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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CAMINHEIRO / Condessa de Ségur
O CAMINHEIRO / Condessa de Ségur

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CAMINHEIRO

 

                   Felícia

SR.a ORVILLET - Voltou o bom tempo, meu filho; podemos sair.

LOURENÇO - Aonde vamos, mãezinha?

SR.a ORVILLET - Visitar a pobre família do Germano; o Germaninho estava doente, da última vez que lá fomos; vamos saber dele.

FELÍCIA - Não vale a pena ir pessoalmente; é melhor mandar lá um dos moços da quinta.

  1. A ORVILLET - É mais amável irmos nós próprios. A nossa visita dará prazer a todos.

LOURENÇO - E, depois, têm magníficas cerejeiras; as cerejas devem estar maduras e comeremos algumas; as cerejas são tão boas!

FELÍCIA - É verdade, mas fica muito longe; é melhor que no-las tragam.

LOURENÇO - Que estás para aí a dizer? Nem por isso fica muito longe; são dez minutos de passeio. Indo pessoalmente, comeremos mais cerejas e escolheremos as melhores.

  1. A ORVILLET - Ora, vamos, Felícia. Não sejas preguiçosa; então uma menina com quase doze anos achará fatigante uma caminhada de um quarto de hora, quando o teu irmão, com sete, e tua irmã, com cinco, a fazem constantemente sem se lembrarem disso? Preparem-se para sair; daqui a cinco minutos estou de volta. A Ana está em casa da ama; é preciso avisá-la; vai buscá-la, Felícia.

A senhora Orvillet saiu e Felícia não se mexeu de cima do cadeirão onde indolentemente se instalara.

LOURENÇO - Felícia, não ouviste a mãezinha dizer- te que fosses buscar a Ana?

Felícia - Estou cansada...

LOURENÇO - Cansada? Há mais de uma hora que não te mexes daí... Levanta-te, preguiçosa; vais ver como a mãezinha se zangará contigo.

Felícia - Vai tu!

LOURENÇO - Não foi a mim que a mãezinha deu o recado.

Felícia - Porque és estúpido de mais para procurar seja quem for...

LOURENÇO - Sendo assim, porque queres que vá? Felícia - Deixa-me em paz; se te digo que estou cansada! Merece bem a pena incomodarmo-nos por essa gente...

LOURENÇO - Como é feio ser orgulhosa! Vou buscar a Ana, mas já ficas sabendo que não venho avisar- te e ficarás sozinha em casa, onde te aborrecerás e não comerás cerejas.

Felícia - Não pensas senão em comer! Por cerejas eras capaz de andar durante duas horas.

LOURENÇO - Prefiro isso a ser... não quero dizer o quê... a ser como tu!

A senhora Orvillet volta, de chapéu na cabeça e pronta a sair.

- Então, ainda não estais prontos, meus filhos? Onde está a Ana?

Felícia (levantando-se da cadeira) - Não sei, mãezinha; vou ver.

  1. A ORVILLET - Eu tinha-te dito que fosses; porque esperaste até agora?

LOURENÇO - Disse que estava cansada e não se mexeu dali desde que viemos para casa.

SR.A ORVILLET - Estás doente, Felícia? Porque te sentes tão cansada se nada fizeste que te cansasse?

Felícia - Não estou doente, mãezinha, mas não queria sair...

SR.A ORVILLET - Porquê? Tu gostas de dar grandes passeios e não te custa andar.

Felícia corou, baixou a cabeça e não respondeu. LOURENÇO (baixinho, abeirando-se da irmã)Aposto que adivinho... Queres que diga?

Felícia belisca-lhe levemente o braço e diz-lhe em voz baixa:

- Cala-te.

  1. A ORVILLET - Que temos? Porque te ris assim, Lourenço? E tu, Felícia, porque tens esse ar tão comprometido?

LOURENÇO - Não posso dizê-lo, mãezinha; a Felícia ficaria fula...

SR.A ORVILLET - Então é porque não se trata de coisa boa.

Felícia - Nada disso, mãezinha. O Lourenço é que tem ideias parvas e...

LOURENÇO - Eu é que tenho ideias parvas? Como sabes se são parvas, se não as conheces?

Felícia - Não é difícil adivinhar...

LOURENÇO - Se adivinhares, é porque eu também adivinhei; e visto só me dizeres disparates, vou contar à mãezinha o que penso. É por orgulho que finges estar cansada, para não ires saber do Germaninho.

FELÍCIA (muito corada) - Não é verdade; é porque estou realmente cansada.

A mãe principiava a acreditar que o Lourenço descobrira a verdadeira causa do cansaço de Felícia, mas fingiu não dar por isso.

SR.a ORVILLET - Visto estares muito cansada, ficas em casa a descansar; irei visitar os Germanos com o Lourenço e a Ana; de lá iremos fazer uma visita ao solar de Castelsot...

Felícia (com vivacidade) - Vão a Castelsot? Eu também queria lá ir; gosto muito da menina Cunegundes e do senhor Clodoaldo.

SR.A ORVILLET - Como queres ir, se estás assim tão cansada? O solar fica duas vezes mais longe do que a casa do Germano.

FELÍCIA - Agora sinto-me melhor, mãezinha; parece-me que não me fará mal andar...

SR.A ORVILLET - Não, não, minha filha; far-te-á bem descansár; esta tarde darás um passeiozinho pelo campo; será o bastante.

FELÍCIA - Mãezinha, por quem é! Afianço-lhe que me sinto muito bem.

SR.A ORVILLET - Ficarás ainda melhor esta tarde. Vai ter com a criada. Anda, Lourenço; vamos buscar a Aninhas e depois saímos.

Felícia, uma vez sozinha, desatou a chorar.

- Que aborrecimento a mãezinha não me ter dito que ia a casa de Cunegundes e do Clodoaldo! Aposto que o fez de propósito para me castigar! Se tivesse podido adivinhar, não me fingiria cansada. Estas visitas a casa das pessoas da aldeia são tão maçadoras! E depois, como dizia Cunegundes, outro dia, não são educadas como nós; são ignorantes, broncas; não se mexem para nada. A Ana e o Lourenço têm-nas na conta de divertidas, mas eu acho-as estúpidas e aborrecidas. Mas seja como for, iria a casa dos Germanos se soubesse que a mãezinha ia depois a Castelsot!.. E agora que vou fazer, sozinha?.. Ah, como sou infeliz!.. Estou terrivelmente aborrecida!.. Vou chamar a minha criada.

Felícia abre a porta e chama:

- Valéria... Valéria... E não vem! Valéria, anda cá depressa... Estou sozinha... Não me ouve... Creio que o faz de propósito. Valéria. Valéria.

CRIADA (aparecendo) - Quem é? É a menina Felícia? Porque se encontra aqui sozinha? Julguei que tivesse saído com a mamã.

Felícia - Deixaram-me sozinha.

CRIADA - Porquê? Porque é que a mãezinha não a levou?

FELÍCIA - Por julgar que eu estava cansada... CRIADA - Cansada de quê? Que fez a menina para estar cansada?

FELÍCIA - Nada. É que eu não queria ir a casa dos Germanos e fingi que estava cansada. E depois, a mãezinha disse-me que iria a casa da senhora baronesa de Castelsot; não quis levar-me e deixou-me só contigo. Como deves calcular, é coisa que me não diverte muito ficar para aqui...

CRIADA - A mim também não, acredite. Mas porque não quis ir a casa dos Germanos?

FELÍCIA - Porque não é nada agradável visitar essa gente que pouco vale.

CRIADA - Não vejo que seja humilhante ir a casa dessa gente, como diz; são excelentes criaturas, bem mais agradáveis de visitar do que os Castelsot, que são verdadeiros tolos. Assentou-lhes bem o nome...

FELÍCIA - É favor não te referires tão indelicadamente ao senhor barão e à senhora baronesa Castelsot; são pessoas de bom tom e eu gosto muito do senhor Clodoaldo e da menina Cunegundes.

CRIADA - Uns insolentezinhos, muito orgulhosos e malcriados, que lhe dão maus conselhos. Toda a gente os detesta e com razão... E agora, que vai fazer a menina?

Felícia - Nada. Não quero falar contigo, pois dizes mal dos meus amigos.

CRIADA - Também não lhe peço para conversar comigo; não me interessa; de há tempos para cá, a menina só tem coisas desagradáveis para me dizer. Não é como os meninos Lourenço e Ana, que são amáveis e delicados; não desprezam pessoa alguma. Devia proceder como eles, em vez de se aconselhar com os seus amigos Castelsot.

Felícia - A Ana e o Lourenço só gostam de gente ordinária, e eu não quero brincar com pessoas mal- educadas e abaixo de mim.

CRIADA - Se estão abaixo de si pela riqueza, estão acima pela bondade e delicadeza. É muito feio desprezar as pessoas por serem pobres; se continua assim, far-se-á detestar por toda a gente.

() Castelsot pode traduzir- se por castelo tolom.

Felícia - Pouco me importa que essas pessoas me detestem; não preciso delas e elas precisam de nós!

CRIADA (com severidade) - Menina Felícia, lembre-se da fábula do Leão e do Rato. O ratinho salvou o leão roendo as malhas da rede em que este tinha sido apanhado e de que não podia libertar-se, apesar da sua força. Pode ser que algum dia a menina venha a ter necessidade dessa pobre gente de que hoje desdenha.

Felícia - Ah, ah, ah! Sempre queria ver isso! Eu, precisar dos Germanos ou dos Mouchons, dos Frolet ou dos Piret? Ah, ah, ah!

A criada encolheu os ombros e olhou-a, compadecida. Sentou-se numa cadeira e pôs-se a trabalhar na costura que trouxera. Felícia amuou e sentou-se no outro canto do salão; bocejou e assim ficou por duas longas horas, até à chegada da Sr.a Orvillet.

 

                   A visita ao Germano

SR.a ORVILLET - Então Felícia, como te sentes agora? Continuas cansada?

Felícia - Não, mãezinha; tinha vontade de sair.

SR.A ORVILLET - Não posso passear contigo porque agora estou eu muito cansada; mas podes sair com a criada.

FELÍCIA - Não quero sair com a criada; está muito mal-humorada; não fez outra coisa senão ralhar-me; não quis brincar comigo, nem procurou distrair-me.

  1. A ORVILLET - Ia apostar em como lhe disseste alguma impertinência como é o teu costume.

Felícia - Não, mãezinha; só não quis que dissesse mal dos meus amigos Castelsot; foi isso que a enraiveceu.

SR.A ORVILLET - Isso admira- me, pois nunca a vi encolerizada. E quanto aos teus amigos, bem sabes que não gosto de te levar lá muitas vezes, por causa da sua tola vaidade.

Felícia corou e mudou de conversa, perguntando onde estavam o Lourenço e a Ana.

  1. A ORVILLET - Ficaram em casa do Germano; estavam tão entretidos, que os deixei lá; daqui a meia hora a criada vai buscá-los.

Felícia - Entretêm-se em quê?

SR.A ORVILLET - Ajudam a apanhar cerejas que o Germano me vendeu para fazer compota. Se queres lá ir, eu digo já à criada que te leve.

FELÍCIA - Se quero! Ainda não as provei! A senhora Orvillet foi ao quarto onde encontrou ainda a criada a costurar.

SR.A ORVILLET - Valéria, deixei os meninos em casa do Germano. A Felícia está com vontade de ir ter com eles; faça favor de levá-la e daqui a uma hora volte com todos.

CRIADA - Da melhor vontade, minha senhora; creio que a menina Felícia fica bastante castigada com o aborrecimento em que esteve perto de duas horas.

SR.A ORVILLET - Castigada porquê? Ela fez alguma maldade?

CRIADA - Maldade... não digo, mas foi pouco delicada; e depois, confessou-me que se fingira cansada para fugir a visitar o Germano, que acha muito abaixo dela...

  1. A ORVILLET - Já tinha desconfiado; foi por isso que não quis levá- la quando mudou de resolução. Onde aprenderá estas estúpidas ideias, que o Lourenço e a Ana não têm, embora sejam muito mais novos?

CRIADA - Creio, minha senhora, que os Castelsot concorrem para isso; gosta muito de visitar a menina Cunegundes e o senhor Clodoaldo; e a senhora bem sabe quanto eles são orgulhosos e impertinentes.

SR.A ORVILLET - Tem razão; vê-los-á o menos

possível.

CRIADA - A senhora procede muito bem; o orgulho é contagioso, como as doenças de pele; visitando-se tais doentes, apanha-se o mal...

Felícia entra e diz, amofinada:

- A minha criada recusa-se a levar-me a casa do Germano! Acha, talvez, que isso não faz parte do seu serviço, como há pouco dizia...

- Felícia! - respondeu a mãe com severidade. Nada de impertinências! Quero que sejas delicada com a tua criada, que está em minha casa desde que nasceste e que a todos criou. Deves respeitá-la e quero que lhe obedeças como a mim.

CRIADA - Menina Felícia, no meu serviço cabe obedecer à sua mãezinha e ser-lhe agradável. Estou pronta a acompanhá-la.

A criada e Felícia saíram e puseram-se a caminho para ir ao encontro de Lourenço e Ana. Felícia não falava e a criada fazia o mesmo; Felícia aborrecia-se e não sabia como proceder para restituir à criada a sua costumada alegria; chegaram assim silenciosamente ao pequeno prado que precedia a casa do Germano; Felícia pôde ouvir os gritos de alegria que as crianças soltavam; correu à cancela que separava o jardim da campina e viu o Germaninho e o pai empoleirados numa cerejeira; Lourenço e Ana apanhavam as cerejas que, como granizo, caíam em volta deles. A mãe de Germano ajudava-os o melhor possível.

- Vimos para os ajudar! - gritou a criada, abrindo a cancela.

- Valéria! Valéria! - bradaram por sua vez os pequenos, correndo ao encontro dela. - Anda depressa! Já estamos cansados.

LOURENÇO - Apanhámos perto de dez quilos. ANA - E a mãezinha pediu muitas.

CRIADA - O Germaninho vai melhor?

MÃE DE GERMANO - Muito bem, menina, obrigada; o remédio que a senhora condessa lhe deu o outro dia tirou-Lhe a tosse num ai.

CRIADA - Ainda bem. A minha patroa tem sempre boas receitas.

MÃE DE GERMANO - Exactamente, e dá-as sem querer que lhe paguem; para nós, pobres como somos, é uma grande ajuda; quando custa a ganhar a vida, olha-se para tudo; a mais pequena despesa extraordinária desequilibra-nos.

Felícia - Três ou quatro soldos não podem desequilibrá-los muito.

MÃE DE GERMANO - Perdão, menina; quatro soldos representam o sal para a semana ou ainda o pão de uma refeição; se isso se repetisse muitas vezes ficaríamos sem dinheiro.

Felícia - Ora! Ganhavam mais! As cerejas, por exemplo, que apanham, não as dão, vendem-nas à mãezinha.

MÃE DE GERMANO (com tristeza) - Meu Deus! É verdade que sim, menina. Assim é preciso. Bem contente ficaria se pudesse oferecê-las; mas a mãezinha não as aceitaria, pois sabe muito bem que de tudo fazemos dinheiro e fazemo-lo por necessidade.

Lourenço e Ana pareciam pouco à vontade; a criada falava baixinho a Felícia, que Lhe dava cotoveladas.

Pai e filho tinham descido da árvore; a alegria desaparecera; Felícia olhava para toda a gente com ar altivo; ninguém se sentia à vontade.

Por fim, a mãe de Germano tomou um cesto de cerejas e ofereceu-as a Felícia, dizendo:

- Se a menina quer provar das nossas cerejas... Estão muito madurinhas.

Felícia apanhou um punhado sem agradecer e sentou-se junto da árvore para as comer com toda a comodidade.

- Os meninos - inquiriu, dirigindo-se a Lourenço e Ana - não comem?

LOURENÇO - Já comemos.

Felícia (com ar trocista) - Contaram-nas? LOURENÇO - Não; para que havíamos de contá-las?

Felícia (chacoteando) - Para saberem quanto é que a mãezinha terá de pagar.

CRIADA - Ah! A Felícia ainda é mais má do que eu imaginava.

ANA - Para que vieste? Não era melhor teres ficado em casa?

LOURENÇO - Desde que chegaste já não há risos, já não se conversa; estragaste a nossa alegria.

Felícia continuou a comer as cerejas; Lourenço e Ana procuraram distrair o Germaninho, que, assustado, fitava os pais. A criada encaminhou-se para junto do pai e da mãe de Germano e, chamando-os de parte, disse-lhes:

- Não se apoquentem, meus bons amigos, com as impertinentes palavras desta pequena. Se a patroa aqui estivesse, castigá-la-ia a preceito, mas dar-lhe-ei parte e garanto-lhes que terá o cuidado de evitar que ela volte a fazer o mesmo.

MÃE DE GERMANO - Peço-lhe, Valéria, que não diga nada à senhora; teria bastante desgosto se a menina Felícia fosse castigada por minha causa; ela diz essas coisas sem pensar, sem má intenção.

CRIADA - Isso sim! Conheço-a; compraz-se em humilhar as pessoas; precisa de ser emendada.

PAI DE GERMANO - Não, Valéria, que ganharíamos nós? Se falou sem querer melindrar-nos, não merece castigo; e se quis magoar, é porque tem má índole e o castigo não a corrigirá.

CRIADA - Seja como for, queixar-me-ei dela à mãe. O seu génio talvez não se modifique, mas não se atreverá a recomeçar.

 

                   O caminheiro (1)

Felícia, ao acabar de comer as cerejas, chamou a criada:

- Valéria, é tempo de voltarmos para casa; já estamos aqui há muito e a mãezinha recomendou que regressássemos dentro de uma hora.

LOURENÇO - Oh! Ainda não, Valéria. Temos de apanhar as cerejas espalhadas e depois pô-las em cima de folhas de couve e metê-las em dois cestos grandes para o Germano as levar. Não é verdade, Germano, que as leva de boa vontade? É carga pesada de mais para nós.

GERMANO - Pois claro, e com todo o prazer, menino Lourenço.

FELÍCIA - Tudo isso demora muito e nós precisamos de ir já embora.

LOURENÇO - Se queres, vai sozinha; a criada fica connosco.

Felícia - A criada vai comigo.

LOURENÇO - Não vai, não; não é obrigada a obedecer-te... Ana, ajuda- me a reter a Valéria.

 

(1) No século passado em França dava-se o nome de caminheiros aos operários estranhos à região, que trabalhavam nos caminhos de ferro.

 

Lourenço agarrou-se às saias da criada; Ana fez o mesmo, do outro lado. Ela desatou a rir e beijou-os dizendo:

- Não precisam de me reter à força, meus meninos, pois não tenho vontade de sair daqui. Ainda têm um quarto de hora para ficar. Felícia esperar-nos-á.

Felícia - Não espero; vou-me embora sozinha. CRIADA - E a mãezinha ralhará consigo, sem contar que pode ter algum mau encontro pelo caminho.

FELÍCIA - É-me indiferente. Não tenho medo de ninguém.

CRIADA - Seja como for, há-de esperar; não quero que vá sozinha e também não quero que o Lourenço e a Ana fiquem privados, por sua causa, deste quarto de hora de recreio.

Felícia lançou à criada um olhar trocista e correu à cancela, que abriu; precipitou-se por um atalho ladeado de sebes, que levava ao solar; quando a criada chegou à cancela, já Felícia tinha desaparecido.

Voltou para junto das duas crianças.

- É certo - disse - que não posso retê-la à força e também não posso deixar estas pobres crianças para correr atrás dela. Suponho que nada lhe acontecerá; não tem que se enganar no caminho; além disso, uma rapariga de perto de doze anos pode muito bem tirar-se de apuros, quando teima em fazer de senhora.

PAI DE GERMANO - Seja como for, Valéria, a minha vontade é escoltá-la sem que ela o suspeite, seguindo pelo outro lado da sebe até à alameda do solar.

CRIADA - Pois sim, tio Germano; ficarei mais sossegada, sabendo-o lá. Aproveite a ocasião para levar um dos nossos cestos de cerejas, que está pronto; arranjaremos o segundo para a outra viagem; é pesado e para si basta um.

Germano foi buscar o cesto e enveredou pelo mesmo caminho que Felícia seguira, mas pelo lado de dentro da sebe.

Caminhou por muito tempo e sem pressas para não sacudir demasiadamente as cerejas; não alcançou Felícia. A mais de meio caminho julgou ouvir gritos; parou e pôs-se à escuta.

- Pela certa, alguém está a gritar. Oxalá não tenha acontecido alguma desgraça à menina Felícia! Não é porque lhe tenha grande amizade, mas a mãezinha sofreria com isso e dessa gosto eu.

O tio Germano estugava o passo; já não ouvia gritar; num cotovelo da vereda, avistou um caminheiro que vinha ao seu encontro, cambaleando.

- Bom homem - indagou, quando se juntaram -, ouvi gritar há pouco; sabe o que foi?

CAMINHEIRO (com voz avinhada) - Sei! Parece-me que sei! Ah! ah! ah! Ela teve o que mereceu e foi bem feito!

TIO GERMANO (assustado) - Ela? Quem? Que Lhe aconteceu?

CAMINHEIRO - A pequena fartou-se de espernear, de me cuspir na cara e eu perdi a paciência!

TIO GERMANO - Mas o quê? Que fez ela? Explique-se melhor para eu perceber.

CAMINHEIRO - Uma pequenita ia a correr; o atalho era estreito para passar, por causa de um monte de lenha colocado mesmo no meio. A pequena estava em dificuldade para transpor a lenha. Mas eu, que sou um homem bom e amigo de crianças, peguei-lhe nas mãos para a ajudar. Disse-me ela:

- Não me toque que está todo sujo!

Arranca as mãos das minhas; a sacudidela fá-la cair. Eu, que sou bom e amigo das crianças, perdoo-lhe a tolice e quero levantá-la: dá-me um pontapé em cheio na cara, bradando:

- Não quero que um labrego me toque; deixe-me, seu porco, seu grosseiro, seu nojento!

Ah, sim? Eu, que sou um homem bom, começava a estar pouco satisfeito. Por mais que a puxasse, ela continuava a encher-me de insultos, mais esperneava e dava aos braços.

-Acabe com isso, menina, digo-lhe eu; sou um homem bom e amigo das crianças, mas quando são más, castigo-as, sempre por amizade.

- Atreva-se a tocar-me, seu pacóvio, e verá o que lhe acontece.

Eis que desata a cuspir-me na cara. Era de mais; parto uma chibata, agarro na pequena e chego-lhe. Quando vejo que tem a sua conta, ponho-a no chão.

- Como vê, menina - disse-lhe -, gosto de crianças, mas castiguei-a! Sou um homem bom mas já era de mais; não torne a fazer outra.

Partiu como uma seta. E eis tudo.

O caminheiro ria; Germano ficara consternado. O caminheiro, a quem não conhecia, estava evidentemente embriagado. Decerto esqueceria o que se passara.

Germano pensou que o melhor era não contar o sucedido.

- A menina Felícia, é natural que não vá gabar-se; ficaria muito humilhada em confessar que um caminheiro lhe batera; os pais ficariam desolados. Decididamente, nada direi.

E o bondoso Germano prosseguiu o seu caminho. Ao aproximar-se da alameda do solar, encontrou Felícia sentada junto de uma árvore. Abeirou-se dela.

FELÍCIA (com dureza) - Que quer? Porque vem aqui? Porque veio antes da minha criada?

TIO GERMANO - Trago um cesto de cerejas, menina. Ainda há outro; eram um pouco pesados; preferi fazer duas viagens a trazê-los no carrinho; as cerejas não devem ser sacudidas, como sabe. Aonde devo levá-las?

Felícia (com mau modo) - Não sei. pergunte aos criados. Porque está a olhar para mim? Porque me seguiu? Encontrou alguém?

TIO GERMANO -Ninguém que eu conheça, menina. E não precisa de nada?

Felícia - Não preciso de ninguém; estou à espera da minha criada. Deixe-me.

O pai do Germano cumprimentou e seguiu o seu caminho.

Se eu tivesse uma filha como Felícia - pensou -, ela é que sofria com isso! O caminheiro andou bem em beber uma pinga a mais; se estivesse em seu juízo perfeito, nunca se atreveria... e contudo ela merecia-o bem.

Felícia continuou, assustada, ao pé da árvore, reflectindo sobre o que acontecera; por vezes, chorava de raiva. - Oxalá não se saiba! - disse consigo. - Morreria de vergonha!.. Eu, filha do conde Orvillet, sovada por um labrego!.. Nunca mais saio sozinha!.. A minha criada devia ter-me acompanhado; andou mal em consentir que eu viesse sozinha... E esse porco do Germano, que nada tinha a fazer, podia muito bem acompanhar-me... E como foi bom que este Germano não tivesse vindo cinco minutos mais cedo, enquanto o labrego me batia! Ficaria radiante, contá-lo-ia a todá a aldeia! Muito grosseiros são estes labregos! Clodoaldo é que dizia bem no outro dia. Nada sentem, nada percebem... Ai! Doem-me tanto as costas! Não posso endireitar-me... Dói-me todo o corpo. Mau homem! Se ao menos pudesse vingar-me!.. Mas não posso... tenho de me calar... Todos troçariam de mim.

Felícia desatou a chorar, com a cara escondida nas mãos. E assim ficou até à chegada da criada, do irmão e da irmã, com quem então seguiu para casa.

Por fim chegaram; a senhora Orvillet ralhou um pouco, porque de facto tinham-se atrasado meia hora. Ninguém deu palavra; a criada não contou o que se passara em casa do Germano, nem a fuga de Felícia.

 

                   O caminheiro explica-se

Decorridos três dias, foram a passeio para as bandas de Castelsot; a meio caminho encontraram os senhores Castelsot com os filhos.

BARÃO - Muito prazer em encontrá-la, querida condessa, íamos a sua casa.

BARONESA - E decerto ia à nossa; espero que entre em Castelsot para descansar e tomar alguma coisa.

A senhora Orvillet hesitava em aceitar o convite, quando Lourenço bradou:

- Pois claro; estou com uma fome e uma sede terríveis; merendaremos no solar; as merendas são boas, melhores do que em nossa casa.

A senhora Castelsot, envaidecida com o elogio, e com a comparação, instou com a senhora Orvillet, que foi obrigada a aceitar.

Logo depois da chegada, serviram às crianças magnífica merenda; os pais ficaram sentados defronte do solar.

Após alguns instantes de conversa, viram um homem que se aproximava com certo acanhamento, de chapéu na mão. Cumprimentou:

- Perdão, desculpem, senhoras e senhores... BARÃO - Que quer, meu caro?

HOMEM - Venho pedir desculpa ao senhor barão de... da... inconveniência de outro dia...

BARÃO - Como? Que inconveniência, meu caro? Eu nunca o vi!

HOMEM - Mas é a verdade, senhor barão; seja como for, ofendi-o gravemente; é que, como vê, senhor barão, não tinha a cabeça em muito bom estado... havia bebido uns copitos a mais... e... e... não sabia o que fazia quando castiguei a sua menina.

BARÃO (indignado) - Castigou a minha filha? Quando foi isso? Pois atreveu-se?.. Não é possível... O senhor não sabe o que está a dizer!

CAMINHEIRO (com muita humildade) - Perdão, senhor barão; se a sua menina não fez queixa, foi uma grande bondade da sua parte. Sou um homem bom, muito amigo de crianças, mas, como já disse, tinha bebido uns copitos a mais e quando a pequenita me dirigiu uma infinidade de insultos e me cuspiu na cara, pensei: É uma criança mal-educada; é preciso castigá-la. E procedi como teria procedido com a minha própria filha, juro-lhe, senhor barão, sem maldade alguma; peguei numa chibata, agarrei a pequenita com a mão esquerda e castiguei-a como castigaria minha filha, senhor barão; acredite... Ficou-me de memória... Quando recuperei o meu juízo, compreendi que fora um animal, que cometera uma asneira grossa. Perguntei a que solar pertencia; indicaram-me o do senhor barão, e fora decerto sua filha a quem eu castigara. E vim o mais cedo possível para lhe apresentar as minhas desculpas, assim como à senhora baronesa. Aqui tem a história com toda a verdade, senhor!..

O barão e a baronesa estavam aterrados; a senhora Orvillet sentia-se pouco à vontade por ser testemunha de semelhante descoberta. As crianças, que tudo tinham ou vido, não estavam menos admiradas. Felícia estava num suplício; Cunegundes, furiosa; Clodoaldo, profundamente humilhado e Lourenço e Ana, pasmados.

Ninguém falava. O caminheiro ia a retirar-se, muito contente por não haver recebido reprimenda alguma pela sua inconveniência, como lhe chamava, quando o senhor Castelsot, rubro de cólera, se levantou e, mostrando o punho ao caminheiro, disse- Lhe:

- Miserável, canalha, estás a mentir! Não tocaste em minha filha; nunca te atreverias! Um vagabundo como tu, pôr as mãos na filha do barão Castelsot! Não é possível!

CAMINHEIRO - Perdão, senhor barão, tanto é possível, que o fiz. Talvez não me assistisse razão, não digo o contrário, mas confessei ao senhor barão; bebera uns copitos a mais e todos sabem que, quando um homem se embriaga, não procede em seu juízo. Não sou miserável, nem canalha; sou um homem bom, amigo das crianças, e, se o senhor me mostrar a pequenita, renovar-lhe-ei as minhas desculpas com toda a humildade. BARÃO - Bandido! Sim, vou chamar a minha filha para te desmentir, para provar que és um patife, um vadio, um mariola, um mentiroso!.. Cunegundes! -gritou, aproximando-se da janela da casa de jantar. - Anda cá depressa; preciso de ti!

Cunegundes correu ao chamamento do pai, com a cara rubra de cólera, de olhar irritado.

CUNEGUNDES - Ouvi tudo, meu pai; este homem é um descarado mentiroso; nunca o vi, nunca lhe falei e, se ele se atrevesse a tocar- me, mandá-lo-ia prender e fá-lo-íamos condenar.

O caminheiro examinava-a com a maior surpresa e, com efeito, reconhecera que Cunegundes não era a pequenita que encontrara e castigara.

CAMINHEIRO - Mil perdões, menina. De facto, tem razão, apesar de eu a ter também. Não foi a menina que eu encontrei e castiguei! Enganaram- me; sou um homem bom. Retirem as suas injúrias, senhor barão e menina, assim como eu retiro as minhas desculpas. Boa tarde a todos. Não consegui ser agradável, apesar de ter feito o possível. Não foram agradáveis para mim, também é justo dizê-lo. Compreende-se; com um pobre caminheiro que corrige uma menina, a guarda nada tem que ver e não se condena um homem por praticar uma inconveniência. Mas não deixa de ser engraçado...

E, virando as costas, retirou-se à pressa para evitar novo furor do senhor barão e da senhora baronesa.

O barão ficou muito exaltado; a baronesa, hirta e silenciosa, reprimiu a cólera por causa da senhora Orvillet, que não sabia se devia falar ou conservar-se em silêncio. Por fim balbuciou algumas palavras consoladoras para acalmar os ânimos.

- A desculpa deste homem - disse - está na sua embriaguez; julgou ter cometido a falta de que veio acusar-se, e, no fim de contas, tem a aparência de bom " homem. Julgou ter procedido bem, praticando este acto de humildade.

BARÃO (colérico) - um patife e se se atreve alguma vez a apresentar-se diante de mim, atiro-lhe às pernas os meus trinta cães.

SR.A ORVILLET - Os seus trinta cães despedaçariam o desgraçado e arranjaria grossa questão.

BARÃO (surpreendido) - Com quem?

SR.A ORVILLET - Com o procurador de justiça. BARÃO (desdenhosamente) -Por causa de um labroste como este?

SR.A ORVILLET (com severidade) - Este labroste é um homem como o senhor.

BARÃO - Ah! ah! ah! Como eu?

SR.A ORVILLET (severa) - Sim, como o senhor, com a diferença de que o senhor é rico e ele pobre, que tem orgulho na situação que Deus Lhe concedeu, enquanto ele é humilde e modesto, e acaba de pedir-lhe desculpas por supor que o tinha ofendido; que recebe as suas injúrias sem lhas retribuir e que...

BARÃO (indignado) - Sempre gostava que ele me respondesse no mesmo tom!

SR.A ORVILLET - Que faria?

BARÃO (hesitando e acalmando-se) -Tê-lo-ia... tê-lo-ia... Por Deus, não lhe teria tocado, porque é quatro vezes mais forte do que eu, mas chamaria os meus criados para lhe darem uma sova.

  1. A ORVILLET - Que pagaria muito caro, e além disso arranjaria uma questão.

BARÃO - Ora, ora!.. A condessa vê questões em tudo...

SR.A ORVILLET - Vejo-as onde podem suscitar-se. Em França, a lei protege toda a gente; não é permitido maltratar um homem sem ser punido pela lei.

Cunegundes voltara à sala de jantar.

CUNEGUNDES - Eu bem sabia que esse homem não dizia a verdade; foi obrigado a confessar a sua mentira. Esse homem não passa de um patife.

LOURENÇO - Patife porquê? Não vejo patifaria alguma no que disse.

CUNEGUNDES - O quê? Um miserável que se atreve a inventar tão abominável coisa?

LOURENÇO - O pobre homem estava ébrio, ele próprio o disse. Sonhou e, ao acordar, tomou o sonho como realidade; nada mais.

CLODOALDO - Mas hoje não está ébrio; porque veio contar aqui todas aquelas mentiras?

LOURENÇO - Por ser boa criatura; arrependeu-se de haver batido na vossa irmã e julgou proceder bem, vindo pedir perdão.

ANA - E fez muito bem.

CLODOALDO - Parece-lhe, menina? Foi muito desagradável para nós.

ANA - Desagradável, porquê?

CLODOALDO - Porque vai dizer por toda a parte que bateu em minha irmã; e um barão Castelsot não pode suportar tal injúria!

LOURENÇO - Que fará, então?

CLODOALDO (com dignidade) - Nada. LOURENÇO (rindo) - Então não vale a pena gritar tanto.

Clodoaldo e Cunegundes lançaram a Ana e a Lourenço um olhar furioso de desdém e desprezo e voltaram-se para Felícia.

CLODOALDO - E a menina, que nada disse até agora, decerto é da nossa opinião.

- Completamente, senhor Clodoaldo - respondeu Felícia, que acabara de se refazer da comoção que lhe causara esta cena.

Foi assim que findou a aventura do caminheiro, de quem mais ninguém falou, enquanto permaneceram em Castelsot.

Mas, durante o regresso do passeio, Lourenço e Ana falaram muito dele.

 

                     O caminheiro e o urso

- Mãezinha, não acha - interrogou Lourenço - que o pobre caminheiro é muito bom, muito honesto? Gosto bastante dele.

SR.A ORVILLET (sorrindo) - O que fez, indo pedir desculpa, é decerto de um excelente homem; mas foi um pouco estúpido.

LOURENÇO - Porquê, mãezinha?

SR.A ORVILLET - Porque devia lembrar-se de que era afrontoso para a pequena Castelsot ter apanhado pancada de um caminheiro e, principalmente, por ter, com as suas grosserias, irritado esse homem a tal ponto.

LOURENÇO - Mas eu acho que, visto não ter razão, procedeu bem em pedir desculpa.

  1. A ORVILLET - Procederia bem se tivesse podido reparar o mal que fez. De que lhe serviam as desculpas?

Para nada, a não ser para humilhar os pais e a pequena, dando a conhecer essa ridícula história. Verdade seja que, se não fosse ele, só ouviríamos falar o senhor e a senhora Castelsot. E tu, Felícia, não dizes nada? Que pensas a respeito desse pobre homem?

Felícia - Penso que é uma criatura abominável e que merecia ir para a cadeia.

SR.A ORVILLET - Deus meu, como és severa! Como tomas tanto a peito o partido dos Castelsot!

Felícia - É porque gosto muito deles e compreendo quanto isto é desagradável para Cunegundes.

LOURENÇO - Pois a tua Cunegundes merecia bem que o caso se passasse com ela. Bem satisfeito ficaria em saber-lhe punido o orgulho.

Um grito de Felícia interrompeu Lourenço. Todos se viraram para o lado dela. Parara, de feições alteradas, de mãos postas, com os olhos fitos num objecto estendido debaixo das árvores que ladeavam a estrada.

Ao ouvir tal grito, aquilo que tanto aterrava Felícia levantou-se vagarosamente e reconheceram nele o caminheiro que tanto os preocupava havia uma hora. Levantou-se de todo, fitando, surpreendido e um pouco assustado, Felícia, que ficara imóvel no meio do caminho.

Ela percebeu que ele a reconhecera. Pela primeira vez na sua vida, o orgulho se vergou ante o medo; fitou-o com o olhar suplicante e sempre de mãos postas.

O caminheiro, que compreendera a tolice que fizera em Castelsot e que era bom homem, como dizia, dirigiu-lhe um olhar de entendimento e, abeirando-se da senhora Orvillet, falou nestes termos:

- Peço-lhe mil perdões, minha senhora, pelo que se passou no solar do senhor barão; julgava fazer bem e fiz uma tolice, ao que parece. De facto, eu devia ter percebido que fora uma ideia de ébrio e que tudo teve    origem num sonho.           

SR.a ORVILLET - Não lhe quero mal por isso, meu amigo; em nada me faltou ao respeito. Agradeço-lhe as       

suas boas intenções. Boa tarde.

CAMINHEIRO - Perdão! Desculpe se lhe peço licença para a acompanhar até sua casa. Vai sozinha com as           crianças e talvez não seja prudente.     

SR.A ORVILLET - Obrigado, meu amigo; já estamos acostumados a passear por este bosque e não corremos       perigo algum.

CAMINHEIRO - Mas a senhora não sabe que ontem à noite fugiu de uma jaula um urso que percorre o            bosque; viram-no por aqui esta manhã e eu estava de sentinela para o apanhar; dão cinquenta francos de prémio à pessoa que livre dele a região, e cem francos a quem o apanhar vivo.

SR.A ORVILLET (aterrada) - De nada sabia; agradeço-lhe o aviso e aceito a sua companhia. Mas o senhor não traz arma alguma para se defender?

CAMINHEIRO - Perdão, minha senhora, tenho o meu cacete e tudo quanto preciso no bolso.

As crianças, apavoradas, agarraram-se à mãe.

LOURENÇO - Vamos depressa, mãezinha! Ainda estamos longe!

CAMINHEIRO - Fiquem junto de sua mãezinha, meus meninos. Eu seguirei atrás. Assim, não haverá perigo.

Voltaram a caminhar, já não se atrevendo a falar, olhando para um lado e outro, esperando constantemente ver sair o urso de trás de algum silvado.

A sua expectativa não durou muito; no desvio de uma vereda, acharam-se diante da fera; todos estacaram; o urso soltou um grunhido e pôs-se de pé nos quartos traseiros. O caminheiro pôs-se de permeio entre o urso e a senhora Orvillet.

- Não avancem! Deixem-me sozinho!

O animal permaneceu indeciso por momentos; depois, tomando uma resolução, apertado pela fome, deu um passo para o caminheiro, que lhe assentou uma cacetada na cabeça; o urso, a cambalear, tornou a pôr-se de pé e abriu as enormes goelas. Antes, porém, que estendesse as patas dianteiras para agarrar o caminheiro, este enfiou-lhe pela boca, ainda aberta, uma pequena estaca de madeira muito rija, aguçada nas extremidades.

O urso quis fechar as fauces para devorar o braço do caminheiro, mas as pontas da estaca cravaram-se-lhe na língua e no palatino. Quanto mais esforço o animal fazia para fechar a boca, mais as pontas se lhe enterravam na carne.

Sem perda de um instante, aproveitando o movimento das patas dianteiras que o urso levava à boca para se libertar da estaca, o caminheiro lançou-lhe um nó corredio, que quase estrangulou o animal e Lhe fez perder a respiração. Faltando-lhe as forças, rolou por terra.

O caminheiro não largou a corda; os movimentos do urso cada vez apertavam mais o nó corredio; entretanto, o caminheiro não deixava de lhe dar cacetadas, tendo o cuidado de não lhe bater na cabeça para o conservar vivo e ganhar assim os prometidos cem francos.

A senhora Orvillet e os filhos, apavorados, seguiram assim a luta do urso e do caminheiro que, uma vez por outra, recebia terríveis unhadas do animal. Por fim, os movimentos convulsivos do urso cessaram; permaneceu estendido, estertorando, quase estrangulado, com a boca em sangue. A luta findara; o caminheiro vencera. Alargou um pouco o nó corredio, tirou do bolso uma corrente, pô-la ao pescoço do animal, fixou a um dos anéis o gancho que estava numa das pontas da corrente e segurou a outra ponta no anel do cacete, já preparado para esse fim, tirou do cinto uma pequena barra de ferro pontiaguda e, alargando de todo o nó corredio, deixou o urso respirar livremente, mas sem lhe tirar a estaca que lhe conservava a boca aberta.

CAMINHEIRO - Belo! Estás apanhado, meu menino, e pronto a voltar para a jaula. Cuidei de ti, dei- te ar; só a mordaça é que te incomoda; ficas com ela até te levar para a cidade. Agora eu... O patife do urso rasgou-me as pernas; dos quadris aos calcanhares ficaram marcas. Felizmente tinha as unhas cortadas; de contrário, ter-me-ia rasgado de alto a baixo.

SR.A ORVILLET - Pobre homem! Está a perder muito sangue; deixe-me ligar-lhe a ferida da perna; o sangue corre em abundância.

CAMINHEIRO - Não consinto que a senhora se baixe para me ligar a perna. Não me dói.

SR.A ORVILLET - Permita ao menos que lhe testemunhe, meu amigo, o meu reconhecimento por nos haver salvo, a meus filhos e a mim. Deixe-me tratá-lo. Afianço-lhe que precisa de ser tratado.

Sem esperar resposta, a senhora Orvillet tirou o lenço, rasgou-o ao meio e, não obstante a oposição do pobre caminheiro, pensou e ligou-lhe a perna para estancar o sangue; outra ferida no joelho também sangrava muito; a senhora Orvillet já não tinha lenço.

- Aqui tem o meu, mãezinha - disse Lourenço, dando o seu à mãe.

- E aqui tem também o meu - exclamou Ana, imitando o irmão.

A senhora Orvillet aprovou-os com um sorriso e fez como da primeira vez: pensou-o com o lencinho de Lourenço e ligou-o com o de Ana.

- Ouça, meu amigo - disse-lhe ela -, não se encontra em estado de seguir até à cidade. Fique aqui; nós vamos depressa para casa; mando-Lhe uma carroça; subirá para ela com o urso e levá-lo-ão aonde quiser.

CAMINHEIRO - Muito agradeço, minha querida senhora; com efeito, suponho que não iria muito longe... Vamos, espertinho, sê prudente, não te mexas e irás de carro ter com o teu dono, que te vai dar muitas pauladas para te ensinar a não andar pelas florestas! Já te dei uma boa dose, mas isso não conta; nada diremos ao teu dono.

A senhora Orvillet sorriu, apertou a mão do bom caminheiro e afastou-se, dizendo:

-Mandar-Lhe-ei a carroça logo que chegue. Fica perto, uns dez minutos, talvez.

O caminheiro agradeceu de novo, cumprimentou e sentou-se junto do seu inimigo, não largando o cacete nem a barra de ferro.

- Não te mexas; ao primeiro movimento que faças, bato-te com o ferro e pico-te com a ponta.

O urso parecia ter percebido. Com os rins magoados pelo cacete e as goelas ensanguentadas pela estaca, conservou-se estendido, grunhindo dolorosamente, mas sem tentar levantar-se.

Meia hora depois, a carroça chegou; deu trabalho instalar o urso. O caminheiro colocou-se atrás dele para o manter em respeito, dizia ele. A senhora Orvillet mandou-lhe uma garrafa de vinho velho, que lhe deu ânimo, e um rolo de ligaduras para pensar os ferimentos. Recomendou que o levassem a um médico e depois o conduzissem a casa.

O urso foi restituído ao dono, que o libertou da mordaça e o encheu de pancada, metendo-o na jaula e dando-lhe, como único alimento, pão e água.

O caminheiro recebeu os cem francos prometidos. Foi observado e pensado pelo médico e conduzido a casa. O cocheiro obrigou-o a aceitar uma bolsa com cinquenta francos.

O caminheiro bendisse Deus pelo seu dia; a mulher chorou de alegria, os filhos choravam ao ver-lhe sangue. A calma restabeleceu-se e o caminheiro contou as suas aventuras, salvo o encontro da pequenita a quem batera; e passaram uma noite feliz.

 

                   Narrativa dos meninos à criada

Quando as crianças entraram em casa, Lourenço e Ana correram ao quarto da criada.

LOURENÇO - Valéria! Valéria! Não sabes? Um urso enorme quis devorar-nos.

ANA - E um excelente homem chibatou a Cunegundes e matou o urso.

CRIADA (rindo) -Como? Que estão para aí a dizer? Um urso no bosque? Um excelente homem que chibatou a Cunegundes? Quem matou o urso? É impossível, meus meninos.

LOURENÇO - Afianço-te, Valéria, que é verdade! Pergunta à mãezinha. Um urso enorme e enraivecido.

ANA - Podes crer, Valéria. Chibatou a Cunegundes. Ela estava furiosa.

CRIADA (rindo) - O urso chibatou a Cunegundes? Foi bem feito! Era escusado matá-lo por isso...

ANA - Não é assim, foi o homem.

LOURENÇO - Não, Ana, não a chibatou. ANA - Digo-te que sim. Eu ouvi bem.

LOURENÇO - A mãezinha disse que ele tinha sonhado. E quis devorar- nos; e o homem...

CRIADA (rindo com vontade) - O homem quis devorá-los?

LOURENÇO - Nada disso, não estás a perceber. Foi o urso.          

CRIADA - Mas onde estava o urso?

LOURENÇO - No bosque. E o homem espicaçou-o, prendeu-o com cordas e depois caiu.     

CRIADA - Quem? O homem?     

LOURENÇO - Não; o urso. E o homem tinha sangue nas pernas; e eu já não tenho lenço; queria um para me assoar, porque chorei. A Ana também, e também a mãezinha.

CRIADA - Todos choraram? Não percebo palavra

dessa história. Decerto, sonharam meus meninos.

LOURENÇO - Se te digo que não! Ris porque um mau urso nos quis devorar? É muito feio da tua parte!

CRIADA - Meu pequenito, se um urso quisesse devorá-los, ficaria aterrada; mas nestes sítios não há ursos.

LOURENÇO - Pergunta à mãezinha; verás que é verdade. Dá-me um lenço. Quero-me assoar.

ANA - E a mim também.

A criada deu um lenço a cada um; já não ria; começava a perceber que tinham corrido qualquer perigo. Pensava que os pequenos tivessem tomado um grande cão por um urso, e continuou a interrogá-los.

CRIADA - Vamos, Lourencinho, diga-me primeiro onde estava o tal urso.

LOURENÇO - No bosque, à beira do caminho; e grunhia muito alto.

CRIADA - E quem era esse homem que matou o urso?

ANA - O que tinha ido pedir perdão por ter chibatado a Cunegundes.

CRIADA - E porque a chibatou?

ANA - Porque ela lhe disse tolices e Lhe cuspiu na cara. O homem zangou-se muito e bateu-Lhe com uma chibata.

LOURENÇO - Confessou que estava ébrio e que queria pedir perdão. Cunegundes disse não ser verdade. O homem também afirmou não ser verdade, pois não a conhecia. Foi-se embora, e nós encontrámo-lo deitado no bosque. Esperava um urso; e pediu perdão à mãezinha. Depois disse à mãezinha que queria vir connosco para matar o urso que fugira, porque lhe dariam cem francos se o agarrasse. O urso veio e nós tivemos muito medo. O homem meteu uma estaca na boca do urso e apertou-lhe o pescoço com uma corda e o bicho caiu. E o homem prendeu-lhe uma grande corrente a um cacete, e tirou-lhe a corda.

ANA - Mas não dizes que o pobre homem estava ensanguentado.

LOURENÇO - Espera; ainda não acabei. E o pobre homem escorria muito sangue. E a mãezinha rasgou o lenço; apertou-lho à perna e em seguida, como tinha buracos no joelho, e a mãezinha não tinha lenço, dei-lhe também o meu.

ANA - E eu também lhe dei o meu.

LOURENÇO - Espera; não me deixas falar.

ANA - Contas tão devagar!

LOURENÇO - Conto o mais depressa que posso. E a Ana deu o seu, e a mãezinha ligou-lhe o joelho. E o homem agradeceu à mãezinha.

ANA - E a mãezinha também agradeceu ao homem. LOURENÇO - Mas deixa- me falar. Estás sempre a interromper-me.

ANA - Tu não dizes tudo; eu também quero contar. LOURENÇO - Então, conta!.. Anda... conta! ANA - Não disseste que a Felícia não deu o lenço dela; chorávamos e ela não; nem sequer agradeceu ao pobre homem.

LOURENÇO - Mas a mãezinha agradeceu por todos nós; e disse-lhe que ficasse ali com o urso, que lhe mandaria a carroça.

ANA - E quando voltámos para casa, a mãezinha foi recomendar ao tio João que atrelasse a carroça e levasse o homem com o urso.

CRIADA (beijando-os) - Meus pobres meninos, compreendo agora que, se não fosse esse homem, talvez tivessem sido devorados pelo urso mau. Agradeçam a Deus havê-los feito encontrar essa bondosa criatura e tê-los salvo de tão grande perigo.

LOURENÇO e ANA (beijando-a) - Não chores, Valéria, não chores; bem vês que estamos de perfeita saúde; não nos ferimos como o pobre homem.

A criada beijou-os repetidas vezes. A senhora Orvillet entrou nessa ocasião.

-Já vejo, minha boa Valéria, que os pequenos contaram a terrível aventura. Venho pedir-lhe ligaduras para as feridas do bondoso caminheiro, que nos salvou; a outra criada saiu e isto é muito urgente. Arranje um bom embrulho e acrescente uma garrafa do nosso vinho velho de S. Jorge; o pobre homem perdeu muito sangue e este vinho dar-lhe-á forças.

CRIADA - Vou já, minha senhora, e se me dá licença, também lhe levo algum dinheiro. Esse homem decerto é pobre.

  1. A ORVILLET - Foi o que pensei, Valéria. Nesta bolsa estão cinquenta francos, que o cocheiro entregará depois de o haver posto em casa.

A criada correu a executar as ordens da senhora Orvillet.

  1. A ORVILLET - A Felícia não está convosco! Onde está?

LOURENÇO - Não sei, mãezinha; ainda não apareceu aqui.

SR.A ORVILLET - Naturalmente meteu-se no quarto. A senhora Orvillet saiu, seguida pelos filhos.

Encontraram, de facto, Felícia sentada numa poltrona.

  1. A ORVILLET - Que estás aí a fazer sozinha, Felícia?

FELÍCIA - A descansar, mãezinha.

LOURENÇO - Porque não foste ter com a criada, como nós fizemos?

Felícia - Não precisava dela; nada tinha a pedir-lhe.

LOURENÇO - Mas ajudar-nos-ias a contar a nossa história. A princípio nada percebia; ria-se porque julgava que o urso tinha chibatado a Cunegundes...

Felícia - Que estúpida!

LOURENÇO - Não é estúpida; nós é que não sabíamos contar. Depois imaginava que tínhamos sonhado, como o bondoso homem que sonhou ter chibatado a Cunegundes.

Felícia - Ele não disse que a chibatou; disse que lhe bateu.

LOURENÇO - É a mesma coisa... bater ou chibatar... FELÍCIA - Não acho que seja a mesma coisa... LOURENÇO - Ora, ora!.. Seja como for, devias ter vindo ao quarto da pobre criada, que tanto nos estima. Não é verdade, mãezinha?

  1. A ORVILLET - Com certeza, meu querido filho. Se a Felícia gostasse da sua criada como devia, sentiria como nós a necessidade de contar-lhe o perigo que correu e o reconhecimento que devia ter por esse bondoso caminheiro.

Felícia - Nada devo a esse homem; quis apanhar o urso para ganhar cem francos e não para me salvar!

SR.A ORVILLET - O que dizes não é bem assim. Esse pobre homem teve o cuidado de nos avisar e de nos acompanhar; e se não fosse ele, o urso cairia sobre nós e talvez nos devorasse.

FELÍCIA - Acompanhou-nos para ter os cem francos. Estes labregos só pensam em ganhar dinheiro.

LOURENÇO - És injusta; o pobre homem só pensou em ser-nos útil.

FELÍCIA - Deixa-me em paz; detesto esse homem grosseiro que finge ser boa pessoa.

LOURENÇO - Não finge tal; é muito bondoso e amanhã vamos saber dele.

FELÍCIA - Que bonito! Isso é de mais! Ir saber de um caminheiro! E de um caminheiro como este!

SR.A ORVILLET - Faz o favor de te calares; cada palavra, cada asneira. Tens um orgulho que me faz compaixão; vamos amanhã saber do bondoso caminheiro e quero que nos acompanhes.

Felícia - Oh! mãezinha, por quem é, deixe-me ficar em casa. Tenho medo desse rústico; estou certa de que nos fará mal.

LOURENÇO - Tens medo de que te chibate a valer, como no seu sonho?

Felícia corou como uma cereja madura. Não se atreveu a proferir mais palavra e a mãe repetiu-lhe a ordem de acompanhá-la, no dia seguinte, na sua visita.

 

                   Mistério desvendado e encontro imprevisto

De facto, no dia imediato, todos se prepararam para sair. Felícia, desolada, ainda suplicava à mãe que a deixasse em casa; a senhora Orvillet, que imaginava ser o orgulho que levava Felícia a recusar a sua visita a um pobre caminheiro, não quis ceder a esse mau sentimento e mandou-a calar e pôr o chapéu.

A criada entrou nos aposentos da senhora Orvillet, alguns instantes depois.

CRIADA - Se a senhora soubesse o estado em que se encontra Felícia! Chora, arrepela-se; creio que a senhora faria melhor não a obrigando hoje a ir a casa do caminheiro.

SR.A ORVILLET - Não, Valéria; não quero ceder agora; o orgulho aumenta com a idade e, principalmente, desde que temos os Castelsot como vizinhos, ela está pior. Quero quebrar-lho enquanto é tempo.

CRIADA - Mas a senhora desconhece uma coisa. Soube ontem uma novidade que julgo dever dar a conhecer à senhora e lhe fará desculpar a relutância de Felícia em se encontrar cara a cara com esse homem.

SR.A ORVILLET - Que temos? Que é?

CRIADA - É que a história da menina em quem ele bateu é verdadeira; simplesmente enganou-se no solar; em vez de ser a pequena Castelsot, foi Felícia a castigada.

SR.A ORVILLET (estupefacta) - A Felícia? Não é possível! Nunca anda só! De resto, ter-se-ia queixado.

CRIADA - O seu amor-próprio impediu-a de o fazer. A senhora vai saber o que aconteceu.

Então, a criada referiu tudo o que se passara em casa do Germano e como encontrara Felícia banhada em lágrimas, sentada à entrada da alameda.

- A princípio supus que chorasse de contrariedade por não lhe obedecermos quando nos quis obrigar a sair de casa do Germano; mas notei que sofria ao andar, mexendo os braços. No dia seguinte, ao lavar-lhe o pescoço e ombros, vi que tinha pisaduras em toda a parte; disse-me que caíra em cima de umas pedras; eu, porém, achei singular que uma queda produzisse tais pisaduras. Quando os meninos me contaram ontem a história do caminheiro e do seu pretenso sonho, tudo isso me ocorreu e à tarde fui falar ao Germano. Como a tinha seguido, devia saber o que lhe acontecera. Pareceu-me indeciso; notei que ocultava qualquer coisa. Apertei-o com perguntas. Então confiou-me que encontrara o caminheiro meio embriagado, que Lhe disse ter castigado uma menina impertinente, toda a história que a senhora ouviu repetir em casa dos Castelsot... Germano não quisera falar nisso com medo de humilhar Felícia. Mas a senhora decerto compreende ser de facto doloroso para Felícia encontrar-se na presença desse homem que lhe bateu. Deve recear que diga alguma coisa que a dê a conhecer e a comprometa.

A senhora Orvillet estava apoquentada com a narrativa da criada. Permaneceu algum tempo calada; por fim, disse, comovida:

- Meu Deus! O que ela foi fazer com as suas insolências! É terrível para ela; e, de facto, compreendo a sua relutância em encontrar-se frente a frente com esse desgraçado, a quem não pode culpar-se muito, pois estava embriagado. Mas porque não me falou ela nisso? Se o soubesse, teria procedido de outra forma. E depois, teríamos tratado dela, porque deve ter sofrido bastante.

CRIADA - Nada disse, nem sequer a mim, porque sabia ser repreendida por haver fugido sozinha, contra a minha vontade. Quanto a tratá-la, minha senhora, tratei-a eu, sem o participar a ninguém. Untei-a com hipericão e desde então deixou de ter dores.

A senhora Orvillet reflectiu alguns instantes.

- Vou sozinha a casa desse pobre homem; devo-lhe esta visita em virtude do grande serviço que nos prestou. Conto que me não falará da Felícia. Deve tê-la reconhecido; notei que olhava muito para ela e com surpresa antes de se aproximar de mim. Teve naturalmente a delicadeza de nada dizer para não a humilhar. O pobre caminheiro afigurava-se-me ser bom homem e espero que compreenderá que, em tais circunstâncias, é melhor estar calado do que falar... Mande-me os pequenos, Valéria. Quero dizer-lhes que não os levo e que sairão consigo.

Decorridos cinco minutos, os pequenos entravam nos aposentos da senhora Orvillet, que lhes disse:

- Meus queridos filhos, pensei que talvez fosseis incomodar o pobre ferido, que decerto está pessimamente alojado e não poderia fazer sentar todos; vou lá sozinha; deixo-vos com a Valéria.

Lourenço e Ana não pareceram descontentes com esta mudança de projecto. Felícia ficou radiante. A senhora Orvillet fez-se acompanhar por João, que sabia onde morava o caminheiro; os pequenos entretiveram-se a plantar flores e arbustos no seu jardinzinho.

Felícia dava ordens; Lourenço e Ana executavam-nas, ajudados pela criada, que fazia o mais dificil. Felícia achava demasiado baixo para ela pegar numa enxada ou num regador; o mais que fazia era segurar nas flores e nos arbustos enquanto os irmãos plantavam.

Apenas por momentos se baixou para plantar um pé de rainhas-margaridas, que reservara para o seu jardim particular. Enquanto cuidadosamente enterrava o pé da flor, ouviu uma gargalhada perto dela. Voltou-se com vivacidade e, envergonhada, corou muito ao reconhecer Cunegundes e Clodoaldo.

CLODOALDO (motejando) - Como? Pois a menina trabalha na terra? Não tem um jardineiro que faça esse trabalho de campónio?

Antes de Felícia, hesitante, encontrar desculpa para esta humilde tarefa, a criada respondeu:

- Não somos tão orgulhosos, meu senhorzinho; divertimo-nos em embelezar o nosso jardim, sem distrair o jardineiro do seu trabalho.

CLODOALDO - A filha do senhor conde Orvillet poderia, parece-me, ter ocupações mais dignas da sua categoria.

CRIADA - Não temos essas ideias tolas, senhor Clodoaldo, e até sentimos prazer em nos entretermos, quando há disposição para isso. Vamos, menina Felícia, acabe de plantar a sua bela rainha-margarida; temos muito que fazer para a plantação das nossas.

Felícia (confusa) - Valéria, era melhor que o Lourenço e a Ana o fizessem por mim. Não estou habituada

a essas coisas e sou uma desastrada. Desculpe, senhor Clodoaldo, tê-lo deixado entrar no jardim das crianças; não o sabia aqui.

CLODOALDO - Vínhamos saber notícias suas, menina; disseram-nos que, ao regressarem ontem a casa, haviam sido atacadas por um urso fugido duma jaula.

Felícia - Sim, foi verdade, mas felizmente nem sequer ficámos feridos!

CUNEGUNDES -E, de facto, foi felicidade. Como se livraram? Um urso é tão forte!

Felícia - Corremos para casa.

LOURENÇO - Porque não dizes que foi o bom caminheiro que nos salvou?

CUNEGUNDES - Que caminheiro?

LOURENÇO - O que foi pedir desculpa por lhe ter batido.

CLODOALDO - Esse vil mentiroso? Nunca aceitaria o socorro de semelhante patife!

LOURENÇO (em tom trocista) - Preferiria que o urso nos tivesse devorado?

CLODOALDO (comprometido) - Decerto que não. Mas ele não os teria atacado. Um urso é tão poltrão!

LOURENÇO - Não diria isso se tivesse visto a luta entre o pobre caminheiro e o urso!

ANA - O pobre homem ficou com as pernas todas ensanguentadas.

CLODOALDO - Foi bem feito; teve o que merecia. ANA - Isso não se diz, que é feio.

LOURENÇO - E o que era preciso fazer em vez de aceitar o socorro do caminheiro?

CRIADA (rindo) - Cumprimentar o urso e dizer-lhe: Senhor urso, somos filhos do conde Orvillet! Decerto não se atreve a tocar-nos; devore esse caminheiro, que não passa de um rústico, e deixe-nos passar.

Os pequenos riram; a própria Felícia não pôde deixar de rir; Clodoaldo parecia muito vexado; Cunegundes lançou um furibundo olhar à criada, convidando Felícia a ir para o parque.

CRIADA - Não se afaste muito, menina.

LOURENÇO (rindo) - Cunegundes, não se esqueça do sonho do caminheiro. Se o sonho não fosse sonho, que faria?

CUNEGUNDES (irritada) - Fá-lo- ia chicotear, a si, pela sua mãezinha, para o punir da impertinência!

LOURENÇO - Se o caminheiro a fustigar a valer, chame-nos!..

CRIADA - Calem-se, meus meninos; não é bonito rir do que é desagradável para os outros. E esta história não pode ser agradável para a menina Cunegundes.

Felícia estava sobre brasas; afastou-se com os seus amigos.

Felícia - Detesto esse abominável caminheiro.

CUNEGUNDES - Deviam prendê-lo para castigo da sua invenção.

CLODOALDO - É preciso que o paizinho o faça expulsar daqui.

CUNEGUNDES - Onde está a mãezinha? Queríamos dar-lhe os bons-dias.

Felícia - Foi visitar esse miserável.

CUNEGUNDES - Visitar um grosseiro labrego? CLODOALDO - Um mentiroso, um grosseirão! Boa ideia, não há dúvida...

Felícia - E a mãezinha queria levar-nos; mas eu não quis.

CLODOALDO - Fez muito bem. Eu preferia deixar-me matar a ser delicado com pessoas como esse caminheiro. Mas como é que a sua mãezinha, a condessa Orvillet, os leva a casa de todos os miseráveis da aldeia?

FELÍCIA - É que a mãezinha tem ideias extravagantes a respeito dos pobres e dos operários; diz que muitas vezes valem mais do que nós; que são nossos irmãos.

CLODOALDO - Nossos irmãos? Ah! ah! ah! Olha que ideia! Então o caminheiro é teu irmão, Cunegundes. É seu irmão, Felícia! Será o tio dos nossos filhos! Ah! ah! ah! Não supunha que a sua mãezinha tivesse ideias tão singulares.

CUNEGUNDES (troçando) - E eu não imaginava que a Felícia tivesse uma família tão inconveniente.

UMA VOZ GROSSA - Saiba, meu senhorzinho (a quem não conheço), que merecia uma sova por se ter permitido falar assim da senhora Orvillet diante da filha, e que, se recomeça, comigo terá de se haver!

Felícia - Meu Deus! O meu tio!

Clodoaldo voltou-se e viu um alto e simpático homem dos seus quarenta anos e de aspecto distinto. Não sabendo quem era, reprimiu a cólera e respondeu com altivez:

- Não sei quem é o senhor! Eu sou o baronete Castelsot e não quero que me fale como a um caminheiro.

SUJEITO - Vamos, vamos, pequeno, cala-te e não recomeces. Queres saber quem sou, tu, o pretenso barão Castelsot (bem posto nome... )? Sou o general conde AIban, irmão da senhora Orvillet, tio desta tolinha da Felícia, aqui presente. Tenho desancado mais fortes e mais tolos do que tu, meu rapaz! Por isso, toma cautela. Não

recomeces, repito-te. E tu, Felícia, proíbo-te que fales de tua mãe como acabas de o fazer; sabes que não mastigo as palavras, e digo-te que és uma tola, uma orgulhosa e uma vaidosa. Onde está a tua mãe?            

Felícia, indecisa, não se atreveu a ripostar ao tio;

respondeu confusa:           

- Foi visitar um pobre; não deve tardar.

GENERAL - Está bem. Venho passar um mês com ela. Quero ver o Lourenço e a Ana. Onde estão?            

FELÍCIA - No jardinzinho, meu tio; se quer levo-o lá.

GENERAL - Não, obrigado; conheço bem o jardim; muita vez o cultivei convosco. Fica com os teus encantadores amigos... Senhor barão! -acrescentou, fazendo profunda vénia -, muita honra em cumprimentá-lo, assim como a sua digna irmã, menina Castelsot.            

E retirou-se, a rir.    

 

                   O bondoso tio

O senhor Alban dirigiu-se ao jardinzinho onde os pequenos continuavam a trabalhar com entusiasmo. A criada viu-o aparecer; ia advertir as crianças, mas o general fez- lhe sinal para que se calasse; aproximou-se de mansinho e, tomando Lourenço e Ana nos braços, beijou-os repetidas vezes, antes que eles se refizessem da surpresa.

- Tio Albert! Meu querido tio! - exclamaram ao mesmo tempo os pequenos.

O general apertou a mão da criada, dizendo:

- Bom dia, minha boa Valéria! Sinto-me satisfeito por vê-la junto destas queridas crianças.

CRIADA - Bom dia, senhor conde; estou muito contente por tornar a vê-lo, e aqui, principalmente, porque em Paris só o vemos de passagem.

LOURENÇO - Eu também estou bastante contente, tio. Demora-se cá muito tempo, não é verdade?

ANA - Oh! sim, tio! Demore-se muito tempo! GENERAL - Sim; demorar- me-ei um mês. LOURENÇO - Um mês? É pouco; deve ficar o verão todo.

ANA - Ou cem anos.

GENERAL - Ah! ah! ah! Não és pobre no pedir! Sabes contar?

ANA - Sei, sim, meu tio. Sei contar até cem. GENERAL - E sabes o que é um ano?

ANA - Sim, meu tio, pois já tenho cinco. Um ano são muitos dias; creio que cem.

LOURENÇO - Um ano tem trezentos e sessenta e cinco dias; portanto, disseste uma tolice...

ANA - Imaginas isso? Não é verdade, tio, que não disse nenhuma tolice?

GENERAL - Quiseste dizer uma coisa muito amável, minha menina, mas disseste um impossível. Cem anos é muito tempo, tanto tempo, que todos morremos de velhos antes de lá chegar. Mas sossega, demorar-me-ei o mais que puder. Ora vamos, meus filhos, estou cheio de saudades e de curiosidade, contai-me o que vos tem acontecido desde que não nos vemos.

Os pequenos desataram a contar-lhe os mais importantes acontecimentos da sua vida, como os primeiros morangos amadurecidos no bosque, a caça ao ouriço, o nascimento de quatro cachorrinhos de guarda, as cerejas do Germano...

ANA - E depois, Lourenço, não contas a história do urso?

GENERAL - Um urso? Um verdadeiro urso? Vivo?

ANA - Sim, meu querido tio, um verdadeiro urso que nos devorou um pouco.   

GENERAL - Um poucoH? Porque não devorou         

tudo?..           

LOURENÇO - A Ana não diz senão disparates. O

urso não nos devorou; apenas nos quis devorar.

Lourenço contou ao tio a aventura do urso e do caminheiro, sendo muitas vezes interrompido pela Ana, e corrigido pela criada.

O general demonstrou grande interesse, aplaudindo bastante a visita da irmã, e pareceu não compreender muito bem o sonho do caminheiro, apesar das explicações da criada.

GENERAL - Ouça, Valéria; sei muito bem o que é um homem embriagado, pois tenho visto muitos na minha vida para lhes desconhecer os hábitos. Um homem embriagado esquece muita vez o que lhe aconteceu nesse estado de embriaguez, mas não toma por sonho uma realidade e não vai pedir desculpas, bem custosas para ele, sem ter a certeza de que as deve... Aposto que deu, na melhor das intenções, um encontrão nessa tola menina que se me deparou ao entrar aqui.

LOURENÇO - Encontrou-os, meu tio?

GENERAL - Sim, encontrei-os; todos eles diziam asneiras a que tive de pôr cobro.

LOURENÇO - E acredita que o caminheiro tivesse batido realmente na Cunegundes?

GENERAL - Com a maior facilidade, e, francamente, eu teria feito o mesmo, mas não com tanta força. Mas tudo hei-de saber; irei visitar o tal caminheiro, que me agrada, e que me contará o que se passou.

LOURENÇO - E depois diz-nos o que ele lhe contar, meu tio?

GENERAL - Claro que sim. Se a Cunegundes apanhou a sua conta desse excelente homem, sabê-lo-ás, prometo!

LOURENÇO - Ficarei bastante contente se realmente lhe bateu. É má, merece castigo.

ANA - E se não Lhe bateram, meu tio, vai dar ordem ao caminheiro para o fazer?

GENERAL - Não; Deus me livre! Não estou ébrio nem sou bruto como o caminheiro, que não faria o que contou se estivesse em seu perfeito juízo. Meter-me-ei com ela e garanto-vos que ficará bastante vexada.

Valéria não se sentia à vontade; não se atrevia a dizer ao general, diante das crianças, a verdade como a soubera da boca de Germano e, principalmente, não queria deixar fazer o inquérito que projectara. Resolveu prevenir do caso a senhora Orvillet. Entretanto, pôs termo às perguntas e reflexões dos pequenos, dizendo-lhes:

- Meus queridos meninos, receio bastante que o tio os ache maus por desejarem tanto mal a Cunegundes; pensem que terrível coisa não seria para ela e para os pais, se fosse verdade e se tal se soubesse.

Nunca se deve desejar o mal, seja a quem for. Nada desagrada tanto a Deus e aflige os nossos bons anjos da guarda, como a falta de caridade.

GENERAL (rindo) - Ah! ah! Valéria... Essa censura é para mim. Tem razão, todos três fomos maus; eu, julgando e esperando talvez que o sonho não fosse um sonho, e vocês, meus sobrinhos, desejando que fosse realidade; e, para nos castigarmos, não falaremos no caso até eu saber pelo caminheiro o que há de verdade em tudo isto.

LOURENÇO e ANA - Sendo assim, tudo nos dirá depois.

GENERAL - Sim, prometo. Agora vou instalar-me no meu quarto. Ides levar-me lá. A Valéria indicar-me-á o quarto que devo ocupar.

CRIADA - Aquele em que sempre se instala, senhor conde. Pela sua última carta, a senhora contava tornar a vê-lo por estes dias; mandou preparar o quarto para o receber.

O general, acompanhado pelos sobrinhos, foi instalar-se no quarto que lhe estava destinado. Os pequenos ajudaram-no a desfazer as malas e, tão bem o ajudaram, que, dentro de um quarto de hora, tudo estava numa barafunda em cima dos móveis e até pelo chão. O tio, a princípio, levou o caso para a brincadeira, mas vendo que os dois ajudantes de campo não se sairiam bem, disse-Lhes que fossem chamar-lhe o criado de quarto e o deixassem arrumar, sem o auxiliarem.

- E enquanto pomos tudo em ordem, meus sobrinhos, entretenham-se a desmanchar com a criada estes dois embrulhos que lhes trouxe. Tu, Lourenço, encontrarás no teu um equipamento completo de zuavo, e tu, Ana, uma bonita boneca com o respectivo enxoval. A Valéria também encontrará um xaile e fazenda para um vestido.

Os pequenos beijaram o tio com gritos de alegria e, muito entretidos com os embrulhos, esqueceram o recado. O tio, porém, suspeitando do esquecimento, chamou pessoalmente o seu criado de quarto e, dentro de meia hora, tudo estava arrumado.

 

                   O convite de Robillard

Prevenida da chegada do irmão, a senhora Orvillet entrou no quarto e abraçou-o, dizendo:

-Que felicidade, ter-te finalmente aqui! E conto que seja por muito tempo!

GENERAL - Sim, minha boa irmã; um mês, pelo menos.

SR.A ORVILLET - Um mês? Dois ou três meses queres dizer!

GENERAL - Como quiseres; temos tempo para pensar nisso.

Após algumas perguntas e observações, a senhora Orvillet perguntou ao irmão:

- Viste os pequenos?

GENERAL - Vi; beijaram-me muito; contaram-me uma infinidade de histórias e especialmente uma que diz respeito à menina baronesa Castelsot e que Lhes prometi esclarecer.

SR.A ORVILLET - Foi a Felícia que ta contou? GENERAL - Não, o Lourenço e a Ana.

SR.A ORVILLET - Que aspecto tinha a Felícia nessa ocasião?

GENERAL - Não estava lá. Tivemos desagradável conversa no bosque, por onde passeava com esses dois imbecilzitos que nunca vi em tua casa e a quem nunca mais desejaria encontrar.

  1. A ORVILLET - O quê? Outra vez esses pequenos Castelsot! Não gosto que Felícia os veja tão amiuda damente! Incutem-lhe tolas ideias de orgulho...

GENERAL - Que ela já tinha, digamos de passagem. Cheguei há pouco e já questionámos até por causa disso! Também não me custa a crer que me veja com maus olhos; hoje deve estar fula comigo, e os seus amigos Castelsot, mais ainda.

SR.A ORVILLET - Porquê? Foram grosseiros contigo?

O general contou à irmã o que acontecera no bosque; a senhora Orvillet ficou descontente e, especialmente, penalizada; e falou ao irmão da inquietação que lhe causava a altivez impertinente de Felícia para com aqueles que julgava inferiores a ela.

GENERAL - E tens razão para te inquietares; depois toda a gente a detestará.

SR.A ORVILLET - Já a detestam; melindra todos, até a criada, a quem tenta constantemente humilhar.

GENERAL - A criada? Essa dedicada Valéria que criou todos, que os estima como estimaria os próprios filhos? Ouve, Helena, sabes o que devias fazer? Pô-la como criada duma quinta. Garanto-te que depressa perderia a petulância!..

SR.A ORVILLET (rindo) - Vais longe, Alberto. Procura ser mais benevolente.

GENERAL (rindo também) - Não insisto. Mas antes de mais nada quero desviá-la desses tolos amigos (cuja origem e história te contarei mais tarde); e vou começar já amanhã, indo visitar o teu caminheiro e indagar dele se, realmente bateu na menina baronesa.

SR.A ORVILLET (aterrada) - Ah! meu amigo, suplico-te; nem uma palavra a tal respeito!

GENERAL - Porquê? Seria um meio de termos essa tolinha nas nossas mãos.

SR.A ORVILLET (agitada) - Por quem és, Alberto! Se soubesses! Não fales nisso a ninguém, suplico-to.

GENERAL (surpreendido) - Mas que há? Como te perturbaste! Parece-me que estás a chorar!

De facto, a senhora Orvillet tinha os olhos marejados de lágrimas, e contou ao irmão o que a criada soubera de Germano.

O general ouviu a história do caminheiro com grande pasmo e permaneceu pensativo durante instantes; depois disse:

- Fica sabendo que admiro a delicadeza desse pobre homem e do bom Germano, que guardam o segredo, porque percebem a humilhação que cairia sobre todos nós, se tal história fosse conhecida. A sua atitude foi nobre! Compreendo também o terror e a relutância de Felícia em se encontrar cara a cara com esse homem; orgulhosa como é, sente-se nas mãos dele e é obrigada a agradecer-lhe a discrição. Pelo que acabas de me confiar, calculas bem que a minha boca não se abrirá. Ai! ai! - continuou o senhor Alban, coçando a cabeça. - Como hei-de livrar-me de apuros com os pequenos, sem comprometer ninguém?

E referiu à irmã como prometera contar-lhes o que soubesse do caminheiro.

  1. A ORVILLET - É a coisa mais simples deste mundo; basta dizer-lhes que nada soubeste da boca do caminheiro.

GENERAL - Está bem! Tudo se há-de arranjar.

- O tio Robillard pede para falar à senhora - preveniu um criado, abrindo a porta.

GENERAL - Ainda vive o bondoso Robillard? Tenho uma grande satisfação em vê-lo.

SR.A ORVILLET - Queres que o mande entrar para aqui? Dir-nos-á o que tem a pedir.

GENERAL - Muito bem. Manda-o subir, Flávio.

O criado saiu e voltou daí a pouco, acompanhado do tio Robillard.

GENERAL (apertando-lhe a mão) - Olá, meu velho! Aqui estou eu, mais uma vez, nesta terra! Muito prazer em vê-lo. Como tem passado?

TIO ROBILLARD - É muita honra para mim, senhor conde. Menos mal, agora. O senhor conde tem bom aspecto e isso alegra-me.

  1. ORVILLET - É coisa simples de dizer, bom tio Robillard! E, então, a que vem?

TIO ROBILLARD - Vinha pedir à senhora condessa que me concedesse a honra de assistir ao casamento da minha neta Amanda.

GENERAL - Ah! ela vai-se casar... E com quem? TIO ROBILLARD - Com o filho do açougueiro Moutonet. Um excelente rapaz, meigo como um cordeiro; não é autoritário. Justamente o que faltava a Amanda, que gosta de mandar. Será uma boa dona de casa. Tal como a avó...

GENERAL - Que o dominou completamente durante os trinta e oito anos em que foi caseiro de meu pai e depois de minha irmã.

TIO ROBILLARD - E as coisas não corriam mal, senhor conde. Ela mandava em toda a gente; era preciso vigiar. Amanda em tudo sai a ela. E se o senhor conde quiser também dar-nos a honra de assistir ao casamento, fará o seu juízo pessoal.

GENERAL - Da melhor vontade, excelente homem. E quando é?

TIO ROBILLARD - Daqui a oito dias, senhor conde. De amanhã a oito.

GENERAL - Muito bem, meu amigo, lá estaremos. A que horas?

TIO ROBILLARD - Moutonet virá buscá-los, e também aos meninos. Contamos com eles.

  1. A ORVILLET - A Administração fica um pouco longe para as crianças.

TIO ROBILLARD - Moutonet levá-los-á, não se inquiete.

  1. ORVILLET - E como hão-de voltar? TIO ROBILLARD - Moutonet trá- los-á também a casa.

SR.A ORVILLET - Mas esse Moutonet tem mais que fazer.

TIO ROBILLARD - Tranquilize-se, minha senhora. A Amanda ordena e ele não tem remédio senão obedecer. É ele quem tem a seu cargo as tarefas mais grosseiras.

Após um quarto de hora de conversa, o tio Robillard retirou-se; o senhor Alban e a senhora Orvillet desataram a rir.

GENERAL - Pobre Moutonet! Não lhe queria estar na pele!

  1. A ORVILLET - A Amanda sempre foi voluntariosa. Vai dar água pela barba ao pobre Moutonet...

 

                   A perplexidade de Felícia

Quando voltaram para a sala, a fim de jantar, os pequenos ficaram radiantes de alegria, ao saber que tinham sido convidados para o casamento de Moutonet e de Amanda. Felícia não demonstrou satisfação alguma.

Felícia - Não vejo onde está a necessidade de ir assistir ao casamento de dois labregos.

SR.A ORVILLET - Robillard esteve trinta e oito anos ao nosso serviço; é um excelente e digno homem, a quem todos estimamos e acho-te muito ridícula ao chamares-lhe labrego, como teu ar altivo que tanto me desagrada. Felícia - E como quer que diga?

  1. A ORVILLET - Poderás dizer: o caseiro, é mais próprio.

FELÍCIA - Mas o Moutonet é um labrego. SR.A ORVILLET - Também não; é açougueiro como o pai; além disso, para que dizer labrego, que é termo desprezível, em vez de dizeres trabalhador?

FELÍCIA - Clodoaldo e Cunegundes chamam labregos aos habitantes da região.

GENERAL - Com a breca! Queres ter a bondade de não falar mais nesses dois enfatuados e de responder em termos à tua mãe?

FELÍCIA - Que disse eu de mal?

GENERAL - Tomas ares impertinentes que eu não tolerarei, percebes, minha fedúncia? Cala-te ou ponho-te lá fora!

Felícia, obrigada a calar-se, reprimiu a cólera, mas resolveu vingar-se, não assistindo ao casamento.

O mais certo é eu não ir - pensou. - Se o Clodoaldo e a Cunegundes me vissem num casamento de labregos, muito se ririam de mim!

Não mais se falou no assunto na presença de Felícia; mas, no dia do casamento, logo de manhã, ela declarou à mãe que se sentia muito doente e pediu para não sair.

SR.A ORVILLET - Que tens, Felícia?

FELÍCIA - Umas dores de cabeça horríveis.

SR.A ORVILLET (com firmeza) - Nesse caso, filha, despe-te e mete-te na cama.

Felícia, radiante por se ver livre do casamento, depressa se tornou a deitar. Mal se encontrou na cama, a criada trouxe uma carta de Cunegundes. Felícia leu, consternada, as seguintes linhas:

Minha querida Felicia

Diga-me se vai de vestido de seda ou de simples vestido branco ao casamento dos Robillard. Convidaram-nos; a mãezinha leva-nos; há-de ser muito divertido, há um bom almoço - o paizinho emprestou a cozinheira - e depois troçaremos muito de todos esses labregos; que lhe parece? Há-de ser muito divertido! Dançaremos entre nós para não lhes tocar nas mãos sujas.

Responda-me depressa, minha querida Felicia. que vestido leva

Sua amiga Cunegundes Castelsot        

Meu Deus, meu Deus! O que eu fui fazer! - pensou Felícia. - Podia lá acreditar que os meus amigos            acederiam a assistir a esse estúpido casamento! E agora...            que hei-de fazer?.. Não posso estar curada em cinco        minutos... Que hei-de fazer, meu Deus! Que hei-de fazer?  

- O criado pede a resposta - disse a criada, voltando. - Está com pressa.

Felícia tomou uma resolução; pediu papel e um lápis e escreveu:

Vestido branco; não tenho tempo para escrever mais.

Felicia Orvillet

A criada pegou no bilhete e leu-o.

CRIADA - Que é isto? Vestido branco? Para quem é o vestido branco?

Felícia - Leva depressa o bilhete, Valéria, não te demores. Depois te explicarei tudo.

Felícia deixou cair a cabeça na almofada e cerrou os olhos.

Passados cinco minutos, estava a pé; vestia-se a toda a pressa, alisava o cabelo, calçava os sapatos finos e envergava o vestido branco, preparados de véspera; e já se dirigia ao quarto da mãe, quando a criada entrou.

CRIADA - Então, levantou-se? E essas dores de cabeça?

Felícia - Passaram-me com o dormir; vou dizer à mãezinha que posso ir com ela ao casamento.

CRIADA - Ah! Agora vai ao casamento. Isso admira-me, pois tinha resolvido não ir.

Felícia (com secura) - Mudei de ideias. Felícia saiu; a criada, deveras surpreendida, pensou: Aqui anda coisa... Não lhe doía a cabeça, isso é mais que certo; era um pretexto para não ir ao casamento; e em cinco minutos, muda de ideias, veste-se sem me chamar e corre à mãe, receosa de que vá sem ela. Tenho a certeza de que a carta de Castelsot contribuiu para isso. De resto, melhor para mim, pois poderei ir ter com os meus meninos ao casamento do Moutonet e da Robillard.

A criada principiou a fazer a cama; achou um papel entre os lençóis; abriu-o; era a carta de Cunegundes.

Aqui está a explicação do mistério! Os Castelsot vão e ela tem de ir também...

Felícia fora ter com a mãe, que já estava pronta para sair com o general e os filhos.

SR.A ORVILLET - Tu aqui, Felícia? Que quer isto dizer?

Felícia - Dormi, mãezinha, e acordei boa. Então pensei que seria bom acompanhá-la.

SR.A ORVILLET - Se é um rebate de consciência, fazes bem; simplesmente, terias feito melhor se o confessasses com franqueza, em vez de mentires, o que não é correcto. Calculas, por certo, que não acreditei lá muito nas tuas dores de cabeça, assim como não creio no teu sono nem na tua maravilhosa cura. Se te consinto que nos acompanhes, é por causa da tua criada, que poderá ir ter connosco, em vez de ficar a fazer-te companhia.

GENERAL - E se te levamos, é com a condição de que não tomarás os teus grandes ares e serás delicada com toda a gente.

- Sim, meu tio - respondeu humildemente Felícia, que temia que a deixassem em casa.

Desceram a escada.

-E a carruagem? - indagou Felícia. Não está pronta?

  1. A ORVILLET - Vamos a pé.

Felícia - Para quê?

SR.A ORVILLET - Para dar ao cocheiro e ao criado umas horas de liberdade. Hoje estão de folga.

Felícia - Será bastante desagradável irmos a pé, como os pobres.

SR.A ORVILLET - É preferível isso, a impedir que os pobres criados se divirtam.

FELÍCIA - Não cansa muito atrelar uma carruagem. GENERAL (empurrando Felicia) - Ouve lá: não acabas com as tuas impertinências? Segue à frente com os teus irmãos e cala-te!

Felícia calou-se, não parou, mas ficou furiosa maldizendo o império do tio e a absurda bondade da mãe, que preferia o prazer dos criados ao bem-estar dos filhos. Consolou-a a certeza de encontrar no casamento os seus amigos Castelsot, e prometeu tirar grande vingança dos labregos, pelo constrangimento que lhe impunham.

Encontraram, a meio do caminho, o pobre Moutonet a suar em bica, pálido, exausto.

MOUTONET - Mil desculpas, meus senhores e minhas senhoras; andei o mais depressa que pude, mas, como passei parte da noite em claro, pela manhã estava um pouco sonolento. Tive só o tempo de me vestir, de receber ordens, e aqui me têm, embora atrasado.

  1. A ORVILLET - Nada disso, meu amigo: vínhamos ao seu encontro, como vê; não se perdeu tempo.

MOUTONET - Se as senhoras e os senhores tivessem a bondade de guardar segredo da minha demora e não falassem nisso à Amanda, evitar- me-iam um dissabor!

GENERAL - Sossega, meu rapaz; nada diremos. Mas tu metes-te por mau caminho, meu amigo. Um marido que tem medo da mulher é ridículo, palavra de honra!

MOUTONET- Não é por que tenha medo, senhor conde; é porque a amo muito e não quero desgostá-la.

GENERAL - Ora! Ora! Eu sei o que isso é. Não é o primeiro que vejo; quando a mulher ralha, o marido curva-se e a mulher ainda lhe chega... E sabes o que acontece a um homem, cuja mulher lhe bate?

LOURENÇO - Que acontece, meu tio?

GENERAL - O povo da aldeia junta-se, coloca o marido, por vontade ou à força, em cima de um burro, com a cara voltada para a cauda, e passeia-o assim por toda a região.

LOURENÇO - Mas isso é divertido; gostava de ver. GENERAL (rindo) - Magnífico! Quando casares podes proporcionar-te esse prazer.

ANA - Eu não gostaria disso. Não faça tal, Moutonet; não consinta que a Amanda lhe bata!..

MOUTONET - Não há perigo, menina; a Amanda aparenta ser um pouco rude, mas, desde que se conheça, o essencial é não a contrariar; é boa e meiga, faz tudo o que se quer. Amo-a muito; é uma perfeita dona de casa.

O general e a senhora Orvillet desataram a rir; Moutonet riu ainda com mais vontade. Felícia fitava-o com desprezo. O tio deu-Lhe uma palmada no ombro, dizendo:

- Nada de grandes ares, hem!

Felícia baixou os olhos; todos se puseram de novo a caminho.

 

                 A cerimónia e a boda do casamento

Quando chegaram, o cortejo nupcial desembocava na estrada, aos pares. Só Amanda não tinha homem a quem dar o braço. Moutonet precipitou-se para o seu lugar, ao lado da noiva, e, após as saudações, os cumprimentos do estilo, dirigiram-se para a Administração.

Na ausência do administrador -o senhor Orvillet, que estava a fazer uma cura de águas nos Pirenéus -, foi o substituto quem realizou o casamento civil. Uma distracção de Moutonet, que examinava as furtadelas o rosto um pouco agastado de Amanda, impediu-o de responder prontamente à pergunta do substituto: Simplíão Perfeito Fortunato Moutonet, consente tomar por esposa Amanda Olivete Prudência Robillard?

O silêncio do interpelado fez erguer os olhos ao substituto. Amanda beliscou o braço a Moutonet, que estremeceu sob o vigoroso beliscão da sua querida e terna noiva.

- Ai! Sim! sim! - respondeu com voz estridente.

Foi um riso geral, a que os próprios pais se juntaram.

- E a menina Amanda Olivete Prudência Robillard consente em tomar por marido Simplício Perfeito Fortunato Moutonet?

- Sim! - respondeu sem hesitar, com voz retumbante e vibrante de cólera, a robusta noiva.

Nova gargalhada repercutiu por todos os lados. Findou a cerimónia no meio de ruidosa alegria, de que só não participavam os nubentes; Moutonet fitava Amanda com ar suplicante, e Amanda repetia-lhe em todos os tons:

- Tu mo pagarás!.. Verás como sei vingar-me!.. Eu te ensinarei a fazer-me afrontas!.. Não imagines que a tua vida vai ser um paraíso!

O pobre Moutonet estava mais morto que vivo; as suas humildes desculpas, solicitadas em voz baixa, mais exasperavam Amanda, que se sentia observada e compreendia a sua ridícula situação.

O cortejo voltou a pôr-se a caminho, para se dirigir à igreja. Todos retomaram o seu ar sério. Amanda ia furiosa. Moutonet, trémulo e confuso, parecia um condenado à morte...

Chegaram e instalaram-se; a cerimónia do casamento principiou. Desta vez, Moutonet disse o sim com satisfatória justeza, e Amanda, com voz tão macia, que fez levantar a cabeça a Moutonet, que a conservava bai xada...

Após a missa, dirigiram-se para o amplo telheiro onde estava pronto o almoço! Todos tomaram os seus lugares. Fizeram sentar o general à direita da noiva; Lourencinho, à esquerda; Ana, junto de Lourenço; a criada (chegada durante o registo da Administração) foi colocada perto de Ana. A senhora Orvillet teve o lugar de honra, ao pé do velho Robillard, defronte do irmão, que tinha à esquerda a velha tia Robillard.

Os Castelsot haviam chegado a meio da missa. Felícia, a princípio radiante, por haver chegado antes deles para não saberem que viera a pé, começou a inquietar-se quando saíram da Administração; na igreja o seu desassossego aumentou; quando ouviu o rodar de uma carruagem e a imperiosa voz do senhor Castelsot, que pedia passagem, a fim de chegar à primeira fila, a agitação de Felícia cessou, principiando então o descontenta mento da senhora Orvillet; julgou perceber o motivo do procedimento de Felícia. Envidou os melhores esforços, após a missa, para evitar que ela formasse grupo à parte com os Castelsot. Obrigada, porém, a manter a sua categoria no cortejo nupcial, nada conseguiu. Felícia, de um salto, juntara-se aos seus amigos. Fugiu de olhar para o lado onde se encontrava a mãe, adivinhando-lhe os sinais que lhe dirigia e não querendo obedecer-lhe.

Robillard, com pressa de se sentar à mesa, levou a senhora Orvillet; Felícia, entregue a si própria, ficou junto de Clodoaldo e de Cunegundes. Principiaram os seus impertinentes gracejos, primeiro em voz baixa, depois mais alto, de maneira a serem ouvidos pelos vizinhos.

CUNEGUNDES - Vai almoçar com toda esta gente, Felícia?

Felícia - Que remédio!.. Será dificil proceder de outro modo, salvo se não comer.

CUNEGUNDES - Isso não! Um excelente almoço cozinhado pela minha cozinheira! Quero provar... e comer.

CLODOALDO - Há um meio de conciliar tudo; façamo-nos servir à parte; vou falar à mãezinha.

Clodoaldo, de facto, falou aos pais, que lançaram depreciativo olhar aos convivas. Notaram que os lugares de honra eram ocupados pela senhora Orvillet e pelo senhor Alban.

- Já não há lugares convenientes para nós - volveu em tom seco o barão Castelsot - mas, como diz o meu filho Clodoaldo, servir-nos-ão separadamente, e em primeiro lugar, como de direito.

A senhora baronesa aprovou, meneando a cabeça, e, no momento em que a sopa chegava em várias terrinas, para cada um se servir à vontade, o barão chamou.

- Olá! Por aqui! Comemos em separado. Pratos, talheres, guardanapos!

MOUTONET - Senhor barão, há lugares vagos perto dos senhores, no fim da mesa grande.

BARÃO - Por quem nos tomas, meu rapaz? Imaginas que eu, minha mulher e meus filhos nos vamos misturar com todos esses labregos, para esperar que nos sirvam depois dos rústicos que o acaso colocou primeiro do que nós? Como só, em família, ou nada, e levo a minha cozinheira!

Moutonet correu a avisar o avô, que pareceu muito contrariado, coçou a cabeça, levantou-se da mesa depois de haver pedido desculpa à senhora Orvillet e foi consultar a mulher.

TIA ROBILLARD - Atrapalhas-te por uma coisa tão simples, homem! Lá está tudo revolucionado por uma ninharia. Vou resolver o assunto. Volta para o teu lugar; come sossegado e não te preocupes com o caso.

ROBILLARD - Mas, ó mulher, mas...

TIA ROBILLARD - Já te disse que deixes o caso por minha conta; não percebes absolutamente nada.

ROBILLARD - Perdão. mas...

TIA ROBILLARD - Vê se te calas, sim! Ou tomas-me por alguma pessoa a quem seja preciso ensinar o recado...

Amanda voltara-se quando a mãe alteava a voz; levantou-se à pressa e correu para ela.

- Precisa de mim, mãezinha? Que fez o paizinho? É necessário levá-lo?

TIA ROBILLARD - Sim, toma conta dele e fá-lo calar; não acaba com as suas observações.

A velha Robillard correu, por sua vez, para onde estavam os Castelsot, que esperavam, com digno, mas visível descontentamento, que lhes servissem a refeição feita pela sua cozinheira.

TIA ROBILLARD - Desculpem, senhor barão, senhora baronesa, meninas e senhor! Robillard não percebe nada de nada! Não contava com a honra que lhe deram o senhor barão, a senhora baronesa, estas meninas e este senhorzinho, de participar da nossa alegria e da nossa boda. Nada se preparou para esta honra.

BARÃO - Pois devia calcular que, se lhe cedia os meus criados, sobre quem não tem direito algum, devia dar-me de almoçar e jantar. Já é um grande desarranjo para nós, agravado pelo facto de nos fazer morrer de fome.

TIA ROBILLARD - Meu Deus! Senhor barão, queira desculpá-lo; é pouco inteligente, bem sabe, e quando não baralha as coisas, ainda vá!

Enquanto falava e ouvia, a tia Robillard desembaraçara de copos, garrafas e pratos uma mesa em que estavam; tinha-lhe posto uma toalha limpa, fazendo notar que pensava em tudo; pôs cinco talheres, tudo quanto era necessário para o serviço, e correu a buscar uma

terrina bem cheia de sopa.           

Felícia e os seus dois amigos triunfaram. A tia Robillard destacou para o serviço dessa mesa um dos jovens            Moutonet. Este jovem Moutonet, o mais novo dos irmãos e o mais velho de cinco irmãs, tinha quinze anos, isto é, menos sete que seu irmão Simplício Perfeito Fortunato, o noivo. Não receava a honra de servir os senhores Castelsot, mas a sua atitude denotava o seu descontentamento. Virava constantemente a cabeça e sorria           com ar de inveja ao ver as malícias inocentes dos rapazes que serviam sob as ordens de Moutonet (Simplício Perfeito Fortunato), as vinganças dos juvenis convivas, os

empurrões, os risos, as partidas, em suma, tudo o que constitui a alegria de uma boda de casamento.

 

                   Encontro do general com o caminheiro

Enquanto comiam, Felícia e os seus amigos continuaram com os seus gracejos motejadores e as más observações a respeito das pessoas presentes, sem sequer pouparem o noivo e a família:

O almoço ia já adiantado, quando apareceu o caminheiro que não esperava encontrar Felícia e os Castelsot.

Ficou aturdido com as suas exclamações. Todos se voltaram e levantaram, perguntando o que se passava. O senhor Alban percebeu logo a complicada situação, quando ouviu a irmã exclamar:

- O caminheiro!

Ergueu-se, dirigiu-se para o caminheiro e, apertando-lhe a mão, disse em voz alta, de maneira a ser ouvido por todos:

- Sinto-me bastante satisfeito por encontrá-lo aqui, bom homem, para lhe exprimir a minha gratidão pelo grande serviço que prestou a minha irmã e seus filhos, salvando-os das unhas e dos dentes do urso. Como vai isso agora? Ficou gravemente ferido?

O caminheiro refizera-se durante o tempo em que o general falava; agradeceu a todos a bondade que lhe haviam dispensado.

Enquanto falava, examinava atentamente o senhor Alban.

CAMINHEIRO - Perdão, senhor, se lhe faço uma pergunta, como se diz, de algibeira, O senhor é militar?

GENERAL - Decerto; há vinte e três anos. CAMINHEIRO - Não foi coronel do quadragésimo regimento de linha em África?

GENERAL - Durante dez anos, meu amigo. CAMINHEIRO -Nesse caso... não é o senhor Alban?

GENERAL - Precisamente, meu caro. Como me conheceu?

CAMINHEIRO - O senhor não se lembra de um colono que, certo dia, ajudou o senhor conde a livrar-se de três árabes que o haviam atacado?

GENERAL - Se me lembro! Ainda me vejo a braços com esses patifes, que me matariam com os alfanges. Se não fosse esse valente colono que veio em meu socorro, atirando-se a eles como um leão, e que os agrediu por sua vez com uma foice, era homem morto. E estava lá? Assistiu à luta?

CAMINHEIRO - O colono era eu...

- Era o senhor? - bradou o general apertando-lhe as mãos, com grande escândalo dos Castelsot e de Felícia, e sob as calorosas aclamações de todos os cir cunstantes. - Meu amigo, meu excelente amigo! Mas o

senhor está destinado a ser o salvador de toda a família! Sinto-me satisfeito e muito feliz por encontrá-lo, meu amigo. Como me reconheceu? Mal tive tempo de o ver. Levaram-me quase logo.

- Fui eu mesmo que o levei, antes de recuperar os sentidos. Os árabes estavam feridos e fugiram; já não havia perigo para si, mas havia desmaiado; não pôde ver-me a cara, mas eu vi bem a sua, durante uma hora, enquanto o transportava.

Esta cena desordenara a refeição; a senhora Orvillet levantara-se da mesa e viera agradecer ao bom caminheiro. Lourenço e Ana olharam, espantados; correram para ele e beijaram-no. O bravo caminheiro não sabia como agradecer tantas provas de amizade que lhe testemunhavam. Fitava Felícia às furtadelas; sofria com a perplexidade dela. A senhora Orvillet não sabia se devia chamá-la ou fingir que a esquecera. O general fez cessar a hesitação, dizendo:

- Anda cá, Felícia; também precisas de agradecer a este excelente homem, que me salvou a vida. Todos nós lhe devemos muito.

Felícia não se mexeu; o tio foi ter com ela, tomou-lhe a mão e disse-lhe ao ouvido, beijando-a:

- Eu sei o que te retém, sei tudo; precisas de ir, de contrário poderiam desconfiar... em especial os Castelsot.

Felícia corou até às orelhas, mas não hesitou em acompanhar o tio e em ir apertar a mão ao caminheiro; ela quis falar, mas a humilhação era demasiada para a sua coragem; o esforço fora por demais violento e rompeu em soluços. Todos imaginavam que era o reconhecimento que a fazia chorar; agradou-lhes tão bom sentimento. Mas o caminheiro e o general, que adivinharam a causa da comoção, lastimaram-na. O caminheiro disse- lhe baixinho:

- Perdão, menina, eu não sabia o que fazia. Para pôr termo a esta cena, o general tomou o braço do pobre caminheiro e apresentou-o a todos como seu salvador; que lhe dessem um lugar na mesa ao pé dele; todos se apressaram a ajudá-lo, apertando-se um pouco, trazendo uma cadeira, um talher e os pratos já servidos.

A princípio, o caminheiro estava um pouco comprometido com a honra que lhe concediam, mas não tardou a refazer-se e começou a comer com apetite e a beber como se estivesse muito sequioso.

 

                   Felícia humaniza-se

Lourenço, Ana e até a criada divertiam-se, saltavam e riam; o senhor Alban participava da alegria geral; a senhora Orvillet conversava, tornava-se amável e graciosa para todos; a mocidade entregava-se à brincadeira; só Felícia, abandonada por todos, tinha um ar enfastiado; a fisionomia exprimia-lhe desprezo e ninguém se aventurava a falar-lhe, nem sequer a aproximar-se.

A senhora Orvillet, que não a perdia de vista, observava e adivinhava o que se passava; por três vezes se quis ir embora para levar Felícia, mas os velhos Robillard pediram-lhe tão instantemente que ficasse mais algum tempo, que não teve coragem de recusar. Desde que Felícia ficara só, sem falar a pessoa alguma, a senhora Orvillet estava mais tranquila. Ao menos, pensava, o seu orgulho e os seus ares de superioridade não melindravam esta pobre gente.

Valéria olhava de quando em quando para o lado de Felícia; vendo-a no mesmo sítio, aplicou os seus cuidados aos dois pequenos, que galopavam, dançavam, comiam, bebiam e se divertiam como reis. Todos se interessavam por eles, os admiravam, os beijavam; nunca se haviam divertido tanto.

O caminheiro fora apanhado para ajudar ao serviço, servia o vinho, enxugava os copos, lavava a louça e fazia quanto sabia; de vez em quando relanceava um olhar a Felícia; ouvia o que diziam dela, à sua volta, e bem desejaria que ela tivesse outro feitio; não se atrevia, porém, a abeirar-se e muito menos a dirigir-lhe a palavra! Sentia que ela continuava a querer-lhe mal e não cessava de censurar-se pela sua aventura com ela.

A senhora foi bondosa em perdoar-me -pensava - e o senhor conde Alban, que também me falou do caso sem cólera, lamentava-me em vez de me ralhar; recomendou-me que nunca me deixasse levar pela bebida e estou certo de que não voltarei; tenho-me sentido bastante desgostoso por ter bebido uns copitos a mais nesse dia, para repetir caso idêntico. Pobre pequena! Odeia-me! E lembrar-me eu de que é sobrinha desse bondoso conde! E é isso o que mais me amofina! Que posso eu fazer para lhe alcançar as boas graças?.. Para mais, a pequena tem um modo de nos olhar e de nos falar, que nos desanima, que nos gela... Bem, tenho uma ideia.

disse algumas palavras em voz baixa ao senhor Alban, que acabava de pedir um copo de vinho.

- Supõe isso? - tornou o general.

-Suponho; a pobre pequena está aborrecidíssima por não ter par. E se o senhor conde quisesse fazê-la dançar, estou certo de que ficaria bem satisfeita.

- Isso é fácil, vou tentar. Felícia, que fazes tu aí, sozinha? - disse o general, abeirando-se dela. - Não pareces muito divertida. Anda para aqui; vai começar um galope monstro. Serei teu par, se não o tens.

- Com todo o gosto, meu tio - volveu Felícia.

A música começou um galope; os dançarinos correram com os seus pares para não perderem um minuto de prazer; o general levou Felícia, e todos os pares, com o violino à frente, partiram a correr, a gritar, a rir; ficaram fora da vista dentro de momentos; Lourenço, Ana, a criada, toda a gente dançava; a senhora Orvillet ficou só com os velhos Robillard e outros amigos da sua idade.

- Bem, fi-la sair de onde estava! - exclamou o caminheiro, esfregando as mãos.

SR.A ORVILLET - A quem fez sair, meu bom Diloy?

DILOY - À menina Felícia, que não dançava, minha senhora. O tio levou-a; lá estão a galopar como os outros.

           SR.A ORVILLET - Ah! Foi o senhor? Quanto Lhe agradeço, Diloy!

TIA ROBILLARD - Não creio, minha senhora, que

não tivesse pares, se quisesse aceitá-los; decerto não a deixariam esquecida; foi ela quem recusou e não voltaram a insistir.

  1. A ORVILLET - Bem sei, boa tia Robillard, e sinto-me satisfeita por ter ocasião de Lhe dizer quanto lamento que minha filha procedesse tão mal, hoje. Eu bem sei tudo, sem que ninguém se tivesse queixado; espero, todavia, que não lhe queira mal.

TIA ROBILLARD - Oh! Minha senhora! Nada temos a perdoar. Sabemos que uma criança é uma criança; e não se pode exigir de uma criança o tino de uma pessoa crescida.

  1. A ORVILLET - Bem sei; mas há certos defeitos que são mais desagradáveis do que outros; e eu sofro tanto por Felícia como pelas pessoas a quem ela melindrou.

TIA ROBILLARD - A menina Felícia não nos melindrou; se não fosse a família Castelsot, que a menina Felícia quis imitar, nada haveria a dizer.

SR.A ORVILLET - Assim o espero. Creio que não reincidirá e de futuro visitará menos essa família.

Todos se calaram, e a senhora Orvillet aguardou com paciência o fim do galope, o que só se deu meia hora depois, quando se ouviram os longínquos acordes do violino e um ruído semelhante a uma carga de cavalaria.

Este ruído aumentou de minuto a minuto, e por fim surgiu o galope, num torvelinho de poeira. Chegou, como uma avalancha, ao campo onde se realizara a boda. Músicos e dançarinos caíram exaustos na erva, ofegantes, suarentos, sem poderem falar ou mexer-se...

Cinco minutos mais tarde, toda a gente estava de pé, pronta a recomeçar. O jantar esperava os convivas. Mas fazia-se tarde, as crianças deveriam recolher-se a casa. A senhora Orvillet declarou que era necessário partir.

- Que pena! - lamentou Felícia. - Era tão divertido e só dancei uma vez!

SR.A ORVILLET - Se tivesses principiado mais cedo, terias dançado como os outros, umas vinte vezes. Já é tarde; Lourenço e Ana estão extenuados; precisamos de ir embora. Sabes, meu irmão, se a carruagem chegou? Mandei-a aprontar há perto de uma hora.

GENERAL - Sim, está lá. Vi-a na estrada, ao regressar.

SR.A ORVILLET - Vamos embora. Despedi-vos, meus filhos, e agradecei as atenções que tiveram convosco.

Os pequenos beijaram para a direita e para a esquerda.

-Adeus, Marta; adeus, Aloíso; adeus, Celina; adeus, Romano; adeus, Germano; adeus, adeus!

- Adeus, senhor Lourenço; adeus, menina Ana - corresponderam vozinhas de todos os lados.

Ninguém disse: Adeus, menina Felícia. Humanizada pelo prazer do galope, sentiu-o e teve certa pena.

- Até mais ver e não adeus, meu caro Diloybradou o general. - Anda cá, para te apertar a mão.

O bondoso caminheiro acorreu, todo satisfeito; a senhora Orvillet também se despediu dele amistosa mente; com surpresa geral, Felícia estendeu-lhe a mão e disse:

- Adeus, Diloy; obrigada.

Antes de subir para a carruagem, o senhor Alban beijou Felícia, inquirindo:

- Queres tornar-te boa pequena?

- Vou tentar, meu tio - respondeu Felícia. Quanto ao pobre caminheiro, tinha apertado com muita força nas suas mãos as de Felícia e dissera-lhe, com voz comovida:

- Oh! menina, como é boa! agradeço-lhe. A carruagem afastou-se. Quando chegaram, Ana dormia tão profundamente, que a criada pegou nela ao colo, despiu-a e meteu-a na cama, sem ela abrir os olhos. Lourenço, apesar de ensonado, ainda via alguma coisa; a mãezinha ajudou-o a despir, a rezar uma curta oração e a deitar-se.

 

                   Conversas úteis

Felícia ficara na sala com o tio, que se sentou, tomou-lhe a mão e fê-la sentar a seu lado, dizendo:

- Minha querida pequena, tiveste um bom gesto; cedeste a ele e fizeste bem, muito bem até. Vejo que o teu coração não é tão mau como eu imaginava. Sabes o que te faz mal? São esses pequenos Castelsot, que são estúpidos, ridículos, detestáveis e detestados. Supões que não dei por isso em casa dos Robillard e todos os outros não viram os seus ares ridículos, os seus grosseiros motejos?

Felícia - Não, meu tio; afianço-Lhe que se engana...

GENERAL - Não, não, minha filha, não me engano. Todos viram e ouviram como eu. Se te digo que essa gente é uma peste é por ti, e tu bem sabes que se foge das pessoas que têm mazelas, com receio de se ser conta giado. Acredita! Foge deles!

Felícia - Mas, meu tio, são os únicos cá da aldeia que vejo com prazer e me distraem.

GENERAL - Julgas isso, porque só atentas no título e na riqueza. Sabes o que era esse altivo barão Castelsot? O filho dum copeiro de um dos meus amigos, o duque de Folotte, arruinado agora pelos criados. O pai do teu barão roubou tanto, que o filho se encontrou rico e pôde jogar na Bolsa, onde ganhou somas enormes, mais de um milhão, disse-me o meu amigo. Comprou um título; a mulher é filha de um procurador do mesmo duque e tão gatuno como o pai do barão; ela herdou dos pais considerável soma, uns quatrocentos mil francos, e vieram fixar residência nesta terra, onde ninguém os conhecia. Deram ao solar, que mandaram construir, o nome de CASTELSOT, que eles próprios adoptaram; o verdadeiro nome deles é Futé. Aqui tens quem são os teus amigos. Ora vê se são dignos de ti. Lisonjeiam-te, dão-te maus conselhos e maus exemplos; são detestados em toda a região e fazem-te detestar. Aborreces-te em toda a parte, porque desdenhas de todos. Precisas em absoluto de mudar de procedimento e quebrar qualquer amizade com tais velhacos.

Felícia estava aterrada. Profundamente humilhada com a sua intimidade com filhos de ladrões, já começava a detestá-los. A indignação espalhava-se-lhe no rosto.

O tio examinava-a, sorrindo.

- Pelo que vejo, minha filha, estás disposta a seguir o meu conselho e não te deixarás guiar por esses dois tolinhos.

FELÍCIA (indignada) - Já não quero falar-lhes, nem vê-los! Mas como é que a mãezinha travou conhecimento com essa gentinha?

GENERAL - Tua mãe não conhecia os pormenores que te dou; vieram a casa dela; tua mãe, sempre amável e delicada, acolheu-os bem; voltaram várias vezes; pro curou evitá-los, porque o orgulho deles lhe desagradava; tu, porém, tentavas encontrá-los, atraí- los; e tua mãe, por condescendência para contigo, deixava-se levar a visitá-los mais do que queria. É fácil não os convidar e recusar-lhes os convites.

Felícia - Ainda bem, e, quando vierem, desaparecerei.

GENERAL - Não procederás bem; é escusado ser grosseiro, seja com quem for. Podes testemunhar-Lhes frieza, mas sem indelicadeza. E agora, minha filha, vais ter com a tua criada.

Felícia - Mas, meu tio, estou com fome; comi tão pouco! Era tudo tão sujo em casa dos Robillard. GENERAL - Sujo, não; asseado e muito bom; mas - acrescentou a rir- tu fazias o mesmo que os teus amigos, de enojada e difícil de contentar; para a outra vez, procederás melhor. Vai pedir de comer à tua criada, que alguma coisa te há-de arranjar.

O general beijou Felícia, que estava admiradíssima de ver o tio tão bom para ela. Ao deixá-lo, disse-lhe, após curta hesitação:

- Agradeço a sua bondade, tio; de futuro tentarei ser delicada com o pobre Diloy, que Lhe salvou a vida.

GENERAL - No que andarás bem e me darás grande prazer. Não terás de arrepender-te da tua boa resolução.

Felícia retirou-se contentíssima; sentiu-se muito satis feita como não o estava há muito.

Passado um quarto de hora, a senhora Orvillet veio ao encontro do irmão à sala.

  1. A ORVILLET - Que houve, entre ti e Felícia? Disse umas poucas de vezes que tinhas sido muito bom para ela e não tornaria a ser má para o pobre Diloy. Eu fiquei tão admirada como radiante com tal mudança de linguagem. O que fizeste para a humanizar a tal ponto?

GENERAL - Primeiro, dançando com ela o desenfreado galope; depois, depreciando os Castelsot no seu espírito. Sabes o que te contei a respeito dessa gente; abri-lhe os olhos sobre o merecimento e a riqueza deles; não foi preciso mais para lhe excitar a indignação e para lhe fazer criar desde logo sentimentos opostos aos dos seus amigos... que já não o são. É para não fazer como eles, que resolveu ser delicada com Diloy. Aposto em como a primeira vez que se encontrem, lhes restituirá as impertinências com que ontem mimosearam os pobres Robillard e Moutonet.

SR.A ORVILLET - Não ficará bem colocada; espero que não o faça.

O senhor Alban conversou demoradamente com a irmã a respeito de Felícia e dos acontecimentos do dia. Procuraram os meios de tirar Diloy e a família da miséria em que estavam mergulhados.

- Deve vir visitar-me amanhã - disse o general. Conversaremos com ele e veremos o que sabe fazer e qual a situação que poderia convir-lhe.

SR.A ORVILLET - É pena ter-se dado o tal caso com Felícia! Se não fosse isso, já o teria empregado aqui.

GENERAL - Sim, mas o melhor é não pensar nisso, seria bastante desagradável para a pobre pequena.

SR.A ORVILLET - E também para ele; está tão comprometido, que pensa constantemente no caso e poderia deixar escapar qualquer coisa.

Antes de se separarem, o senhor Alban pediu de comer. A senhora Orvillet fez companhia ao irmão.

GENERAL - Agora, Helena, podemos deitar-nos; o meu jantar já ia longe. Não poderia dormir com o estômago vazio como estava. Felícia comeu?

SR.A ORVILLET - Comeu, e mais do que nós; mal jantara; estava a morrer de fome.

Na manhã seguinte, depois do almoço, a criada veio anunciar Diloy, que esperava o senhor Alban na escadaria.

SR.A ORVILLET - Manda-o entrar para aqui, Alberto. Conversaremos mais sossegadamente, enquanto os pequenos brincam tranquilamente lá fora, vigiados pela Valéria.

GENERAL - Muito bem. Traz aqui Diloy, Flávio. O criado voltou daí a pouco com Diloy, que não se atrevia a entrar na sala; os pequenos preparavam-se para sair. Ao ver Felícia, Diloy estacou.

Felícia - Meu tio espera-o, Diloy, não tenha medo; todos nós somos bons amigos - acrescentou. - Não é verdade, tio?

GENERAL (sorrindo-lhe com bondade) - Sim, graças a ti, minha querida filha.

DILOY - Ah, menina, pois será possível? Nunca esquecerei essa bondade; as suas boas palavras fazem-me tão bem, que não sei como exprimir-me.

Felícia notou que o excelente homem tinha os olhos marejados de lágrimas. Sorriu-lhe graciosamente e saiu. A senhora Orvillet seguiu-a, beijou-a muitas vezes e cingiu-a ao coração.

- Continua como começaste, querida filha, e voltarás a ter toda a nossa ternura.

Ao reentrar na sala, achou Diloy ainda muito comovido.

SR.A ORVILLET - Como vê, meu amigo, Felícia já não lhe tem rancor; assim, não pense mais no caso e falemos do futuro, em vez de pensar no passado.

GENERAL - Senta-te, meu rapaz, e conversemos do teu futuro, como disse minha irmã. Vamos, senta-te; não tenhas medo.

Diloy obedeceu e puxou uma cadeira.

GENERAL - O que fazes e o que sabes fazer? DILOY - Ora, senhor conde, ganho a minha vida conforme posso. À falta de melhor, trabalho nos caminhos de ferro.

GENERAL - Mas isso não é uma situação. DILOY - É verdade, senhor conde; mas é o pão para mim e para os meus quatro filhos.

GENERAL - Que faz tua mulher?

DILOY - Com quatro filhinhos, senhor conde, decerto não pode andar a dias. Trata da casa e dos filhos.

GENERAL - Quanto ganhas?

DILOY - Dois a três francos por dia; depende do trabalho que se faz e do capataz.

GENERAL - Que poderás fazer melhor? Tens alguma profissão? Que fazias na Argélia, quando eu lá es tava?

DILOY - Era lavrador. Quando me encontrei com o senhor conde trabalhava na propriedade de um colono que lá se instalara. Vendia legumes e fruta.

GENERAL - Percebes bem de assuntos de lavoura? DILOY - Quanto a isso, posso-me gabar. Meu pai era lavrador do marquês de Lataste, e não tinha quem o igualasse na região. Eram dignos de ver-se os nossos legumes e a nossa fruta: os mais belos dos arredores.

GENERAL - Porque não ficaste lá?

DILOY - Meu pai morreu, senhor conde, e eu era muito novo; ainda não tinha ido à tropa. O senhor marquês despediu-me e ofereceu-me esse lugar na Argélia, parti. O patrão arruinou-se. Já me havia casado; já tinha dois filhos. Regressei a França. Vivi consoante pude e encontrei-me nesta terra a trabalhar no caminho de ferro.

GENERAL - Se te proporcionássemos um lugar na quinta, convinha-te?

DILOY - Bem contente ficaria, senhor conde; mas não é fácil encontrá-lo.

GENERAL - E, contudo, encontra-se. Minha irmã e eu vamos tratar do assunto.

DILOY - Obrigado, senhor conde. Seria grande felicidade para mim encontrar-me colocado tranquilamente, com minha mulher e meus filhos.

GENERAL - Pois bem, meu amigo, trata de aparecer qualquer dia. Entretanto, continua a tua profissão e, se te achares mal, vem ter comigo e com minha irmã; auxiliar-te-emos.

DILOY - Estou-lhe deveras reconhecido, senhor conde, pela sua bondade para comigo. Enquanto tiver trabalho, conto não ter de importuná-los. Deus nunca me abandonou. Até agora, a minha mulher e a meus filhos nada tem faltado.

  1. ORVILLET - Mas, meu pobre amigo, tudo lhes falta. Nada têm em casa.

DILOY - Contanto que haja pão e roupa para nos cobrirmos, nada mais pedimos. Com os cem francos que me rendeu o urso, pagámos a renda da casa, ao padeiro, o que devíamos no talho, no tendeiro, no sapateiro, e ainda ficámos com cinquenta francos, que a senhora condessa teve a bondade de me dar.

O senhor Alban e a irmã admiravam a modéstia do pobre caminheiro, que com pouco se contentava. Continuaram a falar sobre lavoura e trabalho; e, ao despedirem-se, o senhor Alban quis dar duas moedas ao excelente homem, que as recusou, afirmando sempre que nada lhe faltava, que ainda tinha dinheiro.

Quando se encontraram sós, a senhora Orvillet disse ao irmão:

- Alberto, alguma ideia tinhas, quando lhe perguntaste o que sabia de lavoura; suponho adivinhá-lo.

GENERAL - De facto, cá tenho a minha ideia; mas nós precisamos de reflectir, por causa da aventura de Felícia. Digo nós, porque vejo que tens a mesma ideia que eu.

SR.A ORVILLET - Foi o meritório esforço de Felícia que ma sugeriu.

GENERAL - Falaremos nisso na primeira ocasião.

- Está aqui uma carta para a senhora - disse a criada, entrando.

A senhora Orvillet pegou na carta, leu-a e disse:

- Gente que chega, Valéria. São minhas sobrinhas, Gertrudes e Julieta, com a tia S. Lucas. Mande preparar os quartos fronteiros ao meu; chegam amanhã.

CRIADA - Vou avisar a sua criada, minha senhora. SR.a ORVILLET - Muito bem; previna igualmente o Baptista, para tudo ficar pronto hoje; devem estar aqui amanhã de manhã, antes das onze horas.

A criada saiu.

GENERAL - Estou muito contente com esta visita para Felícia; Gertrudes é tão boa, tão ajuizada e, depois, possui tanto espírito e alegria, que se fará estimar por tua filha e, decerto, há-de fazer-lhe bem.

SR.A ORVILLET - E mesmo a nós. A senhora S. Lucas far-nos-á companhia muito agradável.

GENERAL - É uma mulher encantadora; creio que ficou viúva muito nova.

SR.A ORVILLET - Quinze dias depois do casamento, o senhor S. Lucas foi atacado de uma febre terrível e morreu passados três dias.

GENERAL - E ela sentiu a sua morte?

SR.A ORVILLET - Ficou apoquentada durante certo tempo; mas tu bem sabes que este casamento lhe foi imposto pela mãe; não amava o marido, e depois conhecera-o tão pouco, que o seu desgosto não podia durar muito.

GENERAL - E porque será que é ela quem nos traz Gertrudes e não a nossa irmã?

SR.A ORVILLET - Porque a Amélia seguiu para os Pirinéus com o marido; e a cunhada, a senhora S. Lucas, propôs-lhe trazer-nos Gertrudes, para a distrair do desgosto de se ter separado da mãe.

GENERAL - Muito bem! Vou ter o prazer de tornar a vê-las. Não vejo a senhora S. Lucas desde o casamento, isto é, há dez anos; e, quanto a Gertrudes, tinha ela dez anos a última vez que a vi.

SR.A ORVILLET - Está agora com catorze; é uma rapariga excepcional, que gosta de tudo quanto é bom e belo. Encantador carácter; coração amorável e delicado; espírito inteligente, amável, requintado; de gostos razoáveis, devota, prudente e esclarecida.

GENERAL - Boa! Fazes tal retrato da nossa sobrinha, que, se ela tivesse mais vinte anos, casaria logo com ela; seria, com certeza, o mais ditoso dos homens...

SR.A ORVILLET (rindo) - Sim, mas como conta catorze anos apenas e é tua sobrinha, tens de procurar outra noiva.

GENERAL (rindo) - É preferível não procurar. Estou bem assim. Vivo sossegado, vou para onde quero e vivo como me convém. Gosto pouco de prisões...

SR.A ORVILLET - Vamos ter com os pequenos, para darmos um grande passeio.

GENERAL - Na volta, prepararemos uma pescaria no lago, para amanhã.

SR.A ORVILLET - Muito bem. Comeremos assim um prato de peixe. Gertrudes, Julieta e os nossos pequenos vão ficar radiantes.

Tudo se preparou para a pesca do dia seguinte. O lago distava algumas centenas de passos do solar. As crianças ficaram muito alegres com esta bela ideia do tio e com a chegada das primas Gertrudes e Julieta, que lhes anunciaram para o dia seguinte.

 

                   Chegada de Gertrudes

Felícia ficou pouco satisfeita com a vinda de Gertrudes, cuja simplicidade, bondade e meiguice contrastavam com a sua altivez e defeitos inerentes. Lourenço e Ana estavam muito contentes por tornarem a ver as primas, mormente Julieta, que tinha apenas oito anos e seria a sua companheira nas brincadeiras.

Muito tempo antes da chegada, os pequenos estavam na agitação da expectativa. Lourenço perguntou à criada se no quarto de Julieta havia brinquedos.

VALÉRIA - Não, meu querido menino; nada tem. emprestar-lhe-ão os seus quando brincarem juntos.

LOURENÇO - Mas no quarto vai aborrecer-se sozinha.

VALÉRIA - Verão isso com ela, quando chegar. LOURENÇO - Mas eu queria tratar do caso com antecedência. Ora, vamos, Ana, que havemos de levar para o quarto de Julieta?

ANA - Vamos pedir à mãezinha a bonita boneca de cera e o enxoval que o tio me trouxe quando chegou.

LOURENÇO - Isso mesmo! E eu... que lhe dou?.. O meu cavalo grande?

ANA - Não é brinquedo próprio para uma menina. LOURENÇO - É verdade... E o meu teatro, com as figuras?

ANA - Isso está bem; representará comédias. LOURENÇO - E tu que lhe dás, Felícia?

Felícia - Nada lhes dou. Gertrudes está já crescida e Julieta é muito pequena.

LOURENÇO - E se pusesses livros no quarto de Gertrudes? Por exemplo, os oito volumes da Semana das Crianças!

Felícia - Não; são bonitos de mais; podia estragá-los.

LOURENÇO - Ora! Pobre Gertrudes! Então nada terá?

Felícia - Não precisa de coisa nenhuma; trará consigo o que lhe for necessário.

LOURENÇO - És avarenta e isso não é bonito. Felícia - Não sou avarenta, mas não quero que me sujem os bons livros.

LOURENÇO - Se te digo que os tratará com cuidado!

FELÍCIA - E eu digo-te que não quero emprestá-los; empresta-lhe o que é teu. Eu guardo os meus. ANA - Então, visto seres tão má, vou emprestar-lhe o João Carrasco e os Horriveis Defeitos.

Felícia - O que será um grande disparate! Gertrudes tem catorze anos e faz de senhora!

ANA - Não; ela não faz de senhora; é muito bondosa, muito melhor do que tu.

FELÍCIA - Andas sempre à procura de coisas desagradáveis para me dizer.

ANA - E tu? Dize-las a toda a gente!

FELÍCIA - Isso não é verdade!

ANA - Se é! Tens sido bastante má para Diloy. Felícia - Peço-te que não tornes a falar desse caminheiro; isso já me aborrece.

LOURENÇO - Olha, olha! Ainda ontem lhe apertaste a mão.

Felícia (perplexa) - Não foi por ele; foi para agradar ao meu tio.

LOURENÇO - Qual história! Foi porque foste boa durante alguns minutos e porque te lembraste de que ele te livrou do urso. E agora tornaste a esquecer e voltas a ser má.

FELÍCIA - Por Deus! Como estes pequenos são insuportáveis!

VALÉRIA - Vamos, meus meninos! Deixem a mana em paz; teve um bom gesto; conto que terá ainda outros, mas é preciso não a arreliar. E, depois, não devem obrigá-la a emprestar os livros a Gertrudes, porque emprestam os brinquedos à Julieta. Quando suas primas aqui estiverem, tenho a certeza de que Felícia não se recusará a emprestar os seus livros a Gertrudes; não é, porém, preciso obrigá-la a isso antecipadamente.

FELÍCIA - Decerto que quero emprestar-lhos, mas mais tarde.

VALÉRIA - Está tudo muito bem; e que todos fiquem senhores do que lhes pertence.

Lourenço e Ana levaram para o quarto de Julieta (que devia ficar no mesmo quarto com a irmã) o teatro e a boneca que estavam nos aposentos da mãe. Mal tinham acabado os preparativos, quando se ouviu o rodar da carruagem que chegava. Todos correram à escadaria, onde se encontravam no momento em que se abria o portão.

A senhora Orvillet e o general ajudaram as visitantes a descer da carruagem; Gertrudes e Julieta foram beijadas mais de vinte vezes.

LOURENÇO - Como estás crescida, Julieta! JULIETA - E então, tu! Nem te conhecia. Ana também está muito crescida.

Felícia - A Gertrudes está mais alta do que eu. GERTRUDES - Depressa me alcançarás. De resto, tenho mais três anos do que tu.

FELÍCIA - Sim, já não és uma criança, és uma menina.

GERTRUDES - Uma menina que é tão criança como tu e como Lourenço para a brincadeira e para as corridas pelo campo.

LOURENÇO - Ainda brincas?

GERTRUDES - Se brinco? Pergunta a Julieta; sou eu sempre a primeira nas brincadeiras e nos jantarinhos de outras crianças.

ANA - Felícia já não quer brincar connosco, diz sermos demasiado pequenos e demasiado estúpidos para ela...

Felícia corou e ficou comprometida; Gertrudes também corou por ela e exclamou:

- Verás que Felícia aprenderá a brincar e a correr como nós. Eu lhe ensinarei diferentes jogos muito divertidos.

GENERAL (beijando Gertrudes) - Vejo que continuas a ser a bondosa, a excelente Gertrudes de há três anos.

GERTRUDES - Criaram-me esta fama, que não mereço nada. São todos bons de mais para mim; mas eu emprego os meus esforços para chegar a merecê-la algum dia.

Foram para a sala; após alguns instantes de conversa e de haverem admirado as flores que ornamentavam os vasos e as cestas, a senhora S. Lucas pediu para subir ao seu quarto, a fim de tirar o chapéu e o mantelete e descansar um pouco.

Gertrudes e Julieta seguiram- na, acompanhadas pelos pequenos. Lourenço e Ana apressaram-se a mostrar a Julieta a boneca, o enxoval, o teatro, etc.

- E tu, pobre Gertrudes - disse Ana -, não tens nada. Apenas te dei João Carrasco e os Horriveis Defeitos; é muito divertido, mas nada mais tenho...

GERTRUDES (beijando-a) - Obrigada, Aninhas. Há-de divertir-me muito.

- Queres que to explique já? - volveu Ana, radiante com a gratidão de Gertrudes.

GERTRUDES (rindo) - Obrigada, querida pequena; agora não, porque vou alisar o cabelo, lavar as mãos e, em seguida, vamos almoçar. Mas, mais tarde, ajudar-me-ás a perceber os bonecos.

ANA - Sim, sim, ajudar-te-ei, porque já os conheço muito bem.

Lourenço e Ana levaram Julieta aos seus quartos, para ver Valéria e os brinquedos. Gertrudes e Felícia ficaram sós. Felícia estava um pouco estranha, a princípio.

FELÍCIA - Estás cansada?

GERTRUDES - Nada cansada; partimos às oito horas e chegámos às onze. A viagem foi curta.

Felícia - E a que horas te levantaste?

GERTRUDES - Às seis, como é meu costume. Assisti à missa das sete, como sempre; almocei e partimos.

Felícia - Com quem vais à missa?

GERTRUDES - Com minha tia S. Lucas, quando a mãezinha não pode levar- me. Pobre mãezinha, que está tão longe de mim! Oxalá eu não lhe faça muita falta. É tão bondosa! Ama-me tanto!

Os olhos de Gertrudes arrasaram-se de lágrimas; queria sorrir a Felícia para não a entristecer, mas, em vez de sorrisos, foram lágrimas que lhe rolaram pelas faces.

Felícia fitava-a, surpreendida, e indagou:

- Choras por causa de um mês de separação? GERTRUDES - Nunca deixei a mãezinha e amo-a tanto!

Felícia permanecia calada. Gertrudes enxugou os olhos e tentou recuperar a alegria.

GERTRUDES - Tens razão; é estúpido! Ora vê como sou criança! Das duas, és tu a mais razoável.

Felícia, lisonjeada, beijou-a. A sineta para o almoço tocou.

FELÍCIA - Só tens um quarto de hora para te preparares.

GERTRUDES - Depressa, depressa... Água, sabonete!

Abriu a sua maleta, tirou de lá o que lhe era preciso, lavou os olhos, alisou o cabelo, tornou a pôr a rede, lavou as mãos depois de haver sacudido o vestido da poeira e ficou pronta para descer, alegre e sorridente.

Encontraram todos reunidos na sala. O general tomou-a pela mão e levou-a para um vão da janela.

- Gertrudes, tu choraste!.. Foi Felícia...

GERTRUDES (com vivacidade) - Não, não, tio; fui eu que me lembrei da pobre mãezinha, e então...

GENERAL - E então, o teu coração sensibilizou-se, e não sossegará se continuo a fazer-te perguntas disparatadas...

O general abraçou-a mais uma vez.

GENERAL - Sabes que poderás fazer muito bem à Felícia?

GERTRUDES - De que maneira, tio?

GENERAL - Com o teu exemplo e os teus conselhos. Mais tarde te falarei no assunto, quando estivermos sós.

GERTRUDES - Já vejo que continua a ter um pouco... de presunção.

GENERAL - Mais do que nunca, minha filha. GERTRUDES - Não há-de ser nada, tio; isso passa, verá.

GENERAL - Talvez passe com a tua ajuda... Anunciaram o almoço.

- Ainda bem - volveu o general, oferecendo o braço à senhora S. Lucas. - Estou a morrer de fome.

SR.A S. LUCAS - Fomos nós que lhe atrasámos o almoço.

GENERAL - Nada disso; onze horas e meia é a hora marcada, e por isso é que estou com tanta fome.

SR.A S. LUCAS - Ah! sim! A pontualidade militar...

 

                    Gertrudes é uma menina exemplar

Honraram de tal maneira o almoço, que a senhora Orvillet se desculpou, rindo, de não o haver feito para quinze pessoas, em vez de oito.

- Devia ter previsto o efeito do ar livre e do bom ar desta região, contando cada convidado a dobrar...

SR.A S. LUCAS - Mas parece-me que não comemos assim tanto.

SR.A ORVILLET - Fale por si, Paulina; nós, pequenos e grandes, não comemos, devorámos.

GENERAL - Vamos, nada de calúnias e contemos os pratos... vazios agora, mas que continham:

Oito litros de sopa;

Um lombo de vaca de cinco quilos;

Dezasseis costeletas com puré de ervilhas; Um empadão de galinha para vinte;

Uma caçarola de feijão verde; Uma torta de cereja, enorme;

Queijo, fruta, compotas;

Café, chá, chocolate.

Prolongados risos acolheram esta ementa verdadeira quanto ao número, mas exagerada quanto à imensidade dos pratos.

  1. A ORVILLET (rindo) - Exageras, Alberto! GENERAL - Digo a pura verdade e admiro as censuras que te diriges. Estamos meio sufocados, e achas que não é bastante?

SR.A ORVILLET - Se estão satisfeitos, eu estou contente. Meus filhos, vão passear durante uma hora; depois, iremos pescar.

LOURENÇO - Prepararemos as minhocas para os anzóis, enquanto repousa, mãezinha!

JULIETA - E onde vais tu arranjar minhocas? LOURENÇO - Na horta. Cavando a terra, encontra-se grande quantidade.

JULIETA - Então, vamos; deve ser muito divertido. FELÍCIA - E tu também vais, Gertrudes? GERTRUDES - Pudera, não! Até os ajudo. Encarrego-me de cavar.

Felícia - Mas é nojento; é melhor mandar chamar o jardineiro.

ANA - É muito mais divertido procurá-las! LOURENÇO - É melhor deixar o jardineiro almoçar à vontade.

Felícia - Podia muito bem almoçar mais tarde; não morrerá por esperar uma hora.

GERTRUDES - Mas para quê chamar esse homem, se nós próprios podemos cavar? Anda, Felícia, dá-me o bom exemplo. (Muito baixinho) Preciso que me animes, pois acho, como tu, que as minhocas são um pouco nojentas para apanhar. (Em tom alto) Vamos! Felícia é a nossa chefe; leva-nos; obedeçamos-lhe.

Felícia hesitou por momentos; cedendo ao animoso sorriso de Gertrudes, colocou-se à frente do grupo, que partiu a correr, passando adiante da sua chefe.

GERTRUDES - Obrigada, Felícia; faço como tu, sacrifico-me.

Felícia desatou a correr; Gertrudes seguiu-a; entregaram-se à tarefa: cavaram e apanharam minhocas. Gertrudes fingiu admirar a coragem de Felícia e querer imitá-la, enquanto, de facto, era ela quem arrastava a prima.

Passara a hora; era tempo de voltar para junto da família. Havia uma caixa cheia de minhocas, mas as mãos estavam sujas; Gertrudes alvitrou que se lavassem no lago.

- Comecemos ambas, Felícia; depois faremos lavar as mãos aos pequenos. Meninos - acrescentou -, a nossa chefe ordena que aguardem que tenhamos as nossas mãos lavadas, para não Lhes sujarmos as roupas enquanto os seguramos.

LOURENÇO - Segurar-nos para quê?

GERTRUDES - Para não darem alguma cambalhota dentro do lago, ao lavar as mãos.

Tudo se fez com ordem; quando as mãos de Gertrudes e de Felícia ficaram limpas e enxutas com os lenços, mandaram avançar os pequenos em linha.

Lavadas as mãos, desataram a correr para chegar ao solar, onde todos estavam prontos e os chamaram.

Um criado foi encarregado de levar as linhas, a caixa das minhocas e uma selha para nela se meter o peixe. Puseram-se a caminho; os pequenos, à frente, a correr, a brincar, a saltar o mais que podiam. Gertrudes ia à testa de todos.

O general relanceou um olhar conhecedor sobre o lago e as margens; reconheceu logo os melhores pontos em que colocou Gertrudes, Julieta, Lourenço e Ana, e deu a Felícia o lugar menos vantajoso.

- Quanto a mim - disse -, passearei a linha por todos os lados e vigiarei os pescadores, não vá haver algum desastre.

Gertrudes apanhou um peixe ao cabo de cinco minutos, depois segundo e terceiro, enquanto Lourenço e Ana, embora auxiliados por Valéria, apenas pescaram um, e Felícia nem um único; o peixe nem sequer lhe mordia o anzol.

- Deram-me o pior lugar - lamentou com ar desconcertante.

GERTRUDES - Queres o meu? Já estou cansada.

FELÍCIA - Já cansada? Não és forte para a pesca. GERTRUDES - Não; nunca tive jeito.

GENERAL - E, contudo, apanhaste três peixes. GERTRUDES - Porque teimaram em se deixar apanhar, tio; nunca puxo a tempo. Se aparecer algum grande, estou certa de que o deixarei fugir. Felícia, que é hábil, puxará melhor do que eu.

E Gertrudes deu o lugar a Felícia, que o tomou, pressurosa.

- Excelente pequena! - disse-lhe o general. - Tua tia Helena tem muita razão.

GERTRUDES - Em quê, tio?

GENERAL (sorrindo) - Em qualquer coisa que te diz respeito, mas que te não digo. Vem daí dar um passeio comigo; está um tempo magnífico e preciso de dizer-te certas coisas.

O general queria, de facto, pôr Gertrudes ao corrente do principal defeito do carácter de Felícia e das desastrosas consequências de um orgulho que a convivência com os pequenos Castelsot muito tinha aumentado, para desgosto de todos.

O general contou a Gertrudes muitos exemplos da impertinência da prima e dos Castelsot, cuja vida referiu. Durante a narrativa, um homem, indo ao encontro deles, cumprimentou e afastou-se do caminho para deixar passar o tio e a sobrinha.

GENERAL - Ah! És tu, Diloy! Estou bastante satisfeito por te encontrar, para te apresentar a minha querida sobrinha Gertrudes, a melhor pequena que até agora conheci.

Gertrudes cumprimentou graciosamente.

GENERAL - Sabes, minha filha, quem te dou a conhecer? Um homem que, pela sua coragem, me salvou a vida, há alguns anos, na Argélia.

E o senhor Alban contou-lhe em poucas palavras a história dos três beduínos.

Gertrudes disse a Diloy, em tom comovido:

- Ainda não sei o seu nome, excelente homem, mas considero-o como da casa. Nunca esquecerei o que Lhe devemos.

GENERAL - Deves-lhe mais do que imaginas; socorreu outros, além de mim; depois te contarei isso. Bom Diloy! Este não foge ante o perigo!

GERTRUDES - Diloy? É um nome que decerto nunca esquecerei.

DILOY - A menina é bondosa! Oh, sim! Muito bondosa. Lê-se-lhe nessa tão amável fisionomia!

GENERAL - Aonde ias?

DILOY - Ia dizer ao senhor conde que me ofereceram trabalho; antes de o aceitar, queria consultá- lo, senhor conde, para me dizer se é certo e duradouro.

GENERAL - Bom, meu amigo; podes esperar uma hora?

DILOY - Por Deus, que sim, senhor conde; como já perdi meio dia por causa desse indivíduo que me chamou e com quem tive de ir falar...

GENERAL - Bom; entretanto, peço-te que vás para as bandas do lago, onde encontrarás minha irmã e os pequenos, que pescam à linha; dar-lhes-ás uma ajuda se precisarem; e, em caso de desastre... conto contigo - acrescentou o general, estendendo-lhe a mão.

DILOY - Quanto a isso, não se inquiete, senhor conde; eu, que sou amigo de crianças, não deixarei que lhes aconteça mal; o senhor conde tem razão em contar comigo. Até breve, senhor conde e menina!

- Até breve, Diloy - correspondeu Gertrudes sorrindo.

Esta, ao menos, é amável, - murmurou Diloy, afastando-se.

GERTRUDES -Tio, quem foi que este bom Diloy salvou mais?

GENERAL - Ora! Nada menos que a tua tia Helena, Felícia, Lourenço e Ana.

E contou a Gertrudes a visita do caminheiro ao solar dos Castelsot, o encontro na floresta, a luta com o urso e a ingratidão de Felícia, um pouco atenuada pelo seu bonito gesto da véspera.

-Excelente, valente homem! - bradou Gertrudes. - Mas há duas coisas que não percebo, tio: primeiro, a visita aos Castelsot, e depois a aversão de Felícia.

GENERAL - Ai! ai! Estou perdido... Para te fazer perceber tudo, tenho de cometer uma indiscrição... e, contudo, não devo deixar-te pensar que Felícia é tão má como parece... Por Deus, tanto pior! Vou confiar-te tudo. Estou certo de que serás discreta. Posso confiar em ti?

GERTRUDES - Espero que sim, tio; afigura-se-me que nunca os meus lábios se abrirão para contar o que me disser sob segredo.

GENERAL - Bem; nesse caso, vou explicar-te o que não podes compreender.

O senhor Alban referiu-lhe o fatal encontro de Felícia com o caminheiro; o arrependimento deste, as suas desculpas, o seu vivo desejo de reparar o mal que fizera; a sua discrição, o seu delicado modo de proceder; o ressentimento de Felícia, o esforço que ela fizera, na véspera e antevéspera, para falar amistosamente a esse homem que se transviara, na sua embriaguez, a ponto de lhe bater. Depois, o seu encontro com ele no casamento dos Robillard. Todas as impertinências e má-criações de Felícia e dos Castelsot e, finalmente, a última conversa que tivera com Felícia, no regresso da boda e no dia seguinte.

- Pobre Felícia! - lamentou Gertrudes. - Compreendo o que ela devia ter sentido; e foi bonito ela ter perdoado tão grande ofensa, tão terrível humilhação.

GENERAL - Que fazias no seu lugar?

GERTRUDES (hesitando) - Não sei bem, tio... Sabe que não tenho a mesma índole de Felícia...

GENERAL (com vivacidade) - Ah! Isso não!.. Mas terias perdoado e esquecido? Isto é, bem perdoado? Do fundo da alma?

GERTRUDES (corando) - Tio... nunca posso guardar rancor seja a quem for... principalmente se vejo que se arrepende do mal que pratica. Oh! então, não só me sinto obrigada a perdoar, mas afeiçoo-me ao meu inimigo.

O tio tomou-a nos braços e beijou-a repetidas vezes, dizendo:

-Admirável coração! Admirável natureza! Helena tinha muita razão!

Gertrudes já não perguntou em que é que a tia tinha razão; adivinhara e corara, não se julgando merecedora de tais elogios.

 

                   Diloy, mais uma vez salvador

Enquanto o senhor Alban conversava com a sobrinha, Diloy chegava ao lago; disse à senhora Orvillet que estava ali por ordem do general, a quem acabava de oferecer os seus serviços. Os dois pequenos acolheram-no com alegria.

- Quem é este homem? - inquiriu Julieta. ANA - É o bondoso caminheiro.

JULIETA - Que caminheiro? Que é um caminheiro? LOURENÇO - Caminheiro é um homem que trabalha nos caminhos de ferro.

JULIETA - E porque Lhe chamam bondoso caminheiro? Que é que ele tem de bom?

ANA - Não sabes que nos salvou do urso? JULIETA - Não; que urso?

ANA - O urso que fugira e nos queria devorar. JULIETA - Ai, meu Deus! Conta lá! Eu não sei de nada.

ANA - Lourenço vai contar-te; eu não sei bem. Conta, Lourenço.

LOURENÇO - Pronto, lá vai. O caminheiro estava deitado no bosque por onde passávamos com a mãezinha.

JULIETA - Que bosque? Aqui há ursos?

LOURENÇO - Creio que sim! Um urso enorme, com uma boca enorme, unhas enormes. E o caminheiro avisou a mãezinha de que andava por ali um perigoso urso fugido.

JULIETA - Donde fugiu?

LOURENÇO - Da jaula onde estava. E o caminheiro disse que ia connosco para matar o urso.

ANA - Que nos queria devorar.

LOURENÇO - Assim foi; como calculas, estávamos com muito medo.

ANA - E a mãezinha também.

LOURENÇO - Mas cala-te. O caminheiro não teve medo; atirou-se ao urso e meteu-lhe na boca uma pequena estaca pontiaguda que se lhe cravou na língua e no céu da boca. O urso já não pôde fechar a boca; urra horrivelmente; o caminheiro atirou-lhe uma corda que o estrangulou; o urso deu unhadas no caminheiro, que lhe bateu com toda a força com um grande cacete. O urso caiu e continuou a arranhar; o caminheiro não parou de bater. O urso fingia estar morto.

ANA - E estava morto de verdade?

LOURENÇO - Não, porque ainda estava vivo. O caminheiro pôs-lhe uma corrente; puxou o mais que pôde; o urso já não urrava, já não se mexia. O caminheiro alargou um pouco a corrente e ligou-lhe as patas com uma corda. O urso grunhia e mexia-se um pouco; o caminheiro tornou a bater-lhe; o pobre caminheiro estava banhado em sangue.

ANA - Só as pernas.

LOURENÇO - Sim, as pernas. Então, chorámos.

ANA - E a mãezinha também. Felícia não. LOURENÇO - Deixa-me contar.

ANA - Pois tu esqueces-te sempre da mãezinha!

LOURENÇO - Não esqueço, não; depois falaria dela.

ANA - É melhor dizer tudo a seguir.

LOURENÇO - Assim aborrece. Então a mãezinha ligou-lhe os nossos lenços em volta das pernas.

JULIETA - Às do urso?

LOURENÇO - Não; às do caminheiro. A mãezinha ligou o lenço.

ANA - Não o de Felícia.

LOURENÇO - Isso não interessa; deixa-me continuar. Depois, a mãezinha tomou-nos a mão.

ANA - A de Felícia, não.

LOURENÇO - Meu Deus, Ana! Como és aborrecida! Felícia corria atrás de nós. E a mãezinha mandou o tio João com a carroça para transportar o urso e o caminheiro, todo ensanguentado.

JULIETA - Porque não matou o urso?

LOURENÇO - Porque o dono prometera cem francos a quem lhe levasse o urso, e o caminheiro, que é pobre, queria ganhar os cem francos.

ANA - E ainda esqueces que o caminheiro salvou nosso tio dos maus beduínos.

JULIETA (atenta) - O quê? Também há beduínos por aqui?

LOURENÇO - Não; foi na Argélia. Como queres tu, Ana, que eu conte tudo ao mesmo tempo? E, além disso, esqueceu-me a história dos beduínos; já não sei como o salvou.

ANA - Está bem; o tio o contará a Julieta! JULIETA - Tudo isso é de aterrar. Mau urso! Pobre caminheiro! Como desejaria vê-lo!

LOURENÇO - Olha, está ali com Felícia. Diloy estava de facto perto de Felícia, que se conservava à beira do lago e se debruçava perigosamente para estender a linha. Ficara contrafeita ao ver aproximar-se o caminheiro; os seus bons sentimentos já se haviam desvanecido; fora retomada pela sua antiga irritação contra ele.

Quando Diloy Lhe deu os bons- dias e disse que o tio o havia mandado para os ajudar, Felícia não lhe respondeu e fitou-o com o seu ar altivo.

DILOY - Tome cuidado, não caia, menina; está muito à beirinha e debruçada de mais.

Felícia - Não preciso dos seus conselhos; sei pescar.

DILOY - Não me permito dar- lhe conselhos, menina. Apenas a previno do perigo.

Felícia - Não há perigo, e a mãezinha e a minha criada estão ali para me acudir, se tanto for preciso.

DILOY - Mas se a menina caísse à água, não seria a mãezinha nem a criada que poderiam tirá-la de lá; o lago é fundo neste ponto; tem mais de dois metros.

Felícia - Peço-lhe que não se inquiete comigo. Deixe-me; assusta os peixes com a sua voz.

DILOY - Porque está contra mim outra vez, menina? Ontem foi tão amável e tão boa!

No momento em que Felícia se voltava violentamente para o pobre caminheiro, o pé escorregou-lhe; mal teve tempo de soltar o aflitivo grito:

- Socorro, Diloy!

E desapareceu nas águas do lago.

Diloy atirou-se atrás dela e agarrou-a pelos braços. A margem, porém, era muito escarpada; foi preciso nadar até um ponto onde era possível abordá-la. Teve o cuidado de manter Felícia fora de água com uma das mãos, enquanto nadava com o outro braço; depô-la em cima da erva, entre os gritos desesperados dos pequenos, das senhoras Orvillet e S. Lucas, que corriam em socorro de Felícia.

Esta não desmaiara; estava apenas atordoada pela água e pelo susto. Quando se refez e se pôs de pé, olhou à sua volta e lançou-se nos braços do caminheiro a quem repelira tão bruscamente; beijou-o repetidas vezes.

- Diloy! Meu bom Diloy! Se não fosse o senhor estava perdida! Foi o senhor que me salvou!

O pobre Diloy, satisfeito pelo acto que praticara e pela gratidão que Felícia lhe testemunhava, assegurava-lhe que apenas cumpria o seu dever e achava-a muito bondosa por Lhe dirigir agradecimentos.

O senhor Alban e Gertrudes tinham ouvido o grito de Felícia, os dos pequenos, da criada e da senhora Orvillet. Acudiram a toda a pressa e ficaram surpreendidos ao ver Felícia encharcada. Em poucas palavras lhes explicaram o ocorrido.

- Oh, Felícia! - disse Gertrudes. - Que susto eu tive ao ouvir o teu angustioso grito!

E Gertrudes apertou nas suas as mãos de Diloy.

- Diloy, de que desgraça nos livrou!

A senhora Orvillet chorava; por sua vez agradecia, comovida, ao salvador da filha. Todos os pequenos quiseram beijá-lo. O pobre homem estava tão sensibilizado,

que não podia dar palavra. O general sacudiu-lhe vivamente a mão e, tomando-lhe o braço, convidou-o:

- Anda, meu amigo; vem beber um copo de vinho

para te refazeres, e mudar de roupa. As senhoras vão cuidar da nossa Feliciazinha.

DILOY - É muito bondoso, senhor conde; não mereço tudo isso. Não é grande coisa apanhar uma criança, quando se sabe nadar.

GENERAL - Seja como for, vem daí, meu amigo; vou mandar um homem a cavalo pedir outras roupas a tua mulher.

DILOY - É escusado, senhor conde; secar-me-ei bem ao fogo da cozinha, se mo permite.

GENERAL - Demoraria muito tempo, meu amigo;

precisas de roupas enxutas.

DILOY (confuso) -Mas, senhor conde... é que não tenho outras.

GENERAL (surpreendido) - Não tens outras em tua casa?

DILOY - Não, senhor conde; tenho comigo tudo

quanto possuo.

GENERAL (enternecido) - Pobre homem! Em todo o caso, vem daí comigo. Tudo se há-de arranjar.

Todos regressaram ao solar. Enquanto a senhora Orvillet fazia Felícia beber uma chávena de tília com algumas gotas de arnica e a dava a tomar aos outros pequenos para os refazer do susto que haviam apanhado, o senhor Alban mandou acender um bom lume na cozinha, deu a Diloy um grande copo de vinho quente com açúcar e mandou trazer um dos seus fatos, de fazenda cinzenta. Obrigou Diloy, a despeito da sua resistência, a despir a roupa molhada e, depois de o haver feito friccionar com uma flanela, fê-lo vestir uma boa camisa e o fato que o criado de quarto lhe trouxera. Tudo assentava bem em Diloy, que era magro e alto como o senhor Alban. Diloy desfez-se em agradecimentos e em desculpas da maçada que dava. Apesar do seu embaraço, não podia dissimular a alegria que lhe brilhava no semblante, ao ver-se tão bem-posto.

GENERAL - Olha! Estás soberbo! Será o teu fato domingueiro; eu encarrego-me do resto. Agora, vem ao meu quarto; vamos tratar de negócios.

Diloy seguiu o senhor Alban, que deu ordem ao seu criado de quarto para prevenir a irmã de que a esperava. Aquela não tardou a aparecer e começaram a conversar.

 

                   Esplêndido projecto destruído por Felícia

GENERAL - Ora, vamos, meu excelente rapaz, senta-te e diz-me qual o lugar que te ofereceram.

DILOY - É em casa de um sapateiro, senhor conde; ofereceu-me alojamento, e dois francos e cinquenta por cada dia de trabalho.

GENERAL - E quantas horas por dia?

DILOY - Doze, senhor conde.

GENERAL - São horas a mais. Tens livres os domingos e dias santos?

DILOY - Não está combinado. Podem exigir que trabalhe, se for necessário.

GENERAL - Para os fabricantes nunca sobra tempo. E emprega os pequenos?

DILOY - Quando chegarem aos dez anos, dão-Lhe trabalho e cinquenta cêntimos diários.

GENERAL - O trabalho é fatigante, difícil? DILOY - Temos de estar sentados durante o tempo do trabalho e isso não é muito duro.

GENERAL - E os pequenos trabalham fora? DILOY - Não, senhor conde, na oficina; não saem. GENERAL - E descansam ao domingo? Podem ir ao catecismo, ao colégio, durante a semana?

DILOY - Só quando não forem precisos.

GENERAL - E hão-de ser sempre precisos. Ouve, Diloy, em vez de entrares lá para dentro ou empregares teus filhos, continua caminheiro e cultiva a terra. Perderás os teus filhos; não terão religião alguma; não se instruirão; serão fracos e doentes. Tu próprio perderás a tua religião, que quase não poderás praticar.

DILOY - Já tinha pensado nisso, senhor conde; foi por isso que quis falar-lhe antes de aceitar. Para mim, Deus dar-me-ia forças; mas os filhos, as pobres crianças de quem sou responsável, tenho de lhes conservar a alma, e nessas oficinas encontra-se tão má gente, que até causa arrepios.

GENERAL - Principalmente se o chefe é homem sem fé, nem lei. Conheço o chefe da oficina, o senhor Bafont. É um patife que não acredita em coisa alguma, que só pensa em ganhar dinheiro. Zomba do operário e da sua moral. Ele próprio tem um comportamento desprezível e aconselho- te a que lhe recuses os oferecimentos.

DILOY - É o que farei, senhor conde. O conselho agrada-me e vou segui-lo.

Diloy levantou-se para se retirar.

GENERAL - Espera, rapaz. Estás com muita pressa; temos também qualquer coisa a propor-te. É minha irmã quem vai falar-te.

  1. A ORVILLET - O meu amigo disse-me ontem que conhecia o trabalho de jardineiro. Procuro um; o meu está velho de mais para continuar a trabalhar; julga poder substituí-lo?

DILOY - Ficaria bem contente, minha bondosa e querida senhora, em permanecer ao seu serviço; e quanto a saber de jardinagem, legumes, frutas, flores, árvores, etc. respondo por isso, mas receio...

Diloy baixou a cabeça e calou-se.

GENERAL - Que receias tu, meu rapaz?

DILOY - Tenho medo de que a menina Felícia...

GENERAL - Felícia?.. Agora respondo por ela. Há dois dias que está outra...

DILOY (com tristeza) - Ainda não me perdoou, senhor conde. Se o senhor conde a tivesse visto e ouvido; quando, segundo as ordens do senhor conde, vim para junto dela, no lago, veria bem que a pobre pequena, por mais esforços que empregasse, tinha sempre no coração a minha inconveniência do mês passado.

GENERAL - Não sabia disso. Mas tu bem viste como ela caiu nos teus braços quando a tiraste da água, e isso foi um gesto espontâneo: ninguém lho ensinou.

DILOY - Bem sei, senhor conde, e sinto-me satisfeito e grato por isso. Mas receio a sua reflexão. Quem sou? Um pobre labrego, como ela diz, um bruto que gravemente a melindrou, a quem bateu. Nunca o esquecerá, creia.

GENERAL - Já esqueceu; tudo isso foi para o fundo da água. Para ela não és mais que o seu salvador, o da mãe, do irmão, da irmã e meu. Que mais queres? São brilhantes provas de serviço! E é por isso que queremos, minha irmã e eu, conservar-te junto de nós, até ao fim dos teus dias e do dos teus filhos.

SR.A ORVILLET - Ouça, meu amigo, volte amanhã para ultimarmos o assunto; verá que Felícia lhe perdoou sinceramente e aceitará com prazer a sua vinda para nossa casa.

DILOY - Que Deus a ouça e eu seja bem acolhido, minha bondosa e querida senhora! Seria a felicidade de toda a minha vida e o futuro garantido da minha bondosa mulher e dos nossos queridos filhos. Devo então voltar amanhã?

SR.A ORVILLET - Pois decerto; ao meio-dia; almoçará no solar, mostrar-lhe-ei os seus futuros alojamentos e fecharemos o contrato.

Diloy, convencido, por fim, com as palavras da senhora Orvillet, deixou expandir a sua alegria, tanto quanto lhe permitiu o seu respeito pelos seus futuros patrões. Pouco faltou para se dependurar no pescoço do senhor Alban e beijar as mãos da senhora Orvillet. Saiu, contudo, em passo moderado; quando, porém, se encontrou fora do solar, o senhor Alban e a irmã, que se encontravam ao pé da janela, viram-no saltar e pular como um cabrito, para chegar mais depressa a casa, a fim de participar à mulher as suas esperanças e anunciar-lhe o bom futuro que os esperava.

- Acenderei uma vela a Nossa Senhora da Boa-Esperança - disse à mulher - e amanhã, antes de ultimar o caso, irei rezar à igreja.

MULHER - E ao bom Santo Espírito, e à bondosa Santa Suzana.

Enquanto o senhor Alban e a senhora Orvillet satisfaziam a sua dívida de gratidão, assegurando o futuro e a felicidade do excelente Diloy, todos os pequenos conversavam sobre a aventura de Felícia.

LOURENÇO - Eu estimaria que a mãezinha conservasse em nossa casa o bondoso Diloy, que ficaria bastante satisfeito.

FELÍCIA (com vivacidade) - Não creio que tenha vontade disso; preferirá que lhe dêem dinheiro.

LOURENÇO - E tu, Gertrudes, que dizes? GERTRUDES - Não digo nada, pois não conheço Diloy.

LOURENÇO - Não te parece que tem aspecto bondoso e que nos estima muito?

GERTRUDES - De facto; afigura-se-me ser muito dedicado e afeiçoado. Para mais, tudo quanto faz o prova.

LOURENÇO - Vês, Felícia?

FELÍCIA - Isso não prova que tenha vontade de ficar em nossa casa. Suponho que achará mais agradável continuar a ser caminheiro.

LOURENÇO - Havemos de ver isso. Vou perguntar-lhe.

FELÍCIA - Peço-te, Lourenço, que não lhe fales nisso.

LOURENÇO - Porquê? Assim ficaríamos sabendo o que ele prefere.

Felícia - Mas isso forçaria a mãezinha a tomá-lo, tanto mais que o nosso tio estima-o deveras.

LOURENÇO - E tu não o estimas. Pobre homem! Já te salvou duas vezes!

ANA - Porque não o estimas? É tão bom! E porque o beijaste, se não o estimas?

Felícia (corando) - Fi-lo impensadamente, porque estava com muito medo. Foi uma asneira que fiz.

GERTRUDES - Ah! Não, minha boa Felícia! Não foi asneira; foi um belo impulso do teu coração e fizeste bem em te deixares levar por ele.

Felícia - Não achas ridículo que eu tenha beijado um pobre caminheiro?

GERTRUDES - Muito pelo contrário; deves-lhe de masiado para não o tratares amistosamente, e vi que todos te aprovaram.

Felícia - Supões que não troçarão de mim? GERTRUDES - Troçar de ti? Em tal ocasião? Ninguém pode ter tão má índole, para rir de uma acção tão bela e comovedora.

Felícia começava a ficar abalada; confiava em Gertrudes e até sentia certa amizade por essa amável prima. Continuaram a conversa, que foi interrompida pelo senhor Alban.

GENERAL - Minha Feliciazinha, a mãezinha chamou-te; espera-te no meu quarto.

FELÍCIA - Vens, Gertrudes?

GERTRUDES - A tia tem naturalmente alguma coisa de particular a dizer-te e eu receio importuná-las.

GENERAL - Nada que não possas ouvir, minha boa pequena. Creio até que não será mau ires com Felícia.

GERTRUDES - Nesse caso, ficarei muito contente em fazer uma visita à tia - acrescentou, beijando-o.

Encontraram a senhora Orvillet, sozinha; a senhora S. Lucas ainda estava recolhida.

  1. A ORVILLET - Ah! Vens com Felícia, minha boa Gertrudes; sinto-me bastante satisfeita por assistires ao nosso conselho, pois vamos tratar de um assunto muito importante para todos nós. Anda beijar-me, Feliciazinha. Estou muito contente contigo; mostraste coragem e tenho a certeza de que vais ficar satisfeita com a ideia que te vou expor.

FELÍCIA (rindo) - A mãezinha vai-me pedir conselho, a mim?

  1. A ORVILLET (sorrindo) - É verdade, e submeter-me-ei à tua decisão. A concretização da minha ideia depende de ti. Sabes os enormes serviços que Diloy nos tem prestado; a aversão que tinhas por ele desapareceu completamente, suponho, perante a sua dedicação e a afeição que parece sentir por ti. Sorris e duvidas; mas não tens razão para duvidar. Ainda hoje te deu excelente prova. O teu tio e eu queremos testemunhar-lhe a nossa gratidão e pensámos em conservá-lo aqui como jardineiro; simplesmente, como não quero impor-te uma coisa que talvez te fosse custosa (e tu sabes porquê), quero que me digas com toda a franqueza se apoias e se te agrada este projecto ou não.

Felícia permaneceu calada, imóvel e de olhos baixos. SR.a ORVILLET - Então, minha filha, qual é a tua opinião?

Felícia - Não sei, mãezinha, não posso dizer.

SR.a ORVILLET - Como? Não sabes se te será agradável ou desagradável ver Diloy instalar-se em nossa casa como jardineiro?

Felícia (indecisa e quase em segredo) - Sim, mãezinha, sei que me seria muito desagradável.

SR.a ORVILLET - Não ouço bem; dizes agradável, não é assim?

Felícia - Não, mãezinha; muito desagradável. SR.a ORVILLET (com tristeza) - Então, minha filha, está o assunto arrumado. Lamento-o por ti, que te mostras ingrata, e por ele, que ficou bastante contente. Mas não te quero mal por isso; o teu coração ainda não está como eu esperava; mas isso há-de dar-se um dia, suponho: Entretanto, vamos procurar outra ocupação para Diloy. Vai, minha filha, vai brincar com a tua prima.

Felícia, saiu com Gertrudes.

 

                   Felícia remedeia o mal que fez

GERTRUDES - Porque respondeste assim à tua mãe, Felícia? Se tivesses reflectido antes de responder, terias falado de outra maneira. Tu própria, quando esse pobre homem te salvou, foste muito justa, muito boa, muito natural; a tua mãe devia ter pensado em que serias a primeira a regozijar-se com o seu caritativo projecto e, afinal, rejeita-lo quase com dureza.

Felícia - Não me censurarias assim se soubesses o que se passou.

GERTRUDES - Não preciso de conhecer o passado para saber que te salvou a vida, que lhe deves ser grata e que a tua mãe e o teu tio estão muito penalizados com a tua recusa.

FELÍCIA - Ouve, Gertrudes; tenho grande confiança em ti e vou dizer-te o que não deves ter sabido por pessoa alguma; é um grande segredo; promete-me que não falarás dele; a mãezinha e o tio conhecem-no, mas ninguém mais.

GERTRUDES - De boa vontade to prometo, minha boa Felícia. Sossega; não serei eu quem trairá a tua confiança, que deveras me envaidece.

Felícia referiu-lhe tudo quanto se passara entre ela e o caminheiro, e a aversão muito pronunciada que, desde então, lhe testemunhara.

Felícia - Contava nunca mais tornar a ver esse homem; encontro-o em toda a parte. Nada queria dever-lhe e eis que me presta dois grandes serviços. Esta manhã, sensibilizada pela sua dedicação, arrependi-me de o haver tratado mal. Quis reparar tudo, mas, passados os primeiros momentos, fiquei envergonhada de me haver lançado nos seus braços, de o haver beijado na presença de todos e, quando a mãezinha me falou, pensei que uma vez instalado em minha casa me trataria com familiaridade, me voltaria a falar do passado, me humilharia continuamente. Não acreditas? E não achas, agora que sabes tudo, que tenho razão?

GERTRUDES - Minha pobre Felícia, a tua aventura com o caminheiro é muito desagradável, mas não tanto como imaginas. Naquela ocasião encontrava-se embriagado; não estava em seu juízo, e abusou da sua força para bater numa criança.

Felícia rejubilava e sentia aumentar a sua amizade por Gertrudes, que continuou:

- Sentiu tão bem isso, que, quando a embriaguez lhe passou, não falou mais a pessoa alguma. Julgou- se obrigado, em consciência, a ir pedir desculpa a quem julgava ter ofendido. Estava envergonhado com o seu arrebatamento; tentava reparar a falta e foi por isso que, tão corajosamente, se defrontou com o urso. Tudo isso prova que é um homem excelente e honesto, que se julga mais culpado do que é de facto.

Está envergonhado com o que fez e lembra-te, lembra-te bem de que ele tenta e tentará fazê-lo esquecer. Nunca mais falará no assunto, porque temerá fazer tolice ou desagradar-te. Afeiçoou-se a ti, porque és tu quem tem razão de se queixar dele. Está grato pelo teu perdão, porque sentiu quantos esforços devias ter empregado para o conceder. Se aceitares o alvitre de minha tia, ainda te ficará mais dedicado e grato.

Em suma: creio que o pobre caminheiro é um homem excelente e será magnífico servidor. Se fosse a ti, diria a minha tia que o admitisse como jardineiro, o mais depressa possível. É evidente que ela o deseja tanto como o nosso tio.

Felícia - Mas se há pouco disse que não, não posso agora dizer que sim.

GERTRUDES - E porquê? Tiveste de responder sem ter cinco minutos para reflectir. Agora, que reflectiste, respondes prudentemente, depois de haveres ponderado o que havia de melhor a fazer.

Felícia - Se soubesses quanto me custa fazer tão grande esforço por um homem que está tão abaixo de mim e nunca me será útil!

Gertrudes reprimiu o sentimento de descontentamento que lhe dava aquela altiva e egoísta resposta de Felícia, e volveu meigamente:

- Creio, Felícia, que ainda laboras em erro; esse valente homem não está abaixo de ti, pois possui magníficos e generosos sentimentos; é honesto, bom e grato. Não é por ser um trabalhador que é menos do que nós. Lembra-te de que Nosso Senhor foi operário, um pobre carpinteiro; que quase todos os Apóstolos eram gente pobre. E quanto a dizeres que nunca te será útil, vê se não foi útil hoje e no dia da luta com o urso...

Felícia - Tens razão no que dizes; mas ainda não estou decidida. Esperarei.

Gertrudes não quis levá-la a modificar a resposta à mãe; beijou-a e disse-lhe:

- Pois sim! pensa bem. Antes de te decidires, não queres ir amanhã de manhã à missa comigo? Rezaremos ambas a Deus, para Ele te aconselhar o que deves fazer, e dirás então a tua mãe o que resolveres.

Felícia, lisonjeada por Gertrudes a tratar como sua igual na idade e no juízo, aceitou, de boa vontade, o oferecimento da prima, a quem cada vez estimava mais. Tornou a falar-Lhe depois, durante o dia, do seu caso, como ela Lhe chamava; Gertrudes ouviu-a sempre com meiguice e falou-lhe sempre com amizade. Os seus conselhos, cheios de razão, causavam certa impressão em Felícia.

Enquanto as duas primas conversavam, o senhor Alban passeava, a passos largos, pelo quarto.

- Essa pequena está uma toleirona de marca - volveu por fim. - És boa de mais para ela, Helena. Não deverias consultá-la, deverias ter resolvido o assunto como entendesses, sem sacrificar o pobre Diloy ao tolo orgulho dessa pequena sem coração!

SR.a ORVILLET - Talvez tivesse feito melhor, Alberto; mas o pobre Diloy seria o primeiro a sofrer. Conto que Felícia mude de pensar.

GENERAL - Pois eu nada espero, a não ser que a boa Gertrudes consiga dar-lhe um pouco do seu coração. Diabo de pequena! Não há ainda duas horas, lançou-se, à vista de todos nós; nos braços desse homem, que beijou como se fosse um pai... E depois retoma os seus ares de presumida, de princesa ofendida, e zás!.. lança- te um não bem categórico. E tudo isso porque cais na patetice de a consultar.

  1. A ORVILLET (sorrindo) - Tens razão, mas lembra-te do feitio de Felícia. Esqueces o que se passou entre ela e Diloy, e quanto se sentiu humilhada.

GENERAL - Nada esqueço e tenho a certeza de que Gertrudes procederia de modo diverso.

SR.A ORVILLET - Penso como tu; no entanto, Gertrudes é mais velha do que ela três anos e...

GENERAL - E tem um carácter de anjo, um coração de ouro, um espírito e uma inteligência admiráveis...

  1. A ORVILLET (tristemente) - É precisamente por isso que não a devemos comparar com a minha pobre Felícia, que nenhuma dessas qualidades possui.

O general deteve-se, fitou a irmã e, vendo lágrimas prestes a saltarem-lhe dos olhos, sentou-se junto dela, beijou-a ternamente e disse:

-Perdoa, minha pobre Helena; afligi-te, falei-ta com dureza, a ti que és tão meiga e bondosa. É que estava aborrecido com essa tolinha! Impede de nos afeiçoarmos para sempre a esse excelente Diloy, provando-lhe a nossa gratidão, proporcionando-lhe alguma felicidade! Pobre rapaz! Também vai ficar desconsolado!

SR.A ORVILLET - Não desanimes; talvez a Gertrudes faça Felícia mudar de ideia; estou certa de que vão falar no assunto; Gertrudes tem já alguma influência sobre a minha filha; esperemos ainda.

GENERAL - Farto de esperar estou eu... Como, porém, não conto com coisa alguma, vejamos, entretanto, o que poderemos fazer a favor de Diloy.

Os dois irmãos continuaram a conversar, mas mais tranquilamente; fizeram vários projectos, mas nenhum preenchia tão bem o seu fim como aquele que Felícia rejeitara.

A cada projecto falhado, o general voltava a irritar-se, irritação que a senhora Orvillet sempre conseguia dissipar.

Ouviu-se ligeira pancada na porta.

- Entre! - disse o general em tom terrível, pois estava maldisposto.

És tu, minha filha? - volveu em voz mais branda, ao ver surgir a bondosa e meiga figura de Gertrudes. Entra, entra... não tenhas medo.

GERTRUDES - Vinha dar-lhes uma boa notícia, meus tios. Conto... estou certa de que Felícia lhes dará amanhã uma resposta muito diferente daquela que tanto os penalizou, há uma hora.

Gertrudes contou-lhes a conversa que tivera com Felícia e o projecto de ir à missa no dia seguinte.

O general, radiante, beijou-a de tal maneira, que as faces de Gertrudes ficaram vermelhas.

GENERAL - És a melhor menina que tenho visto até agora, Gertrudes. Amanhã completa a tua obra.

GERTRUDES - Deus a completará, tio.

  1. A ORVILLET - Obrigada, minha filha; prestaste-nos um grande favor, sem contar com Diloy, para cuja felicidade também contribuiste.

GERTRUDES - Sinto-me muito satisfeita por haver podido ser agradável à minha tia, e também ao meu tio, de quem tanto gosto.

GENERAL - E que te paga na mesma moeda, minha querida filha.

 

                   O general corre com os Castelsot

Decorridos alguns instantes, após a boa notícia trazida por Gertrudes, um criado veio anunciar que os senhores Castelsot estavam na sala com os filhos.

GENERAL - Esses impertinentes? E ousam vir, sabendo que estou cá! Anda, Helena, eu vou ensiná-los e metê-los na ordem!

  1. A ORVILLET - Oh! Alberto, vê lá... Peço-te que não sejas impertinente. Eles não te reconheceram no casamento dos Robillard; deixa-os em paz. Por quem és, não desças!

GENERAL - Qual história! Quero vê-los, falar-lhes. Não lhes direi a mais pequena impertinência; falar- lhes-ei muito delicadamente, mas quero impedi-los de voltarem a tua casa. Gertrudes! Chama a Felícia, e vai com ela e os irmãos para a sala!

Gertrudes saiu e, passados instantes, o general desceu, rindo das súplicas e dos sustos da irmã, que o seguia de perto.

Quando entraram, o general dirigiu-se logo ao barão, dizendo:

- Como, diabo, te encontras na nossa vizinhança, Futé? Teu pai deixou-te uma bonita fortuna, que aumentaste lindamente, pelo que me disse o teu antigo patrão, o pobre duque de La Folotte; e que vives mesmo fartamente! E tu, Clarisse, desposaste Futé, astuciosa como és? O teu dote já era bom, ao que parece. Pobre duque! É à sua custa que viveis!

Gertrudes e Felícia entraram.

- Felícia, vem ver os teus amigos! Gertrudes, apresento-te os pequenos Futé; os avós eram um, copeiro, e outro, procurador do pobre duque de La Folotte, que confiava muito neles, o que deu em resultado ter-se arruinado e os dois criados enriquecerem.

São milionários Ora, vamos, Futé; confessa; a quanto monta a tua riqueza? Dois, três milhões?

Todos pareciam petrificados. Os Castelsot estavam lívidos de fúria, de terror, de vergonha. Imóveis, de olhos arregalados, de dentes cerrados, de mãos crispadas, nem forças tinham para falar ou mover-se. Os pequenos Castelsot, vermelhos, humilhados, consternados, não se atreviam a mexer-se. A senhora Orvillet estava apoquentadíssima; por mais que puxasse pelas abas do casaco do irmão para o fazer calar, nada conseguiu.

Gertrudes notava o confrangimento da tia e começava a assustar-se.

Só Felícia fitava com ar satisfeito e desdenhoso os seus amigos de véspera.

O general, contente com a atitude estarrecida dos Castelsot, disse-lhes, ao terminar, de sobrecenho carregado e em tom severo:

- Nem um nem outro me reconheceram no casamento dos Robillard, e eu não quis falar-Lhes em público. Hoje, vêm a casa de minha irmã. Como ela não confia os seus negócios e a casa a pessoas que enriqueceram à custa do primeiro patrão, nada têm que fazer aqui. Vai-te, Futé, e que não te torne a ver nesta casa; nem a ti, Clarisse. Levem esses dois lindos meninos, que se parecem de mais com vocês para serem recebidos numa casa destas... Vamos, ponham-se a andar!

E, como os Castelsot não arredassem pé, volveu:

- Desapareces daqui ou não, velhaco?

Um grito rouco, semelhante a um rugido, escapou-se, por fim, do forte peito de Futé-Castelsot. Não andou, correu para a carruagem; a mulher e os filhos seguiram-no, calados, e saíram para nunca mais voltar. A senhora S. Lucas, que ouvira chegar a carruagem e a viu partir, desceu à sala para saber quem eram aquelas visitas tão apressadas, que nem um quarto de hora demoraram. Achou todos consternados; só o senhor ALban ria ao ver a elegante carruagem e os empoados lacaios.

- Que aconteceu, senhor Alban? Que visita recebeu? Salvo o senhor, todos me parecem petrificados.

O senhor Alban desatou a rir.

- Sou eu que tenho a cabeça de Medusa; fiz fugir os habitantes de Castelsot, e está a ver o efeito que isso produziu na minha família.

O general contou-lhe o que acontecera e pô-la ao facto dos antecedentes da família Castelsot.

- Conhecia-os desde a minha meninice; conheci La Folotte no colégio de Vaugirard; é mais velho do que eu alguns anos. Vi muita vez em casa dele o procurador e o filho, que é o Castelsot. O pai havia roubado o velho duque. O pequeno continuou a depenar o filho, até que a riqueza passou quase toda para as mãos do Futé. Acabo de pô-los na rua, muito delicadamente; não é verdade, Helena?

SR.a ORVILLET (rindo) - Se chamas a isso delicadamente, não sou da tua opinião.

GENERAL - E tu que dizes, Gertrudes?

GERTRUDES - Meu tio, acho que os pôs na rua com certa rudeza, embora tivesse razão.

GENERAL (rindo) - Fi-los afastar um pouco rudemente do nosso caminho, para Felícia não sofrer mais a nefasta influência dos seus amigos Futé. Creio que não os lamentas muito, Felícia?

FELÍCIA - Estou encantada com o que fez, tio; estou livre deles. Gostei de ver-lhes os assustados semblantes! Por fim, até os cabelos do pai estavam ouriçados. Ah! ah! ah! Como pareciam patuscos!

GENERAL (franzindo a tèsta) - Não és lá muito boa Felícia! Há dois dias estimava-los muito, e hoje ris-te da sua humilhação!

FELÍCIA (altiva) - Foi o tio quem me disse o que eles eram; e eu não quero que os Futé possam dizer-se ou julgar-se meus amigos.

GENERAL - Mas que ares os teus! Acaba com esses ares!.. Os Futé honestos eram muito agradáveis de visitar; foram os Futé gatunos e impertinentes que expulsei. Não esqueças, Felícia, que um operário honesto é mais estimável do que um príncipe sem fé e sem moralidade.

O general propôs um passeio antes do jantar; todos aceitaram a ideia, incluindo Lourenço e Ana, que não largavam a prima Julieta. O passeio foi agradável. Gertrudes correu com os pequenos; ajudou-os a colher centáureas e papoilas; arrastou Felícia a trepar fossos, e descê-los de corrida, a fazer grinaldas. Durante um descanso de meia hora, debaixo de uma carvalheira magnífica, Gertrudes e Felícia fizeram para os pequenos coroas e colares de centáureas e papoilas. Felícia distraiu-se; nem uma única vez se queixou de cansaço nem pediu para regressar.

Na manhã seguinte, pelas sete horas, Gertrudes, Felícia e a senhora S. Lucas foram à missa da aldeia; Gertrudes, sem querer exortar a prima, dizia algumas palavras para despertar os bons sentimentos de Felícia, que orou e reflectiu durante a missa. Gertrudes rezou e chorou; a lembrança da mãe não a abandonava: rezava pelo seu regresso e chorava a sua ausência. Quando saíram da igreja, encontraram-se junto do caminheiro.

FELÍCIA - Que casualidade encontrá-lo aqui, Diloy! DILOY - Vim ouvir missa, menina, e pôr uma vela no altar da bondosa Virgem Santa, a pedir-lhe a sua protecção para um assunto muito importante que me diz respeito...

Felícia - Que assunto?

DILOY - Não posso dizer-lho, menina, mas trata-se da minha felicidade ou da minha infelicidade. Se o assunto se resolver em bem, sou o mais feliz dos homens; se falhar, é porque mereço castigo e abandonarei esta terra para procurar trabalho noutra parte.

Felícia corou muito; compreendeu que a mãe e o tio já Lhe haviam falado no projecto, e sentiu custosamente que só ela se opunha à felicidade desse homem que Lhe salvara a vida.

Tocada, enfim, pela sua humilde resignação, aproximou-se dele e deixou-se ficar um pouco atrás da senhora S. Lucas e de Gertrudes. Sorrindo ternamente, disse ao caminheiro:

- Diloy, conheço o seu caso; creio que se arrumará. Venha comigo até casa da mãezinha, que procura um jardineiro e eu quero apresentar-lhe um, que conheço e de quem gosto muito.

DILOY - A menina Felícia? A menina? Será possível? Terá a bondade de consentir?

FELÍCIA - Cale-se, Diloy, cale-se! Bem sabe que há um segredo entre nós. Fui má para si, mas nunca mais o serei, prometo.

DILOY - Querida menina, ora veja onde estamos; pode, neste mesmo lugar em que me enchi de vergonha pela minha brutalidade, repetir que me perdoa?

FELÍCIA - Da melhor vontade, meu amigo. De todo o meu coração lhe perdoo e desta vez é muito sincera e seriamente. Como prova, dê-me a mão para atravessar este monte de pedras. Este local está sempre atulhado... Obrigada, Diloy -agradeceu, depois de haver transposto o monte de pedras. - Foi isso o que eu deveria ter feito da primeira vez em que o encontrei... Mas não fala, Diloy? Que tem?

DILOY (com voz trémula) - Tenho o coração tão cheio, menina, que não me atrevo a falar-lhe, temendo que rebente. Estou tão sensibilizado por vê-la tão bondosa, tão amável, e sinto-me tão grato, tão satisfeito, que não encontro palavras para me exprimir. E isto faz mal, sufoca.

- Gertrudes - gritou Felícia -, espera por nós. Anuncio-te uma boa novidade. Achei um jardineiro para a mãezinha e levo-o comigo.

GERTRUDES (beijando-a) - Como procedeste bem, bondosa Felícia! Que prazer vais dar aos meus tios!

Voltaram o mais depressa possível para casa. Felícia correu logo para a mãe, seguida de Diloy; entrou como um pé-de-vento. Eram cerca de nove horas; a senhora Orvillet e o senhor Alban almoçavam.

FELÍCIA - Mãezinha, mãezinha, trago-lhe um jardineiro, com o qual ficará muito contente, e que estimarei muito e para sempre.

A senhora Orvillet e o general soltaram um grito de alegre surpresa; levantaram-se precipitadamente, beijaram com carinho Felícia e aproximaram-se de Diloy, que quis falar e tapou os olhos com as mãos; chorava.

Quando pôde dominar a sua comoção, destapou a cara inundada de lágrimas.

- Perdão, querida senhora; perdão, senhor conde; muitos perdões, querida menina; sinto-me melhor, já não sufoco.

Permaneceu momentos sem falar, depois levantou-se, tornou a pedir desculpa e quis sair.

GENERAL - Aonde vais, meu rapaz? Nada combinámos ainda; nada sabes e sais daqui sem dizer água vai?

DILOY - Senhor conde, dê-me licença que vá tomar ar, durante um quarto de hora. Lembre-se da felicidade que vou ter, eu que sempre vi sofrer minha mulher e meus queridos filhos; lembre-se do reconhecimento, alegria que me afogam. Perdão, senhor conde, perdão. estarei de volta daqui a um quarto de hora!

E Diloy saiu à pressa.

O general, a senhora Orvillet e a própria Felícia sentiram-se comovidos com a felicidade deste excelente homem. Felícia foi beijada repetidas vezes; deixou a mãe para ir ter com Gertrudes, que estava nos aposentos da senhora S. Lucas; recebeu aí cumprimentos em virtude do seu procedimento; em seguida, Gertrudes disse-lhe que ia trabalhar, escrever à mãe e fazer trabalhar a irmã até à hora do almoço. Felícia voltou para junto da mãe, a fim de que esta lhe perguntasse a lição. Lourenço deu a sua no quarto da criada, e tudo voltou a ficar calmo.

 

                   Felícia castiga-se a si própria

Diloy foi pontual; passado um quarto de hora, o general viu-o aparecer, disposto a aceitar todas as condições da senhora Orvillet. O assunto depressa ficou concluído; Diloy prometeu entrar daí a três dias com a mulher e os filhos. A senhora Orvillet preveniu o velho jardineiro, a fim de se mudar com a mulher para a casa que lhes dera para toda a vida e que estava pronta a recebê-los; deviam ter um rendimento suficiente para vi ver sem trabalhar, o que, junto às suas economias, lhes dava uma situação desafogada.

Na manhã seguinte, Felícia propôs para a tarde um passeio de carruagem, que Gertrudes aceitou com prazer, com o consentimento da senhora S. Lucas. Julieta,

Lourenço, Ana e Valéria deviam pertencer ao grupo; quando, porém, Felícia pediu à senhora Orvillet que mandasse pôr a carruagem maior, recebeu, como resposta, ser impossível.

Felícia - Impossível, porquê, mãezinha? Os cavalos não fazem nada!

SR.a ORVILLET - Pelo contrário, estão cansados. Fizeram a mudança dos nossos velhos Marcotte e vão à cidade buscar camas e móveis para Diloy, que não os tem. Como vês, homens e cavalos estão ocupados hoje e amanhã.

Felícia - Que aborrecimento! Tinha prometido a Gertrudes mostrar-lhe a entrada da floresta, onde encontrámos o urso e onde Diloy tão corajosamente lutou com ele. Os Marcotte podiam muito bem fazer a mudança sozinhos.

  1. A ORVILLET - Como queres tu que um pobre velho de setenta e dois anos e uma velha de sessenta e nove possam tirar e carregar camas, armários, enfim, todos os móveis?

Felícia - Podem esperar um dia ou dois. Porque nos incomodamos com essa gente?

SR.a ORVILLET - Primeiro, porque eu quero que seja assim. Depois, porque essa gente são velhos servidores, que estão com pressa de se instalar na casa deles, e por ser um dever nosso tornar contentes as pessoas que envelheceram ao nosso serviço.

Felícia (maldisposta) - Faz sempre o que agrada aos outros, sem pensar no que nos agrada a nós.

  1. A ORVILLET - Penso no bem- estar de vocês de manhã à noite, mas não quero habituá-los a serem egoístas e a só se preocuparem com os prazeres, sem atentarem em quem nos serve e que carece, como nós de descanso, de distracção e inocentes divertimentos. Todo o nosso pessoal é caritativo e bom; fica satisfeito em ajudar os velhos Marcotte a instalarem-se bem em sua casa e a limpar e mobilar a futura morada de Diloy. Não quero privá-lo desse prazer que é, ao mesmo tempo, um acto de caridade.

FELÍCIA - Mas o nosso passeio não iria além de duas ou três horas.

SR.a ORVILLET - É o tempo de atrelar, de arrear, de desatrelar os cavalos, de limpar os arreios, de lavar a carruagem... é um dia perdido.

Felícia - Mas nesse caso, poder-se-ia... SR. A ORVILLET - Basta, Felícia; renuncia ao teu passeio e não insistas. Já te expliquei as razões; tens de sujeitar-te a elas.

Felícia (batendo o pé) - É insuportável! SR. A ORVILLET - Sabes o que há de insuportável em tudo isto? És tu, minha pobre filha, com a tua insistência, que toma proporções de impertinência.

Felícia ia ainda a replicar; a mãe impôs-lhe silêncio e mandou-a para o quarto.

Felícia foi procurar Gertrudes, para lhe comunicar a sua má disposição contra a mãe, contra os velhos Marcotte, contra toda a casa.

Gertrudes tentou acalmá-la e fazer-lhe compreender o respeito que devia ter pelos desèjos da mãe; enquanto a exortava a ser mais submissa às suas vontades, mais caridosa ou, pelo menos, mais condescendente para com os criados da casa.

Gertrudes acabou, meio risonha, meio séria, por persuadir Felícia de que a mãe tinha razão.

- Para mais - acrescentou Gertrudes - todos os da casa sabem que foste tu que meteste cá Diloy, é sobre ti que recairá a gratidão dos Marcotte, que estão radiantes por se instalarem tranquilamente em sua casa, e a de Diloy e toda a família, que falam a toda a gente na sua felicidade; e, finalmente, a de todos os criados, que te acham reconhecida e não deixarão de dizer que se não fosses tu, não teriam estes dois dias de corridas, de agitação e também de trabalho agradável, visto ser uma obra de caridade que praticam voluntariamente.

E, depois, sabes uma coisa? Se nós os ajudássemos também? Divertir-nos-emos mais do que nesse passeio de carruagem (que podemos dar dentro de três ou quatro dias), carregaremos as carroças, levaremos embrulhos, ajudaremos a tia Marcotte a arrumar as coisas; verás como será divertido.

- É verdade... -volveu Felícia, pulando de contente. - Mas - acrescentou passados alguns instantes de reflexão - não acharão estranho que ajudemos à mudança de um jardineiro?

GERTRUDES - Porquê? Que tem isso de estranho? FELÍCIA - Nós, as meninas do solar, misturando-nos com os criados? Fazendo o trabalho de serventes?

GERTRUDES - Ah! Que ideias tão estranhas as tuas, Felícia! Que tem isso? Que mal faremos nós?

Felícia - Baixarmo-nos; isso pode prejudicar-nos, porque já não nos respeitarão.

GERTRUDES - Supões isso? E eu creio que, pelo contrário, nos engrandeceremos, nos fará bem e nos respeitarão mais do que antes, porque prestamos serviços é sempre bom tornarmo-nos prestáveis.

FELÍCIA - Vou tentar.

GERTRUDES - E não te arrependerás. Verás que este dia será o mais divertido que passaremos.

As duas primas correram aos aposentos da senhora de Orvillet; Gertrudes levara Felícia a ser a primeira a falar.

- Mãezinha - disse Felícia ao entrar -, agradeço-lhe muito ter recusado a carruagem para darmos o nosso passeio. Gertrudes teve uma ideia excelente e que muito nos divertirá. Todos ajudaremos a fazer os embrulhos dos Marcotte, a carregá-los e a descarregá-los, a pôr tudo no seu lugar na nova moradia e a preparar tudo na casa do jardineiro para Diloy.

SR.a ORVILLET - É, de facto, magnífica ideia, minha Gertrudinhas; agradeço-te por Felícia, que ficará mais satisfeita em fazer essa obra do que o ficaria se desse o seu passeio de carruagem.

FELÍCIA - Oh! sim, mãezinha! Peço-lhe perdão por há pouco lhe responder tão mal.

  1. A ORVILLET - Perdoo-te de todo o coração, minha querida filha. Dou-vos feriado todo o dia; a vossa única lição de hoje será uma lição de caridade e é Gertrudes que será, se já não o é; a professora... Vai prevenir a criada e os pequenos; ficarão radiantes.

GERTRUDES - Vou também pedir à minha tia S. Lucas para me dar feriado, a fim de não deixar Felícia e ajudá-la.

SR.A ORVILLET - No que farás muito bem, minha pequena.

- Eu peço para pertencer ao grupo - gritou uma voz fora de casa.

GERTRUDES - Quem é que quer ajudar-nos a divertir?

SR.A ORVILLET (rindo) - É teu tio Alban, que se instalou a ler debaixo das minhas janelas.

Gertrudes chegou à janela e avistou, de facto, o tio.

- Esperem-me - bradou ele. - Vou já subir aí.

Efectivamente, entrou alguns segundos depois.

- Bom dia, tio - saudaram as duas sobrinhas, correndo para ele.

GENERAL (beijando-as) - Bom dia, minhas pequenas. Vamos todos trabalhar depois do almoço. Isso me dará prazer. Obrigado, minha boa Gertrudinhas, por teres tido tão bela ideia.

GERTRUDES - Não tem grande merecimento, tio. Felícia também a teve.

GENERAL - Não acredito! Anda cá, para te dizer um segredo.

E, levando Gertrudes à janela, segredou-lhe ao ouvido:

- Eu ouvi toda a tua conversa com Felícia; a tua janela fica ao pé desta; eu estava debaixo. Como vês, não perdi palavra.

Gertrudes corou ligeiramente e volveu, por sua vez baixinho:

- Não diga nada, tio; peço- lhe; não fale nisso. GENERAL (em voz alta) - Está bem, minha pequena. Vou prevenir tua tia S. Lucas. São onze horas. Dentro de meia hora, vamos almoçar e, depois de os criados terem também comido, principiaremos.

SR.A ORVILLET - Como vês, Alberto, Felícia reflectiu.

GENERAL - Sim, mas vigorosamente auxiliada pela boa Gertrudes. Palavra de honra! Esta criança é um anjo, um tesouro.

SR.A ORVILLET - Conto que se demore muito aqui; há-de modificar a minha pobre Felícia...

GENERAL - Dum extremo a outro. Mas nunca valerá uma Gertrudes.

SR.A ORVILLET - Talvez. A Felícia não é má. GENERAL - Achas? E poderá tornar-se boa? Mas repito-te, nunca chegará aos calcanhares da Gertrudes.

Toda a casa ficou revolucionada num quarto de hora. Os três pequenos tinham percorrido o jardim, as cavalariças, a cozinha, para anunciar que, em seguida ao almoço, todos, incluindo o tio, iriam ajudar à mudança e à instalação dos Marcotte e, no dia seguinte, à de Diloy.

O senhor Alban e a senhora Orvillet foram ver a casa do jardineiro; acharam-na muito má; mandaram o João prevenir os trolhas para virem imediatamente caiar os tectos e as paredes; começar-se-ia a tarefa logo que os móveis de lá saíssem. Avisaram os Marcotte para embrulharem as roupas e outras coisas, para estarem prontas a serem colocadas na carroça.

A senhora Orvillèt deu ordem na cozinha para o almoço dos criados ser servido ao mesmo tempo que o dos patrões. Combinou-se que o dos patrões seria posto antecipadamente na mesa e os pequenos fariam o serviço. As crianças andavam numa roda-viva.

 

                    A mudança. Os Marcotte questionam

Por fim, soou a sineta; os três pequenos tinham pedido instantemente para esperar, com as armas preparadas, isto é, o guardanapo no braço e prato em punho. Tinham-se colocado à porta de entrada, quando a senhora Orvillet, o senhor Alban, dando o braço à senhora S. Lucas, Gertrudes e Felícia entraram na sala de jantar.

Os criadinhos, tomando a sério o seu papel, não queriam sentar-se à mesa; o general, porém, deu ordem para deporem as armas, e eles foram desarmados por Gertrudes e Felícia; que os obrigaram a tomar parte na refeição. Depois do primeiro prato, pediram outros.

Julieta, Lourenço e Ana correram a preparar nova dose; Ana partiu um prato, com a pressa de servir a mãe; a Lourenço escorregaram dois, mas nenhum se quebrou; Julieta aproveitou a desordem causada por este desastre para substituir com presteza todos os pratos sujos. Quando os cacos foram apanhados, Lourenço e Ana só tiveram de sentar-se à mesa e continuar a refeição, que findou tranquilamente. Ainda outros desastres: uma garrafa de vinho entornada em cima da toalha, um saleiro virado e o trambolhão da Ana com a cadeira; mas como não se magoou, toda a gente riu do percalço, e ela pediu para continuar o seu serviço, comendo de pé, a fim de estar a postos para dar aos convivas o que pedissem.

-Não é verdade, mãezinha, que servimos muito bem? - indagou Ana ao acabar de almoçar.

SR.A ORVILLET - Salvo os percalços, foi tudo muito bem, minha filha.

LOURENÇO - A gente não teve culpa dos percalços, não é verdade, tio?

GENERAL (alegremente) - Decerto. Se os pratos não fossem redondos, não rolariam.

JULIETA - E o vinho entornado, tio?

GENERAL (sorrindo) - Se o vinho não fosse líquido, não se teria derramado.

Felícia - E a cadeira da Ana, tio?

GENERAL - Se a cadeira não tivesse pés, não cairia...

Todos se riram e levantaram da mesa.

LOURENÇO - Vamos agora, tio?

GENERAL - Ainda não, meu amigo; dá tempo para uma pequena conversa e deixa levantarem a mesa e arrumarem tudo.

LOURENÇO - Então, Julieta, sabes o que vamos fazer? Vamos todos a casa dos Marcotte, ajudá-los a fazerem a mudança.

- Sim, sim, vamos depressa - exclamaram Julieta e Ana.

GENERAL - Alto, desastrados! Vocês vão transtornar tudo, como fizeram no meu quarto no dia da minha chegada, ajudando-me a desfazer as malas.

GERTRUDES - Não, tio; não fazem tolice porque Felícia e eu vamos também e velaremos porque não desarrumem em vez de arrumar.

GENERAL - Sendo assim, podem ir; onde tu estás, tudo caminha bem.

GERTRUDES (beijando o tio) -Não me estrague, tio; tem sempre boa opinião a meu respeito; acabarei por não ter confiança em si, o que será muito triste e mau para mim.

GENERAL (rindo) - Não percebes nada disto; procuro provar, pelo contrário, o tamanho da minha inteli gência, julgando-te como faço. Mas devo confessar, humildemente, que tua tia Orvillet me ajudou deveras, antes da tua vinda. E agora, minha boa pequena, que me expliquei, deixo-te em paz. Evita que os pequenos façam barafunda. Vai depressa, porque estás vermelha como uma cereja; o ar far-te-á bem.

Gertrudes e Felícia seguiram os pequenos, que já tinham saído.

- É extraordinário - observou Felícia, em tom um pouco agastado -, como o tio gosta de ti! Está sempre a tecer-te elogios; pelo que diz, perfeita só tu...

GERTRUDES - É porque cheguei há pouco, sabes! Quer pôr-me à vontade. Receio bem que daqui a alguns dias já não pense assim.

FELÍCIA - Aposto em como te julga realmente perfeita.

GERTRUDES - Se tal acontecer é porque é tão bondoso que me julga como ele.

FELÍCIA - Achas que é bondoso? Eu não acho.

Ralha muita vez e com rudeza, como sempre fazem os professores.

GERTRUDES - Ah! A minha vez chegará. Serás

tu quem me conforta, porque sentirei grande desgosto quando ele me ralhar.

Felícia - Porquê?

GERTRUDES - Porque gosto muito dele e se me ralhar é porque o mereci.

Felícia - Não há motivo para ter desgosto; não ligo muita importância aos velhos; aborrecem-me.

LOURENÇO (correndo) - Venham, venham! Os Marcotte estão a discutir e nós nada podemos fazer!

Todos entraram em casa dos Marcotte e acharam-nos frente a frente, gritando o mais que podiam.

MARCOTfE - Se te digo que és tola como tudo! Não quero que embrulhes o meu casaco.

TIA MARCOTTE - Se te digo que o embrulharei, quer queiras, quer não. És mais estúpido do que uma porta. Imaginas que vais vestir os fatos um a um, daqui até nossa casa?

MARCOlTE - Se os embrulhas, levá-los-ei eu e cada viagem custa-te uma bofetada.

TIA MARCOTTE (aproximando-se do marido)Imaginas isso? E eu não tenho unhas para me defender de ti, velho parvo?

MARCOTTE (adiantando-se para a mulher) - Eu saberei defender-me, velha tagarela!

GERTRUDES (pondo-se de permeio) - Meus amigos, porque estão a altercar? Isso não lhes fica bem.

MARCOTfE - Que posso eu fazer menina? A tola da minha mulher quer amarrotar-me o casaco, metendo-o à força numa trouxa de roupa suja.

TIA MARCOTTE - Não passas de um mentiroso; é roupa limpa e eu metia-o com todo o cuidado.

MARCOTfE - Dizes todo o cuidado, batendo-lh em cima como num feixe de trigo.

TIA MARCOTTE - E tu que me batias nas costas como um danado?

MARCOTTE - Porque não me davas ouvidos? TIA MARCOTTE - E porque te metias no que não eras chamado? É tarefa para um homem tratar de roupas e fatos?

MARCOTTE - E é tarefa para uma mulher amarrotar e estragar a roupa do seu marido? Eu não tenho uma dúzia deles e não quero que mos estraguem.

GERTRUDES - Meus bons amigos, por quem são; eu vou harmonizar tudo. Encarrego-me do seu casaco, bom tio Marcotte; não o atrapalhará mais, e eu levá-lo-ei cuidadosamente no meu braço.

MARCOTE - Oh! menina Gertrudes, é bondade demasiada! Vês, mulher, o que fizeste? Obrigas a menina Gertrudes a levar o meu casaco!

TIA MARCOTTE - Meu Deus, que mentiroso tu és! GERTRUDES - Boa tia Marcotte, não se amofine, peço-lhe. O pobre Marcotte julgou proceder bem.

TIA MARCOTTE - Não acredite, menina. Está sempre a mentir. Tem tanto coração como um caracol; só pensa em injuriar seja quem for.

MARCOTTE - Isto é que ela é de uma força! Quando lhe disser, menina, que esta mulher me enche de insultos todo o dia, que se não fosse eu conter-me, Lhe daria formidáveis sovas!

GERTRUDES - Meu Deus, meus pobres amigos, se soubessem como me fazem pena!

Marcotte e a mulher viraram-se um para o outro, indignados, e disseram ao mesmo tempo, em tom de censura:

- Ora vês tu, esta pobre menina Gertrudes... GERTRUDES - Basta, basta, meus amigos; todos nós viemos para os ajudar a fazer os embrulhos; meus tios auxiliá-los-ão também; vêm todos.

TIA MARCOTTE - Mas que bondade! Pensávamos em pedir aos vizinhos Legras para nos ajudarem e julgávamos que isto duraria dois dias.

LOURENÇO - E ainda lá dormem esta noite, tia Marcotte.

TIA MARCOTTE - Será possível? Vês, Marcotte, como tinha razão em dizer que eram bons patrões!

MARCOTTE - E eu dizia-te que não há melhores no mundo...

TIA MARCOTTE - E eu, que nada nos havia de faltar.

GERTRUDES - Bem, meus amigos; agora vamos ajudá-los a fazer embrulhos. Felícia, vem auxiliar-me a tirar a roupa dos armários. Julieta, Lourenço e Ana, corram a buscar cestas para lá meter a roupa branca e os fatos.

Os pequenos partiram a correr; Gertrudes e Felícia depressa despejaram os armários; meteram a roupa numa caixa para ser transportada. Os pequenos voltaram daí a pouco, trazendo grandes cestas. Gertrudes estendeu um lençol no fundo de cada cesta, onde acondicionou os fatos de Marcotte, de maneira a colocar bem os fatos domingueiros; o bonito casaco ficava por cima dos coletes e das calças.

Noutro cesto meteram os vestidos da tia Marcotte. Os dois velhos notavam, admirados, a ordem e presteza com que Gertrudes, sozinha a começo, e depois ajudada por Felícia, arrumava tudo sem nada amarrotar. Os pequenos apresentavam os objectos para embrulhar e atar, cordel, papel, etc.

 

                   Felícia volta a ser petulante

Após uma hora de trabalho, durante a qual os três pequenos se haviam divertido muito e Felícia se encontrava satisfeita, o general e as senhoras, seguidos por todos os criados da casa, entraram na quinta e, passado um momento, tudo estava cheio de movimento e barulho. O general dava ordens aos criados; os pequenos olhavam, julgavam ajudar, saltavam por cima dos móveis, trepavam para a carroça, faziam pequenos embrulhos, empurravam-se, davam-se encontrões e divertiam-se imenso. Findo o carregamento da carroça, todos acompanharam a primeira parte do mobiliário e quiseram ajudar à descarga. O general teve de deter o demasiado zelo; conservou o pessoal necessário para as camas e os armá rios e mandou a carroça para novo carregamento. As pequenas e a criada treparam para ela; Lourenço tomou o chicote e as rédeas, dirigindo-se vagarosamente para o jardim.

- Queres tu guiar depois? - perguntou Lourenço a Felícia, sentada na carroça.

Felícia (desdenhosa) - Não, agradeço-te não estou habituada ao ofício de carroceiro.

ANA - É muito divertido.

Felícia - A mim desagrada- me.

LOURENÇO - Porquê? Puxam-se as rédeas, chicoteia-se o cavalo.

Felícia - E depois atiram-nos para um valado, se se puxa mal ou se se chicoteia de mais.

LOURENÇO - Eu não puxo mal e chicoteio com brandura.

CRIADA - O carroceiro caminha ao lado da carroça e fá-la seguir pelo meio; não há perigo.

LOURENÇO - Eh! eh! eh! À esquerda.

Felícia - Cala-te, que nos vais fazer cair. Quero descer.

LOURENÇO - Não há perigo, digo-te eu! Eh! Eh!..

- Quero descer! - repetiu Felícia.

LOURENÇO - Não desces, não. Eh! Eh!

O cavalo estugou a andadura; o carroceiro ficou para trás. Felícia gritava; Lourenço e Ana riam; Julieta estava com certo medo.

A criada e Gertrudes, vendo que não havia perigo algum, tentavam acalmar Felícia. Gertrudes pediu à criada que dissesse ao carroceiro que subisse para junto de Lourenço, a fim de tranquilizar Felícia. A criada chamou-o. Filipe trepou para a carroça.

Felícia (levantando-se) -Não quero que o carroceiro venha ao pé de nós.

CRIADA - Porquê? A sua presença nos sossegará: Felícia - Não; não o quero ao pé de mim. Tenho suportado hoje muita coisa, mas agora é de mais! O que se diria se me vissem com um campónio?

CRIADA - Ninguém dirá coisa alguma. Um campónio é um homem como qualquer outro. Nem sequer olharão para si.

Felícia - Se te digo que é ridículo! Não quero. Páre, Filipe, quero descer.

O carroceiro parou o cavalo; Felícia saltou para o chão; Gertrudes imitou-a.

- Vá, meu bom Filipe - disse ela. - Juntar-nos-emos na quinta.

JULIETA - Porque não ficas connosco?

GERTRUDES - Porque prefiro acompanhar Felícia para não ir sozinha.

Felícia - Muito bem! Fizeste como eu; não quiseste ir ao pé do carroceiro de blusa e de tamancos.

GERTRUDES - Ah! Nada disso! Ser-me-ia indiferente. Filipe é tão delicado, tão condescendente, que não me assusta. Desci para não te deixar só. A tua criada é obrigada a ficar junto dos pequenos... Mas porque disseste em voz alta, diante do pobre Filipe, que não querias ir com ele na carroça? Desgostaste-o. O pobre fez-se vermelho.

Felícia - Ainda bem! Compreendeu que não devia permitir-se subir connosco.

GERTRUDES - Ah! Felícia, porque tens semelhantes ideias? Porque imaginas que estás de tal maneira acima desta pobre gente, que não deve aproximar-se de ti, nem sequer tocar-te? Ora, repara como as tias e o tio são delicados, cuidadosos com todos os criados, com os habitantes da aldeia; como se interessam por eles. E repara também como os estimam. Respeitam-nos menos porque se fazem estimar? Muito pelo contrário!

Felícia - Não posso fazer o mesmo. Desagrada-me, incomoda-me. As suas mãos sujas enjoam-me; em suma: detesto que me toquem.

GERTRUDES - Como te lamento, pobre Felícia. Ninguém te estimará e não serás feliz.

Felícia não respondeu; Gertrudes nada mais disse.

Mais uma vez notou que o ataque de bondade de Felícia passara.

São precisos tempo e paciência... - pensou. - Mas porque muda ela de um momento para o outro?.. Oxalá não faça amanhã alguma coisa desagradável ao pobre Diloy.

A mudança continuava, embora com menos entusiasmo da parte das crianças.

Felícia importunava toda a gente; retomara o que o tio chamava grandes ares. Na última viagem, Felícia declarou-se cansada e disse que voltava para casa; ninguém tentou detê-la, nem sequer Gertrudes; e dirigiu-se para casa com aspecto muito aborrecido.

Gertrudes sentou-se cá fora, à sombra de um abeto, e deixou-se levar pelas suas reflexões, pensando:

Estou consternada; sinto que já não estimo tanto Felícia como nos primeiros dias da minha chegada. Tem ideias tão contrárias às minhas! É preciso sempre adulá-la, lisonjeá-la um pouco, e depois receio que seja um tanto invejosa pelo que o tio me diz de agradável... Como o tio é bondoso! Gosto muito dele. l tão alegre como amável!.. Que pena a minha pobre mãezinha não estar aqui!.. Como um mês é comprido!.. Mas que poderei fazer para modificar Felícia, para lhe diminuir o orgulho? Por momentos, parece corrigir-se, ser excelente, e depois, sem se saber porquê, muda, torna-se fria e altiva.

Gertrudes meditava havia muito tempo, quando sentiu os passos de alguém; levantou os olhos e viu o tio, que foi sentar-se a seu lado.

GERTRUDES - Ah! É o tio! Estava justamente a pensar em si.

GENERAL - Venho descansar um pouco, junto de ti. Em que pensas, minha filha?

GERTRUDES - Em que se pudesse ajudar-me a corrigir Felícia, por muito feliz me daria.

GENERAL - O quê? Fez mais alguma tolice? Meu Deus, como essa presumida me aborrece e quanto admiro a tua tia Orvillet, que nunca perde a paciência com ela, Lhe tolera as impertinências, lhe explica os motivos para não atender os seus pedidos e continua a tratá-la com a mesma ternura!

GERTRUDES - É porque a tia só vê o que há de bom em Felícia, e com ternura acabará por torná-la bondosa.

GENERAL - Duvido. Esta Felícia é má rês e má rês há-de ficar. Se ao menos pudesse parecer-se um pouco contigo!

GERTRUDES - Meu bom tio, tenho uma coisa a pedir-Lhe.

GENERAL - Pede o que quiseres, pois de antemão to concedo.

GERTRUDES - Obrigada, tio. Peço-lhe instantemente que não diga bem de mim diante de Felícia e não me demonstre mais amizade do que a ela.

GENERAL (rindo) - Ah! A rês é invejosa! Pois nada direi diante dela do que penso, mas quanto a demonstrar-lhe a mesma afeição que te consagro, isso é impossível, absolutamente impossível! Não é justo, nem me ficaria bem.

GERTRUDES - Ah! meu tio, por quem é, peço-lhe! Acaba de prometer conceder-me o que lhe pedisse.

GENERAL - Vou já prevenir-te de que pedes o impossível. Gostas de mim?

GERTRUDES (com vivacidade) - Sim, tio; muito, muito.

GENERAL - E crês que a Felícia gosta de mim? GERTRUDES (hesitando) - Não tanto como eu; contudo.

GENERAL - Bem sei, detesta- me. E julgas que eu a estimo?

GERTRUDES - Oh! Não, tio.

GENERAL - E, por fim, uma última pergunta: Supões que eu te estimo?

GERTRUDES - Tenho a certeza disso, tio. GENERAL - E tens razão, querida pequena; estimo-te porque és boa, piedosa, caritativa, excelente, numa palavra. E como queres que trate com a mesma amizade a sobrinha que estimo e me estima, e a que não estímo me não estima? Pergunta a ti própria. Seria justo e equi tativo?

GERTRUDES - Não, por certo, mas seria muito bom.

GENERAL - Querida pequena, o que é injusto não pode ser bom.

Mais, seria um mau exemplo e uma péssima lição para a própria Felícia. Precisa, enfim, de ver que afasta dela toda a gente e que prepara para si mesma uma vida muito desgraçada.

O general tornou a beijar Gertrudes e levantou-se para continuar, com os pequenos e os criados, a vigiar a mudança e a instalação dos Marcotte.

GENERAL - Anda comigo, Gertrudinhas; auxiliar-nos- ás e evitarás que os Marcotte alterquem; não fazem outra coisa desde que lá estão.

 

                   Gertrudes restabelece a paz em casa dos Marcotte

Gertrudes tomou o braço que o tio lhe oferecia e dirigiram-se para a moradia dos velhos jardineiros. A carroça, levando o último carregamento, aumentado com os três pequenos e a criada, apanhou-os perto de casa.

- Tio, tio! - convidaram os pequenos. - Suba connosco para a carroça; vai-se aqui muito bem.

GENERAL (sorrindo) - Obrigado, meus amiguinhos, prefiro andar nas pernas a sentir-me sacudido como vocês, empoleirados em todas as caixas.

ANA - É muito divertido, tio; experimente e verá. GENERAL - Não vale a pena; já chegámos. De facto, estavam à porta.

Os pequenos apearam-se, ajudados pelo tio e por Filipe.

- Obrigado, tio; obrigado Filipe - agradeceram todos.

GENERAL - Muito bem! Ora aqui temos bons pequenos que agradecem a quem os ajuda!.. Agora, que todos se atarefam em descarregar a carroça, vamos pôr tudo em ordem.

GERTRUDES - E eu, tio, vou ajudar a arrumar os armários e baús.

GENERAL - Isso mesmo, minha filha. E vocês, que são pequenos, cuidado com os móveis.

LOURENÇO - Vamos descansar debaixo das macieiras, não é verdade tio?

GENERAL - Muito bem! Vão descansar de todas as fadigas. Valéria, fica com eles. Não se deitem em cima dos móveis nem debaixo dos cavalos.

A descarga depressa se fez e os móveis ficaram arrumados. Gertrudes continuou a velar pela altercação dos velhos esposos, que implicavam por tudo e por nada. Gertrudes intervinha, resolvia pelo melhor e de maneira a satisfazê-los.

MARCOTTE - E a ceia, que nem sequer preparaste! TIA MARCOTTE - E como querias que a preparasse? Onde havia de prepará-la? No lombo do cavalo? Em cima das caixas? Em cima do casaco?

MARCOTE - Nem sequer tens uma migalha de pão, e eu tenho a barriga pegada às costas.

TIA MARCOTTE - Bem! Neste caso, vai buscá-lo ao padeiro, quando tivermos tudo em ordem.

MARCOTTE - Pois é! Eu e só eu, o palerma para andar por um lado e outro!

TIA MARCOTTE - E como queres que seja? Eu não posso ir, e depois sinto-me cansada.

MARCOTTE - E eu? As pernas recusam-se a andar; nem sequer chegariam a meio do caminho.

TIA MARCOTTE - Nesse caso, acabou-se! Ficará no meio do caminho. Não há mais atrapalhações!

- Boa tia Marcotte - disse Gertrudes, arrumando roupa -, isto já não são coisas para o pobre tio Marcote. Eu, que sou nova e forte e não estou cansada, vou resolver melhor; chego a casa num pulo e trago-lhe pão e uma garrafa de vinho.

TIA MARCOTTE - Minha boa menina, não consentirei nisso; o meu homem pode muito bem lá ir; resmun ga, mas vai sempre. É preciso não lhe dar ouvidos.

GERTRUDES - Ah! tia Marcotte, não é bondosa com ele. Veja como tem aspecto cansado! A mim diverte-me correr, faz-me bem... A roupa está toda arrumada no baú, os lençóis aqui, as toalhas ao meio, os aventais na outra extremidade. Agora vou buscar o pão e dentro de um quarto de hora estou de volta.

Gertrudes partiu a correr sem esperar resposta dos Marcotte, que por momentos ficaram confundidos.

TIA MARCOTTE - Vês, mandrião? Obrigas a correr essa boa menina de Deus, para fazer o teu trabalho. É uma bonita acção! Que dirá a senhora? Que dirá o senhor conde?

MARCOTTE - Vê se me deixas em paz, velha serpente! Toma cuidado, não vá minha mão ter vontade de te coçar as costas!

- Então, então! Que é isso? - bradou o general ao entrar.

TIA MARCOTTE - É que, senhor conde, a bondosa menina Gertrudes foi a correr buscar-nos pão, porque o meu homem julga que já não tem forças para andar e cairia pelo caminho. É um pretexto, pois todos se põem a trabalhar por ele e nem sequer mexe uma palha.

GENERAL - Gertrudes foi pessoalmente buscar-lhe o pão?

TIA MARCOTTE - Sim, senhor conde, sem que a pudéssemos impedir. E este homem nem se mexeu; parece uma estátua de pau!

GENERAL - Gertrudes é boa rapariga, e a Marcotte ríspida de mais para seu pobre marido. Lembre-se de que ele tem setenta e dois anos e nessa idade não pode trabalhar como um homem de quarenta... Tio Marcotte, deixe barafustar a sua mulher e venha dizer-me onde se coloca a sua pipa de vinho.

Marcotte seguiu o general com certa presteza. Os criados do solar puseram a pipa em cima de um canteiro e depois arrecadaram a lenha no subterrâneo. Foi o fim da mudança e todos se retiraram. O general ordenou aos criados que fossem ao solar e bebessem algumas garrafas de vinho, e ele próprio saiu devagar para ir ao encontro de Gertrudes. Viu- a surgir ao longe, abraçando um pão de quatro arráteis, uma garrafa de vinho numa das mãos e uma terrina tapada na outra.

- Minha boa pequena - disse-lhe o general -, porque não disseste a um criado para trazer tudo isto? Em que estado vens! Estás a transpirar, minha pobre filha!

- É porque corri muito, tio -respondeu Gertrudes. - Os pobres Marcotte altercavam tanto, que tive medo de que se agredissem, e os criados estavam atarefados com a carroça. Tinham muito que fazer.

O general enxugou-Lhe a testa coberta de suor, e beijou-a.

- Excelente pequena! Como a tia tinha razão! Tirou-lhe à força a garrafa e a terrina e acompanhou-a até à casa dos Marcotte.

GENERAL - Que leva esta pesada terrina? GERTRUDES - Caldo, tio, com alguns bocados de carne. Não terão de aquecer o jantar que já está pronto.

GENERAL - Pensaste em tudo, minha bondosa pequena.

GERTRUDES (com vivacidade) - Foi a tia que mandou acrescentar a terrina; pedi-lhe licença para trazer pão e vinho; a tia, que é muito bondosa e pensa em tudo,    recomendou-me que trouxesse aos Marcotte um jantar completo. Como vê, não fui eu.        

GENERAL - Que é feito da Felícia?

GERTRUDES (perplexa) - Estava com a tia; ainda     me acompanhou por algum tempo.

GENERAL - Ajudou-te a trazer estas provisões?

GERTRUDES (com indecisão) - Eu... eu... disse-lhe que não pesavam muito, e trouxe-as sozinha.

GENERAL - E consentiu?

GERTRUDES - Assim era preciso, tio; eu é que quis.

GENERAL (rindo) - Ah! Sim! Esqueço-me de que

és tão má, que ninguém se atreve a resistir-te...

Chegaram a casa dos Marcotte, que encontraram contemplando felizes e em boa harmonia o arranjo do novo alojamento. Pousaram as provisões; foram recebidos com tanta alegria como gratidão. Gertrudes ainda tirou da algibeira dois ovos cozidos e um embrulhinho de sal e pimenta e depois fugiu, para evitar novos agradecimentos.

No regresso, o tio interrogou-a a respeito das suas habituais ocupações, sobre a vida que levava no campo; ela falou animadamente da sua ternura pelos pais, mormente pela mãe, que nunca a deixara; chorava ao referir-se-lhe, e o tio, penalizado por lhe ter avivado esse desgosto, mudou de conversa e contou-lhe algumas interessantes histórias e aventuras das suas campanhas de África. Gertrudes voltou radiante com o tio. Ao chegar, disse-lhe:

- Quando a mãezinha voltar, tio, peça-lhe para se demorar aqui muito tempo. Estou certa de que ficará tão contente como eu. E depois o tio irá passar algum tempo na nossa casa, na Bretanha; é uma linda região.

- Decerto; não voltaria para África sem lhes ter feito uma visita.

 

                   Alojamento dos Diloy

Bastara meio dia para os trolhas caiarem os tectos e as paredes da futura moradia dos Diloy; tudo estava branquinho e asseado; à tarde todos se entregaram ao trabalho de lá colocar a mobília. Felícia quis também ajudar como os outros; tentou até embelezar a casa, pedindo à mãe umas cortinas para as colocar nas janelas e diversos objectos caseiros.

Lourenço e Ana, por seu turno, quiseram trazer cadeirinhas para crianças, uma mesinha, velhos brinquedos.

- Olha - alvitrou Lourenço -, ponhamos tudo na nossa carrocinha. Anda, Ana; anda, Julieta; ajudem-me a levar os brinquedos e a colocá-los na carrocinha. Toma este cavalo de pau, Julieta; é pesado de mais para Ana.

ANA - E eu que levo?

LOURENÇO - Aqui tens esta caixa de construção; eu levo a louça, os vasinhos, os pratos, os copos.

ANA - Como vão ficar contentes os filhos do caminheiro!

LOURENÇO - Não se deve dizer Kcaminheiro; Diloy já não é caminheiro.

ANA - Então como se há-de dizer?

LOURENÇO - Jardineiro.

Quando o carregamento da carrocinha estava pronto, Lourenço pôs-se a puxá-la. Julieta e Ana empurravam por detrás e puseram-se a caminho com presteza para chegarem mais depressa. Lourenço tropeçou num pedregulho, que não viu, e caiu; a carrocinha desequilibrou-se com todo o carregamento. Lourenço não se magoara muito, esfolara apenas um joelho; levantou-se lentamente; os três pequenos olharam, consternados, para as coisas espalhadas pela erva e pelo caminho.

JULIETA - Que faremos agora? Magoaste-te, Lourenço?

LOURENÇO - Nem por isso. É preciso tornar a carregar.

JULIETA - E se chamássemos Gertrudes e Felícia? Creio que carregámos mal. Pusemos a mesa e as cadeiras por cima, quando devíamos pô-las por baixo.

LOURENÇO - É verdade, fica menos alto. JULIETA - Então, recomecemos...

Iam entregar-se corajosamente ao trabalho, quando chegou Gertrudes.

ANA - Gertrudes, Gertrudes! Queres ajudar-nos a tornar a carregar tudo isto? Tombou pelo caminho.

GERTRUDES - Pobres pequenos! Vou ajudá-los e daqui a pouco está tudo pronto... E enquanto tornamos a pôr as coisas na carrocinha, vai buscar uma corda, Lourenço, para segurar bem os móveis; prendê-los-emos convenientemente como se faz nos carros de feno, para evitar que os fardos caiam.

FELÍCIA (a uma das janelas do solar) - Gertrudes, Gertrudes! Onde estás? Anda cá depressa!

GERTRUDES (gritando) - Não posso; que queres? Felícia (do mesmo lugar) - Encontrar uma cortina que me falta; preciso dela já.

GERTRUDES (gritando) - Espera um pouco; tenho que fazer.

Felícia - Estou com pressa; vem já.

GERTRUDES - Impossível; também estou com pressa...

Felícia - Mas onde estás que não te vejo?.. GERTRUDES - No caminho da quinta.

Felícia - Que estás a fazer?

GERTRUDES - A carregar de móveis uma carroça pequena.

- Que diz ela? - perguntou de si para si Felícia. Trouxeram ontem e esta manhã todos os móveis para Diloy. Não pode haver nenhuma carroça com móveis no caminho da quinta; demais, não é muito largo para carroças. Vou ver o que é.

Felícia desceu e encontrou Gertrudes, Julieta e até Aninhas muito atarefadas a juntar os brinquedos dispersos.

Felícia - O quê, Gertrudes? Pois é isso que te impede de ires ajudar-me? É a isto que chamas trabalhar com pressa? Ah! ah! ah! Olha o disparate!

JULIETA - Para ti será disparate, mas para nós é muito importante.

Felícia (a Gertrudes) - Larga isso e vem comigo. GERTRUDES - Não, Felícia, prometi aos pobres pequenos ajudá-los e quero levar a promessa até ao fim. Já lhes caiu uma vez, porque o mobiliário foi mal carregado e não estava atado.

Felícia - E então? Que tem isso! Cairá segunda vez; não faz grande mal.

JULIETA - És má, Felícia! Quando cai, quebra-se; olha, vê; dois pratos e um copo partidos!

Felícia - Ora! Ainda lhes ficam muitos para brincarem.

ANA - Não é para nós; é para os pequenos Diloy. Felícia - Os pequenos Diloy? Tudo isto por causa dos filhos do caminheiro?

Lourenço acabava de chegar, arrastando uma corda. LOURENÇO - Primeiro, Diloy já não é caminheiro; depois, salvou o tio, salvou a mãezinha, salvou Ana, salvou-me a mim e salvou-te a ti, e para mais duas vezes! E nós queremos ser-lhe agradáveis para ele ver como o estimamos.

Felícia - A mãezinha e o tio bastante o recompensaram, dando-lhe dinheiro, fatos, casa e o cargo de jardineiro.

GERTRUDES - O que não impede, minha boa Felícia, que nós, que nada podemos fazer por ele, estejamos bastante satisfeitos por nos ser possível demonstrar-lhe a nossa gratidão.

Felícia - Bonitos brindes! Brinquedos partidos... GERTRUDES - Não são tanto os brinquedos mas a feliz ideia de Lourenço, de Ana e de Julieta, que deve dar prazer ao bondoso Diloy.

Felícia - Mas tu e Julieta nada Lhe devem. GERTRUDES - Chamas nada a ter socorrido aqueles que nos estimam?

Felícia - Quem são aqueles que nos estimam?

GERTRUDES - Vocês todos e também o tio. Felícia - Ora, o tio! Um militar!

LOURENÇO - Então o tio não é gente? Porque é militar, devia tê-lo deixado matar por esses três maus árabes?

ANA - O tio vale muito mais do que tu. Tu és má e resmungas constantemente; o tio está sempre bem-disposto; todos o estimam e ele estima-nos a todos... excepto a ti!

Felícia - Não precisas de me dizer que o tio não me estima; sei que me detesta.

GERTRUDES - Não tens razão, Felícia, para o dizer e acreditar. Como é que o tio, sendo tão bondoso, poderia detestar a filha da irmã?

Enquanto conversavam, ou melhor, discutiam, Gertrudes, ajudada por Julieta e Ana, tinha apanhado tudo e posto em cima da carrocinha.

GERTRUDES - Lourenço, dá-me agora a corda. LOURENÇO - Aqui tens. Como não achei ninguém na quinta, peguei nestas duas cordas de saltar e juntei-as.

Felícia - Umà das cordas pertence-me. Não quero que levem a minha corda para os labregozinhos. Deixa-a ver!

LOURENÇO - Por quem és, Felícia, deixa-no-la. É apenas para levar a carrocinha até casa de Diloy. Ninguém lhe tocará, afianço-te.

Felícia - Mas eu não quero. Porque não pediste

uma corda ao tio? Visto ser tão bondoso, dar-te-ia uma! LOURENÇO - Mas onde queres que vá agora procurar outra? Faz-nos falta.

GERTRUDES - Felícia, estás zangada e asseguro-te que sem razão. És inteligente bastante para perceberes que nos desgostas sem que alguma coisa fizéssemos para te irritar. Ora, vamos, minha boa Felícia, empresta-nos a corda; prometo trazer-ta daqui a pouco, queres? - acrescentou, dirigindo-se para ela e beijando-a. - Recusar-ma-ás a mim, que sou tua amiga?

Felícia compreendia que estava a fazer figura ridícula; começava a ficar comprometida; aproveitou o meio que lhe oferecia Gertrudes e respondeu:

- Leva o que quiseres. Não quero a corda; era só para arreliar Lourenço e Ana que desejava reavê- la. Pegam em tudo quanto é meu e eu não gosto disso.

GERTRUDES - Obrigada, Felícia. Tu és bondosa - acrescentou, após um momento de hesitação.

Lourenço pulou de alegria e pôs-se a arranjar a corda para amarrar o carregamento. Com o auxílio de Gertrudes, tudo ficou pronto; os três pequenos de novo se puseram a caminho, em grande corrida, e chegaram, sem percalços de maior, a casa do jardineiro.

À tarde, mandaram dizer a Diloy que podia vir com a mulher e os filhos no dia seguinte de manhã. Não faltaram ao combinado. Gertrudes e os pequenos foram recebê-los. Felícia, a princípio, recusava acompanhá-los; mas um bom impulso fê-la corar pela sua ingratidão. Tinha perdoado sinceramente a Diloy a aventura pela qual demonstrara tanta vergonha e arrependimento; achou mesmo que lhe ficava mal não estar lá quando ele chegasse, e não tardou a juntar-se aos outros.

Era tempo; cinco minutos depois, os pequenos, que se tinham posto de sentinela à porta da quinta, correram, bradando:

- Lá vêm eles!

LOURENÇO - Diloy traz uma caixa às costas; a mulher, um grande embrulho.

ANA - E os filhos trazem embrulhinhos.

JULIETA - Caminham vagarosamente; parecem cansados.

Puseram-se todos em fila à porta e deixaram aproximar a família Diloy. Quando já estavam perto, os pequenos soltaram grandes gritos e correram para os filhos de Diloy, o mais velho dos quais tinha oito anos, o segundo seis, o terceiro, quatro e o último, dois.

Os pequenos assustaram-se com os gritos e desataram a chorar; os dois últimos berravam com toda a força e defendiam-se de Lourenço e Ana, que puxavam por eles, gritando de alegria.

- Não tenham medo; venham ver os brinquedos.

A mãe sossegava-os, empurrava-os para entrar; Diloy estava muito confundido com o susto dos filhos. Gertrudes e Felícia saudaram-nos amistosamente. Depois, Gertrudes conseguiu que Lourenço e Ana não obrigassem os pequenos a entrar.

LOURENÇO - Precisam de ver os brinquedos. Vão   ficar muito contentes.

GERTRUDES - Logo, meu pequenito. Têm de se habituar a nós, pouco a pouco.         

FELÍCIA - Entre, Diloy, entre; faça entrar sua mulher e seus filhos, para verem a nova casa.

Por fim, conseguiu-se pôr os pequenos em presença dos brinquedos; os gritos e choros cessaram. Lourenço pôs o freio de um grande cavalo sem cabeça nas mãos do garoto de oito anos. Ana depôs a sua boneca sem pés nos braços da menina de seis. Julieta deu um carrinho de três rodas ao pequeno de quatro anos e uma caixinha de construções ao mais pequenino, de dois. Passado um quarto de hora, findava o tumulto do primeiro momento; os filhos de Diloy brincavam; os pequenos do solar faziam-nos brincar; uma caixa de chocolates, que lhes deu Julieta, acabou por pô-los à vontade.

Gertrudes e Felícia, entretanto, mostraram a casa ao marido e à mulher.

GERTRUDES - Esta divisão é a sua sala de jantar e cozinha ao mesmo tempo. Aqui tem a louça neste aparador: o trem de cozinha, bilha e vasilhas para água. Aqui está a arca para o pão e para a farinha, um armário com provisões.

FELÍCIA - Eis o quarto, com outro ao lado com as camas dos rapazes. Aqui, um armário cheio de roupa; um baú com vestuário para todos. Mesa, cadeiras, enfim, tudo quanto é preciso; alguidares, talha para água, em suma, tudo.

GERTRUDES - E, se alguma coisa faltar, peça-a a minha tia; parece-me, porém, que pensou em tudo.

DILOY - Deus meu! É preciso que sejam muito bondosos para assim nos instalarem!

Oh! Minhas queridas, minhas bondosas meninas, nunca seremos bastante gratos pelo que fazem por nós. Mas repara, Marta, como tudo isto está bonito! Bonito de mais para nós. E este Crucifixo! E esta Virgem Santa!

A mulher de Diloy chorava comovidamente; não pôde proferir palavra.

GERTRUDES - Quando quiser testemunhar o seu reconhecimento a minha tia, a meu tio e a Felícia, meu bom Diloy, faça-o diante deste Crucifixo e desta Virgem Santa. É o nosso presente particular, de Felícia e meu. rezará aqui por nós e fará rezar seus filhos.

Marta ajoelhou ante o Crucifixo e soluçou agradecendo do a Deus a sua felicidade.

Felícia e Gertrudes retiraram-se; Gertrudes compreendera que os Diloy preferiam ficar sós no meio desta grande comoção; chamou os pequenos e foi a custo que estes deixaram os filhos de Diloy.

 

                  Entusiasmo do general

Quando saíram da quinta, os pequenos correram a prevenir a senhora Orvillet e o senhor Alban da chegada dos Diloy. Gertrudes e Felícia permaneceram ainda algum tempo fora da quinta.

Felícia - Gertrudes, porque disseste aos Diloy que eu e tu lhe fazíamos presente do Crucifixo e da imagem da Virgem Santa? Nem sequer sabia que os tinhas comprado e querias dar-Lhos.

GERTRUDES - Disse-lhes, para se afeiçoarem ainda mais a ti. Tenho a certeza de que Diloy te estima muito e de que essa lembrança tua lhe dá grande prazer. Nosso Senhor crucificado é o emblema do perdão; dado por ti, esse crucifixo recorda-lhe que perdoaste o seu gesto brutal contra ti.

FELÍCIA (sensibilizada) - Como és bondosa, Gertrudes! Como és boa em querer fazer-me estimar mais do que a ti pelo pobre Diloy! O que me surpreende é que me sinta à vontade com ele e já não o considere um labrego.

GERTRUDES - É porque te fez bem e lhe estás grata mesmo sem querer... Minha Felícia, se quisesses, todos te estimariam. Ser-te-ia tão fácil!

Felícia - Achas fácil, porque tens sempre convivido com campónios, estás habituada à sua porcaria, à sua grosseria, à sua linguagem vulgar. Mas eu, que vou a casa deles o menor número de vezes possível, não posso testemunhar-lhes amizade ou sequer interesse como tu. Não me acode à ideia tratá-los amistosamente como fazes. Bem sei que finges, mas...

GERTRUDES (enérgica) - Finjo? Imaginas que finjo? Nada disso; estimo-os sinceramente; afligem-me os seus desgostos, inquieto-me com as suas doenças, com os seus sofrimentos; estou satisfeita com as suas alegrias; queria vê-los todos felizes. Vejo-os com prazer; interesso-me pelos seus negócios. Conto com a afeição deles; considero-os como amigos e, salvo a riqueza, como nossos iguais em todos os pontos de vista.

FELÍCIA (pasmada) - Não é possível o que estás a dizer. Teus iguais, campónios ignorantes, gente que nada sabe, que lavra a terra!

GERTRUDES (animada) - Se lavram, é para ganharem a vida, para sustentarem as famílias, para educare os filhos. Se são ignorantes é porque não tiveram tempo nem meios de aprender. Possuem tanto mais mérito em serem bons, em cumprirem os seus deveres, quanto é certo que nós, graças a Deus, temos com que viver e meios para nos instruirmos.

FELÍCIA - Mas tu estás louca, Gertrudes! Onde achaste essas extravagantes ideias?

GERTRUDES - Achei-as no Evangelho, nas palavras e nos exemplos de Nosso Senhor e dos Apóstolos, nas vidas dos santos -, no catecismo. Foi aí que aprendi a ver irmãos em todos os homens e a amar neles, não as suas riquezas e as suas glórias, mas as suas virtudes, conforme Jesus ensinou.

Gertrudes estava deveras comovida; o semblante aformoseara-se-lhe pelos sentimentos que o animavam. Quem a visse assim, tê-la-ia achado encantadora, bela até, embora não fosse especialmente bonita.

Felícia, que, pelo contrário, era bela e de feições regulares, não tinha encanto algum, salvo nos raros momentos em que um bom sentimento fazia desaparecer a altiva frieza que a tornava feia. Não passavam, porém, de relâmpagos, enquanto Gertrudes era constantemente embelezada pela expressão meiga, bondosa, inteligente e afectuosa dos seus olhos. Daí resultava que uma era bela e desagradável, e a outra, sem ser bonita, era encantadora.

A senhora Orvillet, a senhora S. Lucas e o general passeavam por uma sombria alameda que ia dar ao sítio por onde tinham seguido as duas primas; viram-nas perfeitamente através da folhagem que lhes encobria o tio e as senhoras.

Gertrudes parara no calor da conversa; permanecia imóvel, contemplando a prima com meiguice e compaixão. Felícia sorria com ar incrédulo.

- Olhem para elas - disse o general em voz baixa.

-Como Gertrudes está bonita! - respondeu a senhora Orvillet, do mesmo modo.

GENERAL - Soberba! Nunca a vi assim. O que é ter uma boa alma!

Ficaram em contemplação, sem se moverem, sem proferirem palavra. Pouco a pouco, a comoção de Gertrudes esclareceu-se; os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas.

A fisionomia de Felícia suavizava-se; o olhar altivo transformou-se em enternecimento e, com inesperado movimento, quase involuntário, caiu nos braços de Gertrudes.

- Oh! Gertrudes! Como és boa! Envergonho-me de mim própria quando me comparo contigo. És um anjo e eu sou um vivo demónio ao pé de ti. O que disseste é verdade; vejo-o, sinto-o; quero lutar contra a verdade, mas qualquer coisa há em ti, indefinível para mim, que me obriga a reconhecê-la.

GERTRUDES - Minha boa, minha querida Felícia! Que felicidade não acabas de dar-me! Queres, de facto, tornar-te estimada?

FELÍCIA - Sim, como tu, minha querida Gertrudes. Imitar-te-ei em tudo; pelo menos, tentarei; consultar-te-ei em tudo. Que pena não ficares aqui para sempre! Quando partires, não terei ninguém a quem dirigir-me.

GERTRUDES - E minha boa tia! E meu excelente tio, o melhor, o mais indulgente, o mais amável dos ho mens! Minha tia, o modelo, o exemplo das mães, sempre boa, dedicada, sempre prudente nos seus conselhos. Bendiz Deus, minha Felícia, por teres tais guias, tais exemplos!

FELÍCIA - Tens razão, mas estou mais à vontad contigo. És minha semelhante; eles são superiores a mim. Receio-os um pouco.

GERTRUDES - Receava-los quando procedias mal. quando te tornares no que eles próprios são, estimá-los-ás de mais para os recear, e estimar-te-ão de mais para te ralharem.

GENERAL (em tom baixo) - Não posso conter-me: vou beijá-las.

SR.A ORVILLET (detendo-o) - Não, não, Alberto; não dêmos a entender que lhes ouvimos a conversa; ficariam aborrecidas; especialmente Felícia. Voltemos sem bulha...

GENERAL - Ou antes, continuemos o nosso passeio; não me fará mal refazer-me da comoção que as pequenas me fizeram sentir.

A senhora S. Lucas concordou com a proposta do general e só regressaram passada uma hora. A senhora S. Lucas estava muito contente com a admiração do general por Gertrudes; referiu-lhe vários rasgos da sua bondade, da sua sensatez, da sua dedicação, que mais aumentavam a grande estima e afeição do general pela encantadora sobrinha. A senhora S. Lucas teceu também grandes elogios a Julieta.

- Mas - volveu -, Gertrudes está de tal maneira acima da sua idade, é tão inteligente, tão amorável, tão alegre, tão espirituosa, tão encantadora, enfim, que não há modo de a comparar com a prima.

GENERAL - Amélia teve sorte em possuir uma filha tão perfeita.

SR.A S. LUCAS - E o general tem a sorte de possuir assim uma sobrinha.

GENERAL (sorrindo) - Sim, não estou mal contemplado; tenho uma bonita colecção de sobrinhas e um gracioso sobrinho. E devo acrescentar que as mães foram bem escolhidas; Helena e Amélia são mães modelares e irmãs incomparáveis. Quando estou em casa de Helena, afigura-se-me estar na minha.

SR.A ORVILLET (sorrindo) - Agora, que também fui contemplada com os teus elogios, creio que não seria mau ir visitar Diloy e a família.

GENERAL - Tens razão; tinha-os esquecido. Encontraram o Diloy no auge da felicidade. Tinham visto, examinado tudo; haviam encontrado vestuário, fazendas em peça para Marta e para os filhos; toda a família estava satisfeita; Ana e Lourenço tinham voltado para brincar com os pequenos; haviam levado os mais velhos ao seu jardim e todos trabalhavam já activamente a arranjar tudo, a tudo transformar para plantar novas flores e novos legumes.

Quando o general e a senhora Orvillet chegaram a casa de Diloy, este apresentou-lhes os dois filhos mais novos.

GENERAL - São bonitos os pequenos; e onde estão os mais velhos?

DILOY - O senhor Lourenço e a menina levaram-nos, senhor conde. Vou por eles.

GENERAL - Viste Felícia e Gertrudes?

DILOY - Sim, senhor conde; as bondosas meninas estavam aqui na sala. Que gentis! A menina Felícia foi bastante amável. Ora veja, senhor conde, este belo crucifixo e esta bonita Virgem Santa; foram as duas que me fizeram estes lindos presentes. Conservá-los-ei preciosamente, enquanto for vivo. Depois de haver comido alguma coisa, senhor conde, irei dar uma volta pelo jardim para ver o mais urgente.

GENERAL - Farás bem, porque o velho Marcotte já pouco podia; o jardim está descurado e há muito a fazer. O ajudante do jardineiro é bom operário, mas sabe pouco de sementeiras, de árvores de fruto e de flores.

 

                   O general é proclamado Famoso Coelho

Ao cabo de alguns dias, o jardim ficou limpo, liberto das ervas ruins. Tomara já aspecto diferente. A mulher e os filhos de Diloy ajudavam tanto quanto podiam; Gustavo e Maria, porém, eram muitas vezes interrompidos por Julieta, Lourenço e Ana, que precisavam também de gente para ajudar a arranjar o seu jardim. Convidaram muitas vezes o general a ir ver as suas bonitas flores e os bons legumes.

LOURENÇO - Daqui a oito dias, tio, comerá uma salada nossa, não é verdade, Gustavo?

GUSTAVO - Talvez, menino Lourenço; mas é preciso regar todos os dias, para a seca não prejudicar a alface. A alface pede muita água.

LOURENÇO - Simplesmente, tio, era-nos necessária uma pipa de água; somos obrigados a ir encher os regadores na bomba da quinta, o que se torna fatigante.

Na manhã seguinte encontraram uma pequena pipa com torneira, em cima de uma carrocinha. Bastava levar a carrocinha até à bomba para que a pipa fosse cheia pela torneira da bomba. E, como essa brincadeira lhes agradava, regaram tanto o jardim, que parecia um pântano.

As alfaces apodreciam em vez de repolhar, e as flores murchavam.

Os pequenos assustavam-se mas continuavam a regar, apesar das advertências da criada.

Certo dia, o general, acompanhado de Gertrudes e Felícia, foi visitar o jardim.

- Venho ver a minha salada, de que estou à espera e que nunca mais aparece - disse, aproximando-se.

LOURENÇO - Não sei o que ela tem, tio; não cresce como é preciso.

FELÍCIA - Meu Deus, que lamaçal! Não nos podemos aproximar das alfaces; está tudo cheio de água.

GENERAL - Regam de mais, seus patetas. Ora vejam, estão a apodrecer todas as raízes.

ANA - Gustavo disse que as alfaces pedem muita água.

GERTRUDES - Mas foi de mais.

JULIETA - Que se há-de fazer agora?

GENERAL - Não percebo nada disso; a menos que tornem a cavar e semeiem de novo.

Lourenço estava consternado; Julieta e Ana consolavam-no.

GERTRUDES - Esperem; tenho uma ideia que me parece ser boa. É preciso abrir uma vala em volta do jardim; toda a água escoará e as flores e os legumes já não apodrecem.

GENERAL - Tens razão. É preciso abrir uma vala: JULIETA - Levaremos muito tempo, tio. GERTRUDES - Todos nós os ajudamos. Não é verdade, tio, que também vai ajudar?

GENERAL - Tudo o que quiseres, minha querida filha; bem sabes que nunca te recuso coisa alguma. Vamos já tratar disso. Lourenço, vai pedir a Diloy que nos empreste as enxadas grandes.

LOURENÇO - E chamo também Gustavo. GENERAL (rindo) - Pois sim; é mais um bom ajudante.

Lourenço correu como uma seta e voltou daí a instantes, acompanhado de Diloy.

DILOY - O senhor conde mandou pedir enxadas? Trago três; mas não serão pesadas de mais para as crianças se servirem?

GENERAL - Sou eu que vou pegar numa, meu caro; Gertrudes pega noutra. E tu, Felícia, sentes-te disposta a pegar na terceira, a fim de nos auxiliares?

FELÍCIA (após curta hesitação) - Da melhor vontade, tio... É um pouco pesada...

DILOY - Não pode servir-se de utensílio tão grosseiro, minha querida Felícia, e a menina Gertrudes também não. Deixem-me proceder; vou buscar o meu garoto, que cava bem, e ambos daremos conta da tarefa dentro de poucos momentos.

LOURENÇO - Obrigado, muito obrigado, Diloy; comece já, enquanto vou ver se encontro o Fernando.

Desapareceu logo e não tardou a voltar com Fernando.

Durante a sua ausência, o general explicava a Diloy o trabalho aconselhado por Gertrudes; Diloy aprovou-o e começou logo a pequena vala; acabava-a quando Lourenço apareceu.

- Olha, Fernando; é preciso abrir uma vala em volta do jardim; quarenta centímetros de largura por trinta de profundidade. E depressa, pois é trabalho urgente - acrescentou rindo.

Depois, enquanto cavava, acrescentou:

- Tudo o que é para as crianças é urgente, sempre. Não têm, como nós, paciência para esperar.

GENERAL - E imaginas, meu excelente rapaz, que ficarei aqui de braços cruzados como um papalvo a vê-los trabalhar? Vou pegar na enxada e começar a tarefa do outro lado.

Gertrudes quis também ajudar as crianças com uma enxada; Felícia acabou por auxiliar também.

DILOY - A terra deve ser deitada para os canteiros, a fim de os altear e Lhes fazer bem.

LOURENÇO - E as alfaces que ficaram enterradas! ANA - E as nossas pobres flores!

DILOY - Quanto às flores, menina, não as prejudicará. Mas as alfaces precisam de ser arrancadas e depressa.

JULIETA - Arranquemos tudo; que cada um tome a seu cargo uma fileira. Ajuda-nos, Gertrudes, e tu também, Felícia.

Gertrudes e Felícia largaram as enxadas, que pouco cavaram, e puseram-se, como os outros, a arrancar as alfaces. Lourenço e Ana quiseram guardá-las para as escolher e servir ao tio as folhas ainda viçosas.

GERTRUDES (rindo) - Boa salada para o tio! LOURENÇO - Olha, as folhas ainda estão muito boas.

Felícia - Não têm olho; as folhas estão amarelas. não prestam para nada.

ANA - Serão até muito boas. Que tem as folhas

estarem amarelas? Ainda ontem deram umas folhas aos coelhos, que as comeram e acharam boas.

Todos soltaram uma gargalhada.

ANA - É verdade! De que se riem?

GERTRUDES - Mas o tio não é coelho... ANA - Bem sei! E contudo no outro dia, Diloy, falando do tio, que é tão valente e tão bondoso, disse: o senhor conde é um famoso coelho! Já vês...

O pobre Diloy deixou por momentos de cavar; estava muito comprometido. O general interrompeu também a tarefa para rir mais à vontade. Gertrudes, Felícia, Julieta e Lourenço riram a bom rir. Os risos redobraram, ante o ar pasmado de Ana.

- Minha pobre Aninhas - disse por fim o general -, agradeço a tua explicação para a minha salada, que comerei com tanto apetite como os teus coelhos.

ANA - Não é verdade, Diloy, ter dito que o meu tio era um famoso coelho?

- Por Deus, que sim menina - respondeu com humildade o pobre Diloy, todo comprometido- e peço perdão ao senhor conde. Não era meu intuito ofender o senhor conde, tenha a certeza. Ficaria consternado se o senhor conde pudesse acreditar que lhe faltei ao respeito, eu, que sou dedicado ao senhor conde e a quem me afeiçoei como meu benfeitor.

GENERAL - Sossega, excelente rapaz. Podia lá supor uma coisa dessas? Mas, pelo contrário, dirigiste-me um lisonjeiro cumprimento. Não é coisa fácil nem vulgar chegar a ser famoso militar * Os meus soldados apelidavam o general Pélissier de famoso coelho, como quem diz famoso militar, e afianço-te que ele não se

 

* Fameux lapin é um trocadilho francês, que tanto significa famoso coelho como famoso militar

 

zangava quando o sabia; ria com gosto e agradecia a excelente opinião que formavam dele.

DILOY - Obrigado, senhor conde, por me tranquilizar; ficaria bastante penalizado por descontentar o senhor conde.

GENERAL - Não me zango facilmente, meu amigo... E a nossa vala! Depressa, mãos à obra, rapazinho... Então, que é isso? Que tens, Aninhas? Porque choras assim, minha pobre pequenita?

ANA (soluçando) - Felícia... disse-me... que sou má... que dei um... desgosto... a... Diloy... e a si.

GENERAL (tomando-a nos braços e beijando-a) Nada disso, minha pequenita, não desgostaste fosse quem fosse. Onde diabo, Felícia, foste buscar isso para fazer chorar a miúda? Consola-te, Aninhas; andaste bem. Arranca as tuas alfaces; não estarão prontas a tempo para Diloy. Trabalha, cava. Ele é que é um famoso coelho!

Dentro de duas horas, a vala estava aberta e viram-na, satisfeitos, encher-se mansamente de água. Os trabalhadores suavam, incluindo o general, que mandou tra zer uma garrafa de anis e café a ferver, que deu a beber a todos. Distribuiu depois o anis consoante a idade e o sexo.

Os pequenos que nunca tomavam café, beberam-no, deliciados; por sua vontade teriam todos os dias o tio no seu jardim.

Chegara a hora da lição; quando voltaram ao jardim soltaram gritos de alegria ao ver a vala cheia de água e duas pontezinhas que Diloy lá construíra.

 

                   O general instala-se de vez

Os dias e as semanas decorreram assim, sossegados e felizes. A índole de Felícia, embora melhorada, mercê da influência de Gertrudes, ainda perturbava um pouco certas diversões e as ocupações quotidianas dos pequenos; as reincidências eram frequentes e graves por vezes, mas a bondosa Gertrudes não desanimava.

Após o regresso dos senhores Soubise das águas dos Pirinéus, Gertrudes acompanhou menos Felícia, para não abandonar a mãe, que pessoalmente se encarregava da educação das filhas. A submissa ternura de Gertrudes pela mãe influiu beneficamente em Felícia; a senhora Orvillet achava-a cada vez mais dócil, até mais afectuosa.

Um acontecimento que muito contribuiu para tornar melhor Felícia foi uma grave doença de Diloy; os cuidados de que foi rodeado por toda a família Orvillet, a solicitude, a afeição que lhe testemunharam causaram agradável impressão em Felícia; não menosprezou imitar Gertrudes e instalar-se horas seguidas junto do pobre enfermo, enquanto Marta repousava um pouco. A doença foi longa e perigosa. O bom velho cura visitou várias vezes Diloy. As suas palavras compadecidas e caritativas não foram perdidas para Felícia; soube assim apreciar os sentimentos de fé do pobre Diloy. Resignado a tudo, sinceramente submetido à vontade do misericordioso Deus, estava constantemente preocupado com o receio de que se cansassem por causa dele. A gratidão ressaltava-lhe de todas as palavras e, quando entrou em convalescença, exprimiu-se tão vivamente, que Felícia ficou deveras sensibilizada e compreendeu por fim que um pobre labrego podia possuir sentimentos tão altos, tão delicados como as pessoas de sociedade; e, embora nunca chegasse ao grau de bondade da mãe, do tio e de Gertrudes, não mais melindrou a gente da aldeia com as suas impertinências, os seus ares de altivez e as suas palavras desdenhosas.

Três meses depois do começo da nossa narrativa, Felícia fez a primeira comunhão, cujo resultado foi muito satisfatório; continuou a acompanhar todas as manhãs Gertrudes e as senhoras à missa e a fazer, com Gertrudes, leituras piedosas. Pouco depois da primeira comunhão, a senhora Soubise e a senhora S. Lucas falaram da partida, mas o general pediu-lhes tão instantemente para prolongarem por mais um mês a sua estada, que aceitaram.

- Desejo vivamente - disse ele - recebê-las em minha casa, antes da sua partida.

- Como? Em tua casa? - volveu-lhe a irmã Amélia. - A tua casa não é em África?

GENERAL (sorrindo) - É o que havemos de ver, dentro de quinze dias.

- Que quer ele dizer? - perguntou a senhora Soubise à senhora Orvillet, quando se encontraram a sós.

SR.A ORVILLET - Parece-me adivinhar. Os Castelsot abandonaram a região; a verdadeira origem deles

espalhou-se; apontavam-nos a dedo e já só os tratavam por Futé. A sua propriedade está à venda; creio que Alberto vai comprá-la.

  1. A SOUBISE - E que fará sozinho nesse palácio? SR.A ORVILLET (sorrindo) - Conta não estar só! Creio que poderia ainda casar.

SR.A SOUBISE - Casar com quem? Não vejo outra pessoa para casar além da tola e rica senhora Chipe de Vieux.

SR.A ORVILLET - Ah, não! Tem mais bom gosto do que isso. Como não notaram, não adivinharam ainda?

  1. A SOUBISE - Não. Não nos deixa; só vive para nós e para os nossos filhos. É admirável para Gertrudes.

SR.A ORVILLET - Ainda não?

  1. A SOUBISE - Não há maneira de adivinhar. Mas diz-me quem é.

SR.A ORVILLET - Não reparaste em como é amável para tua cunhada Paulina? O entusiasmo com que lhe fala, com que solicitude a procura, como estão sempre juntos.

SR.A SOUBISE - É verdade! Tens razão! Vejo, agora que mo dizes, e bastantes vezes me regozijei por Alberto testemunhar tanta amizade a Paulina, a quem estimo de todo o coração; é tão bondosa e amável como encantadora; leva uma vida muito triste e solitária; sem pai, sem mãe, sem marido, sem filhos! Ficaria radiante por se tornar a mulher de Alberto, e meu marido bastante contente ficará com o facto; gosta tanto da pobre irmã e de Alberto!

SR.A ORVILLET - Até te digo que Paulina me falou nisso muito entusiasmada e que espera um pedido em regra muito em breve.

Enquanto as irmãs conversavam dos projectos do general, este pedia licença à senhora S. Lucas para a visitar nos seus aposentos.

- Decerto, meu caro general; com o maior prazer. O general sentou-se defronte da senhora S. Lucas e disse:

- Minha querida senhora, permite que lhe fale com toda a franqueza?

SR.A S. LUCAS - Da melhor vontade; bem sabe que o que particularmente aprecio em si é a sua grande franqueza.

GENERAL - Pois vou dizer-lhe francamente que quero comprar a propriedade de Castelsot. Que lhe parece?

  1. A S. LUCAS - Fará muito bem; é bonita, magnífica.

GENERAL - Quando, porém, for minha, hei-de aborrecer-me muito sozinho nela.

SR A S. LUCAS - Acredito sem custo; estima deveras sua família para viver como eremita.

GENERAL - Mas, se eu casasse, já não viveria sozinho e nós viveríamos perto de Helena.

SR.A S. LUCAS - Nós? O que significa esse nós? GENERAL - Aquela que eu desposasse e a quem amaria de todo o coração.

  1. A S. LUCAS - E se daria por muito feliz por con tribuir para a sua ventura.

GENERAL - Acredita?

SR.A S. LUCAS - Tenho a certeza.

GENERAL - Percebeu-me?

  1. A S. LUCAS (sorrindo) - Perfeitamente; a coisa foi posta com toda a clareza, para a perceber muito bem.

GENERAL - Nesse caso, quer residir no palácio Castelsot?

  1. A S. LUCAS - Sim, consigo.

GENERAL (beijando-Lhe a mão) - Minha querida Paulina! Minha bondosa Paulina! Serei feliz também! Não receia os meus arrebatamentos?

SR.A S. LUCAS -Não. São sempre amáveis e sabe repará-los também!..

GENERAL - Os meus quarenta anos não a assustam?

  1. A S. LUCAS -Não; pois eu tenho vinte e sete anos.

GENERAL - Não teme acompanhar-me à Argélia? SR.A S. LUCAS -Acompanhá- lo-ei a toda a parte, com prazer.

GENERAL - Está, então, o caso combinado? SR. S. LUCAS - Afigura-se-me que está bem resolvido.

GENERAL - Obrigado, querida amiga, obrigado! agradeceu, beijando-Lhe mais uma vez a mão. - Permite que o anuncie a minhas irmãs e à querida Gertrudinhas? E se viesse comigo?

SR.A S. LUCAS - Vou; será o meu primeiro acto de obediência...

O general ofereceu o braço à senhora S. Lucas; entraram a rir nos aposentos da senhora Orvillet, onde ainda estava a senhora Soubise.

GENERAL - Vimos dar-Lhes uma notícia, uma boa notícia, minhas queridas amigas. Apresento-lhes minha noiva.

- Mais uma irmã - disseram ambas, beijando-a.

- Querido Alberto, como procedeste bem! - aprovou a senhora Orvillet, beijando-o por sua vez.

GENERAL - Amélia, chama Gertrudes, para lhe anunciar o meu feliz casamento. Mas nada lhe digas.

AMÉLIA - Sossega; serás o primeiro a dar-lhe a notícia.

Amélia saiu e voltou quase logo com Gertrudes.

- Gertrudes, minha querida Gertrudinhas - disse o general beijando-a com ternura-, vou casar; tua tia Paulina aceita ser minha mulher.

- Tia Paulina, como fez bem! Como há-de ser feliz!

- exclamou Gertrudes, atirando-se ao pescoço do tio e beijando-o repetidas vezes.

- Minha bondosa e querida tia, há muito que peço a Deus para lhe conceder tal felicidade. Meu tio é tão bondoso! E há-de amá-la tanto, que nada mais poderá desejar.

 

                   Tudo acabou, não se fala mais nisso

Todos estavam satisfeitos; abreviaram-se os preparativos do casamento. O general foi com a senhora S. Lucas ver, pela última vez, o palácio de Castelsot, em companhia das irmãs, das cunhadas e dos sobrinhos.

Acharam magnífico o conjunto; as coisas de mau gosto eram fáceis de mudar. O general comprou a propriedade, pela qual deu seiscentos mil francos, restituiu-lhe o antigo nome de Valjoli.

Em seguida, deu os passos necessários para se fazer substituir na Argélia e colocar-se na disponibilidade.

- Tenho vinte e dois anos de serviço e quase todos em campanha - disse. - Não me sinto com coragem para deixar minha mulher e minha família. Se houver alguma guerra séria, pedirei um comando; até então viverei tranquilo em minha casa.

Decorridos quinze dias, instalou-se em Valjoli com a sua encantadora mulher, ao sair da missa do casamento. Grande almoço estava preparado para a família. Um magnífico ramo, oferecido por Diloy, ocupava o centro da mesa. Os pequenos divertiam-se imenso; correram por toda a parte, visitaram todos os recantos do palácio. O jardineiro deixou-os apanhar flores em quantidade; arranjaram ramos para a criada. Voltaram de carruagem; atravessaram a floresta onde se dera o encontro de Diloy com o urso. Esta lembrança comovia-os sempre.

À tarde, ao irem para a mesa, todos suspiravam ao pensar no general e na mulher.

- Que pena o tio ter-nos deixado! - disse Gertrudes, num suspiro. - E a tia Paulina também. Vão fazer-nos falta.

SR.A SOUBISE - É verdade, querida filha; mas são tão felizes, que não podemos lamentá-los muito.

GERTRUDES - Os meus pesares são apenas pela nossa vida, mãezinha, que vai ser menos agradável sem eles.

Poucos dias depois do casamento do general, os senhores Soubise e os filhos voltaram para a Bretanha. Felícia teve pena da prima, mas não tão vivamente, que se entristecesse com o afastamento. Havia nela um fundo de egoísmo e de ciúme que lhe despertava a afeição que constantemente todos, sem excepção, demonstravam a Gertrudes.

Quando ficou só, diminuiu as boas acções, as visitas de caridade aos aldeões, aos pobres, aos doentes. Continuou, contudo, a testemunhar certo interesse pelos Diloy e a prestar-lhes, de quando em quando, pequenos serviços.

De regresso a Paris, acharam- na muito embelezada, porque o seu semblante mudara de expressão; tornou- se mais meigo e bondoso. Tem agora dezassete anos e aqueles que não a conhecem intimamente acham-na muito bonita.

Gertrudes desposou o filho do duque de La Folotte, rapaz encantador, de vinte e cinco anos, muito atilado e que ajudara o pai a refazer grande parte da sua riqueza. Foi o general quem organizou tal casamento, reunindo muita vez o juvenil par em Valjoli. O duque não levou muito tempo a conhecer as encantadoras qualidades de Gertrudes. Foi certa manhã declarar ao general que de sejava vivamente unir a sua vida à de Gertrudes e que, se ela não o aceitasse, iria alistar-se como soldado na Argélia.

O general prometeu-lhe falar à senhora Soubise e à própria Gertrudes o mais cedo possível. O consentimento da senhora Soubise foi concedido uma hora depois. Se parando-se da irmã, o general foi procurar a sobrinha; que encontrou a pintar uma vista de Valjoli.

GENERAL - Gertrudes, minha filha, queres casar?

- Depende do marido que me escolher, tio - respondeu Gertrudes, corando.

GENERAL - Quanto a isso, é um marido de primeira ordem, tudo quanto é preciso para te fazer feliz.

cristão, bom filho, rapaz prudente e ordenado, inteligente, instruído, gostos moderados; ama-te como louco. Aceita-lo?

GERTRUDES - Pelo retrato que fez dele, tio, a minha resposta é fácil de adivinhar, se a mãezinha consentir.

GENERAL - Está bem; disse que sim.

GERTRUDES - Então a minha resposta é a mesma, tio.

GENERAL - E não perguntas quem é?

GERTRUDES - Elogiando-o como fez, disse quem era, tio.

GENERAL - Bravo! Foi bem respondido. Não saias daqui. Dentro de dez minutos, estou de volta.

O general afastou-se à pressa. Não tardou a aparecer de novo com o jovem duque.

- Aqui a tem, meu amigo; todos disseram que sim. Agora, entendam-se os dois.

E retirou-se, deixando o duque diante de Gertrudes, ambos embaraçados.

Gertrudes ainda empunhava a paleta e os pincéis. O rapaz permanecia de pé a contemplá-la, tão atrapalhado como ela com a partida que lhes pregara o general.

Um sorriso de Gertrudes cortou cerce a primeira confusão e entenderam- se muito bem, porque, decorrida uma hora, foram, juntos, ter com a senhora Soubise, que os recebeu de braços abertos.

Foi uma festa geral em Valjoli e em Orvillet. Passado um mês, realizou- se o casamento com grande pompa em Valjoli. As duas aldeias foram convidadas para a boda. Gertrudes fez-lhes as honras com encantadora graciosidade; Felícia foi muito amável; os Robillard, os Moutonete foram especialmente acolhidos. Dançou-se até à noite; desta feita, Felícia dançou com os seis Moutonet. Lourenço e Ana entregaram-se a grande alegria; os pequenos Diloy acompanharam-nos a toda a parte com o Germaninho.

O general tem dois filhos; o mais velho, Pedro que tem quatro anos, fez de fel e vinagre os noivos durante a cerimónia; o segundo, Paulo, olhava e batia as palmas; ambos são encantadores como os pais.

Os Castelsot sumiram-se, mas sabe-se que estão arruinados; abandonaram a França e foram refazer a riqueza na Califórnia.

O pobre Moutonet está mais manso do que nunca. Amanda reina e governa na casa. Conseguiu até fazer- se temer da sogra, do sogro Moutonet e de todos os Moutonet da região, rapazes e raparigas.

Lourenço fez a sua primeira comunhão há um ano. ele e Ana são encantadoras crianças que a criada estima com ternura.

Julieta é muito gentil; está mais bonita, tão bonita como Felícia e Ana; não tem, contudo, o encanto de Gertrudes, que atrai todos.

Diloy é o mais ditoso dos homens; fez do jardim maravilhosa horta que vêm visitar de léguas em redor; cada vez tem mais amizade aos excelentes patrões. A mulher é a mais feliz das mulheres; os filhos são muito graciosos. Gustavo já ajuda os pais na jardinagem; o pai tenta fazer dele um jardineiro de primeira ordem para o colocar em casa do general, que possui um bastante medíocre, que conserva para esperar pelos vinte anos de Gustavo.

O general está em vésperas de casar o seu velho criado de quarto com a Valéria, que hesita por causa de Lourenço e Ana. Pede três anos de espera. O general só Lhe concede o prazo até ao fim do ano. A senhora Orvillet aconselha-a a casar e não sacrificar o seu futuro à inútil dedicação, pois Lourenço e Ana já não carecem dos seus cuidados, e além disso, ela ficará na vizinhança. Há quase a certeza de que Valéria aceitará.

 

                                                                                 Condessa de Ségur  

 

                      

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