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Combates aéreos em Israel e violência na selva africana são os ingredientes de mais este empolgante romance de Wilbur Smith. A eles, junta-se uma comovente história de amor, que sobrevive apesar do terror e da tragédia.
No centro da trama está David Morgan, jovem herdeiro de uma imensa fortuna na África do Sul. Apaixonado por aviões, ele despreza o trabalho na empresa da família e decide seguir a carreira de piloto. Assim, após servir na Força Aérea, parte para uma viagem à Europa, onde fica conhecendo Debra, uma moça israelense que mudaria sua vida. Por amor a ela, passa a viver em Israel e entra para a Força Aérea daquele país, pilotando um caça Mirage. Mas um ataque terrorista desencadeia uma tragédia, que afeta não só seu relacionamento com Debra, mas também sua própria postura diante da guerra em que está envolvido.
O VENTO que vinha das montanhas cobertas de neve uivava como um animal perdido. O instrutor parou à porta do pequeno escritório, vestiu a jaqueta de vôo e enfiou as mãos nos bolsos forrados de pele. Olhou para o Cadillac preto que se aproximava por entre os hangares de ferro e franziu o cenho. Barney Venter sentia uma inveja profunda da pompa da riqueza.
O veículo estacionou em uma vaga para visitantes próxima à parede do hangar. Um rapaz desceu pela porta traseira com um entusiasmo infantil, falou algo para o motorista negro e se dirigiu apressado para Barney.
Movia-se com leveza, o corpo ereto. A inveja de Barney aumentava à medida que o jovem se aproximava. Ele odiava aqueles garotos almofadinhas, embora tivesse de passar a maior parte do tempo com eles - afinal, só os ricaços podiam arcar com a instrução dos filhos nos mistérios do vôo.
Fora reduzido a isso pela decadência gradual de seu corpo, pelo desgaste natural do tempo. Dois anos antes, aos quarenta e cinco anos, fora reprovado no rigoroso exame médico que sua posição de comandante de vôo exigia; agora, descendo o outro lado da colina, na certa acabaria como um piloto de segunda, lidando com aviões cansados em vôos não programados, por rotas obscuras, trabalhando para companhias de fretamento sem licença.
Pensando naquela situação, Barney rosnou para a criança que parou à sua frente:
- Imagino que você seja o mestre Morgan...
- Sim, senhor, mas pode me chamar de David. - O garoto estendeu-lhe a mão, que Barney pegou instintivamente, arrependendo-se de imediato. A mão era fina, seca, mas apertava firme.
- Obrigado, David - a voz de Barney estava carregada de iro nia. - Pode continuar me tratando por "senhor".
Com apenas catorze anos, o garoto tinha o mesmo um metro e setenta de altura de Barney. Sorrindo, mostrava uma beleza física impressionante, cada detalhe do rosto parecendo esculpido por um artista refinado. Seus cabelos eram ondulados, brilhantes, escuros, a pele lisa e acetinada, os olhos vivos e profundos.
Barney percebeu que o estava encarando, que se deixava levar pelo seu encantamento. Virou-se abruptamente.
- Venha. - Passou pelo escritório cheio de calendários de mulheres peladas e bilhetes escritos à mão avisando para não pedirem fiado nem fazerem ponto ali. - O que você sabe sobre voar? - perguntou, quando saíam da penumbra fresca do hangar rumo ao sol claro e morno do inverno.
- Nada, senhor. - A franqueza do garoto fez o humor de Bar ney melhorar um pouco.
- Mas você quer aprender?
- Com certeza! - A resposta enfática levou Barney a encará-lo. Os olhos do garoto eram tão escuros que pareciam pretos; só com a luz do sol ficavam azul-escuros.
- Está bem, vamos começar. - O avião esperava na pista de concreto. - Este é um Cessna 150, monomotor de asa alta. - Barney deu algumas explicações preliminares, que David escutava com atenção. Porém, quando ele apresentou as superfícies de controle e falou sobre o princípio de sustentação e carga da asa, deu-se conta de que o garoto não era um tonto, a julgar pelas respostas precisas às perguntas genéricas que lhe fazia. - Você andou lendo, não?
- Sim, senhor - David admitiu, sorrindo com dentes alvos e simétricos, um sorriso irresistível. Apesar de seus preconceitos, Barney começou a simpatizar com ele.
- Certo, suba.
Acomodados na pequena cabine, com os assentos dispostos ombro a ombro, Barney explicou o funcionamento dos controles e instrumentos e conduziu o procedimento de partida.
- Interruptor mestre ligado. - Ele acionou o botão vermelho. - Agora vire aquela chave, como num carro.
David curvou-se para a frente e obedeceu. A hélice girando, o motor ainda engasgou antes de se estabilizar. Taxiaram pelo pátio, enquanto David treinava no leme, e pararam para a verificação final e os procedimentos pelo rádio com a torre. Então fizeram uma curva aberta, entrando na pista de pouso.
- Bem, escolha um objeto no fim da pista. Mire nele e acelere gentilmente. - A máquina ganhou velocidade. - Puxe o manche... Com carinho. Não force os controles. Trate-os como... - Barney interrompeu-se. Estivera a ponto de comparar o avião a uma mulher, mas percebera a inutilidade da comparação. - Trate-os como um cavalo. Cavalgue suavemente.
David relaxou a pressão do manche, o mesmo ocorrendo nos controles.
Barney olhou-o de esguelha e ficou desapontado. Imaginara que o garoto poderia ser um pássaro, um dos raros que, como ele, tinham o azul como seu elemento natural, mas nos primeiros momentos do vôo o rapaz mostrava uma expressão de terror: lábios e narinas brancos como mármore e manchas nos olhos como tu barões se movendo sob a superfície do mar de verão.
- Levante a asa esquerda - disse num tom brusco, tentando tirá-lo do transe. A asa foi erguida, parecendo firme como uma rocha, sem traços de correção exagerada. - Nivele. - Quando o nariz desceu para encontrar o horizonte, acrescentou: - Desacelere.
David fez tudo como fora instruído. Ao encará-lo outra vez, Barney compreendeu que sua expressão não revelava medo, mas êxtase. Ele é um pássaro, disse a si mesmo, satisfeito.
Voaram rente às ásperas montanhas azuis, cobertas com um manto de neve brilhando ao sol, e cavalgaram o vento selvagem que descia delas.
- O vento é como o mar, David. Quebra e rodopia em volta dos picos. Preste atenção nisso.
David assentiu, os olhos fixos no horizonte, saboreando cada instante da experiência. Viraram para o norte sobre a terra marrom, cortada pelos montes dourados do trigo colhido.
- Leme e manche juntos, David. Vamos tentar uma curva forte. - Logo a asa desceu e o nariz fez a volta sem perder a postura em relação ao horizonte. A frente surgia o mar quebrando sobre as areias brancas da praia. O Atlântico tinha uma tonalidade ver de e estava conturbado pelo vento. Seguiram a linha costeira, on de pequenas figuras paravam na areia para olhá-los sob a sombra das mãos; depois em direção às grandes montanhas chatas que marcavam o limite da terra. Havia diversos navios na baía, e o sol de inverno refletia-se nas janelas dos edifícios brancos agrupados sob as encostas cobertas de árvores das montanhas.
Na curva seguinte, confiante e seguro, Barney manteve as mãos no colo e os pés fora dos pedais. Ultrapassaram a Tigerberg e rumaram para o campo de pouso.
- Tudo bem, David. Agora eu pego. - Barney pousou e taxiou para o pátio de concreto ao lado dos hangares. Empurrou totalmente o controle da mistura e deixou o motor morrer.
Ficaram em silêncio por um momento, nenhum dos dois disposto a dar o braço a torcer, porém cientes de que algo importan te acontecera entre eles.
- Satisfeito? - Barney perguntou finalmente.
- Sim, senhor. - Soltaram os cintos de segurança e desceram para o concreto. Em silêncio, andaram lado a lado através do hangar e do escritório. Pararam à porta.
- Quarta-feira você vem? - Barney quis saber.
- Claro, senhor. - David encaminhou-se para o Cadillac, mas, após uma dúzia de passos, voltou-se, hesitante. - Foi a coisa mais bonita que já me aconteceu - disse timidamente. - Obrigado. - E apressou o passo.
Quando o Cadillac arrancou, desaparecendo na curva entre as árvores além dos últimos edifícios, Barney riu e, sacudindo a cabeça, voltou para o escritório. Jogou-se na velha cadeira giratória e cruzou os pés sobre a mesa. Pegou um cigarro amassado do maço, ajeitou-o e acendeu.
- Bonita... Essa é boa! - Atirou o fósforo na cesta de lixo e errou.
O telefone acordou Mitzi Morgan, que saiu de debaixo das cobertas para atendê-lo.
- Alô?
- Mitzi?
- Oi, pai, você vem? - Mitzi ficou alerta ao ouvir a voz do velho. Ele deveria chegar nas próximas horas para se juntar à família, que estava na casa de férias.
- Desculpe-me, querida. Aconteceram algumas coisas que vão me segurar até a próxima semana.
- Ah, pai!
- Onde está David? - ele disse rápido, para evitar qualquer reprimenda.
- Quer que ele ligue para você?
- Não, posso esperar. Chame-o, por favor, querida.
Mitzi saltou da cama e parou em frente ao espelho para arrumar os cabelos loiros e crespos que, com um pouco de sol, sal ou vento, ficavam rebeldes. As sardas estavam ainda mais acentuadas, ela percebeu, olhando-se com desaprovação.
- Você parece um pequinês - disse em voz alta. - Um pequinês gordo, pequeno e com sardas! - Desistiu de tentar disfarçar isso. David já a vira assim um milhão de vezes. Cobriu a nudez com um robe de seda e entrou no corredor. Passou pela porta da suíte de seus pais, onde sua mãe dormia sozinha, seguindo então para a área de estar.
A casa possuía uma sucessão de planos e galerias. Misturando vidro, aço e madeira, era construída no alto das dunas, ao longo da praia, separada do céu e do mar por imensos janelões que naquele momento deixavam entrar a luminosidade da aurora e permitiam que se visse o promontório do Robberg projetando-se mar adentro do outro lado da baía.
O salão de jogos estava entulhado com o lixo da festa da noite anterior - vinte hóspedes e outros tantos convidados das enormes casas de férias das redondezas haviam deixado suas marcas: cerveja derramada, cinzeiros abarrotados e discos espalhados fora de suas capas.
Mitzi atravessou o cômodo rumo à escada circular que dava nos quartos de hóspedes. A porta do quarto de David estava aberta. Lia entrou. Encontrou a cama arrumada, mas a camiseta e o jeans de David estavam jogados na cadeira, e os tênis atirados ao chão.
Sorrindo, Mitzi foi até a sacada, que ficava acima da praia, onde as gaivotas já estavam mergulhando atrás dos restos que o mar trouxera durante a noite.
Mitzi prendeu a barra do robe na cintura, subiu no parapeito da sacada e andou por ele até a sacada ao lado. Afastando as cortinas, entrou no quarto de Marion, que era sua melhor amiga. Aliás, aquela feliz situação existia principalmente porque Mitzi criava as condições para que a garota pudesse badalar, ganhar presentes, participar de festas, férias gratuitas e outros tipos de programas.
Marion estava dormindo, linda, os cabelos dourados e macios espalhados sobre o peito de David. Ao ver o primo, Mitzi sentiu um arrepio pelo corpo, um calor atingindo-lhe o ventre. Ele tinha dezessete anos, mas já possuía o físico de um homem adulto. Era a pessoa de quem ela mais gostava no mundo. Bonito, alto, sedutor, um olhar capaz de derretê-la. E como eram encantadores os pêlos em seu peito, escuros e encaracolados, os músculos dos braços e pernas, os ombros largos...
- David - chamou Mitzi, sacudindo-o de leve. - Acorde. De imediato ele abriu os olhos, alerta.
- Mitzi? O que foi?
- Vista-se, guerreiro. Papai está ao telefone.
- Meu Deus! - David sentou-se, afastando a cabeça de Marion para um lado. - Que horas são?
- Tarde. Você deve usar o despertador quando tem compromisso.
Marion murmurou um protesto enquanto David saía da cama.
- Onde fica o telefone?
- Em meu quarto, mas você pode atendê-lo na extensão do seu.
Mitzi acompanhou-o através do parapeito da sacada. Deitando-se na cama dele, estendeu-lhe o telefone, que ele pegou ansiosamente.
- Tio Paul? Como está?
Mitzi tirou um Gauloise do bolso do robe, acendeu-o com seu isqueiro Dunhill de ouro. Quando dava a terceira tragada, David sorriu para ela, pegando o cigarro de seus lábios. A prima respondeu com uma careta, para disfarçar o embaraço que sua nudez causara nela. Acendeu outro cigarro. David morreria se soubesse o que estou pensando, disse a si mesma, tentando aparentar descontração.
Assim que acabou a conversa ao telefone, ele disse:
- Seu pai não vem.
- Eu sei.
- Mas mandou Barney no jatinho para me buscar. Puta confusão!
Mitzi assentiu, passando então a imitar seu pai:
- Precisamos pensar em seu futuro, garoto. Vamos prepará-lo para assumir as responsabilidades que o destino lhe reservou.
Rindo, David pegou um calção de corrida na gaveta do camiseiro.
- Vou ter de contar para ele.
- Com toda certeza!
- Reze por mim, minha querida.
- Só oração não resolve seu problema, guerreiro - disse Mitzi calidamente.
A maré deixara a praia lisa e firme. Aquela hora não havia ninguém ali para atrapalhar a corrida matinal de David. O sol projetava uma mancha cor-de-rosa sobre o mar e parecia pôr fogo nas montanhas Outeniqua. Só que ele não percebia nada disso, concentrado na entrevista iminente com seu tutor.
Estava em uma encruzilhada agora que completara o segundo grau e devia optar por uma carreira. O caminho que escolhera desencadearia uma reação violenta por parte do tio.
Um grupo de gaivotas, reunido em volta de um peixe encalhado, levantou-se como uma nuvem quando David aproximou-se.
Naquele instante ele avistou o jatinho, voando baixo contra o sol, subindo e descendo sobre os picos das montanhas Rod, até pegar um vôo rasante ao longo da praia, na direção dele.
David parou, respirando cadenciado apesar da longa corrida, e levantou os braços sobre a cabeça, em saudação. Viu Barney através do vidro da cabine, a mão levantada, devolvendo o cumprimento.
O jato virou para o mar, uma das asas quase tocando a crista das ondas, e deu meia-volta. David, parado na praia aberta, ficou firme enquanto o longo nariz da aeronave descia mais e mais, mirando nele como um javali.
Como um pássaro predador, a máquina precipitava-se sobre ele e, no último instante possível, os nervos de David não agüentaram, obrigando-o a jogar-se na areia molhada. O calor das turbinas atingiu-o enquanto o jato subia e rumava para o campo de pouso.
- Filho da puta! - resmungou David, imaginando a risada divertida de Barney.
Ensinei direito, pensou Barney, estirado no assento do co-piloto do jatinho, olhando para David, que manejava os instrumentos do painel. Barney engordara desde que começara a trabalhar para o grupo Morgan. Tinha o ventre avolumado sobre o cinto, uma papada sob a boca de cantos caídos, que lhe davam um ar de sapo aborrecido, e seus cabelos tornavam-se cada vez mais ralos.
Observando o desempenho de David, sentia o calor de sua afeição por ele, sentimento esse que sua expressão rabugenta escondia. Há três anos Barney era piloto chefe do grupo Morgan e sabia muito bem a quem devia aquele posto. Agora tinha segurança e prestígio. Voava com pessoas importantes nas mais luxuosas aeronaves e, quando chegasse a hora de se aposentar, gozaria da mais absoluta tranqüilidade. O grupo Morgan zelava pelo bem-estar dos seus.
Essa certeza caía-lhe bem durante aquela viagem. Um vôo longo e em baixa altitude como aquele exigia uma concentração enorme e Barney esperava em vão por um deslize de seu aluno.
As longas praias douradas da África passavam lá embaixo, pontuadas por promontórios rochosos e pequenos balneários e vilas de pescadores. O jatinho seguia o contorno da costa, rota muito mais estimulante que o vôo direto, rejeitado por ambos.
À frente aparecia uma outra faixa de areia e à medida que desciam, viram que não era uma praia deserta. Um par de figuras femininas saiu da espuma das ondas e correu apavorado para onde estavam as toalhas e os biquínis, pouco acima da marca da água. Os traseiros brancos contrastavam com a pele bronzeada. Os dois riram, deliciados.
- É bom vê-las fugindo de você para variar, David - brincou Barney, ao deixarem as pequenas figuras para trás, rumando para o sul.
No cabo Agulhas, giraram para o interior, subiram as montanhas, e então David aliviou os aceleradores e a máquina desceu entre os picos em direção à cidade aninhada nas montanhas.
Pouco depois, andando lado a lado no hangar, Barney olhou para David, que agora era mais alto do que ele quinze centímetros, e alertou:
- Não se deixe intimidar, garoto: você tomou sua decisão. Firme-se nela.
David acomodou-se ao volante do seu M.G. esportivo, pegando a estrada De Waal. Do pé das montanhas olhou para o edifício Morgan, localizado entre outros monumentos à riqueza e ao poder. Gostava da aparência do prédio, limpo e funcional como a asa de um avião, mas não se deixava enganar por suas linhas livres: via-o como uma prisão e uma fortaleza.
Saiu da auto-estrada em uma bifurcação e logo alcançou a rampa que dava para as garagens do subsolo. Instantes mais tarde chegava às dependências administrativas do último andar. As secretárias se abriam em sorrisos à medida que ele as cumprimentava. Ali no edifício Morgan, David era tratado com o respeito devido ao herdeiro.
Martha Goodrich, que em sua pequena sala guardava a entrada ao escritório do chefe, parecia severa e inflexível do alto de sua poltrona giratória.
- Bom dia, senhor David. Seu tio o espera. Creio que o senhor deveria estar usando um terno.
- Você está ótima, Martha. Emagreceu, e eu adoro esse penteado. - O elogio funcionou, como sempre acontecia. A expressão dela suavizou-se.
- Não tente me enrolar... Não sou uma de suas paqueras. Paul Morgan estava postado diante da janela panorâmica olhando para a cidade que se espalhava lá embaixo. Virou-se assim que o sobrinho entrou.
- Olá, tio Paul. Desculpe-me, mas não tive tempo de me trocar. Achei melhor vir direto.
- Tudo bem, David. - Paul olhou com ar crítico a camisa florida do recém-chegado, o cinto largo de couro, a calça branca e as sandálias de couro cru. Relutante, admitiu que lhe caíam bem. O rapaz aparentava elegância até com a roupa mais espalhafatosa. Paul ajeitou a lapela de seu terno clássico escuro e continuou: - Sente-se ali, perto da lareira. - Como sempre, achava que David de pé realçava sua baixa estatura. Paul era baixo, ombros bem formados, o pescoço musculoso e, como a filha Mitzi, tinha os cabelos cheios e crespos. Todos os Morgan possuíam os mesmos traços... Só a aparência exótica de David fugia da regra. Devia ser a herança materna, é claro. Os cabelos pretos, os olhos brilhantes, o temperamento impulsivo... - Bem, David, em primeiro lugar quero parabenizá-lo pelos resultados finais. Fiquei muito feliz. - Paul Morgan poderia ter acrescentado: "E também muito aliviado".
A vida escolar de David tinha sido tumultuada, com picos de desempenho permeados por confusões terríveis, das quais só a riqueza e o nome Morgan puderam salvá-lo. Exemplo: o caso com a jovem esposa do treinador. Paul não conhecia detalhes do que aconteceu, mas soube o suficiente para se propor a acalmar a situação doando um órgão novo para a capela da escola e conseguindo uma bolsa para o treinador em uma universidade estrangeira.
Logo depois David ganhara o cobiçado prêmio Wessel de matemática. O episódio fora esquecido... até que o garoto decidisse testar o novo carro esporte do diretor do internato, sem o conhecimento desse cavalheiro, e entrasse em uma curva fechada a cento e quarenta quilômetros por hora. O carro não passou no teste e David saiu das ferragens mancando e com um belo arranhão na barriga. Custara muito a Paul Morgan convencer o diretor a não suspender o garoto da função de monitor da equipe. Além disso, tivera de substituir o carro estragado por um modelo mais caro, e fazer uma doação para reconstruir o santuário da East House.
O garoto era selvagem, Paul sabia disso. Mas também sabia que poderia domá-lo. E uma vez que fizesse isso, teria forjado uma ferramenta com o corte de uma navalha. David possuía todos os atributos que ele queria em seu sucessor. Vivacidade e confiança, agilidade mental, inteligência, espírito aventureiro e, acima de tudo, a atitude agressiva, a necessidade de competir que Paul definia como instinto assassino.
- Obrigado, tio Paul - disse David com cautela, aceitando as congratulações do tio. Houve um longo silêncio, cada um avaliando o outro. Os dois nunca ficavam à vontade, dadas as diferenças que os separavam, embora tivessem muitas coisas em comum.
Paul Morgan retornou às janelas panorâmicas, de modo que a luz do dia ficasse atrás dele. Era um velho truque para deixar o interlocutor em desvantagem.
- Não que esperássemos menos de você, é claro. - Paul riu, e David imitou-lhe o gesto, satisfeito por vê-lo chegar perto da frivolidade. - Agora devemos pensar em seu futuro. O leque de opções é grande... Embora eu sinta que Administração ou Direito em uma faculdade americana seja sua opção. Assim sendo, usei minha influência para inscrevê-lo em minha velha escola...
- Tio Paul, eu quero voar - interrompeu-o David, a voz tranqüila.
- Estamos decidindo uma carreira, meu garoto, não expressando preferências por diferentes tipos de recreação.
- Não, eu quero voar como modo de vida.
- Sua vida é aqui, no grupo Morgan. Você não tem essa liberdade de ação.
- Discordo!
Paul Morgan afastou-se da janela, foi até a lareira, pegou um charuto de uma cigarreira e, enquanto o preparava, comentou num tom suave de voz:
- Seu pai era um romântico, David. Ele montou seu esquema andando de tanque no deserto. Parece que você herdou o romantismo dele. O que você pretende fazer?
- Alistei-me na Força Aérea.
- O quê? Você se alistou?
- Sim, senhor.
- Por quanto tempo?
- Cinco anos. Comissionamento de serviço breve. Paul Morgan suspirou.
- Bem, David, não sei o que dizer. Você é o último dos Morgan. Não tenho nenhum filho homem. Seria triste ver este empreendimento sem um de nós na cabeça. Imagino o que seu pai pensaria disso.
- Isso é chantagem, tio Paul.
- De maneira nenhuma, David. Você é que está trapaceando. Seu trunfo é uma enorme quantidade de ações do Morgan e outros ativos que lhe foram dados na presunção de que você assumisse sua função e responsabilidades...
David sabia que estava sendo forçado a se retirar, tal como Barney previra. Se ele me mandar cair fora, posso mandá-lo enfiar tudo... pensou, ciente porém de que estava lidando com um homem perito na arte de manipular as pessoas, nas mãos de quem um garoto de dezessete anos era tão flexível quanto uma massa de amoldar.
- Como vê, David, você nasceu para isso. Qualquer outra coisa é covardia, autoconcessão. - O grupo Morgan estendia seus tentáculos, como uma planta carnívora, para sugá-lo, digeri-lo.
- Podemos cancelar seu alistamento com um simples telefonema...
- Tio Paul, lembre-de de que meu pai também fez isso. Ele entrou no Exército.
- Mas era diferente naquele tempo. Um de nós precisava ir. Ele era o mais novo e, além disso, havia outras considerações pessoais. Sua mãe... No final, ele voltou e assumiu seu lugar aqui. Sentimos falta dele agora, David. Ninguém foi capaz de preencher o vazio que ele deixou. Eu esperava que você o fizesse.
Só que eu não quero. Não quero passar minha vida aqui. Não quero passar todos os dias examinando pilhas de papel!
- Não é bem assim, David. É excitante, desafiante, variado...
- Tio Paul, como você chamaria um homem que, depois de preencher a barriga com comida cara, ainda continuasse comendo?
- Ora, David! - Um traço de irritação permeava a voz de Paul Morgan.
- Como você o chamaria? - insistiu o rapaz.
- Guloso, não é isso?
- E como você chamaria um homem que, possuindo milhões de dólares, passasse a vida tentando ganhar mais?
Impassível, Paul Morgan encarou o sobrinho por longos segundos.
- Você se tornou insolente - disse finalmente.
- Não tive intenção de ofendê-lo. Você não é guloso, mas eu o seria.
Paul Morgan foi para a escrivaninha, sentou-se na cadeira de espaldar alto e acendeu o charuto. Depois de um longo silêncio ele suspirou.
- Tudo bem, você vai passar por isso, como aconteceu com seu pai. Mas é de má vontade que lhe dou esses cinco anos, que serão perdidos.
- De modo algum será desperdício. Sairei de lá como engenheiro aeronáutico.
- Você acha isso uma grande coisa, não?
- Para mim é muito importante, tio Paul.
- Cinco anos, David. Depois disso eu o quero aqui. - E, num tom brincalhão, completou: - Pelo menos lhe cortarão os cabelos...
Seis mil metros acima da terra quente e vermelha, David varava o céu como um jovem deus, o protetor do sol cobrindo-lhe o rosto e escondendo a expressão enlevada com a qual ele voava. Cinco anos não haviam diminuído a sede de sensação de poder e isolamento que pilotar um interceptador Mirage despertava nele.
A luz do sol refletia-se no metal do avião, dando-lhe um aspecto esplendoroso em contraste com as nuvens lá embaixo, espalhadas como um rebanho de ovelhas fugindo do vento lobo.
O vôo daquele dia estava marcado pela melancolia, pela certeza da perda iminente. Era a véspera do prazo final de seu alistamento. Ao meiodia seguinte expiraria seu comissionamento e, se Paul Morgan triunfasse, David se tornaria o novo executivo do grupo Morgan.
David tentava concentrar-se no prazer daqueles últimos minutos, quando o rádio de bordo chamou-o:
- Atirador Zulu Um, aqui é o Controle de Área. Informe sua posição.
- Controle de Área, aqui é o Atirador Zulu Um no limite das cinqüenta milhas.
- Atirador Um, a área está limpa. Seus alvos são as figuras cinco e doze. Comece seu turno.
O horizonte surgiu de repente diante do nariz do Mirage, enquanto este descia acelerado das alturas, num mergulho controlado e preciso como o mergulho de um falcão.
David acionou o controle do seletor de armas, travando-o no circuito de foguetes. A terra aparecia achatada à sua frente, imensa e sem acidentes, salpicada por pequenos arbustos que passavam rapidamente sob as asas do Mirage. Logo surgiu a primeira marca no solo, que em fração de segundos ficou para trás. Cinco, seis, sete... os números pretos sobre a superfície pintada de branco passavam a uma velocidade vertiginosa. Num instante tinha diante de si o círculo de anéis concêntricos em torno do montículo - a coke, que, no jargão do vôo, era a mosca do alvo.
Com a máquina voando baixo e rápido, o velocímetro indicando uma velocidade pouco abaixo da do som, David esperou o momento correto em grande concentração e, quando este chegou, direcionou o Mirage para o alvo mantendo o indicador direito curvado em torno do gatilho.
Atingiu a posição adequada para lançamento de foguetes abaixando um pouco o nariz no exato momento em que a bola branca da coke estava no centro da figura em forma de diamante da mira reflex. Então pressionou o gatilho. Não houve mudança no comportamento do avião - o chiado do lançamento do foguete perdeu-se sob o troar do jato, enquanto de sob suas asas as linhas de fumaça partiam em direção ao alvo. Certo de que dera um bom tiro, David empurrou os aceleradores até o fim e esperou pela ignição dos pós-combustores que lhe dariam potência para subir além do alcance da artilharia antiaérea do inimigo.
Uma bela despedida, disse para si mesmo, apoiado contra as costas, a gravidade pressionando-o de encontro ao encosto do assento.
- Alô, Atirador Um. Aqui é o Controle de Área. Você acertou na mosca. Belo tiro! Sentimos perdê-lo, David.
A quebra na disciplina da comunicação tocou-o profundamente. David pressionou o botão de transmissão e respondeu através do microfone do capacete.
- Atirador Um falando. Obrigado a todos. Câmbio final. O pessoal de terra esperava-o para as despedidas. David apertou a mão de cada um deles; as brincadeiras e as piadas disfarçavam a afeição legítima que haviam construído em anos de convivência. Depois de deixá-los, David entrou no hangar que recendia graxa e óleo, onde se alinhavam em fileiras os narizes em forma de agulha dos interceptadores. Mesmo em repouso, as linhas arrojadas das máquinas aparentavam arrogância.
David contemplava uma delas, os olhos fixos no emblema da Cobra Voadora no leme, quando o ordenança aproximou-se.
- O oficial comandante deseja vê-lo imediatamente - informou o soldado.
O coronel "Rastus" Naude era um tipo magro, o rosto seco, e usava o uniforme e as medalhas com um ar descontraído. Pilotara Hurricane na batalha da Inglaterra; Mustang na Itália; Spitfire e Messerschmidtt 109 na Palestina; e Sabre na Coréia. Era um sujeito muito velho para aquele comando, mas ninguém se atrevia a questioná-lo a respeito, sobretudo porque ainda voava e atirava melhor que a maioria dos jovens do esquadrão.
- Finalmente vamos ficar livres de você, Morgan - brincou coronel à guisa de cumprimento.
- Não até a festa na cantina, senhor - retrucou Morgan.
- Bem, sofri bastante por sua causa nos últimos cinco anos. Você me deve uma caixa de uísque. - Apontou para a cadeira de espaldar alto à frente da escrivaninha. - Sente-se, David. - Era a primeira vez que o tratava pelo nome de batismo.
David depositou o capacete no canto da mesa e sentou-se, pouco à vontade com o macacão de vôo.
Enquanto enchia o cachimbo com o fumo escuro, Rastus estudava-o com atenção. Identificava nele as mesmas qualidades que Paul Morgan frisara - a agressividade e o instinto competitivo que lhe davam características ímpares como piloto de um interceptador.
O coronel acendeu o cachimbo, soltou uma baforada de fumaça e então estendeu uma pasta de documentos para David.
- Leia e assine. Isso é uma ordem.
David deu uma olhada rápida nos papéis, depois sorriu.
- O senhor joga duro, hein? - Os documentos eram a renovação de seu alistamento por mais cinco anos e a garantia de promoção de capitão para major.
- Gastamos tempo e dinheiro para formá-lo. Você entrou com um talento excepcional, e nós o desenvolvemos até onde era possível. Não vou medir as palavras, você é um ótimo piloto.
- Sinto muito não poder aceitar sua oferta...
- Droga! Por que diabos você tinha de nascer um Morgan? Com tanto dinheiro, vão cortar suas asas e acorrentá-lo a uma escrivaninha.
- Não é pelo dinheiro - revidou David, ofendido com a insinuação.
- Compreendo - resmungou Rastus, recolhendo os papéis. - Isto não é suficiente para tentá-lo...
- Coronel, é difícil explicar. Estou à procura de algo importante para fazer, que ainda não sei do que se trata. Só sei que não está aqui.
- É, não vou tentar convencê-lo a mudar de idéia. Agora você pode levar seu pobre comandante para a cantina e gastar um pouco da fortuna dos Morgan com uísque. - Levantou-se e colocou o quepe na cabeça. - Vamos nos embebedar esta noite, pois ambos estamos perdendo algo, talvez eu mais do que você.
David herdara do pai o amor por máquinas bonitas e potentes. Clive Morgan viajava com a esposa em uma Ferrari novinha quando se chocara com um trem em um cruzamento em nível sem sinalização. A polícia técnica calculara que no momento do impacto a Ferrari estivesse a duzentos e quarenta quilômetros por hora.
O testamento que Clive deixara para o filho de onze anos fora preciso e bem elaborado. A criança ficava sob a tutela do tio Paul Morgan, e a herança estava disposta em uma série de fundos de custódia.
Ao atingir a maioridade David teve acesso ao primeiro fundo, que lhe garantia rendimentos equivalentes aos de um profissional liberal muito bem-sucedido. Naquele dia, seu velho M.G. verde dera lugar a um Maserati azul, na verdadeira tradição dos Morgan.
Quando completou vinte e um anos, adquiriu o controle das fazendas de criação de ovelhas no Karoo, de gado no Sudoeste Africano e em Jabulani, dos balneários de férias nas dunas do rio Save.
Aos vinte e cinco anos, ele receberia a segunda parte da herança, constituída de uma grande quantidade de títulos negociáveis de duas holdings e de uma cadeia de supermercados.
Chegando aos trinta, David assumiria um fundo maior que os outros dois juntos, além do primeiro de cinco blocos de ações do grupo Morgan.
Dali para a frente, a cada cinco anos, até completar cinqüenta, outros fundos e novos lotes de ações lhe seriam transferidos, numa entorpecente procissão de riqueza, aterrorizante pela magnitude.
Dirigindo rumo ao sul, com os pneus cantando no asfalto, David pensava naquela fortuna, a gaiola dourada, o insaciável estômago do grupo Morgan aberto para engoli-lo - como uma célua de uma água-viva, seria parte de um todo, um prisioneiro de sua própria abundância. Essa perspectiva o apavorava, fazia com que sentisse um frio no estômago, piorado pela dor de cabeça causada pela bobagem de tentar acompanhar o coronel Rastus na bebida.
David acelerou fundo o Maserati, de modo que a potência e a velocidade da máquina funcionassem como escape para aquelas idéias sombrias. O tempo voou, e ainda estava claro quando chegou ao apartamento de Mitzi na praia Clifton em frente ao Atlântico.
O apartamento vivia na mais completa bagunça, por força da presença constante de convidados, que bebiam, comiam e pareciam apostar para ver quem criaria a maior desordem.
Em um dos quartos David encontrou uma moça desconhecida, de cabelos negros encaracolados, deitada com pijama de homem e chupando o dedo enquanto dormia. O quarto seguinte, que estava vazio, tinha a cama desarrumada e alguém deixara pratos sujos sobre o criado-mudo.
David jogou a mala na cama, vestiu seu traje de banho e saiu pela escada em espiral que dava para a praia. Ia fazer um cooper. Primeiro um trote leve, depois disparou como se estivesse sendo perseguido por um monstro. No final da quarta praia, onde começavam as rochas, entrou na água fria. Nadou durante cerca de quinze minutos. Ao sair do mar estava tremendo de frio. Esquentou-se outra vez com um trote leve voltando para o apartamento.
Encontrou o banheiro repleto de roupas íntimas femininas dependuradas por todos os lados. Recolheu-as antes de encher a banheira até a borda. Assim que se acomodou no meio da espuma, ouviu a porta da frente abrir-se.
- Onde você está, guerreiro? - perguntou Mitzi em voz alta. - Vi seu carro lá na garagem.
- Aqui no banheiro! - gritou David.
Em poucos instantes a prima apareceu no banheiro. Estava mais gorda, e afinal se conformara com a miopia, usando óculos de armação de metal.
- Você está lindo - disse Mitzi, inclinando-se para beijá-lo. - Quer tomar um drinque?
David estremeceu só de pensar em álcool.
- Um refrigerante, meu bem.
Mitzi levou-lhe a bebida, depois sentou-se num banquinho ao lado da banheira. Em seguida apareceu ali a garota de cabelos pretos, ainda de pijama e os olhos inchados de tanto dormir.
- Este é meu primo David. Não é lindo? - Mitzi sorriu. - E esta é Liz.
A moça sentou-se em outro banquinho, encarando David com um olhar tão ávido e penetrante que Mitzi não resistiu a uma brincadeira.
- Fique fria, minha querida. Mesmo daqui estou ouvindo o latejar dos seus ovários.
Fazendo de conta que ela não estava presente, os dois primos conversaram animadamente, até que Mitzi tocou no assunto mais delicado.
- Papai está te esperando, lambendo os lábios como um bichopapão. Jantei com ele no sábado; deve ter tocado no seu nome umas quinhentas vezes. Será estranho você sentar-se lá no último andar, vestindo um terno escuro e em reunião logo na segundafeira de manhã.
Antes de responder, David levantou-se, a água e a espuma escorrendo pelo corpo, e começou a ensaboar a virilha, despertando o interesse das duas moças, sobretudo de Liz, que arregalou os olhos, frustrando-se quando David voltou a sentar-se.
- Não vou para lá, Mitzi.
- O que você quer dizer com isso?
- Apenas que eu não vou para o grupo Morgan.
- Você tem de ir!
- Por quê? - David perguntou, surpreso.
- Bem, foi esse o acordo. Você prometeu a meu pai que quando saísse da Força Aérea...
- Engano seu. Não prometi nada. Ele simplesmente imaginou isso. Quando você falou há pouco sobre a reunião da segunda, percebi que não serviria para isso.
- Então, o que você vai fazer?
- Ainda não sei. Mas tenho certeza de que não quero tomar conta de realizações de outros homens. O grupo Morgan não me atrai. É algo que vovô, papai e tio Paul construíram. É muito grande e frio...
Mitzi estava avermelhada, os olhos brilhando, encantada com aquela perspectiva de rebelião e desafio aberto.
- Acharei meu próprio caminho. Deve haver algo mais interessante - concluiu o primo.
Mitzi balançou a cabeça com tal ímpeto que os óculos quase caíram.
- Você não é como eles. Você definharia e morreria em um terno.
- Vou procurar o que eu quero, Mitzi. Tem que estar em algum lugar.
David saiu do banho, o corpo avermelhado por causa da água quente, vestiu um roupão atoalhado e rumou para o quarto, seguido pelas duas moças, que se sentaram lado a lado na beirada da cama.
- O que você dirá a meu pai? - perguntou Mitzi. - Ele não deixará você escapar desta vez sem uma boa luta.
- Só que ele vai perder seu tempo.
- Você vai fugir?
- Não é bem isso - replicou David enquanto pegava no criadomudo a carteira de cartões de crédito. - Estou apenas me reservando o direito de decidir meu próprio futuro. - Foi até o telefone e discou um número.
- Para quem você está ligando?
- Para a companhia aérea.
- Aonde você vai?
- Pegarei o próximo vôo. Não sei ainda qual o destino.
- Eu lhe darei cobertura - garantiu Mitzi. - Você está fazendo a coisa certa.
- Também acho. O que importa é o meu caminho. O resto que se foda.
- Hum... Você tem tempo para isso? - Mitzi riu.
Nesse instante a garota de cabelos escuros abriu a boca pela primeira vez, sem tirar os olhos de David:
- Posso ser a primeira, por favor?
David fitou-a desconcertado, e percebeu, surpreso, que Liz estava falando sério.
Assim que deixou a ala de desembarque do aeroporto de Schipol, David respirou fundo, satisfeito com a sensação de anonimato no meio da multidão. Foi então que alguém tocou-lhe o ombro. Ele virou-se, encontrando um holandês alto que o olhava através dos óculos de aros.
- Senhor David Morgan? David ficou boquiaberto.
- Sou Frederick Van Gent, da Holland and Indonesian Stevedoring. Temos a honra de representar as linhas marítimas Morgan na Holanda. É um prazer conhecê-lo.
- Pelo amor de Deus, não! - exclamou David.
- Como, senhor?
- Desculpe-me. Prazer em conhecê-lo. - E apertou-lhe a mão, resignado.
- Tenho dois telex urgentes para o senhor. - Van Gent estendeu-lhe os papéis. - Vim de Amsterdam especialmente para entregá-los.
O primeiro era de Mitzi, que prometera dar-lhe cobertura Desculpe-me, seu paradeiro foi extraído sob tortura. Seja bravo como um leão; seja feroz como uma águia. Te amo, Mitzi.
- Traidora! - resmungou David abrindo o segundo envelope. Compreendo suas dúvidas. Sua atitude está perdoada. Confio que o bom senso o levará ao caminho do trabalho. Seu lugar aqui estará sempre aberto. Afetuosamente, Paul Morgan.
- Velho bastardo - murmurou David.
- Tem alguma resposta? - Van Gent perguntou.
- Não, obrigado. Foi bondade sua ter esse trabalho.
- Era minha obrigação, senhor Morgan. Posso ajudá-lo de alguma forma? Está precisando de algo?
- Não, obrigado.
O holandês apertou-lhe a mão, fez uma reverência e deixou-o. David encaminhou-se para o balcão da Avis.
- Boa tarde, senhor. - A recepcionista sorriu-lhe. David apresentou seu cartão da Avis enquanto dizia:
- Quero um carro potente, por favor.
- Que tal um Mustang Mach I? - propôs a loira.
- Está ótimo.
- É sua primeira visita a Amsterdam?
- Isso mesmo. Me disseram que é a cidade mais agitada da Europa, é verdade?
- Se você souber aonde ir...
- Você poderia me guiar?
A moça acabou de preencher o formulário, o ar sério, depois mudou de expressão.
- Por favor, assine aqui. A fatura será enviada daqui a alguns dias. - Então abaixou a voz: - Se tiver alguma dúvida sobre o contrato, pode me localizar neste número, após o horário comercial. Meu nome é Gilda.
Gilda dividia com três amigas um pequeno apartamento sobre o canal externo. As garotas não fizeram objeção quanto à hospedagem de David entre elas. No entanto, o que a loira tinha a oferecer-lhe era uma série de idas a discotecas e cafés onde pessoas desencontradas se juntavam para tagarelar sobre revoluções e gurus. Em dois dias David descobriu que a maconha tinha um gosto desagradável e o deixava enjoado, e que Gilda era tão cabeça oca quanto aparentava. Sentia-se mal diante dos jovens que, como ele, haviam chegado àquela cidade trazidos pelas notícias de ser um lugar descontraído e de ter a força policial mais compreensiva do mundo. Via neles os mesmos sintomas de seu próprio desajuste; no fundo, pessoas solitárias em busca de algum objetivo na vida. O frio úmido das terras baixas agiu sobre David como o espírito dos mortos no dia do juízo final - para quem nascera sob o sol quente da África, era um péssimo substituto.
Gilda não demonstrou emoção quando ele disse adeus. Assim, com o aquecedor ligado no interior do Mustang, David pegou a estrada para o sul. Na periferia de Namur, uma garota ao lado da estrada pedia carona. Apesar do frio, tinha as pernas nuas e bronzeadas, expostas através de um velho short de brim.
David reduziu a marcha e freou cantando os pneus. Deu marcha a ré até onde ela estava. A moça, de aspecto eslavo, possuía cabelos loiros e esbranquiçados, que desciam em trança até as costas. Devia ter cerca de dezenove anos.
- Você fala inglês? - perguntou ele pela janela.
O frio fazia os bicos dos seios da garota saltarem como bolinhas de gude através do tecido fino da camisa.
- Falo americano, serve?
- Pode entrar! - David abriu a porta de passageiros. A jovem atirou a mochila e o saco de dormir no banco de trás.
- Meu nome é Philly.
- O meu é David.
- Você é artista?
- Claro que não. Por que pergunta?
- O carro, a cara, as roupas.
- O carro é alugado, as roupas são roubadas e eu estou usando máscara.
- Gozador... - Philly acomodou-se no banco, dormindo quase em seguida.
David parou em uma vila próxima às florestas do Ardennes onde comprou pão fresco, carne defumada e uma garrafa de Moet Chandom. Quando voltou para o carro, a moça estava acordada.
- Está com fome? - ele perguntou.
- Claro.
Pegaram uma estrada secundária que penetrava no bosque e seguiram até uma clareira banhada pela luz dourada do sol. Philly saiu do carro e olhou em volta, entusiasmada.
- Excitante, Davy, excitante!
David serviu o champanhe em copos de papel, depois cortou a carne com um canivete enquanto Philly partia o pão. Sentaram-se lado a lado em um tronco caído.
- Que lugar quieto e cheio de paz, não? Nem parece uma terra de matanças. Mas foi aqui que os alemães fizeram o último grande esforço, sabia?
- Eu vi o filme, com Henry Fonda e Robert Ryan - respondeu Philly enquanto comia um sanduíche.
- Depois de tantas mortes e outras coisas horrorosas, devia-se fazer algo bonito aqui.
A loira bebericou um gole de champanhe antes de ir até o carro para pegar o saco de dormir.
- Algumas coisas são para se falar, outras para se fazer - declarou Philly, estendendo o saco de dormir sobre a grama.
Por um breve momento apenas, em Paris, pareceu que aquele relacionamento poderia ter algum significado. Alugaram um quarto com banheiro em uma pensão pequena e aconchegante, perto da Gare St. Lazare, e passaram o dia andando pelas ruas, da Concorde até a Etoile, visitando a torre Eiffel e voltando a Notre Dame. Jantaram na calçada de um café e, na metade da refeição, atingiram um beco sem saída emocional, dando-se conta de repente de que não tinham assunto. Eram dois estranhos em tudo, menos na cama. Passaram a noite juntos, fizeram amor mecanicamente e pela manhã, quando David saiu do banheiro, Philly sentou-se na cama e disse:
- Você vai partir, não é mesmo? Ele assentiu com um gesto.
- Você tem dinheiro? - Ela balançou a cabeça negativamente, e ele pegou duas notas de cem francos e colocou-as no criadomudo. - Pagarei a conta lá embaixo. Cuide-se.
Paris não tinha mais nada para oferecer-lhe. David tomou a estrada rumo ao sul, outra vez em busca do sol. O céu estava carregado de nuvens escuras, e começou a chover antes da saída para Fontainebleau, uma chuva torrencial que alagava o concreto da estrada e obstruía o pára-brisa de tal forma que os limpadores não davam conta e não se tinha uma boa visão.
David sentia-se só e frustrado por sua incapacidade de comunicação com qualquer semelhante. Embora o controle de tráfego tivesse reduzido a velocidade por causa da chuva, ele avançava rapidamente, os pneus derrapando na superfície escorregadia. Daquela vez o efeito calmante da velocidade não funcionou - quando saiu da chuva, ao sul de Beaune, a angústia da solidão ainda o perseguia.
Entretanto, os primeiros raios de sol melhoraram seu humor, sobretudo quando avistou ao longe, sobre os muros de pedra e as linhas verdes dos parreirais, uma biruta flutuando como uma salsicha branca presa ao mastro. Dois quilômetros adiante encontrou a saída da auto-estrada e a placa "Clube Aeronáutico de Provence". Seguiu-a até um pequeno e bonito campo de pouso acomodado no meio dos parreirais. Um dos aviões existentes ali era um Marchetti modelo F260. David desceu do Mustang e observouo como um bêbado contemplaria o primeiro trago do dia.
O francês que tomava conta do escritório do clube não se impressionou quando David mostrou-lhe seu brevê e licenças, e declarou que não alugaria o Marchetti. Ele poderia escolher qualquer outro avião, menos aquele. David acrescentou uma nota de 500 francos à pilha de documentos, uma cédula que desapareceu rapidamente no bolso do francês. Ainda assim o homem não o deixaria voar sozinho no Marchetti, insistindo em acompanhá-lo no assento do instrutor.
David executou uma rápida acrobacia antes de cruzar a cerca do campo. Foi um ato de provocação, uma pequena vingança contra a desconfiança do sujeito. O francês soltou uma exclamação de espanto, paralisado no assento, mas teve o bom senso de não interferir nos controles. David completou a manobra e logo girou em outro sentido, com a ponta da asa passando a pouco mais de quinze metros do topo das parreiras. O homem relaxou a olhos vistos, reconhecendo o toque de mestre. Quando David pousou uma hora depois, ele dirigiu-lhe um sorriso caloroso.
- Formidable! - exclamou, e então convidou-o para almoçar.
A agradável sensação do vôo e o aroma do alho da comida permaneceriam durante todo o trajeto até a Espanha.
Em Madrid, teve a impressão de que algo estava prestes a acontecer. Chegou à cidade durante a noite, a tempo de pegar a primeira tourada da temporada. Ele conhecia várias obras da literatura romântica sobre o assunto, incluindo Hemingway e Conrad, e se perguntava se não encontraria naquele modo de vida alguma coisa que o atraísse - a beleza, o glamour, a excitação, tão bem retratados nos livros. Pretendia avaliar isso ali, na grande Plaza de Toros, e então, se continuasse empolgado, ir até o festival de Pamplona no fim da estação.
David hospedou-se no Gran Via, onde a elegância de outrora transformara-se em simples conforto. O porteiro arranjou-lhe entradas para o dia seguinte. Cansado da longa viagem, ele deitou-se cedo, acordando recuperado e curioso. Seguiu direto para a arena e parou o Mustang entre os ônibus de turismo que lotavam o estacionamento.
O aspecto externo da construção surpreendeu-o na medida em que lembrava o templo de alguma religião bárbara e pagã, abarrotado de balcões e incrustações de telhas de cerâmica. O lado de dentro era igual ao que já vira em filmes e fotografias. Areia fina e limpa na arena, bandeiras contra o céu azul, uma orquestra tocando músicas desarmônicas, caprichando nos refrões... e o excitamento da multidão.
A empolgação nas arquibancadas era muito maior do que em competições de qualquer outra natureza, mesmo jogos internacionais de futebol. A turba gritava, se agitava, entrava em delírio ao ritmo das músicas.
David sentou-se entre um grupo de jovens australianos que usavam sombreros e portavam odres de couro de bode com vinho vagabundo. As garotas gritavam e saracoteavam sem parar. Uma delas esticou o braço e tocou o ombro de David, oferecendo-lhe o recipiente de vinho. Era muito bonita, do tipo dengosa, e seu olhar insinuava promessas que iam além do vinho barato. Fazendo pouco-caso de ambos os convites, ele pegou uma lata de cerveja de um dos vendedores. A péssima experiência amorosa em Paris ainda estava muito fresca em sua memória. A australiana lançou um olhar de reprovação para a cerveja e virou-se sorrindo para os companheiros.
Entre os retardatários que buscavam assento nas arquibancadas, um jovem casal de pouco mais de vinte anos chamou a atenção de David pela aura de companheirismo e de amor que exalavam. Os dois subiram de braços dados e se sentaram uma fileira atrás dele, do outro lado do corredor. A moça, alta e de pernas compridas, usava botas pretas e calça escura, sobre a qual vestia uma jaqueta verde-maçã muito bem talhada e de bom gosto. Seus cabelos negros brilhavam ao sol como carvão recém-lavrado e desciam até os ombros. Tinha o rosto largo e bronzeado, a boca grande e os olhos cor-de-mel - entre o marrom-escuro e o dourado. O rapaz que a acompanhava, alto, pele morena e musculoso, provocou em David uma pontada de inveja. Que filho da puta de sorte, pensou ele, desviando o olhar ao ver que os dois cochichavam.
O espetáculo começava. Primeiro houve a parada dos toreadores que saíram ao sol com suas roupas cheias de bordados e lantejoulas, mais parecendo escamas de um réptil exótico. A orquestra saudou-os fazendo uma enorme algazarra. As chaves dos currais foram jogadas na areia, e as capas dos toreadores colocadas na barreira perto de suas favoritas. Em seguida os homens se retiraram da arena.
Aproveitando a pausa, David voltou-se discretamente para o casal. Sobressaltou-se ao perceber que ambos o encaravam. A moça tinha a cabeça apoiada no ombro do companheiro, os lábios quase tocando sua orelha. David sentiu um frio no estômago ao fitar seus olhos. Logo, porém, ela desviou o olhar, com uma expressão constrangida, embora seu acompanhante continuasse a encarar David. Encabulado, este virou-se em direção à arena.
O touro acabava de entrar em cena, correndo desabalado pela areia branca. Era um animal bonito, de pêlos negros e brilhantes, músculos rígidos. A multidão começou a gritar ao vê-lo perseguir uma bandeira vermelha pela arena. Os toreadores obrigaram-no a fazer um circuito de capa em capa, deixando-o exibir seu tamanho, seu estilo, os chifres pontiagudos.
De repente, assoma à arena o cavalo, saudado em tom triunfante pelos trompetes, embora se tratasse de um animal esquálido, aparentemente velho e com anteolhos a fim de que não visse a fera que iria enfrentar. Vestido com uma espécie de saia, mal parecia suportar o peso do cavaleiro armado que o montava. O arremedo de beleza do espetáculo cessava exatamente ali.
Com a cabeça abaixada, o touro investiu contra o pobre animal, jogando-o de encontro à barreira. Entretanto, o cavaleiro enfiou-lhe a lança no dorso, apoiando nela todo o seu peso, até que um fluxo de sangue espesso, escuro como óleo cru, escorresse pelas suas pernas.
Ainda assim, o touro deu uma marrada contra as almofadas que cobriam o flanco do cavalo, levantando-as como cortinas de teatro. No momento seguinte corneou com os chifres aguçados aquele corpo esquelético, abriu-lhe a barriga, fazendo com que suas entranhas aflorassem.
Horrorizado, David ouviu a multidão entrar em frenesi, enquanto o cavalo, caído sobre a areia, era forçado a levantar-se mediante aperto nos testículos e torcilhões na cauda. Ao mesmo tempo em que o retiravam da arena, os homens voltavam a trabalhar o touro. De maneira lenta, torturante, reduziram aquela besta magnífica a um amontoado de carne ensangüentada, suja de baba que lhe saía dos pulmões.
David queria gritar para que cessassem com aquilo, porém sentia-se culpado por também participar daquele ritual escabroso. O touro estava parado no centro da arena, a cabeça baixa, o focinho quase tocando a areia. Sangue e baba enchiam-lhe as narinas e a boca. O ronco de sua respiração parecia mais alto que os gritos da multidão. Tinha as patas traseiras molhadas de alto a baixo por um líquido amarelo que lhe escorria do ânus.
Para David, aquilo era a humilhação total. Sem perceber, ele estava falando alto:
- Parem com isso! Por favor, parem!
O homem de roupas brilhantes e sapatilhasapareceu para dar o golpe de misericórdia, só que a ponta de sua espada atingiu os ossos do animal e saltou-lhe da mão. O touro, mal se sustentando nas pernas, vomitava sangue.
David, um pouco recuperado do choque, pôs-se a gritar a plenos pulmões:
- Parem com isso, seus filhos da puta!
O homem lá embaixo continuava sem sucesso a tentar aplicar o golpe final, e a cada vez a espada saltava de suas mãos. Por fim, o touro caiu por si próprio, enfraquecido pela perda de sangue, impotente diante da tortura e do sofrimento. Ainda fez um esforço para se levantar, mas foi em vão - os homens o mataram ali mesmo, com uma punhalada na nuca. Uma parelha de mulas rebocou-o para fora, deixando para trás um rastro de sangue na areia.
Atordoado diante de tamanha crueldade, David virou-se devagarinho na direção da garota. O companheiro dela aconchegava sua cabeça e lhe cochichava algo ao ouvido, procurando confortá-la. O rosto da moça, molhado de lágrimas, exibia uma expressão confusa, misto de incompreensão, raiva e impotência. O rapaz ajudou-a a levantar-se e, como se consolasse uma viúva após o sepultamento do marido, conduziu-a para a saída.
David sentiu-se um estranho no meio da multidão que ria e se divertia com o espetáculo. Definitivamente, não tinha nada a ver com aquela turba. Ele também já vira o suficiente, e jamais iria para o festival de Pamplona. Ergueu-se e seguiu para fora da arena, ansioso por falar com a garota, por dizer-lhe que partilhava de sua desolação. Mas, quando chegou ao estacionamento, o casal já estava de saída em um velho e surrado Citroen, que arrancava soltando fumaça e matraqueando como um cortador de grama.
Uma estranha sensação de perda abateu-se sobre David, ao vêlos desaparecer no tráfego intenso. Porém, depois, ele encontrou o velho carro novamente, quando se dirigia para o sul. O veículo parecia em pior estado do que antes, recoberto de poeira, com as lonas de um dos pneus traseiros à mostra e a suspensão arrebentada em um lado, dando-lhe o aspecto de um bêbado. Estava estacionado em um posto de gasolina na periferia de Zaragoza, na estrada para Barcelona.
David saiu da pista e parou perto das bombas. Um frentista estava enchendo o tanque do Citroen, sob a vigilância do jovem da arena. A garota não se encontrava ali, mas sim em uma mercearia do outro lado da rua, aparentemente pechinchando com uma velha do outro lado do balcão. Mesmo estando de costas para ele, David reconheceu seus cabelos escuros, agora presos no alto da cabeça. Ele atravessou a rua e entrou na loja, sem saber ao certo o que iria fazer, apenas agindo por impulso.
A morena trajava um vestido curto, florido, e calçava sandálias abertas. Um xale nos ombros era a única concessão ao ar frio. Sua pele, além da maciez típica da juventude, possuía um brilho bem característico. David aproximou-se no momento em que ela acabava de comprar figos secos. Aspirou o perfume suave que emanava de seus cabelos, mal resistindo à tentação de pressionar o rosto contra eles.
Quando a moça virou-se, sorrindo, de imediato reconheceu-o - afinal de contas, David tinha um rosto marcante para as mulheres. Perturbada, a garota assumiu um ar impassível e o encarou por um longo tempo, os lábios levemente entreabertos, os olhos mostrando um brilho discreto. Aquela calma peculiar era uma das qualidades que ele viria a conhecer muito bem com o correr do tempo.
- Vi você em Madrid - comentou ele. - Na praça de touros.
- É verdade - ela assentiu, a voz neutra.
- Você estava chorando.
- Você também - retrucou ela, com um leve sotaque estrangeiro.
- De jeito nenhum - afirmou David.
- Você estava chorando... chorando por dentro. - A garota estendeu-lhe o pacote de figos. - Experimente um - disse, com um sorriso cálido e amistoso.
David aceitou a fruta e, em silêncio, acompanhou a morena até a porta. Assim que alcançaram a calçada da mercearia, foram avistados pelo rapaz do Citroen que, encostado nocapô do carro, estava acendendo um cigarro. No instante em que reconheceu David, o jovem mudou de expressão e jogou fora o fósforo aceso.
Um rumor abafado e um ruído de deslocamento de ar anunciaram o fogo em uma pequena poça de gasolina derramada no concreto. As chamas logo se aproximaram da traseira do Citroen.
Ágil como um raio, David disparou rumo ao outro lado da rua.
- Tire o carro de perto das bombas, seu idiota - gritou, fazendo com que o motorista saísse do estado de choque.
Indiferente às chamas que ameaçavam o veículo, David pôs o braço dentro do carro, soltou o freio de mão e colocou a marcha em ponto morto. Com o auxílio do rapaz, empurrou-o até uma área vazia ao lado do posto, enquanto uma pequena multidão surgia ao redor gritando palavras de encorajamento e sugestões.
Ainda conseguiram salvar a bagagem do banco de trás antes que as labaredas envolvessem o carro, e o frentista chegasse tardiamente com um extintor. Para deleite dos curiosos, o empregado cobriu o pequeno veículo com uma nuvem de espuma. Enquanto os transeuntes se dispersavam, rindo e comentando a performance do bombeiro amador, os três jovens contemplavam a carcaça chamuscada do velho Citroen.
- Acho que foi melhor assim... essa pobre máquina já tinha dado o que tinha de dar - comentou a garota. - É como sacrificar um cavalo com a perna quebrada.
- Tinha seguro? - David quis saber. O rapaz caiu na risada.
- Você deve estar brincando; quem seguraria isso? Paguei apenas cem dólares por ele.
Então a moça dirigiu-se ao companheiro em uma língua estrangeira, de tons guturais, que tocou fundo a memória de David. Embora tivesse entendido o que ela dissera, ele não o demonstrou.
- Precisamos encontrar alguém hoje à noite em Barcelona. É importante - esclareceu a jovem, depois, em inglês.
- Venham comigo - propôs David.
Após colocarem a bagagem no Mustang, os três se acomodaram no veículo. O rapaz, que se chamava Joseph, ou Joe, ficou no banco traseiro. Sua companheira, Debra, sentou-se ao lado de David, os joelhos juntos e as mãos no colo. Com uma olhada rápida, ela examinou o interior do carro: desde as peças caras do painel, até a câmara Nikon, os binóculos Zeiss no porta-luvas e a jaqueta de cashmere jogada no banco. Então ela olhou para o motorista e pareceu notar pela primeira vez a camisa de seda pura e a fina abotoadura Piaget de ouro.
- Deus abençoa os pobres - ela murmurou -, mas ainda deve ser agradável ser rico.
David gostou da observação. Afinal, queria impressioná-la, queria que ela fizesse algumas comparações entre ele e o garotão musculoso no banco de trás.
- Vamos para Barcelona - disse ele. Debra olhou por sobre o ombro para Joe.
- Você está confortável? - perguntou na mesma língua gutural que usara antes.
- Se não estiver, pode vir correndo atrás do carro - disse David no mesmo idioma.
Debra o encarou surpresa.
- Puxa, você fala hebraico.
- Não muito bem - David admitiu. - Esqueci muita coisa. - E mentalmente ele viu a si mesmo aos dez anos de idade, lutando para aprender uma língua estranha e misteriosa, com uma escrita de trás para a frente, um alfabeto que parecia composto de bastões e onde a maioria dos sons se formava no fundo da garganta, como um gargarejo.
- Você é judeu? - perguntou Debra num tom sério.
- Não, não. - Ele riu. - Sou um monoteísta não praticante, meio convencido, crescido e educado na tradição cristã protestante.
- Então como aprendeu hebraico?
- Minha mãe queria. Ela morreu quando eu ainda era garoto. Depois disso, não me preocupei mais com o assunto.
- Sua mãe era judia?
- Sim, claro, mas meu pai era protestante. Aconteceu o diabo quando se casaram. Todos foram contra, mas eles seguiram em frente.
Debra virou-se para Joe.
- Você ouviu? Ele é um de nós.
- Ora, deixe disso! - David protestou, ainda rindo.
- Por que não nos visita em Jerusalém qualquer dia desses? - convidou Joe.
- Vocês são israelenses? - David perguntou com interesse renovado.
- Ambos somos sabras, nascidos lá - declarou Debra, com uma nota de orgulho na voz. - Estamos aqui de férias.
- Deve ser um país interessante - comentou David.
- Você precisa ir lá e descobrir. Você tem o direito de voltar. - Em seguida Debra mudou de assunto: - Essa máquina não anda mais rápido? Precisamos estar em Barcelona por volta das sete.
Agora, reinava entre os três uma atmosfera de tranqüilidade, como se uma barreira invisível tivesse sido removida. Haviam deixado a cidade para trás, e a estrada abria-se para o vale do Ebro, em direção ao mar.
- Bem, apaguem os cigarros e apertem os cintos - disse David, pisando firme no acelerador.
Ereta no assento, Debra exibia um sorriso à medida que as curvas passavam, dando lugar a pequenos trechos em reta. O brilho de seus olhos indicava que a velocidade a afetava do mesmo modo que o fazia com David.
Ele estava concentrado em manter a máquina em sua faixa de asfalto, mas ao mesmo tempo tinha os pensamentos voltados para aquela bela figura feminina que se encontrava ao seu lado.
Fizeram uma parada para um lanche. Compraram queijo, pão e uma garrafa de vinho em uma cantina e acomodaram-se no parapeito de uma ponte de pedra sobre um riacho de águas borbulhantes. A coxa de David tocou a de Debra quando se sentaram lado a lado. Ela não fez nenhum movimento para se afastar, embora suas faces estivessem um pouco mais vermelhas que o natural.
Difícil era entender a atitude de Joe. Mesmo parecendo ciente de que David estava paquerando sua garota, ele estava se divertindo como uma criança, jogando pedras no riacho. David preferiria que o novo amigo oferecesse alguma resistência, o que daria maior prazer à sua conquista.
Ao se curvar para pegar uma fatia de queijo, David roçou o braço de leve nos seios de Debra. Joe sequer notou o gesto. Vamos, seu gorila, pensou David, lute por ela. Não fique aí parado.
David ansiava por se testar contra aquele macho. Joe era alto, forte e, pela maneira de se mover, aparentava possuir boa coordenação e autodomínio. Tinha o rosto um tanto rude, feio até, mas não eram poucas as mulheres que se fascinavam por homens daquele tipo. Além do mais, seu sorriso preguiçoso, em contraste com os olhos aguçados, escondiam algum mistério...
- Você quer guiar, Joe? - David ofereceu de repente. O rapaz não titubeou:
- Não se incomode se eu aceitar...
David arrependeu-se do impulso assim que se viu acocorado no pequeno banco traseiro. Durante os primeiros cinco minutos, Joe guiou devagarinho, testando os freios, mudando de marchas para sentir o curso e a precisão do câmbio, acelerando em uma ou outra curva a fim de verificar a estabilidade e detectar qualquer tendência à derrapagem.
Passado o período de teste, Joe agarrou firme o volante, pisou fundo no acelerador e deixou a máquina rugir como uma fera no asfalto. Salvo algumas exclamações de Debra, ninguém falou ao longo do percurso até o estacionamento do aeroporto de Barcelona. Quando o motor foi desligado, todos ficaram em silêncio por alguns segundos, até que David murmurou:
- Você é um filho da mãe!
O casal riu, divertido. David sentiu uma ponta de arrependimento por estar paquerando a garota, justamente porque começava a gostar de Joe, a apreciar a lentidão deliberada de seu modo de falar e de se movimentar, começava a gostar do seu sorriso largo que tanto demorava para atingir o esplendor.
Como estavam uma hora adiantados em relação ao vôo que iriam aguardar, sentaram-se a uma mesa do restaurante com vista para a pista de pouso. Debra ficou ao lado de Joe e colocou a mão em seu braço, um gesto que deixou David bastante frustrado.
Um jatinho particular aterrissava na pista no momento em que o garçom servia a sangria que haviam pedido.
- Um dos novos jatos executivos da Gulfstreams. Ouvi dizer que são uma beleza - comentou Joe, antes de listar as especificações técnicas do avião.
- Você sabe algo sobre aviação? - David perguntou.
- Alguma coisa...
- Joe está na Força Aérea - explicou Debra prontamente.
- Debra também - acrescentou o rapaz. - Ela é tenente.
- Da reserva - completou ela. - Mas Joe é piloto. Piloto de combate.
David limitou-se a balançar a cabeça, estupefato. Claro! O olhar límpido e firme de Joe era a marca característica de um piloto de combate. Por que David não percebera isso antes? E se ele era piloto israelita, na certa teria participado de um número formidável de operações. Afinal, quase sempre que decolavam estavam em alguma missão.
- De que esquadrão você é, Phantom?
- Ah, não brinque! - Joe torceu os lábios. - Manejar um Phantom não é voar, é operar um computador. Não é o meu caso. Você já ouviu falar dos Mirage?
- Sim - disse David, relutante.
- Bem, eu piloto Mirage.
David desatou a rir.
- O que aconteceu? Qual foi a graça?
- Nenhuma. Uma simples coincidência. Eu também piloto Mirage. Tenho mais de mil horas de vôo.
Os dois amigos se fitaram, cada um mais surpreso que o outro. Pediram outra garrafa de sangria, que Joe fez questão de pagar.
- Bem, o mistério foi esclarecido. O que você acha, Debra? Na metade da segunda jarra, David interrompeu a conversa que até aquele momento fora exclusivamente sobre aviação.
- A quem vamos encontrar? Atravessamos meia Espanha e ainda não sei quem é o sujeito.
- O sujeito é uma garota - explicou Joe, rindo.
- Se chama Hannah - completou Debra. - E é a noiva dele. Ela é enfermeira no hospital Hadassah, e conseguiu uma semana de folga.
- Sua noiva? - David estava espantado.
- Vão se casar em junho - continuou Debra. - Levou dois anos para ele se decidir.
- Sua noiva? - repetiu David, olhando de um para o outro com uma expressão absolutamente surpresa.
Ao perceber a confusão que ele fizera, Debra não escondeu o riso.
- Quer dizer que você pensou que eu e Joe... David fez que sim antes mesmo que ela concluísse.
- Ele é meu irmão - Debra esclareceu, rindo. - Joseph Israel Mordecai e Debra Ruth Mordecai, irmão e irmã.
Hannah era uma garota simpática, de cabelos cor de cobre, com franja. Tinha quase a mesma altura de Joe, mas ele a levantou nos braços à saída da alfândega e a rodopiou no ar.
Por pura sorte o Mustang comportou a bagagem de todos e mais os quatro passageiros.
- Temos uma semana de folga! - exclamou Debra. - Uma semana inteira! O que vamos fazer?
Descartaram de cara Torremolinos, que ficava muito ao sul e se tornara um centro de badalação desde que Michener escrevera The Drifters. Acabaram optando, por sugestão de Hannah, por um lugar chamado Cólera, localizado no litoral, perto da fronteira.
No meio da manhã seguinte já estavam lá. Ainda era muito cedo para a temporada, de modo que não tiveram problemas para encontrar acomodações em um pequeno hotel. As duas moças ficaram juntas, porém David insistiu em ocupar o quarto sozinho - a privacidade era fundamental para o que tinha em mente em relação à irmã de Joe.
Debra vestiu um biquíni azul tão pequeno que mal lhe cobria os quadris exuberantes. Sua pele era lisa, bronzeada, verdadeiramente encantadora. Tinha pernas longas, cintura fina e era uma boa nadadora, tanto que seguiu David sem titubear, nadando no mesmo ritmo até um aglomerado de rochas trezentos metros mar adentro.
Tratava-se de uma pequena ilha deserta, onde encontraram um local plano, abrigado do vento e exposto ao sol. Deitaram-se lado a lado, os dedos entrelaçados. Havia muito o que descobrirem um do outro, e assim conversaram indiferentes ao passar do tempo, preocupados apenas em se conhecerem melhor.
O pai de Debra fora um dos mais jovens coronéis da Força Aérea dos Estados Unidos. Participara da Segunda Guerra Mundial e posteriormente emigrara para Israel, onde permanecia desde então e agora ocupava o posto de major-general. A família vivia na parte velha de Jerusalém, em uma casa bastante antiga porém igualmente agradável.
Debra lecionava inglês na Universidade Hebraica de Jerusalém. Seu sonho era dedicar-se à literatura. Inclusive já publicara um pequeno volume de poesias. Essa informação fez com que David a encarasse com muito mais respeito, pois se tratava de alguém que tinha clareza sobre o que pretendia da vida.
Olhos fechados por causa do sol, Debra continuava a falar enquanto David a fitava cada vez com maior interesse. Ela não era muito bonita, mas em compensação transbordava de sensualidade. Com certeza ele a possuiria, é claro, embora não tivesse tanta pressa. No momento contentava-se em ouvir sua voz agradável cujo sotaque denunciava leve influência norte-americana. Ela confessou que via a poesia apenas como um começo, pois planejava escrever um romance abordando a juventude em Israel. Já tinha até o esboço pronto. E aproveitando a deixa, pôs-se a falar sobre sua terra, sobre as pessoas que lá viviam. Um sentimento de nostalgia tocava o íntimo de David à medida que escutava os relatos sobre o seu povo. Ao mesmo tempo, sentia-se incomodado por não ter qualquer plano quanto ao futuro e estar diante de alguém tão seguro de si mesmo. Passado algum tempo, Debra abriu os olhos e sorriu.
- Acho que já falei demais - disse, encarando-o com atenção.
Com os cabelos fofos por causa do vento, David também a fitava, o ar sério, os olhos levemente cerrados por causa da claridade. Debra tocou-lhe o rosto e não resistiu a um elogio.
- Você é muito bonito, David. É a pessoa mais bonita que já vi até hoje. - Ela deslizou o dedo por seu pescoço, pelo peito, divertindo-se em brincar com os pêlos escuros que o recobriam.
David inclinou-se sobre ela e colou os lábios nos seus, num beijo terno e apaixonado. Enquanto Debra rodeava-lhe a nuca com os braços, ele puxava a alça do seu biquíni, tentando desnudar-lhe os seios. Apesar de encontrar resistência, insistiu no gesto até ouvi-la suspirar de prazer. Então, contemplou com olhos ávidos o busto firme, os mamilos rosados que se intumesciam ao seu toque.
Para sua surpresa - pois nunca recebera uma recusa - de repente Debra empurrou-o com força para o lado, fazendo-o perder o equilíbrio e rolar sobre a pedra, arranhando o cotovelo. Indiferente à expressão de raiva que tomava conta do rosto dele, ela se levantou bruscamente, vestiu o biquíni e voltou para a água, dizendo:
- Vou vencê-lo em uma corrida até a praia.
David ignorou o desafio, preferindo retornar dos recifes seguindo seu próprio ritmo. Ao reencontrá-lo na praia, Debra encarou-o por um momento e então sorriu.
- Quando você emburra parece um guri de dez anos - disse, sem se preocupar com a reação dele.
David continuava aborrecido à noite, quando foram à discoteca "2001 A.D.", dirigida por dois jovens ingleses, que ficava de frente para o mar. Acomodaram-se a uma mesa grande, ao lado de outra onde havia dois casais. Quando uma das moças da mesa vizinha olhou de maneira insinuante para David, Debra ignorou sua atitude fria e o convidou para dançar.
Sem conversarem, entregaram-se ao ritmo quente da música, executando os movimentos com tamanha graça que chamaram a atenção dos outros dançarinos. Aos poucos, Debra encostou o corpo no dele. Uma força primitiva parecia fluir dela, fazendo com que David se convencesse de que jamais seria tranqüilo um relacionamento com aquela mulher.
Terminada a música, os dois deixaram Joe e Hannah entretidos com uma garrafa de vinho e saíram no silêncio da noite em direção à praia. O luar iluminava os rochedos que se seguiam aqui e ali entre a areia e refletia-se nas águas do mar. Caminharam descalços até alcançarem um local escondido entre as rochas. Assim que se beijaram, David decidiu avançar nas carícias achando que a atitude dela era um convite para continuar onde haviam parado à tarde.
Desta vez Debra afastou-o de si indignada.
- Será que você nunca aprende? Por que insiste nisso sempre que ficamos a sós?
- Qual o problema? - David estava aturdido diante desse novo revés. - Estamos no século vinte. Esse negócio de querer bancar a virgem inocente está totalmente fora de moda.
- E os filhinhos de papai deveriam crescer antes de tentar fazer certas coisas.
- Está bem - retrucou ele, furioso. - Só não vou aceitar ser insultado por uma donzela profissional!
- Então por que não vai embora?
- É uma boa idéia! - Virou-se, pegando o caminho de volta à discoteca.
Debra ainda pensou em segui-lo, porém o orgulho a impediu de sair do lugar. Ficou encostada em uma pedra, a cabeça cheia de idéias conflitantes. Se por um lado o recriminava por ter avançado demais, ao mesmo tempo estava segura de que o queria... Seria seu primeiro caso depois de Dudu. Fazia três anos que o perdera, mas ainda continuava a pensar naquele homem. Talvez eu devesse ir atrás de David, refletiu ela, e contar-lhe o que ocorreu com Dudu, pedindo-lhe para ser paciente e ajudar-me... Em vez disso, porém, Debra voltou lentamente para o hotel.
A cama de Hannah estava vazia. Com certeza ela estaria com Joe, fazendo amor. Eu também deveria estar com David, pensou, tristonha. Afinal de contas, Dudu estava morto, e de nada adiantava privar-se da companhia de outro homem, sobretudo quando se sentia tão atraída por ele...
David parou à entrada da discoteca e perscrutou a penumbra do ambiente. Apesar da fumaça que enchia o salão, divisou as duas moças, agora desacompanhadas, na mesa ao lado da sua. Joe e Hannah já tinham ido embora. Quando ele atravessava a pista de dança, uma das garotas, uma loira alta e esbelta, sorriu em sua direção, depois de se certificar de que ele estava sozinho. No instante seguinte, os dois dançavam coladinhos.
- Não quer me convidar para o seu quarto? - propôs David, no que foi imediatamente atendido pela loira.
O dia estava claro quando David retornou a seus aposentos. Surpreso consigo mesmo por ainda continuar bravo, barbeou-se, fez as malas e desceu com elas para a recepção.
Debra, Joe e Hannah saíam do salão de café, vestidos em roupas de banho, quando de repente o avistaram.
- David! - Joe chamou. - Para onde você vai?
- A Espanha já não tem nada para me oferecer - disse David. - Estou seguindo um bom conselho; vou embora. - Com uma ponta de perversa satisfação, percebeu a expressão de dor nos olhos de Debra.
Tanto Joe quanto Hannah viraram-se para ela, que conseguiu controlar-se e forçar um sorriso enquanto estendia a mão para David.
- Obrigada pela ajuda, David. Lamento sua partida. Foi agradável conhecê-lo. - Então sua voz reduziu-se a um sussurro: - Espero que encontre o que está procurando. Boa sorte. - E virou-se rapidamente, tomando o rumo do quarto. Hannah seguiu-a, o rosto demonstrando preocupação.
- Até logo, Joe - disse David.
Eu levo sua mala.
Não se incomode...
- Faço questão. - O rapaz pegou a bagagem da mão dele e a levou para o Mustang. - Vou com você até colina, depois volto a pé. - Sentou-se no banco de passageiros. - Preciso me exercitar.
Assim que o carro entrou em movimento, Joe acendeu um cigarro e jogou o fósforo pela janela.
- Não sei bem o que aconteceu com você, Davy, mas imagino. Debra passou por uma situação difícil. Nos últimos dias ela estava diferente. Parecia feliz, e pensei que tudo fosse dar certo.
David permaneceu em silêncio, sem demonstrar se o assunto lhe interessava.
- Ela é uma pessoa muito especial, Davy, e não por ser minha irmã. Por isso gostaria de lhe dizer algumas coisas sobre ela, apenas para ajudar você a entendê-la melhor.
Haviam chegado ao topo da colina. David pôs o carro em ponto morto, mantendo o motor em funcionamento, e contemplou o azul-brilhante do mar.
- Debra estava noiva - continuou Joe num tom suave. - Era um casal bonito, os dois trabalhavam na universidade. Ele estava na reserva, mas foi convocado e acabou servindo no Sinai. Morreu dentro de um tanque que explodiu.
David encarou o amigo, mudando de expressão.
- Ela sofreu muito - prosseguiu Joe. - A primeira vez que a vi realmente feliz e relaxada foi nesses últimos dias. - Ele sacudiu os ombros e riu. - Desculpe-me por contar-lhe a história da família, Davy. Apenas achei que pudesse ajudar. Apareça para nos visitar. Não esqueça que também é o seu país. Gostaria de mostrá-lo para você.
David apertou-lhe a mão.
- Vou visitá-los - prometeu.
- Shalom.
- Shalom, Joe. Boa sorte. - Pouco depois, David acelerava o Mustang, deixando Joe parado na beira da estrada.
Havia uma escola para aspirantes a pilotos de Fórmula 1 em uma descuidada pista de concreto perto de Ostia, no caminho para Roma. O curso durava três semanas e custava quinhentos dólares.
Hospedado no Excelsior, na Via Veneto, David deslocava-se diariamente para a pista. Chegou a completar o curso, mas desde a primeira semana descobrira que não era o que queria. Depois de ter voado livremente nos céus, as limitações impostas pela pista o oprimiam; além do mais, o barulhento e poderoso Tyrell Ford jamais substituiria o empuxo de um interceptador a jato. Embora não tivesse a mesma dedicação que outros de sua classe, o talento natural para a velocidade acabou por colocá-lo entre os primeiros da turma. Então recebeu uma proposta para pilotar na equipe que uma nova companhia estava financiando. Ofereceram-lhe um salário ridículo, mas, como prova de seu desespero, por pouco não assinou um contrato para a temporada. Mudou de idéia na última hora e prosseguiu viajando.
Passou uma semana em Atenas, sondando os iates clubes do Pireu e de Glyfada, pois estudava a possibilidade de comprar uma lancha a motor e alugá-la para passeios pelas ilhas. A perspectiva do sol, do mar e de belas mulheres parecia tão atraente quanto os barcos em si. Em uma semana, porém, descobriu que não tinha vocação para dirigir uma casa flutuante para um bando de turistas aborrecidos, queimados pelo sol e enjoados.
No seu décimo sétimo dia em Atenas, a Sexta Frota norteamericana ancorou no porto. David sentou-se em um dos cafés de frente para o mar e, bebericando um ouzo, contemplou os porta-aviões ancorados através de binóculos. Na grande cobertura de um deles estavam enfileirados Crusader e Phantom, com as asas dobradas. Uma sensação de mal-estar invadiu-lhe o corpo. Como seria possível ter rodado meio mundo e não haver encontrado nada que lhe agradasse? Deixou o binóculo de lado e olhou para o alto. As nuvens brilhavam como prata contra o azul do céu. Pegou o copo do ouzo que o sol esquentara e tomou um gole.
- Apesar de tudo, o melhor ainda é o lar - disse em voz alta, enquanto lhe vinha à mente a imagem de Paul Morgan sentado em seu escritório no alto do prédio de aço e vidro.
Como um pescador paciente, o velho jogava suas iscas pelo mundo, e naquele momento a linha de Atenas estava sendo puxada. Com que satisfação ele não estaria recolhendo a linha, trazendo o sobrinho de volta para seu raio de influência... Droga, eu poderia voar nos Impala, pensou David, ou mesmo no jatinho executivo, se pudesse tirá-lo de Barney!
Levantou-se de supetão, sentindo-se cada vez mais inseguro. Tomou um táxi e voltou para o hotel, na praça Syndagma. Estava tão desanimado que aceitou o convite para jantar com John Dinopoulos, representante do grupo Morgan na Grécia, um homem elegante, sofisticado, dono de um rosto bronzeado e sem rugas, e com mechas grisalhas nos cabelos.
John chamara também uma estrela de faroestes italianos para acompanhá-los. Era uma jovem de seios grandes e olhos escuros, que prendeu a respiração quando o anfitrião apresentou David como um milionário dos diamantes da África, embora esta não fosse a mais importante área de atuação do grupo Morgan.
Aproveitando a noite cálida, sentaram-se no terraço do Dyonisius, um restaurante que ficava encravado na rocha viva da colina de Lycabettus, sob a igreja de St. Paul. Pelo caminho em ziguezague que saía desta, uma procissão de fiéis carregando tochas dirigia-se à floresta de pinheiros, murmurando uma cantoria suave, que a brisa da noite levava até o restaurante. Ao longe, as colunas da Acrópolis estavam iluminadas, e na baía, do outro lado, viam-se as luzes dos navios da frota norte-americana.
- A glória que a Grécia já teve - disse a atriz, como se estivesse revelando uma grande sabedoria. Em seguida ela pousou a mão cheia de jóias no pulso de David, enquanto lhe dirigia um olhar repleto de insinuações.
Pouco depois de se servirem do prato principal, uma saborosa carne enrolada em folhas de uva, a jovem foi logo sugerindo que David poderia financiar seu próximo filme. E, sem nenhuma sutileza, convidou-o para ir até seu apartamento a fim de discutirem o assunto.
John Dinopoulos despediu-se com um sorriso e uma piscadela, um gesto que aborreceu David na medida em que o fez perceber o absurdo do que estava ocorrendo.
O apartamento da atriz revelava mau gosto e pretensão através dos espessos carpetes brancos e da mobília de couro. Ela serviu um drinque para David e logo foi vestir algo mais confortável, deixando-o a sós na sala. Ele provou a bebida, um pequeno gole, e abandonou o copo no balcão do bar.
A atriz voltou do quarto vestindo um penhoar de cetim decotado e tão transparente que era quase como se estivesse nua. David sentiu-se mal ao vê-la com os cabelos soltos, forçando um ar sensual.
- Sinto muito, minha querida - disse ele. - John estava brincando, eu não sou um milionário. E, para ser sincero, prefiro garotos. - Saiu do apartamento sem olhar para trás, mas ouviu o barulho do copo sendo estilhaçado contra a porta.
De volta ao hotel, pediu café no quarto e, seguindo um impulso, pegou o telefone e ligou para a Cidade do Cabo. A voz do outro lado da linha parecia sonolenta.
Alô...
- Mitzi? Como vai essa força?
- Onde você está, guerreiro? Voltou para casa?
- Estou em Atenas, meu bem.
- Santo Deus! E como vão as coisas por aí?
- Uma droga.
- Imagino... Mas depois da sua passagem aí, as gregas nunca mais serão as mesmas.
- Alguma novidade, Mitzi?
- Claro, estou apaixonada, Davy. Amando de verdade. Vou me casar. Não é fantástico?
David sentiu uma pontada de raiva ao perceber a nota de alegria na voz da prima.
- É uma grande notícia. Eu conheço o felizardo?
- Lógico que sim. É Cecil Lawley, um dos contadores do papai.
- Meus parabéns - disse David, mal contendo a frustração por compreender que a vida da família continuava como se ele não existisse.
- Quer falar com ele? Vou acordá-lo. - Houve um murmúrio do outro lado. Em seguida, Cecil entrou na linha.
- Belo trabalho - comentou David, consciente de que a parte de Mitzi no grupo Morgan era bem maior que a dele. Cecil dera um golpe de mestre.
- Obrigado, Davy. - O contador devia estar mais embaraçado que um adolescente pego em flagrante fazendo algo proibido.
- Quero lhe dizer uma coisa, Cecil. Se você fizer qualquer coisa que magoe essa garota, eu lhe arranco o fígado e o enfio pela sua garganta.
- Fique sossegado. Vou tratá-la muito bem - retrucou o homem, pouco à vontade. - Estou passando o fone para ela.
Mitzi tagarelou o equivalente a cinqüenta dólares de ligação. Mais tarde, David deitou-se na cama, as mãos cruzadas atrás da cabeça, pensando na bobagem que a prima estava fazendo, embora ela parecesse estar feliz. De repente, uma idéia que esteve latente em sua consciência, desde que deixara a Espanha, explodiu de vez. Pegou o telefone e ligou para a recepção.
- Desculpem-me incomodá-los a essa hora da manhã, mas eu gostaria de tomar o avião para Israel o mais cedo possível. Vocês podem me providenciar uma reserva?
Uma bruma dourada subia do deserto à medida que o gigantesco 747 da T.W.A. aproximava-se da pista, possibilitando a David avistar de relance o verde das plantações de laranja. O aeroporto Lod era igual a qualquer outro do mundo, mas à saída do prédio existia uma terra como ele jamais vira. A multidão que disputou um assento em um dos grandes e pretos sheruts, lotações forradas de adesivos e cheias de bugigangas dependuradas, fazia até os italianos parecerem perfeitos cavalheiros.
Entretanto, no interior do veículo, todos se comportavam como uma grande família, da qual ele era um dos membros. A sua direita, um pára-quedista fardado a caráter ofereceu-lhe um cigarro. Sentada à esquerda de David, uma jovem também de uniforme caqui fitava-o com intensidade e dividia com ele um sanduíche de pão ázimo, aproveitando a oportunidade para praticar seu inglês. Logo, os ocupantes do banco da frente juntaram-se à conversa, inclusive o motorista, que, sem diminuir a velocidade, pontuava suas observações com buzinadas e impropérios dirigidos aos pedestres e aos outros motoristas.
O perfume dos brotos de laranja, tão forte quanto a maresia nas terras baixas do litoral, sempre seria para David o cheiro de Israel.
Nas colinas da Judéia, uma nostalgia invadiu-lhe o peito enquanto seguiam a estrada através dos bosques de pinheiros e das encostas brilhantes onde a rocha branca reluzia ao sol, e as oliveiras vergavam seus troncos nos terraços que eram verdadeiros monumentos a seis mil anos de trabalho paciente de homem.
Tudo aquilo parecia tão familiar, tão diferente das colinas regulares do extremo sul, que ele chamava de lar... Havia flores desconhecidas, botões carmesins como sangue, outros amarelo-brilhantes, mas, de repente, algo tocou-o fundo como um golpe de adaga ao divisar a penugem cor de chocolate e as asas brancas de uma poupa africana, o pássaro que simbolizava o lar.
Sentiu um excitamento crescente, embora ainda disforme e sem rumo, à medida que se aproximava da mulher que fora encontrar... para algo que ainda não sabia ao certo do que se tratava.
De qualquer modo, experimentou uma sensação de afinidade com as pessoas que o acompanhavam ali na lotação.
- Veja - disse a jovem ao seu lado, apontando para os destroços da guerra espalhados ao longo da estrada, carcaças queimadas de caminhões e veículos blindados, conservados como um memorial aos homens que haviam morrido a caminho de Jerusalém. - Houve luta por aqui.
Ao fitar o rosto da moça, David identificou nele a mesma força, a mesma certeza que tanto admirava em Debra. Aquelas pessoas viviam cada dia até o seu limite, e só então consideravam a perspectiva do dia seguinte.
Vai haver novas lutas? - ele indagou.
- Com certeza - a jovem respondeu sem hesitar.
- Por quê?
- Se alguma coisa é boa, você deve lutar por ela. - Fazendo um gesto amplo que parecia envolver tudo ao redor, completou: - Isso aqui é nosso, e é muito bom.
David assentiu com um sorriso sincero. Dali a pouco a lotação alcançou Jerusalém, passando pelos edifícios residenciais altos e sóbrios, de pedra amarelo-pastel, fincados como monumentos nas colinas e agrupados em volta da cidadela murada que formava o núcleo.
A própria empresa aérea reservara para David um quarto no hotel Intercontinental, de cuja janela se via a cidade velha depois do jardim Gethsemane: torres, pináculos e cúpulas douradas, o centro da cristandade e do judaísmo, lugar sagrado dos muçulmanos, solo de batalha por dois mil anos, terra anciã renascida. David ficou extasiado. Pela primeira vez na vida, reconhecia, sentia e examinava seu lado judeu. Talvez tivesse acertado ao ir para aquela cidade.
- Quem sabe aqui não é o meu lugar? - disse em voz alta.
A noite mal começava quando David saiu do táxi no estacionamento da universidade e submeteu-se a uma revista pelo guarda do portão principal. Ali, aquele procedimento era uma rotina que logo seria tão familiar a ponto de passar despercebida. O campus estava quase vazio, o que se explicava por ser sexta-feira, quando se iniciam os preparativos para o Sabbath.
A praça que dava acesso ao setor administrativo estava repleta de flores em botão. Ao entrar no prédio, David foi direto ao balcão de informações.
- Senhorita Mordecai... - O funcionário consultou uma lista. - É no departamento de inglês. Segundo andar do edifício Lauterman. - Ele apontou para a porta de vidro. - Ali, à sua direita.
Pouco depois, sentado em um terraço, David esperava que Debra terminasse um seminário com seus alunos. Foi quando, de um momento para o outro, sentiu-se totalmente inseguro. Era a primeira vez, desde que deixara Atenas, que se questionava sobre a possibilidade de não ter uma recepção calorosa por parte de Debra Mordecai. Apesar da passagem do tempo, ainda tinha dificuldade para julgar seu comportamento em relação a ela. Afinal de contas, rico e dono de um rosto tão bonito, raras vezes sentira necessidade de fazer qualquer autocrítica. E era terrível, desagradável, admitir que se comportara, como ela dissera, feito uma criança mimada.
Ele ainda estava às voltas com esses pensamentos, quando o ruído de vozes e de saltos contra o assoalho chamou sua atenção - um grupo de estudantes saía para o terraço, carregando pastas e livros. Várias moças olhavam para ele visivelmente intrigadas.
Passaram-se alguns minutos até que Debra aparecesse, com algums livros embaixo do braço e uma bolsa a tiracolo. Com os cabelos presos num coque sóbrio, e sem nenhuma maquiagem, vestia uma blusa colorida sobre uma saia que lhe chegava até os joelhos. Ela conversava com dois estudantes que a flanqueavam e só avistou David quando este se levantou do parapeito. No mesmo instante seu rosto assumiu aquela expressão que ele notara pela primeira vez em Zaragoza.
David surpreendeu-se ao sentir-se tão embaraçado. Ainda assim forçou um sorriso e cumprimentou-a.
- Alô, Debra - disse, num tom de voz pouco convincente. Debra continuou parada, embora fizesse menção de ir ao encontro dele. Os alunos que a acompanhavam logo perceberam a situação, despedindo-se e se afastando dos dois. Então ela exclamou, eufórica:
- David! - O embaraço estava presente em sua voz ao completar: - Meu Deus, estou sem nenhuma maquiagem...
David abriu os braços num convite mudo, que ela demorou um pouco a aceitar, confusa, sem saber o que fazer com os livros e a bolsa.
- David - ela murmurou, finalmente em seus braços. - Seu tonto! Por que demorou tanto? Eu já estava desistindo de você.
Debra possuía uma motoneta e guiava de forma tão audaciosa que chegava a assustar até os motoristas de táxi de Jerusalém, homens cuja reputação era de terem nervos de aço e total desprezo pelo perigo.
Sentado na garupa, David agarrava-se à cintura dela e a censurava gentilmente ao vê-la ziguezaguear pelo trânsito como se estivesse numa pista sem nenhum perigo.
- Estou feliz - ela gritou por sobre o ombro.
- Então é melhor sobreviver para aproveitar isso.
- Joe ficará surpreso ao vê-lo.
- Se conseguirmos chegar.
- O que aconteceu com seus nervos?
- Perdi-os há um minuto.
Debra desceu a tortuosa estrada do vale do Ein Karem como se estivesse pilotando um Mirage.
- Aquele é o mosteiro onde Maria encontrou a mãe de João Batista, de acordo com a tradição cristã, na qual você é versado - explicou Debra, sem parar o veículo.
- Esqueça essa história - David pediu.
Chegaram a uma vila parada no tempo, rodeada de oliveiras e encravada nas encostas, junto com igrejas, mosteiros e jardins de muros altos, um oásis do pitoresco, enquanto o horizonte estava tomado pelos modernos edifícios de apartamentos de Jerusalém.
Saíram da rua principal e seguiram por uma alameda estreita, ladeada de velhas paredes de pedra. Debra parou em frente a um imponente portão de ferro.
- Chegamos - disse ela, antes de guardar a motoneta em uma casinha ao lado do portão. Em seguida conduziu David por um pequeno portão lateral que dava para um espaçoso jardim cercado de muros caiados de branco. Ali havia oliveiras com seus grossos troncos retorcidos, além de algumas parreiras carregadas de uvas.
- O Brig é um arqueólogo amador, louco e muito vivo - explicou Debra, indicando as estátuas gregas e romanas entre as oliveiras, depois as ânforas de cerâmica dispostas ao longo do muro e.o velho mosaico que pavimentava o caminho para a casa. - É absolutamente ilegal, claro, mas ele passa todo o tempo livre escavando perto das ruínas.
A casa possuía uma cozinha ampla onde uma grande lareira fazia com que o moderno fogão elétrico parecesse deslocado. Os utensílios de cobre brilhavam de tão polidos, e o chão de ladrilhos estava encerado e com um cheiro agradável.
A mãe de Debra, uma mulher alta e magra, portava-se como se fosse sua irmã mais velha. Aliás, as duas eram muitíssimo parecidas. Debra apresentou-os e disse que David ficaria para o jantar, algo que ele não sabia até aquele momento.
- Por favor, não quero incomodar - protestou David, ciente de que as noites de sexta-feira eram especiais para os judeus.
- Não é incômodo nenhum. Será uma honra - retrucou Debra. - Esta casa é um lar para a maioria dos colegas do esquadrão de Joe. E a gente gosta disso.
Debra serviu-lhe uma cerveja Goldstar, que David bebericou ao lado dela no terraço. Ainda estavam ali, quando o pai dela chegou pelo portão lateral do muro e tirou o quepe assim que entrou no jardim.
O velho trajava um uniforme mal talhado, com a patente e as asas de aviador costuradas no bolso da camisa. Tinha os ombros levemente arqueados, talvez um problema de postura adquirido nas pequenas cabines dos aviões de combate. Era calvo e usava um espesso bigode, que não escondia um reluzente dente de ouro. O nariz grande e curvo parecia o de um guerreiro bíblico; seus olhos escuros possuíam o mesmo brilho dos de Debra. Sua presença era tão marcante que de imediato provocou o respeito de David. Ele se levantou para cumprimentá-lo e chamou-o de "senhor" com total naturalidade.
O general observou-o rapidamente e não demonstrou seu julgamento: nem prazer nem desdém.
Mais tarde David descobriria que o apelido "Brig" era uma versão abreviada de Brigand", um nome que os ingleses lhe haviam dado antes de 1948, quando ele contrabandeava aviões militares e armas para a Palestina visando ao Haganah. Todos o chamavam assim, com exceção da esposa, que o tratava pelo nome, Joshua.
- David partilhará da refeição do Sabbath conosco - informou Debra ao pai.
- Seja bem-vindo. Então Brig abraçou a esposa ternamente, pois não a via desde o último Sabbath preso as suas obrigações nas bases aéreas e salas de controle espalhadas pelo país.
Quando Joe chegou, também trajando uniforme caqui aberto no peito, correu em direção a David e o envolveu em um abraço apertado, enquanto dizia a Debra:
- Eu não falei?
- Joe tinha dito que você viria - esclareceu Debra.
- Pelo jeito, só eu não sabia - David brincou.
O brilho dos castiçais refletia-se na madeira polida da mesa onde se acomodaram cerca de quinze pessoas. Usando o Yamulka de cetim bordado de ouro sobre a cabeça calva, Brig fez uma curta oração antes de servir pessoalmente um cálice de vinho para cada convidado. Hannah, acomodada ao lado de Joe, cumprimentou David com reserva. Entre os presentes, havia irmãos de Brig, com as respectivas esposas e filhos, os quais conversavam em voz alta tanto em hebraico como em inglês. A comida tinha um paladar exótico e saboroso, embora o vinho que a acompanhasse fosse um tanto adocicado. David sentia-se feliz por estar ao lado de Debra e fazer parte daquele grupo tão coeso. De repente, porém, um dos primos de Debra dirigiu-lhe a palavra:
- Isto aqui deve estar bastante confuso para você. Afinal de contas é seu primeiro dia num país incomum como Israel. E para quem não entende hebraico nem é judeu...
Embora o rapaz não tivesse sido descortês, Brig franziu o cenho e ficou atento, esperando que nenhuma indelicadeza fosse cometida contra um dos convidados de sua mesa.
Ao notar que Debra o fitava como se quisesse colocar palavras em sua boca, David lembrou-se de que três negações finalizavam qualquer questão - no Novo Testamento, na lei muçulmana e talvez também na de Moisés. Ele não gostaria de ser excluído daquele lar, daquelas pessoas. Não queria ficar sozinho outra vez; ali estava ótimo. Sorriu para o rapaz e retrucou:
- O país é estranho, mas não tanto quanto você pensa. Além do mais entendo hebraico, embora não o fale muito bem. Para completar, também sou judeu.
Dando um suspiro de satisfação, Debra trocou um olhar com Joe.
- Judeu? - Brig estranhou. - Não parece.
David explicou-lhe sobre sua origem e teve a impressão de que o velho se tornava mais acessível.
- E tem mais - completou Debra -, ele também é piloto. Visivelmente surpreso, Brig encarou-o com olhos atenciosos.
- Qual a sua experiência? - ele perguntou de repente.
- Mil e duzentas horas; quase mil em jatos.
- Jatos?
- Sim, Mirage.
- Mirage! - O velho estava cada vez mais excitado. - Em que esquadrão?
- No Cobra.
- Ah, no reduto de Rastus Naude?
- O senhor conhece Rastus? - Agora era a vez de David surpreender-se.
- Voamos nos primeiros Spitfire da Tchecoslováquia, lá pelos idos de 48. Naquela época, nós o chamávamos de Butch Ben Yok, o filho de um gentio. Como está ele? Deve ter feito sucesso, não?
- Rastus continua o mesmo de sempre - disse David com cautela, sem saber em que terreno pisava.
- Se você aprendeu a voar com ele, deve ser um piloto razoável... - completou Brig, pensativo.
Ainda que a Força Aérea israelense não aceitasse pilotos estrangeiros, aquele jovem era judeu e aparentava ser um piloto de combate de primeira linha... Brig percebia nele o elan e a confiança que outro conhecedor de talentos, Paul Morgan, também notara e tanto valorizara. A não ser que tivesse interpretado mal os indícios, algo que raramente ocorria, Brig estava seguro de que aquele rapaz possuía todas as qualidades exigidas para um excelente piloto de combate, cujo treinamento levava anos e custava um milhão de dólares. Como tempo e dinheiro eram uma questão de sobrevivência para a época de privação que o país atravessava, algumas normas poderiam ser quebradas...
Enquanto servia outro cálice de vinho para David, Brig pensou: vou dar um telefonema para Rastus Naude e me informar direitinho sobre esse garoto.
Quieta, Debra observou o pai começar a questionar David sobre suas razões para vir a Israel e sobre seus planos futuros. Ela sabia exatamente o que o velho tinha em mente. Aliás, previra isso - convidara David para jantar calculando cada detalhe do que aconteceria durante a refeição.
Fitou o rosto dele, e de imediato experimentou uma sensação de frio na barriga e de eletricidade percorrendo-lhe o corpo. Sim, seu garanhão fogoso, pensou ela, você não vai escapar tão fácil desta vez. Agora estou disposta a segurá-lo e conto com Brig para me ajudar.
Ergueu a taça na direção dele. E sorriu com doçura. Você vai encontrar justamente o que está procurando, com trompas e sinos, refletiu ela, antes de brindar em voz alta:
- Lechaim A vida!
Desta vez não serei descartado tão facilmente, disse David a si mesmo enquanto respondia ao brinde. Vou possuí-la, minha querida, não importa quanto tempo demore ou quanto custe.
Na manhã seguinte, David acordou com a campainha do telefone. Era Brig, cuja voz indicava alguém desperto havia horas.
- Se você não tiver nada marcado para hoje, posso levá-lo para ver algo - anunciou o general.
- Perfeitamente, senhor. - David sentiu-se embaraçado.
- Estarei em seu hotel dentro de quarenta e cinco minutos. Você terá tempo para o café da manhã. Por favor, espere-me no saguão.
Brig apareceu com um carro pequeno, de placa civil, que guiava com perícia tal que deixou David impressionado. Afinal de contas, ele já passara da casa dos cinqüenta, embora fosse lépido como alguém vinte anos mais moço. Tomavam a rodovia principal, em direção a Telavive, quando Brig quebrou o silêncio:
- Falei com seu ex-comandante ontem à noite. Ele ficou surpreso ao saber onde você estava. E me disse que lhe ofereceu uma promoção a oficial antes de sua partida.
- Rastus tentou me subornar.
Brig assentiu com um gesto de cabeça. David contemplava, extasiado, a rápida mudança de paisagem: desciam as colinas, atravessavam as planícies e se dirigiam ao deserto.
- Estamos indo para uma base de Força Aérea; devo acrescentar que estou quebrando as normas de segurança ao fazê-lo. Rastus garantiu-me que você é um bom piloto e quero ver se ele estava dizendo a verdade.
- Nós vamos voar? - perguntou David, excitado.
- Estamos numa guerra, portanto você fará um vôo de reconhecimento, diferente de tudo que os livros recomendam. Você vai descobrir que fugimos bastante das normas.
Brig continuou expondo seus pontos de vista sobre as lutas e chances de sucesso de Israel. Usou algumas frases que soaram estranhas para David:
"Estamos construindo uma nação, e o sangue que derramamos nos alicerces os fortalecerá..."
"Não queremos apenas erguer um santuário para os judeus derrotados do mundo. Também queremos os judeus fortes e inteligentes..."
"Somos três milhões, e existem cento e cinqüenta milhões de inimigos que juraram nos aniquilar..."
"Se eles perderem uma batalha, perdem alguns quilômetros de deserto; se nós perdermos uma, deixaremos de existir."
"Teremos de impingir-lhes outra derrota. Eles não aceitaram as anteriores. Acreditam que a munição falhou em 1948; após Suez, as fronteiras foram restauradas e eles nada perderam; e acham que foram enganados em 1967. Vamos derrotá-los novamente para que nos deixem em paz."
O tom confiante de Brig deixou David contente. E a perspectiva de voar fez com que se sentisse ainda mais feliz.
Pararam diante de um portão que dava acesso a uma plantação de eucaliptos, rodeada por sua vez por uma cerca de arame farpado. Ali via-se uma placa em inglês e hebraico: "Centro de Agricultura Experimental Chaim Weissmann". Seguiram por uma estrada secundária através da plantação até alcançarem outra cerca. Nesta havia uma guarita entre as árvores. Um guarda verificou os documentos de Brig e deixou-os passarem. Então atravessaram lotes bem delineados onde floresciam aveia, cevada, trigo e milho. O terreno era cortado por pistas pavimentadas de concreto, todas pintadas da cor da terra que as bordejava. Pareciam estranhos aqueles caminhos bem-feitos, de três quilômetros de comprimento e interceptando-se em ângulos bem definidos. Brig percebeu a expressão interrogativa de David e apressou-se em explicar:
- São pistas de pouso. Nossas instalações são subterrâneas, para não sermos pegos pela mesma tática que usamos em 67.
David assentiu, pensativo, enquanto o veículo cruzava em direção a um enorme silo de concreto que se destacava ao longe. Pelos arredores, tratores vermelhos trabalhavam a terra, e os equipamentos de irrigação jogavam ao ar jatos brilhantes de água.
Quando ultrapassaram as portas da construção em forma de celeiro, David surpreendeu-se com a quantidade de ônibus e carros parados em filas ao longo do edifício. Havia transporte para centenas de pessoas, embora ele não tivesse visto mais que um punhado de tratoristas no campo.
Os guardas do local vestiam trajes de pára-quedistas. Na verdade, toda aquela estrutura sólida, à prova de bombas, era um disfarce para um abrigo que continha sofisticados equipamentos de comunicação e radar, constituindo-se em uma moderna base de caças. Uma combinação de torre de controle e base para quatro esquadrilhas de Mirage, segundo Brig explicou enquanto desciam para o subsolo.
O guarda à entrada da recepção recusou-se a permitir a entrada de David, chamando então um major para autorizar seu ingresso no recinto. Logo Brig conduzia-o por um túnel acarpetado e com ar-condicionado rumo ao vestiário dos pilotos, um local azulejado e limpo, com chuveiros, privadas e armários, sem nada dever a instalações semelhantes em um clube de campo.
Brig providenciara os trajes para David, adivinhando seu tamanho com bastante precisão. O ordenança não teve a menor dificuldade em lhe conseguir as peças no número apropriado. Vestidos em macacões de vôo, seguiram para a sala de prontidão, onde os pilotos em serviço estavam lendo ou jogando xadrez. Ao reconhecerem o general, todos se levantaram para cumprimentá-lo, ainda que o ambiente permanecesse agradável e informal.
Pouco depois, já na sala de instrução, Brig delineou a patrulha que ambos fariam, informando sobre as rotinas de rádios, identificação de aviões e outros detalhes.
- Lembre-se de que estamos em guerra. Golpearemos tudo o que encontrarmos pela frente que não seja nosso, entendido?
- Certo - disse David.
- As últimas semanas foram calmas, mas ontem houve um pequeno problema perto de Ein Yahav, um incidente desagradável com uma de nossas patrulhas de fronteira. Portanto, as coisas no momento estão delicadas. - Brig pegou o capacete e a pasta de mapas, depois encarou-o com firmeza. - Hoje o dia está claro. Quando chegarmos aos doze mil metros, você terá uma visão completa, da Rosh Hanikra ao Suez, do monte Hermon ao Eliat. Então perceberá como esta terra é pequena, como é vulnerável aos inimigos que a circundam. Você disse que estava à procura de algo que valesse a pena... quero que decida se guardar o destino de três milhões de pessoas é ou não uma tarefa que vale o esforço.
Tomaram uma das longas passagens subterrâneas, locomovendo-se em um pequeno carro elétrico, até um hangar localizado em uma ponta da grande estrela cujo centro era o silo de concreto.
Seis Mirage enfileiravam-se como animais impacientes, os narizes em forma de agulha caracterizando seus perfis. Eram pintados de marrom e verde e exibiam a estrela-de-davi na fuselagem.
Brig apontou para dois aviões e, sorrindo, escreveu "Butch Ben Yok" sob a identificação do de David.
- É um bom nome para voar - ele murmurou. - Estamos na terra dos pseudônimos e dos apelidos.
Ao se acomodar na cabine de um dos aparelhos, David experimentou a sensação de volta ao lar. Tudo ali era-lhe familiar - e foi assim que checou os inúmeros interruptores, o painel de instrumentos e os diversos controles, preparando-se para decolar.
O barulho ensurdecedor dos jatos só se tornava suportável devido aos abafadores de aço perfurado existentes na parte de trás da estrutura do hangar.
O general olhou para David e lhe fez um sinal com o polegar para cima. Então os dois fecharam suas respectivas cabines, ao mesmo tempo em que as portas de aço do galpão abriam-se e as lâmpadas sobre elas mudavam de vermelho para verde.
Não havia necessidade de se taxiar para atingir a área de decolagem; assim, não se expunham no solo desnecessariamente. Ponta de asa com ponta de asa, as duas aeronaves subiram a rampa para fora do abrigo, alcançando de imediato uma das pistas marrom. David deu potência plena aos motores, sentindo o empuxo poderoso do jato quase como algo palpável. Depois de contornarem os campos verdes de milho, decolaram rumo ao céu cor de safira que se apresentava límpido e sem nuvens.
Nivelaram um pouco abaixo dos doze mil metros, evitando altitudes exatas ou padrões convencionais de vôo. David posicionou seu Mirage sob a cauda do de Brig e puxou os aceleradores para velocidade de cruzeiro. Sentia-se feliz com os rituais familiares do vôo e movia os olhos incansavelmente na rotina de busca, varrendo cada quadrante do céu, serpenteando com o caça para eliminar o ponto cego atrás de sua própria cauda.
A pureza cristalina do ar permitia que se vissem até as montanhas mais distantes. Ao norte, o Mediterrâneo faiscava como uma piscina de prata derretida ao sol, enquanto o mar da Galiléia aparecia com um verde discreto e, ao longe, na direção sul, o mar Morto estava escuro, confinado em seu leito no deserto.
Seguiram para o norte, sobrevoando o cume do Carmel e os edifícios brancos de Haifa, em cujas praias douradas o mar quebrava em suaves ondulações. Reduziram ainda mais a velocidade, descendo lentamente até a altitude de patrulha, a seis mil metros, tão logo passaram pelo monte Hermon, onde as últimas camadas de neve ainda se acumulavam nos lugares mais altos.
O verde da paisagem encantava David, que estava acostumado ao sépia monocromático da África. As vilas, no topo das colinas, tinham casas de paredes brancas brilhando como diademas sobre as encostas e terras cultivadas.
Viraram outra vez para o sul, seguindo o vale do Jordão. Passaram sobre as águas tranqüilas do mar da Galiléia, cercadas pelas tamareiras e os bem-arrumados kibutzim, perdendo altitude conforme a terra abandonava seu aspecto gentil e as colinas se erguiam, cortadas pelos leitos dos rios sazonais como se fossem garras de um terrível predador.
A esquerda erguiam-se as montanhas Edom, hostis e implacáveis, e lá embaixo, Jericó era um oásis verde na imensidão. A frente estava a tremeluzente superfície do mar Morto. Eles voaram tão rente às águas que o deslocamento de ar dos jatos produzia pequenas ondas na superfície.
Naquele instante, a voz de Brig soou pelos fones de ouvido de David, em tom de brincadeira:
- É o mais baixo que você poderá voar, trezentos e sessenta metros abaixo do nível do mar.
Estavam ganhando altitude quando passaram pelas minerações ao extremo sul do mar.
- Alô, Cacto Um, aqui é Flor do Deserto - foi a mensagem vinda pelo rádio, antecedida do sinal de chamada da rede de comando. Estavam sendo contatados diretamente do Centro de Operações do Comando da Força Aérea, situado em algum abrigo subterrâneo cuja localização David jamais saberia. Na base de comando, a posição deles era conhecida com precisão através das repetidoras do radar.
- Alô, Flor do Deserto - Brig respondeu, dando início a uma comunicação tão informal quanto o bate-papo de dois velhos amigos, exatamente o que eram.
- Brig, aqui é Motti. Acabamos de receber um pedido de apoio de sua área. - Ele informou as coordenadas, acrescentando: - Uma patrulha de fronteira está sendo atacada por um avião não identificado. Verifique, OK?
- Beseder, Motti. OK. - Brig mudou para a freqüência de vôo.
- Cacto Dois, vou entrar em velocidade de interceptação, acompanhe-me - disse para David, enquanto mudava de curso.
- Não adianta tentar a busca com o radar. Ele está voando rente ao solo e não conseguiremos captá-lo por causa das montanhas. Mantenha os olhos bem abertos.
- Beseder - respondeu David com a palavra favorita dos hebreus em uma terra onde muito pouco estava realmente "OK".
Logo David divisou ao longe uma fina coluna de fumaça preta, subindo como um risco de lápis contra a quietude do horizonte sem vento.
- Fumaça no solo - informou pelo microfone. - Lá embaixo, posição onze horas.
Brig demorou alguns segundos até ter a confirmação visual do aviso. Pelo menos quanto a uma coisa Rastus estava certo: o garoto tinha olhos de gavião.
- Entrar em velocidade de ataque. - Ao ouvir a ordem, David de imediato acionou os pós-combustores. Sentiu-se pressionado contra o encosto do assento sob o incrível aumento do empuxo. E experimentou uma drástica alteração das condições de vôo quando o Mirage rompeu a barreira do som.
Notando um brilho próximo à base da coluna de fumaça, Da vid estreitou os olhos e avistou o pássaro metálico plainando como um gavião. Sua camuflagem confundia-se com a terra marrom.
- Bandido virando para bombordo da fumaça - avisou ao general.
- Já o vi - respondeu Brig, mudando então para a rede de comando. - Flor do Deserto, estou sobre o intruso. Posso atacar?
A decisão de combate era sempre tomada a nível de comando. A resposta veio num tom lacônico e sem emoção:
- Brig, aqui é Motti. Derrube-o.
Tinham-se aproximado o suficiente para perceber os detalhes do que ocorria lá embaixo: três veículos da patrulha fronteiriça haviam sido atacados na poeirenta trilha ao longo da fronteira. Eram meias-lagartas camufladas, pequenas como brinquedos na vastidão do deserto.
Uma delas estava em chamas, a fumaça espessa e negra subindo para o céu - isto havia chamado a atenção de David. Um corpo estava jogado sobre a estrada, o que lhe causou um mal-estar semelhante ao que sentira na arena em Madrid.
Os outros veículos estavam abandonados ao lado da trilha; seus ocupantes, agachados entre o mato e as pedras, atiravam com armas portáteis no atacante, que se preparava para nova investida.
Embora nunca tivesse visto um avião daqueles, David reconheceu-o sem demora devido à silhueta característica, que tanto estudara. Era um Mig 17 russo, da Força Aérea da Síria. Sua cauda alta era inconfundível. A camuflagem marrom só era interrompida pelos círculos vermelho, branco e prata, com o centro verde, pintados na fuselagem e nas asas curtas e grossas.
O Mig completou a volta, desceu e nivelou para o ataque seguinte contra os veículos parados. O piloto, totalmente concentrado nos homens indefesos que se escondiam entre as rochas, sequer suspeitava da terrível vingança que estava prestes a se abater sobre ele.
Brig posicionou seu Mirage logo atrás da cauda do avião sírio, enquanto David recuava para lhe dar cobertura e ficar em condições de executar um ataque de apoio se o primeiro falhasse.
O Mig abriu fogo novamente: os disparos do canhão dançaram entre os homens e os caminhões, explodindo um destes.
- Seu filho da puta - murmurou David ao avistar os estragos que estavam sendo feitos à sua gente.
Era a primeira vez que pensava neles naqueles termos - sua gente - e sentiu a mesma raiva do pastor cuja ovelha está sendo atacada.
Um verso despontou em sua mente: "Os assírios desceram como um lobo sobre o rebanho". Ele travou o seletor de tiro no canhão e liberou o gatilho de sua proteção na alavanca. Um ponto esverdeado iluminou-se quando a mira eletrônica centrou-se no alvo.
Brig aproximava-se com rapidez do Mig, mas, no momento em que ia abrir fogo, a asa do avião inimigo mudou de posição. No instante fatal, o piloto percebera a situação e fizera o que era melhor para as circunstâncias: abrira por completo os flaps e, enquanto a velocidade caía vertiginosamente, inclinava as asas e deslizava em direção ao solo.
Pego de surpresa, Brig perdeu sua rajada de tiros no instante em que o sírio mergulhou, esquivando-se como um boxeador se livra de um soco. David, que acompanhava todos os passos da manobra, deixou que o Mirage de Brig ultrapassasse o seu e subisse em espiral. Reagiu com rapidez. Assim que reconheceu a manobra do Mig, cortou os jatos e acionou os freios aerodinâmicos para perder um pouco de velocidade.
O avião inimigo fez uma curva tão acentuada para bombordo, que deu a impressão de que a ponta de sua asa raspava o deserto. David liberou os freios aerodinâmicos, a fim de obter sustentação para a manobra seguinte, então girou o Mirage para acompanhar o Mig, sentindo que o avião flutuava no limite de velocidade de estol.
Não conseguia enquadrá-lo na mira. Apesar de estar com o indicador direito curvado sobre o gatilho, a negra silhueta do aparelho inimigo sempre ficava fora do círculo iluminado, enquanto a alça da mira subia e descia devido à força da gravidade.
À frente dos dois aviões erguia-se uma imponente linha de rochedos, abarrotada de desfiladeiros e barrancos. Em vez de ultrapassar os empecilhos, o Mig adentrou por uma passagem estreita, na tentativa desesperada de escapar da perseguição.
O Mirage não fora projetado para aquele tipo de vôo. David precisava acionar os pós-combustores e sobrevoar os picos irregulares das rochas. Entretanto, isso significava deixar o outro escapar; e ele ainda estava com muita raiva para aceitar essa solução.
Assim, pegou a passagem no maciço rochoso, cujas paredes pareciam roçar as pontas das asas do Mirage. Teve de fazer curvas de estibordo para bombordo, atingindo o limite de manobrabilidade, e o dispositivo de alarme de estol piscava, âmbar e vermelho, assinalando a iminência do perigo.
Quando o piloto do Mig percebeu que estava sendo seguido, diminuiu ainda mais a velocidade, quase tocando as paredes laterais do desfiladeiro. O tempo inteiro mantinha-se fora do centro da mira de David.
De repente, uma nova curva à frente, e logo adiante, uma barreira de rochas dando fim a viela. Encurralado, o sírio levantou o nariz do avião e alçou vôo.
David acelerou ao máximo e acionou os pós-combustores. A máquina respondeu de imediato e, com um forte empuxo para a frente, ficou bem abaixo da cauda da outra aeronave. Houve então a eterna fração de segundo dos combates mortais, quando o Mig flutuou no círculo da mira, e no instante seguinte cresceu até tomá-lo por inteiro. Era o momento de atacar.
David pressionou o gatilho do canhão. O Mirage sacudiu bruscamente, enquanto cuspia a carga mortal de tiros e bombas incendiadas.
O avião inimigo desintegrou-se, transformando-se em fumaça prateada, acompanhada de um clarão intenso. O piloto foi ejetado da fuselagem e, por um instante, apareceu no monitor do Mirage, parecendo um crucificado, com os braços e pernas abertos, a roupa inflada de ar. O corpo passou de relance pela cabine de David, enquanto este ganhava altura e se afastava do local.
Nas imediações da estrada, os soldados moviam-se de um lado para o outro, atendendo os feridos e cobrindo os mortos, mas ergueram os olhos para o céu quando o Mirage retornou de sua missão. David voava tão baixo que podia ver seus rostos bronzeados pelo sol, alguns com barba e bigode, gente jovem e forte, que aplaudia e acenava em agradecimento.
Meu povo, pensou David, ainda tenso porém feliz. Sorrindo, acenou para os homens antes de subir até onde o Mirage de Brig voava em círculos à sua espera.
Quando os Mirage voltaram ao abrigo subterrâneo, um engenheiro ajudou David a sair da cabine enquanto outros homens abordavam o aparelho para reabastecê-lo e rearmá-lo. A capacidade de preparar um avião em poucos minutos era uma das habilidades daquela pequena esquadrilha. E em uma emergência, isso lhe daria pontos de vantagem sobre o adversário.
Ao descer do caça, David rumou na direção de Brig, que conversava com o controlador de vôo. O velho estava com o capacete embaixo do braço, enquanto retirava as luvas, e, ao vê-lo aproximar-se, dirigiu-lhe um sorriso largo.
- Ken! Sim! - disse o major-general Joshua Mordecai. - Você vai conseguir. - E deu-lhe um soco amigável no ombro.
David chegou atrasado para apanhar Debra - iam jantar fora -, Brig já a informara dos motivos.
Foram ao Select, atrás da Torre de Davi, dentro do portão Jaffa na cidade velha. O interior despretensioso, decorado com cordas presas nas paredes, não preparou David para a excelente refeição que o proprietário árabe serviu: mousakha de galinha com nozes e especiarias, acompanhado de cuscuz. Quase não conversaram durante o jantar. E Debra, que entendia o estado de espírito do companheiro, preferiu não forçá-lo a falar. David estava envolto pela tristesse pós-combate. Mesmo assim, a boa comida e o vinho Carmel acabaram por relaxá-lo. Enquanto tomavam o café turco, preto e forte, Debra perguntou:
- O que aconteceu hoje, David?
- Eu matei um homem.
Ela depositou a xícara na mesa e o encarou em silêncio. Então David contou os detalhes do ocorrido, a caçada e a morte, e concluiu melancólico:
- Na hora me senti feliz. Completamente realizado. Tinha certeza de que fizera o que era certo.
- E agora?
- Agora estou triste. Estou triste por ter sido obrigado a fazer aquilo.
- Meu pai, que sempre foi um soldado, diz que só quem luta sabe verdadeiramente o que é odiar a guerra.
- Concordo plenamente. Adoro voar, mas odeio destruir.
Houve um silêncio prolongado, ambos considerando suas visões pessoais da guerra, ambos tentando encontrar palavras para se expressar.
- Além de ser uma necessidade - disse Debra -, devemos lutar, não há outro jeito.
- Realmente. Temos o mar nas nossas costas e os árabes nas nossas gargantas.
- Você fala como um israelita...
- Hoje eu tomei uma decisão. Ou melhor, fui obrigado por seu pai. Ele me deu três semanas para melhorar meu hebraico e completar a papelada de imigração.
- E então?
- Fico comissionado na Força Aérea. Esse foi o único ponto que pude negociar. E mal consegui a mesma patente que teria se voltasse para casa. Ele barganhou como um vendedor ambulante, mas já sabia que eu possuía aquela patente. Então cedeu. Major da ativa, com a confirmação da patente em doze meses.
- Que maravilha, Davy, você será um dos mais jovens majores da ativa.
- É verdade. E depois de pagar todos os impostos, terei um salário um pouco mais baixo que o de um motorista de ônibus em meu país.
- Não se preocupe. - Debra sorriu. - Vou ajudá-lo com o hebraico.
- Eu ia lhe pedir justamente isso. Vamos sair daqui. Estou perturbado e quero caminhar.
Foram até o setor cristão da cidade. Barracas abertas ao longo das alamedas estreitas exibiam roupas exóticas, artigos de couro e jóias. O cheiro de tempero, de comida e de bebida era quase palpável no ar.
Debra conduziu David até uma das lojas de antigüidades na Via Dolorosa. O proprietário recebeu-a com evidente satisfação.
- Senhorita Mordecai? Como está seu querido e estimado pai? - Sem esperar resposta o homem foi até os fundos da loja, de onde voltou trazendo-lhe café.
- Ele é um dos meio-honestos, e vive morrendo de medo de Brig - explicou Debra antes que o comerciante voltasse com a bandeja.
Dali a instantes, ela escolhia uma fina corrente de ouro, com a estrela-de-davi. Sem titubear, fez questão de colocá-la no pescoço de David.
- Essa é a única condecoração que você ganhará, pois não costumamos dar medalhas - disse ela, sorrindo. - De qualquer modo, bem-vindo a Israel!
- É muito bonita. - David estava embaraçado com o presente. Tentou beijar Debra em agradecimento, porém ela se esquivou.
- Aqui não. Ele é muçulmano e ficaria ofendido.
- Então vamos para algum lugar onde não precisemos dar satisfação a ninguém.
Saíram pelo Portão do Leão, no grande muro, e encontraram um banco desocupado entre as oliveiras do cemitério muçulmano. No céu, a lua crescente estava prateada e misteriosa.
- Você não pode continuar no Intercontinental - observou Debra, olhando para a silhueta do grande edifício, no outro lado do vale.
- Por que não?
- Em primeiro lugar, é muito caro. Seu salário não daria para pagar a hospedagem.
- Você acha que eu vou viver do meu salário?
- Bem, o mais importante é que você não é mais um turista. Então não pode continuar vivendo como se fosse.
- O que você sugere?
- Procurar um apartamento.
- Quem faria a limpeza, lavaria as roupas e cozinharia? Sou um fracasso nesse tipo de coisa.
- Eu faria - disse Debra, a expressão imperturbável.
- O quê?
- Eu disse que cuidaria da casa... Isto é se você quiser. David demorou alguns segundos antes de retrucar:
- Você está sugerindo que a gente viva juntos? Brincando de casinha período integral, por completo?
- É exatamente o que estou falando.
Ele perdeu a fala durante alguns instantes. A idéia era romântica, cheia de possibilidades, mas suas experiências com o sexo oposto, embora numerosas, tinham sido superficiais. Ele se sentia diante de um território desconhecido.
- E então? - Debra insistiu.
- Você quer se casar? - ele perguntou num fio de voz.
- Ainda não estou certa de que você é uma boa alternativa, meu querido David. Você é muito bonito, é uma companhia agradável, mas também é egoísta, imaturo e cabeça-dura.
- Obrigado pelo "elogio".
- Não tenho por quem pedir as palavras agora, David, quando estou a ponto de deixar de lado todas as precauções e me tornar sua esposa.
- Puxa! - ele exclamou, radiante. - Ouvir você falar isso assim de repente me deixa zonzo.
- Também sinto a mesma coisa. A única condição é que tenhamos nosso lugarzinho isolado. Você deve se lembrar de como fico inibida em praias públicas ou em ilhas rochosas.
- Jamais vou me esquecer desse episódio. Mas então você não quer casar comigo?
- Não foi isso que eu falei. Simplesmente acho melhor tomarmos a decisão quando ambos estivermos prontos para isso.
- Combinado. - David sorriu de uma orelha à outra.
- Agora, major Morgan, pode me beijar, mas não me deixe esquecer das condições.
Minutos mais tarde, após um longo beijo, um pensamento inquietante atravessou a mente de David.
- Deus do céu! Qual será a reação do seu pai?
- Ele não vai se casar conosco - retrucou Debra, dando de ombros.
- Estou falando sério. O que você vai dizer a seus pais?
- Mentirei graciosamente, e eles fingirão acreditar em mim. Deixe que eu me preocupe com isso.
- Beseder então.
- Você está aprendendo rapidamente! Vamos tentar aquele beijo novamente, desta vez em hebraico, por favor.
- Eu te amo - declarou ele naquele idioma.
- Você será um ótimo aluno - ela murmurou.
Só havia agora uma dúvida para ser desfeita, e Debra a abordou no portão de ferro do jardim quando voltaram para casa.
- Você sabe o que a circuncisão significa?
- Claro. - Sorrindo, David imitou uma tesoura com o indicador e o dedo médio.
- Bem, e quanto a você?
- Isso é uma questão pessoal, cuja resposta as mocinhas devem descobrir por conta própria... da maneira mais difícil - completou David com uma expressão sensual.
- Todo conhecimento é precioso como o ouro - murmurou Debra. - Pode ficar certo de que vou procurar a resposta.
David descobriu que comprar um apartamento em Jerusalém era uma tarefa tão difícil quanto a busca do Santo Graal. Embora novos edifícios surgissem a cada dia, a demanda superava em muito a oferta.
O pai de um dos alunos de Debra, um corretor de imóveis, cuidava do problema com toda a dedicação. A fila de espera para as novas construções parecia não ter fim. Ainda assim, de vez em quando vagava um apartamento em um dos velhos edifícios, e o homem usava de sua influência para tentar reservá-lo. Dessa maneira, David recebia recados de Debra para apanhá-la na universidade e eles saíam de táxi através da cidade para examinar o imóvel.
O último apartamento que viram lembrou-lhe o filme Lawrence da Arábia - uma palmeira na frente do prédio, roupas dependuradas em todas as sacadas e janelas, sons e cheiros típicos de um mercado árabe de camelos, além de um pequeno parque de uma escola de enfermagem no pátio.
Tinha dois quartos e um banheiro. As estampas do papel de parede estavam desbotadas, exceto nos locais onde algum objeto pendurado protegera a cor original.
David abriu a porta do banheiro e, sem entrar, deu uma espiada no piso e nas louças sanitárias baratas e encardidas. O estado de conservação do local era simplesmente lamentável.
- Você e Joe poderiam dar uma geral aqui - sugeriu Debra sem muita convicção. - O apartamento até que é razoável.
- Você deve estar brincando - retrucou David firmemente.
- Droga, desse jeito nunca vamos encontrar um lugar!
- Eu não agüento mais esperar.
- Nem eu.
- Então está na hora de pôr o primeiro time em campo!
Ainda que não soubesse ao certo de que maneira o grupo Morgan estaria presente em Jerusalém, David acabou por localizá-lo através da lista telefônica sob o nome de "Industrial e Financeira Morgan". O gerente regional, um senhor chamado Aaron Cohen, que tinha seus escritórios no edifício do Banco Leumir, em frente à agência central dos correios, ficou emocionado ao descobrir que um membro da família Morgan estava há dez dias em Jerusalém sem o seu conhecimento.
Vinte e quatro horas após descobrir qual era o problema, ele já o tinha resolvido. Realmente Paul Morgan sabia escolher seus executivos, e Cohen era um bom exemplo disso. O preço que David pagaria por aquele serviço era que, na manhã seguinte, o tio teria um informe completo da transação, o local e os planos do sobrinho... mas valia a pena.
Sobre o desfiladeiro Hinnom, de frente para o monte Sião, o condomínio Montefiore estava sendo totalmente reconstruído. As casas possuíam revestimento de pedra e arquitetura tradicional. No entanto, internamente, combinavam traços modernos com tetos em arco como as igrejas da época das Cruzadas. Cohen conseguira comprar a melhor das que faziam frente para a Rua Malik, pagando um preço astronômico. O que, por sinal, foi a primeira pergunta de Debra, assim que recuperou a voz. Perplexa no terraço, sob a oliveira solitária, ela contemplou as pedras que tinham sido polidas até se parecerem com marfim velho, depois alisou a porta entalhada da frente.
- David! Quanto custa essa casa?
- Isso não importa. Quero saber é se você gosta.
- É linda! Mas não teremos dinheiro para pagá-la.
- Já está paga.
- Quanto foi?
- Que diferença faria se eu dissesse quinhentos mil ou um milhão de libras israelenses? É apenas dinheiro.
Debra tapou os ouvidos com as mãos.
- Prefiro não saber. Eu me sentiria culpada e não conseguiria viver aqui.
- Ah! Então você está realmente disposta a viver aqui?
- Tente me convencer. Apenas tente, meu amor!
A sala que dava para o terraço, embora fosse clara e arejada para enfrentar o verão que estava chegando, no momento cheirava a tinta e verniz.
- O que faremos com relação à mobília? - David perguntou.
- Mobília? Eu não tinha pensado nisso.
- Para o que tenho em mente, precisaremos pelo menos de uma cama enorme.
- Seu tarado! - ela brincou, beijando-o.
Descartaram a idéia de comprar móveis modernos, que não combinariam com as características da casa, e optaram por adquirir peças avulsas em lojas e bazares de antigüidade.
O principal problema foi resolvido em uma loja de móveis usados, onde encontraram uma cama de casal de latão, que poliram até deixá-la como nova.
Compraram tapetes de kelim e tecidos de lã dos comerciantes árabes da cidade velha, e os espalharam pelo assoalho de pedra, junto com almofadões de couro. Também arranjaram uma mesa baixa de oliveira, decorada com ébano e madrepérola, para a sala de jantar. O restante de mobília, caso não conseguissem nos antiquados, mandariam fazer por um carpinteiro árabe conhecido de Debra.
No dia da arrumação, pediram ajuda a Joe e a Hannah, que apareceram num minúsculo automóvel japonês e, após se recuperarem do impacto causado pela mansão, puseram-se a trabalhar com entusiasmo. David e Joe cuidavam do transporte dos móveis, enquanto Hannah e Debra iam para a moderna cozinha, dotada de máquina de lavar roupa, secadora, lava-louça e outros equipamentos vindos junto com a casa.
Terminado o trabalho, todos se sentaram à mesa para a primeira refeição que inaugurava a casa. Para surpresa de David, Joe não se mostrava nem um pouco aborrecido com o fato de sua irmã mais nova ir morar com um homem sem se casar; ao contrário, estava tão expansivo e bebia tanta cerveja que até obrigou Hannah a intervir.
- É tarde - ela disse firmemente.
- O quê? - Joe espantou-se. - São apenas nove horas.
- Para uma noite como a de hoje é tarde.
- O que você quer dizer com isso?
- Joseph Mordecai, o rei da sutileza - ironizou Hannah, fazendo com que de repente Joe percebesse que Debra e David ansiavam por ficar a sós.
- Vamos embora - ele disse, levantando-se. - O que estamos fazendo aqui?
As luzes do terraço filtravam-se através das venezianas fechadas, deixando o quarto em suave penumbra. Os ruídos do mundo exterior ficavam tão abafados pela distância e pelos muros de pedra que soavam como um murmúrio que acentuava ainda mais o isolamento do lugar.
A cama de latão destacava-se no escuro, forrada por uma colcha que cheirava a lavanda. David deitou-se e contemplou Debra, que se despia lentamente, tímida e recatada como nunca. Seu corpo esguio tinha um quê de adolescente, embora os seios e as nádegas fossem de mulher formada.
Quando ela se sentou na beirada do colchão, David maravilhou-se mais uma vez com a textura perfeita de sua pele, onde a tonalidade clara das partes íntimas fazia um violento contraste com o bronzeado do rosto e dos braços.
Ainda pouco à vontade, ela pousou um dedo no rosto dele, deslizou-o pelo pescoço e alcançou o peito forte, adornado pela estrela de ouro com que o presenteara.
- Você é tão bonito - sussurrou, admirando os ombros musculosos, a cintura estreita, as faces de traços perfeitos. Parecia um deus saído da mitologia.
Deitaram-se lado a lado, encarando-se sem se tocar, mas tão próximos um do outro que podiam sentir o calor que emanava de cada corpo. Logo, porém, ela suspirou, alegre como um viajante que atinge o fim de uma jornada longa e solitária.
- Eu te amo - murmurou, puxando a cabeça de David de encontro aos seus seios.
Muito tempo depois, com o frio da noite invadindo o quarto, ficaram aconchegados sob as cobertas. Foi Debra quem rompeu o longo silêncio:
- Estou feliz por saber que você não precisará se operar.
- Não foi melhor descobrir por você mesma?
- Muito melhor, meu querido. Muito melhor.
Como já conhecesse as manias do seu homem, Debra perdeu toda uma noite tentando convencê-lo de que não necessitaria de um carro esporte para deslocar-se da base para casa. Frisou que estavam em um país de pioneiros onde não havia lugar para extravagância nem ostentação. David concordou, embora soubesse que os auxiliares de Aaron Cohen estavam vasculhando o país à procura de algo muito especial.
Debra sugeriu um carro japonês compacto, similar ao de seu irmão, obtendo de David a promessa de que pensaria seriamente no assunto. Entretanto, os funcionários de Aaron Cohen haviam localizado um Mercedes Benz 350 SL, pertencente ao adido comercial alemão em Telavive, que estava retornando a Berlim e pretendia se desfazer do veículo. Com uma simples ligação telefônica, foi providenciado o pagamento através do Credit Suisse em Zurique. O carro, de tonalidade bronze metálica, rodara apenas vinte mil quilômetros e fora conservado com o carinho e o amor de um colecionador.
Ao voltar da universidade, Debra deparou com a máquina reluzente estacionada no fim da Rua Malik, onde uma pesada corrente impedia o acesso de veículos motorizados à vila.
Bastou uma olhadela no carro para ela ter certeza de quem era o dono.
Estava realmente furiosa quando chegou ao terraço, e fingiu estar mais brava ainda.
- David Morgan, você é absolutamente impossível!
- E você é rápida - ele replicou num tom amigável.
- Quanto custou aquele carro?
- Faça-me outra pergunta, querida. Essa está ficando monótona.
- Você é um... é um... - Debra não encontrava a palavra adequada. - E um decadente!
- Você não sabe o significado dessa palavra - disse David enquanto se levantava da espreguiçadeira fitando-a com intensidade. Embora fossem amantes há apenas três dias, ela reconheceu a expressão do seu olhar e recuou. - Vou te ensinar o significado - ele continuou. - Será uma demonstração prática de decadência tão forte que você se lembrará por um longo tempo.
Tentando proteger-se atrás da oliveira, Debra deixou cair os livros pelo terraço.
- Não me toque, seu animal!
Quase sem esforço ele conseguiu agarrá-la pela cintura.
- Estou te avisando, David Morgan, se não me puser no chão agora mesmo, eu vou gritar.
- Por mim, tudo bem.
E de fato ela gritou, só que num tom deliberadamente falso, para não chamar a atenção dos vizinhos.
Joe, por sua vez, ficou entusiasmado com o carro. Os dois casais foram no Mercedes pela tortuosa estrada através da Judéia até as margens do mar Morto. As condições da pista desafiavam a suspensão do veículo e a perícia de David na direção. Cada curva era um motivo de excitação para todos. Até Debra superou sua resistência inicial, e finalmente admitiu que o carro era bonito.
Nadaram nas águas verdes e frias do oásis Ein Gedi, que formava uma piscina natural nas rochas antes de seguir caminho rumo ao mar. Hannah fotografou Debra e David sentados juntos na beirada da piscina, em roupas de banho, descontraídos e risonhos. A luz do deserto realçava os traços bonitos do rosto dele.
Cada um do grupo ganhou uma cópia da foto, que mais tarde seria tudo o que restaria da alegria daqueles dias. Só que, naquele dia ensolarado, o futuro ainda não lançara sombras sobre a felicidade deles. No trajeto de volta, com Joe na direção, Debra insistiu em que dessem carona a um grupo de soldados do corpo de tanques. Apesar dos protestos de David, receberam três militares no veículo, o que serviu de atenuante para o sentimento de culpa que assaltava Debra. Durante a viagem, todos cantaram o sucesso do momento, uma canção de um grupo de jovens de Israel: Que haja paz.
Enquanto esperava sua admissão na Força Aérea, David ocupava-se com pequenas tarefas, como mandar fazer o uniforme. Resistindo à sugestão de Debra, que lhe recomendara uma farda comum, igual à que seu pai, um oficial general, usava, entrou em contato com o alfaiate de Aaron Cohen, que começava a desenvolver um certo respeito pelo estilo de vida de David.
Debra conseguira associá-lo ao clube atlético da universidade, onde David praticava ginástica na primeira turma, todos os dias, antes de nadar na piscina olímpica para manter a forma.
De vez em quando, porém, ele se limitava a ficar tomando sol no terraço ou concentrado em pequenos afazeres domésticos, tais como instalar tomadas ou coisas do estilo.
Vagando solitário pelos quartos arejados, ele encontrava pertences de Debra - um livro, um bloco de papel - e os recolhia com um carinho quase ritual. Certa vez deparou com um robe jogado aos pés da cama. Ao sentir o cheiro dela na peça de tecido, comprimiu-a contra o nariz, aspirando profundamente, ansioso para vê-la voltar.
Mas foi entre os livros que David descobriu mais sobre ela do que jamais conseguiria em qualquer outra situação. Uma tarde, ele resolveu dar uma espiada nas caixas que se empilhavam no segundo quarto de dormir, que estava sem mobília e era usado como depósito. Surpreendeu-se com a autêntica salada literária que encontrou: de Gibbon a Vidal, de Shakespeare a Mailer, de Solzhenitsyn a Mary Stewart, entre dezenas de outros autores. Havia ficção, biografias, história e poesia, tanto em hebraico como em inglês. Brochuras, livros encadernados em couro, além de um pequeno volume de capa verde que ele quase descartou antes de ver o nome do autor: D. Mordecai. Com um sentimento de descoberta, virou a orelha do livro. Este ano, em Jerusalém, uma coletânea de poemas, por Debra Mordecai.
David levou o livro para o quarto, lembrando-se de tirar os sapatos antes de se deitar sobre a colcha. O volume continha cinco poemas. O primeiro, que dava título à obra, era um tributo patriótico à terra. Até David, leitor ardoroso de Maclean e Robbins, identificou ali uma peça de alta qualidade, com versos de rara beleza, frases evocativas e tiradas profundas. Era bom, muito bom, e estranhamente o deixou orgulhoso e feliz. Ele não a conhecia tão profundamente, até essas áreas escondidas da mente.
O último poema, o mais curto dos cinco, era uma canção de amor, ou melhor, um poema para alguém querido que se fora. Foi nessa peça que David descobriu a diferença entre o bom e o mágico. A musicalidade das palavras provocou-lhe arrepios pelo corpo, e a tristeza que transmitiam, o sentimento de perda, levoulhe lágrimas aos olhos quando o lamento final penetrou seu coração.
Com o livro apoiado no colo, lembrou-se do que Joe contara sobre o soldado morto no deserto. Naquele instante, um movimento chamou sua atenção. Instintivamente tentou esconder o volume. Aquele poema era tão pessoal, que ele se sentiu como se tivesse invadido a privacidade alheia.
Debra olhava-o da porta do quarto, encostada no batente, os braços cruzados sobre o peito. David mostrou-lhe o livro e disse:
- É muito bom - sua voz estava carregada de emoção.
- Fico feliz que você tenha gostado... - ela murmurou timidamente.
- Por que não me mostrou-o antes?
- Temia que você não gostasse muito...
- Você deve tê-lo amado muito...
- Sim, amei-o de todo o coração. Mas agora amo você.
Quando, afinal, saiu a designação de David, ficou evidente o toque de Brig, mesmo porque Joe admitira ter usado a influência da família para acomodar a situação. David iria servir no esquadrão "Lança" de Mirage, um grupo avançado de interceptadores baseados no mesmo aeródromo secreto que ele visitara. Quando Joe apareceu na Rua Malik para contar as novidades, não se mostrou ressentido pela patente de David ser mais alta que a sua; ao contrário, estava confiante em que voariam juntos em alguma equipe regular. O irmão de Debra passou a tarde inteira falando sobre o pessoal do esquadrão: do "Le Dauphin", o oficial comandante, um imigrante francês, até o último dos mecânicos. Essas informações seriam de extrema utilidade para David nas semanas que se seguiriam.
No dia seguinte, o alfaiate entregou-lhe as fardas. Para sua surpresa, Debra encontrou-o vestido com uma quando voltou para casa, carregada de livros e guloseimas, os cabelos soltos e os óculos escuros encaixados no alto da cabeça. Ela deixou as coisas sobre a pia e abraçou-o, avaliando-o de alto a baixo.
- Gostaria que você me pegasse na faculdade vestido desse jeito amanhã à tarde - ela disse, finalmente.
- Por quê?
- Por causa de algumas fulaninhas que ficam rondando o edifício Lauterman. Algumas são minhas alunas e outras são colegas.
Quero que elas dêem uma boa olhada em você, e fiquem morrendo de inveja. Ele riu.
- Então você não está com vergonha de mim?
- Morgan, você é bonito demais para uma única pessoa! Deveria ter tido um irmão gêmeo.
Como era o último dia que passariam juntos, David concordou e saiu fardado para pegá-la no Departamento de Literatura Inglesa. Foi uma surpresa descobrir como o uniforme impressionava os estranhos na rua: as garotas sorriam para ele, as senhoras lhe diziam shalom, e até o guarda no portão da universidade cumprimentou-o com efusão.
Para todos eles, o soldado era um anjo da guarda, alguém que varria a morte que pairava sobre eles.
Debra correu para encontrá-lo. Depois de lhe dar um beijo, andou a seu lado, a mão no cotovelo de David, orgulhosa e demonstrando posse. Convidou-o para jantar no refeitório dos funcionários, no edifício Belgium, que era circular e todo envidraçado.
Enquanto comiam, uma pergunta casual de David revelou o subterfúgio que ela usara para manter as aparências.
- Provavelmente não sairei da base por algumas semanas, mas escreverei para a Rua Malik.
- De jeito nenhum - ela replicou. - Não vou estar lá. Seria solitário demais aquela casa enorme sem você.
- Onde então? Na casa de seus pais?
- Seria o mesmo que me entregar, pois toda vez que você viesse para a cidade eu sairia de casa. Não, o pessoal pensa que estou no alojamento daqui da universidade. Eu argumentei que queria ficar mais perto do departamento.
- Você tem um quarto aqui?
- Claro, Davy. Preciso ser discreta. Jamais poderia dizer aos meus amigos, parentes e empregadores para me contatarem na residência do major David Morgan. Estamos no século vinte, em um país moderno, mas ainda sou judia e tenho uma tradição a zelar.
Pela primeira vez David compreendeu a magnitude da decisão de Debra de morar com ele.
- Sentirei sua falta - ele disse.
- E eu a sua.
- Vamos para casa.
Ela concordou, depositando o garfo e a faca sobre a mesa.
- Comerei em outra hora. - Quando deixavam o salão Belgium, completou, exasperada: - Preciso devolver estes livros hoje. Vamos passar pela biblioteca? Não demoro mais do que um minuto.
De volta ao terraço principal, passaram sob as janelas iluminadas do refeitório de estudantes e se dirigiram à torre quadrada da biblioteca. Tinham subido a escada e alcançado as portas de vidro quando um grupo de estudantes saiu, forçando-os a dar passagem.
Encontravam-se diante do refeitório de onde haviam saído, ao longo da praça com terraços e árvores floridas, no momento em que um clarão súbito, seguido de uma explosão, arrebentou os vidros das janelas do restaurante provocando uma nuvem de fragmentos brilhantes. Foi um impacto forte como uma onda gigantesca batendo em um rochedo, espalhando gotículas brilhantes como um spray. Só que aquele chuvisco era mortal e mutilou pelo menos duas estudantes que passavam ao lado das janelas.
Imediatamente após a explosão, o deslocamento de ar varreu o terraço, um bafo violento que agitou as árvores e jogou David e Debra contra os pilares do prédio. Atingidos em cheio pela concussão, sentiram os tímpanos doloridos, e o ar lhes faltar nos pulmões.
David aninhou Debra nos braços durante os momentos de silêncio que se seguiram à explosão. Enquanto estavam assim, uma nuvem de fumaça branca de fósforo saía das janelas despedaçadas do refeitório e se espalhava pelo terraço.
Então, muito mais forte que o zunido nos ouvidos, escutaram o estalido do vidro, o baque surdo do reboco e a mobília senão destruída. Um grito feminino arrancou-os da paralisia do terror.
Gritaria e corre-corre ocuparam o lugar da quietude de alguns segundos que reinara após a explosão.
- Colocaram uma bomba no café - disse alguém em altos brados, a voz histérica.
Uma garota que caíra sob a chuva de vidro levantou-se e pôs-se a correr sem rumo, gritando sons desconexos e sem emoção. Estava coberta de pó do reboco, através do qual o sangue fluía empapando suas roupas.
- Foram os porcos - murmurou Debra, trêmula de ódio. - Os porcos assassinos, nojentos...
Outra figura cambaleava entre os destroços enfumaçados. Com a roupa em frangalhos, chegou ao terraço e sentou-se devagarinho, tirou os óculos que miraculosamente ainda estavam no seu rosto e esfregou-os nos farrapos da camisa para limpá-los. O sangue escorria de seu queixo.
- Vamos - disse David a Debra. - Temos que ajudar. - E correram em direção ao local destruído.
Parte do teto desabara com a explosão, esmagando vinte e três estudantes que comiam ou conversavam. Outros tinham sido jogados a distância, como brinquedos, manchando de sangue o hall onde haviam caído. Alguns ainda se arrastavam ou se contorciam em espasmos entre o emaranhado de mobília, louça quebrada e comida espalhada.
Mais tarde, viriam a saber que duas jovens, membros do El Fatah, infiltradas na universidade com documentos falsos, haviam transportado diariamente pequenas quantidades de explosivos para o campus, até terem juntado o suficiente para aquele atentado. Uma maleta com o temporizador fora deixada sob uma mesa, e as duas terroristas tinham saído em seguida. Uma semana depois, apareciam na televisão em Damasco alardeando o sucesso da operação.
Entretanto, no momento, não havia explicação para aquela súbita demonstração de violência. Parecia tão sem objetivo, apesar de terrível como um cataclisma, tão aterrorizante em sua insensatez...
Os que não foram atingidos puseram-se a trabalhar na remoção dos feridos, alguns dos quais presos sob os escombros. Estenderam os mortos nas alamedas entre as árvores, cobrindo-os com lençóis trazidos dos alojamentos mais próximos. A fileira de invólucros brancos sobre a grama verde formava uma visão da qual David jamais se esqueceria.
Enquanto as ambulâncias e os carros da polícia chegavam ao campus, David e Debra caminhavam lentamente até o estacionamento. Estavam sujos de poeira e de sangue, e arrasados com o espetáculo que haviam presenciado. Não trocaram uma só palavra durante o trajeto até a Rua Malik. Debra pôs a farda de David de molho na água fria, para remover o sangue; em seguida, fez café, que os dois tomaram sentados lado a lado na cama de latão.
- Muita gente boa e forte morreu esta noite - comentou ela, baixinho.
- A morte não é o pior. A morte é natural, é a conclusão lógica de tudo. O que me abala é a carne dilacerada e que continua viva. A morte tem uma certa dignidade, mas os mutilados são obscenos.
Debra assumiu uma expressão atônita.
- Isso é crueldade, David.
- Na África existe um animal belo e forte chamado antílope negro. Anda em rebanhos de até cem animais, mas quando um está machucado, ferido por um caçador ou um leão, o líder do rebanho ataca-o e o afasta dos demais. Quando meu pai me contava sobre isso, dizia que quem quiser ser um vencedor deve evitar a companhia dos perdedores, pois o desespero é contagioso.
- Meu Deus, David, que maneira terrível de encarar a vida!
- Talvez, mas o fato é que a vida é dura.
Naquela noite, pela primeira vez, fizeram amor com um certo desespero, pois era véspera da partida e tinham sido lembrados de que eram simples mortais. Na manhã seguinte, David rumava para o esquadrão e Debra fechava a casa na Rua Malik.
Durante dezessete dias, David fez de dois a três vôos diários de reconhecimento. A noite, quando não saía em alguma missão, ficava assistindo a palestras e filmes de treinamento, após o quê, só tinha ânimo para fazer uma refeição antes de ir dormir.
O coronel, Le Dauphin, acompanhou-o durante um vôo. Era um homem de pequena estatura, modos suaves e um olhar penetrante, que fez rapidamente seu julgamento.
Após o primeiro dia em que voou com Joe, David levou suas coisas para o armário em frente ao dele no abrigo subterrâneo destinado às tripulações de prontidão.
Aquele período de dezessete dias forjou os últimos elos de uma amizade de ferro, onde o brilho e o arrojo de David contrabalançavam perfeitamente com a firmeza e a dependência de Joe.
David sempre seria a estrela enquanto Joe parecia destinado a ser o coadjuvante, o sujeito correto, o bom companheiro, sem ambições pelo sucesso pessoal e cujo talento consistia em colocar o número um em posição de tiro.
Formavam uma equipe extraordinária. Entendiam-se tão bem que a comunicação no ar parecia extra-sensorial. Joe voando atrás dele era como um seguro de um milhão de dólares. A retaguarda estaria protegida, e David poderia concentrar-se na tarefa para a qual sua visão aguçada e reação imediata se prestavam tão perfeitamente. David era o artilheiro, em uma tarefa na qual o artilheiro era o supremo.
A FAI, Força Aérea de Israel, fora a primeira a dar-se conta da deficiência do míssil ar-ar, voltando-se então para o tipo clássico de combate aéreo. Um míssil podia ser induzido a um "vôo estúpido" - era possível fazer seu computador adotar determinada trajetória e logo enganá-lo com o rompimento da comunicação. Para cada trezentos mísseis lançados em um combate aéreo, esperava-se apenas um impacto.
No entanto, diante de um artilheiro vindo da posição seis horas, com o dedo sobre o gatilho de um canhão duplo de 30 milímetros, capaz de despejar doze mil tiros por minuto, as chances de escapar eram consideravelmente menores que trezentos para um.
Joe também possuía seu talento especial. O radar de varredura frontal do Mirage - um sistema eletrônico complexo e sofisticado - exigia antes de tudo um alto grau de destreza manual. O
mecanismo devia ser operado com a mão esquerda, com dedos que se movessem como os de um pianista. E, o mais importante: a "sensibilidade" do instrumento, tratá-lo com carinho para obter os melhores resultados. Joe tinha essa sensibilidade, David não.
Faziam vôos de interceptação diurnos e noturnos, contra alvos de treinamento de baixa e de alta altitude, simulavam ataques em vôo rasante e, de vez em quando, sobrevoavam o Mediterrâneo, perseguindo-se como cão e gato.
Entretanto, Flor do Deserto mantinha-os afastados de situações reais ou potenciais de combate. Estavam observando David.
Ao final do estágio, o relatório de serviço de David passou pela mesa do major-general Mordecai. Sua responsabilidade no caso era pessoal, mas mesmo assim ele fez questão de ver o dossiê, uma pasta fina, quando comparada à de velhos oficiais.
Brig folheou a parte de sua própria recomendação inicial e os documentos do alistamento de David. Então parou para ler os últimos informes e os resultados. Sorriu com malícia ao ver o relatório de artilharia. O rapaz seria capaz de acertar um alvo no meio de uma multidão, pensou satisfeito. Finalmente chegou à avaliação pessoal de Le Dauphin:
"Morgan é um piloto de habilidade excepcional. Recomendo que a patente de alistamento seja mantida e que o coloquem em plena operação imediatamente".
Brig pegou a caneta e escreveu "Concordo" no pé da página.
Isso liquidava o assunto Morgan, o piloto. Agora ele podia considerar Morgan, o homem. Sua expressão tornou-se séria de repente. A decisão de Debra de sair de casa assim que David aparecera em Jerusalém era intempestiva demais para ser mera coincidência, sobretudo para um homem acostumado a buscar motivos e significados nas entrelinhas.
Custara-lhe dois dias e algumas ligações telefônicas para descobrir que Debra mal usava seu quarto no alojamento da universidade, e que suas acomodações domésticas eram bem mais confortáveis.
Brig não aprovava em absoluto aquele comportamento, embora compreendesse que o assunto fugia de sua alçada. Afinal, a filha herdara sua própria vontade de ferro. As confrontações entre eles eram cataclismas que abalavam as estruturas da família e raramente terminavam de modo satisfatório. Mesmo passando a maior parte do tempo com gente de outra geração, Brig sentia dificuldade para conviver com os novos valores, e mais ainda para aceitálos. A lembrança da agonia de seu longo e casto noivado com Ruth permanecia vivida em sua memória, como algo que tivesse ocorrido há pouco tempo.
- Bem, pelo menos ela teve o bom senso de não tornar a coisa pública, de não nos envergonhar. Ela poupou sua mãe disso - murmurou Brig enquanto fechava o dossiê.
Le Dauphin chamou David a seu escritório e comunicou-lhe a mudança: ele ficaria em prontidão regular "verde", que significava quatro noites por semana na base.
David precisaria agora passar pelo treinamento em combate armado e corpo a corpo. Um piloto abatido em território árabe teria mais chances de sobrevivência se fosse eficiente nesses tipos de luta.
À saída do escritório de Le Dauphin, David seguiu direto para o telefone da sala da tripulação. Encontrou Debra ainda no edifício Lauterman.
- Esquente a cama, querida - disse ele. Chegarei amanhã à noite.
Acompanhado de Joe, viajou para Jerusalém no Mercedes. Ele não estava escutando o que o amigo dizia até que levou um belo cutucão nas costelas.
- Desculpe-me, Joe, eu estava pensando.
- É bom parar. Seus pensamentos estão embaçando os vidros.
- O que você estava dizendo?
- Falava do meu casamento com Hannah.
David lembrou-se de que faltava apenas um mês para a cerimônia. O alvoroço das mulheres devia estar tão forte quanto a estática antes de uma chuva de verão. As cartas de Debra tinham sido repletas de novidades sobre a preparação.
- Eu ficaria feliz se você fosse minha testemunha. Você voaria como apoio, para variar, enquanto eu ataco o alvo.
Ao compreender que estava sendo honrado com o convite, David aceitou-o com a devida solenidade. No fundo sentia-se confuso. Como a maioria dos jovens israelitas com quem conversara, Debra e Joe haviam dito não serem religiosos. David aprendera que essa afirmação era uma farsa. Todos eles estavam bem conscientes da herança religiosa, e instruídos na prática e na história do judaísmo. Seguiam as regras que não consideravam opressivas e que concordassem com uma existência ativa e moderna.
Para eles, "religioso" significava vestir-se com roupas pretas e chapéu de abas largas, que os ultra-ortodoxos Mea Shearim usavam, ou seguir uma rotina diária cheia de restrições.
O casamento seria um acontecimento tradicional, com toda a pompa e simbolismo, só dificultado pelas medidas de segurança que teriam de ser reforçadas. A cerimônia estava prevista para a casa do noivo, pois Hannah era órfã. Ali, o jardim com suas paredes de fortaleza oferecia amplas facilidades de proteção. Diversas personalidades civis e militares estavam entre os convidados.
- Na última festa que promovemos havia cinco generais e dezoito coronéis - informou Joe. - Acrescente a esses a maior parte do gabinete, talvez até a própria Golda, e você verá que é um belo alvo para o pessoal do Setembro Negro. - Ele acendeu dois cigarros, passando um para David. - Se não fosse por Hannah, você sabe como as mulheres são com o casamento, eu simplesmente iria direto para o primeiro cartório.
- Você não consegue enganar ninguém. - David riu. - Aposto como está ansioso pela festa.
- É verdade... Vai ser bom ter nosso próprio lugar, como você e Debra. Puxa vida! Um ano de fingimento! Ainda bem que chegou ao fim.
David parou o carro em frente à casa de Brig em Ein Karem.
- Não vou incomodá-lo convidando-o para entrar - disse Joe. - Imagino que tenha planos para hoje.
- É bem capaz! - retrucou David com um sorriso. - Por que não aparecem para jantar amanhã à noite?
- Preciso levar Hannah até Ashkelon para visitar a sepultura de seus pais. Faz parte do ritual antes do casamento. Talvez vejamos vocês no sábado.
- Combinado. Debra vai querer vê-lo. Shalom, Joe.
- Shalom, shalom.
David deu a partida no carro, apressado para chegar logo em casa. Encontrou a porta do terraço aberta, em sinal de boas-vindas. Debra, tensa com a espera, levantou-se de uma das novas cadeiras de couro, os cabelos recém-lavados, e, vestindo um cafetã de seda fina, atravessou correndo os tapetes da sala, atirando-se nos braços dele.
- David, David - murmurou num tom apaixonado.
Em seguida ela mostrou-lhe as mudanças que fizera na casa durante a ausência dele. Haviam escolhido juntos o desenho da mobília, que fora toda confeccionada pelo carpinteiro árabe que Debra conhecia. Os móveis em couro e madeira escura, latão e cobre polido estavam dispostos como tinham combinado. No entanto, havia uma peça nova para David, uma pintura em óleo sobre tela, pendurada sem moldura na parede em frente ao terraço. Era o único item de decoração na parede, e qualquer outro pareceria insignificante ao lado dele. Tratava-se de uma bela paisagem, uma cena do deserto que capturava a alma selvagem, em cores fortes e quentes que davam a impressão de invadir a sala como os próprios raios do sol.
Debra demonstrou ansiedade enquanto David examinava a pintura.
- Puxa! - ele disse por fim.
- Você gostou?
- É magnífica. Onde a conseguiu?
- Foi um presente da artista. É uma velha amiga.
- Mulher?
- Exato. Vamos a Tibérias amanhã para almoçar com ela. Falei de você, e ela quer conhecê-lo.
- Como é ela?
- É uma das nossas maiores artistas. Chama-se Ella Kadesh. Fora isso não sei descrevê-la. Só prometo que teremos um dia interessante amanhã.
Debra preparara um jantar especial à base de carne de carneiro, que ela serviu no terraço, sob a oliveira. A conversa girava em torno do casamento de Joe, quando David perguntou bruscamente:
- O que levou você a vir morar comigo, sem nos casarmos?
- Descobri que o amava e que você era impaciente demais para agüentar o jogo da espera. Se eu não me decidisse, iria perdê-lo novamente.
- Até há poucos dias, eu não tinha percebido a importância de sua decisão. - Ele fez uma pausa para depois completar: - Vamos nos casar, Debs.
- É uma ótima idéia.
- O mais breve possível.
- Não antes de Hannah. Não quero roubar esse dia dela.
- Está bem. Mas logo em seguida.
- Morgan, isso é um compromisso!
Levariam três horas de carro até Tibérias, razão por que levantaram-se com o nascer do sol e decidiram tomar banho juntos, sentados frente a frente na banheira.
- Ella é a pessoa mais rude que você possa imaginar - comentou Debra. - Quanto mais você a impressionar, mais rude ela será. E você deve tratá-la com delicadeza. Por favor, David, não perca a calma.
- Eu prometo - disse ele, brincando com a espuma. Foram até Jericó, e de lá seguiram para o norte através do vale do Jordão, acompanhando as cercas altas de arame farpado que marcavam a fronteira, cheias de avisos sobre campos minados e de patrulhas motorizadas que passavam regularmente pela estrada. Estava quente dentro do veículo, apesar das janelas abertas. Então Debra levantou a saia até as coxas para refrescar as pernas.
- É melhor não fazer isso se quiser chegar a tempo para o almoço - observou David, malicioso.
- Nada é seguro com você por perto - ela replicou, abaixando o vestido.
Saíram da região estéril e entraram na zona fértil dos kibutzim da Galiléia. Novamente o cheiro de flores de laranjeira enchia o ar.
Por fim, avistaram as águas do lago brilhando entre as tamareiras.
- Ella mora a poucos quilômetros - disse Debra -, deste lado do lago Tiberíades, por aquele desvio.
Era uma trilha que ia até as margens do lago e terminava em um muro de velhos blocos de pedra. Havia cinco carros estacionados no local.
- Ella está dando um de seus almoços - observou Debra enquanto cruzavam um portão, atrás do qual havia um pequeno castelo em ruínas. As pedras caídas formavam estranhas figuras e estavam enegrecidas pelo tempo. Sobre elas, cresciam flamboyants e altas palmeiras que balançavam ao sabor da brisa.
Parte das ruínas fora restaurada e transformada em uma casa pitoresca e incomum ao lado do lago, com um grande pátio e um ancoradouro de pedra onde se via um barco amarrado. Na margem oposta das águas verdes surgia a sombra escura das colinas de Golan, que pareciam as costas de uma baleia.
- Aqui existia uma fortaleza na época das Cruzadas - Debra explicou. - Era um posto de guarda para controlar o tráfego no lago e em parte dos caminhos para o castelo em Hattin, o monte das Beatitudes, que foi destruído quando os muçulmanos expulsaram os cruzados da Terra Santa. O avô de Ella comprou-o durante a administração de Allenby, mas só o reconstruiu após a guerra da independência.
O cuidado com que as alterações tinham sido feitas, visando não descaracterizar a beleza romântica do local, era um tributo à visão artística de Ella Kadesh, que por sua vez era uma figura estranha como mulher. Não se tratava de alguém simplesmente alto e gordo, mas enorme, que usava anéis e pedras semipreciosas em todos os dedos e pintava as unhas dos pés, que apareciam através da sandália aberta, de uma tonalidade carmesim brilhante, realçando ainda mais seu tamanho descomunal. Tão alta quanto David, vestia uma túnica que parecia uma barraca, cheia de desenhos berrantes, e exibia uma peruca encaracolada, vermelho-escuro, e enormes brincos dourados. A maquiagem estava borrada, visivelmente feita com descuido. Ella removeu a cigarrilha da boca e beijou Debra antes de se virar para David. Com voz rouca, recendendo fumaça e conhaque, comentou:
- Não pensei que você fosse tão bonito. Não gosto da beleza, que quase sempre decepciona ou é inconseqüente. Em geral esconde algo mortífero, como acontece com as cobras, ou como o papel brilhante de um doce. Com toda a segurança, prefiro a feiúra à beleza.
David sorriu, cheio de charme.
- Bem - disse ele -, depois de conhecê-la e ver algo do seu trabalho, posso compreender sua posição.
Ela soltou uma gargalhada ruidosa.
- Pelo menos não estamos lidando com um soldadinho de chocolate. - Colocando um braço em seu ombro, conduziu-o para conhecer os outros.
Havia cerca de uma dúzia de pessoas, todos intelectuais, artistas, escritores, professores e jornalistas. Sentando-se ao lado de Debra, sob o sol morno, David saboreava uma cerveja, entretido na conversa, mas quando o almoço foi servido, Ella voltou a provocá-lo.
- Esse ar marcial, essa pompa, essa afetação, é tudo uma droga. Seu patriotismo, sua coragem, sua falta de medo, é tudo impostura e fingimento, uma desculpa para empestar a terra com cadáveres.
- Gostaria de saber se você pensará o mesmo quando um pelotão da infantaria síria entrar aqui e violentá-la - retrucou David.
- Meu querido, tenho tido tanta dificuldade em me deitar com alguém ultimamente, que eu deveria rezar para que algo assim acontecesse. - Ao rir da própria piada, ela quase deixou cair a peruca. - Você é um macho cheio de bazófia, um egoísta, um arrogante. Para você, essa mulher - e apontou para Debra com uma coxa de peru - não passa de um receptáculo para depositar seu esperma. Pouco lhe importa que ela seja uma promessa para o futuro, que nela estejam as sementes de um grande talento literário. Não. Para você, ela é apenas um meio conveniente de...
- Basta, Ella - interrompeu Debra. - Não vou permitir um debate público sobre minha intimidade.
A mulher virou-se para ela, os olhos brilhantes com a perspectiva de debate.
- Seu talento não é para ser usado a seu bel-prazer. Você tem um dever para com a humanidade. É sua obrigação exercitá-lo, permitir que ele cresça, floresça e dê frutos. Você escreveu alguma coisa desde que abrigou o jovem Marte em seu coração? E o romance que discutimos nesta mesma varanda há um ano? Sua paixão animal também afogou-se? O grito de seus ovários...
- Pare com isso, Ella! - Debra estava brava, as faces vermelhas e os olhos faiscando.
- Claro, claro! Você deve estar envergonhada, brava consigo mesma...
- Dane-se! - Debra gritou.
- Fale o que quiser; você é que estará se danando se não escrever! - Passados alguns segundos, Ella completou: - Bem, pessoal, agora vamos nadar.
A noite, durante a volta para Jerusalém, vermelhos de sol, David e Debra passaram a maior parte do tempo em silêncio.
- Em uma coisa, Ella tem razão - disse ele. - Você deve voltar a escrever, Debs.
- Sim, vou voltar.
- Quando?
- Qualquer dia desses - ela murmurou enquanto aninhava a cabeça no ombro dele.
- Qualquer dia desses - David imitou sua voz.
- Me deixa em paz, Morgan. - Ela estava quase dormindo.
- E você não seja evasiva. Nem durma enquanto eu estiver falando.
- David, meu querido, temos a vida inteira, e mais um pouco. Você me tornou imortal. Devemos viver por mil anos; aí teremos tempo para tudo.
No sábado, Joe e Hannah foram visitá-los na casa da Rua Malik. Almoçaram juntos, depois saíram para um passeio no monte Sião, do outro lado do vale. Percorreram o labirinto de corredores que dava na tumba de David, admirando as roupas maravilhosamente bordadas, as coroas e capas de Torah de prata. Alguns passos adiante, viram o local da última ceia de Cristo - naquele local, as tradições cristãs e judaicas estavam muito próximas umas das outras.
Depois seguiram para a cidade velha. Passaram pelo portão de Sião e andaram à beira do muro que cercava o centro do judaísmo, alto e com blocos de pedra maciça, que era tudo o que restara do fabuloso segundo templo de Herodes, destruído havia dois mil anos pelos romanos.
Foram revistados no portão e então juntaram-se ao fluxo de fiéis em direção ao muro. Ficaram parados, em silêncio, por um longo tempo na barreira. David sentiu outra vez uma onda de nostalgia, um vazio na alma que há muito não era preenchido.
Os homens oravam de frente para a parede, muitos usando os sobretudos pretos dos ortodoxos, as longas costeletas balançando nas bochechas enquanto se movimentavam. As mulheres eram mais reservadas em sua devoção na clausura ao lado.
Por fim, Joe disse, um pouco embaraçado:
- Vou orar um sh'ma.
- Sim - Hannah concordou. - Você vem comigo, Debra?
- Espere um pouco. - Ela virou-se para David, tirando algo da bolsa. - Fiz isso para você usar no casamento, mas use-o agora.
Era um yamulka, a pequena boina bordada de cetim preto usada nas orações.
- Acompanhe Joe - ela recomendou. - Ele lhe mostrará o que fazer.
Debra e Hannah dirigiram-se à clausura das mulheres. David, colocando a boina na cabeça, seguiu Joe até o muro.
Um shamash, um ancião de longas barbas prateadas, aproximou-se e estendeu para David uma pequena caixa de couro com um pedaço do Torah.
- Você deve depositar essas palavras em seu coração e em sua alma, e deve segurá-la com a mão direita.
O velho pôs um tallit, um xale de lã de carneiro, sobre os ombros de David, que começou a repetir suas palavras:
- Ouça, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Um... - Sua voz se tornava mais firme à medida que se lembrava da oração há muito aprendida.
Antes dele, milhares de fiéis haviam escrito suas preces em pedaços de papel e enfiado nas juntas entre os blocos. Em sua imaginação, parecia que um raio dourado, de prece, subia daquele lugar santo para o céu.
Saindo da clausura, pegaram as escadas para o quarteirão judeu. Uma sensação de bem-estar continuava vivida em seu corpo.
Naquela noite, sentaram-se no terraço para tomar cerveja e comer semente de girassol. Logo, a conversa voltou-se para a religião.
Joe comentou:
- Sou israelita, portanto um judeu. Primeiro meu país; depois, bem atrás, a religião. - No entanto, David lembrava-se da expressão de seu rosto enquanto orava no muro...
De qualquer modo, o longo bate-papo entre os amigos serviu para que David percebesse toda a extensão de sua herança religiosa. Tanto que admitiu que gostaria de descobrir um pouco mais sobre o assunto. Debra não disse nada, mas naquela noite, ao arrumar as malas que ele levaria para a base, colocou por cima das fardas um exemplar do Este é meu Deus de Herman Wouk.
Ele o leu e, quando retornou na semana seguinte, pediu outros livros. Debra providenciou-os, de início em inglês e logo em hebraico. E não apenas obras religiosas, como também estudos históricos, que aumentaram seu interesse por aquele antigo centro da civilização. David lia qualquer coisa que ela colocasse em sua mala, de Flávio Josefo a Leon Uris.
Como fruto desse aprendizado, decidiu conhecer toda a região. Para isso dedicou seu tempo livre a longas explorações, sempre acompanhado de Debra. Começaram pelo templo de Herodes em Masada, que se localizava no alto de uma colina onde os fanáticos tinham-se matado uns aos outros para não se submeterem ao império romano. Depois, afastaram-se do circuito turístico para visitar locais históricos menos conhecidos.
Naqueles dias ensolarados, comiam lanches sentados sobre as ruínas de um aqueduto romano e ficavam longo tempo observando os falcões que rondavam as águas termais que surgiam do deserto. Depois vasculhavam o leito seco de um rio sazonal à procura de moedas levadas pelas últimas chuvas.
Foram os dias mais felizes da vida de David. Além de compensar as desgastantes horas de prontidão na base, quando ele voltava para casa tinha conforto, alegria e amor.
Joe e David obtiveram uma licença especial para a festa do casamento. Estavam em uma época tranqüila, e Le Dauphin deixouos ir sem protestar, pois também era um dos convidados.
Assim que chegaram em Jerusalém, na véspera da cerimônia, foram convocados para ajudar nos preparativos. David trabalhou como caminhoneiro e motorista de táxi. Seu Mercedes transportou de tudo, de flores a instrumentos musicais, além de parentes das famílias envolvidas.
O jardim foi decorado com folhas de palmeiras e bandeiras. No centro havia uma huppah - um dossel adornado com símbolos religiosos em azul e dourado, a estrela-de-davi, folhas de uva e ramas de trigo, romãs e outros símbolos da fertilidade - aos pés da qual a cerimônia teria lugar. Mesas cobertas com toalhas em cores alegres, arranjos de flores, e pratos de frutas foram dispostos sob as oliveiras. Havia lugar para trezentas pessoas, uma área livre para dançar e um tablado enfeitado com flâmulas, para a orquestra.
Tinha sido contratado um bufê, que serviria um menu escolhido pelo maitre e pelas mulheres. Os pratos principais consisti im de atum - outro símbolo da fertilidade - e de carneiro preparado à moda dos beduínos, servido em bandejas de cobre.
No domingo do casamento, David levou Hannah até a residência do cirurgião-chefe do hospital Hadassah, que insistira em que ela usasse sua casa para se preparar para a festa. David deixou a noiva e Debra lá, voltando então para Ein Karem. A alameda que dava na casa estava isolada e cheia de agentes do serviço secreto de pára-quedistas.
No quarto do noivo, David dívertía-se em contar piadas, tentando deixar o rapaz mais à vontade. Enquanto Joe acabava de se vestir, David postou-se à janela, a tempo de ver um coronel da Força Aérea ser revistado nos portões, aceitando isso com naturalidade.
- O pessoal está sendo bem cuidadoso - observou David.
- Hannah pediu que colocassem o mínimo possível de guardas no jardim. Então o cuidado está sendo redobrado com os que entram. - Não fazia cinco minutos que se vestira, e Joe já estava com a farda suada embaixo dos braços. - Que tal estou? - perguntou ansioso.
- Maravilhoso!
- Pára de me encher, Morgan! Bem, está na hora. Vamos. O rabino-chefe do Exército esperava-o no escritório da casa. Era um homem de boas maneiras, que na guerra de 67 conquistara pessoalmente a Tumba dos Patriarcas. Dirigindo um jipe através das linhas árabes que se desintegravam durante o ataque a Hebron, arrombara a porta da tumba com uma rajada de balas e perseguira os soldados inimigos, obrigando-os a fugir pelo muro dos fundos.
Joe sentou-se à escrivaninha de Brig e assinou o ketubbah, o contrato de casamento. Então o rabino entregou-lhe um tecido de seda, que o noivo ergueu num ato formal de aquisição, sob o coro de congratulações das testemunhas.
A comitiva da noiva saiu para o jardim a fim de esperá-la. Hannah chegou acompanhada pelo médico, que fazia as honras do pai dela, falecido, e também por um séquito de mulheres em trajes festivos, incluindo Debra e sua mãe. Todos portavam candelabros acesos.
Para David, Hannah nunca fora particularmente atraente; ela era muito alta e austera, de corpo e expressão, embora naquele momento estivesse bastante transformada: parecia flutuar com o vestido esvoaçante, e suas faces estavam suavizadas pelo véu e pelo olhar que irradiava felicidade. Seu rosto parecia emoldurado pelos cabelos ruivos, e as sardas tinham sido disfarçadas pela maquiagem. O resultado era que estava senão bonita, pelo menos muito atraente.
Joe, uma figura bem-apessoada no traje da Força Aérea, adiantou-se ansioso para recebê-la no portão do jardim e abaixar o véu do seu rosto na cerimônia do bedeken dikalle. Ele dirigiu-se ao dossel huppah, onde o rabino o aguardava com um tallit sobre os ombros. Atrás do noivo, as mulheres conduziram Hannah, cada uma ainda segurando um candelabro aceso.
O rabino entoou uma bênção enquanto as mulheres e a noiva giravam em volta de Joe por sete vezes, no círculo mágico que nos velhos tempos servia para espantar os maus espíritos. Por fim, os noivos ficaram lado a lado, encarando o Templo. As testemunhas e os convidados aproximaram-se. Começava a cerimônia propriamente dita.
O rabino abençoou um cálice de vinho, do qual a noiva e o noivo beberam. Joe virou-se para Hannah, que ainda estava com véu, e colocou-lhe a aliança de ouro no indicador da mão direita.
- Através desta aliança você se dedicará a mim, de acordo com a lei de Moisés e de Israel.
Em seguida, o noivo quebrou o copo com o calcanhar. O barulho do vidro foi o sinal para a explosão de música, canção e alegria. David saiu do lado do noivo e cruzou a multidão para se encontrar com Debra.
Ela usava um vestido amarelo e tinha um arranjo de flores nos cabelos. Aspirando o perfume delas, David cochichou-lhe ao ouvido:
- Você será a próxima, minha querida!
- Sim, claro! - murmurou ela.
Joe tomou Hannah em seus braços e a conduziu para a pista de dança. A maior parte dos jovens acompanhou-os, enquanto os mais velhos se espalhavam pelas mesas dispostas no jardim.
Apesar da música e da alegria, os uniformes militares dos convidados criavam uma atmosfera sombria. Quase todos os homens estavam armados, e no portão do jardim e na entrada da cozinha viam-se pára-quedistas fardados, cada um com sua submetralhadora Uzzi dependurada no ombro. Era fácil identificar os agentes do serviço secreto. Eram os únicos em trajes civis, e circulavam com a expressão fechada, alertas e vigilantes.
David e Debra dançaram alguns números, depois afastaram-se para um canto isolado, onde se puseram a fofocar, falando dos outros convidados. Diante de uma observação maliciosa de David, ela caiu na risada, pressionando-lhe o braço.
- Você é terrível! - murmurou ela. - Estou morrendo de sede, não vai me oferecer algo para beber?
- Que tal um vinho branco gelado?
- Perfeito!
Encararam-se em silêncio por alguns instantes. De repente, porém, David foi assaltado por uma terrível premonição de perda eminente. Um presságio tão forte, que de um momento para o outro toda a felicidade e a alegria esvaíram-se de seu coração...
- O que houve, David? - A expressão de Debra alterou-se em sintonia com a dele.
- Nada. - Uma sensação de náusea invadia-lhe o estômago. - Não é nada. Vou pegar o vinho - disse, afastando-se.
Ao cruzar a multidão em direção ao bar, avistou o grupo formado pelos noivos e por Brig, que conversavam descontraídos. Apesar de perceber que Joe o chamava, limitou-se a acenar-lhe com a mão, sem interromper seu caminho. Afinal de contas, continuava sentindo o mesmo mal-estar de minutos atrás e preferia ficar a sós.
Naquele momento, uma procissão de garçons em jaquetas brancas adentrou o jardim pelo portão de ferro. Cada um transportava uma bandeja de cobre, de onde subia uma tênue fumaça. O cheiro de carne e de peixe encheu o ar, provocando exclamações entusiasmadas. Os convidados que lotavam o terreno abriam caminho até a mesa colocada no terraço que dava para a cozinha da casa.
Os garçons passavam próximos de David, quando sua atenção foi atraída para o rosto do segundo da fila, um homem de altura mediana, pele escura e bigode espesso.
Ele estava suando... Qual seria a explicação para isto? Suas faces brilhavam de suor; gotículas escorriam das bochechas para o pescoço, e a jaqueta estava encharcada embaixo dos braços.
Ao passar por David, seus olhos se encontraram. Deu para perceber que o homem estava tomado por uma emoção muito forte; talvez medo, talvez euforia... de qualquer modo, ele desviou o olhar, nervoso.
Uma pontada de suspeita cruzou a mente de David quando as três figuras subiram a escada de pedra e se postaram atrás da mesa.
O garçom olhou-o novamente e, notando que David ainda o encarava, sussurrou algo quase sem mover a boca para um dos companheiros, que também olhou para David. Sua expressão e seu olhar foram suficientes para disparar todos os alarmes de David. Algo estava acontecendo, algo perigoso e mau, ele tinha certeza.
Desesperado, procurou pelos guardas. Havia dois no terraço atrás dos garçons e um na lateral do portão. David tomou a direção deste, indiferente aos comentários indignados das pessoas em seu caminho, e atento ao movimento dos três garçons.
Pelo jeito, tudo fora cuidadosamente ensaiado. Assim que puseram as bandejas na mesa, sob as risadas e aplausos dos convidados, os garçons levantaram os tampos plásticos onde havia uma pequena camada de comida encobrindo a carga mortífera que cada um carregava.
O sujeito de bigode agarrou uma pistola-metralhadora e, virando-se rapidamente, disparou contra os dois pára-quedistas que estavam atrás dele. A rajada de balas atravessou-lhes a barriga, como uma foice monstruosa, quase cortando-os ao meio.
O garçom da esquerda, um homem Com feições simiescas e olhos negros, pegou outra pistola-metralhadora da bandeja, agachou-se e atirou no pára-quedista que estava perto do portão. Este sentinela agarrara a Uzzi e estava tentando mirar quando foi atingido na boca. O balaço arrebentou-lhe a cabeça. Ao cair no chão, a metralhadora que ele portava deslizou pelo piso na direção de David. Logo, os atiradores árabes apontaram suas armas para os noivos, varrendo o pátio com um fluxo triplo de balas. O pipocar dos tiros fazia um contraponto aos gritos da multidão.
Enquanto isso, um agente de segurança sacou o revólver do coldre e, agachando-se, disparou duas vezes, acertando um dos garçons, que foi jogado de encontro à parede, embora o ferimento ainda lhe permitisse devolver o fogo contra o agressor, eliminando-o.
Os convidados da festa estavam em pânico, desorientados, sem saber o que fazer além de gritar e chorar. Hannah foi atingida no peito. Caiu de costas sobre uma mesa repleta de copos, que se estilhaçaram contra seu corpo. O sangue empapou seu vestido de noiva.
O atirador do meio jogou fora a pistola que se esvaziara e, num movimento ágil, retirou duas granadas da bandeja. Lançou-as contra a multidão, provocando duas explosões devastadoras. Chamas brancas acompanharam a onda de fragmentos arremessados para todos os lados. As mulheres gritavam, cada vez mais desesperadas. E o atirador, sem perder o sangue-frio, buscou outra carga de granadas embaixo da comida.
Não se haviam passado mais do que alguns segundos, entre o início do ataque e aquele momento de carnificina. Nesse ínterim, David, que se projetara, deitado no chão de pedras, arrastou-se com rapidez até a Uzzi que o guarda do portão deixara cair ao ser baleado.
Um dos garçons, apesar de ferido - tinha um braço inutilizado por um disparo -, ergueu a pistola-metralhadora na direção de David.
David atirou primeiro, porém as balas se perderam na parede, apenas arrancando o reboco. Corrigindo a pontaria, acertou o árabe na segunda tentativa. O sujeito foi jogado contra a parede, de onde escorregou lentamente, deixando atrás de si uma marca espessa.
O segundo garçom, postado ao lado da porta da cozinha, estava prestes a jogar uma outra granada, o braço direito estendido para trás segurando a mortífera bola de aço. Ele berrava algo, um desafio, ou talvez um grito de guerra ou de triunfo, que se ouvia claramente apesar da algazarra de suas vítimas.
Antes que ele completasse o arremesso, David acertou-o com uma rajada, uma dúzia de balas que se alojaram em seu corpo. Naquele instante, as granadas caíram aos pés dele. Mal o sujeito esborrachou-se no piso, elas explodiram, envolvendo-o em uma fogueira que o estraçalhava por inteiro. Estilhaços da explosão derrubaram o terceiro assassino, que estava no fim do terraço. David levantou-se e subiu a escada.
O último árabe, mortalmente ferido, tinha a cabeça e o peito ensangüentados. Porém, apesar de agonizante, conseguiu manter a pistola na mão.
David perdera o controle sobre si mesmo e gritava como um maníaco ao se ajoelhar no último degrau da escada, apontando para o assassino. Entretanto, quando apertou o gatilho da metralhadora, descobriu que só lhe restava uma bala. Embora tivesse atingido o árabe, o tiro solitário não foi suficiente para tirá-lo de combate. Ao contrário. Adquirindo forças do desespero, o homem franziu o cenho enquanto levantava a arma, visivelmente extenuado. Passaram-se alguns segundos entre seu gesto de fazer pontaria e os disparos que seguiriam. Naquela fração mínima de tempo, David ficou como que paralisado, atônito por ter uma metralhadora descarregada nas mãos.
No instante em que se deu conta de que estava perdido, pois já não havia tempo para fugir do balaço fatal do árabe, um outro tiro foi disparado, vindo detrás dele.
O garçom teve a cabeça perfurada pelo pesado projétil de chumbo. Caiu de costas com um baque surdo, ao mesmo tempo em que as balas de sua pistola se perdiam nas parreiras do jardim.
David virou-se, confuso, viu Brig aproximar-se com uma pistola fumegante nas mãos. Encararam-se por um momento, mas logo o velho caminhou até os corpos caídos dos outros dois árabes.
Disparou um tiro na cabeça de cada um.
David livrou-se da Uzzi e desceu as escadas para o jardim. Havia mortos e feridos espalhados em todas as direções. Choros, gemidos e soluços compunham um coro doloroso, terrível de ser ouvido ou presenciado. Poças de sangue, pelo chão, marcas vermelhas nos muros brancos que o rodeavam, salpicos rubros nas toalhas que cobriam as mesas. No ar, o cheiro adocicado de sangue fresco misturava-se ao aroma da comida e do vinho derramados, ao cheiro de cal do reboco e ao cheiro acre dos explosivos.
As nuvens de fumaça e pó não conseguiam ocultar a terrível carnificina. A casa das oliveiras fora destruída, e a madeira branca estava exposta. Os feridos arrastavam-se por um campo de copos quebrados, louça esmagada. Alguns blasfemavam; outros oravam ou pediam ajuda.
David encontrou Joe de pé sob uma das oliveiras, as pernas abertas, a cabeça virada para trás, o rosto voltado para o céu. Estava de olhos fechados e parecia murmurar um grito de agonia, enquanto segurava o corpo de Hannah em seus braços.
A noiva estava sem o véu, e seus cabelos cor de cobre, soltos, quase encostavam no chão. Tinha as pernas e um dos braços completamente dilacerados. As sardas estavam bem mais evidentes na pele pálida do rosto. O vestido, antes branco, estava rubro de sangue.
David preferiu não perturbar o silêncio trágico de Joe. Afastou-se dali, temeroso do que poderia encontrar.
- Debra - chamou em voz baixa, a garganta seca. Escorregou em uma poça de sangue e caiu sobre o corpo inconsciente de uma mulher que usava um vestido florido e estava com o rosto virado para baixo. Não reconheceu a mãe de Debra. Quis correr, porém suas pernas não responderam. Então ele a viu, no canto do muro onde a deixara. - Debra? - David sentiu o coração bater mais forte. Ela parecia ilesa, ajoelhada sob uma das estátuas gregas de mármore. A cabeça curvada como se estivesse orando. Parte dos cabelos pretos cobria-lhe o rosto, que ela escondia entre as mãos. - Debra? - Ele ajoelhou-se a seu lado e tocou-lhe os ombros. - Você está bem, minha querida?
Ela abaixou lentamente as mãos, fazendo com que David sentisse um calafrio ao vê-las cheias de sangue.
- David - ela sussurrou, virando-se em sua direção. - E você, querido?
David reprimiu uma exclamação de pavor ao reparar nas cavidades oculares cobertas por uma camada escura de sangue, transformando o rosto adorável em uma máscara grotesca.
- É você, David? - ela perguntou empinnando a cabeça, num gesto típico de cego.
- Meu Deus, Debra - ele sussurrou.
- Não consigo enxergar, David... Não consigo...
Ao tomar suas mãos úmidas e pegajosas de sangue, David pensou que fosse morrer.
A áspera silhueta do moderno hospital Hadassah projetava-se sobre o horizonte da vila de Ein Karem. A velocidade com que as ambulâncias chegaram salvou diversas vítimas que se debatiam entre a vida e a morte. O hospital estava preparado para suportar essas contingências da guerra.
Brig, Joe e David fizeram vigília por toda a noite nos bancos de madeira da sala de espera. Quando se descobriu o plano por trás do ataque, um agente de segurança foi informar o general.
Um dos assassinos era empregado de confiança havia muitos anos na empresa que fornecera os alimentos; os outros dois, apresentados como seus "primos", tinham sido contratados por recomendação dele como temporários. Com certeza os documentos de ambos eram falsos.
A primeira-ministra e seu gabinete tinham se atrasado por causa de uma reunião de emergência, mas estavam a caminho da festa quando acontecera o ataque. Ela mandou suas condolências pessoais aos parentes das vítimas.
Às dez horas, a rádio de Damasco veiculou a notícia de que o El Fatah responsabilizava-se pelo ataque efetuado por membros do seu esquadrão suicida.
Um pouco antes da meia-noite, o cirurgião-chefe saiu da sala de operações, ainda em roupas verdes e com a máscara abaixada no pescoço. Ele comunicou que Ruth Mordecai estava fora de perigo. A equipe médica removera uma bala que perfurara seu pulmão e se alojara na omoplata.
- Graças a Deus - murmurou Brig, fechando os olhos por um momento e imaginando como seria sua vida sem a companheira de vinte e cinco anos. Em seguida perguntou: - E minha filha?
- Ainda está na mesa de operações... - O cirurgião hesitou. - O coronel Halman morreu há poucos minutos. - A lista de mortos já atingia onze, e havia quatro pessoas em estado grave.
Na manhã seguinte, o pessoal do serviço funerário chegou para levar os mortos. Então David deu as chaves do Mercedes para Joe acompanhar o corpo de Hannah e providenciar os detalhes do funeral.
Ele e Brig ficaram sentados lado a lado, os olhos vermelhos pela noite insone, bebendo café em xícaras de papel. Quase ao meiodia, o oftalmologista aproximou-se deles. Era um homem de ar jovial, feições suaves, beirando os quarenta anos. Os cabelos grisalhos não combinavam com sua pele sem rugas.
- General Mordecai?
Brig levantou-se instintivamente. Parecia ter envelhecido dez anos durante a noite.
- Sou o doutor Edelman. Venha comigo, por favor. Quando David fez menção de segui-los, o médico parou.
- Sou o noivo dela - David explicou.
- Acho melhor falarmos a sós primeiro, general - murmurou Edelman, com um toque de apreensão na voz.
- Espere-me aqui, David.
- Mas...
Brig silenciou-o com um aperto suave em seus ombros, o primeiro gesto afetivo que ocorria entre eles.
- Por favor, meu garoto.
David voltou para o banco de espera.
Chegando ao seu escritório, Edelman postou-se a um canto e acendeu um cigarro. Tinha as mãos compridas e finas e usava o isqueiro com a economia de movimentos de um cirurgião.
- O senhor não quer que eu pinte um quadro cor-de-rosa, não é verdade? - Depois de avaliar o interlocutor, o médico prosseguiu: - Os olhos de sua filha estão perfeitos. - Antes que Brig expressasse seu alívio, Edelman virou-se para o aparelho onde estava um jogo de chapas de raio X. Acendeu a luz de fundo. - Os olhos estão bem, quase não há danos nas feições dela, no entanto o problema está aqui. - E apontou um contorno escuro que se destacava do padrão cinza da radiografia. - Isto é um pequeno fragmento de aço, provavelmente de uma granada. É do tamanho da ponta de um lápis. Penetrou no crânio através da têmpora direita. Cortou uma veia, provocando a hemorragia, e se deslocou obliquamente ao glóbulo ocular, sem tocá-lo nem afetar qualquer outra parte vital. Porém, perfurou o ossinho que envolve o quiasma óptico, e tudo indica que cortou e danificou o canal do quiasma, antes de se alojar no osso esponjoso - Edelman deu uma tragada no cigarro enquanto esperava uma reação de Brig. Não houve nenhuma. - O senhor compreende as implicações disso, general?
Brig balançou de leve a cabeça. O cirurgião apagou a lâmpada do aparelho e voltou para a escrivaninha. Tirou uma caneta do bolso e esboçou sobre um bloco de papel o sistema óptico, como se visto de cima.
- Os nervos ópticos, um de cada olho, correm por este túnel estreito no osso, fundem-se e depois se separam, indo para lobos opostos no cérebro. - Edelman assinalou com a caneta o ponto onde os nervos se juntavam.
- Então ela está cega? - perguntou Brig num fio de voz. O médico fez que sim.
- De ambos os olhos?
- Temo que sim.
Brig abaixou a cabeça e massageou as têmporas, num gesto que indicava exaustão.
- É definitivo?
- Ela não percebe formas, nem cor, luz ou escuridão. O fragmento atravessou o quiasma óptico. Pelo jeito o nervo está seccionado. Não existe técnica conhecida no mundo que o restaure. - Edelman fez uma pausa antes de concluir: - Infelizmente ela está cega dos dois olhos, em caráter permanente.
Brig suspirou, encarando o médico.
- Ela já sabe disso?
- Não. Achei melhor o senhor lhe contar.
- Sim, tem razão. Posso vê-la agora?
- Ela está sob efeito de sedativos leves. Não sente dores, apenas um pouco de desconforto. O ferimento externo é insignificante. Só que não podemos tentar a remoção do fragmento metálico, pois implicaria uma cirurgia extremamente delicada. Sim, o senhor pode vê-la agora. Vou levá-lo até lá.
O corredor que dava às salas de emergência estava cheio de macas, algumas das quais com pessoas que tinham comparecido à festa. Brig parou para conversar com um ou outro antes de seguir Edelman até a sala de recuperação.
Deitada na cama sob a janela, Debra estava muito pálida. Ainda havia sangue coagulado em seus cabelos, e uma bandagem de gaze cobria-lhe os olhos.
- Seu pai está aqui, senhorita Mordecai - anunciou o médico. Debra virou o rosto na direção deles.
- Papai?
- Estou aqui, minha criança.
Brig tomou-lhe a mão enquanto se curvava para beijá-la.
- Mamãe? - ela perguntou, ansiosa.
- Está fora de perigo. Mas, Hannah...
- Sei. Já me contaram. Joe está bem?
- Ele é forte. Logo estará bem.
E David?
- Ele está aqui.
Excitada, Debra apoiou-se sobre o cotovelo, o rosto refletindo a expectativa.
- David, onde está você? Maldita bandagem. Não se preocupe, David, é só para descansar meus olhos.
- Ele ficou lá fora, na sala de espera - disse Brig.
- Peça-lhe para vir me ver, por favor!
- Daqui a pouco. Primeiro precisamos conversar...
Debra devia ter adivinhado do que se tratava, devia ter percebido algo estranho no tom de voz do pai, pois ficou imóvel, num gesto que lhe era peculiar.
Embora tentasse amenizar o fato, Brig sempre fora um soldado, com modos de caserna; assim, contou tudo sem medir as palavras. O aperto das mãos dela nas suas foi o único indício de que o ouvira.
Houve um longo silêncio no quarto, até que afinal Brig sugeriu chamar David para vê-la.
- Não! - retrucou Debra com firmeza. - Antes, preciso pôr minhas idéias em ordem.
De volta à sala de espera, Brig encontrou David com o rosto pálido, em contraste com os olhos azuis.
- Não haverá visita hoje, meu jovem. Você só poderá vê-la amanhã.
- Alguma coisa errada? O que foi? - David perguntou, desconfiado.
- Não há nada errado. Apenas ela não pode se emocionar agora. Você a verá amanhã.
Naquela noite Hannah foi enterrada no túmulo da família, no Monte das Oliveiras, com uma cerimônia simples, assistida por três homens e um grupo de parentes, muitos dos quais ainda teriam de enterrar entes queridos, vítimas da tragédia do dia anterior.
Logo após o ato, um carro oficial levou Brig a uma reunião do alto comando, onde certamente se discutiriam medidas retaliattórias, outra volta na incansável roda de violência que assolava o país.
Joe e David entraram no Mercedes e ficaram longos minutos em silêncio, pensativos, sem disposição para absolutamente nada.
- O que você vai fazer agora? - David perguntou.
- Eu tinha duas semanas de folga. Ia viajar com ela para Ashkelon... Não sei mais o que fazer.
- Vamos tomar um drinque em algum lugar? Joe sacudiu a cabeça.
- Estou sem vontade de beber. Acho que vou voltar para a base. Hoje vai haver vôos de interceptação.
- Então eu vou com você. - Uma vez que só encontraria Debra no dia seguinte, e sua casa estaria fria e solitária, David preferia a paz dos céus noturnos.
A lua brilhante parecia uma espada sarracena contra a escuridão do céu. As estrelas prateadas brilhavam como gemas.
David e Joe partiram juntos no mesmo avião, ambos ansiosos por esquecer os problemas dos dois últimos dias. Teriam de interceptar um Mirage do próprio esquadrão deles. Assim que o localizaram, Joe travou o radar sobre ele e pediu rumo e distância. David perscrutou os céus até localizar o fogo dos jatos, brilhante como uma estrela.
Seguiram a rota de interceptação por baixo da barriga do alvo e passaram rente à ponta da asa do aparelho, tal como uma barracuda que caça sob a vítima e emerge na superfície do mar. Passaram tão próximos que o Mirage teve de guinar para bombordo. O piloto não estava sabendo da presença deles até aquele momento.
Mais tarde, Joe adormeceu na base, exaurido, mas David passou a maior parte do tempo acordado. Ao amanhecer, levantou-se, tomou banho e dirigiu-se a Jerusalém. Chegou ao hospital quando o sol surgia no horizonte e iluminava as colinas com seus raios dourados.
A enfermeira que o atendeu foi logo dizendo:
- Não se permite a entrada de ninguém fora do horário de visita, à tarde.
David sorriu com todo o seu charme.
- Eu só queria saber como ela estava. Preciso me apresentar no esquadrão ainda pela manhã.
A mulher tornou-se mais amigável. Porém, depois de consultar suas fichas, anunciou:
- Deve haver algum engano. A única Mordecai internada é a senhora Ruth Mordecai.
- Essa é a mãe dela...
A enfermeira voltou a conferir as folhas do arquivo.
- Ah, claro que não ia encontrá-la aqui... Ela teve alta ontem à noite.
- Quer dizer que já saiu do hospital? - David encarou-a, confuso.
- Sim, foi para casa ontem à noite. O pai veio pegá-la quando eu estava entrando no serviço. É uma moça bonita, estava com os olhos enfaixados.
- Obrigado. Muito obrigado.
David correu escada abaixo, em direção ao Mercedes, sentindo-se aliviado, livre da dúvida e do medo. Se Debra fora para casa, estava salva e em boas condições.
Brig abriu a porta e deixou-o entrar na casa silenciosa. Ainda estava fardado, e seu aspecto era sombrio, o rosto marcado pelas rugas, os olhos fundos e vermelhos de pesar, preocupação e noites sem dormir.
- Onde está Debra? - perguntou David, ansioso. - Onde ela está? - repetiu, enquanto Brig o conduzia para o escritório.
O velho deixou-se cair em uma cadeira da sala com pouca mobília, cheia de livros e peças arqueológicas.
- Não pude conversar com você ontem, David. Ela havia me pedido para não fazê-lo. Sinto muito.
- O que aconteceu?
- Ela estava precisando de tempo para pensar, para se decidir. - Brig levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro. Enquanto explicava o ocorrido com a filha, de vez em quando parava para tocar uma das estátuas antigas, acariciando-a como se aquele gesto lhe desse algum conforto.
David ouviu tudo em silêncio, sacudindo a cabeça como se não acreditasse no que o velho dizia.
- Portanto, o caso dela é permanente, sem esperança. Ela está cega, David, totalmente cega. E voltou-se para dentro de si mesma, para um mundo que é só seu.
- Onde ela está? Quero vê-la - David murmurou.
- Ela pediu tempo para pensar, e eu concordei. Ontem à noite, após o enterro, voltei para pegá-la. Ela refletira sobre o problema e tomara uma decisão.
- Quero vê-la - insistiu David. - Preciso falar com ela. Ao encará-lo, Brig perdeu um pouco da frieza com que tratava do assunto.
- Não, David. A decisão foi dela. Você não voltará a vê-la. Para você, ela está morta. Isso são palavras dela. Mas lhe pediu para que lembrasse dela quando estava viva.
- Não quero saber disso. Onde ela está? Quero vê-la agora. - Avançou em direção à porta e abriu-a com força.
Brig continuou, sem se alterar:
- Ela não está aqui.
- E onde está então?
- Não posso dizer. Prometi a ela que não diria.
- Eu a encontrarei!
- Se procurar com cuidado, talvez; mas perderá todo respeito e amor que ela tem por você. Vou repetir o que ela me falou: "Diga-lhe que, por nosso amor, por tudo que fomos um para o outro, que ele me deixe em paz, que não me procure".
- Mas por quê? Por que ela está me rejeitando?
- Ela sabe que está faltando com todas as promessas. Tem consciência de que o tempo não volta atrás, e que não poderá ser para você o que você tem o direito de esperar. - Indiferente aos protestos de David, prosseguiu: - Ela compreende muito bem que essa situação não poderia durar. Ela não tem condições de ser sua esposa. Você é jovem, cheio de vitalidade... Logo, logo, as coisas começariam a dar errado. Em uma semana, um mês, talvez um ano, e tudo terá morrido. Você estaria atado a uma mulher cega. Ela não quer isso. Prefere acabar agora, rapidamente, sem maiores sofrimentos.
- Pare! Já ouvi o suficiente. - David voltou à cadeira e escondeu o rosto entre as mãos. Brig estava parado diante da janela, a luz do sol iluminando-lhe as faces.
- Ela pediu que você prometesse... prometesse que não tentará encontrá-la.
- Isso nunca!
- Se você se recusasse, eu deveria lhe contar algo... ela disse que você entenderia. Ela falou que na África há um animal belo e forte, o antílope negro; quando algum desses animais é ferido por um caçador ou por um leão...
Aquelas palavras foram como uma chicotada para David. Eram as mesmas que dissera certa vez a Debra, quando considerava que ambos eram jovens, fortes, invulneráveis...
- Está bem - ele murmurou. - Se é isso que ela quer, prometo não tentar encontrá-la, embora vá fazer o impossível para convencê-la de que está errada.
- Talvez seja melhor você deixar Israel; voltar para o lugar de onde você veio e esquecer o que aconteceu.
- Não. Tudo o que tenho está aqui. Vou ficar.
- Bom, você será sempre bem-vindo nesta casa.
- Obrigado.
Quando chegou em sua casa, na Rua Malik, David percebeu que alguém estivera ali antes: os livros tinham desaparecido da mesa de madeira, a pintura de Kadesh já não estava na parede, e todos os artigos de toalete de Debra haviam sido retirados do banheiro. Da mesma forma, a penteadeira estava vazia, não se viam vestidos no guarda-roupa, enfim tudo que lhe pertencia sumira da casa. Exceto o perfume dela, que continuava no ar, e a colcha de renda sobre a cama...
David sentou-se na beirada da cama, rememorando tudo o que acontecera. Percebeu o contorno de algo rígido sob o travesseiro. Levantou-o e encontrou um pequeno livro verde, Este ano em Jerusalém. Fora deixado ali como um presente de despedida.
Seus olhos se encheram de lágrimas. Aquela era a única lembrança que ela lhe deixara.
Aparentemente o atentado contra Ein Karem fora o sinal para desencadear novas hostilidades e violências no Oriente Médio. Uma escalada planejada da tensão internacional, marcada pelo aumento de compra de armas pelas nações árabes e pelo juramento de não deixar um único judeu na terra que ainda chamavam de Palestina.
Ocorreram ataques selvagens e impiedosos sobre alvos desprotegidos, embaixadas e consulados ao redor do mundo, cartasbomba, emboscadas noturnas contra ônibus escolares em áreas isoladas. Até as provocações ficarem mais arrojadas, dirigidas diretamente ao coração de Israel: invasões de fronteira, ataques por comandos, violações do espaço aéreo, deslocamento de tropas e de peças de artilharia através da vulnerável fronteira do país.
Os israelenses esperavam, pedindo paz, mas condenados à guerra.
Dia após dia, mês após mês, David e Joe voavam perseguindo aquele estado em que o instinto e a reação instantânea superavam a consciência e a ação ponderada. Naquelas velocidades próximas às do som, apenas esse treinamento garantiria a supremacia de uma equipe sobre outra, pois mesmo o tempo de reação aprimorado desses jovens selecionados parecia insuficiente para tornar efetivas aquelas máquinas poderosas. Os erros eram medidos em centésimos de segundos, e eles tinham de treinar, buscando a perfeição extra-sensorial.
As tarefas de busca, reconhecimento, aproximação, destruição e fuga exigiam tal concentração que quase não sobrava tempo para a comiseração e o pesar... o que, aliás, chegava a ser uma bênção.
Sentindo-se fortalecidos pelo pesar e pela raiva, David e Joe compartilhavam um desejo de vingança que os absorvia por inteiro. Em pouco tempo, juntaram-se a uma das poucas equipes de caça selecionadas por Flor do Deserto para as operações delicadas e participaram de diversos combates, consolidando a confiança neles depositada pelo Comando.
Na fuselagem da nave de David, quatro miniaturas de aviões, desenhadas em preto, vermelho e branco, simbolizavam o escalpo do inimigo.
Flor do Deserto acreditava que a equipe Lança Brilhante, em prontidão "Vermelha", atingiria de imediato as grandes altitudes propostas. Materializando essa idéia, as linhas de ar comprimido, ligadas aos compressores, mostravam-se prontas a dar vida aos grandes motores; a tripulação de terra rodeava o avião; os Mirage estavam aptos a decolar em questão de segundos.
Também preparados para suportar altitudes de dezoito mil metros, onde praticamente inexiste atmosfera e o sangue de um homem sem a proteção adequada borbulha como champanhe, David e Joe usavam roupas pressurizadas e máscaras de oxigênio. Extenuados pela tensão, haviam perdido a conta dos dias e das horas desconfortáveis, passadas na cabine dos Mirage, em prontidão "Vermelha", a monotonia sendo quebrada apenas pelas verificações regulares, de quinze em quinze minutos.
- Checagem das 11:15 horas. Quinze minutos para desativar. Sempre, ao dizer essas palavras ao microfone, David ouvia Joe respirar fundo, antes de responder.
- Dois de prontidão. Beseder.
Após desativar, quando outra tripulação assumia a árdua espera de prontidão, David vestia um abrigo e corria por oito ou dez quilômetros, na tentativa de que o esforço físico o livrasse daquele mal-estar.
Agora, porém, ele ouviu um estalido agudo nos ouvidos e uma voz diferente:
- Prontidão "Vermelha". A postos!
O comando foi repetido por alto-falantes espalhados ao longo do abrigo subterrâneo, e a tripulação de terra entrou em ação. Com todas as rotinas realizadas, David empurrou o acelerador para a posição de partida. O silvo das turbinas fez-se ouvir, ao mesmo tempo que o motor pegava e as portas do bunker eram levantadas.
- Lança Brilhante Dois, aqui é o líder, prepare-se para decolar.
- Dois, de acordo.
Em segundos, as naves ganhavam a rampa, projetando-se para o céu.
- Flor do Deserto, aqui é Lança Brilhante. Decolagem feita.
- Lança Brilhante, aqui é Brig.
David não se surpreendeu por descobrir que o sogro comandava a ação. Vozes conhecidas e o uso de nomes pessoais evitavam que o inimigo os confundisse com mensagens falsas.
- David, um intruso invadirá nosso espaço aéreo em quatro minutos, se mantiver o curso atual. Estamos rastreando a vinte e dois mil e quinhentos metros; isto quer dizer que se trata de um U.2 americano, o que é pouco provável, ou de um avião espião russo, na tentativa de verificar nossas últimas manobras dispersivas.
- Beseder, senhor.
- Faça uma ascensão na vertical e esteja pronto para a interceptação assim que o alvo penetrar nosso espaço. Nivele a seis mil metros, vire para cento e oitenta e seis graus e suba na vertical em velocidade máxima.
Cumpridas as instruções, David olhou pelo espelho retrovisor, avistando Joe logo atrás.
- Lança Brilhante Dois, aqui é o líder. Acelere.
- Dois, de acordo.
Depois de acender as luzes traseiras, David acelerou ao máximo acionando os pós-combustores. Ao sentir o Mirage saltar, inclinou-o a fim de ganhar mais velocidade, e ajustou-o para vôo supersônico, acionando o pequeno botão no topo do manche.
Quebrada a barreira do som, a velocidade da nave aumentou rapidamente, passando por Mach 1.2, Mach 1.5. Não havia mísseis dispostos nas asas, nem tanques auxiliares de combustível para aumentar a resistência do ar; as únicas armas que carregavam eram dois canhões de 30 mm.
Voando suavemente, percorreram a escala Mach, indo de Beersheba a Eilat no mesmo tempo em que um homem percorreria uma quadra em uma cidade. Estabilizaram um pouco abaixo da barreira térmica.
- David, aqui é Brig. Estamos rastreando vocês. Encontram-se agora no curso e velocidade corretos para interceptação. Prepare-se para iniciar a subida em quinze segundos.
- Beseder, senhor.
- Oito, sete, seis, dois, um, pode ir!
Conforme levantou o nariz do avião, David retesou o corpo e gritou, para minorar os efeitos da gravidade. Apesar dessas precauções e da roupa pressurizada, a brusca mudança de direção pressionou-o contra o assento, nublando-lhe a visão.
Na vertical, o Mirage ainda voava próximo de duas vezes a velocidade do som. Quando recuperou a visão, David verificou o medidor de G e constatou que submetera seu corpo a quase nove vezes a força da gravidade, para ganhar altitude daquele jeito, sem perder velocidade.
Apoiado no encosto do banco, ele fixou o vazio do céu enquanto o ponteiro do altímetro subia cada vez mais e a velocidade diminuía gradualmente.
Uma rápida olhada pelo retrovisor revelou o outro caça subindo com o foguete logo atrás dele. Nesse instante, a voz de Joe soou calma e tranqüilizadora.
- Líder, aqui é Dois. Localizei o alvo.
Apesar do stress da subida vertical, Joe conseguira manipular o radar e identificara a nave espiã exatamente sobre eles.
Na manobra, trocavam altitude por velocidade, como um par de flechas disparadas na vertical. O arco conseguia arremessá-las a uma determinada altitude, na qual flutuariam por alguns instantes, antes de serem irresistivelmente atraídas de volta à terra... Era nesse curto intervalo que eles precisariam encontrar e destruir o inimigo.
Maravilhado, David observou o céu ficar azul-escuro e então, lentamente, salpicar-se com o brilho das estrelas. Encontravam-se no limite superior da estratosfera, muito acima das nuvens mais altas ou dos sinais climáticos conhecidos na terra. Do lado de fora da cabine, o ar era rarefeito, insuficiente para a vida, mal bastando para manter funcionando as turbinas do Mirage; o frio, por sua vez, chegava aos sessenta graus negativos.
Com lentidão, os dois aviões atingiram o topo de uma enorme parábola imaginária, flutuando através do escuro oceano do espaço. Muito abaixo deles, a terra brilhava de modo estranho, com uma aura de luz sobrenatural.
Mas não havia tempo para admirar a paisagem. O Mirage revolvia-se no ar fino e traiçoeiro, seus controles derrapando, incapazes de surtir resultados significativos.
Joe acompanhava o alvo, rastreando-o com firmeza. Logo, ele e David aproximaram-se, prontos para abandonar aquelas altitudes pouco hospitaleiras. O alarme de estol, piscando em âmbar e vermelho, indicava que estavam ficando sem tempo e perdiam altura.
Então, de repente, David avistou o inimigo. Como uma arraia gigante, a nave espiã encontrava-se um pouco abaixo e deslizava de modo calmo e silencioso, transmitindo uma falsa sensação de invulnerabilidade.
- Flor do Deserto, aqui é Lança Brilhante. Avistei o invasor e peço permissão para atacar. - A voz fria de David disfarçava o ódio incontrolável que o invadia.
- Informe sobre o alvo.
- Trata-se de um Uyushin Mark 17-11, sem identificação aparente.
Independente dessas palavras, David sabia que o invasor não se sentia disposto a perder tempo com formalidades. Além disso, aproximava-se rápido demais do alvo, sem conseguir adequar sua velocidade à do avião inimigo, cujas enormes asas tinham sido projetadas para flutuar no ar rarefeito da estratosfera.
- Aproximação rápida - alertou. - A oportunidade de ataque acabará em dez segundos.
Dito isso, preparou os canhões, enquanto observava o espião aumentar rapidamente de tamanho, devido à proximidade crescente. Nesse instante, Brig tomou uma decisão, mesmo expondo o país a retaliações. Sabia que as câmaras do avião inimigo gravavam detalhes vitais das defesas de Israel e conhecia bem os riscos de essas informações serem passadas adiante.
- David - disse, a voz seca. - Aqui é Brig. Derrube-o.
- Beseder. - Posicionando o Mirage para ataque, buscou contato com Joe. - Dois, aqui é o líder atacando.
- Dois de acordo.
Quase precipitando o Mirage sobre o Ilyushin, David mirou-o na base da asa e pressionou o gatilho, fazendo-o pular para o alto, como um grande peixe atingido por um arpão de aço. Durante três segundos, despejou obuses que faiscavam ao irem de encontro à enorme silhueta negra. No instante seguinte, começou a descer rapidamente, caindo como um foguete exaurido.
Dando cobertura ao ataque, Joe seguiu-o e mirou as asas do avião inimigo. Na seqüência, apertou o gatilho, rompendo-lhe a fuselagem ao meio com o impacto dos tiros de canhão.
- Flor do Deserto, aqui é Lança Brilhante Líder. Alvo destruído. Embora procurasse manter a voz inalterada, David sentia as mãos trêmulas e o peito oprimido pelo ódio. Um ódio que nem mesmo a destruição do inimigo conseguira aplacar. Tornando a apertar o botão do rádio, acionou a comunicação nave a nave.
- Joe, um a mais para Hannah.
Como não houvesse resposta, desligou o aparelho e ativou o receptor de sinal para voltar à base, seguido pelo amigo.
Debra fora uma influência amadurecedora, mas a reação feroz de David à sua partida vinha obrigando Joe a desempenhar o papel de wingman mesmo fora da base.
Compartilhando o mesmo sentimento de perda, os dois amigos passavam grande parte das horas de lazer juntos, embora raramente tocassem no assunto. Joe freqüentemente dormia na Rua Malik, pois sua casa tornara-se triste e depressiva agora que Debra se fora e a mãe ainda não se recuperara da terrível experiência. A pobre envelhecera bastante e, apesar de o ferimento de bala já haver cicatrizado, carregava na alma outros ferimentos para os quais só a morte traria alívio.
Movido por uma espécie de selvageria, David ansiava pelos momentos de ação e, apenas quando voava, encontrava um pouco de paz interior. Em terra, mostrava-se agitado, desconfortável, quase agressivo; somente os modos calmos e o sorriso sincero de Joe eram capazes de afastá-lo dos problemas.
Após a derrubada da nave espiã, os sírios desencadearam uma política de patrulha provocante, com calculadas invasões do espaço aéreo, as quais eram interrompidas tão logo a retaliação começava. Desse modo, assim que os caças iniciavam a perseguição, eles se afastavam, evitando o combate e retornando a seu próprio território.
Por duas vezes, David chegou a ver o sinal verde dessas patrulhas na tela do radar e, em cada uma delas, surpreendeu-se com o sentimento de raiva e ódio que lhe dominaram o coração, enquanto ele conduzia Joe para a interceptação. Mas em ambas as ocasiões os inimigos foram alertados pelos próprios radares e fugiram, aumentando a velocidade e retirando-se de maneira discreta.
- Lança Brilhante, aqui é Flor do Deserto. Alvo não é mais hostil. Interrompa a rotina de ataque.
De fato, o Mig-21 sírio cruzara a própria fronteira, e David retransmitia as instruções para Joe, dando mais aquela busca por encerrada, os nervos à flor da pele.
Sem dúvida, a tática pretendia desgastar os nervos dos defensores, e em todos os esquadrões de caça a tensão chegava a níveis insuportáveis. Aquela provocação levava-os ao limite da resistência, e os incidentes tornavam-se quase inevitáveis conforme os pilotos eram conduzidos cada vez mais para perto das fronteiras de guerra. Finalmente, quando Flor do Deserto tentou mantê-los com rédeas curtas, teve de haver intervenção de cima. Foi então que Brig, enviado para falar com as tripulações, subiu a um estrado e olhou para a sala de instrução cheia, percebendo que bastava treinar bem um falcão e mantê-lo com o capuz sobre os olhos para não ter por que temer os patos selvagens que esvoaçavam por perto.
Aproveitando-se do respeito que inspirava aos jovens, Brig buscou cuidadosamente as palavras.
-... O objetivo da guerra é a paz. A estratégia final de um comandante é a paz.
Sem obter qualquer manifestação da audiência, ele olhou para o filho, percebendo-lhe o desconforto. Como poderia falar de conciliação a um guerreiro treinado que acabara de enterrar o corpo mutilado da própria noiva?
- Somente um tolo se deixa levar ao campo escolhido pelo inimigo. Não permitirei que jovens inexperientes como vocês conduzam-nos a uma situação para a qual estamos despreparados, porque não quero dar a eles os pretextos de que necessitam. - Um murmúrio de concordância elevou-se do plenário, encorajando-o a prosseguir. - Qualquer de vocês que procure encrenca não precisa ir a Damasco. Sabem meu endereço, não? - A platéia respondeu com uma risada. - Muito bem, não queremos problemas e vamos evitá-los a todo custo. Podem ter certeza de que, quando chegar a hora, a ordem será dada. Não uma ordem conciliatória, nem um exemplo de resignação. Mas, por enquanto, vocês devem esperar pela ordem.
Le Dauphin levantou-se e tomou o lugar de Brig.
- Já que estão todos reunidos, tenho novidades que ajudarão a esfriar as cabeças dos que querem seguir os Mig além da fronteira. - Ele fez um gesto na direção do projetor, que ficava no final da sala de instrução. Quando as luzes se apagaram, ouviram-se ruídos de pés arrastando-se no piso e pigarros. Uma voz protestou:
- Não é possível! Outro filme?
- Sim - o coronel confirmou -, outro filme. - Assim que as imagens começaram a surgir na tela, ele continuou: - Esse documentário foi realizado pelo serviço secreto. O pessoal conseguiu filmar o novo sistema de mísseis terra-ar que os soviéticos montaram para os árabes. O sistema é conhecido como "Serpente", e se trata de uma versão sofisticada do SAM III. Até onde sabemos, foi instalado ao longo da fronteira síria. Logo, logo, os egípcios também o terão. No momento está sendo operado por instrutores russos...
Sentado no meio da platéia, Brig recostou-se na cadeira, observando cada um dos presentes. Todos estavam atentos e sérios, vendo pela primeira vez as máquinas terríveis que poderiam ser os instrumentos de suas próprias mortes.
- O míssil é lançado de um veículo rebocado - prosseguia Le Dauphin. - Aí vemos as fotos aéreas de reconhecimento de uma coluna móvel. Observem que cada veículo transporta um par de mísseis. Como podem perceber, são uma séria ameaça...
Brig concentrou-se no rosto de David Morgan, que se inclinava para a frente e estudava a tela. Sentiu um misto de simpatia e de pesar por ele, ao mesmo tempo em que reforçava o julgamento que fizera do rapaz. Afinal, ele provara ser persistente, capaz de abraçar um ideal e permanecer fiel a ele até o fim.
- Ainda não sabemos quais as melhorias introduzidas no "Serpente", mas acreditamos que esse míssil seja capaz de grandes velocidades, e que seu sistema de orientação seja uma combinação do infravermelho, que se guia pelo calor do motor, e de um radar computadorizado.
Olhos fixos no perfil bonito de David, Brig perguntou-se se Debra não teria cometido um erro ao julgá-lo. Talvez aquele jovem fosse capaz... Não! Ele era muito novo, amante da vida, bem apessoado e rico. Ele não se sacrificaria à toa. Debra estava certa; ela jamais conseguiria segurá-lo. Tinha de deixá-lo livre.
- Tudo indica que o "Serpente" é capaz de atingir altitudes entre quatrocentos e cinqüenta e vinte e dois mil e quinhentos metros.
Um murmúrio de admiração elevou-se entre os ouvintes.
- A ogiva carrega duzentos e cinqüenta quilos de explosivos. O míssil possui detonador de aproximação, que dispara automaticamente quando o alvo se encontra a quarenta e cinco metros. A essa distância, sua eficácia é total.
Fazia meses que Brig não recebia David em sua casa. Após o atentado ele aparecera duas vezes com Joe para passar a noite do Sabbath. Em ambas as ocasiões o ar estivera carregado e artificial, todos evitando cuidadosamente mencionar o nome de Debra. Depois disso, ele não retornara ao lar dos Mordecai.
- As táticas evasivas contra esse sistema são as mesmas usadas em relação ao SAM III...
- Uma oração e boa sorte! - gritou alguém, provocando risos dos demais.
- ...uma curva fechada na direção do míssil, para projetar-lhe a radiação das turbinas, tentando sobrecarregá-lo. Se ele continuar a perseguição, dirijam-se para o sol e então façam outra curva fechada. O míssil talvez receba a radiação infravermelha do sol como a de um possível alvo.
- E se isso não funcionar? - uma voz perguntou. Uma outra retrucou, num tom frívolo:
- Repita então: Ouça, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é único... - Desta vez ninguém riu da blasfêmia.
Brig planejou sua saída da sala de instrução de modo a ficar ao lado de David. Então abordou-o:
- Quando você vai aparecer lá em casa? Faz tempo que não vai lá.
- Sinto muito. Espero que Joe tenha transmitido minhas desculpas.
- Sim, claro. Mas por que você não vai com ele hoje à noite? Comida é o que não falta, graças a Deus.
- Hoje estarei muito ocupado - David desconversou. Quando chegaram à porta do escritório do comandante, Brig
disse:
- Só não esqueça que você é sempre bem-vindo. Assim que o velho fez menção de afastar-se, David perguntou num impulso:
- Como ela está? O senhor tem visto Debra recentemente?
- Ela está bem... Tão bem quanto é possível.
- Pode avisar-lhe que perguntei por ela?
- Não. - Brig tentou ignorar o olhar suplicante de David. - Você sabe que não posso fazer isso.
David apenas balançou a cabeça, concordando. Pesaroso, Brig viu-o afastar-se e, com o cenho franzido, entrou no escritório do coronel.
David deixou Joe na entrada da alameda, em Ein Karem, então seguiu até a principal área comercial, na zona leste de Jerusalém. Estacionou em frente ao novo supermercado na Melech George V. Precisava fazer compras para o fim de semana.
Ele estava diante do freezer, indeciso entre pernil e costeletas de carneiro, quando percebeu que estava sendo observado. Virou-se rapidamente. Percebeu que se tratava de uma mulher escultural, de cabeleira loira e ondulada, que estava parada ao lado das prateleiras no final do corredor. Seus cabelos eram oxigenados, pois se notava a tonalidade escura, próximo da raiz. Era mais velha do que ele a julgar pelas pequenas rugas nos cantos dos olhos. Observava-o com interesse tão evidente que o deixou ofegante, excitado. David concentrou-se outra vez no freezer, sentindo-se culpado, furioso consigo próprio. Afinal fazia meses que não se sentia atraído por ninguém... Embora estivesse louco para devolver o pacote de congelado ao freezer, ficou paralisado, a respiração acelerada. Foi então que a mulher se aproximou e tocou-lhe o braço. Além do perfume de flores que ela usava, David reconheceu o cheiro almiscarado da fêmea sexualmente excitada.
- Leve o bife - sugeriu a desconhecida, cuja voz suave não ocultava o fato de estar tão sem fôlego quanto ele. David encarou-a. A mulher tinha olhos verdes, dentes alvos, e de perto mostrava ser bem mais velha do que ele julgara. Devia estar próxima dos quarenta anos. Seu vestido decotado permitia que se vissem as curvas generosas dos seios grandes, matriarcais, que de repente surgiam para David como uma promessa de aconchego e segurança. - Faça malpassado - continuou a mulher -, com champignon, alho e vinho tinto. Fica uma delícia.
- Tem certeza? - David perguntou, a voz rouca.
- Claro. - Ela riu. - Quem vai preparar para você? Sua esposa? Sua mãe?
- Não, eu mesmo. Moro sozinho.
A mulher avançou um passo, quase encostando o busto no braço dele.
David sentia-se entorpecido por causa do conhaque que comprara no supermercado. Bebera mais da metade da garrafa, misturado com soda para disfarçar o gosto do álcool. Tomara-o rápido demais e agora estava no banheiro, a cabeça rodopiando. Aprumou-se diante da pia, jogou água fria no rosto, depois riu sem motivo para sua imagem no espelho. Com os cabelos desgrenhados, caindo-lhe sobre a testa, mal reconhecera a figura ali refletida.
- Pois é, garoto - murmurou enquanto pegava a toalha. Depois de enxugar o rosto, voltou para a sala. Não encontrou a mulher lá, ainda que o sofá de couro permanecesse deformado no lugar onde ela se sentara. Pratos sujos acumulavam-se sobre a mesa, e o ar estava carregado de cheiro de cigarro e do perfume dela.
- Cadê você? - gritou David.
- Aqui, garotão!
Ele seguiu para o quarto. A mulher estava estendida na cama, despida, os seios e a barriga parecendo ainda mais volumosos.
- Venha, Davy.
David reparou nas roupas dela, jogadas sobre a penteadeira. O espartilho estava escurecido, com aspecto de sujo. Os cabelos da loira contrastavam com o branco da colcha de renda.
- Venha para a mamãe - ela murmurou, a voz rouca, abrindo os braços num convite.
David sentiu a raiva tomar conta de si.
- Levante-se! - disse com firmeza. - Venha, baby..• - Saia dessa cama! - retrucou ele duramente.
- O que aconteceu, Davy? - A mulher sentou-se no colchão, alarmada.
- Saia daqui. Saia, sua puta! - Trêmulo, o rosto pálido, David tinha os olhos faiscantes de raiva.
Morta de medo, ela saltou da cama e, mais do que depressa, tratou de vestir-se. Assim que a viu sair, David foi até o banheiro, com ânsia de vômito. Então limpou a casa, esfregou os pratos e panelas, poliu os copos, esvaziou os cinzeiros e abriu as janelas para expulsar o cheiro de cigarro e do perfume da mulher. No quarto, trocou a roupa de cama, alisando a colcha de renda até deixá-la impecável.
Após vestir uma túnica, seguiu rumo ao portão Jaffa. Parou o carro no estacionamento e atravessou a cidade velha até a sinagoga reconstruída no quarteirão judeu.
O hall de teto alto e abobadado estava silencioso e tranqüilo. David sentou-se no banco de madeira e ficou ali por longo tempo.
Sentado de frente para David, Joe tinha a expressão preocupada enquanto estudava o tabuleiro de xadrez. Quatro outros pilotos rodeavam os dois e também estavam concentrados no jogo. Aquelas partidas entre eles eram duras e sempre atraíam assistência.
Depois de várias tentativas, Joe afinal cercara a torre de David. Em dois movimentos eliminaria a defesa do rei, no terceiro forçaria à rendição. David sorriu com malícia ao vê-lo avançar com o cavalo.
- Isso não vai salvá-lo, companheiro. - Quase sem olhar para o cavalo, David tomou a torre com o bispo branco. - Xequemate em cinco jogadas - anunciou, percebendo tarde demais que a expressão teatral de angústia de Joe transformava-se num largo sorriso. O amigo montara uma armadilha na qual a torre sacrificada fora apenas a isca. - Ah, seu filho da mãe sem vergonha...
- Xeque! - disse Joe, ameaçando o rei e a rainha brancos com o cavalo. - Xeque - repetiu pouco depois ao tomar a rainha e novamente ameaçar o rei, deixando-lhe apenas uma rota de fuga. - Xeque-mate - declarou por fim, quando colocou sua rainha na jogada. - Não em cinco como você previu, mas em três.
Os presentes aplaudiram a manobra.
- Quer jogar outra? - perguntou Joe.
- Pegue outro pato, estarei de mau humor por uma hora. - David levantou-se, dando seu lugar a outro piloto. Seguiu até a cafeteira automática, movendo-se com dificuldade devido ao traje pressurizado. Encheu uma caneca de café, pôs quatro colheres de açúcar e sentou-se no canto mais quieto da sala de tripulação, ao lado de um jovem de cabelos finos e encaracolados, do qual ficara amigo. O rapaz estava lendo um livro.
- Shalom, Robert, tudo bem?
Sem tirar os olhos do livro, Robert respondeu ao cumprimento com um grunhido. David deixou-se ficar ali, pensando em seu lar pela primeira vez em meses; lembrava-se de Mitzi, de Barney Venter, e se perguntava o que os dois estariam fazendo naquele momento.
Ao seu lado, Robert mexia-se na cadeira e parecia emocionado com a leitura: mexia os lábios, tinha os olhos brilhando.
- O que você está lendo? - Intrigado, David inclinou-se para ler o título. A capa do volume evocava-lhe algo familiar. Reproduzia uma paisagem do deserto, em cores fortes, com um casal andando de mãos dadas sobre a areia. Era um quadro ao mesmo tempo místico e assombroso. E somente uma pessoa poderia ter pintado aquilo: Ella Kadesh.
- É encantador - disse Robert, a voz carregada de emoção. - Sinceramente, David, deve ser o livro mais bonito que já li. Invadido por uma estranha sensação de já saber do que se tratava, David leu o título: Um lugar de nós mesmos.
- Foi minha irmã quem me recomendou - continuou Robert. - Ela trabalha na editora. Chorou a noite inteira quando o leu. É um livro novo, foi publicado na semana passada, mas talvez seja o melhor que se escreveu sobre este país.
David mal o ouvia, concentrado no nome do autor, impresso em letras miúdas abaixo do título: "Debra Mordecai".
- Quero ler esse livro - pediu, baixinho.
- Assim que eu acabar, te empresto - Robert prometeu.
- Quero agora!
- De jeito nenhum! - Robert segurou a brochura de maneira possessiva. - Espere sua vez, companheiro!
Ao notar que Joe acompanhava a cena do outro lado da sala, David lançou-lhe um olhar de censura, que o obrigou a desviar a vista para o tabuleiro de xadrez. O amigo devia estar ciente daquela publicação. David levantou-se disposto a questioná-lo a respeito, mas naquele momento o alarme ecoou pelo bunker.
- Esquadrão Lança em prontidão "Vermelha"! - No quadro as luzes piscavam indicando a designação dos vôos: "Lança Brilhante", "Lança Vermelho", "Lança de Fogo".
David pegou seu capacete e juntou-se ao grupo de pilotos que se dirigiam aos veículos elétricos que aguardavam no túnel de concreto do lado de fora da sala. Sentou-se ao lado de Joe e foi logo perguntando:
- Por que não me contou?
- Eu ia te falar, Davy...
- Aposto que ia! - David ironizou. - Você já o leu? Joe fez que sim.
- E que tal?
- Não dá para contar. Você precisa lê-lo.
- Não se preocupe. Farei isso o mais rápido que puder. David desceu do veículo quando chegaram ao hangar e correu para o Mirage.
Vinte minutos depois todos estavam no ar. Flor do Deserto enviara-os para o Mediterrâneo a fim de socorrer um Caravelle da El Al que estava sendo importunado por um Mig-21egípcio.
O avião inimigo bateu em retirada assim que os Mirage se aproximaram. Deixaram-no ir e escoltaram o Caravelle até o Load antes de retornarem à base.
Ainda em trajes de vôo, David passou pelo escritório de Le Dauphin e conseguiu uma licença de vinte e quatro horas.
Na estrada Jaffa, entrou em uma livraria dez minutos antes que ela fechasse. Havia uma pilha de Um lugar de nós mesmos no expositor principal.
- É um livro muito bonito - comentou a balconista enquanto o embrulhava.
David abriu uma cerveja e tirou os sapatos antes de se deitar. Pegou o livro e só parou de ler para acender a luz e buscar outra cerveja. Era um volume grosso, que ele devorou sem pressa, saboreando cada palavra, voltando de vez em quando para reler algum parágrafo. Contava a história dele e de Debra, incluindo até o episódio na ilha da Costa Brava, e se caracterizava pela riqueza de sentimentos da terra e de sua gente. Ao reconhecer diversos personagens secundários, David rolou de rir, para no final mergulhar na tristeza quando a heroína se encontrava no hospital Hadassah, com metade do rosto dilacerado por uma bomba terrorista, e sem permitir que o namorado a visse, ansiosa por poupá-lo, querendo apenas que ele se recordasse dela tal como fora no passado.
O dia já amanhecia quando David terminou o romance. Ele levantou-se da cama, a cabeça pesada pela noite insone, mas contente por saber que Debra entendera muito bem o que acontecera; ela entrara fundo em sua alma e descrevera emoções para as quais ele acreditava que não houvesse palavras.
Tomou um banho, fez a barba e vestiu-se. Pegou o livro outra vez, apenas para confirmar sua suspeita em relação à capa. A orelha informava: "Capa ilustrada por Ella Kadesh".
Era ainda muito cedo, a estrada estava quase deserta. David acelerou o carro sob o sol da manhã. Virou para o norte em Jericó, pegando a pista que margeava a fronteira. Lembrava-se de Debra sentada ao seu lado, o vestido levantado até as coxas longas e bronzeadas, os cabelos soltos ao vento.
O assovio do vento contra a carroceria do Mercedes parecia dizer "corra, corra". Então ele alcançou o lago e estacionou ao lado da antiga parede da época das Cruzadas.
Ella estava sentada no pátio, diante de uma tela. Usava um enorme chapéu de palha na cabeça, com adornos de plástico e penas de avestruz. Seu avental tinha manchas de tinta de todas as cores.
- Salve, jovem Marte! - ela o cumprimentou. - Seja bemvindo. A que devo essa honra em meu humilde lar?
- Não encha o saco, Ella, você sabe muito bem por que estou aqui.
- É uma pena que palavras tão vulgares passem por lábios tão formosos. Aceita uma cerveja?
- Não, não quero beber. Quero saber onde ela está.
- De quem estamos falando?
- Pare com isso, eu li o livro. E vi a capa. Você sabe muito bem.
Ela o encarou em silêncio. Depois assentiu.
- Sim, já notei.
- Onde ela está?
- Não posso falar, Davy. Você e eu fizemos uma promessa.
- Percebeu que ele perdia a pose arrogante. Então acrescentou:
- Vou pegar uma cerveja. - Levantou-se da banqueta e atravessou o terraço. Voltou trazendo a bebida e dois copos. - Faz uma semana que te espero, desde que o livro foi publicado. Eu sabia as reações que ia provocar. Até eu fiquei abalada. Você não acreditava que isso fosse possível, não é?
- Aquele livro fala de mim e de Debra. Ela escreveu sobre nós dois.
- Sim - Ella replicou -, mas isso não altera a decisão que ela tomou. E que eu considero correta.
- Ela descreveu exatamente o que eu sinto. Tudo o que senti e ainda sinto, embora jamais conseguisse pôr em palavras.
- É bonito e verdadeiro, mas esse livro apenas confirma a posição dela.
- Acontece que eu a amo, e ela me ama! - exclamou David.
- Ela prefere que as coisas fiquem como estão. Não quer que esse sentimento morra, ou que desapareça. Ela sabe que já não tem condições de acompanhá-lo em nada. Veja bem, David, você é bonito, cheio de vitalidade, e com o tempo perceberá que ela é um entrave.
David fez menção de interrompê-la, porém Ella segurou-lhe o braço com força e continuou:
- Você estaria algemado, nunca poderia deixá-la, e ela seria um peso para toda a sua vida. Pense nisso.
- Eu a quero... - ele murmurou. - Eu não tinha nada antes de encontrá-la; e continuo sem nada agora.
- Isso vai passar. Quando se é jovem, supera-se tudo facilmente. Ela deseja que você seja feliz. Ela o ama tanto que lhe dá de presente a liberdade.
- Meu Deus... Se pelo menos eu pudesse vê-la, se pudesse tocá-la e falar com ela por alguns minutos!
- Ela não concordaria com isso.
- Por quê, Ella, por quê?
- Debra não se sente forte. Sabe que não resistiria a você. E teme que uma desgraça ainda maior caia sobre vocês.
Houve um longo silêncio entre os dois. As camadas de nuvens rodeavam os picos do Golan, que brilhavam ao longe sob o sol de inverno. Uma corrente de ar frio passava pelo terraço.
David bebeu o resto da cerveja, depois ficou brincando com o copo, girando-o entre as mãos.
- Você daria um recado a ela? - ele perguntou. - Não.
- - Por favor, Ella. Apenas um recado.
- - Bem...
- Diga-lhe que ela colocou no livro exatamente o quanto eu a amo. Que o nosso amor é grande o suficiente para superar tudo. E que eu quero apenas uma chance. - David fez menção de prosseguir, porém logo desistiu. - Basta isso.
- Tudo bem. Vou dizer-lhe.
- - Você me traz a resposta?
- Onde posso encontrá-lo?
David passou-lhe o número do telefone da base.
- Ligue-me logo, não me deixe esperando.
- Amanhã - ela prometeu. - Amanhã de manhã.
- Antes das dez. Tem de ser antes das dez. - Levantou-se e beijou-a no rosto. - Obrigado. Você não é tão má como eu pensava.
- Vá embora daqui. Estou quase chorando e prefiro ficar sozinha para desfrutar.
David atravessou o gramado sob as tamareiras e, ao chegar ao portão, parou, olhando para trás. Encarou Ella por alguns segundos, depois continuou seu caminho.
Assim que o barulho do Mercedes se perdeu na distância, Ella atravessou o terraço, desceu a escada até o ancoradouro, e dali seguiu para a garagem de barcos, escondida da casa pelo velho muro. Sua lancha, amarrada ao cais, balançava ao sabor do vento e das pequenas ondas do lago.
A garagem maior fora reformada e pintada de branco. Possuía uma mobília simples e funcional, com tapetes cobrindo o chão de pedra. A cama de casal ficava em um cômodo fechado por divisórias, perto da lareira.
No outro lado, via-se uma pequena cozinha, decorada com panelas de cobre. O único adorno no apartamento improvisado era o quadro que estivera na casa da Rua Malik e que agora estava dependurado em uma das paredes. Próximo dele, uma moça trabalhava sentada à mesa. Estava escutando a própria voz, falando em hebreu, em um gravador. Tinha expressão absorta e o rosto voltado para a parede. Logo ela balançava a cabeça, sorrindo como se achasse graça do que acabara de ouvir. Desligou o aparelho, girou a cadeira até ficar de frente para um outro gravador e apertou o botão de gravar. Segurou o microfone perto dos lábios e pôs-se a traduzir do hebreu para o inglês.
Ella, parada à porta, observou-a trabalhar. Um editor norteamericano comprara os direitos de Um lugar de nós mesmos, dando um adiantamento de trinta mil dólares pelo livro e um adicional de cinco mil dólares pela tradução. Debra estava quase terminando a tarefa.
De onde estava, Ella enxergava a cicatriz na têmpora da jovem. Sua cor rosa destacava-se no bronzeado da pele, embora não fosse maior que um floco de neve. De qualquer modo, em nada afetava as linhas bonitas do seu rosto.
Debra não fazia nenhum esforço para esconder a cicatriz - seus cabelos estavam presos em um rabo-de-cavalo, e ela não estava maquiada. Apesar de vestir-se com roupas rudes de pescador, mostrava uma silhueta esbelta, pois nadava diariamente, mesmo quando ventava frio.
Ella aproximou-se em silêncio da escrivaninha, observando os olhos de Debra, como sempre fazia. Um dia ela ainda pintaria aquela expressão. Não havia traços do dano que escondia, nenhum sinal de que aqueles olhos não enxergavam. Ao contrário, davam a impressão de penetrar fundo e enxergar tudo. Possuíam uma serenidade quase mística, uma profundeza e compreensão inquietantes.
Debra pressionou o botão do microfone, terminando a gravação. Depois falou sem virar a cabeça. - É você, Ella?
- Como soube? - perguntou a amiga, confusa.
- Senti o deslocamento do ar, e depois o seu cheiro.
- Sei que sou meio grande, mas será que cheiro tão mal?
- Você cheira a terebintina, alho e cerveja - replicou Debra, torcendo o nariz como se estivesse incomodada. Ambas riram da brincadeira.
- Estive pintando, depois piquei alho para a carne e bebi cerveja com um amigo. Como está o livro?
- Quase acabado. Pode ir para a datilógrafa amanhã. Você quer um café? - Debra levantou-se e foi até o fogão.
Ella conhecia-a suficientemente bem para não oferecer ajuda, ainda que ficasse com os nervos à flor da pele ao vê-la trabalhar com fogo e água fervente. A jovem fazia questão de ser independente, de viver sem precisar da ajuda dos outros.
A sala estava bem-arrumada, cada coisa em seu lugar, de modo a ser encontrada sem hesitação. Debra movia-se com segurança naquele pequeno mundo, fazendo o serviço doméstico, preparando a própria comida, trabalhando e sustentando-se financeiramente.
Uma vez por semana, um motorista da editora de Jerusalém aparecia para coletar as fitas gravadas que seriam datilografadas. Também uma vez por semana, Debra saía com Ella na lancha para Tiberíades, onde faziam compras, e todo dia ela nadava durante uma hora. Freqüentemente um velho pescador com quem ela fizera amizade ia buscá-la para passear e pescar no lago. E, além do gramado que dava no cais, no velho castelo dos cruzados, havia a companhia e a conversa inteligente de Ella; por outro lado, em seu pequeno chalé, tinha tranqüilidade, segurança e trabalho para preencher as longas horas. A noite vinha o desconforto terrível da solidão, e lágrimas amargas que inundavam o travesseiro, lágrimas que só ela sabia existirem.
Debra pôs uma xícara de café ao lado da cadeira de Ella e levou outra para o banco em que se sentou.
- Agora - ela começou -, pode me contar por que está se mexendo tanto e tamborilando os dedos nos braços da cadeira. - Sorriu ao perceber que Ella ficara surpresa. - Você tem algo a me dizer, certo?
- Sim... Você tem razão. Ele veio, Debra. Ele veio me ver, como sabíamos que faria.
Debra depositou a xícara na mesa; suas mãos estavam firmes e o rosto sem expressão.
- Eu não lhe disse onde você estava.
- Como ele está, Ella?
- Parece um pouco mais magro e mais pálido do que quando o vi pela última vez. Mas está bem. Ainda é o homem mais bonito que já vi.
- E os cabelos? Ele os deixou crescer?
- Creio que sim. Estão macios, cheios sobre as orelhas e ondulados na parte de trás.
Debra sorriu, satisfeita.
- Estou feliz por ele não usá-los rentes na cabeça. - Depois de uma longa pausa, Debra prosseguiu: - O que ele disse? O que queria?
- Tinha um recado para você.
Qual?
Ella repetiu palavra por palavra o que ele dissera. Então Debra virou o rosto para a parede.
- Por favor, deixe-me agora. Quero ficar só.
- Ele me pediu para levar sua resposta. Prometi falar com ele amanhã de manhã.
- Conversarei com você depois. Agora quero ficar só. Antes de levantaj-se, Ella notou a lágrima que descia pelo rosto de Debra. Ao chegar à porta, ouviu o soluço abafado, porém não se voltou. Foi até o cais de pedra e dali alcançou o terraço. Sentou-se diante da tela, pegou o pincel e começou a pintar.
Suando dentro do traje pressurizado, David esperava ansioso ao lado do telefone, olhando a cada instante para o relógio. Entraria em prontidão às dez horas, em sete minutos, e Ella ainda não ligara.
- Vamos, David, - Joe chamou da porta.
Ele levantou-se e seguiu o amigo rumo ao carro elétrico. Assim que entrou no veículo, ouviu o telefone tocar na sala da tripulação.
- Espere - pediu ao motorista, vendo Robert acenar para ele através do painel de vidro.
- É para você, David. David correu para a sala.
- Sinto muito, David - a voz de Ella estava entrecortada. - Tentei ligar mais cedo, mas houve um...
- Certo, certo - David interrompeu-a, cada vez mais ansioso. - Falou com ela?
- Sim. Transmiti seu recado.
- O que ela respondeu?
- Não houve resposta.
- Droga! Ela deve ter dito alguma coisa.
- Bem... suas palavras exatas foram estas: "Os mortos não podem falar com os vivos, e para David eu morri há um ano".
David ficou paralisado, incapaz de qualquer reação.
- Você ainda está aí? - Ella perguntou depois de algum tempo.
- Sim - ele murmurou -, ainda estou aqui... Então foi isso?
- Sim, temo que sim.
Joe enfiou a cabeça pela porta.
- Ei, David, vamos embora, apresse-se.
- Preciso ir-me, Ella. Obrigado por tudo.
- Adeus, David - ela despediu-se com um toque de compaixão na voz.
A angústia invadia o coração de David à medida que caminhava para o abrigo dos Mirage. Pela primeira vez sentiu-se desconfortável na cabine do aparelho. Tudo servia de pretexto para piorar seu humor. Até as checagens rotineiras conseguiram incomodá-lo.
O pessoal de terra jogava gamão no piso de concreto. Seus risos, piadas e provocações chegavam até os ouvidos de David, irritando-o ainda mais.
- Tubby! - ele gritou ao microfone, e sua voz foi repetida pelos alto-falantes.
O jovem engenheiro-chefe do esquadrão Lança subiu rápido pela escada ao lado da cabine.
- Tem uma sujeira aí no pára-brisa - David reclamou. - Como diabos posso localizar um Mig olhando por um vidro no qual você tomou seu café da manhã?
Tubby era quem supervisionava a limpeza e polimento do párabrisa das aeronaves. Sem se alterar, ele removeu o pequeno detrito trazido pelo vento e esfregou o lugar com uma flanela.
David fizera uma reprimenda pública, muito ao contrário de como costumava comportar-se. No entanto, todos entendiam o nervosismo geral durante a prontidão "Vermelha". Além disso, qualquer manchinha no pára-brisa podia confundir um piloto.
- Assim está melhor - David resmungou, ciente de que fora injusto. Tubby sorriu, fez sinal de positivo e desceu a escada.
Naquele momento a voz inconfundível de Brig fez-se ouvir pelo fone de ouvido.
- Prontidão "Vermelha". Podem ir!
Com os motores a plena carga e o empuxo dos pós-combustores levando-o para cima, David falou pelo rádio:
- Flor do Deserto, aqui é Lança Brilhante, voando e subindo.
- David, aqui é Brig. Teremos uma invasão do nosso espaço aéreo. Parece outra provocação dos sírios. Estão se aproximando da fronteira a oito mil e quinhentos metros de altitude e devem se tornar hostis em três minutos. Vamos iniciar o plano de ataque Gideon. Seu novo rumo é quarenta e dois graus, rente ao solo.
David imediatamente abaixou o nariz do Mirage. O plano Gideon determinava um vôo rasante para que a proximidade com o solo impedisse a localização pelo radar inimigo, escondendo-os até que estivessem em posição para uma subida vertical, seguindo um vetor que os pusesse acima e atrás do alvo.
Desceram o mais que puderam, voando tão baixo que assustavam os rebanhos de ovelhas que pastavam pelas imediações.
- Alô, Lança Brilhante, aqui é Flor do Deserto, perdemos o contato do radar com vocês. - Bom, David pensou, se eles não podem nos localizar, o inimigo também não pode. - O alvo está hostil no setor. Usem o radar de bordo para fazer contato. Logo depois Joe disse:
- Líder, aqui é Dois. Fiz contato.
David desviou a vista para a tela do radar e manipulou o equipamento de acordo com a distância e a direção fornecidas por Joe, o que era uma distração perigosa ao se voar quase à velocidade do som e com altura zero.
Passaram-se alguns segundos antes que David divisasse um fraco sinal luminoso no limite do alcance de seu aparelho.
- Contato feito. Distância cento e sessenta quilômetros, altitude oito mil e quatrocentos metros.
David sentiu os sintomas familiares de ódio e de raiva, como se abrigasse dentro de si uma serpente preparando-se para o bote.
- Beseder, Dois. Fixar no alvo e imprimir velocidade de interceptação.
Ao romperem a barreira do som, David olhou para a crista de nuvens de chuva que se projetavam acima da espessa camada de cúmulos-nimbos. De tonalidades prateada e azul, tinham formatos que aguçavam a imaginação - torres de batalha adornadas com brasões, formas humanas, figuras parecidas com os cavalos do jogo de xadrez, uma matilha de lobos, outros animais fantasiosos. Centenas de figuras esplendorosas alteravam-se e seguiam seu caminho pelo céu num cortejo majestoso. A luz do sol dava um brilho especial aos dois aviões de guerra. Até aquele momento ainda não havia sinal do alvo, que devia estar em algum lugar entre as nuvens. David olhou outra vez para a tela do radar. Ele tirara o radar da função busca e o travara no alvo. Assim, conforme se aproximavam, podia acompanhar a posição relativa entre eles.
O alvo voava paralelo a eles, trinta e dois quilômetros a estibordo, bem acima e deslocando-se com metade da velocidade deles. O sol estava além do alvo, próximo de seu zênite. David calculou a rota de aproximação para desenvolver um vetor de ataque vindo da posição uma hora e a quarenta e cinco graus estibordo da nave inimiga.
- Virando para estibordo - avisou a Joe, e ambos fizeram a manobra juntos, percorrendo o caminho que o alvo já fizera e ficando com o sol a favor deles.
Joe informou a distância e o curso do alvo, que parecia desenvolver um vôo de patrulha e não dava mostras de que sabia estar sendo perseguido.
- Dois, aqui é o líder. Armar os circuitos.
Sem tirar os olhos da tela do radar, David pressionou o interruptor mestre do console de armas. Ativou os dois mísseis Sidewinter, dispostos sob as asas, e de imediato escutou o barulho característico do sistema eletrônico em seu fone de ouvido. Aquele ruído indicava que os mísseis estavam "dormindo", ainda não haviam identificado uma fonte de infravermelho para excitá-los. Quando isso acontecesse, o barulho aumentaria de intensidade e freqüência. No entanto, David abaixou o volume de modo a não ouvi-lo mais.
Preparou então os dois canhões de 30 milímetros, que ficavam posicionados na fuselagem bem embaixo do assento do piloto. Quando o gatilho saiu de seu recesso na parte superior do manche, David curvou o indicador para senti-lo e se familiarizar com ele.
- Dois, aqui é o líder. Estou iniciando uma busca visual. - Era o aviso para Joe concentrar-se na tela do radar e fornecer-lhe a localização do alvo.
- O inimigo está na posição dez horas, a uma distância de cinqüenta quilômetros.
David perscrutou o horizonte, de vez em quando olhando para um ponto no solo ou para um montículo de nuvens de maneira a evitar que seus olhos se focalizassem a uma distância muito pequena e atento para não transformar-se de caçador em caça.
Então descobriu-os. Eram cinco, surgidos subitamente de uma nuvem muito alta, parecendo pequenas pulgas em um lençol recém-passado.
- Estão a vinte e cinco quilômetros - informou Joe pelo rádio, embora David já enxergasse perfeitamente a forma escura com asas em delta e a cauda alta que os identificava.
- Tenho contato visual, cinco Mig-21- respondeu num tom neutro, que não espelhava seus sentimentos, pois agora tinha no que descarregar sua raiva. As naves mudaram de cor e formato, aparecendo brilhantes como a lâmina de uma espada.
- Continuam hostis - disse Joe, confirmando que ainda estavam em território israelita. Seu tom de voz, áspero e duro, mostrava que ele compartilhava a raiva do companheiro.
Passaram-se mais quinze segundos antes que contornassem a popa do inimigo. O radar mostrava que tinham feito uma aproximação perfeita. E para completar, o acaso brindara-os com uma formação de nuvens que os deixaria ocultos do agressor. David se abrigaria ali do mesmo modo que os caçadores africanos escondem-se no meio de um rebanho bovino para caçar búfalos.
- Alvo alterando curso para bombordo - Joe avisou.
Os Mig estavam retornando à fronteira síria. Depois de completar a provocação, de exibir as cores islâmicas para os infiéis, estavam voltando para a segurança... O ódio revolveu as entranhas de David. Com um grande esforço, ele esperou o tempo que faltava para dar início à ascensão. Então comunicou-se com o companheiro:
- Dois, aqui é o líder, começando a subida.
- Dois de acordo.
A seguir, executaram uma ascensão tão vertiginosa que o impacto pareceu esmagar-lhes os corpos. O radar de Flor do Deserto captou-os quase no mesmo instante em que se afastaram da proteção do solo.
- Alô, unidades Lança Brilhante, localizamos vocês. Acionem amigo ou inimigo.
Apesar de pressionados contra o encosto sob o empuxo da ascensão vertical, ao receberem a ordem, cumpriram-na de imediato. O sistema de Identificação Amigo ou Inimigo - IAI - apresentaria um padrão diferente, uma luminosidade envolvendo a imagem deles na tela do radar da base de comando, identificando-os positivamente, mesmo que estivessem entre as naves inimigas.
- Beseder, recebemos o sinal IAI - disse Brig. Penetraram o pilar de nuvens e continuaram subindo. David
concentrava-se no painel de instrumentos de vôo cego e na tela dt radar onde a imagem dos aviões inimigos brilhava intensamente e com tal definição devido à pouca distância que se percebia cada uma das aeronaves da formação.
- O alvo está aumentando a velocidade e mudando de rumo para estibordo - alertou Joe, fazendo com que David alterasse seu curso a fim de compensar a manobra do inimigo. Certo de que a aproximação deles não fora notada, atribuía a mudança de rumo a uma coincidência. A tela do radar indicava que haviam atingido a altura desejada. Estavam a três quilômetros de distância, acima a três quartos do costado e a favor do sol. Era a posição ideal.
- Virando para final do padrão de ataque - ele alertou Joe de sua intenção, dando início à última etapa antes de entrarem na velocidade de ataque.
O alvo estava centrado à frente, e a mira eletrônica acendeu-se de leve na tela. Os mísseis Sidewinter receberam as primeiras emanações de raios infravermelhos e começaram a emitir ruídos nos fones de ouvido de David.
Estavam voando dentro da espessa camada de nuvens cinza, quando, de repente, entraram no céu limpo. Logo embaixo, os Mig brilhavam como prata sob a luz do sol. Bonitos, com aspectos de brinquedo, tinham as marcas festivas vermelho, branco e verde, o contorno geométrico das asas e da cauda bem balanceado, e as bocas de tubasâo da entrada de ar das turbinas parecendo abrir para sugar o ar.
Estavam em uma formação em "V", dois de cada lado do líder. Nos poucos segundos que David teve para observá-los, compreendeu toda a situação. Os quatro Wingmen eram sírios, havia uma mudança de nível indefinida na forma de voarem, uma certa falta de controle e de confiança típica de aprendizes. Eram alvos fáceis, como patos em uma lagoa. Aliás, sequer havia a necessidade dos três anéis vermelhos pintados na fuselagem do líder para identificálo como um instrutor russo, algum veterano matreiro, com sangue de falcão nas veias, duro e astuto, e tão bravo e perigoso como uma pantera negra.
- Pegue os dois alvos de bombordo - ele ordenou a Joe, reservando o líder e os outros dois para si. Nos fones de ouvido, os Sidewinters faziam um ruído estridente: haviam captado o deslocamento de ar quente das turbinas inimigas e estavam ansiosos para matar.
David mudou o rádio para freqüência do controle.
- Alô, Flor do Deserto, aqui é Lança Brilhante, pedindo autorização para atacar.
A resposta veio instantaneamente:
- David, aqui é Brig. Interrompa rotina de ataque. Repito, interrompa ataque. O alvo não é mais hostil.
Chocado, David olhou para baixo, avistando o longo vale do Jordão. Tinham cruzado a linha divisória, passando do papel de defensores para o de agressores. Mas estavam tão próximos do alvo... Era uma barbada, sobretudo porque eles ainda não haviam percebido a aproximação...
,- Vamos abatê-los - decidiu, guiado pelo ódio que queimava dentro de si. Desligou a freqüência do comando e disse para Joe: - Dois, aqui é o líder atacando.
- Negativo! Repito, negativo! Alvo não é mais hostil!
- Lembre-se de Hannah! Siga-me! - Curvou o dedo sobre o gatilho e tocou o pedal esquerdo, desviando-se para deixar o Mig mais centrado em sua mira.
Após um pequeno silêncio, Joe respondeu:
- Dois seguindo.
- Mate-os, Joe!
David pressionou o gatilho. Um chiado duplo, quase inaudível por causa do barulho das turbinas, antecedeu o disparo dos mísseis, que deixavam para trás um rastro de vapor escuro. Naquele instante, as aeronaves inimigas tomaram consciência do perigo.
A um comando do líder, a formação dividiu-se em cinco partes, espalhando-se rapidamente, como um cardume de sardinhas pouco antes da investida de uma barracuda.
O último avião da esquadrilha mal começava a fazer a curva, quando um dos Sidewinter acertou-lhe a cauda. O choque da explosão provocou trepidações no Mirage de David. O Mig foi envolvido por uma nuvem esverdeada e fragmentou-se, espalhando pedaços da fuselagem em todas as direções.
O segundo míssil escolhera a máquina com os anéis vermelhos, o líder da formação, mas o russo reagira tão rápido que o petardo passou por ele e perdeu sua pista. Enquanto David manobrava para perseguir aquele Mig, o míssil autodestruiu-se, com uma explosão ensurdecedora.
Olhando através do círculo imaginário que o separava da nave síria, David pôde ver todos os detalhes, do capacete vermelho do piloto às cores berrantes dos círculos, passando pelas inscrições em árabe que o identificavam, pelos rebites espalhados no metal polido da fuselagem.
David aplicou toda a sua força sobre o manche, pois a gravidade estava aumentando a carga sob os controles do avião, quase arrancando suas asas, e agindo sobre o piloto, alterando seu fluxo sangüíneo, deixando sua visão turva e obscura. Ao mesmo tempo, o traje pressurizado esmagava-lhe as pernas e cintura, um recurso para tentar evitar a drenagem do sangue das partes altas de seu corpo.
Contraindo os músculos, David conduziu o Mirage para um looping, como um motociclista no globo da morte, visando ganhar a vantagem da altura. A vista começava a falhar, não alcançando mais do que o interior da carlinga. Ele estava pressionado contra o assento, a boca aberta, as pálpebras ameaçando fechar-se; o esforço de manter a mão direita no manche era hercúleo.
O indicador de estol começou a piscar, mudando de âmbar para vermelho, avisando-o de que estava à beira de uma catástrofe. David encheu os pulmões e soltou um grito. Este esforço drenou sangue para seu cérebro, melhorando sua visão, possibilitando-lhe ver que o Mig previra sua manobra e se colocara embaixo do Mirage, dirigindo-se para seu flanco e barriga desprotegidos.
Não lhe restava outra alternativa senão interromper a curva antes que os canhões da aeronave inimiga disparassem. Assim, David girou a máquina sobre si mesmo e de imediato iniciou uma subida para a esquerda, consumindo combustível a uma razão extraordinária e impondo um limite a essa manobra desesperada.
O adversário seguiu-o com a graça e a beleza de um bailarino, colocando-se outra vez em posição de ataque na sua retaguarda. David viu-o pelo espelho retrovisor e girou de novo, ascendendo para a direita, quase se arrebentando com a violência da curva.
Girar e virar, virar pela vida... David subestimara o inimigo, um oponente mortal, rápido e duro, que antecipava todos os seus movimentos, pilotando como um exímio atirador. Virar e virar novamente, em grandes parábolas em torno da asa, sempre subindo, sempre virando, rastros de vapor saindo das asas em arabescos de seda contra o azul do céu.
Os braços e as mãos de David doíam cada vez que ele manejava os controles. A força da gravidade drenava-lhe o sangue do cérebro, e a tensão provocava-lhe enjôos. Aos poucos, o ódio belicoso transformava-se em desespero à medida que seus esforços para se desvencilhar do russo eram desfeitos e a boca de tubarão do Mig ficava prestes a apanhá-lo. Toda a perícia, o brilhantismo e a afinidade natural com a arte de voar estavam sendo anulados pela experiência de combate do inimigo.
Em um dado momento, quando voaram lado a lado, David avistou o rosto do adversário, os olhos e a testa sobre a máscara de oxigênio, a pele pálida. Então, estava girando novamente, girando e gritando na luta contra a gravidade, e contra os primeiros sintomas do medo.
De repente, ele interrompeu a curva no meio e, inconscientemente, reverteu o sentido de rotação. O Mirage estremeceu e perdeu velocidade. O russo percebeu a manobra e aproximou-se pelo estibordo. David empurrou o manche para a frente e para a esquerda, pisando fundo no pedal esquerdo a fim de escapar da rajada de tiros. Quando a máquina entrou em um mergulho helicoidal, o sangue que a gravidade drenara de sua cabeça subiu-lhe pelo corpo, tingindo sua visão de vermelho da força gravitacional invertida. Uma veia rompeu-se em seu nariz, enchendo sua máscara de oxigênio de sangue.
O Mig seguia-o no mergulho e se preparava para a segunda rajada. Ao sentir o gosto salgado do sangue na boca, David puxou o manche com toda a força. O Mirage apontou para cima, obrigando o sangue a ser drenado de sua cabeça. Quando atingiu o topo da curva, rolou, interrompendo-a. O adversário reagiu um centésimo de segundo atrasado e passou pela mira de David, que disparou uma rajada de balas que cortaram o céu como água saindo de uma mangueira de jardim. O Mig permaneceu na mira aproximadamente um décimo de segundo, mas nesse espaço de tempo David viu uma luz relampejar, um brilho forte abaixo da cabine do piloto. O avião perdia altitude e soltava um rastro de vapor branco.
Acertei-o, David pensou, e o medo se transformava outra vez em ódio mortal e triunfante. Deu outra virada, sem perdê-lo da mira, e disparou uma rajada de um segundo. As cargas incendiárias atingiram em cheio a fuselagem prateada do Mig, que entrou num mergulho suave, voando em linha reta sem praticar mais ações evasivas. O piloto devia estar morto nos controles. David posicionou-se na retaguarda do aparelho, voltando a atacá-lo.
A aeronave começou a desmanchar-se, embora o russo continuasse lá. Sob uma rajada de dois segundos, o aparelho entrou em um mergulho acentuado, com uma velocidade estonteante. Explodiu como uma bomba de encontro à terra, levantando uma nuvem de poeira e fumaça que permaneceu por longos minutos sobre as planícies da Síria.
David cortou os pós-combustores e verificou os marcadores de combustível. Todos indicavam uma pequena margem acima do limite máximo. Além do mais, o último mergulho atrás do Mig levara o Mirage a uma altitude de mil e quinhentos metros. Era baixo demais e sobre território inimigo.
Assim, David tomou o rumo oeste e acelerou até a velocidade de interceptação. Precisava escapar do alcance da artilharia antiaérea e encontrar o companheiro de missão.
- Lança Brilhante Dois, aqui é o líder, pode me ouvir?
- Líder, aqui é o Dois - Joe respondeu de imediato. - Posso vê-lo. Pelo amor de Deus, saia daí!
- Qual é minha posição?
- Estamos cinqüenta quilômetros dentro da Síria. Nosso curso para casa é duzentos e cinqüenta graus.
- Como você se saiu?
- Peguei um. O outro fugiu enquanto eu procurava você. David surpreendeu-se ao notar que suava dentro do capacete e que sua máscara estava pegajosa com o sangue que saíra de seu nariz. Tinha os braços doloridos e sentia-se tonto devido ao efeito da gravidade e do combate. Suas mãos tremiam nos controles.
- Abati dois - ele comunicou. - Dois porcos; um por Debra e outro por Hannah.
- Cale-se, Davy - a voz de Joe estava carregada de tensão. - Concentre-se em cair fora daqui. Você está ao alcance da artilharia antiaérea e dos mísseis terra-ar. Acenda a luz da cauda e vamos embora.
- Negativo. Estou com pouco combustível. Onde você está?
- Posição seis horas, a sete mil e quinhentos metros. - Joe inclinou-se para a frente a fim de avistar o avião do companheiro, que subia lentamente para encontrá-lo. Ao vê-lo tão baixo e tão vulnerável, temeu por ele, passando a varrer o céu e a terra em busca de sinais de perigo. Em dois minutos ele os encontraria. Mas por pouco não perdeu o primeiro míssil. O pessoal da plataforma de lançamento devia ter esperado que David a sobrevoasse antes de soltá-lo em perseguição, pois Joe só viu o rastro de vapor quando o petardo já estava se aproximando do alvo.
- Míssil! Quando eu der o sinal, vire para a esquerda - Joe gritou ao microfone. - Agora! - E viu David virar instantaneamente, escapando. - Ótimo - disse, enquanto o míssil prosseguia seu curso antes de se autodestruir. - Continue seu caminho, Davy, mas fique acordado, haverá mais.
O míssil seguinte deixou um veículo camuflado em um maciço rochoso sobre a planície castigada pelo sol. O Serpente ganhou os céus, rumo ao Mirage de David.
- Acenda a cauda e espere por ele! - recomendou Joe enquanto o míssil avançava em alta velocidade. - Vire para a direita! Agora!
Apesar de David ter feito bem a manobra, o Serpente passou por ele, mas, sem perder o contato, voltou para atacar. Seu circuito de orientação estava travado sobre o caça.
- Ele continua te perseguindo - Joe gritou. - Vá na direção do sol!
Logo o Mirage apontava para o grande astro que queimava sobre as montanhas. O Serpente seguiu-o, como um autômato muito bem programado.
- Esquive-se agora, Davy!
David saiu abruptamente da ascensão vertical, enquanto o Serpente, ativado pela enorme quantidade de raios infravermelhos que emanavam do sol, fixava-se nele.
- Tudo bem, David. Saia daí! - disse Joe.
Entretanto, o caça estava vulnerável. Durante a subida desesperada para o sol, perdera velocidade e manobrabilidade, e ficaria assim por alguns segundos. Então seria tarde demais, pois o terceiro míssil já fora lançado do solo.
Joe não teve consciência do que fazia até ter iniciado um mergulho com aceleração total, o velocímetro indicando duas vezes a velocidade do som. Nivelou atrás de David, expondo-se ao Serpente, que considerou o calor daquela turbina mais tentador que o do outro Mirage. Ao ver o míssil seguindo o avião de Joe, David compreendeu que o companheiro se oferecera deliberadamente como alvo a fim de salvá-lo.
Joe usou a velocidade que ganhara no mergulho para subir em direção ao sol. Observando o míssil pelo espelho retrovisor, esquivou-se no último instante. Só que o Serpente não foi enganado e continuou sua perseguição. Então, da mesma maneira que David ficara sem manobrabilidade, o mesmo aconteceu com Joe. Ele tivera uma chance, que não funcionara. O míssil atingiu-o, provocando uma grande explosão.
Após presenciar o desastre, David praticamente entrou em pânico. Terror, medo e mágoa misturavam-se em seu lamento solitário.
- Joe, não. Oh, Deus, não! Você não devia ter feito isso. Era você quem devia estar voltando para casa, Joe! Era você, Joe - concluiu, com um nó na garganta.
O instinto de sobrevivência levou-o a olhar para trás e verificar o ponto cego; então avistou o último míssil vindo em sua direção, um ponto preto, com um pequeno espectro de fumaça escura em volta.
Assim que o viu, soube sem sombra de dúvidas que aquele era o seu, o que o destino lhe reservara. Safar-se dos últimos ataques desgastara seus nervos, e ele sentiu-se desalentado enquanto observava o míssil aproximar-se. Nervoso, obrigou-se a fazer um esforço supremo. O suor escorria pelo seu rosto e lhe encharcava a máscara; a mão esquerda mantinha o acelerador aberto e a direita segurava o manche com a força do desespero.
Quando o míssil estava quase sobre ele, tentou uma curva fechada, mas cometeu um erro de julgamento de uma fração de segundo. Com isso o Serpente passou perto o suficiente para captar a imagem do Mirage no olho fotoelétrico do mecanismo de disparo, fazendo-o explodir.
Incontáveis fragmentos de aço penetraram na carlinga do avião, um dos quais atingiu o assento blindado e ricocheteou, indo alojarse um pouco acima do cotovelo de David. Um vento gelado soprava através da cabine danificada. Conforme o Mirage se retorcia nos céus, David era jogado contra os cintos de segurança, enquanto o braço quebrado balançava de um lado para o outro.
Ele tentou ajeitar-se no assento e fechou a proteção facial do capacete. Então acionou o mecanismo de ejeção... Nada aconteceu.
Desesperado, procurou o mecanismo de disparo secundário, colocado sob o assento entre seus pés. Outra vez nada ocorreu. O mecanismo não estava funcionando, a explosão devia tê-lo danificado. Ele teria de controlar o Mirage com um único braço, apesar da pouca altitude. Empunhou o manche com a mão direita, disposto a tirar o avião de sua trajetória louca e do parafuso em que se encontrava. Guiava-se apenas pelo instinto, uma vez que o céu, o horizonte e a terra passavam numa rápida sucessão diante de seus olhos. Estava perdendo altura, pois, a cada vez que a terra passava pelo seu campo de visão, parecia mais perto e ameaçadora. Mas ele continuava insistindo em tirar o avião do parafuso. Não tardou a sentir o primeiro traço de resposta - a velocidade das rotações diminuindo ligeiramente. Acionando ao mesmo tempo o manche e os pedais, afinal notou que o Mirage dava sinal de vida. Gentil, com o toque de um amante, conduziu a máquina, que saiu do parafuso e começou a voar em linha reta e nivelada, apesar de bastante avariada. A explosão do míssil causara-lhe estragos mortais. David sentia as vibrações grosseiras do motor balançando toda a fuselagem. Na certa, o rotor perdera uma lâmina e estava desbalanceado. Em minutos, ou segundos, o avião se partiria em pedaços. Era impossível acelerá-lo mais.
De repente, David tomou consciência do quanto havia caído durante o parafuso. Estava a cerca de cem metros do solo, incerto quanto ao rumo, embora a bússola indicasse que estava na direção aproximada do lar.
A vibração do motor aumentava a cada instante, mesclada com o barulho do metal se despedaçando. O avião estava próximo do fim, e não havia altura suficiente para o piloto livrar-se da proteção de Perspéx, soltar o cinto de segurança e sair da carlinga. Restava-lhe apenas uma possibilidade: tentar uma aterrissagem.
Mal tomou a decisão, começou o trabalho para executá-la. Segurando o manche com os joelhos, abaixou o trem de pouso. A roda dianteira serviria para manter o nariz alto, até que perdesse um pouco de velocidade.
A frente aparecia uma pequena crista de chão rochoso, pontilhado com vegetação verde. Seria um desastre pousar ali. Adiante, havia campos abertos, pomares bem cuidados, edificações bem construídas. Tal organização só podia significar que ele cruzara a fronteira de Israel.
David passou raspando pela crista rochosa. As mulheres que trabalhavam em um dos pomares pararam para observá-lo. Estava tão próximo do solo que pôde ver a surpresa e apreensão estampadas no rosto delas. Um homem que dirigia um trator jogou-se ao chão quando o caça sobrevoou a poucos metros de sua cabeça.
As válvulas de combustível estavam fechadas, os interruptores desligados, tudo pronto para o pouso de emergência. Porém, apesar do campo limpo e aberto à frente, ainda seria necessário muita sorte para tudo acabar bem.
O Mirage perdia sustentação, levantava o nariz, e a velocidade do ar estava caindo vertiginosamente, aproximando-se da velocidade de estol, 240 quilômetros por hora.
Foi então que David percebeu que o campo à frente estava cheio de canais de concreto para irrigação, com seis metros de largura e três de profundidade, uma armadilha mortal, suficiente para destruir um tanque de guerra.
Como não havia o que fazer para evitar aquelas mandíbulas abertas, prosseguiu adiante, tocando o solo suavemente. Tão suave quanto um gatinho deitando em um pedaço de veludo, pensou, ciente de que toda a sua perícia não servia para nada no momento. Até Barney ficaria orgulhoso de mim.
O Mirage pousou sobre o campo irregular, jogando o piloto de um lado para o outro, mas se mantendo sobre as rodas, perdendo velocidade, embora ainda estivesse a 150 quilômetros por hora quando caiu em um canal de irrigação.
O trem de pouso foi arrancado, e o nariz do aparelho bateu no concreto e se amassou como uma gadanha. A fuselagem saiu derrapando pelo campo, as asas se partiram e o corpo do avião escorregou pela terra, parando como uma baleia encalhada.
Com o lado esquerdo entorpecido, David não sentia o braço nem a perna. Os cintos de segurança feriam-lhe os ombros, e ele estava atordoado e confuso com o súbito silêncio.
Permaneceu imóvel, incapaz de qualquer ação, até sentir o cheiro do querosene que vazava dos tanques e tubulações partidos. Foi o que lhe deu forças - os pilotos cultivavam um medo mortal do fogo.
Ágil, ele acionou a alavanca para liberar o pára-brisa e o forçou para cima. Gastou dez preciosos segundos naquela operação, mas o pára-brisa estava entalado. Então pegou a ferramenta de aço apropriada para aquele tipo de emergência. Recostado no assento, golpeou o domo de Perspex sobre sua cabeça. O cheiro de combustível estava cada vez mais forte; da carlinga, ouvia-se seu respingar sobre o metal.
O braço esquerdo apenas o atrapalhava; ao não senti-lo, como poderia utilizá-lo? Soltou o cinto de segurança que o mantinha preso ao assento, e logo voltou ao trabalho sobre a cúpula da cabine. Conseguiu fazer uma abertura de menos de vinte centímetros. Porém, enquanto a alargava, um duto de combustível sob pressão rompeu-se em algum lugar, e um jato de querosene jorrou para oalto como um irrigador de jardim, entrando pelo buraco no pára-brisa. O líquido molhou-lhe o rosto, gelando suas faces e causando ardor em seus olhos. David começou a rezar. Pela primeira vez em sua vida, a prece ganhava significado real.
- Ouça, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Uni... - Ao mesmo tempo em que orava, batia no Perspex e recebia a chuva mortal sobre o rosto. Ao arrancar pedaços do material transparente, a luva não resistiu e ele acabou ferindo a mão direita. - Louvado seja Seu nome, cujo reinado é eterno...
A abertura já era grande o suficiente para sua passagem. David levantou-se do assento, mas se viu preso pelo mangote de oxigênio e pelos fios de rádio do capacete, sem poder alcançá-los com a mão esquerda: o sangue escorria pela manga do traje. Não sentia dor, mas o braço estava retorcido de maneira estranha, do cotovelo para baixo.
- Você deve amar o Senhor seu Deus com todo o seu coração... - ele continuou enquanto retirava o capacete e o deixava no piso. O querosene encharcou seus cabelos e escorreu pela nuca. David lembrou-se das chamas do inferno.
Acabrunhado de dor, esgueirou-se através da abertura no Perspex. Naquele instante, nem a oração era capaz de conter a onda de terror que invadia sua alma.
- Pois a ira de Deus cairá sobre vós...
Com muito esforço, rastejou pelos destroços da base da asa e rolou para o chão. Caiu com o rosto voltado para baixo, e assim permaneceu por um momento, exausto e aterrorizado.
- Lembre-se dos mandamentos de Deus...
Então, ao escutar vozes, ergueu a cabeça. As mulheres do pomar corriam em sua direção através do campo, alvoroçadas e falando em hebraico. Bem, ele estava em casa.
Apoiando-se na fuselagem amassada do Miragem ficou de pé, o braço esquerdo balançando sem controle. Quis gritar, alertando as mulheres para que não se aproximassem, porém a voz não lhe saiu da garganta. Procurou afastar-se do avião, arrastando-se de encontro ao grupo de trabalhadoras.
- Voltem! - gritou angustiado. O macacão de vôo estrangulava seus movimentos, ele sentia frio devido à evaporação do combustível no rosto e nos ombros.
Próximo à fuselagem do Mirage, formou-se uma poça de querosene que se aqueceu em contato com o metal ardente do reator. Por fim, sua baixa volatilidade foi incrementada até o ponto crítico e bastou uma pequena faísca do equipamento eletrônico para provocar o desastre.
Com um rugido surdo, o avião explodiu em chamas, liberando um tufo de fumaça preta. O vento espalhou as labaredas com uma rapidez extraordinária, chegando a envolver David, que estava com o tronco e os membros protegidos pelo macacão, luvas e botas a prova de fogo, mas com a cabeça exposta e encharcada de combustível. O instinto levou-o a cerrar os olhos centésimos de segundos antes de ser atingido pelo fogo. Entretanto, sua cabeça ardia como uma tocha enquanto ele corria às cegas sob a fornalha. Em breves instantes, as chamas destruíram seus cabelos, as orelhas, os lábios, parte do nariz e da mandíbula, deixando o rosto em carne viva.
David jamais poderia acreditar que fosse possível sentir tanta dor. Era um tormento atroz, que assaltava todos os seus sentidos.
Mesmo assim, ouvia um troar ensurdecedor, como se todos os ventos do mundo soprassem em seus ouvidos. Experimentava na carne a terrível tortura do inferno. Mas continuava a correr sem rumo, guiado por forças arrancadas do próprio desespero.
As mulheres do pomar foram pegas pela súbita parede de chamas e fumaça negra que envolveu o avião destruído e seu piloto. Aquela barreira impenetrável forçou-as a recuar, antes de serem atingidas pelo calor ou pelas labaredas. Ofegantes, assustadas e apreensivas, ficaram paradas, esperando não sabiam bem o quê.
Então, uma pequena rajada de vento abriu uma brecha na fumaça espessa, e dela surgiu uma figura horrorosa, cambaleante, o corpo queimado e a cabeça em chamas. Um dos seus braços parecia completamente deslocado, balançando de um lado para o outro. A estupefação, o horror da cena, paralisou o grupo de mulheres. Passados breves segundos, uma delas, uma moça robusta e bronzeada, foi tocada pela compaixão e decidiu fazer algo. Correndo em direção à tocha humana, tirou a pesada saia de lã fibrosa, deixando as pernas nuas. Mal alcançou David, enrolou a saia na cabeça dele, abafando as chamas que ainda lhe devoravam a carne. As outras mulheres seguiram-na, usando suas vestimentas para embrulhá-lo assim que ele caiu no chão.
Só então David começou a gritar, através da boca sem lábios e com os dentes à mostra. Foi um som lancinante, que nenhuma delas jamais esqueceria. Durante o desespero, ele abriu os olhos, cujas sobrancelhas, cílios e a maior parte das pálpebras haviam sido consumidos pelo fogo. As pupilas azul-escuras destacavam-se na máscara de carne viva. Pequenos vasos na superfície dos músculos faciais abriam-se e respingavam sangue. Fazendo contraponto aos seus gritos, o sangue e a linfa borbulhavam das fossas nasais, onde existira o nariz. Se corpo inteiro tremia e se retorcia, com espasmos atrás de espasmos.
As mulheres tiveram de segurá-lo para que ele não arranhasse as faces com as próprias mãos. Seus gritos ainda ecoavam no ar quando o médico do kibbutz rasgou-lhe a manga da roupa pressurizada e injetou-lhe morfina no braço.
Depois que a última imagem do radar desapareceu da tela, o jovem operador informou:
- Perdemos contato.
Um silêncio carregado caiu sobre o bunker. Todos olhavam para Brig que, debruçado sobre a pequena tela, tinha os punhos cerrados rosto sério e impassível, embora o olhar fosse amedrontador. Parecia que a voz desesperada dos dois pilotos ainda ecoava nos alto-falantes, enquanto se comunicavam durante o conflito mortal. Todos tinham ouvido o lamento de David: Joe! Não, Joe! Oh, Deus, não!"
E sabiam o que aquilo significava - ambos haviam se perdido.
Brig estava atordoado pelo rumo imprevisível que o destino tomara. Ao perder o controle dos caças, soubera que o desastre era inevitável, e agora seu filho estava morto. Uma vontade de gritar, de chorar, de protestar contra a loucura de tudo aquilo, tomou conta de sua mente. Ele cerrou os olhos por alguns segundos, porém quando os abriu já estava sob controle.
- Alerta geral! - vociferou. - Todos os esquadrões para prontidão "Vermelha". - Ele sabia que estavam enfrentando uma crise internacional. - Quero cobertura aérea para a região em que eles caíram. Talvez tenham-se ejetado. Coloquem dois Phantom no ar e mantenham uma barreira aérea para protegê-los. Enviem helicópteros com pára-quedistas e equipe médica. Ponham-me em contato com a primeira-ministra. - Brig teria muito o que explicar, mas mesmo assim reservou alguns segundos para amaldiçoar David Morgan.
O médico da Força Aérea examinou a cabeça carbonizada de David e comentou:
- Será muita sorte conseguir salvá-lo.
Depois de envolvê-lo do pescoço para cima com bandagens de vaselina, deixando-as frouxas, a equipe de socorro transportou o corpo embrulhado em cobertores para o helicóptero Bell 205 que esperava no pomar.
Quando a máquina pousou no heliporto do hospital Hadassah, uma junta médica já a aguardava a postos. Uma hora e vinte e três minutos após o Mirage ter atingido o canal de irrigação, David chegava à área esterilizada na unidade especial de queimaduras, no terceiro andar do hospital, um lugar pequeno e isolado, onde todos usavam máscaras e aventais compridos. O único contato com o mundo exterior era através das janelas de vidro duplo, e até o ar que ali se respirava era depurado, limpo e filtrado.
No entanto, David estava sob o efeito permanente da morfina e não ouvia os sussurros das figuras mascaradas que trabalhavam sobre ele.
- É de terceiro grau em toda a área.
- Não tente limpar nem tocar as queimaduras, até que se estabilizem, irmã. Vou borrifá-las com Epigard. Aplicaremos Tetraciclina intramuscular a cada quatro horas para combater a infecção. Não poderemos tocá-lo antes de duas semanas.
- Está bem, doutor.
- Ah, quinze miligramas de morfina a cada seis horas. Ele ainda terá muita dor.
A dor era como um oceano sem fim cujas ondas varriam sem descanso a capacidade de resistência de David. Havia horas em que ameaçava tirar-lhe a razão. Em outras ocasiões, assumia um ritmo suave, sempre vinculado à morfina que circulava por seu sangue. Quando o efeito da droga passava, ele se contorcia e berrava. A cabeça parecia prestes a explodir, as extremidades expostas dos nervos exigiam algum conforto.
Então, vinha o toque agudo e bem-vindo da agulha em seus músculos, tirando-lhe outra vez a consciência.
- A aparência disso não me agrada. Foi feita uma cultura, irmã?
- Sim, doutor.
- O que estamos cultivando?
- Temo que sejam estreptococos.
- Foi o que pensei. Vamos mudar para Cloxacillin. Talvez tenhamos uma resposta melhor.
Junto com a dor, David sentia vagamente um cheiro - de cadáver em decomposição, de cobertores repletos de vermes, de vômito e excrementos, de lixo molhado apodrecendo em becos escuros. Finalmente ele percebeu que era o cheiro da decomposição de sua própria carne, à medida que a infecção atacava o tecido exposto.
Os médicos combatiam-na com drogas, mas a dor se acentuava com a febre, uma sede que nenhuma quantidade de líquido conseguia aplacar. Logo surgiram os pesadelos e as fantasias para levá-lo aos limites da resistência.
Joe - ele gritava em sua agonia -, tente o sol, Joe. Quebre para a esquerda, agora. Agora! - Então soluçava sem controle.
- Oh, Joe! Oh, Deus, não, Joe!
A enfermeira da noite aparecia correndo com a seringa. Seus gritos transformavam-se em resmungos, depois em murmúrios suaves. A droga sempre fazia efeito.
- Vamos começar com os curativos de Acriflavim, irmã. Quando trocavam os curativos, a cada quarenta e oito horas, faziam-no sob anestesia geral, pois a cabeça inteira continuava em carne viva, sem expressão, como no desenho de uma criança - traços primários e cores berrantes, sem cabelos, sem orelhas, pontilhada de pus e de tecido em decomposição.
- Estamos obtendo resposta com o Cloxacillin. Ele está com uma aparência bem melhor, irmã.
As pálpebras do enfermo haviam-se contraído, expondo os glóbulos oculares. As cavidades que abrigavam os olhos eram cobertas com um ungüento amarelo para aliviar a dor e umedecêlos, mantendo-os livres da infecção que tomava o resto da cabeça.
- Está na hora de um pedicelo abdominal. Por favor, prepare-o para a cirurgia, irmã.
David aprenderia que a dor e o bisturi eram quase sinônimos. Levantaram uma longa banda de pele e carne de sua barriga, mantendo-a presa por uma das extremidades, e a enrolaram como uma lingüiça. Pegaram o braço direito, que não estava engessado, e costuraram o extremo livre da "lingüiça" ao antebraço, de modo que tirasse de lá seu suprimento de sangue.
- Bem, salvamos ambos os olhos - disse uma voz carregada de orgulho.
David conseguiu vê-los pela primeira vez. Estavam agrupados em volta de sua cama, um círculo de cabeças, bocas e narizes cobertos por máscaras cirúrgicas.
- Agora cuidaremos das pálpebras.
O bisturi novamente! As pálpebras, contraídas e enrugadas, foram cortadas, remodeladas e costuradas. O gosto e o cheiro de anestésico saturavam seu corpo e pareciam exalar de todos os poros de sua pele.
- Bonito trabalho! Limpamos totalmente a infecção, agora podemos começar.
Livre dos veios de pus, a cabeça ficou úmida e brilhante, da cor de cereja. Duas pequenas protuberâncias faziam as vezes de orelhas; as arcadas dentárias estavam à mostra pela ausência de lábios; um pedaço de osso exposto delineava o extremo da mandíbula; o nariz era um coto, e as narinas lembravam os canos de uma espingarda de caça. Apenas os olhos continuavam bonitos, perfeitos, embora não se pudesse dizer o mesmo das pálpebras.
- Vamos cuidar da nuca. Prepare-o para a cirurgia, irmã. Mais uma variação no tema do bisturi. Pedaços de pele foram retirados de suas coxas e, reticulados para cobrir uma área maior, foram implantados na carne exposta, um pouco em cada seção.
- Aquele ali não ficou bom. Vamos ter de arrancá-lo e tentar de novo.
Enquanto a pele da coxa se refazia, utilizavam a da barriga da perna. Cada um desses locais se tornava uma nova fonte de dor.
- Ótimo! Ficou muito bom aquele enxerto.
Pouco a pouco o implante de pele subia pela nuca e pelo couro cabeludo, cobrindo-o de maneira regular, ainda que os enxertos recentes ficassem duros e ressaltados.
- Já podemos levantar o pedicelo.
- Cirurgia à tarde, doutor?
- Sim, irmã.
David descobriu que eles operavam às terças-feiras. Ele odiava as sessões da manhã daquele dia, quando a equipe médica amontoava-se em volta da cama e o tocava, sondava, discutia a restauração de seus músculos com uma impessoalidade que o apavorava.
Soltaram a tira de gordura e carne de sua barriga, a qual ficou dependurada no braço. Então pegaram esse enxerto, que foi dividido em dois: uma parte para a mandíbula, a outra para o coto do nariz.
- Está bem assim. Vamos começar a dar-lhe forma esta tarde, no centro cirúrgico.
Com os tecidos que lhe subtraíram do abdômen, moldaram um arremedo de nariz, de lábios e de queixo.
- O edema cedeu. Podemos fazer o enxerto do osso no maxilar.
Abriram-lhe o peito e cortaram lateralmente a quarta costela, um pedaço de osso que foi transplantado no maxilar, sendo recoberto com o tecido do pedicelo.
Às terças-feiras, era o bisturi e o cheiro de anestésico; nos outros dias, a dor dos músculos esfolados.
Melhoraram a forma do nariz, concluíram a reconstrução das pálpebras e os enxertos atrás das orelhas. Os novos lábios ficaram firmes, e David ganhou controle sobre eles. Já podia articular palavras e falar.
O risco de infecção havia passado. Então, transportaram-no do ambiente esterilizado. Novamente ele viu rostos humanos, não apenas olhos aparecendo sobre máscaras brancas de cirurgia. Os rostos eram amigáveis, alegres. Homens e mulheres orgulhosos de o terem salvo da morte e remodelado sua cabeça.
- Você já pode receber visitas. Espero que goste disso - anunciou o médico, um cirurgião de ar distinto que deixara uma posição muito bem remunerada em uma clínica na Suíça para dirigir a unidade de queimaduras e cirurgia plástica daquele hospital.
- Não creio que haverá visitantes... - David perdera o contato com a realidade exterior durante os nove meses que passara em recuperação.
- Claro que haverá. Diversas pessoas têm perguntado regularmente sobre seu estado. Não é verdade, irmã?
- É isso mesmo, doutor.
Quando o médico e seus auxiliares fizeram menção de sair da sala, David pediu-lhes para dar uma olhada no espelho. Todos ficaram em silêncio, embaraçados. Era uma solicitação que haviam recusado diversas vezes durante os últimos meses.
David ficou furioso.
- Droga! Vocês não podem me esconder isso para sempre. O cirurgião fez um gesto dispensando a equipe. Quando se viu a sós com o paciente, disse suavemente:
- Está bem, David, vamos lhe conseguir um espelho. - Pela primeira vez em quase um ano de convivência com David, sentiu-se tocado pela compaixão. O que o surpreendeu, pois sua vida girava em torno de pessoas que sofriam as mais terríveis desfigurações, e isso acabava por eliminar aquele sentimento. - Você precisa entender que não ficará como está agora. Até o momento, nosso trabalho foi recuperar os tecidos danificados. Você não perdeu nenhuma de suas faculdades, mas não vou fingir que você esteja bonito. No entanto, ainda há muito o que fazer para mudar isso. Suas orelhas, por exemplo, serão reconstruídas com o material que reservamos para essa finalidade. - O médico apontou para o pedaço de pedicelo dependurado no braço de David. - Ainda há muito o que ser feito para melhorar sua aparência. Mas vou ser sincero com você. As possibilidades são limitadas. Seus músculos de expressão, aqueles em volta dos olhos e da boca, foram destruídos. É impossível substituí-los. Os folículos capilares das sobrancelhas, dos cílios e do couro cabeludo tiveram o mesmo fim. Você poderá usar uma peruca, mas...
David virou-se para o criado-mudo e retirou sua carteira da gaveta. Abriu-a e pegou uma fotografia. Aquela que fora tirada por Hannah, onde Debra e David apareciam sentados na piscina de pedra do oásis Ein Gedi, ambos sorrindo. Entregou-a ao cirurgião.
- Você era assim, David? Eu não sabia... - O médico tinha um tom de voz pesaroso.
Poderei ficar assim novamente?
O cirurgião estudou cada detalhe do rosto perfeito que via na foto. Depois murmurou:
- Não, nem de longe.
- Era só isso que eu queria saber. - David pegou a fotografia de volta. - Vou ficar do jeito que estou.
- E as cirurgias estéticas? Ainda não completamos...
- Doutor, faz nove meses que eu me submeto ao bisturi. Durante todo esse tempo, só senti gosto e cheiro de antibióticos e de anestésicos. Meu único desejo agora é escapar da dor, ter um pouco de paz e respirar o ar puro.
- Bem, não é imprescindível que façamos isso nesse momento. Você deve voltar aqui quando se sentir preparado. Agora, venha comigo. Vamos procurar um espelho.
Chegaram à sala das enfermeiras, que naquele momento se encontrava vazia. Havia um espelho dependurado na parede, acima da pia. Parando à entrada da sala, o cirurgião acendeu um cigarro enquanto David se dirigia para o espelho. O rapaz estacou de repente ao ver sua imagem ali refletida.
Mesmo trajando, sobre o pijama, o avental azul do hospital, seu porte ainda era impressionante - ombros largos, quadris estreitos; enfim, o mesmo corpo másculo de antes. No entanto, do pescoço para cima, nada lembrava a figura bonita que fora havia menos de um ano. Sua boca tinha os lábios apertados, o crânio estava completamente careca, a pele reticulada e cheia de ondulações. As faces eram um amontoado de cicatrizes; os olhos, redondos e arregalados, tinham as pálpebras fofas, parecendo sem vida. O nariz tampouco possuía o formato normal; assim como as orelhas, era apenas uma protuberância colocada ali para preencher o vazio. O aspecto geral do rosto lembrava, isto sim, uma máscara de borracha que tivesse sido fervida.
David quis escarnecer da própria imagem, mas, para sua surpresa, não conseguiu nenhuma expressão facial.
- Não posso sorrir - disse para o médico.
É verdade - confirmou o cirurgião. - Você não terá controle sobre sua expressão.
Talvez fosse esse o lado mais cruel de todo aquele processo. Se ter uma aparência horrenda já era péssimo, não poder expressar o que sentia era estarrecedor.
- Você precisava ter visto minha outra cara - murmurou David em tom de gozação.
- Amanhã tiraremos os últimos pontos das orelhas e o resto do pedicelo do braço; então você terá alta. Volte quando achar melhor.
David passou os dedos pelo crânio careca.
- Vou economizar uma fortuna com barbeiro e lâminas de barbear - brincou, enquanto o médico saía para o corredor.
Arranjaram-lhe roupas baratas e pequenas para o seu tamanho. Depois que se vestiu, David pediu algo para pôr na cabeça, qualquer coisa que escondesse o formato estranho de seu crânio. Deram-lhe uma boina, com a qual ele foi ao encontro do primeiro visitante que o aguardava na superintendência do hospital.
Era um major do gabinete militar, um homem de cabelos grisalhos e olhos cinzentos, o rosto severo. Após apresentar-se, sem oferecer a mão para os cumprimentos, ele abriu uma pasta sobre a escrivaninha.
- Recebi instruções para levar seu pedido de desligamento da Força Aérea de Israel.
David ficou chocado ao ouvir aquilo, pois durante as longas e dolorosas noites de febre não pensara em outra coisa mais feliz que a perspectiva de voar.
- Mas... por quê... - balbuciou enquanto acendia um cigarro. - E se eu me recusar?
- Não teremos outra alternativa a não ser levá-lo à corte marcial e julgá-lo por falta gravíssima, ao se recusar, diante do inimigo, a obedecer ordens com força de lei de seu superior.
David balançou a cabeça, pesaroso.
- Parece que não tenho escolha.
- Já preparamos os documentos necessários. Por favor, assine aqui, e aqui. Eu assinarei como testemunha.
David rabiscou seu nome nos papéis, sem sequer ler o que tinha escrito.
- Obrigado. - O major juntou os formulários e colocou-os na pasta. Despediu-se com um breve aceno de cabeça e se dirigiu para a porta.
- Quer dizer então que agora sou um proscrito...
O oficial girou sobre os calcanhares e o encarou, os olhos faiscando.
- Você foi o responsável pela destruição de dois aviões de combate, cuja perda nos causou um mal incalculável. É responsável pela morte de um oficial e por colocar o país à beira da guerra declarada, o que teria custado milhares de vidas e talvez até nossa própria existência. Você criou uma situação embaraçosa para nossos amigos internacionais e fortaleceu nossos inimigos. Se dependesse do gabinete militar, você seria levado a julgamento e a promotoria seria instruída a pedir a pena de morte. Só a intervenção pessoal da primeira-ministra e do general Mordecai livrouo disso. Em vez de se lamentar, você deveria se dar por feliz. - Sem esperar resposta, o major abriu a porta e deixou a sala.
David relutou em sair até os jardins do hospital para andar sob o sol da primavera - um medo típico de prisioneiros que ficavam encarcerados por muito tempo e de repente se viam livres. Antes de chegar à saída, resolveu ir até a sinagoga do hospital. Ficou lá por um longo tempo, meditando, indiferente à beleza proporcionada pelos vitrais coloridos. Quando afinal se levantou do banco de madeira, sentiu-se encorajado a enfrentar o mundo outra vez. Pegou um ônibus para Jerusalém, sentando-se próximo a uma janela no fundo. Enquanto o veículo subia lentamente a colina em direção à cidade, uma mulher com duas crianças ocupou o banco à sua frente. Ela se vestia de maneira modesta, tinha o ar cansado, de velhice precoce. Segurava o filho mais novo no colo e o alimentava com uma mamadeira barata. Sua outra criança, uma garotinha de rostinho angelical, de quatro ou cinco anos, tinha os olhos escuros e os cabelos encaracolados.
Estava virada de costas no assento, o polegar enfiado na boca, e olhava firmemente para David, com o desembaraço característico de sua idade. Ele ficou emocionado. E, na ânsia do conforto do contato humano, do qual fora privado por tantos meses, curvou-se para a frente, tentando sorrir, e esticou a mão para tocar-lhe o braço. A menina afastou-se de supetão, escondendo o rosto no colo da mãe.
No ponto seguinte, David desceu do ônibus decidido a escalar a pé a encosta pedregosa da colina. O dia estava quente e abafado. Logo ele se deu conta de que o período de convalescença o deixara sem condições de fazer grandes esforços físicos. Acabou tomando um táxi até o alto da Rua Malik.
Sua primeira surpresa foi encontrar a porta da frente destrancada. Abriu-a e, desconfiado, entrou na sala de estar, que continuava exatamente como a deixara da última vez, só que limpa e perfumada. Havia um vaso de flores frescas sobre a mesa, um buquê de dálias de cores vivas, vermelhas e amarelas. Além disso, um cheiro no ar que o perturbou após tantas refeições no hospital: o de comida caseira.
- Tem alguém aqui? - ele gritou.
- Bem-vindo ao lar! - retrucou uma voz conhecida por detrás da porta do banheiro. - Eu não o esperava tão cedo; você me pegou com o vestido levantado e a calcinha abaixada.
Houve um barulho de descarga, e logo a porta se abriu, dando passagem a Ella Kadesh, que vestia uma túnica estampada e usava chapéu verde, adornado por um broche de jade e penas de avestruz.
Ela abriu os braços para recebê-lo e, embora mantivesse um sorriso nos lábios, não disfarçou por completo a surpresa, a estupefação, diante do rosto desfigurado do amigo.
- David? - Sua voz denotava insegurança. - É você, David?
- Tudo bem, Ella?
- Meu Deus, o que fizeram com você, meu jovem e belo Marte?
- Por favor, Ella, não me encha o saco. Se começar com choradeira, jogo você escada abaixo.
A pintora tentou controlar as lágrimas que lhe subiam aos olhos, mas foi em vão. Reprimindo um soluço, envolveu-o em um grande abraço.
Tem cerveja na geladeira, e preparei curry para nós. Você
vai adorar; é o que eu sei fazer melhor.
David comeu com apetite, acompanhando a refeição com a cerveja gelada. Ella tagarelava sem parar; as palavras serviam para disfarçar sua compaixão.
- Não me deixaram visitá-lo, mas eu telefonava toda semana e me mantinha informada. Acabei amiga da irmã. Foi ela que me avisou que você sairia hoje. Vim para ter certeza de que você seria bem recebido. - Ela evitava encará-lo e, quando o fazia, assumia uma expressão embaraçada, embora se esforçasse para demonstrar alegria. - E agora, o que você fará, David?
- Gostaria de voltar a voar, mas me obrigaram a pedir baixa. Desobedeci ordens superiores e cruzei a fronteira da Síria. Agora, a Força Aérea não me quer mais.
- Houve uma baita crise internacional por causa disso. Foi uma loucura o que você e Joe fizeram.
- Eu tinha perdido a cabeça. Não estava pensando direito desde que Debra...
- Sim, eu sei - Ella interrompeu-o. - Quer outra cerveja?
- Aceito. Mas como está Debra? - era a pergunta que ele queria fazer desde o primeiro momento.
- Ela está bem. Começou um novo livro, que promete ser melhor que o primeiro. Acredito que ela se firmará como escritora.
- Teve alguma melhora em relação à vista?
- Não. Mas isso não a preocupa. Parece ter-se conformado, assim como você ainda aceitará o que aconteceu.
- Enquanto estive no hospital, mesmo sabendo que era perda de tempo, eu esperava notícias dela, uma carta, uma palavra...
- Ela não soube do que ocorreu.
- O que? - David não poderia ter ficado mais surpreso. - O que você quer dizer com isso?
Depois da morte de Joe, Brig ficou possesso. E acredita que você foi o responsável.
David
assentiu com um gesto de cabeça.
- Bem, ele disse a Debra que você tinha deixado Israel e voltado para casa. Todos nós juramos manter silêncio. Portanto é essa a versão que ela conhece. - Depois de uma pequena pausa, Ella prosseguiu: - Você ainda não respondeu à minha pergunta. O que vai fazer agora?
- Sinceramente, não sei. Vou pensar a respeito.
Uma ventania irritante descia das colinas e encrespava a superfície do lago. Os barcos ao longo da margem balançavam presos às cordas; as redes de pesca, que estavam nos suportes de secagem, ondulavam como véus de noivas.
O vento esvoaçava os cabelos de Debra e fazia com que o vestido grudasse contra seu corpo, realçando a curva dos seios e o formato das pernas. Ela estava na balaustrada do velho castelo do tempo das Cruzadas, as mãos apoiadas na bengala, o rosto voltado para as águas, como se pudesse vê-las.
Ella Kadesh, sentada ao abrigo do vento em um bloco de pedra, segurava o chapéu na mão e falava encarando Debra, na tentativa de captar suas reações.
- Na hora, a idéia me pareceu boa. Concordei em esconder a verdade, porque não queria que você se torturasse.
- Nunca mais faça isso - pediu Debra, a voz denotando tristeza.
- Eu não tinha como saber o estado real dele, pois não me deixaram vê-lo'. Agi como uma covarde e me deixei levar.
Debra sacudiu a cabeça, furiosa, mas permaneceu em silêncio. Ella admirou-se da capacidade de expressão daqueles olhos que não podiam enxergar - todas as emoções da amiga eram visíveis em seu olhar.
- Preferi não perturbá-la, minha querida. Você estava se adaptando maravilhosamente bem, e trabalhava com afinco em seu livro. O que ganharíamos se lhe contássemos a verdade? Decidi cooperar com seu pai, e ver como as coisas se desenrolariam depois.
- Por que está me contando tudo isso agora? O que a fez mudar de idéia? Houve alguma coisa com David?
- Ontem ele teve alta do hospital Hadassah.
- Do hospital? Você está dizendo que ele ficou todo esse tempo internado? Não é possível!
- É a verdade.
- Então ele deve ter ficado muito ferido. - A fúria de Debra transformou-se em preocupação. - Como ele está? Já se recuperou?
Ella não teve coragem de responder de imediato. - E então? - Debra insistiu.
- O avião de David incendiou-se, e ele teve queimaduras graves na cabeça. Está totalmente curado, mas...
- Mas o quê? O que aconteceu, Ella?
- David deixou de ser o mais belo homem que já vi.
- Não estou entendendo...
- O fogo destruiu o rosto dele. Nenhuma mulher que o veja agora será capaz de se apaixonar por ele.
Debra ouviu atentamente, a expressão apreensiva.
- Ele não se engana quanto à sua aparência atual. E parece estar à procura de algum lugar onde se esconder. Falou em pilotar novamente, como se isso representasse uma compensação, uma fuga. Ele sabe que está sozinho, apartado do mundo devido à aparência... Só existe uma pessoa que jamais verá aquela máscara. - Ella aproximou-se de Debra e tomou-lhe a mão. - Alguém que só se lembra de como ele era antes... David precisa de você, Debra. Ele não conta com mais ninguém. Você mudará sua decisão?
- Traga-o aqui, Ella, o mais rápido possível - disse Debra, a voz trêmula.
David subiu a longa escadaria até o estúdio de Ella. O dia estava claro, e ele usava sandálias abertas, calça esporte e uma camisa de manga curta e gola em "V". Seus braços tinham perdido o bronzeado, e os pêlos escuros do peito contrastavam com a pele alva. Um chapéu de abas largas cobria-lhe a cabeça para proteger as cicatrizes do sol.
No topo da escada, ele parou por alguns instantes, ofegante com o esforço da subida. Atravessou o terraço deserto, rumo às portas de veneziana. Encontrou Ella Kadesh sentada sobre um tapete no centro da sala. Ela vestia um minúsculo biquíni, que quase sumia em seu corpanzil. Estava na posição de ioga Padmasana, a lótus sentada, com as pernas retorcidas e entrelaçadas como dois pitões acasalando, as mãos juntas e os olhos fechados em meditação.
David recostou-se no batente da porta e, antes de recuperar o fôlego, desatou a rir. Uma gargalhada que vinha do fundo de sua alma e que sacudiu seu corpo de alto a baixo. Mais do que alegria, aquilo era a catarse dos últimos resíduos de sofrimento; era o momento de aceitar a vida, de aceitar o desafio de viver.
Ella manteve-se impassível, agachada como um buda no carpete.
- Você é desalmado, David Morgan! É um insensível à beleza... - Ella interrompeu-se, começando a rir também. - Me ajude, seu imbecil. Estou com os membros adormecidos - ela disse por fim.
David tentou ajudá-la a desfazer o intrincado das pernas, porém a mulher perdeu o equilíbrio e caiu para a frente sobre o carpete.
- Saia daqui! - ela resmungou. - Deixe-me morrer em paz. Vá procurar sua mulher; ela está lá embaixo no ancoradouro. - Assim que David alcançou a porta, ela completou: - Começo a duvidar de que tenha feito a coisa certa.
- Agora é tarde para se preocupar com isso, sua bruxa velha - replicou David num tom de voz debochado.
Uma toalha colorida e uma saída-de-banho estavam estendidas no cais. Um rádio portátil, com o volume alto, tocava um rock pesado. Ao longe, na baía, Debra nadava com braçadas firmes e seguras. Usava uma touca de banho branca, que não a impedia de escutar a música. Após alguns instantes, ela tomou o rumo da margem, parecendo guiar-se pelo som do rádio.
Assim que saiu da água, tirou a touca e balançou os cabelos. Seu corpo ganhara um bronzeado uniforme, e os músculos das pernas aparentavam firmeza enquanto ela caminhava em direção à toalha.
David aproximou-se devagarinho, a tempo de vê-la enxugar-se.
Ainda que não a tivesse esquecido, em absoluto, surpreendeu-se com a beleza que tinha diante de si. Era como se a visse pela primeira vez. Na verdade, ele já não se lembrava de detalhes como a textura da pele, sobretudo das partes normalmente encobertas pela roupa.
De repente, ela soltou a toalha a fim de ajeitar o biquíni. Ao acomodar melhor o seio dentro da pequena peça de tecido, deixou à mostra por rápidos segundos o mamilo escuro. Foi o suficiente para que David alcançasse o limite da excitação. Involuntariamente, ele moveu-se sobre o cascalho, o ruído denunciando sua presença.
De imediato Debra voltou-se em sua direção, parando na atitude de escuta. Seus olhos, absolutamente perfeitos do ponto de vista físico, pareciam enxergar tudo ao redor.
- David? - ela murmurou. - É você, David?
Ele fez que sim com uma breve exclamação. Debra foi ao seu encontro com passadas largas, os braços estendidos e o rosto radiante de alegria. David levantou-a nos braços, apertando-a com força.
- Senti sua falta, David - ela sussurrou, emocionada. - Meu Deus, você nunca saberá o quanto senti sua falta. - E pressionou a boca contra a dele.
Era a primeira vez que alguém o tratava sem reservas, sem pena ou repulsão, desde que ele sofrera o acidente com o Mirage.
Ficaram em silêncio por longos minutos, encostadinhos um no outro. Debra sentiu-se feliz ao notar que ele estava excitado, em ereção. Após alguns instantes, ela deslizou a mão pelo rosto dele, na tentativa de descobrir novos contornos. Percebeu que ele fazia menção de se afastar, mas continuou seu exame.
Meus dedos me dizem que você ainda é bonito.
Seus dedos estão mentindo - ele murmurou, embaraçado.
Alem disso, estou recebendo uma mensagem muito forte de uma região mais ao sul - ela continuou, rindo. - Venha comigo...
Dando-lhe a mão, Debra rumou para a escada, andando ágil e confiante em si mesma. Conduziu-o até o chalé e logo fechou a porta com chave. A sala estava fresca, à meia-luz e aconchegante.
Foram para a cama sem que nenhuma palavra precisasse ser dita. Amaram-se com a ânsia dos desesperados. Cada um buscava no outro a compensação pelos longos meses de separação, pelas noites incontáveis em que haviam sofrido solitários com sua dor.
O ato do amor, não importava quantas vezes fosse repetido, parecia insuficiente para saciá-los. Até durante os intervalos, procuravam-se desesperadamente. Quando estavam dormindo, se um se afastava por força de algum movimento involuntário durante o sono, o outro aproximava-se de imediato, atraído como por um ímã. Enquanto ela preparava as refeições, David permanecia ao seu lado, tocando-a a cada instante, como se o apavorasse a perspectiva de perdê-la por um minuto sequer.
Depois de dois dias trancados em casa, saíram para caminhar à beira do lago, nadar e tomar banho de sol. Quando Ella acenoulhes do terraço, David perguntou:
- Vamos lá vê-la?
- Não - Debra disse. - Ainda não. Não estou pronta para dividi-lo com ninguém Esperemos um pouco mais.
Mais três dias se passaram antes que subissem a pequena elevação até o estúdio. Ella preparou um de seus almoços festivos, embora não houvesse outros convidados.
- Pensei até em mandar carregadores com uma maca para trazelo para cá, Davy - brincou a anfitriã, com um ar maroto.
- Não seja cruel, Ella - retrucou Debra, enrubescendo.
A pintora deu uma gargalhada tão explosiva que eles a acompanharam.
Sentados sob as palmeiras, tomaram vinho, comeram e conversaram à vontade. O jovem casal estava tão entretido um com o outro, que nenhum dos dois percebeu a euforia de Ella.
Debra mudara por completo. A reserva e a frieza pareciam definitivamente coisas do passado em seu comportamento. Descontraída, ela ria com prazer das piadas que os dois contavam.
Ella ainda evitava encarar David, consciente de que poderia, involuntariamente, demonstrar repulsa e compaixão. Como lhe era difícil aceitar a deformação física que ele sofrera!
Ao rir de algo que David dissera, Debra ofereceu-lhe os lábios num convite.
Você falou um negócio horroroso. - Ela riu. - Agora está me devendo um beijo. - E correspondeu com ansiedade quando os lábios dele tocaram os seus.
Era desconcertante ver seu lindo rosto lado a lado com outro totalmente deformado.
Fiz o que devia ser feito. Pelo menos uma vez eu acertei, pensou Ella enquanto os observava, com uma ponta de inveja. Aqueles dois tinham nascido um para o outro. O sofrimento de cada um forjara o desejo que ambos sentiam, ainda que o relacionamento deles transcendesse o simples ato físico.
Ella lembrou-se com pesar da extensa relação de amantes que tivera ao longo de sua vida. Haviam sido casos fugazes, aventuras inconseqüentes das quais nada sobrara. Sem querer, suspirou alto, provocando a curiosidade de seus convidados.
- Queira nos desculpar, Ella - disse Debra. - Somos dois egoístas.
- De maneira nenhuma, minha criança. Estou contente por vocês. Vocês possuem algo maravilhoso, forte, brilhante. Proteja isso como faria com sua vida. - Ella ergueu o copo de vinho. - Um brinde a vocês e ao amor que se tornou invencível através do sofrimento!
Houve um momento de seriedade enquanto tomavam a bebida, todos com o ar solene, depois relaxaram, continuando a conversa.
Passado o período de redescoberta física, David e Debra iniciaram uma nova fase em seu relacionamento, marcada pelo diálogo franco, que nunca existira durante o tempo em que haviam convivido na casa da Rua Malik.
David aprendeu com Debra a usar melhor o dom da visão. Agora que precisava enxergar por ambos, aprendia a descrever cores, formas e movimentos com uma exatidão que jamais lhe ocorrera ser possível.
Em troca, ele lhe ensinou a ser confiante. Debra passou a ter absoluta confiança nele. Andava ao seu lado com total segurança, sabendo que ele a alertaria ao menor sinal de perigo. Seu mundo, que antes se limitava às áreas próximas ao chalé e ao cais, onde podia encontrar os caminhos com facilidade, agora perdia as fronteiras, deixando-a livre para se locomover para onde quisesse.
No começo, porém, agiam cautelosamente - andavam ao longo das margens do lago, subiam as colinas em direção a Nazaré, nadavam com regularidade, e todas as noites faziam amor.
David recuperava sua antiga forma física e o bronzeado de antes. Um belo dia, Ella perguntou:
- Debra, quando você continuará com o livro?
- Qualquer dia desses nos próximos cem anos - ela respondeu, rindo.
Uma semana depois, Debra questinou David:
- Você já decidiu o que vai fazer?
- Apenas o que estou fazendo agora.
- Para sempre! - completou ela. - Desse jeito para sempre. Aos poucos, começaram a ir a lugares onde poderiam encontrar outras pessoas.
Pegaram uma lancha emprestada e navegaram pelo lago até Tibérias, onde iriam fazer compras para Ella. Atracaram no pequeno porto da marina na praia Lido e foram a pé até a cidade. David estava tão absorvido com Debra que a multidão em volta parecia irreal. Embora notasse os olhares curiosos, estes nada lhe diziam.
Era o início da temporada turística, e a cidade estava cheia de visitantes. Dezenas de ônibus lotavam a praça ao pé da colina e as imediações do lago, que fazia parte do circuito turístico.
Depois de realizadas todas as compras, os dois seguiram até o eucaliptal e se sentaram a uma mesa perto do porto, sob um guarda-sol colorido.
Num clima descontraído, tomaram cerveja e comeram quitutes, alheios a tudo e a todos em volta, embora o local estivesse repleto de turistas. Quando um esquadrão de Phantom desceu o vale voando baixo sobre eles, David olhou-os sem pesar.
Quando o sol abaixou, foram para onde a lancha estava atracada David ajudou Debra a subir na embarcação. No muro acima, havia um grupo de turistas, provavelmente em viagem de negócios. Conversavam animadamente. Pelos sotaques, deviam ser judeus de alguma parte da Europa Central.
David deu partida e empurrou o barco para longe do atracador. Um turista, supondo que o motor encobriss sua voz, comentou com a esposa:
- Dê uma olhada naqueles dois, Mavis. A Bela e a Fera, não é?
- Deixa disso, Bert. Talvez eles entendam.
- Que nada, eles só falam iídiche.
Debra sentiu que David ficara tenso e fazia menção de ir tomar satisfação com o homem que falara. Ela apertou-lhe o braço e murmurou:
- Vamos, David, querido. Deixe-os, por favor.
Mesmo quando chegaram à segurança do chalé, David permaneceu em silêncio, nervoso, prestes a explodir de raiva. Jantaram sem trocar uma só palavra. Debra sentia-se impotente para puxar qualquer assunto que servisse para fazê-lo esquecer do episódio. Foram para a cama ainda sob aquela atmosfera constrangedora. Entretanto, foi David quem rompeu o longo silêncio.
- Quero ficar longe das pessoas. Acho que não precisamos delas...
- Claro - ela murmurou. - Não precisamos delas.
- Existe um lugar chamado Jabulani, no meio das estepes africanas, sem nenhuma cidade por perto. Meu pai comprou esse local para fazer safáris, há trinta anos, e agora ele me pertence.
Como é lá? - Debra recostou a cabeça no peito dele.
- É uma grande planície coberta de florestas. Tem velhos e robustos baobás, além de palmeiras. Nas clareiras, a grama é dourada e macia. Nos limites da selva, há várias colinas, cujos picos parecem torres de um castelo feudal. Ali é cheio de nascentes de água fresca e límpida.
O que significa a palavra Jabulani?
- Quer dizer "o lugar do júbilo".
- Vou com você para lá.
- E seu país? Você não sentirá falta?
- Não. Levo Israel comigo, dentro do meu coração.
Ella acompanhou-os até Jerusalém, sentada no banco de trás do Mercedes. Ia ajudá-los a escolher a mobília que levariam da casa, ficando responsável por vender o que sobrasse. Aaron Cohen iria negociar o imóvel.
David deixou as mulheres na Rua Malik e seguiu para Ein Karem. Estacionou o carro ao lado do portão de ferro do jardim.
Brig recebeu-o na sala isolada do fundo. Mal respondeu ao cumprimento de David. Seu rosto tinha um aspecto duro, os olhos faiscavam de raiva.
- Você chega aqui com as mãos manchadas com o sangue do meu filho.
David sentiu um calafrio ao ouvir aquelas palavras. Sem relaxar, Brig apontou-lhe a cadeira de espaldar alto que ficava encostada na parede. David sentou-se embaraçado.
- Se seu sofrimento tivesse sido menor, eu ainda o faria pagar por isso - continuou o general. - Mas vingança e ódio são coisas infrutíferas, como você deve ter descoberto.
David permaneceu em silêncio, os olhos fixos no chão.
- Não vou persegui-los mais, apesar do que diz meu coração. Você é um jovem violento, e a violência é o prazer dos tolos e apenas o último recurso do sábio. Sua única justificativa está em defender o que é certo por direito; qualquer outra forma de violência é abuso. Você abusou do poder que lhe dei, e ao fazê-lo provocou a morte do meu filho e levou o país à beira da guerra.
Brig caminhou até a janela e ficou olhando o jardim, a mente tomada pelas lembranças do filho. Finalmente ele deu um suspiro e virou-se.
- Por que você veio me ver?
- Quero me casar com sua filha.
- Isto é um pedido ou um comunicado? - O general voltou a a escrivaninha e sentou-se. - Se você abusar de minha confiança, se a fizer sofrer de alguma maneira, vou buscá-lo onde quer que seja.
David levantou-se e pôs a boina na cabeça.
- Gostaríamos que vocês fossem ao casamento. Debra pediu especialmente para você e a mãe dela comparecerem.
- Pode dizer-lhe que estaremos lá.
A sinagoga da universidade de Jerusalém era uma estrutura branca e brilhante, com o formato de uma tenda de nômade do deserto. Do lado de fora do prédio, as árvores estavam floridas, dando um brilho especial à festa do casamento. Além dos familiares da noiva, seus colegas de universidade e alguns rapazes do esquadrão de David compareceram ao ato. Além, é claro, de Ella, do doutor Edelman, o cirurgião que tratara de Debra, de Aaron Cohen e mais uma dezena de pessoas.
Após a cerimônia religiosa, foram todos para o salão de recepção. Como se tivesse havido um pacto tácito, ninguém ria nem brincava. Alguém que observasse de fora jamais imaginaria que se tratava de um casamento.
A mãe de Debra, que ainda não se recuperara por completo das desgraças que se haviam abatido sobre a família, choramingava diante da perspectiva de partida da única filha que lhe restara.
Antes de sair da festa, o doutor Edelman chamou David a um canto e recomendou:
- Fique atento a qualquer sinal de atrofia nos olhos dela, qualquer embaçamento ou vermelhidão excessiva, desconforto, dores de cabeça...
- Prestarei atenção.
- Se observar qualquer coisa estranha, mande me avisar.
Obrigado, doutor. Boa sorte!
No dia da viagem, Debra, sua mãe e Ella Kadesh perderam o ntrole simultaneamente, no portão de embarque do aeroporto • Abraçadas umas às outras, choravam sem parar.
Brig e David permaneceram ao lado delas, embaraçados. Ao primeiro aviso de embarque, os dois se despediram com um aperto de mãos. David tomou a esposa pelo braço e a conduziu para o avião.
Subiram a escada até o Boeing, sem olhar para trás. Assim que decolaram, David experimentou, após muitos e muitos meses, a sensação reconfortante de voar. Esqueceu os problemas do último ano, sentindo-se leve e excitado com o que estava por vir. Tocando o braço de Debra, ele brincou:
- Tudo bem com você, Morgan?
Ela respondeu com um sorriso de felicidade.
Tiveram de ficar alguns dias na Cidade do Cabo antes de seguirem para o refúgio de Jabulani, pois os contadores que gerenciavam os investimentos de David exigiram dele dez dias para lhe passarem todos os informes e balanços de sua situação financeira.
Naqueles dois anos, sua receita excedera em muito as despesas, e a diferença fora reinvestida. Além disso, o terceiro fundo de investimentos em breve seria transferido para o seu nome.
Debra ficou impressionada com a fortuna de David.
- Você deve ser um milionário - ela disse, admirada, pois isso era o mais rico que podia imaginar.
- Não sou somente um rosto bonito - David replicou, pela primeira vez falando livremente sobre sua aparência.
Mitzi e o marido foram visitá-los na suíte do hotel. Mas não foi uma noite agradável. Embora a prima procurasse agir como se nada tivesse mudado e ainda o chamasse de "guerreiro", logo ficou evidente que seus sentimentos se haviam alterado. Ao contrário do que David imaginara a princípio, não era seu rosto desfigurado a razão do mal-estar que se sentia no ar. O verdadeiro motivo surgiu depois que Mitzi fez um elogio de meia hora sobre a atuação de Cecil no grupo Morgan e a confiança que Paul Morgan depositava nele.
- Você está pensando em voltar para a empresa? - perguntou Cecil. - Tenho certeza de que encontraremos um lugar para você.
- Não, obrigado - David tranqüilizou-o. - Não se preocupe omigo, Cecil. Pode abusar do tio Paul com a minha bênção.
- Puxa eu não quis dizer isso - retrucou o ex-contador, embaraçado. ...
- Ele realmente está se saindo muito bem - interveio Mitzi. - Além do mais, você nunca se interessou, certo?
Após aquela noite, o casal não voltou a contatá-los. Paul Morgan estava na Europa, o que livrou David de uma série de obrigações familiares, deixando-o livre para os preparativos da mudança para Jabulani.
Barney Venter passou uma semana com eles escolhendo o avião apropriado para a pista da estepe. No final, optaram por um bimotor Piper Navajo, de seis lugares e trem de pouso com biquilha. Barney deu a volta em torno do aparelho e comentou:
- Bem, não chega aos pés de um Mirage. - E chutou uma das rodas da máquina.
- Já tive o suficiente de Mirage, eles mordem! - replicou David. Na véspera da partida, foram até uma fazenda perto de Paarl, onde a esposa do proprietário criava cães. Quando se aproximaram do canil, um filhote de Labrador chegou perto de Debra e começou a cheirá-la. Debra abaixou-se para acariciá-lo, enquanto perguntava a David de que cor era o animal.
- É preto como um zulu - ele disse.
- Esse será o nome dele, Zulu.
- Você vai escolher esse?
Não, ele é que nos escolheu. - Debra riu.
Durante o vôo para o norte, na manhã seguinte, o filhote não se conformou em ter sido colocado no banco de trás. Com um pulo, subiu pelos ombros de Debra e se acomodou no colo dela.
- Parece que ganhei um rival - David comentou.
No platô marrom da estepe, a terra descia acentuadamente para as escarpas das florestas. David tomou como marco a vila de Bush
u Kidge e a faixa larga e serpenteante do rio Save, que corria pela selva. Alterou ligeiramente o curso para o norte e, em dez minutos, avistou as colinas que surgiam abruptamente da terra plana.
- Lá está, bem à frente - disse ele, num tom efusivo.
- Com que parece? - Debra quis saber.
As montanhas eram cobertas de árvores de grande porte e engastadas de torres de rocha cinzenta. Na base, a mata era densa e escura. Poças d'água brilhavam através da folhagem. David descreveu tudo para ela.
- Meu pai as chamava de "colar de pérolas", e é com isso que parecem. Sobem do estuário das águas da chuva que correm pelas encostas e desaparecem de repente na terra arenosa da planície. É o que dá a Jabulani sua característica especial, pois vem da montanha a água que supre a vida selvagem da planície. Pássaros e animais são atraídos de centenas de quilômetros para cá. - David desacelerou o avião. - A casa tem paredes brancas e teto de palha para manter-se fresca nos dias quentes, varandas com sombra e quartos com o pé-direito alto. Você vai adorar.
O campo de pouso aparentava segurança, embora a biruta estivesse suja e esfarrapada. David circundou-o com cuidado antes de se alinhar na cabeceira da pista. Logo, taxiaram para o pequeno hangar de tijolos entre as árvores. David pisou no freio das rodas e desligou os motores.
Chegamos! - ele disse.
Jabulani fazia fronteira com o Parque Nacional Kruger, a mais espetacular reserva natural da Terra. Tratava-se de uma propriedade improdutiva, pois era inadequada para o plantio, porém seu valor residia nas savanas inexploradas e na vida selvagem - isso justificava o seu alto preço de mercado. Os ricaços pagavam verdadeiras fortunas por uma nesga de terra ali.
Entretanto, o avô de David comprara o local por uma ninharia e o usara como estação de caça da família. Uma vez que Paul Morgan nunca mostrara interesse pela savana, esta passara para seu irmão Clive e posteriormente para David.
Agora, os sete mil e quinhentos hectares de savanas e planícies, mantidos intactos, constituíam uma possessão sem preço.
A família Morgan quase não usara a propriedade nos últimos anos. Embora Clive tivesse sido um aficionado pela caça, e David houvesse passado a maior parte de suas férias escolares lá, após a morte do pai não se sentira atraído a retornar ao lugar. Fazia sete anos que fora pela última vez, levando um grupo de oficiais do Esquadrão Cobra para uma visita.
Desde então, Jabulani ficara a cargo de Sam, um negro que fazia as vezes de supervisor, mordomo e guia de caça. Era ele quem garantia que houvesse lençóis limpos nas camas, que o chão estivesse polido, as paredes brancas, e nunca faltassem gêneros alimentícios na despensa, nem bebidas no bar.
- Onde está Sam? - foi a primeira pergunta de David aos dois serviçais que se aproximaram do avião.
- Sam foi embora.
- Para onde?
A resposta foi um grunhido sem sentido. Os dois empregados estavam com os uniformes sujos e precisando de reparos.
- Onde está o jipe?
- Acabou-se.
Chegando em casa, David teve outras surpresas desagradáveis. A construção estava malconservada, com aspecto de abandono, as paredes sujas, manchadas e com o reboco caindo aqui e ali. Poeira e fezes de pássaros recobriam o chão e os móveis. A tela destinada a manter os mosquitos afastados da varanda estava em frangalhos. A horta, completamente relegada às moscas. E mais: nenhuma peça do maquinário - bomba-d'água, vaso sanitário, gerador elétrico - funcionava direito.
- Está tudo uma droga, Debra, - David explicou enquanto tomavam uma xícara de chá nos degraus da frente. Por sorte haviam levado bastante suprimentos.
É uma pena, Davy, pois gostei daqui. É tão quieto, tão silencioso! Sinto-me completamente relaxada.
Não lamente. Essas velhas cabanas são da década de vinte - dissse David, com uma determinação que há muito ela não ouvia. - É uma ótima desculpa para demolir tudo e reconstruir.
- Um lugar para a gente?
- Sim, exatamente isso!
No dia seguinte voaram até Nelspruit, a cidade de porte mais próxima. Começaram a semana sentados com um arquiteto planejando cuidadosamente a construção, levando em conta todas as necessidades especiais - um estúdio grande e arejado para Debra, oficina e escritório para David, uma cozinha segura e funcional para uma pessoa cega, quartos sem desníveis perigosos e de formato regular, e finalmente um quarto para crianças. Quando David expôs este último item, Debra perguntou cautelosamente:
- Você está fazendo algum plano que eu deva saber?
- Você ficará sabendo.
A casa de hóspedes seria separada da construção principal. As instalações para os empregados estariam localizadas quatrocentos metros adiante, separadas da casa de visita por árvores e por uma elevação rochosa que se erguia atrás da sede.
David subornou um empreiteiro de Nelspruit a adiar todo o serviço que tivesse, carregar seus homens em quatro caminhões pesados e levá-los a Jabulani.
Começaram pela casa principal. Enquanto trabalhavam lá, David se ocupava em recapear a pista de pouso, consertar as bombas d'água e os demais equipamentos. O jipe e o gerador elétrico tiveram de ser substituídos.
Em dois meses a sede da propriedade estava habitável. Debra colocou seus gravadores sob as janelas que davam para o jardim da frente, onde a brisa da tarde refrescava o quarto. Naturalmente, Debra tratou de explorar com o tato cada recanto do novo lar, de modo a poder andar ali com a confiança de uma pessoa com visão normal, e treinou os serventes a recolocarem cada item da mobília em seu lugar exato. Zulu, o cão Labrador, andava a seu lado como uma sombra. Parecia compreender que a dona necessitava constantemente de seus cuidados. Ele aprendeu rápido que era inútil encará-la ou abanar o rabo para atrair sua atenção - devia uivar ou rosnar. Além do mais, como um animal inteligente, evitava que ela fizesse coisas erradas, como cair nos degraus da escada da frente ou tropeçar em um balde esquecido no caminho, abalroando-a com o corpo ou o focinho.
o ritmo de trabalho de Debra mantinha-a no estúdio diariamente até o meio-dia. O cão ficava o tempo inteiro enrolado a seus pés.
David instalou um tanque para os pássaros sob as árvores perto da janela do estúdio. As fitas que Debra gravava tinham como ruído de fundo o trinar de uma variedade de pássaros selvagens. Havia uma datilógrafa em Nelspruit que sabia o hebraico. David lhe levava as fitas sempre que voava à cidade para pegar suprimentos e as correspondências, trazendo de volta o material datilografado para revisão.
Essa tarefa eles faziam juntos: David lia os originais em voz alta e procedia às alterações que ela pedia. Assim, ele adquiriu o hábito de ler quase tudo, de jornais a romances, em voz alta.
- Quem precisa do método braile com você por perto? - brincava Debra, embora não descuidasse de tentar conhecer a fundo o mundo novo que a rodeava. Ela jamais vira qualquer um dos pássaros que se aproximavam para beber água sob sua janela, mas logo reconhecia seus chilrados e detectava de imediato a presença de algum estranho.
- David, tem um novo, como é ele?
Paciente, David descrevia-lhe não só a plumagem, mas o modo de agir e os hábitos da ave. Em outras ocasiões, tinha de falar exatamente como eram as novas construções, quais as extravagâncias que Zulu fazia e fornecer detalhes dos serviçais, da vista da janela do estúdio e centenas de aspectos do novo lugar.
Junto com o término da construção e a saída dos estranhos da propriedade, chegaram os engradados contendo a mobília e os pertences da casa da Rua Malik. Então Jabulani transformou-se de imediato em um lar. A mesa de oliveira foi colocada sob a janela do estúdio.
Eu não estava conseguindo trabalhar direito, faltava alguma coisa - comentou Debra, deslizando o dedo pelo tampo de ébano e marfim.
Seus livros foram para as prateleiras da parede que ladeava a mesa, e as poltronas de couro ficaram no salão, sobre tapetes de pele e carpetes de lã. O quadro de Ellla Kadesh ganhou espaço sobre a lareira. Debra determinou sua posição exata através do tato.
- Tem certeza de que não deveria ser um milímetro mais alto? - perguntou David, sério.
- Fique quieto, Morgan, preciso saber exatamente onde ele está. A cama de latão foi armada no quarto e coberta com a colcha cor de marfim. Debra sentou-se nela e observou:
- Agora só está faltando uma coisa...
- O que é? - David perguntou, ansioso. - É algo importante?
- Claro. Venha cá. Vou lhe mostrar como é importante - declarou ela, deitando-se sobre o colchão.
Durante os meses de arrumação eles quase não haviam se afastado das vizinhanças. Agora, porém, o corre-corre estava terminado.
- Temos sete mil e quinhentos hectares e uma enorme variedade de animais nas selvas. Vamos conhecê-los - David sugeriu.
Prepararam um lanche e entraram no jipe novo, com Zulu no banco de trás. A estrada conduzia ao Colar de Pérolas, que era o centro da vida na propriedade. Deixaram o veículo no meio das árvores e seguiram até as ruínas da casa de veraneio, nas margens do lago principal. Zulu não perdeu tempo: correu para dentro da água e pôs-se a nadar de um lado para outro.
David revolveu a terra molhada da margem até encontrar uma minhoca. Jogou-a na água e, quase no mesmo instante, uma forma escura surgiu silenciosamente das profundezas e riscou a superfície.
- Puxa! - David sorriu. - Ainda tem bastante peixe por aqui. Precisamos trazer as varas de pesca. Eu costumava passar dias pescando quando era garoto. - Ele continuou falando de sua infância enquanto andavam pela floresta, mas de repente calou-se, deixando Debra intrigada.
- Alguma coisa errada, David? - ela perguntou, preocupada.
- Não estou vendo os animais. Pássaros sim, mas não vimos um só animal desde que deixamos a casa. - Ele parou em um lugar onde não havia juncos e a margem mergulhava suavemente. - Aqui era o bebedouro mais concorrido. Vivia ocupado dia e noite. E o mais estranho é que não há nenhum rastro, a não ser de um pequeno grupo de babuínos.
Você está triste? - Debra indagou.
- Sim, Jabulani não é nada sem os seus animais. Vamos ver o resto do lugar, tem algo estranho por aqui.
Durante o resto do passeio, David pesquisou as moitas e as clareiras, os cursos de água e os leitos secos dos rios, sem nem de longe encontrar pegadas de animais selvagens.
- Não estou entendendo - ele resmungava, ansioso. - Havia milhares de animais por aqui. Você encontrava cervos, gnus e uma série de outros bichos a cada cinqüenta metros... - Virou o jipe para o norte, seguindo uma trilha abandonada pelo meio das árvores. - Aqui há pasto intocado. Está vigoroso como um jardim.
Antes do meio-dia, atingiram a estrada pública, poeirenta e ondulada, que corria pela fronteira norte de Jabulani. A cerca que a acompanhava estava arruinada, o arame partido e vários mourões quebrados na altura do chão.
- Diabos, está uma bagunça - David vociferou, enquanto adentrava na estrada por uma falha na cerca. Três quilômetros adiante, atingiu a saída para a casa. Até a placa indicativa nos pilares de pedra do portão, que Clive Morgan mandara fazer em bronze e da qual se orgulhava tanto, estava estragada e dependurada de qualquer jeito.
- Bem, há muito trabalho para ser feito - observou David, animado.
quinhentos metros depois do portão, a estrada fazia uma curva brusca, ladeada por capim alto. Parado bem no meio do caminho havia um touro Kudu cinzento, com listras brancas espalhadas pelo corpo. Tinha a cabeça ereta, armada com os longos chifres pretos, e suas orelhas estavam em posição de escuta. Então, embora o veículo ainda estivesse a duzentos metros de distância, o animal disparou em direção à savana aberta, desaparecendo tão rapidamente que parecia ter sido uma miragem. David descreveu o episódio para Debra.
- Ele arrancou assim que nos viu. Antigamente, eram tão domesticados que os tirávamos da horta cutucando-os com varas.
David saiu da trilha principal e entrou em outra passagem coberta de mato espesso e alto.
- O que você está fazendo? - perguntou Debra ao ouvir o barulho de galhos sendo quebrados.
- Aqui, quando a gente sai da estrada, deve fazer seu próprio caminho.
Sete quilômetros depois, emergiam na trilha corta-fogo que assinalava a fronteira leste de Jabulani, a linha divisória entre a propriedade e o Parque Nacional, que era maior que o Estado de Israel; dois milhões de hectares de mata virgem, trezentos e oitenta e cinco quilômetros de comprimento por oitenta de largura, lar de mais de um milhão de animais, a mais importante reserva de vida selvagem existente na África.
David parou o jipe, desligou o motor e desceu. Após um instante de silêncio, começou a praguejar.
- O que o deixou tão contente? - Debra ironizou.
- Olhe para isso, apenas olhe para isso!
- Eu gostaria de poder...
- Desculpe, Debra, é uma cerca. Uma cerca para animais. A cerca tinha dois metros e meio de altura, era feita de troncos grossos e tela de arame com quase meio centímetro de espessura.
- Ficamos do lado de fora da reserva! Com razão que não ha animais aqui!
Enquanto voltavam para casa, David explicou a Debra que a não existência de cerca na fronteira com o Parque Nacional Kruger sempre fora uma vantagem para todos, pois o junco doce de Jabulani e a água perene de seus riachos ajudavam a manter as manadas durante as épocas de seca e escassez.
- Esse negócio de animais selvagens está ficando muito importante para você - observou Debra enquanto afastava a cabeça do Labrador...
- Sim acho que sim. Quando eles viviam aqui, sempre os considerei como um presente; agora que se foram, bem, agora são muito importantes. - Ele riu brusca e amargamente. - Imagino quantas vezes se diz isso na África: agora que se foram, são muito importantes. - Após uma longa pausa, acrescentou: Vou obrigálos a tirar aquela cerca. Não podem nos deixar de fora assim. Vou falar com o administrador agora mesmo.
David lembrava-se de Conrad Berg que, muitos anos antes, fora o responsável pela parte sul do parque. Entre as muitas lendas que se contavam sobre ele, duas delas ilustravam bem o tipo de homem que ele era. Certa vez, sozinho no mato após o escurecer, pois sua caminhonete quebrara em uma área remota da reserva, ele voltava para casa quando foi atacado por um leão. O animal chegou a arrancar-lhe parte dos músculos das costas, deixando os ossos do ombro expostos, mas, mesmo assim, Berg conseguira liquidá-lo com um punhal, enfiando-o repetidamente na garganta do animal até atingir-lhe a jugular. Depois, ele caminhara oito quilômetros através da noite, com um bando de hienas seguindo-o a distância, na expectativa de que caísse.
Em outra ocasião, um dos proprietários de terras limítrofes ao parque caçara um leão dentro das fronteiras da reserva. Esse homem era funcionário graduado do governo e gozava de grande influência entre os políticos. E ele rira de Conrad Berg:
- O que você fará, meu amigo? Não gosta de seu emprego?
Ignorando as pressões que vinham de cima, Berg coletara as provas e dera início a um processo. As pressões se tornaram mais explícitas a medida que se aproximava a data do julgamento, mas ele não fraquejou. No final, o infrator foi julgado e condenado pagar mil libras de multa ou seis meses de trabalhos forçados. Mais tarde, o figurão apareceu e disse a Berg: "Obrigado pela lição de coragem". Talvez tivesse sido esse mesmo político quem o indicara para o cargo de administrador da reserva.
Conforme combinara por telefone, Conrad Berg esperava David ao lado da cerca. Era um tipo alto, forte, braços musculosos e o rosto queimado pelo sol. Ele usava a bermuda e o chapéu de abas largas dos funcionários do parque, com a insígnia de tecido verde nas dragonas.
Atrás dele estava a caminhonete marrom com o emblema do parque na porta; dois guardas negros sentavam-se na carroceria, um dos quais portava um rifle.
Berg, com os punhos fechados apoiados nos quadris, exibia uma expressão dura no rosto e personificava o truculento macho que guardava seu território.
- Teremos problemas - cochichou David para Debra, enquanto se aproximava da cerca. - Senhor Berg, eu sou David Morgan. Lembro-me do senhor quando meu pai vinha para Jabulani. Quero lhe apresentar minha esposa.
O administrador ficou atônito. Naturalmente, ele já ouvira rumores sobre o novo proprietário de Jabulani; no entanto, não estava preparado para receber esse jovem tão mutilado e sua bela esposa cega.
Com uma mesura encabulada, tirou o chapéu e só então se lembrou de que ela não via o gesto. Murmurou um cumprimento, e depois apertou a mão de David com cautela.
Debra e David, trabalhando em equipe, lançaram mão de todo o seu charme para conversar com Berg, que era um homem simples e direto. Aos poucos, viram-no relaxar. Ele admirou Zulu, pois também criava labradores, e comentou sobre isso enquanto Debra pegava a garrafa térmica e servia café a todos.
- Aquele não é Sam? - David apontou para o guarda no caminhão.
- Sim. - Berg ficou alerta.
- Ele trabalhava em Jabulani.
- Ele veio para cá por vontade própria - explicou o administrador, afastando qualquer censura implícita.
- Ele não vai se lembrar de mim, é claro, mas era um bom guia. Além disso, a propriedade entrou em decadência quando ele foi embora... - David decidiu partir para o ataque. - Outra coisa que nos arruinou foi esta cerca. Por que fez isso?
- Havia boas razões.
Meu pai tinha um acordo de cavalheiros com a direção do parque; a fronteira ficava aberta o tempo todo. Vocês usavam a água e o junco que temos lá
- Com todo o respeito ao falecido senhor Morgan, sempre fui contrário a esse acordo.
- Por quê?
- Seu pai era um esportista - disse Berg num tom de asco. - Primeiro, os leões tiveram de conhecê-lo e aprender a ficar deste lado da linha. Depois ele usava um par de asnos como isca e os atraía para Jabulani.
David fez menção de protestar, porém se lembrou dos asnos e das peles frescas de leão sendo esticadas para secar atrás da casa.
- Ele nunca invadiu a reserva - falou, na defensiva. - Ele só caçava dentro do limite das nossas terras.
- Realmente, ele nunca invadiu o parque. Ele era muito inteligente para isso. Sabia que não ficaria impune se avançasse na reserva.
- A cerca foi por causa dele?
- Não.
- Por quê, então?
- Porque faz catorze anos que Jabulani está sob os cuidados de um proprietário ausente, que não se importa nem um pouco com o que acontece por aqui. O velho Sam - ele apontou para o guarda no caminhão - fez o que pôde, mas Jabulani tornou-se o paraíso dos caçadores. O junco e a água atraíam os animais para fora do parque, e eles eram acertados por caçadores rápidos no gatilho. Sam tentou impedir a matança, e levou uma surra; em seguida, alguém colocou fogo em sua cabana durante a noite. Dois de seus filhos morreram queimados.
Eu não sabia disso - observou David, chocado.
Claro, você devia estar ocupado fazendo dinheiro ou se divertindo. Por fim, Sam veio até aqui e eu lhe dei esse emprego.
Então levantei a cerca. Não sobrou nenhum animal em Jabulani...
- E, o pessoal não demorou para limpar tudo.
- Quero os animais de volta.
- Ah, é? Pretende ser um esportista como seu papai? Pensa em voar de Joanesburgo e passar o fim de semana fodendo meus leões? - Percebendo a presença de Debra, o administrador corou. Desculpe-me, senhora Morgan, perdi o controle...
- Não se preocupe, senhor Berg. Eu entendo.
- Obrigado, senhora. - Então Berg virou-se furioso para David. - Safári particular dos Morgan, é atrás disso que você está?
- Eu não permitiria que um só tiro fosse dado em Jabulani!
- Conheço bem essa história. Mas na hora de ganhar troféus, ninguém se lembra das promessas.
- De maneira nenhuma. Nem mesmo por troféus.
- Você compraria carne no açougue?
- Escute bem, senhor Berg. Se você tirar a cerca, eu declararei Jabulani uma reserva natural particular.
O homem olhou-o, desconfiado.
- Você sabe o que isso quer dizer? Significa colocar-se sob nossa jurisdição. E com um acordo legal firmado perante um advogado, sem licença de proprietário e sem caça aos leões porque estão nos pastos.
- Sim, eu sei. Eu estudei a situação. Além do mais, pretendo cercar os outros três lados e manter a força de guarda que você considera adequada, tudo à minha custa.
Conrad Berg levantou o chapéu e coçou a cabeça, na tentativa de disfarçar a surpresa.
- Bem, como posso dizer não a essa proposta? - Ele riu pela primeira vez. - Parece que você está levando isso a sério.
- Eu e minha esposa moraremos aqui. Não queremos viver em um deserto.
O administrador assentiu com um gesto. E começou a simpatizar com aquele jovem cujo rosto lhe causara repulsão.
- A primeira coisa que temos de fazer é em relação aos caçadores clandestinos. Vamos agarrar um par deles e fazê-los de exemplo - sugeriu David.
O rosto vermelho de Berg abriu-se num sorriso largo.
- Acho que vou gostar de tê-lo como vizinho - disse, estendendo-lhe a mão.
- Por que você e sua esposa não jantam conosco amanhã -, Debra convidou, aliviada.
- Será um grande prazer, senhora.
- Vou arranjar o uísque - David prometeu.
- É muita gentileza de sua parte, mas eu e minha esposa só bebemos gim - disse Berg.
- Vou providenciar - David disse com o ar sério.
Jane Berg era uma mulher magra, da mesma idade que o marido. Tinha o rosto severo, enrugado e queimado pelo sol. E, como Debra observou, devia ser a única pessoa no mundo que amedrontava Conrad. "Eu estou falando, Connie" - bastava ela dizer isso para interromper qualquer fluxo de eloqüência dele. Um olhar em direção ao seu copo vazio fazia-o levantar-se para servi-la. Conrad quase não conseguia terminar uma história, pois Jane ficava corrigindo os detalhes durante a narração, às vezes roubando-lhe o fio da meada.
O prato principal do jantar foi à base de carne de boi, retirada do congelador. Conrad comeu quatro filés, mas não provou do vinho que David servia.
- Essa droga é veneno. Matou um tio meu. - E ficava tomando gim Old Buck, até mesmo para acompanhar a sobremesa.
Após a refeição, sentaram-se diante da lareira. Auxiliado pela esposa, Conrad tentou explicar os problemas que David encontraria em Jabulani.
- Alguns negros das regiões tribais virão pelo norte.
Ou atravessarão o rio - acrescentou Jane.
Ou atravessarão o rio, embora não sejam o maior problema. Eles usam armadilhas de arame, não matam em grande quantidade.
Mas é um negócio extremamente cruel. O pobre animal fica vários dias preso, com o arame cortando-o até os ossos -, Jane conpletou.
- Como eu estava dizendo, depois que tivermos alguns guardas na área, eles pararão. Os caçadores clandestinos, brancos, trazem rifles modernos e faróis de caça...
- Faróis assassinos - corrigiu sua esposa.
- Pois bem, eles são o principal problema. Acabaram com a caça em Jabulani em apenas duas estações.
- De onde eles vêm? - David perguntou, experimentando a mesma raiva protetora do pastor que sentia quando voava os céus de Israel.
- Há uma mina de cobre a oitenta quilômetros daqui, em Phalabora, onde centenas de mineiros irritados têm uma predileção especial por carne de veado. Antes eles vinham aqui e atiravam em tudo o que estivesse vivo. Agora não compensa mais a viagem. De qualquer modo, eram apenas amadores, caçadores de final de semana.
- Quem são os profissionais?
- Você sabe onde a estrada de Jabulani encontra a auto-estrada Nacional?
- O local se chama colina do Bandolier - interrompeu-o Jane.
- Lá existe um armazém geral. É um dos postos de comércio que aproveita o tráfego da estrada principal, mas depende dos nativos das regiões tribais. O proprietário está lá há oito anos, e eu estou atrás dele durante todo esse tempo. Acontece que ele é um sujeito esperto, e nunca consegui agarrá-lo.
- Ele é o problema? - David quis saber.
- Exatamente. Se conseguir pegá-lo, metade de seus problemas desaparecerão.
- Como ele se chama?
- Akkers. Johan Akkers - intrometeu-se Jane. O gim parecia estar surtindo efeito na medida em que ela estava tendo dificuldade para articular as palavras.
- Como o pegaremos? Não sobrou nada em Jabulani para tentalo. Os poucos gnus que temos são tão ariscos que não valem o esforço.
- Realmente não há nada para tentá-lo agora, mas lá pelo meio de setembro.....
- Mais precisamente, na primeira semana de setembro - disse Tane, ajeitando os cabelos que caíam na testa.
'isso mesmo - confirmou o marido. - Na primeira semana de setembro, as árvores de marula, perto de seus riachos, frutificarão e os elefantes correrão para lá. Se há uma coisa que eles não resistem é ao fruto da marula. Eles arrebentarão a cerca para pegá-los. Antes que eu possa consertá-la, diversas outras caças seguirão para suas terras. Você pode apostar que o nosso amigo Akkers estará preparando suas armas nesse momento. Em uma hora ele saberá que a cerca partiu.
- Desta vez ele pode ter uma surpresa.
- Esperemos que sim.
- Estou pensando em ir amanhã até a colina do Bandolier para conhecer esse cavalheiro.
- Uma coisa é certa - emendou Jane Berg -, ele não é um cavalheiro.
A estrada estava em péssimo estado. Uma camada de poeira branca formava uma nuvem atrás do jipe e permanecia no ar bastante tempo após sua passagem. A colina era arredondada e cercada de árvores, localizando-se sobre a rodovia principal.
O armazém ficava cerca de quatrocentos metros da intersecção das estradas, recuado dentro de um pomar de mangueiras. Era uma construção típica do sul da África, um edifício feio, de tijolos de barro e telhado de zinco, com as paredes cobertas de folhetos de propaganda.
David estacionou na área poeirenta em frente à entrada, onde havia uma placa quase apagada: "Armazém Geral Colina do Bandolier".
Ao lado do entreposto estava parado um velho caminhão Ford, verde, de uma tonelada, com chapa local. Havia também vários clientes nas imediações, mulheres africanas das tribos da região, com longos vestidos estampados de algodão. Uma delas amamentava seu filho; seu peito grande e caído permitia à criança olhar para os recém-chegados sem retirar o bico de sua boca.
Fincado no centro do pátio, via-se um mastro liso, com cinco metros de altura, no topo do qual havia uma estrutura de madeira parecida com uma casinha de cachorro. David ficou atônito ao ver sair de dentro dela um animal marrom, peludo, que desceu o mastro com um único movimento. Estava atado pela cintura a uma corrente que se prendia à estaca.
- É um dos maiores babuínos que já vi.
E o descreveu para Debra, enquanto o animal se deslocava até o limite da corrente e esmurrava o chão à medida que circundava o mastro. Após completar uma volta, ele sentou-se de frente para o jipe, com uma atitude humanóide, mostrando a mandíbula inferior e encarando-os com seus pequenos olhos marrons.
- Uma besta repulsiva - David comentou com Debra.
O animal devia pesar cerca de quarenta e cinco quilos, tinha o focinho semelhante ao de um cachorro e a mandíbula cheia de presas amareladas. Depois da hiena, era o animal mais odiado na savana, por sua astúcia, crueldade e avareza - todos os vícios de um homem e nenhuma de suas virtudes. Possuía um olhar firme, e de quando em quando fazia um gesto agressivo com a cabeça.
Enquanto David observava o babuíno, um homem saiu da loja e apoiou-se em um dos pilares da varanda.
- O que posso fazer por você, senhor Morgan? - Era um sujeito alto, magro, vestido com calça caqui presa por suspensórios, a camisa desabotoada no peito, botas pesadas nos pés.
- Como soube meu nome? - David perguntou, surpreso.
O homem era de meia-idade, cabelos grisalhos, dentes estragados. Tinha a pele macilenta, e os olhos fundos lhe davam a aparência de uma caveira. Ele riu antes de responder.
- Só podia ser você. O rosto cheio de cicatrizes e a esposa cega, só podia ser o novo proprietário de Jabulani. Ouvi dizer que construiu uma casa nova e fez benfeitorias para morar lá.
O desconhecido tinha mãos enormes, desproporcionais ao resto do corpo. Apesar de magro, possuía músculos rígidos. Ele afastou-se do pilar e tirou do bolso um canivete e um naco de carne-seca - uma espécie de charque, conhecida como biltong na África. Cortou um pedaço como se fosse fumo de corda e colocou na boca.
- Então, o que posso fazer por você? - perguntou enquanto mascava a carne.
- Preciso de pregos e tinta - disse David, descendo do jipe.
- Ouvi dizer que você fez todas as suas compras em Nelspruit. Akkers olhava-o com insolência e estudava cada detalhe do rosto cheio de cicatrizes.
- Pensei que houvesse uma lei proibindo prender ou acorrentar animais selvagens. - David fez um gesto em direção ao babuíno.
- Você é advogado?
- Estou só perguntando.
- Tenho uma licença, quer ver?
David sacudiu a cabeça e virou-se para falar em hebraico com Debra. Descreveu o homem em rápidas palavras, acrescentando:
- Ele deve imaginar o motivo de nossa visita e está procurando encrenca.
- Ficarei no carro - disse ela.
- Ótimo. - David alcançou os degraus da varanda.
- Vá em frente - disse Akkers. - Tenho um ajudante negro no balcão. Ele atenderá você.
O armazém cheirava a sabão carbólico, querosene e milho. As prateleiras estavam abarrotadas de gêneros alimentícios baratos, remédios, cobertores e peças de tecido de algodão. Do teto pendiam botas e sobretudos militares, machados e lanternas sinalizadoras. O chão estava cheio de baús de estanho, potes de farinha, derivados de milho e centenas de outros itens característicos dos entrepostos rurais. David dirigia-se ao empregado, enquanto, do lado de fora, Debra saía do veículo e se recostava na porta para proveitar o sol. Zulu saiu atrás dela e pôs-se a cheirar os pilares concreto da varanda onde outros cães haviam deixado o reboco marcado de urina.
Bonito cachorro - comentou Akkers.
Obrigada - Debra assentiu polidamente.
O armazeneiro deu uma rápida olhada para o babuíno, que logo assumiu uma expressão de astúcia. O animal balançou a cabeça e então subiu o mastro até sua casinha.
Akkers sorriu e cortou outro pedaço de charque.
- Você gosta de Jabulani? - perguntou, ao mesmo tempo em que oferecia o naco de carne-seca ao cão.
- Somos muito felizes lá - Debra respondeu evasivamente, sem querer se envolver.
Zulu cheirou a carne, abanando a cauda, depois engoliu-a de uma vez. O homem deu-lhe mais dois pedaços. O pequeno cão tinha os olhos brilhantes e o focinho cheio de saliva.
As mulheres que se encontravam na varanda olhavam a cena com bastante interesse. Já haviam visto aquilo acontecer antes, e sabiam muito bem como iria terminar.
Akkers cortou uma fatia maior do charque e estendeu-a a Zulu. Quando o animal foi pegar, ele puxou a mão, deixando-o excitado. O cão avançou outra vez para agarrar a carne, e novamente Akkers escondeu-a no momento exato. O pequeno Labrador fungava e estava com as orelhas empinadas.
Então o armazeneiro desceu os degraus e mais uma vez mostrou o charque para o cão. Assim que o filhote fez menção de pular para abocanhá-la, ele disse, a voz suave:
- Pegue-a! - E atirou a carne à base do mastro do babuíno. Zulu adiantou-se e, ainda um pouco desengonçado em suas patas de filhote, procurou o charque no chão poeirento.
Foi então que o babuíno saiu de sua casinha e desceu os cinco metros com os membros estendidos, as mandíbulas abertas como uma armadilha. Caiu com todo o seu peso quase em cima do pequeno Labrador. Zulu rolou sobre suas costas, ganindo assustado, e antes que pudesse levantar-se, o outro animal pegou-o.
Ao ouvir o latido do cachorrinho, Debra começou a andar para a frente, surpresa, mas ainda não alarmada.
Enquanto isso, o babuíno atacava o filhote indefeso. Após prendelo com as patas, curvou-se e enterrou as presas na barriga do pequeno animal.
Os ganidos se fizeram mais agudos e estridentes, obrigando Deb a acelerar o passo. No entanto, Akkers estendeu a perna na sua frente, derrubando-a.
- Deixe-o, madame - avisou, sorrindo. - Você se machucará se interferir.
O babuíno preparava-se para destripar o cão. Já lhe abrira o abdômen, e o sangue jorrava sem parar. Mesmo sem entender o que estava ocorrendo, Debra levantou-se com um movimento rápido e gritou por socorro ao marido.
David saiu correndo do armazém, e com uma vista-d'olhos entendeu toda a situação. Pegou uma picareta da pilha próxima à porta, desceu de um salto os degraus da varanda e em três passadas chegava ao palco do espetáculo.
Entretanto, ao vê-lo chegar em atitude hostil, o babuíno sumiu "como um raio para cima do mastro. Acocorado no teto da casinha de madeira, as mandíbulas vermelhas de sangue, começou a gritar e a rosnar, excitado e triunfante.
David soltou a picareta e pegou o pequeno Labrador que se arrastava. Levou-o para o jipe. Então cortou sua jaqueta em tiras e tentou estancar-lhe o sangue da barriga.
- David, o que aconteceu? - Debra perguntou.
Ele lhe explicou em poucas palavras, em hebraico. Fez com que ela voltasse ao banco de passageiro e pôs o cão ferido em seu colo.
Naquele instante, Akkers postou-se à entrada do armazém, os braços cruzados, rindo às gargalhadas. Do alto de sua casinha, o babuíno ainda gritava, compartilhando a alegria de seu mestre.
Ei, senhor Morgan - Akkers chamou -, não se esqueça dos pregos!
David encarou-o por alguns instantes, os olhos faiscando de raiva, em seguida avançou em direção aos degraus, com passos firmes e decididos.
O armazeneiro recuou rapidamente, enfiou a mão atrás do balcão de onde tirou uma velha espingarda de dois canos. Em legítima defesa, senhor Morgan, com testemunhas. - Ele riu, irônico. - Se der mais um passo, também poderemos dar uma espiada em suas tripas.
David parou no topo da escada. A arma apontava para sua barriga.
- Venha, David, por favor, venha - pediu Debra aos prantos, em voz alta.
- Voltaremos a nos encontrar - declarou David, os olhos fixos no rosto do homem.
- Vai ser divertido! - replicou Akkers, tranqüilo.
Ele esperou que o jipe pegasse a estrada, antes de deixar a arma de lado. Então saiu da loja, enquanto o babuíno descia do mastro para encontrá-lo. O animal pulou em seu colo e o abraçou como se fosse uma criança.
Akkers tirou um doce do bolso e o pôs entre as presas do bicho.
- Minha coisinha adorável - disse, afagando a cabeça peluda do babuíno, que gemia suavemente.
Apesar das condições precárias da estrada, David cobriu os quarenta quilômetros até Jabulani em vinte e cinco minutos. Parou ao lado do hangar e correu com o cachorrinho rumo ao avião.
Durante o vôo, Debra embalava Zulu no colo. Suas roupas ficaram encharcadas de sangue. O animal estava quieto, mas de vez em quando soltava um ganido. Usando o rádio, David contratou um carro para encontrá-los no aeroporto de Nelspruit. Assim, quarenta e cinco minutos após a decolagem, Zulu estava na sala de cirurgia na clínica veterinária.
Durou cerca de duas horas a delicada operação. O animal estava tão seriamente ferido, e o perigo de infecção era tão grande, que eles só retornaram a Jabulani cinco dias depois. Durante o vôo de volta, David fez questão de sobrevoar o entreposto da colina do Bandolier. Diante do teto de zinco brilhante como um espelho, sentiu o sangue fervilhar de ódio.
- Esse sujeito é uma ameaça para todos nós - disse em voz alta. - Ele põe em perigo tudo o que estamos tentando construir.
Debra assentiu enquanto afagava a cabeça do cachorrinho. Estava tão irada quanto o marido.
- Vou pegar esse desgraçado - disse David, lembrando-se das palavras de Brig: "A única desculpa para a violência é defender o que lhe pertence".
Conrad Berg reapareceu na propriedade para tomar gim e comunicar que o pedido para transformar Jabulani em reserva natural particular fora aprovado pelo conselho e que a documentação necessária logo estaria pronta para ser assinada.
- Quer que eu retire a cerca agora?
- Não. - David respondeu, sombrio. - Deixe-a lá. Não quero assustar Akkers.
- Claro, temos de pegá-lo. - Ele examinou a cicatriz na barriga de Zulu e disse entre dentes: - Aquele bastardo! Desculpe-me a franqueza, senhora Morgan.
- Estou inteiramente de acordo com o senhor - ela disse suavemente.
Por ser ainda um filhote, o animal teve uma recuperação bastante rápida.
Em pouco tempo as árvores de marula floresceram. Os troncos eretos e firmes ficaram enfeitados com flores vermelhas, oferecendo um belo espetáculo para a vista.
Quase todos os dias, David e Debra percorriam os arvoredos, usando as trilhas precárias que davam nos riachos. Zulu acompanhava-os naqueles passeios e sempre acabava mergulhando nas águas.
Quando as frutas verdes em formato de ameixa cobriram as marulas, seu cheiro característico tomou conta do ar.
A manada que vinha de Sabi para fazer a colheita das marulas era liderada por dois velhos machos, que ao longo de décadas haviam feito a peregrinação anual até o Colar de Pérolas. Cerca de quinze fêmeas reprodutoras e outros tantos animais jovens engrossavam o grupo.
Eles Vinham lentamente do sul, pastando, vagando como fantasmas através das savanas abertas. De vez em quando uma árvore alta chamava a atenção de um dos machos. O animal encostava a testa contra o tronco e o balançava até quebrá-lo ou derrubá-lo ao chão. Por vezes, satisfazia-se com umas poucas folhas, mas em todas as ocasiões devorava-a por inteiro.
Ao atingirem a cerca do parque, os dois machos pararam ombro a ombro como se confabulassem. Ficaram abanando as orelhas, e a intervalos regulares pegavam punhados de areia com a tromba e os jogavam sobre as próprias costas, para espantar as moscas que por ali pousavam.
Enquanto estavam contemplando a cerca, era como se soubessem que sua destruição seria um ato criminoso, prejudicial à reputação e à boa conduta deles.
Conrad Berg falara sério quando discutira com David o senso de certo e errado de "seus" elefantes. O administrador referia-se a eles como escolares que tinham de aprender a se comportar e que deveriam ser castigados quando transgrediam. O castigo vinha em forma de dardos com drogas ou execução formal com rifle de grosso calibre. Esta última punição era reservada aos incorrigíveis que invadiam os campos cultivados, perseguiam automóveis ou de alguma forma ameaçavam a vida humana.
Os dois machos se afastaram da cerca e voltaram para o lado das fêmeas que os esperavam junto às árvores. Durante três dias a manada se aproximou e se afastou da cerca - até que de repente o vento soprou do oeste e levou-lhes o cheiro doce e forte das marulas.
David levantou-se no jipe e riu, divertido.
- Foi demais para a cerca de Connie.
Sabe-se lá por que razões, ou talvez fosse apenas a travessura da destruição, nenhum elefante adulto passou pelo buraco feito por outro. Cada um selecionava o próprio mourão da cerca, feito de madeira de lei, cravado em concreto, e com pouco esforço o arrancava do solo. Mil e quinhentos metros de cerca foram deitados ao chão.
De maneira astuciosa, evitavam o arame farpado e se dirigiam em fila para a beira dos riachos. Passavam a noite regalando-se com as frutinhas amarelas, e ao alvorecer retornavam à segurança do parque.
No entanto, a cerca derrubada permitia o acesso a muitos outros animais que andavam em busca de pastos intocados e das nas centes de água. Gnus, de aspecto atemorizador e chifres curvos; macacos das mais variadas espécies saltitavam alegremente e perseguiam uns aos outros em círculos. As zebras eram mais bem-comportadas e trotavam com elegância em direção aos riachos, as cabeças eretas e as orelhas empinadas.
Conrad Berg encontrou David ao lado dos destroços da cerca. Ele saiu do caminhão acompanhado pelo guarda Sam. O administrador abanou a cabeça enquanto observava os mourões sobre a terra.
- Foi o velho Maomé e seu companheiro Caolho. Eu seria capaz de reconhecer esses rastros em qualquer lugar. Meu Deus, que bando de bastardos! - E olhou rápido para Debra no jipe.
- Está tudo bem, senhor Berg - ela disse, antecipando-se às suas desculpas.
O guarda africano, visivelmente encabulado, fez duas tentativas frustradas e afinal criou coragem para se aproximar deles.
- Olá, Sam - David cumprimentou-o. Tinha sido necessária muita persuasão para que Sam aceitasse que aquele rosto desfigurado pertencia ao pequeno nkosi David, que ele ensinara a rastrear, atirar e pegar mel de colméias selvagens sem destruir as abelhas.
Sam saudou-o com uma continência. Ele levava muito a sério o uniforme e se conduzia como um policial. Era difícil calcular sua idade, pois ele possuía o rosto redondo dos Nguni - uma tribo guerreira aristocrática da África -, mas já se viam fios brancos aparecendo por baixo do quepe. David sabia que ele trabalhara em Jabulani por quarenta anos antes de partir. Portanto, deveria estar beirando os sessenta.
Sam informou a Conrad os tipos e a quantidade de animais que haviam atravessado para Jabulani.
- Veio também uma manada de búfalos, quarenta e três animais - Sam falou em zulu. - Foram eles que beberam água na reserva Ripape perto de Hlangulene.
- Akkers virá correndo. A carne dos búfalos novos dá um excelente charque - resmungou Conrad.
- Quanto tempo levará para ele saber que a cerca cedeu? - David perguntou. O administrador entrou em discussão com Sam, onde David se perdeu após as primeiras sentenças. No entanto, Conrad traduziu ao final:
- Sam disse que ele já sabe, pois os seus empregados e esposas compram lá no armazém e ele paga por esse tipo de informação. Existe uma rixa entre Sam e Akkers. Sam suspeita que foi Akkers quem mandou surrá-lo. Ele ficou três meses no hospital. E acha que Akkers ateou fogo em sua cabana para obrigá-lo a sair de Jabulani.
- É, faz sentido - David comentou.
- O velho Sam morre de vontade de nos ajudar a pegar Akkers. Ele tem um plano completo para isso.
- Vamos ouvi-lo.
- Bem, considerando que você está morando em Jabulani, Akkers restringirá suas atividades à caça noturna, usando lâmpadas. Ele é esperto e não se deixará agarrar.
- E então?
- Você deve dizer a seus empregados que se ausentará por duas semanas; irá para a Cidade do Cabo, a negócios. Akkers saberá assim que você partiu e acreditará que tem Jabulani na mão...
Os homens discutiram os detalhes por mais uma hora, então apertaram-se as mãos e partiram.
Quando voltava para casa, David notou um movimento estranho em uma clareira. O capim alto balançava, e não havia vento para justificar aquilo.
- Tem alguma coisa ali - disse, desligando o motor do veículo. Passados uns poucos minutos, surgiram do capinzal três garçotas em fila, pousadas nas costas de um animal que andava firmemente para a frente.
- Ah, búfalos! - exclamou David quando apareceu o primeiro deles. O animal parou assim que viu o jipe à beira das árvores.
Olhou-o sem se assustar, pois era habitante do parque, portanto quase tão manso quanto o gado doméstico.
O resto da manada surgiu gradualmente do capim alto. Todos miravam o veículo antes de recomeçar a pastar. Havia quarenta e três, como Sam informara, entre os quais alguns machos com um metro e setenta de altura, medido no ombro, e pesando quase mil quilos. Tinham chifres enormes, cuja superfície áspera, perto da cabeça, tornava-se lisa e polida na extremidade.
Alguns pássaros de bico vermelho e olhos vivos de vez em quando pousavam sobre os animais para pegar carrapatos ou outros insetos no couro do lombo. Ocasionalmente, um dos búfalos bufava e pulava, varrendo e abanando a cauda como se fosse um chicote. As aves esvoaçavam gritando, esperavam que o animal se acalmasse e voltavam às suas atividades.
David fotografou o rebanho até que a luz do dia permitiu. Ele e Debra voltaram para casa no escuro.
Antes do jantar, David abriu uma garrafa de vinho e levou-a para a varanda. Sentou-se ao lado de Debra e ficou ouvindo os sons noturnos da savana, o piar dos pássaros noctívagos, o bater das asas dos insetos, o barulho causado por pequenos animais.
- Lembra que uma vez eu falei que você era um garoto mimado, que não servia para o casamento? - Debra perguntou, acomodando a cabeça no ombro dele.
- Nunca me esqueci disso.
- Eu gostaria de retirar formalmente aquela observação. - Percebendo que David a encarava, ela sorriu. - Eu me apaixonei por um filhinho de papai que só se preocupava com carros esportes e com a saia mais próxima... Mas agora eu tenho um homem, um homem crescido. E eu prefiro assim.
Em vez de responder, David limitou-se a tomar-lhe o rosto entre as mãos, beijando-a com intensidade. Houve então um momento de silêncio, que foi rompido por Debra.
- Esses animais selvagens significam muito para você, não?
- É verdade - ele concordou.
- Estou começando a compreender. Embora nunca os tenha visto, eles estão se tornando importantes para mim também.
- Fico feliz ao ouvir isso.
- Este lugar é tão cheio de paz, tão perfeito! É um pequeno Éden antes do pecado.
- E será sempre assim! - ele prometeu.
Entretanto, o barulho de um tiro despertou-o no meio da noite. David levantou-se de um salto, assegurou-se de que Debra estava dormindo, e saiu para a varanda. Ao segundo disparo, sentiu o sangue fervilhar nas veias, de tanta raiva. Imaginou o facho brilhante da lanterna de caça movendo-se sem descanso através da floresta, até parar de repente sobre um animal. Este ficaria encandeado pela luz, os olhos cegos brilhando como jóias, um alvo perfeito para mira telescópica. O rifle então dispararia, perturbando o silêncio da noite. A cabeça do animal seria jogada para trás com o impacto da bala, e o corpo cairia na terra dura, com um baque surdo.
David sabia que seria inútil persegui-los naquele momento - o caçador deveria ter cúmplices nas colinas para avisá-lo se alguma luz da casa se acendesse, ou se o motor do carro fosse ligado. Então, a lanterna seria apagada e o atirador fugiria. De nada adiantaria vasculhar a selva. O inimigo era astuto e experiente, e só seria agarrado com muita astúcia.
David perdeu o sono por completo. Voltou para a cama, de onde escutava os tiros a intervalos regulares. A caça era mansa e fácil de ser atraída. Acostumada à segurança da selva, voltaria a comer o pasto após cada tiro, sem se dar conta de que cada disparo eliminava um da manada.
Ao amanhecer, os abutres voavam como manchas negras contra o céu de tons dourados. Em número sempre crescente, planavam alto em largos círculos, depois desciam direto para o local da carnificina.
David telefonou para Conrad Berg no campo Skukuzam. Em seguida, acompanhado de Debra e de Zulu, entraram no jipe, vestindo roupas quentes para enfrentar o frio matinal. A medida que eles se aproximavam da primeira carcaça, as hienas comedoras de carniça, com suas costas sarapintadas e encurvadas, correram para as árvores, olhando para trás por sobre os ombros e soltando sua gargalhada típica. Os pequenos chacais vermelhos, de dorso prateado e ouvidos apurados, afastaram-se até uma distância segura antes de se sentarem, os olhos atentos sobre os recém-chegados.
Apesar de tímidos, os abutres permaneceram sobre as carcaças até o instante em que o veículo chegou a poucos metros dos corpos estendidos no chão. Voaram para as árvores e ali ficaram em atitude de espreita, com suas cabeças calvas e protuberantes.
Havia dezesseis búfalos mortos'. Todos eles tinham sido mortos na barriga para atrair os abutres; e o lombo e o filé haviam sido removidos por um perito.
- Ele os matou por apenas alguns quilos de carne? - Debra perguntou, incrédula.
- Isso mesmo - confirmou David, pesaroso. - O pior é quando liquidam um animal selvagem apenas para fazer um espanador de sua calda, ou quando matam uma girafa pelo tutano de seus ossos.
- Eu não entendo uma coisa dessas. O que leva uma pessoa a fazer isso? Ele não pode precisar tanto da carne.
- A questão é mais complexa; esse instinto assassino vem de dentro. Esse sujeito mata pela emoção de matar, para ver o animal cair, para ouvir seu último grito, para sentir o cheiro de sangue fresco.
Quando Conrid Berg chegou, mandou que seus guardas retalhassem os animais.
- Não vale a pena desperdiçar tanta carne. Há comida para muita gente.
Analisando os rastros, Sam descobriu que quatro homens haviam participado da matança, um usando sapatos de solado de borracha, e os outros três descalços.
- Um homem branco, alto, de pernas compridas, e três negros, que carregaram a carne. O sangue escorreu por aqui...
Seguido pelos demais, Sam avançou lentamente pela floresta, afastando a vegetação com seu bastão de rastreador. Dirigiram-se para a estrada pública.
- Aqui, eles andaram para trás - Sam observou.
- É um velho truque de caçadores - explicou Conrad. - Andam de ré quando cruzam uma fronteira. Fazem isso para dar a impressão de que estão saindo em vez de entrando.
As pegadas passavam por uma falha na cerca, atravessavam a estrada e entravam nas terras tribais dos arredores, terminando onde um veículo motorizado estivera parado sob a proteção de ébanos silvestres.
- Vai fazer um molde das marcas dos pneus? - David retrucou.
- É perda de tempo. - Conrad abanou a cabeça. - Pode ficar certo de que são trocados antes de cada expedição. E o sujeito os esconde quando não estão em uso.
- E os cartuchos disparados?
- Devem estar no bolso dele. Ele não costuma deixar evidências de sua passagem. Depois de disparar, guarda os cartuchos vazios. Vamos ter de quebrar a cabeça para agarrá-lo. Você já escolheu o lugar onde colocar Sam?
- Pensei no topo de um dos outeiros, perto do Colar de Pérolas. De lá se pode cobrir toda a área, avistar a poeira na estrada, e a altura permite alcance suficiente para os rádios.
Após o almoço, David transportou suas malas para o bagageiro do bimotor. E enquanto pagava aos empregados duas semanas adiantadas, disse-lhes:
- Tomem conta de tudo. Devo voltar antes do fim do mês. Deixou o jipe no hangar, com a chave na ignição, pronto para uma saída rápida. Ao decolar, manteve o rumo oeste, sobrevoando a colina do Bandolier e as construções entre as mangueiras. Embora não visse sinal de vida ali, manteve o curso até que a elevação sumisse no horizonte. Então deu uma grande volta em direção ao sul, rumo a Skukuza, o acampamento principal do Parque Nacional Kruger.
Conrad Berg esperava-o com seu caminhão na pista de pouso. E Jane pusera flores frescas no quarto de hóspedes. Jabulani ficava a oitenta quilómetros a noroeste.
Era outra vez como o alerta vermelho do esquadrão, com o Navajo parado sob a sombra de uma das árvores no final da pista de pouso. O rádio estava ligado, ajustado para a frequência do transmissor de Sam, que aguardava pacientemente no alto das colinas sobre os riachos.
O dia estava quente, opressivo, e uma tempestade se formava a leste; nuvens carregadas de relâmpagos pairavam ameaçadoras sobre a savana.
Debra, David e Conrad Berg estavam sentados à sombra da asa do avião, pois o calor da cabine era insuportável. Conversavam amenidades, porém estavam atentos ao rádio.
- Ele não vai aparecer - disse Debra, um pouco antes do meio-dia.
- Vai, sim - contrapôs Berg. - Aqueles búfalos são uma tentação muito grande; talvez não hoje, mas amanhã ou depois ele aparece.
David levantou-se e foi até a cabine do avião.
- Sam? - ele falou ao microfone. - Pode me ouvir? Houve uma longa pausa, presumivelmente enquanto Sam manejava o rádio.
- Estou ouvindo, nkosi.
- Viu algo?
- Nada.
- Mantenha-se atento.
- Yebho, nkosi.
Jane serviu-lhes um lanche frio, que todos comeram apesar da tensão. Iam provar o doce de leite, quando de repente a voz de Sam chegou pelo rádio.
- Ele veio!
- Prontidão "Vermelha", agora! - David gritou enquanto se aproximava de Debra. Segurou-a pelo braço e a conduziu para o avião. - Lança Brilhante decolando. - Ao pronunciar essas palavras, a lembrança de Joe invadiu-lhe a mente. Foi preciso muito esforço para afastá-la e concentrar-se no manche. Sem perder tempo em ganhar altura, David voou rente às copas das árvores. Conrad Berg, acomodado no assento atrás do piloto, estava vermelho como um pimentão.
- Cadê a chave do jipe? - ele perguntou ansioso.
- Deixei-a no contato, e o tanque está cheio.
- Você não pode ir mais rápido?
- Você pegou seu walkie-talkie - David replicou.
- Está aqui comigo. - Conrad tinha uma Magnum de dois canos em uma das mãos e o aparelho na outra.
Depois de passarem rente às árvores mais altas do terreno, cruzaram sobre a cerca do parque e avistaram as colinas de Jabulani.
- Prepare-se - disse o piloto, enquanto levava o Navajo para o campo de pouso.
Assim que alcançaram o hangar, Conrad saltou e correu para o jipe. Então David acelerou o avião e alinhou com a pista para decolar outra vez.
Lá do alto, avistou o veículo avançando pelo campo de pouso.
- Pode meu ouvir, Connie?
- Sim, e muito bem - respondeu o homem pelo alto-falante. David dirigiu-se para a estrada pública que aparecia através das árvores. Sobrevoou-a a cento e cinquenta metros de altitude, perscrutando cada palmo da área.
O caminhão Ford estava oculto para qualquer observador em terra, atrás de um agrupamento de ébanos silvestres, mas era visível do céu. Akkers não imaginara que poderia ser perseguido pelo ar.
- Connie, localizei o caminhão. Está oitocentos metros abaixo do riacho Luzane. Sua melhor rota é pegar a estrada até a ponte, seguir pelo leito seco do rio e interceptá-lo antes que chegue ao veículo.
- Combinado, David.
- Mexa-se, homem.
- Estou me mexendo.
A julgar pela poeira levantada pelo jipe, Conrad devia estar correndo bastante.
- Vou tentar encontrar Akkers e forçá-lo a ir ao seu encontro.
- Ótimo!
David plainava em direção às colinas, atento a qualquer sinal do caçador. Percebeu, no pico mais alto, uma figura que acenava freneticamente.
- É Sam - ele grunhiu, enquanto dirigia o aparelho para onde estava o velho guarda.
Sam parou de mexer os braços, limitando-se a apontar para o oeste. David agradeceu com um aceno, antes de tomar a rota indicada.
À sua frente, a planície lembrava as costas de um leopardo, cheia de arbustos escuros em meio à relva dourada. David demorou alguns minutos até avistar uma manada de búfalos deslocando-se desnorteada através dos pastos.
- Búfalos - avisou a Debra. - Estão correndo. Alguma coisa assustou-os.
Debra estava quieta no assento ao lado do piloto, as mãos no colo, a cabeça ereta como se olhasse para a frente.
- Ahá! - David gritou. - Peguei-o com a mão na massa! Bem no centro de uma clareira, um búfalo jazia morto sobre o chão, deitado de lado, as pernas esticadas. Tinha, à sua volta, um grupo de quatro homens, que pareciam prestes a desossá-lo. Três deles eram africanos, e o quarto, que estava com uma faca na mão, era Johan Akkers. Sua silhueta esguia não dava margem a nenhuma dúvida. Ele usava um velho chapéu Fedora na cabeça, formal demais para o trabalho no qual estava envolvido. Por sobre sua camisa caqui via-se um rifle pendurado a tiracolo. Ao ouvir o barulho do avião, ele ergueu a vista para o céu, atónito e absolutamente surpreso.
- Seu porco nojento - murmurou David, bufando de raiva. - Segure-se! - disse a Debra, levando o Navajo a um mergulho.
O grupo em volta do búfalo espalhou-se de imediato, cada um fugindo em uma direção. David escolheu a figura com o chapéu preto enfiado até as orelhas e decidiu segui-la. O avião voava tão baixo, que se encontrasse qualquer elevação no terreno seria capaz de espatifar-se. Naquele momento, David experimentava a raiva cega do macho protegendo o seu território; estava pronto para usar as hélices contra o invasor da propriedade.
Quando estava prestes a ser atingido pelo aparelho, Akkers deu uma olhada por sobre os ombros. Seu rosto empalideceu de pavor, os olhos se arregalaram em sinal de pânico. As lâminas mortíferas, a poucos metros de distância, o obrigaram a jogar-se ao chão.
O Navajo passou a centímetros dele e logo fez uma curva fechada, a ponta da asa quase raspando a grama. Enquanto isso, Akkers levantou-se e outra vez se pôs a correr.
David mirou na direção do fugitivo, porém percebeu que não o atingiria antes que ele chegasse às árvores. Ele ainda cruzava a clareira, quando o homem alcançou a proteção de um tronco. Então Akkers virou-se e tirou o rifle ao ombro, apontando contra o avião que se aproximava.
- Abaixe-se - David gritou para Debra, enquanto pressionava o acelerador e subia bruscamente. Apesar do barulho dos motores, ele ouviu o impacto do balaço contra a fuselagem.
- O que está acontecendo? - Debra quis saber.
- Ele disparou contra nós. Agora ele vai voltar para o caminhão. Conrad deve esperá-lo lá.
Protegido pelas árvores, Akkers pôde ensaiar uma fuga sem ser perturbado pelo Navajo.
- David, você pode me ouvir? - era Conrad, que falava pelo rádio.
- Sim, o que aconteceu?
- Houve um problema. Bati o jipe em uma pedra e o cárter se partiu. Espalhou óleo pra todo lado.
- Como diabos você fez isso?
- Eu peguei um atalho - desculpou-se o administrador.
- A que distância você está do riacho Luzane?
- Uns cinco quilómetros.
- Ele vai chegar antes de você! Está a três quilómetros do caminhão e corre como se tivesse visto o diabo.
- Mas você ainda não conhece o velho Connie! Estarei lá esperando!
- Boa sorte, então. - David encerrou a transmissão.
Akkers estava bordejando as colinas, aparentemente sem perder o fôlego, pois mantinha o ritmo do início da fuga. O Navajo acompanhava-o voando em círculos. De repente, um outro movimento chamou a atenção de David. Ele aguçou a vista e soltou um suspiro ao perceber do que se tratava.
- O que foi? - Debra perguntou, sentindo que algo estava errado.
- O idiota do Sam deixou seu posto e está descendo a colina para interceptar Akkers.
- Você não tem como detê-lo?
Em vez de responder, David tentou comunicar-se com Conrad. Chamou-o quatro vezes antes que a voz cansada do administrador o atendesse.
- Sam está perseguindo Akkers!
- Filho da mãe! Vou dar um esculacho nele! - prometeu Conrad.
- Vou me aproximar para ver melhor.
Baixando até a altitude de cem metros, David pôde presenciar a perseguição. Sam corria como uma corça atrás do homem que matara seus filhos. De repente, Akkers voltou-se, o rifle na mão. Talvez tenha alertado o velho guarda, mas, antes que obtivesse qualquer resultado, disparou um balaço contra Sam. O negro caiu como uma fruta madura. Seu corpo rolou encosta abaixo, até parar num arbusto.
Akkers recarregou a arma, tendo o cuidado de guardar a cápsula vazia. Então olhou para o Navajo. Podia ser impressão, no entanto David seria capaz de jurar que ele estava rindo.
- Connie -, David falou ao microfone -, ele matou Sam, sem mais nem menos...
Conrad Berg corria sem descanso pelo chão arenoso. Ele perdera o chapéu, e o suor escorria-lhe pela testa, embaçava seus olhos, molhava suas faces vermelhas. Levava o walkie-talkie dependurado nas costas, e a coronha do rifle batia ritmadamente contra seu quadril.
Concentrado em chegar logo ao riacho, ele tentava ignorar o desconforto que aquele esforço lhe exigia. Mesmo com o braço arranhado, continuava firme, como se aquele filete de sangue, produzido por um galho quebrado, sequer existisse.
No céu, David continuava voando em círculos, ligeiramente à esquerda, assinalando a posição de Akkers. Pelo jeito, Conrad estava perdendo terreno em sua corrida desesperada para detê-lo.
O rádio chamava-o com insistência, porém Conrad não se deu ao trabalho de responder. Parar, naquele momento, significaria perder alguns minutos preciosos, que talvez decidissem sua vitória ou derrota. Ele se sentia exausto, queimando suas últimas reservas.
Foi então que a terra pareceu ceder sob seus pés. Antes que percebesse o que se passava, derrapou pelo desnível íngreme do riacho Luzane. Perdeu o equilíbrio e rolou até a areia branca do leito seco. Só ali ele pôde atender o rádio. Resfolegando, cego pelo suor, apertou o botão de transmissão.
- David - balbuciou num fio de voz -, estou no leito do rio. Pode me ver?
- Sim, claro. Você está cem metros a jusante do caminhão. Akkers já chegou; ele entrará no leito do rio a qualquer momento.
O corpo dolorido, tossindo e sem fôlego, Conrad Berg ajoelhou-se e, nesse momento, ouviu o barulho do motor sendo acionado. Ele livrou-se do rádio, colocando-o de lado, depois pegou o rifle, abriu o ferrolho para verificar se estava carregado, e ficou de pé.
Surpreso com a própria fraqueza, caminhou pelo leito do rio, que naquela altura tinha dois metros e meio de profundidade por cinco de largura. Ali, a areia branca, pontilhada por pequenos seixos, constituía um bom acesso para Jabulani. As marcas dos pneus do caminhão de Akkers ainda estavam visíveis no chão. Ao ouvir o ronco do motor, vindo do outro lado de uma curva, Conrad aprontou o rifle. Em poucos instantes, o caminhão surgiu, patinando na areia. Sentado ao volante, Johan Akkers tinha o chapéu preto puxado até as sobrancelhas. Estava pálido e molhado de suor.
- Pare! - Conrad gritou, levantando a arma. - Pare ou eu atiro!
O motorista caiu na risada. E não mudou a marcha do veículo. Via à sua frente o cano duplo que, àquela distância, poderia acertar-lhe o olho, porém não fez qualquer esforço para se esquivar da ameaça. Encontrava-se a pouco mais de quinze metros e continuava avançando.
Para que um homem mate outro a sangue-frio, é necessário um estado mental peculiar, ou o reflexo condicionado do soldado, do policial, ou o terror do caçado, ou ainda o distúrbio de um desequilibrado emocionalmente.
Nenhum desses casos se aplicava a Conrad Berg. Como a maioria dos homens de fibra, ele era uma pessoa gentil, cuja preocupação primordial concentrava-se em proteger e cuidar da vida... ele não podia puxar o gatilho.
Vendo o caminhão a pouco mais de cinco metros, Conrad jogou-se para o lado. No mesmo instante, Akkers girou o volante na direção dele. Abalroou-o, jogando-o ao chão. Como se nada tivesse ocorrido, o motorista acelerou o veículo, levantando uma nuvem de poeira.
Caído no leito do rio, Conrad Berg sentiu que algum osso de seu quadril se partira durante o impacto com o pára-lama esquerdo do caminhão. Além disso, recebera uma pancada violenta no tórax. A julgar pelo sangue que lhe vinha à boca, também fraturara uma das costelas, que com certeza perfurara seu pulmão.
O rádio caíra a dez passos, e ele arrastou-se até lá.
- David - murmurou ao microfone. - Não pude pará-lo. Ele fugiu. - E deu uma golfada de sangue na areia.
David avistou o fugitivo quando o caminhão subia o barranco que dava na ponte de concreto de Luzane. Assim que alcançou a estrada, o velho Ford ganhou velocidade rumo à autopista que daria acesso à colina do Bandolier. A nuvem de poeira que ele deixava para trás assinalava sua posição para David.
Após cruzar a entrada de Luzane, a estrada virava bruscamente para evitar um afloramento rochoso, depois tinha três quilómetros de reta, ladeada por árvores.
David abaixou o trem de pouso e desacelerou o avião, alinhando-se com a estrada como se fosse um campo de pouso. Ele dera uma volta aberta, de modo que se encontrava na frente do caminhão, em rota de colisão. Entretanto, estava concentrado em realizar uma aterrissagem entre as duas colunas de árvores. Preocupado em não alarmar Debra, explicou-lhe o que estava acontecendo e o que iria tentar.
Para sua própria surpresa, conseguiu tocar o chão de terra sem maiores transtornos. Assim que pousou na pista, acelerou o aparelho, mantendo velocidade suficiente para decolar, caso Akkers preferisse colidir a se render. Avançava em direção a uma lombada, quando de repente o caminhão cruzou-a, vindo em sentido inverso.
Somadas as velocidades de ambos os veículos, dariam mais de trezentos quilómetros por hora. A perspectiva do choque iminente arrasou os nervos já tensos de Johan Akkers. Num lapso de segundo, impressionado com as hélices ameaçadoras que se aproximavam, girou bruscamente o volante, jogando o veículo para o lado. Porém, se pôde escapar da colisão, não conseguiu impedir que as rodas dianteiras derrapassem no canal de drenagem. O caminhão capotou, virou duas vezes sobre si mesmo, e parou apoiado em uma árvore.
De imediato, David acionou os freios, parando o avião.
- Espere aqui - disse para Debra antes de saltar do aparelho. Apesar de seu rosto não mostrar nenhuma expressão, os olhos brilhavam de fúria, enquanto ele corria rumo aos destroços do caminhão.
Akkers tentava levantar-se do chão, para onde fora arremessado, a fim de pegar o rifle na cabine do caminhão. Com um corte profundo na testa, tinha os olhos manchados de sangue e as faces pálidas.
Ao ver David aproximando-se, ele se ergueu, puxando a faca de caça da cintura. Era uma arma com cerca de vinte centímetros de lâmina, afiada como uma navalha. Ele a empunhou em posição de ataque e limpou o sangue do rosto com a outra mão.
Quando David parou a poucos passos de distância, Akkers desatou a rir, num gesto histérico, que denunciava uma mente insana. Ele girava a faca na mão, para um lado e para o outro. O aço polido reluzia sob a luz do sol. Durante alguns segundos, David preparou-se para o confronto, revendo mentalmente o treinamento que recebera na escola de pára-quedistas.
Akkers simulou o primeiro ataque, saltando para a frente com a arma estendida, e novamente caiu na gargalhada. Parecia querer impressionar o adversário desarmado. De qualquer modo, avançando e retrocedendo com movimentos ágeis, conseguiu encurralar David contra o caminhão. Nesse momento, procurou atingi-lo com uma facada na barriga.
Com a mesma rapidez do agressor, David agarrou-lhe o punho no ar, livrando-se do golpe. Segurou-lhe o braço fortemente, embora começasse a sentir que, apesar de magro, o homem possuía uma força descomunal. Percebeu, então, que se não tomasse alguma outra iniciativa, com certeza não suportaria a pressão de Akkers.
Em uma manobra ardilosa, chutou a perna dele e, aproveitando o momento de distração, juntou a outra mão ao esforço de segurar-lhe o braço. Em seguida jogou todo o peso de seu corpo contra o de Akkers, desequilibrando-o. Se não fosse o capô do caminhão, quase arrancado da boleia, teriam rolado pelo chão, engalfinhados.
Naquele momento, o armazeneiro estendeu sua mão livre em direção ao pescoço de David. Este abaixou a cabeça rapidamente, pressionando o queixo contra o peito, porém não foi ágil o suficiente para se livrar dos dedos fortes que lhe rodearam a garganta.
Pelo canto do olho, David notou que o pára-brisa estilhaçado do caminhão tinha ainda alguns pedaços de vidro presos à moldura, parecendo dentes de serra. Enquanto Akkers concentrava-se em estrangulá-lo, havia diminuído a pressão com a faca, de maneira que David, mesmo sentindo falta de ar devido ao aperto na garganta, num esforço desesperado empurrou o braço dele de encontro às bordas afiadas do vidro.
O efeito se fez sentir no mesmo instante, através do sangue que jorrou abundante do braço do agressor. Com o punho cortado, talvez até às artérias, o homem foi obrigado a soltar a arma e afrouxar os dedos que comprimiam a garganta do contendor.
David deu-lhe um sopapo violento, derrubando-o ao chão. Enquanto isso, Akkers gritava como se tivesse sido ferido mortalmente. Na realidade, o corte fora profundo e o sangue saía aos borbotões, encharcando-lhe as roupas. Aquela figura grotesca, cuja dentadura caíra durante a luta, perdera por completo a arrogância e implorava piedade.
- Vou sangrar até morrer! - gritava, fora de controle. - Você precisa me salvar, não me deixe morrer...
Ainda tomado pela fúria do combate, David aproximou-se dele, aplicando-lhe um pontapé na altura do tórax. Akkers, que mal se mantinha ajoelhado, caiu para trás soltando um gemido.
A Suprema Corte de Transvaal acatou quatro acusações contra o réu: duas por crime contra a preservação da vida selvagem, uma por agressão dolosa e a última por tentativa de homicídio. Akkers foi condenado a seis anos de trabalhos forçados, sem direito a fiança, e teve confiscados as armas de fogo e os veículos que usara para cometer aqueles delitos. Isto somente em relação aos crimes contra a natureza. A segunda parte da sentença foi de mais três anos de trabalho forçado e dezoito de cadeia.
Hospitalizado, Conrad Berg recebeu a notícia com euforia, fazendo questão de comemorá-la com um brinde.
- Bem, David, pelo menos durante os próximos trinta anos não teremos por que nos preocupar com esse desgraçado!
- Vinte e sete anos, querido - Jane fez questão de corrigi-lo.
Em julho, a edição americana de Um lugar de nós mesmos foi publicada, porém não obteve a menor repercussão no mercado editorial. Bobby Dugan, o agente de Debra nos Estados Unidos, escreveu-lhe para informar que se sentia desapontado, pois esperava pelo menos algum comentário favorável por parte da crítica especializada.
David recebeu a notícia como se fosse um insulto pessoal. Durante uma semana, não parou de resmungar mal-humorado, e parecia disposto a viajar até Nova York para tomar satisfação sabe-se lá com quem.
- Eles são um bando de estúpidos! - dizia a cada instante. - É o melhor livro escrito até hoje!
- Ah, David, pare com isso - Debra protestava, encabulada.
- Minha vontade é ir até lá e esfregar o livro no nariz de cada um desses idiotas!
- David, meu querido, esqueça esse assunto. Para mim já está morto.
Entretanto, Debra sentia-se magoada por não ver seu trabalho reconhecido. A partir daquele episódio, perdeu por completo o estímulo e a inspiração. Ficava horas e horas sentada à escrivaninha, o gravador desligado, sem que lhe ocorresse nenhuma ideia para transpor para o pequeno aparelho.
David fez o impossível para ajudá-la a sair daquele estado de prostração, convidando-a para visitar as novas cercas, para pescar nas águas do riacho. Além disso, fazia questão de ensinar-lhe os caminhos que rodeavam a casa, de modo que ela tivesse condições de andar por eles apenas acompanhada por Zulu. O Labrador usava um pequeno sino de prata na coleira, que a ajudava a segui-lo mais facilmente.
Entrementes, David ocupava-se em remover a cerca do parque e em erguer uma outra ao longo dos três lados vulneráveis de Jabulani. Faltava ainda contratar e treinar uma equipe de guardas, para a qual ele desenhou os uniformes e construiu postos de vigia nos principais acessos à propriedade. A intervalos regulares, ele viajava até Nelspruit a fim de consultar Conrad Berg - que se encontrava no hospital - sobre o encaminhamento dessas tarefas. Foi por sugestão do administrador que ele deu início a um sistema de canalização que possibilitasse ter água em todos os pontos importantes de Jabulani, mesmo nos lugares mais afastados dos riachos.
Quando ficaram prontos os slides que David tirara da manada de búfalos, antes de Johan Akkers dizimá-la, ele se sentiu absolutamente frustrado com o resultado. Todas as fotos tinham saído defeituosas, por problema de foco, de luz ou mesmo tremidas. Apesar do fracasso, ele voltou de uma das viagens a Nelspruit com uma teleobjetiva de 600 mm. Com ela passou horas e horas fotografando os pássaros através da janela. A medida que, aqui e ali, obtinha fotos surpreendentes, começou a entusiasmar-se pelo hobby, a ponto de em pouco tempo ter a casa cheia de objetivas, câmaras e tripés. Diante dos protestos de Debra de que aquela atividade, estritamente visual, a excluía de qualquer participação, ele teve a ideia de mandar buscar as gravações de pássaros feitas por June Stannard. Debra ficou encantada, sobretudo pela possibilidade que se abria de reconhecer e identificar cada trinado das aves que viviam pelas redondezas.
A partir dali, ela se propôs a realizar suas próprias gravações, que incluíam o barulho do sino do Zulu, o ronco do jipe, a voz dos serviçais discutindo na cozinha e, ao fundo, muito fraco, o canto de algum estorninho perdido. Inconformada por não obter bons resultados, reclamou com David, que, após pesquisar o assunto, construiu-lhe um refletor parabólico. Embora fosse um instrumento precário, quando apontado para uma fonte sonora, reunia e direcionava suas ondas para o microfone.
Aos poucos, eles abandonaram o conforto do estúdio para deslocar-se a esconderijos próximos a outros locais onde os pássaros se reuniam. David erguia então abrigos temporários, com lonas e colmo, às vezes em locais altos, onde ficava com Debra durante muitas horas, ocupados em tirar fotos e gravar o canto das aves.
Assim, montaram um bom arquivo de fotos e gravações, que estimulou David a enviar uma série de seus doze melhores slides para a African Wild Life Magazine. Duas semanas depois, ele recebeu uma carta aceitando os trabalhos, junto com um cheque de cem dólares. Este pagamento não cobria nem um por cento do que gastara em equipamentos. No entanto, os dois ficaram tão eufóricos com a novidade, que esvaziaram duas garrafas de Veuve Clicquot durante o jantar. Naquela noite, estimulados pelo champanhe, amaram-se com uma intensidade fora do comum.
Assim que as fotos de David e o texto de Debra, que as acompanhava, saíram na Wild Life, receberam uma enxurrada de cartas de todo o mundo, vindas de pessoas que cultivavam os mesmos interesses. Logo, o editor da revista solicitou-lhes um artigo completo e ilustrado sobre Jabulani.
O trabalho conjunto proporcionou um novo alento para Debra, que rapidamente esqueceu o fraco desempenho que seu livro obtivera nos Estados Unidos. Seu novo romance permanecia parado, mas isso pouco importava na nova situação.
A correspondência com conservacionistas de vários continentes fornecia-lhes o estímulo intelectual, e a companhia de Conrad Berg e de Jane supria-lhes a necessidade de contato humano. Afinal, ainda se ressentiam de estar com outras pessoas fora daquele universo particular.
O artigo para a Wild Life estava pronto para ser enviado, quando chegou uma carta de Bobby Dugan, de Nova York. A editora da revista Cosmopolitan tinha lido Um lugar de nós mesmos e gostara tanto que solicitara a continuação da história, vinculada a um artigo sobre Debra. Queria também algumas fotos dela, e seu resumo autobiográfico.
Mais do que depressa, eles atenderam ao pedido do agente. Enviaram o material, e durante quase um mês não ouviram mais nada sobre o assunto. Então, aconteceu algo que os levou a esquecer por completo o episódio.
Certo dia eles estavam no abrigo de colmo ao lado do poço principal, descansando da atividade vespertina. A câmara fotográfica estava armada no tripé, ao lado de uma das janelas de observação, e o refletor parabólico montado no teto da cabana.
A quietude do local, o estranho silêncio da mata, parecia o presságio de que alguma coisa diferente estava prestes a acontecer. Então, David tomou o pulso de Debra, em sinal de alerta. A julgar pela forma como o fez, ela imaginou que o marido avistara algo incomum. Na expectativa, ligou o gravador e segurou o cabo para apontar o refletor.
Uma manada do raro e tímido antílope nyala despontava na floresta, atraída pelo bebedouro. Tinham as orelhas empinadas e as narinas inflamadas sugando o ar. Eram nove fêmeas, sem chifres, de cores delicadas, com listras brancas pelo corpo. Andavam com cautela atrás dos dois machos, cujo aspecto diferente fazia-os parecer de outra espécie. De cor púrpura escura, possuíam uma crina espessa ao longo do pescoço, chifres grossos, espiralados, e uma bela mancha branca entre os olhos.
Avançavam apenas um passo e então paravam para observar, procurando qualquer sinal de perigo. Passaram tão perto do esconderijo que David teve medo de disparar a câmara e assustá-los com o barulho.
Ele e Debra permaneceram imóveis quando os animais alcançaram o bebedouro. Debra sorriu satisfeita ao captar o ruído que o macho líder fez assoprando a superfície da água, antes de beber, e o barulho do líquido sendo sugado por sua boca.
Só quando todos estavam bebendo foi que David decidiu fotografá-los. Apesar de seu cuidado, o clique do diafragma alertou o macho mais próximo, que olhou em volta e soltou um urro, dando o alarme. No mesmo instante, a manada fugiu desabalada rumo à floresta.
- Consegui gravar! - disse Debra, eufórica. - Ele estava tão perto!
Realmente, havia motivo para excitação em Jabulani. Antílopes daquele tipo jamais tinham sido vistos por lá, sequer no tempo de Clive Morgan. Foram tomadas todas as medidas para encorajá-los a permanecer, tais como isolar os poços da passagem dos guardas e dos serviçais, para evitar que a presença de seres humanos impedisse a manada de estabelecer ali o seu território.
Conrad Berg, andando de bengala e mancando, observou os animais junto com Debra e David, abrigados no esconderijo. De volta a casa, ele sentou-se na frente da lareira e deu sua opinião.
- Esses animais não são da reserva. Eu reconheceria um macho daqueles se o tivesse visto antes. Devem ter vindo de outro lugar. Você ainda não acabou a cerca sul, certo?
- Ainda não.
- Devem ter vindo de lá, provavelmente fugindo dos turistas. Estão procurando um pouco de paz. A propósito, já tem muita coisa interessante por aqui; mais alguns anos e este local será realmente um espetáculo. Você já fez planos para visitantes?
- Connie, eu sou muito egoísta para dividir isso com mais alguém.
Com o passar dos dias, Debra recuperou-se do fiasco americano de seu livro, e voltou a trabalhar em seu segundo romance. Naquela noite ela comentou:
- Um dos meus bloqueios é não ter um nome para ele. É como um bebê, antes de dar-lhe um nome não é realmente uma pessoa.
- Você pensou em algum? - David quis saber.
- Sim.
- Qual?
Ela hesitou, insegura.
- Bem, pensei em chamá-lo Algo santo e glorioso... O que você acha?
- Está ótimo! Muito bom mesmo!
O telefone tocou quando os dois estavam sentados ao lado da churrasqueira, no jardim da frente. David correu para atendê-lo.
- Há uma ligação de Nova York para a senhorita Debra Mordecai - informou a telefonista.
- Um momento. - E David chamou-a para a sala.
Era Bobby Dugan, que ligava pela primeira vez para Jabulani.
- Tenho ótimas notícias - anunciou o agente. - Sente-se para não cair. A Cosmopolitan publicou o artigo sobre você duas semanas atrás. Está incrível, inclusive com fotografia de página inteira. Você saiu fantástica.
Debra riu, embaraçada, e fez sinal para David se aproximar e também ouvir.
- A revista chegou às bancas no sábado, e segunda-feira de manhã as livrarias foram invadidas pelo público. As vendas alcançaram dezessete mil exemplares em cinco dias. Você subiu para o quinto lugar na lista de best-sellers do New York Times. É um fenómeno, uma loucura, querida. Vamos vender meio milhão de livros. Todos os grandes jornais e revistas vão publicar resenhas do livro, coisa que deviam ter feito há três meses. A segunda edição é de cinquenta mil, mas poderia ser até de cem mil. É apenas o começo. Na semana que vem, a costa oeste vai pegar fogo, você não perde por esperar...
- Meu Deus, eu não acredito! - repetia Debra. - Não pode ser verdade!
Naquela noite, tomaram três garrafas de Veuve Clicquot e Debra ficaria grávida de David Morgan.
"Debra Mordecai combina o uso soberbo da língua e um toque literário preciso numa obra que tem tudo para ser popular", dizia o New York Times.
"Quem falou que boa literatura tem de ser hermética?", perguntava o Time. "O talento de Debra Mordecai brilha claro como uma chama."
"A senhorita Mordecai pega o leitor pela garganta, bate-o contra a parede, joga-o no chão e lhe chuta as entranhas. Ela nos deixa enfraquecidos como se tivéssemos sofrido um acidente", acrescentou o Free Press.
Orgulhoso, David presenteou Conrad Berg com um exemplar autografado de Um lugar de nós mesmos. O administrador da reserva, que deixara de lado o "senhora Morgan", chamando-a pelo primeiro nome, ficou tão impressionado com o livro, que voltou a tratá-la com formalidade.
- É impressionante como você pensa nessas coisas, senhora Morgan.
- Pode me chamar de Debra - ela retrucou, rindo.
- Ela não pensa - interveio Jane Berg. - São ideias que fluem, é chamado inspiração.
Como Bobby Dugan previra, os editores tiveram de reimprimir mais cinquenta mil exemplares.
Parecia que o destino, para compensar as crueldades que fizera com eles, iria a partir de então enchê-los de presentes. Debra voltara à mesa de oliveira, e agora as palavras fluíam com a mesma facilidade de meses antes. E ela ainda tinha tempo para ajudar David a coletar o material para uma publicação sobre os pássaros de savana, para acompanhá-lo nas expedições diárias a diferentes regiões de Jabulani e para planejar a mobília e a arrumação do quarto do bebê.
Conrad Berg apareceu para solicitar a ajuda dela ao seu plano de obter a nomeação de David para o Conselho do Parque Nacional. Discutiram o assunto por muito tempo e em detalhes. Um assento no Conselho, um cargo honorífico, proporcionava prestígio e por isso era normalmente reservado a homens mais velhos e mais influentes. No entanto, Conrad Berg estava confiante em que prevaleceria o nome Morgan, combinado com a riqueza de David, a propriedade de Jabulani, seu manifesto interesse na preservação da vida selvagem e sua possibilidade de dedicar bastante tempo aos assuntos da reserva.
- Estou de acordo - afirmou Debra. - Será bom para ele encontrar outras pessoas e sair um pouco. Corremos o risco de ficarmos isolados por aqui.
- Ele aceitará?
- Não se preocupe; farei com que aceite.
Debra estava certa. Após o embaraço inicial da primeira reunião do Conselho, e uma vez que os outros membros se acostumaram àquele rosto deformado e perceberam que por trás dele existia uma pessoa cálida e forte, David tornava-se mais confiante a cada viagem a Pretória, onde se realizavam as reuniões. Debra acompanhava-o, e, enquanto o marido ficava na sede do Conselho, ela e Jane Berg faziam compras para o bebé, e adquiriam outros itens que não se achavam em Nelspruit.
No entanto, por volta de novembro, Debra já não se sentia à vontade para fazer o longo vôo no Navajo, sobretudo quando estava para chover e o ar ficava turbulento, com nuvens de tempestade e ventos fortes. E, além de a viagem ser difícil, ela estava envolvida com os capítulos finais de seu livro.
- Não se preocupe comigo - ela disse. - Temos telefone, seis guardas, quatro serventes e um cão para me proteger.
David relutou, discutiu, mas acabou concordando.
- Se eu decolar antes do amanhecer, chegarei à reunião às nove horas. Terminaremos lá pelas três e posso estar de volta às seis e meia. Se não fosse votar os assuntos financeiros, eu não iria, diria que estou doente.
- É importante, querido. Você deve ir.
- Tem certeza?
- Não vou nem perceber que você não está aqui.
- Não se empolgue tanto com a ideia; sou capaz de ficar só para te contrariar.
Ao alvorecer, as nuvens tingidas de dourado pairavam muito acima da altura máxima que o Navajo poderia atingir. David pilotava com cuidado, alterando o curso a cada instante, a fim de evitar as turbulências. Os ventos estavam tão fortes que punham em risco a segurança do pequeno avião.
Ao aterrissar no Grand Central, onde um carro alugado o esperava, comprou os jornais do dia. A previsão do tempo dizia que uma tempestade movia-se rápida e firmemente do canal de Moçambique, o que o deixou um tanto contrariado.
Antes de entrar na sala de reunião, pediu que a recepcionista fizesse uma ligação para Jabulani.
- Haverá uma demora de duas horas, senhor Morgan.
- Certo, avise-me quando for completada.
Quando saiu para o almoço, ele perguntou sobre sua chamada.
- Sinto muito, senhor Morgan. As linhas estão inoperantes. Está chovendo muito na região.
Cada vez mais preocupado, David pediu-lhe que ligasse para o serviço de meteorologia.
O tempo estava completamente fechado. De Bjirberton a Mpunda Milia, e de Lourenço Marques a Machadodorp, a chuva caía com violência. Com um tempo assim seria uma temeridade voar num aparelho sem equipamentos eletrônicos de orientação. Quando o serviço meteorológico informou que demoraria dois ou três dias até as chuvas cessarem, David quase entrou em desespero.
Mesmo assim, decidiu comer algo na cantina do andar térreo do edifício. Conrad Berg estava a uma mesa, acompanhado de dois membros do Conselho, e ao vê-lo entrar foi ao seu encontro.
- David - disse, a expressão preocupada -, acabo de saber que Johan Akkers fugiu da cadeia ontem à noite. Ele matou um guarda e escapou. Está solto há dezessete horas.
Como David não respondesse, emudecido pela surpresa, o amigo perguntou:
- Debra está sozinha?
David assentiu, os olhos escuros revelando seu pânico.
- É melhor você voar imediatamente para lá.
- A chuva não deixa o avião decolar...
- Pegue meu caminhão!
- Preciso de algo mais rápido.
- Quer que eu vá com você?
- Não. Se você não estiver na reunião à tarde, não vão aprovar a localização das novas cercas. Vou sozinho.
Debra estava trabalhando no estúdio quando a ventania começou. Desligando o gravador, ela foi até a varanda, estranhando o barulho. Ficou ali, sem saber ao certo o que estava escutando. Era um forte farfalhar, como ondas em uma praia de seixos.
Zulu encostou-se em suas pernas, enquanto o ruído ficava cada vez mais forte.
- Calma, garoto, calma - ela murmurava para o Labrador, que tremia de medo.
De repente, o vendaval varreu a casa, batendo todas as portas e janelas que não estavam travadas. Debra correu para o estúdio. Com dificuldade, fechou a janela, por onde entravam poeira e folhas das árvores. Naquele instante, uma das empregadas comentou, apreensiva:
- Madame, a chuva começará logo. Muita chuva.
- Volte para sua casa. Fique com sua família.
- E o jantar?
- Não se preocupe, eu o preparo.
Agradecidos, os serviçais foram para suas casas. A ventania durou quinze minutos. Nesse curto espaço de tempo, derrubou árvores, varreu a estrada, levantou nuvens de poeira. Mas cessou tão rápido quanto começara. No silêncio tenso que se seguiu, todo mundo esperou nova manifestação dos elementos. Debra sentiu frio, uma súbita queda de temperatura, como se a porta de uma câmara frigorífica tivesse sido aberta. Embora não pudesse enxergar as nuvens negras que cobriam os céus, pressentia a grandiosidade de sua ameaça.
O primeiro relâmpago foi como uma explosão gigantesca que cingisse o ar. Tomada de surpresa, Debra conteve um grito de pavor. O trovão que o seguiu pareceu sacudir até o âmago da terra.
Debra deixou a varanda, assustada, e trancou-se no quarto. No entanto, as paredes eram insuficientes para abafar a fúria da chuva. Os pingos grossos tamborilavam nas janelas, atravessavam a tela de proteção contra os mosquitos e inundavam a varanda.
Apesar da violência da tempestade, eram os relâmpagos e os trovões o que mais perturbava Debra. Por mais seguidos que fossem, sempre a pegavam desprevenida. Sentada na cama, ela buscava conforto agarrando-se ao corpo de Zulu. Arrependera-se de ter dispensado os empregados e se perguntava até quando seus nervos aguentariam aquele bombardeio.
Finalmente, vencida pelo medo, resolveu ir até a sala de estar. Desesperada, quase se perdeu em sua própria casa. Pegou o telefone e tirou-o do gancho. Logo percebeu que o aparelho estava mudo. Mesmo assim, gritou "alô" várias vezes antes de desistir, deixando o fone dependurado no fio.
Soluçando, voltou para o quarto, uma das mãos protegendo a barriga, que abrigava seu filho. Deixou-se cair implorando a Deus, em voz alta, que cessasse com aquele tormento.
A nova rodovia até o distrito carbonífero de Witbank era larga, segura e com seis faixas de tráfego. David guiou o Pontiac alugado para a faixa de velocidade e pisou fundo no acelerador. A quase 200 quilómetros por hora, sentiu estabilidade no veículo e pôde se dar ao luxo de rememorar a cena do julgamento de Johan Akkers. Sentado no banco dos réus, ele passara o tempo inteiro fitando David. E, à saída do tribunal, enquanto era conduzido pelos guardas, virara-se e gritara:
- Vou pegá-lo, cara de cicatriz! Nem que seja daqui a vinte e nove anos, mas eu vou pegá-lo!
Passando Witbank, a pista se estreitava, era bem mais movimentada e com curvas perigosas e trechos traiçoeiros. David concentrou-se no volante, afastando as ideias sombrias de sua cabeça. Pegou o desvio para Lydenburg, onde o tráfego resumia-se a um ou outro caminhão ocasional. Novamente exigiu o máximo do Pontiac, mantendo o ponteiro do velocímetro praticamente parado no limite direito do visor.
Ao sair do Erasmus, a chuva começou. Uma cortina pesada de água impedia-o de avançar. A estrada estava alagada, os limpadores do pára-brisa não davam conta da enxurrada que caía do céu. David acendeu os faróis e arqueou o corpo para a frente, na tentativa de enxergar alguns metros adiante. O céu fechado transformara o dia em noite, e as poças d'água na estrada dificultavam ainda mais o seu avanço, na medida em que refletiam a luz de seus próprios faróis, confundindo-o.
Por pouco não perdeu a entrada para a colina do Bandolier. A pista se reduzira a um lamaçal escorregadio e perigoso, que o levou a perder uma vez o controle da direção: derrapou para um lado e caiu na canaleta de drenagem. Para sair, teve de colocar diversas pedras sob os pneus e usar toda a potência do carro.
Quando alcançou a ponte sobre o rio Luzane, após quase cinco horas na direção, eram mais de oito da noite. Foi então que, subitamente, a chuva cessou por completo. Lá no alto, havia um círculo gigantesco entre as nuvens, através do qual se viam as estrelas no céu.
A ponte estava submersa. As águas passavam por cima dela como uma corredeira, transportando troncos arrancados pela raiz. Era difícil acreditar que o leito daquela torrente fosse o mesmo no qual Johan Akkers atropelara Conrad com o caminhão.
David desceu do carro e caminhou até a beira do riacho. O nível da água continuava subindo. E, pelo jeito, aquela pausa na chuva não duraria muito. Decidindo-se, voltou ao carro, deu marcha a ré, estacionou-o em um local elevado, deixando os faróis acesos na direção do rio. Então, tirou a roupa, ficando apenas de camiseta e cueca, amarrou os sapatos à cintura, com a ajuda do cinto de couro, e avançou para a água. Cauteloso, buscou um caminho seguro para a outra margem. No entanto, o riacho estava mais fundo do que ele supunha, e a correnteza era forte. Naquele momento, porém, avistou um tronco de árvore sendo arrastado pela enxurrada, com a raiz exposta, balançando ao sabor da correnteza.
David calculou o instante exato e lançou-se na direção dele. Com algumas braçadas vigorosas conseguiu alcançar e agarrar uma das raízes. De imediato, ficou fora do facho de luz do farol. Enquanto o tronco rolava e balançava, afundando-o e trazendo-o de volta à superfície, sentiu que era atingido por alguma coisa, que lhe feriu o tórax. Em meio à escuridão quase total, as águas revoltas o jogavam para um lado e para outro, castigando-o quando algum detrito ia de encontro ao seu corpo. Ele não teria resistência para aguentar durante muito tempo aquela situação. Felizmente, quando começava a perceber que chegava aos limites de sua resistência física, o tronco alcançou um obstáculo na margem oposta do riacho, e parou.
David soltou a raiz e, com um esforço desesperado, tratou de sair para a terra firme. Agarrou um galho que se dependurava sobre as águas. Deu um grito de dor ao sentir que era um espinheiro, porém segurou-se nele e alcançou a margem. Cambaleante, assim que escalou a pequena ribanceira, perdeu o equilíbrio e caiu com todo o peso sobre o lamaçal. Passou alguns minutos ali, até recuperar o fôlego pelo esforço da travessia, em seguida pôs-se a caminho, descalço, pois os sapatos tinham-se perdido na correnteza.
O brilho das estrelas foi o suficiente para que encontrasse a estrada. Avançou por ela, ganhando força a cada passada. A noite estava silenciosa, exceto por um ou outro trovão que ribombava ao longe.
Cerca de dois quilómetros da sede de Jabulani, David avistou a silhueta escura de um veículo ao lado da estrada. Quando estava a poucos passos, percebeu que era uma caminhonete Chevy último modelo, atolada em uma poça de lama.
Encontrando as portas destrancadas, ele acendeu a luz interna e viu uma mancha de sangue no assento, além de uma trouxa de roupa no banco de trás. Não foi necessário pensar muito para reconhecer o tecido grosseiro do uniforme de presidiário. Sentiu o coração bater mais rápido ao tomar consciência da situação.
O carro devia ser roubado, e o sangue com certeza pertencia ao infeliz proprietário. O uniforme de prisão fora trocado por outra roupa, provavelmente a do dono do Chevy. Isso confirmava, sem sombra de dúvida, que Johan Akkers estava em Jabulani, e que chegara antes que a ponte sobre o rio Luzane ficasse obstruída ao trânsito. Ou seja, três ou quatro horas atrás. Nervoso, David pôs-se a correr em direção a casa.
Ao cruzar a ponte de Luzane, com a água quase na altura do para-lama e sob a espessa cortina de chuva, Johan Akkers teve um momento de dúvida quanto à possibilidade de chegar bem ao seu destino. Logo, porém, quando alcançou a segurança da outra margem do riacho, acelerou a caminhonete, indiferente ao lamaçal que fazia os pneus derraparem e o Chevy balançar como um bêbado. Quanto mais ele se aproximava de Jabulani, mais imprudente a pressa o deixava.
Antes de seu julgamento e prisão, Akkers era uma criatura pervertida, mal-humorada e de temperamento difícil. Sentindo-se rejeitado e desprezado pelos homens, vivera em um mundo definido pela violência, embora jamais saísse dos limites da razão.
No entanto, nos dois anos que trabalhara dentro dos muros da prisão, a raiva e a ânsia de vingança tinham-no feito ultrapassar aquela fronteira. A vingança tornara-se a única razão de sua existência, algo que ele imaginara dezenas, centenas de vezes durante o dia. Planejara sua fuga para ter apenas três dias de liberdade; o que viesse depois não importava. Três dias seriam suficientes.
Na prisão, infeccionara o próprio maxilar, ferindo a gengiva com uma agulha infectada, e o haviam transferido para a enfermaria, tal como planejara. O guarda fora manuseado facilmente, e o dentista cooperara diante do bisturi pressionado contra sua garganta.
Ao fugir do presídio, não tivera dor de consciência quando precisara seccionar a aorta do dentista. Apenas se surpreendera com o volume de sangue que jorrara. Trocara de lugar com ele, vestira suas roupas e deixara o homem jogado em um aterro, apenas de cueca, ao lado de uma estrada pouco utilizada.
Mantendo-se em vias secundárias, avançara lentamente para o leste, alheio à dor no maxilar, embora o dentista tivesse lhe aplicado uma injeção, ainda no presídio. Mudava as marchas com dificuldade, pois os nervos e tendões atingidos durante a luta com Morgan não se haviam recuperado.
Com a cautela de um predador, e auxiliado pelos noticiários do rádio, conseguira furar o cerco que lhe tinham preparado, e agora estava em Jabulani e não podia mais se conter. Ao cair no buraco de lama, estava a sessenta e cinco quilómetros por hora. A caminhonete derrapara e afundara a traseira, deitando a barriga no barro.
Akkers abandonou o carro no local e saiu na chuva, apressando o passo. O dia estava escuro quando atingiu o esconderijo atrás da sede de Jabulani. Ficou lá por cerca de duas horas, esperando pela noite, e, quando esta chegou, ele começou a se preocupar pois não viu luzes na casa.
Desceu cautelosamente a colina, evitando a área da casa dos empregados, e dirigiu-se por entre as árvores até a pista de pouso. Percorreu a lateral do hangar e, ao encontrar a porta, soltou uma exclamação irritada diante do galpão vazio. Maldição! Isso significava que o casal não estava na propriedade! Ele planejara tudo direitinho e seu esforço desesperado fora em vão!
Rosnando como um animal, deu um murro na parede. A raiva e o ódio consumiam suas entranhas. Ele tremia como se estivesse com febre, e choramingava como uma criança a quem houvessem tirado um brinquedo.
De repente a chuva parou. O barulho sobre o teto de zinco do hangar cessou tão bruscamente que o deixou alarmado. No céu, as estrelas brilhavam como num dia normal, e o único som que se ouvia era da água escorrendo e respingando das árvores.
Ao ver as paredes brancas da sede através das árvores, Akkers pensou em deixar a sua marca lá. Se destruísse os móveis e incendiasse a casa, talvez superasse o sentimento de frustração que o invadia... Foi então que resolveu pôr em prática o seu plano.
O silêncio era total quando Debra acordou. Ela adormecera no meio da tempestade, extenuada, e agora tateava o colchão em busca de Zulu. Só que ele não estava lá, embora permanecesse quente o local onde estivera.
Não se ouvia nenhum ruído, exceto o respingar da água nas calhas e um ou outro trovão distante.
Envergonhada por ter-se assustado tanto no começo da tempestade, Debra levantou-se, sentindo frio, pois usava apenas um camisolão solto e uma calça elástica, própria para seu estado de gravidez. Calçou uma sapatilha leve e rumou para o quarto de vestir a fim de pegar uma suéter. Depois, iria preparar uma sopa. Naquele instante, porém, escutou o latido do cão, vindo do lado de fora da casa. Com certeza o animal saíra pela pequena porta de vaivém que David construíra especialmente para ele na parede da varanda.
Havia nuanças no latido do cachorro; o que poderia passar despercebido a outras pessoas, para Debra possuía um significado preciso. Um latido abafado, por exemplo, equivalia ao aviso do vigia: "Dez horas da noite e tudo está bem". Um uivo longo significava: "Estamos em noite de lua cheia, e o sangue de lobo em minhas veias não me deixa dormir". Um latido agudo: "Tem algo descendo para a casa das bombas. Pode ser um cão".
Finalmente, latidos intermitentes valiam aproximadamente isto: "Há uma ameaça perigosa. Cuidado!"
Naquele momento, era esse sinal de alerta que Zulu estava emitindo. Debra foi até a varanda, onde a água empoçada da chuva encharcou suas sapatilhas. Percebeu que o cão estava enfrentando alguém ou algum animal no jardim, a julgar pelos rosnados e pelo barulho de corpos engalfinhados. Ela permaneceu em silêncio, sem saber o que fazer. O que uma pessoa cega poderia tentar contra um adversário desconhecido? Então, ouviu nitidamente o ruído seco de uma pancada, o barulho de ossos partindo-se e da queda de um corpo. Zulu silenciou de repente. Algo acontecera com o animal. Agora ela estava completamente só e desprotegida.
Mas havia um som no ar. O chiado de uma respiração pesada e ofegante. Debra encolheu-se contra a parede da varanda, os ouvidos alertas. Escutou passos avançando pelo jardim em direção à porta da frente. Eles chapinhavam nas poças d'água da chuva.
Debra quis gritar, porém tinha um nó na garganta; quis correr, mas seus pés não saíram do lugar. E o intruso começava a subir os degraus da frente. Logo, o desconhecido passou a mão na tela de arame e pousou-a sobre a maçaneta, experimentando-a de leve.
Então Debra recuperou a voz.
- Quem está aí? - gritou, um som estridente e apavorado que rompeu o silêncio da noite.
De imediato o barulho cessou. Com certeza o intruso estava no último degrau da escada, perscrutando a escuridão da varanda, na tentativa de localizá-la. Ainda bem que ela vestia blusa escura e calça preta.
Uma lufada de vento agitou as copas das árvores, provocando uma saraivada de gotas d'água. Uma coruja piou perto da represa. E, ao longe, um trovão ribombou no céu. Depois, houve um longo silêncio, durante o qual Debra começou a tremer de frio e de medo. Para completar, o peso da criança em seu ventre pressionava-lhe a bexiga. Ela precisava ir ao banheiro...
De súbito, uma risada quebrou o silêncio. Uma risada histérica, demente, assustadora. Sobretudo porque era um som conhecido, gravado para sempre na memória de Debra. Ela estremeceu da cabeça aos pés.
E quase entrou em pânico quando a maçaneta foi sacudida. Sem conseguir abri-la, o intruso forçou a porta com o ombro. Logo, logo, ele a deitaria abaixo.
Incapaz de conter-se, Debra gritou outra vez, ao mesmo tempo em que saía do transe em que se encontrava. Voltou para o quarto, trancando a porta atrás de si. Estava consciente de que, assim que entrasse na casa, Akkers só precisaria acender uma lâmpada para tê-la à sua mercê. Restava-lhe, pois, permanecer na escuridão, onde levaria vantagem por estar acostumada. Já devia ser noite, e era provável que as nuvens de chuva ainda encobrissem a lua e as estrelas. Assim, ela deveria sair da casa e tentar atingir a moradia dos empregados.
Correu pelos quartos em direção ao fundo da casa. No caminho, lamentou que as armas de fogo estivessem trancadas no armário de aço, no escritório de David, e que a chave ficasse com ele. Ao passar pela cozinha, encontrou sua bengala ao lado da porta. Empunhou-a e abriu a trava da porta.
Naquele momento, ouviu a porta da frente ser quebrada e Akkers entrar na sala de estar. Debra fechou a porta da cozinha e dirigiu-se ao quintal, procurando não correr, contando os passos, para não perder a trilha que dava nas cabanas dos serviçais.
Seu primeiro marco era o portão na cerca que rodeava a sede. Antes de atingi-lo, ela ouviu o gerador começar a funcionar. Akkers encontrara um interruptor. Debra estava um pouco fora do caminho e bateu na cerca de arame farpado. Nervosa, começou a tatear ao longo do arame, tentando alcançar o portão. Ouviu o ruído de uma das lâmpadas de arco que circundavam a casa e iluminavam todo o jardim. Akkers devia ter achado o interruptor ao lado da porta da cozinha, e Debra com certeza estava no campo de ação das lâmpadas.
Por sorte, logo encontrou o portão e, com um suspiro de alívio, atravessou-o em desabalada. Precisava sair do raio de ação das lâmpadas. A luz era um perigo mortal, e a escuridão um refúgio.
A trilha se bifurcava, à esquerda para os lagos e à direita para as cabanas. Ela tomou o caminho da direita, enquanto ouvia o portão ser fechado. Akkers a estava seguindo.
Debra contou quinhentos passos até a pedra do lado esquerdo da trilha, que marcava a outra bifurcação. Mas tropeçou nela e caiu pesadamente, arranhando as pernas. A bengala soltou-se de sua mão, e ela não podia perder tempo procurando-a. Orientou-se na trilha e pôs-se a correr.
Após alguns segundos, percebeu que tomara o caminho errado. Aquele onde se encontrava ia até a casa das bombas; era uma trilha com a qual não estava familiarizada, pois raramente a utilizava. Mas continuou avançando, até que o capim alto enroscou-se em seu tornozelo e a derrubou novamente.
Sentia-se completamente perdida, mas tinha certeza de que estava longe das lâmpadas. Talvez estivesse protegida pela total escuridão... Ficou imóvel, procurou controlar a respiração e apurou os ouvidos.
Percebeu que seu perseguidor se aproximava; ouvia seus passos na terra ensopada. Parecia estar indo direto para onde ela estava. Encolheu-se o mais que pôde e pressionou o rosto nos braços, para escondê-lo e abafar a respiração.
As passadas seguiram reto, perto dela, e continuaram. Um instante depois, cessaram de repente. Ele estava tão próximo que ela o escutava ofegar.
Akkers tentava localizá-la, parado ao lado do lugar onde ela estava deitada no capim. Houve um longo intervalo de absoluto silêncio, que afinal foi quebrado por ele.
- Ah, você está aí! - Akkers riu. - Você está aí...
A voz soou tão perto de Debra, que por pouco ela não se levantou de um salto. O instinto de sobrevivência obrigou-a a não se mover.
- Posso vê-la escondida aí - ele continuou, debochado. - Vou pegá-la e fazer picadinho com a minha faca.
Debra permaneceu na mais absoluta imobilidade. Compreendia, afinal, que estava a salvo, encoberta pela escuridão da noite. Ele estava tentando apavorá-la, fazê-la sair do esconderijo e revelar sua posição.
Seguiram-se longos minutos de silêncio. Debra sentia a bexiga arder como ferro em brasa. Precisava urinar urgente. Então percebeu que algo lhe subia pelo braço. Arrepiou-se de pavor ao sentir os múltiplos pés do inseto, mas não se moveu. A coisa, aranha ou escorpião, avançava em direção ao seu pescoço, no momento exato em que Akkers voltou a falar.
- Está bem - ele disse -, vou pegar uma lanterna. Aí vamos ver quem ganha a parada. Você não conhece o velho Akkers.
Embora o ouvisse afastar-se, fazendo barulho, Debra continuou imóvel, sem coragem sequer para tirar o inseto de sua bochecha. Esperou cinco minutos, dez, e o inseto subiu para seus cabelos.
Nesse instante, Akkers disse:
- Vou pegá-la, sua putinha esperta. - Desta vez, ele afastou-se realmente.
Debra espantou o inseto da cabeça, tendo calafrios de pavor. Levantou-se e entrou na floresta. A primeira coisa que fez foi urinar, para aliviar a dor na bexiga. No momento em que se reergueu, sentiu a criança mexendo-se em sua barriga, o que atiçou seu instinto maternal de proteção. Ela precisava encontrar um lugar seguro para seu filho, talvez o esconderijo perto dos bebedouros.
Como atingi-lo? Ela estava completamente perdida, embora se lembrasse de que David lhe falara que o vento de chuva vinha do oeste. Assim, ficou atenta para captar a direção da brisa. A primeira lufada, teve a impressão de que se localizara. Começou a caminhar pela floresta adentro, com as mãos esticadas para a frente, a fim de evitar ir de encontro a alguma árvore. Se ela chegasse aos bebedouros, poderia orientar-se até o abrigo.
Akkers irrompeu pela sede de Jabulani, abrindo gavetas e arrombando portas. Encontrou o armário de armas no escritório, e vasculhou as gavetas da escrivaninha à procura das chaves. Ao não achá-las, blasfemou em voz alta.
Uma das estantes da sala estava repleta de caixas de balas, além de uma lanterna, que estava carregada e possuía um bom facho de luz.
Akkers pegou-a e, quando passava pela cozinha, parou para escolher uma faca de aço inoxidável, antes de correr pelo quintal rumo à trilha onde estivera minutos atrás.
Sob a luz da lanterna, as pegadas de Debra apareciam claramente na terra fofa. Ele seguiu-a até onde ela saíra da trilha, encontrando então a marca de seu corpo sobre o capim.
- Puta espertinha - resmungou, iluminando os rastros pela floresta. Aos olhos de um caçador experiente, ela deixara uma trilha facílima de ser encontrada.
Akkers prosseguiu sua busca, excitado com a perspectiva de pôr as mãos sobre sua presa. O instinto sádico, mola mestra de sua existência, aflorava-lhe à pele quase como algo palpável. Após alguns minutos de perseguição, percebeu que os rastros formavam um grande círculo, como se a fugitiva estivesse andando sem rumo, desorientada.
Logo, o facho da lanterna alcançou um vulto pálido e arredondado. Era uma mulher rechonchuda, que se movia devagar e hesitante como uma sonâmbula, os braços estendidos para a frente, os passos incertos.
Vinha em direção a Akkers, sem enxergar a luz que a iluminava. Por um breve instante, ela parou para acomodar a barriga e soluçou, de fraqueza e medo. Sua calça estava ensopada, e as sapatilhas bastante estragadas. Tanto os lábios como os braços estavam azulados e arrepiados de frio.
Akkers permaneceu quieto, observando-a aproximar-se, como uma galinha hipnotizada por uma cobra. Seus cabelos longos desciam em cachos até os ombros, apesar de molhados. A blusa que ela vestia, também encharcada, colava-se contra seu ventre volumoso.
Akkers saboreava com vagar a chegada do momento da vingança. Deixou Debra aproximar-se até uns cinco metros, então iluminoulhe o rosto e soltou uma gargalhada.
Pega de surpresa, ela virou-se, deu um grito e saiu em desabalada, como um animal selvagem. Após vinte passos, bateu em uma árvore, caindo ao chão. Soluçando, ficou de joelhos e massageou o rosto. Levantou-se de imediato, atenta ao menor barulho.
Akkers aproximou-se sorrateiro como uma pantera. Deu outra gargalhada, que a levou a correr a esmo, apavorada, até enfiar o pé em um formigueiro e cair pesadamente ao solo.
Akkers posicionou-se silenciosamente atrás dela - estava se divertindo pela primeira vez em dois anos. E pretendia estender aquele jogo de gato e rato o máximo que pudesse.
Aproximou o rosto do dela e disse um palavrão. Debra levantou-se de um salto, pôs-se a correr outra vez, sendo seguida calmamente por Akkers, cuja mente alucinada enxergava nela o símbolo de milhares de animais que havia caçado e matado.
David corria descalço pela estrada lamacenta, indiferente ao ferimento nas mãos e à falta de ar que ameaçava exauri-lo a qualquer instante. No topo da colina, onde o caminho mergulhava em direção à sede de Jabulani, ele parou por alguns segundos, intrigado com o brilho das lâmpadas de arco que iluminavam o jardim. Não fazia sentido que aquelas luzes estivessem acesas... Algo estranho devia estar ocorrendo por lá.
Desceu disparado a pequena elevação. Entrou em casa chamando Debra em voz alta. Quando chegou à varanda da frente, viu algo mexendo-se na escuridão, depois da porta de tela.
- Zulu - disse, indo ao seu encontro. - Venha cá, garoto! Onde ela está?
O cão subiu os degraus abanando a cauda, mas era evidente que estava ferido. Uma pancada forte em sua cabeça quebrara-lhe o maxilar, ou o deslocara, pois a queixada estava caída, fora de lugar. David ajoelhou-se ao lado do animal.
- Onde ela está, Zulu? Onde ela está?
Como o cão não reagisse, conduziu-o até o quintal, e deu uma volta em torno da casa. Na porta do fundo, Zulu farejou a terra fresca e encharcada. Seguiu resoluto rumo ao portão, onde se viam pegadas sob a luz do jardim - de Debra, e pés masculinos que a seguiam.
Enquanto Zulu atravessava o quintal, David foi até o escritório. Uma das lanternas desaparecera da estante, mas havia outra na prateleira. Pegou-a, enfiou um punhado de balas no bolso e então abriu o armário de armas, de onde retirou um rifle. De volta ao quintal, encontrou Zulu farejando a trilha além do portão.
Naquele momento, Johan Akkers perdera todo e qualquer traço de um ser humano, transformando-se em uma besta cujo prazer residia em brincar com sua presa ferida, prolongando-lhe o sofrimento até o limite máximo de sua resistência.
Mas afinal chegou o momento de liquidar a caça, que mal se mantinha de pé, fugindo às cegas e tropeçando a torto e a direito em qualquer obstáculo.
Correu atrás dela e agarrou-lhe os cabelos. Puxou-os com força, de modo que ela erguesse a cabeça e expusesse o pescoço à faca que ele levava na mão.
Debra girou sobre si mesma com uma ferocidade que ele não esperava. Agora que sabia onde estava o inimigo, investiu contra ele movida pelo terror selvagem do animal caçado.
Desprevenido para aquela reação, Akkers perdeu o equilíbrio e caiu de costas - com Debra por cima - e soltou a faca e a lanterna para poder proteger os olhos, pois ela tentava atingi-los com as unhas longas e afiadas. Unhas que lhe feriam o nariz e as bochechas, num ataque desesperado contra o inimigo mais forte.
Logo, porém, Akkers deu-lhe um tapa com a mão que portava uma presilha de madeira, para compensar os defeitos dos tendões. Com um tapa semelhante, ele quebrara a mandíbula do cão Labrador. Acertou-a na testa, quase eliminando por completo sua resistência. Ficou de joelhos, segurando-a com a outra mão, golpeando-a sem piedade. O sangue escorria-lhe do nariz, mas não fez cessar a fúria do seu agressor. Mesmo depois de vê-la imóvel e sem sentidos, ele ainda continuou batendo. Algum tempo depois, parou e levantou-se. Pegou a lanterna e iluminou o capim. A faca refletiu a luz do facho.
Segundo uma antiga cerimónia africana, finaliza-se uma caçada com o caçador triunfante abrindo o corpo do animal abatido e enfiando ali suas mãos para retirar as vísceras ainda quentes.
Johan Akkers agarrou a faca e apoiou a lanterna no chão, de modo que iluminasse o corpo de Debra. Aproximou-se dela e, com o pé, rolou-a até deixá-la de costas. Os cachos de cabelos encharcados cobriam-lhe o rosto.
Ele se ajoelhou ao lado de sua vítima, pegou o tecido de sua blusa, deu-lhe um puxão, rasgando-o. O ventre volumoso destacou-se sob a luz da lanterna, a pele alva e perfeita.
Rindo de maneira histérica, Akkers contemplou a barriga de Debra. Mentalmente, calculou passo a passo o que ia fazer. Afundar um pouco a lâmina, à altura da pélvis, depois cortar até a boca do estômago, sem seccionar os intestinos - um movimento que exigiria a perícia de um cirurgião, e que ele já fizera dezenas de vezes.
Entretanto, um movimento nas sombras chamou-lhe a atenção. Ele mal teve tempo para ver o cão negro que vinha em sua direção. Ergueu o braço para proteger-se no exato momento em que o animal o atacava. Engalfinharam-se, mas Zulu estava em desvantagem por não conseguir mordê-lo devido à mandíbula ferida. Akkers pôde esfaqueá-lo sem grandes dificuldades. Acertou-lhe o coração na primeira estocada. Zulu ganiu uma única vez e em seguida caiu inerte, resfolegando.
Naquele momento David entrou em cena. Akkers viu-o aproximar-se e o encarou com olhos faiscantes de ódio. Ficou de pé em uma fração de segundo, a faca na mão respingando o sangue do cachorro. Porém, ao contrário do que imaginava, não teve tempo para agredir o inimigo, pois David apontava-lhe a espingarda e puxava o gatilho. O tiro atingiu-lhe a cabeça, pouco acima da boca, arrancando o crânio fora. Akkers caiu estatelado, as pernas movendo-se convulsivamente. David correu para o lado de Debra e tomou-a nos braços.
- Minha querida, meu amor, por favor me perdoe. Eu não devia ter deixado você só... - Carregou-a no colo até a casa.
O bebé nasceu ao amanhecer. Um corpinho franzino, vindo ao mundo prematuramente. Se estivesse sob cuidados médicos adequados, talvez tivesse sobrevivido. No entanto, David nada entendia de parto, estava isolado pelo rio enfurecido, o telefone continuava mudo e Debra ainda inconsciente.
Ele envolveu a menina com um lençol e a colocou no berço que seria dela. Estava arrasado, com um sentimento de culpa e de falha em relação às duas pessoas que precisavam dele.
Às três horas daquele dia, Conrad Berg forçou a travessia do rio Luzane, com a água acima das rodas do caminhão. Três horas depois, Debra estava num quarto privativo, no hospital de Nelspruit. Dois dias depois ela voltou à consciência, mas seu rosto estava deformado e roxo dos hematomas.
No alto da elevação que dava acesso à sede de Jabulani, havia um terraço natural, uma plataforma de onde se via boa parte da propriedade. Era um lugar isolado, silencioso, próprio para a sepultura que David construiu para o bebé natimorto.
O fato de não ter visto a criança, de não tê-la amamentado nem ouvido seu choro ajudou Debra a superar o trauma mais rapidamente.
Certa manhã de domingo, enquanto estavam no banco ao lado da sepultura, Debra falou pela primeira vez em outro bebé.
- Você demorou muito com o primeiro, Morgan - ela brincou. - Espero que tenha dominado a técnica.
Desceram a colina, colocaram as varas de pesca e uma cesta de piquenique no jipe e foram para os lagos. Antes do meio-dia, Debra já havia pescado cinco, todos de aproximadamente um quilo e meio, e David mais de uma dúzia, dos grandes. Algum tempo depois, sentaram-se em volta da toalha, embaixo de uma árvore, onde comeram lanches e tomaram vinho branco.
A primavera cedia lugar para o verão, enchendo a savana de movimento e atividades secretas. As aves ocupavam-se em construir seus ninhos, e, na margem oposta do lago, um pássaro pescador perscrutava as águas quietas, mergulhando de repente, e emergindo com um reflexo prateado em seu bico desproporcional. Bandos de borboletas amarelas e brancas voavam enfileiradas na beira d'água, e as abelhas seguiam para suas colmeias nos rochedos muito acima dos lagos.
- Os antílopes estão aqui - murmurou David de repente.
Tinham vindo pelo bosque. Tímidos, deram alguns poucos passos cautelosos, antes de parar e olhar para o casal com seus enormes olhos escuros.
- As fêmeas são só barriga agora - continuou David, baixinho. - Deverão parir em poucas semanas. Tudo está frutificando.
Quando as nyalas saciaram sua sede e se foram, uma águia de cabeça branca cruzou os céus. David tomou Debra nos braços, beijando-a com ardor e paixão. Enquanto se amavam, ele observou, embevecido, cada detalhe do rosto dela. Os olhos fechados, os cabelos escuros espalhados sobre a toalha, o hematoma em sua testa, que permanecia visível apesar de fazer dois meses que ela deixara o hospital. Suas faces tinham recobrado a cor, e gotículas de suor brilhavam em seu lábio superior enquanto ela gemia de paixão.
Então, vindo do alto, um raio de sol atravessou a copa da árvore e bateu em cheio no rosto de Debra, dando-lhe uma aura dourada. Naquele instante, David atingia o clímax do prazer. Involuntariamente, os olhos dela se abriram e, sob a luz forte do sol, as pupilas se contraíram de repente.
Mesmo no auge do amor, David ficou sobressaltado com aquilo. Algum tempo depois, quando estavam deitados, quietos, ela perguntou:
- Tem alguma coisa errada, David?
- Não, querida. O que poderia estar errado?
- Percebo algo estranho, Davy. Você envia sinais fortes, tenho certeza de que poderia captá-los mesmo que estivesse do outro lado do mundo.
Ele riu, desconversando. Talvez tudo não tivesse passado de uma peça pregada pela luz, era melhor esquecer o assunto. Ao entardecer, ele guardou as varas e a toalha no jipe e ajudou Debra a subir no veículo. Durante o trajeto de volta, ela tocou-lhe o braço, dizendo:
- Quando quiser falar sobre o que está te perturbando, estarei pronta para ouvir.
David contou uma piada, inventou coisas, mostrando-se loquaz até demais. Durante a noite, ele se levantou e foi ao banheiro. De volta à cama, passou longos minutos olhando para o rosto dela. Ia deitar-se novamente, quando um leão rosnou perto dos lagos. O som se propagava facilmente na noite quieta, apesar da distância que os separava.
Era a desculpa de que David precisava. Ele pegou a lanterna no criado-mudo e iluminou o rosto de Debra, que estava sereno e apaixonante. Reprimiu a vontade de beijá-la, e chamou-a.
- Acorde, querida! - Quando ela abriu os olhos, sob o facho da lanterna, sem dúvida alguma as pupilas se contraíram.
- O que é David? - ela murmurou, ensonada.
- Há um leão dando um concerto. Pensei que você quisesse ouvir. Ela virou a cabeça, protegendo-se, como se o facho de luz lhe causasse algum desconforto.
- Adoro ouvir esse rosnado. De onde você acha que ele veio? David desligou a lanterna e deitou-se.
- Provavelmente do sul. Aposto que cavou um buraco na cerca suficiente para passar um caminhão. - Ele tentou manter a naturalidade enquanto os dois se aconchegavam sob os lençóis. Fizeram amor, mas depois David perdeu o sono e ficou acordado até o amanhecer.
Uma semana mais tarde, ele escrevia a seguinte carta:
Caro Dr. Edelman, Combinamos que eu lhe comunicaria quaisquer mudanças com os olhos ou a saúde de Debra.
Recentemente, ela se viu envolvida em um episódio desagradável, durante o qual recebeu várias pancadas na cabeça, ficando inconsciente por dois dias e meio.
Teve de ser hospitalizada, com suspeita de fratura no crânio, hipótese descartada após dez dias.
Isso ocorreu há cerca de dois meses, e desde então percebo que os olhos dela estão sensíveis a luz. Como você sabe, algo que não acontecia antes. Ela também tem sofrido fortes dores de cabeça.
Repeti minhas observações com a luz solar e com luz artificial. Portanto, posso garantir que sob o estímulo de uma fonte luminosa forte as pupilas dela se contraem no mesmo grau esperado em uma pessoa normal.
Talvez seu diagnóstico original deva ser revisto. Mas, faço questão de frisar, devemos abordar o assunto com muita cautela. Não quero dar-lhe falsas esperanças.
Ficaria muito grato pelo seu conselho, e aguardo resposta.
Cordialmente, David Morgan.
David endereçou e selou a carta, mas, ao voltar de Nelspruit na semana seguinte, o envelope continuava no bolso de sua jaqueta. Não havia novidades em Jabulani, salvo o término do novo romance de Debra e o convite de Bobby Dugan para que ela proferisse uma série de palestras, em cinco grandes cidades dos Estados Unidos. Um lugar de nós mesmos completara a trigésima segunda semana na lista de best-sellers do New York Times, e o agente dizia que ela estava "mais quente do que uma pistola".
David aproveitou a deixa para uma brincadeira maliciosa, afirmando que ela era a mulher mais quente do planeta. Debra chamou-o de devasso, mas escreveu para o empresário recusando o convite.
- Quem precisa de gente? - ela argumentou.
David tinha consciência de que a simpatia de Debra, aliada ao fato de ser cega e ter escrito um best-seller, faria com que fosse tratada como uma superestrela. Isso deixou-o ainda mais arrasado. E o obrigou a repensar e a racionalizar sua demora em mandar a carta ao dr. Edelman. Repetiu para si mesmo que a sensibilidade à luz não significava que Debra recuperaria a visão; que ela estava feliz agora, tinha-se ajustado e encontrado seu lugar, e seria mau interromper isso e oferecer-lhe falsas esperanças e a probabilidade de uma cirurgia fracassada.
Aparentemente, toda essa teorização colocava as necessidades de Debra em primeiro plano. Mas só aparentemente. Na verdade, era o interesse de David Morgan que estava em jogo, pois, se ela recuperasse a visão, a delicada estrutura da felicidade dele entraria em colapso.
Certa manhã, ele saiu no jipe até o limite mais afastado da propriedade e parou em um lugar escondido entre os espinheiros. Desligou o motor e fitou-se no espelho retrovisor. Passou quase uma hora contemplando aquele amontoado de cicatrizes, sem encontrar nenhum traço atenuante, à exceção dos olhos, ainda bonitos. Porém, nenhuma mulher que enxergasse teria condições de viver perto daquilo, sorrir para aquilo, beijar, tocar e fazer carinho naquilo nos momentos de amor.
Quando voltou para casa, Debra o esperava na varanda. Risonha, ela desceu a escada assim que ouviu o ruído do motor. Vestia uma calça desbotada e uma blusa rosa-claro. Aproximou-se dele e ergueu o rosto, os lábios entreabertos num convite mudo.
Naquela noite, embora estivessem ao lado da churrasqueira acesa, sentiam frio. Debra usava um suéter de cashmere sobre os ombros, e David estava com sua jaqueta de aviador.
A carta no bolso da camisa parecia queimar-lhe a pele. Enquanto Debra tagarelava, feliz, David tirou o envelope do bolso e revirou-o várias vezes na mão. De súbito, como se fosse um escorpião, jogou-o no fogo e observou-o transformar-se em cinzas.
Mas não se livrou do assunto. Mais tarde, acordado na cama, as palavras da carta passavam por sua'mente em procissão solene, meticulosamente preservadas, perfeitamente memorizadas. E não lhe deram descanso - embora seus olhos estivessem pesados e a cabeça doesse de cansaço, não conseguiu dormir.
Nos dias que se seguiram, tornou-se silencioso e irritadiço, apesar de todos os seus esforços para disfarçar. Debra ficou preocupada, acreditando que ele estivesse bravo com ela. Amava-o demais e faria qualquer coisa para descobrir e sanar a causa do seu mal-estar.
Ao vê-la intranqúila, David sentia-se ainda mais culpado. Com esse estado de espírito, durante um entardecer, foram até o Colar de Pérolas. Deixaram o jipe a certa distância e seguiram de mãos dadas até próximo de um dos riachos. Sentaram-se em um tronco caído, pela primeira vez nenhum dos dois tinha nada a dizer ao outro.
Quando o sol se escondeu no horizonte e a escuridão ganhou corpo na floresta, a manada de antílopes aproximou-se das águas.
David então sussurrou:
- Estão bastante ariscos hoje. Deve haver alguma coisa diferente. Os machos parecem estar à beira de um colapso nervoso, estão ouvindo com tanta atenção que suas orelhas dobraram de tamanho, sou capaz de jurar. Talvez haja algum leopardo rondando por aí... Ah, então é isso!
- O que foi, David? - Debra apertou-lhe o braço, transbordando de curiosidade.
- Um bezerrinho! Uma das fêmeas pariu. Oh, Deus, Debra! As pernas dele ainda estão bambas e sua cor é bege bem claro. - David descrevia o pequeno animal enquanto a mãe deste seguia para o campo aberto. Debra ouvia com tanta atenção, que era evidente que o ato do nascimento e maternidade tocara fundo em seu ser. Talvez se lembrasse do bebé que perdera. Apertando o braço de David, de repente ela falou, a voz baixa mas nítida, descarregando toda a tristeza que acumulara.
- Eu gostaria de poder enxergar. Deus do céu, como eu gostaria! Deixe-me enxergar, meu Deus, por favor! - Ela estava choramingando, os soluços sacudiam todo o seu corpo.
Do outro lado do riacho, a manada se assustou e desapareceu por entre as árvores. David aninhou Debra contra seu peito. As lágrimas que lhe caíam dos olhos molhavam sua camisa. Ele sentiu que o desespero invadia sua própria alma.
Naquela noite, sob a luz de um lampião a gás, ele reescreveu a carta enquanto Debra tricotava um suéter que lhe prometera para o inverno e imaginava que ele estivesse ocupado com a contabilidade da propriedade. David descobriu que se lembrava até das vírgulas da carta anterior e não passou mais do que alguns minutos para encerrar a tarefa.
- Você vai trabalhar no livro amanhã de manhã? - perguntou casualmente, e quando ela fez que sim ele prosseguiu: - Vou dar um pulo de uma ou duas horas em Nelspruit.
Durante o voo, David se perguntava se realmente iria fazer aquilo. Não se considerava capaz de tamanho sacrifício. Seria possível amar tanto alguém a ponto de arriscar esse amor pelo bem da pessoa amada? Percebeu que sim, e acabou convencido de que afinal podia encarar essa possibilidade.
De todas as pessoas, Debra era a que mais necessitava da visão. Sem ela, as asas do seu talento estavam amarradas. Sem enxergar, não podia descrever. Ela possuía o dom da palavra, mas metade lhe fora arrancado. David compreendeu toda a extensão da súplica que ela fizera no dia anterior. E para sua própria surpresa, orou por ela em silêncio.
Ao aterrissar no aeroporto, chamou um táxi, indo direto para a agência do correio. Postou a carta e pegou a correspondência de sua caixa postal.
- Para onde agora? - o motorista perguntou quando ele saiu do edifício.
David pensou em retornar ao aeroporto, mas teve uma inspiração.
- Leve-me para a loja de bebidas.
Pouco depois, o Navajo decolava com uma caixa de champanhe Veuve Clicquot a bordo. David sentia uma paz de espírito incomum. A roleta estava girando, e nada que ele fizesse agora mudaria o destino da bola. Livrara-se da dúvida, do sentimento de culpa, e estava pronto para enfrentar o que quer que acontecesse. Debra notou a diferença de humor de David e se mostrou alegre, aliviada.
- O que foi que houve, Davy? Você passa um tempão amuado, depois sai por uma ou duas horas e volta carregado como um dínamo... O que está acontecendo, Morgan?
- Acabei de descobrir o quanto eu te amo - ele disse, correspondendo ao abraço.
- É muito?
- Você nem imagina!
- Ah, eu adoro você!
O champanhe veio a calhar, pois no lote de correspondência que David pegara em Nelspruit havia uma carta de Bobby Dugan. O agente gostara dos primeiros capítulos do novo romance que Debra lhe enviara, o mesmo acontecendo com os editores, que lhe enviavam um adiantamento de cem mil dólares.
- Você está rica! - disse David, eufórico.
- Por isso que você se casou comigo, seu caça-dotes! - Debra sentia-se exultante. - Eles gostaram, David. Parece que realmente gostaram. Eu estava tão preocupada!
- Precisavam ser débeis mentais para não gostarem. Eu trouxe uma caixa de Veuve Clicquot da cidade. Vou pôr umas dez garrafas para gelar.
- Morgan, o homem de visão! É nessas horas que eu percebo como te amo.
As semanas que se seguiram foram melhores do que nunca. David estava com a sensibilidade mais apurada, embora houvesse sombra de tempestade no horizonte. Mas o tempo de fartura tornou-se mais intenso pela possibilidade dos anos secos que poderiam advir. Ele tentou deixar as coisas acontecerem com naturalidade. E passou-se mais de um mês antes que ele retornasse a Nelspruit, e isso porque Debra estava ansiosa por notícias do editor e queria pegar o material datilografado.
- Eu gostaria de arrumar meus cabelos. Mesmo que não precisemos de ninguém, poderíamos manter algum contato com as pessoas, talvez uma vez por mês, você não acha?
- Tem que ser tão pouco? - David perguntou com ar inocente, ainda que cada dia tivesse sido cuidadosamente pesado e avaliado.
David deixou-a no salão de beleza. Quando saía de lá, ouviu-a pedir à cabeleireira para não prender os cachos com laque. Apesar da ansiedade do momento, David sorriu.
A caixa postal estava abarrotada. Entre outros impressos, havia três cartas do agente literário de Debra e dois envelopes com selos de Israel. Um destes, sobrescrito com letra de médico; o outro, com uma caligrafia inconfundível, denunciando a origem militar do remetente.
David sentou-se num banco do parque e abriu primeiro a carta do dr. Edelman. Estava em hebraico, o que lhe dificultou decifrá-la.
Caro David:
Sua carta me surpreendeu e me obrigou a reestudar as chapas de Debra. Mais uma vez eu não hesitaria em confirmar meu diagnóstico inicial.
No entanto, se aprendi algo em vinte e cinco anos de profissão, foi a humildade. Acredito que suas observações quanto a sensibilidade a luz estejam corretas. Assim sendo, devo concluir que existem pelo menos algumas funções parciais dos nervos ópticos. Isso pressupõe que o nervo não foi seccionado, mas apenas danificado, e que agora, talvez devido ás pancadas que Debra recebeu, tenha recobrado algumas de suas funções.
A questão crucial refere-se a possibilidade de recuperação, que a meu ver é mínima até o momento. Entretanto, não se pode descartar a chance de que, mediante algum tratamento, parte da visão possa ser recuperada. Não creio que vá além de uma vaga definição de luz ou de forma. De qualquer modo, a decisão quanto a uma cirurgia em uma região tão vulnerável deve ser tomada como se nenhum benefício possa ser obtido.
Eu gostaria de examiná-la pessoalmente. Porém, como uma viagem a Jerusalém talvez seja inconveniente para vocês, tomei a liberdade de escrever para um colega meu, na Cidade do Cabo, que é uma das maiores autoridades mundiais em traumas ópticos. E o dr. Reuben Friedman, e eu estou anexando uma cópia da carta que mandei para ele. Também despachei para ele as radiografias de Debra e um histórico clínico do caso.
Recomendo enfaticamente que aproveite a primeira oportunidade para apresentar Debra ao dr. Friedman e que tenha nele inteira confiança. Devo acrescentar que a unidade óptica do hospital Groote Schuur tem renome mundial e está muito bem equipada para o tratamento que for necessário.
Tomei a liberdade de mostrar sua carta ao general Mordecai, e de discutir o caso com ele.
David dobrou cuidadosamente a carta.
- Por que diabos ele teve de envolver Brig nisso? - resmungou enquanto abria a carta do sogro.
Caro David,
O dr. Edelman falou comigo. Telefonei para Friedman, na Cidade do Cabo, e ele concordou em examinar Debra.
Há algum tempo venho adiando uma palestra na Africa do Sul, a convite do Conselho Sionista Sul-Africano, mas escrevi-lhes hoje recomendando que fizessem os preparativos.
Isso nos dará a desculpa de levar Debra à Cidade do Cabo. Diga-lhe que não tenho tempo suficiente para visitá-los em sua fazenda, mas insisto em vê-la.
Posteriormente lhe informarei as datas.
A carta revelava o caráter do remetente, brusca e em tom de comando, pressupondo aquiescência. Agora o assunto fugia ao controle de David. Não havia escapatória, embora existisse a chance de não dar certo... Ele viu-se desejando isso, e sentiu-se mal com o próprio egoísmo. Virou o papel, e no verso descobriu uma simulação de carta do general mencionando seus planos para Debra. Era engraçada a mudança de estilo de Brig. de tal forma que David pudesse lê-la para Debra sem maiores problemas.
Debra ficou radiante quando ele lhe leu a carta, fazendo-o experimentar uma certa dor de consciência pela farsa.
- Será maravilhoso encontrá-lo de novo. Será que mamãe virá com ele?
- Ele não disse, mas eu duvido.
David leu-lhe as cartas dos Estados Unidos em ordem cronológica. As duas primeiras eram comentários editoriais sobre Queimando forte e foram colocadas de lado para resposta posterior. A terceira trazia novidades.
A United Artists queria filmar Um lugar de nós mesmos e estava jogando pesado na opção de doze meses contra a compra dos direitos e pequena porcentagem nos lucros. No entanto, se Debra fosse para a Califórnia e escrevesse o roteiro, Bobby Dugan achava que poderia fazer um pacote de um quarto de milhão de dólares por tudo. O agente pedia que ela ponderasse sobre o fato de que até os romancistas conceituados raramente eram convidados a escrever o próprio roteiro. Portanto, era uma oferta que não devia ser desprezada.
- Quem precisa de pessoas? - Debra riu, mal disfarçando a expressão de desejo. - Sobrou champanhe daquela caixa, Morgan? Creio que devemos celebrar, você não acha?
- Do jeito que você está indo, preciso manter um belo estoque em casa - ele replicou, aproximando-se do refrigerador a gás. Quando serviu a bebida, completou: - Precisamos pensar seriamente em ir para Hollywood.
- O que há para pensar? Nós pertencemos a este lugar.
- Não, vamos esperar um pouco antes de responder.
- O que você quer dizer com isso?
- Vamos dar um tempo até a chegada de Brig.
- Por quê? A vinda dele faz alguma diferença?
- Não se trata disso. Apenas que é uma decisão importante, e o tempo para a escolha é arbitrário.
- Besederl - ela concordou, erguendo a taça em um brinde. - Eu te amo.
- Eu te amo - David murmurou, feliz por ela ter tantas estradas para escolher.
Tiveram três semanas antes do encontro com Brig na Cidade do Cabo. David aproveitou bem cada hora, antecipando as possibilidades de expulsão de seu Éden particular.
Foram dias felizes, onde a natureza parecia programada para darlhes o que possuía de melhor. As boas chuvas caíam com regularidade, sempre começando à tarde, após uma manhã de nuvens altas e ar pesado. Ao pôr-do-sol, os relâmpagos brincavam através das nuvens cor de bronze. Então, no escuro, enquanto eles estavam enlaçados, os trovões golpeavam como martelos e os relâmpagos transformavam a janela do quarto em um quadrado de luz branca. A chuva chegava com o barulho do fogo selvagem e de patas que corriam, mas, com David a seu lado, Debra não tinha medo.
Nas manhãs claras e frescas, as árvores lavadas e as folhas limpas reluziam à luz do sol matinal, e o solo estava escurecido pela água e cheio de poças.
As chuvas trouxeram vida e excitação para as coisas selvagens, e a cada dia havia pequenas descobertas, visitantes inesperados e ocorrências estranhas.
As águias pescadoras retiraram seus dois filhotes do ninho na cabeceira dos lagos, e os ensinaram a empoleirar-se no galho pelado que os suportava. Ficavam sentados lá, dia após dia, parecendo criar coragem. Os pais aparentavam frenesi em sua função de ensinar e preparavam-se para o grande momento do vôo.
Então, certo dia, enquanto David e Debra tomavam o café da manhã na varanda, ele ouviu o coro triunfante das águias. Olhou para cima e avistou as quatro silhuetas escuras, as asas abertas projetadas contra o azul profundo do céu. Sentiu-se parte daquele momento de conquista. As aves ganhavam altura e afinal desapareceram em direção ao local onde passariam o outono, no rio Zambézi, três mil quilómetros ao norte.
No entanto, ocorreu um incidente naquele período que entristeceu a ambos. As aves tinham caminhado sete quilómetros em direção ao norte, atravessando as colinas até uma estreita planície na qual existiam dezenas de árvores de um tipo especial.
Um casal de águias marciais escolhera a mais alta delas para se estabelecer. A fêmea era uma ave jovem, mas o macho aparentava muito mais idade. Haviam iniciado a construção do ninho em uma forquilha bem alta, e o trabalho fora interrompido pela omissão de um macho solitário, um pássaro jovem, forte, orgulhoso e conquistador. David o observara rondando os limites do território. Ainda que evitasse sobrevoar o espaço aéreo definido pelo casal, escolhera um galho para pousar nas colinas, olhava para o casal e ganhava confiança para o confronto. O conflito iminente possuía para David uma fascinação particular, e ele torcia para o pássaro mais velho, que já iniciava o ritual de combate, lançando gritos de desafio de seu poleiro ou fazendo patrulhas ao longo do território que reclamava para si.
David fora à planície naquele dia, visando definir um local para o abrigo fotográfico que planejava montar, com vista para o ninho, e também por curiosidade pelo combate que estava prestes a acontecer. Parecia mais do que coincidência que tivesse escolhido o dia exato em que o combate ocorreu.
Ele e Debra passaram pela abertura entre as colinas e pararam para recuperar o fôlego em uma pequena elevação rochosa que dava vista para a planície. O campo de batalha estava à frente deles.
O pássaro mais velho estava no ninho, curvado, a cabeça enfiada nos ombros. David vasculhou os arredores com o binóculo, mas não viu sinal do invasor. Então voltou a conversar com Debra. Logo, porém, sua atenção foi atraída pelo comportamento da velha águia, que se lançou num vôo súbito e aparentemente sem sentido.
Então o invasor surgiu não se sabe de onde e soltou um grito de desafio. Ele escolhera a hora e o vetor de ataque com perícia, voando no céu limpo, invadindo, desafiando a velha águia a segui-lo.
David sentiu sua pele eriçar enquanto olhava o defensor ganhar altura.
Rapidamente, e um tanto ofegante, ele descreveu a cena para Debra, que também simpatizava com o velho pássaro.
O pássaro jovem planava em círculos, empinando a cabeça para olhar o adversário que se aproximava.
- Lá vai ele! - a voz de David demonstrou tensão quando o atacante iniciou o mergulho.
- Eu posso ouvi-lo - disse Debra, atenta ao barulho das asas.
- Quebre para a esquerda! Agora! - David gritava para a velha águia como se estivesse voando como seu artilheiro.
Pareceu que a ave o escutou, pois fechou as asas e escapou da linha de ataque com uma única curva, de modo que o atacante passou ao largo, as garras ferindo o ar. Sua velocidade arremeteuo à base da planície.
O velho pássaro fez uma manobra e mergulhou com as asas meio armadas atrás do adversário. Em uma tocada, com a perícia do veterano, ele conseguira a vantagem.
- Pegue-o! - David gritou. - Pegue-o quando ele virar! Agora!
O invasor estava para bater no topo das árvores, a uma velocidade mortal, mas abriu as asas para interromper a queda, virando desesperadamente para evitar o mergulho do inimigo. Naquele momento, ficou vulnerável, e a velha águia continuou em seu encalço, com as garras armadas. Sem diminuir a velocidade, atingiu-o no momento exato em que ele fazia a curva.
O barulho do choque chegou nítido aos observadores na colina. Foi como uma explosão, jogando penas para todos os lados - pretas, das asas, e brancas, do peito. As aves rolaram, com as asas enroscadas, atingiram os galhos mais altos de uma das árvores, parando afinal em uma forquilha, um amontoado de penas e asas.
Conduzindo Debra através do chão irregular, David desceu a colina e alcançou a árvore.
- Você pode vê-los? - Debra perguntou, ansiosa, enquanto ele focava o binóculo na dupla de combatentes.
- Estão presos um no outro. O velho cravou suas garras até o fim nas costas dele. Não pode soltá-lo.
Os gritos de raiva e agonia ecoavam pela colina. A águia fêmea sobrevoava a árvore, acrescentando seus gritos ao som do conflito.
- O pássaro jovem está morrendo. - David estudava-o com o binóculo. Via gotas de sangue pingarem do bico e mancharem o peito branco.
- E o velho? - Debra quis saber, mostrando preocupação.
- Não pode abrir as garras. Elas se travam automaticamente tão logo uma pressão é aplicada, e ele não poderá se soltar. Também vai morrer.
- Você não pode fazer nada? Não pode ajudá-lo?
Paciente, ele tentou explicar-lhe que os pássaros estavam a vinte e cinco metros do solo. O caule daquela árvore não tinha galhos nos primeiros cinco metros. Levaria horas para chegar até lá, e então seria tarde demais.
- Mesmo que alguém pudesse alcançá-los, querida, eles são criaturas selvagens, fortes e perigosas, com bicos e garras capazes de arrancar os olhos de um homem ou cortar a carne até o osso. A natureza não gosta de interferência em seus desígnios.
- Não há nada que possamos fazer?
- Sim, podemos voltar de manhã para ver se ele se livrou, e traremos uma espingarda, para o caso de ainda estar lá.
Ao amanhecer, voltaram ao local. O pássaro jovem estava morto, dependurado, mas o outro continuava vivo, preso pelas garras à carcaça do oponente, fraco e morrendo, mas ainda com os olhos faiscando. Ao ouvir as vozes, virou a cabeça e abriu o bico em um grito de desafio.
David carregou a espingarda. "Não será você sozinho, velho amigo", pensou enquanto disparava a arma. Sentiu-se como se estivesse destruindo uma parte de si mesmo com o tiro, algo que lhe anuviou os dias de sol que se seguiram.
Ao final daquele período, ele e Debra preenchiam o tempo livre andando por Jabulani, visitando os lugares preferidos e procurando manadas ou animais solitários, como se estivessem se despedindo de velhos amigos. Passavam um entardecer perto dos poços até que o sol se escondesse no horizonte. Quando os mosquitos começavam a incomodá-los, voltavam de mãos dadas para a sede.
Arrumaram as malas à noite e deixaram na varanda, prontas para a partida na manhã seguinte. Então tomaram champanhe ao lado da churrasqueira, o que lhes melhorou o humor, fazendo-os rir na pequena ilha de fogo no oceano da noite africana. Mas para David não havia eco para as risadas - ele estava invadido pela sensação de fim, de algo que se acabava e de um novo começo.
Quando decolaram na manhã seguinte, ele deu duas voltas sobre a propriedade, subindo lentamente. Os riachos brilhavam como metal entre as colinas. A terra estava verde e viçosa, muito diferente das do hemisfério norte. Os empregados, parados no pátio da sede, protegiam os olhos do sol e acenavam para eles.
- Cidade do Cabo, aqui vamos nós - disse David, alterando o curso do voo.
Hospedaram-se no hotel Mount Nelson, preferindo a elegância antiga e os espaçosos jardins com palmeiras às modernas estruturas de vidro e concreto sobre as rochas do Sea Pont. Ficaram na suite por dois dias, esperando a chegada de Brig. David se desacostumara às multidões e tinha dificuldade em aceitar os olhares inquisitivos e os murmúrios de pena que os acompanhavam.
Brig apareceu na data marcada. Bateu à porta da suite e foi logo entrando com seu modo agressivo e determinado. Estava ereto, firme e bronzeado como sempre. Depois de abraçar a filha, estendeu a mão para David, aparentemente olhando-o de uma maneira diferente.
Enquanto Debra tomava banho e se vestia para a noite, o general convidou-o a ir à sua suite e serviu-lhe uma dose de uísque sem perguntar por sua preferência.
- Friedman comparecerá à palestra. Vou apresentá-lo a Debn e deixar que conversem um pouco. Ele se sentará ao lado dela na mesa do jantar. Isso nos dará oportunidade de persuadi-la a se submeter a um exame...
- Antes de prosseguirmos, senhor - David interrompeu-o -, quero sua garantia de que em nenhum momento será dito a Debra que ela poderá recuperar a visão.
- De acordo.
- Em nenhum momento mesmo. Ainda que Friedman determine a necessidade de uma cirurgia, deve ser dito que é por uma outra razão qualquer...
- Não entendo as coisas assim. Se isso foi tão longe, devemos contar para Debra. Não seria justo...
David não o deixou terminar, indignado.
- Deixe-me dizer o que é justo. Eu a conheço melhor do que ninguém, sei o que ela sente e o que está pensando. Se lhe for sugerida a chance de enxergar, estará criado para ela o mesmo dilema no qual estive preso desde que essa possibilidade surgiu pela primeira vez. Eu a pouparia disso.
- Eu não o compreendo - Brig disse secamente. A hostilidade entre os dois era tangível e parecia encher o quarto.
- Então eu explico. Sua filha e eu alcançamos um grande estado de felicidade.
Brig balançou a cabeça assentindo.
- Posso aceitar sua palavra sobre isso, mas é uma situação artificial, sem relação com a realidade. É um sonho.
David sentiu-se prestes a explodir de raiva. Achava uma ofensa que alguém falasse de Debra e de sua vida naqueles termos, mas ao mesmo tempo entendia a justificativa.
- O senhor pode dizer isso. Mas para mim e Debra é muito real. É algo muito valioso. - Depois de uma pequena pausa, continuou: - Para lhe ser sincero, relutei muito antes de admitir que havia uma chance para Debra, e que eu poderia escondê-la para meu egoísmo e felicidade.
- Ainda não faz sentido. Por que a recuperação da vista de Debra iria afetá-lo?
- Olhe para mim...
Brig encarou-o com ar feroz, esperando alguma provocação, mas logo se deu conta de que a intenção do genro fora outra. Então, pela primeira vez, reparou na cabeça deformada, no rosto que era um arremedo de formas humanas. Só então ele entendeu a posição de David, pois antes via apenas o lado do pai. Baixando a vista, ele virou-se para encher o copo.
- Se eu puder devolver-lhe a visão, eu o farei. Mesmo que me seja um presente caro, ela deve tê-lo. - David sentiu sua voz fraquejar. - Mas eu creio que ela me ama o suficiente para descartar isso, se lhe for dado a escolher. Não gostaria que ela fosse torturada por essa escolha.
Brig tomou um gole de uísque, bebendo de uma vez metade do drinque.
- Como queira. - Pode ter sido impressão de David, porém ele seria capaz de jurar que havia um toque de emoção na voz de Brig.
- Obrigado, senhor. - David pôs o copo intacto na mesa. - Se o senhor me der licença, devo trocar de roupa agora.
- David... - Brig dirigiu-lhe um sorriso gentil e embaraçado. - Vai dar tudo certo. Você vai ver.
A recepção foi na sala de banquetes do hotel Heerengracht. Enquanto subiam juntos no elevador, Debra pareceu perceber o medo de David e apertou-lhe o braço.
- Fique perto de mim esta noite. Vou precisar de você. David sabia que aquilo fora dito para distraí-lo e ficou grato.
Os dois seriam uma atração à parte na reunião. Ainda que a maioria dos convidados tivesse sido preparada, seria uma provocação difícil de suportar.
Debra estava com os cabelos soltos e esvoaçantes, e o rosto bronzeado pelo sol. Usava um vestido verde comprido, os braços e os ombros desnudos, deixando à mostra a pele perfeita. Estava pouco maquiada, apenas um leve toque nos lábios. A expressão serena dos seus olhos realçava a graça de seu andar e infundia coragem em David para enfrentar o salão cheio de gente.
Era um encontro elegante, as mulheres usando sedas e jóias caras, os homens em ternos escuros, exibindo a pose de quem possui poder e riqueza. Mesmo assim Brig se destacava, apesar das roupas civis, por seu porte ereto e rijo quando os outros eram gordos e enfatuados.
Ele apresentou-lhes Reuben Friedman casualmente. Era um homem de baixa estatura, bem constituído, os cabelos curtos e acinzentados, rentes ao crânio. David gostou dos olhos claros e da prontidão do sorriso dele. Debra também foi envolvida pela simpatia que ele emanava e sorriu ao ouvir o timbre de sua voz.
Durante o jantar, ela perguntou a David como ele era. Riram juntos quando ele respondeu que parecia um urso Koala.
Todos conversavam animadamente antes que o prato principal fosse servido. A esposa de Friedman, uma mulher magra, com óculos de aros, nem bonita nem feia, mas com o jeito amistoso e sincero do marido, juntou-se à conversa.
- Por que não almoçam conosco amanhã? - ela convidou. - Se puderem aguentar uma ninhada de crianças choronas...
- Não temos o hábito - Debra replicou, embora David percebesse sua hesitação ao virar para ele. - Podemos?
Ele concordou e logo todos estavam rindo como velhos amigos. Menos David, que estava silencioso e retraído, sabendo que tudo não passava de um subterfúgio. O coro de vozes e o bater dos pratos o incomodavam. Ele ansiava pelo silêncio da noite na savana, e pela solidão... mas com Debra ao seu lado.
Quando o mestre-de-cerimônias se levantou para apresentar o orador, David sentiu-se aliviado. A provação estava chegando ao fim e em breve ele poderia sair com Debra e se esconder dos olhares curiosos.
O discurso introdutório foi suave e profissional, com algumas piadas que provocaram risinhos, mas sem nenhuma essência; cinco minutos depois ninguém lembraria do que fora dito.
Depois Brig levantou-se e olhou em volta com certo desprezo olímpico - o guerreiro e os homens normais. Todos ali eram pessoas ricas e poderosas mas pareciam gostar da situação. Estavam diante de alguém importante, um figurão, o que lhes dava uma sensação de confiança, um ponto onde seus espíritos poderiam apoiar-se. Ele era um deles, embora não o fosse. Parecia um depositário da força e do orgulho da raça.
Até David surpreendeu-se com a força que emanava do velho guerreiro. Sua presença imponente dominava a audiência. Ele parecia imortal, invencível, e as emoções de David se liberaram, seu pulso se acelerou e ele sentiu-se levado pela situação.
- ... Tudo isso tem um preço a ser pago. Parte desse preço é a vigilância constante, a prontidão permanente. Cada um de nós está pronto a qualquer momento para responder ao chamado da defesa do que é nosso, e cada um deve fazê-lo "em questionar o sacrifício requerido, que pode ser a própria vida, ou algo tão caro quanto...
David percebeu que Brig estava falando com ele, e que ambos se encaravam através da sala. O general lhe enviara uma mensagem de força e de coragem, porém foi mal interpretada pelos presentes.
Eles tinham visto a silenciosa troca de olhares entre os dois. E muitos sabiam que o desfiguramento de David e a cegueira de Debra eram produtos da guerra. Entendendo errado a referência que Brig fizera ao sacrifício, um dos presentes começou a aplaudir. De imediato ouviram-se palmas aqui e ali. O som cresceu rapidamente e ecoou como um trovão. Todos se viraram para o casal enquanto aplaudiam. Logo, as cadeiras foram arrastadas pelos homens e mulheres à medida que se levantavam, sorrindo e batendo palmas.
Debra não sabia ao certo o que estava acontecendo até que sentiu a mão desesperada de David na sua.
- Vamos sair daqui, rápido. Todos estão olhando para nós. - Trémulo, ele entrava em desespero ao ser o centro das atenções. - Venha, vamos embora.
Debra levantou-se, o coração partido de dor. Seguiu-o enquanto a torrente de aplausos caía sobre ele como pancadas de um inimigo. Mesmo ao chegar à própria suite, ele ainda tremia.
- Aquele bastardo... - murmurou, servindo-se de uma dose de uísque. - Por que ele fez isso conosco?
- David... ele não queria nos ofender. Eu sei que ele tinha boas intenções. Tentava dizer que estava orgulhoso de você.
David sentiu vontade de desaparecer, de encontrar alívio para tudo no refúgio de Jabulani. A tentação de dizer-lhe "venha" e conduzi-la para lá, sabendo que ela o faria imediatamente, era tão forte que por pouco não o derrotou.
O uísque não lhe ofereceu nenhum conforto. Deixou o copo no balcão do barzinho e voltou-se para Debra.
- Sim, meu querido, sim - ela murmurou, oferecendo-lhe os lábios.
Ali estava uma mulher orgulhosa, uma mulher satisfeita em lhe proporcionar paz de espírito. Como sempre, ela estava pronta para acompanhá-lo por sobre a tempestade, usando as asas selvagens do amor.
David acordou no meio da noite. A luz do luar entrava pelas venezianas e iluminava o rosto adormecido de Debra. Após algum tempo, ele acendeu o abajur. De imediato ela se remexeu no travesseiro. Com um leve suspiro, afastou com a mão dorminhoca os cabelos das faces. David sentiu um calafrio diante da perda iminente. Tinha certeza de que não fizera o menor movimento na cama ao acender a luz. O que a perturbara, sem sombra de dúvida, fora a própria luz...
A residência dos Friedman revelava sua posição no mundo. Construída sobre o mar, tinha alamedas que iam até a praia e grandes árvores circundando a piscina, próxima de um belo caramanchão com churrasqueira. Parte dos filhos do casal tinha saído especialmente para a ocasião, talvez para a fazenda de algum amigo, mas ainda haviam ficado os dois mais jovens. Estes olharam ansiosos para David, mas com uma palavra firme da mãe foram para a piscina.
Brig fora proferir outra palestra, de modo que os dois casais logo ficaram à vontade. O fato de Reuben ser médico facilitava as coisas para David e Debra, que ressaltou esse detalhe quando a conversa girou em torno da saúde de ambos.
- Você se incomoda de falar sobre isso? - o anfitrião perguntou, solícito.
- Não com você. Pouca gente se incomoda em tirar a roupa na frente de um médico.
- Não faça isso, querida - alertou-a Marion. - Não na frente de Ruby. Olhe para mim, seis filhos! - E todos riram.
Reuben saíra cedo naquela manhã e pegara várias lagostas grandes em uma lagoa de águas cristalinas que ele proclamava ser sua área particular de pesca. Ele as enrolara em folhas frescas de alga e as assara no carvão até ficarem vermelho-escarlate.
- Me digam com sinceridade se já provaram uma lagosta melhor - ele dizia enquanto servia aos seus convidados.
De fato, os dois deleitavam-se com o prato e com o vinho branco que o acompanhava. Demorou um pouco até que Reuben abordasse o verdadeiro motivo do encontro. Ele estava servindo o copo de Debra, quando perguntou:
- Faz quanto tempo que seus olhos foram examinados pela última vez, querida? - Em seguida segurou-lhe o queixo e olhou dentro dos seus olhos. David ficou com os nervos à flor da pele.
- Desde que deixei Israel. Mas tirei algumas radiografias quando estive no hospital.
- Alguma dor de cabeça? - Quando ela assentiu, Reuben continuou: - Podem me criticar à vontade, mas eu acho que você deve se submeter a exames periódicos. Dois anos é muito tempo, e você tem um objeto estranho alojado no crânio.
- Nunca pensei nisso. - Debra franziu ligeiramente o cenho e tocou a cicatriz em sua testa.
David sentiu a consciência pesar ao tomar parte da farsa.
- Talvez seja uma boa ideia, querida. Por que não deixa Ruby examiná-la enquanto estamos aqui? Só Deus sabe quando teremos outra oportunidade.
- Ah, David, sei que você está ansioso por voltar para casa; e eu também.
- Um dia ou dois não faz diferença. E agora que pensamos no assunto, vai nos deixar preocupados.
- Quanto tempo demoraria? - Debra perguntou ao médico.
- Um dia. Eu a examino pela manhã e à tarde você tira uma radiografia.
- Quando poderia atendê-la? - David perguntou, a voz artificial, pois sabia que a consulta fora marcada cinco semanas antes.
- Posso atendê-la imediatamente; amanhã, mesmo que tenhamos de fazer algum arranjo. Seu caso é muito especial.
David tomou a mão de Debra.
- Tudo bem, querida?
- Combinado, David.
O consultório de Ruby ficava no centro médico que se erguia no porto e dava vista para a baía, onde o vento sudoeste tingia de branco o topo das nuvens e enchia o horizonte de nuvens cinza como fumaça. As salas eram decoradas com gosto e cuidado: duas paisagens originais de Pierneef e bonitos tapetes. A recepcionista parecia uma atendente do Clube Playboy, sem as orelhas e a cauda de coelho. Ficava claro que o dr. Friedman aproveitava as coisas boas da vida.
Apesar de estar à espera deles, a recepcionista arregalou os olhos, alarmada, ao fitar o rosto de David.
- O doutor vai recebê-los imediatamente. Podem entrar, por favor.
Ruby parecia diferente sem a próspera barriga à mostra sobre o calção de banho, mas cumprimentou-os de maneira calorosa.
- David pode ficar conosco? - ele perguntou a Debra num tom conspirativo.
- Sim, claro.
Após o habitual histórico clínico, que Ruby reviu sem demonstrar que já o conhecia, passaram para a sala de exame. O médico ajustou a cadeira para que Debra se sentasse confortavelmente e procedeu ao exame detalhado de cada olho.
- Seus olhos são saudáveis - finalmente ele deu sua opinião. - E muito bonitos também. O que você acha, David?
- Assino embaixo.
Então Ruby colocou-lhe alguns eletrodos nos braços, ligados a um equipamento eletrônico complicado.
- Eletrocardiograma? - David brincou.
- Não, é uma pequena invenção minha. Tenho muito orgulho dela, mas na realidade é apenas uma variação do velho detector de mentiras.
- Vai me perguntar que horas são? - Debra quis saber.
- Não. Vamos acender luzes sobre você e observar que tipo de reação subconsciente você tem.
- Mas já sabemos qual é - Debra disse, com voz fria.
- Talvez. É apenas uma rotina de trabalho. - Ruby virou-se para David. - Fique aqui, por favor. As luzes são muito fortes e você não vai gostar de olhar para elas.
Logo o médico ajustou a máquina. Um rolo de papel de impressão desenrolou-se lentamente sob uma caneta que se estabilizou quase que de imediato em um padrão definido. Em uma tela de vidro, um ponto verde repetia o mesmo ritmo, deixando para trás uma trilha fraca como a cauda de um cometa. Lembrou a David a tela do radar de interceptação do Mirage. Ruby desligou as luzes, mergulhando a sala na escuridão.
- Está pronta, Debra? Olhe para a frente, por favor, e abra os olhos.
Uma luz azulada encheu o ambiente, fazendo com que o ponto na tela saísse do padrão, subisse bastante, para então retornar ao velho ritmo. Debra vira a luz piscar, mesmo que não soubesse disso; o pulso de luz fora registrado em seu cérebro e a máquina gravara sua reação instintiva.
O jogo com a luz prosseguiu por vinte minutos, mudando sempre de intensidade e de frequência. No final, Debra perguntou:
- Passei?
- Você foi ótima e fez tudo como deveria - declarou o médico.
- Posso ir agora?
- David vai levá-la para almoçar, mas à tarde vocês devem ir ao radiologista. A recepcionista marcou para as duas e meia. - Polidamente Ruby evitou as tentativas de David para encontrá-lo a sós. - Você saberá assim que eu tiver as radiografias. Este é o endereço do radiologista. - Deu-lhe o cartão. - Venha me ver, sozinho, amanhã às dez.
Antes de sair da sala, David encarou Ruby por um momento, tentando captar algo mais, porém o médico apenas deu de ombros num gesto de incerteza.
Brig encontrou-os para o almoço na suite do Mount Nelson, pois David prefiria fugir ao desconforto dos ambientes públicos. O general expôs um charme que mantinha escondido, como se sentisse que precisavam de sua ajuda, e contou piadas sobre a infância de Debra e os primeiros dias da família após deixarem os Estados Unidos. O tempo passou tão depressa que por pouco não se atrasaram para o compromisso.
- Vou usar duas técnicas diferentes com você, querida... David perguntou-se o que levava os homens com mais de quarenta anos a tratá-la como se ela tivesse menos que doze.
- ... primeiro vamos fazer quatro chapas que chamamos de "3 x 4", de frente, de lado, de costas e de cima. - O radiologista tinha as faces vermelhas, cabelos grisalhos, ombros de um lutador profissional. - Você não precisa nem tirar a roupa. - Ele riu, embora parecesse arrependido da brincadeira. - Depois disso, bateremos uma série contínua de chapas de sua cabeça. O processo se chama tomografia. Sua cabeça ficará imóvel e a câmara descreverá um círculo completo em torno dela, focada no ponto onde está o problema. Vamos descobrir tudo o que está escondido nessa bela parte do seu corpo.
- Espero que não fique chocado, doutor - Debra disse, deixando o homem atordoado por um momento. Em seguida ele soltou uma gargalhada.
Foi uma sessão longa e tediosa. Assim que voltaram ao hotel, Debra não se conteve e disse:
- Vamos voltar para casa, David, tão logo seja possível.
- Está bem - ele concordou.
David não queria, mas Brig insistiu em acompanhá-lo na visita a Ruby Friedman na manhã seguinte. Era uma das únicas vezes em que mentia para Debra, pois dissera que iria encontrar os contadores do fundo Morgan. Ela ficara com seu biquini verde, deitada ao lado da piscina do hotel, bronzeada, adorável à luz do sol. Ruby fez com que se sentassem do outro lado da escrivaninha e foi direto ao assunto.
- Cavalheiros, temos um problema, um maldito problema. Vou mostrar-lhes as radiografias para ilustrar o que tenho a dizer. - Deslizou com a cadeira até o dispositivo para observação de chapas e ligou-o. - Aqui estão as chapas que Edelman me mandou de Jerusalém, na qual podem ver o fragmento da granada. - Assinalou a farpa triangular repousando na entranha óssea. - E aqui está o trauma do quiasma óptico. O seccionamento e esmigalhamento do osso são bem evidentes. O diagnóstico original de Edelman, baseado nessas chapas e na inaptidão para definir luzes ou formas, parece se confirmar. O nervo óptico está danificado. - O médico soltou as chapas e colocou outras no aparelho. - Bem, aqui está o segundo jogo de chapas, as tiradas ontem. Observem como o fragmento da granada foi calcificado. - O contorno da farpa estava arredondado pelo crescimento do osso em volta. - Isso é bom e esperado. Mas aqui no canal do quiasma observamos certos detalhes que permitem uma gama enorme de interpretações. Pode ser um tumor, intercrescimento ósseo, ou outro tipo de intercrescimento maligno ou benigno. - Ruby pôs outro jogo de chapas no aparelho. - Finalmente, esta é a chapa obtida pela tomografia, para estabelecer os contornos dessa excrescência. Parece se adaptar ao formato do canal do quiasma, exceto aqui. - Ruby mostrou uma falha arredondada no extremo superior do intercrescimento. - Esta pequena mancha corre no sentido do eixo principal do crânio, mas é dobrada para cima com o formato de "U" invertido. É possível que seja a descoberta mais significativa de todo o exame.
- Não entendi nada - Brig foi contundente. Ele não gostava de sentir-se subjugado pelos conhecimentos específicos de alguém.
- Não, claro que não - Ruby respondeu cordial. - Estou apenas formando uma base para as explicações que se seguirão. - Ele voltou para a escrivaninha. - Agora vamos às conclusões. Não há dúvida de que existem funções no nervo óptico, que envia impulsos ao cérebro. Pelo menos uma parte dele continua intacta. A questão é saber quanto, e até que ponto pode voltar a funcionar. É possível que o fragmento da granada tenha cortado parte do nervo, cinco fios de uma corda de seis, ou quatro de três. Não conhecemos a extensão, mas sabemos que estragos desse tipo são irreversíveis. O que pode ter restado é o que Debra tem agora, quase nada. - Ruby fez uma pausa. Os dois homens o encaravam com ansiedade, inclinados para a frente. - Esse é o pior lado, e, se for verdade, Debra está cega e permanecerá assim. No entanto, é possível que o nervo óptico tenha sofrido pouco estrago, ou nenhum...
- Então por que ela está cega? - David interrompeu-o, sentindo-se enganado, conduzido por palavras, aguilhoado como o touro de tanto tempo atrás. - Não podem ocorrer as duas coisas.
Pela primeira vez Ruby viu além da máscara que deformava o rosto de David. Compreendeu a dor que lhe estava infligindo, notou o sofrimento em seus olhos.
- Desculpe-me, David. Deixei-me levar pelos fatos intrigantes do caso, vendo-o mais pelo meu ponto de vista académico do que pelo seu. Vamos direto ao assunto. Você se recorda da falha na borda do quiasma? Bem, acredito que o nervo em si foi torcido para fora de sua posição, pinçado e espremido pelos fragmentos ósseos e pelo fragmento de metal, como uma mangueira de jardim, a tal ponto que não mais podia transmitir impulsos ao cérebro.
- As pancadas na cabeça... - David sugeriu.
- Sim. Aqueles golpes podem ter sido suficientes para alterar a posição dos fragmentos ou do próprio nervo, de maneira a permitir a passagem de uma quantidade mínima de impulsos ao cérebro. Voltando à mangueira de jardim, o movimento pode permitir a passagem de um pouco de água mas ainda impede qualquer fluxo significativo. Mas uma vez que a torção é desfeita, o fluxo total pode ser restabelecido.
Houve um longo silêncio na sala, cada um considerando a importância do que tinha ouvido.
- Os olhos... estão saudáveis? - Brig quis saber.
- Estão perfeitos - garantiu o médico.
- Quais seriam os próximos passos? - David perguntou em voz baixa.
- Só há um caminho; temos de atingir o local do trauma.
- Operar?
- Sim.
- Abrir o crânio de Debra?
Ruby assentiu.
David estremeceu com a lembrança do bisturi. Ele tivera o rosto mutilado, e a dor naqueles olhos cegos...
- Não, não vou deixá-lo cortá-la. Não vou deixá-lo arruiná-la como fizeram comigo...
- David! - a voz de Brig chamou-o à razão.
- Entendo como você se sente - disse Ruby gentilmente. - Mas não haveria desfiguramento. A cicatriz ficaria coberta pelos cabelos, e de qualquer modo a incisão será pequena.
- Não quero que ela sofra mais - a voz de David ainda falseava. - Ela já sofreu o suficiente, vocês não vêem...
- Estamos falando em devolver a visão para ela - interveio Brig num tom frio. - Um pouco de dor é um preço baixo para pagar por isso.
- Será uma operação simples, David. Menos dolorosa que de apêndice.
- E quais são as chances?
- É impossível dizer.
- Oh, Deus, como posso concordar se não sei o que pode acontecer?
- Então vou ser franco. Há uma possibilidade, não probabilidade, de que ela recupere uma parcela da visão. - Ruby escolheu cuidadosamente as palavras. - E há a possibilidade remota de que a recupere por completo, ou quase totalmente.
- Isso é o melhor que pode acontecer - David concordou. - E o pior?
- O pior seria não ocorrer nenhuma mudança. Ela teria sofrido desconforto e dor em vão.
David levantou-se, foi até a janela e ficou olhando para a baía onde os navios-tanque estavam atracados.
- Você sabe qual deve ser a escolha, David. - Brig estava decidido a não permitir ponderações inúteis.
- Está bem - ele disse, virando-se para encará-los. - Mas sob uma condição: Debra não deve saber que há uma chance de recuperar a visão.
Ruby Friedman sacudiu a cabeça.
- Precisamos dizer a ela.
- Por que não? - indagou Brig. - Por que você não quer que ela saiba?
- Você sabe por quê - David respondeu sem olhar para ele.
- Como convencê-la a internar-se sem saber da verdade? - Ruby perguntou.
- Ela tem tido dores de cabeça; diremos que há um intercrescimento, que tem de ser removido. É verdade ou não é?
- Não. - Ruby abanou a cabeça. - Eu não diria isso a ela. Não posso enganá-la.
- Então eu direi. E lhe comunicarei o resultado após a operação. Bom ou mau. Serei eu quem dirá, ficou claro? Concordamos com isso?
Após um momento, os dois outros assentiram com as condições de David.
David encomendou uma cesta de piquenique e providenciou uma bolsa térmica com duas garrafas de champanhe. Ansiava pela sensação de estar no espaço, mas precisava concentrar toda a sua atenção em Debra. Assim, descartou o impulso de levá-la para voar. Em vez disso, pegaram o teleférico para os rochedos da montanha Mesa. Chegando ao topo, pegaram uma trilha no platô até um local isolado à beira do penhasco onde se sentaram, bem acima da cidade e do oceano.
Os barulhos urbanos subiam setecentos metros até eles, fracos e desconexos com as lufadas de vento, ou ecoando nos desfiladeiros rochosos - a buzina de um automóvel, o engate de uma locomotiva, o grito de um orador islâmico, a algazarra distante de crianças na hora do recreio... ecos da humanidade que pareciam aumentar a solidão deles. A brisa que soprava do sudeste era pura, em contraste com o ar da cidade.
Tomaram champanhe sentados lado a lado, enquanto David hesitava em falar. Ele estava prestes a abrir a boca, quando Debra se antecipou.
- É bom estar viva e apaixonada, querido. Nós temos muita sorte. Você não acha?
Ele resmungou algo incompreensível, depois perguntou bruscamente:
- Se pudesse, você mudaria alguma coisa? Ela riu.
- Claro, ninguém está absolutamente contente. Eu mudaria um bocado de coisas, menos você e eu.
- O que você mudaria?
- Eu gostaria de escrever melhor, por exemplo. Novamente o silêncio. Que afinal David quebrou.
- O sol está se pondo rapidamente...
- Conte-me - ela pediu.
David não encontrou palavras para descrever as cores que faiscavam por cima das nuvens, o modo como o oceano brilhava com os últimos raios dourados. Preferiu entrar de chofre no assunto que o perturbava.
- Hoje eu estive com Ruby Friedman.
Debra ficou imóvel como um animalzinho selvagem ao sentir o cheiro de um predador.
- É ruim? - perguntou depois de um longo tempo.
- Por que está perguntando isso? - ele replicou.
- Você me trouxe aqui para me contar, e está com medo.
- Não.
- Sim, sinto isso bem claro. Você está com medo por mim.
- Não é verdade. Só estou um pouco preocupado.
- Conte-me.
- Há um pequeno intercrescimento. Não é perigoso, ainda. Mas o médico acha que algo deve ser feito... - ele prosseguiu com a explicação que preparara cuidadosamente, sem ser interrompido.
- É necessário, absolutamente necessário? - Debra questionou.
- Sim.
Ela assentiu, confiando plenamente nele.
- Não se atormente, meu querido, tudo ficará bem. Você vai ver, eles não podem nos atingir. Vivemos em um lugar particular onde não podem nos atingir.
- Espero que tudo saia bem. - Ele puxou-a para perto de si.
- Quando vai ser?
- Você será internada amanhã e operada no dia seguinte.
- Tão rápido?
- Achei melhor acabar logo com isso.
- Sim, assim é melhor.
David tomou um gole de champanhe. Estava apavorado, apesar de ter demonstrado o inverso.
- Vão abrir minha cabeça?
- Sim, mas não há motivo para preocupação.
- Certo, eu confio em você.
David acordou durante a noite e percebeu que estava só, que Debra não se encontrava a seu lado. Deslizou rapidamente para fora da cama e foi até o banheiro. Estava vazio. Seguiu até a sala de estar da suite e acendeu a luz.
Ao ouvir o clique do interruptor, ela virou a cabeça para o outro lado, mas não tão rápido a ponto de esconder as lágrimas que rolavam por suas faces. David aproximou-se dela.
- Querida...
- Eu não consegui dormir - ela respondeu.
- Está tudo bem. - David ajoelhou-se ao lado do sofá em que ela estava.
- Tive um sonho. Havia um lago de águas claras e você estava nadando, olhando para mim e me chamando. Vi seu belo rosto claramente, bonito e sorrindo. - David sentiu um nó na garganta. Ela o vira no sonho como ele era, vira o belo David, não a coisa monstruosa que ele era agora. - Então, de repente, você afundava, seu rosto desaparecia... Foi um sonho terrível. Eu gritava e tentava te seguir, mas não podia me mover e você já estava no fundo. A água ficou escura, e eu acordei com a escuridão na mente. Nada além das brumas da escuridão.
- Foi apenas um sonho - ele murmurou.
- David, se acontecer alguma coisa amanhã...
- Não vai acontecer nada!
- Bem, se acontecer, lembre-se de como éramos felizes. Lembre-se de que eu te amei.
O hospital de Groote Schuur localizava-se no Pico do Diabo, um lugar alto e cónico, separado do maciço da montanha Mesa por um desfiladeiro profundo. Fazia limites com uma floresta de pinheiros e com as encostas da propriedade que Cecil John Rhodes deixara para o país. Manadas de gamos e antílopes pastavam tranquilamente nas clareiras.
Era um enorme complexo de edifícios brancos, blocos grandes e de aparência sólida, todos cobertos com telhas vermelhas.
Ruby Friedman usara toda a sua influência para conseguir um quarto individual para Debra. A irmã que cuidava do andar recebeu-a com deferência e a levou embora. David sentiu-se despojado e só, mas quando voltou para visitá-la naquela tarde, encontrou-a sentada na cama, vestindo o roupão atoalhado que ele lhe dera e cercada pelas flores que ele mandara.
- Que cheiro delicioso - Debra comentou. - É como se eu estivesse em um jardim.
Ela usava um turbante na cabeça, e seus olhos pareciam focalizados em algum ponto distante, dando-lhe um ar exótico e misterioso.
- Barbearam sua cabeça - David observou, com uma ponta de angústia. Não imaginara que ela também teria de sacrificar aqueles cachos sedosos. Era algo desagradável, e Debra também parecia sentir isso, pois em vez de responder disse-lhe que estava sendo bem tratada, que se esforçavam para que ela se sentisse confortável.
Brig acompanhava David e parecia pouco à vontade na medida em que sua presença os inibia. Foi um alívio quando Ruby Friedman chegou ao quarto.
- As irmãs me disseram que está tudo bem. Você não pode comer nem beber nada a não ser a pílula para dormir que eu prescrevi.
- Quando vou para a sala de cirurgia?
- Amanhã de manhã, às oito horas. Estou satisfeito porque o cirurgião será Billy Cooper. Foi uma sorte pegá-lo. Eu vou assisti-lo, é claro, e ele contará com uma das melhores equipes do mundo para auxiliá-lo.
- Ruby, você sabe que algumas mulheres ficam com os maridos quando vão ter filhos...
- Sim. - Ruby ficou surpreso com aquele comentário.
- David não poderia ficar comigo amanhã?
- Com todo o respeito que lhe devo, minha querida, você não vai ter um filho.
- Você não poderia facilitar as coisas para que David estivesse lá? - Debra fez uma expressão capaz de amolecer o mais duro dos corações.
- Sinto muito. É impossível... A não ser que fique na sala dos estudantes. De lá se tem uma visão melhor do que se estivesse na sala. Temos circuito fechado de TV.
Debra concordou imediatamente.
- Sinto-me mais tranquila sabendo que ele está por perto. Não gostamos de ficar separados. - Ela sorriu para onde pensou que ele estivesse, mas David mudara de lugar. Esse pequeno desencontro perturbou-o.
- Eu estarei lá - ele quis acrescentar "sempre", mas não o fez.
Apenas duas pessoas estavam na pequena sala de conferência que possuía duas filas semicirculares de cadeiras em volta do televisor: uma estudante de rosto bonito e um jovem alto, pálido e de dentes estragados. Ambos exibiam estetoscópios pendurados nos bolsos dos aventais brancos, com um descaso calculado. Após o primeiro sobressalto, eles ignoraram a chegada de David e voltaram a conversar no jargão médico.
- Está sendo feito um exploratório através do parietal.
- É isso que eu quero ver.
A garota acendeu um Gauloise. David sentiu-se incomodado, pois dormira pouco durante a noite e a fumaça irritava seus olhos. A cada instante ele consultava o relógio e imaginava o que estaria acontecendo com Debra naqueles últimos minutos, a limpeza do corpo, a colocação do avental, as agulhas para sedação e anti-sepsia.
Finalmente a tela acendeu-se e surgiu a imagem com uma vista de cima da sala de operação. No aparelho colorido, os aventais verdes das pessoas que se moviam em volta da mesa de cirurgia se confundiam com o verde das paredes. O microfone da câmara captava as poucas palavras que a equipe trocava entre si:
- Tudo pronto, Mike?
Uma sensação de enjoo tomou conta de David, que se arrependeu de não ter tomado o café da manhã.
- Certo - era a voz do cirurgião. - Estamos no ar?
- Sim, doutor - a irmã confirmou.
Então a voz do cirurgião assumiu um tom professoral.
- O paciente é uma mulher de vinte e seis anos. Com perda total da visão em ambos os olhos. Suspeita-se que a causa seja danificação ou constrição do nervo óptico, no quiasma ou perto dele. Esta é uma investigação cirúrgica do local. O cirurgião é o doutor William Cooper, assistido pelo doutor Reuben Friedman.
A medida que ele falava, a câmara movia-se sobre a mesa. Com certa surpresa, David deu-se conta de que estivera olhando para Debra sem o saber. Seu rosto e a parte inferior da cabeça estavam cobertos com panos esterilizados, só deixando à mostra a parte barbeada do crânio.
- Bisturi, por favor, irmã.
Quando Cooper fez a primeira incisão, David inclinou-se para a frente, as mãos apertando os braços da cadeira até que as juntas ficaram brancas. Logo, pequenos vasos sanguíneos começaram a jorrar. Uma aba de pele foi afastada, expondo o osso brilhante. David arrepiou-se quando o cirurgião pegou uma furadeira que lembrava a de um carpinteiro. Enquanto trabalhava, o médico continuava com seus comentários impessoais. Efetuou quatro furos no crânio, cada um em um dos cantos de um quadrado.
O estômago de David se contorceu quando o cirurgião enfiou a sonda de aço em um dos furos e manobrou-a até fazê-la reaparecer em outro furo. Uma serra fina foi passada entre os dois orifícios e ficou atravessada no crânio. Movimentando-a para a frente e para trás, Cooper serrava o osso. Ele repetiu a operação por quatro vezes, cortando os lados do quadrado, e quando retirou o pedaço, abriu-se uma espécie de portinhola no crânio de Debra.
David suava frio e sentia náuseas. Entretanto, a fascinação venceu o horror, na medida em que pôde ver a massa amorfa e pálida de matéria enclausurada em sua membrana, o cérebro de Debra. Resoluto, Cooper abriu um flap nessa membrana.
- Expusemos o lóbulo frontal, e será necessário deslocá-lo para explorar a base do crânio.
Trabalhando rápido, mas com cuidado e perícia, Cooper usou um retrator de aço parecido com uma calçadeira para afastar a massa encefálica. David experimentava a sensação de estar olhando para o âmago do ser de Debra - tudo o que fazia ela ser o que era estava exposto e vulnerável. Ele perguntou a si mesmo em que parte daquela massa pálida residia o génio do escritor. De qual, das tantas dobras e espirais, jorrava a sua fonte de imaginação? Onde se localizava o seu amor por ele? Que lugar secreto liberava suas risadas e onde ficava o vale das lágrimas? Aqueles mistérios o mantinham ocupado enquanto ele observava o retrator penetrar cada vez mais fundo pela abertura do crânio.
Cooper abriu o extremo da membrana e comentou:
- Aqui está a borda anterior do sinus-esfenoidal; observe-o como nosso ponto de acesso ao quiasma.
David captou uma mudança no tom de voz do cirurgião, a carga de tensão que se formava conforme suas mãos moviam-se lenta e destramente na direção de seu objetivo.
- Isto agora é interessante. Podemos ver isso na tela, por favor? Sim! Aqui está bem clara uma deformação óssea.
Os dois estudantes ao lado de David soltaram exclamações e se inclinaram para a frente. A tela mostrava o tecido úmido, a superfície brilhante no fundo do ferimento, e os instrumentos de aço mexendo neles como abelhas metálicas no pólen de uma flor. Cooper arranhou o metal do fragmento de granada.
- Aqui está o corpo estranho. Vamos ver outra vez as radiografias, irmã.
A imagem mudou rapidamente para as chapas. Os estudantes soltaram novas exclamações. A garota tragava o cigarro incessantemente.
- Obrigado.
Com a imagem de volta à mesa de operação, David viu o contorno escuro do fragmento da granada alojado no osso.
- Vamos pegá-lo. Concorda, doutor Friedman?
- Sim, creio que deve removê-lo.
Delicadamente, o longo e esbelto inseto de aço perseguiu o fragmento. Por fim, com um grunhido de satisfação, Cooper retirouo de seu nicho.
- Bom! Bom! - O cirurgião deu a si mesmo um pouco de estímulo enquanto enchia o orifício deixado pelo fragmento com cera de abelha para prevenir uma hemorragia. - Agora rastrearemos os nervos ópticos.
Pareciam duas minhocas brancas convergindo de seus próprios caminhos para se encontrarem e se misturarem na abertura do canal ósseo pelo qual desapareciam.
- Aqui temos um estranho intercrescimento ósseo associado ao corpo estranho que acabamos de remover. Parece ter bloqueado o canal e espremido ou danificado o nervo. Sugestão, doutor Friedman?
- Creio que devemos cortar o intercrescimento e tentar verificar que tipo de estrago há no nervo naquela região.
- Sim, eu concordo.
Outra rápida seleção e manuseio do instrumento de aço brilhante, e então Cooper pôs-se a trabalhar sobre o intercrescimento ósseo, que se desenvolvera na forma de um coral. Mordiscava-o com o metal afiado e removia cuidadosamente cada pedaço que se soltava.
- Temos aqui uma lasca levada pelo fragmento de aço para o canal. E um pedaço grande, deve ter ficado sob uma pressão considerável, e se consolidou aqui.
Após alguns instantes, o nervo branco reapareceu. Cooper mudou o tom de voz.
- Olhem para isso. Podemos ter uma visão melhor daqui, por favor? - O nervo foi forçado para cima e achatado pela pressão.
- A constrição é evidente, ele foi pinçado mas parece intacto. - Retirou outro pedaço de osso, deixando o nervo totalmente exposto. - Isto é realmente fantástico. Espero que seja uma chance em mil, ou uma em um milhão. Parece que não há dano no nervo, embora o fragmento de aço tenha passado tão perto a ponto de tocá-lo. - Cooper ergueu-o com o lado plano de uma sonda.
- Totalmente intacto, embora achatado pela pressão. Suspeita de atrofia em algum grau, doutor Friedman?
- Creio que poderemos confiar na recuperação das funções. Apesar das máscaras, a atitude triunfante dos dois homens era facilmente percebida. David estava tenso, paralisado, enquanto Cooper fechava a abertura, recolocando a parte do crânio que fora removida. Quando a aba do escalpo foi costurada no lugar, quase não havia evidência externa da extensão e profundidade da exploração ocorrida. Então a imagem da tela mudou para outra sala de operação onde uma garota ia ser operada de hérnia.
David levantou-se e saiu da sala. Subiu de elevador até a sala de visitas do andar de Debra. Chegou a tempo de ver os enfermeiros empurrando sua maca em direção ao quarto. Debra estava pálida, mas a região em volta dos olhos e dos lábios estava escura, e a cabeça envolta em um turbante de bandagens brancas. Havia manchas de sangue nos lençóis que a cobriam. O cheiro de anestésico permaneceu no corredor mesmo depois de sua saída dali.
Então chegou Ruby Friedman, vestindo um terno leve e caro, usando uma gravata de seda Dior de vinte guinéus. Parecia extremamente satisfeito com o resultado da cirurgia.
- Você viu, David? Foi extraordinário! - Ele riu, esfregando as mãos com alegria. - Um caso desses deixa a gente feliz pelo resto da vida. Se eu só tivesse feito isso até hoje, ainda assim teria valido a pena!
- Quando saberemos o resultado? - David perguntou em voz baixa.
- Eu já sei. Aposto minha reputação!
- Ela poderá ver assim que passar o efeito da anestesia?
- Não é tão rápido assim. O nervo ficou prensado durante dois anos e levará algum tempo para se recompor.
- Quanto tempo?
- É como uma perna que adormece quando alguém se senta de mau jeito. Quando o sangue volta a circular, ela ainda fica dormente durante um certo período.
- Quanto tempo? - David insistiu.
- Assim que ela acordar, o nervo passará a trabalhar feito louco, enviando todo tipo de mensagens para o cérebro. Ela verá cores e formas como se estivesse drogada. Demorará um pouco até estabilizar-se, de duas semanas a um mês, eu diria. Então tudo ficará limpo, o nervo terá recuperado sua função e ela começará a ter visão efetiva.
- Duas semanas... - David sentiu o alívio do condenado que ouve o perdão.
- Você lhe contará a novidade, é claro. É um belo presente depois de tanto sofrimento.
- Ainda não vou contar, esperarei a hora certa.
- Você terá de explicar-lhe as visões, as alucinações com corps e formas, do contrário ela ficará alarmada.
- Eu a convencerei de que é consequência normal da operação. Prefiro que se ajuste a isso antes de contar-lhe.
- David, eu... - Ruby interrompeu-se ao ver o faiscar dos olhos azuis no rosto deformado.
- Eu direi a ela! - a voz firme de David transmitia toda a sua fúria. - Essa foi a condição que combinamos!
David estava só na suite, e já passava de meia-noite quando a ligação que ele pedira para Nova York foi completada.
- Aqui é Robert Dugan, com quem estou falando? - perguntou Bobby num tom profissional.
- Aqui é David Morgan.
- Quem?
- O marido de Debra Mordecai.
- Olá, David. - O empresário tornou-se expansivo. - É bom falar com você. Como está Debra?
- É por isso que estou ligando. Ela sofreu uma operação e está no hospital neste momento.
- Deus! Não é nada sério, é?
- Ela ficará boa. Terá alta dentro de alguns dias e estará pronta para o trabalho em poucas semanas.
- É bom ouvir isso, David. Muito bom.
- Gostaria que você encaminhasse o contrato para o roteiro de Um lugar de nós mesmos.
- Ela o fará? - O agente estava entusiasmado.
- Sim, com toda a certeza.
- É uma notícia maravilhosa!
- Negocie um bom contrato.
- Dependo disso, meu jovem. Sua garota é um ótimo investimento.
- Quanto tempo durará o trabalho com o roteiro?
- Eles pedirão uns seis meses. O produtor está rodando um filme em Roma neste momento. Provavelmente vai querer que Debra trabalhe lá.
- Ela vai gostar de Roma.
- Você a acompanhará, David?
- Não, ela irá sozinha.
- Ela tem condições de ir sozinha? - Dugan perguntou, preocupado.
- De agora em diante ela terá condições de fazer tudo sozinha.
- Espero que você esteja certo...
- Outra coisa. Aquelas palestras ainda estão de pé?
- Claro que estão! Como eu disse, ela é mais quente do que uma pistola.
- Marque-as para depois do roteiro.
- Assim é que se fala, David! Agora estamos realmente com todo o gás. Vamos transformar sua garota em uma celebridade.
- Faça isso. Mantenha-a ocupada. Não lhe dê tempo para pensar.
- Fique tranquilo. - Então, como se tivesse percebido algo estranho no interlocutor, disse: - Está tudo bem com você, David? Algum problema doméstico? Quer falar sobre isso?
- Não, não quero. Apenas cuide bem dela.
- Mas...
- O que é?
- Sinto muito. O que quer que seja, sinto muito.
- Está tudo bem.
Ao concluir a ligação, David estava tão trémulo que deixou o fone cair das mãos. Sem se dar ao trabalho de recolocá-lo no gancho, saiu para a rua. Vagou sem rumo pela cidade adormecida até pouco antes do amanhecer. Então estava cansado o suficiente para dormir.
As explosões de cores, que tanto a alarmaram após o longo estágio de cegueira, deram lugar a um ténue arco-íris, uma nova claridade e beleza que serviam para animar seu espírito. Passado o período crítico pós-cirurgia, ela foi tomada por um sentimento de bem-estar, uma expectativa otimista que não experimentava desde criança.
Era como se, do recôndito de seu subconsciente, tivesse uma vaga ideia do iminente retorno de sua visão. No entanto, esse conhecimento não alcançava o consciente. Ela sabia que houvera uma mudança, apreciava a saída das sombras para a claridade, mas não suspeitava de que depois das cores e fantasias viriam as formas e a realidade.
Cada dia David esperava que Debra comentasse algo indicando que ela percebia que estava recuperando a visão; ele esperava e temia, porém nada ouviu a respeito.
Ele passava o maior tempo no hospital e aproveitava ao máximo cada minuto ao lado dela. Embora o bom humor de Debra fosse contagiante, ele se limitava a rir e a partilhar de sua excitação pela proximidade de sua saída do hospital e volta para Jabulani.
Não havia dúvidas na mente de Debra, nem sombras em sua felicidade. Assim, David começou a acreditar que esta pudesse durar muito tempo, que fosse imortal, e que o amor entre eles suportaria qualquer desafio. Parecia tão sólido, tão forte quando estavam juntos, que Debra talvez não se chocasse com seu rosto ao recuperar a visão...
Ele ainda não se encorajara para contar-lhe, mas havia tempo. Duas semanas, dissera Ruby Friedman, e era de vital importância que ele aproveitasse cada minuto de felicidade durante aquele período.
Nas noites solitárias, as preocupações não o deixavam dormir. Lembrou-se então de que o cirurgião plástico lhe dissera que outras coisas poderiam ser feitas para melhorar sua aparência. Ele poderia voltar a se submeter ao bisturi, embora se arrepiasse por inteiro diante dessa perspectiva. No entanto, Debra teria algo menos horrível para olhar.
No dia seguinte, David enfrentou a multidão e visitou a loja de departamentos Stuttafords, na Rua Adderley. A vendedora da seção de perucas, depois de recuperar-se do susto, levou-o até um cubículo encortinado e se propôs a ajudá-lo a escolher uma.
David provou uma cabeleira encaracolada. Pela primeira vez riu diante de sua imagem deformada no espelho.
- Meu Deus! Frankenstein em pessoa!
A vendedora, que lutava para controlar suas emoções, deu uma risadinha histérica.
David pensou em contar o episódio a Debra, fazer uma piada do assunto e ao mesmo tempo prepará-la para a primeira visão de seu rosto. Mas não encontrou as palavras, e outro dia se passou sem nada acontecer, exceto algumas horas de calor e felicidade juntos. No dia seguinte Debra começou a dar sinais de impaciência.
- Quando vão me deixar sair, querido? Eu me sinto absolutamente bem. É ridículo ficar nessa cama. Quero voltar para Jabulani, tenho muito o que fazer. Faz dez dias que me trancaram aqui, e não estou acostumada à vida de convento, Estou subindo pelas paredes...
- Podemos trancar a porta... - David sugeriu, malicioso.
- Puxa, me casei com um génio!
Naquela noite, Ruby Friedman e Brig esperaram David em sua suite. E foram direto ao assunto.
- Você deixou isso ir muito longe, já devia ter contado tudo para Debra - declarou Brig.
- Ele tem razão, David. Você está sendo injusto; ela precisa de tempo para se acostumar.
- Vou contar-lhe na primeira oportunidade - David resmungou, obstinado.
- Quando? - Brig quis saber.
- Breve.
- David - interveio Ruby, conciliatório -, pode acontecer a qualquer momento. Ela fez bastante progresso, pode ocorrer bem antes do que eu esperava.
- Vocês não podem parar de me empurrar? Eu disse que ia contar, e vou fazê-lo assim que saírem de cima de mim.
- Você tem até o meio-dia de amanhã. Se você não o fizer, eu o farei - disse Brig, rispidamente.
- Você é um velho bastardo durão, hein? - David disse, amargurado.
Brig ficou lívido de raiva. Era visível seu esforço para se controlar.
- Eu entendo sua relutância - ele disse pausadamente. - Simpatizo com você. No entanto, minha primeira e única preocupação é com Debra. Você está sendo indulgente consigo mesmo, David. Está afundando em autocompaixão, mas não vou permitir que isso a machuque mais. Ela já sofreu o suficiente.
- Está bem. Vou contar para ela.
- Quando?
- Amanhã - David disse. - Amanhã de manhã.
O dia amanheceu claro e quente. O jardim próximo à janela do quarto estava todo florido. David tomou o café da manhã na suite e leu os jornais de ponta a ponta, retardando ao máximo o momento. Vestiu-se com cuidado, escolhendo um terno escuro e uma camisa lilás, e quando estava pronto para sair, observou-se no espelho de corpo inteiro do quarto de vestir.
- Já faz tanto tempo, e ainda não fico à vontade com você - disse para o reflexo no espelho. - Vamos orar para que alguém goste mais de você do que eu.
Ao sentar-se no banco de trás do táxi, sentiu um frio na barriga. O trajeto pareceu muito mais curto naquela manhã, e quando ele subia os degraus da entrada do Groote Schuur, deu uma espiada no relógio, eram 11:05 h. Ele mal percebeu os olhares curiosos enquanto atravessava o saguão para os elevadores.
Brig esperava-o na sala de visitas do andar de Debra, alto e esbelto, pouco à vontade em trajes civis.
- O que você está fazendo aqui? - David perguntou, irritado.
- Pensei que pudesse ser útil.
- Sorte sua! - David falou com sarcasmo, sem se esforçar para esconder a raiva.
Brig manteve-se impassível e perguntou calidamente:
- Você gostaria que eu o acompanhasse?
- Não. Posso me virar sozinho. - E seguiu pelo corredor.
- David...
- Sim?
Encararam-se por um longo tempo, até que Brig abanou a cabeça.
- Não é nada... - Para Brig, aquele jovem alto e de cabeça deformada parecia um condenado à forca subindo o patíbulo.
Debra estava sentada na cadeira perto da janela aberta, e a brisa quente trazia a essência da floresta de pinheiros. Parecia calma e feliz, embora David estivesse atrasado. Ela falara com Ruby Friedman durante sua visita matinal, e o médico lhe assegurara que teria alta em uma semana ou menos.
O calor da manhã deixava as pessoas sonolentas. Debra fechou os olhos, transformando o fluxo de cores em um casulo de sombras suaves e envolventes. Começou a cochilar.
David encontrou-a ali, com o rosto iluminado pela luz refletida da janela. O turbante branco que lhe envolvia a cabeça estava limpo e recém-trocado; sua camisola branca parecia um vestido de noiva. Apesar da palidez de suas faces, as manchas escuras embaixo dos olhos haviam desaparecido, e os lábios estavam serenos e cheios de paz.
Com um carinho infinito, David curvou-se e encostou os lábios contra sua bochecha. Ela remexeu-se, sonolenta, e abriu os olhos. Se antes seus olhos eram bonitos, vagos, nebulosos e cegos, agora pareciam mudados. Estavam atentos, focalizados nele, e firmes. Ela estava olhando para ele; e vendo-o!
Saindo do estado de sonolência com o beijo em sua bochecha - tão leve quanto a queda de uma folha no outono -, Debra abriu os olhos esperando ver nuvens douradas; mas, tão súbito quanto o vento da manhã dissipando as brumas do mar, as nuvens se abriram, dando lugar a uma máscara monstruosa, que parecia ter vindo do próprio inferno; um rosto horroroso, de feições disformes e assustadoras.
Debra tapou os olhos com as mãos e gritou, aterrorizada. David saiu do quarto correndo e bateu a porta atrás de si, Brig avistouo no corredor.
- David! - E estendeu a mão para segurá-lo.
David deu-lhe uma trombada violenta, que o jogou de encontro à parede. Quando o general recuperou o equilíbrio, seu genro já desaparecera na escada.
- David! Espere! - Como não poderia alcançá-lo, Brig dirigiu-se ao quarto da filha, de onde, através da porta fechada, ouviam-se os soluços histéricos.
Debra olhou por entre os dedos ao ouvir a porta se abrir.
- Eu posso ver - ela murmurou. - Eu posso ver... Brig aproximou-se e tomou-a nos braços.
- Está tudo bem. Tudo vai ficar bem.
Ela abraçou-o com força, sufocando os soluços.
- Eu tive um sonho, um sonho terrível... - De repente ela se ergueu de um salto. - Onde está David? Eu preciso vê-lo.
Brig retesou-se, percebendo que ela não reconhecera o marido.
- Preciso vê-lo - Debra repetiu.
- Você já o viu, minha criança.
Ela demorou algum tempo até assimilar o que ouvira.
- David... Aquilo era David? Brig assentiu, pesaroso.
- Meu Deus - a voz de Debra estava firme. - O que eu fiz? Eu gritei quando o vi. O que foi que eu fiz? Eu o espantei.
- Você ainda quer vê-lo? - Brig perguntou.
- Como ousa dizer isso? Mais do que qualquer coisa na terra. Você deveria saber disso!
- Mesmo do jeito que ele está agora?
- Se acha que faria diferença para mim, então você não me conhece. Encontre-o para mim! Rápido, antes que ele tenha tempo de fazer alguma estupidez.
- Não sei para onde ele foi - Brig respondeu, preocupado com a possibilidade que Debra aventara.
- Só há um lugar para onde ele iria quando está magoado desse jeito. No céu.
Brig concordou de imediato.
- Vá até o controle de tráfego aéreo, eles deixarão você falar com ele. Tente encontrá-lo, papai. Por favor, tente encontrá-lo.
O Navajo parecia ter feito uma curva por conta própria, tomando o rumo sul. E só quando seu nariz liso e arredondado estabilizou-se em direção às alturas do céu azul, foi que David soube para onde estava indo.
As montanhas iam ficando para trás. A frente havia apenas a vastidão do mar. David olhou para os marcadores de combustível. Os ponteiros indicavam pouco mais de meio tanque. Talvez três horas de vôo. Seria um alívio pôr um fim ao seu sofrimento. Ele visualizou tudo claramente. Continuaria ganhando altura até que o último dos motores sentisse falta de combustível e falhasse; então, abaixaria o nariz num mergulho vertical e rápido como o mergulho suicida de uma águia moribunda. Seria mais do que rápido. A fuselagem de metal o levaria para a sepultura, que não poderia ser mais solitária do que a desolação na qual vivia naquele momento.
De repente, o rádio entrou no ar. Era o controlador do tráfego aéreo. David tentava alcançar o interruptor para desligar o aparelho, quando uma voz bem conhecida o deteve.
- David, aqui é Brig. - As palavras e a entonação com que foram ditas transportaram-no para outra cabine, em outro lugar. - Você já me desobedeceu uma vez, não faça isso de novo.
David fez um trejeito com a boca e novamente alcançou o interruptor. Sabia que o estavam vendo pelo radar, conheciam sua rota, e que Brig imaginava o que ele pretendia. Bem, eles não poderiam fazer nada para evitar.
- David... - Com a voz suave, Brig pronunciou então as únicas palavras que David escutaria: - Acabei de falar com Debra. Ela quer você desesperadamente.
A mão de David pairou sobre o interruptor.
- Escute-me, David. Ela precisa de você, ela sempre precisará de você.
David sentiu as lágrimas subindo-lhe aos olhos. Hesitou.
- Volte, David. Para o bem dela, volte.
Do mais profundo do seu ser, uma luz brilhou e foi crescendo até enchê-lo com sua luminosidade.
- David, aqui é Brig. - Novamente a voz do velho guerreiro, dura e descompromissada. - Volte imediatamente para a base.
David sorriu e pegou o microfone. Apertou o botão de transmissão e acusou o recebimento à moda hebraica:
- Besederl Aqui é Lança Brilhante Líder, retornando para casa.
- E fez uma curva abrupta com o Navajo.
David sabia que não seria fácil, que iria requerer toda a sua coragem e paciência, mas tinha certeza de que no fim valeria a pena. De repente, ele precisava desesperadamente ficar a sós com Debra, na paz de Jabulani.
Wilbur Smith
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