a decência de desviar os olhos. Eu apertei os meus e apaguei
o cigarro.
- Será que - disse finalmente Peter - ele é uma pessoa com quem você talvez... quisesse namorar por um longo período?
- É - concordou Cody, arregalando os olhos, esperançoso. - Aposto que um terapeuta daria um ótimo ouvinte. E você nem precisaria pagar.
- O meu seguro paga - rebati. - E não gosto dessa espécie de má vontade com meu namorado.
- É má vontade mesmo - disse Hugh. - Você merece coisa melhor, querida.
- O cara é corrupto e vai para o inferno. Como isso pode ser um problema para você? E você também não gostava do meu outro namorado. Talvez você devesse parar de
se preocupar com minha vida amorosa e voltar a tentar achar um jeito de levar sua nova secretária para a cama.
Por uma dessas estranhas reviravoltas do universo, nenhum de meus amigos gostava do meu atual namorado, um mágico do mal chamado Dante. Ele era uma pessoa praticamente
sem princípios e transbordava amargura e cinismo. Isso levava a crer que ele deveria se encaixar perfeitamente nesse grupo de almas condenadas, mas, por algum motivo,
não se encaixava.
- Ficar com uma pessoa má não é bom para você - Cody disse. Todos nós éramos imortais agora, mas éramos considerados “imortais inferiores”. Isso queria dizer que
tínhamos sido humanos antes de vendermos nossa alma a serviço do inferno. Cody era jovem, comparado a nós, em nosso pequeno círculo. Hugh tinha quase um século.
Peter e eu, milênios. Nesse sentido, Cody tinha certa ingenuidade, um idealismo encantador, à altura do que eu, um dia, tivera.
Foi devastador quando meu namorado anterior, um humano chamado Seth, me abandonou para ficar com uma amiga minha. Seth era uma alma boa, calmo e imensamente gentil.
Ele me fez acreditar em coisas melhores, como talvez o fato de haver esperança para um súcubo como eu. Eu achava que estava apaixonada - não, eu realmente estava
apaixonada. Até eu podia admitir. Como súcubo, porém, eu levava um elemento perigoso para qualquer relacionamento. Quando transava com um cara (ou uma mulher - funcionava
de qualquer modo), eu roubava a energia vital dessa pessoa, a força que alimenta toda alma humana. Ela me mantinha viva e sustentava minha existência imortal. Quanto
mais puro o homem, mais energia eu tomava. Quanto mais energia eu tomasse, mais eu encurtava a vida dele. Com Dante, eu não surtia praticamente efeito algum. Ele
tinha pouca energia para dar, assim, nossa vida sexual era relativamente “segura”, e eu, então, buscava minhas doses por fora, com caras insignificantes.
Com Seth... bom, essa tinha sido outra história. Dormir com ele teria tido efeitos bastante prejudiciais - então, eu me recusava a fazê-lo. Por algum tempo, nós
vivemos apenas de amor, nosso relacionamento ia muito além do ato físico. Com o passar do tempo, no entanto, isso teve um custo alto, assim como tantas situações
simples do relacionamento. As coisas acabaram estourando quando Seth dormiu com minha amiga Maddie. Acho que ele fez isso para me incentivar a terminar, na esperança
de me poupar de sofrimentos futuros. Qualquer que tenha sido a intenção inicial, ele e Maddie realmente estabeleceram um relacionamento um tanto sério nos meses
que se seguiram.
Eu não aceitei isso muito bem.
- Vocês nunca estão satisfeitos - resmunguei, fazendo sinal para o garçom me trazer outra bebida. Ele me ignorou, e isso me irritou mais ainda. - Vocês não gostam
dos bons. Vocês não gostam dos maus. Que diabos vocês querem?
Uma nova voz invadiu repentinamente nosso círculo.
- Não me diga que estão discutindo suas aventuras amorosas, Georgie. Não há nada mais divertido.
Lá estava ele, em pé, ao lado da nossa mesa: Jerome, o arquidemônio de Seattle e de toda a área metropolitana. Lancei-lhe um olhar fulminante. Não gostei do tom
jocoso - ou de ser chamada de Georgie. Ele se sentou ao lado do Hugh, e o garçom que eu estava tentando chamar veio correndo. Pedimos uma nova rodada de bebidas.
Jerome estava visivelmente de bom humor, o que sempre facilitava nossa vida. Vestia um terno preto de marca, e o cabelo estava penteado exatamente igual ao de John
Cusack em uma entrevista recente para a tevê que eu tinha visto. Isso provavelmente merece ser mencionado: a forma humana preferida de Jerome era a de um clone de
John Cusack. Súcubos podem mudar de forma porque isso é, em parte, o que nos ajuda a seduzir. Demônios podem mudar de forma simplesmente porque - como os anjos -
são criaturas absurdamente poderosas, que existem desde o início dos tempos. Eles são os “imortais superiores”. Por causa de uma esquisita obsessão de fã que ele
negava irredutivelmente, Jerome gostava mais de interagir no mundo mortal tentando ficar parecido com o ator. O estranho é que, quando saíamos assim, parecia que
os humanos nunca notavam a semelhança.
- Já faz um tempo que você não sai com a gente - comentei, na esperança de mudar de assunto. - Achei que você estava ocupado com assuntos de demônio. - Havia rumores
de que Jerome andava se estranhando com outro demônio, embora nenhum de nós soubesse os detalhes.
Ele tirou um dos meus cigarros do maço sem pedir. Momentos depois, a ponta do cigarro acendeu sozinha. Exibicionismo.
- Na verdade, as coisas tomaram um rumo agradável - disse ele. Tragou profundamente e, depois, deixou a fumaça girar ao seu redor. - Uma coisa a menos para resolver.
Eu esperava que o mexerico incessante sobre suas desventuras amorosas também estivesse acabando, mas acho que já é querer demais. Você ainda está com aquele charlatão?
Desisti.
- Por que todo mundo odeia o Dante? Vocês deveriam recebê-lo como um irmão.
Jerome refletiu, os olhos escuros pensativos.
- Ele me incomoda. Você merece coisa melhor.
- Jesus - eu disse.
- Ela poderia, quem sabe, perceber isso se parasse de fazer besteiras, como dormir com o terapeuta - observou Hugh, em um tom que aparentemente parecia ser de quem
queria ajudar.
Fui para cima dele com os olhos saltados. - Você ouviu alguma coisa do que eu acabei de dizer?
- Boa parte - ele disse.
Nisso, a expressão indolente e satisfeita de Jerome desapareceu. Ele fixou o olhar em mim, com os olhos em chamas, mas, de forma inexplicável, eu gelei. Ele apagou
o cigarro amassando-o e levantou-se bruscamente. Agarrando meu braço, ele me puxou do meu lugar e começou a me arrastar para fora da mesa.
- Venha comigo - ele sibilou.
Fui tropeçando com ele para o corredor que levava aos banheiros. Uma vez fora da visão dos outros, ele me empurrou contra a parede e se debruçou sobre mim, com o
rosto cheio de fúria. Era sinal de agitação estar se comportando como humano. Ele poderia simplesmente ter transportado nós dois para algum local isolado.
- Você transou com seu terapeuta? - ele vociferou.
Engoli em seco. - Eu não estava progredindo muito.
- Georgie!
- Qual é o problema? Ele era uma alma boa. Achei que era o que você queria que eu fizesse!
- Eu queria que você se livrasse dessa maldita suscetibilidade que você tem desde que aquele mortal chato a largou.
Fiquei hesitante. Era uma coisa meio estranha. Eu fiquei tão deprimida depois que Seth terminou comigo que Jerome acabou se enchendo e me mandou procurar ajuda,
porque estava cansado de me ouvir reclamar e me lamentar. O fato de ser estranho um demônio incentivar um de seus funcionários a buscar aconselhamento não me passou
despercebido. Mas, sinceramente, como ele poderia entender? Como ele poderia entender como era ficar com o coração despedaçado? Ser arrancada da pessoa que eu mais
amava no mundo? Toda a minha existência tinha perdido o significado, e a eternidade parecia ser impossível de suportar. Fiquei sem sair e quase não falei com ninguém
por semanas. Eu me isolei, perdida em meu pesar.
Foi quando Jerome desistiu e exigiu que eu tomasse providências.
E eu tomei, mais ou menos. Eu me voltei para o outro lado. De repente, fiquei com raiva - com muita, muita raiva da forma como a vida havia me tratado. Algumas de
minhas desventuras eram culpa minha. Mas o Seth? Eu não sabia. Não sabia o que tinha acontecido ali e me sentia injustiçada pelo mundo e pelos períodos intermináveis
de sofrimento que ele me impunha. Então, comecei a dar o troco. Parei de me importar. Coloquei-me no modo súcubo total: buscando os homens mais decentes que podia,
roubando a vida deles e despedaçando seu coração, praticamente sem remorso. Isso me ajudava com a dor. Às vezes.
- Estou fazendo o que se espera que eu faça! - gritei. - Estou ganhando uma alma atrás da outra. Você não tem do que reclamar.
- Você tem um comportamento detestável e fica provocando brigas com todo mundo, e você não está melhorando. Estou cansado disso. E estou cansado de você.
Gelei, minha hostilidade se transformou em puro medo. Quando um demônio diz que estava cansado de você, muitas vezes o resultado é ser chamado de volta para o inferno.
Ou ser castigado.
- Jerome... - tentei avaliar qual seria minha melhor estratégia. Charme? Arrependimento?
Ele se afastou e respirou fundo para se acalmar. Não ajudou muito. A ira voltou, em alto e bom som.
- Vou mandar você embora. Vou terceirizar você para alguém.
- O quê? - Minha raiva voltou, afastando meu medo momentaneamente. Terceirização é uma tremenda ofensa para um súcubo. - Você não pode fazer isso.
- Posso fazer o que eu bem entender. Você se reporta a mim. - Um cara desengonçado virou no corredor em direção ao banheiro. Jerome lançou um olhar penetrante assustador.
O cara pensou melhor e rapidamente mudou de direção. - Um arquidemônio em Vancouver está querendo alguém para ficar de olho em um culto no qual ele está interessado.
- Lá longe... - Fiquei boquiaberta. - Você está querendo dizer Vancouver, CB? Você vai me mandar para o Canadá? - Merda. Eu realmente tinha ido longe demais. Há
também uma Vancouver em Washington. Essa não teria sido tão ruim. Pelo menos eu teria continuado em casa.
- Ele está querendo um súcubo, já que ele só tem uma e não pode abrir mão dela. As coisas podem ficar difíceis por lá, sabe? Quase pensei em mandar a Tawny para
eles. - Ele fez uma cara ao mencionar seu súcubo recentemente adquirido que era muito, muito inepta. - Mas, bom, ela não é... ideal. Eu também não queria desistir
de você, mas agora acho que vai valer a pena sentir falta de um súcubo competente por um tempo para você parar de me encher. Estou precisando de um pouco de sossego.
- Olha, Jerome - eu disse, esperando parecer arrependida. - O que você quer que eu faça? Que eu ache outro terapeuta? Posso fazer isso. Vou arranjar uma mulher.
Feia. E vou tentar mudar meu comportamento e...
- Esta é minha decisão, Georgie. Você precisa de alguma coisa para se ocupar, e isso vai deixar o Cedric contente. Ele acha que um súcubo é a melhor forma de se
infiltrar nesse pequeno culto de adoração ao demônio.
- Adoração ao demônio... O quê? Isso quer dizer uma coisa do tipo satanistas?
- Algo desse tipo.
Arregalei os olhos.
- Satanistas canadenses? Você vai me mandar para um grupo de satanistas canadenses?
A única resposta dele foi dar de ombros.
- Se isso estivesse acontecendo com outra pessoa seria hilário - eu disse. - Mas por que você está fazendo isso? Desde quando você ajuda alguém, ainda mais outro
demônio? - Demônios costumam ser absurdamente competitivos entre si.
De novo, Jerome não respondeu. Ele pegou um cigarro - e eu pensei, se ele tinha os dele, por que havia roubado um dos meus? - e fez de novo o truque para acendê-lo.
Ele parecia um pouco menos tenso depois de dar uma boa tragada.
- Tem alguma coisa acontecendo - eu disse com cuidado. - Você está me usando para usá-lo. O que está realmente acontecendo?
- Altruísmo - ele disse, revirando os olhos.
- Jerome...
- Georgina - ele respondeu com um olhar duro. - Você não tem o direito de me questionar nem de me irritar como você tem feito ultimamente. Agora vá arrumar suas
coisas e dar uma recordada no sistema métrico.
Capítulo 2
a verdade, eu não tenho nada contra os canadenses. Eles são legais. Realmente legais. Mas isso não significava que eu quisesse ir jogar curling com eles. E sempre
havia o risco de que, se estivesse a fim, o Jerome transformasse essa tarefa temporária em permanente.
Eu achava, porém, que ele não faria isso. Por baixo de toda a aspereza, Jerome gostava de mim - tanto quanto um demônio pode gostar de alguém de verdade. Devo admitir
que ele gostava de mim um pouco menos depois de o Seth virar minha vida de pernas para o ar no último outono, mas, quando eu não estava me comportando supermal,
acho que o Jerome se divertia comigo. São poucas as coisas divertidas diante da eternidade, então, com sorte, isso seria o suficiente para garantir a segurança no
meu emprego.
Deixei Belltown e me dirigi a Queen Anne, outro bairro de Seattle. Eu morava e trabalhava em Queen Anne e, como ia desaparecer por uns tempos, meu chefe mortal precisava
ficar sabendo. Infelizmente, ir para o trabalho significava enfrentar algumas coisas desagradáveis que eu não estava lá muito no espírito de encarar naquela noite.
- Georgina! O que você está fazendo aqui?
Maddie Sato, o Brutus do meu César, veio correndo em minha direção quando entrei na livraria Emerald City Books & Cafe. Em defesa de Maddie, ela não sabia que Seth
e eu estávamos namorando quando eles dormiram juntos. Então, não foi como se ela o tivesse roubado deliberadamente de mim. No entanto, isso não mudava muito meus
sentimentos em relação aos dois.
- Preciso falar com o Warren - eu disse, desconfiando que provavelmente eu estava fedendo a vodca e cigarro. - Ele está aqui?
Ela fez que não com a cabeça, o que lhe balançou o cabelo preto brilhante. Ela usava um penteado longo e liso que eu tinha lhe ensinado a fazer. - Ele foi embora
há cerca de uma hora. Não quis esperar o fechamento.
Dei uma olhada no relógio. Eu quase não tinha conseguido chegar antes de as portas serem trancadas. Fiquei batendo o pé impaciente, questionando--me se deveria ligar
para o Warren na casa dele. Por fim, perguntei: - Você tem um segundo para combinar umas coisas sobre os horários? Vou precisar sair por uns dias... talvez mais.
- É claro - disse ela sorrindo e mostrando as covinhas. - Você quer que eu chame o Doug também?
- Ele está aqui?
Dois subgerentes fechando na mesma noite. Era um golpe de sorte. Caminhei para o meu escritório enquanto ela foi buscar o irmão, Doug. Minha mesa estava organizada,
para variar, e encontrei a prancheta com os horários agendados para as semanas seguintes. Dei uma olhada e me senti aliviada por ver que nós estávamos com a equipe
completa, como sempre. Meus amigos imortais não compreendiam por que eu me importava tanto com esse emprego. Ultimamente, em alguns dias - dias em que não queria
levantar da cama porque estava muito deprimida -, eu também me fizera a mesma pergunta. Mas a verdade era que a eternidade era muito tempo, e eu tinha passado a
maior parte dele sempre ocupada com alguma atividade. Era da minha natureza; não conseguia ficar à toa. E, às vezes - às vezes - eu ficava tão envolvida nos assuntos
do dia a dia do mundo humano que quase podia fingir por um instante que era novamente um deles.
- Acho que não vamos precisar de ninguém para me substituir - eu disse quando ouvi a porta do escritório abrir, alguns minutos depois. - Alguém vai precisar só ficar
com o meu... - levantei a cabeça.
Maddie tinha voltado com o Doug, mas eles não estavam sozinhos. Seth estava com eles. Toda a segurança natural que eu havia demonstrado na loja, todo o ímpeto e
o ar desafiante que eu tinha demonstrado no clube... tudo murchou e virou um duro frio no estômago quando olhei para ele. As paredes desabaram a meu redor. Como
ele conseguia me afetar desse jeito, ainda mais usando uma camiseta do Buck Rogers? Três meses haviam se passado. Por que eu não havia superado? Por que ainda tinha
vontade de chorar e quebrar alguma coisa toda vez que o via?
- Ei, Kincaid - disse Doug, desviando-me em parte da minha angústia. Ele deu uma olhada na minha roupa e arqueou a sobrancelha. - Nós estamos interrompendo sua vida
social?
Eu estava usando um casaco preto na altura dos joelhos sobre um vestido vermelho curto. Minha maquiagem tinha sido feita com uma perfeição sedutora, delineador escuro
estilo prostituta e batom combinando com o vestido. Eu poderia ter mudado de aparência em um piscar de olhos no carro, mas não achei que fosse precisar provar alguma
coisa. Na verdade, eu estava era gostando da minha aparência provocante nessa noite.
- Ao que parece, minha vida social é esta, já que sou suficientemente patética a ponto de vir aqui no sábado à noite. - Esforcei-me para me concentrar apenas no
Doug e na Maddie, tentando firmemente não olhar para o cabelo avermelhado e macio do Seth, ou para seus olhos meigos. Por que ele tinha de estar ali justo naquele
dia? A resposta: ele estava lá toda noite. Ele era escritor e trabalhava melhor em cafés. Quando terminamos, ele tentou discretamente encontrar outro e ficar longe
de mim, mas a Maddie - desconhecendo o motivo - tinha insistido para que ele ficasse no café da livraria.
- Para onde você vai? - Maddie perguntou. - Está tudo bem?
- Sim, sim - eu disse bruscamente. - É uma longa história.
Chamei a atenção de Maddie e Doug para a prancheta, explicando novamente que eu tinha certeza de que a loja ficaria bem sem meu trabalho, desde que eles pudessem
assumir as tarefas que eu fazia como gerente. Nós rabiscamos uma pequena lista das minhas responsabilidades, como folha de pagamento e estoque, e começamos a fazer
a divisão.
Doug deu uma batidinha na lista. - Eu já fiz isso tudo, uma vez ou outra. Sem problemas. Eu fico com a primeira metade. - Deu uma cotovelada na irmã. - E você? Vai
ficar com o resto e fazer a sua parte?
Maddie torceu os lábios. Ela era supertalentosa, mas sofria de acessos de insegurança, o que eu tinha dito várias vezes a ela que era ridículo. Ela havia melhorado
muito ao longo dos meses - novamente, graças a mim -, mas ainda tinha recaídas. - Não tinha me dado conta de que você fazia tanta coisa. Espero que eu consiga aprender
tudo.
- Pare de se fazer de coitada. Eu lhe ensino - disse Doug. - Você logo vai ser tão boa quanto a Kincaid.
- Sim - eu disse secamente. - Nós somos praticamente intercambiáveis de qualquer jeito. - Com o canto do olho, vi Seth se mexer pouco à vontade.
- Mas essa coisa toda está meio mal combinada - observou Doug, inclinando a cabeça para tirar o cabelo escuro da cara. - Você vai embora, mas não sabe ao certo por
quanto tempo? Achei que você fosse a pessoa confiável por aqui.
- É... coisa de família - eu disse a eles. - Simplesmente preciso dar um jeito. Além disso, agora você pode ter uma oportunidade para ser responsável. Você deveria
me agradecer, Doug. - Ele me mostrou a língua.
- O Warren não vai reclamar? - perguntou Maddie, ainda preocupada comigo.
- Pode deixar que eu lido com o Warren - assegurei-lhe.
Doug debochou, mas Maddie não se tocou. Warren, o não muito virtuoso dono da livraria, era meu parceiro sexual havia muito tempo. Ele me fornecia mais ou menos a
mesma energia que o Dante, mas era conveniente e se adequara a meu estado de espírito nos últimos tempos. Eu tinha parado com nossas escapadas quando eu estava namorando
o Seth, mas depois disso tinha retomado o velho hábito. Doug sabia de meu caso com Warren, antes e agora, mas tinha tato suficiente para respeitar minhas escolhas,
fora uma virada de olhos ocasional. Eu desconfiava que Seth também sabia o que estava acontecendo, mas não se importava. Warren não ia se incomodar por eu me afastar
por um tempo. Eu era boa demais no que fazia, tanto no trabalho quanto na cama.
Trocamos um turno em que eu deveria fechar e depois joguei a prancheta de volta na pilha, sentindo repentinamente necessidade de sair de lá o mais rápido possível.
- Certo. Obrigada, equipe. Vou deixar vocês trabalharem.
- Você vai cair na noite? - perguntou Doug, ainda se divertindo. - Posso encontrar você em meia hora. Vai ter uma superfesta.
Balancei a cabeça. - Já caí na noite. Estou indo para casa.
- Estraga-prazeres - ele disse às minhas costas.
Maddie me desejou boa sorte durante a minha ausência e depois eu os deixei, andando pela loja e trocando saudações com meus outros colegas de trabalho enquanto eles
corriam de um lado para outro com suas tarefas antes de fechar. Estava quase na porta quando ouvi alguém chamar meu nome. Virei-me e vi Casey vindo apressada na
minha direção. Ela tinha uns vinte anos e estudava na Universidade de Washington. Havia trabalhado ali quase todo o tempo em que estava na faculdade e era uma de
nossas melhores funcionárias. Então, parei e forcei um sorriso, meus olhos vagavam desejosos em direção à porta.
- E aí?
Ela sorriu, seus olhos escuros brilhavam. - Queria saber se você vai à minha festa, no fim de semana que vem - ela disse. - Você não respondeu a meu e-mail.
Não me lembrava de nenhum e-mail, mas eu tinha andado um tanto propensa a apertar a tecla excluir ultimamente.
- Não recebi - menti. - O que vai acontecer?
- Minha festa de formatura. No domingo.
Franzi a testa. - É em abril?
- Vou me formar mais cedo. Já cumpri todos os meus créditos, então não preciso cursar o bimestre da primavera. Legal, né?
- Uau - eu disse, realmente impressionada. - Bacana mesmo. Matemática, certo?
- Matemática e letão.
- Que diabos... deixa pra lá. - Não era hora de tentar descobrir por que alguém com ascendência filipina estava estudando línguas bálticas. - Queria poder ir, mas
vou viajar amanhã para resolver uns assuntos de família e não sei quando vou voltar. Que pena.
A expressão de Casey deu uma murchada, mas ela disse que compreendia.
E, como Maddie, desejou-me boa sorte e esperava que meu assunto de “família” pudesse ser facilmente resolvido. Éramos duas. Ela me deixou e foi encerrar o fechamento
do expediente.
Logo que passei pela porta da loja e estava fora, parei e soltei a respiração. A brisa noturna me envolveu. Estar na presença de Seth era sufocante. Eu ficava muito
agitada. Mesmo enquanto eu estava resolvendo assuntos e números com o Doug e a Maddie, eu prestava mais atenção no Seth - exatamente a que distância ele estava de
mim, no cheiro dele, como o cabelo bagunçado estava espetado hoje. Todo o resto era ruído de fundo comparado a ele.
Procurando na minha bolsa com as mãos trêmulas, peguei meus cigarros, precisando desesperadamente de um para andar até em casa. Eu tinha fumado por mais ou menos
um século e tinha parado havia dez anos, o que tinha me deixado orgulhosa, apesar de eu ser imune aos efeitos prejudiciais. O estresse tinha me levado a voltar a
esse hábito. Sentia-me um pouco mal por sujeitar os outros à fumaça por tabela, mas, sinceramente, fumar era o menor dos meus problemas no momento.
- Merda. - Estalei o acendedor do isqueiro e nada. Mais três estalos e a mesma coisa. Balancei o isqueiro, segurando-o perto do ouvido. Nada. O fluido tinha acabado.
- Merda - repeti. Eu morava a apenas alguns quarteirões, mas, por algum motivo, essa caminhada agora ia ser uma agonia.
De repente, ouvi o que parecia ser o som de uma bota arrastando no chão dobrando a esquina do prédio. Franzindo a testa, dei alguns passos à frente, imaginando que
havia alguém lá. Essa área era bem segura, mas na parte baixa de Queen Anne ainda havia uns mendigos. No entanto, quando dei uma olhada, virando a esquina, não tinha
ninguém lá.
Havia, porém, uma embalagem de fósforos jogada no chão.
Ajoelhando-me, peguei a embalagem e examinei-a. Bar Mark’s Mad Martini. Já havia estado lá, fazia muito tempo. Ficava na parte alta de Queen Anne, não muito longe,
se você não se importar com a subida do morro. Não era impossível uma embalagem de fósforos de lá ter acabado ali. Mas era estranho os fósforos terem aparecido exatamente
na hora em que eu precisava deles.
Atrás de mim, ouvi a porta do prédio abrindo. - Georgina?
Levantei-me e me virei repentinamente. Seth.
- Oi - eu disse, na esperança de parecer indiferente. A sensação de sufoco voltou.
A luz vinda de dentro da loja iluminava os traços dele no lusco-fusco, e eu devorei cada linha e cada ângulo de seu rosto. Seus olhos pareciam ser escuros na luz
fraca, mas em plena luz eram castanhos com tons de âmbar. Ele enfiou as mãos nos bolsos, seu olhar não encontrava o meu. Isso me lembrou dolorosamente de quando
tínhamos nos conhecido; muito tímido para olhar diretamente para mim.
- Queria saber se está tudo bem com você - ele disse depois de alguns instantes constrangedores.
Virei os fósforos na mão algumas vezes e depois coloquei-os no bolso de fora da minha bolsa.
- Tudo bem - eu disse, mantendo minha voz fria e distante.
- É porque... - Ele relaxou um pouco e deu um sorrisinho tristonho.
- Quando você dá informações vagas sobre suas atividades e fala de “família” geralmente isso significa assunto imortal. E assunto imortal sempre significa encrenca.
Comecei a sorrir, mas imediatamente me contive. - Sim, é encrenca e, acredite, desta vez é das grandes. - Mesmo depois de tudo que tinha acontecido entre nós, havia
um conforto e uma familiaridade tais com ele que imediatamente eu queria me empolgar e recapitular toda a história. Já estava visualizando nós dois rindo com a ideia
dos satanistas canadenses. Podia imaginar perfeitamente a forma como Seth balançaria a cabeça preocupado. Mas isso não ia acontecer. Eu estava muito magoada e era
orgulhosa demais para até mesmo permitir que ele fosse meu amigo, então dei de ombros e disse:
- Mas vai dar certo. Sempre dá.
- Sim... mas geralmente não sem muita confusão. Só estou preocupado com você, só isso.
- Não precisa. - Não mais. - Não estou em perigo. Estou mesmo é aborrecida.
Ele abriu a boca para falar, e eu conhecia aquele gesto. Ele queria argumentar dizendo que havia, ainda assim, motivo para preocupação - mas os tempos tinham mudado.
Ele engoliu em seco e deixou o comentário pra lá. Mais silêncio. Eu sabia que deveria ir embora, mas, por algum motivo, não conseguia me obrigar a fazê-lo. Ele aparentemente
também não. - Você... Você está realmente bonita hoje - ele disse por fim, ainda tentando de forma desajeitada conversar.
Havia um porém na voz dele. Ele sabia que minha aparência tinha a ver com mais do que simplesmente meu corpo e minha roupa. A energia que eu havia roubado ao dormir
com meu terapeuta estava me circundando. A vida e seu poder eram irresistíveis para todas as criaturas, mortais ou imortais, indiferentemente. Os imortais podiam
literalmente ver que havia vida cintilando a meu redor. Para os mortais, eu simplesmente estava linda. Sobrenatural. Perfeita.
Em nome da boa educação, fingi que ele estava me elogiando por coisas normais.
- Obrigada. Eu tinha saído com os outros quando toda essa... coisa... aconteceu. Meio que para estragar a diversão.
Ele balançou a cabeça em resposta e se moveu de modo que pudesse realmente olhar para mim. Antes não tivesse feito isso. Meu coração se derreteu dentro de mim, e
eu senti o soluço subindo por meu peito. Desesperada para fazer alguma coisa, peguei os fósforos do feliz acaso e acendi o cigarro que eu ficara segurando o tempo
todo. Dei uma boa tragada e soltei a fumaça. Seth deu um passo para trás. Ele não era fã de cigarros. Foi como se de repente eu tivesse uma armadura.
- Bom - eu disse, sentindo-me mais confiante -, preciso ir para casa arrumar as malas. A gente se vê por aí.
Virei-me e tinha dado apenas um passo quando ele me chamou.
- Georgina?
Olhei para trás. - Que foi?
- Você... humm... - ele titubeou, o que me fez lembrar aquele Seth de antigamente. Sentimentos contraditórios estavam me queimando por dentro. - Você precisará de
alguém para dar comida a sua gata?
Não sabia se ria ou chorava. - Sim, mas obrigada. O Cody vai dar. - Falei as palavras seguintes sabendo muito bem que elas causariam dano. - Ou o Dante.
Seth vacilou e, por algum motivo, senti-me triunfante e triste ao mesmo tempo. - Tudo bem - ele disse hesitante. - Só achei que eu deveria... sabe? Conferir.
- Obrigada - eu disse novamente.
Ficamos olhando um para o outro por mais um momento, então eu me virei e saí andando noite adentro.
Capítulo 3
ão fiz as malas nem liguei para Dante quando cheguei em casa. Estava exausta. Falar com Seth tinha sido muito deprimente. Concluí que morava perto demais da livraria.
O que um dia tinha sido conveniente agora parecia opressivo. Alguns quarteirões simplesmente não era distância suficiente entre mim e Seth. Eu bem que gostaria que
a Emerald City tivesse outra filial em algum lugar onde eu pudesse trabalhar. Em vez disso, talvez fosse eu quem precisasse encontrar uma nova moradia. Meu contrato
ali estava acabando e, até então, eu não havia pensado em outra coisa senão renová-lo. Mudar era uma ideia surpreendente - e estranhamente atraente - e refleti sobre
isso enquanto caía no sono naquela noite, com minha gata Aubrey aconchegada nas minhas pernas.
Na manhã seguinte, tive de colocar minhas coisas na mala correndo. Jerome não tinha marcado uma hora específica para eu chegar a Vancouver, apenas “logo”. Decidi
não por à prova o que aquilo significava exatamente. Fazer as malas não demorou muito, felizmente. Eu poderia transformar qualquer roupa que quisesse, mas eu tinha
algumas favoritas que simplesmente preferia levar comigo. Outro costume humano persistente. Havia também maquiagem e outros produtos de toalete que eu queria levar;
gostava de arrumar meu cabelo e eu mesma me maquiar quando tinha tempo.
Estava servindo minha terceira xícara de café na cozinha quando ouvi o tilintar das assinaturas de imortais vindo da minha sala. Só um imortal superior, como um
demônio ou um anjo, poderia se teleportar diretamente para dentro, e imediatamente reconheci esses dois. Grace e Mei.
Elas eram duas demônias, assistentes de Jerome. O céu cumpria sua agenda de forma aleatória, mas a nossa era cuidadosamente organizada. O território era distribuído
entre os arquidemônios, que, por sua vez, controlavam uma rede de demônios subordinados e imortais inferiores como eu e meus amigos: súcubos, vampiros e duendes.
Jerome lidava com as questões importantes de sua área, ia a reuniões com demônios acima dele e era responsável pela disciplina. Grace e Mei lidavam com os detalhes
e a papelada, e também ficavam de olho nas partes distantes do território de Jerome, áreas para as quais ele estava muito ocupado e pelas quais não tinha interesse.
A jurisdição completa dele se estendia ao longo da costa oeste de Washington, apesar de sua base de operações ser a região metropolitana de Seattle. Era também onde
a maioria de sua equipe estava localizada. Ele somente dava uma verificada ocasional nos arredores e deixava por conta de Grace e Mei mantê-lo informado sobre o
que acontecia por lá.
Por um motivo qualquer, as demônias sempre vestiam roupas iguais. Nesse dia elas estavam de terninho preto, de caimento perfeito. Grace era loira, e Mei tinha o
cabelo preto, mas os cortes de cabelo também eram semelhantes: corte reto na altura do queixo. Ambas estavam de batom vermelho tijolo.
- Bom dia, Georgina - Grace disse.
- Viemos trazer instruções de última hora - Mei disse.
- Ah. Tudo bem. - Fiquei aliviada. Temia que Jerome as tivesse enviado para descobrir por que eu já não havia atravessado a fronteira canadense. - Vocês querem café?
Eu sempre oferecia alguma coisa quando elas estavam aqui, e toda vez elas recusavam. Então, fiquei espantada quando Grace perguntou: - Que tipo?
- Humm... Starbucks. Blend da casa.
- Não - responderam Grace e Mei em uníssono.
Dei de ombros e me sentei no sofá. Eu tinha visto Aubrey deitada lá havia um minuto, mas não podia vê-la em nenhum lugar agora. Ela detestava as duas. Geralmente
elas me davam medo. - E então? - perguntei. - Quais são as novidades?
Elas continuaram em pé. Mei cruzou os braços. - Jerome quer que você saiba qual é a situação com o Cedric. Os dois tiveram uma... divergência sobre divisas territoriais.
Isso atiçou meu interesse. - Ah. Então é ele. Fiquei sabendo que havia alguma coisa acontecendo entre Jerome e outro demônio.
- Os dois andavam de olho nas áreas um do outro - Grace explicou. - Eles queriam expandir suas fronteiras para o Pacífico Noroeste virar um grande... - Ela fez uma
pausa para pensar.
- ... império? - sugeri. Ela balançou os ombros como manifestação de concordância.
- Alguma coisa do tipo - Mei disse. - Mas no fim eles acabaram deixando a disputa de lado e desistiram, e cada um se contentou com seus territórios atuais. É por
isso que o Jerome vai emprestar você para Cedric, como demonstração de boa vontade.
Eu estava muito intrigada para retrucar dizendo como era degradante Jerome me “emprestar” para alguém. - Jerome não faz nada de boa vontade - observei, lembrando-me
do comentário sarcástico sobre altruísmo na noite passada. - Tem mais alguma coisa acontecendo.
Grace balançou a cabeça. - Realmente. Jerome desconfia que Cedric na verdade não desistiu da briga e ainda está tramando contra ele. Jerome quer que você espione
e dê um retorno.
Não gostei disso. Nem um pouco.
- Ele quer que eu espione outro demônio? Um arquidemônio? Vocês fazem ideia do tipo de encrenca em que eu poderei me meter se Cedric descobrir?
Nenhuma das demônias disse nada. Não era problema delas eu ser punida. Considerando o comportamento de Jerome comigo no momento, provavelmente ele também não estava
muito preocupado com isso, a não ser pelo fato de ter de fazer uma requisição ao departamento de pessoal para pedir um novo súcubo.
- Então - continuou Mei - você vai ter duas tarefas. Você precisa contar ao Jerome o que Cedric está fazendo. E você precisa se infiltrar no culto que está causando
problemas ao Cedric e mantê-los na linha... Apesar de que, se você deixar as coisas incomodarem um pouco Cedric, no caminho, Jerome não vai achar ruim.
- Certo. Os satanistas canadenses. Que diabos eles andam fazendo que é tão problemático? Colocando 666 nas costas de camisas de hóquei?
Minha piada não teve nenhum efeito sobre as demônias. Um dia, pensei, vou conseguir fazer uma delas dar um sorriso. - Eles estão chamando a atenção, o suficiente
para os superiores de Cedric ficarem incomodados. Eles preferem que o culto pratique o mal de forma mais sutil.
“Até onde sei, verdadeiros satanistas não são realmente do mal por si sós”, pensei comigo mesma. Apesar da reputação, a maior parte dos satanistas estava mais interessada
só em validar o caos e a natureza indômita e devassa da humanidade. - A maioria deles não sai executando rituais com sangue, nem fica pintando pentagramas com spray
em paredes.
- Na verdade - disse Mei -, esse grupo está pintando pentagramas com spray em paredes.
- Oh - eu disse. - Que coisa besta.
- Eles acham que são do mal... - Grace começou.
- ... mas eles não são - continuou Mei. - Eles precisam de rédeas.
- Tudo bem. Com certeza. Sem problemas. - Influenciar projetos de satanistas era moleza comparado a espionar um demônio. Dei uma olhada na hora. - Mais alguma coisa?
Acho que está na hora de eu ir embora.
- Sim - disse Mei. - O Jerome quer que você verifique se está tudo bem com a Tawny.
- Você está brincando - suspirei. - Ele me odeia.
As demônias não confirmaram nem negaram essa afirmação.
- A gente se vê por aí, Georgina - Grace disse.
- Vamos nos manter em contato - disse Mei.
Elas desapareceram.
Com aperto no coração, terminei de fazer as malas e disse adeus a Aubrey. Então, arrastei minha mala até meu Passat, pronta para bancar a Mata Hari. Eu só desejava
que o meu fim fosse melhor do que o dela.
Depois de ultrapassar Everett, cidade que abriga uma base naval logo ao norte de Seattle, a viagem até o Canadá é bem tranquila. O limite de velocidade aumenta e
as atrações mais interessantes do caminho são cassinos e outlets. A quase meia hora da fronteira, cheguei a Bellingham, a atual residência de Tawny Johnson.
Tawny era um súcubo, um súcubo muito jovem. Tecnicamente, eu era a mentora dela, mas ela ter sido mandada para Bellingham limitara de modo misericordioso nossa interação.
Ela tinha voltado em dezembro para Seattle e se envolvera com um duende chamado Niphon, que estava tentando transformar minha vida em um inferno pior do que já era.
Ele a persuadiu a participar dos planos dele, mas, por mais que eu tenha ficado brava por causa disso, sabia que a culpa era mais dele do que dela. Ela não sabia
exatamente o que estava fazendo e fora levada a acreditar que ele poderia dar um empurrão na carreira dela. Mesmo assim, ela causara problemas suficientes e Jerome
mandou-a para fora da cidade. Era melhor do que ser mandada de volta para o inferno, então, na verdade, o arranjo tinha sido bom para todo mundo.
Liguei para ela, e nos encontramos em um café na saída da I-5. A Tawny era fácil de ser notada quando entrava em algum lugar. Apesar do fato de ter sido uma espécie
de trapaceira quando era mortal - uma profissão que se esperava que seria útil no trabalho de um súcubo -, ela era na verdade um desastre na hora de seduzir. Ela
conseguia arranjar caras para dormir com ela, mas era mais graças à disponibilidade do que a qualquer truque da parte dela. Em particular, ela estava convencida
de que a forma mais atraente que podia assumir era de uma loira de um metro e oitenta com peitos que acabariam com as costas de um humano. Tawny também tinha uma
queda por Lycra e tecidos metálicos que eu achava perturbadora, mas que Hugh e os vampiros adoravam. Fiz um lembrete mental de contar para eles sobre a provocante
calça verde-amarelada que ela estava usando nesse dia.
- Georgina! - ela exclamou, vindo saltitante em minha direção com o salto agulha dourado. - Estou tão feliz de ver você. - Ela esticou os braços, demonstrando que
talvez esperasse que eu me levantasse e a abraçasse, mas continuei sentada. Percebendo a deixa, ela também se sentou. - O que você está fazendo aqui?
- Estou indo para Vancouver - eu disse, abraçando com as mãos meu mocha de chocolate branco. - Jerome quis que eu passasse aqui para ver como andam as coisas.
Os olhos dela se iluminaram. - Ótimas! Eu tenho passado muito tempo na Western. - Ela se inclinou para a frente e disse com uma voz compenetrada: - Sabe, quando
se está com dificuldade para levar alguém para a cama, é sempre bom tentar os caras da faculdade. Eles são tão fáceis.
- Obrigada pela dica - eu disse ironicamente. - Vou me lembrar disso.
Ela torceu os lábios e ficou me medindo com os olhos. - Não parece que você esteja precisando disso - ela acrescentou melancólica. - Nunca vou conseguir cintilar
assim.
Pena ela não ter visto o brilho com força total na noite anterior. Ela teria ficado arrasada. - Você vai - eu disse. - Um dia. - Esse dia estava muito, muito distante.
Tawny tinha quilômetros para percorrer antes de dominar as sutilezas necessárias para conseguir caras realmente decentes.
- Não sei como você consegue. Você nem é loira. Quer dizer, talvez um pouco, mas no geral você é morena. Não entendo como os caras gostam.
Meu cabelo era comprido e castanho-claro, com toques de dourado. Meus olhos eram castanho-esverdeados e eu desconfiava que também não se encaixavam na visão de mundo
dela sobre ser sexy, pelo menos se os tons azul bebê dela fossem uma indicação. - Bem, algumas pessoas têm umas taras... Quem sabe?
O garçom apareceu e anotou nosso pedido de almoço. Fiquei à vontade e me preparei para dar umas orientações.
- E aí? - eu disse. - Você tem alguma pergunta?
Tawny mexeu a cabeça, com pensativos olhos azuis e cílios longos. - Sim. Tem uma coisa que eu ando me perguntando.
- Tudo bem, pode falar.
- Esses caras da faculdade... Eles são meio, digamos, rápidos.
- Rápidos?
- É. Depois de levá-los para a cama, acaba antes de começar.
- Eles têm dezoito, vinte anos. Os hormônios da adolescência estão fervendo. Ainda não sabem direito o que estão fazendo.
- Sim, sim, eu sei - ela disse. - Com exceção de quando eu estou lá embaixo, aí demora uma eternidade. Você me entende?
Tentei ficar séria. - Esse é um dos mistérios do universo, Tawny. Você precisa saber levar.
- Mas minha boca fica dolorida - ela choramingou. - Minha mandíbula fica doendo no dia seguinte! Tem um jeito de ser mais rápido?
Meus amigos imortais morreriam se pudessem ouvir essa conversa. - Você pode tentar o truque do “não pare”. Ou talvez dizer a eles para gozar na sua cara. Isso vai
apressar as coisas.
- Eca! Isso é nojento.
Dei de ombros. - Não pergunte, se não quiser ouvir a resposta.
- Mas como eu posso dizer alguma coisa se a minha boca está... bem... você sabe...
Assim continuou o resto de nossa conversa do almoço, e sexo oral acabou sendo o assunto mais discreto. Felizmente, ninguém estava sentado a uma distância que pudesse
nos ouvir. Comi minha salada de frango o mais rápido que pude, louca para ir embora. Quando estávamos pagando a conta, ocorreu-me uma coisa. - Ei, Tawny. Você está
praticamente no território do Cedric, aqui. Você viu algum sinal de desentendimento entre Jerome e ele?
Ela balançou a cabeça. - Não. Nunca nem vi o Cedric. Mas tem um vampiro aqui na cidade que falou alguma coisa sobre eles estarem brigando. Ao que parece, ele acha
que é alguma coisa importante.
- Todo mundo parece achar, mesmo assim... não sei. Tenho uma sensação estranha quanto a isso tudo. Como se alguém estivesse tentando esconder alguma coisa.
Tawny colocou dinheiro sobre a mesa, suas unhas pareciam garras pintadas de vermelho. Por um instante, ela aparentou ser notavelmente sábia. - Na época em que eu
fazia trambiques, o melhor jeito de enganar as pessoas era dar muita importância a alguma outra coisa. Levá-las na direção errada.
Provavelmente foi a coisa mais inteligente que eu já ouvira Tawny dizer. - Sim, mas, se for isso, do que estamos sendo desviados?
- E eu lá sei? Gente inteligente como você é quem tem de descobrir. Estou só tentando fazer os caras da faculdade encurtar o tempo de sexo oral.
Era meu primeiro minuto no Canadá, e o guarda me mandou parar.
Logo depois da alfândega, em um pequeno trecho da estrada, o limite de velocidade é absurdamente baixo. E eu sou a única que obedece. Todos os habitantes locais
passam rapidinho por aquela parte, já dirigindo antes na velocidade que é permitida na estrada a mais ou menos um quilômetro adiante. Toda vez, pouco antes de chegar
à zona com limite mais alto, eu não resisto e acabo aumentando a velocidade - e é sempre aí que os policiais me pegam. Já me fizeram encostar três vezes.
Essa era a quarta.
Entreguei minha certeira de habilitação e os outros papéis necessários ao guarda. - Americana, não é? - ele perguntou, como se não fosse perfeitamente óbvio. - Sim,
senhor - eu disse.
- Você sabe que estava acima do limite de velocidade, não sabe? - Ele falou com um tom mais curioso do que ríspido.
- Estava? - perguntei, me fazendo de boba e olhando para ele com um ar inocente. Vi o glamour de súcubo fisgá-lo. - Mas a placa dizia sessenta e cinco.
- Sessenta e cinco quilômetros por hora - ele corrigiu gentilmente. - Nós aqui usamos o sistema métrico.
Pisquei. - Meu Deus, eu me esqueci. Estou me sentindo uma idiota.
- Acontece muito - ele disse. Devolveu-me minhas coisas sem nem mesmo verificar. - Vamos fazer o seguinte. Vou deixar passar, desta vez. Mas não se esqueça de usar
as unidades certas, tá? Seu velocímetro tem quilômetros por hora embaixo das milhas por hora.
- Ah, é para isso que servem esses numerozinhos? - Dei um sorriso estonteante para ele. - Obrigada, mesmo.
Juro, ele deu uma ajeitada no quepe. - Estou feliz por poder ajudar. Mais cuidado agora e aproveite a estada.
Agradeci novamente e me pus a caminho. Vale dizer que, embora já tenham me mandado parar quatro vezes nesse trecho, consegui me safar as quatro vezes.
Canadenses. Tão gentis.
Cheguei ao centro de Vancouver sem maiores problemas e dei entrada no hotel. Era um hotel boutique na Robson Street, e fiquei achando que talvez o Jerome não me
detestasse tanto assim, no fim das contas. Ou, pelo menos, a agência de viagens do inferno não me detestava. Robson era um bairro divertido, cheio de restaurantes
e lojas. Joguei minhas coisas no quarto e fui encontrar Cedric. Ele provavelmente já havia sentido minha presença quando entrei em seu território, mas eu queria
que ficasse registrado oficialmente que eu estava lá, para eu não ter mais problemas com Jerome.
Diferentemente de Jerome, que às vezes era impossível de ser encontrado, Cedric na verdade tinha um conjunto de escritórios no bairro financeiro. Eu meio que gostei
disso. A recepção ficava por conta de uma duende chamada Kristin. Ela parecia ser amável, mas era extremamente atarefada. Disse-me que eu estava com sorte por Cedric
poder me encaixar para ser recebida naquele momento. Quando entrei na sala dele, ele estava sentado à mesa, lendo alguma coisa na Wikipedia. Levantou os olhos. -
Ah. O súcubo do Jerome. - Afastou- -se do monitor e apontou para uma cadeira do outro lado da mesa. - Sente-se.
Sentei-me e comecei imediatamente a observar o escritório. Não tinha nada que indicasse quanto a ser ligado ao mal. Era arrumado e elegante, com um janelão de onde
se viam vários prédios comerciais atrás dele. Havia um enfeite com bolinhas de moto-contínuo de prata em cima da mesa e um pôster motivacional pendurado na parede,
emoldurado. Era uma foto de um broto de pinheiro diante de uma árvore maior, embaixo se lia DETERMINAÇÃO.
O próprio Cedric também não apresentava aparência malévola. Tinha porte mediano e bonitos olhos azuis-acinzentados. O cabelo era raspado, no estilo militar, e, como
com Kristin, a principal vibração que eu podia captar dele era que estava atarefado. Tanto quanto alguém pode estar atarefado navegando na Wikipedia, quero dizer.
Dei uma espiada na tela, curiosa sobre o que ele estava vendo. Aquisições demoníacas, talvez?
- Ah, isso... - ele disse, ao ver para onde eu estava olhando. - É só um hobby. É a página sobre marsupiais. Eu às vezes gosto de entrar e postar alguma informação
incorreta. É divertido ver quanto tempo eles demoram para perceber. Estão ficando cada mais eficientes, mas isso faz aumentar o desafio. Acabei de escrever um trecho
sobre a questão de os marsupiais serem parte integrante da eucaristia luterana. - Ele riu por dentro da própria engenhosidade. - Por Deus, eu odiei a Reforma.
Sorri, sem saber muito bem o que dizer.
Cedric apertou as mãos à sua frente, com uma expressão séria. - Vamos ao que interessa. Você está aqui para me espionar.
Abri a boca, mas não consegui emitir nada que tivesse alguma coerência. - Humm...
Ele fez um gesto com a mão. - Não, não, tudo bem. Você não espera sinceramente que eu acredite que o Jerome me faria um favor a troco de nada. Não faz diferença.
Não tenho nada a esconder. Ele pode ficar com o território dele... Já estou ocupado demais, vigiando o meu. Pode dizer a ele o que quiser, desde que você faça o
que eu preciso.
- Certo - eu disse, finalmente recuperando a voz. - O culto satânico embaraçoso.
Ele fez uma careta. - Santo Deus, esses caras estão me enchendo o saco. O que você sabe sobre eles?
- Que não são satanistas como os grupos de praxe, não como os seguidores de Anton La Vey ou os anticristãos. - Senti-me como uma aluna falando diante da classe.
- Eles acham que são anticristãos, mas, no geral, são apenas ridículos. Só uns esquisitos em busca de identidade que se juntaram e acharam que era legal ser do mal.
Eles fazem reuniões com trajes cerimoniais e ficam inventando uns apertos de mão secretos.
- E esse é o problema?
- Não. Não dou a mínima para nada disso. Eles podem se fantasiar do que quiserem. O que me incomoda é o fato de eles fazerem todas as coisas que as pessoas acham
que quem é do mal faz, mas que na verdade não se faz. Uma vez, eles rasgaram um punhado de Bíblias e deixaram-nas no jardim da igreja. Eles também aparentemente
têm uma adoração por spray.
- Disso, eu sei.
- Ficam escrevendo umas coisas idiotas como “O Anjo da Escuridão é o Senhor” e “O que o Diabo faria?” - Cedric revirou os olhos. - Como se isso fosse original.
- Entendo por que você está incomodado - concordei.
- Sem brincadeira. A pior parte é que eles estão atraindo alguma atenção da mídia... principalmente entre as igrejas locais. E agora esses caras estão revidando
e desencadeando toda uma série de demonstrações sobre fé, luz e todas essas coisas. Não precisamos disso. Meio que destrói nosso propósito, na verdade.
- O que você quer que eu faça?
- A Kristin anda com eles, às vezes. Eles a conhecem e sabem para que lado ela trabalha, mas, francamente, ela não tem capacidade de lidar com as pessoas a ponto
de manipulá-las. Ela vai levar você até eles e falar alguma besteira sobre como você tem uma posição importante na hierarquia do mal ou alguma coisa absurda dessas.
Então, quero que você ande com eles e faça parte do grupo. Impeça-os de fazer mais idiotices. Faça-os voltar para a encenação no porão. Que diabos! Se você puder
convencê-los a debandar, vá em frente. - Ele me mediu com os olhos. - Você é um súcubo. Já faz um bom tempo. Deveria ser capaz de convencê-los a fazer qualquer coisa.
Movi a cabeça. - Eu posso.
- Ótimo. Estou cansado deles. Não tenho permissão para interferir diretamente, e meu pessoal está ocupado demais. - Ele ficou em pé e andou em direção à porta. Percebi
a deixa e o segui. - Faça o que quiser durante o resto do dia. A Kristin vai levar você até eles amanhã. Dê uma verificada neles. Veja o que acha. Tenho alguns compromissos
de manhã, mas dê uma passada, de qualquer jeito, e me conte sobre a impressão que eles lhe causarem.
- Tem alguma coisa especial que você quer que eu descubra?
- Sim - ele disse. - Além de não deixá-los causar problemas, quero que você simplesmente os observe. Eles não estão atraindo apenas a atenção da mídia... Estão atraindo
a atenção de meus superiores. - Ah, sim. O inferno fica fulo com esse tipo de coisa. - Se alguém estiver manipulando-os propositalmente, vou querer saber.
- Tudo bem.
Ele me olhou, apertando os olhos. - E espero que não seja o Jerome.
Ele ainda tinha aquela expressão afável e profissional, mas ouvi o tom firme de sua voz. Estremeci, mas dei um sorriso, de qualquer forma, procurando não pensar
sobre aquilo de tentar levar as coisas para a direção errada.
- Eu também espero que não estejam.
Fiquei um pouco surpresa com a breve duração do meu encontro com Cedric. Fiquei ainda mais surpresa porque, depois de toda a amolação que Jerome havia me causado
por causa da urgência dessa viagem, nesse momento não teria nada para fazer. É claro que ele estava tentando se livrar de mim, e essa era a melhor maneira. Eu e
o meu mau comportamento estávamos longe de Seattle.
Já estava na hora do jantar quando voltei a Robson Street, então fui comer em um restaurante etíope a poucos quarteirões do meu hotel e fiquei fazendo hora com o
resto da minha refeição, lendo um romance que eu tinha começado havia alguns dias. Depois, fiquei andando para cima e para baixo pela rua, olhando várias lojas e
designers, mas acabei precisando parar depois de passar por duas lojas de camisetas. Uma vendia coisas retrô e tinha uma camiseta do Quiet Riot roxo-escura na vitrine.
A outra vendia lembranças do Canadá e tinha uma camiseta com um mapa do Canadá em vermelho e um mapa dos Estados Unidos embaixo, azul. Estava escrito “O Canadá gosta
de ficar por cima”. Se ainda estivesse namorando Seth, teria comprado as duas para ele. Ele balançaria a cabeça e faria aquele movimento estranho com os lábios enquanto
tentaria esconder o sorriso.
Pensar nisso me deixou deprimida e eu me vi ficando cada vez mais e mais triste conforme fui voltando para o hotel. Naquele momento, eu teria dado qualquer coisa
para estar com Seth de novo, para consertar os erros que tínhamos cometido um com o outro perto do Natal anterior. Perdê-lo era como perder uma parte de mim que...
Queimando, uma raiva fulminante me invadiu de repente. Por que diabos eu estava me lamentando? Por que deveria ter saudade dele? Por que deveria me sentir mal por
causa de uma pessoa que tinha me traído e me magoado justamente com minha amiga, entre todas as pessoas do mundo? Seth não merecia que eu sentisse falta dele ou
meu amor e, conforme continuei andando, aquele desespero sombrio dentro de mim se transformou em ódio e desprezo - exatamente como tinha acontecido quase todos os
dias nos últimos quatro meses.
Quando cheguei ao hotel, não estava mais triste. Estava puta. Odiava tudo e todos, mas principalmente Seth. Queria que ele me pagasse por aquilo. Infelizmente, não
dava para fazer isso, não ali em Vancouver. Passando perto do bar do hotel a caminho do saguão, parei e dei uma olhada nos clientes. Era um verdadeiro festival de
homens; a maioria, viajantes solitários fazendo amigos passageiros enquanto bebiam alguma coisa. Minha volúpia de súcubo tomou conta de mim e, de repente, tudo que
eu queria era ficar bêbada e ir para a cama com algum cara. Queria me perder em uma nuvem de álcool e sexo, na esperança de que isso amenizasse a dor que jazia enterrada
sob minha raiva.
Enquanto examinava o ambiente, um cara me chamou a atenção. O rosto não tinha nada a ver, mas o cabelo era quase da mesma cor do de Seth. Também era bagunçado, apesar
de parecer que ele havia conseguido aquele efeito com gel, em vez de por falta de se pentear, como Seth. Não, esse cara não era uma imitação perfeita, de modo algum,
mas chegava perto, e ele tinha uma aura de vulnerabilidade tímida que me agradou.
Armando um sorriso, atravessei a sala para me apresentar. Eu podia não ter realmente capacidade de punir Seth, mas, pelo menos esta noite, podia fingir que tinha.
Capítulo 4
- ocê me dá seu telefone?
O cara mais ou menos parecido com Seth estava nu, deitado na cama, ainda exausto, apesar de ter gozado havia horas. Eu estava em pé perto da porta, totalmente vestida,
enfiando os sapatos. Por acaso ele estava ali a trabalho e era, na verdade, de Seattle e tinha ficado superanimado quando descobriu que morávamos na mesma cidade.
- Humm... - Entortei os lábios como se estivesse pensando no assunto. - Acho que não é uma boa ideia.
- Sério? - O breve ar de felicidade se esvaiu. Ele acabou se revelando tão vulnerável e tímido quanto eu tinha imaginado que ele fosse. Eu era apenas a segunda mulher
com quem ele havia dormido. - Mas eu me senti... bem, como se nós realmente estivéssemos conectados.
Lancei-lhe um olhar frio. O ódio sufocante da noite passada não mais me consumia, mas ainda estava com raiva do mundo e precisava descontar em alguém. - Nossos corpos
estavam conectados. E é só. Na verdade, eu já tenho um namorado.
Os olhos dele se arregalaram. Percebi então que deveria ter mencionado o fato de ter um namorado antes de transar. Teria duplicado o sentimento de culpa dele e me
proporcionado uma dose mais forte. Mesmo assim, a agonia que ele agora sentia por ter dormido com a namorada de alguém já estava sem dúvida enegrecendo a sua alma
enquanto conversávamos.
- V-Verdade?
- Sim. Desculpe. Foi só para passar o tempo. E, honestamente, querido? Quer um retorno? Você ainda tem muito a aprender. Não foi lá grande coisa.
Fui embora antes de ver o efeito total das minhas palavras. Ele ia ficar magoado, eu não tinha a menor dúvida. Deixá-lo devastado não fez com que eu me sentisse
melhor, mas me fizera ficar tão fria que não precisaria processar nenhuma emoção verdadeira. Estava anestesiada, e isso era o melhor que eu podia esperar.
Kristin estava me esperando em um café na mesma rua para me levar de carro até a casa do líder do culto. O cabelo castanho sem graça estava preso em um coque caprichado
e o terninho bem-arrumado me fez lembrar algo que Grace ou Mei poderiam usar, exceto pelo fato de ser azul-marinho, diferente do preto que elas em geral usavam ou
- em dias ousados - do vermelho. Ela estava bebendo o que parecia ser um cappuccino e catava alguns pedacinhos que tinham sobrado de um bagel, os olhos perdidos
em pensamentos enquanto ela sem dúvida refletia sobre as complicações do dia que tinha pela frente.
Comprei um mocha de chocolate branco e deslizei na cadeira na frente dela.
- Bom dia - eu disse.
Ela me examinou, percebendo o glamour.
- E uma boa noite?
Dei de ombros.
- Razoável.
- Você está pronta para conhecer o Exército da Escuridão?
- Claro. Ei, espere. O que você disse?
- Exército da Escuridão. É assim que o culto se autodenomina.
- Eles sabem que esse é o nome de um filme, não sabem?*
Ela balançou cabeça.
- Sinceramente? É difícil dizer. Eles podem ter escolhido o nome por causa do filme, até onde eu sei.
- Isso é tão absurdo que parece mentira - eu disse. - Parece uma piada.
- Antes fosse - ela murmurou. - Acredite, vou ficar satisfeita quando você se livrar deles. Além de Cedric me obrigar a falar com eles, preciso preencher a maior
papelada toda vez que eles fazem alguma besteira. Isso está realmente o deixando estressado. Eu tento convencê-lo a fazer exercícios de relaxamento, mas ele não
quer.
O tom dela dava a impressão de ser uma preocupação legítima, quase como se ela trabalhasse para Cedric por pura lealdade, em vez da servidão forçada a que o resto
de nós tinha de se submeter.
- Bem, vou ver o que posso fazer. Vocês não têm um súcubo aqui? Por que ela não está dando cuidando desse grupo?
- Ela está ocupada, seduzindo o primeiro-ministro. Cedric não queria que ela precisasse se preocupar com outra coisa.
- Uau - eu disse. Havia séculos que eu não tomava a iniciativa de ir atrás de um político importante. - Estou me sentindo uma inútil.
Kristin me lançou um olhar. - Geralmente, o que eu fico sabendo é que você é uma encrenqueira.
- Prefiro achar que sou incompreendida.
Ela bufou. - Nós todos somos incompreendidos. Você não imagina quantas vezes as pessoas tentam usar isso como motivo para quebrar os contratos delas.
Ultimamente, entre chorar por Seth e ser alvo da irritação do Jerome, eu tivera pouco tempo para pensar em qualquer outra coisa. As palavras de Kristin repentinamente
trouxeram à tona uma memória que eu estava tentando manter enterrada havia um bom tempo.
- Quantas vezes as pessoas tentam quebrar seus contratos por causa de um engano?
Quando Niphon apareceu, no inverno passado, ele se empenhou muito para complicar minha vida e me fazer ser chamada de volta para o inferno. Como fora ele quem me
havia ludibriado para que eu vendesse minha alma, fazia muito tempo, eu tinha muitos motivos para odiá-lo. Mas por que ele me odiaria e quereria me arruinar? Isso
era - e continuava a ser - um mistério. Hugh tinha conjecturado que quando um duende se empenhava tanto para atrapalhar uma aquisição geralmente havia um motivo
- especificamente, um problema em potencial com o contrato original.
Meu ar descontraído não enganou Kristin.
- Você acha que pode haver um erro no seu? - ela perguntou.
Mantive o ar desinteressado.
- Hugh, o meu duende, achava que poderia haver. Mas ele nunca quis ir atrás disso. - A recusa dele em me ajudar ainda me deixava magoada.
- Ele é esperto. Verificar contratos dos outros pode nos causar um problemão. Os cofres do inferno não são um bom lugar para ser apanhado bisbilhotando. Seria preciso
um motivo muito bom para conseguir que um duende se arriscasse a fazer isso.
Eu não tinha como provar, mas alguma coisa me dizia que Kristin era mais velha e tinha uma posição superior à de Hugh e que poderia ter mais acesso do que ele. Dei
um sorriso meigo.
- E o que seria preciso para você correr esse risco? - eu disse.
- Nada que você possa oferecer. - Ela deu um rápido sorriso sarcástico e colocou os vistosos óculos de sol Oakley. - Vamos lá. Vamos acabar com isso.
O destino era uma casa nos arredores de Vancouver. Era uma área de classe média baixa, não especialmente bem cuidada, mas nem também o tipo de lugar onde seria preciso
ter medo de assalto. Kristin estacionou na rua e me conduziu pelo caminho da entrada da casa, o salto alto fazendo tec tec no concreto. Ao longo das laterais do
jardim, cravos-de-defunto e gerânios tinham sido plantados recentemente.
Ela tocou a campainha e, logo depois, um homem de uns vinte e tantos anos abriu a porta. Ele tinha cabelo escuro e despenteado, talvez tivesse acabado de se levantar,
e tinha um jeito cordial e contido, do tipo de alguém que trabalharia no Home Depot ou na Circuit City.
- Oi, Kristin - ele disse, com uma voz alegre e blasé. - Entrem.
Ela deu um passo para dentro, e eu a acompanhei, lançando por minha conta um sorriso amigável para o cara. - Não posso ficar - ela foi logo dizendo. - Vim só trazê-la
até aqui. Evan, esta é...
Kristin olhou para mim, aparentemente esperando para ver se eu queria usar meu nome. Geralmente eu usava identidades e formas diferentes quando seduzia vítimas,
mas não me pareceu que isso seria necessário.
- Georgina - completei.
- Georgina - Kristin disse. - Este é o Evan. - Demos um aperto de mão. - Georgina é uma das fundadoras de uma irmandade de mulheres de Seattle. Ela está aqui para
ver o que vocês fazem e talvez estabelecer conexões entre os grupos. - Ela inclinou a cabeça e olhou para ele por cima dos óculos escuros. - Quero que você a receba
muito bem e a envolva em suas atividades. É muito importante.
Ele balançou a cabeça, ainda mantendo o ar calmo e gentil - mas um pouco nervoso por causa do tom severo da voz dela. - É claro. - Cedric tinha dito que Evan sabia
que Kristin era uma peça importante da Equipe do Mal, e ele visivelmente parecia respeitá-la. Ela supostamente não tinha a sociabilidade necessária para “lidar”
com esse grupo, mas, pela forma como Evan olhava para ela, não parecia ser difícil atrair a atenção dele.
Para mim, Kristin disse:
- Chame um táxi quando acabar. Nós pagamos.
Com isso, ela voltou para o carro, deixando-me com o suposto general do Exército da Escuridão.
- Você quer tomar alguma coisa? - ele perguntou, segurando um bocejo. - Tem refrigerante na geladeira.
- Não, obrigada. Estou ansiosa para ver o que vocês fazem por aqui.
Ele sorriu. - Claro. Acho melhor começar mostrando o templo.
Dei uma olhada à minha volta e notei um sofá florido e um relógio de pêndulo. - Templo?
- Fica no porão. Você tem certeza de que não quer tomar alguma coisa?
Não queria tomar nada que não tivesse um teor alcoólico de pelo menos 40%, então recusei novamente.
Ele foi na frente e nós descemos por uns degraus não muito firmes; lá embaixo, ele puxou uma corrente e uma lâmpada se acendeu. Estávamos em um porão inacabado,
com chão de cimento áspero e paredes de tijolo. Cadeiras dobráveis estavam dispostas em semicírculo ao redor de uma estante baixa, que chegava mais ou menos até
a minha cintura. Apoiada em cima da estante havia uma pintura com uma silhueta de anjo em preto sobre uma galáxia em cinza e roxo. Parecia saída diretamente da capa
de um romance de ficção científica. Velas vermelhas e pretas, queimadas pela metade, estavam espalhadas em volta da pintura, com uma cruz invertida. No canto da
sala, havia mais velas, em cima da máquina de lavar e da de secar. Evan caminhou até um interruptor e ligou-o. Luzes de Natal brancas ganharam vida e começaram a
piscar nas paredes de tijolo.
- Uau - eu disse. Meu espanto não era fingido.
- Ainda não terminamos de nos instalar aqui - ele disse com modéstia. - Precisamos mudar muito de lugar, para evitar que sejamos descobertos. Você sabe como é. Então,
ainda falta desempacotar algumas coisas. - Ele apontou para uma caixa de papelão no canto. Não dava para ver tudo o que tinha dentro, mas pude ver uma estola de
penas pretas e um crânio de plástico do tipo que brilha no escuro. Na lateral da caixa, estava escrito de forma sucinta, em caneta preta: COISAS DO TEMPLO.
Contei as cadeiras. Quinze.
- Quantos membros vocês têm? - perguntei.
- Mais ou menos, doze. Nem todos são realmente ativos. - Ele se sentou em uma das cadeiras e gesticulou para indicar que eu fizesse o mesmo.
- Há quanto tempo vocês se reúnem?
- Há mais ou menos um ano.
Sorri, ativando o meu charme na tentativa de não parecer uma repórter investigativa. - Ouvi falar sobre algumas coisas que vocês fazem. Bem impressionante. Coisas
como as Bíblias e... humm... as pichações.
Ele ficou sorridente com o elogio. - Você ouviu falar disso? Legal. Fazemos o que o Anjo da Escuridão manda.
- Que outras coisas vocês foram instruídos a fazer?
- Bem, uma vez a Igreja Metodista tinha organizado uma festa do sorvete. Nós conseguimos invadir o local antes da festa e deixamos o sorvete fora do congelador para
derreter.
- Uau.
- Outra vez, fomos ao pet zoo e penduramos coleiras com pentagramas em todas as cabras. Também pintamos os chifres de preto e vermelho. Essa não foi fácil. Elas
não gostam de ficar paradas.
- Uau.
- Ah, depois, nós fizemos todos os canais de tevê passarem O bebê de Rosemary.
- Tevês?
- É, eu trabalho na Circuit City, e temos aquelas paredes forradas de tevês. Eu sintonizei todas. Meu chefe nem desconfia de quem tenha feito isso.
E assim prosseguiu a ladainha. Uns dez minutos depois, interrompi, não aguentava mais ouvir aquilo.
- Veja bem, Evan. Isso que vocês estão fazendo é realmente incrível. O meu pessoal em Seattle jamais sonharia em fazer isso, nem em um milhão de anos.
- Verdade? - ele perguntou satisfeito.
- Verdade - eu disse entediada. - Mas, embora isso cause muito estardalhaço, não faria mais sentido para o Anjo vocês trabalharem para ganhar almas para ele?
- Ela - corrigiu Evan.
- Ela. Certo. - Lúcifer, Satã, o Diabo, tanto faz. Havia muitos nomes para o que os homens consideravam a entidade suprema do mal, e eu tinha ouvido milhares ao
longo dos anos. Considerando a crença popular de que Lúcifer seria um anjo caído, esse negócio de “Anjo da Escuridão” não me surpreendeu, mas o fato de ser do sexo
feminino, sim. - Você vai me desculpar - eu disse. - O Anjo que nós conhecemos é do sexo masculino.
- Tudo bem - ele respondeu. - O Anjo pode ser todas as coisas para todas as pessoas.
- Certo. Mas, mesmo assim, o objetivo final é converter o maior número possível de pessoas para ela, não é? Levá-las para o caminho da mão esquerda. Não me parece
que derreter sorvete ajude a fazer isso. Não que não seja bacana - acrescentei em seguida. - Estou só me perguntando se vocês não deveriam estar mais empenhados
em levar as pessoas a cair em tentação.
Evan não pareceu nem um pouco incomodado com minhas críticas. - Talvez isso seja o que o seu grupo é orientado a fazer. Mas o que o nosso deve fazer é isso. Todos
servimos a diferentes propósitos dentro de um plano mais amplo.
Eu tinha certeza de que estava com cara de idiota, então, tentei voltar ao modo atraente e sedutor que era a justificativa principal para eu estar ali. Com certeza,
não seria muito difícil influenciá-lo, especialmente levando em conta que meu glamour de súcubo estava fresco. Estiquei o braço, peguei a mão dele e delicadamente
acariciei-a com meus dedos.
- Vocês estão fazendo coisas incríveis - reiterei, chegando mais perto.
- Realmente incríveis. Mas talvez seja hora de passar para o próximo nível, para trazer verdadeiramente a escuridão para o mundo.
Os olhos dele estudaram minhas mãos por um instante, e então se ergueram novamente. A respiração deu uma parada quando o efeito total do meu brilho o encantou. Ele
engoliu em seco, nervoso.
- Talvez. Mas não agora. No momento, esse é o nosso propósito.
- Só porque ainda não tentaram outra coisa. Talvez seja por isso que eu esteja aqui, porque o Anjo me enviou para aumentar a influência de vocês. - Inclinei o rosto
em direção ao dele, com os lábios a poucos centímetros de sua face. - Posso ensinar coisas. Coisas de todo tipo.
Empenhada ou não, com certeza eu estava produzindo efeito. Ele respirou profundamente, tentando se recompor. - Nós já estamos fazendo o que o Anjo quer.
Passei meus lábios pela bochecha dele, usando também um pouco a língua. - Tem certeza? Deixe eu lhe mostrar como nós reverenciamos o Anjo...
Ele deu um pulo e virou de costas. Depois de respirar profundamente algumas vezes - sério, ele corria o risco de hiperventilar -, ele se virou e olhou para mim.
Desejos conflitantes dançavam nos olhos dele. Ainda tinha aquela aparência de fanático maluco submisso, mas também dava a impressão de que ele já estava me imaginando
nua. Era intrigante que a devoção dele a uma entidade totalmente fictícia pudesse resistir aos meus encantos, mas fanáticos religiosos têm um histórico de tenacidade.
- Você é muito... encantadora - ele disse por fim. - Muito. Mas eu não posso... Nós não podemos. Quer dizer, isso é o que nós fazemos. O que o Exército faz. Não
podemos mudar, não sem falar com os outros.
Progresso. Deixei o sorriso ligado, pensando se deveria continuar insistindo com ele agora ou tentar cativar o grupo inteiro. Optei pela segunda alternativa, em
grande medida porque não conseguia pensar em nada mais brochante do que transar sobre o tapete felpudo preto do Ozzy Osbourne que cobria o chão. Mais ainda se o
Evan resolvesse acender alguma luz negra. - É claro - sussurrei. - Quando vou conhecê-los?
Ele passou a mão no cabelo, ainda um pouco alterado.
- Bem... Você deveria ir à nossa próxima reunião. Vai ser no sábado, às dez da manhã. Naquele Tim Hortons grande, na Broadway.
- Tudo bem, eu irei - pisquei, e minha expressão provocante deu uma titubeada. - Você disse Tim Hortons?
Ele se recompôs e retomou sua natureza animada.
- Sim. Vocês não têm isso lá, têm? São lojas de donuts e...
- Não, eu sei o que é. Só estou surpresa, só isso.
Além de aparentemente ser um lugar mundano para uma reunião de satanistas, os canadenses que vão ao Tim Hortons são... tipo... o maior clichê.
- Você está brincando. O café deles é o melhor.
Fui embora em seguida com a cabeça girando. Eles não eram satanistas. Eram garotões aprontando um trote. Era de se esperar que eles amassassem latas de cerveja com
a testa em suas cerimônias obscuras.
Kristin não estava na mesa dela quando voltei ao escritório de Cedric, do outro lado da cidade. Provavelmente tinha saído para fazer coisas de duende. Ou talvez
estivesse em horário de almoço. A porta dele estava fechada, e isso me fez achar que ele estivesse ocupado, mas, sinceramente, não tive tempo para pensar nisso.
Outra coisa imediatamente me chamou a atenção.
Havia uma demônia na sala de espera.
Uma arquidemônia completa, na verdade. Reconheci-a, apesar de nunca termos sido apresentadas. Nanette, a arquidemônia de Portland.
- Oi - foi o que eu disse, pois estava muito espantada para mais do que isso. Eu podia ser folgada com Jerome, mas outros demônios representavam totalmente diferente.
Ela tirou os olhos da revista como se tivesse acabado de reparar em mim, mas eu sabia que ela já tinha sentido minha presença havia muito tempo.
- Olá. Georgina, certo?
Concordei com a cabeça, perguntando-me se deveria estender a mão ou alguma coisa do tipo. Ela não pareceu estar disposta a se levantar, então eu simplesmente me
sentei em outra cadeira. Por que a arquidemônia de Portland estava esperando para ver Cedric? E por que ela estava esperando, ponto? Isso não era da natureza demoníaca,
de modo algum. Demônios são muito impacientes.
Nanette estava usando um vestido reto, curto, cor de pêssego, que deixava à mostra pernas longas e bem torneadas. O cabelo loiro na altura dos ombros, macio e liso,
era efeito da chapinha - ou melhor, da magia demoníaca. Ela era muito bonita, mas era circundada pela ferocidade fria que muitas vezes os demônios têm, como a beleza
de uma cobra ou de uma katana.**
Eu não tinha medo de falar com as pessoas. Puxar conversa era parte do que eu fazia. Mas não estava totalmente segura quanto ao que dizer a ela. Demônios eram melindrosos
na hora de interagir com imortais inferiores. Alguns eram um tanto esnobes. Eu não sabia muita coisa sobre Nanette ou sobre como ela reagiria. Sabia que ela era
menos poderosa do que Jerome e que os dois não tinham muito contato. Nunca tinha ouvido falar que ela fosse mal- -humorada ou agressiva, então achei que isso era
um bom sinal.
Minhas preocupações quanto ao que dizer se dissiparam quando ela falou primeiro.
- Eu não queria estar no seu lugar por nada.
- Como assim?
- Isso - ela apontou para a porta fechada de Cedric com as bem cuidadas unhas pintadas no estilo francesinha. - Isso tudo. Suponho que você tenha ido ver o pequeno
Exército da Noite.
- Escuridão - corrigi. - Exército da Escuridão.
- Tanto faz, isso é um detalhe. Jerome mandou você a este lugar para “ajudar” porque o Cedric queria um infiltrado?
- Alguma coisa do gênero. - Fiquei imaginando como essa notícia tinha se espalhado tão rápido.
Nanette balançou a cabeça com uma falsa empatia. - Você vai levar a culpa se alguma coisa der errado. Se as coisas acabarem mal entre Jerome e Cedric ou se esse
culto não cooperar... Bem, como eu já disse, não queria estar no seu lugar. Você está sendo manipulada por todos os lados e nem percebe.
- Manipulada como? Acabei de chegar. E não sei como as coisas podem dar errado - eu disse devagar. - Quer dizer, esse grupo só prega peças idiotas. - Lembrei-me
de como só um pouco de sedução tinha afetado Evan. Se eu tivesse começado a tirar a roupa sobre o tapete do Ozzy, tenho certeza de que ele não teria conseguido se
controlar. - Eles não são realmente uma ameaça ao Cedric, e acho que não vai ser difícil controlá-los. Quanto a ele e Jerome... Quer dizer, eles já acertaram as
diferenças entre eles, não é?
- Venha cá. Você tem quantos anos, uns mil? Mil e quinhentos? Tão jovem... - Ela sorriu. - Georgina, demônios nunca resolvem as diferenças entre eles. Até você deveria
saber disso. Você acha mesmo que as coisas estão estáveis por aqui? Do jeito como Cedric permitiu que esse culto ficasse fora de controle? E depois da forma como
Jerome mal conseguiu manter o controle em Seattle?
Lembrei-me de que Jerome havia me chutado para o Canadá em menos de vinte e quatro horas.
- A mim, parece que o Jerome está no controle, no que me diz respeito.
Ela descruzou as pernas e inclinou-se para a frente, com os olhos azuis brilhando. - Três nefilins no território dele nos últimos seis meses. Três. Você tem ideia
de como isso é inusitado? Aposto que você nunca tinha encontrado um nefilim em sua vida inteira antes disso. Em todos esses anos.
- Não - eu admiti.
Nefilins eram filhos de humanos e anjos - bem, anjos que tinham caído e eram agora demônios, visto que ter filhos seria quebra de contrato com o céu. Considerados
aberrações tanto pelo bem como pelo mal, os nefilins eram a escória do mundo imortal. Tinham muito poder e estavam irritados com a forma como os imortais superiores
os tratavam. Eram desregrados, destrutivos e dados a dar vazão aos instintos assassinos.
Jerome na verdade era pai de dois nefilins, gêmeos, que estavam entre os três aos quais Nanette se referia. Um deles, Roman, tinha sido meu namorado por um tempinho
enquanto secretamente eliminava imortais por conta própria. Eu havia ajudado a barrá-lo - e eu tenho certeza de que ele ainda estava irritado por isso, principalmente
porque havia resultado na morte de sua irmã. Não tínhamos mais visto Roman desde então. Pouco depois disso, um nefilim chamado Vincent fora para Seattle, seguindo
um anjo que ele amava. Vincent na verdade era um nefilim muito bonzinho, embora eu não tivesse certeza de que ele andava lá muito dócil nos últimos tempos, já que
o céu havia expulsado a namorada dele quando ela matou outro anjo para salvá-lo. Vincent também estava desaparecido.
- Três nefilins - repetiu Nanette. - E dois se safaram. Serviço malfeito, muito malfeito.
- Não foi culpa do Jerome - eu disse de forma leal, um pouco em dúvida sobre se seria o caso de pôr a culpa em alguém por aquela situação. Nunca tinha me ocorrido
que nossos visitantes inesperados poderiam ser vistos como sinal de fraqueza de Jerome ou de sua incompetência como arquidemônio.
- Os anjos poderiam ter feito alguma coisa. Também é território deles.
- Não aos olhos de nossos superiores - ela disse maliciosamente.
Franzi a testa, perdendo um pouco de minha timidez. - Com todo o respeito, o que você está fazendo aqui?
O sorriso dela se abriu. - O que você acha? Sou vizinha de dois demônios que estão em uma corrida armamentista. Os dois estão chamando a atenção de demônios de fora
da região Noroeste. - Aquilo não me soou bem e me lembrei de que Cedric tinha feito a mesma afirmação. - Você acha que eu quero me envolver nisso? Você acha que
eu quero ser manipulada da forma como todos estão manipulando você? Meu território é pequeno, eu sou mais fraca do que os dois. Não quero que eles resolvam anexar
Portland enquanto ficam jogando o War cósmico deles. Quero que eles me deixem em paz. - A voz dela era dura, mas notei um pouco de preocupação também e percebi o
que estava acontecendo.
- Você está aqui para... - pensei em dizer “puxar o saco” ou “implorar”, mas depois pensei melhor - ... negociar com o Cedric. Proteção. Para manter você fora disso.
Nanette desviou o olhar, não querendo reconhecer isso diante de um súcubo. Nesse momento, a porta se abriu e Cedric saiu por ela. Olhou em volta.
- Kristin ainda não voltou? Ela bem que podia se apressar e me trazer aqueles donuts.
- Tim Hortons? - chutei.
Ele me lançou um olhar incrédulo. - É claro. - Ele se virou para Nanette. Ela havia se levantado e ele beijou a mão dela de um modo educado, antiquado. - Desculpe.
Precisei telefonar para o suporte técnico. Sabe como é. - Para mim, ele disse: - A gente conversa mais tarde.
Achei que não era bom sinal ele dizer “mais tarde”, em vez de “daqui a pouco”. Acomodando-me em minha cadeira, preparei-me para ter paciência. Dez revistas depois,
Cedric abriu a porta novamente. Nanette não estava à vista, então supus que ela tivesse se teleportado de volta para Portland.
Sentei na mesma cadeira no escritório de Cedric, observando que a tela agora mostrava o Match.com, em vez da Wikipedia. Quando ele viu que eu estava olhando, rapidamente
minimizou o navegador.
- Então, o que você descobriu?
Fiz um relatório sobre minha manhã com Evan:
- Eles são ridículos - afirmei como avaliação final.
- Isso eu já sabia - ele disse. - Você acha que pode pôr um fim nisso? Logo? - O tom impaciente da voz dele me fez imaginar que ele esperava que eu já tivesse tudo
garantido.
Pensei no assunto. - Sim, com certeza, assim que conhecer os outros. Esse cara sozinho deu a impressão de que não resistiria. Mas só vou vê-los no sábado.
Cedric recostou-se na cadeira, com uma expressão pensativa. - Tudo bem. Eles provavelmente não vão fazer nada antes disso mesmo. Vá à reunião deles e trabalhe com
os que faltam. Enquanto isso, você pode voltar para casa.
Endireitei-me na cadeira. - Verdade?
Ele deu de ombros. - Não tem motivo para você ficar por aqui, a não ser que queira fazer turismo. Só precisa voltar no sábado.
- Mas... - hesitei. - Jerome me mandou para cá porque estava bravo e não queria ter de lidar comigo. Se eu voltar e ele não me quiser lá...
Cedric puxou a cadeira para a frente e se endireitou. - Ele pode tirar satisfações comigo. Vou dizer para ele que não quero você por aqui também.
Havia algo de malicioso nos olhos dele, quase como se esperasse que Jerome provocasse uma briga. Incomodada, lembrei-me das palavras de Nanette. Você está sendo
manipulada por todos os lados e nem percebe.
- Tudo bem - eu disse por fim. - Obrigada.
Cedric olhou para a porta, seu rosto se iluminou.
- Ah, Kristin voltou. - Pouco depois, também senti a presença da duende. Levantei-me e ele me indicou a porta. - Tenha uma boa viagem. E pegue um donut quando estiver
saindo.
** No Brasil, o nome do filme é Noite alucinante. (N. T.)
** * Katana (ou catana) é um tipo de sabre de origem japonesa, uma espada curva e curta. (N. R.)
Capítulo 5
Assim que entrei no meu apartamento, notei que Jerome já estava me esperando.
- Você é corajosa - ele rosnou.
Coloquei minha mala no chão. Normalmente, aquele tom de voz faria com que eu me escondesse, mas não estava a fim de ouvi-lo depois de dirigir tanto - ou melhor,
não dirigir. Um acidente havia paralisado o tráfego e eu tinha ficado muito tempo sentada no carro, o que me deixou irritada.
- Olhe, foi o Cedric que mandou - eu disse, cruzando os braços como se isso pudesse me proteger dele. - Não fiz nada errado.
- Não é para você fazer o que ele manda. - Jerome se sentou no braço do sofá e bateu o cigarro em um cinzeiro próximo, o que considerei uma cortesia da parte dele.
- Você deve fazer o que eu mando.
- Ele me mandou voltar para casa. Eu não tinha nada para fazer até a reunião dos satanistas, no café da manhã, no sábado.
O olhar ameaçador de Jerome falhou momentaneamente.
- Do que você está falando?
- Do que você está falando? Eu estou falando sobre o Cedric ter me mandado de volta para casa mais cedo.
- E eu estou falando a respeito de você não ter me avisado sobre a pequena manobra de ontem à noite.
Ontem à noite? Fiquei tentando me lembrar. Na noite anterior eu havia ficado matando tempo no shopping e destruído a autoestima de um homem. Até onde eu sei, Cedric
não tinha feito nada depois de eu ir embora, exceto continuar a tentar destruir o império de informações da Wikipedia.
- O que ele fez? - perguntei. - Eu nem sequer o vi.
Jerome não respondeu de imediato, tinha um ar pensativo. Percebi que ele estava reavaliando sua ira inicial. Não era por causa de meu retorno antecipado que ele
estava perturbado.
- Houve uma briga entre vampiros na noite passada - ele disse por fim. - De alguma forma, alguns deles acharam que as linhas de seus territórios haviam sido rearranjadas.
Então começaram a rondar na área de outros...
- ... e em seguida coisas ruins aconteceram. - Vampiros são tão territoriais quanto demônios, de certa forma. Vampiros têm áreas específicas que eles preservam para
perseguir vítimas e ficam muito irritados se outros vampiros as usam. O arquidemônio de uma região geralmente traça linhas vampirescas e as faz valer por meio da
força e de sua vontade.
- Infelizmente, sim. Grace e Mei ainda estão tentando descobrir o que aconteceu.
Entrei em pânico quando de repente me ocorreu uma coisa.
- Tudo bem com Peter e Cody?
Ele balançou os ombros.
- Um pouco contundidos e esfolados, mas nada que não sare sozinho.
Meu medo era infundado, é claro. Imortais inferiores, como vampiros e súcubos, não podem matar uns aos outros, e nós nos recuperamos extremamente rápido. Mesmo assim,
o instinto de me preocupar com meus amigos nunca ia me abandonar.
- Por que você estava gritando comigo? Eu com certeza não tive nada a ver com isso.
- Porque os vampiros que acharam ter sido realocados receberam uma notificação oficial dizendo que havia sido uma carta demoníaca lacrada e selada. Eles acharam
que fora eu quem havia mandado.
- Mas não foi - adivinhei, vendo aonde ele queria chegar. A área de Jerome estava dividida de forma conveniente e ele não tinha a menor vontade de mexer no estado
das coisas. Sentia preguiça. - Não havia um nome?
- Não, evidentemente. Mas eles não precisam disso. Não se o lacre for bom. Era, e só outro demônio poderia ter feito uma coisa dessas.
- Então você supôs que foi o Cedric - completei.
Jerome concordou com a cabeça. - Sim, e eu vou deixar bem claro o que acho disso. Não estou nada satisfeito com isso... ou com sua ineficiência para me relatar as
atividades dele.
- Você está confiando mais na minha capacidade de espionar do que deveria - avisei. - Ela é meio limitada. Ele não está compartilhando segredos internos comigo e,
de qualquer forma, ele já sabe o que você está querendo que eu faça.
- É claro que ele sabe.
Suspirei. - Olhe, se você quer minha opinião... - O olhar que Jerome me lançou parecia dizer que ele não se importava muito com minha opinião. - ... não acho que
Cedric seja do tipo que faria uma coisa como essa. Ele está mais interessado em navegar na internet.
- Depois de todo esse tempo com os demônios, você realmente já deveria ter aprendido, Georgie. - Jerome amassou o cigarro no cinzeiro e se levantou.
- Tá, tá, eu sei, você parece a Nan! - Franzi a testa. A forma como ele falou me despertou uma lembrança. - Eu tenho uma informação para você, sim. Cedric se reuniu
com Nanette.
Jerome estava arrumando a manga, mas levantou a cabeça e virou rapidamente na minha direção ao me ouvir mencionar o nome da arquidemônia. - Nanette? - A palavra
foi enunciada com cuidado, em tom frio.
Comuniquei o que sabia. O rosto de Jerome foi ficando sombrio enquanto eu falava. Porém, o que quer que ele tenha achado sobre esse novo desdobramento, ele não me
contou. - Parece que afinal de contas você está fazendo o seu trabalho. - Ele fez uma pausa. - Mas por que você está aqui?
- Não tenho nada para fazer até sábado. Cedric me mandou para casa. - Segurei a respiração, esperando ele explodir, mas não aconteceu.
- Bem, visto que você deu uma melhorada no comportamento, para variar, acho que tudo bem. - Do jeito que ele falou, aparentemente eu ainda estava me comportando
meio mal.
Jerome desapareceu.
Aubrey imediatamente saiu de trás do sofá, com aquele olhar de censura que gatos dão para seus donos quando eles vão embora por um tempo. Ajoelhei-me e cocei o queixo
dela. Ela era branca com algumas manchinhas pretas na testa, muitas vezes dando a impressão de que não conseguia manter a cabeça limpa.
- Sim, eu sei - eu disse para ela. - Acredite, eu também não quero voltar lá.
Olhei para o relógio e vi que estava na hora do jantar. Ainda era muito cedo para ir ver os vampiros, especialmente porque os dias estavam ficando mais longos. Teria
de esperar até o sol se pôr para descobrir a versão deles sobre o incidente entre sugadores de sangue. Acariciei Aubrey mais um pouco para me reconciliar com ela
e depois me levantei e telefonei para o Dante. Ele não atendeu, e perguntei-me se ele estava com um cliente de verdade, para variar. Quando não estava preparando
feitiços malévolos, ele ganhava a vida fazendo leituras fajutas de Tarô e da palma da mão. Deixei uma mensagem, avisando que tinha voltado.
Como tinha tempo, comecei a me preocupar com a Emerald City. Sabia que a livraria podia funcionar sem mim, mas o instinto materno se manifestou de qualquer modo.
E, já que eu tinha tempo, resolvi dar uma passada por lá e ver como andavam as coisas.
Como era de se esperar, estava tudo bem. Já eram quase 19 horas e as pessoas que voltavam do trabalho para casa entravam para comprar coisas. O movimento era contínuo,
mas não uma loucura.
- Georgina, você voltou.
Eu estava observando os caixas a distância e ao me virar vi Maddie em pé atrás de mim, arrastando uma estante promocional, de papelão, de um livro que seria lançado
no dia seguinte. Sorri. Apesar de as coisas terem sido muito difíceis para mim, com ela e Seth, havia alguma coisa na personalidade aberta e radiante dela que fazia
o meu mau humor se dissipar.
- Por pouco tempo. Só quis dar uma olhada para ver como as coisas estavam.
Ela sorriu.
- Só você mesmo. Tira folga e volta para o trabalho. Como estão as coisas? Ainda complicadas ?
Dei de ombros.
- Sim, um pouco. Mas nada que eu não possa dar um jeito. Espero que tudo melhore logo.
- Alguma coisa ficaria melhor com um drinque? - Ela tinha um olhar malicioso e não consegui deixar de rir.
- Só se eu for beber sozinha. Você ainda vai ficar aqui por algumas horas.
- Não. Precisei entrar mais cedo para cobrir o turno de outra pessoa, então a Janice vai fechar.
Era sempre bom que um gerente fechasse, mas Janice era com certeza suficientemente competente. Hesitei. Eu estava evitando a Maddie desde o Natal, mas, antes de
ela ficar com Seth, eu gostava muito dela. Tínhamos nos divertido muito juntas e nossas personalidades combinavam bem. Seth não estava lá e um drinque de repente
me pareceu ser uma maneira até melhor de passar o tempo do que os assuntos administrativos dos quais eu na verdade não tinha obrigação de tratar.
- Tudo bem.
Ela encerrou o expediente, e, uns quinze minutos depois, estávamos saindo. Peguei um cigarro automaticamente, então parei. - Você fica incomodada?
- Não, não gosto de cigarro, mas tudo bem. Aonde você quer ir?
- Não sei. - Fui pegar o meu isqueiro e me lembrei de que ele estava sem carga, então peguei os fósforos. Passei os dedos pela capa e franzi a testa. - Quer ir ao
Mark’s Mad Martini?
O Mark’s ficava no topo do morro de Queen Anne, o que tornava a caminhada bem íngreme. Como eu morava por lá, fazia isso com bastante regularidade, mas a Maddie
estava ofegante quando chegamos ao bar.
- Cara - ela disse. - Preciso começar a ir mais à academia.
Segurei a porta para ela entrar. - Faça isso todo dia, e não vai precisar.
- Acho que preciso de um pouco mais do que isso. - O peso era uma fonte de preocupação contínua para ela. - Acho que preciso começar a fazer algum esporte estranho.
Quer começar a jogar squash comigo?
- Por que squash?
- Sei lá. Nunca tentei. Imaginei que deveria.
Além de outras mudanças em sua vida, Maddie ultimamente aderira a uma postura de ir atrás de coisas novas. Antes da minha recente afundada, eu havia meio que assumido
uma disposição semelhante. Diante de séculos de existência, descobrira que experimentar atividades novas era uma ótima distração. Sempre havia alguma coisa nova
para aprender no mundo.
O Mark’s era pouco iluminado, com uma decoração em preto fosco. Dei uma folheada no longo menu de drinques que reafirmavam o nome do restaurante. Quando o garçom
apareceu, pedi um martíni chamado First Blush: licor de chocolate branco, Chambord e vodca. O menu sugeria Stolichnaya, mas eu pedi Grey Goose.
- Você já pensou em dança? - perguntei a Maddie. - Pode ser um bom exercício. E também a probabilidade de levar uma bolada na cabeça é menor.
Maddie tinha pedido um Sing the Blues: Blue Curaçao, suco de abacaxi e Ketel One. O rosto dela se iluminou.
- Eu sempre quis experimentar. Doug disse que você dava aulas de swing na livraria.
- Sim, eu dei umas aulas no outono passado. Meu amigo Cody me ajudava. - Uma agradável onda de nostalgia me invadiu quando me lembrei daquele tempo. As coisas eram
mais simples, e eu tinha me divertido muito ensinando a meus amigos e colegas de trabalho enquanto praticava uma das minhas atividades favoritas.
- Queria ter participado - ela disse chateada. - Eu sou meio descoordenada, sabe...? Se eu não tentar, como vou aprender?
- Maddie, você deveria se aprofundar em estratégias de motivação.
Ela riu. - Não sei, não. Mas eu iria às suas aulas de dança, se você voltasse a ministrá-las. Isso foi uma indireta.
O garçom voltou com nossos drinques. Quase morri quando provei o meu. Era um sonho superalcoólico de framboesa. - Não sei. O pessoal já aprendeu quase tudo o que
tinha para aprender com o swing.
- Então ensine alguma outra coisa. O Doug disse que você conhece todo tipo de dança que existe. Eu ajudo a organizar.
- Talvez salsa ou alguma dança do tipo - eu disse, sem muita certeza de que queria mesmo. - Quando acabar essa confusão toda.
- Posso fazer alguma coisa para ajudar? Você sabe que pode contar comigo, se precisar de alguma coisa.
A sinceridade e a solidariedade na sua expressão me fizeram ficar com um nó na garganta. Havia passado os últimos meses com ódio dela, mas a amizade e a confiança
que ela tinha em mim nunca foram embora. De repente, sentindo-me culpada, desviei meu olhar do dela.
- Ah, não se preocupe. Vou dar um jeito. - Silêncio, um silêncio que me incomodou imensamente. Senti necessidade de oferecer alguma coisa em troca pela delicadeza.
Meus pensamentos de algumas noites antes, sobre me mudar, pipocaram na minha cabeça. Olhei para ela novamente. - Talvez você possa me ajudar a achar um apartamento
novo.
Como eu esperava, a expressão dela foi de entusiasmo com a proposta. - Verdade? Você vai se mudar?
- Ainda não tenho certeza. Só pensei que talvez fosse uma boa hora para uma mudança.
Maddie ficou ainda mais animada.
- O que você está procurando?
- Também não sei bem - admiti. - A única certeza que tenho é que gostaria de tentar alguma coisa fora de Queen Anne.
- Tudo bem, isso é um bom começo. De que tamanho? Prédio novo ou histórico? Quer continuar alugando? O mercado está inundado de condomínios, sabe? É um ótimo momento
para comprar.
Tentei ficar séria, mas não consegui.
- Você foi corretora de imóveis em vidas passadas?
- Não! Só acho emocionante, só isso. Quero ajudar.
- Tá. Posso alugar ou comprar. Vai depender do lugar.
- Qual é a sua faixa de preço? Se você não se importa que eu pergunte...
Hesitei, pensando se deveria deixar que ela soubesse a verdade sobre as minhas finanças. Decidi que não tinha importância.
- Bem... Vamos dizer que eu tenho uma boa poupança.
- Muito bom. - Apesar da velocidade em que estava bebendo, ela tinha um ar aguçado e profissional. - Você quer o mesmo tipo de bairro? Com lojas? Restaurantes?
- Sim, isso seria bom.
- Mais alguma coisa?
- Eu já disse, ainda não pensei muito sobre isso.
Ela suspirou frustrada. - Você precisa me ajudar. Há alguma coisa que esteja querendo faz muito tempo? Sente falta de alguma coisa?
Inesperadamente, veio-me uma lembrança da minha infância. A cidade cipriota em que eu havia vivido voltou com uma clareza surpreendente... as cores, os cheiros e
os ares.
- Eu cresci perto da praia - eu disse suavemente. - Sol e surfe. - Fiz um esforço para afastar a memória melancólica, sentindo-me um pouco envergonhada por meu estado
sonhador. - Mas estou no lugar errado para isso.
- Sim - ela concordou. - Você precisaria se mudar para a Califórnia.
Pedimos mais uma rodada de bebidas e falamos sobre outras coisas e, para minha surpresa, eu me diverti muito. Lembrei-me de por que eu gostava tanto de Maddie. Era
bom conversar com ela, ela era engraçada e inteligente. Não tive muitas amigas, e havia uma grande diferença entre ela e os homens com quem eu normalmente andava.
Mulheres às vezes precisam de outras mulheres.
Eu estava assinando a via do cartão de crédito quando Seth se dirigiu à nossa mesa.
Maddie olhou para cima radiante. - Oi, querido. - Ela se levantou e o beijou, o que deixou Seth e eu constrangidos. De repente, a sensação agradável e de proximidade
que tinha surgido dentro de mim se despedaçou. Maddie me olhou para se explicar. - Eu liguei e pedi para o Seth me dar uma carona enquanto você estava no banheiro.
Dei um sorriso forçado. - Ah.
Maddie olhou para ele. - Você perdeu. Este lugar tem uns drinques incríveis. Tem certeza de que não quer quebrar as regras? Podemos pedir mais uma rodada.
- Na verdade, eu preciso ir embora - eu disse, pensando que poucas coisas poderiam ser mais agonizantes do que beber com os dois.
- E eu não estou disposto a quebrar as regras - Seth disse, evitando meus olhos. - Além disso, preciso trabalhar.
Maddie não ficou muito decepcionada. - Tudo bem. Sem problemas. Vou rapidinho ao banheiro e vamos embora. A gente te dá uma carona, Georgina.
Eu deveria ter saído correndo naquela hora, mas Maddie foi rápida, e eu achei que seria grosseiro ir embora sem me despedir dela. Seth sentou na cadeira dela e colocou
as mãos para a frente, apertando-as. Nosso costumeiro muro de mal-estar ergueu-se entre nós.
- Não preciso de carona - eu disse abruptamente.
Seth olhou para mim. - É uma caminhada longa.
- Não muito. São só seis quarteirões.
- Sim, mas você bebeu.
Eu zombei dele. - Só tomei dois drinques. Não vou andar por nenhum lugar movimentado, se isso é o que está preocupando você.
- Não, esse não é o problema. Só quero me certificar de que você vai chegar bem em casa. - Foi um daqueles raros momentos em que a disposição suave dele foi substituída
por algo mais persuasivo. Por algum motivo, aquilo fez a raiva aumentar dentro de mim.
- Vou ficar bem - retruquei. - Você não precisa mais cuidar de mim.
- Georgina, por favor.
- Por favor o quê? Você sabe que eu tenho razão.
- Você está tornando isso mais difícil do que é. Não precisa ter alguma coisa a ver conosco o tempo todo.
- É claro que tem... quer dizer, até onde existe um nós. Você foi embora. Não sou mais assunto seu.
- Ainda posso me preocupar com você. Gostar de você.
Inclinei-me para a frente, encorajada pelos martínis.
- Você deixou bem claro o quanto você gosta, tudo bem. Tenho uma vida totalmente nova agora.
Ele assumiu um ar sarcástico. - Sim, sua nova vida parece ser ótima.
Isso me deixou ainda mais irritada, especialmente porque eu não estava muito convencida de que minha nova vida estava tão boa. - É, sim. Posso fazer o que quiser
agora. Não preciso ficar preocupada com o fato de que vou magoar suas suscetibilidades delicadas quando durmo com alguém ou modificar nossos encontros para fazer
coisas chatas só para você não precisar fazer nada diferente ou para não interferir na sua programação para escrever.
Foi horrível da minha parte. Malvada, muito malvada. Esperava que ele recuasse, parecesse ofendido. Em vez disso, ele rebateu.
- E eu não preciso me preocupar se vou ser julgado de forma hipócrita por ser ao mesmo tempo muito chato e muito arriscado. Também não preciso mais me perguntar
se o que estão me dizendo é uma meia verdade ou uma mentira descarada.
Isso me fez recuar. Foi também o momento em que Maddie apareceu. Ela tentou me persuadir a aceitar a carona, mas eu recusei firmemente - fui um pouco mais ríspida
com ela do que seria necessário. Ela ficou um pouco sem graça, mas eu estava muito aborrecida com as palavras de Seth para me importar muito. Fui embora. Precipitei-me
morro abaixo pisando tão duro que foi um espanto meus passos não terem feito o chão tremer.
Capítulo 6
Já estava escuro, então fui direto para o carro e me dirigi ao apartamento dos vampiros, em Capitol Hill. Bem, tecnicamente, o apartamento era de Peter. Cody era
seu aprendiz, e morava lá porque Peter gostava dele, desde que ele aderisse aos padrões de limpeza neuróticos de Peter.
- Georgina - disse Cody, animado, ao abrir a porta para mim. O hematoma amarelado, vestígio de um olho roxo, destacava-se no seu rosto.
- Uau - eu disse, suficientemente chocada com a aparência dele para deixar de lado a raiva de Seth que havia me consumido por todo o caminho. - É verdade. Você realmente
se meteu em uma briga.
- Oh, sim - ele disse satisfeito. - Foi superlegal. Totalmente West Side Story.
Passei para dentro e dei uma olhada à minha volta. - Vocês também finalmente trocaram o tapete. - Eles tinham antes um carpete felpudo aveludado cor de marfim que
se esparramava pela sala de estar. Esse novo era azul-acinzentado e menos felpudo.
Peter saiu da cozinha e arqueou a sobrancelha quando me viu. Senti o cheiro de costeletas de porco com alecrim cozinhando. - Sim, depois de três meses tentando limpar
aquele vinho que você derrubou, finalmente desisti.
- Aquilo foi um acidente - ressaltei. - Mais ou menos. - O meu último acerto de contas com Niphon tinha envolvido eu dar um soco nele e jogá-lo longe. A cristaleira
de Peter e um copo de vinho foram as vítimas. Desviei o olhar do canto em que nossa briga ocorrera. Meu coração naquele dia estava sangrando e fora de controle,
foi logo depois do fim do namoro com Seth.
- Este tem Scotchgard - continuou Peter. Havia um tom de provocação na voz dele, como se estivesse me desafiando a derrubar alguma coisa agora.
Acomodei-me no sofá sem ser convidada, da mesma forma como eles sempre ficavam à vontade na minha casa. Comecei a pegar os cigarros, mas um olhar de Peter me fez
guardá-los com um suspiro. Às vezes, ele me deixava fumar, mas pelo visto não deixaria perto do tapete novo.
- Então, o que aconteceu ontem à noite? - perguntei.
- Maude, Lenny e Paul vieram caçar na cidade - Peter explicou. Havia uma raiva atípica nos olhos dele, que se igualava apenas à do dia em que ele descobriu que a
cor que tinha usado para pintar a cozinha tinha saído de linha. - E, depois, Elsa foi para a região oeste, o que irritou o Aidan.
Eu não conhecia todos os vampiros de Washington, mas reconheci a maioria dos nomes e sabia quais eram os territórios deles - eram de regiões distantes, como Spokane
e Yakima. Seattle seria um avanço enorme para eles - exceto pelo fato de que Peter e Cody já controlavam a maior parte dos limites da cidade. Meus amigos eram lacônicos
e gentis na maior parte do tempo, mas desconfio de que teria visto um lado totalmente diferente deles na noite passada quando eles descobriram que havia outros vampiros
em seu território de caça.
- Três no vosso feudo - refleti. - Aposto que foi divertido.
- Ah, sim - disse Cody, ainda com uma expressão animada. - Eles não vão mais se aventurar por aqui. Nós demos uma surra neles, você não ia acreditar. Foi demais.
Não pude deixar de sorrir. - Sua primeira briga? - Ele balançou a cabeça, e eu olhei para o Peter. - Você não tem nenhuma marca.
Peter ficou ofendido. - Claro que não. Você acha que eu tenho cara de amador?
- Ei! - disse Cody. - O que você está querendo dizer?
Peter balançou os ombros e voltou para a cozinha, dizendo: - Só estou falando como as coisas são. Eu existo há muito mais tempo do que você. Já me envolvi em muito
mais brigas do que você também. E não fui eu quem saiu com um olho roxo na noite passada.
Parecia que Cody ia começar uma briga naquele instante, então perguntei apressada: - E ninguém sabe como aconteceu o engano?
- Ouvi dizer que era culpa do Cedric - Peter gritou. - E que você estava virando amiguinha dele.
- Como? Eu o conheci ontem.
Cody aparentemente tinha sido deixado de fora. - O quê?
- A Georgina foi enviada para o campo de trabalhos forçados no Canadá por ter dormido com o terapeuta - Peter explicou.
- Sério? - Cody perguntou. Parecia que ele já estava vendo imagens de pinheiros e montanhas com picos nevados.
Dei de ombros. - Figura de linguagem. É um trabalho idiota que tenho de fazer para ele. Eu estava lá hoje de manhã e fui mandada de volta de mãos vazias porque não
tinha nada para fazer.
- Não acredito que você fez isso - disse Cody.
- Trabalhar para o Cedric?
- Não. Ir para o Canadá e não trazer Tim Hortons para a gente.
Os vampiros me convidaram para ficar para o jantar, como eu sabia que fariam, e nós continuamos a fazer considerações sobre o mistério da briga da noite anterior
e a política dos demônios. Pela primeira vez em muito tempo, eu tinha algo com que me preocupar além de Seth e das calamidades de minha vida amorosa. Não havia nada
acontecendo que realmente indicasse existir alguma grande maquinação imortal catastrófica em andamento. Um desentendimento entre vampiros. Um culto incômodo. Uma
velha rixa entre demônios. Ainda assim, não conseguia me livrar da sensação de que alguma coisa estava acontecendo - algo além do meu alcance. Fiquei pensando sobre
o que a Tawny dissera sobre golpes e desviar a atenção.
Acabei desistindo de tentar descobrir o mistério por enquanto, e os vampiros logo começaram a reencenar todos os detalhes recentes da luta da noite anterior - um
assunto do qual eles pareciam não se cansar nunca. As histórias perderam a graça depois de algum tempo, e eu me peguei observando as pequenas coisas, como a disposição
do apartamento, os utensílios novos, as bancadas de granito...
- Vocês acham que eu deveria me mudar? - perguntei de forma abrupta.
Cody interrompeu a frase na metade. Acho que ele estava descrevendo como tinha esganado o vampiro Lenny. - O quê?
- Estou pensando em arranjar um lugar novo para morar.
- Você estava ouvindo a minha história? - Cody perguntou, um pouco ofendido.
- Você mora lá faz tempo - Peter disse. - Desde que eu conheço você.
- Eu sei. Talvez esteja na hora de mudar. É pequeno e é antigo.
- Isso é porque é um prédio histórico - defendeu Peter.
- E - acrescentou Cody - é perto de onde você trabalha. Você vai precisar ir trabalhar de carro, se for se mudar, a não ser que continue na mesma rua ou em um lugar
próximo a livraria.
Meus olhos estavam voltados para o lado mais distante da sala, mas eu não estava realmente olhando. Lembrei-me da conversa com Seth na outra noite e de como me parecera
que não conseguiria ficar longe o suficiente dele. Pensei sobre nossa briga daquele dia. - Não - disse-lhes calmamente. - Eu vou me mudar para outro lugar. Algum
mais distante.
- Ah - Peter disse, compreendendo.
Cody franziu a testa. - Não entendi. Por que você iria querer mudar para longe do seu... Ai! - Peter tinha dado uma joelhada nele. Cody ia perguntar por que, mas
então ele se tocou também. Ele era ingênuo quanto a assuntos imortais, às vezes, mas não quanto aos humanos. Ele assumiu uma expressão solidária, que eu odiei. -
Talvez uma mudança seja boa.
Eu não sabia se era, mas não queria que eles se sentassem e começassem a sentir pena de mim, então os incentivei a contar mais histórias sobre a luta por mais meia
hora, para distraí-los e para me redimir por não ter prestado atenção antes.
Fui embora pouco depois, perguntando-me se estava mesmo na hora de dar uma chacoalhada nas coisas e me mudar. Seth já tinha chacoalhado minha vida, para pior, e
uma parte de mim queria se livrar de todas aquelas lembranças. Mudar tudo que me fazia lembrar a época em que estávamos juntos - como o meu apartamento - podia ser
um modo de fazer isso. Um divisor de águas. Se ficasse realmente desesperada, podia pensar em mudar de emprego ou de cidade. Não sabia se estava pronta para ir tão
longe. Tudo aquilo me deixava deprimida.
- Ei, súcubo. Você sabe deixar um cara esperando.
Eu estava andando em direção a meu prédio sem prestar muita atenção, perdida em meus pensamentos. Agora, sob o brilho fraco da luz da entrada do prédio, vi o Dante
sentado nos degraus. O cabelo escuro estava penteado para trás e ele usava um casaco leve por cima da costumeira combinação de jeans e camisa de manga comprida.
Ele provavelmente estava de relógio, por baixo, mas quase nunca usava nenhum outro acessório ou ornamento. Esforcei-me tentando sorrir para ele.
- Desculpe - eu disse. - Eu liguei mais cedo.
- E eu liguei de volta.
- Ligou? - peguei meu celular e vi três chamadas perdidas dele. - Droga. Deixei no silencioso. Desculpe.
Ele balançou os ombros e se levantou. - Tudo bem, faz parte do interminável tormento pelo qual você me faz passar. Uma mensagem misteriosa dizendo que você estava
indo para Vancouver por tempo indeterminado. Outra dizendo que você tinha voltado, mas não sabia por quanto tempo. Depois, não atendeu o telefone.
Percebi que não tinha nem pensado muito sobre como essa viagem internacional afetaria Dante. Esse tipo de falha de comunicação nunca teria acontecido com Seth. Não
teria sossegado enquanto não tivesse entrado em contato com ele e teria rapidamente percebido o problema do celular no silencioso. Com Dante, tinha deixado uma mensagem
de voz e imediatamente tirado o assunto da cabeça.
Dei-lhe um beijo rápido nos lábios e destranquei a porta. O rosto dele estava áspero, precisando ser barbeado. - Desculpe - eu disse novamente.
- Como andam as coisas?
- Do jeito de sempre. Uns adolescentes bêbados foram pedir para eu ler a palma da mão deles ontem à noite, então entrou um dinheiro inesperado. Eu poderia ter levado
você a algum lugar bacana, para variar.
- Teria sido melhor do que o que eu estava fazendo.
Enquanto subíamos as escadas em direção ao meu apartamento, fiz um breve relato sobre o que estava acontecendo. Como ele estava habituado ao mundo paranormal, poucas
coisas quanto a essas questões demoníacas o surpreendiam. Eu tinha conhecido Dante em dezembro, durante a confusão com Niphon. Fazia parte do plano de Niphon usar
uma entidade do caos chamada Nyx para sugar minha energia durante meu sono por meio de sonhos realistas, com forte carga emocional. Sem saber o que estava acontecendo,
eu fora consultar Dante sobre interpretação de sonhos. Ele havia sido ríspido, sarcástico e insuportável ao longo de todo o processo, mas, mesmo assim, fui começando
a gostar cada vez mais dele - até descobrir a verdade sobre seu passado. Ele havia feito coisas horríveis - ferido e matado pessoas, traído os próprios princípios
- em nome de desejos egoístas e na busca por poder. Essas atrocidades o haviam deixado com a alma vazia e um amargo desprezo por si mesmo. Eu também senti desprezo
e jurei que não queria mais saber dele.
Depois, as coisas desmoronaram entre mim e Seth. Meu mundo ficou despedaçado. E eu me vi com uma alma vazia e um amargo desprezo por mim mesma. Seth tinha me inspirado
a acreditar que existiam coisas melhores no mundo, mas toda aquela esperança desaparecera com nosso amor. A perspectiva desesperançada e cínica de Dante me pareceu
então ser mais realista e mais sintonizada com minha própria visão de mundo. Eu e ele tínhamos começado a nos ver, misteriosamente compatíveis em nosso desespero
mútuo. Eu não o amava, mas gostava dele.
Servi vodca Grey Goose para nós dois quando entramos. Eu preferia com suco de limão, mas não estava a fim de dar-me o trabalho de ir atrás do suco. Nós nos acomodamos
no sofá com nossas bebidas e nossos cigarros, e eu terminei de contar a história sobre minhas desventuras canadenses.
- Uau - ele disse quando terminei. - Tudo isso só porque você dormiu com seu terapeuta? - Diferentemente de Seth, que não gostava de saber os detalhes da minha vida
sexual de súcubo, Dante não tinha o menor problema com isso.
Dei de ombros. - Bem, eu não tive nada que ver com a guerra entre as gangues dos vampiros ontem à noite. Mas, sim, o resto tem relação comigo, acredito. Você acha
que essas coisas estão relacionadas?
Ele balançou o copo de vodca. - Se você acha que não foi o Cedric, provavelmente não foi. A coisa dos vampiros pode ter sido coincidência. Mas a demônia de Portland
estava certa. Você provavelmente está sendo manipulada. - A voz dele estava quase rosnando, atipicamente defensiva.
Suspirei. - Mas como? Todo mundo fica dizendo isso, mas eu só estou envolvida há vinte e quatro horas. Como posso estar sendo manipulada em algum acontecimento enorme
em tão pouco tempo?
- Porque você entrou em uma coisa que já vem acontecendo há algum tempo. Não está se formando em volta de você por si só, mas agora você está dentro.
Recostei-me no sofá e fiquei olhando desanimada para o teto. - Eu não deveria ter dormido com o doutor Davies.
- Foi bom?
- Você está com ciúme?
- Não. Só tentando descobrir o que a deixa excitada.
- Humor mordaz, se a atual companhia serve de exemplo.
- Por algum motivo, não estou convencido de que esse seja o atrativo. Além disso, você está dizendo que está excitada?
Eu ainda estava olhando para o teto. Havia umas pequenas rachaduras na pintura que eu não tinha notado antes.
- Você acha que eu deveria me mudar?
- Para onde? Para mais perto de mim?
- Não, para outro lugar. Uma casa nova.
- O que tem de errado com esta? Este apartamento é ótimo. Pelo menos você não mora onde trabalha. - O quarto de Dante era ligado à loja dele.
Inclinei-me para a frente e olhei para ele com um sorriso. - Morar no trabalho não ia fazer muita diferença. Não sei. Estou com a sensação de que está na hora de
fazer uma mudança.
Os olhos cinzentos dele estavam pensativos enquanto ele me olhava. - Você já me falou sobre isso, sobre como fica com uma coceira para se mudar e de repente acaba
mudando de identidade e indo morar em um país diferente.
Estendi o braço, ajeitando delicadamente com as mãos o cabelo escuro dele, tirando-o do rosto e colocando-o atrás da orelha. - Estou aqui só há quinze anos. É cedo
demais para ir embora.
- Se você diz... Hoje está falando sobre um apartamento novo, amanhã você pode desaparecer. Até onde eu sei, talvez você esteja sondando novas oportunidades de emprego
em Vancouver.
Dei risada e virei o resto da minha vodca. - Não, de modo algum. Embora eu ache que seria mais fácil trabalhar para Cedric do que para Jerome. Ou pelo menos um pouco
menos irritante.
- Mesmo no Canadá?
- O Canadá não é tão ruim. Vancouver na verdade é uma cidade bem legal. Mas não conte a ninguém que eu disse isso.
Dante pousou o copo e colocou a mão no bolso da camisa. - Talvez eu possa suborná-la a ficar por aqui. Ou a, pelo menos, ser pontual.
Um lampejo dourado passou por meus olhos quando ele puxou um relógio. Era delicado, parecia mais um bracelete do que um relógio de verdade. A pulseira era feita
de elos dourados e o mostrador tinha um padrão de filigranas que brilhava com a luz. Normalmente eu achava os relógios uma coisa sem graça e utilitária, mas esse
era lindo. Ele me entregou o relógio, e eu o levantei para poder ver melhor. Eu podia transformar qualquer joia que quisesse em mim, mas algo produzido por um ser
humano - uma coisa dada de presente - sempre tinha mais significado.
- Onde você conseguiu isso? - perguntei. - Você roubou?
Ele levou na brincadeira. - Faz sentido. Eu faço uma coisa para agradar e você insiste em fazer perguntas.
- Desculpe - eu disse, sentindo-me só um pouquinho mal. Isso tinha sido muito ingrato da minha parte. - Mas você não vai me dizer que isso faz parte de seu orçamento
normal, não com o que você consegue ganhar.
- Eu já disse, tive uma maré de sorte ontem à noite. E como você não estava aí para a gente curtir uma noitada, imaginei que poderia demonstrar minha eterna afeição
de outra forma. Você vai dizer obrigada ou vai continuar a me tripudiar?
- Obrigada - eu disse. Coloquei o relógio no meu pulso e fiquei admirando como ele havia ficado sobre minha pele bronzeada.
- Talvez agora fique mais fácil achá-la, ou pelo menos você não vai se atrasar.
Sorri. - Isso não foi afeto. Foi pragmatismo.
- Não. Um pouco dos dois. Eu queria dar alguma coisa para você usar, mas colares e anéis são muito piegas. - Ele mostrou o próprio punho. - A única coisa que não
me deu vontade de vomitar.
- E dizem que não existe mais romantismo neste mundo - eu ri.
Ele estendeu o braço e tocou o relógio delicadamente, fazendo um círculo ao redor do meu pulso. Depois, a mão dele percorreu meu braço e a borda do decote em V da
minha blusa, deixando os dedos escorregarem para dentro. Lentamente, e com cuidado, ele foi avançando para um dos meus seios, seus dedos dançavam ao redor do meu
mamilo, que já estava saliente no tecido leve. Ele circundou o mamilo, aumentando a pressão, até finalmente apertá-lo entre os dedos, com uma força tão inesperada
que dei uma arfada de surpresa.
- Ei, você não perde tempo - eu disse. - Você me dá um presente e, trinta segundos depois, liberou geral?
Os olhos dele estavam famintos e exaltados, fazendo-me lembrar de nuvens tempestuosas. - Senti sua falta - ele disse. - Fico achando que vou me acostumar com você...
que você vai deixar de ser tão sensual. Mas nunca acontece.
De forma imprevista ou não, senti meu desejo se atiçar. Fazia algum tempo que não ficávamos juntos, e há uma grande diferença entre dormir com estranhos e com alguém
íntimo. Ele enredou uma mão no meu cabelo, segurando firme, sem se importar se estava me machucando ou não. Dominação e poder, a capacidade de infligir dor, se quisesse,
isso sempre o deixava excitado, e eu tinha me acostumado a esse jogo. Ele me puxou para si e pressionou os lábios contra meu pescoço e eu joguei minha cabeça para
trás. Sentia a respiração quente dele na minha pele, enquanto os dentes iam roçando em mim. Nesse meio tempo, ele estendeu as mãos e abriu a minha blusa puxando-a
pelos lados, rasgando-a. Alguns botões se espalharam pelo chão.
O calor subia entre as minhas pernas e aproximei-me dele quando suas mãos seguraram as taças do meu sutiã de cetim preto. Ele puxou as bordas do sutiã para baixo,
fazendo meus seios saltarem para fora e depois os puxou, beliscando os dois mamilos, cravando as unhas. Gemi de novo, e, apesar de não estar realmente doendo, eu
gostava de como ele misturava a dor com o prazer. Satisfeito com minha reação, ele moveu as mãos para baixo e abriu o jeans, puxando a calça e a cueca para baixo,
revelando a ereção que estava pressionando o tecido.
Ele agarrou meus ombros e me empurrou para o chão, sem precisar de palavras para tornar seus desejos perceptíveis.
Não hesitei. Ele se inclinou para trás no sofá e eu o peguei com a boca, deixando que ele a preenchesse, até quase encostar no fundo da minha garganta. Meus lábios
escorregavam para cima e para baixo, enquanto as mãos dele se enredavam no meu cabelo, puxando com força. Eu suguei com mais ardor, deixando minha língua dançar
e provocar conforme eu me movia. Ele já estava duro quando começamos, mas ficou ainda mais túrgido conforme fui colocando-o para dentro e para fora de mim.
- Mais forte - ele grunhiu.
Olhei em seus olhos, que estavam tomados por um desejo primitivo intensificado por me colocar em posição de submissão. Suguei-o com mais força e mais rápido, meus
lábios castigando o corpo dele sem parar conforme escorregavam sobre aquele percurso endurecido. A respiração dele ficou mais rápida, seus gemidos ficaram mais altos.
Deixei que ele crescesse na minha boca até ter a sensação de que não poderia mais aguentar. De repente, ele se moveu para a beira do sofá para poder empurrar o quadril
para a frente e assumir o controle. Ainda segurando meus ombros, ele se lançou para dentro de mim, penetrando na minha boca com o máximo de força que conseguia.
Dei um grunhido abafado de surpresa, o que pareceu deixá-lo ainda mais excitado.
Então, com um grunhido forte, deu um último empurrão com força e saiu abruptamente, gozando metade dentro de mim e metade sobre mim. Minha pele e meus seios ficaram
mornos e grudentos. Ainda ofegante, ele me puxou para cima e correu as mãos por todo o meu corpo, sem se importar com a bagunça cada vez maior. Passou a ponta dos
dedos ao longo das bordas dos meus lábios e os beijou.
Uma expressão de satisfação suprema passou pelo rosto dele. Ainda me mantendo em pé, ele escorregou os dedos para dentro da minha calcinha, mergulhando-os em mim.
Ele exalava prazer.
- Como você está molhada. Eu queria poder entrar em você agora!
Era também meio o que eu estava querendo, mas os dedos dele estavam se esforçando para compensar isso. Eu queimava e ansiava pelo seu toque, tinha ficado mais excitada
do que esperava. Ele fez os dedos escorregarem para fora de mim, e então foi para o clitóris, e para o centro do meu desejo. Ele batia e fazia movimentos circulares,
e eu sentia o calor subindo, pronta para explodir. Inclinei-me para a frente e apoiei minhas mãos sobre os ombros dele, onde estava sentado. Isso fez meus seios
ficarem bem na frente do rosto dele, e ele se inclinou para a frente, sugando um deles com força, seus dentes mordiscavam a pele sensível. Não ia demorar para eu
gozar.
Ele afastou a boca e os dedos ao mesmo tempo. Eu choraminguei, querendo - precisando - que ele me tocasse novamente.
- É isso que você quer? Você quer que eu a faça gozar? - A voz dele era suave e ameaçadora.
- Sim...
- Implore - ele disse ameaçadoramente. - Implore.
- Por favor - implorei, meu corpo arqueado para trás, fazendo força para chegar mais perto dele. - Estou implorando...
Os dedos e a boca voltaram e, com isso, eu explodi. O orgasmo fez meu corpo ter espasmos enquanto eu lutava para continuar em pé. Meus joelhos e minhas pernas estavam
moles, mas eu sabia que se me soltasse ele não conseguiria mais me tocar, e eu queria que os dedos dele continuassem a me golpear enquanto eu gozava, me levando
a um nível cada vez mais alto de êxtase.
Finalmente, quando eu não aguentava mais, sucumbi aos meus músculos trementes. Afundei no chão e descansei a cabeça no joelho dele. A mão dele segurava o meu cabelo,
desta vez delicadamente. O sofá não era um lugar muito confortável para dar uma relaxada, então fomos para o meu quarto e despencamos na cama.
Suspirando, Dante se deitou sobre os lençóis e se cobriu parcialmente. Eu não tinha puxado muita energia, mas ele ainda tinha o ar letárgico, exausto e extasiado
de tantos homens depois de transar. Eu não estava especialmente exaurida e, ao perceber que tinha deixado os cigarros na outra sala, levantei-me imediatamente da
cama para buscá-los.
- Eu quase acreditei desta vez - ele disse quando eu cheguei à porta.
- Hã? - perguntei, parando e olhando para trás.
- Que você tinha se entregado - ele explicou. - Quase acreditei.
Eu apertei os olhos. - Você está me acusando de fingir?
- Não, você nunca finge. Às vezes, eu tenho a impressão de que você dorme comigo simplesmente porque não tem nada melhor para fazer.
- Isso não é verdade - eu disse. - Tem muitos caras por aí melhores do que você.
Ele arqueou um sorriso. - Mas nenhum tão conveniente ou que possa fornecer a ilusão de um parceiro regular para esquentar a cama.
- Cara, você sabe como estragar o clima.
- Não, só estou sendo realista, só isso. Não me importo que você me use. - Apesar do tom de brincadeira, eu podia ver o carinho subjacente. Ele podia ser amargo
e cínico, mas o olhar dele estava repleto de afeição sincera.
Revirei os olhos. - Não estou usando você. - Mas, quando me afastei em direção à sala, não tinha certeza de que eu mesma acreditava nisso.
Capítulo 7
- ai Timbits?
Balancei a cabeça pela terceira vez. Uma coisa que eu descobri sobre os satanistas - desculpe, o Exército da Escuridão - na reunião para o café da manhã, dois dias
mais tarde, foi que eles realmente gostavam de donuts. Muito. Eles ficavam tentando me empurrar comida e pareciam gostar especialmente dos tais Timbits, que eram
as bolinhas dos buracos dos donuts, mas com um nome mais bonitinho.
- Não, obrigada.
Depois dos donuts, boa parte da reunião se concentrou em mim. Todos queriam saber quem eu era, de onde tinha vindo, como o meu grupo operava, entre outras coisas.
Fui contando uma mentira atrás da outra, o mais rápido que podia, inventando rapidamente uma história para meu grupo de Seattle. O Exército ouvia interessado e eu
torcia para conseguir me lembrar de tudo o que estava dizendo, caso eles me fizessem perguntas mais tarde.
- Vocês precisam vir nos visitar um dia - eu disse, esperando diminuir a quantidade de perguntas. - É o único jeito de vocês entenderem de verdade. Por enquanto,
porém, Kristin quis que eu viesse aqui para falar sobre vocês.
A menção a Kristin acalmou-os. Evan balançou a cabeça.
- A Georgina acha que nós deveríamos expandir nossas atividades.
No total, havia seis pessoas reunidas ali, os membros realmente “ativos”. Eles tinham idades entre 20 e 40 anos e, como Evan, tinham o mesmo tipo de aparência gentil
que se prestava melhor para ajudar alguém a escolher um DVD ou um cortador de grama do que para sacrificar uma cabra. Talvez fosse coisa de canadense. Um dos membros,
uma universitária loira muito miúda chamada Allison, franziu a testa. - Mas por quê? Nós já estamos fazendo o que o Anjo quer.
Todos olharam para mim e percebi o conflito na expressão deles. Eu tinha dormido com um homem muito mais decente do que Dante na noite anterior e estava tinindo
de carisma de súcubo. Dava para perceber que estava surtindo efeito. Em parte, era por isso que eles estavam tão intrigados comigo, o que me dava certa vantagem.
No entanto, também percebi que, por mais poderosa que eles achassem que Kristin era e por mais que respeitassem as recomendações dela quanto a mim, eu ainda era
uma estranha e não necessariamente confiável, mesmo sendo tão atraente. Mais uma vez, fiquei admirada com a força da convicção deles.
- Bem, não quero que vocês parem... - Isso era, é claro, exatamente o que eu queria. - Mas o que vocês estão conseguindo fazer é apenas assustar as pessoas. - Isso
não era exatamente verdade, mas de que outra forma eu poderia descrever aquilo? - Acho que, agora que já se estabeleceram, vocês deveriam usar essa força para começar
a influenciar as pessoas na direção do desejo do Anjo. Com certeza, o melhor jeito de fazer o que ele... ela quer é levar realmente as pessoas para a escuridão.
- Fiz contato visual com cada um conforme ia falando, sorrindo e colocando o máximo de charme persuasivo que podia na minha voz.
Um cara com a cabeça raspada, cujo nome eu tinha me esquecido, colocou um Timbit com cobertura de chocolate na boca e mastigou pensativo. - Isso faz sentido.
Allison não concordava. - Se o Anjo quisesse que nós fizéssemos isso, nós saberíamos. No momento, precisamos continuar a fazer somente o que estamos fazendo. Nós
estamos ficando fortes e precisamos nos certificar de que essa força não diminuirá diante dos nossos inimigos.
Obriguei-me a continuar sorrindo. Essa gente não entendia nada, e muito menos seus supostos inimigos. Virei-me em direção ao Evan e olhei para ele abaixando os cílios.
- Por que se contentar com um objetivo só? Evan, eu achava que você era quem mais queria fazer este grupo ser grande. Achei que você quisesse levar mais almas para
o lado do Anjo.
- Nós já estamos fazendo isso - afirmou Allison. Acho que ela não gostou do meu olhar convidativo para o Evan. Por sua vez, Evan não gostou de se ver no meio das
duas. Ele começou a balbuciar alguma coisa, mas foi interrompido pelo cara com a cabeça raspada.
- Como? - ele perguntou a Allison.
Ela franziu a testa. - O que você está querendo dizer, Blake? Como o quê?
- Como estamos levando mais almas para o lado do Anjo?
- Atacando os que negam a grandeza dela.
- Sim... - Blake franziu a testa e terminou de comer mais um Timbit.
- Mas eu não acho que fazer isso esteja trazendo mais almas para o nosso lado.
- Você está questionando o que estamos fazendo?
- Não, eu defendo tudo. É só que... - Blake balançou os ombros. - Parece-me que as coisas que estamos fazendo não estão realmente levando almas para o lado do Anjo.
Na melhor das hipóteses, só estão fazendo as pessoas terem mais má vontade com a gente. - Finalmente! Finalmente alguém tinha percebido! Fiquei com vontade de beijar
o Blake. Talvez mais tarde. - Quer dizer, não tenho certeza de que o plano do Zamboni* vai levar alguma alma para as sombras. Só vai fazer as pessoas quererem se
defender de nós. Talvez esteja na hora de fazer a vontade do Anjo por meios mais sutis.
- Sim - gritei. - É exatamente isso que eu... Zamboni?
Com muito entusiasmo, eles explicaram uma ideia que haviam tido, pichar um Zamboni com mensagens satânicas antes de ele sair para nivelar o gelo durante um jogo
de hóquei. Ainda com aquele sorriso idiota no rosto, eu disse com a voz inalterada: - Acho que vocês deveriam pensar duas vezes.
O debate prosseguiu por aproximadamente mais uma hora. Fiquei um pouco decepcionada por meu ponto de vista não ter tido influência sobre todos eles de imediato,
mas havia conseguido pelo menos espalhar algumas sementes. O que quer que eles alegassem, dava para perceber que nenhum deles tinha realmente certeza sobre o que
exatamente o Anjo queria, é claro. E, embora alguns estivessem satisfeitos com aquela rotina, outros estavam começando a compreender minha lógica. Considerei um
sinal de vitória quando finalmente nos levantamos para ir embora e eles decidiram não executar nenhuma ação - quer dizer, o plano do Zamboni - até se reunirem novamente.
Quando estava saindo do restaurante, fui atrás do Blake. Tinha chegado à conclusão de que Evan era caso perdido. Blake aparentava ser o mais inteligente do grupo
e eu achei que talvez fosse o momento para uma mudança de liderança. Com um pouco de ajuda, não seria muito difícil destituir Evan.
- Ei - eu disse, com um sorriso radiante para Blake. - Eu gostei muito do que você tinha a dizer. Você está ocupado? A gente podia conversar um pouco mais.
Ele sorriu de volta, sinceramente interessado. Eu provavelmente nem teria precisado de glamour de súcubo para convencê-lo. - Eu gostaria... mas preciso trabalhar.
Você vai estar livre mais tarde? Tipo... depois do jantar?
- Claro. - Trocamos números, e, quando estávamos prestes a nos separar, perguntei em voz baixa: - Eles não vão fazer nada, vão? Apesar do que disseram sobre... sabe,
deixar o plano do Zamboni de lado por hora?
O sorriso dele se abriu. - Não, eles não vão executar o plano do Zamboni. Tenho certeza.
- Como?
- Porque eles estão sem spray.
- Eles podem arranjar mais.
Ele balançou a cabeça. - Não sem mim. Sou o fornecedor deles. Eu trabalho no Home Depot.
Mais uma vez, me vi com tempo livre em Vancouver. O dia estava lindo, e a temperatura, amena, para o mês de abril. Então, fui andar à beira-mar. A água parecia ser
mais azul do que a do nosso lado, na baía de Puget, onde fica Seattle, mas talvez só porque o tempo costumava ser mais ensolarado ali. Fui passear no Stanley Park
depois e, por fim, fiquei perambulando até chegar ao hotel. Nesse meio-tempo, passei de novo por uma das lojas de camisetas. Eles tinham trocado a vitrine e agora
havia uma camiseta com um mapa dos Estados Unidos em que se lia: Querido Canadá, por favor, invada.
De volta ao meu quarto, liguei o laptop para checar meu e-mail. Havia alguns do mailing da livraria que ignorei, assim como o spam de praxe. Com essas mensagens,
havia uma do mailing do greygoose.com, uma foto de um gato com uma legenda sem sentido que Cody tinha encaminhado para mim e um recado da Maddie.
Era um e-mail que ela enviara de manhã para um monte de gente. Dizia: Oi para todos! Resolvi fazer um blog. Deem uma olhada. Em seguida, havia um link. Apesar de
meus instintos me dizerem para não clicar, eu cliquei.
Deveria ter ouvido meus instintos.
Fui bombardeada por fotos do Seth com ela. Eles tinham ido ao aquário de Seattle na noite anterior e tirado várias fotos, posando ao lado de papagaios-do-mar, lulas
e outras criaturas marinhas. Para piorar, as sobrinhas de Seth estavam com eles. Aquilo quase me matou. Seth tinha cinco adoráveis sobrinhas loiras, entre 4 e 14
anos. Eu as adorava, e terminar com ele tinha sido como terminar com elas também. Todas as meninas pareciam estar contentes, e eu me perguntei se elas por acaso
se lembravam de mim. Bem, é claro que se lembravam. Não fazia tanto tempo assim. Mas eu sabia que eu ia desaparecer aos poucos da memória delas até, finalmente,
virar uma vaga lembrança da ex do tio delas.
Fechei o laptop e resolvi descer para o bar do hotel.
Ainda não era hora do jantar, então o lugar estava um tanto deserto. Escolhi um lugar no bar perto da televisão e logo me enturmei com o atendente. Três gimlets
depois, também havia me enturmado com um casal mais velho que tinha vindo de São Francisco a passeio e alguns homens de negócio de Winnipeg que estavam na cidade.
Estávamos rindo de um filme recente quando a tevê de repente saiu do jogo de curling e ficou estática. O atendente apertou os botões do controle remoto, sem resultado.
- O que está acontecendo? - ele perguntou.
Alguns momentos depois, a imagem voltou, mas era um canal diferente, que estava exibindo um programa de notícias local. Meu sorriso se esvaiu e fiquei com um nó
no estômago. - Não - gemi.
A equipe de câmera estava fazendo uma transmissão no Queen Elizabeth Park, outra área linda da cidade, para onde eu tinha pensado em ir depois do Stanley Park. Fiquei
me perguntando se teria visto aquela atrocidade e se teria sido capaz de evitá-la se tivesse ido para lá.
O Exército da Escuridão havia encenado uma demonstração no local, no fim da tarde. Eu contei dez deles, então eles deviam ter recrutado alguns de seus membros auxiliares.
Estavam usando túnicas e capuzes feitos de veludo barato roxo e preto, mas eu reconheci duas feições muito parecidas com as de Evan e Allison. Alguns deles seguravam
cartazes com pentagramas e slogans “do mal” enquanto circulavam recitando alguma coisa que não consegui discernir. Um deles havia cravado um bastão no chão, com
uma máscara de borracha de uma cabra na ponta. A máscara não estava bem fixada e tombava para o lado, fazendo com que se parecesse mais com uma cabra mutante do
que com um emblema do inferno. A chamada mostrava uma multidão reunida em volta e, depois, a polícia chegando para dar um fim naquilo.
Rapidamente, coloquei os drinques na conta do meu quarto e saí correndo e ligando para Blake ao mesmo tempo.
- Blake? Aqui é a Georgina.
Ele suspirou. - Eu sei, eu sei. Acabei de descobrir.
- Que diabos aconteceu? Eles disseram que não iam fazer nada. Você disse que eles não iam fazer nada.
- Não achei que fossem! - Ele parecia estar sinceramente aborrecido. - Eu estava trabalhando até meia hora atrás. Não tinha a menor ideia... Sério. Eles fizeram
isso por conta própria. Acho que alguns deles foram presos. Evan, Joy e Crystal, porém, conseguiram escapar.
Dei um suspiro e cancelei nossos planos para aquela noite. Tinha de tentar fazer alguma coisa antes que Cedric ou algum de seus companheiros viessem atrás de mim
- como sabia que, de fato, fariam.
Fui de carro para a casa de Evan. Ele atendeu à porta, ainda vestindo a túnica, mas sem o capuz. Tinha um ar radiante e eufórico. - Georgina? Você viu o noticiário?
Você viu o que nós fizemos?
- Sim! - Empurrei-o de volta para dentro antes que algum vizinho o visse. - O que aconteceu? Vocês disseram que não iam fazer nada até nos reunirmos de novo! O que
aconteceu com levar as pessoas para o be... mal maior?
Ele finalmente percebeu que eu não compartilhava o entusiasmo. - Você acha que nós não estamos influenciando as pessoas?
- Eu acho que vocês influenciam as pessoas a achar que vocês são uma aberração. Várias igrejas provavelmente irão providenciar sermões amanhã sobre permanecer puro
e fiel, ou algo do tipo.
Evan se jogou no sofá intrigado, mas ainda vibrando com a adrenalina da façanha deles. - Não, isso foi poderoso. Os efeitos vão ter longo alcance.
O alcance era longo o suficiente para me deixar em maus lençóis, sem dúvida. - O que aconteceu? Por que vocês decidiram fazer isso? Isso já estava planejado há muito
tempo?
- Não. Acabou de ser decidido. Algumas horas depois do nosso encontro.
- Mas por quê? - perguntei frustrada.
- Porque o Anjo mandou.
- Mas vocês disseram que não iam fazer nada!
Ele olhou para mim como se eu fosse louca. - Mas o Anjo mandou. Nós precisávamos obedecer.
Comecei a argumentar sobre como aquilo tinha sido uma idiotice, mas fiz uma pausa para levar em consideração uma coisa a que eu ainda não havia dado crédito. - Você
está dizendo que o Anjo realmente falou com vocês?
- Sim, é claro. De que outro jeito nós íamos saber o que ela quer?
Uma sensação de inquietação tomou conta de mim. Esse tempo todo, quando eles falavam que estavam fazendo o que o Anjo “queria”, eu tinha suposto que era da mesma
forma como tantos fanáticos religiosos presumiam que compreendiam os desejos de suas divindades. Os que diziam que a divindade falava com eles geralmente eram doidos.
- Ela fala com vocês, assim, em sonhos?
- Não - ele disse. - Ela apareceu para mim. Bem aqui. Ali, na verdade. Perto da tevê.
- O Anjo aparece para vocês... - eu disse impassível. - ... em pessoa? Aparece e diz o que fazer?
- É claro. De que outra forma poderíamos ficar sabendo?
Aquela sensação de inquietação aumentou. - Como ela é?
Evan suspirou, uma expressão sonhadora tomou conta do rosto dele. - Oh, Georgina. Ela é linda. Tão linda. Ela brilha... É quase difícil olhar. O cabelo... é como
um manto de ouro, e os olhos... - Ele suspirou de novo. - Não consigo descrevê-los. São como todas as cores do arco-íris.
Meu telefone tocou justamente nessa hora, interrompendo as analogias dele.
Eu não reconheci o número, mas o código de área era de Vancouver.
- Alô?
Era o Cedric.
- Se você não estiver no meu escritório em dez minutos - ele disse -, eu vou aí te buscar. E não vai ser legal.
Enfiei o telefone na bolsa e me levantei. - Evan, preciso correr. Olhe, se o Anjo falar com você de novo, você pode me avisar antes de fazer qualquer coisa?
Ele ficou hesitante. - Hum, talvez.
Parei na porta. - O que isso quer dizer?
- Bem, sabe... Não me leve a mal, mas ela pediu para não contar a você. Ela disse para manter isso no círculo mais próximo. Provavelmente, ela só precisa conhecer
você melhor.
Isso encheu minha cabeça de perguntas, mas as palavras de Cedric tinham causado mais impacto naquele momento. Eu não tinha tempo para discutir sobre uma entidade
que poderia ou não ser real. - Depois a gente fala sobre isso.
Fui correndo para o bairro financeiro, sem me preocupar em contar os minutos, com medo do que ia encontrar. Não aconteceu nada comigo quando cheguei ao escritório
do Cedric, então supus que tinha dado tempo. Kristin não estava na recepção, mas a porta dele estava aberta.
- Entre - Cedric vociferou.
Com o coração aos pulos, entrei no escritório dele.
O rosto dele estava repleto de ira, e se em algum momento eu tinha achado que o comportamento afável dele fazia que não parecesse um demônio, essa ideia imediatamente
desapareceu. Ele cerrou os punhos quando olhou para mim e eu agradeci pela sorte que tive por ele ter continuado sentado e não ter me atirado para o outro lado da
sala. Bem devagarzinho, sentei na minha cadeira de sempre.
- O que você está fazendo? - ele perguntou. - Ou melhor, o que você não está fazendo? - Ele apontou para a tela do computador. Não era a Wikipedia, para variar.
Em vez disso, mostrava fotos da demonstração no site de um jornal local. - Você deveria impedir esse tipo de coisa! O Jerome mandou você aqui para me sabotar e espionar?
- Não! Eles fizeram isso sem me avisar. Na verdade, de manhã, eu tinha conseguido convencê-los a não colocar em prática um plano com um Zamboni, e eles agiram pelas
minhas costas porque o Anjo da Escuridão supostamente falou com eles.
O mais rápido que pude, recapitulei os acontecimentos e as conversas do dia. Quando terminei, o olhar furioso persistia. Ele visivelmente ainda não acreditava em
mim.
- O Jerome disse que você era boa, mas eu não tinha ideia de como você era boa. Você manipulou o grupo bem debaixo do meu nariz.
- Não - eu repeti. - Juro pelo que você quiser. Eu tentei impedi-los.
Ele continuou como se eu não tivesse dito nada. - Eu vou me ferrar por causa disso. Os nossos superiores vão cair em cima de mim... e, além disso, vou virar motivo
de piada. E, alguma hora, o outro lado também vai começar a achar ruim. Eles não gostam desse tipo de ataque aberto.
O outro lado. O céu. Os anjos.
Anjos...
- Quem é seu equivalente aqui? - perguntei. - Entre os anjos. Deve haver um arcanjo por aqui, não?
A pergunta o pegou desprevenido, o suficiente para o ar irritado ser suspenso momentaneamente. - É claro. O nome dela é Isabelle. Por quê?
- Bem... Evan e os outros dizem que recebem instruções de um anjo. Esse tempo todo você ficou achando que eles estavam apenas adorando algum ideal satânico indefinido.
Mas e se um anjo de verdade os estiver controlando? Quer dizer... Jerome desistiu de brigar com você. Se alguém tivesse motivo para lhe causar problemas, não seria
o nosso lado. Seria o deles.
Cedric ficou em silêncio por alguns instantes. - Não faz o gênero deles. Nem de Isabelle. Eu a conheço há muito tempo. - Quando imortais superiores dizem “muito
tempo”, geralmente não estão brincando.
- Ela é loira?
- Sim, mas isso não quer dizer nada. Podemos ter a aparência que quisermos. Alguém que estivesse aparecendo para esse grupo, e eu não acho que esteja, poderia facilmente
tornar-se loira, ou careca, qualquer coisa. Acho que você está tentando livrar o Jerome e você da culpa.
- Não estou! Veja, eu não quero me meter nesse atoleiro. Só quero terminar meu trabalho e ir para casa. E, se você quer saber, acho que tem alguém tentando aprontar
alguma coisa e fazendo você procurar no lugar errado. - Santo Deus. Eu estava falando como todo mundo agora. Logo ia dizer para ele que ele estava sendo manipulado.
- Isabelle não faria isso - ele insistiu. - Somos amigos... quer dizer, de certa forma.
Era engraçado como demônios mentiam e traíam uns aos outros o tempo todo, mas, ainda assim, defendiam o caráter de alguém que tecnicamente era um inimigo. Eu podia
compreender, porém. Jerome tinha o mesmo tipo de amizade bizarra com o arcanjo de Seattle, Carter.
- Você pode me colocar em contato com ela?
Cedric me olhou espantado. - Você vai mesmo insistir nisso?
- Não estou tentando sabotar você, mas quero descobrir quem está.
- Isso é se dar muito trabalho só para desviar a atenção de você mesma.
Eu simplesmente olhei para ele, mantendo um olhar tão determinado quanto pude, na esperança de que ele acreditasse em mim. Também esperava que o tabu dos demônios
sobre mexer com empregados de outros demônios se mantivesse. Aparentemente, se manteve, porque ele acabou dizendo:
- Vou mostrar para você como entrar em contato com ela, por mais que isso seja inútil.
Soltei a respiração que eu estava segurando.
- Obrigada.
Ele balançou a cabeça.
- Mas não fique achando que se safou. Ainda vou continuar a observar você.
* * Máquina utilizada para retirar o excesso de gelo de pistas de patinação ou quadras de hóquei. (N. E.)
Capítulo 8
Grace me ligou naquela noite, quando eu estava a caminho do encontro com Isabelle.
- Oi, Georgina. É a Grace.
Esperei pacientemente pela saudação complementar de Mei. Quando não veio, perguntei surpresa: - É só você? A Mei não está aí?
A voz de Grace, embora estivesse inalterável como sempre, demonstrou um minúsculo sinal de perplexidade. - Por que a Mei deveria estar aqui?
Aparentemente não tinha lhe ocorrido que eu nunca havia recebido um telefonema ou uma visita de nenhuma das duas sozinha. Elas sempre funcionavam como uma unidade,
e isso meio que dava a impressão de que o universo poderia ser rasgado em dois se elas alguma vez se separassem. Isso era tão esquisito quanto elas quase terem aceitado
café no outro dia.
- Deixe para lá. E aí?
- Jerome queria que eu dissesse que ele está... satisfeito.
- Com o quê?
- Com o fato de você ter conseguido deixar o Cedric constrangido.
- Mas eu não... - mordi a língua, perguntando-me de repente se deveria negar meu envolvimento tão rápido. Jerome não andava muito satisfeito comigo ultimamente.
Apesar de o espetáculo idiota do Queen Elizabeth Park ter me colocado na lista negra do Cedric, ele bem que poderia me tirar da lista do Jerome e apressar minha
volta definitiva a Seattle. Fiquei quieta.
- Ele ficou satisfeito por você ter levado a sério o que ele disse - Grace continuou. - No entanto, ele quer que você se lembre de que foi enviada para o Cedric
como um gesto de boa vontade. Então, tente não ser eficiente demais. Jerome quer que você continue com essas pequenas alfinetadas, mas lembre-se de que, em princípio,
você quer que o grupo seja derrotado.
Suspirei. - Registrado.
Grace desligou. Ótimo. Era só essa que me faltava. Jerome também achava que eu era culpada - para tentar ganhar um crédito extra com ele.
Cedric tinha me dito que eu poderia encontrar Isabelle em um clube de jazz a alguns quilômetros do meu hotel. Ficava em uma rua com vários clubes e bares, um do
lado do outro; a agitação e a energia no ar, enquanto eu caminhava em direção ao lugar frequentado por Isabelle, eram palpáveis. Afinal, era sábado à noite e as
ruas fervilhavam com humanos alvoroçados, ansiosos por amor e vida. Eu não podia ver as almas ou a energia deles da forma como um duende como Hugh podia, mas não
precisava. Era evidente pela forma como se moviam, olhavam e conversavam uns com os outros em busca de parceiros em potencial. Mesmo depois de minha escapada recente,
estar nessa atmosfera eletrizante me fez desejar uma nova conquista. Eu precisava fazer um tour por esses clubes depois de resolver meu assunto com Isabelle.
O clube de jazz era pequeno e escuro, exatamente como era de se esperar que lugares como aquele fossem. Todas as mesas estavam cheias e muitas pessoas estavam em
pé, perto do bar ou ao longo da parede. No entanto, não foi difícil encontrar Isabelle. A assinatura de um imortal superior inundava um lugar como aquele. A dela
era como a luz do sol brilhando através de cristais, decompondo-se em lampejos coloridos.
Ela estava sentada sozinha em uma mesa de canto. As mulheres obviamente desacompanhadas eram assediadas - de fato, atraí alguns olhares interessados enquanto me
deslocava -, mas ninguém, além dos atendentes, parecia notar Isabelle. Isso me fez lembrar como ninguém nunca reparava na semelhança entre Jerome e John Cusack.
Isabelle estava usando um vestido longo azul de alcinha, surpreendentemente ousado para um anjo. O cabelo era loiro ensolarado e estava solto, caindo pelas costas
- o que podia ser descrito como um manto dourado, pensei astuciosa.
Ela me sentiu, é claro, e não pareceu nem um pouco surpresa quando sentei-me do outro lado da mesa. Com um sorriso, ela levantou os olhos e fez sinal com o dedo
para o garçom mais próximo. Ele veio apressado e anotou meu pedido, um gimlet. Quando ele saiu, Isabelle voltou sua atenção para mim.
- Certo. O súcubo do Jerome.
Cedric tinha me chamado do mesmo modo em nosso primeiro encontro. Eu ficava meio incomodada por minha identidade se basear em estar associada a - ou melhor, ser
possuída por - outra pessoa.
- Sim - eu disse. Ela me olhou de um jeito agradável, nem frio, nem receptivo. Com anjos, nunca dá para ter certeza sobre a que extremo se pode chegar. Ela tinha
um ar predominantemente de curiosidade, então imaginei que poderia ir direto ao assunto. - Então, eu...
- Shh...
- O q...
Ela levantou a mão, seus olhos escuros prestavam atenção em alguma coisa atrás de mim. A banda estava no meio de uma música e o trompetista tinha acabado de levar
o instrumento à boca. Uma longa nota aguda saiu, dando início ao que se transformou em um solo melancólico. Quando ele terminou, por volta de um minuto depois, virei-me
para Isabelle e vi que o garçom tinha trazido meu gimlet. As feições do anjo estavam iluminadas de admiração - e nostalgia.
- Você ouviu isso? - ela me perguntou. - As notas não eram complicadas, mas ele foi capaz de colocar tanta coisa nelas. O coração, as emoções, a alma. Um mundo de
pesar, de extraordinária agonia... tudo nessas poucas notas. - Ela tomou um gole de vinho. - Você não pode fazer isso. Nem mesmo eu posso fazer isso - não como ele
fez.
As palavras dela me surpreenderam, mas eu sabia exatamente do que ela estava falando. Um dos motivos pelos quais eu sempre ficava um pouco impressionada com os livros
de Seth se devia ao fato de ele, como mortal, ter um talento que um imortal como eu nunca poderia ter.
- Só os humanos têm o dom de poder criar - murmurei.
Ela ergueu de leve as sobrancelhas e sorriu.
- Sim, exatamente. Diga-me, o que posso fazer por você, súcubo do Jerome?
A essa altura eu me senti pouco à vontade para interrogá-la. Havia algo de triste e vulnerável nela que a fazia parecer desprotegida. Contudo, fui em frente. Anjos
e demônios eram farinha do mesmo saco. Ambos sabiam bem como fazer alguém acreditar no que quisessem. - Você... Você está sabendo sobre esses supostos satanistas,
não está? O Exército da Escuridão?
Ela deu um sorrisinho. - Ótimo filme, culto idiota. Você teve alguma coisa que ver com a demonstração deles hoje? Eu adorei a máscara de cabra.
Balancei a cabeça. - Na verdade, eu estava imaginando que você tinha alguma coisa a ver com isso.
- Eu? - Ela riu. - Eu adoraria poder inventar coisas tão boas, mas lá vamos nós de novo, humanos e criatividade. Por que você está perguntando?
- Porque eles dizem que são comandados por um anjo. - Passei a ela uma versão resumida do que o grupo tinha me contado.
- E você supôs que eles estavam se referindo literalmente a um anjo?
- Estou tentando não supor nada. Mas acho que alguma coisa ou alguém está no comando, o seu lado tem um ótimo motivo para causar problemas para o Cedric e fazer
as autoridades de todos os lados caírem em cima dele.
- E o seu lado tem um motivo tão bom quanto. Demônios tentam passar a perna uns nos outros o tempo todo.
Bati de leve com as unhas na borda do meu copo e olhei para ela com um ar irônico. - E você não respondeu a minha pergunta - observei. - Você não negou que estava
envolvida. - Tecnicamente, anjos não podem mentir, mas são mestres em nem sempre contar a verdade.
Isabelle terminou o vinho e sorriu para mim novamente. - Você é ótima. Isso está parecendo um programa policial da tevê. Não me admira que Carter goste tanto de
você.
Suspirei exasperada, percebendo que não ia chegar a lugar algum. Malditos anjos.
O sorriso dela se esvaiu um pouco, mas ela ainda estava claramente achando divertido. - Olhe, Georgina - ela disse. Ela sabia meu nome, o que não era nenhuma surpresa.
- Eu gostei de você. Você é inteligente e adorável, mas é o seguinte: não quero que o Cedric vá embora de Vancouver. Gosto dele. E, de qualquer jeito, posso compreendê-lo.
Quando se está fazendo um jogo como o nosso, quanto mais você conhece as peças do tabuleiro, melhor você se sai. Não quero ter de conviver com um arquidemônio que
eu não conheça, muito mais desagradável do que ele. - Um novo copo de vinho havia sido trazido para a mesa, e ela fez uma pausa para dar um gole. - A verdade é essa.
Não sabia o que dizer. Queria acreditar nela, mas não tinha a menor ideia de que podia. Simplesmente suspirei novamente.
- No que você está pensando? - ela perguntou.
- Queria poder acreditar quando você diz que não está envolvida. Mesmo com toda a coisa de não mentir, não sei se posso. Acho que não posso confiar em ninguém.
- Isso - ela disse com firmeza - é uma coisa com a qual eu concordo plenamente: você não pode confiar em ninguém. Em nenhum lado. Todo mundo tem seus interesses
e, no momento, tem alguma coisa no ar, uma tempestade se formando, para usar um clichê. Tenha cuidado. - O semblante dela pareceu momentaneamente preocupado, depois
ela relaxou de novo, quando voltou a prestar atenção no palco. - Ah, o solista voltou.
Empurrei meu copo vazio para o meio da mesa. Comecei a pegar dinheiro, mas ela fez um sinal com a mão. - Obrigada pela conversa - eu disse, levantando da minha cadeira.
De repente, fiquei em dúvida. - Você mencionou o Carter. Por acaso você sabe por onde ele tem andado ultimamente?
Nunca achei que fosse pronunciar aquelas palavras. Carter me atormentava havia anos com seus conselhos misteriosos não solicitados. Ele gostava em particular de
fazer comentários sobre Seth e mim, como se tivesse um interesse especial no relacionamento. Depois do fim, eu quase não tinha visto o Carter. Ele costumava andar
comigo e meus amigos, mas havia aparecido só algumas vezes nos últimos meses.
Isabelle sorriu. - Ele está mais perto do que você imagina.
- Típica resposta de anjo - resmunguei. Quando me virei para sair, tomei um susto.
Carter estava na entrada do clube.
Abandonando Isabelle, atravessei correndo a sala lotada. Ignorando a maneira adequada de se vestir, Carter usava a costumeira roupa estilo grunge, jeans surrado
e camiseta cinza. Havia uma camisa de flanela amarrada na cintura dele e o cabelo loiro estava precisando de uma lavada e uma escovada. Ele sorriu, demonstrou expectativa
quanto à minha aproximação e saiu para a rua movimentada. Eu o segui.
- O que você está fazendo aqui? - perguntei, sacando os cigarros. Peguei um para mim e lhe ofereci o maço. Ele também pegou um.
- O que você está fazendo aqui? - ele rebateu alegremente.
- Você sabe o que eu estou fazendo aqui. Todo mundo sabe o que eu estou fazendo aqui. - Remexi minha bolsa em busca do meu isqueiro novo e achei uma caixa de fósforos.
Peguei-a. Bar Mark’s Mad Martini. Tinha me esquecido dela.
- Alguma coisa errada? - Carter perguntou, percebendo minhas sobrancelhas franzidas.
Balancei a cabeça. - Nada. - Troquei os fósforos pelo isqueiro e acendemos os cigarros. - Você estava rondando com a assinatura escondida - continuei. - Por quê?
- Elemento surpresa - ele disse. - Era só para ver a sua cara.
Fomos passando pelos clubes enfileirados e por grupos de bêbados, sem um destino em mente - pelo menos não até onde eu sabia. - Você anda sumido - censurei.
- Por que, filha de Lilith? Você estava com saudade?
- Não! Mas comecei a achar que você só estava interessado em mim enquanto eu namorava o Seth.
- É claro que não. - Ele fez uma longa pausa, tentando disfarçar. - Então... você tem falado com ele ultimamente?
Revirei os olhos. - Você está interessado só no Seth! Você vai ter de esquecer isso, Carter. Seth e eu, acabou. Por que você não pode cismar comigo e meu namorado
novo, em vez disso?
- Porque você merece coisa melhor.
- Todo mundo fica dizendo isso. Mas eu sou um súcubo. O que mais eu mereço?
- O fato de as pessoas ficarem dizendo isso já deveria servir como resposta.
- O Seth terminou comigo - eu disse com determinação. - Ele não me quer mais, acabou a história.
- Ah, vai. Você realmente acredita nisso?
- Considerando que eu estava presente quando acabou, sim.
Carter estalou a língua. - Georgina, Georgina. Você está deixando a raiva e outras emoções prejudicarem seu raciocínio, o que é uma pena, já que você é muito mais
inteligente do que as pessoas acham que você é. Pare e pense. Por que o Seth terminou com você?
Desviei o olhar para o outro lado da rua, recusando-me a olhar para ele. - Porque achava que, se continuássemos juntos, ambos acabaríamos sofrendo. Que seria melhor
se nos separássemos, por mais doloroso que fosse naquele momento.
- E você acha que isso faz dele uma má pessoa?
- Sim. - Voltei a olhar para Carter. - Porque eu não concordava. Estava disposta a correr o risco. Ele desistiu.
- Às vezes, é preciso ter mais coragem para bater em retirada do que para continuar lutando.
- Não acho que foi preciso tanta coragem assim. Ele se acertou com Maddie bem rápido. - Por mais que me esforçasse, não conseguia afastar o ressentimento da minha
voz.
- Isso também demanda coragem, forçar-se a começar com uma pessoa nova, seguir em frente com a vida.
- A mim, parece mais um tiro pela culatra.
Carter deu uma longa tragada no cigarro. - Seth não foi embora e ficou com a Maddie porque deixou de amar você. Se não existisse nenhuma complicação no mundo, ele
escolheria você. Você é o ideal dele, a primeira escolha.
- Isso não é muito lisonjeiro com a Maddie.
- Não a diminui. Só quer dizer que ele a ama de um jeito diferente. E quando alguém decide que precisa ir em frente, é assim. Só porque as coisas não deram certo,
não quer dizer que não existem outras pessoas que você possa amar. Amor é uma coisa muito importante para se viver sem ele.
- Ah, sim - eu disse. - Eu estava com tanta saudade dessas conversas misteriosas.
Carter armou um sorriso. - Estou feliz por ver que você voltou à velha forma.
- Também estava com saudade do sarcasmo.
- Não, estou falando sério. Você não andava lá muito divertida nos últimos meses. Você andava meio...
- ... desagradável?
Ele deu de ombros. - Não sei. Você estava com raiva, deprimida e frustrada. Você deixou de se importar com as pessoas à sua volta. Você não estava sendo... bem...
você.
- Você não me conhece nem sabe quem eu sou.
- Conheço você melhor do que você imagina. Sei que ainda está magoada e acha que o universo se esqueceu de você. Não esqueceu. E também sei que, no que diz respeito
a esse assunto dos demônios, sua curiosidade vai fazer você se embrenhar mais em algo em que você não deveria se envolver. Para começar, Jerome - ele afirmou - está
sendo um tolo.
- Você sabe o que está acontecendo? - perguntei ansiosa, interrompendo. - Quem está chefiando aquele culto? Quem pode estar comandando esse imenso jogo que está
em andamento e que não consigo ver?
- Não - Carter disse, com um ar sombrio. - Não sei nada sobre isso. Mas, se eu fosse você, voltaria logo para Seattle. Fique perto de Jerome.
- Ele está bravo comigo no momento.
- Não, não está. Fique perto dele. Ele vai proteger você. Se ele não conseguir... bem, eu protejo. Se puder.
Não havia nada de romântico nessa oferta de proteção. Não foi feita com uma impetuosidade cavalheiresca. O jeito dele era de preocupação, como se estivesse lidando
com um último recurso. Também não consegui deixar de recapitular as últimas palavras dele: se eu puder. Anjos - ou demônios - não usavam a palavra “se” com muita
frequência.
- O que você está querendo dizer com se?
- Volte para casa, filha de Lilith. - Ele inclinou a cabeça para trás e fitou o céu noturno, jogou a fumaça para o ar e depois olhou de volta para mim com seus olhos
cinza-prateados. - A gente conversa depois.
Ele deixou o cigarro cair na calçada e desapareceu.
Olhei em volta, preocupada com a possibilidade de alguém ter nos visto, mas tínhamos nos afastado dos festeiros. Apaguei o cigarro com o pé, dei meia-volta e fui
em direção à agitação noturna, para ir procurar alguns caras que haviam reparado em mim. Uma noite com homens bêbados não me faria deixar de me sentir vazia, mas
pelo menos a motivação deles era mais fácil de compreender do que a dos anjos.
Capítulo 9
Eu estava começando a ficar com inveja da capacidade dos imortais superiores de se teletransportar. Antes, eu sempre reclamava (geralmente era meio atordoante),
mas, de repente, um pouco de tontura começou a me parecer insignificante comparado a fazer a viagem de carro de Vancouver a Seattle de novo. Irritante ou não, estava
ansiosa para falar com Jerome e, então, tão logo Cedric me deu permissão para voltar para casa, no dia seguinte, peguei a estrada de volta para os Estados Unidos.
Isabelle tinha me parecido suficientemente convincente ao negar ter algum papel nos disparates do Exército, e tanto Carter quanto Cedric também pareciam ter certeza
de que ela não estava envolvida. Eu não podia dispensar nenhuma pista, no entanto, não se meu retorno definitivo estivesse em jogo e, ainda mais, se alguém estivesse
na verdade mexendo também com Seattle. Isabelle podia ser realmente inocente, mas eu não ia virar a página antes de verificar com Jerome.
- Você fica mais aqui do que lá - observou Hugh quando liguei para contar a ele que estava de volta. - Isso não está com muita cara de punição.
- Punição é uma coisa subjetiva. Você sabe onde Jerome está?
- Até onde eu sei, ele ia encontrar alguém.
- No Cellar?
- Humm, não... naquele bar novo em Capitol Hill. O Clement’s.
- Será que ele vai ficar bravo se eu aparecer durante um almoço de negócios?
- Se ele não quiser ser interrompido, você não vai conseguir encontrá-lo.
Bem observado. Sem passar em casa, fui direto para Capitol Hill e encontrei lugar para estacionar na verdade não muito longe do apartamento de Peter e Cody. O Clement’s
era o novo ponto da moda, um pouco mais elegante e moderno do que o decadente Cellar, na Pioneer Square, muito frequentado por nós, imortais. O Clement’s tinha a
mesma atmosfera mais sofisticada e um menu de drinques exclusivo como o Mark’s, e foi difícil me convencer de que um drinque não seria uma boa ideia em meio a afazeres
demoníacos.
Localizei Jerome de imediato. Ele estava em uma mesa de fundo, virada para a porta. Os olhos dele encontraram os meus quando eu estava me aproximando, minha assinatura
evidenciava minha presença, ao mesmo tempo em que a dele chegava a mim. Só que ele não era o único imortal no recinto. Reconheci a identidade do portador da outra
antes mesmo que a mulher sentada na frente dele se virasse.
Nanette.
Fui até a mesa deles, ficando sem fala mais por causa da surpresa do que por medo. Jerome e Nanette juntos? Desde quando? Ela tinha um sorriso malicioso no rosto,
como se houvesse entendido uma piada que o resto de nós não havia entendido. Estava usando outro vestido de verão bonito, de seda cor de lavanda, que ficava muito
bem com o cabelo loiro, apesar de a temperatura de primavera ainda estar um pouco baixa para ele. É claro que, imaginei, em se tratando de um demônio, o fogo do
inferno deveria mantê-la aquecida.
- Georgie - disse Jerome, sem ser desagradável -, parece que você fica mais aqui do que em Vancouver.
- Cedric me mandou para casa. Ele não me quer por lá se não estiver fazendo nada específico.
Nanette disfarçou o sorriso e fez uma pausa para beber o que parecia ser um martíni Lemon Drop. - Posso imaginar, depois daquele espetáculo de ontem. Brilhante trabalho,
devo acrescentar.
Fiz uma careta, decidindo me expor e me arriscar a perder a boa vontade de Jerome. - Na verdade, eu não tive nada que ver com aquilo. Eles agiram sem me avisar.
Jerome pelo visto não se importou. - Aquela cena está fazendo o maior sucesso no YouTube. Eu assisti umas cem vezes.
Essa coisa toda era muito confusa. Jerome aparentemente queria que eu ajudasse Cedric a desmantelar o culto, mas, apesar disso, ele visivelmente adorou ver o progresso
emperrar. De novo, tive a sensação de que havia alguma coisa que eu não estava percebendo, o que me fez ficar ainda mais insegura quanto a minha situação.
- Vejam - eu disse. - Não quero interromper o drinque de vocês, só queria dar uma palavrinha com Jerome, mas pode ser mais tarde.
Nanette colocou o martíni na mesa e se levantou. - Não, não. Nós já terminamos. Fique com meu lugar.
Fiquei hesitante, mas ela insistiu e Jerome não pareceu se importar muito com a partida dela. Ela saiu andando do bar, como um humano normal, sem se dar o trabalho
de se teletransportar de forma elaborada - pelo menos não enquanto podia ser vista. Ele fez um gesto em direção à cadeira e eu me sentei.
- Então, o que você quer comigo, Georgie? - Jerome estava tomando conhaque, algo mais adequado para uma noite junto à lareira do que para um domingo à tarde.
- Você anda se encontrando com a Nanette? - perguntei, deixando por um momento Isabelle de lado.
- Como você viu...
- Eu contei para você que ela tinha ido ver Cedric.
- E?
- Não é meio estranho ela encontrar vocês dois pelas costas?
- Não é pelas costas de ninguém - ele rebateu. - Eu sei que ela foi encontrar o Cedric, e ela sabe que eu sei.
Isabelle estava ficando cada vez mais esquecida em um canto de minha memória. De repente, tudo pareceu perfeitamente óbvio. Isabelle tinha negado que era o anjo
porque não queria que sua situação mudasse. Nanette, no entanto, queria uma mudança. Queria parar de achar que Cedric e Jerome estavam de olho no território dela
e espremendo-a entre eles. Ela havia afirmado que a visita a Cedric era defensiva da parte dela; ainda assim, eu não podia deixar de me perguntar se ela não poderia
estar mais na ofensiva do que qualquer um de nós imaginava.
- Georgie - disse Jerome num tom meio provocante -, posso ver as engrenagens girando em sua cabeça. No que você está pensando?
Começando pela reunião no Tim Hortons, fiz um relatório completo para Jerome sobre minhas experiências com o Exército e as teorias que tinha elaborado sobre o Anjo
da Escuridão ser um anjo de verdade - Isabelle.
- Ridículo - Jerome disse. - Não é ela.
- Parece que você tem tanta certeza quanto Cedric.
Ele deu de ombros, quase constrangido por ter concordado com seu rival. - Porque ela não está controlando nenhum culto. Eu a conheço. Não faz o gênero dela.
- Bem, na verdade, estou começando a concordar. - Respirei fundo e continuei. - Será que não ocorreu a nenhum de vocês dois que Nanette poderia estar por trás disso?
Jerome fez uma cara ainda mais incrédula. - Nanette? Georgie, isso já é demais. Até se tratando de você.
- O quê? Demônios de olho no território uns dos outros? Nem vem, Jerome. Não é demais coisa alguma! É o que você e Cedric estavam, ou ainda estão, fazendo. Se estourar
alguma coisa, Nanette vai estar em uma posição muito melhor para tirar proveito disso do que Isabelle. Nanette está correndo atrás de vocês dois, afirmando que está
preocupada com o outro, mas, na verdade, ela está jogando vocês um contra o outro.
Jerome balançou o copo com conhaque. - Vou adivinhar, ela é loira, como esse suposto anjo de cabelo dourado.
- Bem...
Ele suspirou, tomou o último gole de conhaque e colocou o copo na mesa com força. - Não que eu tenha algum motivo para prestar satisfações sobre nossos assuntos,
mas é o seguinte. Nanette não tem coragem de tentar fazer uma coisa como essa. Com certeza, algumas de suas observações estão corretas. Não seria um comportamento
inesperado para um demônio, especialmente um que estivesse se sentindo ameaçado. Mas não ela. Ela poderia até querer fazer alguma coisa assim, mas não vai. Ela fala
mais do que age.
Normalmente eu não obtinha de Jerome respostas tão detalhadas quanto essa e fiquei um pouco surpresa. - Você tem certeza?
- Tenho - ele disse com firmeza. Um garçom trouxe um novo copo de conhaque. - Deixe Isabelle e ela para lá. Descubra algum outro motivo para o que esse grupo absurdo
está fazendo. Fora isso, faça o grupo se dispersar, que é o que você tem de fazer. Além disso, você precisa me dar o devido crédito por poder tomar conta de meus
assuntos sem a ajuda de um súcubo.
Fui embora pouco depois, deixando Jerome bebendo sozinho. Quando abri a porta do bar, olhei para trás e o observei. Em um momento de descuido, a expressão dele demonstrou
preocupação enquanto ele olhava para as profundezas do copo. Parecia que ele estava muito sozinho, no sentido literal e figurado, apesar das palavras confiantes.
Senti uma pontada estranha no peito, um pouco comovida com o que era sem dúvida uma eternidade de tormento que ficava pior quando apareciam complicações como as
atuais. Por outro lado, talvez essas manifestações de drama demoníaco ajudassem a quebrar a monotonia.
Pensei sobre aonde poderia ir depois daquilo, mas achei melhor voltar direto para casa. Meu telefone tocou quando eu estava entrando no apartamento. Fechei a porta
empurrando com o pé enquanto procurava o telefone nas profundezas da minha bolsa com a mão livre. O número de Doug apareceu na identificação da chamada.
- Está tudo bem? - perguntei logo que atendi.
- Sabe o que é triste, Kincaid? Você não perguntou se eu estou bem. Você viu meu número, achou que havia alguma crise no trabalho e quer saber se está tudo bem na
livraria.
- O que você deseja?
- Tudo bem lá na livraria. Queria saber se você pode atravessar o tempo e o espaço e estar em todos os lugares ao mesmo tempo.
- Bem que eu gostaria, mas, sim, estou em casa. E aí?
- Você vai à festa da Casey?
- O que tem a Casey? - Imediatamente me lembrei da Casey me chamando de lado na livraria e perguntando se eu ia à festa de formatura dela. - Ai, é hoje, não é?
- Sim. Você quer que eu passe aí para pegar você?
- Doug, acho que não vai dar para eu ir. Na verdade, eu já até disse para ela que eu não ia poder.
- Tudo bem. Então me diga, imediatamente, o que você tem para fazer em vez disso.
- Bem, eu, humm...
- Demorou muito. Você não vai fazer nada.
- Só que não estou com muita disposição para festa.
- A melhor parte é que, quando as pessoas não estão com disposição para festas, é justamente quando elas mais estão precisando de uma.
- Doug...
- Por favor! Como você vai deixar de reconhecer a conquista de uma graduanda em matemática superinteligente que está se formando antes do tempo? Que diabos!
- Letão.
- O quê?
- Matemática e letão. É um bacharelado duplo.
- Você está reforçando meu argumento. Seria triste e errado se não a ajudássemos a comemorar. Ela superou uma vida de adversidade, veio para este país na esperança
de uma vida melhor para ela e a família.
- Doug, ela é a quarta geração. O pai dela é neurocirurgião.
- Vamos lá! A Maddie precisa ficar para fechar, então não tem ninguém para ir comigo. Isso e o fato de que é meio preocupante eu andar frequentando acontecimentos
sociais com minha irmã ultimamente. Preciso que você me faça parecer um homem novamente.
- Doug...
- Daqui a cinco minutos eu passo aí, Kincaid.
Eu sabia como Doug ficava nessas horas. Ele não estava brincando quando disse que chegaria em cinco minutos, e também tinha razão quando falou que eu não teria outra
coisa para fazer. Com tão pouco tempo, eu simplesmente me transformei para ficar com uma saia cinza e uma blusa preta que me pareceram adequadas para uma festa de
formatura. Enquanto tentava achar um envelope em branco onde pudesse enfiar um cheque, telefonei para Dante para avisar que tinha voltado e perguntar se ele queria
ir conosco. Como sempre acontecia ultimamente, caiu na secretária eletrônica. Qual era meu problema com homens com quem não se pode contar? Eu tinha problemas para
entrar em contato com Seth quando nós namorávamos porque ele sempre estava ocupado escrevendo. Agora não conseguia encontrar Dante porque... bem, porque não dava
para contar com ele. Deixei o endereço de Casey na mensagem e me apressei para ficar pronta. Queria usar o relógio do Dante, mas não consegui encontrá-lo antes de
Doug chegar - sério, não deu nem quatro minutos -, então saí correndo sem nenhum acessório.
A família de Casey morava em Clyde Hill, um bonito bairro à beira de um lago, adequado para a família de um neurocirurgião. A festa já havia começado havia cerca
de uma hora quando nós chegamos e encontramos a extensa área externa cheia de gente, música e comida. Já estava anoitecendo, e a luz suave das lanternas penduradas
nas árvores e ao longo da cerca dava a tudo uma espécie de atmosfera élfica misteriosa. Nós demos uma parada na entrada da área, avaliando o entorno e procurando
nossos conhecidos.
- Isso está muito saudável para mim - Doug observou. - Há crianças aqui.
- É claro que tem. Isso é uma festa de formatura, não uma das suas cervejadas pós-show.
- Ei - ele disse animado. - Acabei de ver alguém servindo bebida. Acho que vai ser toleravelmente saudável.
Casey nos encontrou quando estávamos pegando as bebidas e colocou os braços em volta de nós dois, dando um grande abraço duplo. - Oh! Vocês vieram! Obrigada. - Ela
estava radiante, cheia de entusiasmo e energia, e mal podia ficar parada. Ela aceitou meu envelope com outro abraço, disse para avisar se quiséssemos alguma coisa
e depois foi rapidamente embora quando viu a tia-avó que viera de Idaho chegar.
- Uau. Até me dá vontade de ter ficado na faculdade - Doug refletiu. Alguns dos nossos colegas de trabalho acenaram para nós do outro lado da área externa, e começamos
a andar serpenteando em direção a eles.
- É. Essa diversão toda poderia estar esperando por você depois do curso.
Ele fez uma careta. - O problema é que eu já estava me divertindo muito durante o curso.
Os outros funcionários da livraria ficaram felizes quando nos viram e começamos a conversar de forma agradável sobre assuntos que variavam da festa em si a trabalho.
A família de Casey não tinha economizado em nada e os garçons ficavam passando com vários tipos de comida em pequenas porções. Nenhum de nós tinha jantado, então
quase devoramos a bandeja toda e provavelmente estávamos parecendo selvagens em nosso canto.
Eu estava pensando em tomar uma segunda bebida quando, de repente, Beth disse: - Ei. Seth e Maddie estão aqui.
Fiquei tensa. Um dos motivos para eu ter atendido a campainha quando Doug veio me buscar foi ele ter dito que Maddie ia fechar a livraria. Saber que ia demorar um
pouco para ela e Seth chegarem havia tornado essa perspectiva suportável, mas, aparentemente, houvera algum tipo de transmissão de informação incorreta.
Dei uma virada de 180 graus, na esperança de ter entendido mal. Não. Lá estavam eles: Seth e Maddie. Pior, a sobrinha pequena de Seth, Kayla, estava com eles. Ela
era a filha mais nova do irmão dele, tinha 4 anos, olhos azuis e uma juba de cachinhos loiros. Eu havia descoberto fazia pouco tempo que Kayla tinha habilidades
paranormais e podia sentir o mundo invisível, parecido com o que Dante e meu amigo Eric podiam fazer. Ela ainda estava longe de ter a capacidade deles ou de perceber
o que isso significava. No momento, era só uma garotinha feliz - apesar de quieta -, e vê-la com Seth e Maddie me deu um aperto doloroso no coração.
- Eu achei que você tinha dito que ela ia fechar - sibilei para Doug.
Ele não notou o tom aborrecido da minha voz e achou que fosse surpresa. - Eu achava. Talvez ela tenha mandado a Janice fechar. Ela anda delegando cada vez mais responsabilidade
para Janice. Isso me faz temer pela segurança do meu emprego.
A gangue da livraria cumprimentou os recém-chegados com animação. Kayla se soltou da mão deles e, para meu espanto, correu para mim. - Georgina!
Eu a levantei e aquela serpente sombria e raivosa dentro de mim se acalmou um pouco. Não só Kayla tinha vindo atrás de mim como também tinha falado - uma raridade.
Abracei-a e, com ela nos braços, de repente parecia que tudo estava certo no mundo.
- Você tem uma fã, Kincaid - riu Doug. Ele piscou para ela. Ela deu um sorriso tímido em resposta, depois se virou de volta para mim e apoiou a cabeça no meu ombro.
- Ela falou - disse Maddie admirada. Maddie sabia que eu conhecia os Mortensen e não achou nada de mais eu conhecer as meninas.
- Um solilóquio total - brinquei.
- Nós estamos tomando conta dela enquanto as outras estão na peça da escola - Seth explicou.
- Esta festa está incrível - Maddie disse, olhando para toda aquela atividade em volta. - Alguém aqui sabe por que ela fez um bacharelado duplo em letão?
- Era a matéria que estava sobrando? - Beth sugeriu.
- Antropologia e estudos sobre mulheres são matérias que ficam sobrando - disse Doug. - Não letão.
- Ei! - disse Maddie, dando uma cotovelada no irmão. Ela frequentemente escrevia artigos para revistas feministas como freelance.
- Ei, não é culpa minha. Nunca vou me esquecer de quando você escolheu aquela matéria, evolução do vestuário.
- Era mais difícil do que você imagina!
O resto de nós se divertia observando os irmãos Sato e, para piorar as coisas para mim, Seth também. Acho que eu meio que esperava que ele lançasse longos olhares
furtivos na minha direção. Em vez disso, ele observava Maddie quase... carinhosamente. Como se a achasse inteligente e engraçada - o que ela era, é claro. Ele olhava
para ela do modo como qualquer cara olharia para a namorada.
- Ei - eu disse para o Doug. - Por que você não para de amolar sua irmã e vai pegar mais uma rodada para nós?
- Você é um mau exemplo para a menina - ele alertou. Mesmo assim, pegou meu copo e saiu em direção ao bar.
Ainda por cima, eu estar segurando Kayla deu a Seth e Maddie a oportunidade de serem mais carinhosos. Eles estavam de mãos dadas. Então, comecei a dar mais atenção
a Kayla, pegando novos petiscos conforme eles passavam e explicando para ela o que era quiche e brie. Quando Doug voltou com minha bebida, virei tudo um tanto rapidamente,
ainda ciente do fato de que estava segurando uma criança. Quando terminei o terceiro, percebi que estava na hora de devolvê-la. Maddie pegou a mão dela e levou-a
para ver o viveiro de carpas do outro lado do jardim.
Isso me deixou sozinha com os outros e, por causa do álcool, do carisma de súcubo ou só por vontade de esnobar Maddie, comecei a me reanimar. Brincava e falava com
todo mundo, certificando-me de que todos estivessem incluídos na conversa. Vi todos eles se animando, envolvidos pela aura de descontração e alegria criada por mim.
Talvez eu tivesse motivos ocultos, mas, apesar disso, eu realmente estava me divertindo. Já fazia um tempinho que eu não participava de um acontecimento social divertido
e tranquilo.
Quando Maddie voltou, porém, decidi que estava na hora de buscar minha quarta bebida. Atravessei o jardim graciosa, apesar do álcool. Enquanto esperava na fila,
o cara atrás de mim puxou conversa.
- Já vi você em algum lugar.
Olhei para ele. Era alto, trinta e muitos anos, cabelo castanho avermelhado. Dei um sorriso convidativo: - Essa é uma péssima cantada.
- Não, estou falando sério. - Ele franziu o cenho. - No jornal... Você participou de um leilão beneficente de solteiros?
- Meu Deus. Você está mesmo me reconhecendo. - Por meio de uns arranjos de Hugh, eu tinha participado de um leilão beneficente de solteiros no último mês de dezembro.
Acabei sendo leiloada por uma quantia obscena de dinheiro e fui parar no jornal.
- Se eu bem me lembro, você ajudou muito aquela instituição de caridade.
- O que posso dizer? Adoro crianças.
Chegou a nossa vez e cada um ganhou uma bebida nova. Saindo de lado, continuamos nossa conversa. - Suponho - ele disse - que eu não teria de pagar aquilo tudo por
um encontro?
- Você está me convidando para sair?
- Vendo você em pessoa? Sim. Agora eu entendo o preço.
- Uau, você não perde tempo com formalidades.
Ele deu de ombros. - Não tenho tempo para isso. Eu trabalho demais.
Ah. Um daqueles caras. Eu não tinha o poder de Hugh para ver almas, mas alguma coisa me dizia que eu não ia conseguir uma dose muito grande de energia com aquele
ali. É claro que, naquele momento, isso não tinha importância. Eu estava bêbada, angustiada e um cara não respeitável parecia ser exatamente do que eu precisava
naquela hora, apesar de o ambiente não ser nada adequado. Na verdade, o fato de ser inapropriado contribuía.
- Não, não tanto assim. Mas, para dizer a verdade, eu também ando muito ocupada. Não gosto de perder tempo com uma coisa que vai acabar não dando em nada. Sou do
tipo que gosta de experimentar antes de comprar.
Ele me observou atentamente, com uma cara séria. - O que exatamente você tem em mente?
Inclinei a cabeça em direção à casa. - Deve haver um banheiro ali.
Como seria de se esperar, ele não se fez de rogado. A casa estava aberta para quem precisasse entrar lá, e nós encontramos garçons entrando e saindo enquanto procurávamos
um dos muitos banheiros da casa. Finalmente acabamos em um pequeno, no segundo andar, adjacente a um quarto de hóspedes. Não parecia ser muito usado e, logo que
fechamos a porta, começamos a nos agarrar.
Ele havia me contado no caminho que seu nome era Wes e que tinha algum tipo de cargo corporativo em um banco no centro. Não sei por que estava tentando me impressionar,
visto eu já ter facilitado bastante para ele, mas gostei do pequeno esforço, de qualquer modo. Minha maior preocupação era a relação dele com a família, mas acabei
descobrindo que ele era amigo de um amigo de um sócio, então não precisava me preocupar com a possibilidade de Casey acabar descobrindo.
Ele tirou minha saia quase de imediato, depois desabotoou rapidamente a blusa, arrancando um botão que escorregou para o chão, perdido para sempre. Ele não tirou
propriamente a blusa, só a deixou aberta, e começou a passar as mãos pelo meu corpo, enrolando o sutiã de renda preta e a calcinha combinando.
- Meu Deus - ele resfolegou. - Você vale mais do que o preço daquele leilão.
- Não sou garota de programa - retruquei, irritada por algum motivo que não podia compreender totalmente. - E vamos logo. Meus amigos estão me esperando.
Ele ficou um pouco surpreso por eu não estar tentando agradar, mas não reclamou. As calças e a cueca dele foram as próximas a serem tiradas, ele agarrou meu quadril,
posicionando-me de forma que eu sentasse na ponta da bancada, com meu corpo dobrado e minha cabeça e meu ombro contra o espelho. A bancada e a altura dele se alinharam
perfeitamente, e, um momento depois, ele estava dentro de mim, nem bruto nem delicado, uma coisa intermediária. Estava um pouco chato, na verdade, como se ele não
conseguisse se decidir e tomar uma atitude.
Mas quando ele agarrou minhas canelas e colocou minhas pernas para cima, o ritmo foi aumentando, e eu vi o suor escorrer na testa dele. A energia vital se infiltrando
em mim era moderada, como todo o resto dessa escapada, mas, comparada à do Dante, era um tanto significativa. Essa energia compensou o resto e, quando ele gozou
com uma espécie de grunhido primitivo, a explosão de vida escorreu para dentro de mim em sua totalidade. Como finos raios de luz, ela correu por meu corpo me revigorando
e fortalecendo.
Ele cambaleou para trás e eu saltei para fora da bancada para me vestir rapidamente. - Uau - ele ofegou. - Isso foi...
- Não diga nada sobre o dinheiro - avisei. - Principalmente porque você não pagou nada.
Ele ficou quieto e sorriu. Dei um beijo rápido no rosto dele e fui em direção à porta. - Obrigada - eu disse. - Foi ótimo.
Ele estava em busca da cueca. - Você quer sair um dia desses?
- Não.
Deixei-o se vestindo, fechei discretamente a porta quando saí, mas antes me lembrei de levar minha bebida comigo. Não tinha ninguém no andar de cima, então nosso
encontro havia passado despercebido - ou pelo menos eu achava. Quando estava acabando de descer a escada, quase dei um encontrão com Seth.
- Meu Deus - ele disse, dando uma olhada em mim. - Você realmente fez isso?
- Fiz o quê? - perguntei melosa.
- Você sabe o quê. Você está com aquele... aquele brilho. Isso e um botão a menos na blusa.
Olhei para baixo em direção à falha reveladora na blusa e transformei-a para deixá-la como estava antes. - Pronto. Parece nova.
Ele balançou a cabeça, com a voz baixa para que não fôssemos ouvidos. - Não acreditei que você fosse realmente fazer isso. Vi você se afastando com ele e pensei
“Não, ela não faria isso. Não aqui”. Então vim para cá e...
- Você o quê? Veio tentar me impedir? - Não resisti e dei uma risada incrédula. - Seth, o que eu faço ou deixo de fazer não é da sua conta.
- E Dante? Você o traiu.
- Eu traio todos os meus namorados. Você se esqueceu? É isso o que eu faço.
- Você não estava precisando de uma dose de energia. Disso eu sei.
- Não, mas eu queria a dose de energia. O que foi? Você está com ciúme?
- O que aconteceu com você? - ele perguntou, fugindo da minha pergunta. - Como você mudou tanto? Você é melhor do que isso.
- Eu sempre fui assim. Você só estava deslumbrado demais para perceber.
Virei-me e fui embora em direção a nossos amigos, certificando-me de dar um jeito em minha aparência nos mínimos detalhes enquanto andava. O álcool àquela altura
estava realmente fazendo efeito, mas eu tinha certeza de que ainda conseguia andar sem parecer estar obviamente bêbada. Quando cheguei ao grupo, Kayla fez um gesto
para que eu a pegasse no colo novamente. Fiquei um pouco hesitante, mas ela foi tão insistente que entreguei meu copo para Doug e levantei-a novamente em meus braços.
Felizmente, não caí.
Ela me examinou com aqueles grandes olhos azuis e eu me perguntei o que ela sentia. Algo no olhar dela me afetou de um modo que a censura de Seth não tinha conseguido
atingir. Senti-me mal pelo que havia feito. Suja. Barata.
- Ela gosta mesmo de você - Maddie disse. - E você é ótima com ela também. Você deveria ter filhos.
Passei minha mão pelo cabelo fino de Kayla, recordando os sonhos que Nyx havia me enviado enquanto roubava minha energia. Todos mostravam um futuro impossível, eu
com uma filha e um marido. - Não posso - eu disse. - Doug ia ser péssimo para pagar pensão.
- Ah, pare com isso - ele retorquiu simpático. Acho que ele, àquela altura, já havia bebido tanto quanto eu.
Seth voltou nesse momento e tocou o braço de Maddie, com uma expressão austera. - A gente precisa ir embora. Terry e os outros vão voltar e Kayla provavelmente já
está ficando cansada.
A expressão da Maddie murchou um pouco. - Já? - Era a primeira vez que eu via sinais de nebulosidade no relacionamento idílico deles.
- Precisamos levá-la de volta - Seth reiterou delicadamente. - E eu preciso escrever um capítulo.
Ela revirou os olhos. - Agora a verdade veio à tona.
Interessante. Maddie tinha de aguentar as mesmas coisas que eu.
- Fique - Doug lhe disse. - Dou carona para você.
- Sim, e eu vou confiar em você na direção, nesse estado.
- Então você dirige e leva a Kincaid e eu para casa, e o Mortensen pode ir agora.
Finalmente eles decidiram que era uma boa ideia. Quando Seth e Kayla estavam saindo, de repente Maddie deu um pulo.
- Oh! Espere. Você precisa dar o presente da Georgina.
Eu pestanejei. - Presente?
A expressão de Seth assumiu um ar quase - quase - travesso, apesar de ainda estar incomodado com o que tinha acontecido na casa. - Ah, sim. Eu acabei de receber
uma caixa com as primeiras provas do próximo livro de Cady e O’Neill e achei que você talvez quisesse um.
- Eu... - eu parei, sem saber o que dizer. Maddie riu.
- Você foi o centro das atenções a noite inteira e isso faz você ficar sem saber o que dizer?
- Ei, não é assim tão fácil. Quer dizer... é Cady e O’Neill. Você sabe o que eu sinto em relação a eles. Eu já havia me acostumado com a ideia de que só leria o
próximo volume em outubro. Se eu receber um agora, meu universo vai sair dos trilhos.
- Então você não quer? - perguntou Seth.
- Quero. Só dá uma impressão... não sei. Como se eu estivesse trapaceando.
- Eles estão no carro - provocou Maddie com uma voz cantarolante. - Tem certeza de que não quer um?
Olhei para o sorriso de Seth e alguma coisa estranha se passou entre nós. Eu mal podia acreditar que alguns minutos antes estávamos brigando dentro da casa. Os olhares
que trocamos, o modo como me senti... foi quase como costumávamos ser. Virei-me rapidamente.
- Sim - suspirei. - É claro que eu quero.
Seth se despediu do resto do pessoal da livraria e tentou achar Casey, mas ela estava cercada por uma multidão de parentes. Desistindo, ele me conduziu para fora
do jardim e até onde tinha estacionado o carro, a mais ou menos um quarteirão. Kayla ainda estava nos meus braços. Nenhum de nós disse nada, e foi melhor assim,
porque meus sentimentos estavam confusos. Todas as interações entre nós depois do rompimento tinham sido irritadas ou extremamente tensas. Apesar disso, nesses últimos
momentos, as coisas quase tinham ficado descontraídas de novo. Seria possível para nós um dia deixar essa fase para trás? O sofrimento pelo qual eu passara poderia
realmente se amenizar tão rapidamente?
Ele destrancou o carro e pegou o livro para mim. Torci para não ficar boquiaberta como uma garotinha quando o vi. A noite dos tolos. Na capa havia o horizonte com
a silhueta de Washington, D.C., borrada como uma pintura de Renoir e coberta com brim preto. Havia todos os tipos de aviso quanto a ser uma prova e não estar à venda,
mas não dei atenção. Não queria vender nada. Queria ler. Agora.
Quando desgrudei os olhos da capa, Seth olhava para mim e achava graça. - Não acredito que você tenha ficado tão animada.
- Por que não ficaria? E por que você está surpreso? Muita gente adora seus livros.
Ele balançou a cabeça. - Sim... Mas ainda é surreal pensar que posso escrever algo, criar algo, que afeta as pessoas tão fortemente a ponto de elas desenvolverem
um envolvimento emocional com o que tirei de dentro da minha cabeça. E constatar que alguém que conheço pessoalmente... saber que afeta você assim... Bem, como eu
disse, é surreal.
O olhar doce e sincero estava me dando um frio na barriga, então voltei apressada a olhar para a capa. Quase desejei que voltássemos a brigar novamente. - Seth...
Por que... Por que você está fazendo isso?
- Dando o livro? - ele estava perplexo.
- Não, quero dizer... sendo bonzinho. E se preocupando comigo lá na festa.
- Você não acha que normalmente eu sou bonzinho?
Voltei a olhar para cima e suspirei. - Você sabe o que eu estou querendo dizer. Nós estamos nos evitando desde o ano-novo e nas vezes em que nos encontramos foi
um desastre. Ainda assim, você me trouxe isto... Eu simplesmente não entendo. Foi ideia da Maddie?
Ele ficou olhando para mim durante um tempão ou pelo menos essa foi a sensação que eu tive. Um frio percorreu minha espinha e, por um segundo, senti-me desorientada,
como se estivesse no tempo atual e em outro, revivendo o mesmo momento uma vez após a outra.
- Não. Fui eu, porque o ódio não deve durar para sempre - ele disse por fim, com uma voz gentil. - Porque, no fim de tudo, é preciso perdoar. Não dá para só parar
de querer bem ou... - ele não terminou a frase. - Acho que nós sempre vamos ter uma ligação, para onde quer que formos, ou o que quer que façamos. E, se for assim,
eu gostaria que fôssemos amigos.
Pela segunda vez naquela noite, perdi a fala. Havia uma centena de coisas que poderiam ter sido uma boa resposta. Dizer que eu concordava. Dizer que o perdoava.
Dizer que eu também gostaria que nós fôssemos amigos. Ainda assim, não consegui juntar as palavras e não tive tempo de tentar descobrir exatamente o motivo, porque
Kayla de repente se sacudiu nos meus braços, acordando alarmada, com os olhos arregalados.
- Ei - uma voz nos chamou. Nós nos viramos.
Dante estava a cerca de meio quarteirão e andando em nossa direção. A cada passo, Kayla se retraía mais com a aproximação dele. A vida em busca pelo poder e de ações
maldosas havia deixado uma mancha nele, que Kayla podia sentir, assim como podia sentir minha aura. Eu não sabia exatamente o que ela sentia, mas não era uma coisa
boa.
- Aqui - eu disse para Seth. - Segure-a para mim.
Kayla foi ansiosa para o colo dele e ele me entregou o livro logo que Dante chegou perto de nós. Dante colocou o braço à minha volta e me deu um beijo no rosto.
- Recebi sua mensagem e resolvi dar uma passada. Oi - ele disse, cumprimentando Seth.
Seth acenou com a cabeça em resposta e o frágil companheirismo que ele e eu havíamos retomado desapareceu. Ansiosa para disfarçar, recorri ao dom da conversação
que eu supostamente tinha.
- Seth estava indo embora e só veio pegar este livro para mim. - Considerei isso uma explicação. - Como foi o trabalho?
Dante continuou com o braço à minha volta como se eu fosse propriedade dele. Ele sempre havia encarado meu passado com Seth de forma desinteressada, mas acho que
o fato de eu estar tão envolvida com outra pessoa às vezes o incomodava. Os olhos dele se iluminaram na direção de Kayla por um instante. Ela estava se empenhando
tanto para ficar longe dele que estava praticamente agarrada em Seth. Mágica mortal e aptidão eram consideravelmente variáveis, mas imaginei que Dante também podia
senti-la. A sombra de um sorriso passou pelos lábios dele, depois ele voltou a atenção para mim. - Devagar, como sempre. Apareceu um casal de adolescentes chapados
querendo tirar o tarô.
- Ah, sim. O seu tipo preferido de adolescente.
- Sim. Nem perguntam o preço. Não sei nem se eles entenderam a leitura, para falar a verdade.
- Você não disse nada sobre três sapos, disse?
- Três sapos? - Seth perguntou.
- Sim. Uma vez apareceram três adolescentes que tinham tomado ácido e durante a leitura Dante disse para eles tomarem cuidado com os três sapos.
Sorrindo maliciosamente, Dante balançou a cabeça com a lembrança. - Droga. Aquilo os deixou apavorados. Você precisava ter visto quando eles saíram da loja. Estavam
praticamente rastejando, olhando para todos os lados, examinado todas as janelas e os fios de telefone. Só isso praticamente já teria valido a pena.
A imagem sempre me fazia rir. - Dessa vez, não?
- Não, esse grupo só estava lerdo e meio fora de órbita. O lado bom foi que eles me pagaram dez dólares por um pacote de Doritos que tinha ficado rodando por lá.
Adoro molecada gastando a mesada.
Dante e eu estávamos ambos nos divertindo com as maluquices dos clientes dele, mas, quando olhei, vi que Seth não estava. Um frio me fez sentir um aperto dentro
de mim e de repente pude nos ver através dos olhos dele. Ele não achava que se aproveitar de adolescentes sob efeito de drogas era engraçado, tanto pelo aspecto
monetário como pelo psicológico. Na primeira vez em que vi o Dante, na verdade, eu havia ficado horrorizada com o lado charlatão do negócio dele. Quando eu tinha
começado a aceitar aquilo? Quando tinha começado a achar engraçado?
Fiquei repentinamente envergonhada e odiei o que Seth deveria estar achando de mim. Então, fiquei irritada por me sentir daquele jeito, por permitir me sentir julgada.
Seth não tinha mais nenhum poder sobre mim. O que ele achava não tinha importância. O que restava da reaproximação entre nós se despedaçou e senti meu exterior frio
se pôr a postos. Cheguei mais perto de Dante, e a linguagem corporal de Seth demonstrava que ele havia percebido a transformação pela qual eu tinha acabado de passar.
- Bem, acho que vocês precisam ir - eu disse bruscamente.
- Sim - Seth disse incomodado. - A gente se vê por aí.
- Obrigada pelo livro.
Ele mal acenou com a cabeça e se virou para colocar Kayla na cadeirinha. Os olhos dela encontraram os meus e eu fiz tchau com a mão, mas a expressão de horror no
rosto dela não cedeu. Eu sabia que era por causa de Dante, não por minha causa, mas doeu de qualquer forma.
Dante queria ir para casa e tinha vindo mais para me dar uma carona. Àquela altura, eu estava me sentindo exausta e emocionalmente desorientada. Ir para casa me
pareceu boa ideia.Voltamos para dentro para deixar o copo e avisar Doug que eu estava indo embora. Doug deu uma olhada tão curiosa quanto a de Seth ao ver Dante,
mas não disse nada que fugisse de seu estilo jovial de sempre.
No caminho de casa, fiquei olhando pela janela distraída e passando a mão na capa do livro.
- Você estava meio amigável demais lá na festa - observou Dante.
- Hã?
- Com Mortensen. Achei que estava interrompendo alguma coisa.
- Ah. Não. Só fiquei um pouco entusiasmada por causa do livro. Você sabe que eu adoro os livros.
Chegamos a um sinal vermelho e ele olhou para a capa. - Prova? A gente podia ganhar um monte de dinheiro no eBay.
- Dante!
- Brincadeira, súcubo. Bem, mais ou menos. Se você resolver usar seus poderes de sedução com ele e arranjar mais livros, poderia começar uma atividade extra.
- Não preciso de dinheiro extra. E meus poderes não servem para nada. Está acabado. Ele e Maddie estão felizes.
- Isso não quer dizer nada. Você acha que ele não quer mais você? Você acha que ele não transaria com você, se pudesse?
- Por que você sempre pensa o pior de todo mundo?
- Porque sempre é verdade. Estou tentando evitar que você olhe para o mundo através de lentes cor-de-rosa. - Ele fez uma pausa enquanto acessávamos a via expressa
em direção à cidade.
- E ele pode querer você quanto quiser. Eu não ligo, desde que você não o queira de volta.
- Lá vem você de novo com seu ciúme. - Tentei manter o tom de brincadeira para disfarçar o efeito dessa afirmação sobre mim. - Eu achava que você não se importava
com quem mais eu dormia.
- Não me importo. Desde que você não goste mais dele do que de mim.
Ri e considerei isso como resposta, dando a entender que achava aquilo uma besteira. No entanto, enquanto voltávamos em silêncio, vi-me abraçando o livro cada vez
mais de perto.
Capítulo 10
Dante capotou logo depois do sexo naquela noite, mas eu continuei acordada. Por fim, rolei na cama, dei as costas para ele e fiquei olhando para a minha mesa de
cabeceira. Eu havia colocado o livro de Seth lá e agora a lombada estava me encarando, como se estivéssemos competindo para ver quem desviaria o olhar primeiro.
Seth havia me dado o livro de presente, possivelmente com uma oferta de paz, ainda assim, eu estava com medo, com medo de como ia me sentir se o abrisse.
Depois de dez minutos, acabei pegando o livro e me afastei rapidamente até a beirada da cama para aproveitar melhor a luminosidade da minha minúscula luz de leitura.
Encurvando-me para meu lado, respirei fundo e abri A noite dos tolos.
Primeiro havia a página com o título, depois, a dedicatória: Para minha sobrinha Brandy, que sonha com coisas grandes e vai conquistar coisas maiores ainda. Eu deveria
ter vergonha disso, mas, por um instante, imaginei que Seth poderia ter dedicado o livro a mim. Ele o havia terminado bem na época em que começamos a namorar, mas
continuou editando e fazendo mudanças até a época em que rompemos. Era presunção, supus, achar que poderia haver alguma indicação no livro sobre o tempo que eu havia
passado com Seth.
Quando virei a página, porém, fiquei curiosa. Antes do primeiro capítulo, Seth sempre colocava uma citação, algo tirado de uma fala ou talvez um verso de um poema,
que fosse relevante para o livro. Dessa vez, era uma música:
Se eu pudesse
Faria um trato com Deus
E pediria a Ele para nos fazer trocar de lugar um com o outro
“Running Up That Hill”, Kate Bush
Li a letra algumas vezes, imaginando se havia alguma coisa a mais ali ou se era eu quem queria que houvesse. Eu tinha ouvido a música fazia muito tempo, ela tinha
aquela sonoridade pop com sintetizadores, tão comum na música dos anos 1980. Não me lembrava dessa parte em particular. Por fim, quando consegui tirar os olhos dali,
avancei para a parte central do livro.
Antes de conhecer Seth, eu fazia um racionamento quando estava lendo os romances dele. Só lia cinco páginas por dia porque queria prolongar o prazer da primeira
leitura. Quando alguma coisa ficava muito boa, era fácil mergulhar nela e, sem perceber, ultrapassar esse limite. Eu devorava as páginas. Passei por essa experiência
muitas vezes em minha longa existência, e o planejamento rigoroso da leitura era uma tentativa frágil de diminuir o ritmo das coisas. Quando comecei esse livro,
porém, não tinha exatamente um plano e não demorou muito para eu perceber que parar depois de cinco páginas seria impossível.
Era sensacional. Apesar de ele ter escrito alguns romances isolados, essa série - Cady e O’Neill - era o carro-chefe dele. Em princípio, era apenas um livro de mistério,
mas Seth escrevia de uma forma maravilhosa, lírica, o que o colocava acima de todos os autores do gênero. Certamente, havia ação e uma sequência de pistas, mas os
personagens eram envolventes, sempre crescendo de forma espantosa e comovente. Seth tinha um modo de descrever os sentimentos e as reações deles com um estilo tão
real que ecoava minha vida, e fiquei com uma dor no peito. Se era por causa da arte ou pelo autor, eu não saberia dizer.
Foi só quando Dante se virou que eu percebi que estava fungando.
- Você está chorando, súcubo?
- É o livro - eu disse.
Eu tinha acabado de ler uma parte em que Cady e O’Neill estavam tendo uma conversa profunda sobre a vida, e O’Neill comentava que todas as pessoas buscavam tanto
a condenação como o perdão, todas tinham necessidade de compreender a própria existência. Eu estava chorando porque era verdade e por Seth saber que era verdade.
- Existem muitos motivos para chorar neste mundo - Dante disse em meio a um bocejo. - Não acho que um livro seja um deles.
O relógio marcava quatro da manhã naquele momento, e meus olhos estavam pesados, por causa das lágrimas e pelo sono. Coloquei o livro de lado - eu já havia lido
mais do que a metade - e apaguei a luz. Dante se moveu e colocou o braço à minha volta, apoiando o queixo no meu ombro. A respiração dele foi ficando pesada e regular
e não demorou muito para eu também cair no sono.
O telefone me acordou em uma hora inclemente da manhã. Dante tinha ido embora. Fiquei surpresa, mas, visto que ele não tinha dormido mais de três horas, não era
tão inesperado.
- Alô? - achar o telefone já havia sido suficientemente difícil, olhar a identificação, nem pensar. Uma voz agitada respondeu.
- Georgina. Aqui é o Blake.
- Blake? - Eu não conhecia nenhum Blake.
- Não vá me dizer que você já se esqueceu?
O sotaque dele me fez lembrar, apesar de o meu cérebro estar confuso por causa do sono. - Meu Deus. Desculpe. Blake. Do Exército. - Ele estar ligando não era bom
sinal. Sentei na cama. - O que foi?
- Eles vão fazer alguma coisa hoje... Eu não deveria contar para ninguém, mas estou preocupado. Não sei muita coisa, só que é algo grande.
Eu estava em pé e me movimentando agora, transformando o cabelo e as roupas enquanto andava. - Você sabe mais alguma coisa? Hora ou lugar?
- Ainda não. O Evan está cheio de segredos. Ele diz que o Anjo quer que somente o necessário seja comunicado e que não vamos saber os detalhes até o último minuto.
- Merda. - Desconfiei que o Anjo também estava tentando limitar o que eu ficava sabendo. Lisonjeiro, mas frustrante. - Tudo bem, escute, estou em Seattle, mas vou
pegar a estrada agora mesmo. Devo chegar em duas horas.
- Você não conseguirá chegar aqui em duas horas - ele disse incrédulo.
- Consigo, se não respeitar o limite de velocidade.
Havia um pouco de congestionamento na cidade, mas, depois que avancei um pouco na direção norte, o tráfego melhorou. Eu estava no contrafluxo, todo mundo tentava
chegar a Seattle. Quando vi diante de mim a estrada livre, liguei para Cedric. Sabia que ele não ia gostar da minha falta de informações, mas considerando quanto
ele tinha ficado bravo da última vez, eu precisava pelo menos tentar evitar problemas. Quem atendeu foi Kristin.
- Ele está tomando café da manhã neste instante - ela me disse. - É um momento especial para ele. Ele não gosta de ser incomodado. - Dava para perceber a ansiedade
na voz dela, eu a imaginei arrumando cuidadosamente a bandeja de café da manhã para ele.
- Bem, ele vai precisar ser incomodado, gostando ou não. - Contei o que Blake tinha dito e a resposta dela foi parecida com a minha.
- É só isso que você sabe?
- O Anjo está usando o sistema de avisar em cima da hora - eu disse contrariada. - Eu aviso quando descobrir mais alguma coisa. Só achei que Cedric deveria saber.
Ela suspirou. - Você tem razão. Obrigada. Ele vai ficar furioso. Vai perder totalmente o apetite.
Fiz o percurso em duas horas como tinha antecipado para Blake e, por um milagre, não fui parada. Blake não tinha entrado em contato comigo durante esse tempo todo,
então liguei para ele depois de passar a fronteira, enquanto comprava um café. Tinha encontrado um Starbucks e satisfeito o prazer secreto de desafiar o domínio
do Tim Hortons. Exceto pelo fato de que, quando estava com o café nas mãos, achei que um donut combinaria muito bem com ele, então atravessei a rua e fui comprar
um no Tim Hortons do outro lado.
Blake não atendeu, então tentei Evan em seguida, ele também não atendeu. Frustrada, fui até a casa de Evan e bati na porta por um tempo. Estava quase tentando subir
e entrar pela janela de trás quando o telefone tocou de novo - e, por ironia, era o próprio Evan.
- Georgina! - ele exclamou, com a voz exultante. - Onde você está? Precisamos de você aqui.
- Onde vocês estão? - perguntei.
- No terraço panorâmico - ele disse.
- Que terraço panorâmico?
- O Space Needle. Você mora aqui perto, não mora?
Quase deixei cair o telefone. - Vocês estão em Seattle?
- Estamos! - Eu podia ver aquele ar fervoroso e entusiasmado dele. - Legal, né? O Anjo queria que nós ampliássemos nossa mensagem. Então estamos aqui com umas faixas
que nós vamos desenrolar ao mesmo tempo, depois temos algumas outras surpresas para...
- Evan - supliquei, correndo para o carro. - Não façam isso. Vocês vão causar mais problemas do que imaginam.
- Esse é o objetivo! - ele deu uma risadinha. - Quanto tempo você demora para chegar aqui?
Quando contei que não estava na cidade, ele perdeu o interesse e meus apelos perderam o sentido. Logo que desliguei, liguei para Cedric, esperando que Kristin atendesse.
Em vez disso, caiu na secretária eletrônica. Por algum motivo, isso me deixou irritada.
- Cedric, é a Georgina. O Exército não vai agir aqui. Eles estão em Seattle neste momento. Espero que você finalmente acredite que eu não tenho nada a ver com os
planos idiotas deles agora! Quando Jerome descobrir, o meu traseiro vai estar na reta e, conhecendo a minha sina, ele vai achar que eu e você estamos trabalhando
juntos.
Sim, essa era uma daquelas situações sem saída. O que quer que eu fizesse, continuaria encrencada, mas, no entanto, precisava tentar amenizar os danos. Jerome tinha
um celular que ele nunca atendia e não possuía nem mesmo secretária eletrônica. Hugh era a melhor maneira de tentar entrar em contato com ele - mas ele também não
atendeu.
- Maldição! - gritei no telefone. - Ninguém mais atende a merda do telefone? - Passei um resumo rápido do que estava acontecendo e disse-lhe para avisar Jerome ou
alguma das demônias sobre os planos do culto, senão Jerome ia começar a sofrer inspeções dos superiores como já estava acontecendo com Cedric.
Depois disso, não havia nada que eu pudesse fazer além de pegar a estrada de volta para Seattle - coisa da qual eu não estava gostando nem um pouco. Felizmente,
eu estava longe do horário de pico e novamente fiz uma viagem tranquila depois de pegar a I-5. A música “Pretty Hate Machine” saindo a todo volume das caixas de
som estranhamente acalmou minha agitação. Terminei entrando naquela espécie de transe em que motoristas costumam entrar nesse tipo de estrada, com uma parte de meu
cérebro olhando para a estrada e a outra totalmente agitada se perguntando se meu alerta tinha chegado a algum demônio de Seattle a tempo de interceptar o Exército.
Eu tinha acabado de passar Everett, a uma meia hora de Seattle, quando aquilo me atingiu.
Um choque elétrico passou por meu corpo, fazendo o mundo rodar e minha visão ficar turva. Senti um calor difuso. Minhas mãos escorregaram na direção, quase me fazendo
desviar para a pista vizinha. Eu só consegui dar um tapa na luz de emergência e ir para o acostamento antes que batesse em alguém. Uma onda de náusea revirou meu
estômago, depois se acalmou, então me invadiu de novo. Engatei o ponto morto, abaixei a cabeça e apoiei-a na direção, na esperança de conseguir raciocinar. Eu tinha
um zumbido no ouvido e meu corpo inteiro tremia.
Que diabos? Eu não ficava doente. Nunca. A única coisa que podia realmente me afetar daquele jeito era beber muito ou consumir substâncias ilegais. Tive intoxicação
alimentar algumas vezes, mas havia sido uma coisa rápida e eu duvidava que o donut pudesse ter feito aquilo comigo.
Levantei um pouco a cabeça, mas o mundo continuava a balançar. Fechando os olhos, apoiei o rosto na direção e respirei fundo algumas vezes, tentando não vomitar.
Não tinha a menor ideia do que estava acontecendo, mas ia passar. Tinha de passar.
E passou - um pouco. Não sei quanto tempo fiquei daquele jeito, talvez uns quinze minutos, mas quando ousei espiar de novo, a tontura tinha diminuído. Eu ainda estava
nauseada, mas a náusea também havia diminuído. Decidindo arriscar, voltei para a I-5, ansiosa por encerrar a viagem e chegar à cidade para descobrir o que estava
errado comigo.
Consegui alcançar a cidade sem provocar um acidente e quase caí tentando subir a escada para meu apartamento. Nem me preocupei com minha mala, simplesmente deixei-a
no carro. Quando entrei em casa, fui direto para o quarto e despenquei na cama. Aubrey juntou-se a mim observando minha cara com curiosidade. Afaguei-a um pouco,
depois minha mão se soltou enquanto eu caía no sono, fraca demais para continuar a sustentá-la.
Acordei quase duas horas mais tarde, despertando com batidas na porta. Eu me sentei, aliviada ao sentir que meu estômago tinha se acalmado. O mal- -estar também
havia desaparecido. Talvez, no fim das contas, o donut estivesse estragado... mas eu ainda tinha uma sensação estranha - uma pequena suspeita persistente - de que
havia alguma coisa errada. Só que eu não tinha nenhuma pista ou evidência do que era. Ignorando-a temporariamente, fui tropeçando para a sala e abri a porta, sem
me dar o trabalho de olhar pelo visor.
Cody e Peter estavam lá, os dois com um sorriso de orelha a orelha. - O que vocês querem? - perguntei, saindo de lado para eles entrarem quando abri a porta. - Eu
estava dormindo.
- Dá para perceber, pelo cabelo - disse Peter se esparramando no meu sofá. - E o que você está fazendo dormindo? Estamos no meio do dia.
Ainda grogue, olhei para o relógio com os olhos meio fechados. Eram pouco mais de três horas. - Sim, eu sei. Não estava me sentindo bem. Estranho. De repente me
senti exausta e tonta.
Aquele sorriso não saía da cara do Cody. Ele estava sentado ao lado de Peter. - Como você está se sentindo agora?
Dei de ombros e me acomodei na minha namoradeira. - Bem, acho. Um pouco cansada, mas o pior já passou. - Aquele indefinível tem alguma coisa errada por aqui continuava
lá, no entanto.
- Você não deveria estar enfurnada em casa - Peter disse. - O dia está lindo.
- Veja esse sol todo - concordou Cody. - É como se o verão tivesse chegado mais cedo.
Eu olhei para a janela com ele. Uma luz dourada e quente se esparramava pelo chão, para a alegria de Aubrey, e, além do prédio vizinho, eu via o céu azul. Ainda
assim, não me impressionava. - A primavera mal começou. É ocasional. Provavelmente amanhã vai estar frio.
Peter balançou a cabeça. - Você acorda bem mal-humorada mesmo. - Os dois estavam tão absurdamente cheios de si que eu não conseguia imaginar por quê.
- Talvez você devesse ir lá fora - Cody disse, trocando sorrisinhos com Peter. - Nós vamos dar uma volta a pé depois. Pode fazer você ficar mais animada.
- Sim. Nada como uma tarde clara e ensolarada para alegrar velhos espíritos. - O sorriso de Peter ficou maior ainda.
Coloquei a cabeça para trás no sofá. - Tudo bem. Tudo bem. Qual é a graça? Eu não estou entendendo.
- Nada para entender - Peter disse. - A gente só acha que o dia está lindo.
- Um lindo dia ensolarado - Cody concordou.
- Vocês podem parar com isso? Já entendi. O dia está bonito. Tem sol, os pássaros estão cantando...
Parei. Senti meus olhos se arregalarem.
Olhei para os vampiros sorridentes, depois olhei para o mundo cheio de sol lá fora, e depois olhei novamente para eles. Engoli em seco. - Como - eu perguntei baixinho
- vocês estão na rua no meio do dia?
A gargalhada reprimida explodiu e os dois quase morreram de rir.
Eu estava totalmente acordada agora. - Estou falando sério! O que está acontecendo? Vocês não podem sair na luz do dia e como... Espere! Eu não senti vocês na porta.
Eu ainda continuo a não sentir vocês...
- Eu sei - Cody disse. - Não é uma loucura?
- Não! Quer dizer, sim. Mas isso não... não deveria estar acontecendo - argumentei. Eu não entendia como eles podiam achar aquilo tão divertido. Tinha alguma coisa
errada. Muito errada. Todo drama com o Exército tinha saído da minha cabeça. Aquela preocupação contínua com a qual eu havia acordado tinha virado um baita nó na
garganta, de medo. Meu coração estava aos pulos no peito, eu estava com calafrios. - Como isso é possível? O sol deveria fritar vocês.
- Nós sabemos muito bem disso - Peter disse. - Nós estávamos nos nossos caixões e então, de repente, simplesmente... acordamos. Saímos e lá estávamos nós. Passeando
no meio do dia. E sabe de uma coisa? Não quero sangue. Não estou com o menor desejo. Nem mesmo uma gota.
- E daí, vocês simplesmente decidiram ir passear por aí e aproveitar o dia? Vocês não entraram em contato com Jerome? Vocês não questionaram o fato de que alguma
coisa alterou seriamente a existência imortal de vocês?
Um ar malicioso passou pelas feições de Peter. - Não somos só nós, Georgina.
Os dois me olharam, na expectativa.
- Não olhem assim para mim - disse-lhes. - Eu sempre pude sair no sol.
- Você também não tem assinatura. Nós não podemos sentir você - Cody disse.
Fiquei olhando para eles por alguns intermináveis segundos, tentando analisar por partes o que estava acontecendo. Uma sensação inquietante começou a tomar conta
do meu estômago quando me dei conta do que eles estavam insinuando - isso porque o que eles estavam insinuando era impossível. Impensável.
- Vocês estão errados - eu disse.
Devagar e com cuidado, toquei o meu rosto. Era exatamente igual ao que estava de manhã. Minha constituição era a mesma. Minha altura era a mesma. Eu ainda era eu.
Respirei aliviada. - Ainda sou a mesma.
Os olhos de Peter deram uma verificada. - Dê um jeito no cabelo. Está uma bagunça.
Transformação é um instinto para um súcubo ou íncubo, praticamente subconsciente. É como contrair um músculo ou respirar fundo. Mal é preciso pensar, o cérebro envia
a mensagem e acontece. Então, pensei no meu cabelo, querendo que ele ficasse penteado e se ajeitasse em um rabo de cavalo. Geralmente eu sentia uma leve pontada
quando isso acontecia, resultado da queima ao consumir um pedaço da minha energia armazenada. E, é claro, sempre havia uma evidência tangível - a própria mudança
de aparência.
Dessa vez, nada aconteceu. Nenhuma pontada. Nenhum movimento do cabelo.
Peter se inclinou para a frente. - Oh, aconteceu com você! Você está igual. Nenhum de nós funciona.
- Não - eu disse fora de mim. - Não é possível.
Tentei de novo, desejando que meu cabelo mudasse - ficasse de outra cor, curto, com um penteado novo... mas não aconteceu nada. Tentei modificar minhas roupas, desejando
que o jeans e a camiseta se transformassem em um vestidinho. Ou talvez um conjunto esportivo. Tentei até fazer minhas roupas desaparecerem completamente.
Nada aconteceu.
Nada.
Por puro desespero, fiz uma coisa impensável. Tentei abrir mão do controle inconsciente que eu mantinha para conservar uma forma que não era a minha forma natural.
Abri mão de todo o controle, deixando meu corpo se transformar de novo no corpo com o qual eu havia nascido, para o qual minha essência sempre queria voltar - e
que eu lutava, muito, para esconder do mundo.
Não conseguia me transformar.
Foi como perder um braço. Até aquele momento, eu não tinha percebido quanto de mim estava ligado à transformação. Como mortal, esse poder era inimaginável. Depois
de tê-lo por um milênio e meio, ele tinha passado a fazer parte de mim, e a ausência agora era insuportável. Não precisei ver minha cara para saber que transparecia
pânico puro. Peter e Cody ainda estavam rindo.
Tive um sobressalto, incrédula. - Isso não é engraçado - eu gritei. - Precisamos falar com Jerome. Agora. Tem alguma coisa muito errada conosco.
- Ou certa - sugeriu Cody.
- Por que vocês acham isso engraçado?
- Não achamos - Peter disse calmamente. Por baixo daquela felicidade, vi uma pontinha de preocupação nos olhos dele, preocupação que ele estava claramente tentando
ignorar naquele momento. - Só estamos achando legal. Você não acha que Jerome já sabe o que está acontecendo? O que quer que seja, ele logo vai dar um jeito. Nada
que possamos mudar.
O sermão que eu estava prestes a despejar foi interrompido por outra batida na porta. Exatamente como com os vampiros, não senti a assinatura imortal. Qualquer um
poderia estar batendo na porta. No entanto, quando olhei pelo visor, vi Hugh. Mandei-o entrar, sentindo-me aliviada. Hugh ia explicar tudo. Ele sempre sabia o que
estava acontecendo, já que ele e Jerome continuamente se mantinham em contato. A segurança de Hugh e o ar característico de sabe-tudo consertariam tudo.
Em vez disso, ele estava péssimo. Abatido. Ele entrou se arrastando e se jogou onde eu estava sentada antes. Colocou os cotovelos sobre os joelhos e apoiou o queixo
com as mãos.
- Ei, Hugh - Cody disse. - Não está um lindo dia?
Ajoelhei-me no chão diante de Hugh, de forma a poder olhar direto nos olhos dele.
- Hugh, o que está acontecendo?
Ele simplesmente ficou olhando para mim, com os olhos escuros pesarosos e amargurados. Eu já tinha visto Hugh bravo, exultante e exasperado ao longo dos anos, mas
nunca deprimido. Eu teria ficado preocupada, não fosse pelo fato de que nós tínhamos algumas outras coisas com as quais nos preocupar além dos sentimentos dele no
momento.
- Hugh! Nós todos perdemos os nossos... - franzi o cenho, sem saber como chamar. Poderes? Isso soava muito Liga da Justiça. - ... as nossas habilidades.
- Eu sei - disse ele, por fim. - Eu também.
- E você lá tem poderes? - Cody perguntou, aparentemente sem sequer pensar na comparação com os super-heróis.
- Tarefas múltiplas? - Peter provocou. - A habilidade para equilibrar as contas e organizar a papelada?
Lancei um rápido olhar fulminante por sobre meu ombro e depois olhei para Cody e expliquei. - Duendes veem almas, a energia vital de todo mundo. Eles podem dizer
quais são as almas boas e as más.
- Isso eu sei - Cody falou. - Só achei que tivesse... mais.
Hugh suspirou. - Você não pode imaginar, Georgina. Não ter essa habilidade agora... é como perder um dos sentidos. Ou virar daltônico.
- Eu sei exatamente o que você está querendo dizer - eu disse a ele.
- Não mesmo. Quando não é possível ver energia e almas perto dos seres humanos fica tudo tão... vazio. Sem graça.
- Por que aconteceu isso? - perguntei delicadamente, fazendo o possível para conter meu medo galopante. Internamente, havia ainda um turbilhão. Meu poder de me transformar
tinha desaparecido. Minha assinatura imortal tinha desaparecido. As características que me definiam como Georgina Kincaid, súcubo, tinham desaparecido. - O que está
havendo?
O olhar de Hugh continuava triste e perdido, mas, por fim, ele olhou para mim e estudou minhas feições, como se tivesse acabado de notar que eu estava na frente
dele. - Nós recebemos os vários dons da imortalidade por termos vendido nossa alma - ele começou devagar. - Aquelas habilidades especiais e os efeitos colaterais
delas vêm do nosso contrato com o inferno e são filtradas através dos nossos arquidemônios. É o que permite que eles saibam onde estamos. Nós estamos... conectados...
- Ele franziu o cenho, tentando achar um jeito de explicar melhor o sistema por meio do qual o inferno administrava seus servidores.
- Eu sei do que você está falando - eu disse. Cedric sabia quando eu entrava no território dele simplesmente porque podia me sentir quando estava suficientemente
perto. Jerome, como era meu supervisor, sabia onde eu estava o tempo todo e se estava ferida. Ele sempre estava atento a mim, sempre ligado a mim.
- Nossos... poderes... são transmitidos do inferno, por meio de Jerome, para nós.
- É isso - Hugh disse. Esperei por mais, mas parecia que isso era tudo o que ele tinha a dizer.
- Isso o quê? Por que nossas habilidades desapareceram?
Um pouco da exasperação habitual de Hugh faiscou nos olhos dele.
- Porque Jerome desapareceu.
- Jerome some o tempo todo - Peter disse. - Nós nunca conseguimos encontrá-lo. Não estamos conseguindo encontrá-lo agora.
Hugh balançou a cabeça. - Você não está entendendo. Quando eu digo sumiu, não estou querendo dizer se escondendo. Ele não está se escondendo de nós em um bar. Quero
dizer sumiu. Escafedeu-se. Desapareceu. Pode, para todos os efeitos, nem mais existir. Ninguém sabe onde ele está. Nem o nosso lado nem o outro. Ele desapareceu.
Um silêncio mortal ficou nos rondando pelo que pareceu uma eternidade. E isso queria dizer alguma coisa.
A voz de Peter era quase inaudível quando ele finalmente disse:
- E enquanto ele estiver desaparecido...
- ... nossas habilidades também continuarão desaparecidas - terminei.
Capítulo 11
Cody fez a pergunta óbvia.
- Então... se ele desapareceu... como foi que isso aconteceu?
Hugh esfregou os olhos. - Ele foi conjurado.
- Merda - Peter disse. A diversão com se esbaldar no sol desapareceu. Ele ficou tão consternado quanto Hugh e eu. - Isso muda tudo.
Eu olhava de um para o outro, sentindo-me tão ingênua quanto Cody.
- O que exatamente isso significa? Já ouvi falar sobre conjuração, mas é só. Não sei nada específico. Não conheço ninguém com quem isso tenha acontecido.
Peter balançou a cabeça. - Eu também não conheço, mas sei o que é. Em essência, um humano poderoso chama um demônio e o faz se comprometer a se submeter à sua vontade.
Esse humano pode então aprisionar e controlar o demônio.
- Como o Dr. Fausto de Marlowe.
Nós todos nos viramos para Cody, encarando-o. Citar referências literárias sofisticadas era coisa minha, não dele.
- O que foi? - ele perguntou, parecendo incomodado com nosso olhar examinador. - Tive de ler essa peça na escola.
Olhei novamente para Peter. - Tudo bem, nós somos imortais e não podemos nem sequer arranhar um demônio. Como pode um humano controlar um?
- Humanos que usam magia detêm um tipo de poder diferente do poder dos imortais. Além disso, pelo que sei, quem conjura demônios geralmente tem ajuda - explicou
Peter. Ele olhou para Hugh, buscando uma confirmação.
- De outro demônio - o duende disse.
- Uau. Voltando à parte de controlar demônios. O que exatamente esse humano está obrigando Jerome a fazer? - Cody perguntou.
- Provavelmente, nada - Hugh disse. - Senão a esta altura alguém já o teria encontrado. Eu acho que ele está apenas sendo ocultado.
Cody franziu a testa. - Por quê? Se alguém tiver um demônio de estimação, por que não usá-lo? Do contrário, qual é o objetivo?
Agora tudo se encaixava. - Tirá-lo de cena - eu disse devagar. - É isso. A última peça em toda essa intriga demoníaca. Era esse o propósito de todo o desvio de atenção.
- Certo, Cedric se livra de Jerome e de repente há uma vaga aberta em Seattle para um novo arquidemônio. E se Jerome não voltar logo, eles vão arranjar um arquidemônio
novo e restabelecer a hierarquia aqui. - Hugh apontou para todos nós. - O status quo vai ser retomado.
- Vamos ficar com “quando” ele voltar e não “se” - eu disse. - E não acho que Cedric esteja por trás disso.
- É claro que Cedric está por trás disso - Hugh disse. - Eles andaram brigando por território, não andaram? Você deveria saber disso melhor do que ninguém.
Balancei a cabeça, recordando a aflição de Cedric e o ar complacente de Nanette. - Não... Acho que estão aprontando com o Cedric. Se você quer saber minha opinião,
Nanette é quem está por trás disso. - Fiz uma rápida recapitulação sobre o que tinha observado depois de vê-la tanto com Cedric quanto com Jerome.
Hugh arqueou a sobrancelha. - A Nanette de Portland? Ela é gostosona, isso eu devo admitir, mas não é tão forte.
- Mais um motivo para armar para Jerome e Cedric. Ela andava preocupada com a possibilidade de eles a arrastarem para o meio da briga por território. Além disso,
se ela juntou o poder dela com um humano capaz de fazer uma conjuração...
- Sim - ele admitiu. - Talvez ela pudesse fazer isso... mas não quer dizer que tenha feito. Eu ainda aposto no Cedric.
- Ela não ia ter problemas por causa disso? - Cody perguntou.
- Só se for pega - Peter disse.
Suspirei. - E, nesse meio-tempo, isso não é bom para Jerome.
- Fico feliz por ver que o seu poder de afirmar obviedades não desapareceu com o de transformação - observou Hugh.
Fuzilei-o com o olhar. - Estou falando da reputação dele. Nanette me disse que muita gente anda de olho em Jerome por causa de tudo o que aconteceu por aqui, principalmente
por ele ter deixado um nefilim escapar. Acham que ele não é capaz de manter o controle. Mesmo se ele aparecer amanhã, dá para imaginar que ser conjurado não vai
causar boa impressão, para começar.
- Não vai - concordou Hugh. - De fato, esse é outro motivo para eu ter vindo aqui. Um punhado de demônios vai fazer uma reunião hoje para conversar sobre substituí-lo.
Na sala dos fundos, no Cellar, às sete.
- Uau, eles agem rápido.
- Não é nada oficial. Quando a notícia sobre o desaparecimento de Jerome se espalhou, todos os demônios que faziam armações atrás de poder vieram para cá assim -
Hugh estalou os dedos. Precisei me conter para não observar que todos os demônios fazerem manobras atrás de poder era uma regra geral. - Eles estão aqui mais para
chamar a atenção, mostrar como são durões, tentar se aproximar de Grace e Mei. Eles podem tentar trocar algumas ideias conosco, na verdade.
- Por quê? Ninguém vai pedir nossa opinião para nada - Peter disse. Ele olhou para nós. - Vai?
- Não, mas em algum momento alguém da Administração vai vir aqui para analisar a situação e vai falar conosco quando a avaliação estiver sendo feita. Tudo tem um
papel. Os que querem o cargo vão se pavonear, mostrar como poderiam manter o lugar na linha e fazer suas ofertas.
- Nanette estará nessa reunião? - perguntei desconfiada.
- Sim - disse Hugh, lançando um olhar para mim. - E Cedric também.
Olhei de volta para ele. - Eu estou falando que não é o Cedric. Tenho certeza.
- O quê? Você passa uma semana comendo donuts com ele e agora vocês são melhores amigos?
- Não, mas eu o conheço melhor do que você. E acho que entendo Nanette melhor do que você também - revidei.
- Então, gente... - Cody começou, como quem queria perguntar alguma coisa.
- Você está dormindo com o Cedric? - Hugh perguntou. - Você anda jogando dos dois lados agora?
- Não!
- Está parecendo.
- Gente - Cody repetiu.
- Olhe - eu disse -, você só quer acreditar que Nanette é inocente porque acha que ela é gostosona.
- Ela é gostosona. Para um demônio.
- Gente! - Cody gritou. Nós olhamos para ele. - E nós?
- E nós? - perguntei.
- O que nós somos? - Cody tinha uma feição aflita e preocupada. Como Peter, ele já não estava mais tão animado com a liberdade recém-conquistada. - Nós somos humanos?
Comecei a abrir a boca para responder e depois fiquei quieta. Eu sinceramente não sabia. Hugh olhou para mim e deu de ombros.
- Não exatamente - Peter disse. - Acho que nós estamos em uma espécie de... estase.* Não somos nem mortais nem imortais.
- A gente precisa ser um ou outro - argumentou Hugh. - Não há um equivalente do purgatório para mortalidade.
Peter balançou os ombros. - O inferno ainda tem a posse de nossas almas. Isso não vai mudar, não importa quem seja nosso arquidemônio. Removê-lo da equação nos priva
das habilidades que obtivemos com a imortalidade, mas é temporário.
- Mas isso nos priva também da imortalidade? - Cody perguntou. - Nós podemos morrer?
Silêncio.
- Merda - disse Hugh.
- Eu acho... - Peter mordeu o lábio, tive a sensação de que ele não sabia mais muita coisa sobre o assunto. - Eu não sei! Isso nunca aconteceu comigo! Talvez nós
sejamos humanos. Talvez possamos ficar doentes. Talvez possamos perder uma briga. Talvez Georgina fique menstruada. Eu não sei!
- Ei - eu disse, empertigando-me. - O que você está querendo dizer com...
- Parem, todos vocês - exclamou Hugh. - Não vamos conseguir descobrir nada disso no momento. Vamos à reunião e lá a gente descobre. Grace e Mei estão tentando administrar
as coisas por enquanto, elas vão saber o que está acontecendo. Não adianta entrar em pânico agora.
Ficamos sentados lá, e eu sabia que, apesar das palavras dele, todos estávamos entrando em pânico. Meu estômago revirava, mas dessa vez não era uma reação ao rompimento
de meu laço com o inferno. Era por puro terror. Quando as coisas iam mal na minha vida - principalmente depois do rompimento com Seth -, havia momentos em que eu
odiava a imortalidade. A morte era uma coisa tentadora. Eu, para ser sincera, não conseguia entender como poderia suportar os séculos que estavam por vir e invejava
a vida finita dos humanos. Mas agora? Diante da ideia de que poderia de fato morrer? De repente, desesperada, eu queria me agarrar à minha imortalidade usando cada
pedacinho da minha força. A morte era devastadora, escura e assustadora. Todos os perigos do mundo baixaram em mim de uma vez, todas as coisas que até então eu pudera
ignorar. Acidentes de carro. Ser eletrocutada. Gripe aviária. O mundo não era mais um lugar seguro.
Se os vampiros sentiam medos como os meus, aparentemente eles tinham decidido que isso não ia atrapalhar seus últimos dias como homens livres. Eles se levantaram
ao mesmo tempo e se movimentaram para partir.
- Bem, se Jerome vai ser substituído, conosco ou sem nós, não faz sentido ficar sentado se lamentando - Peter disse.
- Nós fomos desconectados sem aviso - comentei. - Podemos ser reconectados ao circuito do inferno tão de repente quanto, sabe? Vocês não temem ser apanhados no sol?
- Eles não vão tomar nenhuma decisão nas próximas cinco horas - Peter respondeu de forma impulsiva... impulsiva demais, eu achei.
Ele fez uma pausa, olhando em direção à minha janela e ao céu azul para além dela. Ali, em seus olhos escuros, vi uma pontinha de nostalgia. Percebi então como ele
devia ter sentido falta do sol nos quase últimos mil anos. Como o resto de nós, ele havia vendido a alma por vontade própria em troca de imortalidade. Com isso,
tinha conseguido força e velocidade sobre-humanas, em troca de depender de sangue, abdicar da luz do sol e ser disseminador de medos e pesadelos. Eu, é claro, às
vezes me arrependia de meu trato com o demônio; sem dúvida, ele também. Talvez, apesar do comportamento descuidado e da confiança excessiva quanto ao sol, ele na
verdade estivesse ciente do risco de ser torrado - e achasse que valia a pena, depois de todo esse tempo.
Peter e Cody foram embora, deixando para trás Hugh, ainda com ar desolado, e eu. Toquei com delicadeza no ombro do duende. - Tenho certeza de que vai dar tudo certo.
Ele me lançou um olhar descrente. - Mesmo?
Sorri, suave. - Não, não muito. Só estou tentando fazer você se sentir melhor. Nunca tinha percebido quanto você gosta da sua... como se chama? Visão de duende?
Isso acabou por fazê-lo sorrir. - Você achava que eu só ficava cuidando da papelada?
- Não, ninguém mais usa papel. É tudo eletrônico.
- Não no inferno - ele disse, levantando-se. - Eles meio que gostam de destruir florestas.
Fui com ele até a porta. - Bem, fique por aí, vejo você à noite.
- O que você vai fazer com a sua liberdade recém-adquirida? - ele perguntou, com a mão na maçaneta.
Franzi a testa. - O que você está querendo dizer? Essa coisa toda para mim e para você não é igual ao que é para os vampiros.
O olhar que Hugh me lançou era de quem estava se divertindo e ele foi quase compassivo. - Georgina, a transformação e suas outras habilidades são alimentadas com
vida humana. Se você não pode fazer essas coisas, você não precisa da energia, assim como Cody e Peter não necessitam de sangue. Você não sente? É provável que todo
o sistema tenha sido interrompido.
Gelei e quase parei de respirar por um instante - o que não era muito aconselhável no estado em que eu estava. - O quê?
Ele riu de novo. - Como você não pensou nisso?
- Bem... porque eu estava mais concentrada no fato de toda a estrutura da hierarquia demoníaca de Seattle estar desmoronando. Nisso e na possibilidade de morrermos.
- Por dentro, minha cabeça repetia as palavras dele sem parar, como um disco riscado: Você não precisa da energia, você não precisa da energia... Balancei a cabeça
- Não acredito. É impossível. - Eu tinha desejado isso por tanto tempo, a possibilidade de ficar com alguém sem os desastrosos efeitos colaterais. Era uma daquelas
coisas que eu desejava, mas, no fundo, sabia que nunca aconteceria. Como ganhar na loteria. Ou, humm, viver para sempre.
- Assim como um vampiro sair ao sol - Hugh disse. - Mas aqui estamos. - Ele se inclinou e me deu um beijo no rosto. - Pense nisso. Esta é uma oportunidade que só
aparece uma vez na vida, ou melhor, eternidade.
Ele estava indo embora quando uma coisa que eu quase havia esquecido me voltou à cabeça. - Hugh? Você recebeu a mensagem que eu deixei hoje? Sobre os satanistas
canadenses? - Depois de todas essas outras coisas, uns cartazes no Space Needle de repente pareciam não ter nenhuma importância.
- Sim - ele disse com uma careta. - Eles deram um show lá, assustaram as pessoas. Saíram no noticiário e foram presos. Não sei o que vai acontecer agora. O fato
de ser internacional torna as coisas interessantes.
- Você conseguiu avisar o Jerome?
- Não, não consegui falar com ele... Não seria surpreendente que isso tivesse sido perto da hora da conjuração. Acabei conseguindo falar com Mei e acho que ela fez
alguma coisa para minimizar quando a mídia descobriu. Ela achou que ninguém na Administração ia dar atenção a isso.
- Bem, nós somos o centro das atenções agora.
A expressão de Hugh ficou séria quando ele balançou a cabeça para concordar. - Isso é o mínimo que se pode dizer. Divirta-se, querida.
Ele foi embora e eu fiquei lá, olhando para a porta.
Eu ainda respirava com dificuldade, meu coração pulava no meu peito. Precisava me acalmar e raciocinar. Afinal, o que poderia acontecer se eu tivesse um ataque de
pânico? Eu ia ter uma parada cardíaca ou alguma coisa do tipo? Qualquer coisa era possível.
Deixei-me escorregar em direção ao chão, abracei a mim mesma e me concentrei em diminuir o ritmo da minha respiração. Isso tudo era surreal demais. Eu não conseguia
processar. Não era possível que eu pudesse ser mortal. Não era possível que eu pudesse morrer. Não era possível que eu pudesse tocar um homem sem causar-lhe mal.
Eu ficava repetindo essas coisas. Nesse meio-tempo, Aubrey veio andando até mim e esfregou a cabeça na minha perna. Estiquei o braço e toquei as costas dela, praticamente
inconsciente de meus atos.
O que eu iria fazer? Tínhamos cinco horas antes da reunião, o que, para mim, era tempo demais. Precisava de respostas, agora. Não conseguia viver com essa incerteza.
Meu coração começou a disparar de novo. Merda. Eu realmente ia acabar tendo um ataque cardíaco. Hugh, durante o dia, era médico; talvez eu devesse ligar para perguntar
sobre minha pressão sanguínea.
Ligar...
Tive uma ideia e levantei-me para ir procurar minha bolsa. Achei meu celular e telefonei para o Dante. Se alguém poderia saber alguma coisa sobre isso, era ele.
Ele provavelmente não saberia os detalhes sobre como isso afetava minha situação infernal, mas devia saber alguma coisa sobre conjuração de demônios. Magia negra
era a especialidade dele. Além disso, eu queria mais do que só a opinião técnica dele. De repente, eu só queria... bem, ser reconfortada. Queria vê-lo. Queria que
ele me segurasse e me tranquilizasse. Precisava que ele me dissesse que ia dar tudo certo.
Mas o telefone tocou, tocou, sem resposta, direcionou-me para a afável mensagem da secretária eletrônica: “Fale”.
Esse plano já era. Desliguei e me apoiei na bancada. Lentamente, de forma gradual, senti meu cérebro acordar, tentando achar um resto de bom-senso em meio a meu
medo. Não era da minha natureza ser passiva. Tinha de fazer alguma coisa. Não podia esperar até mais tarde para obter respostas.
- Vamos pesquisar isso nós mesmas, Aubrey - eu disse. O humano comum não sabia nada sobre a verdadeira natureza do céu e do inferno e sobre como nós funcionávamos.
Mesmo assim, de vez em quando, procurando com afinco nos escritos arcanos, era possível encontrar um fragmento de verdade que algum mortal capacitado tinha descoberto.
Noventa e nove por cento do que eu ia encontrar seria impreciso, mas uma busca na internet poderia revelar um grão de verdade sobre a conjuração de demônios. Era
só uma tentativa, mas era o melhor que eu podia fazer naquele momento.
Só que, quando fui pegar meu laptop, descobri um fato infeliz: ele estava na livraria. Dei um gemido. E agora? Outro plano derrubado.
Sua idiota, uma voz dentro de mim castigou-me, você está a alguns quarteirões de distância. Mexa esse traseiro e vá buscar.
Essa lógica fazia todo o sentido, é claro. Até eu olhar pela janela.
O mesmo medo de antes retornou. Os carros passando pela Avenida Queen Anne pareciam andar rápido demais, o vento parecia balançar as árvores com força demais, as
pessoas na calçada eram perigosas demais. Como eu ia sair? Como iria me pôr em risco? Melhor ficar ali, onde era seguro.
No entanto... como continuar esperando? Ia enlouquecer se ficasse sentada ali. Olhei para Aubrey e vi que ela me observava com seus olhos verdes. Ela estava com
aquele olhar infinitamente sensato que os gatos às vezes têm. Não era exatamente encorajador, mas me acalmou um pouco.
Tudo bem. Eu podia fazer isso.
Achei meu casaco e comecei a transformar o cabelo bagunçado em um penteado caprichado - só que, é claro, imediatamente me dei conta de que eu não podia transformá-lo.
Sem problemas, eu disse para mim mesma. Eu sempre arrumava o cabelo sozinha quando não estava com pressa. Isso não era diferente. Com uma rápida passada no banheiro,
escovei meu cabelo, fiz um rabo de cavalo bem penteado e me preparei para encarar o mundo.
Quando saí, fui atingida pelos estímulos. Fiquei parada nos degraus de meu prédio, confusa e incapaz de me mover. Isso nunca tinha acontecido comigo. Nunca, eu nunca
tivera medo do mundo. Ele sempre me deixava feliz e ansiosa para ver o que tinha a oferecer. Escorregando a mão para dentro da bolsa, achei o maço de cigarros, em
busca de algo que me desse alguma sensação de segurança. Quando os tirei da bolsa, percebi outra coisa. Eu não era mais imune a eles. Essa estase provavelmente não
ia durar muito... mas como poderia me arriscar? Como poderia me expor a carcinógenos se não tinha a menor ideia de quanto estava vulnerável?
Devolvi os cigarros à bolsa, respirei fundo e fui adiante.
Não eram nem três quarteirões até a loja, mas pareciam quilômetros. Caminhei o mais longe possível do tráfego e me esquivava cada vez que alguém passava por mim.
Quando finalmente cheguei ao cruzamento para atravessar para a Emerald City, eu transpirava. A Avenida Queen Anne não é uma rua tão movimentada. Esse pedaço em particular
tinha três pistas e tráfego calmo, com limite de velocidade de 50 (o que significava que as pessoas normalmente estavam entre 55 e 60).
Apesar disso, ali, em pé, não faria diferença se eu estivesse tentando atravessar a I-5, com cinco pistas correndo em cada direção. O sinal de pedestres estava vermelho,
então tive tempo de juntar coragem e me lembrar de que eu já havia atravessado aquele cruzamento centenas de vezes - desobedecendo à sinalização mais vezes do que
obedecendo. Eu estava sendo irracional, me apavorando com coisas com as quais eu não tinha a menor necessidade de me preocupar. A luz verde acendeu e me mandou atravessar.
Pus-me em movimento, uma agonia a cada passo. Estava quase chegando à calçada do outro lado quando um Honda que vinha pela outra rua, passando no vermelho, de repente
virou no cruzamento; a motorista olhou só para ver se não havia carros, mas não verificou se havia pedestres. Ao me ver, ela enfiou o pé no breque com um pouco mais
de força do que teria sido necessário. Os pneus fizeram barulho e o carro parou a menos de um metro de mim. Embora tenha sido um pouco alarmante, não era algo que
teria me assustado muito em circunstâncias normais. Afinal, o carro tinha parado e, de qualquer forma, eu já havia quase terminado de atravessar. Mesmo assim, eu
estava tão no limite que, quando ouvi a freada e vi quanto o carro estava perto, simplesmente fiquei paralisada. Eu fiquei lá, presa - literalmente - nos faróis.
Não conseguia pensar nem me mover. Fui uma completa idiota. Mais sete passos e estaria a salvo. O pânico da mulher para não me atingir se transformou em irritação
quando ela percebeu que eu estava bloqueando a sua passagem. Ela enfiou a mão na buzina, que era bem alta e desagradável. Mas foi inútil. Pelo contrário, o barulho
me deixou ainda mais paralisada.
De repente, alguém pegou meu braço e começou a me puxar para a calçada. A vaca no Honda continuou a buzinar e acho que fiquei quase tão perplexa com isso quanto
fiquei quando Seth gritou para ela: - Já chega! - As mãos firmes dele me guiaram para a calçada, onde eu imediatamente fiquei paralisada de novo, sem me importar
com carros e pedestres curiosos. Com as mãos em meu rosto, ele me forçou a olhar para ele. Os olhos dele pareciam mel e algo neles fez-me sentir melhor e me trouxe
de volta.
- Georgina, você está bem?
Meu corpo inteiro tremia e demorei um pouco para me recompor e falar. - Eu... Eu acho que sim...
Ele falou com uma voz tão, tão delicada quando disse: - O que aconteceu ali?
Segurei as lágrimas. - Nada... quer dizer... - não consegui terminar. Ia começar a chorar, ali mesmo, no meio da Avenida Queen Anne. Odiei a mim mesma por ser tão
fraca e estar tão assustada.
- Deixe para lá - Seth disse, segurando de novo em meu braço. - Não importa. Você está a salvo. Vamos entrar.
Se algum dos meus colegas de trabalho viu Seth me levando para dentro como uma inválida, eu não percebi. De fato, eu mal me dei conta do caminho, até entrarmos no
meu escritório. Seth me fez sentar e fechou a porta. Ele se inclinou na minha direção.
- Você precisa de alguma coisa? Água? Alguma coisa para comer?
Lentamente, parecendo um robô, balancei a cabeça. - N-não. Eu... Eu só vim pegar meu laptop.
O ar de timidez habitual que ele assumia quando estava perto de mim ultimamente tinha desaparecido, fora substituído por um ar sério e preocupado - de quem não ia
sossegar até ter certeza de que estava tudo bem. Ele não era mais o escritor tímido que tinha medo de olhar para mim e sempre me evitava, ele era de novo o homem
que eu havia namorado, o homem que sempre tinha sido capaz de perceber quando algo estava acontecendo comigo e se manifestar para ajudar.
- Georgina, por favor. Conte-me o que aconteceu.
Achei que podia segurar as lágrimas, agora que estava do lado de dentro, em território conhecido, consegui ter um pouco mais de coragem. - Por que você está sendo
bonzinho comigo de novo?
Ele franziu a testa. - Por que eu não seria?
- Porque... Porque eu não fui muito legal com você da última vez em que conversamos. Mesmo depois de você me dar o livro.
Ele fez um barulho com a garganta, quase como uma risada, mas não exatamente. - Você estava fora de si depois de toda aquela bebida. Tudo bem.
- Não sei, não - eu disse de forma contrariada -, talvez fosse mesmo eu.
Ele balançou a cabeça. - Não tem importância. Agora me diga, o que aconteceu lá fora?
O calor da voz dele, a preocupação... aquilo estava acabando comigo. Ele tinha algo de conhecido e seguro, e isso era tudo o que eu queria naquele momento, e não
pude me esquivar.
- É... complicado - eu disse por fim.
- Intriga imortal?
Balancei a cabeça, sentindo as lágrimas aflorarem de novo. Droga. Acho que metade da minha emotividade agora era provocada pela forma como ele me olhava e não tinha
nada a ver com o resto da loucura na minha vida. Levantei-me e desviei o olhar, na esperança de que ele não visse o meu rosto, mas não adiantou nada.
- Georgina, o que aconteceu? Estou ficando assustado.
Ousei olhar de volta. - Você não ia acreditar se eu contasse.
O rosto dele ainda estava tomado de preocupação, mas ele esboçou um sorriso. - Você acha mesmo, depois de tudo o que eu já vi acontecer com você? Pode me pôr à prova.
- Tudo bem - eu concordei. - Mas eu não quero que você se envolva.
- Eu quero ajudar - ele disse se aproximando. A voz aveludada me envolvia em suavidade e segurança. - Por favor. Conte-me o que está acontecendo.
Eu queria dizer que não havia nada que ele pudesse fazer, mas, de repente, as palavras saíram da minha boca.
- Jerome foi conjurado... Isso quer dizer que ele está aprisionado em algum lugar e...
- Ei, espere. Conjurado? Como no Dr. Fausto?
- Sim. E, como ele está desaparecido, estamos todos nesta situação estranha. Peter chama de “estase”. Nenhum de nós tem seus po... suas habilidades. Não posso me
transformar. Hugh não pode ver as almas. Os únicos que estão felizes são os vampiros, porque podem sair no sol novamente, o que provavelmente vai acabar os matando.
E, se nós não encontrarmos o Jerome logo, alguém vai assumir o controle aqui, e eu realmente não quero que isso aconteça. E... eu também não quero ficar mais nem
um segundo deste jeito, neste limbo. Quero que tudo volte a ser como era antes.
Seth estava com uma cara indecifrável quando me olhou por alguns intermináveis segundos. Finalmente, ele disse: - É... É tão ruim assim não poder se transformar?
Balancei a cabeça e comecei a falar mais coisas sem nexo. - Não é isso. É o fato de que talvez eu não seja mais imortal. Não consigo... Não consigo lidar com isso.
Vir até aqui foi horrível. A caminhada. Estou com medo de tudo. É uma idiotice. Quer dizer, vocês, humanos, fazem isso o tempo todo e não ficam pensando nessas coisas.
Mas eu estou com medo de sair de casa. Com medo do que pode acontecer comigo. E quando aquele carro não me viu... Merda! Eu simplesmente fiquei paralisada. Santo
Deus, estou me sentindo uma idiota. Devo estar parecendo louca.
Por fim, uma lágrima vazou pelo canto do meu olho, o sinal definitivo de minha fraqueza. Seth esticou o braço e a secou com delicadeza. Ele não tirou a mão quando
terminou, porém. Ele a deixou escorregar para o meu ombro e me puxou para ele. Repousei a cabeça no seu peito, engolindo mais lágrimas quando me deixei levar pela
proteção que ele oferecia.
- Georgina, Georgina - ele murmurou, passando a mão nas minhas costas. - Vai dar tudo certo. Vai ficar tudo bem.
Essas palavras... eram tão maravilhosas, por mais simples que fossem. Quando alguém está angustiado, os outros têm o instinto de fazer realmente alguma coisa tangível
para ajudar - principalmente homens. E não há nada de errado com isso - muitas vezes, é muito bem-vindo. Mas o que muita gente não percebe é que, às vezes, a única
coisa que se precisa ouvir são essas palavras: Vai dar tudo certo. Basta saber que tem alguém por perto, que alguém se importa. Nem sempre o que pode ser feito é
o principal.
Minhas palavras seguintes, faladas contra a camiseta do Hong Kong Fu, saíram abafadas. - Não sei o que vai acontecer. Com nada disso. Estou com tanto medo. Acho
que nunca tive tanto medo desde quando achei que Roman ia me matar.
- Nada vai acontecer com você. Você mesma disse que não vai demorar mais do que alguns dias. É só esperar.
- Não sou muito boa nisso.
Ele riu e encostou o rosto na minha testa. - Eu sei. Não se preocupe. A maioria de nós faz coisas muito mais perigosas do que andar dois quarteirões e sobrevive.
Sim, aquela motorista não foi legal, mas, mesmo assim, não aconteceu nada.
- São dois quarteirões e meio - eu corrigi. - Não dois.
- Certo. Eu me esqueci daquele meio onde estão os tubarões e as minas.
Afastei-me um pouco, para poder olhar para ele. Os braços dele continuaram me abraçando. - Preciso encontrar Jerome, Seth.
O sorriso dele se esvaiu. A preocupação retornou. - Georgina... se você quer continuar segura, ir atrás dele provavelmente não é o melhor modo de fazer isso. Você
não precisa sempre assumir a responsabilidade, sabe? Deixe outra pessoa procurá-lo. Fique em casa.
- Este é o problema... não acho que alguém vá procurá-lo. Por que os outros demônios iam querer que ele voltasse? Eles desejam o território dele. Não vão ficar satisfeitos
se ele for encontrado.
Seth suspirou. - Ótimo. Agora quem vai ficar com medo se você sair de casa serei eu.
- Ei, você não acabou de dizer que ia dar tudo certo?
- Preciso tomar cuidado com o que eu digo. - Com um olhar pensativo, ele levantou o braço e ajeitou o cabelo na lateral da minha cabeça. - Por que você é tão corajosa?
Eu dei risada. - Você está louco? Você não acabou de testemunhar meu quase colapso?
- Não - ele disse suavemente. - Este é o problema. Você está assustada. Você não sabe o que está acontecendo ou o que pode acontecer com você. Mesmo assim, apesar
do medo e da incerteza, você vai sair por aí para procurá- -lo. Ninguém mais faria isso, mas você faz esse tipo de coisa o tempo todo.
Inexplicavelmente, corei com o elogio. - Eu só ia dar uma busca na internet.
- Você sabe o que eu estou querendo dizer. Acho que você é mais corajosa do que qualquer outra pessoa que conheço, e o que é realmente surpreendente é o fato de
isso ser tão sutil que quase ninguém percebe. Você faz tanta coisa e passa despercebido. Eu queria ser corajoso assim de vez em quando.
- Você é - eu disse, ficando cada vez mais inquieta com nossa proximidade. Também percebi que ele continuava a ajeitar o meu cabelo. - O que você está fazendo com
o meu cabelo? Eu estou descabelada ou alguma coisa do tipo?
- Você nunca fica descabelada. - Ele tirou a mão, envergonhado. - Só está... um pouco mais bagunçado do que o normal.
- Mas eu me penteei faz quinze minutos!
Seth deu de ombros. - Sei lá. Está um pouco arrepiado, mas não tem nada demais. Está meio úmido.
- Arrepiado? Meu cabelo nunca fica arrepiado.
- Georgina - ele disse aborrecido. - Considerando tudo o que está acontecendo, não acho que você precisa se preocupar se o seu cabelo está arrepiado.
- Sim, sim. Você tem razão. - Fiz uma careta. - Só acho que eu fiquei com a pior parte. Os vampiros estão fazendo a maior festa. E eu? Por algum motivo, meu cabelo
está horrível. Não tenho certeza de que o intervalo da energia compensa isso.
Seth inclinou a cabeça, com um ar perplexo novamente. - Intervalo da energia?
- Sim. Com tudo isso, perdi a necessidade de energia vital, então não...
Eu parei. O mundo parou.
Olhei nos olhos de Seth, aqueles lindos olhos castanhos-dourados que ficaram completamente em choque quando nós dois nos demos conta da extensão total do que eu
tinha acabado de começar a dizer. Ele me apertou mais. O abraço ocasional de repente virou uma coisa muito maior. Eu podia sentir intensamente cada ponto em que
nos tocávamos e a distância exata entre os lugares que não se tocavam. Ele exalava calor, um calor maravilhoso, e cada parte que me tocava tinha uma vibração - não
necessariamente sexual, mas algo como Meu Deus, é o Seth. Meu corpo todo estava totalmente alerta, esperando, observando - e desejando - que ele se encostasse mais
em mim.
Ele engoliu em seco, ainda com os olhos arregalados. - Você não está... quer dizer, você pode...
- Sim - minha voz estava rouca. - Pelo menos teoricamente. Ainda não fiz um teste de verdade...
Minhas palavras foram se apagando, porque não importava. Minha relação com Seth tinha sido conturbada por centenas de pequenos problemas, de comunicação a confiança
e milhares de detalhes no meio. E sempre, sempre, por trás de tudo, havia a percepção de que nunca poderíamos nos aproximar fisicamente. Nós podíamos nos abraçar
e dar uns beijos - dava até para usar a língua um tanto antes de minha fome de súcubo começar a roubar vida. Mas intimidade total? Sexo? Fazer amor? Totalmente fora
de cogitação. E essa impossibilidade torturava a ambos, por mais que disséssemos que o amor era a principal parte de um relacionamento.
E agora... lá estávamos nós. As barreiras removidas. Eu não havia testado se a minha absorção de súcubo tinha realmente desaparecido, mas não precisava. Dava para
sentir, como Hugh tinha dito. O eterno desejo que sempre estava à espreita dentro de mim estava completamente adormecido. Podia tocar e beijar qualquer um, sem restrições.
Podia tocar e beijar Seth. Não havia nada entre nós agora.
Bem, exceto por uma coisa.
Alguém bateu na porta. - Georgina? Você está aí? - Maddie gritou.
Foi como um balde de água fria. Seth e eu nos afastamos com um pulo. Ele ficou de costas para a porta e eu me sentei imediatamente na minha mesa. Meu coração estava
de novo aos pulos. Maldição. Eu precisava falar com o Hugh e pedir um remédio para ansiedade. - Sim, entre - respondi.
Maddie colocou a cabeça para dentro, surpresa por ver os dois. - Achei você - ela disse para Seth. - Acabei de chegar e não conseguia encontrar você.
Seth ainda estava em choque. - Eu... sim... vi que Georgina estava aqui e dei uma passada...
Maddie olhou para mim. - Você está bem? Você está com uma aparência um pouco acabada. - Os olhos dela espiaram o meu cabelo e voltaram para o meu rosto. - Você acabou
de acordar?
Pelo visto, não parecia mais que eu estava à beira de um colapso nervoso, o que era alguma coisa. Não gostei do jeito como ela olhava para meu cabelo. - Bem, não
exatamente. Foi um longo dia. - Eu tropeçava em minhas palavras. Estava tão perturbada, mal podia engatar uma resposta coerente. A presença de Seth era como o sol,
cegava-me e me aquecia, e Maddie estava fazendo eu me sentir culpada e suja por estar aproveitando esse sol.
- Está tudo bem com sua família? - ela perguntou.
- Minha... Ah, sim, tudo bem. Ainda um pouco confuso, mas, humm, vai passar. - Levantei-me e peguei o laptop, tentando parecer descontraída e calma. Precisava sair
antes de falar alguma besteira. Do jeito como as coisas estavam, não conseguia nem olhar para Seth agora. - Eu só vim pegar isso.
Maddie me examinou por alguns segundos e deve ter achado que eu estava mais ou menos falando a verdade. Ela relaxou e pareceu não perceber que eu tentava desvairadamente
alcançar a porta.
- Ei - ela disse. - Estive pensando, você não vai precisar ir para a Califórnia para ter praia.
- Para... o quê?
- Você se lembra da nossa conversa no Mark’s?
- Ah, sim - por um milagre, eu me lembrava. A coisa do condomínio, quando falei sobre sentir falta da praia.
- Tenho a solução perfeita: Alki.
- Alki? - perguntou Seth, confuso.
- É segredo. - Ela piscou para mim. - Achei que era um bom lugar para começar a procurar. O que você acha?
- Com certeza. Parece ótimo. - Alki Beach era uma região no oeste de Seattle que dava para a Baía de Puget. Embora estivesse longe de ser uma praia perfeita, bem,
era uma praia. Se concordar que era uma boa ideia ia me fazer chegar até aquela porta...
- Ótimo! E a dança?
- O quê? - eu provavelmente estava parecendo um animal diante dos faróis dos carros. Esse estado de agitação não ajudava para tentar mudar de assunto.
- Ensinar salsa. Falei com a Beth e a Casey, e elas ficaram bem animadas
- Ah. É claro. A gente combina. - Estava disposta a concordar com qualquer coisa para escapar.
A expressão dela se iluminou. - Obrigada! Esta semana é muito cedo? Acho que consigo juntar todo mundo na... humm... quinta.
- Sei, sim, tudo bem. - Eu estava quase na porta.
- Obrigada. Vai ser muito divertido. Vou confirmar o dia com todo mundo e mando um e-mail. Se houver algum problema... Quer dizer, você está sob muita pressão...
Fiz um gesto com a mão. - Tudo bem, mesmo. Boa noite!
Dei um sorriso simpático e rapidamente passei pelos dois. Quando dei um passo para fora, porém, olhei para trás e meus olhos se encontraram com os de Seth. Meu sorriso
falhou. Trocamos mil mensagens entre nós, exatamente como quando estávamos namorando. Só que, dessa vez, eu não sabia exatamente o que elas queriam dizer.
Continuei andando e, de repente, parecia haver muito mais com que me preocupar além da mortalidade.
** Estado de incapacidade ou de impotência; entorpecimento; inércia: paralisação. (N. R.)
Capítulo 12
A busca na internet não revelou muita coisa, como eu temia. No entanto, eu me sentia um pouco satisfeita por pelo menos fazer alguma coisa. Isso afastava da minha
cabeça a possibilidade iminente da morte. Afastava da minha cabeça demônios baixando em Seattle. E, o mais importante, afastava Seth dos meus pensamentos.
Porque, se eu pensasse nele, ia pensar em tocá-lo, beijá-lo e... bem, muitas outras coisas. O que eu sentia por ele estava começando a me consumir, quase a ponto
de fazer os outros problemas parecerem insignificantes. Então, entreguei-me às minhas buscas no Google, na esperança de encontrar alguma migalha de informação sobre
conjuração de demônios. Como esperado, a maior parte das minhas tentativas me mandava para sites de RPG e sobre o Dr. Fausto. Mesmo assim, era melhor do que ficar
sentada sem fazer nada.
O percurso de carro para a reunião no Cellar causou tanta agonia quanto a caminhada até a livraria. Fiz um caminho alternativo, mais demorado, sem vontade de encarar
o congestionamento e a velocidade das vias expressas. O Cellar era um pub que muitos imortais de Seattle gostavam de frequentar. O organizador do evento, quem quer
que tenha sido, pelo visto tinha reservado a parte dos fundos do restaurante, que normalmente era usada para grandes recepções e festas de casamento. Eu não precisava
sentir magia demoníaca para saber que eles haviam lacrado o espaço contra ouvidos curiosos.
A sala mal iluminada estava cheia quando entrei. Reconheci alguns dos imortais inferiores locais, mas a maior parte era composta de demônios que eu não conhecia.
Poucos estavam sentados à mesa comprida, coberta de pratos com aperitivos e garrafas de vinho. A maioria das pessoas estava em pé à volta da mesa, conversando de
forma compenetrada, ou havia puxado cadeiras agrupando-as discretamente. Grace e Mei circulavam pelo salão, com uma aparência mais profissional e eficiente do que
nunca - apesar de apresentarem um ar desgastado pouco característico. Pela primeira vez na vida, elas estavam vestidas com roupas diferentes, e eu me perguntei se
o estresse havia impedido que elas coordenassem o guarda-roupa. Mei usava uma saia vermelha e um blazer, com um colar feito de pequenos anéis de prata e ouro alternados.
Grace vestia um terno de linho e uma gargantilha de pedras com um pendente em forma de lua crescente.
Peter, Cody e Hugh estavam em um canto e acenaram para que eu fosse até eles.
- Oi - eu disse. - O que está acontecendo?
- Nada de mais - Hugh disse. - Isto está parecendo mais um encontro promocional com uma celebridade. Não há muita organização.
Ficamos em silêncio, todos observando as interações. No canto oposto, vi Cedric gesticulando de forma exagerada enquanto falava. Tinha uma expressão sombria e atenta,
e Kristin estava perto com uma prancheta e o semblante de quem estava concentrada, fazendo anotações. Não muito longe, Nanette, com sua aparência atraente e indecifrável,
ouvia outra demônia falar.
- Então, vocês devem ser a equipe de Jerome.
Nós quatro nos viramos. Nenhum de nós havia percebido a aproximação do demônio, por termos perdido nossa habilidade de sentir assinaturas imortais. Essa experiência
toda, eu concluí, era como ser privada da visão ou do olfato. Esse demônio em particular não era meu conhecido. Tinha um sorriso cheio de dentes e a pele dava a
impressão de ter sofrido um bronzeamento artificial que dera errado. O cabelo espetado loiro platinado também não ajudava.
Ele estendeu a mão. - Eu sou Tom. Prazer em conhecê-los.
Nós todos demos um aperto de mão e nos apresentamos. Ele segurou as mãos de cada um com vigor, como um político em meio a uma campanha. Se houvesse um bebê, ele
sem dúvida o teria beijado.
- Imagino que isso seja bem estranho para vocês - ele comentou. - Mas quero que vocês saibam que nós todos estamos à disposição. Não precisam se preocupar com nada,
não vai demorar para as coisas voltarem ao normal.
- Obrigada - eu disse com educação, dando o melhor sorriso de súcubo que meu estado de não súcubo me permitia. Ser sarcástica com um demônio não era uma boa ideia.
Ser sarcástica sem os poderes normais? Péssima ideia. - Só estamos ansiosos pela volta de Jerome.
O sorriso dele deu uma falhada, mas logo se recuperou. - Sim, sim. É claro. Estamos fazendo o possível. Mas, é claro, vocês sabem que existe a possibilidade de Jerome
não ser encontrado...
- Nós ficamos sabendo - disse Hugh, tão educado quanto eu.
Tom balançou a cabeça. - Mas não se preocupem. Em meio a esta tragédia, nós vamos providenciar para que vocês fiquem protegidos. Podem ficar sossegados, o próximo
arquidemônio de Seattle vai governar com controle e competência, garantindo que vocês possam executar as tarefas de forma eficiente e efetiva.
Eu tinha a impressão de que ele estava pronto para nos contar como, se fosse eleito, cortaria impostos e geraria empregos, mas fomos interrompidos por uma voz estridente.
- Georg-gii-na!
Uma mulher de mais de dois metros de altura vinha em nossa direção. Ela tinha uma pele cor de ébano que não combinava nada com o cabelo laranja. O conjunto fazia
Tom parecer um supermodelo maravilhoso. A sombra dourada alcançava as sobrancelhas e tinha um brilho comparável apenas ao das lantejoulas multicoloridas da roupa
dela. Um boá de penas negras cintilava à sua volta enquanto ela caminhava. Alguns demônios na sala interromperam o que estavam fazendo e ficaram olhando para ela,
o que era uma coisa fenomenal. Demônios não ficam chocados com facilidade.
- Quem é essa? - Cody perguntou. Assim como acontecera com Tom, Cody não podia sentir a identidade nem mesmo o tipo de imortal. Mas eu não precisava dessas indicações.
- Tawny - eu e Peter dissemos em uníssono.
- Como vocês sabem? - Cody perguntou.
- As roupas - Peter disse.
- A voz - eu disse.
Tom ficou lá, boquiaberto. Pouco tempo depois, ele se recompôs. - Bem, foi um prazer conhecê-los. Espero que me procurem se tiverem alguma pergunta ou alguma preocupação.
Estou ansioso para conhecer melhor todos vocês. - Ele saiu correndo no exato momento em que Tawny chegou. Nós ficamos olhando.
- Que diabos aconteceu com você? - Hugh exclamou.
Tawny fez beiço. - Bem, um cara realmente legal queria... Realmente puro e...
- Tawny - interrompi. - Eu já falei mil vezes. Pare de se preocupar com os bons.
Ela balançou a cabeça. - Não, não. Ele gostava de mim. Bem, ele gostava disso. - Ela apontou o corpo. - Percebi que ele tinha essas fantasias esquisitas e que a
mulher dele não sabia. Então, elaborei essa aparência, e nós fizemos. E a energia... foi fantástica.
Não pude esconder meu espanto. Tawny tinha conseguido ganhar um cara decente. Ela havia usado uma estratégia que, apesar de elementar, era também altamente eficiente:
explorar desejos secretos. Isso podia corromper almas incorruptíveis. - Uau - eu disse por fim. - Isso é ótimo. Eu... bem, não acredito que vou dizer isso, mas estou
orgulhosa de você.
Ela suspirou. - Mas eu não consegui aproveitar a adrenalina. Uns dez minutos depois, ela foi embora. Tudo foi embora. Comecei a ter enjoo e...
- Sim, sim, a gente sabe o resto - disse Cody, até de forma gentil.
- Eu estava usando este corpo, e agora... agora estou presa nele.
Em condições normais, isso teria sido motivo para horas de risos. No momento, eu na verdade fiquei triste por ela. - Bem, aguente firme. Eles dizem que não vai demorar
muito.
Tawny balançou a cabeça chateada. - Sim, esperemos. - Então, repentinamente, ela se animou um pouco. - Ah, você tinha razão quanto à coisa do sexo oral.
Hugh torceu o pescoço para olhar para mim. - O quê?
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, felizmente, Mei pediu a atenção de todos em alto e bom som. E quando digo alto, é sério. Ela usou seu poder para amplificar
a voz, fazendo muitos de nós se contorcerem de dor e taparem os ouvidos. Algumas pessoas se afastaram, permitindo que nós enxergássemos Grace e ela.
- Queremos agradecer a todos por terem vindo - Mei disse, voltando para a sua voz impassível de costume.
- E agradecemos a ajuda de todos enquanto tentamos manter as coisas em andamento por aqui. Mei e eu temos tudo sob controle, mas a preocupação que todos demonstraram
é com certeza... admirável. - Havia um leve tom de sarcasmo na voz de Grace enquanto ela olhava para os demônios reunidos. Muitos deles se endireitaram e sorriram,
agindo como se estivessem ali realmente por se preocupar conosco.
- Sabemos que todos estão tão ansiosos para encontrar Jerome quanto nós - Mei disse. - E vamos fazer o possível para localizá-lo. - Alguns daqueles sorrisos amarelaram
um pouco e a multidão se movia incomodada. Como eu havia dito para Seth, nem todos estavam tão ansiosos pela volta de Jerome.
- Sim, é claro - disse uma voz retumbante. Tom havia se juntado a Grace e Mei sob os holofotes. - Jerome é nossa prioridade, é claro, e se... quer dizer, quando...
ele for encontrado, tenho certeza de que a Administração estará muito ansiosa para conversar com ele para saber como isso pôde acontecer, para começar. Sem dúvida,
ele vai precisar de um período de... reabilitação e não vai poder cumprir suas obrigações. Eu, de minha parte, estou pronto para me apresentar imediatamente e administrar
os afazeres infernais de Seattle.
- Bem, Tom. - Uma demônia de cabelo castanho-escuro do outro lado da sala se desencostou da parede. - Se não me falha a memória, sua liderança em Tuscaloosa não
acabou muito bem.
Tom olhou para ela furioso. - Aquilo não foi culpa minha.
E assim começou. A reunião lentamente se degenerou em caos e virou muito mais cada demônio defendendo por que seria a melhor escolha - e por que os outros eram totalmente
ineptos. Foi como um ano de campanha presidencial condensado em uma hora.
- Olhem para Grace e Mei - observou Hugh. - Parece que elas querem bater em todo mundo.
- Bem - eu disse. - É o seguinte. Todos esses demônios estão falando sobre manter os assuntos infernais em ordem por aqui, mas aquelas duas são as únicas que estão
fazendo isso neste momento.
- O inferno deveria simplesmente deixá-las substituir Jerome, se ele não voltar - Cody disse. Lancei-lhe um olhar fulminante. - Er... quer dizer... não que haja
alguma dúvida de que ele vá voltar.
- Esperamos que sim - disse uma nova voz. Cedric havia se aproximado e se juntado a nosso grupo, com Kristin a tiracolo.
- Sei - eu disse, não conseguindo disfarçar um sorriso. - Você não vai dizer que quer que ele volte. Esta é a ocasião perfeita para você criar seu grande império
no noroeste.
Ele balançou a cabeça. - Não, pode acreditar, não quero ter nada com isso. Comparado a alguns desses imprestáveis, Jerome de repente começou a me parecer o vizinho
ideal. - Era muito parecido com o que Isabelle havia dito. - Eu tenho a impressão - acrescentou Cedric - de que você não vai precisar voltar a Vancouver.
Fiquei hesitante. Era para voltar? A quem eu deveria responder agora? As ordens de Jerome ainda eram válidas? - Eu... Eu não sei - admiti. - Não sei o que devo fazer.
Se deveria partir...
- Bem - ele disse. - Não que você estivesse fazendo um bom trabalho.
- Eu estava! Tinha conseguido fazê-los recuar antes de o suposto anjo falar com eles. Ela disse a eles para não confiar em mim. - Franzi o cenho, perguntando-me
se deveria continuar. Não sabia em quem confiar sem Jerome por perto e, como Hugh havia dito, Cedric ainda era um candidato provável para a conjuração de Jerome,
apesar dos meus instintos. - Sabe... Acho que tenho uma ideia de quem poderia ser esse anjo.
Cedric deu um gemido. - Você ainda não desistiu de Isabelle?
Balancei a cabeça e baixei a voz. - Não acho que tenha sido ela. Acho que foi a Nanette.
A expressão de incredulidade no rosto dele não se alterou. - Isso é tão ridículo quanto achar que foi Isabelle. Você estava lá. Você viu Nanette me procurar porque
estava preocupada com o controle no território dela.
- Engraçado... Ela teve uma reunião parecida com Jerome não muito tempo depois.
Cedric manteve a expressão contida e cética que era a especialidade dos demônios. Mas tive certeza de ter visto um lampejo de interesse em seus olhos azuis acinzentados.
- Isso não quer dizer nada. - Meu instinto me dizia que ele estava mentindo. Ele estava se virando para ir embora, mas então Cody falou, com um tom de voz hesitante.
- Com licença... você sabe... se nós somos mortais?
Cedric hesitou por um momento e depois começou a rir. Quando nenhum de nós disse nada, ele olhou para um por um. - Vocês estão falando sério?
- Por que isso é uma pergunta tão absurda? - indaguei. - Nós perdemos todas as características que nos tornam imortais.
- Vocês as perderam para evitar problemas - Cedric disse. - Ninguém quer que vocês fiquem andando por aí sem supervisão. Então, quando vocês perdem o arquidemônio,
vocês são desligados. Mas ainda são imortais. Vocês acham que podem se livrar do contrato que assumiram com uma coisa tão simples quanto a morte?
- Então a gente pode ser atropelado por um carro e tudo bem? - Cody perguntou.
- É claro. Certamente, a recuperação seria mais demorada. Você se recuperaria como um humano, mas acabaria se recuperando.
- E se formos decapitados? - Peter perguntou.
- Sim - reiterou Cody. - Como em Highlander, o guerreiro imortal?
Cedric revirou os olhos. - Não sejam decapitados e não vamos precisar descobrir. - Ele olhou para mim. - Olhe, fique aqui por um tempo. Algo me diz que o Anjo da
Escuridão não vai aparecer tão cedo. Acho que a distração chegou ao fim.
- Também acho. Obrigada.
Ele acenou com a cabeça e começou a se virar. Então, olhou de novo para Tawny e parou um pouco. - Como você se chama?
- Tawny - ela respondeu.
Ele a mediu dos pés à cabeça e depois se dirigiu a Kristin. - Pegue o número dela e marque um encontro.
Vi alguma coisa faiscar nos olhos de Kristin e demorei um pouco para identificar o que era. Ciúme. Refletindo sobre o modo como ela agia em relação aos assuntos
dele, não seria de espantar que ela tivesse uma queda por ele. Ela virou algumas páginas da prancheta, apertando os lábios em sinal de desaprovação.
- Você tem muitos compromissos nesta semana. Você detesta compromissos muito próximos. - Ela estava calma, mas eu podia dizer que, embora em parte o aviso se devesse
a uma preocupação genuína, parte dela estava achando bom ter a possibilidade de pôr um empecilho na vida amorosa dele. Cedric aparentemente não percebeu.
Ele fez um gesto com a mão. - Cancele alguma coisa pouco importante. Você sabe o que fazer.
Ele se afastou enquanto Kristin anotava o número de Tawny. - Nós entraremos em contato - ele disse impassível.
- Ui - Tawny disse quando Kristin foi embora. - Ele até que é bonitinho. Talvez esse corpo não seja tão ruim assim.
Troquei olhares com Peter e Hugh. Parecia que eles estavam se sentindo como eu: cansados e frustrados, desconfiando no fundo de que tudo aquilo era quase engraçado.
- Bem - eu disse, olhando para Tawny, que sorria deliciada. - Pelo menos alguém está satisfeito com isso tudo.
Capítulo 13
Ouvir Cedric garantir que eu não podia morrer me tirou um peso enorme dos ombros. Fui embora do Cellar com muito menos ansiedade, apesar de não ter a menor intenção
de fazer alguma coisa que pudesse servir para testar como nós nos recuperaríamos de uma decapitação. Então, embora ainda agisse com cuidado, eu não me sentia mais
sufocada ou ameaçada pelas coisas do mundo.
Em vez de ir para casa, fui para a loja de Dante. A loja/apartamento ficava no Rainier Valley, no lado sudeste de Seattle. Ele não tinha um horário regular afixado
para prestar seus serviços “paranormais” variados, mas geralmente ficava por lá à noite se não tivesse nada melhor para fazer. Costumava ser a hora em que gente
bêbada ou casais de namorados (ou adolescentes chapados) apareciam em busca de diversão e de novidade. Durante o horário comercial diurno geralmente não aparecia
muita gente em busca de ajuda do sobrenatural a não ser, às vezes, alguém atrás de conselhos sobre o mercado de ações.
Dante, porém, não estava com nenhum cliente naquela noite. A loja e o luminoso tinham uma aparência triste e solitária. Entrei pela porta destrancada e encontrei-o
apoiado no caixa, folheando um exemplar da revista Maxim.
- E aí? - perguntei. - A sua assinatura da revista Fraudes e Golpes expirou?
Ele olhou para mim com um sorriso, tirando o cabelo escuro do rosto. - Só estava precisando de alguma coisa bonita para olhar, já que eu não sabia quando ia ver
você de novo.
Dei-lhe um beijo no rosto. - Caramba. Isso é a coisa mais agradável que você já me disse.
- Bem, posso fazer algumas insinuações sexuais sujas, se você preferir.
- O quê? E estragar as preliminares da próxima vez?
Isso fez o sorriso dele se abrir e ele fechou a revista. - A que devo este prazer? Você não deveria estar fazendo uma visita aos seus amigos no norte? Ou acabou?
Sinceramente, não consigo acompanhar.
- Bem, algo do tipo. - Deus, como eu ia explicar o que tinha acontecido? Aquilo tudo ocorrera em um só dia. Eu me sentia como se já fizesse um ano que eu havia ficado
enjoada no carro. - Uma coisa estranha aconteceu hoje.
- Estranha do tipo você vendeu todos os volumes da Jane Austen da livraria ou estranho do tipo as regras do tempo e do espaço que nós conhecemos estão a ponto de
ser rompidas?
- Humm... está mais para a segunda opção.
- Merda.
Respirei fundo, imaginando que seria melhor simplesmente ir direto ao assunto. - Não é fácil explicar, mas... não sou mais um súcubo.
- Nunca acreditei que você fosse um súcubo.
Dei um gemido. Isso era uma brincadeira entre nós logo que nos conhecemos. Que ironia. - Estou falando sério - eu disse. - Nada de súcubo. E Jerome também desapareceu,
o que provavelmente coloca Seattle à disposição para um novo reinado demoníaco.
Dante ficou me encarando com um olhar pensativo enquanto avaliava se era verdade. Era a primeira vez que ele ficava sem palavras desde que eu o conhecera. Sem esperar
por mais comentários espirituosos, continuei sem parar. Expliquei sobre a conjuração, o que isso tinha feito com os imortais inferiores, como demônios de toda parte
estavam deliberando sobre Seattle e por que eu precisava encontrar Jerome o mais rápido possível.
Quando finalmente terminei, Dante levou alguns instantes para colocar as ideias no lugar. - Então... você perdeu mesmo seus poderes de súcubo?
- Habilidades - corrigi. - E, sim, perdi. Você está dizendo que, depois de todas as outras coisas que eu contei sobre o equilíbrio de poder em Seattle, minha condição
de súcubo foi o que mais chamou sua atenção?
Ele deu de ombros. - Você deve admitir que é estranho. Além disso, essas outras coisas não me afetam. Você me afeta. - Os olhos dele se estreitaram. - Eu vou precisar
usar camisinha agora?
- O quê? Não, é claro que não.
- Tem certeza?
- Você nunca nem pestanejou com o fato de que eu venho roubando pedaços da sua alma nos últimos meses, mas uma ameaça inexistente de ter de pagar pensão de repente
deixou você assustado?
- Bem, sim, visto que minha conta no banco tem mais a oferecer do que minha alma.
Olhei ao redor, para a sala surrada. - Discutível.
- Espertinha - ele disfarçou. - Mas, se eu fosse você, estaria fazendo mais perguntas sobre isso. Do tipo “você pode morrer”?
- Essa eu já fiz - eu disse orgulhosa. - E a resposta é não. Nossos corpos imortais ainda são em essência os mesmos. Só estamos desligados de todos os privilégios
adicionais. - Torci para ele não perguntar nada sobre decapitação, porque eu sinceramente não estava disposta a debater esse assunto.
- Tudo bem. O que você quer de mim? - ele perguntou.
- O que leva você a achar que eu quero alguma coisa?
Ele olhou para mim.
- Tá, talvez eu queira alguma coisa. Mas, veja, quem poderia saber mais sobre isso do que você?
- Quem sabe mais coisas sobre demônios? Humm, deixe-me pensar. Eu sei. Que tal os demônios para quem você trabalha, que são todo-poderosos e estão aí desde o início
dos tempos?
- Eles não são todo-poderosos. Se fossem, não seria necessário um humano para a conjuração, ou não acabariam sendo conjurados, para começar. E é isso que eu preciso
de você. Não deve haver muitos humanos na região capazes de fazer isso, não é? Você deve saber quem são eles.
Dante abriu a boca, sem dúvida com uma resposta rápida na ponta da língua, mas fechou-a abruptamente. - Não sei - ele disse. - Não me mantenho informado sobre essas
coisas.
Eu me inclinei em direção a ele, incrédula. - É claro que você sabe! Você não está querendo me contar? Por quê?
Ele deu um suspiro e a expressão hesitante se transformou em seu azedume característico. - Porque esse tipo de gente fica muito irritado se alguém começa a anunciar
o seu nome.
- O quê? Você está com medo de que eles venham bater em você?
- Não. Não exatamente. Mas existe uma espécie de... etiqueta profissional nesses círculos.
- Vou ser discreta. Não vou contar onde consegui a informação.
- A maioria deles já sabe que nós estamos juntos. Eles deduziriam. Eles ficam de olho nesse tipo de coisa. - Ele se virou, pensando. - É claro que, nessa mesma linha
de raciocínio, muitos deles sabem que você é um súcubo e podem simplesmente achar que você descobriu por fontes próprias.
Ele ainda estava hesitante, então dei uma cartada maliciosa. - Bem, posso ir perguntar para o Erik, se você está com tanto medo.
Erik era outro mortal da cidade que lidava com o oculto e o sobrenatural. Diferentemente de Dante, que era praticante, Erik apenas estudava e acumulava conhecimento
sobre as correntes subterrâneas mágicas da cidade. Ele tinha dons paranormais e estava sintonizado com coisas que a maioria dos olhos humanos não via. Algumas vezes,
até conseguia ver o que imortais não conseguiam. Ele e Dante tinham uma desavença muito antiga e não gostavam de ficar perto um do outro, para dizer o mínimo.
Minha tentativa de provocar Dante não funcionou, no entanto. - Nem tente, súcubo. Deixar-me com ciúme do velho não vai me fazer ajudá-la.
Olhei para ele suplicante. - O que vai fazer você me ajudar?
Ele contornou meus lábios com o dedo, os olhos acinzentados maliciosos e pensativos. - Acho que não há nada que você possa fazer enquanto estiver privada de seus
poderes supersecretos. Você não é mais uma deusa do sexo.
- Ei, eu não preciso de poderes supersecretos para ser uma deusa do sexo.
Nesse momento, três jovens de vinte e poucos anos entraram tropeçando, observando a loja com os olhos arregalados enquanto tentavam abafar as risadinhas nervosas.
Eles sem dúvida tinham o mesmo potencial de adolescentes chapados. Fiz uma última súplica desesperada: - Por favor? Dê-me somente os nomes. Não precisa fazer mais
nada. Não vou contar nada. Eu juro.
Dante me lançou um olhar zangado, olhou para mim, para os clientes em potencial e depois de novo para mim. Disse a eles que os atenderia em um minuto e depois escreveu
apressadamente quatro nomes em um pedaço de papel. Dois deles, eu reconheci.
- Obrigada - eu disse. Abri um sorriso e, para minha surpresa, algo na expressão cínica dele amoleceu um pouco.
- Meu Deus, esse sorriso... - ele murmurou. - Talvez você tenha razão.
- Sobre o quê?
- Você realmente não precisa de poder algum para ser uma deusa do sexo. O seu cabelo, porém, está um pouco bagunçado. - Ele deu a volta no balcão e me deu um abraço
rápido, meio dúbio. - Cuide-se, súcubo. Não vá testar o limite desse negócio de não morrer.
- E compro também umas camisinhas? - provoquei.
Ele deu de ombros. - Foi você quem teve sonhos proféticos sobre ter filhos, há algum tempo. - Virando-se, ele assumiu a jovial personalidade trambiqueira e dirigiu-se
ao grupo com as conversas sobre palmas da mão e tarô.
Ele havia dito aquilo meio brincando, sem pensar, mas, conforme fui me aproximando devagar do carro, as palavras dele pareciam uma bofetada na cara.
Sonhos proféticos...
Os sonhos de Nyx.
As coisas que ela havia me mostrado ao longo daquela época eram tão vívidas que pareciam ser quase mais reais do que minha vida. O problema é que, segundo praticamente
todos os relatos, Nyx conhecia o futuro e podia mostrar às pessoas coisas que iam acontecer com elas. Era assim que ela espalhava o caos no mundo, mostrando essas
visões às pessoas e fazendo-as achar que sabiam os desdobramentos do futuro. Infelizmente, apesar de as visões se concretizarem, elas nunca se concretizavam do modo
como as vítimas achavam que ocorreria. Ela havia levado muitas pessoas à morte dessa forma.
Entretanto, parecia claro que, para mim, os sonhos enviados por ela haviam sido distrações, não imagens do que estava por vir. Em minhas visões, ela havia me mostrado
- várias vezes seguidas - com uma filha, esperando o homem que eu amava voltar para casa. Os sonhos tinham tomado conta de mim, quase me fazendo querer dormir toda
noite e deixar minha energia ser roubada. Como eu tinha percebido enquanto segurava Kayla, não havia nenhum modo de alguma parte da visão vir a acontecer comigo.
Eu não poderia ter nenhum tipo de relacionamento como aquele. E, com certeza, não poderia ter uma filha, não com o meu sangue. Imortais não se reproduziam. Ao vender
minha alma por imortalidade e poder de transformação, eu abrira mão de certos aspectos da minha humanidade. Eu não poderia ter filhos. Nunca.
Mas, mesmo assim...
Fiquei parada na calçada, a mais ou menos um quarteirão de distância do meu carro. E se Dante tivesse inadvertidamente tropeçado em alguma coisa? E se estar nessa
estase tivesse alterado essa parte de mim que tinha perdido a capacidade de conceber? Cedric havia dito que eu tecnicamente ainda era imortal, mas também dissera
que meu corpo reagiria e se recuperaria como o de um humano. O que isso tudo envolvia? Sexo sem proteção poderia me levar a conceber? Era para isso que as visões
de Nyx apontavam? Ela jurara que havia me mostrado a verdade. Será?
Eu estava de novo respirando rápido, mesmo sabendo que, pelo menos dessa vez, eu não precisava me preocupar com um ataque cardíaco. Tudo bem. Eu tinha de me acalmar.
Essa possibilidade de engravidar era tão perturbadora quanto a de ficar com Seth. Não ia conseguir fazer nada se me perdesse em fantasias.
Com um suspiro, olhei para o pedaço de papel de Dante, agora amassado na minha mão. Sem nem mesmo perceber, eu o apertara formando uma bola enquanto caminhava. Estava
preocupada demais para até mesmo me dar conta disso...
Bebês e Seth. As coisas que eu mais desejava.
Forcei-me a continuar em direção ao carro. Quando abri a porta, porém, precisei parar para pensar, pesarosa, sobre se talvez eu não devesse estar com tanta pressa
para trazer Jerome de volta, no fim das contas.
Comecei a seguir as indicações de Dante na manhã seguinte. Sair de casa, porém, foi um pouco mais difícil do que eu esperava. Apesar do fato de eu muitas vezes me
arrumar de manhã sem me transformar, meu closet me parecia terrivelmente pequeno. E, ainda que meu cabelo estivesse o.k. quando terminei de arrumá-lo, eu tinha a
sensação de que ele ficaria arrepiado da próxima vez em que eu olhasse no espelho. A única coisa boa foi quando encontrei debaixo da cama o relógio que Dante me
dera. Eu achava que o havia perdido, então, pelo menos, minha coleção de acessórios ainda era respeitável. Contudo, eu tinha a impressão de que logo descobriria
quanto dependia de minhas habilidades.
Localizar os endereços da lista de nomes de Dante exigiu um pouco de serviço de detetive, mas, no geral, não tive muita dificuldade para descobri-los. Infelizmente,
uma vez encontrados, esses magos não foram exatamente solícitos.
Um dos que eu fui ver sabia quem eu era. Era mulher e conhecia os servidores do inferno locais e, apesar de ter demonstrado certo respeito, ela hesitou em responder
às perguntas tanto quanto Dante havia previsto. Dois dos outros nomes eram de pessoas que não me conheciam, e isso criou um problema imediato. Com meus poderes de
súcubo desativados, eu não tinha assinatura imortal, e esses dois eram do tipo que poderia senti-la. Eu chegar e alegar ser um súcubo provocou desprezo e descrença.
Consegui colher algumas informações com eles, mas nada muito útil.
Foi igualmente difícil não só pelo fato de eles não poderem me sentir, mas também porque eu não podia senti-los. É preciso dizer que um súcubo não tem a mesma habilidade
para julgar o poder humano da forma como um demônio completo faz, mas eu podia eventualmente sentir magia circundando uma pessoa ou um objeto. Porém eu estava totalmente
cega. Precisava confiar na minha força para ler as pessoas, no entanto esses magos das sombras eram tão bons trapaceiros quanto Dante. Eles eram versados na arte
de esconder a verdade.
Já era quase meio-dia quando visitei o último da lista, um cara chamado Greg. A essa altura, eu já estava bem desanimada, não resisti e fumei um cigarro no caminho.
Greg não tinha uma loja de frente, como Dante, e normalmente fazia seus encantamentos em casa, um pequeno bangalô em Wallingford. Quando ele atendeu a campainha,
o estado de descompostura dele me fez desconfiar de que eu o havia acordado. O lado bom foi que ele me reconheceu, o que significava que eu não precisava convencê-lo
de que eu era um súcubo.
- O que você quer? - ele perguntou desconfiado. Ele tinha uma estatura grande e teria um físico invejável se tivesse alguma vez ido à academia. Obviamente, ele nunca
tinha ido.
- Eu queria conversar com você sobre conjuração e demônios.
- Não sei nada sobre isso.
Ele começou a fechar a porta. Coloquei o pé para impedi-lo. - Espere. Você conhece alguém que poderia saber alguma coisa?
- Não. Mesmo se conhecesse, por que eu deveria contar para você? - Ele tentou fechar a porta de novo, mas parou. Ele apertou os olhos, que já eram um tanto apertados.
- Tem alguma coisa errada com você. Você está sem aura.
Não respondi de imediato. - Talvez você esteja perdendo o jeito.
Isso na verdade provocou um pequeno sorriso. - Pouco provável. O que está acontecendo? Quem foi conjurado?
- Ninguém. Mesmo se alguém tivesse sido, por que eu deveria contar para você? - eu repeti.
Ele riu, um som gutural veio do fundo de sua garganta. Quando a risada se esvaiu, ele me observou por alguns longos segundos, com uma expressão astuciosa e pensativa.
- Tudo bem. Vou falar com você. - Ele abriu a porta. - Entre.
Eu entrei receosa na sala. O lugar era um desastre. Pratos sujos empilhados na mesa de centro, com comida endurecida formando crostas. Toda a mobília estava coberta
de pó, e o chão de madeira dava a impressão de não ter sido varrido desde o século passado. Pouco à vontade, perguntei-me se o meu novo corpo parecido com o humano
era suscetível a germes.
Havia alguns livros empilhados no sofá, as capas propositalmente sinistras, em tons de preto e vermelho e com desenhos de pentagramas. Aquilo me fez lembrar os falsos
apetrechos satânicos de Evan, mas, por incrível que pareça, Evan tinha mil vezes mais classe que esse cara.
Greg não me perguntou se eu queria sentar nem me ofereceu nada, o que eu achei bom. Ele ficou em pé na minha frente, com os braços cruzados. - Bem, o que você quer
saber?
- Quero saber se você conjurou algum demônio ultimamente.
- Não que algum demônio tenha sido conjurado, é claro.
- É só uma hipótese - respondi com um sorriso afetado. Observei o máximo possível a casa enquanto falava. Atrás dele, eu podia ver uma cozinha igualmente bagunçada
com um fogão a gás e uma geladeira coberta de ímãs.
- Você acha que, se eu tivesse conjurado um demônio, eu estaria vivendo deste jeito? Dane-se, eu teria tevês de plasma e prostitutas.
Eu me lembrei da discussão com meus amigos, principalmente da parte sobre algum humano ter conjurado Jerome e o ter escondido e não usá-lo para obter vantagens e
prestar serviços pessoais. Mesmo se Greg tivesse conjurado Jerome em nome de outro demônio, teria de haver alguma recompensa envolvida. Talvez não envolvesse tevês
de plasma e prostitutas, mas teria de haver algum sinal de entrada de dinheiro por ali. Poderia ser que ele tivesse uma conta bancária na Suíça.
- Tudo bem. Você conhece alguém que tenha arranjado prostitutas nos últimos tempos?
- Não, mas posso dar alguns nomes de pessoas mais prováveis. - Ele listou dois dos magos que eu já tinha ido ver.
- Já falei com eles.
- Desculpe. Não é problema meu. - Meus olhos se desviaram para os livros no sofá. Dirigi-me a eles. - Posso?
- Fique à vontade.
Peguei um dos livros e o folheei na esperança de encontrar alguma informação sobre conjuração. Nada. Continha coisas do mal leves, exatamente como a propaganda do
Exército da Escuridão. O segundo livro era a mesma coisa. O terceiro, no entanto, era um legítimo livro de encantamentos, cheio de ritos como os que Dante praticava.
Esperançosa, dei uma olhada nas páginas, uma por uma. Havia algum conteúdo muito do mal, mas nada sobre conjuração. A boa vontade de Greg ao me deixar examinar os
livros deveria ter servido para denunciar que eles não continham nada de útil.
- Terminou?
A voz de Greg estava bem perto de mim - perto demais. Eu dera as costas para ele enquanto verificava os livros e agora ele estava bem atrás de mim. Dei alguns passos
para trás e bati no sofá.
- Sim - eu disse nervosa. - Obrigada pela ajuda. Eu preciso ir.
- Ainda não - ele disse, aproximando-se. - Você acabou de chegar.
Tentei escapulir para o lado, mas ele de repente moveu as mãos e agarrou meus braços, imobilizando-me.
- O que você está fazendo? - perguntei. Meu coração disparou de novo.
- Não sei o que está acontecendo quanto a essa coisa toda de conjuração, mas sei que um súcubo que não parece mais ser um está aqui, o que provavelmente quer dizer
que você não pode lutar como um súcubo.
Tentei me livrar dele, mas suas mãos pareciam ser de aço. - Você está louco. É claro que eu sou um súcubo. Você sabe que eu sou.
- É? Então se transforme para fugir de mim. Vire um pássaro. Se transforme em um fisioculturista.
Rangi os dentes e tentei me livrar dele de novo. - Deixe-me ir, seu filho da puta. Você está me machucando, e uma legião de demônios vai aparecer e arrancar seus
membros.
- Não tenho tanta certeza disso - ele murmurou sorrindo. - Esta é uma oportunidade que só aparece uma vez na vida, você acha que algum súcubo transaria com alguém
como eu?
Ele me jogou no sofá, um braço forte me imobilizava enquanto a outra mão se movia desajeitada por baixo da minha blusa. Ele agarrou meu seio. Aproximando a cabeça,
tentou forçar os lábios dele contra os meus, mas eu virei a cabeça a tempo.
- Solte-me! - gritei.
Consegui liberar uma perna e dar uma joelhada no estômago dele. Não foi o suficiente para ele me soltar, mas ele se zangou.
Eu tinha ficado com medo de ser atropelada, atingida por um meteoro e que uma ponte desabasse sobre mim. Nunca, nunca tinha me passado pela cabeça ser estuprada.
Isso não era uma preocupação havia séculos, depois de eu ter percebido que podia me transformar em uma pessoa maior e mais forte, alguém capaz de se livrar de qualquer
atacante.
Talvez isso não devesse me incomodar tanto. Já tinha transado com muita gente sem gostar ao longo dos anos. Toda vez, eu torcia o nariz e esperava terminar. Mas
isso era diferente por algum motivo. A escolha não era minha e, para piorar, eu tinha uma sensação de impotência. Eu detestava não ter opção. Detestava não poder
dar um jeito de sair de uma situação. No entanto, não havia o que fazer. Não dessa vez.
O máximo que eu podia tentar era continuar a lutar e me debater. Eu, afinal, tinha certo conhecimento sobre autodefesa. Tinha aprendido a usar armas e dar socos
ao longo dos anos. Eu tinha acertado Niphon no Natal. Infelizmente, o que eu podia fazer era limitado, com Greg em cima de mim daquele jeito. Ele era mais pesado.
Mesmo assim, meus esforços serviram para deixá-lo incomodado, porque Greg rosnou e pegou meus braços na tentativa de me virar. Xinguei-o e dei outra joelhada, perto
da virilha, mas não foi o suficiente.
E foi quando aconteceu.
Eu senti primeiro. Um cheiro muito forte e sufocante de gás natural. Parei de lutar por meio segundo. Não precisava ser humana para saber que havia um problema.
Antes que eu pudesse pensar melhor, a cozinha explodiu.
O fogo se espalhou para a sala. Não chegou até nós, mas Greg deve ter se queimado, porque ele gritou de dor quando me soltou. O corpo dele tinha me protegido do
pior, o que eu senti foi uma onda de calor.
Não parei para pensar em nada. Greg havia me soltado em meio à confusão e eu saí em disparada. Eu me apoiei no sofá e saí correndo pela porta da frente, para longe
do fogo. Para longe de Greg.
Peguei o carro e fui embora o mais rápido que consegui, cantando os pneus do meu Passat. Eu suava em bicas e minhas mãos mal podiam segurar a direção de tanto que
tremiam. Uns oitocentos metros adiante, ouvi o barulho de sirenes, mas não parei para pensar sobre o que havia acontecido. Nem quis saber se Greg tinha conseguido
sair ou não. Não podia imaginar como um vazamento de gás havia miraculosamente me salvado.
A única coisa em que eu conseguia pensar era fugir e ir para algum lugar seguro.
Capítulo 14
Meu instinto me fez voltar para Queen Anne. Eu estava no piloto automático, minha cabeça, totalmente desligada. Somente quando estacionei e saí do carro meus sentidos
começaram lentamente a voltar. Mesmo assim, fiz o possível para continuar anestesiada, não pensar em nada de imediato. Minha barriga estava roncando, então, resolvi
me concentrar nas necessidades básicas. Andei até um restaurante tailandês que ficava entre meu apartamento e a livraria, em busca do aconchego de uma mesa de canto
e curry verde. Uma vez acomodada, não dava para não começar a pensar.
O que havia acontecido lá? Uma parte de mim podia ainda sentir as mãos de Greg, tinha ainda a sensação de estar absolutamente, completamente impotente. O resto de
mim, porém, estava começando a analisar a explosão do fogão.
Eu havia reparado no fogão a gás na minha inspeção inicial, mas só tinha sentido o cheiro pouco antes de o fogo começar. Em um vazamento de gás, o local não deveria
ficar saturado com o tempo? Aquilo tinha sido repentino. Uma onda de gás saída do nada e BUM! Sem aviso, sem nada. Achei que talvez tivesse sido coincidência. Sorte
cronometrada. No meu mundo, porém, não havia coincidências. Geralmente havia a condução por uma força maior. A questão era: quem ou o que havia sido responsável?
Eu tinha muita coisa com que me preocupar sem pensar em algum incendiário invisível no local.
- Por que tão pensativa, filha de Lilith?
Ergui os olhos da minha comida, já na metade. - Carter!
Acho que nunca fiquei tão feliz por ver um anjo na minha vida, fora talvez quando ele me salvou de Helena, a nefilim maluca, no outono anterior. Ele estava usando
as mesmas roupas que usara em Vancouver. Parecia que ele estava em um eterno estado de desalinho - nunca melhorava, nunca piorava.
Ele se sentou, escorregando na cadeira à minha frente. - Você vai comer tudo? - ele perguntou, apontando para o meu prato.
Balancei a cabeça e empurrei o curry para ele. Ele imediatamente atacou a comida, quase a inalando. - O que está acontecendo? - ele perguntou entre as garfadas de
arroz.
- Você sabe o que está acontecendo. Seattle virou um inferno. Literalmente.
- Sim, eu percebi. Como é a sensação de estar livre, leve e solta?
- Péssima. Por algum motivo, meu cabelo está sempre arrepiado. Eu ajeitava meu cabelo sozinha antes de acontecer isso tudo, mas ele nunca ficou assim.
Carter sorriu. - Duvido que você estivesse arrumando o cabelo sozinha. Você podia se dar o trabalho, mas uma parte inconsciente de você provavelmente estava ajudando
um pouquinho para ficar perfeito.
Fiz uma careta. - Bem, mesmo que seja verdade, estou com alguns problemas mais sérios.
Fiz uma breve recapitulação de minhas aventuras da manhã e do que havia acontecido com Greg. Até mesmo falar sobre aquilo me dava um frio na espinha. Eu esperava
que Carter risse e fizesse alguma piadinha a minha custa, mas a cara dele continuou séria.
- Você precisa ter cuidado - ele disse circunspecto. - Tudo está diferente agora. É por pouco tempo, é verdade, mas, mesmo que você não possa morrer, ainda está
aprisionada em um jogo perigoso.
- Precisamos encontrar Jerome. Você sabe onde ele está?
Carter balançou a cabeça. - Não. Ele desapareceu do nosso radar também. Não sei mais do que você.
- Você provavelmente sabe mais sobre conjuração de demônios do que eu - observei.
- Depende - ele disse. - O que você sabe?
- Em grande medida, o que eu já contei. Dante não tinha muito mais para oferecer, assim como os outros que ele achou que pudessem saber alguma coisa. E esses outros
imprestáveis não entregaram nada, exceto má vontade.
Carter fez sinal para uma garçonete e pediu um prato de curry panang e café gelado tailandês. Depois, ficou batendo de leve na mesa com os dedos, com uma expressão
apreensiva e pensativa. - Eu posso contar como se faz - ele disse finalmente. - Mas não posso fazer muito mais do que isso. Isso é assunto do lado de vocês, não
do nosso. Nós não podemos interferir.
- Fornecer informações não é o mesmo que interferir - eu disse.
Ele sorriu. - Depende de como você define. E o seu pessoal é mestre em achar brechas legais e tecnicalidades.
- Sim, mas... Carter... - suspirei. - Eu não tenho mais ninguém.
Mesmo se meu carisma de súcubo estivesse no auge, acho que não teria funcionado com ele. Mas eu ainda tinha uma espécie de carisma da Georgina a que ele era suscetível.
Ele gostava de mim e se preocupava com minha vida, apesar de às vezes ter um jeito estranho de demonstrar.
O café gelado tailandês chegou e ele fez uma pausa para beber. - Tudo bem. É assim que funciona. Em princípio, um demônio é conjurado para dentro de um objeto e,
com magia suficiente, o demônio fica vinculado a ele e é aprisionado. Você já ouviu as histórias de gênios, não ouviu? Bem, elas são uma espécie de variação desse
princípio. Os humanos que conjuram demônios nos objetos podem então eventualmente libertar o demônio e obrigá-lo a fazer tarefas.
- Mas esse está mantendo Jerome trancado.
- Certo. O que torna as coisas mais difíceis. E o que dificulta mais ainda é que, se esse humano tiver um pouco de bom-senso, o objeto está escondido em um local
em que há energia. - Ele deu outro gole e esperou que eu processasse.
Eu sabia do que ele estava falando. A Terra estava cheia de locais com energia - lugares sagrados, sítios alinhados, pontos dotados de magia. Qualquer um que pare
para analisar a mitologia encontra inúmeras referências a eles e ao papel exercido por eles na história da humanidade. Só havia um problema.
- Existem dezenas deles em Seattle - eu disse devagar.
Carter concordou com a cabeça. - Sim. E, mesmo se você encontrar o certo, a energia do local vai ajudar a mascarar a energia emanada do demônio aprisionado. Para
você? Vai ser quase impossível, com seus sentidos normais. Você precisa de outro imortal para ajudar. Quanto mais forte, melhor. Ou talvez um humano com poderes
paranormais.
Dei um gemido. - Mas você não pode ajudar e um demônio também não. - O curry panang chegou, Carter devorou-o com entusiasmo. - Fora isso, vamos supor que eu encontre
esse objeto, o que quer que ele seja. E depois?
- Humm, isso também é complicado - ele disse. - Um imortal superior poderia simplesmente arrombá-lo.
- Mas não eu. - Eu estava começando a perceber como funcionava, e não era animador.
- Não, nem mesmo se você estivesse em seu estado normal. O conjurador provavelmente colocou uma tranca, um lacre. Isso vai manter afastado um imortal inferior. O
lacre é usado na hora do vínculo e depois é quebrado em dois pedaços, que são mantidos separados por segurança. É bem provável que o praticante esteja com um deles.
Se ele ou ela tiver tido ajuda de um demônio, acredito que o demônio esteja com o outro pedaço. Ou o praticante o escondeu.
- Você acha que tem outro demônio envolvido?
Ele engoliu em seco. - Com certeza. Se você puder recuperar as partes do lacre, então você poderá destrancar o objeto e libertar Jerome.
Ao ver Carter à minha mesa, fiquei esperançosa de que a minha situação lamentável pudesse se resolver logo e que eu iria conseguir que Jerome voltasse. Agora? Eu
estava mais pessimista do que antes. - Então, deixe eu ver se entendi. O que eu preciso fazer é encontrar esse objeto místico em que Jerome está trancado, um objeto
que não consigo sentir. Se o encontrar, então precisarei tirar os pedaços da tranca do conjurador e de um demônio.
- Sim - Carter disse, lambendo o garfo. - Isso resume tudo.
- Ferrou.
- Sim.
- Bem, a informação foi boa, mas eu não posso fazer nada. Não tenho nenhuma pista sobre nada disso, não sei nem por onde começar.
Os olhos acinzentados dele piscaram. - O lacre precisa ser feito de quartzo.
- Certo...
- Esculpido por mãos humanas.
Arqueei a sobrancelha, curiosa para ver aonde aquilo chegaria.
- Por alguém familiarizado com magia e runas. - Ele olhou para mim, esperando uma reação.
- E?
- Quantas pessoas você acha com essas qualidades na área de Seattle? - Ele não esperou que eu respondesse. - Não muitas.
Carter e seus enigmas. - Você está dizendo que eu deveria encontrar quem fez o lacre e esperar que essa pessoa me conte quem o encomendou?
- Certo. E ela também pode dizer quais são as características do lacre. Quase sempre é um disco deste tamanho. - Seus dedos formaram um círculo mais ou menos do
tamanho de uma moeda. - Mas a cor e os motivos variam e fornecem pistas sobre o tipo de lugar em que foi escondido.
- Meu Deus, que coisa complicada!
- Você está tentando encontrar um demônio que foi capturado e aprisionado como parte de um jogo de poder político mais amplo, Georgina - Carter disse. - O que você
queria?
- Bem observado - murmurei. - Tenho mais uma pergunta, no entanto. Não tem nada que ver com o lacre.
- Manda.
- Por que o fogão da casa do Greg explodiu?
- Por causa de um vazamento de gás.
- Que começou do nada?
Ele deu de ombros. - Comparado com o que vemos todos os dias? Coisas muito mais estranhas acontecem.
Eu fiquei olhando para ele por um momento, imaginando se deveria pressioná-lo com minha verdadeira dúvida. Ele tinha falado que não podia interferir diretamente,
mas Carter já havia salvado minha vida em outra ocasião. Ele aparecer ali nesse momento era coincidência demais... Seria possível ele ter me seguido o dia inteiro?
Teria ele ajudado a precipitar a incineração do fogão para me salvar? Daria para alegar que tocar em Greg era interferência direta... mas destruir o fogão, não,
se alguém quisesse fazer uso das tecnicalidades demoníacas. E, de uma forma tipicamente angelical, Carter não tinha realmente negado seu envolvimento.
Decidi deixar para lá. Se Carter estava querendo manter a ajuda em segredo, deveria haver um bom motivo. Com um suspiro, olhei para o relógio à minha direita. -
Bem, tecnicamente, eu ainda estou de folga, então eu deveria aproveitar para ir atrás de quem fez o lacre.
- Boa sorte - Carter disse. - Mas, sem brincadeira, eu estava falando sério. Você precisa ter cuidado. No mínimo, não vá fazer nada disso sozinha.
- Você tem certeza de que não pode quebrar as regras e vir comigo, então? - perguntei um pouco tristonha.
- Não, mas por que você precisa de mim, com tantos outros candidatos? - Com um sorriso, ele indicou com a cabeça alguma coisa atrás de mim.
Olhei para trás e vi Seth no balcão de pedidos para viagem. Torci o pescoço em direção a Carter.
- Ei! Como...
Carter tinha ido embora.
Nesse momento, a garçonete trouxe a conta, que incluía a refeição de Carter. - Malditos anjos - eu resmunguei, procurando o cartão de crédito.
Virando-me novamente, observei Seth, senti meu estômago se contorcer, como sempre. Como se tivesse me sentido, ele de repente se virou e fez contato visual. A expressão
dele registrou surpresa, depois ele levantou a mão como se estivesse dizendo espere um pouco.
Alguns agonizantes momentos depois, ele veio até minha mesa com uma sacola para viagem.
- Oi - eu disse.
- Oi.
- Isso é um almoço? - Repentinamente fiquei constrangida com o fato de ter dois pratos à minha frente.
- Na verdade, estou indo para casa trabalhar. O café da livraria está muito cheio e barulhento.
- Achei que você conseguia trabalhar em qualquer situação.
Ele balançou a cabeça. - Nesses últimos tempos, eu ando mais... desconcentrado do que o normal. - Os olhos dele me observaram por um instante e depois se desviaram.
Mas, naquele momento, senti uma ferroada passar pela minha pele. Seth pigarreou. - Então... E você?
Ele se forçou a olhar de volta para mim. - Você está com um ar... não sei. Inquieto. Não está tão ruim quanto ontem, mas você continua perturbada. Mais intriga imortal?
Boa parte da minha atual inquietação simplesmente era causada pela proximidade dele. - Sim, o pior é que sim.
- Você ainda não encontrou Jerome e você ainda...
Agora foi a minha vez de desviar o olhar. - Sim, eu segui algumas pistas sobre o Jerome hoje de manhã, e foi meio... humm, deixa para lá. Digamos que não foi uma
experiência agradável, e eu não descobri nada mesmo. - Olhei de volta na direção dele, certificando-me de manter os olhos direcionados para a camiseta da Blondie,
e não para o rosto. - Ainda preciso verificar mais uma coisa antes de encerrar por hoje.
- Isso é bom, acho. - Ele ficava mudando de posição pouco à vontade e a desagradável tensão entre nós, tão característica, multiplicou-se. - Então... - ele começou,
por fim. - Eu sei que nós já falamos sobre isso... mas preciso perguntar mesmo assim. Posso fazer alguma coisa para ajudar?
A resposta mordaz estava na ponta da língua, dizer que não precisava dele, não mais. Mas a imagem de Greg apareceu como um flash na minha cabeça, e eu me odiei por
causa do medo que ela invocava. Não queria ser uma donzela em apuros. Não queria viver com medo e precisar de um homem para me proteger. O peso de Greg e o elemento
surpresa tinham demonstrado que a autodefesa nem sempre funcionava. Às vezes, era difícil enfrentar o perigo sozinha. As palavras de Carter ecoavam na minha cabeça:
Por que você precisa de mim com tantos outros candidatos?
Soltei minha pergunta antes de ter tempo para pensar duas vezes.
- Você poderia vir comigo?
É difícil dizer qual dos dois ficou mais surpreso.
- Em sua missão? - ele perguntou.
Fiz que sim com a cabeça. - Sim, mas, quer dizer, se você tiver coisas para fazer...
- Eu vou - ele disse rapidamente. Ele levantou a sacola com a comida. - Posso comer no carro?
- Você pode comer agora - eu disse. - Visto que eu ainda não sei para onde vamos.
Deixei Seth comendo à mesa e saí para dar uns telefonemas. O primeiro foi para o Dante. Ele atendeu, felizmente, mas não tinha a menor ideia do que eu precisava.
- Alguém que faça esculturas de cristal? - ele perguntou incrédulo. - Não mexo com essa bobajada New Age.
- Descobri mais coisas sobre conjuração de demônios. Aparentemente, há uma espécie de lacre envolvido, que só um artesão habilidoso pode fazer.
- Não conheço ninguém assim - ele disse. - Por mais que eu lamente admitir não saber alguma coisa.
- Bem, acho que até você tem seus limites.
- Você estará muito encrencada da próxima vez em que eu a encontrar.
Depois de desligar, tentei Erik. Ele também atendeu e, como sempre, não se deu o trabalho de me perguntar por que eu precisava dessa informação. - Existe uma pessoa
- ele refletiu. - Eu já comprei peças de cristal dela, esculpidas com símbolos sagrados variados - ankhs e cruzes. Não sei se ela trabalha com esoterismo ou feitiçaria,
mas é a única por aqui que se aproxima da descrição.
Anotei o nome e o endereço dela e voltei ao restaurante. Seth tinha quase terminado de comer, podia competir com Carter em velocidade. - Já temos um destino para
nossa missão?
Concordei. - Sim. E é nos confins da Terra.
Tudo bem, Carnation não era exatamente no fim do mundo, mas ficava bem longe da área central de Seattle e até da periferia da cidade. Era uma das pequenas comunidades
rurais fincadas na extremidade de Washington, antes de abrir caminho para a região selvagem das montanhas e o deserto do outro lado.
Fiz uma parada no Starbucks no caminho para ingerir um pouco de cafeína. Parecia ser indispensável para enfrentar a situação. Quando Seth me disse para pedir um
frappuccino mocha para ele, quase bati na janela do
drive-thru.
- Tem cafeína - eu disse.
- Eu sei, mas é gostoso. Maddie me deixou viciado.
Ficamos em silêncio absoluto por dez minutos depois disso. Se não fosse pela conjuração de Jerome, eu teria dito que isso era a coisa mais espantosa que tinha acontecido
comigo nas últimas vinte e quatro horas. Seth estava ingerindo cafeína. Isso era inédito. Ele tinha se abstido por anos e, apesar do meu evidente vício e das tentativas
de persuasão ao longo do nosso relacionamento, ele nunca tinha dado sinais de que cederia. No entanto, Maddie - Maddie - tinha de alguma forma conseguido fazê-lo
mudar?
Não sei por que fiquei tão ofendida. Sinceramente, era uma coisa sem maiores consequências para o funcionamento do universo. Ainda assim... eu não conseguia não
me sentir ofendida. Bem, talvez ofendida não fosse a palavra certa. Inadequada, talvez. Ela tinha conseguido levá-lo a fazer uma coisa que eu não conseguira. Por
quê? Por que ela e não eu? Ela era mais inspiradora? Ele gostava mais dela?
- Alguma coisa errada? - Seth perguntou por fim. Meu silêncio e a maneira como eu segurava a direção provavelmente tinham dado certa bandeira.
- Não - menti. - Só estou preocupada com isso tudo.
- Não está.
- Não estou preocupada com isso tudo?
- Tudo bem, está. Mas não é por isso que você está aborrecida agora. Você está aborrecida por causa disto. - Com o canto o olho, vi que balançou o Frappuccino. Depois
de todo esse tempo, ele ainda me conhecia.
- Que tolice. Por que eu me importaria com isso?
Ele suspirou. - Porque eu conheço você. Você está irritada por eu ter feito uma coisa que eu disse que nunca faria.
- E por que eu deveria me importar? - respondi tensa. - Estou feliz por você estar expandindo seus horizontes.
O modo com que ele me olhou me dizia que ele não tinha acreditado.
Chegamos ao endereço que Erik havia me dado sem discutir mais o assunto, em grande medida porque nós não falamos nada. Era uma casa térrea muito antiga, com um quintal
enorme, que poderia ser loteado se fosse em Seattle. Enfeites de jardim - um veado, um gnomo, para citar alguns - lotavam a grama, e sinos de vento pendiam na varanda.
Batemos na porta e logo depois uma mulher perto dos cinquenta anos atendeu. Ela tinha o cabelo tingido de ruivo com uma tonalidade pouco natural, que me fez lembrar
a cor atual do cabelo da Tawny. A blusa justa esmagava um colo avantajado para dentro do decote arredondado e também não era muito diferente de algo que Tawny usaria,
só um pouco menos brega. Ela nos observou com uma expressão mais de curiosidade do que de hostilidade.
- Oi - eu disse. - Você é Mary Wilt...
- Meu Deus! - ela disse com uma voz aguda. Ela tinha acabado de olhar bem para Seth. - Você é Seth Mortensen!
Seth ficou tenso e trocou olhares comigo. - Bem, sim...
Ela esbugalhou os olhos azulados enquanto praticamente babava nele. - Não acredito. Não acredito! Seth Mortensen está na minha varanda! Reconheci você pelo site.
Eu entro no seu site todo dia. Todo dia. Meu Deus. Meu Deus! Sou sua maior fã. Entre!
Seth estava mesmo com cara de quem queria sair correndo dali, mas eu o empurrei para dentro. Esse desdobramento era um pouco inesperado - e assustador -, mas poderia
funcionar a nosso favor.
Entramos. Não havia nada especialmente diferente no interior da casa. A decoração era mais moderna do que a parte de fora indicava, tudo em cores neutras. Havia
uma quantidade normal de objetos que pareciam ter sido acumulados ao longo do tempo e muito mais estatuetas do que o bom gosto permitiria, mas, no geral, era um
lugar agradável. Algumas das estatuetas eram esculturas de cristal, o que considerei ser um bom sinal.
- Entrem, entrem - Mary pedia efusivamente, apontando para a sala. - Sentem-se! Sentem-se! Vocês querem alguma coisa? Chá gelado? Café? Tequila?
- Não, obrigado - Seth disse, evidentemente cada vez menos à vontade com tudo.
Ele e eu nos sentamos no sofá, e Mary se sentou em uma poltrona diante de nós, inclinando-se para a frente de um jeito que possibilitava ampla visão dos seios dela.
- O que eu posso fazer por vocês? - ela perguntou. - Vocês estão aqui para comprar alguma coisa? Eu faria qualquer coisa para você. Qualquer coisa. - Ela deu um
sorriso para Seth, deixando o significado de “qualquer coisa” bem claro. - Você é muito mais bonitinho do que eu imaginava. Você poderia autografar meus livros enquanto
estiver aqui? Tenho todos eles.
Ela fez um gesto na direção de um conjunto de prateleiras na parede e, sem dúvida, os livros de Seth se destacavam. Eu já era fã de Seth muito tempo antes de começarmos
a namorar e me perguntei, inquieta, se eu tinha dado a impressão de estar tão entusiasmada e desesperada naquele tempo. Ela provavelmente teria desmaiado se soubesse
que Seth havia me dado uma prova do próximo livro.
- É claro - disse Seth. - Eu adoraria. - Ele me deu uma cotovelada, sem dúvida na tentativa de me fazer contar o motivo de nossa visita e salvá-lo. Ainda um pouco
irritada por causa da conversa no carro, eu meio que estava gostando de vê-lo nas garras dela.
- Na verdade, nós não estamos aqui para comprar nada - eu disse a ela. - Nós queremos informações sobre uma peça que você talvez tenha feito recentemente para alguém.
Mary se virou para mim, como se tivesse acabado de notar minha presença. A expressão de voracidade e satisfação diminuiu e ela ficou até um pouco desconfiada. -
Quem é você mesmo?
- Georgina. Nós gostaríamos de saber se você fez uma peça recentemente para um cliente. Um disco mais ou menos deste tamanho com algum tipo de símbolo esotérico
esculpido. - Eu reproduzi mais ou menos o tamanho que Carter havia me mostrado.
A expressão dela foi ficando cada vez mais desconfiada e cautelosa. - Não sei de nada.
Franzi o cenho. - Você não se lembra?
Ela balançou a cabeça. - Eu tenho um registro de todas as minhas peças. Mas é confidencial. Não posso dar esse tipo de informação.
- É muito importante - eu disse. - Nós achamos que... pode ter havido um crime.
- Desculpe, Gisele. Não posso falar nada. A não ser que você traga a polícia ou algo do tipo.
- Georgina - eu corrigi. O respeito dela à confidencialidade dos clientes era bem compreensível - mas eu não estava preocupada com o que seria moralmente correto
naquele momento. Dei uma cotovelada em Seth, esperando que ele se manifestasse e usasse seu poder divino de autor. Ele demorou um pouco, mas reagiu.
- Isso ajudaria tanto, Mary. Nós... eu... realmente ficaria muito agradecido. - Ele tropeçou um pouco nas palavras, mas, pela forma como a expressão dela se iluminou,
dava a impressão de que ele tinha acabado de sussurrar alguma coisa muito sensual no ouvido dela.
- Oh, Seth - ela suspirou. - Eu realmente faria qualquer coisa por você, mas, bem, eu tento de fato respeitar a privacidade dos meus clientes. Com certeza, um homem
como você compreende isso.
- Bem, sim, é claro, eu - dei uma cotovelada nele de novo. Ele olhou rapidamente para mim e depois voltou a olhar para ela. - Quer dizer, eu compreendo, mas, como
eu disse, é muito importante.
A indecisão fez transparecer o conflito na expressão dela e eu quase senti respeito por ela ter princípios. Ela parecia irredutível, e eu tinha a impressão de que
Seth não seria mais muito insistente. Olhando para além dela, vi um corredor que levava para outra parte da casa. Eu tenho um registro de todas as minhas peças.
- Você tem razão - eu disse abruptamente. - Não podemos querer que ela forneça esse tipo de informação, não é, Seth?
Ele olhou de novo para mim, com uma expressão de curiosidade. - É? - Foi mais uma pergunta do que uma confirmação.
Mary quase se derreteu de alívio e não tirava os olhos de Seth. - Oh, eu sabia que você entenderia. Eu percebi imediatamente que nós pensamos igual. Almas gêmeas
e essas coisas, sabe? Só pelo jeito como você escreve, eu...
- Ei, Mary? - interrompi.
Ela me deu uma medida, novamente espantada por eu ainda estar lá.
- Será que eu poderia usar o banheiro?
- Banheiro? - ela repetiu como se fosse algo inusitado.
- Foi uma longa viagem - expliquei amavelmente. - Além disso, assim, você e Seth vão poder se conhecer melhor enquanto ele autografa os livros.
A expressão dela se iluminou de novo, e ela se virou para Seth sem nem olhar para mim. - É claro! Boa ideia, Georgia. No fim do corredor.
Eu me levantei. - Obrigada.
Seth e eu trocamos um olhar rapidamente. Ele estava com uma expressão de pânico e cautela. Não queria ficar sozinho com ela. Ele também sabia que eu não ia desistir
facilmente. Ele desconfiou que eu estava planejando alguma coisa.
E estava certo. Eu ia invadir os registros de Mary.
Capítulo 15
Mary não parava de falar com entusiasmo e a voz dela ressoava pela casa enquanto eu atravessava apressadamente o corredor. Eu podia ver o banheiro no final e três
portas fechadas no caminho.
Ótimo. Elas tinham de estar fechadas. Com minha sorte, provavelmente iam ranger. Minha única esperança era que Mary continuasse a falar alto e continuasse distraída
o suficiente para não perceber.
A primeira porta se abriu - sem ranger - para um quarto. A cama não estava feita e havia roupas empilhadas perto de uma parede. Havia uma velha cômoda encostada
em outra parede e uma mesa de cabeceira com alguns papéis perto de outra. Havia também um espelho no teto.
Estremecendo, pensei em examinar os papéis da mesa de cabeceira, mas decidi esperar e ver se encontrava um escritório atrás de uma das outras portas. Fechei a porta
com cuidado e continuei a avançar pelo corredor.
A segunda porta rangeu e eu gelei, esperando Mary vir correndo atrás de mim, tentando me golpear com um dos livros de Seth. Não sabia ao certo até que ponto o poder
estelar dele poderia me salvar se ela me pegasse bisbilhotando. Ela não parecia ser do tipo violento, mas nunca se sabe. Felizmente, ela continuava a falar sem parar
e eu coloquei a cabeça para dentro do novo ambiente. Era outro quarto, de hóspedes, pela aparência da poeira e pela ausência de objetos pessoais. Fechei a porta,
fazendo uma careta com o rangido. Sá faltava uma.
Bingo.
A terceira não era um escritório, mas parecia ser um local de trabalho. Havia mesas amplas encostadas nas paredes, cobertas de pedaços de cristal - quartzo transparente,
fumê etc. - de várias formas e tamanhos. Alguns estavam em estado bruto e cheios de arestas; outros, polidos e entalhados. Havia ferramentas como lâminas e estiletes
e também um equipamento sofisticado com cara de moderno, que eu não sabia o que era. Talvez uma espécie de cortador a laser.
E, o melhor de tudo, um arquivo com duas gavetas, encostado na parede. Fui rapidamente até ele, ainda prestando atenção na conversa de Mary, e abri a gaveta de cima.
Dei de cara com mais de cem pastas de arquivo com nomes. Puxei uma ao acaso e vi que continha mesmo uma ordem de serviço. Havia uma descrição do item, informações
sobre o cliente, o andamento do trabalho e uma foto do produto pronto. Eu não tinha a menor ideia do nome da pessoa que poderia ter encomendado o lacre - ou mesmo
se Mary era quem o havia feito.
Frustrada, abri a outra gaveta e encontrei registros financeiros, como contas e extratos bancários. Também encontrei pastas etiquetadas com “registro de trabalho”
e catalogadas por mês. Puxei ansiosa a do mês e achei uma lista simples com datas, nomes de clientes e breves descrições dos produtos. Todos - exceto os três mais
recentes - estavam ticados. Produtos terminados, provavelmente.
Verifiquei as datas anteriores ao desaparecimento de Jerome, cruzando com as descrições. Estátua verde de Tara. Bracelete. Punhal. Três faturas das últimas duas
semanas me chamaram a atenção: pendente redondo, talismã, medalhão. Não reconheci nenhum dos nomes dos clientes, mas o culpado sem dúvida poderia ter usado um nome
falso.
Voltando para a segunda gaveta, encontrei o arquivo de cada cliente. O pendente tinha a forma e o tamanho certos, mas era perfurado no meio, para passar uma corrente
ou um fio. Não sei por que, mas algo me dizia que a forma original do lacre deveria ser inteiriça. O talismã era do formato errado. Era espesso e oval, mais como
uma pedra que uma pessoa poderia levar no bolso, para dar sorte.
Comecei a entrar em pânico. Estava demorando demais, e eu não ouvia mais a Mary. Santo Deus, espionagem era muito mais fácil quando eu podia ficar invisível. Com
as mãos trêmulas, puxei a última pasta - o medalhão. O cliente era Sam Markowitz e tinha ido buscar sua encomenda havia quatro dias. A foto mostrava um disco chato
do tamanho de uma moeda feito de quartzo fumê com símbolos gravados que eu não conhecia. Seria esse? Era a coisa mais próxima da descrição de Carter que eu encontrei.
Poderia haver outros - itens encomendados meses antes -, mas eu não tinha tempo para verificar mais nenhuma pasta. Enfiei a foto do medalhão na bolsa, fechei a gaveta
e voltei rapidamente para o corredor, meio esperando que Mary estivesse no meio do caminho me aguardando.
Entretanto, não precisei me preocupar. Ela não tinha desgrudado de Seth - literalmente. Ela estava sentada no meu lugar, espremendo Seth contra o braço do sofá.
Havia duas pilhas de livros sobre a mesa de centro e, no colo dele, um aberto. Ele acabou de autografá-lo e ergueu os olhos quando eu entrei, com um ar aliviado.
- Mas, veja - Mary estava dizendo -, se O’Neill não for capaz de enfrentar a escuridão dentro de si mesmo, ele nunca vai conseguir se abrir com Cady. Ele tem seus
momentos de vulnerabilidade, é claro, como na cena da caverna em Eclipse dominante, mas ele ainda veste uma armadura, como na varanda em Memórias de um homem, assim,
não é para menos que...
- Ei - eu disse animada. - A gente precisa ir.
Seth levantou voando, parecendo um animal encurralado que tinha acabado de roer a própria perna e estava prestes a se libertar. - Sim, não queremos incomodar a Mary.
Mary também se levantou. - Não, não! Tudo bem. Mesmo. E você precisa terminar de autografar meus livros.
Com uma careta, Seth pegou os três últimos livros e rabiscou um autógrafo neles. - Obrigado por nos receber - ele disse. - Foi um prazer conhecer você.
- Você tem certeza de que precisa ir embora? - ela disse implorando. - Eu ia começar a fazer o jantar. - Ela me lançou um olhar acusador. - E se a Ginger ali precisa
ir embora, posso levar você para casa mais tarde, na minha van...
- Não, não precisa - Seth disse, andando para trás a fim de se colocar a meu lado. - Muito obrigado, mas eu preciso, sabe... voltar para casa para escrever.
Foi um sufoco para se livrar dela. Mary implorava e ficava oferecendo de tudo, de adornos com desconto a insinuações sexuais bem pouco veladas.
- Acelere o carro e não olhe para trás - Seth me disse quando entramos no carro.
Obedeci, enfiei o pé no acelerador e saí levantando poeira e pedregulhos pelo caminho.
“Essa daí”, refleti, “é o tipo de fã que aprisiona autores no porão.”
Seth jogou a cabeça para trás. - Nunca mais faça isso comigo. Nunca mais.
- Eu não estava tão longe. Teria ouvido você gritar.
- Não se ela usasse éter antes. Por Deus, Georgina. Ela estava com a mão na minha perna.
- Pra você, é Ginger.
- Por favor, diga que conseguiu alguma coisa de útil. Eu sei que você não foi ao banheiro.
- Não. Eu invadi a oficina dela e revistei os arquivos.
Ele gemeu. - Invasão de propriedade.
- Ei, eu sou uma criatura do inferno. E, a rigor, ela nos convidou.
- O que você achou?
Com os olhos na estrada, peguei a bolsa e revirei até encontrar a foto. Entreguei-a para Seth.
- É isso? - ele perguntou.
- Não tenho certeza. Aproxima-se da descrição, mas não sei o suficiente para poder dizer.
- Humm.
Seth observou-a e depois a colocou de volta na minha bolsa. Avançamos mais alguns minutos em silêncio até que finalmente eu perguntei: - Eu nunca fui uma fã tão
assustadora, fui? Louca desse jeito?
- Não, imagine - ele disse. - De modo algum. Você era encantadora e simpática e... - ele parou de repente, mas aquelas palavras ficaram pairando no ar. - Você...
Você não era assim. Nem um pouco parecida - ele conseguiu dizer, por fim. Disse isso com uma voz rouca que deixava transparecer algum sentimento, mas se recusava
a revelar qual.
Minha intenção era que o comentário fosse uma brincadeira, só uma forma de puxar conversa. No entanto, como tudo ultimamente, as palavras tinham acabado por desencadear
muito mais significado do que minha intenção inicial. Lembrei-me de quando Seth e eu nos conhecemos, eu nem sabia quem ele era. Despejei minhas opiniões sobre meu
autor favorito, sem saber que na verdade estava falando com ele. Diferentemente de Mary, eu não o perseguia na internet e não sabia como ele era.
Seth pigarreou. - Então... O que você vai fazer com a foto agora?
Acompanhei a mudança de assunto. - Arranjar alguém para me dizer o que é, acho. Erik, talvez. Ou Dante.
Mais silêncio, e senti que a tensão aumentava. Dante. Mais uma vez, palavras inofensivas tinham desencadeado consequências consideráveis entre nós. Eu esperava que
Seth tentasse novamente mudar de assunto, mas, em vez disso, ele na verdade deu continuidade.
- É estranho... ver você com Dante.
- Você não está querendo dizer que é estranho me ver com qualquer um?
- Bem...
Mesmo com os olhos na estrada, eu sabia que ele estava com aquele olhar pensativo, um pouco alheio, o que significava que ele estava tentando encontrar a melhor
forma de dizer as próximas palavras. Eu adorava aquele olhar. Agora, eu estava em alerta máximo.
- Sim, de certa forma, sim - ele admitiu por fim. - Vai ser sempre estranho. Mas, toda vez que eu falo com ele, eu simplesmente acho que...
- Se você disser que eu mereço coisa melhor, vou parar o carro agora.
- Humm, não. Só ia dizer que ele não parece ser o seu tipo.
- Isso é quase a mesma coisa - observei. - Você está parecendo Hugh e os outros. Estou ficando cansada disso! Sinceramente, não importa quem eu namore. Você nunca
vai ficar satisfeito.
- Não é verdade - Seth disse. - É só que... quando está com ele, você fica mais sombria, mais cínica. Você não é como você costumava ser. Isso pode parecer besteira,
considerando o que você é, mas... bem, você é uma força para o bem no mundo.
- Ah, vai - eu disse.
- Não, é sério. Você pode ser uma criatura do inferno, mas as pessoas se sentem melhor quando estão perto de você. Esse seu jeito de falar e de sorrir produz um
efeito sobre todo mundo. Você é simpática, tem bom coração, se preocupa com os outros... - ele suspirou. - Mas quando você está com o Dante, é como se todo o brilho
que normalmente irradia fosse consumido.
- Esse brilho foi tirado de mim há muito tempo - eu disse com amargura. - Muito antes de ele chegar.
- Não, não foi. Ele está aí, e você vai se envolver com alguém, alguém que a ame e que queira ajudar a trazê-lo para fora.
Eu tinha alguém assim, eu pensei. Você.
- Dante e eu funcionamos bem juntos, não importa o que qualquer um de vocês ache. Ele me entende.
- Não - Seth disse impassível. Ele falou em voz baixa, mas eu podia ouvir a raiva nela. - Ele não entende.
- Que outras opções eu tenho? Você está me jogando em uma situação impossível. Você sabe que eu não posso namorar ninguém que seja bom. Não posso me arriscar a machucar
alguém, mas eu não quero ficar sozinha. Essa é minha única opção.
- Não. Não pode ser. Antes de nós ficarmos juntos, não era assim. Você não estava o tempo todo bebendo e transando com caras anônimos no banheiro!
Foi então que aconteceu, eu fiz exatamente o que um pai faria em uma viagem de carro. Encostei no acostamento da estrada. Era uma longa estrada do interior e não
tinha muito movimento. Seth ficou olhando incrédulo.
- O que você está fazendo?
- Evitando um acidente - eu resmunguei, virando-me de forma a poder olhar diretamente nos olhos dele. - E sorte sua se eu não fizer você descer e voltar a pé o resto
do caminho. Olhe, você quer saber por que eu não estava saindo com caras que não são grande coisa quando nos conhecemos? Porque eu não estava saindo com ninguém.
Eu fazia meus ataques e depois voltava para casa sozinha. O que tem de tão errado no fato de eu querer ficar com alguém agora?
- Se você está saindo ou não com alguém, não tem importância. Você não deveria agir assim!
- Você está me dizendo o que eu devo ou não devo fazer? Isso é problema meu. Você não tem o direito! - eu gritei de volta.
- Amigos têm todo o direito de avisar os amigos quando eles estão indo pelo mau caminho - ele retrucou.
- Mentira! Nunca vi você se meter na vida de ninguém, por mais que estivessem fazendo besteira. A única vida em que você quer se meter pelo visto é a minha. Por
que você está tão preocupado com o que eu faço? - Seth e eu quase nunca levantávamos a voz quando estávamos namorando e nunca tínhamos chegado nem perto disso. Não
sei como os vidros das janelas não estouraram.
- Porque eu me importo com você! Eu lhe disse isso na festa. Terminar não significa parar de gostar.
- Tudo bem, mas quer dizer que é preciso libertar a outra pessoa. - Eu estava tão aborrecida que estava prestes a romper em lágrimas. - Não dá para ter tudo ao mesmo
tempo. Você não pode se livrar de mim e depois tentar se reaproximar.
- Eu nunca quis me livrar de você.
Eu fiquei olhando para ele por alguns momentos pesados e senti aquelas lágrimas traiçoeiras cada vez mais perto de transbordar. - Então por que você fez isso?
Depois de toda aquela gritaria, a voz dele saiu praticamente como um sussurro.
- Porque... porque eu queria salvar você.
- Você não pode - murmurei, engolindo as lágrimas com muito esforço. - Você não pode ficar me salvando, não pode ficar tentando me salvar. É tarde demais.
- Não - ele disse com o coração nos olhos e despedaçando o meu. - Não por você. Nunca.
Não sei exatamente como aconteceu, mas, de repente, estávamos nos beijando. Os lábios dele eram exatamente como eu lembrava, macios, poderosos, lindos. Não foi um
beijo recatado nem um beijo do tipo um arrancando as roupas do outro. Foi faminto e desesperado, como se estivéssemos tentando sobreviver em um deserto e somente
agora tivéssemos encontrado a água de que precisávamos para sobreviver. E, o melhor de tudo, era apenas beijo. Apenas eu e Seth. Não havia nada de energia vital
e armações de súcubo envolvidas. Não era preciso se conter por medo do que poderia acontecer. Poderíamos beber um do outro sem precisar nos conter.
Exceto pelo fato de que, bem, nós nos contivemos.
Nós nos afastamos com um movimento brusco, e eu sabia que o espanto na expressão dele refletia o meu. O que tínhamos acabado de fazer? Nós... Nós tínhamos realmente
feito aquilo? Era um beijo. Um beijo de verdade. O tipo de beijo que nós sempre desejáramos. O beijo que não podíamos dar.
Virei-me abruptamente, olhando para a estrada à nossa frente. Eu estava gelada e anestesiada... e, ainda assim, viva e cheia de calor. O mundo tinha passado por
aquele beijo. Mas eu não sabia como reagir, não sabia o que deveria fazer agora. Então, fiz a coisa mais sem sentido possível. Liguei o carro.
- Precisamos voltar - eu disse.
- Precisamos - ele concordou, tão espantado quanto eu.
Ousei dar uma espiada pelo canto dos olhos. Ele olhava fixamente para a frente, seus lindos lábios apertados formavam uma linha que de alguma forma os fazia parecerem
fortes e vulneráveis ao mesmo tempo. Eu queria me inclinar e beijá-los de novo, derreter-me como havia feito alguns momentos antes e esquecer totalmente a razão.
Queria que aquela sensação perfeita durasse para sempre.
Em vez de lidar com o que tinha acabado de acontecer, porém, eu tomei a atitude mais covarde e acelerei o carro. Fomos até a cidade em um silêncio deprimente, nenhum
de nós comentou sobre o beijo, mas os dois estavam pensando nele. Eu o deixei na livraria e lhe agradeci educadamente pela ajuda. Ele respondeu de forma igualmente
polida - com um último olhar pensativo - e depois foi andando até o carro dele. Fiquei olhando ele se afastar, memorizando cada linha do seu corpo e como ele se
movia. Todas as emoções possíveis entraram em conflito dentro de mim, e eu não tinha a menor ideia de qual delas deveria sair vencedora.
Eu estava exausta quando cheguei ao meu apartamento. O dia havia sido desgastante tanto do ponto de vista físico como do emocional, com um possível estuprador, roubo
e o beijo que tinha dado a volta no mundo. Mais tarde eu tentaria achar alguém que pudesse me dizer alguma coisa sobre a foto. No momento, eu só queria me esparramar
no sofá e ver televisão, de preferência algo que não tivesse nada a ver com magia ou coisas paranormais - ou qualquer tensão romântica.
Infelizmente, a magia e o mundo paranormal estavam esperando por mim.
O que Nanette estava fazendo ali?
Foi meu último pensamento coerente antes de ser atirada para o outro lado da sala.
A batida foi forte, minha cabeça fez um barulho quando bateu na parede. Caí no chão, minhas pernas mal tiveram reflexo para não me deixar cair no chão quando minha
visão ficou borrada com pontos pretos. Ela não tinha encostado a mão em mim, não precisava, não com o poder que ela possuía.
- Como você ousa... - ela sibilou, como os olhos apertados. - Como você ousa espalhar esse tipo de boato?
- Do que você... ai! Fui novamente jogada contra a parede. A distância não foi tão grande quanto a anterior, mas a força foi tamanha que a dor provocada pelo impacto
parecia ser a mesma. Mais dor atravessou o meu crânio quando tentei imaginar o que estava acontecendo.
- Eu não sei do que você está falando! - gritei.
Nanette veio em minha direção, colocando o rosto a centímetros do meu. - É claro que você sabe. Você disse para o Cedric que eu havia conjurado Jerome, que era eu
quem estava provocando o caos neste território.
- Não foi isso - choraminguei. - Não exatamente. Eu só contei para ele que você tinha vindo se encontrar com Jerome.
Ela rosnou e me agarrou pela parte da frente da camisa, puxando-me para frente. - Aquilo não foi nada. Nada! Mas agora todo mundo está desconfiado.
- Eu só achei que ele devia saber e...
- Você sabe o que pode ter causado? - ela gritou. - Eu era candidata a esta cidade! Você pode ter arruinado tudo.
Ela me jogou de novo, dessa vez para o canto onde ficava minha tevê. Os cantos pontudos me espetaram quando bati e despenquei no chão. Tentei me levantar, mas não
precisei. Nanette estava bem a meu lado. Pude ver muito bem o sapato preto de salto agulha antes de ela me dar um chute na costela. A dor me atingiu, e meu corpo
instintivamente tentou se curvar para se proteger. Mas ela era muito rápida e muito poderosa. Greg tinha muita força bruta à disposição, força bruta à qual eu pude
reagir um pouco. Mas contra Nanette? Contra um demônio? A força dela estava muito além da humana, quase além da compreensão humana.
- Não... mexa... comigo - ela disse, pontuando cada palavra com um chute na minha barriga ou nas costelas. - Você entendeu? Você não é nada. Nada.
- Desculpe - eu disse. Meus olhos estavam queimando e cada pedaço do meu corpo uivava, implorando para que aquilo acabasse.
Ela parou de me chutar, eu me virei de lado, mas uma onda de poder me atingiu e me virou de bruços, imobilizando-me no chão com uma tonelada de tijolos invisíveis.
Tentei me mover, mas não conseguia sair do lugar.
- Não me interessa se você é a preferida de Jerome ou a nova queridinha de Cedric - ela disse. A voz dela era apenas gelo e maldade. Novamente, ela não pôs as mãos
em mim, mas a parte de trás da minha camisa rasgou. - Eu poderia destruir você agora, varrer você da face da Terra e ninguém ia dizer nada... Sorte sua que estou
de bom humor hoje.
O “bom humor dela” parecia mil chicotes me dilacerando as costas. Pequenas chibatadas de poder afiadas como lâminas e queimando como uma chama me atingiram. Gritei
quando elas cortaram minha pele, abrindo-a. Uma parte de mim achou que, se eu gritasse alto o suficiente, talvez algum vizinho me ouvisse. Era um sentimento inútil,
no entanto. Ela devia ter isolado a sala, assim como os demônios haviam isolado o salão do Cellar. Além do mais, o que um mortal poderia fazer contra isso?
As chibatadas invisíveis me acertavam sem parar. É claro que eu não podia ver o que estava acontecendo, mas, com os olhos de minha mente, eu imaginei minha pele
rasgada em tiras, minhas costas numa verdadeira lambança ensanguentada. Não sei quantas vezes as chicotadas se repetiram. Elas se fundiram. Eu estava rapidamente
chegando ao ponto em que a dor era tanta, tão insuportável, que eu já quase não podia senti-la. Minha visão escurecia, meu cérebro mal estava consciente.
Quando o açoitamento finalmente terminou, perguntei-me se eu estava morta. A sala estava imóvel e em silêncio. Então, a força invisível saiu de minhas costas. Tentei
me virar, mas não conseguia. Nanette ajoelhou, com os lábios bem na minha orelha.
- Não se meta comigo - ela cochichou. - Se você interferir de novo, eu vou matar você.
Ela desapareceu. Fiquei sozinha, soluçando e sangrando. Tentei me mexer de novo, mas não conseguia. O que eu ia fazer? Não podia nem pedir ajuda. É claro que provavelmente
não fazia diferença. A dor era tão grande que ou eu ia morrer ou ia desmaiar a qualquer momento. Artifícios humanos não podiam me matar, mas os demoníacos, sim,
estivesse eu em estase ou não.
De repente, do nada, senti braços fortes passarem por baixo de mim, levantando-me delicadamente, de um modo que minhas costas continuaram para cima. Abafei um grito.
Mesmo sem minhas costas serem tocadas, o movimento mexeu com todos os músculos do meu corpo que Nanette havia ferido. Abri os olhos, tentando ver quem estava lá,
mas a minha visão estava confusa e rapidamente escurecendo.
- O que... - foi tudo o que consegui emitir.
- Shh, querida. Vai ficar tudo bem. Você vai ficar bem.
Aqueles braços me colocaram com cuidado na cama. Gemi novamente quando minhas costelas queimaram de dor. Mãos frias acariciaram meu cabelo, mas eu ainda não conseguia
ver nada.
- Não posso curá-la - a voz disse. - Mas vou encontrar alguém que possa. Vai ficar tudo bem.
A voz não me era estranha, mas eu não consegui identificá-la, eu estava confusa. Eu mal podia respirar, imagine pensar. Depois disso, ficou tudo quieto, como se
meu benfeitor misterioso tivesse ido embora. No entanto, pouco depois, vi com a visão embaçada mãos colocando Aubrey na cama a meu lado. Ela se inclinou, cheirando
minha cara. Uma das mãos amigas acariciou a cabeça dela de um jeito que muitas vezes pode persuadir gatos a se deitar. Funcionou, e, depois de dar umas duas voltas,
ela se acomodou ao meu lado.
Então, a mão tocou meu cabelo uma última vez. - Vai dar tudo certo.
Essa foi a última coisa que eu me lembro de ter ouvido. Meu salvador pode ter ficado mais ou ter ido embora. Eu não sabia, porque, pouco depois, o escuro finalmente
venceu, e eu caí em um sono profundo, por misericórdia, livre da dor.
Capítulo 16
- Georgina.
Ouvi meu nome vindo de longe, muito longe, por um túnel interminável. Ele ecoou pelas paredes da minha cabeça, alto, no início, e depois foi enfraquecendo até virar
nada.
- Georgina. Olhe para mim, querida.
- Deixe-a dormir, Hugh.
- Não, preciso falar com ela para ter certeza de que não sofreu nenhuma pancada. Georgina, vamos lá. Abra os olhos para mim.
Por entre um nevoeiro escuro, meu cérebro encaixou as palavras e lentamente compreendeu o significado delas. Algum reflexo básico em mim queria obedecer, mas parecia
que minhas pálpebras estavam grudadas. Pensar - e, pior ainda, responder - era difícil demais, no entanto, mais palavras me incentivaram.
- Isso mesmo, querida. Tente de novo. Você está quase conseguindo.
Com muito esforço, finalmente consegui abrir os olhos. A dor foi lancinante. Parecia que minhas pálpebras eram de chumbo. Primeiro, eu só consegui distinguir uma
coisa: luz. Meu rosto se contorceu, eu queria me afundar de novo naquele esquecimento do qual eu havia sido chamada de volta. Com essa breve sensação de consciência,
toda a dor da qual eu havia escapado voltou de repente. Minha cabeça estava explodindo. Minhas costas queimavam. O clichê sobre quebrar todos os ossos do corpo de
repente me parecia ser uma possibilidade real, e eu estava certa de que tinha quebrado alguns que nem sequer estavam no meu corpo. Aquilo não fazia sentido, mas,
do jeito que eu estava, pouca diferença fazia.
- Meu Deus... - Pelo menos foi isso que eu tentei dizer. Saiu mais parecido com um gemido indiscernível.
- Calma. Não precisa dizer nada.
Abri os olhos de novo; dessa vez, consegui distinguir um vulto inclinado sobre mim. Eu conhecia a voz dele tão bem que não precisava ver o rosto, que de qualquer
jeito era só um borrão.
- Hugh - murmurei.
- Ei, pergunte a ela o que...
- Cale a boca - Hugh retrucou. O movimento brusco da cabeça me deu a impressão de que ele tinha olhado para trás, mas eu não tinha certeza.
Ele aproximou o rosto de mim, fazendo suas feições adquirirem um relevo mais nítido. Estava mais pálido do que nunca, com uma expressão cheia de
rugas de preocupação e medo como eu nunca imaginei que ele fosse capaz
de ficar. Parecia mais consternado até do que quando tinha vindo nos contar sobre a conjuração de Jerome. Movendo as mãos na minha direção, Hugh segurou as pálpebras
de um dos meus olhos para que ele ficasse aberto e acendeu uma luzinha. Eu me contorci com a luminosidade - ou, pelo menos, tentei -, mas ele foi rápido e fez a
mesma coisa com o outro olho antes de provocar muito desconforto. Quando terminou, ele moveu o dedo pelo ar e observou meus olhos enquanto eu o acompanhava.
- Como você se chama? - ele perguntou.
A voz atrás dele começou a falar. - Você já disse o nome dela.
Hugh suspirou e virou o dedão por cima do ombro. - Quem é esse?
- Cody - eu disse. Falar estava ficando mais fácil, mas a dor aumentava conforme eu ia ficando mais consciente. Eu conhecia a voz de Cody tão bem quanto a de Hugh,
e tinha certeza de que Peter também estava lá.
Hugh me fez algumas outras perguntas factuais, como em que ano estávamos, onde e também se eu estava com náusea.
- Dói tudo - eu disse, com a voz ainda inarticulada. Não conseguia nem me mexer, imagine distinguir náusea do resto da dor.
- Sim, mas você está com vontade de vomitar? Aí mesmo? Agora?
Pensei um pouco. Minha barriga doía, mas era mais uma dor do tipo alguém me deu uns chutes com um sapato de salto do que vontade de vomitar. - Não - eu disse.
Hugh se sentou e eu o ouvi suspirar aliviado.
- Dói tudo - repeti. - Dá para você... fazer parar de doer?
Ele hesitou e, pouco depois, Cody apareceu do lado dele. - Qual é o problema? Você precisa dar alguma coisa para ela. Olhe para ela. Está sofrendo...
- Sofrer é pouco - sussurrei.
Hugh ainda estava pálido. - Não posso fazê-la dormir se ela tiver uma concussão.
- Ela passou nos seus testes.
- Era um exame preliminar. Não é cem por cento preciso.
- Por favor - eu disse, sentindo as lágrimas nos olhos. - Qualquer coisa.
- A gente sabe que ela não vai morrer - ouvi Peter dizer. Estava certa quando achei que ele estava lá.
Hugh hesitou mais um pouco. - Vá buscar um copo d’água.
Cody desapareceu e Peter tomou o lugar dele ao lado de Hugh. A expressão de Hugh continuava nada boa. - Querida, eu preciso limpar suas costas e vai doer.
- Mais ainda?
- Uma dor diferente. Mas eu preciso fazer uma limpeza para não infeccionar, depois preciso mudar você de posição para dar uma olhada no resto. O remédio vai ajudar,
mas vai doer quando eu começar.
- Pode ir em frente - eu disse, me preparando. A essa altura, eu não conseguia achar que dava para piorar. Além disso, Hugh era médico. Agora tudo ia se resolver.
Cody voltou com um copo d’água. Hugh me pediu para beber um pouco antes, só para ter certeza de que não ia voltar. Quando engoli, ele me deu dois comprimidos para
tomar com o resto da água. Quase sufoquei - minha garganta estava arranhada e inchada, talvez por causa dos gritos -, mas consegui engolir.
Queria perguntar o que eu tinha acabado de tomar, mas achei que era muito esforço. - Deve fazer efeito em uns vinte minutos - Hugh disse. Eu podia ver que ele estava
remexendo alguma coisa no colo. Ele se levantou e se inclinou sobre as minhas costas. Uma coisa molhada tocou minha pele.
- Filho da mãe! - Mais uma vez, minhas palavras estavam um pouco desarticuladas, mas acho que ele percebeu o que eu estava querendo dizer.
Uma dor pungente - uma dor “diferente” - percorreu minha pele onde ele havia encostado. Parecia um choque, uma dor aguda, enquanto no resto do meu corpo era intermitente.
Minha vontade de fugir daquelas pontadas horríveis era tanta que eu consegui me mexer um pouco, mas isso só serviu para espalhar a dor pelo resto do corpo. O mundo
virou um borrão novamente.
- Você está piorando as coisas - ele avisou. - Fique quieta.
Falar era fácil, mordi o lábio enquanto ele continuava. Ele estava usando um antisséptico para limpar os locais que Nanette tinha cortado. Necessário, como ele havia
dito, mas, por Deus, como doía.
- Falem com ela - Hugh disse para ninguém em especial. - Distraiam-na.
- O que aconteceu? - Peter perguntou. - Quem fez isso com você?
- Boa distração - Hugh disse.
- Nanette - eu disse. Pronunciar o nome dela fez meu estômago revirar e eu desejei não ter de voltar à parte da conversa com Hugh sobre a vontade de vomitar. - Ela
estava... furiosa.
- Imagino - Peter disse.
- Furiosa porque contei ao Cedric que ela...
- Isso meio que confirma suas suspeitas, não? - Cody perguntou.
Sim, se espancar a pessoa que havia revelado um segredo não parecesse suspeito, eu não sabia o que pareceria. Mas, se Nanette realmente estava por trás da conjuração
de Jerome, por que não me matou de uma vez, sem testemunhas?
Explicar isso ia demandar muitas palavras e muito esforço, então eu disse apenas “não sei”.
- Pronto - Hugh disse. - Não foi tão ruim, foi?
Tentei responder com um olhar, mas acho que ele não percebeu. Ele remexeu mais uma vez o kit e se inclinou novamente para começar a fazer um curativo nos ferimentos.
Pela quantidade de gaze que ele estava colocando, eu tinha a impressão de que ia ficar parecendo uma múmia.
- Por que Dante não ficou aqui? - Cody perguntou.
- Hã? Dante? - a pressão do curativo não era tão ruim quanto a limpeza, mas eu ainda estava com dor. Perguntei-me quando aqueles benditos comprimidos iam começar
a fazer efeito.
- Ele esteve aqui - Cody disse. - Ele ligou para o Hugh e disse para ele vir para cá.
Alguns detalhes mais precisos sobre o que havia acontecido com Nanette estavam pouco claros, mas eu tinha certeza, com trauma na cabeça ou não, de que eu me lembraria
se Dante tivesse estado lá.
- O Dante não esteve aqui - eu disse.
Hugh fez uma pausa e olhou nos meus olhos. - Então quem foi que me telefonou? Era um cara, do seu celular. Ele me pediu para vir até aqui e trazer equipamento médico...
que você estava ferida.
Franzi o cenho e uma sombra me veio à memória enevoada em meio à dor. Os braços fortes e a voz suave.
- Alguém esteve aqui... - comecei devagar. - Não era o Dante. Outra pessoa. Ele me colocou na cama.
Silêncio total. Um leve formigamento estava começando a invadir meus sentidos, o que eu considerei bom sinal. Era um formigamento agradável, meio como um sonho -
não mais uma coisa do tipo não aguento mais essa dor. Mas ainda havia um bom tanto dela.
Eles trocaram olhares perplexos. - Você tem certeza de que não era ele? - Cody perguntou.
- Por que o Dante iria embora? - Peter perguntou.
Hugh bufou. - Com ele, nunca se sabe.
- Parem - murmurei. - Não era ele.
- Você não se lembra de um rosto ou de alguma outra coisa? - Peter perguntou. - Pelo menos era alguém que você conhecia?
Pensei de novo, tentando desesperadamente desenterrar alguma coisa da minha memória. Nada. Só que não era um estranho.
- Eu o conheço... - Aquela sonolência agradável estava ficando cada vez mais forte. Queria que ela se apressasse mais.
- Pronto - Hugh disse. - O curativo está pronto. Ajudem-me a movê-la para eu poder dar uma olhada nas costelas.
Aquilo não foi divertido, e o incômodo dos três me fazendo virar - por mais delicados que eles estivessem tentando ser - foi o suficiente para interromper momentaneamente
o alívio do remédio. Eles conseguiram me virar de barriga para cima, o que provocou uma pressão moderada sobre minhas costas quando me encostaram na cama, mas permitiu
que Hugh examinasse o resto. Ele me cutucou, apalpou e me mandou respirar fundo. O veredito final foi que eu tinha umas costelas quebradas, muitos hematomas e uma
dor que melhoraria com o tempo.
- Ótimo - eu disse. Eu estava tão atordoada àquela altura que nem sabia se tinha sido sarcástica ou não.
Cody ainda não tinha desistido de descobrir quem era meu benfeitor.
- Mas então quem era?
- O homem... - eu disse.
- Você não vai conseguir arrancar mais nada dela - Hugh disse exausto.
- Não por enquanto. Ela vai entrar no mundo dos sonhos a qualquer momento.
- Mundo dos sonhos. O homem... - repeti. De repente, comecei a rir. - O homem no sonho...
Eu os vi trocando olhares compassivos pouco antes de minhas pálpebras se fecharem. Eles achavam que eu não estava falando coisa com coisa. Nenhum deles sabia da
história sobre o homem no sonho, sobre aquela vida alternativa fascinante inatingível que Nyx havia me mostrado.
No entanto, enquanto eu ia flutuando para o mundo dos sonhos, não foi a visão de Nyx que eu vi. Era mais daquela mesma escuridão indolor... ou pelo menos foi, até
eu ser sacudida por um milhão de volts de eletricidade.
Dei um grito de surpresa, e meus olhos se arregalaram. Senti como se milhares de agulhas de gelo estivessem se movimentado por meu corpo, perfurando todos os nervos.
Os detalhes da sala, assim como os dos meus amigos, apareceram bem definidos e cristalinos. Nada de dormência. Virando um pouco a minha cabeça, vi uma quarta pessoa.
Mei.
Ela estava em pé ao lado da minha cama, com aquela feição que não demonstrava nenhuma emoção e os braços cruzados em cima da blusa preta de seda. - O que aconteceu?
- eu perguntei. Minhas palavras ainda estavam alteradas, mas minha capacidade de falar tinha aumentado enormemente.
- Eu curei você - ela disse impassível. - Tanto quanto eu podia. Vai continuar doendo.
Demônios, apesar de um dia terem sido anjos, não tinham o mesmo poder de cura de seus ex-companheiros celestiais. Eles podiam curar em pequenas doses; quando expandi
meus sentidos para avaliar meu corpo, pude sentir que ela havia me livrado do pior da dor. Eu ainda estava dolorida em alguns lugares e, mesmo com o curativo, minhas
costas continuavam a arder. Entretanto, eu não queria mais morrer, então, certamente era uma melhora.
- Obrigada - eu disse.
Mei não parecia comovida ou estar com boa vontade. A expressão dela ficou sombria. - Eles disseram que foi a Nanette quem fez isso?
Hesitei. Já havia me encrencado o suficiente com a arquidemônia por denunciá-la. Obviamente meus amigos tinham contado a verdade para Mei, e, de qualquer forma,
ela era o mais próximo de um chefe que eu tinha no momento. Não estava totalmente segura de que poderia confiar nela, mas precisava apostar em um demônio que pudesse
me dar cobertura no momento, e era ela.
- Sim - admiti. - Eu contei para o Cedric que Nanette tinha se encontrado com Jerome. Ela tinha ido ver o Cedric também, então parecia que ela estava manipulando
os dois.
A expressão de Mei ficou ainda mais enrijecida. Se ela concordava ou não, ela não disse. - Nanette não vai mais incomodar você.
Sem mais, a demônia desapareceu.
- Briga de mulheres - disse Hugh com o ar mais animado que eu havia visto ao longo do dia.
- Não acho que vai ter lama ou alguma coisa do gênero - observei brincando.
- O senso de humor dela está voltando - Peter disse. - Com certeza, ela está começando a melhorar.
Tentei me sentar fazendo uma careta. - Ou não.
- Não exagere - Hugh alertou. - Mei não pode fazer muita...
- Que diabos está acontecendo?
Todos se viraram. Dante estava parado na porta do meu quarto. A expressão dele era um misto de incredulidade e perplexidade total. Sem esperar a resposta, ele correu
para a cama e se ajoelhou para ficar à minha altura.
- Você está bem? O que aconteceu?
A expressão dele era tão carinhosa, tão cheia de preocupação que eu por um instante fiquei pasmada. Dante era egoísta e arrogante, mas ele gostava de mim, apesar
do que os meus amigos achavam. E, em situações difíceis - como essa -, aquela fachada amarga desaparecia, revelando uma pessoa cuja alma não havia ainda se perdido
totalmente. Ele se esforçava para esconder esse lado dele, mas eu sabia que ele estava lá.
- Eu tive um desentendimento com um demônio - eu disse. Expliquei de forma sucinta o que tinha acontecido.
Ele foi ficando cada vez mais espantado conforme eu falava. Quando terminei, ele olhou ao redor do quarto, observando um por um com um ar acusatório. - Como pôde
acontecer uma coisa dessas? Eu achava que demônios não podiam sair por aí machucando os outros. Vocês não têm nenhum tipo de proteção?
- Teoricamente, a de Jerome - eu disse. - Mas ele está meio ocupado no momento.
- Talvez você esteja sob a proteção de Mei e Grace agora - Cody refletiu. - A Mei ficou furiosa.
- Ela sempre está com cara de quem está furiosa - Hugh disse.
- Espero que esteja - Dante retrucou. - Elas vão dar uma lição nessa demônia?
- Provavelmente, ela não vai apanhar, se é isso que você quer saber - Hugh disse. - Grace e Mei estão em observação assim como todo mundo, mas aposto que Mei vai
esculhambar Nanette.
- Ótimo - disse Dante. - Uma conversa séria. Isso vai servir de lição.
- É pouco provável que a Nanette faça mais alguma coisa. Se ela quisesse matar a Georgina, já o teria feito. - Peter falou com um tom quase gentil. Acho que a indignação
de Dante tinha convencido o vampiro de que Dante talvez não fosse tão filho da puta quanto ele achava.
Meus amigos imortais (ou não tão imortais) finalmente decidiram que eu estava em condição de ficar sob os cuidados de Dante. Hugh prometeu ir me ver no dia seguinte
e agradeci de novo a ajuda. Parecia que ele e os outros queriam me abraçar, mas, por causa das minhas costas, tinham achado melhor não fazê-lo.
Quando eles foram embora, Dante foi até a cozinha e voltou com uma taça de sorvete. - Vai cair bem, no seu estado - ele disse.
Fiquei surpresa ao descobrir que estava com um apetite considerável. A julgar pela hora, eu havia ficado apagada por um bom tempo antes de Mei aparecer. Parecia
que tinham se passado só alguns segundos.
- Cuidado - cutuquei. - As pessoas vão achar que você é um cara legal.
- Bem, acho que vou sair para assaltar umas criancinhas órfãs para salvar minha reputação.
Ele se deitou na cama a meu lado e se curvou para poder colocar a mão delicadamente no meu braço e conversar comigo. Conforme a noite foi avançando, nossa conversa
se concentrou principalmente em assuntos que afastaram meu pensamento da situação cada vez mais perigosa em Seattle. Por fim, quando chegou a hora de dormirmos,
Dante voltou a atacar.
- Súcubo... Quem esteve aqui?
Eu sabia que ele não estava falando de Hugh e dos vampiros. Franzi a testa. Apesar da ação de Mei, minhas lembranças eram vagas. - Não sei. Mas acho... Acho que
talvez tenha sido o Carter.
- Sério? Não consigo acreditar que esse anjo anda com vocês. Mas, se foi ele, por que ele não curou você? Ele poderia ter consertado tudo.
Em meio à neblina daquela provação, lembrei-me das palavras do meu salvador. Não posso curá-la.
- Porque ele não pode interferir - eu disse devagar, lembrando-me do meu raciocínio prévio sobre se fazer um fogão explodir seria interferência. - O céu precisa
ficar de fora. Ele provavelmente não deveria nem ter me colocado na cama, por isso ele foi embora e deixou que Hugh viesse me remendar.
- Um anjo quebrando regras e um demônio curando doentes - Dante disse. - Você e seus comparsas estão indo de mal a pior mesmo.
Eu mudei um pouco de posição, tomando cuidado com as costas, e apoiei a cabeça nele. - Pode ter certeza.
Capítulo 17
O cheiro adocicado do mocha de chocolate branco me acordou do sono pesado na manhã seguinte. Por alguns instantes, enquanto eu recobrava a consciência, foi como
acordar em um dia qualquer. Então, quando abri os olhos e mudei de posição, os nervos do meu corpo voltaram à vida, fazendo-me lembrar o que tinha acontecido no
dia anterior. A dor não foi tão terrível e torturante quanto a que eu tinha sentido antes, mas eu estava dolorida e inchada o suficiente para me fazer desistir de
me mexer muito. Apesar disso, consegui mais ou menos me sentar quando Dante entrou no quarto.
Ele estava segurando o mocha com uma mão e tinha o que parecia ser um saco da padaria enfiado debaixo do braço. Na outra mão, ele trazia um vaso enorme de hortênsias
brancas e azuis entremeadas com orquídeas. Eu nunca tinha imaginado essas duas flores juntas, mas o arranjo dava certo.
- Você assaltou a floricultura? - perguntei.
Dante me lançou um olhar indignado enquanto me passava o mocha. - Por que você está pensando mal de mim de novo?
- Porque orquídeas não são baratas - eu disse.
- Eles não tinham ervas daninhas, então precisei me contentar com orquídeas. - Ele colocou delicadamente o vaso sobre minha cômoda e depois libertou o saco da padaria.
- E espanquei umas criancinhas para conseguir isto.
Depois de um longo gole delicioso, coloquei o mocha na minha mesa de cabeceira e peguei o saco. Dentro, havia croissants de chocolate - minha guloseima favorita
para o café da manhã.
- Tudo isso porque eu levei uma surra? - perguntei.
Ele se sentou na beirada da cama. - Estou preocupado com você.
- Acho que vou me meter em brigas com demônios com mais frequência - provoquei, as últimas palavras saíram abafadas depois que eu mordi um croissant. Migalhas e
lascas caíram no lençol, mas nem liguei.
- Não tem graça, súcubo - ele disse. E, para minha surpresa, dava para perceber que era verdade. O humor corrosivo tinha desaparecido. Nada de lábios contorcidos
mordazes. - Isso não vai acontecer nunca mais. E eu vou dar um jeito de fazer você ficar boa, com ou sem cura imortal.
- Nunca pensei que você fosse bancar a enfermeira.
- Fique quieta - ele retrucou. - E continue a comer. O seu corpo precisa de calorias para se recuperar.
Obedeci satisfeita e comecei a dar outra mordida, mas de repente fiquei paralisada. - Você acha que eu posso começar a engordar? - Eu nunca tinha precisado contar
calorias. Não precisava me preocupar nem com engordar nem com os efeitos das coisas que eu comia sobre minha saúde.
- Acredito que esse seja o menor dos seus problemas.
Achei que ele tinha razão. Continuei a comer - mas com um pouco menos de entusiasmo. Ele ainda estava com um ar tão sério e preocupado que eu não conseguia deixar
de sentir certo afeto. - Eu nem sei como agradecer por isso tudo. Obrigada, mesmo.
Ele sorriu para mim, e os olhos acinzentados estavam muito bonitos na luz da manhã. - Não existem muitas pessoas no mundo que merecem minha ajuda. Você faz parte
de um clube seleto.
Eu ia fazer um comentário sobre como os outros membros do clube deveriam ser imaginários, mas meu sarcasmo matinal já havia passado da conta. O ataque de Nanette
tinha deixado Dante muito abalado.
- Obrigada - eu disse de novo. Uma coisa me veio à mente. - Você pode me ajudar de outra forma. Poderia buscar minha bolsa?
Ele foi até a sala para buscá-la e a entregou a mim. Quando enfiei a mão dentro dela, fiquei aliviada ao ver que a foto roubada da Mary ainda estava lá. Eu a observei
por um momento, desejando que o medalhão revelasse alguma coisa. Tudo o que eu via era um disco translúcido amarronzado e runas ou símbolos que poderiam facilmente
ser confundidos com rabiscos de criança. Com um suspiro, entreguei-a a ele.
- Isso lhe diz alguma coisa?
Ele franziu a testa pensativo enquanto examinava a foto. - Não. Deveria?
- Acho que isso pode ser parte da conjuração de Jerome. Você se lembra de quando perguntei se você conhecia algum artista que fizesse esculturas em quartzo? Foi
isso que eu encontrei. Supostamente, a pedra e os sinais são pistas, mas eu não sei o que eles são. É aí que pessoas como você e Erik entram.
Ele ficou olhando para a foto por mais alguns momentos e, para minha surpresa, vi a raiva tomar conta das feições dele. Ele se levantou e jogou a foto no chão.
- Merda - ele murmurou.
- Qual é o problema?
- Este - ele disse, apontando para mim e para a foto caída. - Este é o problema. Eu sirvo para quê, súcubo? Sou dez vezes mais poderoso do que aquelas pessoas com
quem eu mandei você falar. Fora Lancaster, provavelmente não existe mais ninguém nesta cidade que saiba mais sobre esoterismo do que eu. E de que adianta? - Ele
andava para lá e para cá no meu quarto e passava a mão pelo cabelo, irritado. - Nada. Não adianta nada. Eu não consigo ajudar você. Não posso fazer droga alguma.
Não pude salvar você da demônia. E não sei nada sobre essa coisa do medalhão.
A reação dele me deixou surpresa. - Ei, tudo bem. Sente-se. Não precisa se sentir tão culpado.
- Não está tudo bem. - Ele parou. - Eu me sinto... impotente. - Para uma pessoa que tinha passado a maior parte da vida fazendo coisas horríveis em busca de poder,
eu podia imaginar como devia ser difícil fazer uma confissão daquela.
- Você não tem obrigação de fazer nada - eu disse com delicadeza. - Você me ajuda mais do que imagina. Mas essa briga não é sua. Não é responsabilidade sua.
- Você é responsabilidade minha - ele disse. - Se eu não puder nem cuidar de você, por que você precisaria de mim?
- Não estou com você por causa do que você pode fazer por mim.
- Ah, é? E você está comigo por causa da minha personalidade irresistível?
O problema era que às vezes eu não sabia bem por que estava com ele. Não pude deixar de me lembrar dos comentários dele sobre servir para esquentar a minha cama,
mas, verdade ou não, agora não era hora de discutir esse assunto. Ainda mais porque ele andava um amor ultimamente - coisa que eu nunca teria imaginado quando recorri
a ele na minha fúria pós-Seth.
- Dante, é sério. Não se preocupe com nada disso. Eu vou dar um jeito e conversar com meus amigos.
Percebi pela cara dele que isso não era exatamente o que ele queria ouvir. Saber que eu tinha outras pessoas a quem recorrer parecia fazê-lo se sentir ainda mais
inútil.
- Não era para você ter se envolvido nessa coisa toda - ele disse.
- No quê? Encontrar Jerome? É claro que eu precisava me envolver.
- Existem outras pessoas muito mais poderosas. Não quero que você se machuque de novo! Por que você não finge que não é com você e fica em segurança? - ele reclamou.
- Porque não sou assim! E ninguém mais vai tentar, de qualquer maneira. Eles só querem esquecer esse assunto. Se livrar do Jerome.
- E por que você não deixa para lá? - ele perguntou. - Ia ser tão ruim trabalhar para outro demônio? Você já trabalhou para outros.
Eu me virei e olhei pela janela. O céu estava azul, mas algo me dizia que lá fora estava frio. Era uma peculiaridade do clima de Seattle. Muitas vezes, as temperaturas
eram mais altas quando estava nublado e mais baixas quando estava ensolarado. Voltei devagar a olhar para Dante e disse: - Sim, trabalhei. Mas isso é diferente.
E não está certo, não deveria ter acontecido. Eu preciso encontrar Jerome.
- Sim. Você precisa. Está escrito na sua cara. Por que você vive complicando as coisas e criando problemas?
- Se você não estiver satisfeito, não tem nada o prendendo - eu disse calmamente.
- É claro que tem, e eu não vou embora. Se não há nada a fazer quanto a sua impulsividade, só me resta ajudar. - Ele apanhou a foto e olhou para ela. - Eu vou levar
isso e fazer algumas perguntas. Posso não saber o que é... ainda... mas eu tenho recursos que posso usar.
O rosto dele tinha uma expressão determinada. Ele era um homem com uma missão, e eu preferia isso a ele ficar se culpando ou me dando bronca. Eu estava prestes a
mandá-lo embora com a minha bênção, mas algo me dizia que era melhor não fazer isso. Eu não podia ceder a foto.
- Eu quero ficar com a foto - eu disse para ele.
Ele me olhou. - Você acha que eu não vou trazê-la de volta?
- Não, não é isso que me preocupa. Foi muito difícil conseguir e, além disso, eu quero mostrá-la para algumas pessoas também. Vamos fazer uma cópia para você levar.
- Ah é? Você tem uma copiadora no banheiro?
- Você não pode simplesmente fazer um desenho ou alguma coisa do tipo?
- Súcubo.
- Sei lá! Mas, se quiser investigar, você vai precisar dar um jeito. Enquanto eu não puder me arrastar pela cidade com você, quero que a foto fique comigo.
Ele olhou irritado para mim, assumindo uma expressão muito mais parecida com a da criatura amarga de costume. Finalmente, percebendo que eu não ia ceder, fez um
desenho rápido do medalhão em outra folha de papel. Ele acrescentou umas notas ao lado e fez uma cópia aproximada dos símbolos.
Ele ficou com um ar mal-humorado o tempo todo.
- Desculpe - eu disse.
- Tudo bem - disse ele.
- Você já vai?
- Se você acha que está tudo bem ficar sozinha.
Garanti que não havia problema. Meu telefone estava do lado e eu tinha a sensação de que, se ele continuasse ali, ficaria cada vez mais aborrecido por ter me decepcionado
e com o modo pelo qual eu estava me pondo em risco por motivos que ele não compreendia. Pelo menos isso daria a ele a sensação de estar fazendo alguma coisa. Prometi
ligar se algo acontecesse e dei um suspiro de alívio quando ele finalmente foi embora.
Fiquei um pouco na cama depois disso, consumindo meu café da manhã supercalórico e pensando sobre a reação exagerada dele. Eu esperava que ele descobrisse alguma
coisa para mim e, enquanto isso, precisava investigar por conta própria. Mas existem coisas que não se podem adiar. Eu precisava tomar banho.
Foi mais difícil do que eu imaginava - mas não impossível. Eu só precisei me mexer devagar enquanto andava até o banheiro, tomando cuidado para não me exceder. O
curativo de Hugh ainda cobria minhas costas e foi preciso certa destreza para removê-lo. Estava encharcado de sangue, mas, por baixo, os cortes davam sinais da cura
da Mei. Eles continuavam lá, ainda incomodavam, mas estavam todos começando a fechar e haviam diminuído de tamanho. Deixei a água morna enquanto tomava banho e tomei
cuidado com a toalha para não arrancar nenhuma casquinha enquanto me enxugava.
Quando me sentei no sofá da sala, parecia que eu tinha acabado de correr uma maratona. Nunca havia sentido tanta falta do poder de me transformar na vida. Eu estava
usando roupas largas - calças de amarrar e uma camiseta sem sutiã -, mas eu tinha precisado fazer certo esforço para vesti-las. Tinha desistido totalmente do cabelo
e cheguei à conclusão de que uma escovada deveria bastar. Não estava com paciência para secá-lo e não queria nem pensar em como ele ia ficar frisado.
Aubrey se juntou a mim no sofá enquanto eu descansava dos afazeres daquela manhã e mudava de canal na tevê. Depois de dar duas voltas, desisti e deixei em um programa
sobre tigres siberianos. Aubrey ficou assistindo com os olhos bem abertos, mas eu não estava interessada.
- Isso é o reality show de gato - observei.
- Programas de entrevista, só mais tarde - uma voz falou de repente. - Aí as coisas melhoram.
Suspirei. - Carter. Que surpresa agradável.
O anjo passou para meu ângulo de visão e se sentou em uma poltrona na minha frente. Aubrey saiu imediatamente de perto de mim e pulou no colo dele.
- Traidora - eu disse.
Ele sorriu e acariciou a cabeça dela. - Fiquei sabendo que você teve um dia difícil ontem.
- Já tive piores - eu disse. - Não muito. Você deveria ter me visto antes de Mei me curar.
- Ah, demônios não podem curar. Não de verdade. Eles perdem a finesse necessária quando mudam de lado.
- Ei, toda ajuda é bem-vinda. - Fiquei mais animada. - E, falando em ajuda, acho que tenho uma foto do lacre...
- Não.
- Não o quê?
- Eu sei o que você vai pedir, e a resposta é não.
- Você não sabe o que eu vou pedir!
- Você vai me pedir para ajudar a decifrar o lacre para que possa descobrir onde Jerome está.
Fiquei quieta. Droga.
Ele revirou os olhos. - E a resposta é não.
- Mas você poderia facilitar tanto... - argumentei. - Dante está tentando descobrir o que o lacre significa. Você poderia me dizer agora.
- Georgina, eu já lhe disse. Não posso interferir.
- Então, por que você está aqui?
- Para ver como você está se sentindo. Acredite, eu queria poder interferir. Eu posso curar muito melhor do que a Mei.
Fiquei quieta, minha cabeça girava. - Você esteve aqui ontem?
- Fazendo o quê?
- Olhe, eu não vou considerar interferência, só me diga se era você.
Carter não ficava confuso com muita frequência. Geralmente, era ele quem deixava os outros confusos. Acho que em circunstâncias normais, quando o estado das coisas
em Seattle não estava no limbo, ele teria disfarçado a confusão. Mas nesse momento, ele só balançou a cabeça aflito.
- Do que você está falando?
- Alguém esteve aqui depois que a Nanette me espancou. Um homem. Ele me colocou na cama e ligou para o Hugh.
- Não fui eu.
- Tecnicamente, não seria interferir.
- Georgina - ele disse inflexível. - Ouça. Não era eu.
Eu olhei dentro dos olhos dele e estremeci com sua intensidade. Eles eram acinzentados, mas, enquanto os de Dante eram como nuvens carregadas em um dia de chuva,
os de Carter eram como prata resplandecente.
- Não era você - eu disse por fim. Ele tinha me dado uma resposta direta, sem as meias verdades e os subterfúgios de que anjos normalmente se valiam. Ele tinha dado
uma resposta direta e anjos não podem mentir. - Suponho que você também não tenha feito o fogão explodir.
- Não.
- Então quem foi? Você disse em Vancouver que ia tentar me proteger. Achei que tivesse sido você.
- O fogão pode ter explodido por causa de um vazamento de gás.
- Talvez - resmunguei.
Ele sorriu, se transformando instantaneamente no anjo gozador que eu conhecia. - Acredite, filha de Lilith, eu queria poder ser responsável por essas coisas. E,
se for preciso e eu tiver os meios e a capacidade, vou tentar proteger você. Por agora, ainda preciso ficar fora disso.
- Visitas à parte.
- Só uma visita entre amigos. - Ele piscou e se levantou. - Eu realmente queria poder ajudar mais, mas você vai precisar se virar. Cuidado, independentemente do
que você acabar resolvendo fazer.
- Você não vai me mandar ficar longe disso tudo?
Ele arqueou a sobrancelha. - Eu deveria?
- Não - eu disse para mim mesma. - Mas todo mundo diz isso. Eles dizem que é perigoso.
- É perigoso. Mas são tempos de perigo e... sinceramente? Eu acho que você é a única que pode ou deseja nos livrar desta confusão. Boa sorte, Georgina. E não saia
de casa sem olhar o cabelo no espelho. - Ele desapareceu.
- Malditos anjos.
Percebi que estava precisando de comida de verdade, e não de doces cheios de açúcar. Minha cozinha estava vazia como sempre, então resolvi me arriscar no mundo lá
fora e ir buscar alguma coisa. Estava cansada e certamente não conseguiria correr uma maratona, mas a cura de Mei tinha surtido bastante efeito. Eu poderia andar
um quarteirão até o restaurante chinês que fazia comida para viagem. Fiz o pedido e, até eu terminar de tirar o roupão e sair pela porta, a comida ficou pronta.
Parei em uma loja de conveniências também, para comprar refrigerante, e a empreitada toda acabou levando uns trinta minutos. Pela cara da Aubrey, parecia que eu
tinha saído o dia inteiro, mas ela só estava querendo o meu frango com laranja.
Coloquei o roupão de novo e relaxei com a comida, pensando em como ia passar o dia. Como dissera para o Dante, eu não queria sair me arrastando pela cidade, mas
queria alguma pista sobre o medalhão. Erik provavelmente era minha melhor aposta a essa altura, e eu esperava que ele fosse capaz de identificar os símbolos pela
descrição por telefone. Antes que eu pudesse fazer isso, ouvi uma batida na porta. Achei que fosse Hugh fazendo a visita, mas, para meu espanto, era Seth.
- Oi - eu disse, saindo de lado para ele poder entrar.
- Oi - ele respondeu.
Coloquei as mãos nos bolsos esburacados do roupão, desejando não ter tido tanta pressa para voltar a ficar à vontade. Meu cabelo sem dúvida era caso perdido, então
não fazia sentido me preocupar com ele. - Tudo bem?
- Tudo. - Ele me olhou nos olhos com franqueza, o que ele não fazia havia algum tempo. Senti um frio na espinha. - Eu estava por perto e só queria... bem, quer dizer...
- ele suspirou. - Eu queria pedir desculpa pelo que aconteceu ontem...
Ontem. O beijo. Algo que só um ataque de demônio poderia neutralizar.
Balancei a cabeça, tentando não me lembrar de como eu tinha sentido aquele beijo chegar até os meus dedos dos pés. - Não tem nada para se desculpar. Acho... Acho
que eu também tive culpa. Além disso, não significou nada.
- Nada? - ele perguntou surpreso e ofendido.
- Quero dizer... não é que não foi nada - emendei rápido. - Mas nós dois estávamos meio exaltados, e as coisas saíram de controle e... bem... como eu já disse...
não tem nada para se desculpar.
- Tudo bem... Estou feliz por você não estar aborrecida. Não quero que haja... bem... nada de ruim entre nós.
Pensei em todas as brigas e discussões. - Não acho que tenhamos chegado a esse estágio. Quero dizer... Você acha mesmo que as coisas vão ficar normais e amigáveis
entre nós?
- Acho - ele disse sem rodeios. - Não importa o que tenha acontecido quando estávamos juntos, eu ainda sinto que... existe alguma coisa entre nós... como uma conexão.
Eu sinto como se estivéssemos destinados a sempre ser importantes na vida um do outro.
Você é a minha vida, eu pensei e desviei imediatamente o olhar, como se ele pudesse ter me ouvido. - Você se arrepende? - perguntei, antes de me dar conta.
- Arrepende do quê?
- De ter terminado.
Olhei de novo para ele, temendo a resposta, qualquer que ela fosse. - Eu me arrependo... bem, eu não me arrependo de ter poupado você de sofrimentos futuros. Mas
eu me arrependo de ter feito você sofrer... se eu soubesse que você ia reagir como reagiu e se afundar, como aconteceu...
- Você não pode levar isso em consideração - eu disse sem pensar. - Não é culpa sua. - Fiquei surpresa por ter dito isso, mas era verdade. Meu comportamento nos
últimos meses era culpa minha.
- Não posso evitar. Estou sempre preocupado com você. Eu já disse, sinto que, aconteça o que for, nós sempre estaremos ligados... como se houvesse alguma coisa mais
forte do que nós em ação. No momento, porém...
- O quê?
- Deixe para lá.
Dei um passo à frente, sem tirar os olhos dele. - Diga.
- No momento... - ele deu de ombros. - A vida está mais fácil sem namorar você. Mas, às vezes... parece que está faltando alguma coisa. É como se um pedaço de mim
estivesse faltando.
- E isso é mais fácil?
- Imagine uma coisa como ganhar na loteria e ter gente à disposição para fazer o que você quiser, mas ao custo, digamos, de ter de amputar uma perna.
- Uau. Você deveria ser escritor, com essas imagens.
Ele sorriu. - Eu sei, eu sei. Mas você sabe do que estou falando.
Exceto pelo fato de que estava faltando uma parte da minha vida e as coisas eram mais difíceis, e não mais fáceis. - Você pelo menos tem a Maddie.
- Você tem o Dante.
- O Dante não é a Maddie, pode acreditar.
- Tudo bem. Ela é ótima... Eu gosto dela... Eu a amo... Sei lá. Só que é diferente.
Ficamos em silêncio, mas não um silêncio constrangedor. - Por Deus. Não acredito que estamos discutindo esse assunto racionalmente.
- Você está vendo? Não é tão difícil sermos amigos.
Eu tinha lá minhas dúvidas. - Quem sabe?
- Não se preocupe. Nós vamos continuar tentando. Daqui a algum tempo, nós vamos entrar para um campeonato de boliche... ou alguma coisa do tipo. - Ele disse essas
palavras em tom de brincadeira, mas havia um senão que contrariava as palavras dele. Sermos amigos também não era fácil para Seth. Ele ainda gostava de mim e estava
sofrendo tanto quanto eu com a separação. Perceber isso fez alguma coisa dentro de mim amolecer.
- Tudo bem. A gente vai dar um jeito.
Cheguei mais perto para abraçá-lo e ele automaticamente retribuiu o abraço. Eu me sentia aquecida, segura e no lugar certo nos braços dele - até ele apertar minhas
costas sem querer. Dei um grito e me afastei com a dor que se espalhou em mim. Nós nos separamos com um pulo, e ele olhou para mim alarmado. - O que houve? Tudo
bem com você?
- É... complicado. - Minha resposta-padrão para perguntas incômodas.
- Georgina!
- Não é nada. Não precisa se preocupar.
Ele deu um passo na minha direção, estendeu a mão e depois puxou-a de volta. A expressão dele se encheu de indignação. - Você está ferida?
Tentei ficar fora do alcance dele. - Olhe, eu me envolvi em uma briga ontem e estou com algumas... humm... sequelas. A pior parte já passou e não há nada com que
se preocupar.
- Você? Se meteu em uma briga? Com quem?
- Com Nanette. Eu já disse, não é nada.
- E quem é Nanette?
- Ela é... um demônio.
Ele me lançou um olhar inabalável. - Um demônio? Um demônio completo?
- Mais ou menos isso.
- Eu quero ver suas costas.
- Seth...
- Georgina. Eu quero ver suas costas.
As palavras dele deixavam transparecer revolta, não contra mim, mas contra o fato de alguém ter me ferido. Aquilo me fez lembrar um pouco a reação de Dante, exceto
pelo fato de que Dante sempre tinha certa revolta. Era normal. Vê-la se manifestar em Seth... Vê-lo tão impetuoso e agressivo...
Devagar, bem devagar, eu me virei e desamarrei o roupão, deixando-o descer até a metade das costas. Ouvi Seth perder o fôlego com o que viu, e, pouco depois, ele
se aproximou e tirou o cabelo das minhas costas para ver melhor. Eu estremeci quando os dedos dele tocaram minha pele.
- Georgina... está horrível...
- Já esteve pior - eu disse, fazendo pouco, na esperança de desviar a preocupação dele e só depois percebendo que ela tinha aumentado.
- Pior?
Eu puxei o roupão para cima e me virei. - A Mei me curou. Eu estou melhor.
- Sim, dá para ver.
- Olhe, não precisa se preocupar.
- Não preciso me preocupar? - Os olhos dele tinham uma expressão de incredulidade. - Mesmo quando você está... normal... um demônio pode matar você, não pode?
- Pode.
Seth colocou a mão na testa e deu um suspiro. - Essa é a sensação, não é?
- Que sensação?
- Como você se sentia quando estava comigo. Viver com medo porque eu posso morrer. Ficando arrasada com isso.
Não respondi de imediato. - Você não precisa se preocupar comigo. Vai dar tudo certo.
- Essa Nanette... essa Nanette fez isso porque você está investigando?
Concordei com a cabeça e depois armei um sorriso irônico.
- Ainda admira minha coragem?
Ele se aproximou de mim e me olhou de cima a baixo de um jeito tão sério que meu sorriso se esvaiu. - Mesmo depois disso, você não vai parar, vai? Você vai continuar
tentando encontrar Jerome?
- Você quer que eu pare? - Isso estava ficando parecido com minha conversa anterior com Dante, quando ele tinha deixado claro que me achava uma idiota por continuar
a busca.
Seth demorou para responder. - Não quero que você se machuque. Mas eu entendo e sei que você precisa continuar... e ainda é parte dessa sua estranha ... natureza
corajosa, tão...
Ele não terminou, mas eu vi a angústia nos olhos dele, a preocupação e o aperto no coração causado pelo medo de que alguma coisa acontecesse comigo. Mas esses sentimentos
se misturavam com alguma outra coisa. Orgulho. Afeto. Abracei-o novamente, querendo reconfortá-lo. - Ei, vai ficar tudo bem. Não vai acontecer nada comigo.
Ele deixou as mãos apoiadas no meu quadril, para não encostar nas costas, mas, sinceramente, nem percebi. Eu estava prestando atenção nos lábios dele, que tocavam
o meu rosto. - Georgina, Georgina - eu sentia a respiração dele na minha pele. - Você é... inacreditável.
E, como tinha acontecido no carro, não sei de quem foi a culpa, mas nossos lábios se encontraram e começamos a nos beijar de novo. Mas, diferentemente de antes,
nós não nos afastamos chocados. Continuamos a nos beijar. E beijar. A boca dele era inebriante e me dava a sensação de ter sido criada especialmente para a minha.
Nossos corpos faziam pressão um contra o outro, mas o abraço dele continuava delicado. E, conforme o beijo continuou, eu tive aquela mesma sensação: era só um beijo.
Só uma manifestação de amor entre duas pessoas sem efeitos colaterais desastrosos, sem roubo de alma. Quanto mais continuava, mais encantada eu ficava. A essa altura,
como súcubo, eu já teria começado a sentir o gosto da energia dele e captar seus pensamentos. Mas não agora. Eu estava sozinha na minha cabeça, saboreando o corpo
dele, e não a alma.
Nós nos afastamos um pouco, e ele moveu as mãos para cima, acariciando meu cabelo, colocando-o para trás e tocando meu rosto. - Georgina. Você é... linda.
Nós nos beijamos de novo, e era tão doce, tão puro, que parecia impossível. Eu não tinha uma experiência física que pudesse realmente ser considerada doce ou pura
desde... bem, desde meus dias de mortal. Mas essa era. E por pura eu não estava querendo dizer não sexual... porque meu corpo estava totalmente alerta, desejando
o dele. Mas era puro no sentido de que não havia maquinações ocultas, só sentimentos. O meu amor por ele era o que me excitava e, quando as mãos dele desceram por
meus braços e voltaram para meu quadril, era o fato de ser Seth que tornava tudo tão intenso.
As mãos dele foram descendo até a faixa do roupão e desfizeram o nó. Ele interrompeu o beijo e observou a minha expressão enquanto, hesitante, quase reverente, foi
tirando o roupão. Quando ele caiu no chão, eu dei um passo para o lado e Seth veio comigo, passando os dedos por meus braços, inclinando-se para beijar meu pescoço.
Eu joguei a cabeça para trás e minhas mãos começaram a levantar a camiseta dele. Quando eu cheguei à metade do caminho, ele fez uma pausa para terminar de tirá-la.
Depois, as mãos dele voltaram para minha cintura, escorregando pelas curvas do meu quadril. Eu estava usando uma calcinha de algodão lisa - ainda bem que o corte
era sexy -, e com as pontas dos dedos ele acompanhou o contorno dela descendo por minhas coxas, cada toque era macio e ao mesmo tempo trêmulo, carregado com uma
energia inexplicável. Acho que eu não estava sendo tão delicada. Eu estava faminta para tocá-lo, ansiosa enquanto passava minhas mãos pelo peito dele e pelos músculos
definidos de sua barriga. Eu queria beijá-los, sentir o gosto deles, me perder totalmente em Seth.
Comecei a andar de costas em direção ao quarto e ele me seguiu, mas ficou hesitante quando chegamos à cama e eu comecei a me sentar. - Você não pode... - ele começou.
- Eu posso me deitar - eu disse, fazendo exatamente isso. - Só não posso ficar batendo as costas ou algo parecido.
Depois de me observar por um momento, para ter certeza de que eu estava falando a verdade, Seth tirou o jeans e se deitou a meu lado. Eu me virei um pouco de lado,
encostando-me nele. Paramos de nos beijar e ficamos só assim, deixando nossos corpos quase nus se envolverem. Aquela quantidade de pele em contato entre nós era
alucinante. Eu nunca, nunca tinha imaginado que poderia acontecer de verdade. Nossas mãos exploravam um ao outro, sentindo cada linha e cada curva que sempre nos
haviam sido negadas. Cada gesto entre nós era perfeito. Cada carícia era uma prece. Nós contemplávamos o corpo um do outro com fascínio e prazer.
Quando minhas mãos deslizaram para a borda da cueca samba-canção dele, senti seus dedos puxando minha calcinha. Praticamente não precisávamos nos comunicar e, quando
estávamos totalmente nus, eu o envolvi com os braços, puxando-o para mim e buscando a completude com que eu havia sonhado por tanto tempo.
Para minha surpresa, ele se afastou dos meus braços e se deslocou rapidamente para baixo. - O que você está fazendo? - perguntei.
- Isso - ele disse.
Ele afastou calmamente minhas pernas e eu senti que ele cobria a parte de dentro das minhas coxas com beijos delicados, suaves. A boca morna foi subindo e subindo,
até tocar meu clitóris. Fiquei levemente ofegante com o fogo que me percorreu por causa daquele leve contato da língua. Era tão delicado... mas tão poderoso. Eu
estava tão inebriada com o simples fato de podermos nos tocar que não tinha me dado conta do quanto eu estava excitada. Tomada pelo desejo, fiquei molhada e quase
me derreti com o toque dele.
Ele ergueu um pouco a boca. - Você sabe quantas vezes eu sonhei com isso? Poder tocá-la? Poder sentir seu gosto?
Não tive tempo para refletir sobre a pergunta retórica, porque os lábios dele voltaram para mim, me sugando e me lambendo, não sei como, mas infinitamente gentis
e tão ardentes ao mesmo tempo. Fechei os olhos e me perdi naquele prazer, o prazer de Seth me fazendo chegar cada vez mais perto do orgasmo. Quando meus músculos
se contraíram e meus gritos se tornaram mais frequentes, ele intensificou os movimentos e a língua dele dançava e me estimulava com mais força e mais rápido.
Eu queria me segurar, prolongar como eu fazia com os livros, mas não consegui. O clímax me tomou rápido e com força, e dei um gemido longo e fraco quando gozei.
O tempo todo, Seth continuou com a boca lá embaixo, recusando-se a diminuir o ritmo quando meu corpo se arqueou e tremeu com as faíscas de êxtase que me percorriam.
Quando meu corpo finalmente se acalmou, ele subiu de novo e voltou para o meu lado, cobrindo meu peito com mais daqueles pequeninos beijos.
Eu aproximei meu rosto do dele, trocando os beijinhos por um beijo intenso. A boca dele tinha o meu gosto, e eu abria cada vez mais meus lábios conforme nossas línguas
se encontravam. Eu já tinha gozado, mas ainda sentia um ardor entre as pernas e ainda precisava dele. Eu o puxei para mim, envolvendo-o com as pernas, de forma a
praticamente não sobrar nenhum espaço entre nossos quadris.
- Georgina... - ele disse cauteloso.
Era outro sinal de como nos conhecíamos bem eu perceber que ele não estava preocupado em pedir permissão para o que viria a seguir. Ele estava novamente preocupado
com minhas costas. Então, mudando de posição, virei-o com a barriga para cima e me sentei sobre ele, olhando para ele com um sorriso. Ele respondeu com outro sorrisinho,
divertindo-se com minha solução ligeira. Enquanto nos olhávamos fixamente, eu fui de novo dominada pela emoção da experiência de como era indescritível finalmente
tocar alguém que eu amava. Eu havia ficado apavorada com a possibilidade de morrer, mas percebi que eu só tinha medo de morrer inutilmente. Por Seth, para salvá-lo,
eu abriria mão de minha vida sem nem pensar. Ele tinha razão. Nós estávamos conectados a alguma coisa maior do que nós dois.
Impulsionada por essa percepção, abaixei o quadril, unindo-nos, finalmente. Eu o senti entrando em mim, senti que ele me preenchia. Então, nós dois ficamos parados,
sem respirar nem nos mexer, meio esperando que fosse acontecer alguma coisa ou que fosse acabar. Nada, depois disso, não hesitei mais. Comecei a mover lentamente
os quadris para cima e para baixo, saboreando a sensação de tê-lo dentro de mim e de estar em cima dele conforme ele deslizava para dentro e para fora. Minhas mãos
estavam apoiadas no peito dele, e as dele, no meu quadril. Nossos olhos estavam fixos um no outro, sem jamais fraquejar, sem jamais perder contato.
Como descrever o sexo com Seth? Difícil. Foi diferente de qualquer outra coisa que eu tinha experimentado ao longo da minha existência como súcubo. Em algum lugar,
lá no fundo, evocava memórias do meu casamento, quando eu e meu marido ainda éramos felizes. Todas as outras experiências posteriores tinham sido incompletas...
até então. Cada movimento e cada toque com Seth era um sonho, um deslumbre.
A intensidade de nosso entrosamento foi aumentando cada vez mais. Meu desejo por ele foi ficando cada vez mais forte, e eu me movia sobre ele com uma ferocidade
ao mesmo tempo carinhosa e arrebatada pelo amor que ardia entre nós. Eu estava adorando poder senti-lo, adorando poder fazê-lo penetrar em mim, com força, e fundo.
No entanto...
- Não... - murmurei. - Ainda não estamos suficientemente perto.
O rosto dele se iluminou de prazer e, quando ele gozou, o corpo dele se arqueou para cima, em direção ao meu. Eu me inclinei e aumentei o ritmo e a força, querendo
muito ficar mais perto ainda e me apoderar dele. A boca dele se abriu com um gemido suave que espelhava o meu pouco antes, e quando ele começou instintivamente a
fechar os olhos, os abriu rapidamente de novo para continuar entrelaçado ao meu olhar. Não precisávamos desviar o olhar, não precisávamos evitar o que sentíamos.
Enquanto eu o olhava nos olhos e sentia o tremor do seu corpo diminuir, a energia parecia crepitar entre nossas almas de uma forma que não tinha nada a ver com o
roubo de alma do súcubo.
Com cuidado, eu me afastei e me deitei de lado, curvando meu corpo sobre o dele. Eu me afogava em sentimento e emoção.
- Georgina - ele murmurou, puxando-me para ele. - Você é o mundo.
Eu já tinha ouvido aquilo em algum lugar, mas estava deslumbrada demais para pensar muito. Estava perdida demais em Seth. Em vez disso, o que eu disse não foi nada
original, mas era absolutamente verdadeiro: - Eu te amo.
Capítulo 18
Quando terminou, apoiei meu rosto no peito dele, mas continuei ao lado. O coração dele batia pesado sob minhas mãos, e o cheiro da pele e do suor dele quase me afogava.
Fiquei ali, totalmente parada, mal ousando respirar. Eu temia, se me mexesse muito, quebrar esse encanto, esse sonho em que eu tinha entrado sem saber como.
Lentamente e de maneira gentil, Seth passava os dedos pelo meu cabelo, enrolando as mechas despreocupado. Ele deixou a mão cair e mudou um pouco de posição, só o
suficiente para me dar um beijo na testa. Soltei o ar e me aconcheguei mais, percebendo que não era um sonho do qual eu acordaria.
Pelo menos era o que eu achava até o celular dele tocar.
O toque era “Where the Streets Have no Name”, do U2; não é uma música pesada ou desagradável, mas eu me encolhi. Por um instante, paramos de respirar, os dois paralisados.
Eu queria que o telefone desaparecesse da face da Terra, que fosse aniquilado como eu temia que algum demônio me aniquilasse. Eu precisava que ele desaparecesse,
porque, se continuasse tocando, nada daquilo seria real. A realidade precisaria ser enfrentada.
Mas era tarde demais. O encanto tinha se quebrado. O telefone era a realidade.
- Você deveria atender - eu disse.
Ele hesitou por um instante, suspirou e depois se desenroscou lentamente de mim, ainda preocupado com minhas costas. Sentado na beira da cama, ele abaixou e tirou
o telefone de dentro do bolso do jeans. Eu mudei de posição, apoiando-me sobre os cotovelos, admirando o formato do corpo dele, apesar do sentimento estranho, um
misto de prazer e dor, que começou a invadir meu coração. Eu sabia, por algum motivo, que era a Maddie.
- Oi... Eu estava ocupado. Humm... - Seth fez uma pausa e eu pressenti que alguma coisa assombrosa estava prestes a acontecer. - Eu tive uma ideia para o último
capítulo.
Eu fechei os olhos. Desde que eu o conheci, nunca tinha visto Seth mentir descaradamente.
- Certo. Tudo bem. Humm, se eu sair agora, posso chegar em... vinte minutos. Humm-humm. Você quer que eu vá te buscar ou...? Tá. Encontro você lá.
Ele desligou o telefone e continuou sentado de costas para mim, apertando o telefone com as mãos. Apesar de estar com as costas retas, ele estava com a aparência
de uma pessoa corcunda, abatido pela decepção.
- Você precisa ir embora? - perguntei.
Ele olhou para mim com o rosto angustiado. - Georgina...
Consegui esboçar um sorriso. - Tudo bem. Eu sabia onde estava me metendo. Entendo a situação.
- Eu sei, mas quero que você saiba que não foi... Eu não...
Ele não precisou terminar. Uma das coisas de que sempre gostei em Seth era sua natureza honesta e aberta. Às vezes, ele conseguia esconder de mim o que estava sentindo,
mas, na maior parte das vezes, não conseguia. A expressão de seu rosto refletia seus sentimentos. Essa foi uma dessas vezes. Com um único olhar, vi o que se passava
no coração dele, que ele não tinha transado comigo porque eu era fácil, porque eu estava à disposição. Ele tinha feito isso por causa de como se sentia em relação
a mim, porque ele me amava - ainda me amava, o que piorava muito as coisas.
- Eu sei - eu disse com a voz baixa.
Depois de mais um beijo na testa, ele se vestiu. Eu observava cada movimento como se estivesse faminta, sem ter certeza de que voltaria a ver alguma coisa parecida
de novo. Quando ele se vestiu e estava pronto para ir embora, sentou-se ao meu lado na cama, mexendo de novo no meu cabelo. Outra vez, aqueles olhos castanhos e
dourados transbordavam emoção. Ele estava arrasado e confuso. Eu também, mas, para o bem dele, tentei parecer forte e objetiva.
- Tudo bem - eu disse. - Foi maravilhoso. Surpreendente... mas eu sei que nós não deveríamos e que nunca... - Acabou a objetividade.
- Sim - ele concordou.
- Foi só desta vez. E foi perfeito.
- Só desta vez - ele repetiu.
Eu não conseguia ler a voz dele, mas alguma coisa me dizia que ele não estava muito satisfeito. Eu também não estava, mas, sinceramente, o que poderíamos fazer?
Havíamos sucumbido à paixão e agora ele precisava voltar para a namorada. Fim da história.
Ele inclinou minha cabeça para trás e nossos lábios se encontraram em um beijo macio e afetuoso. Foi breve, só alguns instantes, mas eu senti aquela mesma conexão
profunda entre nossas almas que tinha me arrebatado durante o sexo. Ele se levantou e me observou por mais alguns instantes, como se nunca mais fosse me ver. Eu
me senti um pouco idiota deitada nua, mas a expressão dele me dizia que ele estava me achando linda.
Ele foi embora depois disso, e eu continuei na cama, entorpecida com os meus sentimentos. Aubrey juntou-se a mim, se acomodando junto à minha perna.
- Era assim que devia ter sido, Aubrey? - Eu não sabia. Com certeza, o sexo tinha sido tudo o que eu havia imaginado com Seth. Mas a sensação que permanecia... Deixava
um pouco a desejar. Nada nessa situação era normal. Eu não tinha uma experiência anterior para me servir de referência.
Depois de quase meia hora olhando para o nada e não chegando a nenhuma conclusão, levantei da cama. Eu ainda estava abalada com o que tinha acontecido e meu corpo
queimava com o que eu e Seth havíamos feito. Eu normalmente gostava de tomar banho depois de transar, mas não queria dessa vez. Eu podia sentir o cheiro de Seth
em mim, o suor dele e até um vestígio da colônia com toques de couro e maçã que ele às vezes usava. Eu ainda não podia suportar a ideia de lavá-lo, então, coloquei
o roupão de algodão de novo. Furado ou não, o tecido era macio sobre minha pele escoriada.
Eu já ia saindo do quarto quando vi a foto do medalhão no chão. Eu a apanhei para colocá-la na minha mesa de cabeceira e congelei. Havia coisas escritas nela.
Com uma letra caprichada, em caneta hidrográfica preta, lia-se: Quartzo fumê indica terra ou unidade com a terra. Os símbolos do medalhão estavam circundados, havia
linhas saindo de cada um e levando a anotações breves: isso indica afinidade com a água, um estado harmonioso, de combinação; este é semelhante ao da água, mas é
para terra; este símbolo serve para mascarar, tem a intenção de encobrir o objeto que protege e manter o lacre forte; este é estranho, indica vazio ou brancura -
talvez areia branca ou pedras brancas?; este é o símbolo para lágrimas - que, combinado com o da água, provavelmente indica água salgada.
Eu reli as anotações três vezes. De onde elas tinham vindo? Quando tinha acontecido isso? Refiz meus passos, tentando recordar quando eu tinha largado a foto. Não
havia nada escrito quando eu a mostrei para Dante. A hora mais provável teria sido quando saí para comprar comida. Alguém, teoricamente, poderia ter invadido minha
casa e feito isso enquanto eu estava com Carter na sala, mas conseguir passar pelo anjo já era demais.
A não ser... Seria possível que Carter tivesse me ajudado no fim das contas? Ele ficava dizendo que não podia; tinha até negado diretamente qualquer envolvimento
em minhas tentativas de resgate variadas. Mas a sequência dos acontecimentos era coincidência demais. Eu ficava olhando para os símbolos, para as notas e para as
figuras do lacre. Quem tinha escrito aquilo no momento era irrelevante. Se as anotações estavam corretas, eu precisava usá-las para encontrar Jerome.
Carter havia dito que o lacre tinha duas funções. Uma era infundir poder no objeto. A outra era funcionar como uma “tranca”, que poderia abrir o objeto e libertar
Jerome. As partes do lacre estavam com o demônio e o conjurador, mas os símbolos deveriam fornecer algumas pistas sobre a localização do objeto. Supostamente, esses
símbolos tinham sido usados para esconder Jerome, infundindo no objeto um tipo de energia específico do lugar em que estava, o que ajudaria as energias a se misturar
e a mascarar a presença de Jerome.
A afinidade com a terra, assim como as marcações de água - água salgada, especificamente... Muitos lugares que tinham energia costumavam ser selvagens, naturais,
apesar de alguns terem se tornado centros de civilização e atividade. O Pike Place Market, no centro de Seattle, por exemplo, era um desses locais sobre os quais
a humanidade tinha construído coisas.
Mas esses... O que eles indicavam? Algum lugar próximo da água salgada, aparentemente. Era provável que o objeto estivesse perto o suficiente da água para que os
símbolos entrassem em sintonia e camuflassem o local. E onde em terra? Talvez enterrado na areia? Jerome estava enterrado em alguma praia? Os sequestradores de Jerome
não iam querer deixá-lo muito longe, mas, mesmo assim, o Pacífico ladeava toda a parte oeste de Washington. Isso era muita praia, e eu sabia que havia vários locais
com energia pelo caminho. Eu não conhecia nenhuma praia de areia branca na região; só uma pesquisa mais detalhada poderia revelar isso.
Com um suspiro, deitei na cama, ainda segurando a foto. As anotações só haviam delimitado as localizações, mas ainda era uma área muito grande para cobrir. O que
eu poderia fazer? Eu precisava encontrar o objeto o mais rápido possível, ou Seattle teria um novo arquidemônio. Estudando melhor a foto, eu queria que ela me fornecesse
mais informação. Nada. Só o medalhão, as anotações misteriosas e as informações do arquivo de Mary na parte de cima, não muita coisa...
Franzi a testa ao reler o cabeçalho dela. Era breve, só a lista dos materiais, o nome e a data em que o medalhão havia sido criado e depois o dia em que fora entregue.
Mas a data em que ele havia sido terminado... essa não saía da minha cabeça. Por quê? Fazia uma semana. Por algum motivo essa data era importante, mas eu não conseguia
descobrir por quê. Eu me sentia como se anos tivessem se passado nessa última semana, mas fiz uma contagem regressiva, recapitulando minhas atividades recentes.
Lá estava. O lacre fora feito no dia em que eu tinha ido para Vancouver pela primeira vez... o dia da guerra entre os vampiros por território. A criação do lacre
poderia ter chamado a atenção do radar imortal de alguém? Eu não sabia, mas, se pudesse, Jerome, Grace e Mei estariam ocupados resolvendo a confusão com os vampiros.
Desvio.
Dali para a frente, outras coisas começaram a se organizar em minha cabeça. Pensei de novo no Exército da Escuridão, perguntando-me sobre a relação que existiria
entre as atividades deles e a conjuração de Jerome. O incidente no Parque Queen Elizabeth coincidia com a data em que o lacre fora entregue. E a visita improvisada
do Exército a Seattle...? Essa tinha sido imediatamente antes da conjuração de Jerome, mas ninguém iria querer atrair a atenção para isso, iria?
A resposta estava ali. Eu só ainda não tinha conseguido encaixar as peças devidamente. O Exército executara sua encenação. Jerome, Grace e Mei voltaram-se totalmente
para eles. Jerome havia sido conjurado. Onde estavam os outros jogadores?
Abandonei a cama e as lembranças dolorosas e sedutoras que ela evocava. Encontrei o celular e digitei o número de Kristin.
- Oi, Georgina - ela disse, afável, mas atarefada, como sempre.
- Oi - eu disse. - Como vão as coisas?
- Uma loucura. - Eu podia imaginar a cara feia que ela tinha feito. - Cedric está me infernizando... sem trocadilho, ele está muito estressado com todos esses demônios
por perto. Pelo menos ele está... Ele está se divertindo com aquele súcubo.
- Tawny?
- Sei lá como ela se chama. Cedric na verdade está com ela no momento. - A voz de Kristin deixava transparecer descontentamento e uma pontinha de ciúme. Eu me lembrei
da devoção eterna dela a ele - e da cara dela quando ele convidou Tawny para sair. Fiquei com um pouco de pena dela, mas eu já tinha minhas inúmeras confusões amorosas
para resolver.
- Humm. - Eu não sabia o que dizer. - Eu queria perguntar uma coisa. Você sabe se o Cedric veio ver Jerome no dia em que o Exército esteve aqui?
- Sim. Cedric foi para aí logo depois de receber o seu recado. Achei que você soubesse.
- Não... Eu só fiquei sabendo depois que já havia acontecido, mas aí a conjuração meio que virou prioridade.
- Por que você quer saber?
Fiquei hesitante. Eu gostava de Kristin, mas ela era visivelmente leal a Cedric. Achei que não seria prudente compartilhar minhas teorias com ela, como, por exemplo,
eu supor que o Exército estar em Seattle pudesse ter fornecido um motivo conveniente para Cedric e Jerome estarem juntos quando Jerome foi conjurado. Ocorreu-me
que talvez eu devesse uma desculpa ao Hugh por ter sido teimosa quanto ao envolvimento de Cedric. Outra coisa também me ocorreu.
- É uma longa história - eu disse sem pensar. - Você sabe se ele tem visto Nanette?
- Por quê? - pela voz, ela estava começando a ficar desconfiada. Não estava gostando de um interrogatório sobre o chefe dela.
- Bem... Outro dia eu contei para ele que eu achava que Nanette poderia estar envolvida no desaparecimento de Jerome. Ele não achou que estivesse, mas ele contou
para ela... e ela ficou furiosa. Ela, humm... digamos que ela teve uma reação violenta, eu tenho cicatrizes para provar.
Meus amigos tinham observado que o ataque de Nanette a fazia parecer culpada. Se Cedric tivesse a incentivado o suficiente quando contou para ela, ele poderia muito
bem tê-la induzido a ir atrás de mim em um momento de fúria - e conseguido desviar a atenção para longe dele. Merda. Eu não queria mais um suspeito nisso tudo. Não
queria que fosse Cedric. Nanette tinha sido até o momento uma explicação conveniente.
Kristin ficou em silêncio por alguns segundos. - Eu não sabia disso - ela disse em voz baixa. - Está tudo bem com você?
- No geral, sim. - A Mei curou a pior parte, mas eu ainda estou meio dolorida.
- Não acredito... Cedric nunca teria contado para ela se soubesse o que ia acontecer. Ele gosta de você. Ele não permitiria. Ele não tinha como saber. Sinto muito.
Ela estava sinceramente passada, sentida com a possibilidade de o chefe dela - embora ele fosse um demônio e um servidor do mal - estar envolvido em algo com consequências
tão terríveis.
- Tudo bem - eu disse. - Preciso correr, mas obrigada pela informação. As coisas estão uma loucura por aqui também, como você pode imaginar.
Dissemos adeus e desligamos. Fiquei mexendo com o celular, sentindo- -me arrasada. Nanette ainda não tinha sido descartada, mas Cedric também era suspeito - talvez
até mais. Se eu tivesse evidências suficientes, eu poderia levar o assunto para Grace e Mei... mas eu ainda não tinha. Além disso, saber quem era o culpado não resolvia
o problema mais imediato: encontrar Jerome.
Olhei novamente para a foto sobre minha mesa de cabeceira. Com as costas doloridas ou não, eu ia precisar fazer uma varredura pela costa.
Eu quase derrubei o Dante quando ele chegou em casa naquela noite.
- Súcubo - ele disse, deixando que eu o envolvesse em meus braços. Ele só teve o cuidado de apoiar as mãos no meu quadril. - Também estou feliz por ver você.
Minha ansiedade tinha dois motivos. Eu estava entusiasmada por vê-lo porque queria enchê-lo de perguntas sobre o medalhão e os locais com energia. Mas também...
Bem, como eu não tivera nada para fazer durante o dia, sobrara muito tempo para pensar sobre Seth e o que havia acontecido entre nós. A lembrança do corpo dele ainda
fazia o meu arder, e eu ficava sem fôlego ao recordar aquela conexão espantosa e a sensação de perfeição entre nós.
No entanto... por mais perfeito que fosse, era uma coisa errada. Ele estava com Maddie - minha amiga. Eu tinha ficado aborrecida quando Seth e ela dormiram juntos
pela primeira vez. Eu não era diferente. Na verdade, eu havia feito isso conscientemente, o que tornava as coisas piores. Agora, existia Dante para ser levado em
consideração. Dante, que, apesar da natureza irascível e sombria, realmente me amava e queria ser para mim mais do que alguém com quem eu transava. Meu futuro era
ele, e não Seth.
Dei um beijo nos lábios de Dante que se prolongou por alguns segundos. - Estava com saudade.
Ele deu um sorriso irônico. - Não me olhe desse jeito ou vai ser difícil eu me lembrar de que você está ferida e que eu deveria ficar longe de você.
Essas palavras provocaram uma pontada de culpa. Meus ferimentos não tinham sido motivo suficiente para manter Seth afastado. Eu poderia ter dito a Dante que estava
melhor, que não tinha problema, mas, por algum motivo... eu não disse.
Nós nos afastamos e apanhei a foto do medalhão para ele. Ele olhava com um ar de incredulidade enquanto eu mostrava as anotações fantasmas e contava minha história.
- O quê? Você não tem a menor ideia de quem entrou aqui ou de quem fez isso?
- Não, mas, a esta altura, não vou me preocupar com isso.
Ele balançou a cabeça, ainda chocado. - Era melhor eu ter visto isso antes de sair. Teria sido muito mais fácil esperar que ajudantes invisíveis viessem deixar pistas.
Lembrei-me de que ele tinha saído para ver o que conseguiria descobrir sobre o medalhão. - O que você descobriu?
Ele apontou para a foto. - A mesma coisa.
Coloquei minha mão sobre a dele. - Desculpe. Estou realmente agradecida pela ajuda. E, se a sua pesquisa revelou a mesma coisa, quer dizer que isso é confiável.
- Talvez - ele disse, ainda não muito satisfeito com a perda de tempo. - O que você vai fazer? Alguma maluquice?
- Procurar praias de água salgada, acho.
Dante deu um assobio. - Há muitas delas por aqui. Sem contar que, de qualquer jeito, você não tem como identificar o objeto.
- Eu sei. Mas preciso começar por algum lugar. Você pode me ajudar a fazer uma lista?
Pegamos um atlas da região do Pacífico Noroeste no meu carro e abrimos sobre a mesa da cozinha. Verificando cada detalhe, cada um de nós marcou os lugares que conhecia.
Dante conhecia muito mais locais do que eu, o que não me surpreendeu. Uma vez, conversando com Erik Lancaster, eu havia comentado que os estudiosos de religiões
geralmente conheciam a religião melhor do que os praticantes. Algumas vezes, eu tinha a mesma impressão quanto aos assuntos imortais.
Encontramos doze que eram acessíveis em uma viagem de um dia só - e muitos mais longe. - Parece que é isso que você tem de fazer - Dante refletiu. - Quando você
vai começar a procurar? Agora já está muito escuro.
Olhei para o mapa desanimada. - Amanhã, eu acho. Você pode vir comigo? - Um paranormal como ele poderia sentir alguma coisa, como Carter havia observado.
Ele fez uma careta. - Não amanhã. Tenho algumas consultas marcadas, na verdade. Que coisa, não? Posso ir depois de amanhã, ou depois. Se você puder esperar. Eu ficaria
mais tranquilo se você não fosse sozinha.
Fiquei contente por ele ter trabalho, mas chateada com o atraso. - Acho que não dá para esperar. Mas não se preocupe. Vou achar alguém.
- O lado bom - ele disse, tentando me consolar - é que amanhã eu vou ter dinheiro. Nós podemos ir a algum lugar bacana.
Armei um sorriso. - Eu ador... Droga! Não posso.
- O que foi?
- Merda. Eu prometi para o pessoal da livraria que ia ensiná-los a dançar salsa depois do trabalho.
- Cancele - ele disse indiferente. Minhas aulas de dança não eram muito importantes no que dizia respeito a ele. - Diga que está doente.
Isso não seria totalmente mentira... mas eu gostava de cumprir minha palavra. Além disso, eu ainda podia ver a expressão radiante de Maddie, tão entusiasmada e feliz
quando concordei. Como eu ia negar-lhe isso depois do que eu tinha feito com ela naquele dia?
- Não... Preciso ir. Vamos sair para comer agora. Por minha conta.
Ele me levou para Belltown, onde ficava um dos melhores restaurantes de frutos do mar de Seattle. O vinho e a conversa fluíram, e descobri que eu estava melhorando
a passos largos. Quando voltamos para casa e fomos para a cama, Dante se aconchegou em mim e beijou meu pescoço.
- Parece que você já está bem melhor - ele observou, subindo com a boca em direção à minha orelha. - A gente podia transar... Eu tomo cuidado...
Os lençóis e cobertores em que Seth e eu tínhamos transado mais cedo estavam espalhados pela cama. A ideia quase me sufocou. Por Deus, eu devia ter lavado a roupa
de cama. Engoli em seco e mudei de posição para evitar os olhos de Dante. - Talvez... mas prefiro esperar, para não precisar tomar cuidado. - Falei com uma voz rouca
sedutora, na esperança de que ele acreditasse.
Dante suspirou, felizmente sem vontade de insistir. - Tudo bem.
Ele se virou e me deixou dormir, mas eu demorei para pegar no sono.
Capítulo 19
o dia seguinte, Dante saiu para trabalhar e eu liguei para Cody logo depois do café da manhã. - Oi - eu disse. - Vocês dois ainda estão bancando as garotas de Ipanema?
- Pode apostar - ele disse animado. - Um vizinho nosso tem um veleiro e nos convidou para ir velejar com ele e...
- Não era bem isso que eu estava planejando - interrompi.
Uma hora e meia depois, Peter ecoou meus pensamentos. - Não era bem isso que eu estava planejando.
Eu os havia convencido a me acompanhar na minha busca pelas praias. Infelizmente, o dia estava frio e ameaçava chover. Enquanto caminhávamos perto da água em Dash
Point, o vento gelado batia nas ondas e castigava nosso rosto. Eu me encolhi para dentro do casaco, pensando em quantas vezes eu não tinha dado valor à capacidade
de transformar casacos mais quentes.
- Eu sei que vocês acham que estão de férias, mas, em algum momento, nós vamos ter outro arquidemônio, e eu preferia que fosse Jerome.
- Sim, mas isto não é exatamente um plano infalível - Peter argumentou. - Estamos andando ao acaso pelas praias, esperando encontrar areia branca. Olhe para isso.
É bege... Isto é parecido com branco?
Eu olhei atravessado. - Uma vez, você discutiu com Carter por causa da diferença entre “azul jeans” e “cobalto verão”. Você é quem sabe. Branco e bege são duas cores
diferentes?
Peter jogou areia para cima com a ponta da bota. - Era “cobalto inverno” e Carter estava errado. A diferença entre os dois é enorme.
Cody e eu disfarçamos o sorriso enquanto continuávamos nossa caminhada. O Parque Estadual de Dash Point ficava perto da cidade de Federal Way, na parte sul da Baía
de Puget. Parecia boa ideia começar por ali e subir acompanhando a costa, voltando em direção a Seattle. Esse era nosso segundo parque do dia e, até então, não tínhamos
visto nada que correspondesse às misteriosas pistas do lacre.
No caminho para a terceira parada, Peter ainda estava pessimista. - Sabe, isso seria muito mais fácil se o seu namorado caloteiro tivesse vindo junto. Nós só podemos
tentar encontrar pistas visíveis no momento. Precisamos de alguém que possa realmente sentir a energia em torno do objeto.
- Dante está ocupado no trabalho - expliquei.
- Sei - Cody disse consigo mesmo. - Nunca pensei que fosse ouvir as palavras ocupado e trabalho juntas em se tratando de Dante.
- Fique quieto - eu disse. - Deixe o sarcasmo por conta de Peter e Hugh.
- E Erik? - Peter perguntou. - Ele tem poderes paranormais.
- Sim, eu pensei nisso, mas ele está ficando velho e tem dor nas costas. Não quero pedir a ele que fique andando por aí comigo... mas, bem, não descartei a ideia.
- E você não conhece mais nenhum paranormal?
- Não. Não em quem eu possa confiar, pelo menos.
- Nem eu - Peter admitiu. - Mas aposto que o Hugh conhece.
- Você provavelmente está... - parei no meio da frase. - Eu talvez conheça mais uma... - era uma ideia maluca e eu não tinha certeza de que valia a pena levá-la
adiante.
- Quem? - Cody perguntou.
Balancei a cabeça e entrei no próximo parque estadual. - É uma longa história e vou precisar de certa persuasão.
Nossa terceira parada também não rendeu nada, fora a incapacidade de Peter de tirar areia de dentro da bota. A essa altura, tinha começado a chover, e até eu estava
ficando desanimada. Ainda faltavam algumas horas para o pôr do sol, mas o céu nublado estava realmente matando a luz. Olhando para meu relógio, vi que estava chegando
a hora da aula de dança, então voltamos para o norte, rumo a Seattle. Deixei os vampiros na casa deles e depois fui para a minha para me aprontar.
A seleção de vestidos no meu closet me parecia velha e sem graça, mas eu não podia recorrer à magia para inventar alguma coisa. Então, optei por um minivestido sem
manga com uma estampa colorida de flores cor de laranja, verdes e pretas borradas como uma aquarela. Era um pouco mais curto do que deveria para uma dança com aquela
quantidade de movimento, mas as cores alegres me pareceram adequadas para um dia como aquele.
Também estava frio e, em um impulso, adicionei meias escuras até a altura das coxas para manter as pernas aquecidas. Além disso, com o sapato preto de salto e um
batom escuro, eu estava incorporando meu lado súcubo mais do que minha identidade contida de gerente de livraria. É claro que, considerando a roupa de prostituta
com a qual eu tinha aparecido na semana anterior, isso era até meio convencional.
Doug obviamente fez comentários para me provocar, mas eu sabia que no fundo ele estava gostando. Fiquei satisfeita comigo mesma por saber que tinha me arrumado sem
me transformar. Eu quase tinha torrado meu cabelo com a chapinha tentando alisá-lo naquela noite. Eu podia desafiar qualquer um a dizer que ele estava arrepiado.
Maddie estava felicíssima, e o entusiasmo dela contagiava os funcionários que tinham resolvido ficar para a aula depois do encerramento das atividades do dia. Alguns
amigos deles também tinham aparecido, o que totalizava umas doze pessoas. Era um grupo de bom tamanho, fácil de lidar. Abrimos espaço no andar de cima e eu preparei
meu som portátil. Cody já havia me ajudado a ensinar swing, mas eu não tinha pensado em recrutar a ajuda dele dessa vez. Em vez disso, usei Doug para fazer uma demonstração.
Talvez por ser músico, ele logo pegava o ritmo e aprendia os movimentos muito rapidamente.
Depois de meia hora, eu podia confiar nele o suficiente para começar a ajudar os outros, e nós nos separamos para nos dedicar a alguns de nossos alunos. Apesar de
minha hesitação em concordar com as aulas, eu me diverti, e a maioria das pessoas estava tão constrangida por ter de encostar na gerente que não precisei me preocupar
com a possibilidade de alguém machucar minhas costas. Maddie, apesar do entusiasmo, estava tendo um pouco de dificuldade e reclamou em voz alta quando o irmão chegou
para ajudá-la. Ele a levou embora e eu sobrei com o parceiro de dança dela: Seth.
Eu sabia que ele estava lá, é claro, mas eu tentara evitar contato visual. Agora, porém, não dava para escapar, e nós ficamos meio sem jeito, olhando um para o outro;
nenhum dos dois sabia bem o que fazer. O piloto automático entrou em ação e eu estendi as mãos para ele. Eu era a professora, e como ele era um dos piores dançarinos
na pista, era natural que precisasse mais de ajuda do que outros.
Seth, por sua vez, estendeu as mãos para mim, e, quando dei um passo para a frente, meu salto enganchou no carpete. Eu me ajoelhei para verificar, achando que seria
um vexame tropeçar e cair, sendo eu o suposto modelo de graciosidade e equilíbrio ali. Olhei para cima e meus olhos encontraram os dele. Ele estava olhando para
mim, e a expressão dele não era mais tímida ou confusa. A expressão dele era de quem estava cogitando alguma coisa e... bem... faminta. Ao olhar para baixo, percebi
de repente a visão que eu estava proporcionando. Ele podia ver bem para dentro do meu decote, e o vestido já era bem decotado. Quando eu me ajoelhei, a saia subiu,
mostrando o acabamento de renda preta de uma das minhas meias sete oitavos.
Eu não sei qual dos dois ele estava achando mais interessante, mas o olhar dele examinava cuidadosamente meu corpo e, em cada parte para onde ele olhava, o suor
brotava. Eu me levantei e de repente a tímida e desajeitada era eu. O desejo estava estampado nele e não sei como ninguém percebeu. Ele estendeu as mãos de novo
e, quando nós nos tocamos, a eletricidade percorreu meu corpo.
Encontrando o ritmo, comecei a conduzir os passos dele. Ele era um desastre, exatamente como eu me lembrava, mas, apesar disso, enquanto eu me esforçava para levá-lo
a fazer os movimentos certos, nossos corpos esbarravam um no outro por necessidade, e eu não conseguia deixar de pensar que, embora ele deixasse a desejar no ritmo
para a dança, na cama ele não era nada descoordenado.
Nenhum dos dois disse nada por mais ou menos um minuto, eu tinha certeza de que ele estava ocupado com a mesma fascinação física que eu, provavelmente também revivendo
nosso encontro do dia anterior. Eu estava cada vez mais excitada e, por mais que eu soubesse que era errado, eu dava um jeito de nós nos tocarmos de vez em quando,
enquanto eu guiava o corpo dele. Por fim, apesar da excitação sexual, eu não consegui resistir e comecei a rir.
- Acho que nunca vi você dançar tão mal - eu disse para ele. - E olha que você é um péssimo dançarino.
Ele sorriu decepcionado, mas desconfiei de que a dança era a última coisa em que ele estava pensando. - Perdi a prática.
- Bom, ainda bem que desta vez pelo menos você está aqui dançando, em vez de ficar sentado, de lado.
- As coisas mudam, suponho.
Eu olhei nos olhos dele por um instante. - Sim. Elas mudam.
Alguns momentos de silêncio se passaram antes que ele perguntasse:
- Como anda a sua... humm... situação imortal?
- Hã? - A mão de Seth tinha passado a milímetros do meu seio quando nós demos um giro. Determinada, eu me obriguei a esquecer a sensação de sentir o corpo dele -
como era, o cheiro e o gosto - no dia anterior e voltar a pensar nos meus outros problemas. - Bem, na verdade, não muito boa. Eu consegui mais algumas informações,
mas está difícil...
Quando fiquei em silêncio, Seth inclinou a cabeça e me olhou confuso. - O quê?
Eu já não me lembrava se eu havia mencionado rapidamente os vampiros. - Seth... tenho uma pergunta estranha para fazer... e você pode ficar à vontade para dizer
não.
A expressão dele ainda parecia dizer que ele queria arrancar minha roupa, mas havia alguma coisa além... um ar sério e preocupado, que fez sentimentos afetuosos
se misturarem com meu desejo.
- Se eu puder fazer alguma coisa para ajudar, vou fazer.
- Eu sei - eu disse. - Mas não é exatamente você quem pode ajudar... É Kayla.
Se Seth estivesse fazendo alguma coisa parecida com dançar, ele teria tropeçado e errado o compasso. Como não estava, não dava para notar a diferença.
- Kayla? - o nome da sobrinha dele, de 4 anos, evidentemente não era o que ele esperava ouvir.
- Você se lembra de quando eu disse que ela tinha poderes paranormais?
- Sim... mas eu não prestei muita atenção.
- Bem, contei para você os detalhes da conjuração, não contei? Agora tenho uma pista de onde Jerome está, mas não tenho como achá-lo, se estivermos no lugar certo.
Eu poderia fazer isso se estivesse normal, ou alguém com poderes paranormais poderia. Infelizmente, os que eu conheço não estão disponíveis.
A preocupação estava rapidamente se sobrepondo ao desejo. Fiquei triste ao ver a excitação abandoná-lo, mas era um assunto importante.
- Acho que não é boa ideia envolver Kayla em nada disso. Na verdade, eu não acho, eu tenho certeza.
Concordei com a cabeça. - Eu sei... Imaginei que você diria isso e... acredite, eu também acho.
Eu adorava todas as sobrinhas de Seth, mas Kayla era minha preferida. - É só uma ideia que me passou pela cabeça.
- Bem, eu... ai!
Outro casal deu um encontrão em minhas costas, jogando-me nos braços dele. Eu coloquei as mãos para tentar me segurar, mas isso não evitou que nossos corpos se tocassem.
Cada parte de mim sentiu uma vibração com esse contato, e se eu ainda tinha alguma ilusão de que eu poderia esquecer o que tinha acontecido no dia anterior, ela
agora havia desaparecido.
- Desculpe - Andy disse. Ele estava dançando com a Casey e, como ela, ele trabalhava na livraria havia muito tempo.
Casey deu um gemido. - Georgina, por favor, fique com o Andy. Nem o Seth consegue dançar tão mal.
- Discutível - murmurei. Não queria trocar, não queria interromper meu contato com Seth. Queria ficar lá e continuar a tocá-lo e, justamente por causa desse impulso,
dei um passo para trás. Minha respiração estava pesada e levei um tempinho para me recompor. Respirei fundo mais uma vez e sorri para o Andy. - Vamos ver se consigo
dar um jeito em você.
Casey levou Seth embora e eu consegui evitá-lo durante o resto da aula. Quando terminou, todo mundo bateu palmas para mim e pediu que eu desse outra aula. Prometi
que daria, mas estava muito agitada e preocupada para marcar uma data naquele momento. Combinei de dar um retorno depois.
Alguns deles imediatamente começaram a rearrumar a sala, e, não vendo mais nenhum motivo para continuar lá, voltei para meu escritório. Meu plano era verificar uma
papelada e me esconder até todo mundo ter ido embora, para não precisar ver Seth de novo. Eu estava no meio do corredor quando ouvi alguém me chamar.
- Georgina?
Eu parei. Era a Maddie. Virei-me, torcendo para que meu sorriso não parecesse fingido nem apavorado. Merda. Ela estava lá para acabar comigo por eu ter me engraçado
com o namorado dela na pista de dança. Sinceramente, era o mínimo que eu merecia.
Ela, porém, estava toda sorridente e feliz e me deu uma pilha de papéis.
- Acho que eu me animei demais - ela disse envergonhada. - Estas são algumas informações sobre condomínios que imprimi para você. Andei pesquisando online nos últimos
dias e acabei olhando de tudo, uma vez que você não tinha muita certeza do que queria. Achei um monte de casas interessantes perto da praia.
Peguei a pilha de papéis da mão dela, surpresa. Essa era a última coisa que eu esperava.
- Provavelmente é um exagero, você vai ter muita coisa para olhar. Depois, se você se encantar com alguma delas, podemos começar por aí.
Olhei para a folha de cima, que mostrava um condomínio com três quartos em Alki. - Eu... uau. Obrigada, Maddie. Não precisava.
Ela deu um sorriso quando agradeci. - Foi um prazer. Depois você me diz o que achou... e obrigada de novo pela aula. Foi tão divertido! Só espero não ser um desastre
tão grande da próxima vez. Talvez eu possa convencer o Seth a treinar em casa.
Ela me deu um abraço rápido e depois foi embora correndo para pegar carona com Doug. Fui andando devagar para meu escritório, com os papéis na mão, e os coloquei
na minha mesa. Despenquei na cadeira, sentindo-me péssima. Enquanto eu estava fazendo coisas horríveis com o namorado dela, ela tinha se empenhado para tentar encontrar
um apartamento novo para mim.
Eu bem que tentei dar uma olhada nas informações sobre alguns, mas não estava muito animada. Eu olhava para os números sem compreendê-los e, quando alguém bateu
na porta, recebi a interrupção com agrado. Levantei-me da cadeira com um pulo.
- Entre. - Eu me perguntei se a Maddie tinha se esquecido de me entregar outro calhamaço. Mas não era ela.
Seth estava parado na porta.
Fiquei olhando, tentando não ficar boquiaberta ou fazer alguma coisa ridícula do gênero. - O que... O que você está fazendo aqui? Achei que você tivesse ido embora.
Parecia que ele queria entrar, mas estava com medo. - Doug levou Maddie para casa e eu voltei para... para... - Ele parou e balançou a cabeça, incapaz de continuar
mentindo sobre ter esquecido alguma coisa. - Eu voltei para ver você.
Eu me lembrei de como os olhos dele tinham observado meu corpo, da fumaça que se espalhou por eles quando a saia subiu pela minha perna. Aquele mesmo ar esfumaçado
estava lá agora e senti meu corpo inflamar com desejo em reação. Na verdade, depois do modo como tínhamos encostado um no outro enquanto dançávamos, o desejo não
tinha realmente ido embora. Apesar disso, tentei ser racional.
- Seth, nós não podemos... não de novo... é...
- Eu sei - ele disse. Por fim, ele avançou para dentro. - E eu disse para mim mesmo... Eu tentei esquecer... Mas não consigo parar de pensar em você desde ontem.
E depois de hoje à noite... - Hesitante, como se estivesse com medo de alguém estar espreitando, ele fechou a porta. - O jeito como você estava lá fora. Era... acredite,
eu não estava dançando mal porque eu danço mal mesmo, eu sei disso. Era porque eu estava pensando em tudo. Estava pensando em você. Meu Deus, eu não conseguia me
controlar. E não é só porque você está sensual hoje. É mais do que isso. O modo como você iluminava a sala, como você cativava a todos e os deixava felizes. Você
não precisa de poderes especiais para fazer isso, Georgina. Está em você, faz parte de quem você é. Você é engraçada, inteligente. Foi isso que fez eu me apaixonar
por você antes, e é isso que... - ele não terminou e eu fiquei feliz por ele não ter concluído. Se ele tivesse falado “... e é por isso que eu amo você agora” ia
ser demais para mim.
Percebi que ele tinha chegado muito mais perto. Respirei fundo. - Teria sido mais fácil para mim se você tivesse falado que só acha que sou sensual. - Superficialidade
eu podia encarar. Essa profundidade emocional, não.
Ele deu um sorriso tristonho e chegou ainda mais perto, de forma que ficamos a menos de um metro um do outro. - Acredite, eu acho que seria muito mais fácil para
mim se você não fosse.
Eu mal podia respirar. Estávamos tão perto... e cada átomo naquela sala estava carregado. Eu estava eletrizada. A expressão dele não deixava nenhuma dúvida. Ele
também me queria - muito. Ele transbordava sexualidade e desejo, e eu sabia que a minha expressão refletia esses mesmos sentimentos. Ele, porém, agiu com cautela,
ficando o mais próximo que ousaria ficar, esperando meu sinal. Ele estava tenso, como se um pequeno sinal meu fosse fazê-lo explodir.
Desesperadamente, tentei me apegar a todas as coisas sensatas que eu podia. Lembrei-me de como eu tinha ficado arrasada quando ele saiu para se encontrar com Maddie
no dia anterior. Maldição! Tentei pensar na própria Maddie - aquela expressão alegre e sincera que confiava tanto em mim. Tentei pensar no Dante. Nada disso funcionou,
no entanto, porque tudo o que eu tinha na cabeça era Seth, como havia sido perfeito estar com ele. Como era perfeito estar com ele nesse momento.
Peguei a mão dele e apoiei-a no meu ombro. Era tudo o que ele precisava. Ele chegou mais perto e acariciou meu pescoço, descendo depois para meu ombro. Ele puxou
uma alça do vestido, e ela escorregou por meu braço. Os dedos dele a acompanharam, puxando mais e fazendo a parte de cima do vestido cair para a frente, revelando
parcialmente um dos meus seios. Meu mamilo já estava contraído e preparado quando a mão dele se aproximou e puxou o resto do vestido para baixo, deixando meu seio
totalmente exposto. Ele o envolveu com a mão, apertando-o e passando os dedos pela curva.
A outra mão foi para o outro lado, pegando o outro seio e brincando com o mamilo por baixo do vestido de seda. Meu corpo foi de encontro ao dele, e nossas bocas
se uniram, quentes e fogosas. Ontem tinha sido delicado, cheio de emoção. Havia emoção hoje, mas ela estava misturada a uma paixão crua, a um instinto animal que
me fez desejar que ele devastasse meu corpo imediatamente.
E, sinceramente, o que aconteceu não foi muito diferente disso. Perdi o equilíbrio com a pressão entre nossos corpos e senti minhas costas sendo empurradas - com
cuidado - contra a parede enquanto ele continuava a acariciar meus seios. Coloquei minhas mãos em volta do pescoço dele e as movi para cima, enredando-as em seu
cabelo, mas também puxando. Ele finalmente soltou meus seios e deslizou as mãos ao longo do meu corpo, descendo para meu quadril e minhas coxas, por cima do tecido
leve e sedoso que cobria minhas pernas. Subindo de novo, ele levantou minha saia e deslizou uma mão por baixo da minha coxa, para colocá-la em volta da sua cintura
e deixar o vestido levantado. A outra mão foi para dentro da minha pequena calcinha de renda preta, aprofundando-se para ver se eu estava pronta.
Eu estava. Eu estava quente, molhada e escorregadia, e o dedo que ele colocou para dentro de mim entrou com tanta facilidade que ele depois colocou dois, e depois
três. Eu gemi e arqueei minhas costas enquanto ele movia os dedos para dentro e para fora de mim, e a boca dele beijava o meu pescoço com força. Minhas mãos, meio
desajeitadas, foram descendo, tentando abrir a calça dele. Quando eu puxei a calça e a cueca para baixo, ele me pegou pelo quadril e me virou, e eu fiquei de frente
para a parede. Ele puxou de novo minha saia para cima e desceu a minha calcinha até a metade das minhas coxas. Eu me abaixei e estiquei os braços, usando as mãos
para me apoiar contra a parede.
Ele entrou em mim, com força e fundo, sem rodeios ou preliminares. Era duro e comprido como eu me lembrava, e maravilhoso. Firmando as mãos no meu quadril, ele se
impelia tempestuoso para dentro de mim, tentando desesperadamente saciar a necessidade que eu tinha percebido antes, a necessidade que eu também sentia. Eu gritava
cada vez que ele se lançava para dentro de mim, sabendo que não devia fazer barulho, porque alguém poderia ter voltado para a livraria. Mas eu não conseguia. A paixão
fora de controle daquele momento me arrebatava totalmente, o desejo sinuoso e primitivo havia se apoderado de nós. E, sublimando tudo, havia a consciência de que
era Seth. Seth, Seth, Seth... que eu amava mais do que qualquer outra pessoa. Você é o mundo...
Ele foi subindo com as mãos que estavam no meu quadril e agarrou meus seios, forçando-me a mudar de posição. O tempo todo, nenhuma vez ele diminuiu o ritmo, continuava
rápido, urgente. Os dedos beliscaram meus mamilos com força, e eu gritei mais alto. Acho que isso o deixou ainda mais excitado, fazendo-o se lançar para dentro de
mim com mais força. Desejando excitá- -lo mais ainda, eu me rendi totalmente e parei de tentar controlar minha voz. Quanto mais alto eu gemia, mais o corpo dele
se lançava para dentro do meu. Mais um pouco e eu ia ficar esmagada contra a parede, e quando comecei a gemer sem parar, não tinha nada a ver com excitá-lo, mas,
sim, com a força arrebatadora e única do que estávamos fazendo.
Quando eu gozei, o calor entre minhas pernas atingiu uma temperatura insuportavelmente alta, e eu gritei o nome dele. Senti uma nova onda que me deixou toda molhada
com o orgasmo e, então, eu o ouvi gemer e ele penetrou em mim com tanta força que eu fui jogada contra a parede. As mãos dele ainda agarravam meus seios, as unhas
estavam cravadas na minha carne macia, quando ele estremeceu e relaxou. Ele teve um orgasmo longo, e um gemido baixo foi ficando mais fraco, devagar.
Quando ele saiu, eu me senti incompleta, meu corpo se sentiu incompleto, ao perder o corpo dele. Apesar disso, eu me endireitei e me apoiei na parede, tentando recuperar
o fôlego. Minha voz estava rouca.
- Jesus - eu disse. - Isso foi terrível.
Seth ficou surpreso - e depois ofendido. - Terrível?
- Não, não o desempenho... mais como uma coisa suja, malvada. O tipo de coisa proibida para menores.
- O quê? E isso lá é proibido? - Ele se aproximou, colocou os braços na minha cintura e encostou o rosto no meu pescoço.
- Bem... não, mas nós não deveríamos. De modo algum. Mas da última vez foi... não sei. Foi fazer amor. Desta vez foi...
- Sacanagem.
- Meu Deus - eu murmurei. - Seth Mortensen acabou de dizer sacanagem em voz alta. O fim dos tempos está próximo.
Ele riu e me deu beijinhos no rosto. - Eu não sou tão ingênuo. Você deveria saber pelos meus livros.
- Eu sei, mas mesmo assim. Você não é o O’Neill. A não ser que você ande trocando socos por aí e eu não esteja sabendo.
- Humm... não ultimamente.
Ficamos lá, nos braços um do outro, os dois aconchegados, aproveitando aquele clima, depois do que tínhamos acabado de fazer. Então, exatamente como da outra vez,
uma sensação estranha começou a aparecer. Nós nem precisamos de um telefonema da Maddie desta vez. Eu me afastei ressabiada.
- Você deveria ir embora. - Eu não disse, mas tinha certeza de que ele ia se encontrar com ela mais tarde.
- Sim, mas... - ele suspirou e coçou a testa. - Isso está sendo muito mais difícil do que eu esperava.
- O quê? Um caso ilícito e desprezível?
Ele fez uma careta. - Não. Eu passei um tempão imaginando como seria ficar com você e desejando que você não fosse um súcubo. Eu sempre me sentia culpado... Eu me
sentia raso por ficar pensando tanto em sexo daquele jeito. E, agora que finalmente aconteceu... agora que você não é um súcubo... não tem nada de superficial ou
raso... É tão... Não sei. Eu queria não sentir isso com tanta intensidade. Senão, quando nós dissemos ontem que seria só aquilo, realmente teria sido.
Eu desejei, mais do que tudo, que ele dissesse que ia abandonar a Maddie e que nós poderíamos ficar juntos de novo. Ele não disse, e eu com certeza não ia tocar
no assunto. Além disso, de que adiantaria? Em poucos dias eu voltaria ao normal, e nosso relacionamento seria tão conturbado quanto antes. O que eu queria não fazia
sentido.
- Eu posso... - Ele respirou fundo. - Eu posso ver você de novo? Eu sei que nós dissemos que não íamos mais...
Eu sabia que “ver você de novo” queria dizer “transar com você de novo”. E, por algum motivo, percebi que estávamos em um abismo. A primeira vez havia sido... não
exatamente acidental... mas com certeza inesperada. Dessa vez, havia sido um desejo animal fora de controle. Mas e agora? Uma declaração aberta sobre o que estava
acontecendo - sexo premeditado - faria as coisas atingirem um nível totalmente diferente. Não tinha volta. Eu observei aqueles olhos que eu tanto adorava, os lábios
quentes e delicados. Eu avaliei meu corpo, como doía e ao mesmo tempo ainda ardia de prazer. Então, olhei para a cuidadosa pesquisa sobre imóveis que Maddie havia
feito.
Isso deveria ter acabado com o clima, ser um alerta. Era um lembrete de quem nós estávamos traindo. Seth havia cedido à tentação, mas, apesar de também estar prestes
a ceder, eu poderia ainda recuar e nos salvar. Eu tinha força para dizer não.
- Sim - eu disse por fim. - Nós podemos nos ver de novo.
Capítulo 20
Dante estava me esperando quando cheguei em casa. Normalmente eu gostava de ter companhia, mas, depois de ter ficado com Seth, a presença de Dante naquele momento
fez com que eu me sentisse pouco à vontade e confusa. Ele, porém, pareceu não perceber e, em vez disso, logo ficou interessado no pacote dos condomínios de Maddie.
- O que é isso? - ele perguntou, folheando algumas páginas.
- A Maddie anda bancando a corretora para mim.
- Nossa. Não achei que você estava falando sério.
Eu me recostei no sofá, exausta por causa da dança, do sexo e do miasma emocional através do qual eu parecia estar navegando ultimamente. Falar de Maddie me deixou
incomodada. - Eu também não achava. Eu só toquei no assunto e ela se entusiasmou.
- Alki Beach, hein? Alguns desses são bem legais. - Ele levantou uma das folhas impressas. - Condomínio novíssimo, ainda em fase de construção. Você pode escolher
as cores e o acabamento.
Dei de ombros. - Não sei ainda. Não ando com tempo para compras no momento.
- Um dos locais com energia de sua lista fica perto de Alki. Você pode aproveitar e dar uma passada.
Eu olhei para ele surpresa. - Desde quando você quer que eu me mude?
Ele estava sentado na minha frente, ainda examinando os anúncios.
- Bem, se você comprar alguma coisa aqui eu posso ficar sossegado, porque quer dizer que você não vai embora. Além disso, em um lugar maior, a gente poderia tentar
morar junto.
Isso me pegou desprevenida. - É?
- Você me deu uma chave. Eu posso vir para cá também.
- Você está querendo se apossar da minha casa se eu for para um lugar maior, é isso? - eu provoquei.
Ele suspirou, com um ar ofendido. - Cara, você sempre pensa o pior mesmo. Eu ia pagar o aluguel.
- Com o quê? - eu perguntei, não acreditando.
- A loja está indo bem. Acho que as coisas estão em uma boa fase.
- Sem querer ofender, querido, mas sua loja não proporciona o tipo de atividade que pode sustentar esta fase. Acho que é só uma onda passageira. - Eu fui precipitada
e me senti mal quando percebi que ele tinha ficado magoado. - Mas a gente pode ver o que acontece, se você quiser se mudar para cá. Talvez sua fama esteja se espalhando
e a loja continue indo bem.
Ele ficou um pouco mais satisfeito depois disso, mas, ao dizer aquilo, percebi que não estava muito entusiasmada com a perspectiva de morarmos juntos. Seth não saía
da minha cabeça. A obsessão por ele era uma tolice, eu sabia. Essa nossa aventura ia durar no máximo mais alguns dias. Eu não deveria ficar sonhando com ele, eu
ia ter de acabar voltando para o Dante de qualquer jeito.
Dante queria saber como tinha sido minha investigação pelas praias e eu achei bom mudar de assunto. Fiz uma breve descrição de como eu não tinha feito nenhum progresso.
- Você quer que eu vá procurar com você? - ele perguntou. - Vou ter tempo amanhã, finalmente.
Eu hesitei. Na verdade, antes de nos separarmos, Seth tinha falado que iria procurar comigo e que levaria Kayla. Aquele clima depois do sexo podia ser muito persuasivo.
Contudo, eu precisei me esforçar para argumentar que seria seguro para ela, e, para ser sincera, eu esperava estar certa.
- Já recrutei outras pessoas para vir comigo - eu disse. - Acho que nós podemos dar conta.
Temi que ele fizesse mais perguntas, principalmente sobre a possibilidade de eu ter convidado alguém com poderes paranormais para ir comigo ou não. Felizmente, ele
não insistiu. Achei que ele não queria perambular pelas praias e que estava grato por poder se livrar.
Mais tarde, quando fomos para a cama, eu não tinha mais como repelir os avanços insistentes dele, não sem levantar suspeitas. Eu já havia me recuperado bem e não
tinha mais a desculpa das costas. Apesar disso... uma coisa estava me perturbando. O próprio Dante tinha sido o primeiro a falar em tom de brincadeira sobre a chance
de eu poder engravidar no meu estado pseudo- -humano. Eu ainda não sabia se seria possível e, mesmo se fosse, que diferença faria, já que eu voltaria à minha condição
de imortal em alguns dias? Eu não tinha a menor ideia de como isso funcionava, mas eu e Seth não tínhamos usado nenhuma proteção. E de repente eu percebi que, se
havia alguma chance no mundo de eu ficar grávida - que a visão de Nyx pudesse realmente se tornar realidade -, eu não queria me arriscar a uma disputa quanto à paternidade.
Então, joguei meu charme para cima de Dante e fui descendo, e ele não protestou. Ele tentou retribuir, mas foi inútil. Depois de ficar com Seth, eu não estava com
a menor disposição e percebi que não ia chegar lá. Então, pela primeira vez com Dante, fingi. Eu era uma boa atriz. Ele nem desconfiou.
Ele dormiu até tarde na manhã seguinte, então eu saí cedo de fininho, sem acordá-lo. Seth e eu íamos nos encontrar em um restaurante em Bellevue. Nós calculamos
que seria longe o suficiente para ninguém conhecido nos surpreender. Quando estava indo para o carro, senti alguém acertar o passo comigo.
- Então, soube que você anda espalhando boatos sobre mim - Cedric disse em tom cordial.
Surpresa, olhei para ele, e uma sensação de inquietação foi tomando conta de mim. Cedric era meu suspeito do momento e eu já tinha visto a reação de um demônio às
minhas teorias. É claro que ele não estava com um ar particularmente agressivo no momento e também havia o fato de que eu ainda não tinha contado para ninguém sobre
ele ter induzido Nanette.
- O que você está querendo dizer? - perguntei.
- Kristin me falou que você acha que fui eu quem contou para Nanette que você suspeitava que ela tivesse conjurado Jerome. - Ele fez uma pausa, como se estivesse
tentando entender. - Só para constar, eu não contei.
Eu quase parei de andar. - Então, quem contou?
- Eu bem que gostaria de saber. Só achei que você deveria saber que eu não fui responsável pelo que aconteceu com você. - Ele não disse mais nada, não lamentou nem
perguntou como eu estava. Sinceramente, eu não esperaria isso de um demônio. O fato de ele ter se dado o trabalho de vir falar comigo já era uma coisa rara - e,
claro, ele poderia estar mentindo.
- Bem, não sei quem pode ter contado para ela. Ou por quê. Eu só contei para umas poucas pessoas. - Quanto mais eu pensava, mais eu percebia que ele devia estar
mentindo. Eu só havia contado para meus amigos.
Ele manteve a expressão imperturbável. - Como eu já disse, eu não sei.
Chegamos ao carro, eu parei e me encostei nele. - Você veio até aqui só para me dizer isso? - Não que tivesse sido uma viagem trabalhosa para ele.
- Não seja convencida - ele disse sorrindo. - Estou aqui para ter uma conversa com as demônias. O inferno meio que já descartou a possibilidade de Jerome voltar.
Vai haver uma visita oficial aqui em alguns dias, para resolver a questão.
Tentei ignorar o frio que me percorreu a espinha e analisar o resto das palavras dele. Cedric estava se enturmando com Grace e Mei. Nenhuma surpresa. Quem quer que
viesse para cá para designar um novo arquidemônio faria perguntas, principalmente para aquelas duas. - Bem, obrigada - eu disse. Não sabia mais o que dizer sobre
aquele assunto, então passei para outro que andava por minha cabeça. - Eu não tenho ouvido novidades sobre o culto ultimamente.
- É, eles andam bem quietos. Talvez você tenha ajudado, no fim das contas.
- Bem, não acho que eu tenha feito muita coisa. - Eu também estava começando a desconfiar que os membros do culto não tinham mais nada a fazer. Agora que o “anjo”
já havia conseguido fazê-los desviar a atenção durante a conjuração de Jerome, eles não eram mais necessários. Apertei o botão para abrir a porta do carro e outra
coisa despertou minha curiosidade. - Como andam as coisas com Tawny?
Cedric fez uma careta. - Bem... nós saímos juntos algumas vezes.
- E?
- Minha vida particular não é da sua conta.
- Não está mais aqui quem falou. - Eu já ia entrando no carro.
- Mas, se você estiver curiosa...
Parei e arqueei a sobrancelha. - Sim?
- A conversa dela não é... muito interessante - ele admitiu.
Não resisti e comecei a rir. - E você realmente está surpreso com isso?
- A beleza não é o mais importante, é superficial, eu sei... mas acho que eu esperava um pouco mais de cérebro.
Preferi não entrar na discussão sobre o que ele achava bonito. - Não me leve a mal, mas achei que você só estivesse querendo sexo ocasional.
Ele me olhou atravessado. - Porque eu sou um demônio?
- Não olhe assim para mim. Ser romântico não é exatamente um atributo da sua profissão.
- Verdade. Mas eu gostaria de ter alguma afinidade com meu sexo ocasional. Alguém que pudesse pelo menos fazer ideia do que eu aguento todo dia. - Ele ainda estava
sendo mal-humorado no estilo demoníaco, mas havia um leve traço de algo surpreendentemente humano.
Eu já ia dizer que era pouco provável. Depois, pensei em Kristin. Kristin, que olhava para ele com olhos meio derretidos e estava sempre preocupada com o bem-estar
dele. - Alguém que possa compreender o que você faz e saiba apreciar esse absurdo? Alguém interessado em ajudar quando você está estressado, que possa estabelecer
uma conexão com você e compreenda as coisas de um jeito que você não precise explicar? É isso que você procura?
Ele bufou. - Até parece que isso pode acontecer.
- Eu não sei. Talvez exista alguém assim por aí.
- Você não é humana há muito tempo, é já está muito apegada às ilusões deles. Isso é coisa de contos de fadas. Você não pode ter isso. Eu não posso ter isso. A gente
se vê. - Ele desapareceu, sem se preocupar se algum mortal poderia tê-lo visto sumir.
Fiquei olhando com vagar para onde ele estivera antes, perguntado-me se o que ele havia falado era verdade. Ele estava desperdiçando uma oportunidade que estava
bem na cara dele? Ou Kristin se iludia quanto à queda que tinha por ele? Ou era eu quem estava me iludindo com meus sentimentos por Seth? Eu realmente tinha uma
ligação com ele ou era só desejo?
Não adiantava me preocupar com isso agora. Não parecia que Cedric estivesse querendo me matar no momento e isso era o melhor que eu poderia esperar.
Fui para Bellevue, ainda a tempo de pegar menos trânsito para fora da cidade. Bellevue era uma cidade independente, e o restaurante escolhido ficava no centro antigo,
já ultrapassado, depois de um shopping center alterar a popularidade de algumas regiões da cidade.
O lugar era um pequeno bistrô tranquilo, escondido entre uma loja de bijuterias e uma padaria. Seth e Kayla já estavam lá. Ela estava sentada sobre um assento infantil
ao lado dele, observando um unicórnio empalhado enquanto ele folheava o cardápio. Ver os dois fez despertar ternura e alegria em mim.
- Oi, gente - eu disse, sentando-me na frente deles. Kayla deu um sorriso tímido e Seth visivelmente se animou. O cabelo dele estava bagunçado como sempre e a camiseta
que usava nesse dia era uma propaganda de Trix, cereal matinal colorido que eu nem me lembrava que existia.
- Obrigada por fazer isto por mim - eu disse. - Estou realmente agradecida.
O sorriso de Seth se abriu, apesar de que eu podia ver uma pontinha de apreensão nos olhos dele. - Desde que você tenha certeza de que... sabe... - ele olhou para
Kayla, que estava tentando pegar o copo dela. Seth interveio antes que ela o derrubasse.
- Vai ser tranquilo - eu disse. - Talvez até chato. Nós só vamos andar por aí e procurar alguma coisa parecida com uma pedra branca.
- E Kayla pode ajudar?
Eu observei aquela menininha. Ela olhava para um e depois para o outro, com os olhos azuis arregalados, misteriosamente percebendo o que estava acontecendo.
- Acho que sim. No momento, ela só pode sentir as coisas sem compreender o motivo. Se chegarmos perto de Jerome, acho que ela vai ter algum tipo de reação, mesmo
sem saber o que é. - Pelo menos era o que eu esperava.
Depois disso, não falamos nada sobre nossa missão durante o resto da refeição. Conversamos sobre assuntos corriqueiros e bajulamos Kayla, mas com naturalidade, não
estávamos forçando a situação. Seth e eu só tínhamos olhos um para o outro. Era também mais do que só desejo, apesar de eu querer que ele reparasse na minha blusa
decotada de hoje. Eu me vi radiante com a presença dele. Eu adorava ficar perto dele, sentir a alegria que tomava conta de mim. Era como me apaixonar de novo. Aquela
conexão e aquela compreensão que Cedric tinha dito ser coisa de contos de fadas.
Mesmo depois que terminamos a refeição e começamos a examinar nossa primeira praia, aquela eletricidade e ternura continuavam a fluir entre nós. Kayla caminhou entre
nós dois por algum tempo, segurando nossas mãos. Ela teve um pouco de dificuldade com a areia, mas parecia estar fascinada com o que via a seu redor: as ondas, as
gaivotas, outras crianças. A chuva tinha passado e o sol nos alimentava com a esperança de que a primavera tivesse chegado de verdade.
No entanto, nós não encontramos pedras brancas e Kayla não teve nenhuma reação fora do comum como as que eu já havia presenciado ou mesmo como a que ela tivera com
Dante. Quando chegamos à segunda praia, ela começou a ficar cansada e eu percebi que não seria aquele dia dinâmico de caçada que eu programara. Pouco depois, Seth
levantou-a do chão para carregá-la. Ela conseguiu ficar acordada até terminarmos nossa busca, mas adormeceu tão logo voltamos para o carro.
Eu sabia que tínhamos de dar nossas atividades por encerradas, mas paramos em um pequeno café no caminho que servia umas sobremesas deliciosas. Sentamos a uma mesa
de canto com dois sofás, Seth e eu, um do lado do outro, e Kayla no meu colo. Resolvemos só dividir uma fatia de cheesecake e, claro, eu precisava de café. Kayla
estava encostada em mim, ainda sonolenta, mas ela tinha acordado, como se tivesse pressentido a proximidade do açúcar.
Ajeitei o cabelo dela. - Ei - eu disse de forma sutil. - Você viu alguma coisa mágica hoje? - Ela tinha se referido assim a mim antes.
Ela balançou a cabeça e colocou a mão no meu rosto, imitando meu gesto. - Quando você vai ficar mágica de novo? - ela perguntou.
- Eu não sei - eu disse. - Logo.
A perna de Seth encostada na minha estava começando a despertar sensações ilícitas, o que me deixou um pouco envergonhada pelo fato de Kayla estar ali. Fiquei ainda
mais espantada quando olhei para ele e não vi desejo em seus olhos, mas, em vez disso, delicadeza e carinho.
- O que foi? - perguntei. - Por que você está me olhando assim?
- Por sua causa - ele disse. - O jeito como você interage com ela... é surpreendente.
- Por que eu consigo fazê-la falar?
Ele balançou a cabeça. - Não. É mais do que isso. Eu já vi você também com outras meninas. Você tem jeito com crianças. Você seria uma boa mãe.
Maddie tinha feito o mesmo comentário espontâneo. Acho que Seth nunca tinha realmente percebido quanto eu queria um filho. As palavras dele me encheram de alegria
e também de pesar. Por um momento, pensei em contar para ele sobre o sonho de Nyx e a teoria bizarra sobre gravidez. Aquelas coisas, no entanto, eram muito frágeis
e preciosas para mim, o cheesecake chegou em boa hora e me poupou de maiores considerações sobre o assunto.
O cheesecake era de limão com framboesa, um pouco exótico para Kayla, talvez, mas ela comeu sem piscar. Seth desistiu da parte dele antes de nós, e eu e ela comemos
tudo até o fim.
- Perfeito - ele refletiu. - Eu vou devolvê-la para Terry e Andrea bem a tempo de a adrenalina do açúcar fazer efeito. Eles nunca mais vão deixá-la sair comigo.
- Ele franziu a testa. - Você vai precisar dela de novo? Acho que ela vai brincar na casa de uma amiga amanhã.
Dei um suspiro e a realidade obscureceu meu momento dourado. - Não sei. A lista de locais mais próximos está no fim. Da próxima vez, vou precisar ir para o norte,
perto de Edmonds, embora Dante tenha observado que Jerome pode estar mais longe... na Península Olímpica, ou algo assim. Os conjuradores devem querê-lo por perto,
mas “perto” pode ser quinze quilômetros ou cento e cinquenta.
- Você não vai conseguir ir até a costa e voltar no mesmo dia - Seth observou. Por baixo da mesa, ele colocou a mão sobre a minha, para me consolar. - Sinto muito.
Eu apertei a mão dele em resposta. - O que tiver de ser será, acho.
- Eu ainda estou disposto a ajudar, se puder.
Dei um sorriso entristecido. - Você quer me ajudar a voltar a ser súcubo?
O sorriso que ele deu foi igualmente tristonho. - Não tem como nada disso acabar bem, Georgina. Às vezes... Às vezes é preciso escolher o menor dos males e aproveitar
os momentos bons enquanto podemos.
Como aquele. E com uma intuição compartilhada, ficamos em silêncio, saboreando aquele breve interlúdio, o sonho pelo qual nos havíamos deixado seduzir. No momento,
bastava estarmos sentados juntos daquele jeito. A mão dele se movia distraída por minha perna, proporcionando reconforto e amor... pelo menos por algum tempo. Pouco
depois, a afeição doce se transformou em algo com um pouco mais de desejo. Olhei nos olhos dele e, apesar de não terem a mesma intensidade animal que tinha me jogado
contra a parede na noite anterior, ainda havia uma ansiedade neles que me dizia como ele me desejava, como queria ficar perto de mim. Kayla tinha voltado a dormir.
Nós rimos quando nos demos conta de como a situação era absurda.
- Preciso levá-la de volta - Seth disse.
- Precisa - eu disse, triste com a ideia de me separar, mas também não tomada pelo desejo de querer agarrá-lo estando a sobrinha por perto.
Ele me levou até meu carro em Bellevue. Nosso beijo de despedida foi suave e delicado, quase hesitante. Ele expressava bem nossa situação, como se não fosse real
e pudesse ser levada pelo vento a qualquer momento.
- O que você precisar, Tétis - ele cochichou no meu ouvido. - O que você precisar, eu faço. Você sabe que eu faço.
Uma flor de agonia e euforia se abriu no meu peito. Ele não me chamava de Tétis, velho apelido que ele tinha me dado, desde quando nós havíamos terminado. - Eu sei
- murmurei. - Eu sei.
Voltei para Queen Anne pouco tempo depois e consegui uma vaga para estacionar bem em frente ao meu apartamento. Minha cabeça estava confusa, com Seth, Kayla, Jerome
e mais centenas de outras coisas rodando lá dentro. Eu estava tão distraída que, quando entrei em casa, quase passei direto por Grace, que estava sentada no sofá.
Considerando que ela era o primeiro demônio naquela semana que não tinha me atacado no momento em que eu passava pela porta, minha reação à sutileza dela era compreensível.
- Grace? - perguntei curiosa, como se talvez não fosse ela.
Ela folheava a revista Seattle Metropolitan, a edição sobre os melhores brunches de cidade. Quando ela levantou os olhos na minha direção, havia tanta exaustão neles
que nem sua perfeição demoníaca podia disfarçar. Vê-la sozinha era quase tão estranho quanto até mesmo ela estar ali. Eu estava tão acostumada a ver Mei e ela como
uma coisa só que a separação forçada das duas nos últimos tempos parecia ser quase tão trágica quanto a conjuração de Jerome.
- Finalmente você chegou - ela disse. - Quase fui embora.
- Desculpe - eu disse, sincera. Ela e Mei pareciam estar de boa vontade comigo ultimamente e eu queria que continuasse assim. Demônios não gostavam de esperar e,
sem aquela conexão inata com um arquidemônio, ela não podia me achar instantaneamente através do tempo e do espaço. Grace me deu um abraço meio dúbio. - Não tem
problema. Foi até bom ter um momento de folga de toda a política e das intrigas.
- Imagino. - Franzi a testa. - Não, espere. Acho que não consigo.
Juro que por um instante ela quase riu, mas continuou com aquela expressão dura como uma pedra que ela sabia manter tão bem.
- Tudo vai terminar logo, e é por isso que vim ver você. Mei e eu estamos falando com todos os outros imortais inferiores. Depois de amanhã, um demônio do mundo
corporativo chamado Ephraim vai tomar a decisão final sobre quem vai substituir Jerome.
Senti um frio na barriga. - Tão rápido?
- O inferno não gosta de desperdiçar tempo nem recursos.
- Suponho que não.
- Ephraim já está na área e pode vir falar com você enquanto procura avaliar a situação. Ele vai querer saber sobre seu trabalho, como foram as coisas quando Jerome
era o responsável etc.
A cada palavra eu ficava mais deprimida. O espaço de tempo para encontrar Jerome estava diminuindo. Nós teríamos um novo arquidemônio a qualquer momento.
- Não tenha medo de falar a verdade - ela aconselhou. - Sei que muitas vezes imortais inferiores ficam preocupados, por medo de falar alguma coisa que possa ser
considerada uma afronta.
- É mais ou menos assim mesmo - murmurei, pensando em Nanette.
- É claro que você não vai querer fazer alguma coisa para irritar Ephraim, mas ele não tem nenhuma ligação com ninguém envolvido na disputa. Ele não vai punir você
por dar sua opinião.
- Acho que ele também não vai dar muita trela para ela.
Consegui. Uma minúscula curvatura nos lábios, que foi embora tão rápido que nem deu para ter certeza do que eu tinha visto. Ela se levantou do sofá e colocou o blazer
distraída. Era vermelho, muito, mas muito vermelho, e combinava com a calça preta elegante e os sapatos de couro preto brilhante. Por baixo da gola do casaco dela,
vi rapidamente aquele mesmo colar volumoso que ela estava usando na reunião. Eu me lembrei do colar mais discreto de Mei e não consegui me controlar com o que disse
em seguida.
- Isso pode parecer estranho... mas não pude deixar de observar que você e Mei estão se vestindo de forma diferente ultimamente. - Logo depois de dizer isso, torci
para ela não ficar brava por eu ter chamado ela e Mei de par de vasos. Felizmente, ela continuou blasé como sempre.
- Em tempos como estes, é bom se destacar. Nenhum de nossos empregos está seguro no momento.
Parei um pouco. Em meio a essa loucura toda, nunca tinha me ocorrido que Grace e Mei pudessem ter algo a temer. Mas é claro que tinham. Quando o inferno fazia rearranjos,
eles costumavam mudar estruturas maiores. Eles podiam muito bem resolver transferir Grace e Mei e instituir um grupo de demônios totalmente novo ali. Eu não gostava
nada dessa possibilidade, assim como da ideia de perder Jerome. Eu queria que as coisas ficassem como estavam. E, analisando o cansaço que eu tinha notado na expressão
de Grace, percebi que eu não era a única a ter muito com que se preocupar.
- Bem, se minha opinião servir para alguma coisa, acho que vocês estão se saindo muito bem. Vocês precisaram arrumar a bagunça e controlar a situação e, depois,
todos aqueles demônios... - Balancei a cabeça. - Sei lá. Eles seriam estúpidos se não reconhecessem isso.
Grace ficou com uma expressão muito estranha. Quase achei que poderia ser de surpresa, mas a compostura cautelosa e gélida dela tornava difícil saber exatamente
o que era. - Obrigada, Georgina. - A voz dela estava tensa, como se lidar com elogios a deixasse pouco à vontade. - Espero que você compartilhe o que você sente
com Ephraim, se ele vier falar com você.
- Com certeza - eu disse. - Não tem problema algum.
Depois de dar uma rápida espiada no relógio da cozinha, ela se virou de volta para mim e me deu um aceno rápido com a cabeça. - Preciso ir ver os outros. Voltaremos
a nos falar em breve. - Ela desapareceu e eu não pude nem me despedir.
Eu tinha acabado de ver uma coisa. Uma coisa que mudava tudo.
Gelei. Esse tempo todo, ao longo da semana que tinha se passado, eu havia cismado com uma coisa. Eu tinha reparado na dedicação de Grace e Mei ao trabalho, que elas
sempre estavam lá para ajudar quando o caos irrompeu. Eu também notara como elas andavam se esforçando para se separar nos últimos dias diante da nova carga de trabalho
e, como Grace havia dito, era bem provável que elas seriam avaliadas individualmente. E por que não seriam? Se alguém fosse procurar um novo demônio para controlar
Seattle, por que não olhar para as que já estavam no controle?
- Meu Deus - murmurei.
Mas era mais do que isso. Grace e Mei não tinham somente um motivo perfeito para conjurar Jerome. Eu tinha mais do que o motivo diante de mim. Eu possuía uma prova.
Corri para o meu quarto e procurei freneticamente a foto do medalhão de Mary, certa de que teria desaparecido. Não. Ainda estava lá, tinha caído da mesa de cabeceira
e estava no chão. Eu a apanhei.
- Meu Deus!
Ali estava. Quando Grace virou a cabeça, eu tinha conseguido ver melhor o colar volumoso e a mistura de pedras marrons e pretas. A resposta estava bem na minha frente.
Na reunião do Cellar, eu tinha reparado em uma peça do colar em forma de lua crescente. Eu não havia percebido que não era apenas um enfeite, mas, agora, comparando
a fotografia com o que eu tinha acabado de ver no pescoço de Grace, a verdade era óbvia.
Grace estava com uma parte do lacre. Era o lado esquerdo do medalhão, separado com uma forma irregular para ficar com aquele formato decorativo de meia lua. Mas
eu havia visto as pequenas marcas dos símbolos quando ela inclinou a cabeça. Eram os mesmos. Era o lacre.
A foto caiu da minha mão e eu corri de volta para a sala, tentando encontrar meu celular. Minhas mãos tremiam e eu mal podia digitar. Por um segundo, eu obviamente
não sabia para quem ligar. Hugh, decidi. Precisava contar para ele e para o resto dos meus amigos que...
- Largue o telefone.
Uma mão forte cobriu minha boca e me puxou para trás. Minhas costas bateram em alguém, um homem alto com um peito sólido como rocha. A outra mão me pegou pelo pulso,
fazendo a pulseira do relógio afundar na pele, doeu.
- Largue o telefone - ele disse. - Eu sei o que você viu. Eu também vi. Mas você não pode contar para ninguém. Ainda não.
Eu mal podia ouvi-lo com o barulho que meu coração disparado fazia nos meus ouvidos, mas não fazia diferença. Eu conhecia aquela voz, a conhecia bem. Ela tinha assombrado
meus sonhos - ou melhor, meus pesadelos - nos últimos seis meses. O fato de eu não ter reconhecido a voz dele naquele dia era um sinal de como eu havia realmente
ficado fora de órbita depois de Nanette me atacar.
Larguei o telefone.
Ele soltou meu pulso e, um segundo depois, a mão que estava na minha boca também se moveu. Por um milagre, não comecei a gritar. Devagar, bem devagar, eu me virei,
sabendo exatamente o que ia encontrar. Olhos azuis esverdeados, exatamente da mesma cor do mar de onde eu havia crescido.
- Roman.
Capítulo 21
Eu só tinha uma coisa a dizer.
- Você vai me matar?
Isso teria sido uma ótima deixa para ele dizer algo como: “Não, é claro que não” ou “Por que você acha isso?”. Qualquer uma dessas respostas, ou uma variação, teria
sido enormemente tranquilizadora.
Em vez disso, ele disse:
- Ainda não.
- Merda.
Dei alguns passos para trás, sabendo que não adiantaria nada. Mesmo se estivesse como súcubo máximo, eu nunca poderia lutar contra ele. Roman era um nefilim, o filho
bastardo de Jerome, metade humano. Nefilim é um tipo de mistura estranha entre imortais superiores e inferiores. Eles não existiam desde a criação do universo, mas
tinham nascido imortais e podiam em princípio possuir a mesma gama de poderes de um imortal superior. Roman era tão forte quanto Jerome, mas, diferentemente do meu
chefe e de seus pares, Roman não respondia a uma instância superior. Ele era um renegado, o que o tornava perigoso quando estava irritado.
Ele tinha todo o direito de estar furioso comigo. Irritado com a forma como o céu e o inferno perseguiam sua raça, Roman e sua irmã gêmea, Helena, tinham dado início
a uma caçada justiceira indiscriminada para se vingar de outros imortais. Eu não sabia disso quando começamos a sair e, no fim, acabei tendo um papel importante
para que eles fossem barrados - e a irmã dele tinha morrido.
- O que você está fazendo aqui, então? - eu perguntei por fim.
Roman tinha uma expressão de quem não estava nem aí quando cruzou os braços e se encostou na parede. Ele era exatamente como eu me lembrava, absurdamente alto comparado
a mim, o cabelo preto sedoso e aqueles olhos incríveis. - Você parece decepcionada - ele disse. - Você quer que eu a mate?
- Não! É claro que não. Mas não consigo imaginar por que outro motivo você estaria aqui. Não sei por que, mas acho que você não está aqui para ser sociável. - Apesar
do medo, meu sarcasmo ainda conseguia se manifestar. Carter tinha me falado que era pouco provável que Roman voltasse a Seattle, sabendo que ele e Jerome estariam
alertas. Exceto que, para minha decepção, eu me dei conta de que Jerome não estava mais lá para vigiar.
- Estou aqui para ajudar a encontrar meu ilustre progenitor. - A voz de Roman tinha um tom cheio de si e eu tinha certeza de que ele estava sentindo um prazer enorme
com minha reação. Eu esperava que ele estivesse satisfeito porque, apesar de meu queixo não ter batido no chão, ele estava quase lá.
- Mentira.
- Por que você não acredita em mim?
- Porque não tenho nenhum motivo! - O meu medo estava ficando de lado de novo, mas dessa vez por causa da incredulidade. - Você odeia Jerome.
- Sim, isso é verdade.
- Pare de me fazer de idiota. Você não está aqui para ajudar.
- Não? Então por que eu ajudei você com as anotações sobre o lacre?
- Você não... - eu gelei por um instante. - Meu Deus. Foi você.
- Sério - Roman disse de forma afável. - Você deveria estar sendo muito mais gentil comigo, levando em consideração tudo o que eu fiz por você.
- Ah, é? Não me lembro de você ter perdido seu tempo vagando sem rumo pelas praias.
- Ah, não. Eu estava muito ocupado fazendo fogões explodirem e carregando donzelas feridas para a cama.
Eu me afundei na cadeira e fechei os olhos. - Não era mesmo Carter. - O anjo estava falando a verdade sobre não interferir. Abri os olhos novamente. - E você me
deu os fósforos, não deu? Isso é exatamente o tipo de coisa doentia que você faria.
Ele assumiu um ar ofendido. - Aquilo foi muito gentil da minha parte, considerando que você parecia estar prestes a ter uma crise de abstinência ali mesmo.
- Isso não faz sentido. Você não pode estar aqui para ajudar Jerome. O que você está querendo de verdade?
- O motivo faz alguma diferença se eu ajudar a achá-lo?
- Sim! Faz diferença se você estiver querendo encontrá-lo para logo depois poder destruí-lo.
- Eu não quero destruí-lo.
- Eu não tenho nenhum motivo para confiar em você.
Ele apertou um pouco os olhos. - E eu também não tenho nenhum motivo para confiar em você, se não me falha a memória.
Dei de ombros, cansada demais daquilo para continuar a ter medo. - Bem, estamos quites, não? Exceto, é claro, pelo fato de que você pode querer dar vazão à sua falta
de confiança e me fazer desaparecer da face da Terra.
- E você pode contar a essa horda de demônios rondando por aí que um nefilim está na cidade. - Roman começou a rir. - Eles iam adorar um nefilim, seria perfeito
para assegurar uma posição aqui.
- Sim, como se eu tivesse alguma oportunidade de contar para alguém - eu suspirei. - Roman, se você não vai me destruir, então o que exatamente você quer comigo?
Por que você me salvou todas essas vezes?
- Porque você é a única criatura na droga desta cidade que tem alguma possibilidade de encontrar Jerome. E você pode andar por aí com muito mais liberdade do que
eu.
- Humm, da última vez que eu soube, você era quem jogava na liga amadora de pancadaria, não eu. Não tenho po... habilidades para me defender no momento.
- Não, mas, se você for apanhada xeretando, ninguém vai abrir uma temporada de caça... quer dizer, fora aquela peste daquela demônia.
Torci o nariz com aquela lembrança, e Roman continuou.
- Olhe, Georgina, nós podemos nos sentar e discutir se eu vou matar você ou não, ou podemos tentar descobrir o que está acontecendo e trazer seu chefe de volta.
Depois, nós podemos nos dedicar, com mais profundidade, a eu matar você.
- Santo Deus - gemi, levantando-me. Precisava dos meus cigarros. Roman me observou acender um.
- Esse vício é novidade desde a última vez em que eu estive por aqui.
- É velho, na verdade. E eu não estou com disposição para ouvir sermão. - Sentei-me de novo, sentindo-me muito mais calma com minha nicotina. Aubrey apareceu pouco
depois, aparentemente sem medo do imortal sociopata - mas, mesmo assim, atraente - confraternizando conosco. - Então, o que precisamos descobrir? Foi a Grace. Você
disse que viu o lacre no pescoço dela.
Roman se acomodou em uma cadeira da mesa da cozinha e se esticou. - Vi. Faz sentido ela mantê-lo o mais próximo possível, mas é preciso ter coragem para andar com
ele tão exposto.
- Por que você não quer me deixar contar para ninguém?
Ele estalou a língua. - Pense, Georgina. Para quem você vai contar? Em que demônio, em meio a esta confusão toda, você acha que pode confiar? Nenhum deles gosta
de Jerome. Nenhum deles quer que ele volte.
- Eu ia contar para Hugh.
- Você não pode contar para ninguém. Eu estava acompanhando você quando Cedric apareceu hoje. - Fazia sentido. Não dava para dizer por quanto tempo Roman estava
me seguindo invisível. - Se ele falou a verdade sobre não ter contado suas teorias para Nanette, então isso significa que algum de seus amigos delatou você para
ela.
- Não - teimei. - É mais provável que Cedric estivesse mentindo. Nenhum deles me trairia.
Para meu mais completo espanto, Aubrey pulou no colo de Roman. Ele coçou a cabeça dela distraído. - Bem, você pode acreditar no que quiser, mas acho que não é seguro
contar para ninguém ainda. Exceto eu, é claro.
- Certo. O cara que quer me ver morta.
- A gente pode falar sobre isso depois. Agora, vamos rever o que sabemos.
Eu não estava gostando muito daquela brincadeira com meu fim iminente, nem de não saber por que ele estava ali. Concentrar-me em Jerome ajudava e era bom finalmente
ter alguém com quem repassar todas aquelas informações.
- Sabemos que Grace foi o demônio que ajudou na conjuração - eu disse.
- Pode haver outros, sabe?
- Sim. Mas só existe um cargo de arquidemônio.
- Verdade. Só não descarte outras possibilidades. Ela e aquela outra demônia são bem próximas.
Pensei na Mei, que blefava tão bem quanto Grace. - São... Mas ao que parece elas estão agindo de forma bastante independente. No entanto, para todos os efeitos,
vamos continuar com Grace. Nós sabemos que ela participou da conjuração e que está com metade do lacre. O que nós não sabemos é onde está a outra metade do lacre,
quem a ajudou e onde Jerome realmente está.
- Meio desanimador - ele refletiu.
De repente, me ocorreu uma coisa. - Espere um pouco... Você pode facilitar tudo. Um imortal superior pode arrombar a prisão de Jerome. Com você, nós não precisamos
encontrar a outra metade do lacre para libertá-lo... ou conseguir tirar a metade que nós sabemos que está com Grace.
Roman ficou sem graça. - Bem... Eu não tenho certeza de que posso fazer isso.
- Por que não? Você tem os mesmos poderes que Jerome.
- Minha força é igual à dele na hora de lutar e esse tipo de coisa, mas não tenho exatamente os mesmos poderes. Eu não sou um imortal superior de verdade. Não sei
se posso libertá-lo sem o lacre.
- Ótimo. Voltamos à estaca zero.
- Não sei. Precisamos dar um passo de cada vez. Vamos continuar tentando encontrá-lo e descobrir onde está a outra metade do lacre.
- Estamos ficando sem tempo - murmurei, pegando a bituca do cigarro.
- Você vai fumar de novo?
- Isso não tem a menor importância agora - retruquei.
- Não sei, não. Se eu tivesse um corpo mortal, eu estaria um pouco preocupado com isso.
- Eu não sou mortal. E vou voltar ao meu estado normal em alguns dias. Provavelmente até antes.
- É por causa do Mortensen?
- Nós não vamos falar sobre esse assunto agora.
- Nunca pensei que você fosse reagir tão mal a um rompimento, visto a facilidade com que você descarta seus relacionamentos. Na verdade... alguém já havia terminado
com você antes?
Lancei um olhar fulminante, até esqueci que ele queria me matar, de tão irritada. - Nós não vamos falar sobre esse assunto agora.
- Tá bom, tá bom. Que outras informações nós temos, então?
Examinei o que tinha na cabeça. - O culto... o Exército da Escuridão. Acho que há uma conexão entre a conjuração de Jerome e as atividades deles. Quem quer que os
esteja controlando... bem, provavelmente, Grace, sintoniza as encenações para desviar a atenção de outras coisas. - Recapitulei o que sabia sobre as encenações deles
e com o que elas coincidiam. - Nem todas as atividades deles, porém, correspondem a algum momento da conjuração. Pelo menos não que eu saiba.
Roman ficou pensativo. - Humm... Pode ser que algumas não coincidam com nada. Algumas podem ser um falso chamariz, meio que para marcar presença. Não segui você
todas as vezes em que foi para o Canadá, então não sei exatamente como eles são.
- Nossa... Sua perseguição tem limites.
- Era meio chato - ele disse. - Fora, talvez, a oportunidade de poder ir ao Tim Hortons.
Os nefilins não podem se teleportar como imortais superiores, então ele estava limitado aos meios de transporte normais enquanto me seguia. Pouco à vontade, pensando
em minhas atividades com Seth, perguntei-me quanto realmente Roman tinha me espionado. Não seria a primeira vez que ele assistia a minhas atividades íntimas da primeira
fila. Se ele não fizesse nenhum comentário, eu é que também não faria.
- Eles andam quietos desde o dia da conjuração, quando vieram para cá. Acho que Grace não precisa que eles façam mais nada - eu disse.
- Talvez... - A cabeça dele aparentemente ainda estava revolvendo a suspeita. - Mas, se eu fosse você, eu falaria de novo com eles.
Eu me encolhi. - Não... não quero mais saber deles. Você não sabe como eles são. É ridículo.
- Só sei que você não pode deixar pedra sobre pedra, sem trocadilho, se quiser resgatar Jerome.
- Preciso, é? - perguntei. Eu não estava gostando daquel tom de voz presunçoso. - Achei que você também ia ajudar a encontrá-lo.
- Eu vou. Amanhã. Quando você vai sair para procurar de novo?
Pensei. - À tarde. Depois do trabalho.
Alguém bateu na porta e eu fui olhar pelo visor. - É Dante - murmurei. Era preciso dizer em defesa de Dante que normalmente ele batia na porta antes de usar a chave.
Eu coloquei a mão na maçaneta e lancei um olhar interrogativo.
- Vejo você amanhã na hora do almoço - ele disse. - Deixe a porta aberta um segundo depois que ele entrar.
Roman ficou invisível e eu abri a aporta. Dante entrou e fiquei lá um pouco até sentir a sombra de alguém passando por mim. Tudo tinha acontecido tão rápido que
eu mal tivera tempo para me dar conta de que não somente fizera contato com o cara que queria me matar, mas também tinha acabado de combinar que passaria algumas
horas com ele. Cara... Isso ia me fazer ficar acordada, quando fosse para a cama mais tarde.
Fechei a porta e dei um beijo rápido no rosto de Dante. Ele estava carregando uma sacola e eu não consegui me conter.
- Você comprou alguma coisa na Macy’s? - eu exclamei. - Eu achava que você entrar em uma loja de departamentos seria o equivalente a um vampiro sair na luz do dia...
quer dizer, sem considerar a situação no momento.
Dante revirou os olhos e colocou a sacola no chão. Cruzando os braços, ele se apoiou na parede. - Bem, talvez eu também esteja em uma estase. Esqueça isso por um
instante e me conte se você conseguiu entrar para a lista negra de algum demônio hoje. - Lá estava ela de novo, a preocupação afetuosa, apesar de ele tentar disfarçar.
- Não que eu saiba, mas o dia ainda não acabou.
Eu omiti os detalhes sobre com quem eu tinha saído em minha busca, enfatizando principalmente que o tempo gasto na praia não tinha dado em nada. Também mencionei
a visita de Cedric e as alegações de que ele não tinha contado para Nanette sobre minhas suspeitas. Dante pareceu ficar em dúvida quanto a isso. Finalmente, terminei
com a aparição de Grace e, daí em diante, hesitei. Eu queria contar para Dante sobre minha descoberta surpreendente, sobre Grace estar com o lacre. Entretanto, Roman
havia insistido que eu guardasse segredo. Por quê? Ele realmente desconfiava tanto de todo mundo? Ele tinha motivos ocultos? Contra minha vontade, consegui me conter
e não contar para Dante sobre minha recente descoberta. Aquilo me deixou passada, principalmente porque eu tinha a sensação de que Dante poderia ter algum palpite.
A advertência de Roman, porém, tinha sido muito insistente e eu estava com muito medo de que ele na verdade ainda pudesse estar por perto, invisível. E, é claro,
eu não poderia contar ao Dante sobre Roman.
Felizmente, Dante não percebeu a omissão de informação. - Você teve um dia cheio, súcubo. O demônio do mundo corporativo falou com você?
- Ainda não. Não tive oportunidade de falar com o resto do pessoal para saber se ele está fazendo a turnê dele. - Olhei para a sacola da Macy’s, morta de curiosidade
para saber o que havia lá dentro.
Dante empurrou-a para trás com o pé. - O que você vai dizer para ele?
Dei de ombros. - Não sei. Vou dizer o que sei sobre Seattle e, quanto a indicações... bem, não sei. - Eu não confiava mais em Grace e o papel de Mei ainda era um
mistério. Dante percebeu minha mudança de opinião, mas não o motivo.
- Pelo que você disse, você era fã de Grace e da outra demônia.
- Mei - complementei. - Não sei. Isso tudo é muito desgastante. - Ansiosa para mudar de assunto, apontei para a sacola. - Você vai me dizer o que tem aí dentro?
Ele deu um daqueles sorrisos provocativos. - Por que você acha que tem alguma coisa a ver com você?
- Porque você nunca compraria nada na Macy’s para você. Você se veste quase tão mal quanto Carter.
Dante balançou a cabeça, com ar de quem estava sendo paciente com a amolação. - Tudo bem. Vou ficar com isso para mim.. - Ele pegou a sacola e foi em direção ao
corredor. Alguns momentos depois, fui atrás e o barrei na porta do meu quarto.
- Vamos lá, desista. - Peguei a sacola, mas minha vitória foi insignificante, já que ele não resistiu. Abri a sacola e perdi o fôlego com o que encontrei. Uma grande
quantidade de tecido roxo brilhante, seda da cor da flor do açafrão. Hesitante, tirei o conteúdo de dentro da sacola, e um robe longo, até o tornozelo, se revelou.
Olhei para ele espantada. - O que é isto?
- Você é quem tem anos de experiência com artigos de luxo - ele observou, com ar extremamente satisfeito consigo mesmo. - Você me diz.
Eu o levantei, observando o comprimento. Era perfeito. - É lindo. Qual é a ocasião especial?
- Eu estava cansado de ouvir você reclamar daquele seu outro velho. E cansado de vê-lo, para ser sincero. - Ele ignorou meu olhar. - Além disso, você, humm, passou
por momentos difíceis nos últimos tempos. Até para você.
Eu me lembrei das outras coisas, das flores e do café da manhã. Todos os convites para jantar. - Dante...
Ele colocou o dedo nos meus lábios. - Olhe. Fique quieta por um segundo. Não sou cego. Eu sei quanto tudo isso é desgastante para você. E, merda, se eu pusesse as
mãos naquela vaca daquela demônia... - A raiva cintilava nos olhos dele e demorou um pouco para ele voltar ao normal. - De qualquer forma, você pode continuar com
suas piadas e resolvida a se esforçar ao máximo para bancar a detetive e encontrar Jerome, mas você está se desgastando. Você está deprimida. Você anda desligada.
Quando a gente conversa, é como se sua cabeça estivesse em outro lugar. Isso vale também para nossa vida sexual.
Eu abri a boca para argumentar, mas não sabia o que dizer. Ele tinha razão. Eu andava desligada, mas boa parte disso - principalmente durante nossa intimidade -
não tinha nada que ver com Jerome. Seth era quem estava na minha cabeça. Dante continuou a falar antes que eu pudesse dizer alguma coisa.
- Está vendo, agora você vai se desculpar. Porque é isso que você faz... Mas não precisa, súcubo. Você tem todo o direito de ser egoísta no momento. Mais uma semana,
no máximo, e as coisas vão voltar ao normal, e eu vou ser o egoísta.
Senti um aperto no coração. Todo mundo dizia que ele não prestava, mas, no fim das contas, eu era quem não merecia confiança. Desviei o olhar.
- E onde o robe se encaixa nisso tudo?
- Uma coisa para deixar você mais animada. Já que seu guarda-roupa encolheu.
- Dante, você anda comprando muita coisa para mim ultimamente. Você não precisa gastar dinheiro comigo, dinheiro que você não tem, para me fazer me sentir melhor.
- Se eu não tivesse, eu não gastaria - ele observou irônico. - E, de qualquer modo... eu não sou o tipo de cara que gosta de... velas, praias iluminadas pela lua
ou que recita poesia.
Eu fiz uma careta. - Até prefiro ficar longe da praia por uns tempos.
- Mas - ele continuou - eu a conheço o suficiente para saber que mocha e seda fazem você sorrir, e, pelo menos, é uma coisa que eu posso fazer.
Meu coração ficou ainda mais apertado e estendi a mão para ele. Eu compreendia o que ele estava dizendo. Não era da natureza dele fazer gestos românticos extravagantes,
mas aquisições materiais era algo que ele poderia fazer e era a única forma de me mostrar quanto ele gostava de mim. Minha culpa redobrou porque, não importa o que
ele dissesse, eu sabia que ele não tinha dinheiro sobrando. Apesar disso, minhas atitudes e minha fixação em Seth estavam preocupando Dante o suficiente para ele
achar que precisava fazer alguma coisa. Eu o estava induzindo a fazer isso.
- Você é romântico. - Eu disse. - Mas não se preocupe. É o nosso segredo.
Ele passou os dedos por meu cabelo. - Nem tanto. Olhe na sacola.
Eu olhei. Embaixo do vestido, eu não tinha percebido, havia uma garrafa de espuma de banho. Eu a tirei da sacola com um ar de interrogação.
- Achei que podíamos tomar um banho de banheira juntos.
Eu dei risada. - Isso é quase romântico. Você pode estar mais perto de praias à luz do luar do que imagina. Mas minha banheira é meio pequena.
- Eu sei - ele disse. - E é por isso que eu disse que não era muito romântico. Eu queria ver mesmo é em que tipo de posições interessantes nós podemos nos enroscar
sem roupa e com pouco espaço.
- Graças a Deus, neste mundo em que todos enlouqueceram, algumas pessoas nunca mudam.
O banheiro ficou todo ensaboado, mas foi mais divertido do que eu esperava. Apesar do que ele tinha afirmado, a proeza toda foi semirromântica. A conversa foi leve
e agradável e nós rimos e brincamos muito. Quase me esqueci de Seth - quase. Mas, quando as coisas começaram a esquentar e ficar mais pesadas, recuei. Por mais sensual
que fosse estar molhada e nua com alguém, não me parecia certo se a outra pessoa não fosse Seth.
O que fez eu me sentir ainda pior foi o fato de Dante estar se acostumando com minha atitude. Ele imaginou que minha falta de desejo fosse parte do estresse, e então
nós saímos da banheira tão recatados quanto tínhamos entrado. Nós passamos a toalha um no outro e depois nos acomodamos no sofá e vimos tevê juntos, enquanto eu
tentava não me sentir tão culpada pelo robe roxo que me envolvia.
No dia seguinte, resolvi finalmente me encaixar de novo nos horários de trabalho da livraria. Eu me escalei em turnos de meio período até a confusão demoníaca se
resolver, mas, a essa altura, parecia-me pouco provável que eu fosse chamada de volta ao Canadá. Aquele limbo em que eu me encontrava não podia durar para sempre
e eu queria continuar no meu emprego; a boa vontade de Warren não ia durar tanto tempo.
Roman e eu tínhamos nossos planos de ir para Edmonds depois do almoço, então, no meu primeiro dia de volta, eu só trabalhei no turno da manhã. Parte dele envolvia
chegar antes de a loja abrir, e a solidão me caiu bem. A livraria sempre me acalmava e essa era uma hora em que eu realmente precisava me acalmar. A calmaria durou
pouco, porém, uma vez que meus colegas de trabalho começaram a aparecer não muito depois da minha chegada. Maddie, entre eles.
- Oi - ela disse animada, entrando de repente no meu escritório. - É só outra verificação ou você está voltando definitivamente?
- Definitivamente, acho. Não que faça alguma diferença. Parece que tudo correu bem sem mim.
Ela sorriu e fechou a porta. - Nós sentimos falta de você, acredite. Não havia ninguém para arbitrar minhas brigas com Doug.
Dei risada e a observei enquanto ela se sentava. - Bem, então acho que voltei a tempo. Gostei dos sapatos.
Maddie esticou as pernas e admirou os escarpins vermelhos brilhantes que estava usando. - Obrigada. A Nordstrom está em liquidação.
O salto alto de couro marrom que eu estava usando era um dos meus pares favoritos, mas, depois de uma semana sem transformação, meu guarda- -roupa estava começando
a me enlouquecer. Era mais ou menos como meu cabelo, eu me dei conta. Não tinha percebido quanto eu era dependente da transformação para melhorar minha aparência.
Eu me congratulava por viver como humana, mas, na verdade, estava o tempo todo trapaceando.
Vendo meu ar triste, Maddie perguntou. - Você quer ir almoçar no centro da cidade para dar uma olhada?
Balancei a cabeça com pesar. Procurar sapatos era bem melhor do que procurar pedras. - Não posso. Preciso encontrar uma pessoa.
- Bem, avise-me quando tiver tempo. Você sabe que eu estou à disposição. - Ficamos em silêncio e Maddie mudou de posição, pouco à vontade. Ela mordeu o lábio, como
se quisesse dizer alguma coisa. Eu já ia incentivá-la, mas ela falou antes. - Então, o que você achou dos condomínios?
- Eles eram... - Droga. Eu não tinha nem dado uma olhada direito. Roman e Dante tinham passado mais tempo olhando do que eu. Sobre qual Dante havia comentado? -
Eles são ótimos. Eu gostei muito do novo... e você ainda pode interferir para escolher e coisa e tal.
Os olhos dela se iluminaram. - Sei! Adorei aquele também. Na verdade, eu o encontrei no site da construtora. Acho que não sobraram muitos, mas deve haver pelo menos
um, ou eles não estariam anunciados. Nós deveríamos ir até lá e falar com eles pessoalmente.
Sorri, sentindo-me péssima com a mentira. - Claro... mas vai demorar um pouco para eu ter uma folga. Vamos ter de ir lá e procurar sapatos no mesmo dia.
Maddie concordou com a cabeça, com uma expressão gentil e compreensiva. - Não tem problema. Eu entendo.
Mais silêncio e eu percebi que não era sobre os condomínios que ela queria falar. Tinha sido uma introdução, para ela poder criar coragem.
- Maddie, o que foi?
O ar de felicidade se desintegrou e se transformou em algo bem triste. Fiquei surpresa, eu estava tão habituada a vê-la sempre de bom humor que a ideia de que ela
estava chateada com alguma coisa era como se as leis da Física tivessem sido rompidas.
Ela olhou nos meus olhos e depois desviou o olhar. - Meu Deus. Não acredito que vou falar disso.
Eu comecei a ficar preocupada de verdade. - Pode falar. Tudo bem. O que está acontecendo?
Ela suspirou. - É o Seth.
Ferrou.
Capítulo 22
- O que tem o Seth? - perguntei tensa. Fiquei esperando gritos, acusações. Tanto um quanto outro seriam compreensíveis. O que eu não esperava eram as lágrimas brotando
nos olhos dela.
- Eu acho... Acho que tem alguma coisa errada. Acho que ele está tentando me dispensar sem traumas ou algo assim.
- E por que você acha isso? - Eu incorporei Grace e Mei, mantendo minha expressão tão imóvel e inexpressiva quanto a delas.
- Ele... Não sei. Ele anda desligado ultimamente.
- O Seth sempre é desligado. Você sabe como ele é com os livros dele.
- Sim, eu sei. Às vezes, isso me deixa louca. - Eu me lembrei de como ela tinha ficado decepcionada na festa de Casey. - Desta vez é diferente, eu sinto. Mas não
sei o que é. Ele não tem aparecido muito e, quando aparece, é como se estivesse comigo, mas não estivesse comigo. Ele sempre diz que está tudo bem, mas não é o que
parece. E nós não...
- Não o quê? - eu perguntei, adivinhando a resposta.
As bochechas dela coraram. - Nós não estamos transando. Toda vez que eu meio que insinuo alguma coisa, ele simplesmente não... Bem, ele não parece interessado.
Falar sobre a vida sexual deles era um dos assuntos mais constrangedores que eu poderia imaginar, quase tão constrangedor quanto ela vir a saber que eu era a culpada
pelos problemas. Então, mantive a fisionomia inexpressiva, estilo terapeuta.
- Há quanto tempo isso vem acontecendo?
- Mais ou menos uma semana.
Sim, fazia sentido. Era aproximadamente quando a minha estase tinha começado. Eu esperava que Maddie viesse atrás de mim para me repreender pelas trocas de olhares
entre mim e Seth. Mas não foi o que ela veio fazer. Nunca tinha nem passado pela cabeça dela suspeitar de mim ou de alguma desonestidade. De fato, ela tinha vindo
pedir minha ajuda porque eu era uma das poucas pessoas em quem ela confiava para falar sobre uma coisa dessas.
Tudo ficava ainda muito pior por eu ter de mentir para ela. Em qualquer outra situação, eu teria aconselhado uma amiga a assumir o controle do relacionamento, encurralar
o homem e não se deixar ser usada. E talvez... Talvez fosse o que eu deveria ter feito. Se eu a tivesse aconselhado a terminar com Seth, isso desimpediria nosso
caminho. Eu queria tudo aquilo de novo? Eu não sabia. Eu ainda não tinha pensado no dia em que voltaria a ser um súcubo. Eu estava sendo irresponsável, pensando
somente no momento atual, e continuava a fazer isso ali, com Maddie.
As palavras que se seguiram foram ditas de forma tão acolhedora, tão convincente, que ela jamais poderia imaginar que não era no melhor para ela que eu estava pensando.
Eu podia contar com minhas habilidades de súcubo para domesticar meu cabelo o tempo todo, mas cativar e persuadir as pessoas era parte essencial da minha personalidade.
Ela não teve a menor chance.
- Uma semana? - eu dei um sorriso gentil. - Não é tanto tempo assim. Você não pode achar que é uma crise significativa com base nisso, principalmente considerando
com quem você está lidando. Quer dizer... Como você mesma disse, você já o viu tão envolvido com o trabalho a ponto de desmarcar coisas e até se esquecer delas,
não é?
- Eu sei - ela disse, fungando, na tentativa de conter as lágrimas. - Mas isso nunca aconteceu. Não sei. Nunca tive uma relação séria. Não sei como deveria ser.
- Vocês estão namorando há quanto tempo? Uns quatro meses? É preciso mais tempo do que isso para realmente conhecer os padrões de comportamento de alguém. - Com
uma pontada, percebi que ela e Seth tinham namorado por mais tempo do que eu e ele. - Este comportamento pode ser um desses com que você vai precisar se acostumar.
Ele provavelmente está estressado, e sexo pode ser a última coisa na cabeça dele, por mais difícil de acreditar que possa parecer. Dê um tempo para ele. Se continuar
a acontecer, então pode ser motivo para preocupação. Mas ainda é muito cedo.
Eu podia ver, pela expressão dela, que eu tinha lhe dado esperanças.
- É... provavelmente você tem razão. Mas... Você acha... Você acha que eu estou fazendo alguma coisa errada? Eu deveria fazer alguma coisa diferente? Agir de outra
forma? Usar roupas mais provocantes?
Ai, meu Deus. Eu realmente não queria dar conselhos para Maddie sobre como seduzir Seth. - Bem... Acho que você ainda não precisa se preocupar com isso. Pensar demais
vai deixar você ainda mais preocupada. Só espere um pouco. Se ele estiver com alguma coisa na cabeça, pode demorar algum tempo para ele se resolver.
Ela venceu as lágrimas e assumiu um ar decidido. - Às vezes, eu não sei se não estou enganando a mim mesma, meio como se estivesse me iludindo por estar vivendo
meu primeiro grande amor. Mas, algumas vezes, eu realmente sinto que ele é o homem da minha vida. Como se... Se ele quisesse fugir agora mesmo, eu iria. - O amor
na expressão dela foi como se uma bala tivesse atravessado meu coração. - Se ele estiver com algum problema, eu quero ajudá-lo.
- Eu sei, eu sei. Mas você ainda não sabe qual é o problema. E, se tiver alguma coisa que ver com escrever, ele vai ter de resolver sozinho. Se for alguma outra
coisa... bem, com certeza ele vai conversar sobre isso quando estiver preparado.
Os olhos escuros dela estavam com um ar contemplativo, olhando para mim sem me ver enquanto ela processava aquilo tudo. - Você pode ter razão - ela disse por fim.
Ela deu um sorrisinho tristonho e balançou a cabeça. - Deus, estou me sentindo meio idiota. Olhe para mim. Um ótimo exemplo de como as mulheres podem ser fortes,
não sou? Eu estraguei a maquiagem? Ai, não acredito que acabei de fazer essa pergunta.
- Não, está tudo bem. E você não é idiota. O que você está sentindo é normal. - Eu me levantei, precisava sair de lá. A sala estava me deixando claustrofóbica. Eu
precisava fugir dela, fugir da confiança dela. - Vou dar uma verificada na loja. Nós vamos abrir a qualquer momento.
Ela também se levantou e passou a mão nos olhos mais uma vez. - Eu também tenho coisas para fazer. Obrigada por me ouvir.
Antes que eu pudesse abrir a porta, ela me deu um rápido abraço apertado. - Ainda bem que você é minha amiga.
Depois disso, ela saiu para fazer o trabalho dela. Eu, por minha vez, queria que um buraco se abrisse no chão e me engolisse. Estava quase torcendo para que Nanette
aparecesse e pusesse um fim no meu sofrimento. Felizmente, só faltavam duas horas para eu me encontrar com Roman. Então, eu poderia me livrar desse sofrimento e
desse desprezo por mim mesma que Maddie sem saber tinha provocado. Mas se eu estava esperando que os assuntos da loja me deixassem ocupada com outras coisas, estava
errada. Meia hora depois, uma ida ao café me fez ficar cara a cara com Seth.
Ele estava sentado em uma mesa com o laptop e levantou os olhos como se tivesse sentido que eu estava por perto. Ele sorriu e meu coração disparou. Sorri de volta
antes de poder me controlar. Parecia que ele queria que eu fosse até lá, mas eu ainda temia chamar a atenção ou que alguém percebesse alguma coisa. É claro que pareceria
mais suspeito se eu não fosse falar com ele, eu me dei conta. Havia muito tempo que era perfeitamente normal eu parar e conversar com ele. Ninguém jamais teria achado
que aquilo fosse algo além de uma conversa entre amigos.
Então, depois de me livrar de alguns livros, fui até lá e me sentei do outro lado da mesa. - Oi - eu disse, sentindo-me bem com o olhar dele.
- Oi - ele respondeu. - Você está muito bonita hoje.
Olhei para baixo e comecei a rir. Além das limitações do meu guarda- -roupa, eu também tinha descoberto que não lavar a roupa diminuía ainda mais minhas opções.
Eu estava usando jeans e uma camiseta preta lisa hoje, eu mal havia penteado o cabelo, não tinha dado nem para pensar em arrumá-lo de verdade. Eu perdera a hora
e achei que não precisava caprichar muito para perambular pela praia, de qualquer forma.
- Mentiroso - eu disse. - Eu praticamente caí da cama hoje.
- Você está se esquecendo de que eu já vi você praticamente em todos os estados imagináveis. Você não precisa estar sempre perfeita em todos os detalhes, você é
bonita até quando está desarrumada; às vezes, até mais.
- Ei, você está dizendo que eu estou desarrumada?
- Não, você não está nem arrumada nem desarrumada. E você está linda mesmo assim.
Eu recebia elogios o tempo todo, mas, vindo dele, eles eram especiais, maravilhosos. Até os mais insignificantes. - E você - eu disse - tenta parecer desarrumado.
Ele passou a mão pelo cabelo um pouco bagunçado. Acho que ele estava tentando ajeitá-lo, mas só conseguiu deixá-lo mais despenteado. - As pessoas gastam uma fortuna
com gel para ficar com esta aparência, sabe?
- E fortunas com camisetas como esta - eu disse, apontando para a camiseta de Ovomaltine vintage dele. - Existem colecionadores que pagariam uma fortuna por ela
no eBay.
- Eu sou uma dessas pessoas.
Eu ri. - Existe um verdadeiro oásis de camisetas esperando por você em Vancouver. Quando eu via algumas, eu pensava em você.
Cada momento que passava, eu ia me deixando levar mais e mais por aquela conexão elétrica e envolvente entre nós. O amor por ele me preenchia, fazia com que eu me
sentisse completa. Sair de perto dele naquele momento teria sido uma tortura, e eu via um sentimento semelhante por mim no rosto dele. Eu me sentei sentindo-me culpada
e em conflito por causa de Maddie, mas, uma vez com ele... bem, era egoísta, e horrível, mas eu não conseguia ir embora. E, sinceramente, eu não conseguia me preocupar
muito com os sentimentos dela, porque eu estava muito envolvida com os meus sentimentos por ele. Eu o desejava. Eu queria que ele fosse meu. Eu queria que ele me
amasse. E, apesar disso, eu sabia que, no momento em que me afastasse daquela mesa, eu me sentiria mal de novo por causa dela. Aquilo não tinha como dar certo.
- Você ainda tem alguma viagem marcada para lá? - ele falou com a voz mais baixa. O ar galanteador foi embora e deu lugar à preocupação.
- Não, acho que minhas viagens internacionais chegaram ao fim. Eu só preciso ainda resolver uns assuntos por aqui agora... ou, bem, eles vão se resolver por si mesmos
em pouco tempo. As coisas vão voltar ao normal logo, com ou sem Jerome.
Ele ficou ainda mais preocupado e desviou o olhar para observar a janela. Nós dois sabíamos que o inevitável iria acontecer desde o início, mas nenhum de nós tinha
sido capaz de levantar o assunto. Parecia que ainda não conseguíamos. Havia um milhão de coisas que nós deveríamos discutir, mas só conseguíamos pensar um no outro.
Tudo o que queríamos era o outro. Tínhamos passado muito tempo com limites entre nós e agora não havia nenhum, nós só queríamos nos perder como crianças em nossos
desejos sem pensar nas consequências - embora as consequências fossem nos atingir a qualquer momento.
- Bem... - Seth disse por fim. - Espero que você não esteja correndo nenhum risco. Você está mais perto de encontrá-lo?
Hesitei. Roman tinha me falado para não confiar em ninguém. Eu tinha certeza de que Seth não ia sair atrás de nenhum dos demônios que estavam por lá e contar o que
eu tinha dito. Eu também desconfiava, porém, que Seth não ia gostar de ficar sabendo que Roman tinha entrado na minha vida de novo, por mais altruísta que Roman
alegasse ser no momento. Seth não confiaria nele. Que diabos, nem eu confiava.
- Consegui algumas pistas promissoras - eu disse por fim. Pensei em Grace. - Algumas mais promissoras do que outras... Só não sei se posso fazer alguma coisa com
elas.
- Ainda vai perambular pelas praias? Você vai precisar de mim e de Kayla de novo?
- Eu achei que ela fosse...
A cara dele me dizia que ele faria qualquer coisa por mim. - Sim, mas, se você precisar muito dela, posso tentar mexer uns pauzinhos. Se você quiser.
Como eu queria... Um anseio prazeroso e também doloroso tomou conta do meu peito. Não havia nada que eu adoraria mais do que passar outra tarde com os dois, mesmo
procurando pedras. Eu tinha me deixado levar pela ilusão de que nós éramos como uma família.
- Não, eu já dei um jeito. - Com relutância, afastei a imagem. Por mais que eu quisesse sair com eles de novo, Roman seria o melhor parceiro para as buscas agora.
Eu preferia que ele se arriscasse do que arriscar a Kayla e, de qualquer forma, era mais provável que ele soubesse o que fazer se realmente encontrássemos o que
estávamos procurando. Eu olhei para o relógio. - Na verdade, preciso terminar meu trabalho. Meu turno já está acabando e não posso me atrasar.
A expressão de Seth era um misto de preocupação e decepção. - Nada de almoço?
Eu não tinha certeza, mas desconfiei que almoçar com ele envolveria comida e sexo em algum lugar escondido. Droga. Eu queria os dois.
Triste, balancei a cabeça. - Bem que eu gostaria... mas isso é mais importante. Desculpe. - Por um instante, lembrei-me de Maddie no meu escritório, tão triste e
com o coração partido. E eu nem estava pensando em Dante com os gastos compulsivos. Se eu tivesse algum vestígio de decência na minha alma condenada, eu teria dito
a Seth que precisávamos acabar com aquilo naquele momento. No entanto, como das outras vezes em que eu ficava me dizendo isso, eu não ouvi. - Talvez... Talvez hoje
à noite, mas...
Roman e eu teríamos terminado a busca. Dante talvez aparecesse, mas, bem... mais tarde eu pensaria nisso. Eu estava convencida de que poderia escapar de qualquer
coisa que ele pudesse querer fazer. Detalhes como esses não tinham importância. Só ficar sozinha com Seth de novo importava. Como ficar com ele me afetava de tal
maneira?
Ele concordou com a cabeça, tão ansioso quanto eu.
- Ligue para mim quando estiver liberada.
Eu já ia brincar dizendo que nunca seria liberada, mas não era isso que ele estava querendo dizer. Levantei-me e desejei ter a aparência de quem tinha acabado de
ter uma conversa platônica e que não estava na verdade lutando contra a tentação de dar um beijo de despedida. Ficamos olhando um para o outro por alguns momentos
carregados e, com os olhos, Seth me disse um milhão de coisas, tanto carinhosas quanto indecentes. Ao me afastar, eu estava certa de que qualquer um que tivesse
nos visto teria percebido instantaneamente o que estava acontecendo - mas ninguém parecia estar prestando atenção em nós.
Meu turno terminou rapidamente depois disso, e, enquanto eu caminhava de volta para casa, ouvi passos invisíveis me acompanhando. - Eu sei que você está aí - eu
disse por entre os dentes. Não queria que ninguém achasse que eu era louca. - Vejo que você continua o mesmo voyeur de sempre.
Meu carro estava estacionado atrás do prédio, e, quando virei a esquina em um quarteirão mais sossegado, Roman se materializou a meu lado. Lindo, convencido e perigoso.
Como sempre.
- Espero que você tenha se divertido, me seguindo por aí. - Peguei as chaves.
- Você renderia um reality show - ele disse. - É muito bom. E, sabe... Eu posso ser um ex-assassino totalmente instável, mas, cara... Você consegue chocar até a
mim.
- Fique quieto - retruquei. Destranquei as portas do carro e entrei do lado do motorista. - Eu não pedi sua opinião, e sua crítica sarcástica não é bem-vinda.
- Não é crítica. Estou só pensando em voz alta. Na verdade, não tem nada a ver com você, nem precisa se dar o trabalho de responder.
- É assim, então, não é? - Eu perguntei enquanto saía da vaga. - Você vai me torturar por toda a eternidade. Prolongar meu sofrimento, é isso?
Ele sorriu, revelando os dentes brancos perfeitos contra a pele bronzeada. Isso me despertou a lembrança de como um dia eu tinha achado aquilo tão atraente. Agora,
porém, meu medo e minha inquietação bloqueavam qualquer tipo de desejo.
- Digamos que essa seja uma possibilidade. Além disso, não finja que não existe um lado secreto seu que gosta de fazer esse papel de quem é eternamente infeliz e
atormentada. Se você fosse feliz, não ia saber o que fazer com você mesma.
- Não é verdade. - Fiquei surpresa ao perceber que estava corando. - Pare de me encher o saco.
- Só estou intrigado, só isso. Você veste essa máscara de superioridade moral. Assim como o Mortensen. Vocês dois, porém, andam se encontrando às escondidas.
- Você não entende. Nós estamos apaixonados. - O olhar irônico que Roman lançou na minha direção fez com que eu me arrependesse imediatamente das minhas palavras.
- Ah, eu entendo. Acredite, eu entendo. - Fiquei olhando para a estrada. Ele uma vez havia dito que me amava, mas eu tinha jogado de volta na cara dele. - Para começar,
se vocês estão tão apaixonados, por que vocês terminaram? Vocês estavam cheios de nhém-nhém-nhém da última vez em que eu os vi.
- Por muitos motivos - refleti. - É complicado.
- Sempre é.
Suspirei. Ainda faltavam uns vinte minutos para chegar a Edmonds. Aquela seria uma longa viagem.
- Não é da sua conta, mas muitas coisas estavam acontecendo. Nós estávamos, por exemplo, tendo problemas para nos comunicar.
- Que coisa mais sem graça.
- Eu estava começando a surtar, sabe? Porque ele podia morrer. Eu achava que não conseguiria suportar. - Eu esperava que Roman respondesse com alguma indireta, mas
ele não disse nada. - E, também, sempre existia o problema do sexo. Eu não queria transar com ele. Não podia suportar a ideia de roubar uma parte da vida dele. Nosso
amor não dependia de sexo... mas, bem, de qualquer jeito isso deixava as coisas confusas.
- E agora o sexo não é um problema.
- Porque eu não posso fazer mal para ele agora! Não posso mudar a ordem das coisas... ou o fato de que nós ainda gostamos um do outro.
- Ou o fato de que vocês têm outros em quem deveriam pensar. - Fiquei em silêncio. Roman inclinou a cabeça para trás e a apoiou no banco do carro, pensativo. - Depois
de tudo o que observei ao longo desta semana, devo dizer que gosto da Maddie.
- Eu também gosto dela - eu disse em voz baixa.
- Mas aquele cara que você está namorando... Você merece coisa melhor.
- Estou começando a querer que você me mate.
- Eu já pensei nisso - ele disse.
Para meu desespero, o tom de brincadeira tinha desaparecido.
De novo, recusei-me a olhar para ele. - Desculpe... pela Helena. Eu não queria que acontecesse aquilo.
Roman deu risada, parecia que ele estava sufocando. - Ah, é? E o que você achou que ia acontecer? Que nós íamos levar uma bronca? Apesar de ter sobrevivido, fiquei
em péssimo estado.
- Você disse que ia matar o Carter. E eu não sabia se você poderia ir atrás de mais alguém - eu disse baixinho. - Eu não sabia o que fazer. Não foi uma decisão fácil.
- Teria sido, se você me amasse, como você disse que amava - ele respondeu ressentido. - E eu disse que deixaria os outros em paz.
- Já era tarde demais quando você me disse isso. A essa altura, eu já tinha pedido ajuda. - Eu não expliquei que, de certa forma, eu realmente o amava. Tinha sido
diferente do meu amor por Seth, mas tinha sido amor, de qualquer forma.
- Não faz diferença. Não tem importância agora. O importante é encontrar Jerome. - Com o canto do olho, vi que ele estudava meu perfil. - É claro que estou surpreso
por você estar tão ansiosa... Vai acabar com seu namorico.
- Vai acabar de qualquer jeito. E prefiro Jerome na minha vida a outro demônio. - Na minha cabeça, eu podia ver os olhos bondosos de Seth e seu sorriso meigo. Eu
quase podia sentir a forma como as mãos dele tocavam meu corpo. - Pelo menos vou ter as lembranças. Elas vão permanecer comigo.
- Lembranças - Roman balançou a cabeça. - Como alguém que vive de transar com homens de forma aleatória pode ser uma idiota romântica?
Não respondi e não conversamos muito durante o resto do caminho. O lugar para onde estávamos indo, em Edmonds, era outro parque. Engraçado, pensei, como os humanos
ficavam secionando esses lugares mágicos e preservando-os. Eu me perguntei se eles sentiam a energia em algum nível. Eu tinha lido alguma coisa sobre esse parque,
sobre como tinha certa importância para alguns nativos da região. Certamente, era promissor. Era uma praia pequena, margeada por uma área arborizada com mesas de
piquenique. Crianças corriam enquanto as mães as observavam.
- Este lugar não tem muita força - Roman disse quando saímos do carro. - Há um pouco de magia na terra, mas não muita. Não acho que eles esconderiam Jerome aqui,
seria preciso muito mais para mascará-lo.
Eu me recusei a deixar aquilo me desanimar. - Nós precisamos procurar. Não temos certeza de nada.
O parque não era enorme. Desconfiei que a busca demoraria menos do que o caminho de volta. Logo que saímos do estacionamento, meu celular tocou. Não reconheci o
número. - Continue sem mim - eu disse para Roman. Quando atendi, a voz não era de ninguém conhecido.
- Quem está falando é Letha, também conhecida como Georgina Kincaid?
Fiz uma careta. Somente funcionários do alto escalão do inferno me chamavam pelo meu nome verdadeiro. - Sim.
- Aqui é Ephraim, do Departamento de Assuntos Internos. - A voz do demônio soava seca e apressada, dando-me a impressão de que era eu quem tinha telefonado para
ele e estava interrompendo alguma coisa. Achei curioso ele ter telefonado, em vez de vir falar comigo pessoalmente. Mais eficiente, supus.
Sentei em uma mesa de piquenique. - Em que posso ser útil?
- Em nada, com certeza. Mas eu recebi ordens para entrevistar todos os imortais inferiores da região sobre o Caso Jerome. - Eu pude ouvir as maiúsculas na voz dele,
meio como The Manhattan Project. - Primeiro, eu gostaria de saber onde você estava quando Jerome desapareceu.
- Indo para o Canadá. Jerome estava me emprestando para ajudar Cedric.
Ele fez uma pausa. - Meus registros indicam que Cedric estava em Seattle quando Jerome desapareceu.
- Bem, quando eu saí, Cedric ainda estava lá. Mas depois, quando o Exército da Escuridão fez a encenação deles no Space Needle, eu liguei para Cedric porque imaginei
que ele deveria saber. Acho que foi então que ele veio para cá.
- Você disse Exército da Escuridão?
- Sim. É tipo uma seita de Vancouver que estava fazendo umas coisas desagradáveis.
- Ah. Os da tinta spray.
- É. Eu estava ajudando Cedric a dar um jeito neles, mas, quando ele ficou sabendo que eles estavam aqui, acho que ele veio falar com Jerome para tentar contornar
a situação, para Jerome não achar que tinha sido ideia dele.
- Sua informação está incorreta. Cedric não chegou a se encontrar com Jerome.
- O quê? - franzi o cenho, recordando minha conversa com Kristin. Eu tinha perguntado se Cedric viera falar com Jerome, e, apesar de ter confirmado que ele tinha
vindo para cá, ela não havia dito nada sobre eles terem se falado.
- Quando Cedric chegou, Jerome já tinha desaparecido. Ele e Mei tentaram encontrá-lo, e, quando os imortais inferiores começaram a apresentar os efeitos da conjuração,
nós percebemos o que tinha acontecido. - As palavras de Ephraim ainda eram apressadas. Evidentemente ele não queria discutir uma coisa que ele já sabia.
Eu estava perto de alguma coisa - muito, muito perto. Jerome tinha sido conjurado antes da chegada de Cedric? Isso o descartaria como conjurador. É claro que, se
Ephraim tivesse obtido essa informação de Cedric, poderia ser mentira. Talvez alguém estivesse armando para Cedric. Talvez ele estivesse aqui no exato momento em
que Jerome foi conjurado. A menção a Mei indicava que provavelmente ela tinha confirmado a história de Cedric. Isso significava o quê, de fato? Ela também estava
participando? Eu já sabia que Grace estava envolvida. Seria possível que Mei e Cedric estivessem agindo com ela, mas isso implicaria três demônios na conspiração.
Só havia uma recompensa em Seattle, e eu não conseguia imaginar como todos eles poderiam se beneficiar. Conseguir que um grupo grande de demônios se organizasse
era difícil. Conseguir que fizessem alguma coisa sem que todos obtivessem alguma vantagem? Impossível.
Ephraim estava ansioso para retomar o assunto anterior. Ele fez mais algumas perguntas sobre o desaparecimento de Jerome e perguntou um pouco sobre minhas atividades
do dia a dia. Ele não fez nenhuma pergunta sobre quem eu achava que deveria substituir Jerome ou o que eu achava de outros demônios. Isso não foi nenhuma surpresa,
no entanto. Como eu e meus amigos já havíamos comentado, nossas informações provavelmente não iam exercer papel importante.
Desliguei e fui encontrar Roman. Eu esperava que ele já tivesse praticamente terminado a busca, mas, em vez disso, encontrei-o brincando com algumas crianças em
uma clareira perto das árvores. Elas eram bem pequenas, e não era bem um jogo. Estavam todos em círculo e um jogava a bola para o outro. Os lances de Roman eram
delicados e cuidadosamente direcionados, de modo que fosse fácil para as crianças apanhar a bola. Eu fiquei de lado, observando-os admirada. Ele parecia estar realmente
compenetrado, e a singularidade de um sociopata bastardo semiangelical brincando com criancinhas não me passou despercebida.
Roman me viu observando-os e jogou a bola para uma menininha. Ele saiu da roda para se aproximar de mim, para a decepção das crianças que ficaram para trás. Elas
tentaram convencê-lo a ficar, mas ele só acenou com a mão e disse-lhes que precisava ir embora.
- Talvez a gente possa voltar depois - ele disse animado.
- Não sei se isso foi fofinho ou assustador - eu disse. - Talvez um pouco dos dois.
- Por que assustador? Eu só elimino seres imortais. Não mato crianças.
- O fato de você ter dito isso com essa cara de pau já comprova o que eu disse. - Eu apontei para o nosso redor. - Você já verificou este lugar?
- Não. Não queria estragar sua diversão. Quem era no telefone?
Começamos a caminhar pela praia e eu recapitulei o que Ephraim tinha me contado. - Quase contei para ele o que eu sabia sobre Grace - admiti.
- Não, foi melhor não ter falado - Roman disse. - Nós precisamos de mais informações.
- Estamos ficando sem tempo - resmunguei. - Não há mais muitas informações que possamos conseguir. E tem alguma coisa... alguma coisa estranha com o dia em que Jerome
foi conjurado. Eu só não consigo - fiquei paralisada, olhando para o fim da praia. - Roman, veja.
Ele seguiu meu olhar. Ali, perto de uma lata de lixo, havia um pedaço de chão com pequenas pedras brancas misturadas à areia. Cinza e branco. Corri pela praia, ignorando
a areia que entrava no meu sapato. Caramba. Depois de todas aquelas buscas infrutíferas, depois de confiar em todas essas pistas desencontradas incompletas, finalmente
tínhamos encontrado alguma coisa. Tínhamos encontrado Jerome, bem a tempo.
Ignorando os olhares de algumas crianças espantadas, ajoelhei-me perto das pedras e comecei a empurrá-las para o lado, cavando a areia. Só então percebi que deveria
ter trazido uma pá ou algo do tipo. Pouco depois, Roman chegou e ficou parado em pé ao meu lado.
- O que você está fazendo? - reclamei. - Ajude-me.
- Ele não está aqui, Georgina.
- Ele tem de estar! Estamos perto da água salgada. Há areia. Pedras brancas. Para o resto da camuflagem do lacre funcionar, ele está enterrado em algum lugar por
aqui.
- Eu não consigo sentir nada. Ele não está aqui.
As pedras estavam cortando as minhas mãos enquanto eu cavava e eu senti as lágrimas ardendo nos olhos. Até aquele momento, eu não tinha percebido quanto estava realmente
com um medo terrível de que Jerome não voltasse. Minha vida de súcubo tinha sido cheia de reviravoltas. Eu gostava dessa pequena ilha de tranquilidade que eu tinha
criado em Seattle. Não queria que isso mudasse. Não podia deixar que mudasse, não depois de tudo por que eu tinha passado nos últimos tempos.
- O objetivo das marcas do lacre era ter mágica para mascarar a prisão de Jerome! É claro que você não pode senti-lo.
- O lacre o esconde de alguém que não esteja procurando ativamente. Eu estou, e estou dizendo que não está aqui.
- Talvez você não seja forte o suficiente.
Com um suspiro, Roman se ajoelhou atrás de mim.
- Georgina, pare!
- Droga! Ele tem de estar aqui!
Roman veio por trás e segurou meus braços. Eu lutei, mas ele era forte demais. - Georgina, chega, Jerome não está aqui. A única coisa diferente aqui é o cheiro da
lata de lixo. Sinto muito.
Eu lutei contra ele um pouco mais e por fim desisti. Aparentemente certo de que eu não resistiria mais, Roman me soltou. Eu me virei e olhei para ele, engolindo
as lágrimas. - Esta era a nossa última chance - eu disse baixinho. - Não temos mais tempo.
Roman me observou com seus olhos verdes como o mar. Eu não via raiva nem ameaça na expressão dele, somente pena.
- Sinto muito. E você não pode ter certeza de que é tarde demais.
- Ephraim vai encerrar a avaliação a qualquer momento. E para onde vamos agora? Para a Península Olímpica? Wenatchee? Ir para os lugares ao acaso era uma coisa quando
estávamos perto de casa. Esses outros são longe demais. Se escolhermos o lugar errado, acabou. Não temos tempo para mais nada.
- Sinto muito - ele repetiu. Pela cara dele, dava para perceber que ele estava falando a verdade. - Eu quero encontrá-lo tanto quanto você.
Olhei para além dele. Para a água azul acinzentada e as gaivotas voando em círculos. - Por quê? Por que você quer encontrar uma pessoa que tentou matar você?
Roman sorriu. - Por que você se apega tanto a um ideal romântico se toda a sua vida em grande medida demonstra que ele é impossível?
Agora percebo que tinha sido uma pergunta retórica e ele pareceu surpreso quando afastei meus olhos da água para olhar para ele e responder. - Por causa de um sonho.
Ele arqueou a sobrancelha. - Que sonho?
Respirei fundo e, imediatamente, as imagens apareceram em flashes na minha cabeça, tão vívidas e reais como da primeira vez. - Há algum tempo... Nyx esteve aqui.
Ele ficou espantado. - O quê? A mãe do tempo e do caos?
- Sim, é uma longa história.
- O que acontece com esta cidade?
- Boa pergunta. De qualquer forma, ela estava consumindo minha energia e me confundindo, enviando-me esses sonhos. Eles eram tão reais, Roman. Você não pode nem
imaginar. - Minha voz foi quase desaparecendo enquanto eu falava. - Eu estava lavando pratos em uma cozinha e tocava “Sweet Home Alabama”. Na sala, havia uma menina
pequena sentada sobre um cobertor. Ela se machucou e eu fui até lá para consolá-la. Ela tinha uns dois ou três anos. E ela era minha. Minha filha. Não de uma outra
pessoa. Não era adotada. Uma filha, do meu corpo. Aubrey também estava lá e uma gata rajada.
- Uma o quê?
- Uma gata rajada. - Eu esperei, mas a expressão dele continuava inalterada. - É como uma gata malhada, mas sem o branco. Somente manchas marrons e alaranjadas.
Como você pode ter milhares de anos e não saber disso?
- Porque eu nunca tive uma assinatura de revista sobre gatos. E não acredito que você se lembre de coisas como raça de gato e música ambiente.
- Era tão real... - eu disse baixinho. - Mais real do que a minha vida. Eu me lembro de tudo.
O comentário mordaz que estava na ponta da língua desapareceu e ele ficou sério de novo. - Desculpe. Eu interrompi você. O que aconteceu depois? Com você, a menina
e o abrigo de gatos?
- Nós só estávamos todos lá juntos, aconchegados e felizes. Então um carro parou do lado de fora e era ele. O meu amor, meu marido, o pai dela. A pessoa ao redor
de quem minha vida girava.
- E quem era ele? - Roman perguntou, com uma cara compenetrada.
Balancei a cabeça. - Eu não sei. Não pude ver o rosto dele. Estava escuro do lado de fora e nevava. Eu só sei que eu o amava e que a menina completava minha vida.
Roman não respondeu de imediato, ficou pensando nas minhas palavras.
- Mas foi um sonho.
- Eu não sei. Nyx pode mostrar o futuro... Ela mostrou o futuro dos outros para eles. Ela afirmou que esse era o meu, mas é impossível. Eu não posso ter nada disso.
Mas, mesmo assim...
- ... mesmo assim, no fundo, você deseja que isso pudesse ser verdade.
- Sim. E quando aconteceu essa coisa toda da estase, eu achei que talvez...
Novamente Roman completou as minhas palavras - ... que talvez pudesse ser verdade. Afinal, de repente, você podia tocar Seth. Será que você poderia também ter uma
criança?
Ele tinha adivinhado meu desejo secreto. - Eu não sabia. Ainda não sei. Talvez eu possa ficar grávida. Quer dizer... meu corpo está mais ou menos humano, não está?
- Sim. Mas não o suficiente. Eu não conheço a hierarquia demoníaca em detalhes, nem o modo como eles canalizam os poderes deles, mas eu sei que você não pode ter
filhos. Apesar de parecer humana, você ainda é imortal. Você continua a pertencer ao inferno. Sinto muito.
Eu olhei nos olhos dele por um momento e depois olhei para baixo.
- Bem, acho que eu não deveria estar surpresa com isso, não é? E eu não tenho nenhum motivo para acreditar em Nyx, de qualquer forma. Não depois do que ela fez.
Era isso, nada de crianças. Outra parte do sonho tinha ido embora. Tudo o que eu tinha era um homem sem face, o homem que eu queria que fosse Seth, e até isso parecia
pouco provável agora.
Roman me puxou. - Vamos lá. Vamos voltar antes que comece a chover. Vamos tomar sorvete. Isso talvez anime você um pouquinho.
- Não tenho muita certeza de que sorvete possa dar um jeito em minhas esperanças e em meus sonhos perdidos ou em uma mudança de posse demoníaca iminente.
- É pouco provável, mas vai ajudar.
Capítulo 23
Dante não estava quando cheguei em casa, e eu também não consegui falar com ele no telefone. Isso me livrou de qualquer culpa que eu pudesse sentir por sair com
Seth, o que significava que o único outro obstáculo era o olhar acusatório de Roman quando nos separamos. Eu não tinha ideia do que ele ia fazer à noite e, sinceramente,
não queria saber.
O problema para mim e Seth sairmos juntos era que teríamos de evitar a cidade. Também conhecíamos gente nos arredores, mas as possibilidades de encontrar alguém
eram muito menores. O clima chuvoso que Roman e eu havíamos enfrentado à tarde tinha se dissipado por completo e, de repente, nós nos vimos em condições bem amenas,
o que quase permitia sair sem casaco. Eu teria considerado as condições climáticas inesperadas uma bênção divina, exceto pelo fato de que eu havia abandonado essas
crenças fazia muito tempo.
Para meu espanto, no entanto, Seth disse que queria ir ao centro e estava bem confiante de que não seríamos vistos. Fomos no carro dele até Belltown e estacionamos
embaixo de um dos muitos arranha-céus de apartamentos que parecem brotar ali a cada dia. Uma chave misteriosa permitiu que ele entrasse e o elevador nos levou até
o último andar.
- O que é isso? - disse quando entramos em uma ampla cobertura. Eu me perguntei se não deveria estar apontando minhas aspirações imobiliárias em outra direção. Olhei
surpresa para ele. - Não é seu, é? - Seth ter uma segunda casa secreta não era uma coisa tão improvável.
- É de um conhecido que não está na cidade. Eu pedi um favor.
- Você tem amigos que eu não conheço?
Ele ficou me olhando e então eu não insisti. Além disso, o lugar era tão lindo que eu tinha muito com o que me ocupar. A decoração era toda em tons de azul-marinho
e cinza; a mobília, luxuosa e cara. Eu gostei especialmente do fato de as paredes serem recobertas de reproduções de obras pré-rafaelitas. Hoje em dia, arte abstrata
é a escolha mais óbvia, e foi bom ver alguma coisa diferente.
- Espere até ver o resto - Seth disse, levando-me para o terraço.
Ou... bem... “terraço” foi a palavra mais aproximada que encontrei. Era praticamente do tamanho de metade do meu apartamento e ocupava a face oeste, dava para ver
parte do conjunto das luzes da cidade cintilando e toda a Baía de Puget. Olhei maravilhada, observando uma balsa que se movia através da extensão escura da água.
- Uau - isso resumia tudo.
Ficamos lá por alguns momentos e Seth colocou os braços à minha volta. Por causa da altura, o calor tinha se transformado em golpes de vento frio, mais condizentes
com a época do ano. Tremi, e Seth me envolveu com um cobertor que estava dobrado com esmero sobre uma cadeira de ferro batido.
- Sente-se - ele disse. - Eu já volto com o jantar.
Sorri com o galanteio e sentei-me a uma mesa de vidro ornamentada, iluminada por velas, que ainda me permitia apreciar a vista. Esperando Seth, todo tipo de sensação
estranha brotou dentro de mim. Isso era tudo, percebi. Alguma coisa me dizia que era o fim do que quer que estivesse acontecendo entre nós no momento. Talvez algo
surgisse em substituição. Talvez nunca mais houvesse nada entre nós. Não tinha importância, esse momento ficaria cristalizado no tempo para mim. Nada parecido jamais
aconteceria de novo.
O jantar se revelou um festival de tapenades e pães, assim como - para meu espanto - uma garrafa de vinho. - É tudo para mim? - perguntei.
Ele balançou a cabeça. - Vou tomar uma taça.
- O quê? Starbucks e agora isso? - Fui examinar a garrafa para ver se não era um daqueles vinhos sem álcool. Não era.
- É uma ocasião especial - ele disse sorrindo e eu sabia que ele estava com a mesma sensação de que era o fim de alguma coisa. - Além disso, como posso recriar o
Rubaiyat se não tiver todos os apetrechos?
- Claro. O seu encontro super-romântico tinha de se basear em um poema. - Eu já esperava que ele fosse começar o recital. Ele limpou a garganta antes de falar.
- “Aqui com um filão de pão sob um galho
Uma ânfora de vinho, um livro de poesia... e você
Ao meu lado cantando na floresta,
E a floresta é paraíso bastante.”
Estalei a língua. - Você tem pão, vinho e eu... mas nada de galho. E mal e mal a floresta.
- É a selva urbana - ele argumentou.
- E nada de livro de poesia - eu continuei, gostando de contrariar. Depois, pensei melhor. - Eu, no entanto, terminei A noite dos tolos.
Seth imediatamente ficou com uma expressão séria. - E?
- Você já sabe. É lindo.
- Não, não sei. Toda vez é um mistério, e eu não estou falando do mistério no livro. As palavras saem, mas, no fim das contas... - Ele deu de ombros. - Não dá para
saber como elas vão ser recebidas, o que as pessoas vão achar. Eu sempre fico meio surpreso.
- O que a citação inicial quer dizer? A letra de Kate Bush sobre fazer um trato com Deus?
- Você deveria ouvir a versão do Placebo para essa música. Você iria adorar. - Seth me lançou um olhar, como se estivesse adivinhando alguma coisa. - Você acha que
existe algum significado oculto?
- Sempre existe um significado oculto. Você colocou a letra depois de me conhecer, não foi?
- Sim... quer dizer... está relacionada com o livro, obviamente... com a revelação de O’Neill no final. Mas acho que também tem a ver conosco.
Os olhos dele foram se desviando devagar, perdendo-se na vista a nosso redor. - Não sei. Nós tivemos de lidar com tantas complicações. Ainda estamos lidando com
elas. E o que podemos fazer? Nada... bem, a não ser que adotemos o ponto de vista do seu lado e façamos pactos com o diabo. Mas por quê? Por que não podemos fazer
pactos com Deus?
- As pessoas fazem o tempo todo. “Deus, se fizerdes isso por mim, prometo ser bom.” Coisas assim.
- Sim, mas eu nunca soube de nenhum contrato como os que vocês têm. Nenhuma evidência concreta de que funciona. - Se eu não me enganei, havia certa amargura na voz
dele. - Como nós só podemos conseguir o que queremos sendo maus? Por que não podemos conseguir sendo bons?
- Vou perguntar para Carter da próxima vez que encontrá-lo - eu disse bem-humorada. - Mas tenho o pressentimento de que ele vai dizer que a bondade é a própria recompensa.
A essa altura já tínhamos experimentado as tapenades, mas mal tínhamos tocado no vinho. Apesar das alegações dele, acho que Seth não tinha nem tocado no dele. Ele
se virou para mim.
- Você e eu não estamos sendo bons, estamos? - Ele perguntou. Isso era um eufemismo.
- Você e eu somos vítimas de uma sequência de acontecimentos desastrosos - fiz uma pausa. - E muitas outras coisas desastrosas.
- Teria sido muito mais simples se essa estase tivesse acontecido quando estávamos namorando. Ou se tivéssemos cedido naquele tempo.
- Não - eu disse. - De modo algum. Eu não me importo com a situação difícil. Não ter prejudicado você valeu pena. - Você o poupou da dor física, uma voz desagradável
dentro de mim me provocou. Mas e Maddie? A dor não é necessariamente física, e você mais do que ninguém sabe disso. E a dor que você causou a ela? Ignorei a voz.
- Eu não me importo - Seth disse. - Eu teria cedido. Eu teria vendido minha alma por você. Você e eu... Eu já disse isso. Alguma coisa vai sempre nos manter perto
um do outro... mesmo se não estivermos juntos.
Levantei da cadeira e sentei-me no colo dele, colocando meus braços à sua volta e imaginando como meu coração podia ao mesmo tempo estar tão emocionado e partido.
Coloquei minha cabeça no ombro dele.
- Eu amo você - eu disse baixinho. - E o perdoo. - Alguma coisa estranha nessas palavras me fez estremecer, como se eu nunca tivesse dito isso para ninguém. - E
entendo agora por que você fez o que fez. - Eu não entrei em detalhes sobre esse “que”. Não precisava.
Seth me deu um beijo no rosto. - Às vezes, você se sente... como se estivéssemos revivendo muitas vezes este momento?
Pensei em nosso passado conturbado. - Se estivermos, não quero pensar nisso. Não agora.
Acho que ele ia dizer mais alguma coisa, talvez até me corrigir, mas eu não dei a oportunidade. Eu o beijei e, como todas as outras vezes, foi terno e poderoso.
E a coisa mais correta do mundo. Nós nos embrulhamos e, de algum modo, apesar do frio, tiramos a roupa o suficiente e fizemos amor com o vento elevando nosso cabelo
e as estrelas nos iluminando. Como da primeira vez, eu ainda tinha a sensação de que não estávamos suficientemente perto um do outro. Mesmo quando nossos corpos
se uniram e ele entrou em mim, eu ainda me sentia como se nunca, nunca fosse estar perto o suficiente dele. Talvez fosse essa conexão mística a que ele sempre se
referia. Ou talvez fosse apenas uma metáfora para nosso quinhão na vida.
Ficamos sentados juntos por muito tempo depois, embrulhados nos cobertores sem falar quase nada. Eu queria ficar lá a noite inteira. Para sempre, até. Durante esse
nosso caso, essa era a única coisa que não tínhamos feito, passar a noite juntos depois do sexo. Todas as vezes precisávamos nos separar e seguir com nossas vidas.
Ele finalmente me levou até meu carro e demos um longo beijo antes de eu finalmente conseguir me desvencilhar dele. Seth passou a mão no meu rosto e no meu cabelo,
relutando em me deixar partir. Eu compartilhava a relutância.
- O que você vai fazer agora? - ele perguntou.
- Não sei. Mais uma busca amanhã, acho. Se é que vai dar tempo. Ephraim vai nomear alguém a qualquer momento.
Seth balançou a cabeça, com os olhos sombrios e pensativos. - Bem, se você precisar de companhia de novo...
Eu sorri, não sabia se era uma boa ideia ou não, mas era uma decisão que eu não queria tomar naquele momento. Não sabia se queria que o encontro no terraço fosse
nosso último instante juntos nessa escapada ou se eu queria me agarrar a mais alguns poucos segundos preciosos, mesmo na praia.
- A gente combina - prometi. Dei um último beijo e depois fui pegar o carro. Eu tinha acabado de destrancá-lo quando uma voz vinda do escuro falou comigo.
- Você pode me dar uma carona?
Dei um suspiro. Não gostava nem um pouco do modo como todo mundo andava me espreitando ultimamente. É claro que, com o senso de humor doentio de Carter, não fiquei
totalmente surpresa. Ele já havia feito isso escondendo a aura muitas vezes, porque gostava do elemento surpresa. Tudo bem, mas eu não podia nem tentar reagir agora.
Abri a porta do meu lado. - Desculpe, eu não dou carona para estranhos.
Isso não o deteve, ele se sentou no banco do passageiro e colocou o cinto. - A senhora teve uma noite agradável, madame? - Ele falou de um jeito antiquado e meio
afetado.
- Não fale desse jeito comigo.
- De que jeito? Eu estava sendo educado.
- Você sabe exatamente o que eu estava fazendo, então não finja que está só puxando conversa.
- E por que uma coisa excluiria a outra?
Eu me recusei a olhar para ele. - Não quero ser julgada.
- Eu estou julgando você? Me parece que se alguém aqui está fazendo algum julgamento, é você, o que, na verdade, é como deveria ser. O melhor júri entre seus pares
que você vai encontrar é... bem, você. Só você sabe do que é capaz, e o que quer ser.
- Você veio atrás de mim só para investigar a filosofia dos meus princípios morais? - resmunguei.
- Não - ele disse. - Toda vez que venho atrás de você, meio que improviso e vou vendo para onde a situação me leva.
- Talvez ela possa levar você até Jerome.
- Essa busca é sua, não minha. Conseguiu alguma coisa?
De novo, enfrentei aquele dilema. Para quem eu poderia contar o quê? Grace, Roman... tantas peças no tabuleiro agora e nenhum inimigo às claras. - Algumas - eu disse
por fim.
- Nossa... - ele riu. - Você poderia ser um anjo com uma resposta dessas.
- Bem, não acho que vai ser o suficiente para encontrar Jerome, a não ser que aconteça um milagre. - A viagem foi curta. Estacionei bem na frente do meu prédio,
dei a maior sorte com a vaga.
Carter se virou e piscou para mim. - Bem, você sabe minha opinião sobre isso. Obrigado pela carona.
- Espere - eu disse, percebendo que ele estava prestes a se teletransportar. - Tenho uma pergunta.
Ele arqueou a sobrancelha. - Sim?
- Por que, quando os mortais querem coisas, a única opção que eles têm é fazer um pacto com o inferno e vender a alma? Por que não podem fazer pactos com Deus em
troca de bom comportamento?
Foi um daqueles raros momentos em que peguei Carter de surpresa. Esperei a resposta vaga que eu tinha comentado com Seth, algo na linha de a bondade ser a recompensa
em si. O anjo refletiu por alguns segundos.
- Os humanos fazem esses acordos o tempo inteiro - ele disse por fim. - Só que não é com Deus.
- Então com quem é que eles fazem? - exclamei.
- Com eles mesmos.
Ele desapareceu.
- Malditos anjos - murmurei.
Cheguei em casa poucos minutos antes de Dante aparecer. - Estou com sorte - ele me disse ao me ver no sofá com Aubrey. - Você está sempre ocupada ultimamente.
Senti uma pontinha de culpa pelo que tinha feito. Uma mentira era sempre uma mentira, não importa para quem se estivesse mentindo.
- Estou salvando Seattle - expliquei, indicando o lugar para ele a meu lado.
Ele se sentou, bem barbeado para variar, e bonito com o jeans de sempre, a camiseta de manga comprida, relógio e botas. A insegurança estava levando- -o a comprar
presentes para mim ultimamente, mas eu me dei conta de que ia precisar me manifestar e comprar algumas roupas para aumentar a variedade do guarda-roupa dele, assim
que terminasse essa loucura toda.
- E como você está se saindo, mais precisamente?
Todo mundo me perguntava isso. Seth. Carter. Dante. E toda vez eu dava uma resposta pouco convincente. - Não muito bem, na verdade. Acho que amanhã tudo vai se resolver
e Jerome vai ficar perdido para sempre. Mesmo se não ficar, vai ser tarde demais para ele recuperar o posto. Na melhor das hipóteses, ele vai ser assistente de alguém
no norte de Michigan.
Dante colocou os braços à minha volta e os pés na minha mesa de centro. - Bem, súcubo, não me leve a mal, mas vou ficar contente quando isso tudo acabar, com um
novo arquidemônio ou não. Estou cansado de você passar o tempo todo estressada, e estou cansado de não ter tempo para ver você pessoalmente. - Ele começou a brincar
com as mechas do meu cabelo. - Eu também estou meio cansado do cabelo arrepiado. Não existe um produto para isso?
- Ei - eu disse. - Não tem graça. E a beleza interior?
Ele não se acanhou. - Você tem muita. Só que prefiro o pacote completo. Além disso, adorei a cara que você fez.
A mão escorregou pela minha cintura e ficou dando voltas entre meu quadril e minha coxa. Não era um carinho abertamente sexual, mas eu pressenti que entre isso e
o bom humor dele - do qual eu estava gostando, não me entenda mal - eu estava prestes a sofrer um avanço mais ousado.
- Você pode ler cartas para mim? - perguntei bruscamente.
Ele me olhou chocado. - Cartas de tarô?
- É.
- Você sabe que é bobagem.
- É, quando você deturpa a verdade para seus clientes. Por favor? Só uma rapidinha.
- Tudo bem. Vou dar a carta do dia. Todos os mistérios do universo em uma carta. - Eu podia imaginar seus olhos revirando pela voz que fez quando se levantou para
buscar as cartas na mochila. Ele geralmente as levava com ele para o caso de aparecer alguma oportunidade.
- Não minta para mim - adverti. - Sei mais do que seus clientes.
- Eu nem sonharia em mentir - ele disse, embaralhando as cartas habilmente. Eu tinha visto Dante enganar clientes muitas vezes, dizendo a eles o que queriam ouvir.
Visto que eu não sabia o que queria, supus que isso me deixaria de fora dessa categoria. Depois de embaralhar totalmente as cartas, ele me mandou cortar e depois
as empilhou novamente com cuidado. - Tire.
Peguei a primeira carta do monte e a virei. - Droga.
Cinco de Copas. Os cálices derramados. Esperanças e sonhos perdidos. Dante confirmou.
- Decepção pela frente, perda de alguma coisa que você tinha. Pode ser fracasso ou incapacidade de resolver um problema recorrente. Leitura bem adequada para você.
- O que você está querendo dizer com isso?
- Ruína e tristeza estão sempre circundando você. Não inventei quando li sua mão aquela vez. - Aquela tinha sido ainda pior. - Provavelmente é só a confirmação de
que Jerome não vai voltar, se você for acreditar nisso. E, olhe - ele bateu na carta. - Um dos cálices continua em pé. Nem toda a esperança está perdida.
Fiquei cismada com aquilo enquanto pensava sobre perder Seth e o homem do sonho. Eu também me perguntei se Roman estava certo, se era verdade que eu não saberia
o que fazer se algum dia eu viesse a ser realmente feliz.
Como eu já desconfiava, Dante fez uns avanços sexuais, mas recusei como tinha feito durante a semana toda. Sabia que a essa altura não tinha importância. Meus cálices
estavam vazios, e a aventura com Seth, acabada. Apesar disso, nosso momento no terraço tinha sido tão terno e tão poderoso que, mais uma vez, não podia ficar com
mais ninguém depois de um encontro como aquele. Logo minha vida sexual com Dante voltaria ao normal, mas não naquela hora. Ele aparentemente não ficou bravo ao ser
dispensado, ele ficou, sim, magoado. Eu me senti um pouco mal, mas percebi que era melhor me sentir culpada por traí-lo do que por trair Seth.
Dante se levantou e foi embora antes de mim na manhã seguinte, mas Roman estava sentado na minha sala comendo cereal e sentindo-se em casa. Ele sabia que eu estava
lá, mas continuou com os olhos no noticiário da manhã. Quando terminou o cereal, ele chamou Aubrey e colocou a tigela no chão para ela.
- Ei - eu disse, pegando a tigela do chão. - Leite faz mal para gatos.
- Você precisa deixá-la ter vida - ele protestou, ainda assistindo ao noticiário. - Então, quais são os planos para hoje?
- Não sei. Ainda estou em estase, então suponho que tenhamos tempo. Quer lançar um dardo no mapa e ir para algum lugar? - Apontei para o atlas do Pacífico Noroeste
em cima da minha mesa de centro.
- Pode ser o método mais produtivo que nós já experimentamos - refletiu.
Ele falou no tom despreocupado que usava com frequência, mas dava para perceber a decepção também. Ainda era um mistério para mim o motivo por que ele queria tanto
encontrar Jerome. Um mistério que só um café poderia ajudar a resolver, pensei, e, enquanto o café era coado, fui caçar meu desjejum. Achei Pop-Tarts e, de novo,
fiquei em dúvida quanto a engordar.
- Humm, Georgina...
- Se você vai perguntar se pode dar mais alguma coisa para ela, a resposta é não.
- Você precisa ver isto. - Ele estava falando sério. Senti um arrepio atrás do pescoço e corri para a sala. Roman apontou para a tevê.
- Só pode ser brincadeira - gemi.
O Exército da Escuridão tinha atacado novamente. Estávamos assistindo a um canal se Seattle, mas, pelo visto, essa empreitada ao norte da fronteira tinha sido considerada
digna de nota. A travessura havia acontecido perto de Vitória, cidade que fica sobre uma ilha, a oeste de Vancouver, mas ainda na Colúmbia Britânica. Havia lá jardins
muito famosos e bem bonitos, e o Exército aparentemente tinha feito uma invasão à noite e tentado se esmerar para aparar uma enorme extensão de arbustos e formar
um pentagrama. Eles tinham reforçado com tinta spray.
- Jesus - murmurei. O pentagrama estava muito malfeito, mas o grupo tinha sido esperto o bastante para sair de lá sem ser apanhado. Uma chamada mostrava onde eles
haviam pichado: ACLAMEM O ANJO DA ESCURIDÃO.
- Gostei de ver que eles não perderam o estilo - Roman disse irônico.
Afundei-me no sofá ao lado dele, com a cabeça girando. Por quê? Por que agora? Eu tinha pensado na possibilidade de as atividades do Exército terem sido uma forma
elaborada de desviar a atenção de todos para longe de Seattle. Por esse raciocínio, as encenações deles deveriam ter parado depois de Jerome ser conjurado. Apesar
disso, lá estavam eles outra vez. Teriam eles agido por conta própria, só pela emoção? Blake tinha encontrado uma liquidação de tinta spray? Ou Grace os havia orientado
de novo - e se havia, por quê?
A maior parte das atividades deles coincidia com alguma outra fase importante da criação do lacre ou da conjuração de Jerome. Sem desperdiçar mais nem um minuto,
peguei meu celular e telefonei para Cedric. Na verdade, ele mesmo atendeu, em vez de Kristin.
- O que foi? - ele perguntou quando atendeu.
- É a Georgina. Acabei de ver no noticiário.
- Olhe, eu não tenho tempo para falar com você agora, visto que nada disso teria acontecido se você tivesse executado sua tarefa, para começar.
- Sim, sim, eu sei, mas, escute... alguma coisa importante estava prevista para hoje?
Ele falou em um tom incrédulo. - O que, fora esses idiotas me colocarem numa situação constrangedora de novo?
- Não, quer dizer... algum acontecimento, ou, não sei... alguma coisa importante, humm, demoniacamente...
- Bem, se você considerar minha avaliação com Ephraim importante, então, sim. - O sarcasmo escorria pelo telefone.
Gelei. - Obrigada. Era tudo o que eu precisava saber.
Ele realmente ficou surpreso. - Sério?
- Sim... Não, espere! Quando falei com Kristin no outro dia, ela me disse que você veio para Seattle no dia da conjuração de Jerome, mas depois Ephraim me contou
que, quando você chegou aqui, ele já havia desaparecido. Isso é verdade?
- Sim, é óbvio. Você está duvidando dele?
- Não, não... Só me certificando de que entendi direito. E você permaneceu em Seattle por algum tempo?
- Sim, com Grace e Mei, lidando com as consequências. Olhe, se você quiser rastrear minhas atividades, espere Kristin chegar. - Ele suspirou frustrado. - Droga.
Eu queria que ela estivesse aqui agora.
Hesitei e depois imaginei que não dava para as coisas ficarem piores do que estavam. - Só um conselho... Da próxima vez que você estiver pesquisando no Match.com
ou convidando súcubos para sair, por que você não olha para quem está perto de você?
- De que diabos você está falando?
- Kristin. Se você está procurando alguém que o “entenda”, perceba que já existe. Vejo você depois.
Desliguei antes de poder ouvir a resposta. Roman olhou para mim pasmado.
- Você estava bancando o cupido no meio desta crise?
- Só fazendo uma boa ação. - Enquanto eu pensava, fiquei jogando o celular de uma mão para a outra. - Certo, então. O Exército aprontou hoje... enquanto Ephraim
estava entrevistando Cedric. Não é nada bom para Cedric.
- Vai arruinar a candidatura dele a Seattle.
- É provável, apesar de ele alegar que não está interessado. Mesmo assim, ainda faz sentido Grace tê-los mandado fazer isso hoje... se tiver sido ela e eles não
tiverem agido por acaso...
Ele deu de ombros. - Faz sentido, mas que importância tem? Você já sabe que ela está envolvida. Isso só serve para inocentá-lo.
Franzi a testa. Eu tive a mesma impressão que sentira no outro dia, enquanto analisava as atividades do culto, como se estivesse chegando muito perto, mas não conseguisse
amarrar todos os fios. Contra minha vontade, liguei para Evan. Ele ficou superanimado quando viu que era eu.
- Georgina! Nós estávamos nos perguntando o que tinha acontecido com você. Cara, você não vai acreditar no que nós fizemos hoje, tem um...
- Eu já soube - interrompi. - Saiu no noticiário daqui.
- O quê? Caramba. Ei! Gente! - Eu afastei o telefone enquanto ele gritava com quem quer que estivesse com ele. - Nós saímos no noticiário de Seattle! - Um segundo
depois, ele voltou a falar comigo. - Uau, isso é incrível. Reconhecimento internacional!
- Olhe, Evan. Eu preciso saber uma coisa. Foi o Anjo quem mandou vocês fazerem isso? E quando eu digo isso estou querendo dizer: ela apareceu em uma daquelas visões
ou você supôs que ela quisesse isso?
- Ela esteve aqui. Disse para deixarmos nossa marca no Butchart Gardens, para o mundo conhecer a glória dela. Foi legal, também. Como você sabe, é um lugar que tem
energia e tudo mais. Não espanta ter tido efeitos de tão longo alcance.
- Local com energia... - Consegui juntar os fios. - Evan, escute, você conhece algum outro local com energia por perto? - Eu sempre havia desprezado o conhecimento
esotérico do grupo, nunca tinha levado em consideração que eles pudessem saber alguma coisa sobre o mundo invisível.
- É claro.
Os olhos de Roman olhavam para mim tão fixamente que eu achei que iam lançar um raio laser através de mim. Ele sabia que eu estava armando alguma coisa. Respirei
fundo. - Você conhece algum lugar perto da praia, no oceano, que tenha pedra, cascalho, areia ou alguma coisa do tipo... branca? Que seja dotado de energia?
- Pedras brancas? - ele perguntou. Alguns segundos de silêncio. - Bem... White Rock.
- O quê?
- É essa cidade onde existe, bem, uma pedra branca gigante. Uma espécie de coisa glacial, mas os índios achavam que vinha dos deuses, uma coisa assim. Sempre foi
um lugar sagrado.
- Pedra branca - repeti impassível.
- É, sim.
Não, não. Não podia ser tão óbvio. Equilibrando o telefone com uma mão abri o atlas com a outra e pulei para a seção da Colúmbia Britânica. Ali estava, na costa,
pouco depois da fronteira americana.
White Rock.
- Filhos da mãe - eu disse.
Capítulo 24
Depois de assegurar a Evan que não era ele quem eu tinha chamado de filho da mãe, desliguei o telefone e me virei para Roman.
- O objeto não está por aqui. Está ao norte, no Canadá.
Os olhos de Roman acompanharam meu dedo pelo mapa até White Rock. - Certo, você marcou pontos com o nome sugestivo, mas isso não significa necessariamente alguma
coisa.
- Sim! Significa tudo. O Exército vem sendo uma distração desde o início, quando o lacre foi criado, quando Ephraim foi falar com Cedric... e quando Jerome foi conjurado.
Eles fizeram a encenação no Space Needle... aqui, mas eles na verdade não fizeram nada antes de Jerome ser apanhado. Logo depois que ele foi apanhado, eles agiram
para atrair a atenção de Cedric para cá, para fora do território dele.
Quando Roman começou a perceber, sua expressão se iluminou. Sociopata ou não, ele sempre foi esperto. - Porque Grace, então, escondeu o objeto no território de Cedric.
Concordei com a cabeça. - Ele está lá. Ela precisava tirar Cedric de lá, para que ele não percebesse a presença do objeto antes de estar escondido. Acho que Cedric
está aqui por causa do assunto com Ephraim, mas se eu ligar agora e contar para ele...
- Não - Roman respondeu rapidamente. - Não podemos contar para ninguém...
- Qual é o seu problema? - eu exclamei, levantando-me. - O relógio não para. Pode ser que não tenhamos tempo de fazer um passeio de carro antes que a estase termine.
- Nós precisamos correr esse risco, meu bem. - Ele também se levantou. - Pegue as chaves. Vamos.
Fui em direção a meu quarto, mas me lembrei de uma coisa. - Droga. Eu disse para o Seth que talvez o levasse comigo. Tarde demais agora.
Roman pensou. - Não, leve-o.
- Por quê? - perguntei surpresa.
- Eu vou ficar invisível. Não sei se alguém vai notar que você está saindo, mas, se você estiver sendo seguida, é melhor que fiquem achando que você está dando uma
escapada romântica. Mesmo disfarçado, não quero que ninguém no poder veja minha cara ainda.
Isso me colocou em uma situação estranha. O raciocínio de Roman ao longo de todo o processo ia ficando cada vez mais bizarro. Havia ainda a discussão da noite anterior,
sobre se eu deveria deixar o encontro no terraço iluminar meu último lindo momento com Seth ou se eu deveria tentar prolongá-lo por mais algum tempo. Deixar que
acabasse na noite passada teria sido a coisa mais poética a fazer... mas eu não era tão elevada assim. Liguei para ele quando estava saindo e pouco depois passei
para apanhá-lo.
Ele se sentou no banco da frente, enquanto Roman nos acompanhava invisível no banco de trás, o que era uma situação bem estranha, para dizer o mínimo. Felizmente,
minha conversa com Seth não teve nada de baboso ou romântico. Ele notou a urgência crepitando a meu redor e fez perguntas sobre os motivos para minha viagem. Respondi
com a maior precisão possível, o tempo todo tentando respeitar o limite de velocidade. Não podia arriscar um atraso se tomasse uma multa - nem contar com o charme
sobrenatural para me livrar dela.
Levei pouco menos de duas horas para chegar lá. Nós esquecemos o atlas em casa sem querer, mas tínhamos praticamente memorizado o caminho que, de qualquer forma,
era seguir sempre em frente. Quando estávamos quase chegando ao parque onde a referida pedra estava, tive o bom-senso de ligar para Peter e falar para ele não sair
de casa.
- Você acha que sou idiota? - ele respondeu. - Sei tão bem quanto você que a estase vai terminar a qualquer momento.
- Sim - concordei. - Mas talvez não termine da forma que você está imaginando. - Nós desligamos.
- Acabou, não é? - Seth perguntou. Uma placa indicava o estacionamento da praia e fui nessa direção.
- Sim, acho que sim. - Eu podia sentir que estava começando a entrar em pânico. - Meu Deus, estou tão... não sei o que vai acontecer... - Seth estendeu o braço e
deu um tapinha no meu ombro.
- Calma, Tétis. Isso vai terminar como tiver de ser. Faça o que for preciso e nós vamos tentar resolver tudo da melhor forma.
Estacionei o carro e olhei para ele. Tantas coisas ardiam entre nós, não sei como Roman não ficou sufocado. Seth estava certo. Era o fim e nós teríamos de enfrentá-lo
e fazer o que precisasse ser feito, por mais difícil que fosse. Essa era uma característica incrível de Seth. Ele sabia o que era o certo a fazer. Saímos do carro.
Seth e eu nos dirigimos à praia, de mãos dadas. A maré estava baixa e o recuo da água revelava uma paisagem com quase a mesma quantidade de cascalho e areia. Saindo
de perto do mar, o solo se tornava verde, havia grama - provavelmente por obra de equipes de manutenção do parque. A Baía de Semiahmoo em si se abria em uma imensidão
de mar escuro agitado, que em um dia ensolarado deveria ser azul e muito bonito. Nuvens acinzentadas carregadas encobriam a maior parte da faixa de terra que circundava
as partes mais distantes da baía, e achei que tinha ouvido um barulho de trovão distante, uma coisa não muito comum na amena região do Pacífico Noroeste. Eu esperava
que encontrássemos o que precisávamos logo, porque parecia que uma tempestade estava prestes a se revelar. Ah, metáfora.
Seth interrompeu meus devaneios. - Aquilo - disse ele - é uma pedra branca.
Parei, desviando minha atenção da paisagem como um todo para o caminho à minha frente. Ali, a uns vinte e cinco metros de distância, havia uma pedra branca - uma
enorme pedra branca. Pela aparência dela, Evan não estava exagerando quando tinha dito que deveria pesar umas quinhentas toneladas.
- Estou me sentindo um pouco idiota desperdiçando meu tempo com um punhado de cascalho branco - refleti, tirando o cabelo dos olhos. O vento imediatamente o empurrou
com força de volta.
- Era tão óbvio... mas, ao mesmo tempo, nada óbvio. Vamos lá?
Eu fiz que sim com a cabeça e nós nos aproximamos da pedra, nossos passos estavam repletos de ansiedade e apreensão. Depois de todo aquele tempo e todos os esforços
em vão, não dava para acreditar que tínhamos conseguido. Alguma coisa ia acontecer. Alguma coisa precisava acontecer.
- Uau - murmurei, olhando para o topo da rocha quando chegamos a ela. Era tão imensa que nos cobria com sua sombra. - Dá para entender por que as pessoas achavam
que ela tinha vindo dos deuses.
Seth olhava para baixo. - Infelizmente, precisamos olhar para coisas menos imponentes. Como vamos encontrar o que estamos procurando? Cavar aleatoriamente?
Se eu e Seth estivéssemos sozinhos, esse teria sido o método. Agora, eu esperava que Roman desse alguma indicação sobre onde o objeto estava - se é que estava lá.
Uma pequena parte de mim entrou em pânico com a possibilidade de esse ter sido o maior desvio de todos.
Eexaminei o chão em volta da pedra, mas nada evidenciava escavação recente. Em uma praia como aquela, o chão era todo irregular. - Algo do gênero - eu disse, esperando
que Roman aproveitasse oportunidade.
Seth tinha soltado a minha mão quando chegamos à pedra, mas ele a pegou de novo e me puxou para ele. - Georgina...
Eu tirei os olhos do chão e olhei para ele. Minha adrenalina estava a toda, pronta para a conclusão dessa aventura... no entanto, meu coração estava pesaroso, sabendo
quais seriam as consequências. Eu apertei a mão de Seth e me aproximei, apoiando minha cabeça no peito dele. O coração dele batia com força lá dentro. Sem dúvida,
ele também tinha sentimentos confusos.
- Eu sei - eu disse. - Estou me sentindo do mesmo jeito.
Ele me segurou firme, beijou minha testa. - Quando encontrarmos Jerome, quando você libertá-lo... Vai ser rápido, não vai?
- Sim, não sei quanto tempo vai demorar, mas... Bem, acho que vai ser bem rápido. Foi rápido quando ele foi aprisionado.
- Então é isso.
- É isso.
Nós ficamos lá, os dois tristes e confusos. Eu achava que nada poderia ser pior do que Seth ter forçado o rompimento no último mês de dezembro. Eu compreendia agora
que ele tinha feito isso porque achava que seria melhor para todos, mas ainda doía. E esse... Esse era um sofrimento diferente. Quando Seth e eu nos beijamos pela
primeira vez no apartamento, eu achava que seria como umas férias para mim, assim como estava sendo para os vampiros. Seth seria meu sol, algo com que eu poderia
flertar brevemente antes de retornar para minha imortalidade sombria. Eu poderia levar as lembranças comigo, e isso bastaria.
Só que, agora, ali, com ele, percebi que não seria o bastante. Agora só seria mais doloroso ainda, sabendo exatamente o que eu jamais poderia ter de novo. Eu nunca
mais faria amor com Seth, nunca mais teria os momentos íntimos de carinho e compreensão. Ele não seria mais meu. Ele nunca mais poderia ser meu.
- Não sei o que fazer - Seth disse, beijando minha testa.
- O que você está querendo dizer? Nós não temos escolha.
- Nós sempre temos escolha, Tétis. Depois disso, mesmo quando você for um súcubo de novo... Não sei. Eu queria tanto poder proteger você de todos os males do mundo.
Ainda quero. Mas, depois de passar a última semana com você, estou começando a me perguntar se...
- Não acredito no que estou vendo.
Seth e eu olhamos para cima surpresos. Eu podia esperar que Roman viesse interromper nosso interlúdio romântico ou talvez até Grace, para defender sua recompensa.
O que eu não esperava, porém, era Dante.
Não sabia de onde ele tinha aparecido. Ele veio dando a volta na pedra como se tivesse ficado nos observando de trás dela, mas presumi que ele tinha apenas andado
em nossa direção sem que o percebêssemos em nosso momento de angústia amorosa. Ele irradiava raiva e os olhos dele estavam tão sombrios e tempestuosos quanto o mar
do outro lado. E, logo que o vi, não precisei fazer um extenso interrogatório, não precisei chegar aos poucos a uma revelação. Não precisava perguntar o que ele
estava fazendo lá, porque, de repente, eu já sabia.
- Você é o conjurador - eu disse.
- É claro. - Ele usou um tom de desdém quando disse isso, como se fosse um insulto alguma outra pessoa ter exercido esse papel. - Quem mais? Eu não estava brincando
quando disse que eu era o melhor da região. Eu não consigo acreditar de verdade que você nunca nem pensou em mim. Não, esqueça isso. É claro que acredito. Por mais
infeliz e cansada que você possa estar, você ainda tem esse seu lado Pollyana que quer sempre só ver o lado bom das pessoas.
- Você fala como se isso fosse uma coisa ruim - eu disse, sentindo que minha raiva crescia. Ter sido enganada esse tempo todo já era ruim. Mas ser enganada pelo
meu próprio namorado? Inaceitável. Apesar disso... ele tinha razão. Eu tinha sido burra quando não pensei nele, mas, mesmo assim, eu não podia acreditar que ele
tivesse me sujeitado a todo esse tormento.
- É uma coisa ruim. Eu esperava poder libertar você disso, mas acho que não deu certo. - Ele olhou rapidamente para a cara de Seth e depois de volta para a minha.
- É claro que eu não posso falar em ingenuidade, visto que você estava me passando a perna o tempo todo. Ou melhor, passando suas pernas nas dele.
Eu não tinha nenhuma resposta. Não dava nem para dizer “não é o que você está pensando” porque... bem... era exatamente o que ele estava pensando. Independentemente
do papel dele na conjuração de Jerome, o fato continuava a ser que eu tinha traído Dante e havia sido apanhada em flagrante.
- Desculpe - eu disse de forma pouco convincente, minha mão ainda apertando a de Seth. Ele tinha dado um passo à frente. Ele não estava bloqueando Dante, mas era
com certeza um posicionamento defensivo.
- Sim, sim, sei. - Dante suspirou, exaltado. - Droga, Georgina. Qual é o seu problema? Eu nunca dei a mínima para seu trabalho. Eu estava tentando proporcionar uma
vida boa para nós. Apesar de tudo... você ainda voltou para ele. No momento em que você pôde transar com ele sem feri-lo, você foi correndo.
- Tentando proporcionar uma vida boa... É por isso que você fez isso tudo? - Eu me lembrei dos comentários de Greg sobre como qualquer um que tivesse ajudado um
demônio nesse episódio estaria sendo recompensado com prostitutas e tevês. No caso de Dante, tinha sido uma coisa mais básica. Ele simplesmente tinha sido pago em
dinheiro, o suficiente para me comprar joias e flores e começar a falar em morar comigo.
- Súcubo, o que mais eu poderia ter feito? - Ele ainda falava comigo em tom de desprezo, mas eu podia ver a angústia em estado bruto nas feições dele. Fiquei com
o coração partido. - Você pode escravizar reis e astros do rock. Você não ia continuar comigo para sempre, não para onde eu estava indo. As leituras de mãos mal
pagam as contas e a possibilidade de meus feitiços realmente darem certo já ficou para trás.
- Nada disso importava - eu disse com determinação. - Eu teria ficado... - No entanto, enquanto eu falava, reconheci as contradições. Assim como Dante, quando fez
um gesto em direção a Seth, que até agora não tinha falado nada. Seth parecia estar prestando atenção em alguma coisa.
Dante revirou os olhos. - Sim. É claro.
- Eu nunca quis isso... Nunca quis que você fizesse literalmente um pacto com o demônio.
- O que você esperava de mim? Você sabe o que eu sou. Você se envolveu comigo porque se sentiu atraída por meu lado obscuro. Esse acordo era minha melhor oportunidade,
a melhor recompensa que eu conseguiria pelo meu poder. Ela precisava do melhor e podia pagar pelos meus serviços.
- Ela... Grace.
Dante deu um sorriso perverso. - Eu devia ter imaginado que você tinha descoberto essa parte também e estava guardando segredo. Mesmo quando você confiava em mim...
você não confiou em mim de verdade. Talvez você não seja tão tonta quanto eu imaginava. Quando cheguei a sua casa e achei o atlas... bem, nessa hora eu percebi que
havia subestimado você. Você tem sorte por Grace ter me mandado para cá e não ter vindo ela mesma. Talvez a gente consiga tirar você daqui viva no fim das contas.
Seth e eu ainda estávamos muito próximos, o suficiente para, quando ele falou no meu ouvido, mal ter precisado subir o volume da voz. - O relógio - ele sussurrou.
- Está no relógio.
Não tive tempo de pensar, porque, de repente, Seth me soltou e avançou contra Dante. - Deixe-a em paz! Você a enganou. Ela enganou você. Vocês estão quites, deixe-nos
ir embora. - Eu fiquei olhando. A agressividade dele não era nada característica.
- Quites? - Dante exclamou. - Nós não estamos quites. Eu fiz o que fiz porque eu a amo.
A voz de Seth estava inabalada, mas, apesar disso, dura. - Ama? Ela se envolveu na confusão com o culto por sua culpa. Ela quase foi morta por um demônio por sua
culpa.
Dante lançou um olhar fulminante e deu um passo em direção a Seth. - Não era para ter acontecido isso. Jerome veio com a história do Canadá de surpresa. Não era
para ela ter ficado aprisionada no meio de tudo. O plano era que ela esperasse a estase como todo mundo e depois voltasse ao normal quando Grace estivesse no poder.
Grace cometeu um erro quando contou para Nanette que ela estava se intrometendo, mas depois Grace se certificou de que Nanette não mexeria com ela de novo. Eu me
empenhei para que Georgina ficasse segura. - Cedric tinha falado a verdade. Ele realmente não havia contado sobre minhas suposições para Nanette; fora Grace.
- É, você se saiu muito bem mesmo.
- Não foi culpa minha! - Dante gritou. - Você pode falar o que quiser sobre mim, meus motivos foram nobres. Ao passo que os dela - ele apontou para mim - foram coerentes
com a vadia egoísta que ela sempre foi.
Então... o inesperado aconteceu de verdade. Seth se lançou para a frente e deu um soco em Dante. Eu não sabia o que era mais surpreendente, Seth estar sendo tão
agressivo ou ele saber dar um soco certeiro de verdade. Ele uma vez tinha investido contra um ladrão e, apesar de ter sido maravilhosamente corajoso, não fora nem
tão preciso nem tão coordenado. Eu não tinha a menor ideia de onde ele havia aprendido aquilo. Dante ficou tão espantado quanto eu. Ele cambaleou para trás por causa
do golpe e precisou de um tempo para se recuperar. Então, mostrando os dentes, ele se lançou na direção de Seth. Seth só evitou o golpe parcialmente - de propósito,
pareceu - e caiu para trás com o impacto, o que fez com que os dois tombassem no chão.
Eles se engalfinharam um pouco, tentando ganhar vantagem e acertar golpes, e por um instante eu estava atordoada demais para reagir. Então, finalmente, compreendi
as palavras de Seth. O relógio. Corri até eles, tomando cuidado para não ser atingida por algum braço ou uma perna. Seth me viu de relance, tentou agarrar o pulso
de Dante e lançá-lo na minha direção. Dante, porém, continuou a se debater - tive a impressão de que ele já tinha se envolvido em brigas ao longo da vida mais vezes
do que Seth - e reagiu com mais força quando percebeu o que estava acontecendo.
O relógio. Fazia sentido, verdade. Grace estava usando a parte dela do lacre em volta do pescoço. Dante manteria a dele em segurança também e por que não escondê-la
no único acessório que ele - como ele mesmo já tinha admitido - usaria?
Por fim, Seth conseguiu imobilizar o pulso de Dante por tempo suficiente para que eu conseguisse enfiar o dedo por baixo da pulseira. Dei um tranco forte, usando
mais força do que eu imaginava, e a pulseira quebrou. O relógio saiu na minha mão e recuei rapidamente enquanto Dante gritava enfurecido. Seth relaxou um pouco a
imobilização de Dante, porém, agora já havíamos conseguido o que queríamos. Tão logo conseguiu se libertar, Dante veio atrás de mim, e Seth se jogou contra ele para
segurá-lo.
Continuei a ir para trás, segurando com força o relógio na mão, até bater em alguma coisa - ou melhor, em alguém. Eu me virei e dei de cara com os olhos frios e
duros de Grace. Quando Dante apareceu, ele tinha dado a impressão de que tinha saído do nada, mas eu sabia que, com Grace, não era só impressão. Gelei, e atrás de
mim o barulho de luta desapareceu. Acho que eles estavam tão surpresos por vê-la quanto eu - ou talvez não. Dante já havia falado que tinha contado a Grace que nós
estávamos lá.
- Georgina - ela disse. - Você é uma ótima funcionária... mas, apesar disso, também é uma péssima funcionária. - A voz dela era impassível, sem qualquer emoção,
como sempre, porém, diferentemente de antes, agora eu tinha a sensação de que ela realmente estava planejando me matar.
- Por quê? - perguntei, tentando ganhar tempo. - Você tinha um bom emprego com Jerome.
- A questão é justamente a palavra com. Eu não ia passar o resto da minha existência como assistente de alguém, e menos ainda como coassistente.
- Ela está com o lacre - ouvi Dante dizer atrás de mim.
- Eu sei - Grace respondeu. - Você deu para ela.
- Ei, eu...
Ela levantou a mão e Dante gritou. Virei a cabeça e vi que ele se contorcia de dor, como se estivesse suspenso por cordas que ela controlava. Depois de suportar
a ira de Nanette, eu sabia como tortura demoníaca era terrivelmente dolorosa e não conseguiria aguentar ver alguém passando por aquilo. Seth olhou para mim e para
Dante, sem saber o que fazer. Troca de socos podia ser uma coisa a que ele não estava habituado, mas era algo que podia encarar. Mas aquilo? Era totalmente diferente.
- Solte-o! - eu disse. Apesar de ser uma idiotice, levantei os braços e tentei chacoalhá-la, mas eu teria tido o mesmo sucesso se tivesse tentado balançar a imensa
pedra glacial atrás dela.
- Você não deveria ter confiado em uma pessoa que estava perto de...
As palavras dela foram interrompidas quando ela, de repente, saiu voando pelo ar, batendo contra a pedra. Parecia que o imposto causara mais surpresa do que dor
e, felizmente, ela parou de torturar Dante. Ela olhou em volta, com os olhos arregalados e confusa.
- O quê...?
Roman se materializou e se moveu na direção dela, feroz e assustador. Finalmente, eu pensei. Sem os meus sentidos imortais, eu não podia sentir a aura dele, ou a
assinatura, mas algo me dizia que ele estava usando uma porção considerável de poder conforme avançava. Fazer isso era arriscado. Poderia revelar a identidade dele
para qualquer imortal que estivesse por perto, apesar de que, com todo o drama em Seattle, provavelmente não havia nenhum por perto para senti-lo. Cedric com certeza
não estava lá.
Grace respirou fundo. - Você... Eu me lembro de sua assinatura.
Isso foi o único alerta que ela deu antes de lançar uma faixa de fogo pelas mãos em direção a Roman. Ele não se mexeu, nem se alterou, mas o fogo bateu em uma parede
invisível. Ele formou um arco em volta dele que o deixava ileso.
- Georgina - ele disse, sem tirar os olhos de Grace. - O objeto está do lado norte da base da pedra.
Não perdi tempo e corri para onde ele havia indicado. Pude ouvir Grace furiosa e vi com o canto dos olhos que ela vinha em minha direção. Mas, então, a ira se transformou
em dor. Roman a atingiu com alguma coisa e ela se voltou para ele. Eu só olhava para o chão pedregoso quando comecei a cavar com as mãos. Na pressa, mais uma vez
tinha esquecido a pá. Seth em um instante apareceu do meu lado, revolvendo a superfície arenosa comigo. Gotas de chuva pesadas começaram a cair sobre nós, mas eu
não tinha tempo de prestar atenção.
- Quem é mais forte? - ele perguntou enquanto o barulho da luta retumbava atrás de nós. Se a aparição de Roman o havia surpreendido, no momento ele estava ignorando
o fato.
- Não sei - eu disse. O chão estava ficando mais difícil de cavar. Estava molhado e compactado por causa de uma chuva recente, e eu podia sentir que entrava embaixo
das minhas unhas. - Teoricamente, Roman pode ser tão forte quanto Jerome. Não tenho certeza, ele pode estar se contendo. Quanto mais poder ele usar, mais ele vai
alertar os outros de que está aqui.
Meus dedos bateram em alguma coisa dura, Seth e eu cavamos mais, tentando desenterrá-la. Era uma caixa de madeira, uma velha caixa de charutos, pela aparência. Eu
consegui agarrá-la e comecei a puxá-la para fora.
- Aqui - eu disse, fazendo uma pausa. Joguei minha bolsa para ele e imediatamente voltei a cavar. - Pegue o meu telefone. Olhe nos números e você vai encontrar Mei.
Ligue para ela. Diga a ela onde estamos. - A caixa de charutos saiu do chão.
- Você quer que eu ligue para um demônio? - ele perguntou chocado.
- Nós precisamos dela. Diga a ela onde nós estamos. Depois, vá embora daqui, pegue meu carro e vá.
- Georgina...
- Vá embora! - gritei.
Seth hesitou por um segundo, depois se levantou e correu com minha bolsa, mantendo-se bem longe do combate. Eu não sabia se Mei reagiria a um chamado de um mortal.
Eu não sabia se ela atenderia, nem se ela era confiável. Eu estava confiando no meu instinto - e na esperança ingênua de todos terem um lado bom - de que ela e Grace
não estavam juntas nisso.
O grito de Roman me fez olhar rapidamente para cima. Ele estava deitado de costas e Grace avançava. Algo parecido com um raio estalou na direção dele, mas, exatamente
como acontecera com o fogo, ele se partiu para longe. No entanto, chegou muito mais perto do que antes. Ele estava enfraquecendo.
Desesperada, raspei a areia da caixa de charutos. Ela parecia enganosamente fácil de abrir, mas quando tentei levantar a tampa nada aconteceu. Ela nem se mexia,
e eu sabia que nada que eu pudesse tentar faria isso acontecer. Virando-me para o relógio que eu tinha arrancado de Dante, examinei-o. O mostrador era marrom-claro
marmorizado - poderia facilmente se confundir com o lacre. Era um lugar engenhoso para escondê-lo. Bati com o relógio na caixa de charuto e, na terceira tentativa,
o vidro quebrou. Arranquei os pedaços e tentei puxar o mostrador para fora. Ele estava embutido com firmeza. Pegando um caco da superfície do relógio, passei-o por
baixo da borda do mostrador e depois de alguns momentos de pressão tudo se desmontou e... o lacre não estava lá.
Fiquei olhando. Engrenagens, ponteiros, pedaços de vidro, e o mostrador... mas nada de lacre. Seth tinha certeza. Eu tinha certeza. Dante não tinha nenhum outro
lugar onde pudesse esconder o lacre. Carter havia dito que seria possível o conjurador ter escondido o lacre em algum outro lugar. Se Dante tinha feito isso, estávamos
perdidos.
- Put...
Interrompi o palavrão e olhei para meu pulso, para o relógio reluzente piscando para mim. Não podia ser tão óbvio. Dante tinha me dado o relógio antes da conjuração
de Jerome e eu o havia perdido bem perto da época da conjuração. Eu tinha achado que a culpa era minha, mas seria possível que Dante tivesse levado o relógio embora
por um breve período de tempo e depois o devolvido?
Arranquei o relógio do meu pulso, não hesitei em dar a ele o mesmo tratamento que dera ao de Dante. Destruir aquela bela obra em ouro e vidro estava me matando,
mas, quando o mostrador com as filigranas saltou para fora, encontrei o pedaço de quartzo fumê que completava o de Grace. Dante merecia mais consideração. Ele tinha
deixado o lacre por perto e escondido em um lugar onde ninguém que estivesse procurando por ele - quer dizer, eu - pensaria em procurar.
O lacre, porém, era inútil sem a outra metade. Olhando para cima, vi que Grace estava com a mão em volta do pescoço de Roman e o levantava do chão. Ele estava completamente
sem energia. Eu não entendi direito, mas alguma coisa me dizia que ele tinha parado de usar o poder dele. Por quê? Era suicídio. Eu queria gritar, correr para salvá-lo,
mas eu não podia fazer nada. Ela estava de costas para mim, mas eu podia imaginar os olhos faiscantes dela.
- Quando eu matar você - ela sibilou -, vou garantir o meu cargo.
De repente, ela virou a cabeça na minha direção. Por um instante, achei que tivesse chamado a atenção dela, mas ela não estava olhando para mim. Olhava para trás
de mim, depois de perceber que eu não poderia sentir a assinatura de outro imortal superior. Mei estava lá, severa, rígida. Eu sempre achara que a cara dela parecia
de pedra, mas o olhar que ela tinha era realmente assustador, eu me encolhi.
Ela e Grace trocaram olhares e, segundos depois, Grace jogou Roman para longe. Ele aterrissou com uma pancada forte e ficou imóvel por um momento. Então, levantou
a cabeça e começou a rastejar devagar pela areia na minha direção, cada movimento parecia causar muita dor.
- Você passou muito dos limites - Mei disse.
- Eu melhorei minha situação - Grace disse calmamente. - E posso melhorar a sua.
- Não preciso de sua ajuda, principalmente depois de revelar que era você quem estava por trás disso tudo. Os outros vão me recompensar. Jerome vai me recompensar.
- Você é uma idiota! Você quer passar o resto da eternidade trabalhando para outra pessoa?
- Minha hora vai chegar - Mei respondeu sem se alterar. - E prefiro trabalhar para ele a trabalhar para você.
E, sem mais conversa, elas se atracaram. Foi uma luta bizarra. Metade parecia bastante humana, com golpes físicos e corpo a corpo. Ao mesmo tempo, havia um indiscutível
componente sobrenatural, elas usavam o mesmo tipo de elementos e golpes invisíveis que Grace e Roman haviam empregado. Chovia muito, as duas estavam encharcadas,
mas elas prestavam muita atenção uma na outra.
Roman ainda rastejava na minha direção. Segurando bem o lacre e a caixa, fui me movendo hesitante para encontrá-lo no meio do caminho.
- Você pode abrir? - perguntei, entregando a caixa para ele.
A respiração dele estava ofegante e difícil, mas ele pegou a caixa, como eu havia feito, e tentou levantar a tampa. Os dedos dele agarraram a madeira e vi o esforço
que ele fazia, tanto físico quanto mágico. - Não. Não herdei esse poder imortal superior.
Olhei para as demônias. Havia um leve brilho em volta das duas. Conforme a batalha ia se intensificando, elas corriam o risco de assumir a verdadeira forma imortal
delas, o que não seria bom que eu visse. - Quem é mais forte? - perguntei.
- Elas estão empatadas - Roman disse, seguindo meu olhar. - Mas Grace está um pouco cansada.
Esperei que fosse o suficiente. Abraçando a caixa contra o meu peito, olhei para as duas lutando, preparada para desviar o olhar se elas se transformassem totalmente.
Eu sempre achara que elas tinham uma beleza dura, mas, nesse momento, era só dureza e nada de beleza, e não era difícil ver, sob a fachada humana delas, que elas
realmente eram do inferno. Também entendi o que Roman queria dizer com empatadas. Cada vez que uma conseguia alguma vantagem, a outra recuperava.
Até que, justamente quando parecia que Grace estava levando a melhor, Mei de repente veio cheia de força e um ataque de golpes invisíveis pegou Grace desprevenida,
fazendo-a tropeçar para trás. Com uma velocidade sobre-humana Mei foi para a frente e arrancou o colar do pescoço de Grace. Igualmente rápida, ela o jogou na minha
direção e depois se virou para bloquear Grace, que aparentemente tinha percebido que o fim se aproximava.
Eu tremia ao pegar o colar e puxei a peça do lacre em forma de lua crescente. Coloquei-a ao lado da metade de Dante, sem saber bem o que fazer, mas, logo que elas
se aproximaram, se fundiram em um único disco.
- Coloque-o sobre a caixa. Rápido.
Pressionei o lacre contra a caixa e, de novo, parecia que ele sabia o que fazer; incrustou-se na superfície de madeira, quase como se ela tivesse derretido. Com
isso, eu não tinha outra opção. Abri a tampa.
O poder que irrompeu dela jogou Roman e eu para trás e, ao mesmo tempo, senti um tipo diferente de força atingir meu corpo. As correntes que ligavam minha alma ao
inferno se restabeleceram. Minha essência imortal me percorreu e, com ela, senti todas as outras habilidades que o inferno havia me concedido voltar. Eu me senti
forte. Recarregada. Invencível. Meus sentidos se reconectaram ao mundo invisível e uma explosão de auras imortais preencheu o ar.
E lá, na chuva, luz e cores lentamente se aglutinaram fora da caixa em uma forma masculina. Poucos minutos depois, ela tomou uma aparência humana, semelhante a de
John Cusack. Grace e Mei interromperam os ataques e ficaram olhando.
Com cuidado e hesitante, Mei deu alguns passos para trás. Jerome não estava prestando atenção nela. Ele focava Grace.
- Cara - eu disse baixinho. - Você está totalmente ferrada.
Capítulo 25
É preciso dizer a favor de Grace que ela não se acovardou. Ela ficou firme, recuperando a compostura quando enfrentou o olhar de Jerome. De fato, ela se recuperou
o suficiente para se lembrar de evitar a chuva. As gotas se separavam ao redor dela, assim como o fogo havia se separado ao redor de Roman. O terninho e o cabelo
estavam novamente secos, alinhados e perfeitos.
- Você teria feito a mesma coisa - ela disse para Jerome.
Eu não podia ver a cara de Jerome quando ele falou. - Eu não teria sido apanhado. Você foi. Você falhou.
- Você deveria estar impressionado com minha engenhosidade. - Ela cruzou os braços, de uma forma quase desafiadora. - Sou útil para você.
- Você é insignificante. Eu poderia acabar com você, com sua existência, e ninguém ia nem pensar duas vezes sobre o assunto.
Eu não tinha tanta certeza. Os demônios se atacavam o tempo todo, mas isso não queria dizer que o inferno aprovava. Gerava papelada, e quem fosse apanhado era enviado
para o equivalente a uma prisão no inferno. Grace pelo visto também duvidava de que seria tão fácil para Jerome matá-la.
- Eu não acho. No momento, com sorte, você ainda vai ter o cargo quando voltar. Você foi conjurado. - Ela olhou rapidamente para mim e Roman, os dois encolhidos
juntos na areia. - Seu território está um caos. Eles vão mandar você para um cargo administrativo - ou fazer com que você vire subordinado de alguém. Bela queda,
para quem chegou à posição de arquidemônio.
- Provavelmente, não - Mei disse, manifestando-se. - Não se nossa versão for convincente. Jerome tem contatos poderosos. Eu também. E Cedric vai defendê-lo.
A disposição dela para ajudar e a afirmação sobre Cedric me surpreenderam, mas, por outro lado, podia ser uma volta à filosofia do conheça seu inimigo. Grace lançou
um olhar fulminante para a ex-parceira.
- Você é a mais idiota de todos.
- Chega - Jerome cortou. - Já tivemos demonstrações suficientes de vilania por aqui. Acabou o assunto. - Eu não precisava ver a cara dele para saber que ele estava
sorrindo para Grace - mas eu desconfiava que não devia ser um sorriso muito agradável. - A gente se vê no inferno.
Ele estalou os dedos e, de repente, uma coisa parecida com gelo negro saiu do chão e foi subindo pelo corpo de Grace. Ela mal teve tempo de gritar, porque foi coberta
muito rapidamente e depois ficou congelada como estava, totalmente imóvel. Ela havia se transformado em uma estátua preta espinhosa.
- O que é isso? - sussurrei.
- Uma espécie de estase demoníaca - Roman murmurou de volta. - Meio que uma prisão. Ele é dez vezes mais poderoso do que ela... É uma coisa fácil para ele.
Eu me perguntei então quanto Roman era poderoso de verdade. Ele parecia empatar com Grace, mas eu ainda não tinha certeza de que ele estava se controlando, ou não,
por medo de ser descoberto. No momento, a assinatura dele estava desligada, ele parecia um humano, para todos os efeitos. Ele havia feito isso antes de Mei se materializar
totalmente.
- Você precisa ir embora daqui - eu disse para ele.
- Espere - ele respondeu.
Na verdade, Roman aparentemente era a última das preocupações de Jerome, enquanto o arquidemônio examinava a forma congelada de Grace. A derrota dela havia sido
anticlimática. Nada de briga flamejante como as que os outros tinham se envolvido, supus que para alguém que possuía o tipo de poder de Jerome, não era necessário.
E também tive a impressão de que Grace estava certa quanto a uma coisa. Apesar de ele ter contatos, era provável que Jerome não pudesse se arriscar a fazer nada
precipitado se quisesse recuperar o controle em Seattle. Ele queria torturá-la e fazê-la desaparecer da face da Terra, mas prendê-la e fazê-la enfrentar a justiça
infernal - por pior que ela fosse - ia ser melhor para ele. O inferno teria mais boa vontade com ele se ele seguisse as regras.
Ele se virou e encarou Mei, que estava de lado. Foi a primeira vez que vi meu chefe direito depois da volta. A expressão dele era inabalada e fria, mas eu estava
bem certa de que podia ver a fúria pegando fogo por trás dos olhos dele. Ser conjurado era a pior coisa que podia acontecer a um demônio.
- Em certa medida, ela estava correta - ele disse para Mei. - Poderia ter sido vantajoso se voltar contra mim.
- E ser subordinada dela? - Mei balançou a cabeça. Como Grace, ela havia se recomposto. - Não. Eu não vou servir você para sempre, acredite, mas, no momento, sei
qual é a melhor atitude a tomar. Vou apostar em você e segui-lo.
- Sua lealdade é apreciada. - Mei acenou de leve com a cabeça em reconhecimento. Diferentemente do caso de Kristin e Cedric, em que ela servia a ele tanto por amor
como por obrigação, a lealdade de Mei era só pragmatismo e um cálculo do que seria mais vantajoso para ela. Jerome sabia disso e aceitou. - E vai ser recompensada.
- Sei que vai - ela disse calmamente. - E eu não vou ter nenhum cotenente quando voltar?
- Não. Não, se depender de mim.
E, pela primeira vez desde que eu a conheci, Mei sorriu.
Depois, os olhos dela espiaram a estátua de Grace. - Você quer que eu...?
- Não - Jerome disse, aparentemente se lembrando de nós. - Você pode ir.
Mei não perdeu tempo. Ela desapareceu, e Jerome se virou, olhando para mim e para Roman. Ele olhou primeiro para mim.
- Então você está aqui, Georgie. Por que não estou surpreso?
- Porque eu fui a única que se preocupou em trazer você de volta e não tive preguiça de fazer alguma coisa.
A sombra de um sorriso passou pelos lábios dele. - Certo. Você também vai ser recompensada.
Eu queria dizer a ele que não queria recompensa, mas Jerome já havia voltado a atenção para Roman. O sorriso desapareceu. - Você, porém, precisa ser muito cara de
pau para aparecer por aqui de novo.
- Deve ser mal de família - Roman disse. Apesar de estar acabado, ele não tinha perdido o humor.
- A natureza suicida não é. Você sabe que vai ser destruído em segundos, não sabe?
- Sim, sim - Roman disse. - E com certeza me matar vai reforçar sua fama de valentão. Mas a verdade é que ajudei a salvar você. Você não estaria aqui se não fosse
por mim.
Eu não achava que ele tinha se empenhado tanto quanto eu naquilo tudo, mas ele com certeza havia facilitado as coisas. Apesar disso, mesmo se ele tivesse salvado
Jerome sozinho, não queria dizer nada. Demônios não agiam com base em sentimento de justiça, nem se sentiam obrigados a nada. Foi o que Jerome disse.
- Eu não lhe devo nada. Se você quiser arriscar sua vida, não é problema meu. Para mim, não faz diferença se você está vivo ou morto.
Roman fez força para ficar em pé. - Não é verdade, se fosse assim, você já teria me matado. Talvez você não me deva nada... mas, mesmo assim, você tem uma dívida
comigo, mesmo que não acredite em pagar dívidas... E acho que você acredita. Você não suporta saber que me deve alguma coisa.
Jerome estreitou os olhos. - O que você quer?
- Anistia.
- O quê? - eu chiei. Ninguém estava prestando atenção em mim. No que dizia respeito a eles, os dois eram as únicas pessoas do mundo, pai e filho.
- Estou cansado de fugir, cansado de me esconder. Quero um lugar para ficar. Um lugar onde possa me estabelecer por algum tempo.
- Você não precisa de mim para isso.
- Não? - Roman perguntou. - Onde quer que eu viva, mesmo com a assinatura escondida, estou sempre com medo de ser descoberto pelos imortais superiores que controlam
o lugar. Preciso sempre tomar cuidado. Quero ficar em um lugar onde possa sair sabendo que tenho pelo menos algum tipo de proteção.
- Se alguém mais quiser matar você, não vou impedir.
- Sei disso. Mas pelo menos não vou precisar me preocupar o tempo todo com a possibilidade de que você seja um deles.
Jerome ficou em silêncio, e, para meu total e absoluto espanto, percebi que ele estava pensando no assunto. Nunca teria imaginado que isso fosse possível... mas,
apesar disso, como Roman havia dito, se Jerome tivesse se decidido, ele já teria acabado com Roman.
No outono anterior, quando descobrimos que Jerome tinha nefilins gêmeos, também descobrimos que ele tivera uma esposa fazia muito tempo, uma mulher que ele amava
tanto a ponto de cair em desgraça para ficar com ela. Alguma parte desse amor permanecera? Ele tinha sido consumido ao longo dos milênios como uma criatura condenada?
Ele via alguma coisa dela quando olhava para Roman? Quando Jerome ajudou a caçar Roman e sua irmã gêmea, a impressão que deu foi a de que ele não se importava. Ele
até ajudara a matar Helena.
Agora, eu tinha minhas dúvidas a respeito de Jerome ser realmente tão indiferente quanto parecia, e imaginei que Roman desconfiava disso havia muito tempo. Eu sabia
que Roman odiava Jerome - provavelmente mais do que me odiava -, mas valia a pena uma aliança incômoda com Jerome para poder ter um pouco de paz? Roman tinha percebido
que tirar proveito desse relacionamento paternal poderia ser a única forma de garantir uma trégua temporária? É claro que sim. Esse era o plano dele, o tempo todo.
Vestígios do amor pela mãe de Roman... com uma pitada de obrigação. Era por isso que Roman havia ajudado a libertar Jerome - e porque não queria que eu contasse
para mais ninguém sobre minhas descobertas, percebi contrafeita. Segredo podia ser uma preocupação real, mas ele queria, sem dúvida, minimizar o envolvimento de
outros para poder ter um papel importante no resgate de Jerome e usar isso como contrapeso.
- A Mei sabe - Jerome disse. - Não tenho controle sobre o que ela vai fazer.
- Ela não sabe - Roman disse. - Eu sabia o que Georgina tinha mandado Seth fazer e parei de usar meu poder imediatamente antes de a Mei chegar. Ela não viu minha
cara da última vez, então não me reconheceu agora. Ela não sabe quem eu sou.
- Ele está certo - percebi, lembrando-me de como Grace tentara estrangulá-lo. Roman havia parado de usar seu poder gradualmente e tivera muita sorte com a sequência
dos acontecimentos.
- Mesmo se for verdade - Jerome disse, parecendo cada vez mais frustrado com essa lógica -, não tenho controle sobre o que os outros vão fazer. Os anjos serão sempre
um problema.
- Nem tanto. - A nova voz veio acompanhada pela chegada de uma aura mais do que conhecida, uma aura cristalina e fresca. Carter estava em pé perto de nós. - Seja
bem-vindo.
Jerome olhou para o anjo e, por meio segundo, ele quase pareceu satisfeito. Os dois trocaram demonstrações de apreço, talvez se comunicando por telepatia. Ou não.
Pode ser que, depois de tantos zilênios de amizade, eles não precisassem mais.
- Desconfio que você também vai defendê-lo - Jerome disse.
Carter deu de ombros e olhou para Roman. - Não sei. - Anjos tinham o instinto de caçar nefilins tanto quanto demônios. Eu achava que Carter era benevolente, mas
ele também ajudara a destruir Helena. - Ele ajudou mesmo. Talvez ele possa ficar se tiver um bom comportamento.
Era uma demonstração de como as coisas tinham virado de pernas para o ar o fato de Jerome e Carter estarem prestes a permitir que um nefilim ficasse por perto -
e eu ter sido a única a protestar.
- Vocês estão ficando loucos? - exclamei. - Vocês sabem o que ele fez! Ele matou aquelas pessoas e feriu outras. Até onde nós sabemos, ele é uma farsa. Se conseguir
voltar para Seattle, ele poderá tentar matar outros. Poderá tentar matar vocês. Poderá tentar me matar!
Todo mundo se virou para mim, um pouco surpresos com minha reação repentina. - E eu que achava que nós fôssemos parceiros - Roman refletiu.
- Faça-o se comprometer - Carter disse. - Faça-o se comprometer com um acordo.
Jerome e Roman examinaram um ao outro e eu segurei a respiração. Um acordo imortal envolvia a alma da criatura e não podia ser quebrado sem consequências muito sérias.
Eu tinha feito alguns ao longo da vida. Tudo dependia agora de Jerome, se ele estava disposto a ir contra todos os tabus imortais e deixar deliberadamente um nefilim
morar em seu território.
Finalmente, Jerome falou: - Vou deixar que você viva em meus domínios. Durante esse tempo, não vou machucar você... a não ser que você seja descoberto por mais alguém
e eu não tenha escolha. Não vou dar nenhuma garantia quanto a outros imortais que encontrem você e não vou protegê-lo se isso acontecer. Você, em troca, se compromete
a não me envolver de nenhuma forma por ter feito isso. Você deve prometer que não irá me ferir, nem a outros imortais que passem por meu território, a não ser em
autodefesa... ou com minha permissão. Você também vai prometer não ferir nenhum subordinado meu - ele olhou para mim - em nenhum lugar do mundo.
- Eu aceito - Roman disse sério.
- E... - Jerome acrescentou com uma faísca no olhar - você deve se comprometer a estar disponível se eu requisitar seus serviços de forma defensiva, secreta ou...
em condições muito raras... ofensiva.
Ali estava ele. O motivo pelo qual Jerome concordaria com uma coisa dessas. Ao oferecer refúgio a Roman, ele estava negociando um nefilim como agente secreto, uma
arma poderosa que nenhum dos inimigos dele conhecia. Eu nunca ouvira nada parecido.
- Eu aceito, com a condição de que não vou matar por ordem sua - Roman disse por fim.
Jerome pensou. - Aceito. Os termos deste acordo se extinguem se você em algum momento renunciar abertamente à minha anistia ou também se eu declarar que o acordo
não tem validade.
- Quero um limite de tempo para isso - Roman disse, perspicaz. - Qual é o prazo do meu contrato?
- Um século. Então, nós o renegociaremos.
- Então eu aceito tudo.
- E eu concordo com os mesmos termos da anistia de Jerome - Carter acrescentou. - Exceto que eu não quero que você espione ou mate para mim.
- De acordo - Roman disse.
Tudo foi muito formal, e a minha presença era completamente supérflua. Os três se deram as mãos e, quando o fizeram, a energia queimou no ar, amarrando-os a tudo
com o que tinham concordado.
- Bem - Jerome disse logo em seguida. - Agora que está feito, vou voltar para arrumar a confusão armada durante minha ausência. - Ele lançou um olhar mordaz para
Roman. - Considerando que tecnicamente você não está no meu território, aconselho você a... - Jerome parou de repente e examinou bem a praia. - E o outro conjurador?
O humano? Ele estava aqui?
Também olhei em volta. A praia estava vazia. - Foi o Dante... - eu disse devagar.
Jerome revirou os olhos. - Típico. E onde ele está agora?
- Não sei - eu disse sinceramente. - A Grace o atacou. - Eu estava com medo de que ele estivesse morto, mas pelo visto não estava. Olhando para onde ele tinha ficado
deitado, vi o que pareciam ser rastros na areia, por onde ele havia se arrastado. Decidi guardar aquilo para mim mesma.
- Ótimo - Jerome disse. Virando-se novamente para nós, ele olhou bem para mim. - Você vai manter esse acordo em segredo, Georgie. E nós vamos discutir sobre sua
recompensa outro dia.
Ele desapareceu e, com ele, a estátua de Grace. Eu não queria estar no lugar dela.
Roman, Carter e eu começamos a andar em direção ao estacionamento. Não sei quanto a eles, mas minha cabeça estava rodando com tudo o que tinha acontecido.
- Você viu o que aconteceu com Dante? - perguntei para Roman.
- Acho que eu estava meio ocupado. O que aconteceu com o Mortensen depois que ele ligou para Mei?
- Eu disse para ele ir embora e eu acho... - eu hesitei, sem entender exatamente como eu sabia, a não ser por minha compreensão da natureza de Seth. - Acho que Seth
pode tê-lo carregado na confusão. Oh, não. Ele me ouviu de verdade.
O estacionamento estava vazio. Meu carro não estava lá.
- Eles levaram meu carro - eu expliquei. Para dizer a verdade, eu não tinha achado que Seth iria embora, apesar dos meus apelos para que ele fosse.
- Nossa... - Roman disse, visivelmente satisfeito. - Seu ex-namorado ajudou a salvar o atual e depois roubou seu carro. Ou - espere - o Mortensen agora é seu namorado?
Tecnicamente ele salvou seu ex?
- Cale a boca. Não importa. Não temos como voltar.
- Você mandou que ele levasse o carro? - Carter perguntou.
- Sim. Eu mandei-o fugir para bem longe. Queria que ele ficasse a salvo e acho que ele me ouviu.
- Depende de como você define isso - Roman disse. - Ele ter voltado para ajudar o outro o colocou sob a linha de fogo de demônios. Por que ele faria isso por uma
pessoa de quem ele não gostava?
Fiquei olhando para o estacionamento vazio. - Porque é o Seth.
Carter aparentemente estava tão tranquilo quanto Dante. - Bem, ainda bem que estou aqui, não é? - Ele apoiou as mãos sobre nossos ombros e eu me preparei para o
teletransporte imortal. - Prontos para voltar?
- É melhor do que ir a pé - eu disse.
Carter fez uma pausa e olhou curioso para Roman. - Onde você vai morar?
Roman ficou pensativo por um momento. - Bem, eu soube que Georgina vai se mudar para um apartamento maior. - Ele olhou para mim e deu um dos lindos sorrisos dele.
- Você precisa de companhia?
Capítulo 26
Infelizmente, Roman não estava só brincando.
- O que você está fazendo? - exclamei quando voltamos para meu apartamento. Ele tinha se atirado no meu sofá e apanhado o controle remoto logo em seguida. Não havia
nem sinal do meu carro na rua, mas como Seth tinha voltado dirigindo, o teletransporte de Carter chegou muito mais rapidamente.
- Eu não tenho para onde ir - ele disse com delicadeza. Aubrey saiu do quarto e pulou para perto dele.
- Você acabou de conseguir anistia de um arquidemônio. Isso é uma coisa inédita para um nefilim. Você não estava querendo se estabelecer em algum lugar? Por que
você não arranja uma casa nos arredores? Vai cuidar do seu gramado?
- Ninguém quer morar lá.
Passei os dedos pelo cabelo aflita e depois imediatamente o rearrumei. Por Deus, como eu senti falta de poder me transformar. Já que eu estava condenada mesmo, era
melhor aproveitar as vantagens.
- Você não pode ficar aqui. Este lugar é muito pequeno.
- Eu não me importo de dormir no sofá.
Eu me preparei para um discurso veemente, mas, nesse momento, alguém bateu na porta. Uma parte de mim esperava que fosse Seth, apesar de ser meio impossível. Não
havia assinatura imortal, o que significava que o visitante era humano. Sim, com certeza eu estava com saudade de minhas habilidades, apesar das condições. Abri
a porta, e vi que era a Maddie.
- Oi - ela disse animada.
- Oi - eu disse; minha animação jamais poderia se igualar à dela. - Entre.
Ela entrou e depois hesitou quando viu Roman. - Oh, desculpe. Eu não queria atrapalhar...
Roman levantou-se rapidamente do sofá. - Não, não. Sou apenas um velho amigo. Roman. - Ele estendeu a mão. Ela deu um jeito nos papéis que estava segurando e eles
se deram um aperto de mãos. O sorriso dela retornou.
- Sou Maddie. Prazer em conhecê-lo. - Ela se virou para mim. - Você tem um segundo? Eu estava indo para o trabalho e queria mostrar uma coisa para você.
Ela me entregou os papéis. Eram informações mais completas sobre o novo condomínio em Alki Beach. Havia listas de preços detalhadas, assim como fotos de todos os
cômodos de uma unidade específica. Ela ainda não estava terminada. O chão era só a base, e as divisórias não estavam pintadas. Apesar disso, as fotos eram claras
e davam boa ideia da disposição espaçosa dos cômodos. Uma foto mostrava o terraço, que se abria para uma vista de tirar o fôlego; a água e, no horizonte, Seattle.
Não era nada como o apartamento que eu e Seth tínhamos partilhado, mas era bonito.
Roman, espiando por cima do meu ombro, deu um assobio. - Legal.
Dei uma cotovelada nele, para que ele parasse de invadir meu espaço pessoal. - Onde você conseguiu essas fotos?
Maddie sorriu. - Você disse que estava ocupada, então eu fui até lá e conversei com a construtora. Essa é a última unidade e eles me deixaram entrar e tirar fotos.
Levantei a cabeça bruscamente. - Você tirou todas essas?
- Eu sabia que você estava muito estressada e queria ajudar. Continue a olhar, você pode ver todas as opções que ainda estão disponíveis. As opções de piso: bordo,
cerejeira, bambu...
Respirei fundo para me acalmar. Maddie não tinha só imprimido informações para mim. Depois de toda a busca e seleção, ela havia efetivamente se dado o trabalho de
preparar um verdadeiro dossiê sobre o local, um local sobre o qual eu vinha apenas falando ao acaso, só para fazê-la se sentir melhor.
- Eles têm um corretor no local, mas você pode levar o seu - ela continuou. - Uma outra pessoa estava dando uma olhada, mas ele disse que, se você estivesse interessada
e fizesse uma oferta logo, ele iria analisá-la e compará-la com a da outra pessoa.
- Olhe - Roman interferiu. - Dois quartos.
- Maddie... - engoli em seco -, você não precisava ter feito isso.
Ela me olhou fazendo graça. - Por que não?
- Deu muito trabalho.
- Deixe para lá. Além disso, depois de tudo o que você já fez por mim? Georgina, isso não é nada. Você vai falar com eles? Vou junto, se você quiser.
Eu me afundei no sofá, olhando os papéis sem realmente compreender o que havia neles. Eu tinha ficado brava quando ela e Seth começaram a sair. Eu não tinha esse
direito, no entanto. Ela não sabia sobre nosso passado. E, se eu não tivesse insistido tanto sobre manter as coisas em segredo, se ela soubesse que eu e Seth tínhamos
namorado, eu tinha certeza de que ela nunca, nunca teria ficado com ele. Porque ela era minha amiga.
Senti meus olhos queimando e fiz força para não chorar. Eu nem sabia direito o que eu tinha feito para merecer esse tipo de amizade. Ela era uma pessoa boa. Ela
acreditava no meu lado bom - assim como Seth. Nessa fase sombria, Seth não tinha me abandonado em nenhum momento. Os dois eram tão bons, tão gentis. E, o mais importante
de tudo, não existia muito disso entre humanos.
Carter tinha falado que, se não houvesse outras complicações no mundo, eu seria a escolhida de Seth. Mas as complicações existiam. Eu ainda me recusava a causar
mal a ele por causa de sexo, e esse problema voltara. Ele tinha se colocado em perigo na praia, por mim. Sempre haveria perigo na vida que eu levava - perigo para
ele, não para mim. Eu o queria desesperadamente, queria recuperar o que tivéramos, mas, se o fizéssemos, eu estaria apenas sujeitando-o a mais dessa existência em
uma verdadeira montanha-russa. Eu o privaria de uma vida normal, um amor normal. Eu não podia fazer isso com ele, o que quer que ele dissesse sobre tentar de novo.
Só porque as coisas não tinham dado certo, isso não queria dizer que não existiam pessoas que pudessem ser amadas, amor é uma coisa importante demais para se passar
a vida sem ele. Pelo menos para os humanos era. Eu queria que Seth e Maddie tivessem isso. Queria que eles tivessem o sonho que eu não poderia realizar.
A expressão de Maddie ficou mais suave quando ela me observou melhor. - Por que você está olhando assim para mim?
Eu engoli em seco e dei um sorriso. - Ainda estou surpresa por você ter feito tudo isso.
- Você vai dar uma olhada? - ela perguntou entusiasmada.
- Sim, vou.
Com isso, ganhei um abraço e um sorriso, e depois ela precisou ir correndo para o trabalho. Eu me sentei de novo no sofá, ainda segurando os papéis, tensa. Roman
sentou-se na minha frente.
- Você vai terminar, não vai? - ele falou com uma voz surpreendentemente gentil. - Com Mortensen?
- Sim, quero dizer... eu sabia que nós terminaríamos, mas só agora eu me dei conta realmente. Nós estávamos nos iludindo... envolvidos em uma situação temporária.
Eles merecem ficar um com o outro, e eu não deveria ter feito o que fiz com ela. - Eu suspirei. - Nyx me enganou com o sonho. Não era real. - Sem pensar, coloquei
a mão sobre minha barriga. Mesmo se eu tivesse alguma possibilidade de engravidar enquanto estava em estase, agora ela já teria ido embora. - Para eles, porém, pode
ser real.
Roman ficou tão comovido, foi tão compreensivo que seria difícil imaginar que ele ainda quisesse me matar. No entanto, eu tinha certeza de que ele queria. - Sinto
muito - ele disse. - Por você não poder ter um companheiro e uma filha. Sinto até por você não poder ter seus gatos.
Olhei para onde Aubrey dormia, lembrando-me da gata rajada do sonho. - Bem, de qualquer forma, acho que ela está mais feliz sendo filha única.
Seth apareceu mais tarde. Roman felizmente tinha saído para comprar comida. Apesar de meus protestos, parecia que ele estava decidido a ficar comigo. Pensei em reclamar
para Jerome, mas certamente meu chefe não ia gostar de ter uma preocupação tão pouco importante no momento. Se é que ele ainda era meu chefe. No momento, eu estava
tomando a falta de informações novas como boas notícias.
Seth me entregou as chaves do carro quando entrou. - Está lá atrás do prédio.
- Obrigada.
- Desculpe por eu ter ido embora daquele jeito. Eu não queria... Meu Deus, foi tão difícil.
- Era o que eu queria - eu disse a ele. Nós estávamos a menos de um metro de distância um do outro, hesitando em chegar mais perto. - Ainda bem que você me ouviu.
- Eu não ia, sabe... Logo que eu acabei de falar com a demônia... aquilo foi muito estranho... Eu ia voltar logo em seguida e... Não sei. Não sei o que eu poderia
ter feito. Eu teria ficado com você.
- Você poderia ter morrido.
Ele deu de ombros, como se não tivesse importância. - Eu na verdade voltei e... então... então vi Dante.
Cruzei os braços, ainda com medo de me aproximar dele, em grande medida porque estava com medo de me atirar nele. - Eu sabia que você faria isso. Mas por quê? Você
não gosta dele. Você sabe o tipo de pessoa que ele é.
Seth balançou a cabeça. - Eu não gosto dele, mas... eles iam matá-lo, não iam?
Eu pensei em Jerome, aquela raiva fria, mal e mal reprimida, nos olhos dele. Ele ficou furioso e eu sabia que ele estava se mordendo por não poder descontar sua
ira em Grace. Existiam tabus quanto a ferir mortais ou fazer alguma coisa com eles, mas, bem, não era uma coisa inédita e sempre havia alguma brecha. Causaria menos
problemas para ele do que se ele tivesse punido Grace.
- Bem... - eu disse - digamos que no mínimo ele teria sofrido consideravelmente.
- Eu imaginei. E não podia deixar que isso acontecesse... nem mesmo com ele. O que ele fez foi errado, causou problemas muito sérios para você e colocou você em
risco. Mas de alguma forma bizarra, maluca, ele fez isso porque amava você. Não acho que alguém deveria ser torturado por causa disso. E... - Seth me observou atentamente.
- Eu tinha a impressão de que você não ia querer que isso acontecesse.
Ele estava certo. Por mais ofendida que eu pudesse ter ficado, apesar da traição... eu tinha me apegado a Dante. Eu ainda gostava um pouco dele.
- Santo Deus, preciso parar de me envolver com homens instáveis. Onde ele está?
- Eu o deixei em casa. Ele tinha começado a se recuperar, estava conseguindo andar e tudo mais.
- Se ele for um pouco esperto, ele já deve ter ido embora. Acho que Jerome vai se lembrar disso por muito tempo.
- E então... as coisas já voltaram ao normal?
Demorei um pouco para responder. - Sim. Já recuperei toda a minha glória de súcubo.
Ele se virou e começou a andar pela sala. - Eu sabia que isso ia acontecer... Eu sabia o que estava por vir e, mesmo assim... eu ficava fingindo que não.
- Eu também. Acho que em algum lugar na minha cabeça eu tinha essa fantasia de que poderia encontrar Jerome e ainda continuar com você.
Seth parou e olhou para mim. - Nós ainda podemos continuar. Eu estava falando sério quando disse... que eu poderia tentar de novo...
Eu olhei calmamente nos olhos dele. - E Maddie?
- Eu... Eu terminaria com ela...
- Você a ama? - minhas palavras foram totalmente diretas. Acho que elas o pegaram de surpresa.
- Sim... mas é diferente. Diferente do jeito que eu amo você.
- Não importa - eu disse. - Você e eu não podemos ficar juntos. Se você tem uma possibilidade de ser feliz, você precisa aproveitá-la. Nós não podemos fazer isso
de novo com ela. É errado. Ela não merece.
- Eu disse que eu terminaria com ela primeiro se nós fôssemos voltar. Não posso mais ser desonesto.
- Você não pode terminar - eu disse, surpresa com a veemência da minha voz. - Ela ama você. Você a ama. E depois do que nós fizemos com ela...
- Você quer que eu fique com ela como uma espécie de compensação?
Eu parei. - Não... Não exatamente. Mas vocês foram feitos um para o outro. Vocês merecem ser felizes. E você nunca vai ser feliz comigo. Vai ser sempre um sobe e
desce, exatamente como antes.
- Estou começando a achar que todos os relacionamentos são assim - ele disse abatido. - Eu não quero fazer você sofrer. Não consigo suportar, não consigo esquecer
o que Hugh disse sobre como isso ia destruir você. Mas, mesmo assim... alguma coisa fica nos puxando de volta. Eu lhe disse que nós nunca vamos conseguir ficar afastados.
- Eu sabia exatamente sobre o que ele estava falando, mas eu não disse nada. - Eu achava que terminar tudo resolveria as coisas, que a dor no curto prazo valeria
a pena em troca da estabilidade no longo prazo. Mas eu estava errado. Nós acabamos de nos meter em um monte de problemas, e Maddie está no meio. Eu estou disposto
a tentar de novo... por mais difícil que seja.
- Você estava certo quando quis terminar - eu disse rispidamente. - E eu não estou disposta a fazer tudo de novo.
Ele olhou para mim chocado. Minhas palavras eram mentira, é claro. Uma parte de mim queria tentar de novo, suportar qualquer coisa para ficar com ele. Mas eu não
podia deixar de pensar em Maddie. Não podia pensar em como ela sofreria. Era realmente uma ironia. Da última vez, ele tinha se preocupado em me fazer sofrer de propósito
porque era para um bem maior. Agora, eu estava fazendo a mesma coisa pelos dois, poupando-a de ter o coração partido e evitando que ele tivesse mais infelicidade
comigo. Nós estávamos em um ciclo interminável.
- Você não pode estar falando sério. Eu sei que não está. - A expressão dele era um misto de incredulidade e dor.
Eu balancei a cabeça. - Eu estou. Você e eu somos um desastre. O que nós fizemos durante essa estase... foi um erro. Foi vergonhoso. Imoral. Nós traímos uma pessoa
que nos ama, que só deseja tudo de bom para nós dois. Como nós pudemos fazer isso? Que tipo de precedente é esse? Como nós poderíamos esperar um relacionamento sólido
baseado nesse tipo de alicerce sórdido? Construído sobre mentiras, desonestidade? - Pronunciar essas palavras era doloroso. Manchava a beleza daqueles dias preciosos
que nós tínhamos passado juntos, mas eu precisava defender meus argumentos.
Seth ficou em silêncio por alguns momentos enquanto me avaliava. - Você está falando sério?
- Estou - eu era uma boa mentirosa, boa o suficiente para uma pessoa que me amava não perceber. - Volte para ela, Seth. Volte para ela e conserte as coisas.
- Georgina... - eu vi, eu vi quando ele caiu em si. O peso real de ter traído o Maddie invadia. A natureza dele não poderia ignorar o mal que ele havia causado.
Era parte do bom caráter dele, o caráter que tinha voltado para salvar Dante. O caráter que ia fazer com que ele me deixasse. De novo. Hesitante, ele estendeu a
mão para mim. Eu peguei a mão dele, ele me puxou e me abraçou. - Eu sempre vou amar você.
Meu coração ia explodir. Quantas vezes, eu me perguntei, quantas vezes eu aguentaria essa agonia? - Não, você não vai - eu disse. - Você vai seguir em frente. E
eu também.
Seth foi embora pouco depois disso. Olhando para a porta, repeti minhas palavras. Você vai seguir em frente. E eu também. Apesar de ele me amar tanto e estar tão
disposto a se arriscar, eu achava que ele voltaria para Maddie, que ele acreditaria no que eu havia dito. Eu havia reafirmado a culpa, tinha feito com que ela prevalecesse
sobre o amor que ele sentia por min.
Você vai seguir em frente. E eu também.
A parte ruim de ser uma boa mentirosa, porém, era que, ao passo que eu podia fazer com que as outras pessoas acreditassem no que eu dizia, eu mesma não acreditava.
Capítulo 27
Embora eu estivesse bem certa de que Dante teria se mandado da cidade quando falei com Seth, mesmo assim, dei uma passada na loja dele no dia seguinte. Ela nunca
tivera uma aparência de prosperidade, de qualquer forma, mas agora os sinais de abandono eram claros. O luminoso em que se lia MÉDIUM tinha desaparecido. As persianas
também sumiram, mostrando uma sala ainda mais vazia do que antes. A placa de “aluga-se” na porta era provavelmente o indício mais evidente de que Dante tinha ido
embora.
Depois do que havia acontecido com Seth, era difícil saber o que achar de Dante. Meu coração mal tinha energia para isso. Eu gostava dele, com certeza. Ele havia
se ajustado bem à minha fase decadente e, apesar da alma sombria, tinha algumas características adoráveis. E, acima de tudo, parecia que ele gostava de mim, tendo
ou não cometido um erro. Não gostei do acordo que ele fizera com Grace, mas fiquei feliz por ele não estar lá para enfrentar o castigo de Jerome e Mei. Ninguém merecia
isso, nem mesmo Dante. Eu esperava que, onde quer que estivesse, ele tentaria começar uma vida diferente - talvez uma vida que pudesse iluminar um pouco a alma dele.
Eu sabia bem, contudo, que humanos com almas condenadas dificilmente se regeneravam.
Mais tarde, fui para Capitol Hill. Peter e Cody estavam dando uma festa para comemorar a volta de Jerome, mas eu estava meio desconfiada de que eles queriam era
se embebedar para esquecer a mágoa por terem perdido o sol.
- Como nós podemos comemorar a volta de Jerome se ele nem sequer está aqui? - Tawny queria saber. Ela tinha voltado a ser a loirona de sempre e estava segurando
um copo de martíni sem muita firmeza. Peter não conseguia tirar os olhos do copo.
Eu estava enrolando com um gimlet por educação. Os vampiros tinham se dado o trabalho de comprar Grey Goose e limão fresco, mas, na verdade, eu estava um pouco enjoada
de álcool. Eu tinha a impressão de que havia passado os últimos quatro meses bêbada. Eu ainda não tinha me cansado dos cigarros, mas estava me esforçando para me
livrar do vício de novo.
- Jerome está cheio de coisas para fazer - eu disse. - Nós estamos bebendo em honra a ele.
- Mas ele vai ficar, não vai? - Cody perguntou.
Nós todos olhamos para Hugh. Como o resto de nós, Hugh tinha recuperado suas habilidades e eu sinceramente esperava que ele estivesse muito mais feliz por ter sua
visão de duende de volta. Em vez disso, ele estava muito sério, e eu podia jurar que ele me observava quando eu não estava olhando.
- Sim. Ele e Mei deram uma bela enrolada no cara do mundo corporativo e ofereceram vantagens o suficiente para conseguir apoio de outros. Cedric e Nanette juraram
de pés juntos que não havia ninguém mais qualificado do que ele para administrar Seattle.
- Nanette finalmente conseguiu o que queria, não é? - Balancei o copo, fazendo o gelo girar lá dentro. - Saber que Jerome tem uma dívida com ela provavelmente permite
que ela se sinta mais segura em seu território.
Cody balançou a cabeça. - Mesmo assim, Grace teve um trabalhão para armar isso tudo, entre os canadenses e todas as armações. E Dante. - Ele me lançou um olhar como
se quisesse se desculpar, o que dispensei fazendo um gesto com a mão.
- Não sei - Peter disse. Ele tinha se convencido de que Tawny não ia estragar a tapeçaria dele. - Ela é um demônio da administração média, com um poder bem mais
ou menos. Fazer o que ela fez, agarrar a oportunidade quando achou que Jerome estava vulnerável, foi provavelmente a coisa mais próxima do que ela vai chegar de
governar uma área como esta.
- O que você está querendo dizer? Ela teria ficado empacada para sempre? Nunca teria um domínio próprio? - Tawny perguntou, franzindo a testa.
- Ela pode alguma hora ser designada para controlar alguma cidade inexistente no meio dos Estados Unidos, mas duvido que passe disso. - Hugh ainda estava com o semblante
pensativo. - É claro que ela não queria isso. Nem Mei, ao que parece.
- E lá se vai o famoso “é melhor reinar no inferno do que servir no céu” - eu disse, satisfeita com minha tirada. - É claro que acho que nós ainda vamos ver a carreira
de Mei avançar. Ela pode não ser muito poderosa, mas ela tem um plano.
- Vocês notaram como ela é muito menos assustadora sozinha? - Cody perguntou.
- Eram as roupas combinando - Peter disse com um ar de entendido. - Quando elas usavam roupas iguais, pareciam aquelas meninas do filme Iluminado.
Mais conversas e risos se seguiram, mas eu acabei ficando quieta, só ouvindo. Eu podia talvez dar vida a uma festa, como Seth dissera, mas esse grupo podia passar
sem mim. Eu estava um tanto satisfeita por estar de novo com eles e por nossas vidas terem voltado ao normal - mesmo como elas eram. Eu nunca poderia ser humana
de novo, mas essas eram as pessoas com quem eu queria estar condenada.
A certa altura, eu me levantei e troquei o copo vazio por água, e percebi que Hugh havia me seguido até a cozinha. Ele ainda parecia preocupado. Os outros estavam
rindo e falando, o que encobriu nossa conversa.
- O que está acontecendo? - eu perguntei. - Achei que você fosse ficar feliz.
- Eu estou, eu estou - ele disse. - Acredite, eu estou. Por Deus, isso tudo foi horrível.
Não pude deixar de sorrir. Hugh estava em uma boa fase como imortal inferior. Ele já não era mais um novato como Cody e Tawny e podia colher todos os benefícios
da sua posição. No entanto, ele não era tão velho para ter adquirido a saturação de séculos que eu e Peter tínhamos. De todos nós, eu não duvidava que Hugh tivesse
sido quem mais sofrera.
- Então, o que houve?
Ele hesitou de novo; fiquei impressionada com o comportamento estranho dele. - Georgina, Seth fez alguma coisa... ruim ultimamente? Roubou um banco? Sonegou impostos?
- É claro que não - eu disse, mais confusa do que nunca.
- Ele... bem... fez alguma coisa... humm... errada com você?
Para meu desconsolo, fiquei vermelha. Seria de se esperar que nada deixasse um súcubo envergonhado, mas eu insistia em tentar traçar uma linha entre minha vida sexual
particular e a profissional. Meu silêncio em resposta já foi o suficiente para Hugh.
- Merda.
- O que foi? - perguntei. - Aconteceu quando eu estava em estase. Não roubei a energia dele. Não encurtei a vida dele. E não fizemos nada desde que Jerome voltou.
Acabou. Ele voltou para Maddie.
Hugh arqueou a sobrancelha. - Oh?
- Eu percebi que nós dois éramos uma coisa impossível e o convenci a voltar para ela. Eu, na verdade, apelei para a culpa. - Só de falar sobre o que havia acontecido
fez a dor tomar conta de mim.
- Com certeza, foi isso o que você fez - Hugh disse de forma seca.
- O que você está querendo dizer?
- Georgina... - Ele suspirou. - Não é fácil explicar. Quando conheci Seth, a alma dele era... uma supernova. Iluminava a sala. O cara tinha um espírito tão generoso
que era insano.
Tinha.
- E agora? - Eu estava aos poucos começando a perceber qual seria a resposta.
- Agora, há uma sombra sobre ele. Uma mancha na alma dele. Ele traiu Maddie com você... e voltou para ela e não pode dizer a verdade...
A cozinha começou a balançar e eu me esforcei para me concentrar em Hugh. - O que nós fizemos não foi sujo. Nós estamos... Nós estávamos... apaixonados. Havia amor...
quer dizer... teve um significado especial.
- Talvez tenha tido, querida. Talvez os planetas tenham se alinhado quando vocês transaram. Mas, apesar do que aconteceu entre vocês dois, ele a enganou, e agora
está sentindo o peso da culpa. O pecado está obscurecendo a alma dele.
- Quanto? - eu perguntei, quase sussurrando. - Se ele fosse atropelado por um carro bem agora...
A expressão de Hugh era dura e triste. - Ele iria direto para o inferno.
- Meu Deus. - Eu precisei me apoiar na pia. - Eu não achei... Eu não pensei...
Enquanto não fui um súcubo, eu não tinha pensado como um. Eu não tinha me preocupado em encurtar a vida dele ou deixá-lo exaurido, porque não precisava. Apesar de
saber que ambos estávamos enganando Maddie e de termos nos sentido culpados por causa disso, eu nunca tinha pensado nisso em termos de condenação. Eu tinha me desligado
desse lado da minha vida, de ser um súcubo que numerava e contabilizava almas - minha principal função.
O que foi uma estupidez da minha parte. Os humanos não precisavam de nós para pecar. Eles faziam isso o tempo todo por conta própria e cumpriam essa tarefa tão bem
quanto nós - ou até melhor. Eu não precisava ser um súcubo para fazer Seth pecar. Eu poderia ser uma mulher qualquer, uma mulher qualquer com quem ele tivesse um
caso. O pecado também era uma coisa subjetiva e as pessoas se sentiam de formas diferentes em relação a ele. Para alguém como Seth, fazer o que ele fez deixaria
uma cicatriz profunda - e eu tê-lo feito se sentir culpado por conta disso não ajudou.
- Isso é pior - eu disse. Eu comecei a rir, mas era aquele tipo de risada histérica que poderia se transformar em lágrimas a qualquer momento. - Teria sido melhor
se nós tivéssemos transado enquanto ainda estávamos namorando. Eu teria tirado anos da vida dele, mas a alma dele teria permanecido pura, e é isso o que importa
no longo prazo. Em vez disso, eu fui tão inflexível em me recusar a fazer isso... e agora, veja. Veja o que eu fiz.
Hugh pegou minha mão e a apertou. - Sinto muito.
- Existe... Existe um jeito de desfazer isso?
- Você sabe a resposta tão bem quanto eu. Com certeza, ele pode acabar fazendo o pêndulo mover para o outro lado. Mas é difícil. Muito difícil.
- Ele é um pessoa boa - eu disse confiante.
- Talvez só isso não baste.
- Ele precisaria de um trato com Deus - murmurei.
Eu olhei para o chão, observando a cerâmica, voltada para meus pensamentos. O que eu tinha feito? Como eu pude ser tão estúpida? Eu tinha ficado tão cega de amor
e desejo que tinha me esquecido dos princípios que haviam ditado minha vocação imortal durante longos séculos?
- Georgina... - Hugh disse hesitante. Eu olhei para ele. - Tem uma outra coisa... só um aviso. Você sabe disso tão bem quanto eu. Quando pessoas honestas fazem besteiras
como essa... elas tentam consertar as coisas do jeito delas. Ele está sendo consumido pela culpa. Pessoas assim tentam fazer coisas para compensar os erros. Coisas
impensadas. Algo me diz que ele vai ser assim.
- Obrigada pelo aviso - eu disse. - Apesar de eu não conseguir imaginar o que ele poderia fazer para piorar as coisas.
O duende olhou para mim. - Querida, ele é humano. Não o subestime.
Hugh estava certo.
No dia seguinte, fui ao escritório da construtora do condomínio e conversei mais seriamente com o corretor que lidava com as vendas. Nós conversamos por algum tempo
e discutimos números, apesar de que eu não conseguia deixar de ter a impressão de estar fazendo aquilo sem pensar direito. As fotos eram boas, a planta era boa,
as opções eram boas. Mesmo assim, eu não sabia se era apenas uma reação impulsiva aos altos e baixos da minha vida.
Depois, quando ele me levou para o apartamento mesmo e me mostrou o terraço, eu soube. O dia estava bonito, ainda não era um dia de verão de verdade, mas alimentava
a esperança de que o inverno estava chegando ao fim. A Baía de Puget estava muito azul e a cidade no horizonte brilhava ao sol contra um céu sem nuvens. A oeste,
as Montanhas Olímpicas estavam visíveis pela primeira vez em mais de um mês; os picos, ainda cobertos por uma camada espessa de neve. Como acontecia com frequência
quando o tempo estava assim, as pessoas saíam em grupos, como se fosse o auge do verão. As famílias saíam, os shorts saíam. Essa parte de Alki não tinha uma praia
de verdade - ela ficava em um parque um pouco mais adiante -, mas o prédio ficava muito próximo da água, havia somente uma rua e uma estreita faixa de grama entre
os dois. Eu olhei as ondas quebrando na costa e percebi que era onde eu queria estar.
- Eu quero fazer uma oferta - eu disse a ele.
Eu imaginei que Maddie gostaria de saber, então providenciei que ela fosse a primeira para quem eu contaria quando voltei a Queen Anne naquela noite. A noite estava
começando, era meu último dia antes de voltar a trabalhar nos turnos normais de verdade, e eu passei na loja para pegá-la e contar para ela. Só que ela me achou
primeiro e tinha as novidades dela.
- Georgina!
Eu mal tinha entrado quando ela me pegou pelo braço e me puxou para a seção de livros de culinária. - Nossa... - eu ri. - Ainda bem que você está de bom humor. Eu
tenho novidades.
- Eu também!
Ela estava com uma expressão radiante, e, depois de tudo que tinha acontecido, fiquei feliz por vê-la assim. Não podia deixar de sorrir para ela. - E aí?
Ela olhou em volta discretamente e então falou em voz baixa: - Você estava certa.
- Sobre o quê?
- Sobre Seth precisar de um tempo, sobre ele estar preocupado.
Que bom. Ele tinha transado com ela de novo, agora que as coisas entre nós haviam terminado. Não posso dizer que gostei de ficar sabendo essas novidades, mas, por
ela, eu estava feliz, porque ela podia parar de se preocupar.
- Isso é ótimo, Mad...
- Ele estava esperando para me pedir em casamento!
Ela enfiou a mão na minha cara tão rápido que, por um instante, achei que ela fosse me dar um soco. Mas não, não houve impacto - a não ser o brilho do anel de noivado
ofuscando meus olhos.
- Meu Deus. Mas foi... tão rápido...
- Eu sei - ela disse, sem fôlego, de tão animada. - Eu não acredito. Quero dizer, sim, nós só estamos namorando há uns quatro meses, mas Seth disse que o noivado
pode ser longo, que ele só queria selar um compromisso entre nós.
É claro que ele queria. Quando pessoas honestas fazem besteiras como essa... elas vão tentar consertar as coisas do jeito delas. Ele está sendo consumido pela culpa.
Pessoas assim tentam fazer coisas para compensar os erros. Coisas impensadas. Como eu poderia estar surpresa? Eu tinha virado um súcubo porque tinha traído meu marido
e sido apanhada. Eu havia vendido minha alma em uma tentativa de apagar esse erro, fazer com que ele e todas as outras pessoas que eu conhecia me esquecessem. Por
que isso seria diferente?
- Você não acha... - Maddie ficou apreensiva, mais uma vez esperando minha aprovação e minha opinião. - Você não acha que é muito rápido, acha? Eu cometi um erro?
Quer dizer... mesmo se nós esperarmos um pouco para casar...
Eu continuei a sorrir. - Está tudo bem, Maddie. Não existe um período de tempo estabelecido para todo mundo. Se você sente que é correto, então vá em frente.
O sorriso dela se iluminou novamente. - Oh, obrigada. Estou tão contente por você ter dito isso. Quer dizer... eu disse sim e estou tão animada... Eu só não queria
que parecesse que eu estava me precipitando. - Ela olhou para baixo de novo, admirando o anel. Eu percebi uma coisa.
- É um diamante.
Ela me olhou surpresa. - É claro. Por que não seria? A maioria dos anéis de noivado é.
No ano passado, eu havia falado de brincadeira com Seth sobre casamento, e ele havia contado que, se um dia ele se casasse, ele daria para sua futura noiva um rubi,
porque achava que diamantes não eram muito originais, e casamento era uma coisa única.
Eu olhei para as facetas reluzentes da pedra, perplexa. - Foi você quem escolheu? Você disse para ele que queria um diamante?
- Não. Nós nunca falamos sobre isso. Ele só comprou o anel para mim. Por quê?
Balancei a cabeça e tentei parecer feliz por ela. - Por nada, é lindo. Parabéns. - Eu me virei para ir embora. - A gente se vê amanhã.
- Georgina, espere.
Eu parei e olhei para trás.
- Quais são suas novidades?
- Quê? Ah, sim. Eu vou comprar o apartamento em Alki.
- Sério? - Juro, pareceu que ela tinha ficado mais animada com aquilo do que com o noivado. - Quando vai ficar pronto?
- Julho.
- Uau. Isso é ótimo. Você vai poder dar festas superlegais no verão.
- Sim. Tomara que fique pronto a tempo.
Ela suspirou contente e me deu um abraço rápido. - Não é um dia maravilhoso? Boas notícias para nós duas.
- Sim - concordei. - Maravilhoso.
Fui andando para casa, atordoada demais com o noivado para conseguir processar a informação. Considerando as previsões de Hugh, não havia muito o que processar.
Eu tinha convencido Seth de que ele e eu éramos uma fantasia, e que ele precisava voltar à realidade e aproveitar as coisas boas com Maddie. Seth havia acreditado
em mim e tentado se redimir com ela - redimir-se consigo mesmo, até -, com esse noivado apressado. Normalmente ele não era uma pessoa impulsiva, mas as circunstâncias
extremas o haviam transformado em uma.
Meu telefone tocou mais ou menos a meio quarteirão da loja. Eu podia reconhecer o código de área de Vancouver a essa altura, mas não conhecia o número. Podia ser
Evan querendo que eu contrabandeasse tinta spray pela fronteira. Para meu alívio, era Kristin.
- Oi - eu disse. - Como andam as coisas?
- Bem. Quer dizer... melhor do que bem. Ótimas, na verdade. - Alguns segundos estranhos de silêncio se seguiram. - Eu e Cedric... nós...
Foi a primeira vez em um bom tempo que senti uma faísca de entusiasmo despertar em mim. - Verdade? Vocês estão... juntos?
- Sim. - A voz dela deixava transparecer espanto, como se ela mal pudesse acreditar. - Ele me contou que foi você quem disse que ele deveria ficar comigo.
- Bem, eu... Eu só sugeri que ele estava olhando para o lugar errado...
- Georgina. Eu não sei como posso agradecer por isso. - A voz dela estava transbordando de emoção, uma coisa que eu não teria imaginado vindo de uma duende tão eficiente.
- Isso é... Eu esperei tanto tempo. Eu o amava havia tanto tempo. E ele nunca nem prestou atenção em mim, até você fazê- -lo simplesmente parar e olhar. Foi exatamente
o que ele disse. Que estava tão ocupado em buscar em todo o resto do mundo que nunca tinha percebido o que estava bem na frente dele.
Achei que ia ficar com a voz embargada também. - Estou feliz por você, Kristin. De verdade. Você merece.
Ela riu. - Geralmente as pessoas acham que nós, as almas condenadas, não merecemos nada.
- Nós somos como todo mundo, merecemos coisas boas e ruins. Não acho que ser condenado tenha alguma coisa que ver com isso.
Ela ficou quieta por um instante e depois falou de novo, com a voz baixa, quase não dava para ouvir. Eu, na verdade, parei de andar, só entrei em uma rua menor para
escapar do ruído do tráfego.
- Engraçado você dizer isso - ela disse devagar. - Porque... bem, eu fiz uma coisa para você. - De repente, eu vi a imagem de donuts do Tim Hortons aparecendo na
minha porta.
- Ah, não precisava. Eu não fiz nada.
- Na verdade, você fez. Para mim, pelo menos. E, então... eu queria fazer uma coisa igualmente importante para você. Eu, humm, eu olhei o seu contrato.
Eu prendi a respiração. - O quê?
- Nós tínhamos um monte de papelada para arquivar e eu consegui fazer uma viagem corporativa.
Viagem corporativa - esse era um jeito discreto de dizer que ela tinha ido aos escritórios centrais do inferno.
- Kristin... se você fosse apanhada...
- Eu não fui - ela disse orgulhosa. - Eu encontrei seu contrato e li.
Eu já tinha parado agora. O mundo a meu redor não existia. - E?
- E... nada.
- Como assim, nada?
- Quer dizer... nada de errado com o contrato. Eu reli várias vezes. Está tudo em ordem.
- Não pode ser! Niphon se empenhou tanto para me criar problemas... fazer com que eu fosse chamada de volta. Hugh tinha certeza de que era porque ele estava tentando
desviar a atenção do contrato.
- Isso eu não sei - Kristin disse, em um tom realmente compreensivo. - Tudo o que eu sei é o que eu li. Você vendeu sua alma e aceitou servidão- -padrão como súcubo
em troca de que todos os mortais que você conhecia esquecessem quem você era. Não é isso?
- Sim...
- Era o que estava escrito. Toda a terminologia estava exatamente como deveria ser.
Eu não tinha uma resposta, então, não disse nada.
- Georgina, você está aí?
- Sim... Desculpe. Eu só achava... Eu tinha tanta certeza...
Tinha sido uma esperança tola, a de que, talvez, em algum lugar, houvesse uma brecha que pudesse me libertar. Parecia, porém, que eu caía nessas coisas o tempo todo,
exatamente como tinha acontecido com o sonho de Nyx e a possibilidade impossível de ficar grávida enquanto estava em estase. Eu era ingênua, como Dante dizia. -
Obrigada. Estou realmente muito agradecida por você ter olhado.
- Pena você não conseguir o que queria. Se eu puder fazer alguma outra coisa para você, desde que não seja necessário invadir registros, é só me falar.
- Obrigada. Eu vou me lembrar.
Nós desligamos e eu fiquei olhando em volta, com o olhar vazio, para o tranquilo quarteirão residencial onde eu havia entrado. - Nada - eu disse em voz alta. - Não
há nada que possa fazer o dia de hoje ficar pior do que já está.
Um barulho atrás de mim me fez dar um pulo e eu me virei rapidamente. Eu achava que estava só e agora me sentia uma idiota por ter sido apanhada falando sozinha.
Porém, eu não via ninguém. Então, um arbusto na calçada se mexeu um pouco. Eu me aproximei dele e me ajoelhei. Um par de olhos amarelados ficou me observando e em
seguida eu ouvi um miado que me deixou comovida. Eu fiz um clic, o som que todo mundo que já teve um gato sabe fazer, e depois de alguns momentos meu observador
surgiu.
Era um gato bem desengonçado - um gato que eu tinha certeza de já ter visto. Era menor do que Aubrey, talvez mais jovem, e dava para ver as costelas saltando por
baixo do pelo, que estava emaranhado e sujo. Quando lhe acariciei a cabeça, senti o pelo ressecado, o que muitas vezes era sinal de pulgas. O gato parecia estar
desconfiado de mim - mas não o suficiente para fugir. No momento, parecia curioso, como se estivesse tentando me analisar - e talvez ganhar comida.
Tudo bem, porque eu também estava tentando analisá-lo. Evidentemente o gato não tinha dono, ou, se tinha, a propriedade precisava ser revogada. Eu observei os olhos
amarelados e as linhas frágeis do corpo dele. O gato era tão diferente e ao mesmo tempo... eu sabia que era ele. E, com uma reflexão digna do Carter, eu de repente
me perguntei se o universo, afinal de contas, não teria se lembrado de mim.
Deixei o gato cheirar minha mão mais um pouco e depois a estendi e o peguei. Era uma fêmea. Na verdade, ela começou a ronronar. Talvez ela me conhecesse. Talvez
estivesse apenas cansada também de lutar o tempo todo. Quando abri a porta de casa empurrando com o ombro, Aubrey, que estava tirando uma soneca, imediatamente levantou
a cabeça. Ela não fez nenhum barulho, mas o pelo das costas dela ficou arrepiado enquanto ela examinava a nova visitante com os olhos apertados. Roman, deitado no
sofá como sempre, também nos observava. Ele olhou para a gata, verificando a pelagem manchada de marrom e laranja. Então, olhou para cima, nos meus olhos. Não sei
bem o que ele viu, mas ele sorriu.
- Deixe-me adivinhar. É uma gata rajada.
- Sim - concordei. - É uma gata rajada.
Richelle Mead
O melhor da literatura para todos os gostos e idades