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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CAMINHO DE MERLIM L.II / Jean-Louis Fetjaine
O CAMINHO DE MERLIM L.II / Jean-Louis Fetjaine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CAMINHO DE MERLIM

Livro II

 

                         A Travessia

Pouco antes de amanhecer, ela acordou com umas dores tão fortes que a deixaram prostrada, incapaz mesmo de gritar, com as mãos constringidas sobre os lençóis de linho, as pernas encarquilhadas de encontro ao ventre dilatado, com uma impressão autêntica de lhe estarem a introduzir um archote no corpo. De seguida o sofrimento abrandou e Guendoloena, sem ousar mexer-se, com medo de reavivar a dor, lançou um olhar à volta do quarto, em busca de ajuda. Alguma claridade irrompia dos cortinados de couro que tapavam as estreitas janelas e uma miríade de minúsculas partículas flutuavam na luz, agitadas pelo ar penetrante do alvorecer. Do outro lado da cama, a parteira que o rei tinha designado para o seu acompanhamento dormia como um cepo, estendida numa poltrona, com um ressono abafado. Apeteceu-lhe chamá-la, mas então tudo acordaria, e o momento era tão calmo ainda... Ao longe, um cão ladrava. Ela ouviu algumas vozes que vinham da ribeira, sem dúvida pescadores que iam levantar as redes da noite. Em breve, a cidade acordaria e, com ela, o forte real, com a agitação que permanentemente ali reinava.

A jovem fechou os olhos e inspirou longamente, enquanto a dor se dissipava. O quarto estava impregnado de um suave odor a erva cortada de fresco e a flores selvagens cor-de-rosa com que, por sua ordem, tinham coberto o chão. Em Dun Breatann, a capital dos Bretões do Norte, onde ela havia crescido, era um costume muito assente, e toda a sua infância tinha sido marcada pelo perfume dos juncos que aromatizavam todos os recantos do castelo.

Como tudo aquilo parecia longínquo...

Dunadd, a fortaleza dos Escotos de Dal Riada de quem se tinha tornado rainha, parecia mais uma pensão do que uma mansão real.

Aqui, tudo era madeira e peles, terra e ar, sem a menor construção em pedra, exceto a igreja construída pelos monges de lona. Logo ao alvorecer, as ruas cobriam-se de açougues e enchiam-se de uma gentalha barulhenta, tão barulhenta, que a falar verdade, ela tinha chegado ao ponto de pensar que os Escotos só conseguiam fazer negócio gritando em altos berros, engalfinhando-se ou rindo às gargalhadas. As construções que abrigavam o rei e a corte dos seus clientes estavam situadas no alto e varridas permanentemente pela brisa do mar, mas nada conseguia protegê-los da vozearia da cidade baixa. Além disso, quando não estava em guerra contra os Pictos, além das altas montanhas do clã dos Loairn, o rei Aedan, seu marido, recebia, durante todo o santo dia, tudo o que Dal Riada contava de pleiteantes ou pedinchões, abençoava casamentos, armava jovens guerreiros, tudo isso numa algazarra de clamores que não cessava senão ao pôr do sol.

Ia ser um longo dia, com certeza, e Guendoloena agradeceu ao céu por aquele momento de calma passageira. O seu ventre já não a atormentava. Apenas sentia um peso sumido nas costas e nos rins. A jovem rainha estendeu prudentemente as pernas e conteve um grito de surpresa. Os lençóis e a camisa estavam encharcados com um líquido tépido e pegajoso, desde a pelve até as coxas. Lançou um olhar na direção da parteira e, vendo que continuava a dormir, passou suavemente a mão por debaixo dos lençóis, entre as pernas.

— Santo Deus!

Toda a roupa da cama estava suja com um fluido sanguinolento que não podia deixar dúvidas. Acabavam de romper-lhe as águas. O trabalho de parto estava a começar...

Guendoloena limpou a mão e depois se endireitou sobre o enxergão, esforçando-se por respirar lentamente, para controlar a mistura de medo e de exaltação que lhe fazia bater o coração. O filho ia nascer. O seu filho ia nascer...

Insidiosamente, quando vinha uma nova contração das suas entranhas, apoderou-se dela um medo de outra natureza. Guendoloena tinha casado com Aedan havia apenas seis meses e, mesmo que ninguém na corte tivesse tido a frontalidade ou a inconsciência de fazer o reparo, todos sabiam que o rei dos Escotas e a sua noiva se tinham encontrado pela primeira vez apenas alguns dias antes dos esponsais.

O filho que ia nascer era bastardo.

Contra a sua vontade, a jovem rainha sentiu inflamar-lhe o coração, enquanto a opressão que pesava sobre os seus rins alastrava agora como o atiçar de um fogo. Vieram-lhe algumas lágrimas aos olhos, as mãos voltaram a encrespar-se sobre os lençóis para não gritar. Agora não. Ainda não. O dia estava apenas a nascer, a gente da casa estava a dormir. Por mais alguns momentos, continuava tudo na mesma.

Em seguida, uma nova contração apoderou-se dela, mais forte que a anterior, e Guendoloena deixou escapar o gemido que lhe queimava os lábios.

O tempo estava enevoado e o mar mau, picado por uma ondulação irregular que atingia o coracle pela proa. A embarcação, desprovida de quilha e armada com duas velas quadradas, balançava sobre as ondas e vogava constantemente, não obstante os esforços do timoneiro para manter a posição. A cada vagalhão, uma chapada de borrifos inundava a coberta atulhada de bagagens e animais. Tudo o que não se encontrava solidamente estivado, rolava constantemente de um lado para o outro, contra os cachos de passageiros agarrados à precinta, de rosto sombrio, com toda a coragem aniquilada pelo enjôo. A travessia estava apenas a começar...

Não obstante a diligência da maior parte dos comandantes, a esquadra só tinha largado as velas ao começo da tarde, após um interminável embarque, confuso e enjoativo, entre o tumulto habitual das despedidas, insultos ou lamentações dos que ficavam para trás. Tinham de navegar de noite, sem nenhum farol para se orientarem, mas era isso ou ficar no cais, e nenhum daqueles rudes marinheiros, que o êxodo dos Bretões enriquecia para além de toda a expectativa, imaginaria perder assim o lucro de um dia inteiro.

Desde que a guerra assolara o reino moribundo do Dyfed, centenas, milhares de refugiados aglomeravam-se com armas e bagagens nas ribas da costa Sul, para tentarem embarcar, fugir da ilha e alcançar Letávia[1], uma terra virgem onde, segundo diziam, se podia conseguir uma propriedade e viver em paz.

Naquela manhã, como todos os dias, uma multidão inteira tinha ressumado das ruelas de Caerfyrddin e tinha-se apresentado nas margens do Tiwi assim que apareceu a flotilha com as velas inchadas por um vento sueste vindo do largo. Só os que podiam pagar o ouro da travessia conseguiam chegar aos pontões guardados pela súcia. Mas por vezes, acontecia que algum senhor suficientemente abonado para alugar um lestr[2] com cinco ou seis filas de remadores, um daqueles enormes navios capazes de atravessar o mar com qualquer tempo, recebia a bordo os que se oferecessem ao seu serviço. Alguns anos de semi-escravatura, por uma nova vida, na Pequena-Bretanha... Contra a vida salva, ao menos. Era uma sorte que ninguém teria hesitado agarrar.

Havia horas que o coracle avançava de vento em popa a subir o canal, tinham-se distanciado do resto da esquadra. Quando a embarcação meteu finalmente leme para sul, para o largo e as costas de Letávia, já dela nada se via para além da luz cintilante dos seus fanais.

Pouco depois, nada mais se viu.

Instintivamente, os passageiros tinham-se agrupado à volta do mastro, a maior parte agachados uns contra os outros como um rebanho amedrontado. Estavam ali cerca de uma dezena, homens, mulheres e crianças, segurando contra si as bagagens, enfraquecidos e espreitando no rosto dos marinheiros o menor sinal de reconforta. Apenas três homens se mantinham à parte daquele grupo miserável. O primeiro era um fidalgote provinciano, de barba e com cabelo preto cor de corvo, usava uma espessa couraça acolchoada e, de lado, uma grande espada da qual dava mostras de saber servir-se. De pé, com as pernas afastadas para manter o equilíbrio, estava colocado entre o seu cavalo e as suas mulas e não parava de lhes falar em voz baixa para sossegá-los. O segundo, era um clérigo de pequena estatura vestido com um burel preto, tonsurado e barbudo, e que se havia postado logo à partida à proa do coracle, indiferente às vagas, rindo mesmo às gargalhadas quando uma onda vinha aspergi-lo, com um ar tão feliz que, a dizer a verdade, até se esquecia de reconfortar as suas ovelhas. Finalmente, o terceiro, por vezes observava-o a sorrir, em seguida abismava-se durante horas numa meditação enfadonha, que transmitia ao seu rosto ainda juvenil uma expressão dolorosa. Como a maior parte dos passageiros, só raramente havia entrado num barco, mas o seu corpo casava com o balanço do coracle tão naturalmente como o mais acostumado dos marujos. Com os braços cruzados, o rosto de menino batido pelos seus longos cabelos brancos agitados pelo vento, ele tinha-se enrolado na sua capa de lã azul e voltava-lhes as costas, com o olhar perdido ao longe, na direção da ilha da Bretanha que se apagava pela popa. Não trazia qualquer bagagem, exceto o arco, uma aljava cheia de flechas e um alforje contendo algumas carcaças de pão duro. Não tinha deixado nada para trás, nem família nem bens, nada senão amargas recordações, o abandono da única mulher que havia conhecido e o sentimento de ter falhado ao seu defunto rei.

A noite caiu sem que ele se mexesse. Só com dificuldade os outros ainda o distinguiam, tanto a sua sombria silhueta se confundia com as trevas. Apenas os cabelos brancos e o rosto pálido como a lua formavam uma mancha espectral, assustadora pela imobilidade, ao ponto de os próprios marinheiros evitarem voltar o olhar na sua direção, acabando por esquecê-lo, quando a escuridão foi total.

Com a noite, o mar tinha acalmado. Um vento regular empurrava-os para frente sem safanões, secando a coberta inundada. Pouco a pouco, todos tinham adormecido, até o frade e o guerreiro, mas não o rapaz de cabelos brancos. Durante horas, ele observou-os, até saber tudo de cada um deles.

Era assim. Bastava-lhe fixar um indivíduo com atenção, para descodificar a sua vida, conhecer os seus pensamentos íntimos e, ao mesmo tempo, enriquecer-se com o seu saber, com as suas vilezas e com os seus temores. Não obstante a sua tenra idade, ele tinha obtido assim a experiência de várias vidas, de dezenas de vidas, tendo assim perdido a inocência e apresentando um semblante de opressão em que estava continuamente envolto, que se juntava ainda ao peso que lhe ia à alma.

O rapaz passou assim a noite ao som vibrante do ranger das cordas, até que as vagas se irisassem timidamente com um leve estremecimento prateado. Lentamente o céu estava a tornar-se cor-de-rosa, o suficiente para que ele julgasse distinguir a linha longínqua da costa. Aquele espetáculo estimulou-lhe o coração e arrancou-o da sua letargia. Iniciou um movimento para ir acordar o seu companheiro, o fradezinho com veste de burel, mas susteve-o uma apreensão. Uma vibração anormal espalhou-se pela coberta tão sombria e densa como uma nuvem de tempestade, e na qual ele descobria ódio, medo e cupidez. Sempre imóvel, voltou-se para a popa do coracle e viu-os, três homens da tripulação, silenciosos como lobos, em volta do grupo dos dorminhocos. A aurora nascente fazia brilhar a lâmina das suas facas.

Nenhum deles se dirigia na sua direção. Até talvez se tivessem esquecido dele. Ou talvez julgassem que o rapaz dos cabelos brancos não era capaz de constituir ameaça. Em ambos os casos estavam enganados.

Só o timoneiro tinha ficado no seu lugar, com o corpo tenso, na expectativa da mortandade, contendo a respiração, e com o olhar brilhante de um mau vislumbre. Os outros três estavam preparados. De um momento para outro, iriam à carga.

O rapaz afastou-se da precinta e deu um passo em frente.

— Não façam isso — disse ele.

Falou em voz baixa, como para não acordar os dorminhocos, mas os marujos sobressaltaram-se e voltaram imediatamente as lâminas na sua direção. O mais próximo hesitou, procurou, com o olhar, o apoio dos seus companheiros e, a um sinal desdenhoso do timoneiro, aproximou-se do rapaz exibindo o seu facalhão. Quando o homem chegou suficientemente perto, no preciso momento em que levantava o braço, parou, pareceu vacilar, em seguida lançou um gemido abafado e desatou a tremer, sem que o rapaz tivesse sequer levantado a mão. Os outros dois tinham-se endireitado bruscamente e iam atirar-se contra ele quando uma mulher acordou e deu um grito ao ver os seus cutelos.

Durante alguns segundos, a coberta foi só sublevação e encontrões. Um dos marinheiros teve tempo de lançar um golpe ao acaso, e um grito penetrante indicou que o seu golpe havia acertado no alvo. O resto foi só contestação indistinta, varrendo a coberta de bordo a bordo, num tumulto constituído de gritos de terror, choques surdos e injúrias guturais. Tendo o timoneiro abandonado o leme para se lançar na confusão, o coracle pôs-se de través, atirando toda a gente ao chão. Depois, uma vaga voltou a colocá-lo a favor do vento e logo os passageiros retrocederam para a proa, deixando entre os marinheiros e as suas presas um vazio onde jaziam a forma encarquilhada daquele que se tinha aproximado do rapaz e dois corpos inanimados, sujando com o seu sangue negro a coberta do navio.

De novo, ficaram três, perante os três marinheiros sobreviventes. O rapaz segurava o arco na mão, mas não o tinha armado. O frade, como única arma, tinha-se agarrado a um croque e parecia ainda enevoado de sono, com a barba em luta, a vista a tremer com um ar aparvalhado, como se não entendesse nada da situação. Finalmente, o guerreiro agitava a sua longa espada, agarrado com a outra mão à precinta para manter o equilíbrio. No lusco-fusco da aurora, o homem era apenas uma silhueta indistinta, mas a sua espada parecia agitada por tremuras.

Abandonado a si próprio, o coracle continuava fustigado pelas ondas, e as suas grandes velas chicoteavam a coberta ao sabor do vento, ameaçando atirá-los novamente ao chão. Os marinheiros tinham estudado a situação. Lentamente, puseram-se em movimento, separando o fidalgote dos outros dois. Uma vez morto aquele, o resto não passaria de uma brincadeira.

— Fiquem onde estão — disse o rapaz com a voz sempre calma. — Larguem as facas...

Os três homens voltaram-se na sua direção e fremiram de horror. À volta dele difundia-se, no amanhecer, uma lívida auréola, uma bruma vagarosa que parecia ressumar dos cadáveres deitados na coberta para vir juntar-se a ele. Era uma visão pavorosa, de gelar o coração, e no entanto o rapaz não fazia um gesto para se desviar.

— Virgem Santa — murmurou o frade. — Evita-os, Merlim...

Com o rosto macilento e coberto de suor, o rapaz, fechou as pálpebras, enquanto a auréola o envolvia quase por completo a seus olhos.

— O que disseste?— perguntou o guerreiro com uma voz branda. O frade não respondeu, mas baixou o croque e virou-lhes as costas, como se a sorte dos três marinheiros já estivesse traçada.

— Ele é Merlim? É o príncipe Myrddin?

Nesse momento, as lágrimas escorriam pelas faces do religioso, que se curvou sobre a coberta e meteu a cabeça entre as mãos.

— Merlim morreu! — gritou um dos marinheiros, na outra extremidade do barco. — Os gaélicos mataram-no e deceparam-lhe a cabeça!

— Estás enganado — disse o rapaz.

Deu um passo na direção deles, tirando lentamente uma flecha da aljava. A sua cara apareceu-lhes por fim à luz do sol nascente e eles fremiram novamente ao receberem o resplendor dos seus olhos tristes.

— Não passas de um falhado — chiou o fidalgote. — Merlim era um guerreiro com a altura de dois homens e a força de um boi. Foram precisas dez lanças para abatê-lo!

— Seria preciso muito menos para me abater — disse o rapaz com um sorriso displicente. — Eu sou Emrys Myrddin, filho de Aldan de Dyfed e de Morvryn, senhor do pequeno povo de Broceliande, príncipe de um reino perdido e bardo de um rei morto. Também eu morto, sem dúvida, e nascido de novo, como Taliesin. Para todos os efeitos, eu sou Merlim, e enganas-te mais uma vez, Pedrog...

O homem fez umas caretas odiosas, em seguida congelou a sua fisionomia ao ver que Merlim acabava de chamá-lo pelo nome.

— Como sabes...

— Foi ele quem mo disse — murmurou o rapaz indicando com o extremo da flecha o cadáver do seu companheiro. — Chamas-te Pedrog e os outros dois são Gorthyn e Tahal, todos três assassinos, piratas e profanadores de cadáveres... Há semanas que nenhum daqueles que embarcais no vosso barco sobrevive, não é verdade?

Sem fazer caso do ar assustado dos marinheiros, Merlim começou a rir e lançou um olhar na direção do seu companheiro do burel preto.

— Estava a esquecer... Blaise, dois destes tratantes são cristãos. O que dizes?

O frade levantou para ele os olhos banhados em lágrimas, mas logo a sua fisionomia se sobressaltou. Merlim mal teve tempo de se voltar. Pedrog atacava-o, de arma em punho, e já a faca cortava o ar, direita à sua garganta. O rapaz atirou-se para trás mesmo no momento em que a lâmina se abatia sobre ele. Levado pelo seu arrebatamento, o marinheiro chocou violentamente contra a armadoura, perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos. Voltou a erguer-se de um salto, mas nesse instante, Merlim cravou-lhe, em plena fronte, a ponta da flecha que ainda nem tinha conseguido armar no arco. Por um momento, Pedrog olhou-o com uma expressão de infinita incredulidade, em seguida a vida deixou-o e ele estatelou-se na coberta, sem um único gemido. Tudo aquilo se tinha passado tão rápido que tanto o frade, como o guerreiro com a couraça de couro, não conseguiram reagir. Mas quando, por sua vez, aquele que o rapaz tinha chamado Tahal, avançou, o fidalgote lançou-se sobre ele. A sua grande espada traçou um raio metálico na alvorada, quebrando claramente a corrida do marinheiro. Gorthyn, o último, recuou até ao leme, lançou nervosamente um olhar para trás e depois, de repente, saltou para a água e começou a nadar na direção da costa. Ela devia ficar a menos de uma milha[3]; talvez conseguisse alcançá-la...

Foi preciso algum tempo para que cada um retomasse o ânimo. A luta tinha sido breve, e o lusco-fusco permitia duvidar do que tinham visto. Se não houvesse aqueles cadáveres sobre a coberta, misturando o sangue com a água do mar, tudo teria parecido irreal.

O frade a quem o rapaz havia chamado Blaise foi o primeiro a movimentar-se. Saltando por cima dos corpos, apanhou um cordame que, como uma serpente enraivecida, fustigava a coberta e segurou a vela com mão hábil. No mesmo instante, o coracle reteve o vento. Com um movimento de queixo, fez sinal a Merlim de que tomasse a cana do leme, ao que o rapaz se apressou a obedecer. Alguns momentos depois, a embarcação tinha retomado o seu andamento e seguia em direção à costa.

Atordoado, o guerreiro encarava-os sucessivamente. O irmão Blaise e aquele estranho rapaz de longos cabelos brancos, ostentavam a mesma indiferença pelos corpos que jaziam ao fundo do coracle, como se já não existissem, como se nunca tivessem existido, como se não tivesse havido luta... Para tal, eles pareciam evitar-se, e algumas lágrimas brilhavam ainda nas faces do frade. O homem não conseguia libertar-se da precinta e tremia convulsivamente, sem que disso se desse conta. Atrás dele, alguns dos passageiros afastaram-se prudentemente da divisória da frente contra a qual se haviam refugiado. Uma mulher ajoelhou-se junto de um cadáver e começou a chorar em silêncio, lançando em seu redor olhares desvairados. Outros vieram juntar-se a ele, mas sem uma palavra. A luta estava acabada, mas o medo não tinha abandonado o barco.

Navegaram assim durante algum tempo, depois Blaise atou os cordames a uma alavanca e veio juntar-se ao guerreiro. Chegado junto dele, esforçou-se por sorrir e indicou com um sinal de cabeça a espada ensangüentada que ainda brandia.

— Agora já não faz falta.

O frade bateu-lhe no ombro num gesto de reconforta e, em seguida, foi finalmente juntar-se ao grupo dos passageiros para conceder os últimos sacramentos às vítimas daquela mortandade estúpida. Retomando progressivamente o ânimo, o homem voltou a enfiar a espada na bainha, certificou-se que as mãos já não estavam a tremer e depois, com alguma hesitação, avançou na direção do rapaz na cana do leme.

— És mesmo Merlim? — perguntou apoiando-se na armadoura.

— É o meu nome.

— Tu salvaste-nos.

Merlim virou-se para ele e sorriu.

— E tu também, não? Estamos quites.

— Oh, não... Sem ti, eu não sei se...

Ele interrompeu-se para aspirar uma grande lufada de ar marinho.

— ...Sem ti, aqueles porcos ter-nos-iam degolado e, a esta hora, já nos teriam atirado ao mar — retomou ele. — Eu não tenho grande coisa, à parte do meu cavalo, da minha espada e destas mulas, mas pertencem-te até que eu me tenha desobrigado da minha dívida... Chamo-me Bradwen, da casa de Gwegon, do condado de Llandeilo.

Mais uma vez, Merlim sorriu, em seguida fechou os olhos sob o afago do sol.

— O que aconteceu à casa de Gwegon?

— Toda a cidade ardeu, e com ela todas as granjas fortificadas das imediações. Eu pertencia ao exército da rainha, com os meus filhos, e corria atrás dos gaélicos enquanto outros incendiavam as nossas aldeias. A minha mulher morreu, tal como a minha mãe, os meus filhos e a minha criadagem, os meus animais...

Merlim meneou a cabeça em silêncio. Por um momento, encarou-o, em seguida voltou a centrar os seus cuidados na navegação.

— É por isso que tens medo?

Bradwen tremeu e recuou um passo atrás.

— As tuas mãos continuam a tremer, e no entanto, portaste-te com bravura — prosseguiu o rapaz sem olhar para ele. — Foi um nobre golpe de espada que deste àquele canalha. Truncado da cabeça à barriga!

Com o rosto purpurado e as veias latejantes, o guerreiro ficou quieto, oscilando entre a vergonha e a indignação.

— Foi por isso que partiste, não foi? Temes ter-te tornado um covarde?

A costa já estava apenas a alguns duzentos metros. Uma bruma de terra encobria os seus contornos, mas pareceu-lhe não distinguir senão sombrios rochedos mergulhando diretamente no mar. Durante alguns minutos, o homem e o rapaz guardaram silêncio, embalados suavemente pelo balanço, depois Bradwen retomou a palavra.

— Houve tempos em que te teria atirado borda fora por aquilo que acabas de dizer — murmurou ele. — Deves ter razão, feiticeiro da desventura. A espada de um covarde não te serviria para nada.

— Oh não...

Merlim sorriu-lhe de novo, mas desta vez sem aquele vislumbre de malícia que lhe era peculiar. Naquele sorriso, ele apareceu como era, um adolescente acabado de sair da infância, um esboço mal desenvolvido, boiando naquelas roupas demasiado largas.

— Não, Bradwen, eu não sou um feiticeiro. E perdoa-me se te ofendi. Não acho que o medo faça de ti um covarde, e aliás acabas de provar o contrário. Seria com prazer que aceitaria a tua companhia, mas seria conduzir-te para o nada. No sítio para onde vou, não há homens, ou ao menos assim espero. Além, deves ter família, um lugar para ir?

— Tenho apenas o nome de uma aldeia, Nuiliac, uma terra arroteada no reino de Leão. Eu sei que as gentes de Llandeilo se instalaram lá. Isso ou nada...

Bradwen estendeu a mão por cima da borda para mergulhá-la numa vaga, e borrifou o rosto.

— E tu? perguntou ele.

O rapaz não respondeu. Passados alguns instantes, lançava nervosamente alguns olhares para trás, para o largo, para a ilha da Bretanha que eles tinham deixado. Nascia nele um sentimento estranho, uma urgência sem formulação, um remorso, a sensação penosa de ter deixado atrás de si alguma coisa de essencial, sem todavia saber o quê. Agarrado à cana do leme, caia-lhe em cima com todo o seu peso tentando manter o coracle na rota, embora o vento fosse suave e não houvesse quase nenhuma corrente. Ao vê-lo assim, tão frágil como uma menina, custava a acreditar que tinha acabado de matar dois homens.

— Porque partiste? — insistiu Bradwen.

— Sem dúvida — murmurou Merlim — porque julgava não ter mais nada a perder...

Desta vez nem tentou sorrir. Com o rosto desfigurado, mais lívido ainda que o costume, largou a cana do leme e deixou-se cair contra a armadoura.

— Achas que me enganei?

— Não compreendo — respondeu o guerreiro enquanto recuava.

— Achas que deveria ter ficado junto dela?

Blaise aproximou-se rapidamente deles empurrando-os.

— O leme, pela vossa saúde! Queres mandar-nos para cima do quebra-mar?

Merlim meteu a cabeça entre as mãos, com os membros a tremer, era terrível vê-lo tão transtornado.

— O que é que ele tem? — inquiriu Blaise.

Bradwen meneou a cabeça num gesto de impotência. Como todos, no barco, ele contemplava o rapaz com pavor, sem compreender a causa do pesar que tão bruscamente se tinha apoderado dele.

— Merlim, o que é que se passa? — gritou Blaise.

O rapaz levantou para o seu companheiro um rosto tão pálido como a sua longa cabeleira, a luzir de lágrimas, entretanto iluminado repentinamente por uma alegria também ela incompreensível. E gritou:

— O meu filho! Nasceu o meu filho!

 

                         As Duas Descendências

De manhã, os regimentos, formados em ordem de marcha, deixaram Dun Breatann. A infantaria tinha partido à frente, assim como os comboios de mantimentos, escoltados por um pequeno grupo de cavaleiros. Por vezes, via-se ao longe o reflexo dos capacetes ou do ferro das suas longas lanças, não obstante a poeira levantada pela sua vagarosa marcha. Reluzente e sinuoso como uma serpente, o exército costeava as altas colinas, apontando para a fronteira norte do reino e estendendo-se por mais de dez léguas, sempre ao longo do estuário do Clyde. A guarda-avançada já devia sem dúvida estar à vista da aldeia piscatória de Glesgu[4]. Eram mais de mil homens agrupados sob dez bandeiras, uma multidão invencível, coberta de ferro e ávida de sangue, capaz de vencer qualquer inimigo suficientemente louco para não fugir à sua aproximação. E no entanto, à distância, o grupo parecia ínfimo na imensidão das terras, insignificante, quase inofensivo, quase já absorvido...

Com a mão sobre o pescoço do cavalo, Ryderc fechou os olhos e inspirou longamente. O vento vinha do largo, carregado de cheiro a maresia. Estava um rico dia de Verão, ótimo para andar a cavalo pelas colinas, caçar veados e dormir ao relento... Todavia, nesse dia, não se tratava de caça. Havia semanas, todos os homens com idade de pegar em armas tinham sido recrutados, equipados e treinados, e o mesmo devia acontecer por todo o país, de um extremo ao outro da ilha. Para maior glória de Deus, os Bretões iam travar batalha, atacar os Saxões e tornar a atirá-los ao mar. A seguir seria a vez dos Gaélicos, se ousassem ainda abordar às suas costas, e os Pictos, aqueles bárbaros seminus, visitantes assíduos das montanhas desérticas do Norte. De cada reino, desde as terras de Strathclyde até à Cornualha, no sul da ilha, os exércitos celtas preparavam-se para combater unidos, pela primeira vez, desde a época de Ambrósio Aureliano, o Urso da Bretanha, o lendário Artur... Unidos sob o seu comando, os Bretões tinham travado o avanço dos Saxões no monte Badon, um século antes, e morto tantos inimigos que os pagãos tinham retrocedido para Este, até à costa, e muitos deles tinham embarcado, abandonando tudo atrás de si. Durante anos, a ilha tinha vivido em paz. Mas, agora, estava tudo a recomeçar, e quase no mesmo local. Ceawlin, filho de Cynric, rei dos Saxões do Oeste, marchava sobre o reino de Ergyng e as cidades de Caer Geri e Caer Loew[5], as últimas cidades que ligavam os reinos do Sul ao resto das terras bretãs. Era ali, a algumas milhas do monte Badon, que iria começar a campanha. Ali onde tinha acabado a de Artur...

Ryderc tateou o cordão de ouro franjado em espiral que lhe cingia o pescoço. Era o colar de Artur e o simples fato de o usar fazia dele, nesse momento, seu herdeiro para sempre, o grande-rei da Bretanha e chefe daquela imensa coligação que ia entrar em guerra. Quisesse Deus conceder-lhe uma vitória tão retumbante...

Uma última vez, Ryderc contemplou as negras colinas de basalto que protegiam a sua fortaleza, na foz do grande rio. Alguns mantos vermelhos, algumas bandeiras com as armas de Strathclyde salpicavam os baluartes. Com certeza homens suficientes para suster um cerco, se por acaso as coisas corressem mal...

Afastando o negro pressentimento que lhe comprimia o coração, o jovem rei ergueu-se sobre a sela, abatido pela sua greva de couro e pela sua cota de malha, esforçando-se por ostentar um sorriso confiante. Alguns passos atrás, com os olhos fixos nele, os seus cavaleiros aguardavam em silêncio. Já não era tempo de incertezas. Com uma breve tração sobre as rédeas, fez girar a montada e olhou-os de frente. Apresentavam-se a seus olhos duzentos homens aguerridos, agitando uma floresta de lanças e bandeiras cor de sangue. Monges alinhados ao longo da margem, desfiavam um cantochão que o vento espalhava para o largo. Reconheceu entre eles a alta silhueta famélica do abade-bispo Kentigern, que meneou a cabeça para cumprimentá-lo e, com um gesto lento, traçou um amplo sinal da cruz. Perto dele mantinha-se Dawi, bispo de Dyfed, o homem que alguns meses antes o havia cingido com o cordão de Artur. Tanto um como outro, na realidade, mais pareciam vagabundos do que enviados de Deus e, no entanto, ele não tinha a menor dúvida de que, sem a ajuda deles, nenhuma das suas esperanças poderia realizar-se. Homens de uma magreza constrangedora, mais indigentes do que o último dos seus porqueiros e que uma pranchada teria bastado para partir em dois... No próprio dia da sua coroação, quando atingia o auge da sua força e da sua glória ao receber o cordão de Ambrósio perante a assembléia dos reis e na presença de Aedan mac Gabran, rei dos Escotos, e desde há pouco tempo esposo da sua própria irmã Guendoloena, Ryderc tivera de se inclinar diante deles e prestar juramento ao Deus único, colocando assim o seu reino e a aliança em suas mãos... O tempo tinha parecido longo, a partir daquele dia. Mas não se parte para a guerra contra o conjunto dos reinos saxônios como para um simples torneio. Tinham sido necessários meses, ao longo de todo o Inverno e da Primavera, para forjar as espadas, tornear as lanças e urdir as cotas de malha. Para juntar víveres e galeras, convencer os indecisos, comprar por vezes a sua confiança, ou ostentar a sua força frente àqueles que, ainda, contestavam a sua autoridade. Os filhos de Ellifer eram desses. Gurgi, Peredur e o seu desastroso bando de cavaleiros da Grande Companhia, descidos das montanhas de Gwynedd, mais bárbaros do que pagãos e citando Deus em cada frase que diziam!

Ryderc vomitou o seu descontentamento. A vez deles viria muito em breve. E nesse dia, não lhes serviria de nada refugiarem-se atrás das cruzes e dos seus padres de desgraça!

Um silêncio repentino arrancou o jovem rei das suas reflexões impertinentes. Os monges tinham parado de cantar. Kentigern, segurando como insígnia uma cruz com oito pés de altura, mantinha a mão sempre levantada. Ofuscado com o reflexo do sol sobre as águas calmas do Clyde, Ryderc não chegou a distinguir claramente os seus contornos, mas inclinou-se com humildade e benzeu-se, sabendo que o abade-bispo, como todos, o observava.

Por um instante, pareceu hesitar, percorreu de novo a massa compacta da sua cavalaria e em seguida, sem uma palavra, esporeou a sua montada. Sem dúvida deveria ter discursado aos homens, ao menos dado uma ordem, mas sentia a garganta apertada e não podia permitir-se vacilar. Ninguém ignorava que a campanha que começava ia ser dura e longa, pelo menos até ao Inverno, e que muitos daqueles que hoje deixavam a capital do seu reino não voltariam a vê-la. Ryderc esporeou com as duas esporas e lançou a galope o seu pesado corcel. Ouviu as ordens gritadas pela voz rouca de um dos seus capitães, depois o estrondo tremendo dos cavaleiros que se arremessavam a segui-lo.

Durante algum tempo, a sensação exaltante da cavalgada dissipou as brumas que pesavam no seu espírito. Bastaram alguns minutos para juntar a retaguarda das tropas. À sua passagem, os homens gritavam o seu nome, erguiam as armas e batiam no escudo, incessantemente, tanto que, uma vez chegado à frente da coluna, tinham-se dissipado as dúvidas. A frente de tal exército, Ryderc sentia-se invencível, orgulhoso, tão seguro do seu destino e dos seus princípios como no dia da sua coroação.

Reconduzindo a sua montada à marcha lenta, deixou-se ultrapassar por um grupo de cavaleiros e, enquanto os chefes se reuniam à sua volta, lançou uma piada visando um deles, cujo rosto já encarnado e brilhante de suor indicava má forma. Tadwen, comandante da cavalaria, fez menção de se aproximar, mas Ryderc deteve-o com um olhar. Queria ficar só, saborear a euforia do momento. De novo, segurou no cordão que trazia ao pescoço e calculou-lhe o peso, quer em sentido próprio como figurado. Era um gesto que se lhe tinha tornado familiar e que outros, mesmo que ele o ignorasse, tinham tido antes dele. Ambrosius, primeiro, mas também o rei Guendoleu da Cúmbria, que a assembléia dos reis tinha escolhido para o seu lugar, e que nem teve tempo de saborear aquela honra. E finalmente Merlim, seu bardo, bastardo de sangue real que se apossara do torque sobre o espólio ainda quente de Guendoleu e andou fugido pelas terras da Bretanha, até entregar o colar de ouro ao monge que o acompanhava. Aqueles dois já não o incomodavam. Guendoleu tinha morrido. Quanto a Merlim, que o tivesse ou não, já não tinha qualquer importância. Sem o colar, Merlim não era nada.

O dia acordou com a grisalha de uma teimosa morrinha. O coracle tinha encalhado numa pequena praia de seixos, numa enseada abrigada do vento, em águas baixas. Merlim tinha sido o primeiro a deixar o barco, sem uma palavra ou um olhar para os outros passageiros, tendo transposto os poucos arpentos[6] de penedos castanhos cobertos de sargaço que deles pendiam. Ele não voltou a aparecer. Levantando o hábito de forma muito grotesca, Blaise deixou-se deslizar até à água e chafurdou até à borda, onde o esperava Bradwen com os seus animais.

— Eles continuam no barco — disse o monge ao chegar junto dele. — Um deles foi pescador e sabe manobrar um barco. Para a maior parte deles, é mais riqueza do que alguma vez tiveram...

— Uma verdadeira dádiva do céu, não acha?

O guerreiro deu uma risadinha mordaz e estendeu-lhe a mão para o puxar para terra seca, em cima de uma grande laje juncada de algas escuras.

— Se Deus assim o quis...

— É isso... Deus quis mesmo que aqueles porcos degolassem à sua volta todos os que nos precederam, mas não a nós. Deus quis mesmo que a minha mulher e os meus filhos fossem mortos, mas não eu. Devo ser abençoado, não?

Blaise olhou-o, mas leu mais tristeza do que revolta nos seus olhos cansados.

— Todos nós temos um destino, meu irmão. E só Deus o conhece.

— Olá... Enquanto esperam, ei-los que guardam os haveres. Dir-se-ia que viram...

O homem não ousou acabar a frase e mordeu o lábio.

— E então! O que é que querias dizer? Dir-se-ia que viram o diabo, não é?

Bradwen lançou um longo suspiro e agachou-se para apanhar um calhau, com o qual se pôs a brincar distraidamente.

— Desculpa...

— Não há de quê — disse Blaise enquanto se sentava a seu lado. — Aliás ele existe.

A um lançamento de pedra dali, os homens tinham empurrado o coracle para o largo e descido um par de remos nos buracos de remadura, na frente do barco. Um deles voltou-se e dirigiu-lhes um gesto de adeus antes de se içar a bordo. O vento levou o cumprimento que ele lhes enviava, mas eles menearam a cabeça ao mesmo tempo e responderam com um aceno de mão. A angra onde tinham desembarcado constituía um abrigo natural perfeito, protegido do vento e da maré e, no entanto, os outros iam-se embora, com o risco de perderem a embarcação caso o tempo se enevoasse e não encontrassem uma enseada para atracar. Mas Blaise entendia-os muito bem. Todos conservavam a lembrança horrível do que se tinha passado no barco, mesmo que o seu espírito recusasse compreender o que os seus olhos haviam visto. Pelo menos Bradwen ousava falar no assunto...

— Não era assim quando o conheci — murmurou o pequeno monge enquanto remexia a barba, sem tirar os olhos das manobras desajeitadas do coracle. — Houve sempre nele algo de estranho, e era aliás por isso que a maior parte das pessoas o rejeitava. Mas ele mudou. Eu acho que ele tomou consciência daquilo que é, agora...

— Na minha terra, em Llandeilo, chamavam-lhe o «filho do diabo» — disse Bradwen.

— Toda a gente o chama assim.

— Eu julgava que fosse uma história, um conto para meter medo às crianças...

Blaise suspirou distraído.

— O diabo tem muitas faces — murmurou ele.

Em baixo, os homens tinham içado a vela e tomado o vento. No espaço de alguns segundos, o coracle dobrou o promontório e desapareceu do seu campo de visão.

— Pois bem — disse Blaise. — Agora, viste o diabo com os teus olhos. E eles também... Se saírem dali, terão com que embelezar o conto, não achas?

Ele fez menção de se levantar, mas Bradwen deteve-o pelo braço.

— Espera... eu disse que vos ajudaria, mas quero saber o que verdadeiramente se passou, esta noite. O príncipe... Quero dizer Merlim... É feiticeiro, não é?

Blaise lançou um olhar por cima do ombro, mas em parte alguma se deixava ver o rapaz de cabelos brancos. Então voltou a sentar-se e encolheu os ombros.

— Não um feiticeiro, não... não sei o que é realmente e isso é, sem dúvida, o que viemos procurar na Pequena-Bretanha, algures na imensa floresta. Desconheço o que viu ou o que aconteceu, mas os seus cabelos, que eram mais pretos ainda que os teus, branquearam no espaço de uma noite. Tudo o que sei é que fala com os mortos e os mortos falam com ele. É aquilo a que se chama um necromante...

Não creio que ele tire daí quaisquer poderes, mas parece que se impregna assim do saber de toda a vida deles. Não me perguntes como...

— Isso não chega! — exclamou Bradwen. — Ele matou dois homens no barco, muito mais fortes e pesados do que ele!

— A experiência de dezenas e dezenas de guerreiros mortos em combate, todas as suas astúcias, todas as suas técnicas... Junta a isso todos os conhecimentos de alguns pontos de mira ou médicos, para bater no sítio em que a morte é repentina... Não sei nada sobre o assunto, garanto-te.

— Queres dizer que os mortos lhe ensinam tudo o que sabem? Mas por quê?

— Não sei.

O guerreiro rosnou de impaciência e atirou furiosamente à água o calhau que tinha apanhado. De um salto, levantou-se, examinou o conjunto das rochas castanhas, atrás deles, em seguida começou a esgravatar nervosamente a guedelha e a barba reluzentes de chuvisco.

— Achas... (Ele interrompeu-se, emitiu uma risota consciente da extravagância daquilo que ia dizer, e como Blaise o observava com um ar frio, retomou:) Achas que os mortos passam ensinar-lhe coisas sobre os vivos?

— Não sei.

— Ai a minha vida! Ó monge, tu não sabes nada!

— É verdade...

— Mas ele sabia o nome daqueles homens e, quando me falou, ele... Enfim, o que me disse era...

O frade sorriu e pôs-lhe a mão no ombro com compaixão.

— Não és obrigado a seguir-nos. Tu não lhe deves nada... Vamos, onde está ele?

O guerreiro indicou as colinas, atrás deles, com um movimento do queixo. Desenhava-se um caminho entre as rochas, subindo enladeirado mas suave, até ao cimo, onde se perdia nas giesteiras.

— Felicidades, meu irmão.

Blaise levantou-se, foi apanhar os seus alforjes e avançou, inicialmente com passos cautelosos, sobre as pedras escorregadias. Em algumas passadas, chegou ao atalho, que subiu sem se voltar para trás. Merlim encontrava-se ali, empoleirado num cepo que emergia de um tapete de matagais, virado para o alto-mar e direito como um menir.

— Eles vão-se embora — disse Blaise quando já estava ao alcance da voz.

O rapaz voltou-se, sorriu levemente e abanou a cabeça. Tinha os olhos vermelhos e a tez mais pálida do que nunca.

— Não deviam ter partido...

Blaise refreou todas as perguntas que lhe queimavam os lábios. Aquele filho de que ele tinha falado. Aquele brusco ataque de tristeza e alegria misturados... O melhor meio de fazer falar o jovem príncipe — o único, talvez — era não o interrogar. Então, o monge colocou o capucho do hábito na cabeça rapada, apertou o gancho ao pescoço, colocou no chão os alforjes e sentou-se junto dele, sobre o cepo, observando-o. Como um véu, o chuvisco tinha colado os longos cabelos de Merlim contra as faces e destemperado o seu manto de lã azul, mas ele não se preocupava mesmo nada com isso. A chuva e o vento não tinham influência sobre ele. Mais de uma vez, ao longo do seu périplo, o monge tivera mesmo a impressão que ele se alimentava disso, como uma planta...

— Perdia-a — disse o rapaz de repente.

Blaise, mergulhado nos seus pensamentos, ficou sem outra reação que não fosse olhá-lo com um ar espantado.

— Acabou-se — retomou o rapaz saltando para o chão. Já não sinto mais nada.

— Mas... (Blaise hesitou por um momento; como o seu companheiro continuasse à espera, ele esforçou-se por adotar um tom tanto quanto possível calmo) Ao menos tens a certeza que é um filho?

Merlim voltou a olhar para trás, pegou no arco e na aljava e depois estendeu-lhe a mão para o ajudar a levantar-se.

— Pois claro — disse ele — tenho disso a certeza. E ouvi-a, sabes... Ela pronunciou o meu nome. Percebes? Guendoloena pronunciou o meu nome, é sinal que pensa em mim!

Blaise concordou jovialmente, mas assim que o rapaz partiu, ele teve de se sentar de novo, a tal ponto o choque o tinha apanhado desprevenido. Guendoloena... Apropria irmã do rei Ryderc. Guendoloena, que havia desposado Aedan mac Gabran...

— Vens? — perguntou Merlim. — Temos de chegar à floresta antes que aquilo nos caia em cima!

O frade seguiu com os olhos a direção que o rapaz lhe indicava como dedo. Aproximava-se da costa uma borrasca, tão negra como a noite. Anuiu com um sinal de cabeça e inclinou-se para apanhar os alforjes. No movimento, viu o coracle, a algumas toesas da costa rochosa, navegando ao sabor das ondas, sem conseguir afastar-se da rebentação. Não obstante a chuva que engrossava, Blaise ficou para trás a observar aquela desastrada rota, entrecortada por uma ondulação cada vez mais forte. Fazia pena ver um barco tão mal governado... Com sorte, bastaria contornar os recifes para chegarem a uma longa praia de areia branca, onde poderiam encalhar sem danos, se o tempo continuasse a enevoar-se muito.

Calmo, Blaise arremeteu sobre o rasto de Merlim, até à proteção relativa de um pequeno bosque. Aí, ataram conjuntamente os mantos e fizeram com eles um abrigo, debaixo do qual se aconchegaram mais ou menos.

— Não vai tardar — murmurou o monge. — Olha, já se levanta...

Merlim não respondeu. Tal como o companheiro, ele tinha-se voltado para o clarão dourado que, ao longe, atravessava a acumulação das nuvens, mas em vez de se proteger da chuva, levantou-se bruscamente, afastou-se um ou dois passos, pareceu por um instante sorver o ar como um animal selvagem e depois, sem uma palavra de explicação, correu debaixo da chuva, através do bosque.

Blaise abanou a cabeça com um suspiro desolado, sem todavia esboçar o menor gesto para o impedir. Desde que seguia as pisadas de Merlim, por ordem da mãe, a rainha Aldan de Dyfed, ele tinha aprendido o suficiente para saber que era inútil tentar compreendê-lo. Sabe Deus se ele o detestava, se o amava, se o temia, se tinha pena dele, se ainda rezava todos os dias pela salvação da sua alma atormentada. E, sabe Deus, se muitas vezes teria tido vontade de abandoná-lo à sua sorte. Aldan, agora, estava morta, e sem dúvida poderia considerar-se desvinculado do seu juramento, pois o jovem príncipe encontrava-se fora de perigo, a partir da altura em que tinham deixado a ilha da Bretanha. Outro qualquer tê-lo-ia provavelmente deixado embarcar sozinho em Caerfyrddin, nas margens do Tiwi. Àquela hora, em vez de se constipar debaixo daquele resguardo improvisado, Blaise teria encontrado a quietude do seu mosteiro, junto do abade-bispo Dawi, no conforto moral da regra, fora do mundo... Com um nó na garganta, o monge encostou os joelhos ao torso e escondeu neles o rosto. Seguindo Merlim, não estaria em vias de perder tudo, incluindo a sua salvação? Desde que o seguia, até os próprios fundamentos da sua fé vacilavam. Aquele rapaz, que se ria de Deus, não lhe deveria ter inspirado senão repulsa, tal como sentiam instintivamente a maior parte daqueles que cruzavam a sua via errante. E no entanto, não obstante o horror indizível dos seus atos de possesso, não era o Mal que emanava dele, mas tristeza, o peso medonho de um remorso informe e a busca de uma verdade à qual Blaise, tanto como Merlim, não podia renunciar. Uma verdade que talvez viessem a descobrir, para além das terras habitadas pelos homens e abençoadas por Deus, no meio da imensa floresta. No país para além dos bosques, Broceliande... Era sem dúvida pecado de presunção, mas se os seres de que falava o rapaz existiam mesmo, impunha-se que ele os visse com os seus próprios olhos. Que lhes falasse. Que soubesse, finalmente, se os elfos existiam...

O Beneditino endireitou-se bruscamente e olhou em seu redor, como se tivesse sido surpreendido a pecar, consciente da heresia que acabava mentalmente de formular. Como muitos jovens noviços, tinha-se formado em mosteiros bretões inundados de pelagianismo, uma doutrina que na altura valia a excomunhão, de uma ponta à outra da cristandade. E o próprio fato de pretender imaginar que um ser possa existir fora de Deus, sem ser uma encarnação do Maligno, podia fazer dele um anátema, rejeitado pela Igreja e desprezado pelos homens. Assim, não lhe restaria verdadeiramente nada...

Quando a chuva se espalhou para as terras do interior e um sol radioso iluminou os bosques encharcados, o monge encontrava-se em oração, e foi assim que o encontrou Bradwen, puxando atrás de si pelos freios o cavalo e as mulas.

— Estás outra vez só? — disse ele, com um tom brusco, que fez sobressaltar Blaise.

— Ele não deve estar longe!

Como que contrariado, levantou-se, desatou os mantos destemperados e pegou nos alforjes. No mesmo instante, e sem que tivessem dado pela sua aproximação, Merlim apareceu junto deles, trazendo numa dobra da túnica uma braçada de pequenas maçãs vermelhas.

— Meus senhores, eu não arriscava ir para longe. Estamos numa ilha.

— Que dizes?

— Tu ouviste... Vai se preciso encontrar um barco, ou esperar a maré baixa, amanhã de manhã. O continente fica a menos de duas milhas, para sul.

Merlim sorriu-lhes, colocou cuidadosamente a sua colheita sobre um tufo de erva, escolheu um dos frutos e foi sentar-se num tronco de árvore.

— Ao menos não morremos de fome — disse.— Há perto daqui um pomar de macieiras bravas tão carregadas que os ramos se dobram até ao chão. E, se vocês fizerem a fogueira, eu vou pescar, agora mesmo, na praia.

— Dir-se-ia que estás aqui como em tua casa — murmurou Bradwen.

Sem esperar pela resposta, pegou em algumas maçãs e foi para junto dos seus animais, presos à parte. Quando se afastou, Blaise serviu-se por sua vez e sentou-se ao lado de Merlim.

— O que é que se passou, agora? — perguntou em voz baixa, para que só ele o ouvisse. — Tiveste outra visão, não foi?

O rapaz tentou sair dali com um trejeito desenvolto e o esboço de um gracejo que, perante o ar grave do companheiro, nem tentou formular.

— Eu conheço esta ilha — murmurou. — Não sei por que, mas isto não tem nada de visão. É como se já tivesse estado cá... Sei que não é possível, mas é o que eu sinto.

Blaise olhou na direção de Bradwen. O guerreiro afadigava-se junto das mulas e do corcel, sem lhes prestar atenção.

— Pois bem, é isso — disse ele. — E como se chama a tua ilha?

— Ignoro-o... Tens de acreditar em mim. Mas eu sabia onde encontrar estas maçãs, conheço os esconderijos onde se refugiam os congros, no areal, e sei também que há um mosteiro, algures por aí, um mosteiro que abriga um sino de grande valor...

Blaise baixou lentamente a maçã que se preparava para trincar.

— Continua...

— Como assim, continua? O que queres que te diga? Tenho a impressão que conheço esta ilha, é tudo!

O monge pareceu fazer um esforço para se conter e, com um gesto familiar, passou a mão sobre o crânio tonsurado e depois coçou a barba.

— O que dizes faz-me lembrar qualquer coisa — declarou suavemente. — Foi a tua mãe que te falou disso?

— Já não sei.

— Mentes! — gritou Blaise, tão alto e em tom tão rude que Bradwen se voltou na direção deles. — Diz-me a verdade, por uma vez!

Na sua excitação, ele tinha agarrado Merlim pelos colarinhos. Este libertou-se sem deferência e afastou-se do companheiro, ao mesmo tempo perturbado e irritado com a violência repentina manifestada pelo monge. De novo, se enfrentaram e deste confronto foi o rapaz que saiu vencido.

— Acho... (Ele baixou a cabeça, falando tão baixo que a sua voz não passava de um murmúrio.)... Acho que os meus antepassados viveram aqui. As suas marcas permanecem ainda nas árvores e nas pedras, para quem consegue vê-las.

Lançou um olhar na direção de Blaise, que não reagiu.

— Foram os monges da nossa terra que correram com eles — retomou com um tom mais hesitante. — Bretões vindos do mar, conduzidos por um padre que usava uma estola... Pela magia do teu deus, eles lançaram-se à água e não voltaram a ser vistos.

Lentamente, o clérigo levantou os olhos na direção do rapaz. Com o coração abalado, por alguns instantes esforçou-se por reunir as suas próprias recordações e confrontá-las com aquilo que Merlim acabava de dizer. O padre portador de um sino sagrado, agitando a sua estola...

— Foi assim que Paulo expulsou o dragão — arriscou ele. Merlim encolheu os ombros, rindo de troça.

— O dragão! O diabo! Porque é que nunca chamas as coisas pelo seu verdadeiro nome?

— Creio que sei onde estamos — insistiu Blaise, sem levar em conta a observação. — E, se não me engano, foi o Deus Todo-Poderoso que nos guiou até aqui, meu filho...

— Nem sempre é o caso?

— Não... Não, não tentes rir disto. Tu conheces esta história tão bem como eu. Esta ilha chama-se Battha e o padre com a estola é Paulinus Aurelianus[7], filho do conde Porphirius e membro da tua própria linhagem!

Tinha voltado a aproximar-se de Merlim e tinha-o agarrado pelo braço, transtornado com aquela revelação, mas este libertou-se vivamente.

— Não é a minha linhagem!

— Tu és o príncipe. Emrys Myrddin, filho de Ambrosius Aurelianus. E Paulo Aureliano é...

— Não é a minha linhagem! Eu sou bastardo, esqueceste? Pergunta-lhe!

Com um gesto raivoso, indicou Bradwen, que os escutava à distância sustendo a respiração, sem compreender bem o que ouvia.

— Eu sou Merlim, filho de Morvryn, senhor dos elfos de Broceliande — retomou mais baixo, com voz inocente. — A minha linhagem é a que Aureliano combateu aqui! A minha linhagem é aquilo a que chamas o dragão, o ímpio, o diabo! Aminha linhagem fugiu para além daquele braço de mar, para uma terra sem homens. É para lá que eu vou!

Blaise conformou-se sem responder e em seguida voltou-se, o tempo de reencontrar a calma e ordenar as idéias. Voltando-se novamente para Merlim, levantou as mãos num gesto de conciliação.

— Onde quer que vás, irei contigo... Se assim o quiseres. Mas concede-me algumas horas, peço-te. Tenho de encontrar o mosteiro de Aureliano. Se Deus nos conduziu até aqui, exatamente aqui, não é por acaso, entendes?

— Não contes que vá esperar por ti indefinidamente.

— Até hoje à tarde, ou amanhã de manhã, a jusante. Assim, poderemos atravessar a pé-enxuto. E se forem verdadeiramente elfos que Paulo Aureliano expulsou de Battha, sabê-lo-ei.

Enquanto falava, tinha agarrado calorosamente os ombros do rapaz, que se acalmou e concedeu um sorriso.

— Amanhã, o mais tardar, tomaremos o caminho da grande floresta. Mas seja o que for que lá descubramos e aconteça o que acontecer, não te esqueças da tua verdadeira família.

O rapaz abria já a boca para responder, mas o monge foi mais lesto a precisar o seu pensamento.

— O teu filho, Merlim. Não te esqueças do teu filho...

 

                             A Ilha Antiga

Também hoje, estava bom tempo... Lá em baixo, crianças banhavam-se no riacho resplandecente, lançando gritos agudos que prevaleciam sobre o rumor da cidade, os barulhos do mercado e o martelar irregular que provinha da oficina do ferrador. Os monges acabavam de assinalar a tércia[8] e dissipava-se já a frescura da noite, até no quarto de Guendoloena.

Hoje estava bom tempo, mas bom para quê? Não seria para ela que mais um dia ficava fechada, sem ver o seu recém-nascido, tendo como única visita o bailado servil de camareiras que falavam um gaélico desagradável que ela mal compreendia ou, como todos os dias, a passagem de uma parteira rabugenta, cujas mãos calejadas vinham zurzir nela com rudeza antes de lhe ligar o ventre e os seios. Enquanto a rainha perdesse sangue e o leite não tivesse secado, ela continuaria impura e não podia ouvir missa, receber a comunhão ou mesmo ver o rei. E estaria tudo certo se lhe trouxessem notícias do filho, confiado a uma ama qualquer, e cujo eco dos choros, ao longe, lhe despedaçava o coração durante as noites de insônia.

O estalido seco da fechadura fê-la sobressaltar-se. Enquanto a porta se abria, ela afastou-se do postigo como um garota surpreendida em falta, algo de que se censurou imediatamente. Levantando o queixo, aprestava-se já para mandar embora a criada que trazia o leite e os frutos secos do seu repasto matinal, mas quem entrou foi um homem. Um ancião com o hábito de burel negro dos monges, avançando com dificuldade, passo após passo, a cabeça baixa, ajudado por um noviço que mantinha também ele o olhar no chão, como se a mera visão da rainha o pudesse macular.

Guendoloena suspirou ruidosamente para marcar a sua irritação, sem qualquer efeito sobre os dois religiosos que levaram um tempo infinito a chegar ao canto mais escuro do quarto. O velho sentou-se com um gemido de prostração numa banquinha forrada com pele de urso. Posto isto, o noviço saiu de imediato e, tendo voltado a fechar a porta atrás de si, Guendoloena dirigiu então a sua atenção para a sua visita, que adiantou o rosto para a luz. Ela reconheceu-o logo e caiu de joelhos, com as mãos juntas. Era Columbano, o santo homem da ilha de lona que toda a Bretanha venerava sob o nome de Columb Cule, «a pomba da Igreja».

— Perdoe-me, querido padre, eu não esperava...

O ancião sorriu.

— Tu é que tens de me perdoar, minha filha. Eu tinha prometido visitar-te regularmente e eis que, desde o teu casamento, nunca mais vim a Dunadd... Aproxima-te de mim.

A rainha foi sentar-se a seu lado, no canto escuro onde ele se havia recolhido. Ela retribuiu-lhe o sorriso, sem saber o que dizer, e começou logo a ficar vermelha ao reparar que só trazia vestida uma camisa cujo fino tecido de linho não devia dissimular nada das suas formas quando alguns momentos antes se encontrava em frente à janela resplandecente de luz. Pensando bem, talvez fosse esse o motivo por que o fradinho se retirou tão depressa...

— Deixa-me olhar-te — murmurou Columbano. Guendoloena fez um esforço para se recompor, mas perturbou-se logo ao descobrir a figura do frade-abade. Apesar da sua magreza e cabeça completamente rapada, segundo o costume da Igreja celta, Columbano tinha conservado um porte distinto, mas os olhos estavam cobertos por uma névoa opalina que cobria as pupilas quase por completo. Um olhar de cego... Com seus dedos pergamináceos, Columb Cille tocou-lhe ao de leve no rosto, depois pegou-lhe nas mãos e apertou-as com ardor.

— Já quase não vejo — queixou-se ele. — E a luz do dia faz-me mal... É assim. O Senhor castigou-me pelos meus pecados, fazendo-me levar a existência de um enfermo, inútil e incapaz até de me deslocar sozinho. Com certeza que me acha indigno de me juntar a Ele...

— Se não sois digno, querido padre, pergunto-me quem o será?!

— Não acredites nisso.

Columbano deu-lhe umas palmadinhas na mão e encostou-se à parede com um longo e doloroso suspiro.

— Tenho cinqüenta e dois anos. Não sou assim tão velho, sabes... Outros estão na força da idade, andam a cavalo e lutam, enquanto eu não faço senão expiar, mais e mais, até que a conta das almas esteja restabelecida a meu favor...

— Querido padre, não compreendo...

— É porque tu és bretã — murmurou Columb Cule. — Todos os Gaélicos da Hibérnia[9], ou da Escócia conhecem a minha história e o meu pecado. É justo que tu também o fiques a conhecer...

— Querido padre, eu...

O santo homem levantou a mão para interromper os protestos da jovem rainha.

— Quando era jovem, eu não tinha qualquer intenção de consagrar a minha vida ao serviço de Deus. Eu queria ser rei, ou ao menos um nobre guerreiro. Para isso tinha eu o sangue. Pertencia à dinastia real dos Ui Neill por meu pai e à casa de Leinster pela minha mãe. No entanto, obrigaram-me a entrar para as ordens, para o mosteiro do meu mestre, Finnian de Moville. Mas a sua santidade e o seu exemplo não foram suficientes para reprimir o meu orgulho. Um dia, recebi do mosteiro de Magh-Bile uma tradução dos salmos de São Jerônimo para copiar. Quando acabei impediram-me de ficar com o meu trabalho. «Todo o vitelo deve ficar junto da mãe», dizia-se... Podia consultar os salmos no local todas as vezes que quisesse, aliás eu conhecia-os de cor após tê-los por tanto tempo transcrito. Mas em vez de obedecer, fugi como um ladrão, levando comigo o livro sagrado... Isso provocou uma horrível batalha, em Coodrebne, uma mortandade na qual furiosamente participei... Tantos mortos, tantos feridos cobertos de sangue, por causa de um livro de orações, e por minha culpa...

O ancião parou. Apesar do escuro, Guendoloena achou distinguir uma lágrima a escorrer-lhe pela face.

— Não há maior crime do que mandar matar em nome de Deus — lamentou-se ele. — Tal é a minha penitência: conduzir à fé tantas almas quantas se perderam por minha culpa. Com certeza que estou ainda longe da conta...

Durante um longo momento, nada mais houve entre eles para além de um silêncio constrangido, o tempo de o abade voltar a si.

— Vês que velho imbecil eu sou — disse por fim. — Vinha reconfortar-te e não faço senão lastimar-me de mim mesmo. Perdoa-me.

— Só a sua presença é um reconforta, querido padre. Estou fechada neste quarto desde o nascimento do meu filho...

A jovem deixou a frase em suspenso. Um nó apertava-lhe a garganta, como todas as vezes que pensava naquele bebê que lhe haviam tirado dos braços, assim que veio ao mundo. Estaria ainda vivo? Não era raro que um recém-nascido sucumbisse nos primeiros dias, sobretudo quando a sua sobrevivência se tornava um incômodo... uma deformação congênita vergonhosa, o nascimento de uma rapariga quando se esperava um rapaz ou, pior ainda, o de um bastardo... Ela afastou esse pensamento horroroso, inconcebível, vendo que Columbano a observava com o seu olhar vítreo.

— Sinto-me só — disse ela, com um triste sorriso. — Aedan escreve-me todos os dias, como se estivéssemos à milhas de distância, quando lhe bastaria assomar à porta.

— Tu sabes bem que ele não pode, enquanto estiveres impura. Já não demora muito tempo. Daqui a um dia ou dois, deverá estar acabado. Ao menos, vais poder sair...

— Ver o meu filho, finalmente!

Columbano observou-a em silêncio, com ar grave, até desaparecer o seu sorriso.

— O jovem príncipe e o rei são sagrados ao olhar de Deus... Vai ser preciso esperar pelas purificações, minha filha.

Guendoloena sentiu-se desfalecer.

— Vai ser só mais um mês — prosseguiu Columbano. — Aliás, tu não poderias vê-los. Aedan apresta-se para deixar Dunadd a fim de me acompanhar à convenção de Druim Cett, na Hibérnia. Vamos apresentar o teu filho ao grande-rei Aed. Se assim o desejares, poderás recolher a um convento de religiosas durante esse tempo, mas não é uma ordem...

Foi para isto que vieste? — pensou ela. — Quanto tempo não terás passado a falar de política com Aedan antes de vires ver-me?

Longe de reparar na inquietação da rainha, o abade de lona revelou alguns espasmos de um riso doente, antes de concluir com uma observação cuja ironia lhe escapou.

— Dá graças a Deus por ter sido um rapaz. Por uma rapariga, a purificação é de sessenta e seis dias.

Guendoloena levantou-se, sem conseguir responder, tão presa tinha a garganta, e foi até à janela para respirar.

— Porque é que, ao menos, não pude ficar com o meu servo Cylid nem com a minha criada de quarto?

— Cylid é um homem, não se pode aproximar de ti. Quanto a essa mulher, o capelão mandou-a embora. Disseram-me que ela passou uma faca por baixo do teu colchão — para cortar a dor, é uma crença de cá...

Guendoloena agitou a cabeça denotando um riso sem alegria.

— Isso não foi muito eficaz, querido padre, acredite. O ancião sorriu-lhe com ternura e pegou-lhe na mão.

— Não foi dito que a mulher dará à luz na dor? Deves dar graças ao Céu pelos teus sofrimentos, pois é graças a eles que toda a filha de Nosso Senhor redime o pecado de Eva, permitindo-lhe a esperança de alcançar a graça divina... Nemo enim coronabitur nisi qui legitime certaverit[10].

A rainha absteve-se de responder, sabendo ela que não conseguiria evitar de deixar transparecer amargor ou sarcasmo nos seus ditos.

— É um dia especial — retomou suavemente Columbano. — A família dos cristãos conta com mais um filho. O teu filho foi batizado...

A rainha ficou estática, enregelada até ao mais íntimo das suas entranhas. Isso não tinha sido falado nas cartas de Aedan. Que fosse educado na fé cristã, era mais que certo. Ela até tinha, muitas vezes, tentado evocar com ele nomes para o bebê, fosse rapariga ou rapaz, durante as últimas semanas da sua gravidez. Mas o Escoto limitava-se a opinar sobre as suas sugestões, sem nunca dar claramente o seu parecer. Deus queira que ele não lhe tenha dado um daqueles nomes horríveis de Hibérnia, herdado de algum nobre antigo do Dal Riada, como os seus irmãos mais velhos Garnait, Eochaid Find ou Tuthal...

— O jovem príncipe usa um nome de rei — prosseguiu o abade. Columbano fez uma interrupção, manuseando os seus objetos pessoais com um sorriso quase juvenil.

— Querido padre, não é nada cristão fazer-me impacientar assim.

— Tens razão... O teu filho chama-se Artur. Um nome que o tornará amado de todos os Bretões, se um dia vier a reinar...

O silêncio era tão intenso que se ouvia o crepitar das chamas nos tocheiras e o bater a chuva na rua, contra o chão de pedra. Eram uma dúzia, à volta de grandes mesas que podiam acolher cinco vezes aquele número, comendo vorazmente, inclinados sobre as escude-las, como se não pensassem senão em despachar o mais rápido possível uma formalidade fastidiosa e irem deitar-se para assim acabar com aquele dia de tempo carregado. Apesar do seu tamanho imponente, o local onde se encontravam reunidos não se assemelhava nada a uma sala de solenidade, digna de um senhor da linhagem de Withur, conde de Battha e de Leão, homem enfeudado do rei dos Francos, Chilpéric, vassalo de Judual, soberano de Domnónia. As paredes eram em pedra nua e o chão de terra batida. Não se viam tapeçarias nem peles, nada de palha no chão para se proteger da umidade e, como única decoração, uma cruz esculpida sobre o pano da chaminé, onde arroxeava uma lareira de carvão. Não havia uma criada para encher as taças, nem bardo ou Jogral para divertir aqueles homens pálidos e sombrios, todos vestidos de lã grosseira e de couro compacto, usando, na sua maior parte, uma arma ao lado e grandes braceletes de bronze em volta dos antebraços, sem que nada distinguisse o conde dos seus barões.

Alguns minutos antes, um esquadrão de guardas tinha conduzido até eles um punhado de homens, mulheres e crianças, apanhados no areal, e foi com dificuldade que os comensais lhes dispensaram um olhar, interrompidos de comer à sua chegada. Quando acabaram — e só então — um deles se levantou, limpou o queixo reluzente de gordura e deu a volta às mesas para os examinar. Em nada diferente dos outros, a não ser na idade, não tinha barba e usava cabelo curto, à moda romana, o que não fazia senão sublinhar mais ainda a rudeza das suas feições causticadas pelo mar e pelo vento. Sem dizer uma palavra e, não obstante as suas roupas despidas de qualquer luxo, todos compreenderam, ao vê-lo, que se tratava do próprio conde, e todos simultaneamente, se ajoelharam à sua aproximação. Withur observou-os por alguns momentos, achou-os dignos de compaixão com as roupas a escorrer da chuva e com bagagens discordantes a embaraçá-los (até havia um porco e uma gaiola de verga cheia de galinhas!), em seguida fez sinal ao sargento que comandava o destacamento para falar.

— Senhor, esta gente procura asilo — disse o militar. — O seu barco encalhou na praia, e, apesar de tudo, pensamos que...

— Fizeste bem — disse o conde.

Com um sorriso cansado, avançou para levantar um dos pobres-diabos ajoelhados diante dele. Era um homem de idade, mais velho que o próprio Withur, encharcado até aos ossos e a tremer convulsivamente.

— Donde vens?

— Senhor, eu sou de Llanddowror, em Dyfed...

O conde meneou a cabeça e bateu-lhe no ombro.

— Mais emigrantes da Bretanha... Está bem.

Com um gesto, mandou aos outros homens, mulheres e crianças, que se levantassem.

— Tendes aqui comida e dormida de graça. Amanhã, aqueles que de entre vós não são cristãos serão batizados e depois, se o tempo permitir, atravessareis o canal até Kastell Leon[11]. Daí, tomareis a partir para o pagus Daoudour[12]. O proposto arranjar-vos-á trabalho.

Alguns olharam-se com um ar inquieto, outros precipitaram-se para o conde para lhe beijarem a mão, mas Withur desembaraçou-se sem deferência.

— Não me agradeceis. Durante um ano, a contar deste dia, ficareis ligados a um cômoro[13] ao qual deveis obediência, impostos e corveias. Nada vos pertencerá, nem as terras, nem os pardieiros, nem os filhos, nem mesmo as roupas que tendes. Daqui a um ano, se tiverdes dado provas da vossa lealdade para comigo e da vossa fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, então sereis dignos de viver como homens livres... Daqui até lá...

Ele lançou sobre eles um olhar temeroso.

— ...Que Deus tenha compaixão de vós se não obedecerdes ou se não vos mostrardes bons cristãos! Levai-os.

Enquanto o grupo se juntava, lastimando-se, e o conde se voltava já para retomar o seu lugar à mesa, o sargento arranhou a goela para chamar a sua atenção.

— Que mais?

— Senhor, aquele não estava com eles — disse o militar, indicando um homem que continuava de joelhos, guardado de perto por dois guardas de espada desembainhada. — Apanhamo-lo a norte, perto do Toul ar Sarpent, e no regresso é que encontramos aqueles. Quando o reconheceram, pensei que o iam matar...

— Verdade?

Withur lançou para os seus barões um sorriso divertido e a seguir procurou com o olhar o ancião a quem tinha falado um pouco antes.

— Tu, ancião, vem cá!

Este destacou-se dos outros e aproximou-se do conde.

— Conheces este homem?

— Sim, senhor — disse o velhote de Llanddowror, com um olhar de ódio puro na direção do prisioneiro. — É um pirata e assassino. Tínhamos pagado muito caro pela travessia, mas eles tentaram matar-nos e roubar-nos!

— Como «eles»? — perguntou Withur. — Há outros?

— Os outros estão mortos, senhor... Aquele saltou à água para salvar a vida.

O conde mirou de alto a baixo o prisioneiro, observou com um ar, ao mesmo tempo dubitativo e divertido, o grupo lastimável dos sobreviventes e pôs-se a rir às gargalhadas, logo acompanhado, na sua hilaridade irrepreensível, pelos barões abancados à mesa. Entre eles, um monge de cabeça completamente rapada, como era costume, vestido com um hábito de burel branco e com uma sobreveste em pele de cabra, levantou-se abruptamente. Cessaram logo as risadas.

— Desculpa — disse por entre os dentes Withur olhando para o monge, de sorte que não sabiam a quem se dirigia senão quando se voltou para o ancião. — Desculpa, mas não temos razões nenhumas para nos rirmos esta noite... É que não me parece que tenhas físico para atirar borda-fora um patife tão prazenteiro, e menos ainda para matar os seus companheiros!

— Não foi ele, nem nenhum deles, senhor! — resmungou o prisioneiro.

Um dos guardas que o rodeavam ia levantar já o braço para lhe vibrar uma pranchada, mas o conde sacudiu a cabeça.

— Tu, tens alguma coisa para dizer?

— Eu não sou pirata, senhor. Chamo-me Gorthyn, sou marinheiro, pela graça de Deus Nosso Senhor, e estes hereges com a ajuda de um feiticeiro, roubaram-nos o nosso barco!

Um silêncio feito já não de aborrecimento e fadiga mas de assombro, indignação e pavor recaiu sobre a sala comunal. Na mesa principal, os homens de armas e os barões de Withur levantaram-se, com o aspecto ainda mais grave que o habitual; alguns aproximaram-se do conde, como que para protegê-lo. Aos encontrões naqueles que não se afastavam suficientemente depressa, o monge da sobreveste de cabra precipitou-se para a primeira fila, com uma pressa que, noutros lugares e noutras circunstâncias, teria feito rir.

— Acusas estes desgraçados de bruxaria? — rosnou o conde. — Toma cuidado marujo. Não são coisas que se digam irrefletidamente, por cá...

Quase empurrando Withur, o monge postou-se diante de Gorthyn, antes que este tivesse tido ocasião de responder.

— Ouve-me, ó homem. Eu sou o padre Cetomerinus, capelão do Senhor Bispo. A mim, não podes mentir, pois seria mentir ao Próprio Deus e arderias no inferno durante mil anos. Está entre eles esse feiticeiro? — perguntou ele indicando com um movimento de cabeça o grupo dos emigrantes.

Gorthyn benzeu-se furtivamente e até chegou a agarrar no hábito do religioso para o levar aos lábios com devoção.

— Não, senhor padre, ele não está ali... Talvez tenha fugido, ou talvez se tenha transformado em ave marinha! Mas juro por Nosso Senhor e pela Virgem Maria que digo a verdade. Perguntai-lhes. Todos eles, como eu, viram aquele demônio!

Withur e os seus barões voltaram-se para os sãos-e-salvos, comprimidos uns contra os outros como um rebanho de carneiros assediado por lobos e com ar igualmente aterrorizado. O conde praguejou (o que lhe valeu um olhar de soslaio do monge) e fechou os seus enormes punhos. Abria já a boca para interrogá-los, mas Cetomerinus reteve-o pelo braço.

— Esse feiticeiro — perguntou ele a Gorthyn — é parecido com quê? — Quanto a isso, não corro o risco de esquecê-lo! Por vezes, diria, com uma criança, por vezes com uma mulher, por vezes com um velho. Tem os cabelos completamente brancos, com pelo menos um côvado de comprimento, e veste-se de negro, com um arco... E depois...

— Continua, vejamos!

— Senhor padre, perdoe-me — disse Gorthyn baixando a cabeça. — Anda um monge com ele.

— Um monge?

Cetomerinus largou o braço do conde, com o rosto repentinamente tão pálido como um hábito de burel.

— Que o céu me fulmine se minto, senhor capelão! Ele... não usava hábito branco, como o senhor. O dele era preto... e tem barba!

— Santo Deus...

Por um instante o religioso pareceu vacilar, com o olhar perdido no vago. Em seguida olhou o conde com um ar perturbado, gaguejou algumas palavras, significando que esperassem por ele, e foi-se embora a passos largos.

Fora, chovia a potes e a noite não podia estar mais negra, com nuvens carregadas a tapar a lua cheia. O capelão não hesitou um instante, puxou o capuz para cima da cabeça e caminhou rápido pelo caminho que conduzia à tapada monástica, fora do burgo e das muralhas. Em alguns minutos, chegou junto ao muro que contorna o mosteiro, tamborilou à porta até que o irmão porteiro a abrisse e depois avançou pelo recinto, direito à única construção de pedra da zona, que abrigava ao mesmo tempo o santuário e a célula do abade.

A sua irrupção repentina na capela fez sobressaltar um noviço que estava sentado no vão, entre duas pilastras, que o olhou com um ar espantado. Cetomerinus esforçou-se por sorrir, fez-lhe sinal para voltar a sentar-se e depois ajoelhou-se diante do altar-mor, o tempo de retomar o fôlego. A chuva escorria sobre a rugosa pele de lã do seu hábito, que a lama do caminho, por sua vez, tinha amplamente enlameado. Não era com certeza porte para se apresentar perante um santo homem, por isso ao menos devia esperar encontrar um rosto calmo e igual respiração. À direita do altar, uma pequena porta fazia a separação entre a capela e a célula onde se tinha retirado o mestre, velado nesse preciso momento pelo homem que ele tinha vindo procurar. Com o corpo finalmente em descanso, mas com a alma sempre tão sobressaltada com a idéia que o mestre pudesse correr algum perigo, o capelão esvaziou por completo o ar dos pulmões, benzeu-se e, a passos lentos, dirigiu-se para a porta.

O quarto, inundado por um odor seco e suave, era minúsculo, iluminado apenas por uma lamparina a boiar numa copela de azeite. Sobre uma cama baixa jazia Paulus Aurelianus. Com a idade de cento e quatro anos, aquele que todos consideravam como um dos maiores santos da cristandade, através das duas Bretanhas e até à corte do rei Chilpéric, em Paris, esperava desde há algumas semanas a morte que tardava em chegar, quando as suas últimas forças o tinham deixado havia muito tempo. Tornado bispo de Leão, contra a sua vontade e muitos anos antes, Aureliano tinha escolhido, à última hora, terminar a sua longa caminhada em Battha, no seu mosteiro, longe das riquezas e da opulência que desavergonhadamente ostentavam os prelados da Igreja franca. O capelão, alarmado com a imobilidade do mestre, aproximou-se sem fazer barulho e colocou a mão hesitante sobre o seu rosto.

— Não temas, irmão, está a dormir...

Cetomerinus endireitou-se, esforçando-se por dar boa imagem ao monge de burel preto acocorado à cabeceira do santo homem.

— Isto ordinariamente não lhe acontece — murmurou.

Ao vê-lo assim, tão magro e apergaminhado como um cadáver, parecendo já verdadeiramente morto, na penumbra da célula, Cetomerinus ficou com as lágrimas nos olhos. Desta vez, o mestre ia mesmo morrer... Já por duas vezes, Paulo Aureliano tinha renunciado ao cargo de bispo e nomeado um sucessor, primeiro o seu discípulo Jaoua e a seguir o sábio Tiernmaèl, mas um e outro foram chamados por Deus antes dele. De ambas as vezes, o ancião tinha retomado o seu cargo, durante o tempo necessário para formar um novo discípulo. Sem dúvida que o próximo seria ele, Cetomerinus. E sem dúvida que esse momento estava mais próximo do que ele esperava...

O capelão afastou-se do catre e voltou-se a seguir para o monge tonsurado e barbudo.

— Foi a si que eu vim ver — disse baixinho. — Pode acompanhar-me lá fora, irmão Blaise?

O capelão saiu sem esperar, dirigiu-se direito ao noviço para lhe mandar que velasse sobre o sono de Aureliano e atravessou em seguida a igreja, tendo parado no Vestíbulo o tempo de Blaise chegar junto dele. Continuava a chover a cântaros e o guarda-vento de madeira que pendia sobre a porta principal com duplo batente oferecia apenas um fraco abrigo. No entanto, há coisas que não se diz na casa de Deus, mesmo que esteja a chover.

Blaise fez uma careta ao ver as trombas de água que se despejavam lá fora.

— O que se passa? — perguntou ele enquanto cobria a cabeça com o capucho.

— Tinha-me dito que tinha chegado esta manhã à ilha?

— Sim...

— A bordo de um coracle, com um grupo de emigrantes?

O monge franziu as sobrancelhas, mas respondeu afirmativamente, temendo no entanto estar a compreender onde queria chegar Cetomerinus.

— Tem de me acompanhar à casa do conde — disse este.

— A uma hora destas e com este tempo? — disse Blaise. — Tem de ser um assunto grave...

— Roubo, homicídios, possessão... bruxaria... É suficientemente grave para si, irmão?

 

                               O Julgamento

O sol cintilava através das ramagens do abrigo, ainda cintilantes da chuva que não tinha parado de cair durante toda a noite. Bradwen tinha acordado com o grito roufenho das gaivotas e seguia com o olhar o seu vôo à volta do areal.

Ele sentia-se sujo, malcheiroso, com a barba e os cabelos cheios de areia, o corpo dorido por aquela noite penosa, as roupas ainda úmidas. Endireitou-se com um murmúrio de dor, saiu do abrigo e colocou a mão em pala para inspecionar a praia. O mar estava calmo, resplandecente ao sabor da ressaca. Não se via o rapaz em parte alguma. Com certeza que teria ido à procura de mariscos ou de frutos... Bradwen voltou as costas às ondas e aproximou-se de uma moita para aliviar a bexiga. De repente, os seus sentidos ficaram em alerta. Uma silhueta furtiva acabava de se esconder atrás do tronco de uma árvore, a menos de dez côvados dali... Instintivamente, levou a mão à ilharga, mas tinha deixado a espada no abrigo, junto ao arco de Merlim. Por momentos, o tempo de se recompor, espreitou a orla do bosque e em seguida, com uma brusca calma, avançou para a sua cabana de ramagens. A sua progressão interrompeu-se por completo quando vislumbrou um figurão instalado diante do abrigo. O homem usava cabelo curto à moda bretã, e vestia apenas uma túnica de couro que lhe cobria os calções, tendo como única arma uma adaga, que até nem tinha desembainhado. Enquanto os seus soldados se aproximavam deles, ele olhou de soslaio para Bradwen com soberano desdém.

— Quem sois? — gritou este. — Onde estão os meus animais?

O homem sorriu e lançou um olhar de conivência a um dos seus guardas. De repente, Bradwen sentiu-se agarrado por mãos poderosas que o forçaram a pôr-se de joelhos.

— Já que queres saber, eu sou o sargento Erle e pertenço ao conde Withur, senhor desta ilha e de todo o Leão. Satisfeito?... Agora cabe-te a ti falar. Onde está o feiticeiro?

— O quê?

A haste de uma lança bateu-lhe duramente entre as omoplatas, deitando-o por terra.

— Onde está o feiticeiro? — repetiu o sargento com o mesmo tom de voz.

Desta vez, Bradwen tinha compreendido. O monge devia ter sido capturado; aqueles brutos deviam tê-lo obrigado a falar. O feiticeiro que eles procuravam não podia ser senão Merlim.

Recompôs-se lentamente, alongou os ombros doridos e, sempre de joelhos entre os guardas, contemplou o areal, o movimento calmo das vagas e o céu completamente azul. Merlim não lhe era nada e bastar-lhe-ia provavelmente contar tudo o que sabia para salvar a sua própria cabeça, mas Bradwen optou por manter o silêncio... Sem razão válida — em todo o caso nenhuma que mereça colocar em risco a sua vida — ele tinha naquele momento decidido parar de fugir. Talvez por causa daquilo que o rapaz tinha lido nele. Talvez apenas porque a manhã estava linda... Aquele pensamento alegrava-o e o seu sorriso valeu-lhe logo mais uma pancada, ainda mais violenta, à qual, no entanto, desta vez resistiu.

— Fales ou não fales não tem a menor importância — disse o sargento. — Encontrá-lo-emos de uma maneira ou doutra.

— Então procura-o e deixa-me em paz.

Por momentos, os dois homens de armas fitaram-se, Bradwen com toda a raiva e inflexibilidade de um indivíduo prestes a morrer, o outro com a indiferença divertida de um soldado habituado a matar, para quem a vida de um indigente apanhado no areal não valia qualquer hesitação. Erle desembainhou a adaga com um lento rangido de aço.

— Como queiras...

Agarrou Bradwen pelos cabelos, puxou-lhe a cabeça para trás e levantou a mão armada, mas no momento em que ia desferir a golpe, uma pedra atingiu-o no punho, com tamanha força que a arma voou até vários pés dali.

— E a mim que procuras?

Num só movimento, os guardas voltaram-se para o pequeno bosque donde provinha a voz. E a julgar pelas suas caras, sem dúvida que esperavam ver algum demônio saído dos infernos, um feiticeiro rodeado de chamas ou qualquer outro horror pavoroso, mas com certeza que nunca aquele rapaz tão frágil como uma menina.

— Eu sou Merlim — disse ele enquanto avançava calmamente para eles. — Esse homem...

O seu olhar incidiu imperceptivelmente sobre o Bradwen e depois voltou a fixar-se sobre o sargento.

— ...Esse homem não está comigo.

Por instantes, o soldado pareceu hesitar, depois largou Bradwen com um gesto brusco e afastou-se para apanhar a adaga caída na areia.

— Agarrem aquele fedelho — ordenou ele com o queixo. — Quanto a ti...

Bradwen tinha voltado a levantar-se. O seu coração dava-se por vencido, mas as mãos não tremiam, e ele olhou de frente o sargento com um olhar calmo.

— ...Reza para que os nossos caminhos nunca mais se cruzem.

Erle voltou a olhá-lo de alto a baixo com uma risota de desprezo, mas quando pareceu ir-se embora, o guerreiro segurou-o pelo braço.

— Um momento!

O outro tentou libertar-se, mas Bradwen tinha pulso e a sua raiva não se tinha esgotado.

— O meu cavalo e as minhas mulas...

Mais uma vez eles miraram-se, realmente parecidos, o homem da Cúmbria de cabelos compridos e barba preta, o bretão tão barbeado como um Romano, mas um e outro da mesma idade, da mesma estatura e levando vidas similares. Desta vez, todavia, a relação de forças não era a mesma.

— Lá atrás — resmungou o sargento. — No bosque...

Bradwen ergueu a cabeça e largou-o. Sem mais se preocuparem com ele, os guardas deram meia volta, cercando estreitamente o rapaz. Durante todo o tempo em que os seguiu com os olhos, Merlim não se voltou uma única vez na sua direção.

Mais abaixo da elevação feudal de Withur, Battha era uma aldeia de pescadores e marinheiros, com um porto atulhado de barcos de todos os tamanhos e sobre o qual pairava um cheiro entontecedor a sargaço e peixe fumado. A tempestade da véspera tinha destemperado o chão e desgraçado as redes, estendidas em tão grande número pelo burgo que este parecia preso numa imensa teia de aranha. Para além do fortim e da igreja do mosteiro, eram raras as construções de pedra e no entanto reinava ali certa opulência, sem todavia qualquer ostentação. Porcos, cães e uma enorme quantidade de animais de toda a espécie circulavam livremente entre os balcões dos marchantes, sem que ninguém, aparentemente, pensasse em apoderar-se deles, quer por medo dos guardas de Withur, quer por respeito aos Mandamentos. Nenhum daqueles com quem se haviam cruzado tinha aspecto de verdadeiro rico, mas nenhum deles era pobre, a avaliar pelo seu aspecto e seus trajos de boa lã. Para atingir a elevação, Erle e os seus homens tinham por vezes de dar uns empurrões pelas ruas estreitas e sobrepovoadas, ensurdecidos pelas vociferações da multidão no mercado, o martelar dos artesãos e o ribombar dos pipos a rolar sobre as conchas a partir do porto. Mais de uma vez, Merlim teria conseguido fugir no meio daquela multidão. Ter-lhe-ia bastado abaixar-se, misturar-se com um grupo de pacóvios ou introduzir-se debaixo de um balcão, tanto os guardas pareciam mais desejosos em sair daquela confusão do que em guardar o prisioneiro. Todavia, não fez nada disso, e seguiu-os docilmente até às fortificações em volta da elevação, e depois no reduto que lhes servia de acantonamento.

— Espera aí — disse simplesmente Erle, saindo logo depois de lhe ter indicado vagamente um banco desocupado ao lado da mesa.

Os outros arrumaram as lanças no armeiro, vieram sentar-se à mesa a seu lado e serviram-lhe de beber. A cerveja estava tépida, ácida e rançosa, mas o rapaz agradeceu-lhes e esvaziou de uma assentada a sua taça de estanho.

Por um momento, permaneceram calados, suados e esbaforidos, em seguida um guarda pousou a caneca e inclinou-se para ele.

— Tu não pareces um feiticeiro, ó miúdo...

— O que é que percebes disso?— disse o vizinho do lado. — Não és sargento?!

Os outros riram às gargalhadas, mas puseram-se a observá-lo sem vergonha, incluindo dois soldados desocupados que não faziam parte do grupo deles.

— Dir-se-ia antes uma rapariga, com aqueles cabelos compridos...

— Dir-se-ia antes que não come há muito tempo. Nunca se viu ninguém tão magro... Tens fome, miúdo?

Merlim disse que não com a cabeça.

— Em todo o caso, o teu companheiro é um valentão. Fiquei deveras convencido que, há bocado, Erle ia matá-lo...

O rapaz reprimiu a sorriso, pensando no orgulho que Bradwen teria experimentado ao ouvir tais palavras.

— Não é...

— Oh, eu sei, não é teu companheiro. Diz isso ao sargento, mas não a nós... Seja quem for, se não tivesses atirado a pedra, ele teria ficado ali.

— Um rico tiro, a mais de dez passos, em cheio na mão de Erle!

— Ele atirou uma pedra ao sargento? É por isso que está aqui?

— Estamos a dizer-te que é um feiticeiro...

— Eu acho antes que tem ar de menina.

— Está bem, já o disseste. Bem, eu cá tenho fome. Passa-me o pão... Quando o sargento voltou, cerca de meia hora depois, encontrou

Merlim sentado fora, encostado aos toros do posto da guarda, conversando ao sol com um dos guardas. A algumas toesas dali, um patíbulo com tamanho suficiente para receber ao mesmo tempo meia dúzia de condenados projetava sobre eles a sua sombra sinistra.

— Levanta-te — disse ele. — Eles estão à tua espera...

O rapaz levantou-se prontamente, enquanto Erle tirava dos calções um atilho de couro.

— Vou ter de te ligar as mãos — resmungou.

— Sargento, não vale a pena — protestou aquele que tinha ficado com Merlim. — Não passa de um...

— Cala-te. Amarra-o, rápido, já que és tão esperto. E vem comigo. Depois de lhe ligarem os pulsos, os dois homens tomaram o caminho da residência senhorial, enquadrando estreitamente Merlim. Momentos mais tarde, entravam no salão, onde toda a assembléia se encontrava à sua espera. Estava fresco, comparando com o exterior. Quando os seus olhos se habituaram à penumbra, avançaram para diante da grande mesa onde o conde Withur, como costume, reunia a sua corte de justiça, assistido por Cetomerinus e um dos seus servos da gleba, um barão com aspecto extraordinariamente irritante, vestido com um gibão vermelho-escuro que lhe dava o ar sinistro de um executor das baixas tarefas. Blaise e Gorthyn, tanto quanto possível afastados um do outro, encontravam-se diante deles, de cabeça baixa. Por aquilo que Merlim podia apreciar, não parecia que tivessem sido maltratados.

Alinhados ao longo da parede que fazia frente com a porta, ele reconheceu os passageiros do coracle. Alguns desviaram os olhos ao vê-lo, mas outros houve que o saudaram com um sorriso.

Atrás, contidos por guardas com lança, um auditório composto unicamente por homens acolheu-os com uma embrulhada de comentários. Enquanto Merlim avançava só, juntando-se aos outros dois diante dos juízes, o capelão levantou-se e lançou a benção com o sinal da cruz, com voz suficientemente forte para os fazer calar.

— In nomine Patris, et Filii, et Spiritu Sancti. Amen. Todos se benzeram e responderam, exceto o rapaz.

— Olhem para ele! Exclamou logo Cetomerinus. Não sabe fazer o sinal da cruz! Não será já uma prova?

— Eu sei — disse Merlim — mas tenho as mãos atadas... Houve alguns risos ao fundo da sala.

— ...E além disso eu não acredito no teu Deus — acrescentou, e os risos calaram-se por entre um burburinho indignado.

— Toma cuidado com as palavras — resmungou Withur com uma voz surda. — Aqui não há lugar para pagãos.

— Eu não tinha intenção de ficar.

Novos murmúrios reprovadores sublinharam esta saída que, todavia, pareceu agradar ao conde.

— Se calhar, vais ficar em Battha mais tempo do que julgas — gracejou ele, inclinando-se para o vizinho, o barão do gibão vermelho cor-de-sangue.

— Oh! — disse o outro. — Dependurado alto e curto, ainda ficará com a língua mais solta! — Ouviram-se novos risos e comentários, que o senhor Withur acalmou com um simples levantar da mão.

— Este velhaco afirma que tu és um feiticeiro — prosseguiu ele lançando um olhar desdenhoso na direção de Gorthyn. — Ele afirma que mataste os seus companheiros por magia e que lhe roubaste o barco.

— É verdade — disse Merlim sorrindo inocentemente.

E antes que o capelão, que de novo se tinha levantado à pressa, pudesse tomar a palavra, ele continuou:

— É verdade, aquele homem é um velhaco.

O próprio Withur deixou-se levar por um sorriso e voltou a cabeça para não cruzar com o olhar do religioso.

— Parece que estás a divertir-te muito — notou ele. — Estás mesmo a compreender que te acusam de bruxedo, miúdo?

Merlim abanou a cabeça, sem desistir do seu ar desenvolto.

— O senhor Withur está a falar contigo! — exclamou Cetomerinus batendo na mesa. — Responde à sua pergunta!

— Senhor abade, eu compreendi. Este homem e os seus companheiros atacaram-nos enquanto dormíamos a bordo do seu barco. Nada mais fizemos do que nos defender. Pergunte-lhes...

Os emigrantes alinhados ao longo da parede tiveram logo um movimento de recuo, ao verem-se assim metidos em causa e a seguir, como os três juízes pareciam estar à espera de uma reação, lançaram-se todos numa trapalhada de explicações que, não obstante a confusão, pareciam dar razão ao rapaz.

— Senhor, ele está a mentir! — gritou Gorthyn. — E eles também! Em nome de Deus, eu juro, aquele cão enfeitiçou-os!

— Tu, cala-te! — berrou o barão. — E não te atrevas a tratar de cão seja quem for, senão terás de te haver comigo. Fica sabendo que nós aqui honramos os cães, e que insultá-los é insultar a linhagem de Conan Meriadec![14]

— Senhor — lamentou-se Gorthyn — eu queria apenas...

— Quem se rala com o que queres? Não passas de um ladrão e assassino, disso não há dúvida, e a tua corda já está pronta...

— O que queremos saber — interveio Cetomerinus fixando Merlim com humor — é se utilizaste ou não de magia...

Este levou algum tempo a reagir, distraído, como todos eles, com o incidente.

— Eles julgavam-me adormecido, mas não estava — respondeu ele após alguns instantes de reflexão. — Consegui impedi-los de matarem estes desgraçados, é tudo.

— E como é que uma criança como tu conseguiria vencer homens como ele, a não ser por bruxedo? (A palavra levantou reação entre a assistência.) Bruxedo, sim! E está escrito no texto da Aliança: «Não deixarás viver a feiticeira.» Compreendes agora o que te espera, miúdo velhaco?

— Compreendi — retorquiu Merlim. — Mas também está escrito: «Manter-te-ás afastado de uma causa mentirosa. Não mates o inocente nem o justo, porque eu não justifico o culpado»...

Fez uma breve paragem, saboreando a reação do religioso.

— E não me chames velhaco.

— Sonda deigenitrix! — exclamou Cetomerinus que, não sabendo o que dizer, procurou com o olhar o apoio do conde Withur.

— Tu não acreditas em Deus, mas citas as Escrituras — realçou este. — Quem és tu realmente, miúdo?

— Senhor, permita que eu fale — interveio Blaise. — Eu sou o confessor da rainha Aldan Ambrosia, soberana dos Sete Cantões. Este rapaz é seu filho, atesto-o perante Deus. Conde Withur, aquele que aqui é acusado de feitiçaria é Emrys Myrddin, príncipe de Dyfed e herdeiro da coroa de Ambrosius Aurelianus.

Blaise ficou rosado por lançar a sua fala de uma assentada. Retomou o fôlego, evitando o olhar de Merlim. Todavia, Deus era disso testemunha, ele não estava a mentir. Fosse quem fosse o seu pai, o rapaz era mesmo herdeiro de Ambrosius. E o santo homem que estava a morrer, e à cabeceira do qual ele havia passado a noite, também pertencia à família dos Aurelianii, o que, por sua vez — a julgar pelo seu assombro — começavam a compreender, o capelão e o conde.

— Não pode ser possível — murmurou Cetomerinus.

— O irmão Blaise citou Deus por testemunha — referiu secamente Withur. — Não se pode pôr em dúvida a sua palavra.

— Senhor, falei ao santíssimo Paulus Aurelianus esta noite — prosseguiu Blaise, agradecendo-lhe com uma vênia. — Ambrosius era primo dele, e ele lembra-se do nascimento do príncipe Myrddin, que aliás pediu para ver.

— Toma cuidado, meu irmão!— exclamou Cetomerinus.— Se nos mentiste, mandar-te-ei excomungar e enforcar!

— A tua cólera alucina-te, meu irmão — murmurou Blaise com uma condescendência contundente. — Porque não obedecer-lhe? Uma vez que o desejo de Aureliano era que lhe levássemos o rapaz, porque não submetermo-nos à sua sabedoria?

— Seja.

Withur consultou com o olhar o seu assessor que anuiu com um ar animado, e a seguir o capelão. Cetomerinus estava pálido e fazia um esforço visível para se controlar, mas também concordou.

— Consinto — disse ele — mas está fora de questão deixá-lo sozinho com o senhor Bispo.

— Com certeza, nada de riscos — sussurrou Withur abandonando a cadeira. — Estou mesmo impaciente por ver isto...

Com um gesto, fez sinal a Erle para levar Merlim e, depois, aos outros guardas para disporem de Gorthyn.

Fora, tinha-se juntado uma multidão de pacóvios e um concerto de invectivas elevou-se no ar assim que saíram para o talude. Enquanto os seus guardas se comprimiam em torno deles para arranjar uma passagem no meio daquela barafunda, o conde teve tempo de escutar os seus berros. «Feiticeiro!» gritavam. «Demônio!» por vezes os punhos estendidos estavam já armados com pedras e o frenesi não parava de aumentar, assustador pelo seu repentismo louco.

— Os teus monges deram com a língua nos dentes, ou os guardas — disse Withur aproximando-se do capelão.

— Não vamos conseguir chegar ao mosteiro — insinuou Cetomerinus. — Vão-nos apedrejar!

— Não faltava mais nada... Sargento!

Erle aproximou-se, segurando firmemente Merlim pelo atilho de couro que lhe prendia os pulsos. Withur falou-lhe rapidamente ao ouvido e, perante o espanto do abade, o soldado largou o prisioneiro para voltar a entrar precipitadamente na grande sala.

— O que vais fazer? — perguntou.

— Vou-lhes entregar Barrabás.

O rosto de Cetomerinus passou da incompreensão à revolta perante a comparação implicitamente sacrílega, mas antes que tivesse conseguido exprimir o seu pensamento, o sargento voltou a sair, à frente de uma escolta que rodeava estreitamente Gorthyn. A marcha era fechada pelo servo da gleba do conde, que lhe dirigiu um sinal combinado. Com uma ordem seca, o barão puxou para frente o seu pequeno grupo. A partir da altura em que a populaça compreendeu que se dirigiam para o cadafalso, eles tiveram de abrir passagem à cotovelada e à pranchada, tendo a multidão recuado atrás deles como o mar jusante. No espaço de alguns instantes, o conde, Merlim e os que tinham ficado junto deles viram-se livres da multidão.

— Vamos lá! — gritou Cetomerinus.

— Não.

Withur, com o rosto mais carregado que nunca, fixou demoradamente o olhar sobre Merlim, em seguida passou-o de relance sobre Blaise, antes de fixar a sua atenção no cadafalso.

— Quero que eles vejam aquilo.

Num primeiro momento, eles não conseguiram aperceber-se de nada para além da berraria louca dos aldeões, incluindo mulheres e crianças, que aquela festa macabra parecia exaltar, para além de toda a razão. Colocaram em seguida uma escada contra a barra transversal do cadafalso e o homem de vermelho subiu, içando atrás de si Gorthyn, à força de braços. Ainda que aquilo dificilmente parecesse possível, os gritos da multidão redobraram quando lhe passaram uma corda à volta do pescoço. Apesar da algazarra e da distância, Merlim ouviu os roucos gritos de pavor do marinheiro, logo encobertos pelo clamor da assistência quando ele balançou. Com os olhos encarquilhados de pavor, o rapaz viu-o sacudir desesperadamente as pernas e espernear a tal ponto que ele até conseguiu desatar os nós do atilho, sem dúvida muito apressadamente dados pelo sargento. Freneticamente, ele arranhava o pescoço, tentava elevar-se na corda que o estrangulava, e a multidão ria-se daquele horror, lançava-lhe incitamentos obscenos ou empurrava para que ele balançasse um pouco mais.

À beira do vômito, Merlim voltou-se. Imediatamente, Withur agarrou-o duramente pelo braço e forçou-o a levantar a cabeça.

— Vê! Se mentiste, para ti ainda vai ser pior.

Merlim subtraiu-se à dominação do conde e desafiou-o com o olhar, mas no mesmo instante as vociferações da multidão calaram-se repentinamente. Além, Gorthyn já não se mexia. O seu corpo inanimado oscilava ainda mole na ponta da corda, e já os ilhéus se retiravam para voltarem às suas ocupações, a febre tinha voltado a baixar, tão depressa como havia nascido.

— Agora podemos ir para lá — disse Withur.

O sol poente tingia com uma luz dourada o estuário do Deva e as muralhas do forte romano de Ceaster[15]. Não era ainda uma ruína, mas Brochmail, patriarca descendente de fidalgotes provincianos bretões instalados ali desde a partida das legiões, não tinha procedido à sua manutenção, e a obra, no máximo, podia servir-lhe de habitação fortificada. Uma aldeia de pescadores e comerciantes dificultava o seu acesso, demasiado densa e demasiado pobre para poder acolher atrás do seu parapeito de pedras toscas e de toros o imenso exército que acampava nos arredores, iluminando o crepúsculo com alguns fogos de campo. Por outro lado, viam-se flutuar as bandeiras de dezenas de reinos e luzir o aço de milhares de lanças. O tempo estava suave e a maior parte dos homens não se tinha preocupado em levantar um abrigo para a noite. Formavam ali uma massa em movimento, indistinta, demasiado vasta e segura da sua força para temer um ataque, mesmo cansada pela longa caminhada do dia, ocupada a beber, a comer e a moer a paciência às aldeãs que tinham vindo vender-lhes cerveja ou peixe.

Era um espetáculo grandioso, e todavia aquela multidão guerreira não inspirava a Ryderc senão desgosto. Desde há dias, caminhando ao longo do Éden e das costas do mar da Hibérnia até aos acessos do País Branco[16], aqui, em Ceaster, o exército do Strathclyde tinha-se continuamente reforçado com contingentes do Rheged, da Cúmbria e de múltiplos clãs do Norte, sem assentar arraiais, mas sem forçar a marcha, inconsciente do drama que se desenvolvia a algumas cinqüenta léguas dali, nas fronteiras de Devon. Os pagãos de Wessex, comandados pelos reis Ceawlin e Cuthwin, tinham ultrapassado as defesas levantadas próximo de Derham e desbaratado o exército bretão que havia partido ao seu encontro. Caer Vaddon[17] estava em chamas. Os reis Comnail, Condida e Farinmail tinham sido mortos e o que restava do seu exército tinha fugido, deixando sem defesa Caer Geri e sobretudo Caer Loew, a antiga Glevum, capital da Brittania Prima dos Romanos. A cavalgada gloriosa do jovem rei começava com uma derrota sem precedentes que, doravante, dividia a meio as terras da Bretanha. Ryderc fechou os olhos para já não ver aquele exército inútil, demasiado lento para evitar aquele drama.

— Porque atacaram? — murmurou ele num profundo suspiro.

Nenhum dos que haviam acompanhado o rei soberano às muralhas do forte romano se aventurou a formular uma resposta. Nem mesmo Urien, o poderoso rei de Rheged que, afastado dos outros, estudava o mapa de pergaminho que um dos seus chefes militares havia desenrolado a seu pedido. Nem mesmo o seu filho Owen, cujos cabelos encarniçados, penteados em remoinho, pareciam fogueiras sob os últimos raios de sol e que só raramente se calava. No entanto, foram vários a franzir as sobrancelhas, a tal ponto as palavras de Ryderc lhes pareciam desprovidas de sentido.

— Porque não esperaram? — acrescentou voltando-se para eles. — Bastava-lhes entrincheirarem-se atrás das muralhas e enviar-nos mensageiros! Com a cavalaria nós teríamos conseguido chegar a tempo!

— Senhor, foi o que fizemos...

O jovem rei olhou com um olhar iracundo aquele que acabava de falar. Vestido com um lorigão de conchas desbotadas, desmalhado em alguns sítios e manchado de sangue seco, o homem tresandava a suor e estava coberto de pó. Tinha lutado, sem dúvida, mas o seu estado apenas reforçava a sua vergonha e a sua angústia.

— O rei Comnail enviou mais de dez embaixadas! — acrescentou com um tom de censura mal velado.

Ryderc abanou a cabeça. Nenhuma delas tinha chegado até ele.

— Então, sou o primeiro a passar?

Desta vez, não eram cólera nem indignação que transpareciam nas palavras do mensageiro, mas um desespero que lhes apertou o coração a todos.

— Talvez não seja demasiado tarde — interveio Urien agitando o seu mapa de pele curtida. — Partindo de madrugada, podemos chegar lá daqui a dois dias. Proponho que o meu filho Owen nos abra caminho com os seus cavaleiros e que force aqueles porcos a baterem em retirada... Caer Loew, ao menos, pode ser salva...

— Senhor, estou pronto para partir imediatamente! — gritou o jovem príncipe num tom que denotava excitação.

— Dois dias — murmurou Ryderc após ter pegado no mapa de Urien. — Caer Loew não deve ficar a mais de cinqüenta ou sessenta léguas. Podemos ainda surpreendê-los, desde que não encontremos resistência pelo caminho...

Voltou-se para Owen, muito mais velho do que ele, agitado como um garanhão com a idéia daquela cavalgada gloriosa à frente do seu destacamento. Talvez uma das mais gloriosas desde as lendárias cavalgadas de Artur, se viesse a vencer os exércitos saxônios... Ryderc procurou com os olhos os seus próprios chefes militares. A trunfa resplandecente de Sawel Ruadh[18], pendendo sobre os seus largos ombros ornados com o manto vermelho de Strathclyde, chamou-lhe logo a atenção. O homem avançou com um aceno de cabeça voluntarioso.

— Partirás com Sawel e seus cavaleiros — disse Ryderc a Owen apertando-lhe a mão.

Olhou-os um por um, tão ruço um como o outro, e sorriu, talvez pela primeira vez desde a chegada a Ceaster.

— Entre vós dois, os Saxões terão a impressão de lhes cair em cima um raio!

Os reis e os barões reunidos riram a bom rir, libertando uma tensão há muito contida.

— E eu também irei com eles — disse a voz impulsiva de um guerreiro coberto com uma pele de urso, agitando uma lança provida de uma flâmula negra.

— Quem és tu? — exclamou Ryderc involuntariamente impressionado com a robustez e a farpeia do recém-chegado, enquanto ele abria caminho por entre os outros.

— Cadwallaun Braço-Longo, filho de Cadfan.

— Eu conheço-te — disse Sawel, dando um passo em frente, colocando-se entre ele e o rei. — Braço-Longo e língua comprida... se vieres conosco, terás de obedecer às ordens, por uma vez.

O gigante excedia Sawel em perto de uma cabeça. Inclinou-se para ele com um sorriso malévolo, salientando uma fiada de dentes brancos no seu rosto consumido pela barba.

— Não é a tua guerra pessoal, Cadwallaun — disse Ryderc.

O outro baixou os olhos na direção do rei, em seguida concordou com um sinal pacífico de cabeça.

— Obedecerei ao senhor Sawel. Enquanto se nos apresentar um Saxão para matar...

— Matá-los-ás, não tenhas receio. E mais do que nunca viste.

— Assim, está bem.

— Vai preparar os teus homens. Partireis aos primeiros alvores do dia.

Cadwallaun deu por entre dentes uma vaga resposta e passou por entre as fileiras dos barões. De seguida, o grupo desfez-se pouco a pouco, partindo cada um para seu acampamento. Ficaram apenas um punhado deles nas proteções.

— Deixa cem cavaleiros em Tadwen para proteger o exército — retomou Ryderc dirigindo-se a Sawel. — Leva o resto. Em cada etapa, quero que envies dez homens para trás para me informarem sobre a vossa progressão. Se fordes obrigados a parar, proíbo-vos de travar batalha.

Owen teve uma reação encoberta, mas Urien de Rheged pôs termo aos protestos que o seu filho tentava formular.

— Não nos podemos arriscar a perder a cavalaria — explicou. — Se vos cruzardes com um exército saxônio, importunai a vanguarda e retardai a peleja. Owen, tendes de impedir que avancem. Não vencê-los...

— Assim se fará — resmungou Sawel.

— Ide...

Os dois homens inclinaram-se perante o jovem rei e depois, enquanto Sawel se afastava, Owen chegou-se junto do pai, que lhe passou a mão pelo ombro.

— Acompanho-te — disse ele.

Ryderc viu-os afastarem-se. Ao encostar-se às ameias, reparou que já quase tinha anoitecido. Atrás dele, alguém arranhou discretamente a garganta.

— Não me esqueci de ti, Daffyd...

Silenciosamente, a alta silhueta do guerreiro aproximou-se. No escuro nascente, mal se via, envolto no seu manto, com o rosto meio comido pela barba preta e farta. Era um indivíduo taciturno, tão apagado quanto Sawel era tonitruante, mas sem dúvida mais inteligente, mais circunspecto e portanto melhor chefe militar...

— Meu amigo, tenho um trabalho especial para te entregar. Quero que vás a Gwynedd e tentes reunir todos os que conseguires encontrar, em seguida que te juntes ao senhor Elidir, no feudo de Dinorben, e que embarques nos seus barcos todas as tropas que te possa conceder. Eu sei que ele nos apóia e que virá em nossa ajuda. Em contrapartida, não confies de forma alguma nos serranos do interior. Arranja homens e padres suficientes para seduzir esses bastardos da desgraça e usa a força, se for preciso...

— Senhor, são as terras do senhor Gurgi, e...

— Gurgi odeia-me, eu sei, mas já não vale nada. Promete-lhe ouro, deixa que falem os padres e tenta chegar até ao seu irmão, o rei Peredur, em Dynas Emrys. Ele não ousará desobedecer-me. Em caso de necessidade, os padres que o ameacem de anátema, se ele se recusar a ajudar-nos.

O guerreiro inclinou-se sem nada dizer.

— Uma semana, Daffyd! Tens uma semana, não mais. Passado este prazo, dá à vela com Elidir e todos os que tiverdes reunido.

Ele desenrolou sobre a ameia o mapa de Urien e indicou com o dedo o traçado do seu trajeto, desde a costa Norte de Gwynedd até ao estuário do Sabrina[19], contornando a península de Dyfed.

— Pára em Caerlon[20], vou enviar para lá mensageiros com instruções. Olha... Se Owen e Sawel Ruadh conseguirem entreter os Saxões em volta de Caer Geri, poderás desembarcar atrás deles e apanhá-los-emos na tenalha, antes que cheguem a Caer Loew.

— Pode resultar — murmurou Daffyd.

Ryderc anuiu em silêncio e apertou-lhe a mão. Em seguida, o chefe militar virou costas e foi-se embora.

— Conto contigo, meu amigo...

Já na escada de pedra que conduzia às fortificações, Daffyd limitou-se a menear a cabeça. Por cima dele, no caminho da ronda, o rei já era apenas uma sombra diluída na noite.

 

                               Os Aurelianos

Tinham-se calado os cânticos. Por um curto espaço de tempo, não houve senão o roçar seco das altas ervas agitadas pelo vento. Guendoloena fechou os olhos e inspirou profundamente, tanto as intermináveis litânias das religiosas alinhadas no adro da capelinha real tinham acabado por esgotar-lhe a paciência. De pé, sozinha no meio de uma multidão congregada para a cerimônia das purificações, ela sentia-se, com justa razão, observada por todos, coisa a que sempre tinha tido aversão. Em frente à jovem rainha, atrás de um altar improvisado que era apenas uma mesa de madeira coberta por um grande pano escarlate, o abade Columbano era talvez o único que não lhe prestara a menor atenção desde a sua chegada. Para proteger do sol os seus olhos doentes, ele tinha colocado o capucho do hábito de burel e baixava a cabeça, não deixando que lhe vissem senão os lábios murmurantes e as mãos juntas. Um dos seus discípulos de lona, o padre Adamnan, oficiava em seu lugar, diante de um crucifixo de ouro incrustado de pedras preciosas que cintilavam à luz viva do Verão. À sua direita estava a família real de Dal Riada, vestida para a ocasião com capas de brocado, carregadas de ornatos urdidos em fio de ouro e prata, abertas sobre longas túnicas que lhes desciam até aos tornozelos, com os rins cingidos por cintos de ourivesaria, pomposos, realmente tão pomposos que ninguém podia comparar-se com eles sem se sentir humilhado. Aedan, contrariamente aos filhos e às esposas dos mais velhos, sorria sempre que o seu olhar se cruzava com o de Guendoloena. Ajustado contra o peito e com a cabeça afundada no côncavo do braço, o seu recém-nascido, envolto num longo manto branco, parecia dormir, embalado talvez pelo canto morno das religiosas. Guendoloena não via dele senão um punhado de cabelos pretos, tão negros como os seus, e a mão rechonchuda que repousava no torso do pai. Nada mais. Nada ainda... Daí a pouco, daí a uma hora, ela poderia estreitá-lo em seus braços, vê-lo finalmente, vê-lo novamente depois dos curtos minutos que lhe tinham concedido no momento exato do seu nascimento.

O silêncio não foi duradouro. Com uma voz um pouco forçada, Adamnan proclamou as Escrituras:

— Yahué falou a Moisés nestes termos: «Quando uma mulher se tornar fecunda e der à luz um rapaz, ela permanecerá impura durante sete dias, será impura como nos dias da sua mácula, quando da sua indisposição. Em seguida permanecerá ainda trinta e três dias no sangue da sua purificação; não tocará em nenhum objeto sagrado nem entrará no santuário até que se tenham completado os dias da sua purificação[21]

Contra a sua vontade, Guendoloena sentiu rosarem-se as faces, e a vergonha de se manter assim, diante do povo, dos barões e do rei, como uma mulher maculada, impura, que a Igreja não podia admitir no seu seio. Enfraquecida pela falta de exercício e pelo isolamento, ela voltou a fechar os olhos para não desfalecer e para encontrar dentro de si compostura perante aquilo que ela não conseguia coibir-se de sentir como um insulto.

— «E quando estiverem cumpridos os dias da purificação — continuou Adamnan — ela conduzirá ao sacerdote um cordeiro nascido nesse ano como holocausto, e um pombinho ou uma rola como sacrifício pelo pecado[22]

Atrás dele, o seu servo Cylid deu um passo em frente, trazendo o cordeiro do sacrifício. Adamnan pareceu esperar que ela fizesse, ao menos, um movimento, para conduzir o animal até ao altar, mas ela não era capaz, fechada em si própria, ausente, já não pensando senão no fim da cerimônia para poder finalmente descobrir o seu menino e iniciar a sua vida de mãe. Cylid, tal como lhe haviam explicado, avançou até um patíbulo e, após um sinal de consentimento do oficiante, cortou com um gesto rápido a goela do animal.

— «O sacerdote oferecê-los-á perante Yahué e fará por ela a expiação, e ela será purificada do fluxo do seu sangue. Esta é a lei para aquela que der à luz um menino ou uma menina[23]»...

Ergueram-se cânticos, desta vez gloriosos, com o coro dos homens a juntar-se ao das religiosas. E quando acabaram, lá estava Aedan, diante dela. Com a cabeça metida no côncavo do seu cotovelo e a face tão pálida como os seus panos, Artur olhava-a com os seus grandes e tranqüilos olhos. Os seus minúsculos lábios pairavam formando bolas de saliva e os seus dedinhos agitavam-se como que a chamá-la.

— Podes pegar nele — murmurou o rei.

Com a mão e a lentidão de uma carícia, ela segurou-lhe na nuca e em seguida pegou-lhe suavemente, quase com medo, enquanto Aedan se afastava deles e recuava para contemplá-los, a mãe e o filho finalmente juntos.

— Juntos para sempre — segredou ela enquanto se inclinava para beijá-lo.

Artur começou a chorar e a ama aproximou-se, mas a rainha dirigiu-lhe um olhar de loba que a imobilizou por completo.

— Com certeza que tem fome — disse Aedan. — E como o pai, sempre esfomeado!

Alguns risos à volta deles, arrancaram por um momento Guendoloena à contemplação ávida do filho. Os filhos do rei encontravam-se presentes, Eochaid Find e Tuthal, acanhados e contrafeitos nos seus fardamentos de parada, mas sorrindo com toda a sinceridade. O mais novo, Domangart, dormia ao colo de uma ama. Quanto a Garnait, o mas velho, estava enganchado no braço da sua jovem esposa e falava-lhe ao ouvido de uma forma que imediatamente pareceu ofensiva a Guendoloena. Depois, percebeu o olhar da rainha a incidir sobre ele e inclinou-se na sua direção, com uma espécie de ricto forçado desmentido pelo seu olhar insípido.

— Estou feliz por voltar a ver-te — minha mãe.

— Também eu estou feliz.

Miraram-se por um instante, tão parecidos na idade e nos longos cabelos pretos que — à distância — poderiam ser tomados por irmãos. Garnait não era nada mais alto do que ela, mas era sem graça, conservando da mãe a estatura e o porte de um Picto. As suas ricas vestimentas realçadas a ouro assentavam-lhe mal e imaginá-lo-íamos mais depressa de espada em punho, cavalgando através das Terras Altas à frente de algum bando de vagabundos do que naquele papel de cortesão que ele representava mal. Os seus olhos negros, deixando os da rainha, assentaram em Artur. Imediatamente,

Guendoloena apertou com mais ânimo o seu menino, num gesto instintivo que não escapou ao jovem.

— Deixa-me levá-lo — disse ele, estendendo para ela os seus braços musculosos, ornamentados com braceletes de ferro.

A rainha procurou a ajuda de Aedan, mas este não teve senão um franzir espantado de sobrancelhas, como se não compreendesse em que pudesse inquietá-la a proposta do filho mais velho.

— Agradeço-te, mas tenho-o visto tão pouco neste últimos tempos que me parece que nunca mais conseguirei separar-me dele.

Apertadinho contra ela, Artur conseguiu assenhorear-se de um dos seus dedos que gulosamente começou a chuchar, com barulhos de boca que os pôs todos a rir, até Garnait.

— Espero que em breve venham ambos a experimentar a felicidade de ter um filho — disse ela com um movimento de cabeça na direção da jovem esposa do príncipe.

— Nada de urgente! — interveio Aedan a rir. — Não me faltava mais nada senão ser avô!

Sempre a rir, voltou-se para a capela, que os monges preparavam para a missa. A mesa que tinha servido de altar tinha sido retirada e Adamnan, debaixo do alpendre, fez-lhe logo sinal de que podiam começar. Enquanto à sua volta a populaça reunida se dispersava pouco a pouco, Garnait deslizou para junto dela, mais sorridente que nunca.

— Um dia ou outro, minha mãe, vai ser todavia preciso que eu cuide dele...

Seguidamente afastou-se para se juntar à esposa e formar cortejo, no momento em que o pai regressava para junto deles.

— Dá-me o teu braço — disse baixinho a rainha aproximando-se dele.

De novo, a ama fez menção de pegar no menino, mas desta vez foi o próprio Aedan que a dissuadiu e começaram a andar, com um passo de cerimônia, para a capelinha de pedra onde os esperava Columbano.

No momento em que entravam a porta, Guendoloena viu, na erva espezinhada, a mancha de sangue escarlate deixada pelo cordeiro do sacrifício e aquele lúgubre presságio fê-la estremecer.

Ao vê-lo encarquilhado sobre si mesmo, com o rosto escondido nas mãos quase a tocar nos joelhos, ter-se-ia acreditado que Merlim estava a rezar, vencido pela santidade do lugar. Erle e ele encontravam-se sós na igreja do mosteiro. Withur, Blaise e o capelão tinham desaparecido através de uma pequena porta, alguns minutos ou algumas horas antes, e a sua ausência estava a ser demorada. Quanto aos guardas da escolta, Erle tinha-lhes ordenado que ficassem no exterior.

Merlim não estava a rezar. Com toda a sua alma, esforçava-se por manter-se fechado ao espectro hediondo de Gorthyn que vagueava à volta deles, no assombro dos seus últimos instantes. Refugiado em si próprio, o rapaz tentava desesperadamente evocar Guendoloena, sem, apesar dos seus esforços, conseguir lembrar-se das suas feições. Recordava-se da brancura da sua pele quando ela se tinha entregado a ele, dos seus risos e cavalgadas pelo campo, das lebres que tinha caçado para a refeição, do sentimento de plenitude experimentado durante aqueles dois dias fora do tempo que tinham vivido juntos, longe dos homens. Mas dela, ele não revia senão os seus longos cabelos pretos e o manto azul com o qual estava coberta. Nem a sua cara nem as suas expressões... Nele viviam tantas recordações que não eram suas, tantas figuras de outras mulheres, tantas opressões, herdadas do passado de tantas almas defuntas que tinham afluído para ele. A sua própria memória já não se encontrava ali.

Merlim, chorava amargamente quando o vieram buscar. Erle, perto dele, tentava em vão reconfortá-lo.

Quando descobriu à frente deles Withur e o irmão Blaise, o sargento perturbou-se, como que espantado ele próprio com a pena que o tinha assolado perante o infortúnio do seu prisioneiro.

— Está à tua espera — murmurou Blaise.

O rapaz enxugou o rosto reluzente e levantou-se. Apenas alguns passos separavam a nave da igreja e a cela do bispo. Merlim atravessou-os lentamente, sem nunca levantar os olhos para o conde e o seu companheiro. Também não reparou nas suas figuras lívidas, repletas de emoção. Foi a de Cetomerinus que lhe causou espanto, no momento em que entrou na minúscula cela de Aureliano. Também ele chorava. O disfarce inacessível que tinha criado ao longo de todo o julgamento tinha-se diluído com as lágrimas, deixando aparecer a sua alma despida, transfigurada pela angústia. No mesmo instante, Merlim notou o odor irreal que tinha inundado o quarto. Uma fragrância seca e ao mesmo tempo suave, incrivelmente inebriante e que aromatizava até as pedras do cubículo e a madeira da porta, do qual lhe pareceu que nunca se ia libertar.

— O mestre está a morrer — gemeu Cetomerinus.

— Cheira, Merlim — murmurou Blaise ao seu ouvido. — Cheira! Paulus morre em odor de santidade... Lembra-te disso toda a vida.

Com a garganta presa, o rapaz aproximou-se da cama. Paulus Aurelianus estava virado para ele, iluminado levemente pela luz trêmula de um coto de vela, e olhava-o intensamente. Merlim acocorou-se à sua cabeceira. Assim que as suas feições se descobriram na luz, Aureliano fixou-o demoradamente, em seguida fechou os olhos e apertou-lhe suavemente a mão.

Ficaram assim, imóveis, num silêncio apenas quebrado pelo soluçar abafado do capelão. De seguida, a voz do santo homem elevou-se, débil e sibilante, na sala.

— Ávida é um círculo, meu filho... volto ao começo. Tudo... o que fiz, aqui... foi para glória de Deus. Mas vós... também sois... criaturas de Deus.

Aureliano abriu os olhos e fixou-o de novo com tal aflição que Merlim sentiu prender sua garganta.

— Agradeço ao Céu. Tu vens... fechar... o círculo. Em nome dos teus... Confiteor mea culpa... mea máxima culpa.

O rapaz voltou-se repentinamente para Blaise, Withur, Cetomerinus. Mas nenhum podia ajudá-lo.

— Perdoa-me — murmurou o moribundo.

Desta vez, os outros não conseguiram passar sem uma reação, como se duvidassem do que acabavam de ouvir. Mas o santo homem, procurando na sua afirmação qualquer última absolvição, já não via, não ouvia, nada mais pretendia senão a ele, e agarrou-se ao seu braço como uma folha de Outono ao seu ramo. Vencido agora pela angústia, Merlim sentia já manifestar-se a alma branca de Aureliano e tal perspectiva apavorou-o.

— Perdoo-te — gaguejou ele precipitadamente, tentando libertar-se.

O moribundo contemplou-o pela última vez, com uma intensidade tal que tudo o que lhe restava de vida pareceu passar naquele olhar, depois deixou-se cair de um só lance para trás. Os seus lábios formularam custosamente uma oração, que só Merlim conseguiu perceber.

— Confiteor Deo omnipotenti...

Ninguém, para além de Deus Todo-Poderoso ao qual ele se dirigira, viria a saber o que Aureliano tinha para confessar. Bruscamente, revulsaram-se os olhos e o corpo retesou-se. Depois sucumbiu, inerte. Não tinha largado Merlim e os seus dedos apergaminhados tinham-se contraído sobre o seu pulso como garras de uma ave de rapina.

— Larga-me! — gritou o rapaz.

Os três homens reunidos em volta do moribundo tiveram o mesmo sobressalto de assombro e de indignação. Merlim lutava para libertar o braço da dominação do cadáver de Aureliano, batia-lhe com murros e escoucinhava com todas as forças, atormentado por um pânico tão repentino como incompreensível aos olhos deles. Constatando que o mestre acabava de morrer, Blaise compreendeu logo a pressa do seu companheiro em abandonar o recinto, mas era demasiado tarde. Merlim, sempre cativo do santo homem, tinha-se desabado sobre o catre, agitado por estremeções, gritando e gemendo ao mesmo tempo. A alma do bispo atravessava-o e com ela uma imensidão de sensações, de conhecimentos e recordações onde se misturavam amor e tristeza, horrores e êxtases, até às reminiscências mais escondidas, mais vergonhosas, até às figuras obsidiantes que nunca tinham deixado de assediar o religioso. Famílias inteiras lançadas ao mar, estendendo para ele as suas mãos suplicantes enquanto as ondas enfurecidas os engoliam, o riso dos soldados e os gritos daqueles que eram ainda levados, ligados em cachos e largados na espuma, em nome de Deus. E ele, o santo homem, de pé no meio de tal abominação, com os olhos encarquilhados de horror, abençoando os algozes e agitando a sua estola encorpada com o sinal da cruz... Aqueles desventurados tinham todos, na memória de Aureliano, o rosto de Merlim, a sua fisionomia, a sua palidez. Os seus, havia ele dito. E ele evocava-os pelo seu nome maldito, tal como os havia conhecido, tal como os havia escorraçado da ilha. Os elfos...

Com um raivoso grito gutural, Merlim libertou-se finalmente da mão gelada que o retinha e afastou-se vivamente, de gatas como um animal, esbaforido, à beira do desfalecimento. Uma convulsão dobrou-o brutalmente e ele vomitou, apoiado contra a parede da pequena cela, sob os olhares aterrorizados dos outros três.

Nenhum ousou mexer-se enquanto o rapaz esteve prostrado, apenas a alguns passos da cama onde jaziam os restos mortais do santo. Em seguida, Merlim levantou-se a custo e mirou-os. Dando de caras com o olhar assustado de Blaise, abriu a boca sem encontrar nada para dizer, avançou desajeitadamente e tentou imiscuir-se por entre eles para fugir da acanhada cela. Cetomerinus pôs-se à sua frente. Merlim quis empurrá-lo, mas o capelão, terrível de ver naquele momento, completamente assolado pelo pesar e pela indignação, agarrou-o virilmente pelos braços.

— Deixa-o ir — disse Blaise.

Cetomerinus lançou um rápido olhar condoído e desdenhoso. Com o coração a transbordar de cólera, tornou a incidir a sua atenção sobre o rapaz e lançou logo um grito de assombro. Já não era Merlim a quem ele segurava, mas o próprio mestre, Paulus Aurelianus, bispo de Leão e fundador do mosteiro de Battha, tal como na sua juventude, quando o acolhera entre os seus.

— Serás o meu sucessor, Cetomerinus — disse a aparição. — Confio-te o meu cargo. Reza por mim...

— Mestre...

O rosto transformou-se, sob o olhar do capelão. Num instante, teve diante de si a ameaçadora figura de um lobo, a diáfana figura de uma fada e novamente a do próprio Aureliano. Vozes múltiplas, estrondeantes ou carinhosas, ordenaram-lhe tão imperiosamente para largar o rapaz, que ele cedeu ao pânico e bateu em retirada, perante o pasmo dos outros dois, que nada tinham visto.

Merlim já se encontrava fora. A toda a velocidade, atravessou a igreja e correu para o exterior, debaixo de chuva, numa corrida louca fora da tapada do mosteiro. E quando já estava bastante longe, caiu ao pé de um murete e chorou intensamente.

 

                             «Agnus Dei»

O novo dia tinha varrido o horror da noite. Com o rosto iluminado por um raio de sol que passava através do esburacado teto de colmo que pendia sobre eles, o irmão Blaise acordou com a impressão de nem ter adormecido. Levantou-se a custo, com as costas tolhidas devido ao excessivo esforço, espreguiçou-se, esgaravatou furiosamente a barba e desembaraçou-se sumariamente dos argueiros de palha agarrados ao hábito de burel. Enquanto palitava os dentes com um pau apanhado do chão, passeou um olhar enfadado à sua volta. Do outro lado do quarto — uma pocilga coberta de forragem úmida que devia servir de estábulo aos monges —, descobriu a silhueta de Merlim, agasalhado no seu manto. O rapaz dormia, claro, como se nada conseguisse atingi-lo, nem a morte de Aureliano, nem o pavor que doravante inspirava a Cetomerinus. Blaise sacudiu a cabeça desgostoso, dirigiu-se em seguida para a porta e começou a tamborilar com o punho, sem se importar que o seu companheiro acordasse.

— O que há? — perguntou lá de fora uma voz.

— Tenho fome e quero sair daqui, é o que há! Não me podem manter preso. Eu sou um servo de Deus!

— Também eu, meu irmão — disse a voz, com um tom calmo. — Vamos levar-te comida e bebida, mas o capelão recomendou que não vos deixássemos sair, nem tu... nem ele!

As últimas palavras foram pronunciadas com reticências, como se se tivesse tratado de uma obscenidade. Instintivamente, o monge voltou-se para Merlim e viu-o, bem acordado, encostado à parede de tábuas do reduto, com os braços cruzados sobre os joelhos fechados e a cabeça deitada para trás, com ar ausente. Blaise continuou a bater no taipal de madeira rústica que os mantinha encarcerados, mas apenas conseguiu espetar uma farpa na mão e conteve um palavrão.

— Não te pedi para me seguires — murmurou Merlim.

— O que estás a dizer?

— Pensei em ti... Que vantagem há em acompanhares-me quando só tens a perder? Este homem, aquele Cetomerinus... Nunca me vai deixar partir. Se ficares comigo, ele acabará por prender-te ou fechar-te num mosteiro até que morras ou fiques louco. Quanto a mim, pode muito bem matar-me. O que é que daí pode advir?

— O que dizes não faz sentido.

— Por quê? Achas que estou agarrado à vida? Não... Verdadeiramente não. Sei que vos meto medo, que a minha vida até vos é nociva. Foi sempre assim, antes mesmo de...

— ...Antes dos mortos começarem a falar-te?

Merlim abanou a cabeça.

— Eles não me falam... Entram em mim e descarregam-se de toda a sua vida como de um fardo, antes de se irem embora para o Outro Mundo. Na tua Bíblia existe um animal parecido comigo, aquele que os Antigos Israelitas carregavam com todos os seus males na festa das Expiações...

— O bode expiatório.

— Em vez de se odiarem a si próprios por causa das suas faltas, despejavam todo o seu rancor sobre o bode, que só tinham de matar para lavar a consciência... Não é assim, Blaise? Tu que dizes que o teu Deus criou todas as coisas, acreditas que Ele me amaldiçoou?

O monge foi sentar-se junto do rapaz e permaneceu um bom bocado em silêncio, refletindo naquilo que ele acabava de insinuar.

— Não é forçosamente uma maldição, Emrys... O próprio Jesus carregou com os pecados do mundo antes de se sacrificar...

Merlim lançou um suspiro alegre, mas o ar grave do companheiro gelou o sorriso que lhe brotava dos lábios.

— Eu não sou o Messias, Blaise — respondeu ele agarrando-o pelo braço para forçá-lo a olhar. — E não contes que me vá sacrificar pelos homens. Se o teu Deus me amaldiçoou, serão vocês, os seus monges, que haveis de acabar comigo.

— Não é maldição — repetiu o monge com mais convicção. — Acho que foste escolhido...

— Muito bem! — gritou o rapaz levantando-se abruptamente. — Se não é uma maldição, é um dom. E se é um dom, para que serve?

Podes explicar-me? Tudo o que eu queria era encontrar os meus e viver em paz, como os outros, mas isso não vai acontecer, nunca, e tu bem sabe.

Blaise não ouviu, completamente absorvido pela revelação que tomava progressivamente forma no seu espírito e se impunha, com tanta evidência, como a única explicação para tudo o que acabavam de viver. Vendo o rapaz ainda irritado, esperou que Merlim se acalmasse antes de colocar a questão que lhe incendiava os lábios:

— Neste momento, o espírito de Paulus Aurelianus está dentro de ti?

— Não.

Merlim dirigiu para o seu companheiro um olhar de fastidiosa indulgência.

— O espírito de Aureliano está no céu — declarou com um suspiro. — Pelo menos é o que se espera, caso contrário terás que mudar de religião, meu irmão.

— Vamos, tu sabes bem o que quero dizer...

O rapaz meneou a cabeça e apanhou uma palha com a qual brincou distraidamente, enquanto o seu sorriso irônico se desvanecia pouco a pouco.

— Sim... Ele está em mim...

— Então, agora já acreditas? — murmurou Blaise.

— Em Deus?

Como única resposta, Merlim abriu os braços, numa postura do crucificado.

— Agnus Dei, qui tollis pecata mundi... Não, meu irmão, o cordeiro que está para ser sacrificado não acredita no cutelo do marchante. Odeia-o. Tem medo dele. Quanto a mim, já não acredito em nenhum deus, seja ele qual for.

O monge pareceu profundamente surpreendido com aquela resposta, e ficou com o espírito perturbado.

— Isso não altera nada — murmurou por fim. — O fato de não acreditares n’Ele não altera nada... Mesmo sem o saberes, és instrumento de Deus.

— Se isso te faz feliz — concedeu Merlim. — Deus é aquilo que não pode ser dito de outra forma.

— Não podes dizer isso! Deus é tudo, o Começo e o Fim, o Alfa e o Ômega, a origem de todas as coisas, é a mão que te conduz.

— E o diabo?

— Qual «diabo»?

— Claro! Se Deus é tudo, é o Bem e o Mal, a vida e a morte, a luz e o nada... Portanto, Deus e o diabo são um só.

De seguida retomou, no mesmo tom indiferente:

— Este teto não vale grande coisa. Conseguíamos sair por ele sem o menor esforço.

Blaise seguiu-lhe o olhar, na direção dos buracos no restolho, que já tinha visto ao acordar.

— Eu vi — resmungou. — Mas não iríamos longe. Deve haver guardas, em toda a volta da tapada...

— Claro que sim — disse Merlim, voltando a sentar-se no seu canto. Preferindo esperar ali e submeter-se à Sua proteção.

Espantado, Blaise virou-se para ele, mas o rapaz tinha-se tapado com o manto e enovelado contra o taipal.

— O que dizes?

— Nostras deprecationes ne despidas in necessitatibus nostris — citou a voz do companheiro, por baixo do manto — sed a periculis cunctis libera nos, amen[24]...

O monge levou algum tempo a perceber as estrofes rosnadas por Merlim. Desde que tinha deixado a rainha Aldan e os clérigos da corte real de Dyfed, nunca mais tinha tido ocasião de falar latim...

— Não é a proteção de Deus que estás a invocar, mas a da Virgem, Santa Dei Genitrix!

— Qual é a diferença, já que o teu Deus é tudo?

Blaise não respondeu. Alguns dias antes, sem dúvida que teria protestado e ter-se-iam lançado numa daquelas intermináveis discussões sobre a oração, a Igreja e os santos. Agora não. Merlim tinha posto o dedo sobre aquilo que ele não conseguia formular, desde há tantos dias e semanas. Nada existe, fora de Deus. Quanto a este princípio não pode haver reserva, pois Deus não pode ter limite. Aquela espantosa faculdade de ser visitado pelos mortos era um dom, não podia haver dom senão de Deus, ou do diabo, mas o diabo não seria realmente senão uma parte de Deus, como defendia Merlim? Caminhando a seu lado, vivendo todos os dias junto dele, Blaise tinha adquirido a certeza de que o jovem príncipe de Dyfed não era uma criatura do diabo, pensassem o que pensassem as pessoas. Poderia dar-se o caso de ele ser ao mesmo tempo diabo e Deus? Seria possível que ele fosse o eleito? O novo Messias por cuja vinda toda a cristandade estava à espera? Seria possível que os mortos recorressem a ele para o Julgamento e que tivesse chegado o tempo da parusia?

— O Julgamento final — murmurou ele. — Senhor...

Blaise curvou-se na palha suja, com o olhar vazio e o coração pesado, incapaz de experimentar outra coisa para além de um incomensurável cansaço, repentinamente tão pesado que lhe parecia que as pernas já não conseguiriam sustê-lo, tão completo que já não desejava senão acabar com aquilo, deixar os outros disporem do seu destino, renunciar àquela procura insensata que o ultrapassava.

Foi assim que os frades os encontraram, o rapaz adormecido e o monge perdido nos seus pensamentos, com o espírito perturbado, um e outro igualmente dóceis quando lhes serviram de comer e beber e depois quando os levaram até à cerca da tapada, onde os aguardavam os guardas do conde Withur.

Este não os recebeu na ampla sala onde habitualmente tinham lugar as suas audiências, mas num compartimento estreito, ao abrigo de qualquer indiscrição. Provavelmente era uma precaução inútil. Desde a tapada até junto das balaustradas do conde de Battha, não se cruzaram com vivalma, incluindo aves e cães que habitualmente cobriam as ruelas lamacentas do burgo. Caía um leve chuvisco que se agarrava, sem escorrer, às suas roupas de lã, formando sobre seus ombros uma capa brilhante, mas aquele tempo enfadonho não era suficiente para conseguir manter os ilhéus fechados em casa. Havia-se difundido pela ilha um sentimento novo, muito diferente do furor da véspera e que Merlim sobejamente conhecia.

O medo...

Era possível senti-lo atrás das portas fechadas e das cortinas corridas. Lia-se na face dos soldados da escolta, no crispar dos seus dedos sobre as longas hastes das suas lanças, no seu passo mal cadenciado. A Merlim, não lhe agradava nada aquilo e avançava de olhos baixos. Apenas lançou um olhar passageiro para o cadafalso, onde começavam a apodrecer os restos mortais de Gorthyn. Quanto a Blaise, nada conseguia arrancá-lo ao fluxo dos seus pensamentos. Só quando o conde se dirigiu a eles é que o monge pareceu finalmente emergir dos seus sonhos.

— Digam-me o que devo fazer convosco!

Blaise levantou os olhos e olhou à volta como se só nesse momento se tivesse dado conta da saleta. Pequena e mal iluminada, tendo por única luz, a abertura de uma janela forrada com tela oleada, devia servir para o conselho do conde, como o atestavam os bancos de madeira escura encostados aos quatro panos de parede. Chegavam para se sentarem uns dez homens, mas só estava Cetomerinus, imóvel e calado, enquanto Withur, de mãos atrás das costas, ia e vinha na batida seca das botas ferradas sobre as lajes do chão.

— Senhor, faça de mim o que entender — disse ele. — Mas o rapaz não pode ser julgado pelos homens. Ninguém tem o direito de contrariar o seu destino, porque é a mão de Deus que o guia.

— Blasfêmia! — gritou Cetomerinus do seu banco. — Como ousas afirmar que aquele... aquele monstro, aquele feiticeiro, está na mão de Deus?

— Os meus olhos estão abertos enquanto tu, meu irmão, não vês.

— E tu? Viste o que se passou ontem à noite?

— Vi o bispo Aureliano morrer pedindo-lhe perdão. Vi um rapaz em pânico que tentava libertar-se da mão de um morto. Foi isto que vi.

— Mas... o seu rosto!

Blaise voltou o olhar para o conde, que abanou a cabeça com ar sombrio, o que não escapou a Cetomerinus.

— Tomais-me por louco? — gritou ele com voz aguda e levantando-se de um salto.

Estendeu o dedo na direção de Merlim e o dedo tremia.

— Juro perante Deus e os Evangelhos, ele mudou de fisionomia por várias vezes na frente dos meus olhos!

— Eu estava lá — murmurou Blaise. — Não vi nada disso.

— Nem eu — resmungou Withur.— Tudo o que sei, é que o nosso bem-amado Aureliano estava feliz com a sua presença e morreu a segurar-lhe a mão.

— Era feitiçaria! — voltou a gritar Cetomerinus.

— Talvez... Na condição de se acreditar que um santo homem possa ser enfeitiçado por um fedelho que eu com um murro seria capaz de estender no chão.

Merlim levantou os olhos para ele e mediram-se com o olhar por um momento.

— ...Eu não acredito.

O rapaz e o conde mantinham-se em frente um do outro, a menos de um passo de distância, no lusco-fusco amarelado que emanava da janela tapada. Withur estava armado, como de costume, e Merlim tinha os pulsos atados. Sem sombra de dúvida teria conseguido parti-lo em dois, espancá-lo ou cortar-lhe a garganta com uma punhalada. O conde não o fez. Pelo contrário, levantou a mão, hesitou por um momento, e pousou-a sobre o ombro do rapaz. Aquele simples gesto prendeu-lhe a garganta e trouxe-lhe as lágrimas aos olhos, a ponto de ter de se voltar para esconder dos outros a vaga de emoção que subitamente o tinha atacado.

Antes que tivesse conseguido recompor-se, o capelão colocou-se a seu lado, apontando com o dedo, já não para Merlim, mas para o irmão Blaise.

— Repete o que disseste.

— O quê? — perguntou o monge, recuando contra a sua vontade, desconcertado com a questão abrupta de Cetomerinus.

— A mão de Deus! Disseste que ele era guiado pela mão de Deus!

— Disso estou convicto.

— Isso não é uma blasfêmia, é uma heresia! Tomas esta criança por um enviado de Deus, quando ele não acredita em Deus! Fora de Deus, o homem está em pecado, não pode haver graça senão n’Ele e com Ele! Traíste-te. O que professas é a doutrina do herético Pelágio e, para isso, a única sanção é o anátema!

As palavras do capelão, gritadas com toda a força, ressoaram longamente pela sala. Blaise ficou pálido, sentindo-se atingido no mais íntimo de si próprio, mas incapaz de negar. Tirando o olhar dos outros três, foi sentar-se isolado, de cabeça baixa, vencido. Cetomerinus olhou-se de alto a baixo por um instante, com um ar triunfante. Já tinha a boca aberta para retomar a sua diatribe quando o conde o travou com um gesto.

— Não vos posso libertar nem prender — disse com voz pouco convicta. — Tudo isto me ultrapassa... Ambos acompanhareis o padre a Carohaise[25], à corte do rei Judual onde neste momento se encontram os bispos Samson, Félix e Victurius. Quanto a vós, padre, rezarei para que vos concedam a diocese de Aureliano...

— Agradeço-vos — murmurou Cetomerinus fazendo um visível esforço para se recompor e acalmar a tremedeira convulsiva que continuava a agitá-lo.

— Que assim seja — concluiu Withur. — Entrementes... Entrementes, peço que fiquem aqui. Hão-de trazer-vos de comer e provisões para o caminho. Partireis antes do meio-dia.

O conde saiu de cabeça baixa, evitando cruzar o olhar do rapaz. Cetomerinus seguiu-o, mas parou na soleira e olhou-os de frente.

— No que vos diz respeito — disse ele dirigindo-se a Blaise — vou remeter-me aos padres da Igreja. Sed id me videre seio, atque etiam id seis... Iste puer non ad hunc mundum pertinet[26].

— Erras! Ille puer[27]... Eu... Desculpem. Há muito tempo que não falo latim...

O rosto do religioso iluminou-se com um sorriso condescendente.

— Terás de dedicar-te a ele, meu irmão. O sínodo dos bispos não pode desenrolar-se em língua vulgar...

— Rationabilis es, Cetomerinus... — disse Merlim.

O capelão quase ficou sobressaltado ao descobrir o rapaz a seu lado.

— ...Non ad mundum tuum pertineo[28].

 

                             Em Território Hostil

Omar ficava a menos de dez milhas. Aos primeiros vislumbres da aurora, Daffyd via-o cintilar do outro lado dos negros montes, tão próximo e no entanto tão longe. Uma ave chegaria junto dele com algumas batidas de asas, mas a sua tropa havia necessitado de alguns dias de marcha para subir até ali, aos contrafortes de Eryri. A «montanha da Águia» era o ponto mais alto de toda a ilha da Bretanha e uma das suas regiões mais selvagens, semelhante a uma fortaleza natural de qualquer gigante lendário, erguida abruptamente das entranhas da terra, a um tiro de flecha da costa. A um tiro de flecha, mas a horas e horas de subida, através das florestas e dos rochedos escarpados, para quem quisesse penetrar no coração do selvagem reino Gwynedd. A antiga estrada romana partia de Deva indo até Dinorben, Deganwy[29] e à fortaleza de Caernarfon, era o único acesso que conduzia à cidadela real de Dynas Emrys. Uma estrada em espiral, que os separava perigosamente das suas bases avançando ao longo da costa norte e sul antes de insinuar-se nas alturas. Tinham passado em Dinorben a sua última noite em segurança, sob a proteção do senhor Elidir. Era um homem idoso, sem dúvida demasiado para lutar, mas também era tão crente como uma velha, e os monges não tiveram qualquer dificuldade em convencê-lo a colocar-se ao lado do novo rei soberano. Os seus barcos estariam preparados, quando voltassem, e ele recrutaria um pequeno exército. Cinqüenta, talvez cem lanças, e outros tantos archeiros... Era muito mais, dez vezes mais o que Daffyd tinha reunido em todo o País Branco.

Àquela hora, a terra merecia bem o seu nome. Apenas os cumes das montanhas emergiam da bruma, e estavam cobertos de geada. Devia ser um espetáculo magnífico para uma ave a voar pelo céu, mas Daffyd não estava na disposição de o saborear. Envolto no seu manto vermelho cor-de-sangue, o barão pensava no prazo dado pelo rei Ryderc. Uma semana... Uma semana antes de arrepiar caminho com todos os recrutas alistados, a bem ou a mal, e aproximar-se de Caer Loew. Aquilo não tinha sentido... Não ali, não naquela paisagem vertiginosa e infinita. Bem podia dar meia volta e ao menos salvar a pele... necessitaria de mais dois dias, talvez três, para ir a Dynas Emrys na esperança de conseguir finalmente reunir tropas dignas desse nome, mas o prazo estaria assim esgotado. Por isso, parecia-lhe mal juntar-se novamente à hoste real à frente de um reforço tão insignificante. Até agora, de aldeia em aldeia, tinham apenas reunido uns quarenta velhacos bons para atirar ao arco e que desertariam às molhadas, todas as noites...

Entorpecido pelo frio, Daffyd aconchegou mais a capa à sua volta e depois, voltando as costas para o sol nascente, afastou-se do acampamento para subir a pequena colina que pendia sobre eles. Chegado lá, mal teve tempo de se sentar para tomar fôlego, quando o sangue se lhe esvaziou do rosto. De longe a longe, elevavam-se nos vales altas colunas de fumo negro, tais estandartes num campo de batalha e subindo no céu sem vento. Sem sombra de dúvida, aqueles negros rolos de fumo assinalavam o caminho que acabavam de fazer. Um exército marchava nas suas pisadas e queimava sistematicamente as aldeias onde eles tinham parado.

— Há uma a mais — disse, por entre dentes, alguém perto dele.

— Deve ser Llanberis — disse outro. — Estivemos ali há dois dias...

Daffyd voltou-se bruscamente e mirou os dois homens que o tinham seguido. Eram soldados. Piqueiros de Strathclyde destinados à sua guarda pessoal.

— Ide reavivar o fogo — ordenou num tom seco — e acordem os outros. Que se prepare alguma coisa quente para comer antes de tornarmos a partir.

Os guardas retiraram-se a resmungar, no tinido das suas cotas de malha, enquanto ele ia ter com o irmão Morien, prior do mosteiro de Cambuslang e chefe da delegação de religiosos que se havia juntado à tropa. Os dois homens conheciam-se de longa data, muito antes de Morien ter vestido o hábito, e Daffyd estava feliz por tê-lo consigo. Com um casaco em pele de cabra e um capuz na cabeça, ele avançava apoiando-se num bordão nodoso que equivalia bem a uma moca e de que não hesitaria servir-se, na devida altura! Debaixo do burel cor de terra, usava calções e toscas botas de couro. Não era certamente um monge fingido, mas um daqueles miles Christi, aqueles soldados de Deus formados pelo abade-bispo Kentigern, por vezes mais soldados do que monges... Os dois amigos trocaram uma breve saudação e em seguida Daffyd indicou com o queixo as colunas de fumo.

— Saxões? — perguntou Morien.

— Com certeza que não. Nunca teriam conseguido aventurar-se tão longe. São pessoas de cá que fazem aquilo.

— Queimar as suas próprias aldeias... Quem pode cometer semelhante barbaridade? E por quê?

— Sabes tão bem como eu — respondeu Daffyd, e deu meia volta, deixando ali o monge, para ir ter com os seus homens.

Gurgi. Não podia ser senão ele. Gurgi e o seu bando de cavaleiros de Gwynedd. Bárbaros intratáveis couraçados de crucifixo, mais selvagens do que Pictos e capazes de tudo em nome de Deus. Gurgi que nutria um ódio terrível por tudo o que pudesse provir de Ryderc ou Strathclyde... Aquelas montanhas eram o seu território. Ele devia conhecer todos os desfiladeiros e bosques e, se ainda não tinha atacado, era porque aquelas aldeias incendiadas lhes causavam muito mais mal do que um ataque frontal. Um plano tão cruel quanto eficaz... Por toda a parte em Gwynedd, deviam estar agora a pensar que o pequeno exército de Daffyd era responsável por aquelas destruições. De modo nenhum poderiam voltar a passar por ali no regresso. Se entretanto houvesse regresso.

Apesar do frio, o chefe militar deitou a sua capa de lã para trás dos ombros e endireitou-se reprimindo um arrepio. Não convinha dar mostras de fraqueza, sobretudo num momento daqueles. Chegado a um tiro de pedra do acampamento, esforçou-se por ostentar uma figura impassível e foi direito a uma fogueira com brasas ainda avermelhadas que os seus guardas atiçavam. Um deles tinha colocado nela uma marmita, donde provinha já um cheiro a sêmola torrada.

— Dá-me uma escudela — disse para um jovem esguedelhado que parecia acabado de chegar de uma noitada.

As papas doces de farinha prendiam-se e estalavam-lhe nos dentes, mas ao menos estavam quentes. Daffyd comeu e bebeu, enquanto à sua volta e das fogueiras se reuniam os homens. Quantos eram? Mais ou menos duzentos. Uns vinte cavaleiros, um esquadrão de soldados armados de pique, outros tantos archeiros. O resto não valia grande coisa. Serranos arrancados aos seus abrigos que logo se voltariam contra ele, se tivessem de enfrentar o bando de Gurgi.

Com um gesto de pouca mestria, o barão atirou a escudela ao chão, que se partiu contra um cavaco. Por um momento, cruzou com o olhar do rapaz, esboçou um leve gesto de desculpas e levantou-se.

— Ouçam-me! — gritou, forte o bastante para que todos o ouvissem.

Enquanto os homens se reuniam à sua frente, ele subiu para um penedo coberto de musgo.

— Vedes aqueles fumos, lá adiante? São as vossas aldeias que estão a ser incendiadas!

Fez-se um longo momento de comentários e exclamações diversas, assim como uma confusão que os guardas tiveram dificuldade em controlar.

— Temos de castigar os porcos que ousam fazer-vos aquilo! — gritou, dominando a vozearia. — Juntos, iremos até Dynas Emrys, pedir a ajuda do rei Peredur!

Estranhamente, responderam-lhe com risos. Desconcertado, Daffyd percorreu a assistência com os olhos e cruzou com o olhar de Morien de Cambuslang. Confuso, o monge ergueu as mãos.

— Senhor, Peredur morreu! — disse alguém do grupo. — Rhun ocupou o trono do pai!

Daffyd acusou o golpe, demasiado surpreendido para conseguir salvar as aparências perante as tropas. O príncipe Rhun, filho do grande rei Maelgoun de Gwynedd, morto com a febre amarela quando ele ainda era criança de peito, tinha sido educado, ou quase, por Gurgi e tinha feito as suas primeiras armas no bando daqueles carniceiros.

O sol ia alto, mas demasiado alto para os ofuscar. Ele ao descer do penedo, escorregou no musgo, caiu desamparado e estatelou-se desamparado na erva coberta de geada. Claro que se multiplicaram os risos e as graçolas. Ninguém soube como as coisas se interligavam. Houve uma confusão, alguns golpes, o ranger da espada saída da bainha. Quando ele se levantou, já tinha corrido sangue.

— Parem! — gritava Morien. — Em nome de Cristo, parem!

Dois, três corpos jaziam por terra, dos quais pelo menos um usava o manto vermelho de Strathclyde. Era demasiado tarde para parar. Aqueles homens já se tinham tornado inimigos. Mais valia matá-los logo do que cruzar-se com eles mais tarde no caminho. Daffyd desembainhou a espada e ergueu os olhos ao céu. Formavam-se nuvens a partir do mar, tão próximo e tão distante. Mais cedo ou mais tarde, o seu caminho acabaria naquelas montanhas, sem glória, contra velhacos.

— Maldito sejas tu, Ryderc, filho de Tudwal! — gritou ele a plenos pulmões.

Em seguida, lançou-se através da multidão. O primeiro que ele feriu foi o jovem esguedelhado.

Quais leprosos, haviam-se feito à estrada ao anoitecer. Até as próprias águas se afastaram à sua passagem, de modo que os carros e a escolta de cavaleiros comandada pelo sargento Erle tinham conseguido chegar à outra margem sem se servirem da barcaça. À luz de archotes, atravessaram Kastell Leon e as aldeolas em redor, prosseguindo pelos campos e bosques até uma hora avançada, apesar da brisa que fazia encarquilhar as tochas, numa noite cada vez mais carregada. E quando finalmente chegaram suficientemente longe de tudo, quando as azémolas[30] atreladas rabujavam a cada passo, porque continuamente se enterravam na areia e caíam fora do caminho empedrado e, quando já todos os homens se tinham apeado para levarem as montadas pelo freio, Erle mandou parar para pernoitarem. Pararam à beira de uma torrente, sob a proteção relativa de um bosque de amieiros, estenderam o toldo oleado entre as charretes para se protegerem da chuva, enrolaram-se nas capas e deitaram-se, uns contra os outros, na vegetação úmida. Uma única sentinela assegurava a guarda, com render de duas em duas horas, tendo como função principal manter o fogo aceso. Não havia nada a temer, em terras do conde, exceto os lobos e os animais da floresta. Nenhum malfeitor teria ousado atacar soldados de Withur, ainda menos quando a escoltar religiosos. Na verdade, era preciso cuidar para que os prisioneiros não fugissem, mas tratar-se-iam realmente de prisioneiros? Merlim e Blaise não estavam amarrados, e o conde, habitualmente menos atencioso, tinha parecido manifestar-lhes certas deferências, no momento da partida. Ao menos dormiam protegidos, na carroça coberta com encerado, carregada com as malas do capelão, sacos de aveia e víveres para a viagem. Quanto a Cetomerinus, desde Battha que não se tinha mostrado, fechado na carroça acolchoada do bispo Aureliano. Puxada por quatro ricos cavalos, era um carro imponente, com dez passos de comprido e com altura suficiente para se estar em pé, semelhante a uma arca montada sobre rodas, com paredes de madeira reforçadas a ferro. Razão para atravessar sem perigo as mais sombrias florestas e passar a noite sossegado.

Tal não foi o caso de Erle e dos seus homens. De manhãzinha, Blaise foi acordado por um concerto de gritarias e ataques de tosse que provinham do acampamento improvisado. Ele próprio, extenuado e enregelado, endireitou-se a custo e, vendo que Merlim já lá não estava, saiu para fora da charrete, sobre a densa geada que cobria as ervas. Ninguém lhe prestou atenção. Nem o rapaz, atarefado como os outros a apanhar ramos secos para alimentar o fogo, sem que ninguém se inquietasse por vê-lo ir para demasiado longe. Por instantes, Blaise seguiu-o com os olhos, sabendo melhor do que ninguém que, se lhe desse na cabeça desaparecer, nenhum daqueles soldados da velha guarda voltaria a encontrá-lo por debaixo das árvores.

E Merlim, de fato, desapareceu, eclipsado pela névoa gelada.

Blaise manteve-se ali um momento, esticando o pescoço sem conseguir descobrir o menor movimento na confusão vegetal que o rodeava. Voltou o olhar e sorriu. Merlim tinha partido. Lentamente, deu meia volta e dirigiu-se para junto de uma fogueira, sempre a sorrir, mas com um nó na garganta.

Merlim tinha partido.

Até chegar à fogueira, o monge foi empurrado duas ou três vezes, sem outra desculpa para além de olhares irritados e resmunguices. Os guardas tinham perdido o hábito de dormir à chuva e o seu humor ressentia-se. Felizmente, fazia bom tempo naquela manhã. Bom e frio, com um céu malva e rosa que se fundia com a geada que cobria a paisagem. Quando aqueceu, Blaise saiu do bosque de amieiros para ir a uma elevação e tentar orientar-se. Já não se via o mar, mas com certeza que era unicamente devido ao nevoeiro. A perder de vista, estendia-se uma charneca salpicada de árvores, elevando-se em ladeira suave para sul, até aos arredores da grande floresta, cujos cumes negros emergiam ao longe dos bancos de nevoeiro. Um deserto, no qual se incrustava a antiga estrada romana, ou o que dela restava, nada mais do que unia leva de terra coberta por trilhos de rodas de carros. Tendo arregaçado as vestes, começava a aliviar a bexiga contra um grande penedo quando um movimento, no limite do seu campo de visão, o fez voltar a cabeça. Viu a silhueta de um cavaleiro solitário, levando atrás de si duas mulas, mesmo antes de desaparecer num valezinho.

O seu primeiro reflexo foi lançar-se na sua pegada, mas reteve-o uma voz familiar.

— Ainda não...

Blaise voltou-se de uma assentada, mas calmo.

— Merlim! Julgava que tinhas fugido!

— Nunca sem ti, meu irmão — respondeu o rapaz recuando um passo, no momento em que o monge avançava para ele de braços abertos. — Se tens intenção de me abraçar — retomou — puxa primeiro os calções...

O monge ficou momentaneamente confuso, mas desatou a rir ao descobrir a sua própria figura, com as roupas todas levantadas à frente do companheiro.

— Viste o cavaleiro? — perguntou enquanto se compunha. Merlim disse que sim com a cabeça.

— Achas que era Bradwen?

O rapaz não teve tempo de responder. Junto ao bosque, Erle chamava-os sem parecer inquietar-se muito com o seu afastamento. Merlim ficou-se por um sorriso ambíguo e deu meia volta, voltando para junto do bosque. Blaise regressou e o comboio retomou o seu caminho.

Eles voltaram a vê-lo, ao anoitecer, a menos de uma milha da freguesia de Enéour[31], saindo da aldeia, devagar, na direção das altas colinas dos montes de Arrée. O homem nunca se virou para eles. No entanto, desta vez, Blaise ficou com a certeza de o ter reconhecido. E, a julgar pelo sorriso de Merlim, o rapaz também o tinha identificado. Erle, entretanto, tinha seguido o seu olhar e tinha chegado às mesmas conclusões.

— Vocês os dois! — gritou ele dirigindo-se aos homens da frente. — Apanhem-me aquele cavaleiro e as suas mulas! Tragam-no vivo!

Os guardas saltaram para a sela e acossaram a montada. Todos ficaram a vê-los afastar-se, até terem passado além do burgo e desaparecido no crepúsculo. De seguida Erle meteu o pé no estribo e içou-se sobre o cavalo, logo imitado pelo resto da escolta. Devagar, avançou para a charrete na qual haviam tomado lugar Blaise e Merlim.

— Era ele, não era? Como se chama?

— Como queres que eu o saiba? — perguntou o rapaz com um ar perfeitamente inocente.

— Eu sei o que estou a dizer — resmungou o sargento. — É o homem que estava acampado em Battha, no dia em que te prendi. Reconheci as mulas... Não o conheces mesmo?

O rapaz abanou a cabeça em silêncio.

— Então, ser-te-á indiferente a sua sorte. Melhor assim.

Fazia um calor enfadonho em volta da fornalha entalhada no chão, mesmo ao meio da sala. Sobre uma cama de brasas, a menos de dois passos dos convivas dispostos em círculo, os criados rodavam no espeto um quarto de boi com tamanho suficiente para alimentar metade de Dal Riada e cuja gordura reluzente estalava ao cair sobre as brasas. Como a maior parte dos comensais, Aedan vestia-se apenas com uma túnica de sarja muito larga, e a baforada de ar quente, úmido e pesado, que inundava a sala não parecia incomodá-lo. Com as mulheres admitidas ao banquete real passava-se exatamente o contrário. Uma mulher não pode aparecer em camisa, nem desapertar o corpete. Uma mulher deve honrar o marido e o clã, não só pela sua beleza, mas também pela riqueza dos seus adornos. Assim, Guendoloena teve de vestir uma camisa de linho abotoada nos punhos, mais um corpete de brocado realçado a fio de ouro e prata, uma cota curta púrpura aberta sobre o flanco e entrelaçada de couro vermelho, tudo isto coberto por uma capa azul-escura, de que entretanto ela se havia desfeito. Os cabelos alegremente apanhados em Carrapicho e sustidos por ganchos de ouro, assim como um véu de transparência aracniana, preso à coifa e que o suor colara ao pescoço. Para outras, era pior. À cabeceira da mesa, uma jovem ruça e rechonchuda, princesa de Cenel nCEngusa da ilha de Islay, estava afogada num vestido de veludo passamanado de arminho e com o rosto tão carmesim que a rainha não conseguia coibir-se de esperar pelo momento em que ela tivesse um chilique. À frente dela, do outro lado da fornalha crepitante, Bebinn, a jovem esposa de Garnait, mantinha-se direita, com o torso ornado por um peitoral de ouro e pedras preciosas, largo como uma couraça.

Os convidados estavam à mesa havia mais de uma hora e foi com dificuldade que começaram a comer. Sucessivamente, todos os chefes de clã, vindos de Mull, de Islay, de Kintyre ou de Arran, todos os abades de Tiree, Lismore ou Cella-Duini, tinham feito um brinde em honra de Aedan e da esposa, e nada no mundo conseguia parecer tão interminável como um cumprimento escoto, atulhado de títulos sonantes e fórmulas rebuscadas às quais se tinha de responder, segundo o costume, com novos brindes e outros cumprimentos.

Guendoloena conhecia agora suficientemente o gaélico para compreender os discursos, mas já não conseguia ouvir, lutando apenas por fazer boa figura ou, ao menos, não ser a primeira a desfalecer. Aedan, sentado a seu lado, servia-lhe continuamente canjirões de cerveja, sem reparar que a jovem rainha se desembaraçava com igual regularidade dos picheis, com a ajuda do seu criado, Cylid, e já não bebia senão água. O rei estava bêbado, claro, como todos eles. Pois, ali, um homem não parava de beber senão quando rebolasse para debaixo da mesa.

De repente, uma lufada de ar fresco veio-lhes acariciar agradavelmente o rosto. Acabava de entrar um mensageiro. Ficou à entrada por breves momentos, até referenciar o rei e avançar vivamente até ele para lhe falar ao ouvido. O rosto de Aedan ensombrou-se nesse instante. Já não tinha de todo aspecto de bêbado, como se a sua embriaguez não tivesse sido senão fachada. Com um gesto, mandou embora o mensageiro e voltou-se para Guendoloena, com um ar preocupado.

— O que aconteceu?

— Temo que más notícias...

Calaram-se os risos e os clamores. Aedan percorreu a assistência com o olhar, pegou na mão da esposa com um gesto apaziguante e levantou-se.

— Os Saxões acabam de obter uma grande vitória no Sul contra os exércitos bretões! — disse ele em voz alta.

Guendoloena teve a impressão de ficar sem pinga de sangue no rosto. Imóvel, com os olhos fixos em frente, ela ouviu os comentários sossegados dos convivas. Estão a brincar. Para eles, isso não significa nada. Aedan voltou a sentar-se, enquanto o burburinho das conversas se intensificava cada vez mais.

— Parece que o teu irmão chegou demasiado tarde e não combateu — retomou o rei, em tom mais baixo. — Tentarei informar-me melhor...

Ela agradeceu-lhe com um sorriso, mas soltou a mão. Furtivamente, voltou-se para Cylid, o tônico Bretão da assistência, para além dela. Cruzaram-se os seus olhares, sem que ela conseguisse dizer-lhe fosse o que fosse.

— Cá está uma notícia muito pouco surpreendente! — exclamou alguém à sua direita.

Inclinando-se, viu que era Garnait. Folgazão, com a boca e a barba emporcalhados de gordura, apontou para ela a faca de que se servia para comer.

— Desculpai-me, minha mãe mas, desde que me conheço, os Bretões nunca venceram uma batalha...

— Achas que é um sinal? — perguntou uma voz no lado oposto. Grandes gargalhadas rebentaram um pouco por todo o lado.

— Garnait, o terror dos Bretões! — exagerou outro.

— Acho que sim — murmurou Guendoloena.

Aedan, junto dela, estremeceu mas não disse palavra. E Garnait, inflamado pelo vinho e pelas gargalhadas dos convivas, cambaleou a beber, mas endireitou-se bruscamente, abrindo os braços como um apresentador de ursos. Por pouco, teria subido para cima da mesa, se não tivesse bebido tanto.

— Garanto-vos eu, os Lloegriens[32] nunca se aventuraram até nós, e será necessário que os procuremos, um dia qualquer, para que apreciem o bom aço escoto.

Todos os convivas responderam às suas fanfarronadas com vociferações que estremeceram as paredes.

— Garanto-vos que é chegada a nossa hora! Por toda a parte, os nossos irmãos de Hibérnia criam raízes na Bretanha e aí fundam reinos. Os Ui Liathain no Sul, os Deisi Muman em Dyfed e os Laigin em Gwynedd! Por que esperar mais tempo?

Guendoloena nem tinha pestanejado. Mas quando Aedan fez menção de se levantar para pôr fim à arenga do filho, foi ela, desta vez, que lhe segurou a mão, com força.

— Meus amigos, ponde a sela nos vossos cavalos! — gritava Garnait com um grande gesto que aspergiu sobre si próprio o vinho de que se havia servido. — Bruni o ferro das vossas lanças e verificai os vossos estandartes! Amanhã, cedo, o meu pai conduzir-vos-á ao fim do mundo!

Os barões escotos, os chefes militares e os nobres dos quatro clãs de Dal Riada ergueram-se como um só homem, brandiram as suas taças de estanho e lançaram três Hurras!, virados para o seu senhor, Aedan mac Gabran, rei de Islay, de Kintyre, de Arran e de Mull, antes de beberem em sua honra. Com o rosto carregado, este elevou a taça e apenas molhou os lábios, sem deixar o seu assento nem conceder a menor atenção a Garnait, marcando assim uma desaprovação que não escapou a ninguém, sobretudo ao filho mais velho. Desapontado, Garnait dentro de pouco ficou sozinho em pé, à medida que, à volta da mesa, todos iam a pouco e pouco tomando consciência da ofensa infligida à rainha e da inconveniência daquelas aclamações. No silêncio pesado que então reinava, Guendoloena tomou a palavra, com o busto direito e o olhar fixo, tão inflexível naquele momento como o do próprio rei.

— Bebo a essas nobres palavras! — clamou ela (e todos viram que ela não tinha bebido) — É verdade que os Bretões não conseguem grandes vitórias desde há muito tempo. As últimas foram as de Artur Ambrosius, o Urso da Bretanha. Assim, eu bebo ao nobre nome de Artur, que é o do meu filho, hoje, e às suas vitórias futuras!

Desta vez, ela esvaziou a taça de uma assentada e pousou-a com um gesto brusco, enquanto Aedan se recompunha, com o rosto ainda purpurado de cólera e com os olhos flamejantes.

— As vitórias de Artur mac Aedan! — clamou com voz tonante. Depois bebeu, imitado submissamente por toda a assistência.

Por um momento, manteve-se de pé diante deles, como que à procura de palavras que não vinham e, não as encontrando, voltou a sentar-se, julgando ter lavado a afronta sofrida por Guendoloena. Um simples olhar sobre o seu rosto cerrado e pálido bastou-lhe para compreender que não era assim.

— Interrompi o príncipe Garnait! — lançou ela energicamente, enquanto o esposo se inclinava na sua direção. — Queiram perdoar-me, mas há tantas coisas que ainda desconheço sobre este belo país... O meu filho com certeza que travou muitas batalhas e matou tantos inimigos que o seu nome faz tremer os sete reinos pictos, de Fortriu a Cait! Fala-nos das tuas vitórias, Garnait. Regala-nos com o relato das tuas proezas!

Lívido, o príncipe escoto vacilou das pernas e teve de encostar-se a um pilar da sala.

— Então? — insistiu ela, sempre direita e sem haver por bem voltar-se para ele. — O rei Ryderc de Strathclyde, meu irmão, aprenderia com a tua experiência, e não duvido que ele conduziria melhor a sua guerra contra os pagãos da Germânia!

— Ryderc! — vomitou por entre dentes o príncipe. — Ryderc, o generoso. Sem nós, teria morrido, e tu também!

Aedan levantou-se impetuosamente, tão impetuosamente que até deitou ao chão a pesada cadeira de madeira. Avançou para Garnait, agarrou-o pelos cabelos e atirou-o ao chão, aos pés da rainha.

— O rei Ryderc de Strathclyde é meu aliado, meu amigo e irmão da minha esposa! Debaixo do meu teto ninguém se regozija com as desgraças que o atingem.

Aedan mantinha o punho fechado, como se estivesse prestes a esmurrá-lo na frente de todos. Durante um período infindo, num profundo silêncio em que se ouvia o crepitar das brasas na fornalha e o soprar do vento lá fora, pai e filho permaneceram assim, a ferver um e outro de cólera. Uma palavra, um gesto de Garnait teria bastado naquele momento para que Aedan tivesse cometido o irremediável. Felizmente, o príncipe deixou-se ficar no chão, com o rosto tapado pelos seus longos cabelos pretos, e o pai afastou-se finalmente dele.

— A rainha tem razão. — disse. — Já é bem tempo de dares provas dos teus talentos militares. Antes de uma semana, comandarás um exército em território picto, sem parares até que tenhas recebido, em combate, uma ferida honrável que te permita falar assim diante da assembléia dos guerreiros! Agora, pede desculpa à tua mãe pelos teus insultos!

Garnait ergueu para ele um olhar ofuscado e abriu a boca para se explicar, mas Aedan não lhe deu ocasião. Com um murro de desancar um boi, lançou-o no chão de terra batida.

— Pede desculpa!

Lenta e dolorosamente, Garnait voltou a pôr-se de pé, com o rosto marcado com um rasgão a sangrar na fonte, no sítio onde os anéis do pai o tinham atingido.

— Peço-lhe perdão, minha mãe — murmurou. Guendoloena não respondeu. Gelada até ao coração, ela via o sangue escorrer pela face do seu enteado, com olhar baixo, com os membros a tremer de raiva. Percebendo que Aedan esperava dela nem que fosse um gesto, ela meneou a cabeça e depois virou as costas. O seu olhar cruzou com o de Bebinn e dos seus vizinhos. Mudos, atingidos, hostis. Eles detestam-me. Humilhei-o, nunca mais me vão perdoar...

Nessa noite, Aedan não partilhou o seu leito, alegando compromissos com os convidados. Guendoloena mandou rapidamente embora as criadas e depois, quando a calma da noite recobriu a fortaleza real, voltou a vestir uma capa de lã e saiu do quarto. A algumas portas dali dormia Cylid, seu criado. Um bretão de Strathclyde, capturado e reduzido a escravo pelos escotos durante uma das suas incursões piratas. Agora, Cylid era um homem livre. Assim o quisera Aedan, como homenagem à sua jovem esposa. O homem tinha ficado ao serviço da rainha. Após tantos anos de servidão, com certeza que nada mais podia esperar.

Sem bater, entrou vivamente no reduto que lhe servia de quarto. O velho servo, sentado na enxerga de palha que lhe servia de cama, segurava a cabeça entre as mãos.

— Minha rainha — disse erguendo-se de um salto, assim que a reconheceu.

À luz vacilante da lamparina de azeite, Guendoloena notou que ele tinha chorado e aquela constatação perturbou-a.

— Tens de partir — soprou em voz baixa. — És a minha única esperança. Toma um barco e vai imediatamente...

Ela voltou-se, contendo as lágrimas que lhe vinham aos olhos e, por momentos, foi incapaz de prosseguir.

— Que desejas que eu faça? — murmurou o ancião.

Quando ele tiver partido, ficarei só. E se quiserem matar-me, como a rainha Domelach antes de mim, ninguém virá a saber o que realmente me aconteceu...

— Queres que vá ter com o rei Ryderc?

— Não — disse ela energicamente. — Não, Ryderc não. Se temesse pela minha vida, ele era capaz de... Não, Ryderc, não.

Guendoloena aconchegou-se melhor na sua capa. De repente, sentia frio.

— Quero que encontres Emrys Myrddin, príncipe de Dyfed, filho da rainha Aldan Ambrosia.

Cylid franziu as sobrancelhas, denotando uma incompreensão tão manifesta que ela teve de explicar-se melhor.

— Tu o conheces, Cylid. Ou ao menos conheces o seu nome, como toda a gente na ilha da Bretanha. É um bardo... Chamam-lhe Merlim.

— Merlim? O bardo Merlim?

— Diz-lhe... diz-lhe que o seu filho corre perigo.

 

                                     A Porta do Inferno

Até Carohaise, já não havia mais nenhuma hospedaria. Nem hospedaria nem povoação, apenas algumas residências de lenhadores ou carvoeiros nos arredores da floresta, e ainda assim, era preciso encontrá-las. A charneca de urzes e tojo tornava-se tão densa que era impossível sair do caminho e o grupo estendia-se numa longa coluna, com apenas o espaço suficiente para as charretes ou dois cavaleiros a par. Havia já algumas milhas que o caminho não cessava de subir em rampa suave na direção dos contrafortes das montanhas do interior, cuja massa escura, coberta por uma insondável vegetação, emergia da bruma, no horizonte.

Eles seguiam em silêncio, segurando os cavalos pelos freios, com o rosto encarniçado pelo frio e pelo esforço, ignorando, a maior parte deles, o tempo que ainda teriam de andar e tomados pouco a pouco por uma apreensão tão manifesta que Blaise e Merlim, sem saberem ao certo o que temiam — não podia ser Bradwen, que não representava grande ameaça contra um grupo assim —, espiavam os arredores como se a todo o momento esperassem ver surgir de uma moita algum demônio aos berros. Os homens nem falavam, mas as suas expressões eram eloqüentes quando olhavam para a imensa floresta que pendia sobre eles. A floresta — disse consigo Merlim. — É a floresta que lhes mete medo... Para onde quer que dirigissem o olhar, ela estava lá, mais negra e mais vasta que o oceano, tão alta que emergia das nuvens, e o caminho que se elevava na sua direção parecia perder-se nela tão profundamente que não se imaginava que pudesse sair de lá.

Nos arredores dos montes de Arrée, a subida tornou-se mais íngreme. Pouco depois, Cetomerinus e os seus monges foram forçados a sair do carro e, como os outros, enlamear as botas na lama do caminho, enquanto os guardas tinham às vezes de apoiar-se às rodas e dar ao chicote para o fazer avançar. No cimo de um desfiladeiro, o homem da frente parou e fez um sinal na direção de Erle, que se elevou na sela para se juntar a ele. Nessa altura, os outros pararam para descansar, mas alguns, vendo o sargento e os seus batedores animados com uma discussão agitada, aceleraram o movimento até eles. Merlim e Blaise seguiram-lhes as pisadas sem dizer palavra, com medo que os mandassem ficar para trás.

Ao cimo do caminho, o mundo parecia terminar.

Um nevoeiro branco, tão denso como um campo nevado, estendia-se por um grande vale, debruado ao longe pela negra muralha da floresta. Para além de algumas toesas, já não se via o caminho empedrado, confundido como os arbustos e matagais naquela nuvem confusa. Um pérfido cheiro a turfa subia-lhes à garganta, sem ser aliviado pelo menor sopro de vento.

— Em breve vai anoitecer — dizia um dos guardas. — Não vamos ter tempo para atravessar e não conte comigo para passar a noite no Yeun Elez!

Erle resmungou secamente uma frase que eles não perceberam, pois era questão de ordens e de superstições ridículas. Por isso, o sargento, como todos eles, contemplavam com repugnância aquele lago de bruma, sem chegarem a tomar uma decisão visível.

— O que é Yeun Elez? — perguntou Blaise ao homem que estava mais próximo.

Este voltou-se para ele e em seguida indicou o vale com o queixo.

— A porta do inferno — resmungou entre dentes. — Uma turfeira, tão úmida que nos enterramos nela até ao joelho. Não há meio de acender fogo ali e, se nos afastarmos do caminho, os korrigans apanham-nos e afogam-nos na lama... Eu, cá por mim, não vou. Só temos é que esperar por amanhã. De dia, não digo que não...

Blaise dirigiu um olhar para Merlim, que abanou lentamente a cabeça olhando em redor com um sorriso de expectativa que os outros, felizmente, não notaram.

— Ele tem razão — soprou ele. — É uma porta... É aqui que começam as terras virgens.

— O que se passa? — perguntou uma voz forte, atrás deles. — Porque é que pararam?

Deram todos meia-volta em bloco, e afastaram-se para dar passagem a Cetomerinus, que avançou até ao sargento.

— É aquele nevoeiro que vos detém? — gritou depois de ter observado o vale por instantes, o tempo de tomar fôlego. — Vá, vamos continuar... Ao menos é a descer, iremos mais depressa.

A resposta foi um zumbido de murmúrios, sem que nenhum dos soldados ousasse enfrentar o seu olhar. Erle apeou, confiou as rédeas ao primeiro que apareceu e tomou o capelão à parte.

— Senhor padre — disse ele quando já estavam suficientemente afastados — não é um nevoeiro qualquer. Eu conheço este sítio. É um lamaçal de turfa perigosa viscosa e enregelada. As pessoas de cá chamam-lhe o Yeun Elez, o grande frio. Dizem...

— E depois?

— Padre, é um sítio esquecido por Deus, acredite, infestado de korrigans e de poulpiquets...

— Verdade?

Cetomerinus olhou para o sargento com um trejeito irônico e depois, vendo que ele não estava para graças, fez frente ao grupo amontoado na encosta. Aqueles soldados cobertos de ferro e couro baixavam os olhos ou viravam-lhe as costas. O único olhar que obteve foi o de Merlim. O rapaz sorria.

— Ouçam-me bem! Não há no mundo um sítio, um único sítio, que seja esquecido por Deus! — bramiu ele com uma voz que aumentava a cada palavra. — «O caminho dos virtuosos está semeado de obstáculos que são atentados egoístas que fazem infinitamente renascer a obra do Maligno. Bendito seja aquele que, em nome da caridade, se faz pastor dos fracos através do vale das trevas, da morte e das lágrimas.» Onde passa o portador da cruz, os demônios fogem e tapam a cara gemendo de terror! Que os frouxos, os idolatras e os falsos cristãos fiquem para trás, à espera do julgamento. E que os soldados de Deus me sigam, sem outro medo que não seja o de desagradar ao Altíssimo!

Em seguida mirou Erle dos pés à cabeça e partiu a direito na sua frente, até ser engolido pelo nevoeiro, deixando ali o sargento confuso e envergonhado. Sem qualquer reparo, os dois monges desceram o atalho e, pernas para que vos quero, passaram diante dele sem um olhar e, por sua vez, desapareceram no denso nevoeiro. Erle manteve-se ali algum tempo, cuspiu para o chão e voltou a subir lentamente o caminho na direção dos seus homens. Sem uma palavra, retomou as rédeas do cavalo e montou. Só então, baixou os olhos para o grupo.

— Vamos lá.

Enquanto os guardas se dispersavam resmungando, voltando para os seus cavalos ou partindo já a pequeno trote para apanhar os monges, ele apercebeu-se da presença de Merlim a seu lado e viu o seu sorriso.

— Goza, miúdo. Antes da noite, os poulpiquets far-te-ão dançar a sua sarabanda e veremos então se ainda continuas a rir.

— Esqueces-te que sou um feiticeiro... A noite, sou eu quem dirige a dança dos duendes! Se não acreditas em mim, pergunta ao capelão.

— Ó miúdo, não me chateies...

O sargento esporeou a montada e partiu a trote. Merlim seguiu-o com o olhar até que também ele se sumisse no nevoeiro. Em seguida olhou na direção de Blaise. O monge tinha-se sentado em cima de uma grande pedra e brincava distraidamente com um pé de urze com flores cor de malva desmaiado.

— Acreditas mesmo que é a porta dos infernos? — perguntou ao reparar que o rapaz o observava.

— Eu vi a porta dos infernos — murmurou Merlim. — Não se parecia com isto. Não, meu irmão... Os únicos diabos que vivem aqui são do mesmo sangue que eu. Ouviste-os? Korrigans, poulpiquets, lutinsjarfaäets, fadas ou elfos, pouco importa o nome que se lhes dê. Habitam cá, acredita.

Ele fez uma interrupção e, durante um bom bocado, os dois companheiros olharam-se com ar grave. É aqui que os nossos caminhos se separam. Será que o sabes, irmão?

— Vamos — disse Blaise levantando-se, enquanto a carriola do capelão passava bimbalhante na sua frente. — Não nos deixemos distanciar.

Anoiteceu sem que tivessem voltado a ver a cor do céu. Tal como se tivessem estendido sobre eles um cortinado, a bruma espessa que os rodeava obscureceu. Pouco a pouco, num imperceptível enfado do dia, foram mergulhados nas trevas, sem outra escolha que não fosse continuar. À medida que avançavam, cegos e perdidos, pelo caminho sobrelevado que atravessava os pântano, fugazes luzes começaram a cintilar ao longe. Eram apenas fogos-fátuos surgidos do pântano, mas cada fogo-fátuo iluminava por um instante alguns arpentes de uma vegetação fustigada e aquelas visões furtivas, aliadas ao frio glacial da turfeira ter-se-iam apossado dos corações mais afoitos. Sem dar por isso, os homens da frente começaram a segurar as montadas e os da retaguarda a apressar o andamento, com medo do que pudesse acontecer nas suas costas, de modo que formavam agora um grupo compacto em torno dos carros e isso só tornava mais difícil a progressão. De repente, um torrão de terra cedeu debaixo das patas de um cavalo, que perdeu o equilíbrio e caiu de costas fora do caminho. O animal levantou-se logo e subiu rapidamente a leva de terra. Em compensação, o cavaleiro tinha rebolado até à turfeira e começou a gritar, debatendo-se freneticamente. Era apenas uma poça lamacenta, na qual não teria conseguido afundar-se mais do que até às coxas ou cintura, mas foram precisos vários homens para tirá-lo de lá, tal era o pânico.

— Basta — decidiu Erle, descendo da montada. — Paramos aqui. Acendam tochas para que se veja alguma coisa!

— Com quê? — resmungou um soldado, anônimo no escuro.

— Com o que encontrarem. Com os encerados do carro, as tábuas da caixa, as arcas, tudo o que não serve para nada. Peçam aos monges, com certeza que têm velas lá na sua carripana!

— Temos — disse Cetomerinus junto dele.

— Desculpe — resmoneou o sargento. — Não o tinha visto...

— Desculpe de quê?

Com um gesto de mão, fez sinal aos irmãos conversos que o acompanhavam para irem buscar o que era preciso. Momentos depois, um deles saiu do carro com uma vela acesa e uma braçada de círios.

— Não podemos continuar? — perguntou Cetomerinus ao ver os guardas a arrancarem os painéis de madeira da charrete e acenderem uma fogueira ao meio do caminho. Com luz, conseguiríamos iluminar suficientemente o caminho. Quanto nos falta, cinco, seis léguas?

— Cinco, seis ou dez, sei lá... Mas do outro lado do pântano teremos de atravessar o Huel Goat, a alta floresta, e provavelmente ainda veremos menos. É melhor esperar pelo dia.

À luz vacilante das velas, ele adivinhava o rosto carrancudo de Cetomerinus e via que este se aprestava a insistir.

— Pela minha saúde, não consegue ver que os homens têm medo? — gritou. — Os fogos-fátuos, a noite, o frio, e todas as lendas que pesam sobre este pântano! Eu sei que não acredita nisto, mas eles, sim. Se continuarmos, isto vai acabar mal. Portanto, acampamos aqui. É uma ordem!

Abandonando o capelão ofuscado, pegou no cavalo pelas rédeas e foi amarrá-lo no carro, junto aos outros.

O fogo tinha avivado na fogueira central, apesar da umidade. Como náufragos numa ilha, os homens juntavam-se à volta da luz e do calor, à espera de ordens. Erle passou suavemente por entre eles e aproximou as mãos da fogueira para se aquecer. Abruma enregelava-os até aos ossos, até ao coração. Pesava sobre eles como uma mortalha, trespassava as cotas de malha, as couraças de couro e as roupas de lã, tirava toda a coragem àqueles guerreiros endurecidos.

— Temos de acreditar naquilo que disse o abade — murmurou de modo que só eles ouvissem. — Estamos sob a proteção de Deus, nada há a temer... Além disso, é sobejamente conhecido que os poulpiquets têm medo do fogo. Mantenham a fogueira acesa e tudo correrá bem... Blaen!

Do outro lado das chamas, um guarda ergueu os olhos para ele.

— Prepara-nos alguma coisa quente. Gela-se aqui... Jantaram em silêncio, enquanto, em redor, o pântano se embebia de sons fastidiosos e de marulhada, sempre com aquele cheiro a turfa e bafio que se colava à garganta. Em seguida começou a circular uma cabaça de hidromel e retomaram-se as conversas. Dissipava-se a angústia.

De repente, um assobio plangente e cadenciado pôs termos à confraternização. Durante um longo momento, retiveram a respiração como se não tivessem a certeza daquilo que acabavam de ouvir, até que voltasse a ecoar de novo, em qualquer outro lado. Dir-se-ia uma música de flauta, ao mesmo tempo lenta, dissonante e aguda, a falar verdade tão estranha que podia tratar-se dos trilos de uma ave noturna. Uma vez mais, fez uma interrupção abrupta numa nota alta, antes que alguém conseguisse identificá-la.

— É a flauta do diabo! — soprou um soldado.

— É uma ave...

— Eu sei o que ouvi! Não tinha nada de animal!

— Veremos.

Erle mandou fazer duas fogueiras nas extremidades da coluna e colocar as velas dos monges ao longo do caminho, de dez em dez passos, sem que em nenhum momento ouvissem a melodia fanhosa. Foram designadas sentinelas, mas todos velavam, sobressaltando-se ao menor coaxo e queimando as pestanas à força de perscrutar as trevas. Cetomerinus e os seus ajudantes tinham-se fechado no carro reforçado de ferro e Blaise tinha levado Merlim para a charrete, ou o que dela restava, sem a cobertura nem as balaustradas que tinham sido deitadas no fogo.

Assim se passaram as horas, no rumor pesado da turfeira, perturbado de vez em quando por algum ataque de tosse ou o sopro de um cavalo. Blaise, como muitos deles, acabara por adormecer, enrolado no seu manto e aconchegado contra Merlim.

O rapaz, esse, não dormia. Havia alguns minutos que tinha mudado o gorgolejo do pântano. O coaxar dos sapos e das rãs tinha momentaneamente parado. Imóvel, com todos os sentidos em alerta, apercebeu-se de um movimento direito a ele, na escuridão da turfeira. De repente, reparou que as velas colocadas ao longo do caminho se tinham apagado ou alguém as tinha apagado, sem que tivesse dado por isso. O acampamento adormecido tornava-se vermelho à luz vacilante das fogueiras, onde morriam os brasidos. Lentamente, libertou-se de Blaise que pesava sobre ele e endireitou-se na charrete. Primeiro, não viu nada. Em seguida, uma silhueta a subir a rampa, o rumor abafado de uma discussão, um grito abafado e o tinir de uma arma sobre uma pedra.

De um salto, o rapaz saiu do carro e acocorou-se na sua sombra, com o coração a palpitar. Ninguém tinha reagido. Nem um apelo. Nem um barulho. Por momentos, dobrado sobre si mesmo e mal respirando, Merlim escrutou o halo vaporoso que o rodeava, sem ver nem ouvir fosse o que fosse, até que das trevas emergiu uma figura encapuchada, coberta com um grande manto negro. Viu-a aproximar-se do taipal e espreitar para dentro. Uma folha metálica produziu uma leve cintilação, provocando no rapaz um movimento instintivo de recuo, que o outro adivinhou. Logo de seguida, caía-lhe pesadamente em cima.

— Merlim! Sou eu...

O rapaz ficou espantado e parou de lutar. Logo a aparição deslizou para o lado e deitou o capucho para trás. Era Bradwen, com os olhos a luzir no rosto negro de lama. O guerreiro sorriu, pôs um dedo nos lábios para lhe indicar que ficasse calado e, com a cabeça, indicou-lhe o pântano ali mais abaixo. Merlim anuiu e eles começaram a andar agachados, contornando o corpo do guarda degolado.

O rapaz e o guerreiro estavam a chegar aos matagais quando uma voz mal-humorada ressoou por cima deles, no caminho.

— Ei! Acorda!

Instantaneamente eles atiraram-se para o chão, sem se mexerem. Ao levantar os olhos, reconheceram o sargento Erle, que se debruçava sobre a vítima de Bradwen.

— Falas tu de um sentinela... Ei, estou a falar contigo!

Lá em cima, Erle tinha-se acocorado ao lado do cadáver encarquilhado e voltava-o de costas. Viu a garganta cortada, os olhos sem brilho, com o sangue escuro a macular-lhe a cota de malha. De um salto, levantou-se e empunhou a espada no momento exato em que, alguns côvados mais baixo, o guerreiro se punha de pé, mesmo na frente dele. Por momentos, o tempo ficou suspenso. Só por curtos momentos, só até Bradwen ter a certeza que o outro o tinha reconhecido. Em seguida, o seu braço distendeu-se e o punhal assobiou pelos ares, cortando por completo o grito de alarme do sargento. Merlim viu-o apagar-se, como que a ajoelhar-se, caindo para o lado, para baixo do caminho. Bradwen travou-o com a biqueira da bota, arrancou-lhe a adaga do torso ainda palpitante e elevou a mão para golpear outra vez.

— Bradwen! Não!

O guerreiro suspendeu o golpe e olhou-o com um ar surpreendido. Merlim já tinha subido a rampa até junto deles, afastava-o com um encontrão e levantava a cabeça de Erle, manchada de sangue e terra. O sargento abriu os olhos, reconheceu o rapaz debruçado sobre ele, à luz tremula das tochas.

— Sem glória — murmurou.

Por cima deles, ouviram vozes e tinidos de armas.

— Vem! — ordenou Bradwen. — Deixa-o!

E partiu, direito ao pântano, logo engolido pelas trevas e a bruma. Merlim ficou ali o tempo de pousar suavemente a cabeça do sargento, evitando o seu olhar vazio, onde não se notava nem uma censura. Quando se endireitou para arremeter na direção da turfeira, vários vultos apareceram bruscamente no caminho, ali por cima. Claro que não perdeu tempo a observá-los, só mais tarde, quando recordou aquele momento, é que compreendeu que duas daquelas figuras vestiam hábitos de monge.

Vinte homens. Sem cavalos. Sem flechas. E sem o menor auxílio a esperar fosse quem fosse, antes de atingirem a costa. Daffyd e o que restava do seu grupo armado tinham de avançar de noite e esconder-se durante o dia, quando todos os atalhos da montanha eram patrulhados por cavaleiros de Gurgi e do rei Rhun, montados em pequenos e robustos cavalos, capazes de galopar horas a fio pelas encostas mais íngremes. Há dois dias que a pista dos Bretões era semeada com os seus mortos, esmagados sob as derrocadas, crivados de setas, degolados durante a noite. E nem uma única vez, tinham tido a oportunidade de combater frente a frente o inimigo que os importunava, invisível e inatingível.

Os cavalos tinham sido os primeiros visados, principalmente as azémolas atreladas às carroças. Tinham sido forçados a abandonar os víveres, o azeite, as bagagens e todas as armas que não podiam carregar. Na noite do primeiro dia, os archeiros já não tinham flechas à força de atirar, em vão, ao calhas, em cada emboscada, e tinham deitado fora os arcos. No dia seguinte, ao acordar, tinham descoberto os cadáveres já hirtos de todas as suas sentinelas, sem que os assaltantes tivessem aproveitado o ensejo para acabar com eles. Como um gato a brincar com um rato debilitado, Gurgi dava tempo ao tempo e deixava-os correr à vontade, esperando o momento para o golpe final.

Ao anoitecer, enquanto estavam metidos num desfiladeiro ladeado de falésias escarpadas, uma avalanche de pedras e troncos de árvore esmagara uns vinte homens, matando ou dispersando o que restava dos seus cavalos abandonados e em pânico, soterrando a maior parte dos víveres.

Dois dias. Dois dias e duas noites sem dormir ou quase, a andar sem parar, légua após légua, a direito, na direção do mar, na esperança de chegarem a Dinorben e se juntarem às tropas de Elidir. Dois dias a alimentar-se de cevada pilada umedecida em água tirada das torrentes, sem acender um fogo, sem conseguir cuidar dos feridos nem enterrar os mortos.

Na tarde do segundo dia, tendo-se abrigado numa gruta, uma chuva torrencial abateu-se sobre as montanhas. A chuva caía a potes, limitando a algumas toesas o seu campo de visão, o que lhes pareceu ser uma sorte. Deixando ali tudo aquilo que pudesse ainda atrasar a progressão, meteram-se por debaixo das trombas de água. Em menos de uma hora, tinham chegado à orla da floresta. A sua frente estendia-se uma paisagem de colinas redondas e rasas, atravessada por um rio.

— Estamos em casa — murmurou Daffyd, cujos cabelos pretos reluziam como um capacete de aço, colados ao rosto pela chuva contínua. — O mar deve ficar a duas milhas daqui, no máximo...

Ele deixou-se cair sobre um grande cepo e desfez-se do boldrié que lhe segurava a espada às costas. À sua volta, os homens fizeram o mesmo, demasiado cansados daquela correria louca para se importarem com o chão enlameado sobre o qual se deixavam cair.

— Mas... O que estais a fazer? — protestou o irmão Morien. — Podemos chegar lá numa ou duas horas!

— É mais do que é preciso para sermos feitos em postas, abade, — resmungou um lanceiro a seu lado. — Se avançarmos para além, ficaremos tão visíveis como uma mosca na tua careca...

Daffyd meneou a cabeça a sorrir e, em seguida, fez sinal ao prior de Cambuslang que se chegasse para junto dele.

— Sabes, ele tem razão... Sem archeiros e com as poucas lanças que nos restam, nada conseguiríamos contra uma carga de cavalaria. Temos de esperar pela noite. Não vai tardar.

Morien tinha-se aproximado, mas não se sentou, voltando-se novamente para o mar que, entretanto, não se conseguia vislumbrar debaixo de tamanho dilúvio. A sua cabeça tonsurada, branca e lisa, martelada pela chuva, elevava-se sobre o hábito de burel e o casaco de pele de carneiro. Ter-se-ia realmente conseguido ver nela uma mosca, se tivesse tido a insensatez de voar com um tempo daqueles...

— E se eu continuar?

— O que dizes?

— Eu sou monge, não me farão mal. Com um pouco de sorte, chegarei a Dinorben antes da noite e poderei vir buscar-vos com uma escolta...

Dito isto, voltou bruscamente as costas a Daffyd, que todos olhavam em silêncio, esperando pela sua decisão. Morien tinha visto bem. Os cavaleiros de Gurgi chaciná-los-iam até ao último, sem sombra de hesitação, mas eram demasiado cristãos para matar um homem de Deus a sangue-frio. E além do mais... Morrer agora ou um pouco mais tarde...

— De acordo. Mas deixa as tuas armas e carrega-te com alforjes, como um irmão pregador que regressa da sua missão. E quando vires Elidir, diz-lhe para vir com muitos homens. Mesmo muitos. Que tragam tochas. Assim que os virmos avançaremos na sua direção.

Num instante, os soldados equiparam o prior como havia sido dito. O próprio Daffyd passou-lhe um pesado bornal à volta do pescoço, em seguida pô-lo a caminho.

— Vai aí dentro tudo o que me resta do ouro que Ryderc me tinha confiado para pagar aos homens — murmurou ele quando já estavam um pouco afastados dos outros. — Se não nos voltarmos a encontrar, oferece-o aos pobres... Ao menos servirá para alguma coisa.

Morien concordou com a cabeça, em silêncio, apertou-lhe a mão e depois partiu na sua frente, sob a chuva que caía. Ao fim de alguns passos, já não era mais do que um vulto indistinto que se apagava na grisalha.

O monge andou muito tempo sem parar, esperando ao cimo de cada nova colina ver o mar. Desde que tinha deixado a floresta, o vento tinha entrado na dança e esbofeteava-lhe o rosto com enxurradas fustigantes, de tal forma que ele teve de cobrir a calva com o capucho do hábito de burel e, vergando a nuca, já não avançava senão por cálculo, servindo-se do seu grande e nodoso cajado. Foi assim, meio cego e meio surdo, sob a batida da chuva, que não se deu conta, senão no último momento, dos cavaleiros que galopavam na sua direção. Instintivamente, removeu o capuz e levantou o cajado para se defender, mas lembrou-se do seu papel e adotou uma atitude menos hostil.

Eram só três, montando animais que mais pareciam pôneis do que corcéis de guerra, com longas lanças levantadas para o céu, carapuços e vestes de pele que até pareciam ursos com armas.

— Que Deus esteja convosco, meus irmãos! — gritou o prior à sua aproximação.

O primeiro deles benzeu-se e conduziu a montada até junto dele, até o tocar.

— O Céu parece estar zangado, padre... Donde vem?

— Não vejo em quê tal te diga respeito. Dá-me antes com que me cobrir, ou põe-me em cima de um cavalo, tenho de chegar a Dinorben.

O homem voltou-se para os amigos com um sorriso entendido, em seguida começou a esgaravatar as bolsas da sela, donde tirou uma peça de lã amarfanhada.

— É tudo o que posso fazer por si, padre — disse ao apresentar-lha. — Quanto a nós, temos de continuar. Quanto a Dinorben...

Mais uma vez, lançou o olhar para os outros dois.

— Pois bem, espero que não tenha de encontrar-se lá com alguém em particular... Neste momento, já não deve lá haver muita gente.

Morien arengou uma resposta que eles não escutaram, voltando rédeas na direção das colinas. Novamente só, o monge hesitou por momentos, cobriu-se com o pano e correu até ao cimo de um montículo. Não se via nada. Nada a não ser a cortina cinzenta da chuva que confundia tudo, o mar, o céu e a terra. Até já nem distinguia os três cavaleiros, engolidos como todas as coisas pela morrinha.

Mais tarde, ainda na sua contínua caminhada, uma mudança brusca do vento empurrou a chuva para o mar, limpando assim a paisagem. Já caía a noite, mas o campo alagado brilhava como um espelho. À beira da costa, a menos de uma légua, vislumbrava o outeiro e as fortificações de Dinorben. E enquanto continuava a andar, com os olhos fixos na cidade à procura do menor sinal de vida, um intenso toque de trombeta fê-lo sobressaltar. Ia agora num vale encimado por rochedos cobertos de urzes e junco. Acelerando o passo, seguiu a vereda para o alto. Era apenas uma pequena colina, mas estava ofegante quando chegou ao cimo, febril e a bater os dentes, já não se segurando em pé sem a ajuda do cajado. Chegou lá mesmo a tempo de ver descer um bom grupo de cavaleiros, talvez vinte homens ou mais, que acompanhou com o olhar até que a escuridão nascente os apagasse do seu campo de visão.

Exausto e a tiritar, Morien deixou-se cair por terra. O seu hábito de burel encharcado colava-se à pele e o bornal carregado de ouro magoava-lhe o ombro. Continuou assim por muito tempo, apercebendo-se de vez em quando do barulho de uma galopada ou do apelo de uma trombeta. Os cavaleiros que palmilhavam as colinas reuniam-se algures nas trevas e, quando viu surgir ao longe a claridade de um fogo, o monge ficou à espera que acampassem para passar a noite, em volta de uma boa fogueira. Aquela esperança voltou a pô-lo de pé e retomar a caminhada para Dinorben. Mas no momento em que se aprestava para descer na direção do vale, a claridade fracionou-se numa quantidade de centelhas que logo se estenderam por três longas colunas.

Morien de início não compreendeu mas logo em seguida verificou que aquelas centelhas eram tochas levadas pelos cavaleiros e que tomavam a direção da floresta. Gelado de pavor, ele viu-os avançar semelhantes a serpentes de fogo. No silêncio da noite, o rumor surdo do galopar chegava até ele. E, de repente, viu uma nova fonte de luz, na orla da floresta.

— Meu Deus, não!

Daffyd e os seus, julgando ver aproximarem-se os socorros esperados, tinham acendido uma fogueira... Morien lançou-se pela encosta com o risco de partir os ossos, gritando até não poder mais, correndo como um louco até cair esgotado, ofegante e banhado em lágrimas. Ouviu gritos e o clamor abafado de um combate, enquanto a mais próxima das três colunas alterava o seu alinhamento normal para formar apenas um confusa auréola de luz. As outras duas, no mesmo instante, ficaram em cima. Passados alguns momentos, a noite reencontrava o silêncio.

 

                                    A Mancha do Sabrina

Um sol pálido iluminava as altas colinas encarniçadas dos Malverns, enquanto sobre elas se dissipavam as brumas matinais. A noite tinha sido fria, visto que Owen, Cadwallaun e Sawel tinham proibido que se acendessem fogos de campo, para poupar tempo, mas sobretudo por medo de revelar a sua posição às guardas avançadas saxônias. Os homens tinham dormido apenas algumas horas, enroscados contra os cavalos, e tinham acordado logo de madrugada. E imediatamente tinham retomado o caminho na direção do vale do Sabrina, influenciados pela impaciência febril dos seus chefes. Owen, em particular, batia o pé de impaciência como um potro na Primavera, e ter-se-ia sem dúvida lançado a galope até Caer Loew se não tivesse sido retido pelas ordens estritas do pai e do rei Ryderc.

Os Saxões, em todo o caso, ainda não tinham chegado ao Sabrina. A turba atravessou o rio no seu ponto de confluência com o Avon, depois desceu até ao estuário. Caer Loew já não devia estar a mais de duas milhas. Amenos de meia légua dali, atravessaram a estrada romana que se prolongava para norte, atulhada com tanta populaça que a guarda-avançada teve de recorrer à pranchada para abrir passagem.

Alguns minutos mais tarde, chegou Owen, à frente do grosso da cavalaria, no momento em que a populaça começava a agitar-se. Atravancando o caminho a perder de vista, o interminável cortejo dos fugitivos amontoava-se sem cessar contra a fina cortina dos seus cavaleiros, parecida a enchente da maré sobre um molhe, empurrando à sua frente rebanhos inteiros de carneiros ou de gado, puxando toda a espécie de atrelagens, desde simples carrinhos de mão até às amplas liteiras da nobreza, e à sua passagem, só manifestavam hostilidade exasperada, feita de olhares odiosos e de insultos mal contidos.

Owen contraiu os dedos sobre as rédeas da montada, corando de vergonha e de cólera reprimida, enquanto avançava no caminho. Junto dele cavalgavam os guerreiros de Rheged agitando o estandarte das Planícies Cultivadas[33]. Homens que tinham combatido a seu lado em Lindisfarne contra os Anglos do rei Ida, para quem aqueles refugiados não passavam de estrangeiros, mais romanos do que bretões, e que não teriam hesitado em cortá-los aos bocados, até ao último, se ele tivesse dado ordem para tal.

— Eu conheço-te! — gritou de repente uma velha, à passagem do príncipe. — Tu és Owen Cabelo-Ruivo, azorrague das terras do Este, um dos três belos príncipes da Bretanha e filho de Urien Rheged! Onde estavas enquanto aqueles porcos Saxões incendiaram a cidade.

Os seus homens retesaram-se, mas Owen saltou do cavalo e, desviando os cavaleiros da vanguarda, avançou para a frente da mulher com um sorriso apaziguador. Ainda assim, enquanto ele se aproximava dela, tinha-se formado um ajuntamento em volta da avozinha, como que para protegê-la. Havia entre eles artesãos e burgueses de Caer Loew, sem barba e de cabelo curto à moda romana, mulheres, crianças e velhos, também alguns soldados, a maior parte feridos e marcados pelos combates, mas ostentando ainda as suas armas.

— Dá-me de beber, avozinha... Já está calor e eu morro de sede. A velhinha observou por um longo momento o rosto sorridente do jovem príncipe, em seguida levantou os olhos para os seus cabelos ruços armados em redemoinhos que lhe davam o ar de um ouriço enfurecido.

— Então vocês conhecem-me — murmurou ele.

— Isso...

Com um sinal de cabeça, ela ordenou a um dos rapazes que se mantinham junto dela — talvez filho ou neto — que satisfizesse o pedido do príncipe. O rapaz apresentou-lhe um odre pelo qual Owen bebeu à regalada, antes de limpar o queixo com as costas da mão.

— De que cidade estás a falar, avozinha? De Caer Loew?

Ela olhou-o com um ar de perfeita incompreensão, ou mais provavelmente de perfeita dissimulação. Aqui, e ainda mais no Sul, a cultura romana tinha-se muito largamente mantido, pelo menos nos nomes de pessoas e lugares. Õwen não ignorava o orgulho daqueles citadinos que deviam tomá-los, a ele e aos seus homens, por bárbaros, meros cristãos, não valendo mesmo nada mais do que os Saxões. Mas Owen tinha estudado com monges e sabia um pouco de latim. O suficiente para se lembrar do nome da sua cidade.

— Vens de Glevum? — insistiu ele.

— Antes queria morrer — escarneceu ela, com um movimento para cuspir no chão, que só à justa conteve. — Somos todos de Corinium[34]. Nós lutamos. Não somos daqueles covardes que fogem sem sequer verem o rabo de um Saxão!

À sua volta, os outros emitiram um concerto muito dissonante de murmúrios de aprovação.

— Então, Caer Loew ainda não caiu...

— A não ser que eles próprios lhe lancem o fogo! Vai ver com os teus próprios olhos, é por ali, a duas milhas...

Owen agradeceu com um sorriso, atirou o odre ao rapaz e voltou a montar rápido na sela.

— Não te afastes muito, avozinha, para que eu possa trazer-lo!

— Como assim?

O príncipe esporeou a montada, foi até junto dela e inclinou-se com um olhar cúmplice.

— O teu rabo de Saxão...

Em seguida lançou o cavalo a galope, saudado pelas grandes gargalhadas e os vivas dos fugitivos. Sawel Ruadh esperava-o mais à frente e colou-se a seu lado assim que o príncipe afrouxou a marcha. Com um movimento de queixo apontou para a multidão que, nesse momento, aclamava a cavalaria bretã.

— Diríamos que sabes fazer-te amar... é um trunfo.

— Sempre é melhor do que deixar-se insultar. Despachemo-nos. Os Saxões ainda não estão em Caer Loew.

Sawel concordou e esticou o freio ao corcel. Momentos depois, as trombetas de guerra davam o sinal de galope e a terra tremeu com o martelar tremendo de centenas de cavalos. Owen tinha partido à frente, seguido como sempre pela sua guarda pessoal, até ao cimo de um promontório. A cidade estava ali, a pouco menos de uma légua, intacta, rodeada pelas suas muralhas de pedra e protegida por uma vala suficientemente larga para repelir mais de uma investida. Mas esvaziava-se, como uma barrica fendida, com o fluxo continuo dos seus habitantes. A velha tinha dito a verdade. Antes mesmo de terem começado os combates, o sangue e a alma da cidade derramavam-se, abandonando-a, exangue e já morta, aos abutres que se vinham alimentar da sua carcaça. No entanto, ainda se podia ver o brilho do aço das couraças e das lanças sobre as muralhas. Uma centena de homens, talvez, provavelmente sem cavalaria...

O sol já ia alto, num céu sem nuvens, e com uma claridade tal que eles viam até léguas de distância. Owen tinha contado com colunas e fumo, com nuvens de poeira atraiçoando a marcha do exército saxônio, mas nada disso. Diante deles, deparava-se o horizonte suave das colinas calcárias, separando Caer Loew do reino de Conmail e do interior da região. Mesmo esforçando os olhos, não vislumbraram o menor movimento hostil na tranqüila paisagem. Nenhum vestígio de Saxões. Com ou sem habitantes, Caer Loew podia ser salva, se o exército de Ryderc se lhes juntasse a tempo.

O bramido surdo da cavalaria apanhou-os e ultrapassou-os, enchendo-lhes o coração de um irresistível sentimento de força. À sua direita, a força de Cadwallaun galopava numa massa confusa, coberta de lanças batidas por clarões encarnados que assobiavam ao vento da sua cavalgada. Atrás, o destacamento de Sawel seguia ordenado, em esquadrões de vinte cavalos, formados em quadrados, à maneira romana. E à esquerda alinhavam-se os cavaleiros de Rheged, à espera do chefe. Owen voltou-se sobre a sela para os homens da sua escolta, sorriu e avaliou-os por um momento. Eram dez, constituindo a sua guarda chegada, todos jovens como ele, tão bravos e loucos como cães de luta. Entre eles, cruzou com o olhar do seu bardo Dygineleoun que, como ele, tinha conhecido a honra dos Tríades. Um dos três bardos da ilha da Bretanha que, segundo consta, usavam um chuço vermelho... Com um gesto, fez-lhe sinal para se aproximar dele.

— Meu irmão, vais ter oportunidade de mostrar os teus talentos... Toma dois homens e tenta ver quem ainda manda em Caer Loew. Diz-lhes que nos encontramos aqui e que os socorros estão a chegar. De seguida, galopa até ao exército do rei, dia e noite se for preciso. Informa o meu pai que a cidade não caiu e que, procedendo com rapidez, conseguiremos deter os Saxões aqui, de uma vez por todas...

O bardo encostou o cavalo a Owen e estendeu-lhe a mão. Primeiro em voz baixa, e muito forte depois, para que todos o ouvissem, declamou uma ode de Taliesin escrita outrora para o príncipe:

Eu vi os guerreiros

lívidos, errantes.

Com as roupas manchadas de sangue,

Depressa refazerem as fileiras,

refazerem as fileiras sempre na batalha.

Não há desertores, quando o príncipe Rheged

comanda a luta!

Owen meneou a cabeça sorrindo, em seguida avançou à rédea solta, seguido pelo que restava do seu grupo, na direção de Rheged que aguardava as suas ordens.

Dygineleoun viu-os partir, rematando o seu canto a plenos pulmões para os que conseguissem ouvi-lo:

Eu vi a companhia dos guerreiros nobres à volta de Urien

Quando ele atacou o inimigo na Pedra branca

Ele fez em pedaços as armaduras

Que os guerreiros usavam na peleja

Possa o ardor do combate permanecer no coração de Urien!

Sem afrouxar o andamento, Owen contornou o grupo e, com um movimento de braço, lançou-o a galope atrás das outras duas colunas. Foi uma cavalgada de pouca duração. Ao arribarem as encostas escarpadas das altas colinas dos Cotswolds, tiveram mesmo que desmontar para aliviar as montadas. Sem que tivessem combinado, os três comandantes apertaram mais o seu dispositivo à medida que se aproximavam do cume. Os homens tinham formado batalhões de uma centena de cavaleiros cada, emoldurados à distância por defensores de flancos que usavam insígnias de cores vivas, a fim de assinalar ao longe qualquer presença inimiga. Não houve razão para tal, até atingirem a vertente Este. Nessa ocasião, cinco ou seis batedores agitaram ao mesmo tempo os seus gonfalões.

Owen voltou a subir para a sela e juntou-se a eles à rédea solta. Saltou da montada e correu as últimas toesas. Em seguida agachou-se ao lado deles, protegido por uma saliência rochosa tão clara como a areia, dominando o vale, em nível inferior.

A guerra morava ali, semelhante a um dragão dormindo sobre brasas. A menos de uma légua, Caer Geri consumia-se sob negras espirais de fumo que pareciam não conseguir elevar-se e rastejavam pelas ruelas calcinadas, enegrecendo as suas muralhas derrubadas, até à campina em redor. Mais próximo, adivinhavam-se as tendas dos Saxões e o bulício da sua infantaria espalhada por uma superfície enorme, à volta de centenas de fogueiras. Pequenos esquadrões de cavaleiros sulcavam a planície, mas nenhuma defesa tinha sido organizada, nem vala nem paliçada, como se Cuthwin e o seu ajudante de campo nem conseguissem imaginar que alguém ousasse atacá-los.

O jovem príncipe do Rheged olhou para o céu. O sol ainda ia alto. Ainda devia haver cinco ou seis horas de dia... Lutar valentemente antes do cair da noite. Surpreender aqueles porcos, matar o maior número possível, fugir em seguida antes que se organizassem e voltar à carga por outro lado, até que percam pé e procurem refúgio na cidade incendiada. Retê-los até à chegada de Ryderc.

Enquanto observava as posições inimigas, um barulho de cavalgada desviou a sua atenção para o vale do Sabrina. Reconheceu a trunfa ruça de Sawel, muito antes de conseguir distinguir-lhe as feições. E, enquanto o chefe de campanha desmontava e avançava curvado para se juntar a ele na linha do cume, recomeçou a estudar a disposição dos Saxões sob as colinas dos Cotswolds.

Sawel precipitou-se para junto dele, aceitou com um sinal de cabeça agradecido o odre de água fresca que lhe oferecia um batedor e, retomado o alento, voltou a endireitar-se atrás das rochas claras.

— Minha Nossa Senhora — murmurou — são muito mais do que eu julgava.

Os Saxões tinham reunido os seus cavalos numa cerca rodeada de cordas, no flanco da colina. Deviam lá estar uns mil, sem contar as patrulhas de cavalaria que sulcavam os acessos do acampamento. À primeira vista, este parecia incoerente e desordenado. Mas a própria dispersão dos Saxões, em volta das suas insígnias com cabeças de animais, impedia que se pudesse atacar de frente a não ser uma ou outra daquelas unidades de peões, dando assim tempo ao grosso das suas tropas para se reagruparem e fazerem frente. Sawel praguejou entre dentes e, voltando as costas ao inimigo, sentou-se contra o rochedo.

— Temos de voltar a Caer Loew — decidiu. — Eles não têm visivelmente intenção de atacar hoje.

Owen olhou-o de olhos arregalados, depois avançou vivamente até ele.

— Hei-los finalmente! Nenhuma defesa, nenhuma linha de batalha! Nem desconfiam que estamos aqui. Numa arremetida, podemos atravessar o campo e soltar-lhes os cavalos. Sem cavalaria, vão precisar de mais do que um dia para atingirem Caer Loew.

Sawel olhou-o com um ar severo, depois libertou um longo suspiro.

— Eu sei o que sentes, miúdo. Mas aquilo não são camponeses. Durante o tempo de chegarmos a eles, mesmo a triplo galope, eles terão formado as suas linhas. Então sim, poderemos matar alguns deles. Mas antes de chegarmos aos seus cavalos, teremos uma floresta de lanças contra nós, e todos os seus archeiros... Contaste-os?

Owen não respondeu, contendo dificilmente a raiva e a frustração.

— Vou dizer-te quantos são — prosseguiu Sawel. — Em volta de cada insígnia, contam-se à vontade cem homens. Constata tu próprio... Eu vi em volta de cinqüenta estandartes, a avaliar por baixo. E deve haver igual número em cada lado da cidade... Eu diria dez mil homens, talvez menos ou talvez mais. E nós somos apenas quinhentos. Tudo o que conseguiríamos, atacando, seria deixarmo-nos matar, o que não é grave, mas também perderíamos da mesma assentada o grosso da nossa cavalaria. Portanto vamos voltar a partir na direção de Caer Loew, acampamos nos bosques e prevenimos Ryderc, esperando que ataquem o mais tarde possível. Percebeste?

O jovem príncipe ficou em silêncio, com os olhos fixos nele, respirando fortemente e com o rosto empurpurado.

— Percebeste? — insistiu Sawel de forma mais agreste. Owen virou-se para ele, com ar afrontado. No momento exato em que ia falar, um clamor tremendo ressoou pelo vale. Eles tiveram apenas tempo de se voltar para verem o bando de Cadwallaun subir as colinas a galope, ultrapassar o cume e atacar, de lança em riste. Owen levantou-se de um salto, sem temer doravante desmascarar-se. Cadwallaun e seus cavaleiros desciam a encosta direitos na direção de Caer Geri, gritando como diabos. À sua frente, os Saxões dispersavam-se na maior desordem, como um bando de pardais. O ataque subverteu um dos seus acampamentos, arrebatando uma insígnia e deixando atrás dela um rasto de cadáveres, depois obliquou na direção do cercado dos cavalos. Eles não estavam a mais de um tiro de flecha e só uma frágil cortina de tropas apressadamente alinhadas, lhes causava estorvo. Bastou, no entanto, para quebrar-lhes o arrebatamento. Com os olhos encarquilhados de horror, via fechar-se em toda a volta deles uma maré de homens armados, na poeira de cinzas levantada pelo seu empolgamento.

— Temos de ir ajudá-los! — gritou, voltando-se para Sawel, agachado a alguns côvados dele.

— Bem sabes que não. De qualquer maneira já estão mortos... Em baixo, um grupo de sobreviventes conseguiu abrir caminho para fora da peleja. Nenhum deles tinha ficado com a lança. Contornando a coluna cerrada dos Saxões, galoparam ainda para o cercado, mas uma linha de archeiros tinha-se colocado em posição e cumulou-os de setas. Com a garganta apertada e os olhos banhados em lágrimas, Owen viu-os batendo em retirada acossados por uma horda de cavaleiros saxônios e ultrapassarem as colinas à frente deles.

Ao cair do dia, Edwin o Saxão apanhou-os quando tentavam atravessar o Sabrina a montante da aldeia de Digoll e a água do rio ficou manchada com o seu sangue.

Embalado pelo passo indolente da mula sobre a qual se tinha empoleirado, Merlim, sem dar por isso, tinha-se abismado no sono. Pouco depois do raiar da aurora, uma brusca distensão muscular do animal acordou-o sobressaltado. Por segundos, oscilou entre os limbos dos seus pesadelos e as brumas da turfeira, sem conseguir voltar a si. Tinha-se agarrado instintivamente à crina da besta, segurando-a com tanta força que o animal começou a zurrar, acabando assim por acordá-lo.

Com o coração a palpitar, o rapaz saltou para o chão e agachou-se, com as pernas ainda a tremer, o tempo de recuperar o fôlego e a calma. Envolvia-o um intenso nevoeiro, ressumando do pântano em fumarolas, enquanto um sol pálido e frio irisava clarões rosa e malva. A seu lado, elevavam-se algumas moitas de tojo cobertas de teias de aranha cintilantes de orvalho. Num instante, por entre as cortinas de neblina que se desfaziam, ele apercebeu-se da silhueta altaneira e sombria de um grande carvalho, sobressaindo como uma forca pela manhãzinha. Só por um instante, antes que o nevoeiro espesso se tornasse a formar e o absorvesse como tudo o resto. Enquanto permanecia ali, confuso e idiota, um relincho de cavalo arrancou-o ao seu entorpecimento, seguido, quase no mesmo instante, pelo chamamento de uma voz familiar.

— Então, que tal vai isso? Caíste?

Merlim molhou as mãos numa poça de água gelada, mesmo junto dele, aspergiu o rosto e levantou-se, enquanto Bradwen dirigia a montada na sua direção.

— Tinha adormecido — confessou, fazendo um esforço para sorrir-lhe. — Sabes onde nos encontramos?

— Não faço a menor idéia! — respondeu Bradwen às gargalhadas, como que seduzido por aquela miragem. — Andamos para levante durante toda a noite, ao menos assim o espero...

Merlim olhou-o com ar surpreendido, enquanto ele desmontava e retirava das bolsas da sela algumas provisões para comerem.

— As mulas é que nos guiaram — acrescentou ele ao ver a sua expressão. — Na minha terra também há pântanos. Os animais têm uma pegada mais segura que a nossa neste tipo de terrenos... E, além disso, eu acho que me deixei adormecer como tu.

Ambos riram com prazer e instalaram-se sobre um penedo plano para partilharem uma bolacha de pão enquanto o sol ia, aos poucos, dissipando os miasmas da noite. Pouco depois, descobriram na sua frente uma paisagem de altas colinas cobertas de árvores, onde ainda se agarravam alguns bancos de nevoeiro. Bradwen comia em silêncio, com o olhar perdido no vazio. Talvez estivesse a pensar em Erle, no olhar que haviam trocado antes de o matar. Talvez não... Quanto a Merlim, mal tinha encetado o seu naco de pão, com a garganta presa por emoções contraditórias no momento em que se revelava sob seus olhos a orla da grande floresta. Era ali, sob aquele mar de frondescências, que se aninhava o segredo da sua origem, entre aqueles duendes e korrigans que tanto assustavam os habitantes de Battha. Ali, naquele país sem fronteiras, sem estrada, sem aldeias, aquele deserto vegetal que ninguém ousava penetrar, agora tão próximo. O fim da sua longa peregrinação... E no entanto, sem a intervenção de Bradwen, ter-se-ia deixado conduzir para Carohaise, com o risco de aí ser julgado por feitiçaria, preso, talvez até pior, a tal ponto é mais fácil sujeitar-se do que ousar, afrontar um destino previsível, mesmo nefasto, do que enfrentar o desconhecido... Impondo-se insidiosamente a ele, como uma revelação da sua própria apatia, aquele pensamento conduziu-o a Blaise, só às mãos de Cetomerinus e dos guardas de Withur. Blaise que o havia seguido até ali, aos confins do mundo, e a quem teve de abandonar, sem sequer poder despedir-se... Merlim sentia-se com certeza agradecido a Bradwen, mas detestava-o em igual medida por aquilo que tinha feito. Bruscamente, o rapaz levantou-se, atirou para longe o seu bocado de pão e procurou as sacolas, como para retomar o caminho. Mas já não tinha alforjes, nem armas, nem sequer o arco. Tinham-no despojado de tudo. Tanto melhor. Impõe-se estar nu para renascer.

— Ainda não te agradeci — disse Merlim quando se apercebeu que Bradwen o observava, sem no entanto conseguir olhá-lo de frente.

O guerreiro suspirou divertido, levantou-se e foi dar-lhe uma palmada no ombro.

— Não tenhas medo, não me deves nada... Desconheço o que procuras aqui, mas sei que não tenho nada a fazer na tua vida.

A seguir voltou-se, meteu a faca e o pão que restava numa das sacolas penduradas na albarda da mula. Com um movimento de cabeça, atirou para trás os seus cabelos negros, antes de alisar a barba, num gesto habitual.

— Acho mesmo que eu é que sou teu devedor — murmurou. — Libertaste-me de uma bagagem muito pesada de transportar.

Merlim, desta vez, ousou olhá-lo de frente e sorrir, ao mesmo tempo aliviado com aquilo que o guerreiro acabava de dizer e desejoso de apagar a frieza que os seus agradecimentos acanhados tinham deixado transparecer.

— Então estamos quites, Bradwen.

— Sim, estamos quites...

Com um olhar enfastiado, o Bretão percorreu com os olhos os pântanos que os rodeavam.

— Ainda não é aqui que podemos descansar. Proponho que continuemos juntos até encontrarmos um caminho ou atalho, algures neste bosque.

Merlim concordou e puseram-se a caminho, o rapaz montado numa das mulas e o guerreiro no seu robusto corcel, levando atrás de si pela coréia, o mais carregado dos seus animais. Rapidamente a turfeira brumosa cedeu o lugar a um sertão de tojo e urzes e depois a um matagal seco, trepando numa rampa suave na direção das rochas negras que barravam, como uma muralha, o acesso ao Huel Goat, a grande floresta. Cavalgavam a par, saboreando a cada inspiração o ar puro daqueles contrafortes, depois do mofo sufocante dos pântanos. Tiveram de fazer grandes voltas até atingirem a floresta, por entre escarpamentos rochosos, cursos de água e moitas de tojo ouriçado de espinhos. Como um presságio feliz, um raio de sol rompeu as nuvens no momento em que se introduziam sob a cúpula das árvores. Pararam à beira de um riacho para deixar beber os animais e instalaram-se confortavelmente ao abrigo de fetos que uma quente luz, peneirada pelas folhagens, fazia cintilar. Toda a fadiga da noite em breve se abateu sobre Merlim, que se deixava suavemente passar pelo sono quando a voz grave de Brad-wen o arrancou do seu entorpecimento.

— Como é bela esta floresta... É daqui que és oriundo? O rapaz reprimiu um bocejo e esforçou-se por sorrir.

— E tu, para onde vais? — perguntou. — Falaste de uma aldeia, não foi?

— Sim, Nuiliac, em Leão... Talvez vá, no fim de tudo. Falaram-me também de um chefe militar, Waroc, que luta contra os Francos, no Sul. Logo se vê...

Merlim opinou distraidamente. Sob o sol, a floresta parecia retomar vida. Toda a sua sensualidade se alimentava do concerto de cores e sons que emanava da vegetação. Mil maravilhas difusas, inapreensíveis, mutáveis ao menor sopro de vento na ramagem dos carvalhos. O canto das aves, o sussurro dos fetos, o marulho do riacho, formavam uma música calma e, no entanto, qualquer coisa despertava nele uma apreensão, como se aquele murmúrio contivesse uma mensagem. Por um momento, ele prestou a maior atenção tentando, em vão, referenciar algo que pudesse alertá-lo, mas deixou-se disso ao cruzar-se com o olhar inquieto de Bradwen.

— O que há?

— Não é nada — respondeu ele. — Pareceu-me... Não é nada. Acho que perdi o hábito da floresta.

— Eu sei o que queres dizer. Ouvem-se coisas, vêem-se coisas... Acredita, quando estava sozinho nos pântanos, era pior.

— Imagino que sim... A propósito, foi uma boa idéia aquela música de flauta. Aquilo dissuadiu-os.

Bradwen fez uma expressão de perfeita incompreensão.

— Que música de...

Crispou subitamente o rosto, mesmo a meio da frase, em seguida caiu, como um cepo, sem uma palavra, sem um queixume, com o nariz na erva. Merlim olhou-o sem compreender, enquanto o seu sorriso se congelava. Devagarinho, aproximou-se dele e reteve um grito de pavor. Minúsculas flechas, cinco ou seis, estavam fixas nos seus braços, costas, nuca, finas como agulhas, compridas e pretas, com uma emplumagem de penas brancas que não se pareciam nada com as que usavam os archeiros da Bretanha. Uma delas, ao tingi-lo no pescoço, tinha-se partido com o impacto e parecia não ter penetrado mais no que meia polegada na carne. Outras tinham-se desprendido quando ele caiu no chão, deixando ínfimas incisões, donde escorria um suco negro e viscoso.

O relincho repentino do cavalo fê-lo dar meia volta à direita e viu três ou quatro seres esguios, cobertos com capas de capucho, de cor indefinível e mutável, agrupados em volta das montadas. Quando recuava, à procura de uma arma, apareceram a seu lado outros dois, pálidos, com olhos enormes, cabelos compridos e pretos e com aquele mesmo manto cor de vegetação. Surpreendido, lançou-se para trás, mas o que estava mais próximo, estendeu a mão e tocou-lhe no pescoço. No mesmo instante, submergiu-o um véu negro.

 

                                       Glevum

O dia apagava-se, lentamente, sob uma morrinha que fazia luzir o lajedo regular das ruelas. No silêncio fantasmático da cidade deserta, os passos de Owen ressoavam lúgubres enquanto subia, sozinho, na direção da basílica. Os telhados encarnados, excedendo tudo o que até então lhe tinha sido dado ver, haviam-lhe atraído a atenção assim que tinha transposto as portas de Glevum e à medida que os seus homens tomavam posição sobre as muralhas ao lado da magra guarnição bretã estabelecida no local. Ele tinha-se retirado, deixando Sawel organizar a defesa. De longe a longe, uma casa ainda habitada difundia um pouco de luz pelos interstícios dos postigos fechados, iluminando mesquinhamente vielas despovoadas, cujo traçado retilíneo, à romana, se tinha apagado, com o tempo, sob inumeráveis construções recentes, barracas e oficinas, casebres com telhado de colmo e até cercas para animais, invadindo a rua ao ponto de, por vezes, impedir a passagem.

Não tinha encontrado ninguém, desde a altura em que tinha deixado as muralhas. Apenas um cão se tinha chegado a ele, lamuriando-se, e seguia-o, dócil, erguendo para ele um olhar meigo sempre que o príncipe voltava os olhos na sua direção. Mais de uma vez, vultos furtivos com os braços carregados, tinham fugido à sua aproximação. Larápios, deixando atrás de si portas arrombadas e os destroços da sua avidez, louça, marmitas ou armas abandonadas na sua precipitação, juncando o chão das habitações esventradas. Mais de uma vez, foi ele que se desviou para evitar uma quadrilha mais insolente, pronta para a discussão. Pouco lhe importava que pilhassem Caer Loew. Dentro de horas ou dias, os Saxões estariam diante das suas muralhas e, se até então o exército de Ryderc não tivesse chegado, então seriam eles que meteriam a cidade a saque antes de a incendiar... Não valia a pena combater, menos ainda morrer.

Quando a noite se abateu sobre a cidade e precisou de arranjar uma tocha para alumiar-lhe o caminho, Owen desembocou numa artéria mais larga, separada a meio por um rego que levava as águas usadas ao longo da cidade baixa e ladeada por altas residências dispostas em categorias, por vezes ornadas com séries de colunas, mosaicos ou baixos-relevos. Mais alguns passos e chegou ao fórum, uma extensa praça lajeada, rodeada por barracas e construções recentes, dominadas pelas massas imponentes da basílica e das termas. As de Caer Vaddon, a antiga Aquae Sulis dos Romanos, eram célebres pelas suas nascentes de água quente e pelo seu luxo, mas Owen não podia imaginar que algum lugar do mundo conseguisse exceder a munificência daquele edifício. Era assim que ele tinha imaginado os templos antigos, com as suas colunas erguidas em mármore claro, os seus jardins, as suas alcovas forradas com longos estofos acetinados. As fornalhas estavam apagadas, mas as piscinas mantinham-se sempre cheias de água transparente, revelando no fundo mosaicos que representavam peixes, sereias ou figuras femininas muito mais impudicas. E em tudo aquilo nem um ser vivo, uma luz, um som. Apenas os vestígios vergonhosos de uma fuga precipitada, no chão, em todo o lado. Até a própria basílica estava deserta. Os monges tinham levado cruzes, imagens e douraduras, deixando apenas os bancos de madeira alinhados e um altar de mármore, na imensa nave. Não havia com certeza nada comparável em Rheged, nem em nenhuma das cidades do Norte que Owen tivesse podido conhecer, mas a chuva, o abandono e o silêncio de chumbo tiravam toda a beleza àquelas maravilhas. As massas eram imponentes, mas frias como uma mortalha. A de uma cidade já morta, de uma época acabada, um túmulo privado de alma que só as chamas poderiam acordar.

Repentinamente, tomado de raiva e desgosto, o príncipe apertou o passo, sempre seguido pelo cão, continuou a passo largo na direção das fortificações. Ali, ao menos, entre o cheiro das tabernas e das estrebarias, ainda havia vida.

Fora, a noite era completa. Rabanadas de vento a rodopiar pelas ruelas fustigavam-no com chuva, a tal ponto que a capa ficou logo encharcada e a tocha afogada. Ao passar à frente de uma casa que tinha ficado aberta e onde brilhavam lamparinas de azeite, Owen viu uma arca esventrada, cheia de roupas e peles. Entrou, desabotoou o colchete de ouro com que segurava o manto, tornado pesado pela chuva, e inclinou-se sobre os panos espalhados. Quando acabava de escolher uma pele de urso perfeitamente curtida e com tamanho suficiente para cobri-lo por completo, o cão começou a rabujar arreganhando o focinho.

— O que se passa? — perguntou Owen com um sorriso. — É a tua casa?

Mas o animal não olhava para ele. Postado em frente a uma escada de madeira, com o pêlo eriçado ao longo de toda a linha dorsal, começou a latir. Vozes mal-humoradas responderam-lhe, no andar de cima. Seguiu-se um grito de mulher, prontamente abafado.

O príncipe conteve a respiração. Lentamente, acabou de prender ao pescoço a pele de urso, tornou a deitar para trás as abas e desembainhou a espada/com um grande rangido de aço. Ouviam-se movimentos lá em cima, surdos e abafados, que os latidos do cão tornavam impossíveis de localizar com exatidão.

— Calma! — lançou-lhe Owen.

E depois, voltando-se para o piso superior:

— Está aí alguém?

Não chegou qualquer resposta, mas apercebeu-se de uma agitação, palavras abafadas, um sapateado confuso. Quando já tinha subido alguns degraus, abriu-se bruscamente uma porta, deixando ver um homem seminu, segurando na mão um punhal mais parecido com a faca de um marchante do que com uma adaga.

— O que é que queres?

Antes que Owen tivesse conseguido replicar, a mulher voltou a gritar, apelando desta vez nitidamente por ajuda.

— Quero que partas — disse ele enquanto subia os últimos degraus. — Tu e os outros. Fora!

Quando chegou ao patamar, o homem recuou hesitante perante a robustez do príncipe, a sua longa espada e o seu lorigão, a seguir indicou o quarto com um movimento de queixo.

— Não te enerves — grunhiu. — Chega para todos...

Owen já se encontrava apenas a alguns côvados dele. Um cadáver jazia no chão, ao cimo dos degraus, enrolado nas suas vestes, sem que se conseguisse perceber se se tratava de homem ou mulher.

— Pega nas tuas coisas e vai-te embora.

Como o outro continuasse sempre a recuar, ele chegou ao vão da porta e deu uma olhadela pelo quarto. Teve apenas tempo de ver a figura clara e nua de uma mulher sobre uma cama, antes de se lançar para trás, instintivamente, no momento exato em que uma moca metálica caía sobre o seu braço. O golpe acertou na capa de pele, mas magoou-lhe severamente o ombro e projetou-o contra a balaustrada, cortando-lhe a respiração. O outro já se encontrava sobre ele, com a sua faca de marchante. Manejava-a mal, como uma lança e não como uma espada, e bateu de cima para baixo com toda a força, de tal forma que, com um simples esquivar de busto, Owen saiu da sua trajetória. Levado pelo impulso, o homem foi por sua vez contra a balaustrada, em completo desequilíbrio. Quando se voltou, a espada do príncipe fendeu-lhe o rosto, o pescoço e o torso, cortando a artéria e respingando-os a ambos com o seu sangue. Ele caiu com um rosnar ignóbil, mas ainda não morto, enquanto Owen se lançava para o interior. Só havia mais um no quarto, um gandim com uns quinze anos, de rosto comprido e macilento, vestido apenas com uma camisa que lhe chegava aos joelhos. Recuou, segurando a moca com as duas mãos diante dele, com um ar perfeitamente aterrorizado, com todos os membros a tremer. Absolutamente mais digno de morrer do que de viver... Owen baixou a espada e olhou de frente para a cama. A mulher não se tinha coberto. Tão pálida como a sua colchoaria, ela olhava-o, com os olhos encarquilhados de espanto e as pernas oscilantes de um e de outro lado da cama, revelando o triângulo negro do seu sexo. Owen desviou o olhar, corado contra a sua vontade. No chão descobriu um segundo cadáver, o de uma mulher de idade, com o crânio quebrado e alagado numa poça de sangue já negro. O gandim havia feito uso da sua moca ferrada.

— Piedade, senhor... Não me mate...

O jovem príncipe observou-o, com as fontes a bater e o coração transtornado. A sua mão estava úmida sobre a proteção da espada. A pele de urso tinha resvalado e pesava-lhe no pescoço. Desabotoou-a com um trejeito e depois limpou o rosto. Sangue, misturado com o seu próprio suor.

— Senhor, piedade...

O barulho da moca a abater-se sobre o chão, em seguida o do pranto do adolescente, compassivo e sacudido de espasmos, prestes a morrer de medo sem que ele tivesse de levantar a mão.

— Desaparece — murmurou Owen.

O outro nem se mexeu, demasiado apavorado para deixar o seu recanto e passar diante dele. O príncipe abanou a cabeça com um ar enfadado, tornou a embainhar a espada e, voltando-me as costas, dirigiu-se para a infeliz, cobrindo-a com o manto. Mais uma vez, os seus olhares voltaram a cruzar-se, furtivamente, antes de ela baixar a cabeça. Já não era muito jovem, mas o seu rosto era lindo, não obstante as lágrimas e as equimoses. Cobrindo com o manto o seu considerável peito, ela endireitou-se contra a cabeceira da cama com uma careta de sofrimento e, tendo assim reencontrado um pouco de dignidade, ousou olhá-lo de frente, com o esboço de um sorriso, ao qual Owen ia responder quando a viu sobressaltar. Deu meia volta, com a mão no punho da espada, mesmo a tempo de ver fugir o adolescente, que desceu os degraus quatro a quatro, raspando-se debaixo de chuva, na noite escura.

— Vós... Vós deixaste-lo partir — murmurou ela.

Não era uma pergunta. No máximo uma constatação. O príncipe sentou-se no outro extremo da cama, com um sorriso cansado.

— Ele vai morrer na mesma, durante a noite ou amanhã.

E nós também — conteve-se ele de acrescentar. De que serve matar o que já está morto? Segurando com uma das mãos a capa de pele, ela afastou com a outra os cabelos colados pelo suor à testa e às faces. Longos cabelos louros, entrançados numa considerável trança que a luta havia parcialmente desfeito. Os retalhos destroçados das suas vestes jaziam em redor, pelo chão. Ele inclinou-se para apanhar uma camisa de linho azul, mais ou menos intacta, e apresentou-lha. No movimento que ela executou para vesti-la, a pele deslizou, descobrindo a harmonia dos seus seios, e Owen sentiu-se novamente a corar.

— Aquela mulher — disse ele, virando o olhar para o cadáver com o crânio despedaçado. — Era a sua mãe?

— A minha mãe morreu, mas há já muito tempo...

Ela conseguiu apenas lançar um olhar para o corpo e prostrou-se imediatamente.

— Chama-se Meleri. Ela era... minha criada. Ela e Eudaf tentaram impedi-los, mas aqueles... aqueles porcos mat...

— Já acabou.

Ele levantou-se acanhadamente hesitante e avançou até ao cadáver ensangüentado que tomou cautelosamente nos braços.

— Vou levá-la para a rua, um pouco mais afastado. A seguir virei buscar os outros. Assim não ficará inquietada...

Owen estava banhado em suor quando acabou a sua macabra manutenção, com as costas partidas e as pernas vacilantes, encharcado até aos ossos pela chuva que inundava a cidade. Ela estava em baixo à sua espera, coberta apenas com uma simples veste azul, descalça sobre o lajedo do Vestíbulo, com o corpo inteiramente sacudido por tremores incoercíveis. O príncipe fechou a porta atrás de si e encostou-se, o tempo de retomar o fôlego. Se um grupo de larápios viesse a passar na rua e a visse assim, seria de temer o pior.

Instalou-se entre eles um longo silêncio, no cintilar ambarino das lamparinas de azeite e o martelar da chuva contra os postigos de madeira. Owen não ousava levantar os olhos para ela e, contudo, não conseguia optar pela partida. Deveria com certeza ter falado, mas não sabia o que dizer. Aquele prolongado silêncio era aliás suficientemente eloqüente. Assim que ele fez menção de se ir embora, ela correu para ele e foi abrigar-se nos seus braços.

— Não me abandones — murmurou ela.

Por cima dele, a abóbada de folhas reproduzia reflexos que variavam de cor, desde o verde mais escuro até ao amarelo cintilante, no mistério do vento. Por vezes, uma abertura deslumbrava-o com um reflexo do sol. Por vezes as frondescências tornavam-se tão densas, tão cerradas que apenas escoava uma obscura fosforescência, quase trevas. O coração acelerava-se então e o medo de escurecer acabava por mantê-lo permanentemente excitado. A seguir, um brilho de luz inflamava o seu campo de visão, nimbava-o de calor e acalmava-lhe a angústia. Por momentos ficava lúcido, o suficiente para tomar consciência do lento balouçar da padiola sobre a qual se encontrava deitado, sentir sob os seus dedos o entrança-mento apertado dos fetos que o seguravam, para ouvir os trinados dos pássaros ou o canto enfadonho de algum dos liteiros. Ele queria virar a cabeça, mas o corpo já não lhe obedecia. Qualquer esforço tornava-se vão, portanto bastava deixar-se arrastar. Abandonar-se à beatitude. Dormir, finalmente em paz...

A chuva tinha parado. Havia batido nos postigos durante toda a noite, e aquele silêncio desabitual acordou Owen sobressaltado. Precisou de algum tempo para voltar a si, durante o qual inspecionou o quarto sem perceber o que fazia ali, nu ao lado de uma mulher de quem nem sabia o nome, naquela cama demasiado fofa, com lençóis de linho que mal os cobriam. A seguir recordou-se e sentiu-se submergido pela vergonha, como um bêbado quando volta a si pela manhãzinha. Que ela se lhe tivesse oferecido não mudava nada ao fato de ele ter abusado dela, do seu medo, da sua solidão, do seu desejo de ser protegida e ter obtido, naquela casa desconhecida, o que outros tinham ali vindo procurar pela força. Contendo a respiração, deslizou devagarinho para fora da cama e pegou nas suas roupas dispersas, nas suas armas e na sua cota de malha, tentando não fazer ranger o soalho. Mas ela acordou, quando ele entreabria a porta.

— Vais-te embora?

— Tenho de ir para junto dos meus homens.

— Vais voltar?

— Não.

Ela era linda, afável e cordial, com uma pele finíssima debaixo dos seus longos cabelos despenteados, ondulando até ao começo dos seios. Como tinha ele conseguido passar sem sequer lhe perguntar o nome?

— Tu também tens de partir — disse ele enquanto enfiava a camisa e os calções. É impossível defender esta cidade. Cedo ou tarde, vai cair.

— Não posso.

Owen ia responder, mas um rumor surdo, que provinha da cidade baixa como uma ameaça indistinta, fê-lo voltar repentinamente a cabeça para os postigos fechados. Um raio de luz escoava-se por uma brecha entre dois batentes, iluminando uma pacífica dança de partículas de pó em suspensão. O dia já ia alto. Deviam andar à sua procura desde a véspera... Com as botas e o resto da roupa na mão, acabou de abrir a porta do quarto e parou na soleira. Ela não se movera e parecia não ter qualquer intenção de o fazer.

— O que é que te retém aqui?

— O meu marido — respondeu ela sem olhar. — É comandante de uma decúria, na guarda da porta do Oeste.

O príncipe teve a impressão de se lhe esvaziar o sangue do rosto. Incapaz de proferir nem mais uma palavra, atormentado, destroçado pela desonra e pela repugnância por si próprio, retirou-se, vestiu-se à pressa no corredor, desceu de seguida a escada e saiu. Assim que chegou à rua, o rumor que havia ouvido no quarto, transformou-se um tumulto que ele conhecia por demais. Clamores, gritos, choques surdos contra a muralha... Já se lutava. Os Saxões tinham atacado.

Acabando a toda a pressa de atar a cota de malha e afivelar o cinturão, precipitou-se para as fortificações. Outros, felizmente, apressavam-se na mesma direção, soldados, archeiros ou camponeses armados de uma forma ou de outra, limitando-se ele a segui-los. O talude, ao pé das muralhas, zumbia com uma multidão desordenada, abandonando a luta ou arremessando-se nela, afadigando-se com baldes de água ou cobertas à volta de vários começos de incêndio, e tudo aquilo numa vozeria ensurdecedora. Os cavalos dele estavam ali, várias centenas, numa simples cerca de cordas, e um punhado de homens arreava-os à pressa. Cruzou-se com um dos seus cavaleiros, lívido, cambaleando a cada passo, com a mão contraída sobre a emplumagem de uma flecha profundamente cravada na clavícula.

— Onde está Sawel? — gritou ao agarrá-lo. — Onde estão os outros?

O homem fixou-o com um ar alucinado, como se não o reconhecesse, mas estendeu a mão válida na direção da barbacã que protegia a porta principal. Owen ajudou-o com impaciência a chegar até ao parapeito de um poço onde o sentou e, desembainhando a espada, arremeteu para uma escada de pedra que conduzia às frontarias. No momento em que assentava pé sobre o caminho da ronda, desabou na sua frente um archeiro, traspassado por uma lança. Nesse mesmo relance de olhos, viu uma escada colocada numa seteira, a mão robusta de um Saxão avidamente agarrada à última travessa, o bulício do corpo-a-corpo a toda a sua volta e, do outro lado das fortificações, a massa uivante dos assaltantes, sob um mar de escudos redondos pintados com cores vivas. Empunhando a espada com as duas mãos, correu até à passagem e vibrou a lâmina com um hã! de lenhador, cortando ao mesmo tempo o braço e a travessa. O Saxão deu um grito medonho, vacilou e depois desapareceu no vazio. No seu ímpeto, Owen inclinou-se na ameia. Uma linha de archeiros, por detrás da confusão, disparava uma revoada. Ele atirou-se para trás apenas um instante antes de um enxame de flechas vir partir-se contra a muralha. Protegido pelo merlão, retomou o fôlego, no momento em que um novo assaltante se içava sobre as muralhas. Trazia à frente o escudo, uma tosca adarga de madeira pintada, sem sequer ser coberta de couro. Owen esperou que ele se descobrisse e bateu de estoque, com as duas mãos, com uma invectiva que lhe levou uma parte do rosto e o atirou para a vala. Descobrindo uma forquilha no chão, tornou a meter a espada na bainha e fixou-a a um dos paus da escada. Ninguém seria capaz de empurrar sozinho uma tão grande escada sobrecarregada com o peso de alguma meia-dúzia de homens armados. Owen aplicou-se assim a empurrar lateralmente, de forma a que deslizasse para o lado. Obstinou-se um bom bocado, com o rosto congestionado pelo esforço, sem resultado até que outros, a seu lado, se agarrassem à forquilha. A escada oscilou algumas polegadas apenas, depois cedeu de um só golpe, percutindo na sua queda outra escada vizinha, e precipitando por terra, entre a massa efervescente dos Saxões, os corpos dos guerreiros aos berros.

— Às forquilhas! — clamou ele.

Ordem inútil. Ao longo de todo o muro, as escadas tinham sido derrubadas, partidas à pedrada ou à machadada, e alguns Saxões que tinham conseguido ultrapassar as defesas e assentar pé na frontaria lutavam desesperadamente pela vida, cercados por dezenas de soldados.

— Senhor, proteja-se! — disse uma voz, perto dele.

Era um dos cavaleiros de Rheged, um robusto vermelhaço com cabelos entrançados, com o braçal de couro respingado de sangue desde o braço até ao pescoço, e que lhe apresentava um capacete de ferro.

— Ninguém saberá quem sou, se cobrir o cabelo — disse Owen a sorrir. — Arranja-me antes um escudo em bom estado...

Com um movimento simultâneo, lançaram-se a coberto, no momento em que zunia sobre eles uma salva de flechas inflamadas.

— Repelimo-los, não foi?

Owen não respondeu. Prudentemente, inclinou-se por cima da ameia, arriscou uma olhadela e agachou-se logo atrás do muro.

— É só uma diversão — exclamou. — Estão em vias de se retirar para Sul... Junta homens a nós e segue-me. Vamos a eles.

Sem esperar por ele, o príncipe lançou-se pelo caminho da ronda. A sua passagem, os cavaleiros de Rheged reconheciam-lhe os cabelos ruivos aos remoinhos, agitavam as armas ou exibiam as feridas.

Muitos lhe seguiram as pisadas, formando logo atrás dele um grupo considerável.

A defesa romana de Glevum era constituída por torres quadradas que sobressaíam das muralhas e cortadas por seteiras. Por uma delas, Owen seguiu a progressão das hordas inimigas. Era na porta sul que realmente se dava o seu ataque. Ceawlin devia ter espiões suficientes no terreno, para nada ignorar sobre a sua fraqueza e tentar um assalto violento, sem nenhuma das máquinas de guerra exigidas para um cerco segundo as normas convencionais. Não havia torre de assalto nem catapulta. Apenas alguns troncos de árvore, desbastados à pressa, desempenhando as funções de aríetes, nem sequer protegidos por manteletes. Uma charrete com feno e resina tinha sido empurrada contra as portas e ardia difundindo um fumo negro, espesso, ofuscante. E os madeiros, cujos choques surdos se ouviam ressoar até à parte alta da cidade, martelavam-lhe os batentes em chamas, cobertos por um teto de escudos. Dezenas de corpos jaziam por terra, traspassados por flechas ou desfeitos pelas pedras lançadas do alto das muralhas.

— Não se pode fazer nada por este lado, avançou Owen de frente para os seus homens. Além do mais, não é a nossa forma de combater...

— Então montamos, senhor? — perguntou um deles.

— Montamos os cavalos e espezinhamos aqueles porcos até ao último! Vamos!

Enquanto os cavaleiros davam meia volta e se dirigiam para a cerca, o príncipe deteve aquele que acabava de falar.

— Vai à procura de Sawel Ruadh, aquele que comanda a cavalaria de Ryderc. Diz-lhe para reunir os seus homens e juntar-se a nós no ataque.

— Senhor eu sei quem é Sawel. Ele morreu...

Pela segunda vez no dia, o príncipe sentiu-se submergido pela vergonha. Sawel tinha morrido enquanto ele, Owen, dormia junto da mulher de um companheiro de armas, talvez, também já morto ou algo que o valha.

— Vamos.

Quando ficou só, ou pelo menos sem nenhum dos seus homens, meteu a cabeça entre as mãos e, em silêncio, deixou escorrerem as lágrimas. Pouco importava que os archeiros de Glevum o tomassem por um fraco que cedia ao terror. A seus olhos, a verdade era bem pior. Só os inconscientes ou os principiantes não conheciam o medo, a vertigem e os estremeções que assolavam qualquer pessoa sensata perante os horrores indizíveis de uma luta. Mas, perder a honra, era uma degradação insuportável, que manchava para sempre a memória de um guerreiro e de um clã. Só uma morte honrosa, à frente dos seus cavaleiros, conseguiria apagar o opróbrio de que se tinha coberto. Sim, morrer para não ter de confessar a sua culpa. Morrer antes da noite, numa última luta, e que tudo se desmorone atrás deles, que tudo arda sob as tochas saxônias. Inspirou profundamente e, descobrindo as mãos encarniçadas de sangue, sujou a cara com ele. Foi assim, assustador de se ver, que se juntou aos seus homens no adro.

Quando avançava para eles, um dos cavaleiros saltou para o chão e correu ao seu encontro. Só no último instante é que Owen o reconheceu. Era Dygineleoun, com o rosto transtornado pelo pavor e com as mãos já estendidas para socorrê-lo.

— Senhor, estás ferido! — gritou. — Temos de mandar tratar-te, não podes...

— Não é o meu sangue — berrou Owen, empurrando-o com mais força do que queria.

Precisou de algum tempo para cair em si, a tal ponto o tinha surpreendido a irrupção do seu bardo. Aquela hora, Dygineleoun deveria estar a cavalgar na direção do exército de Ryderc, ou preferencialmente de regresso a Gaer Loew, à rédea solta, à frente de um destacamento. A sua presença ali só podia ter uma explicação...

— O exército do rei está ali? — inquiriu ele agarrando o amigo pelos ombros. — Estão prontos para atacar?

— Perdoa-me — murmurou o bardo. — Deixei que os outros partissem sem mim. Aqui, estava tudo por fazer. As poucas tropas que restavam estavam prestes a fugir. Eu garanti-lhes que estavas ali com a cavalaria, que Ryderc se aproximava a passos largos...

— Procedeste bem.

Owen bateu-lhe no ombro e obrigou-se a sorrir, tanto para Dygineleoun como para os homens concentrados no adro. Muitos cavalos não eram montados, mas apesar de tudo formavam um grupo imponente, coberto de lanças e fremente de impaciência.

— Ando à tua procura desde ontem à noite — retomou o bardo num tom hesitante.

O príncipe não respondeu. Juntos, reuniram a cavalaria bretã, quando o guerreiro que tinha abordado Owen sobre as muralhas se apressava para diante dele, conduzindo pelas rédeas um alazão de bom porte e segurando na outra mão um escudo.

— Senhor, foi tudo o que encontrei — disse estendendo-lhe um escudo redondo e pequeno, mas corretamente ferrado.

— Está bom!

Saltou para a sela, passou o braço esquerdo pelas braçadeiras do escudo e pegou nas rédeas, depois desembainhou a espada com a mão direita. Consciente que as tropas reunidas esperavam uma arenga, procurava as palavras, quando viu Dygineleoun esporear a montada e dirigir-se para a frente deles. Com a cabeça caída para trás, gritando com toda a força, para que todos o ouvissem, entoou um cântico que todos conheciam, e que logo retomaram em uníssono:

Desejável aos guerreiros é a luz da aurora

Desejável o grito do rei para a batalha

Desejável a multidão dos cavalos vigorosos,

A carga dos vencedores montados nos seus cavalos.

Desejável, entre os gritos dos combatentes,

O grito de reunião do filho de Nud Hael na grande província

Se eu obtiver um sorriso do meu príncipe para mim,

Tornará os bardos sempre felizes,

Esperando que morram os filhos de Lloegr

Pátria dos inimigos do doce país de Urien[35]

Owen não sorriu, mas consolidou o aperto da mão sobre a sua espada e partiu devagar para a barbacana da porta ocidental, seguido pelas fileiras cerradas da sua cavalaria. Passaram-na com um barulho de trovão, espezinhando mortos e feridos amontoados sob as muralhas. A terra bramiu sob os cascos quando se lançaram a galope, sem uma ordem, sem um grito, direitos na direção da massa confusa do exército saxônio, surgindo bruscamente sobre o seu flanco no momento exato em que a porta principal cedia sob as pancadas do aríete. Introduziram-se por ali tão vivamente como a foice nos trigais, com um ímpeto tal que nada os teria conseguido deter. Owen gritava com todas as goelas, semelhante a um diabo surgido dos infernos, golpeava como um louco, sem olhar, os crânios, as costas ou os braços, insensível às lâminas que lhe entalhavam os membros, empurrando o seu cavalo transtornado, sempre mais para a frente entre a infantaria Saxônia, entre os gritos de agonia, os bramidos e os insultos. Quando já tinha quase ultrapassado as suas linhas perturbadas, uma estocada partiu-lhe a espada sobre o escudo de ferro de um cavaleiro saxônio e deixou-o desarmado, como nu, com o braço inchado pela violência do embate. Deu reviravoltas para livrar-se da peleja, lançou o seu alazão a galope através da planície e debruçou-se sobre a sela para agarrar pelo ar uma lança espetada no chão. Como desse meia-volta, uma intolerável ferida rasgou-lhe a coxa. Um Saxão da altura de uma torre, com os olhos ardentes de terror ou de raiva, acabava de atingi-lo com o seu longo machado. O ferro tinha desviado, levando um bocado de carne do tamanho da palma da mão em vez de lhe cortar a perna, atravessando a sela para se fixar no flanco do alazão, cujo brusco sacão por pouco não o deitou abaixo. O cavalo, louco de terror, empinava-se ao ponto de Owen ter de lhe reter as rédeas, enquanto cada patada do animal lhe arrancava um grito de dor. Com certeza que ia tombar, sem pinga de sangue, quando uma mão firme lhe agarrou as rédeas, conduzindo-o para fora da batalha. Owen via dançarem pontos brancos diante dos seus olhos e só a força de vontade o mantinha ainda na sela. As suas pernas estavam banhadas de sangue, misturado com o do seu corcel nos flancos luzidios de suor.

Chegaram assim ao abrigo de um arvoredo, numa pequena elevação, logo encontrados por um punhado de cavaleiros. A preço de um esforço que lhe trouxe o coração à boca, o príncipe arrancou ao seu salvador as rédeas da montada e conseguiu forçá-lo a voltar-se. O venábulo, debaixo do seu braço agitava-se com tremores incontroláveis.

— Owen, acabou-se! — gritou Dygineleoun colocando-se a seu lado, com o braço direito desengonçado e ensangüentado. — Olha! Entraram no palácio. Já não podemos fazer nada.

— Ainda podemos morrer...

O príncipe não viu os olhares que trocavam os seus homens. Vacilante sobre a sela, impeliu o seu alazão para a frente, mas Dygineleoun chegou-se a ele e barrou-lhe o caminho.

— Não há honra em morrer assim, Owen.

— Afasta-te.

O bardo desviou os olhos e fez um sinal com a cabeça. No momento em que Owen se voltava, um cavaleiro deu-lhe uma pranchada seca com o escudo no rosto e ele caiu, inconsciente, sobre o pescoço do cavalo.

 

                                 O Anátema

Com o estômago apertado, Blaise afastou a tigela apenas encetada, limpou a boca com as costas da mão e cuspiu. As poucas colheradas de sêmola morna e viscosa que lhe tinham servido pesavam-lhe no estômago. Encontrava-se só no vasto refeitório da abadia, sentado a uma mesa com vinte pés de comprimento, ainda atulhada com os restos da refeição destramente devorada pelos noviços, antes dos salmos da tércia. «Livrai a minha alma dos lábios da mentira e da língua enganadora»... Na circunstância o cântico não podia ter sido mais bem escolhido. Teve de esperar no corredor, sob a muda custódia do irmão despenseiro, até que saíssem, tal como um bando de pardais, acotovelando-se enquanto lançavam para ele olhares vagos, com cochichos e risos perfeitamente explícitos. Ele era penitente, o anátema que os bispos reunidos iam julgar a qualquer momento, acusado já de ridículo com o hábito de burel desfiado, a barba emaranhada e a cabeça completamente rapada, sem a coroa de cabelos segundo a tonsura de São Pedro que arvoravam os monges de Gália e da Armórica. O conjunto dava-lhe um aspecto tinhoso. Na verdade não era o trajo dos irmãos da abadia... O despenseiro tinha-lhe levantado a tigela antes de voltar a fechar a porta com duas voltas, sem uma palavra, seguido dos seus ajudantes, o refeitorista e o tesoureiro de confraria[36]. A partir de então, ninguém voltara a aparecer e a manhã fugia lugubremente. Bátegas de chuva fustigavam o telhado de estanho e as janelas em cruzeta. Blaise levantou-se, limpou as vidraças embaciadas e deu uma espiada para fora. Com aquele tempo danado, as ruas apresentavam-se desertas, tão escuras e vazias como lhe tinham aparecido na manhã em que tinham chegado a Carohaise.

A cidade não possuía fortificações dignas desse nome, apenas uma cintura de paliçada e uma vala, no sítio onde se levantavam as muralhas de Vorgium, o antigo acampamento romano do tempo de Aetius. Erguida na encruzilhada das estradas romanas que ligavam Gwened a Sulim[37] e à região mineira de Poher, Carohaise tinha reencontrado um pouco da sua antiga glória ao tornar-se capital de Domnónia[38], na época do conquistador Conomore. Mas com a queda da dinastia, a cidade nunca mais havia deixado de enfraquecer. A floresta avançava a cada dia sobre as terras cultivadas, recobria pouco a pouco as vias romanas e as minas que tinham constituído a sua prosperidade. Para qualquer lado que se dirigisse o olhar, já não se viam senão árvores, o que valera ao príncipe Judual, soberano legítimo, o cognome de Rex Arboretanus, «o rei dos arvoredos». Daquele mar vegetal, as altas colinas de Poher emergiam como ilhas tristes e despidas, batidas pelo vento e pela chuva às quais continuavam agarradas algumas aldeias perdidas. E da própria Carohaise não restava senão Piou Caer, a paróquia fortificada em torno da qual se amontoavam as choupanas ainda habitadas.

Blaise estremeceu com o espetáculo daquela desolação. Aproximou-se da lareira onde se mantinham latentes uns tições, sentou-se sobre um banquinho e abismou-se numa contemplação fascinada das brasas. Desejara rezar, mas a oração parecia-lhe vazia de sentido. As palavras ocorriam-lhe sem alma, enquanto, constantemente, a imagem de Merlim se lhe impunha, bem como a recordação da sua viagem, a partir da altura em que haviam deixado Dun Breatann. Nada do que havia visto, a seu lado, conseguia explicar-se, a menos que se acreditasse na sua essência divina, ou diabólica. Como o rapaz não tinha recebido o batismo, o simples fato de considerar que pudesse ter sido tocado pela Graça era uma heresia. Assim não restava senão o diabo... Mas isso, Blaise não conseguia imaginar. Fosse quem fosse o pai de Merlim, ele não tinha nada de diabólico, mesmo que fosse mais fácil admiti-lo, e mesmo que tivesse de perder tudo de preferência a submeter-se àquela patetice, boa apenas para assustar os noviços...

Naquele preciso momento, Cetomerinus devia estar a instruir o seu processo, traçando dele o retrato de um monge pervertido, obcecado pelos artifícios do Maligno, de um herege sustentado pelo pelagianismo, incapaz já de discernir o caminho de Deus.

O pior, aos olhos de Blaise, era que talvez até tivesse razão.

Tinham saído da floresta. Disso, ao menos, tinha Merlim a certeza. Durante os seus raros momentos de vigília, conseguia voltar a cabeça o suficiente para discernir à sua volta uma paisagem de urzes cor de malva e penedos salientes, parecida aquela que havia atravessado com Bradwen. A zorra de folhas e ramos entrelaçados sobre a qual se encontrava estendido, atrelada a uma das mulas, deslizava silenciosa por cima da erva rapada de uma vereda estreita que serpenteava por entre as sarças. Ele ouvia o resfolgar da besta, a chiadeira do atrelado e, às vezes, o grito rouco de um busardo. Mais nada, nem um som, nem um murmúrio proveniente dos seus raptores, como se tivessem desaparecido após o terem estendido sobre aquela padiola, como se a mula arrancasse por si só na direção de um objetivo desconhecido. Acontecia-lhe acordar durante a noite, sob a abóbada celeste. Então, por momentos, tomava consciência do passar do tempo e do desfilar dos dias a partir da sua captura, mas naufragava invariavelmente no sono antes de conseguir clarear as idéias ao ponto fixar-lhe a conta. Apenas conservava na memória alguns fragmentos daqueles intervalos de vigília. Tinham deixado a floresta. Não sentia fome nem frio. A mula parecia nunca mais parar. Era tudo. E foi assim até à tempestade.

Nesse dia, um trovão muito próximo arrancou-o brutalmente à sua letargia. A mula desnorteada tinha-se lançado a trote e os bruscos solavancos da atrelagem sacudiam-no com dureza, debaixo de trombas de água que, por algum tempo, o deslumbraram.

Estava a amanhecer, o suficiente para que ele descobrisse, por entre os abanões e a cortina de chuva, as silhuetas dos seus guias. Três, quatro, talvez mais, correndo à ilharga, com o rosto e o corpo dissimulados em longos mantos cor de floresta. Agarrado à padiola, Merlim, com o coração a bater, esforçou-se por permanecer imóvel para que eles não fizessem qualquer reparo. A corrida desenfreada interrompeu-se repentinamente. Mais uma vez haviam chegado à proteção das árvores. E mesmo no momento em que o rapaz de tal se apercebeu, viu-os, inclinados sobre ele, todos encharcados, com a pele tão pálida e lisa que ter-se-ia dito serem estátuas de mármore, senão tivessem aquelas longas cabeleiras escuras e aqueles enormes olhos.

— Restan, Laüoken — pronunciou um deles, com uma voz grave e calma. — Restan mid Slea maith...

— Não compreendo — gemeu Merlim. — Não compreendo...

As lágrimas, extravasando-lhe do coração deprimido pelo desgosto, misturaram-se com a chuva. Aquela língua estranha ressoava todavia nele como uma recordação difusa. Também aquela palavra, Laüoken. Repentinamente, lembrou-se. Aqueles seres pálidos eram os mesmos que o haviam socorrido na floresta de Arderyd, a seguir à batalha. A linguagem deles era a mesma, bem como os mantos ondulados. Também aquelas palavras, Slea maith, as «boas pessoas», tal como eram chamados nos contos-da-carochinha. Merlim estendeu a mão a tremer na direção daquele que tinha falado, tocou-lhe no rosto.

— Vós sois elfos — murmurou.

— Restan mid lyftleod...

O elfo sorriu, meneou a cabeça e, suavemente, retirou a mão do rapaz. Colocou-a sobre o peito, levantou até ao queixo o manto de tecido ondeado com que o haviam coberto e, com um gesto lento, colocou-lhe os dedos no pescoço, comprimiu uma veia. Nesse instante, Merlim mergulhou no sono.

A manhã já ia bastante adiantada, mais perto da sexta do que da tércia[39]. O ritual do capítulo poderia ter acabado uma hora mais cedo, pelo menos, para que cada um pudesse ocupar-se das suas obrigações mas, não obstante a presença do rei Judual e dos bispos Félix, Victurius e Samson — ou por causa dela —, o padre superior da abadia de Carohaise parecia sentir um malévolo prazer em prolongar a sessão. Toda a comunidade dos monges, cônegos e presbíteros tinha-se reunido em bancos dispostos por séries de três fiadas, de frente uns para os outros, ao longo das paredes transversais, enquanto os seus prestigiosos hóspedes se encontravam instalados sob altas janelas de vidro fosco que guarneciam o muro oriental, ocupando as cadeiras habitualmente reservadas ao prior, ao capelão e aos decanos. Ao fundo da sala capitular, em frente a eles, os noviços, oblatos e donatos, assistiam de pé ao capítulo. Alguns trabalhavam desde as laudes e titubeavam de fadiga. Os monges, por seu lado, estavam sentados e, protegidos pelos capuchos, podiam dormitar. A leitura do Evangelho e o seu comentário, depois a interminável prestação de contas pelos oficiais camareiros, tinham-se prolongado para além do razoável e, quando finalmente chegaram à parte disciplinar durante a qual podiam ser suscitadas as questões que reuniam aqui os príncipes da Igreja, foi ainda preciso suportar a dolorosa litania das culpas. Monges e fradecos, de cabeça baixa e corados de terror sob a presença temível dos bispos e do rei, vieram, cada um por sua vez, confessar as suas faltas anódinas, deixar-se admoestar pela assembléia e receber a penitência. Por ter adormecido durante o ofício, uma genuflexão. Por ter deixado cair a tigela no refeitório, uma «satisfação», simples inclinação de cabeça. Ter chegado atrasado à missa ou aos trabalhos, ter-se enganado durante o coro, ter falado de coisas fúteis... Para a maior parte tratava-se apenas de poena levis, de faltas ligeiras, não acarretando senão penitências simbólicas e que aborreciam por completo toda a assistência, para além dos próprios penitentes. Naquele dia houve apenas uma poena gravis, imputada a um jovem monge, mirrado e triste, que o mestre de noviços acusou do pecado de acedia: indolência, falta de entusiasmo e de alegria, pecado grave numa comunidade banhada pela luz de Deus, pois não podia resultar senão de uma falta de fervor religioso. Nada no entanto que despertasse a atenção dos bispos. Durante todo aquele tempo, Cetomerinus tinha permanecido quieto, com os olhos fechados e as mãos abertas colocadas sobre os joelhos, numa atitude de recolhimento, ou de inflexibilidade/ que desencorajava rapidamente os olhares que dirigiam na sua direção. Não voltou a mover-se até o mestre de noviços mandar para as respectivas ocupações os monges conversos, tal como os leigos. Estremeceu no entanto quando as portas da sala capitular voltaram a fechar-se atrás deles, isolando do mundo o sínodo dos monges e marcando finalmente o início das coisas sérias.

Havia já uma semana, os bispos Félix de Nantes e Victurius de Rennes tentavam instruir o rei Judual, soberano de Domnónia armoricana, sobre os cânones do Concílio de Paris que acabava de se realizar por iniciativa do rei franco Chilpéric, sob a autoridade benevolente do bispo Germain. Cetomerinus tinha-os escutado em silêncio, sem compreender na totalidade as paradas que se jogavam ali. Era demasiado notório que Judual suportava mal as advertências cautelosas daqueles bispos agaloados, com os dedos cheios de anéis e com maneiras de patrícios romanos e também parecia forçado a ouvi-los até ao fim do sermão, pese embora o seu poder e o apoio do santo bispo Samson de Dol. Os bispos bretões de Alet, de Landreger, de Quimper, de Dal, de Vannes ou de Leão estavam longe de ter o poder dos de Rennes e de Nantes, eles próprios dependentes das dioceses Cenomanensis e Turonends[40] que tinham autoridade sobre a península armoricana. As duas grandes cidades fronteiriças constituíam, por outro lado, os primeiros bastiões militares das marcas da Bretanha[41], nas quais se amontoavam naquela mesma altura as tropas francas vindas de toda a Nêustria sob as ordens de Chilpéric e da rainha Frédégonde, desde que as incursões guerreiras do conde Waroc em Vannetais ameaçavam o equilíbrio militar da região. Tratava-se também, para o rei da Nêustria, de se assegurar, através dos seus bispos, do apoio ou pelo menos da neutralidade de Judual no conflito que se anunciava entre Waroc e os exércitos francos.

Neste contexto, a nomeação do sucessor de Paulo Aureliano à frente do bispado de Leão assumia contornos políticos imprevistos para o capelão. A partir do momento em que lhe tinha sido permitido assistir ao sínodo, tornava-se cada vez mais claro a seus olhos que os bispos da Gália recusavam a eleição simples, por aclamação a clero et populo, de um candidato que não tivesse recebido o aval de Chilpéric e cujas origens bretas não pudessem inspirar-lhes senão desconfiança. Tudo parecia opô-los. De um lado a magreza e a ascese de um miles christi educado no rigor dos mosteiros celtas, do outro a opulência de prelados dominando como mestres sobre cidades poderosas. O «soldado de Deus» não tinha outra escolha senão pactuar com eles.

Durante dias e noites, Cetomerinus havia redigido em latim e depois decorado uma sábia alocução, alternando bajuleios e citações bíblicas, capaz de exibir simultaneamente a amplidão da sua cultura e a sua submissão ao episcopado. Mas na presença do rei Judual, os debates decorriam em língua vulgar, o que não só privava o capelão dos seus mais belos efeitos de estilo, mas sobretudo tronaria evidentes os seus esforços de comprometimento. Ora, Judual, mesmo não tendo qualquer autoridade sobre a nomeação dos bispos bretões, continuava a ser o rei da Domnónia, suserano do conde Withur, do mosteiro de Battha e do bispado de Leão. Era impensável opor-se para obter a graça dos bispos francos, menos ainda tentar passar por cima do consentimento destes.

Durante horas, Cetomerinus tinha passado da exaltação ao abatimento mais completo e, de seguida, a um renascer de esperança que se lhe apresentava como a única via possível, o dom de Deus miraculosamente sobrevindo para provar a sua competência. Esforçou-se por reaparecer no debate, quando, uma vez mais, o tom subia entre os bispos da Gália e o rei Judual, desta vez em torno da existência das conhospitae, as mulheres que partilhavam a vida dos padres bretões e celebravam, a missa ao lado deles, de aldeia em aldeia. De repente, perdendo a calma, o rei deu uma palmada sobre o parapeito e levantou-se bruscamente.

— Por amor de Deus, em que acreditais? — gritou ele. — Quantas igrejas, quantas basílicas vistes ao virdes para cá? Senhor Félix, vós sabei-lo bem, pois mandais construir uma catedral em Nantes a vossas próprias expensas! Aqui, não há nada. Todos os dias chegam novos emigrantes da Bretanha que são mandados deslindar a floresta e extensos pinhais, reedificar as aldeias em ruínas, construir novas implantações. E quando não há igreja, impõe-se que os nossos clérigos se coloquem à frente das populações, posto que entre eles muitos não são cristãos. Preciso de padres para espalhar a fé de Deus através do reino e não tenho que cheguem. Assim, se essas santas mulheres nos podem ajudar, que o façam!

— Senhor, as mulheres não podem dizer missa — interveio prudentemente o bispo Victurius. — E um servo de Deus não pode...

— Que ides dizer? — interrompeu Judual. — Que um eclesiástico não pode viver com uma mulher? Que pensariam a vossa esposa ou a vossa filha Domnola? E vós, Félix, que tendes para censurar, vós que possuis no domínio de Cariacum, uma multidão de criados escravizados e de prediletos? E não falemos do bispo Eunius de Vannes, esse bêbado que coze a bebedeira durante a missa!

O rei inspirou profundamente para reencontrar a calma, viu a careta reprovadora de Samson e, compreendendo que tinha ido longe demais, retomou com voz firme:

— Perdoai-me, senhores, mas estamos aqui em terra bretã e não na Nêustria. Por vezes os nossos costumes são diferentes... Eu sei o que devo aos reis de Paris, mas não creio que Chilpéric tenha lições a dar-nos em matéria religiosa!

O bispo Félix levantou uma mão apaziguadora.

— O rei é muito versado em religião — murmurou. — Compôs missas e hinos. Diz-se que até escreveu um tratado sobre a Trindade...

— O senhor leu-o? — interveio Samson.

Os prelados da Gália evitaram o seu olhar carregado de ironia.

— É pena — prosseguiu ele. — O rei Chilpéric desenvolve nele idéias interessantes. Ele considera, por exemplo, que é indigno da majestade divina que a dividamos em três pessoas...

Um murmúrio de indignação, perante aquilo que soava como uma escandalosa heresia, percorreu os bancos da assembléia monacal, que terminou com a voz poderosa do bispo Victurius.

— Meus irmãos, imploro-vos, estamos a divagar! Tal como formulou o santo bispo Germain, as dioceses da Bretanha estão submissas à autoridade romana do bispo Gregório de Tours, cidade que depende do rei Sigebert de Austrasie, e não de Chilpéric. Não nos percamos assim numa querela que não nos diz absolutamente respeito, meus irmãos, já que pertencerá ao nosso irmão Gregório resolver esta questão.

Calmamente, pousou o olhar sobre Judual e esperou que este retomasse o seu lugar antes de prosseguir.

— E já que demos uma volta à questão, sugiro que deixemos a palavra ao nosso irmão Cetomerinus. Estamos todos a sofrer a dor da perda do nosso querido irmão Paulus Aurelianus, que está a ver-nos e a julgar-nos. A Leonensis[42] deve com certeza encontrar com a maior brevidade um guia, digno da santidade do seu predecessor... Todavia, não nos pertence, depois do Concílio de Tours[43], dar a consagração episcopal a um Bretão ou a um Romano sem o assentimento do metropolitano ou dos bispos da província, reunidos em sínodo. Não poderemos portanto examinar aqui a sucessão senão de forma informal...

— Parece que o nosso irmão Paulo vos terá designado — interveio Félix de Nantes, mirando dos pés à cabeça o capelão com um olhar pintado de uma leve suspeita. — A não ser que ele vos tenha designado para nos vir informar do seu chamamento para Deus.

— Monsenhor, o nosso irmão morreu em odor de santidade, tal como o conde Withur e eu próprio podemos atestar — respondeu Cetomerinus. — Deixou cartas nas quais desejava confiar-me o cargo, mas rogo-vos que as considereis com indulgência. Os seus últimos dias foram de um grande sofrimento e a sua amizade para comigo exagera as minhas capacidades, que são bem menores do que ele pretende. Pela minha parte, senhores, sire Judual, não teria a ousadia de lutar para conseguir tal investidura. Desejo simplesmente continuar no exercício da minha função, na nossa querida província de Leão, sujeita a tantos perigos desde algum tempo a esta parte...

— A que fazeis alusão? — perguntou o rei.

Baixando a cabeça diante da assembléia dos bispos, com toda a humildade e contrição, Cetomerinus pareceu não obedecer senão com reticência, como se já tivesse revelado demais e não sonhasse senão chegar ao abrigo do seu mosteiro.

— Senhor, como haveis dito, todos os dias chegam às nossas bandas mais refugiados da ilha da Bretanha...

— Vós fostes um — grunhiu Samson. — E eu também!

— Monsenhor, os monges que os acompanham nem sempre têm a vossa sabedoria... nem o rigor da vossa fé.

— Continua...

— O conde Withur confiou-me o encargo de acompanhar até vós um dos irmãos extraviados que vos suplico que ouçais para que seja submetido ao vosso juízo.

Félix e Victurius trocaram um olhar de contentamento que não escapou ao capelão.

— Que tendes a censurar-lhe? — inquiriu o bispo de Nantes.

— A minha ciência é demasiado diminuta para poder afirmar com certeza, mas a estima que ligou o nosso irmão a um reconhecido bardo, culpado de feitiçaria, fez-me duvidar da sua fé na graça divina, fora da qual, pelo santo sacramento do batismo, não pode haver salvação.

Num aparte, Judual inclinou-se para o abade-bispo de Dol.

— Mas de que está ele a falar?

— Temo que seja de heresia — murmurou Samson.

— Que me seja permitido citar as Escrituras — continuava Cetomerinus, extraindo da memória uma das passagens do texto que havia preparado — «Se o teu irmão pecou, vai e repreende-o a sós. Se te escutar, terás ganhado o teu irmão. Mas se não te escutar, toma contigo uma ou duas pessoas, para que o caso se paute pela declaração de duas ou três testemunhas. Se ele recusar ouvi-las, comunica-o à Igreja...»

— «...E se ele se recusar ouvir a Igreja — concluiu o bispo Victurius com manifesta satisfação — que passe a ser para ti como um pagão e um publicano[44].» Compreendo. Estes monges tresmalhados... São esses os perigos de que faláveis, meu irmão?

Cetomerinus anuiu com a cabeça.

— Fizestes bem... A Igreja da Bretanha possui particularidades, boas ou más, mais ou menos diferentes do uso romano, mas que temos a obrigação de debater, tal como o nosso muito santo pai, o papa João, fez com os cristãos do Oriente. Os hereges, em compensação, devem ser combatidos e castigados, isso nem precisa de ser dito.

O bispo solicitou no entanto, com um erguer de sobrancelhas, a aprovação do rei e do abade-bispo de Dol, os quais não puderam contradizê-lo.

— O nosso irmão tresmalhado está presente?

— Senhor, ele encontra-se à vossa disposição sob a custódia de guardas da abadia.

— Então, que o mandem entrar.

Por um bom bocado e graças àquela interrupção, a sala capitular encheu-se dos comentários encalorados, murmurados pelos monges. Em seguida a porta do fundo abriu-se a ranger e voltou o silêncio, enquanto Blaise subia sozinho pela ala central, entre os bancos ocupados pela congregação, até à frente dos juízes.

— Meu irmão — chamou Vicrurius levantando-se — estais aqui pelo privilégio do foro[45], perante o tribunal da vossa consciência e sob a autoridade da Igreja, para responder pelo pecado mortal de heresia, sob a delatio do nosso muito amado irmão Cetomerinus. Que ele fale e exponha os vossos erros, a fim de julgarmos sobre a vossa penitência.

Blaise por momentos ficou perturbado, impressionado por aquele bispo, enorme com a mitra e o báculo, de pé diante dele, como uma estátua descida do seu pedestal. Quase sentiu um alívio ao reconhecer na assembléia o rosto do seu acusador, quando este avançou para ele.

— O nosso irmão Blaise desembarcou na ilha de Battha na companhia de um rapaz a quem chama Merlim, conhecido em toda a ilha da Bretanha pelo seu trato com o demônio e a quem apelidamos de «o filho do diabo», coisa de que não se defende e até parece orgulhar-se. Longe de procurar arrancar aquela alma perversa à dominação do Maligno, o nosso irmão ousou afirmar, em presença do conde Withur que pode atestá-lo, que tinha aquele feiticeiro por enviado de Deus, um novo messias vindo remir os nossos pecados, quando esse Merlim nem é batizado, o que o torna indigno da graça divina. Da minha parte, considero esta aberração como heresia, inspirada nas doutrinas horrorosas de Pelágio, que o nosso mestre Agostinho tão energicamente combateu e encontraram, dói-me o coração confessá-lo, tanto eco na ilha da Bretanha.

— Com que então um Messias? — murmurou Samson.

— Esse rapaz — perguntou Victurius — realizou milagres? Tem estigmas? Conhece as Escrituras?

— Senhor, ele conhece-as! — exclamou Blaise. — E, sem nunca ter aprendido latim, consegue citar passagens inteiras!

— Se isso é verdade, é claramente um prodígio... Seria preciso trazê-lo cá.

— Esse demônio fugiu, excelência! — interveio Cetomerinus com um pouco de pressa a mais. — Após ter morto com as suas mãos dois soldados muito mais fortes do que ele, treinados e bem armados, fugiu, embrenhando-se nas pestilências dos pântanos Yeun Elez, local que as pessoas de cá têm, justamente, como uma das portas do inferno.

Àquelas palavras, a assembléia dos monges, até aí silenciosa e atenta, explodiu numa algazarra de exclamações indignadas, imprecações e gritos de pavor, que o padre-abade não conseguiu impedir senão ameaçando mandar a congregação para os seus trabalhos habituais. Os próprios bispos e o rei comentaram demoradamente entre si as revelações do capelão, tanto mais espantosas, na verdade, que o acusado não as rejeitou. Pior ainda, pois parecia confirmá-las com a sua ausência de reação.

— Meu irmão — retomou o bispo Félix, fazendo um sinal benevolente com mão a Cetomerinus — temos de agradecer ao Céu por te ter colocado no caminho desse enviado do diabo.

— Senhor, perdoai-me, mas ele não é nada disso! — gritou Blaise. — Aquele a quem chamam Merlim, o príncipe Emrys Myrddin, filho de Ambrosius Aurelianus e da rainha Aldan de Dyfed, não tem nada de demônio. Não sei o que se passou em Yeun Elez, mas sem provas ninguém pode acusá-lo formalmente de ter morto esses guardas. Ele desapareceu, isso é um fato. Mas ao fim de contas, talvez também ele tenha sido morto por aqueles que desejavam a sua morte!

Cetomerinus deu um soluço ofuscado, mas Blaise levantou as mãos em sinal de calma.

— Eu não indico ninguém — disse ele. — Quero simplesmente dizer que o santo bispo Paulo, também ele membro da linhagem dos Aurelianos, reconheceu a pureza de Merlim e que morreu pedindo-lhe perdão pelas suas ofensas, o que o nosso irmão (voltou-se para o capelão) não poderá negar. O conde enviou-vos o rapaz, senhores, para que possais julgar da sua natureza, e não para que seja antecipadamente condenado. Infelizmente, Merlim foi subtraído ao vosso julgamento e cabe-me defendê-lo face às acusações do nosso irmão... A dar-lhe ouvidos, Merlim não procederia senão do mal. Será verdade?

— Atesto-o pela minha fé! — exclamou Cetomerinus.

— Não passo de um simples monge, indigno de tão sábia assembléia... Mas que pensar de um clérigo que considera que o mal procede do mal e não de uma perversão do bem? O mal seria uma entidade própria, fora de Deus, tal como o afirmaram os maniqueus.

O bispo Samson, divertido tanto pelo contra-ataque de Blaise como pela reação do capelão, ao mesmo tempo arrebatado e desorientado, fez menção de aplaudi-lo.

— Vejo que o nosso irmão possui noções de teologia — resmoneou Félix, também ele divertido com o andamento da controvérsia. — No entanto, se é justo e verdadeiro que o mal procede do Bem, não pode tratar-se do Bem supremo e imutável. Provém dos bens inferiores e mutáveis. Esses males não são naturezas mas vícios de naturezas. Portanto não podemos considerá-las por si mesmas, o que faz com que o Mal seja apenas a ausência do Bem, tal como escreveu Santo Ambrósio.

— Portanto, excelência, a privação do Bem é a raiz do mal. Mas que se preencha essa ausência. Nenhum homem conseguiria elevar-se para o Bem?

— Vejo aonde quer chegar — concedeu Félix. — Mas pense um pouco sobre a origem dessa ausência. Onde encontrá-la, como explicá-la, se não está nesta ou naquela natureza? A vontade má, por exemplo, tem de ser necessariamente a vontade de uma natureza. O anjo, o homem e o demônio são naturezas... De qual falamos nós, irmão Blaise?

— Excelência, não sei... O que me foi dado a conhecer de Merlim, durante os meses em que o acompanhei, não pode associá-lo ao demônio. Para mim, é um ser bom, mesmo não conseguindo eu compreender as razões dos seus poderes. Mas não posso acreditar que, fora de Deus, haja poder sobre esta terra.

O bispo de Nantes levantou-se, contornou Blaise sem o olhar e avançou lentamente na ala central, entre os bancos ocupados pelos monges.

— O vosso Merlim seria assim um enviado de Deus, já que é bom?

— Não... não sei...

— Mas, vejamos! Todo o homem não é, por natureza, uma criatura à imagem de Deus, tal como vem escrito no Gênesis?

— Isso não se pode negar.

— Pois bem! — exclamou Félix, dando meia volta e voltando-se vivamente para o acusado — um ser criado à imagem de Deus não poderia ser tocado pela graça e escolher a via do Bem só pela força da sua alma? Não é o que acabais de sugerir? Refleti bem, meu irmão... Porque esse Merlim que defendeis não é batizado e, assim, se não pode ser tocado pela graça, pela única força dos seus próprios méritos e assim depender de Deus, então procede do mal, tal como crê o nosso irmão Cetomerinus...

— Sim — murmurou Blaise. — Sim, concordo...

— Concorda com quê, meu irmão?

— Que Merlim foi tocado pela graça.

— Compreendo...

Félix olhou-o de alto a baixo, meneando a cabeça com um ar desolado, dirigiu em seguida um sorriso de conivência ao bispo Victurius e voltou a sentar-se.

— ...Então para que morreu na cruz o Filho de Deus?! — exclamou este.

Blaise olhou-o sem compreender, perfeitamente desorientado com aquela brusca súmula.

— Sim, mas com que fim teria ele morrido, já que — a vosso entender — não seria necessário remir-nos do pecado de Adão? Já que todo o ser deste mundo, nem que seja o último dos pagãos, nem que seja mesmo um feiticeiro, poderia aceder à graça pelos seus próprios méritos, fora do sacramento do batismo?

— Está perdido — cochichou o bispo Samson ao ouvido do rei Judual.

— Ne evacuetur crux Christi! — lançou Victurius com uma voz vibrante. — Na carta aos Coríntios, o grande São Paulo já nos prevenira contra os que haveriam de negar o pecado original e o sacrifício de Cristo na cruz. O pecado de Adão fez de toda a humanidade uma massa damnata, que só a graça divina pode arrancar ao pecado! E a todos os que acreditarem que pode haver Bem fora da graça, digo o seguinte: acreditais que um rapaz morto em tenra idade possua a vida eterna?

Blaise, concentrado em si mesmo, não respondeu, mesmo quando o bispo o sacudiu pelo braço, repetindo a questão.

— Ides negar as palavras do apóstolo, quando afirma: «Todos nós, que fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte», para dizer que todo o homem batizado morreu realmente para o pecado, como Jesus Cristo morreu na sua carne? Ora, por que pecado pode uma criança morrer, uma criança inocente, que inclusivamente ainda não saiba falar, se não contém em si o pecado original? Ides negar que, se todos morreram em Adão, todos hão-de ressuscitar em Jesus Cristo, sendo absolutamente certo que Jesus é o Salvador e que os que não são remidos por ele, na sua carne e no seu sangue, não podem ter a vida eterna?

Aguardou por algum tempo uma resposta, mas Blaise tinha abdicado de toda a vontade de defesa e aguardava apenas pela sua sentença.

— Meus irmãos — concluiu Victurius voltando-se para a assembléia dos monges — recomendamos em nome de nosso senhor Jesus Cristo que vos afasteis de qualquer irmão que viva no desregra-mento e não segundo as instruções que de nós recebestes[46]. Acreditar num falso messias é uma cegueira, lamentável para um clérigo, mas que pelo menos se pode compreender, pois as obras do diabo são poderosas. Mas professar que um pagão possa ser tocado pela graça sem a intercessão do batismo equivale a negar o sacrifício de Cristo, nosso senhor, e isso causa-nos horror. O nosso irmão Cetomerinus viu bem e estamos-lhe reconhecidos pela sua clarividência. Aquele homem (estendeu um dedo acusador na direção de Blaise) separou-se por si próprio da comunhão da Igreja pelo seu anátema e professa em consciência a heresia de Pelágio. A única sentença para tal abominação só pode ser a excomunhão.

Blaise cerrou os punhos para não desfalecer e desabar sob os seus olhos. Não mais reagiu até que o bispo Victurius, citando novamente as Escrituras, lhe tocou no ombro.

— Meu filho, não desprezes o castigo do Senhor e não percas a coragem quando ele te repreende. Pois o Senhor castiga aquele que ama e bate com a vergasta em todos aqueles que reconhece como filhos. Suportai o castigo: Deus trata-vos como filho...

Em seguida, a mão do prelado afastou-se e Blaise sentiu-se agarrado pelos braços pelos sargentos que o levaram para fora da sala capitular.

 

                                       A Remissão

Um vento suave soprava do Levante. O ar era tão puro, o céu tão límpido que se via a milhas de distância. Ryderc tinha dormido apenas duas ou três horas. Sentia-se velho, tolhido por aborrecimentos e sacudido por tremuras, com os olhos a arder de fadiga à força de perscrutar o horizonte que o romper do dia inflamava. Ao fundo, a menos de trinta léguas, Caer Loew estava em chamas e todos os que rodeavam o riothime tinham a mesma impressão absurda de ver na aurora o braseiro que consumia a cidade. Não diziam palavra, já não era tempo de lengalengas, mas provavelmente sentiam todos a mesma vergonha, o mesmo remorso, com certeza que formulavam todos o mesmo lamento. Dois dias antes, em vez de continuar para sul, Ryderc havia ordenado que o exército obliquasse para ocidente, na direção do antigo acampamento romano de Caerleon, onde deviam estar à sua espera os reforços reunidos por Daffyd em Gwynedd. Eles não estavam lá e os vigias colocados ao longo da costa, na foz do Sabrina, não tinham dado sinal de nenhuma flotilha. O rei tinha agido sabiamente, mas a sua prudência traduzia-se agora em timidez, brevemente em cobardia. Não se pedia a um chefe militar que fosse prudente. Pediam-se vitórias.

Algumas horas antes, alta noite, os mensageiros enviados por Owen tinham acabado por juntar-se a eles, depois de em vão os terem procurado para norte, na estrada de Ceaster, no sítio onde deveriam ter-se encontrado. E quando a hoste real, avisada finalmente da situação, se dispunha a avançar em socorro de Caer Loew, chegaram outros mensageiros a anunciar a queda da cidade.

De Owen, de Sawel e da cavalaria, não se sabia nada. Ryderc tinha enviado esquadrões à sua procura, ficando depois à espreita, colocado sobre uma promontório rochoso fora dos muros de Caerlon, vacilando de cansaço e febre, à força de aguardar pelo seu regresso. Nunca, até então, se havia sentido tão só.

Nunca o cordão de Ambrosius lhe tinha pesado tanto no pescoço, pesado como uma canga, pesado com a carga humilhante das esperanças desenganadas e do insucesso da sua campanha. Não devia ter-se separado de Daffyd e de Sawel, os seus comandantes mais chegados, companheiros desde sempre. Sem eles, tinha a sensação de estar privado de apoio, rodeado de desconfiança e hostilidade, constantemente sob o olhar de Urien, de quem a maior parte dos outros aguardava o parecer para qualquer das suas decisões, como se não fosse ele o grande-rei, único chefe supremo dos exércitos bretões, único com habilitação legal para assumir o comando! A queda das três cidades era uma notícia terrível, claro, mas poder-se-ia responsabilizá-lo por isso? Tinham andado dias e semanas para irem em seu auxílio e se aqueles imbecis não tivessem demorado tanto a preveni-los, tudo poderia ter sido salvo! Mas mesmo assim, a guerra não estava perdida. Os saxônios Ceawlin e Cuthwin, embora vitoriosos, deviam estar enfraquecidos com aqueles ataques. As cidades que eles queimaram já não ofereciam qualquer proteção e as suas tropas, encarregadas dos saques, deviam estar espalhadas por várias milhas, de Caer Vaddon a Caer Loew, atulhados de prisioneiros e feridos, à mercê de um ataque planeado. Se Daffyd chegasse finalmente, nem que fosse à frente de uma centena de guerreiros, os homens recobrariam ânimo. Dentro de pouco, alguma das suas patrulhas encontraria o rasto da cavalaria e a partir do dia seguinte, com a ajuda de Deus, poderiam vingar as três cidades mártires.

— Senhor, chamam a atenção para um barco que se aproxima. Ryderc sobressaltou, tanto se tinha deixado levar pelos seus sonhos. Um sargento mantinha-se junto dele, com o rosto carmesim e respiração ofegante.

— Só um barco?

O mensageiro disse que sim com a cabeça, em silêncio.

— Então, o que me importa! Estamos à espera é de uma frota, percebes? Uma frota completa! Dez, vinte navios romanos, carregados de homens e cavalos! Que não me perturbem mais com tais...

Ryderc suspendeu a frase. O seu rosto crispado de cólera distendeu-se de repente e, apontando com o dedo para uma nuvem de pó ao longe, voltou-se para o pequeno grupo de dignitários que o acompanhava.

— Ei-los! — gritou. — Vejam! É a nossa cavalaria! Vá alguém ao seu encontro e que Sawel, Owen e Cadwallaun se juntem a nós aqui o mais depressa possível. Mandem avisar Urien de Rheged e os outros. Deliberaremos aqui mesmo. Quero que o exército avance antes do meio-dia!

O sol já ia alto, nessa ocasião. Comeram e beberam, sentados em círculo, em breve secundados por tudo o que o exército contava de príncipes e comandantes, reencontrando por momentos um bocadinho de esperança e alento. O tempo foi breve. Quando um grupo de guerreiros subiu na sua direção, carregando uma padiola onde jazia o príncipe Owen quase inconsciente, os seus risos esbateram-se e um silêncio de chumbo caiu sobre o promontório onde se encontravam reunidos.

O velho Urien chegou nesse mesmo instante. Com o rosto alterado, precipitou-se para o filho, pegou-lhe na mão e falou-lhe em voz baixa. Quando voltou para junto deles, teve de se apoiar no braço de um dos seus homens para não cair.

— Está vivo, mas perdeu muito sangue — murmurou.

— E os outros? — perguntou Ryderc rudemente. — Onde está Sawel? Onde está a cavalaria?

Urien dirigiu-lhe um olhar execrável.

— Não percebes? — resmoneou ele. — Sawel está morto! Tal como Cadwallaun! E todos os outros!

Com um impulso brusco, desembaraçou-se dos guardas que o seguravam.

— Estes homens são tudo o que resta da cavalaria! Eis aonde nos conduzem as tuas hesitações!

Ryderc empalideceu perante o insulto e recuou um passo.

— Ousas acusar-me de indolência?

— Sim, indolência! Cobardia! Ainda ontem, a cidade resistia. Os nossos cavaleiros esperavam por nós, Ryderc! Esperavam por nós e nós voltavamo-lhes as costas, por culpa tua!

— Culpa minha?

Ryderc tomou por testemunhas os outros, concentrados sombriamente atrás.

— Acaso dei ordem a Owen para atacar os Saxões? A velhice consumiu-te, Urien! Bem pelo contrário, eles tinham ordem para evitarem a todo o custo o confronto e esperar por nós. Por culpa do teu filho, eis-nos privados de cavalaria, incapazes de perseguir Ceawlin e derrotá-lo! Garanto-vos, o príncipe Owen terá de responder pela sua insubordinação!

Houve um momento de suspensão durante o qual tudo poderia ter acontecido. Os dois reis, frente a frente, tremiam de raiva e pareciam prestes a lançar-se um sobre o outro, ao murro ou à espada. O velho Urien de Rheged cedeu primeiro, vencido tanto pela vergonha como pela tristeza, e baixou a cabeça diante do rei soberano, portador do cordão de ouro de Artur.

— Se falas verdade, os exércitos das Planícies Cultivadas já não são dignos do teu comando — argumentou sem erguer os olhos para ele. — Mas se estiveres enganado, se se provar que Owen, Cadwallaun e o teu próprio barão, Sawel, não falharam, então serás tu que deixarás de ser digno de nos comandar.

Nesse preciso momento, o mensageiro que, pouco antes havia anunciado a aproximação de um barco, irrompeu no promontório à frente de um destacamento armado, escoltando aquilo que à primeira vista lhes pareceu um guardador de cabras, a julgá-lo pelas roupas enlameadas e pelo porte. Mas, por baixo do casaco de pele, o homem usava um hábito de burel, com uma cruz ao pescoço. O sargento, não ousando intervir, esperou o olhar do riothime. Assim que este olhou para ele, deu um passo em frente.

— Senhor, este homem traz notícias do senhor Daffyd.

— Finalmente! — gritou Ryderc, olhando para o homem do casaco de pele. — Eu conheço-te... Tu és o chefe da delegação de monges que o acompanhava.

— Senhor, sou o irmão Morien, prior do mosteiro de Cambuslang, em Clyde.

— É isso! Lembro-me de ti... E então? Onde estão as tropas de Daffyd?

O monge não respondeu logo e, ao ver a sua cara, todos compreenderam que era portador de más notícias. Estas, no entanto, eram piores do que aquilo que podiam imaginar e, quando acabou de relatar o seu longo périplo nas montanhas do País Branco, as emboscadas montadas pelas tropas do novo rei Rhun, a morte de Daffyd e dos seus, o saque da cidade de Dinorben e o incêndio dos barcos do senhor Elidir pelo bando de Gurgi, um silêncio assombrado abateu-se sobre a assembléia dos príncipes. Pálido como um cadáver,

Ryderc não conseguia tirar os seus olhos do prior, como se este pudesse ainda acrescentar algo para atenuar o horror da exposição. Mas o monge contentou-se em lançar-lhe aos pés o bornal de ouro que Daffyd lhe havia confiado. Esgotado pelas provas que tinha suportado, caiu de joelhos, vergou a nuca e pôs-se a chorar, sob o olhar consternado da assistência. Os soluços daquele homem robusto e duro teriam esmorecido os mais valentes, a tal ponto pareciam marcar o fim de toda a esperança, o fracasso completo da campanha.

Ryderc fechou os olhos. Primeiro Sawel, e agora Daffyd... Esmagado pela tristeza e o cansaço, teve de lutar para não se desfazer em choros, como o monge. Que lhe restava, numa altura em que os seus chefes militares o haviam deixado? A sua esposa, a rainha Languoreth, tinha-se retirado na fortaleza de Cadzow, com o seu recém-nascido. A irmã, Guendoloena, estava ainda mais longe, nas costas de Dal Riada. Até o bispo Kentigern lhe fazia falta. Já não havia à sua volta senão criados ou aliados de circunstância. Ninguém para partilhar o fardo daquele colar de ouro, tão pesado de suportar...

Consciente de ser o ponto de mira de todos os guerreiros e dos príncipes reunidos no promontório, esforçou-se por recuperar e não deixar que a sua confusão se sobrepusesse à razão.

Nem tudo estava perdido, longe disso! Mesmo amputado da melhor parte da sua cavalaria, privado de qualquer reforço, o exército dos Bretões continuava poderoso e podia com certeza continuar a avançar para ocidente à procura das tropas saxônias, mas o jovem rei sabia que tal sucessão de reveses já tinha semeado o joio da dúvida entre as suas tropas. Os clãs bretões haviam-se juntado apenas na perspectiva de uma cavalgada gloriosa e não para uma campanha longa e perigosa, com o risco de perder tudo. Perdoa-se tudo a um chefe, mas não uma má sorte tão manifesta.

Ao conduzir a hoste bretã tão longe para sul, ele tinha contado com um apoio, se bem que simbólico, do reino de Gwynedd. Sem no entanto comunicar o fato a Daffyd, não tinha descartado a possibilidade de uma recusa de apoio, mas a hostilidade declarada do jovem rei, um fantoche nas mãos de Gurgi que o odiava pessoalmente, abria um abismo debaixo dos seus pés. O exército tinha avançado demais. O seu próprio reino de Strathclyde estava doravante à mercê dos inimigos... Nem tudo estava perdido, mas a guerra não podia continuar por ali. Impunha-se regressar.

Sentindo o peso dos seus juízos mudos, o jovem rei retomou o seu próprio domínio e, a preço de um grande esforço sobre si próprio, enfrentou-os.

— Fomos traídos! — lançou ele com voz forte. — Ouviste-lo tal como eu: enquanto avançávamos contra o inimigo, o rei Rhun atacou-nos pelas costas. Por sua culpa não podemos perseguir Ceawlin e castigá-lo, pois seria arriscar que aqueles porcos de Gwynedd atacassem os nosso redutos ou, pior, se aliassem aos Saxões contra nós! Garanto que é preciso voltar a subir para norte, vingar a morte de Daffyd e de Elidir! Que os de Gwynedd paguem com o seu sangue esta perfídia!

Entre a assembléia dos reis e chefes alguns reagiram com aclamações. A maior parte, barões da Cúmbria e de Powys que, também eles sem dúvida, se sentiam muito longe das suas terras. Outros continuaram em silêncio ou baixaram os olhos para não cruzarem com o olhar dele. Quanto a Urien, mirou o riothime com um desdém mal disfarçado e destacou-se do grupo para avançar até ele.

— Tal como disse, Ryderc, um exército deve ser digno de ser comandado e um chefe deve mostrar-se digno do seu comando. Os Anglos de Nortúmbria e de Bernícia ameaçam as nossas fronteiras. É aí que vamos vencer a partir deste momento.

E, sem esperar pela resposta, empurrando o jovem rei à passagem, deixou o promontório, logo imitado pela maior parte dos que aí se reuniam.

Blaise acordou sobressaltado, com um grito de terror, enquanto ainda ressoava o estrondo do trovão que o tinha arrancado do sono. Com o coração aos saltos, encolheu-se na cama, no canto da cela que lhe tinham atribuído. O quarto minúsculo não era pior nem melhor do que o dos outros monges de Carohaise, exceto por se terem esquecido todo o mobiliário para além da cama e por a porta, desprovida de tranca, ser guardada por dois guardas. Estava tão escuro que ele achou primeiramente ter acordado no meio da noite e em seguida, um novo relâmpago, seguido do estrondo ensurdecedor de um trovão, precipitou-o para o respiradouro de grades que iluminava de cima, tenuamente, o seu reduto. Com uma tração, conseguiu elevar-se por alguns instantes, o suficiente para distinguir um pátio fustigado pela chuva e, para lá dele, as formas indistintas do mosteiro. Ainda era dia. Um dia de tempestade, triste e frio, sem vivalma pela rua.

Blaise deixou-se cair e examinou o quarto com um ar aborrecido. No chão de terra batida coberto de palha, tinham colocado uma bilha de água, bem como uma tigela cheia de legumes sobre a qual se precipitou, mas que não conseguiu identificar nem pela vista nem pelo gosto. Devorou-os avidamente, sem chegar a acalmar a fome, e depois voltou a enovelar-se num canto, cerrou os joelhos contra si e escondeu neles o rosto. Exatamente nesse instante, a porta rangeu. Teve apenas tempo de ver um homem armado, que lançou sobre ele um olhar indiferente e voltou logo a fechar a porta. Em seguida, ouviu algumas resmunguices, o bater das botas ferradas a afastar-se no corredor e, novamente o silêncio, quebrado apenas pelo bater da chuva lá fora. Com um gesto habitual, Blaise passou a mão pela cabeça. Nunca mais tinha tido oportunidade para se tonsurar havia já muito tempo e o cabelo a crescer arranhava sob a palma da mão, mais rijo do que nunca. Com certeza que tinha dormido mais do que julgava. Que mais fazer, agora que só lhe restava sofrer? A fadiga acumulada durante dias, a tensão do seu processo de excomunhão, o isolamento, o desespero... Tudo isso tinha acabado por vencê-lo. Seria o fim da caminhada? Aquela cela vazia, aquela penumbra lúgubre, aquele frio úmido? Seria aquilo a sua vida, doravante, longe da luz de Deus e do reconforto dos homens? Blaise estendeu as pernas na cama e viu como devia aparecer aos outros: sujo, descorado, cansado. O seu hábito de burel outrora preto estava cravejado de rasgões, bolorento e salpicado com restos vegetais. O confessor da rainha Aldan, sagaz e bem nutrido, tinha-se transformado naquele fantasma de si próprio, perdido aos olhos de Deus por ter seguido o rasto de Merlim até ao limite dos seus sonhos ímpios. Anátema, excomungado, era-lhe agora interdito administrar e até mesmo receber os sacramentos. No dia da sua morte, não poderia ter sepultura religiosa e, até lá, se ousasse entrar numa igreja para assistir à missa, o padre deveria interromper a celebração. O sino que tinham mandado tocar no final do seu julgamento continuava a ressoar lugubremente nos seus ouvidos, muito mais do que as maldições com que o tinham sobrecarregado. Um após outro, doze padres munidos de archote haviam lançado ao chão na sua frente as tochas, pisando-as com os pés, a seguir tinham deitado no chão a cruz, retirado todos os vasos e ornamentos do altar, antes de o escorraçar ignominiosamente dos lugares sagrados. Tinham-lhe retirado o crucifixo de madeira que usava ao pescoço, tal como o terço. A seguir, ele já não era nada.

Pouco importava o que iriam fazer, numa altura em que a sua vida tinha perdido o sentido. O ser por quem ele tinha perdido tudo, aquele falso messias no qual havia acreditado com toda a sua alma, tinha fugido abandonando-o. Sim, pouco importava agora o que iam decidir...

Ao declinar do dia, a porta abriu-se de novo, com a mesma chiadeira. Julgando que lhe vinham trazer comida, Blaise nem levantou a cabeça, mas uma mão vigorosa sacudiu-o pelo ombro e ele viu-se perante o bispo Samson. O prelado vinha vestido com uma simples túnica castanha com capucho e com uma capa clara sobre a qual se destacava uma cruz de madeira, semelhante àquela que lhe tinham tirado. Era um homem idoso, com uma coroa de cabelos grisalhos à volta das fontes, de rosto magro, profundamente enrugado, e olhos de um azul penetrante. Sorriu-lhe ligeiramente e afastou-se em seguida até à parede oposta, com um sinal de cabeça para um monge de túnica castanha, que entrou, voltou a fechar a porta da cela e se encostou a ela de braços cruzados.

— Este é o irmão Méen — disse o bispo com uma voz grave e doce. — Vem de ilha da Bretanha, como nós.

Blaise levantou-se e recuou até ao muro oposto, para o espaço estreito do seu reduto.

— Vieram anunciar a minha sentença?

— Em certo sentido, sim — disse Samson com um sorriso. — Sabes que dormiste quase quarenta horas seguidas? Perdoa-me por te ter acordado, mas tenho de partir antes do fim do dia e queria falar-te...

Pareceu por momentos aguardar uma resposta de Blaise, que não reagiu.

— Consegui que a tua excomunhão seja medicinal e não mortal — retomou. — De maneira que, se te emendares, poderá ser levantada a censura que recai sobre ti. Compreendes o que te digo?

Blaise levantou os olhos para ele e abanou a cabeça.

— Garanti que farias retiro e penitência num lugar isolado, longe dos homens e do mundo, até conseguires receber a absolvição e regressar ao seio da Igreja. É esta a razão porque o irmão Méen me acompanha aqui. Por minha recomendação, o sínodo dos bispos enviá-lo-á ao conde Waroc para negociar uma trégua e pôr fim à guerra que devasta Vannetais. Como, por outro lado, o senhor Cad-van pede insistentemente a instalação de um estabelecimento religioso no seu domínio de Guadel[47], um pequeno grupo de irmãos vai acompanhar-vos e fundar lá um mosteiro na desolação da floresta. Partirás com eles e vais obedecer em tudo às ordens de Méen, para salvação da tua alma. Caber-lhe-á julgar sobre a sinceridade do teu arrependimento. Aceitas segui-lo?

— Sim, senhor — murmurou Blaise. — Sim, de todo o coração...

— Obedecer-lhe-ás em firmeza, humildade, pobreza, caridade e castidade, segundo a regra?

— Sim, senhor, juro perante Deus.

— Já não podes jurar — interveio Méen.

Blaise voltou-se para ele com vivacidade, mas recompôs-se imediatamente e, enquanto procurava as palavras, o discípulo de Samson deixou a porta à qual se tinha encostado.

— Dá cá a mão — disse ele ao avançar um passo para o recluso. — Isso bastar-me-á...

Ao apertar aquela mão estendida, Blaise sentiu-se transtornado no mais íntimo de si próprio, ao ponto de desatar em choros.

— O meu mestre teve de comprometer-se pessoalmente para te evitar a excomunhão mortal — murmurou Méen. — Não o decepciones...

— A minha vida pertence-vos — articulou Blaise com dificuldade.

— A tua vida está nas mãos de Deus — retificou o bispo. — E agora, a salvação da tua alma já não depende senão de ti. Uma última coisa... Esse messias de que falaste, aquele que Cetomerinus toma por feiticeiro e que acusa de matar aquele sargento...

— Merlim, senhor.

— Sim, Merlim... O que é que te levou a acreditar que fosse um enviado de Deus?

Blaise empalideceu ainda mais.

— Senhor, eu estava cego, eu...

— Já foste julgado — interrompeu Samson. — Eu não pretendo confundir-te mais. Quero apenas saber.

Os olhos azuis do santo homem tinham-se fixado nele com tanta insistência e intensidade que Blaise aceitou o risco de confiar nele.

— Excelência, há naquele rapaz forças que só podem emanar de Deus. Na nossa terra dizem que é um filho do diabo, mas não acredito nisso. Segui-o até cá porque ele pretendia encontrar os seus na imensa floresta, num lugar a que dá pelo nome de Broceliande. Não sei ao certo qual é esse povo ao qual diz pertencer, nem sei sequer se são homens, demônios ou criaturas de Deus, mas por estas bandas, toda a gente parece acreditar na existência deles. Vi soldados aguerridos tremerem com a idéia de atravessar um pântano infestado, segundo ele, daquilo a que chamam duendes.

— Sim, duendes — murmurou Samson. — Os espíritos do bosque, os elfos... É verdade que por aqui toda a gente acredita neles. Até eu vi, nessas regiões, coisas de que não se fala nas Escrituras... Então achas que Merlim continua vivo?

Sem desviar o olhar, Blaise anuiu.

— Duvido que a floresta fosse capaz de matá-lo.

— Achas portanto que esses seres são criaturas de Deus?

— Senhor, o próprio diabo não é uma criatura de Deus? Não sei se rezam como nós, até mesmo se se aprecem conosco, mas se esses seres existem, por que motivo não lhes haveria de ter sido outorgada a graça de Deus, tal como a nós?

Compreendendo logo que tinha ido longe demais, Blaise não conseguiu suster um movimento medroso de recuo.

— Perdoai-me — resfolgou — caindo de joelhos diante do bispo.

— Levanta-te — disse Samson. — No sítio para onde vais, desejo que encontres as respostas que procuraras...

Lentamente, dirigiu-se para a porta da cela que Méen se apressou a abrir. Na soleira, voltou-se para Blaise e abençoou-o com o sinal da cruz.

— Rezarei para que as encontres, meu filho.

 

                                 Gwyáion

O murmúrio surdo da chuva foi acordando lentamente Merlim do seu longo sono. Abriu os olhos numa penumbra encarniçada, banhada de um inebriante cheiro a erva cortada e hortelã. Ao endireitar o tronco, verificou que estava nu, deitado sobre uma camada de musgo, ao pé da qual tinham sido cuidadosamente colocadas as suas roupas e as botas. De seguida, distinguiu à sua volta os contornos de um quarto em forma de sino, completamente coberto por uma paliçada de vimes e cujo chão parecia estar coberto com uma espessa camada de fetos. No centro, num fogão a carvão construído com grandes pedras brancas, um minúsculo braseiro propagava um listão de fumo perfumado. Alguns degraus de madeira conduziam a uma abertura dissimulada por um cortinado de couro, que o vento agitava suavemente. Não havia mais nenhuma abertura.

O rapaz levantou-se, muito nervoso, claro. Aquele simples movimento fez dançar na sua frente miríades de pontos brancos e colocou-o à beira do enjôo. Precisou de algum tempo para dissipar a vertigem que estava quase a deitá-lo ao chão e foi com passos ainda hesitantes que subiu alguns degraus até ao vão da portinhola. Ajoelhando-se no último degrau (porque a porta não tinha altura suficiente para passar de pé), afastou o cortinado e arriscou uma olhadela em redor. A primeira, viu apenas uma confusão de folhas mortas, ramagens, ervas daninhas e fetos encarniçados que formavam, mesmo à frente do seu buraco, uma espécie de canal com a altura de dois côvados apenas e nada mais largo. Além, via-se por debaixo da chuva o cenário acinzentado de uma floresta de carvalhos e faias. Reparando que não se tinha vestido, Merlim hesitou um pouco, mas a curiosidade foi mais forte e avançou, nu e rastejando como um verme, até à soleira daquela estranha toca. Ali, deitado sobre o chão encharcado pela chuva, perscrutou os arredores. Os arvoredos eram densos, embaraçados numa confusão de urzes, urtigas e silvados de onde se erguia um grande bosque de árvores veneráveis. E em tudo aquilo, nada. Nem a menor presença. Os elfos não andavam por ali.

Merlim sentia-se tão fraco e triste, no meio daquela desolação, que nem teve forças para dar meia volta na direção do abrigo. Durante um bom bocado ficou assim, prostrado e, depois, à força de perscrutar a vegetação rasteira, pareceu-lhe ver alguns buracos, idênticos àquele de onde havia saído. O aguaceiro confundia tudo, as matas, as rochas cobertas de musgo e os troncos consumidos por heras, numa confusão pardacenta, mas quanto mais fixava aquelas aberturas na vegetação, mais ficava com a impressão de distinguir fios de fumo a saírem da maior parte delas. Talvez houvesse ali outros abrigos subterrâneos.

Não obstante o frio e a chuva que o entorpeciam, o rapaz continuava ali, imóvel, com respiração ofegante, não se aventurando ir mais longe e incapaz de deixar o seu observatório para voltar ao seu refúgio, nem o tempo de se vestir, na esperança de ver alguém naquilo que podia ser uma aldeia subterrânea, sob o abrigo das brenhas. Durante muito tempo, consumiu os olhos a espreitar algum sinal de vida, em vão. Aqueles buracos que julgava ter visto não passavam de covis de texugos ou raposas e o fumo era apenas uma ilusão... Mas, se realmente se encontrava só, porque seria que os elfos o haviam transportado até ali, em vez de o abandonarem à sua sorte, na orla da floresta? Com a morte na mente, ele contemplava a lenta lamúria dos altos ramos maltratados pelo vento, majestosa e triste como a ressacas no areal, quando de repente uma visão furtiva o fez sobressaltar. Por um instante, um pé-de-vento mais forte tinha revolvido as folhagens, revelando um entrançado transparente de cipós estendidos entre as árvores e, teria ele jurado, uma silhueta feminina sentada no ponto mais baixo. Dez pés acima do solo, despida e lustrosa como uma espada, ela olhava-o, com a cabeça inclinada para o lado. Com o coração a palpitar, ele escrutou as folhagens sem voltar a vê-la, nem a ela nem fosse quem fosse. O vento tinha-se tornado suave e já não agitava os altos topos. Em breve, as grandes nuvens negras desapareceram — a uma velocidade aliás nada habitual — e a floresta reluzente começou a iluminar-se sob os raios de sol nascente. No mesmo instante, um clamor de vozes infantis saiu das folhagens seguido de apelos alegres e de risos. Merlim já nem respirava, nem fazia o menor movimento. E de súbito, como se tivessem repentinamente surgido da terra ou descido dos troncos, dezenas e dezenas de figuras resplandecentes apareceram entre as árvores.

O rapaz comprimiu-se sobre si próprio, instintivamente, antes de se aventurar a olhar de novo. Desta vez não estava a sonhar. Desta vez encontrava-se bem acordado e podia contemplá-los à sua vontade.

Os elfos.

Finalmente, os elfos!

Eram algumas dezenas. Homens, mulheres e crianças. Alguns estavam vestidos com túnicas furta-cores com reflexos castanho-esverdeado semelhantes às que os seus congêneres da floresta de Arderydd lhe tinham deixado, outros andavam nus, com os cabelos pretos a escorrer devido à chuva. Tinham a pele tão lívida que até parecia azulada, os corpos completamente sem pêlos, para além da sua longa cabeleira que alguns usavam entrançada. Eram franzinos sem serem magros, formosos sem sombra de dúvida e no entanto assustadores, mesmo aos olhos de Merlim que tanto se parecia com eles. Pelos gestos, pelo modo de andar, pelos olhares assemelhavam-se mais aos animais do que aos humanos. Roçavam-se continuamente ou tocavam-se com a ponta dos dedos como que para imprimirem uns nos outros a sua marca. Alguns evoluíam em grupos compactos, com movimentos aparentemente despidos de qualquer lógica. Dir-se-ia um vôo de estorninhos. Outros ficavam de parte, agachados por entre as urzes e as urtigas, completamente imóveis. O conjunto expandia uma sensação mista de poder e de medo, como aqueles rebanhos de veados que Merlim perseguira nas altas colinas de Cúmbria com Guendoleu e o velho Ceido, séculos atrás...

Os meninos, de repente, começaram a lançar gritos agudos apontando para o céu e todos se ajuntaram para contemplarem, com manifesta alegria, um espetáculo que Merlim não conseguia distinguir. Então, encheu-se de coragem e elevou-se acima da vala. Era apenas um arco-íris, mas os seus rostos estavam tão felizes, como se nunca tivessem visto nada mais lindo. A alegria deles era tal que ele avançou um pouco para também o contemplar. O que viu foi um par de botas atacadas, umas pernas cobertas com um tecido furta-cores, um grande manto e, em frente ao céu deslumbrante, um rosto inclinado sobre ele, coroado de cabelos brancos.

— Perguntava-me se alguma vez irias sair — disse com voz lenta e grave.

Logo de seguida, o rapaz atirou-se para trás com um grito assustado, bateu precipitadamente em retirada e desceu os degraus do seu abrigo subterrâneo. Era estupidez, com certeza, mas irreprimível, e só uma vez enterrado na sua cama de folhas, com o coração a bater e o corpo inflamado, é que ele tomou consciência do ridículo daquela fuga animal. Depois enquanto esperava ainda que se lhe acalmasse a respiração, deu-se conta que o ser dos cabelos brancos lhe havia falado na sua língua. Pela primeira vez, um elfo se dirigia a ele sem empregar aquela língua estranha, incompreensível, da qual se tinham servido em todos os seus encontros. Merlim vestiu-se rapidamente e procurou sair o mais composto possível.

O elfo não se tinha mexido. Sentado sobre um cepo, fumava um cachimbo de terra cota, de braços cruzados, observando-o sem dizer palavra, enquanto o jovem bardo saía do seu refúgio. Quando se levantou para se pôr à sua frente, o rapaz reparou com espanto que os outros se tinham esquivado, tão apressada e silenciosamente como tinham aparecido.

— Não tenhas medo.

— Não tenho medo — disse Merlim, com menos convicção do que tinha desejado.

Ao descobrir o rosto do seu interlocutor, o rapaz estremeceu. Foi como se se visse a envelhecer ao espelho. Os mesmos cabelos brancos, longos e inflexíveis. A mesma túnica furta-cores. Os mesmos olhos irônicos, os mesmos traços fisionômicos, quase femininos, a mesma palidez. Só as inumeráveis rugas do seu rosto os diferenciavam. O sorriso que Merlim se esforçava por exibir tinha mudado para uma pobre contração de boca que contradizia o seu olhar perturbado. Com a garganta presa, não conseguia emitir um som, enquanto o seu primeiro assombro pouco a pouco cedia lugar a uma viva emoção. Poder-se-ia explicar tal parecença de outra forma que não fosse através dos laços de sangue? Seria aquele que tanto havia procurado? Seria o seu pai?

O velho elfo inclinou-se para o rapaz, pegou-lhe nas mãos e puxou-o contra si.

— Eu não sou Morvryn — como se tivesse ouvido os seus pensamentos. — O teu pai morreu já lá vão muitas luas. Eu chamo-me Gwydion e sou o mais velho da floresta, o guardião desta parte dos arvoredos a que chamam Cul Dará, «o eremitério dos carvalhos», no país de Eliande...

— O meu pai morreu? — repetiu Merlim deglutindo com dificuldade.

— Ele saiu da floresta — murmurou Gwydion.

Um véu de tristeza passou-lhe pelo rosto, mas logo se recompôs e apertou calorosamente as mãos do rapaz, que lhe respondeu com um sorriso indigente.

— Então, tudo o que fiz não terá servido de nada — disse. — Nunca virei mesmo a saber com quem se parecia...

— Olha para mim... Ele tinha o cabelo preto e não era enrugado como uma carcaça velha, mas parecia-se comigo, tal como tu. Morvryn era teu pai, Morvryn era meu filho.

Merlim tremia da cabeça aos pés. Com certeza que teria caído se Gwydion não lhe tivesse segurado as mãos. Suavemente, este apertou o rapaz contra si e dissimulou os soluços no tecido do manto.

— Leofian mid beorn lyft leoa, Lailoken — disse-lhe baixinho ao ouvido. — Voltas finalmente para junto dos teus...

Com o tempo, a via romana que ligava Rennes a Carohaise já não era senão uma sombra de si própria. Por falta de manutenção, o lajedo tinha-se despedaçado em alguns sítios e as ervas daninhas tinham descaracterizado o empedramento, quando o mesmo não tinha sido levado pelos aldeões das redondezas para construir os muretes que delimitavam as cercas dos animais. O ruído das enormes rodas de madeira forradas de ferro dos dois carros de bois que constituíam o acompanhamento de Méen era tal e os solavancos tão sentidos que os monges iam a pé, atrás dos atrelados da sua magra escolta armada. Méen e Blaise caminhavam lado a lado, afastados dos outros, conversando no dialeto Gwent, que os Bretões continentais mal compreendiam. Com o passar das horas, a sua mútua desconfiança tinha-se desfeito, primeiro graças ao cuidado de ambos em evitarem assuntos delicados, depois porque descobriram que haviam passado a infância a algumas milhas de distância, nas costas do país de Gales. Com aquele andamento, seria uma viagem de dez dias, no mínimo, até Guadel, onde iam encontrar o senhor Cadvan, e depois até Plebs Arthmael[48], que se dizia em poder do conde Waroc e dos seus cavaleiros. Dez dias pela floresta, ao longo daquela via intransitável, junto da qual já não subsistiam senão algumas aldeolas famélicas. Já tinham coberto mais de quinze léguas desde a partida de Carohaise, na antevéspera, e faltavam outros três tantos, sob uma floresta cada vez mais densa.

Quando atravessaram um curso de água, a oriente de Locduiac[49], e enquanto os dois homens esperavam na outra margem que os carros ferrados atravessassem o vau, o silêncio caiu sobre os dois. Durou apenas alguns momentos, durante os quais não houve nem mais um canto de ave, nem mais um movimento na floresta. Os soldados e os fradinhos obstinados a aguilhoar os bois, a forçar a passagem das rodas ou a empurrar as carroças, faziam demasiado barulho para se terem dado conta daquele mutismo repentino da natureza, mas ambos trocaram um olhar alarmado e depois um suspiro de alívio, quando a vida regressou aos arvoredos.

— O que achas que era? — murmurou Méen enquanto perscrutava a cortina das árvores. — Um lobo?

— Não sei — respondeu Blaise. — Já senti esta sensação, em Yeun Elez... Mas talvez tenha sido um lobo.

Mais tarde, quando o comboio retomava a sua marcha bamboleante e os monges se tinham afastado, destacaram-se duas figuras das folhagens com as quais se haviam confundindo, cobertas com o seu manto furta-cores. Com um só movimento, os elfos atiraram com o capucho que lhes cobria os cabelos pretos e depois puseram o arco a tiracolo. Sem uma palavra, um deles tirou da sacola uma pequena acha de madeira sobre a qual gravou com a ponta do punhal algumas runas ogâmicas — uma sucessão de incisões direitas ou inclinadas, em séries de um a quatro — enquanto o outro desaparecia nos matagais, de onde regressou segurando suavemente contra si um falcão-francelho com plumagem branca e ruiva, salpicado de preto. Os elfos fixaram cuidadosamente a mensagem à pata da ave e soltaram-na. Por momentos seguiram o seu rápido vôo, depois introduziram-se por debaixo da cúpula das árvores.

 

Era lua cheia. Não havia um sopro de vento e a floresta embebia-se do roçar das folhas mortas e os estalidos dos ramos, como se um exército inteiro se deslocasse por baixo da vegetação. Merlim tinha-se sentado à entrada do abrigo, à espera do menor movimento na penumbra prateada da noite. Os seus olhos de gato, sempre lhe permitiram atravessar as trevas, mas não via nada. No máximo conseguia por vezes sentir um estremecimento entre as árvores, a sombra de uma passagem, a oscilação de um ramo. Os elfos encontravam-se ali, à sua volta, invisíveis e todavia presentes. Achando que, talvez tivessem medo dele, o rapaz tinha resolvido mostrar-se sem se mexer, até que um dele ousasse aproximar-se dele ou até que Gwydion regressasse.

Não se recordava da sua partida, nem do fim da conversa. Mais uma vez, acordara na sua cubata subterrânea, deitado na sua cama de fetos. Alguém tinha deixado junto ao fogão de lenha uma cabaça de pele cheia de água fresca, algumas maçãs e uma tigela de terracota cheia de uma sêmola indefinível que ele provou, primeiro com a ponta dos lábios, antes de a comer com grande apetite e que de tal maneira que não conseguiu devorar mais do que metade. Sem dúvida que esse alguém era o próprio Gwydion, o seu avô... na obscuridade fremente, o rapaz à escuta repetia as poucas palavras que tinham trocado, tão inesperadas, tão sedutoras. Tanto caminho percorrido para acabar ali, naquela floresta atulhada de espinheiros e fetos tão densos que mal conseguiria abrir um caminho, por entre aquele povo evanescente; tanto caminho para tomar conhecimento da morte do seu pai, para não encontrar senão um avô no mesmo instante desaparecido! Merlim tinha vivido sempre só, rejeitado pelas outras crianças e pelos homens, afastado pela própria mãe. E eis que também os elfos o evitavam, como um estranho talvez digno da sua atenção, mas não da sua amizade. Para eles, ele tinha deixado ou perdido os únicos seres aos quais estava verdadeiramente ligado. Blaise, abandonado na estrada, sem um único adeus. Guendoleu, que tinha morrido nos seus braços, confiando-lhe o seu colar de comando, que Merlim não soubera conservar. Guendoloena, finalmente, e aquele filho nascido longe dele, que provavelmente nunca veria... E que dizer de Bradwen, morto pelos elfos na orla da floresta? Era para isso que os havia sacrificado, por aquela floresta cheia de silvados, por aquela desesperante solidão?

— «Regressas para junto dos teus» — murmurou entre dentes. — E onde é que estão os meus?

De um salto, movido por um acesso de revolta, levantou-se e começou a gritar a plenos pulmões.

— Mostrem-se! Pelas vossas Mães, mostrem-se ou desapareçam da minha vida!

A vegetação pareceu petrificar-se. Nem mais um som na noite, nem mais um estalido. Ele ouviu, ao longe, o apelo sinistro de um corvo, um bater de asas.

— A cólera ainda permanece dentro de ti. — declarou junto dele a voz grave de Gwydion.— O medo e o desgosto da morte... É por isso que não ousam aproximar-se de ti.

— Voltaste?

— Nunca te deixei, pequeno rebento... Só não me viste. O velho elfo indicou a floresta com o queixo.

— Nem a eles, também não os vês. No entanto, estão lá... É porque os olhas ainda com os olhos de homem.

Gwydion deu uma risota divertida.

— Ainda que um homem não tivesse visto mesmo nada... Tu tens muitas coisas a aprender e muitas coisas a esquecer, mas tu és realmente um dos nossos... Sabes como te chamam?

Merlim começou por abanar a cabeça, depois lembrou-se daquela palavra, tantas vezes repetida na boca dos elfos, quando se dirigiam a ele. Aquela palavra que até o seu avô tinha utilizado algumas horas antes...

— Laüoken — murmurou.

— Sim, Lailoken. Significa... qualquer coisa como amigo, amigo íntimo ou parente... É a palavra que os clãs utilizam entre si.

— Então existem vários clãs?

Gwydion estendeu a mão, fazendo-lhe sinal para sentar-se a seu lado, e com aquele simples gesto, o primeiro desde que lhe tinha falado, Merlim deu-se conta que, o que inicialmente havia tomado como sendo a silhueta do velho elfo, não devia passar de um cepo. Não obstante a luz da lua, o seu avô no seu manto furta-cores confundia-se a tal ponto com as silvas que ele não o tinha visto, a menos de três passos... Sobre o seu punho descoberto permanecia um falcão-francelho de pequeno porte cuja plumagem branca e ruça salpicada de manchas escuras luzia como um halo espectral. Gwydion acabou de fixar-lhe à pata uma pequena tabuinha de madeira, em seguida segurou o rapaz pelo ombro e sentou-se junto dele.

— Sim, existem muitos clãs — respondeu ele com a sua voz grave. — Aqueles a quem os homens chamam elfos chamam-se Dain, ou então Lyft leoa, «o povo do ar». Os do Norte, na ilha da Bretanha, Sleah maith, «as boas pessoas»... Os dos pântanos, que as pessoas aqui tomam por duendes ou diabos, são apelidados de Genip firas, mas não lhe dês este nome se algum dia os vires...

— Genip firas... Por que, avô? É algum insulto?

— Não, não — disse Gwydion a rir. — Nada mais que um apelido... Significa... digamos: «os que vivem no escuro». Mas eles próprios chamam-se «povo músico». Tudo isso porque talham flautas nos caniços! Quando as tocam, dir-se-iam corujas que se estrangulam, se queres o meu parecer...

— Eu ouviu-os! — exclamou Merlim (e o seu clamor fez fugir o falcão, que desapareceu na escuridão). — Foi no pântano, sim, na noite em que...

O rapaz interrompeu-se, sorriu e encolheu os ombros.

— ...É uma longa história — murmurou.

— Tanto melhor. Gosto das longas histórias e temia que não me contasses a tua.

Então Merlim falou, durante toda a noite até aos primeiros raios da aurora. Quando chegou à turfeira de Yeun Elez e à música da flauta que tanto os tinha alarmado, Gwydion abanou tristemente a cabeça.

— Nunca é bom sinal quando homens ouvem aquela flauta. A esta hora os teus companheiros devem estar a apodrecer no fundo do pântano. Aquele monge, Blaise, era teu amigo, não era?

— Sim...

— Antes, quando eu era ainda um rebentinho, como tu, os homens acreditavam nas árvores, nas pedras, nas fontes... Não como nós, porque não lhes sabiam falar, não sabiam ler a floresta e porque sempre mataram os animais, em vez de os compreenderem, mas ao menos que sentissem a força da vida. Desde que há monges, crêem apenas no seu Deus único, que os trata como escravos e os persuade de que devem dominar a natureza. E todos os dias abatem árvores, mais e mais...

— Aquele não era assim — disse Merlim. — Também existem homens bons, tu sabes.

— Sim, com certeza.

— E monges, também...

Gwydion olhou-o a sorrir, em seguida pôs-se em pé e retirou-se, com um longo suspiro. A noite tinha passado depressa. A aurora tingia já de rosa as brumas do amanhecer e fazia nascer os primeiros cantos das aves.

— Vem comigo — murmurou.

— Para onde vamos, avô?

— Para o coração da floresta, rebentinho. Para o sítio onde nós vivemos.

— Mas eu julgava...

Gwydion já tinha partido na direção do sol nascente, sem um barulho, e Merlim teve de correr para apanhá-lo.

— Todas as criaturas são boas e más — retomou o velho elfo quando ele o alcançou. — Um lobo pode ser bom para os filhos e cruel para os outros habitantes da floresta. Certos homens não são bons senão para si próprios, outros dedicam-se aos seus, o que no entanto não os torna nossos amigos...

— Foi por isso que mataram Bradwen?

Gwydion parou e fixou-o com um ar de manifesta incompreensão que, à primeira vista, perturbou o rapaz antes de voltar novamente a cair em si.

— É graças a ele que estou aqui — retomou com um ar contrariado. — Correu riscos para me salvar. Tudo o que queria era atravessar a floresta para se juntar aos seus e mataram-no.

O elfo anuiu em silêncio, em seguida franziu as sobrancelhas amuado.

— Merlim, todas as criaturas são boas e más. Isto vale também para o povo do ar. Os homens têm razão para temer-nos. Doravante o país de Eliande fica-lhes interdito. Desgraçados daqueles que o ignorarem...

Recomeçou a andar, com aquele passo indolente que, ainda assim, obrigava Merlim a trotar para se manter a seu lado.

— A minha mãe veio refugiar-se nestes bosques — continuou. — Vocês não a mataram.

— É verdade — admitiu Gwydion novamente a sorrir. — De outro modo não estarias aqui, não é?

Ele começou a rir, passou um braço à volta do rapaz e retomou a caminhada por entre as árvores.

— Era outra época — murmurou. — Daí para cá, muitas coisas mudaram. Sabes que foi ela que me ensinou a língua dos homens?

— Vais ensinar-me a língua dos elfos?

— Tu já a conheces, rebentinho. Se não fosse o caso, nem a ouvirias. Esqueceste-a, mas ela está em ti... Não te inquietes, vais compreender estas coisas quando tivermos chegado ao coração da floresta.

— Fala-me deles — pediu Merlim.

— Dos elfos?

— Não... da minha mãe, quando ela andava por cá. De Morvryn...

O primogênito da floresta libertou um grande suspiro. Era uma história triste, que os elfos se esforçavam por esquecer. A história de tempos perturbados, cheia de violência e confusão. Mas o rapaz tinha o direito de saber.

O ancião falou assim:

— «Além dos mares, os homens andavam em guerra e matavam-se em massa. Todos os dias, dezenas deles cruzavam as águas para se refugiarem aqui e todas as noites dezenas dos nossos faziam o mesmo, fugindo também às lutas que assolavam as florestas e as terras. No início, os homens ficavam nas costas, nas charnecas ou nas antigas cidades construídas pelas legiões de Roma. Alguns deles foram tratados por elfos e, se por vezes houve dramas, feridos ou mortos de parte a parte, também houve encontros. Conheci um, um homenzinho chamado Gwyon. Os elfos escutavam as suas histórias dias inteiros e ensinavam-lhe os nossos cânticos. Chamávamos-lhe Tal Iesin, “o testa resplandecente”...

«Depois houve uma derrota ou um massacre qualquer, mais terrível que as precedentes e uma multidão enorme de Bretões desembarcou nas costas, com monges a acompanhá-los e a guerra com eles. Houve lutas e crimes, aldeias incendiadas, mulheres e crianças lançadas aos rios, príncipes degolados na própria cama, um mar de ódio, durante meses... Entre essas pessoas, havia um chefe chamado Artur Uter Pendragon, “o urso com a terrível insígnia do dragão”, e a sua jovem esposa, Aldan. Parece que fugiam de um rei chamado Vortigern. Encontraram refúgio junto do conde de da Cornualha, o Bretão Budic Mur. A rainha permaneceu ali, na cidade de Kemper, e ele voltou a partir para fazer a guerra além-mar. Depois morreu Budic, e um bispo despadrado, Macliau, apropriou-se das suas terras. A rainha fugiu, perseguida pelas tropas de Macliau. Foi assim que ela entrou na floresta, eles atrás. Era um período horrível. Os nossos eram dizimados, escorraçados das suas terras por toda a parte onde os Bretões se instalassem, traspassados de flechas, queimados nos seus bosques. Era preciso lutar e matar sem piedade todos aqueles que penetrassem em terras de Eliande. Felizmente, muitos deles matavam-se entre si... O teu pai, Morvryn, perseguiu com os seus, todos os que se tinham aventurado por debaixo das árvores, mas não conseguiu resolver-se a matar Aldan. Também eu, andava na guerra contra os Francos, contra os Bretões, contra os monges e, quando voltei, disseram-me que ele tinha abandonado os seus e que se tinha escondido com ela, havia tempo, mas eu não sabia onde. Os elfos viam-na por vezes e chamavam-lhe Gwenwiffar, “o fantasma branco”... A seguir esse Artur voltou à sua procura e ela foi-se embora. Mais tarde, soubemos que ela te tinha trazido ao mundo. Morvryn... Morvryn quis encontrar-te e deixou o refúgio das árvores. Nunca mais voltamos a vê-lo.»

O sol, já alto, secava os silvados cobertos de orvalho. A vegetação exalava odores a húmus e erva fresca, ao longo de uma vereda espessa que parecia abrir-se literalmente sob as pisadas do velho elfo. Merlim, com a respiração apressada e o rosto em suor, sentia dificuldade em segui-lo. Com os olhos fixos no chão para não tropeçar em alguma raiz ou pedra, tinha-se agarrado à túnica furta-cores do avô, como atraído pelas suas pegadas. Quando atingiram o cimo de uma pequena colina coberta de macieiras bravas e pararam para que ele pudesse descansar e comer alguns frutos, o rapaz deu um salto repentino.

— Além! — gritou ele, com o dedo estendido na direção dos troncos lisos e direitos de um faial. — Viste-a?

— O quê?

— Acolá, entre as árvores!

Merlim desviou o olhar só por um instante para alertar o avô. Quando voltou a olhar novamente na direção das faias, direitas e altas como pilares de um templo, já não havia nada.

— Então? — fez Gwydion.

— Estava ali... Estava ali alguém. Acho que uma rapariga. Já a vi antes. Estava... Quero dizer, não tinha roupa... Acho eu.

O velho elfo começou a rir e abanou a cabeça. Escolheu duas maçãs das que havia colhido, esfregou-as na manga e atirou uma ao neto.

— Sabes, raramente vi animais vestidos.

— Não era um animal, avô! Era uma elfa!

— Sim, era isso que eu queria dizer...

Levantou-se, deu-lhe uma palmadinha afetuosa nas costas e, com um sinal de cabeça dirigido a Merlim, retomou a marcha.

— Não te rales, hás-de voltar a vê-la... Aquela menina curiosa segue-nos desde o início. Dela, o contrário é que me teria espantado.

— Conhece-a?

— Oh sim... É Gwendyd! Significa «jornada clara»... E é tua irmã.

 

                               A Irmandade das Bandrui

Desde manhã que não tinha parado de chover. Uma chuva abundante, caindo a prumo sem um sopro de vento para enfunar as velas destemperadas dos barcos de pesca. Cylid tivera de se afastar da costa a remos e aquele simples esforço havia-o esgotado. A tiritar, encharcado até aos ossos pela chuva, tinha amarrado rapidamente a rede antes de a lançar ao mar e de se refugiar sob o toldo oleado estendido de uma ponta à outra da embarcação, à laia de abrigo. E aí, tinha-se posto a beber, como todos os dias, primeiro para aquecer o corpo, depois para aquecer a alma. A sua aldeia, na embocadura do Clyde, ficava em frente às sombrias colinas ocupadas pelos Escotas, na costa setentrional. Fora lá, a menos de cinco léguas, em linha reta, da cidadela real de Dunadd, que ele fora preso, dez ou quinze anos antes, e reduzido à escravatura. E para lá voltou, julgando poder encontrar a sua vida passada.

Mas, em dez ou quinze anos, as coisas mudam. A sua mulher havia-o julgado morto e tinha voltado a casar-se. O seu filho era um homem, também ele casado e rodeado por um rancho de criançada da qual nem tinha fixado os nomes. Ele tinha-lhe dado abrigo, segundo o direito de sangue, mesmo reconhecendo mal aquele pai, desaparecido no mar na sua tenra infância, aquele velhote alquebrado, incapaz sequer de içar sozinho o seu barco sobre os calhaus redondos da praia. Um estranho. Um incômodo. Eis em que se havia tornado... Passado pouco tempo, Cylid já tinha deixado a habitação do filho. Foi só o tempo de mandar construir uma casa, feita pelo carpinteiro da aldeia, com o pecúlio que lhe tinha confiado a rainha.

Ele sabia que murmuravam nas suas costas, a respeito daquele dinheiro assim como de tudo o resto. No burgo, ninguém tinha acreditado na sua história. Nem a sua própria esposa, Leri, presa nos braços daquele Edern Mor Feusag, tão famoso pela sua longa barba negra, pela sua grande barriga e pelo seu barco de dois mastros. Ela mal tinha olhado para ele, enquanto relatava, perante a aldeia reunida na grande cabana que servia de sala comum, a sua captura, os seus longos anos de servidão a Dunadd, a chegada do rei Ryderc e o casamento da sua irmã, a princesa Guendoloena. Leri tinha envelhecido, claro. A sua pele tinha-se causticado e enrugado com o passar dos anos, os cabelos tinham-se tornado brancos, mas ele achou-a linda, tal como nas suas recordações. Ela mal tinha olhado para ele.

Um incômodo. Um estranho...

Mais tarde, voltando a pensar naquilo, Cylid lembrou-se de Edern no tempo em que ainda era um jovem gordo a ajudar o pai na oficina de ferrador. Já a traria debaixo de olho nessa altura? Tê-lo-ia ela enganado, quando ia para o mar? Edern tinha-se tornado um homem influente, suficientemente rico — tanto quanto se podia sê-lo naquela miserável aldeola de pescadores — para manter uma família e garantir o apoio dos Anciãos. Nenhum deles lhe tinha dado razão quando, no final do seu discurso, tinha pedido que lhe restituíssem a mulher, a casa e alguns bens. Foi apenas por lhe terem concedido aquele velho barco e uma rede, que ele não morreu de fome sob os seus olhos.

Na esperança que lhe fizessem justiça, Cylid tinha feito o caminho até à aldeia vizinha, onde os monges e o bispo Kentigern tinham construído uma igreja em pedra. Mas o seu casamento com Leri não tinha sido consagrado — naquela altura, os monges ainda não tinham chegado ali — e assim não contava perante eles, e pior ainda, um padre tinha abençoado a união da sua esposa com Edern. Ia ter talvez de ir até Dun Breatann, pedir uma audiência ao rei, e dar-se a conhecer. Bastaria uma só palavra de Ryderc para que tudo voltasse para ele: a mulher, os bens, a vida... Mas não era a ele que a rainha Guendoloena o tinha enviado. E, além de ter faltado à palavra, além de se ter fixado àquele bocado de costa durante semanas, em vez de obedecer às ordens da sua senhora, o pouco de honra que lhe restava proibia-o de voltar a traí-la, indo ter com o rei, seu irmão. A menos que fosse o medo de ter de confessar a sua falta.

De repente, uma mudança brusca do vento fez bater o toldo oleado estendido um pouco acima dele, arrancando-o àquele seu mórbido torpor. Algumas marulhadas começavam a balouçar a embarcação. Cylid sentiu-a garrar rangendo. A custo, extirpou-se do seu abrigo e elevou os olhos para o céu pardacento, carregado de nuvens acarneiradas. Anunciava-se uma brisa. Havia que recolher a rede, dar à vela. Custosamente, dirigiu-se até ao filerete, mergulhou a mão na água e salpicou o rosto, em seguida endireitou a sua velha carcaça tolhida de reumático com uma gemido de dor. Com um pé contra a precinta, içou para bordo a rede. A pesca era boa. Uma dezena de peixes prateados remexiam-se entre as malhas, no fundo do barco.

Esgotado com aquele simples esforço, o velho pescador sentou-se no banco de remadura e olhou para a fita presa na ponta do mastro. O vento soprava de terra, na direção do canal, para o largo. Com a ponta da bota, levantou a tampa da caixa de bordo. Havia água, suficiente para um dia ou dois, uma manta e um barrete de lã.

Tantas partidas. Abandonar a aldeia, desta vez a sério. Dar à vela para Dyfed, procurar encontrar o príncipe Emrys Myrddin. Ao menos ser digno da palavra dada à rainha, já que tudo o resto estava perdido.

Foi assim que Cylid partiu finalmente em busca do rapaz. Demasiado tarde.

Merlim tinha perdido a noção do tempo. Os dias passavam tão depressa dentro da floresta que ele não conseguia fixar-lhes a conta. O avô e ele, tanto andavam de dia como de noite, dormiam de dia como de noite, falavam durante horas ou não diziam uma palavra, enchiam os odres nos riachos, caçavam quando lhes dava fome. O rapaz julgava conhecer a floresta, mas o velho elfo parecia ter como ponto de honra fazê-lo descobrir e saborear tudo o que se podia comer sob a copa das árvores. Alimentaram-se de tenras folhas de fetos com gosto a espargo, de barba-de-bode ou de trevo, de avelãs e amoras, de coelhos ou de ouriços-cacheiros, que Gwydion lhe ensinou a cozer nas brasas, envoltos em argila (quando a terra ficava dura bastava parti-la para libertá-los da pele e dos espinhos). Mostrou-lhe como colher o orvalho da manhã, como reconhecer os cogumelos e as bagas comestíveis, como fazer fogo com uma broca, erva seca e alguns cavacos de casca de bétula, como se proteger dos lobos e das víboras durante o sono.

Atravessaram outras aldeias élficas, dormiram por vezes em cabanas de ramagens empoleiradas no alto das árvores, por vezes em abrigos dispostos sob as moitas ou em tocas em forma de sino, como aquela onde tinha acordado. Nenhuma daquelas aldeias se parecia com os burgos edificados pelos homens porque nada, à primeira vista, as distinguia da vegetação envolvente. Uma confusão de matagais, um valezinho coberto por altos fetos, um entrelaçado de ramos debaixo das folhagens, eram assim as suas cidades. Não se via ali ninguém até aparecerem os elfos, ao chamamento de Gwydion. Então, surgiam de todo o lado, silenciosos como corças, vinham tocá-los a rir, acariciavam os longos cabelos brancos do rapaz como se nunca tivessem visto nada mais lindo e levavam-nos para as suas estranhas habitações. Fascinado, Merlim ouvia-os falar na sua linguagem cantante, brincava com os miudinhos completamente nus, mas que se riam às gargalhadas por tudo e por nada, devorava com os olhos as jovens elfas de longas e elegantes pernas, impudicas e insubmissas, que não paravam de se roçar por ele. Por vezes, alguma delas até se introduzia na sua cama e se enlaçava a ele. Quando retomavam o caminho, pela manhã, elas tinham invariavelmente desaparecido, mas acompanhava-o sempre a lembrança dos seus abraços e o aroma da erva fresca.

Voltaram a ver Gwendyd por várias vezes. Bastava apenas que Gwydion a chamasse — e com mais razão Merlim — para que ela desaparecesse logo.

No entanto, a maior parte das vezes, encontravam-se sós ao longo do caminho que o ancião da floresta traçava sem hesitar, por entre os matagais e arvoredos. Merlim seguia-o sem questionar. Pela parte dele, aquela peregrinação bem podia continuar sempre. No meio da floresta, parecia não haver perigos, pensamentos sombrios, demônios nem defuntos para virem assediá-lo. Ali, já não era o príncipe Emrys Myrddin, nem o bardo Merlim e menos ainda um necromante. Era um rapaz seguindo as pisadas do avô e encantando-se com tudo. O seu passo tornara-se seguro, depois de algumas léguas, e agora podia deixar o seu espírito vagabundear ou alimentar-se à vontade com o espetáculo daquela floresta selvagem, pura, sem correr o risco de tropeçar a cada instante. Acontecia-lhe pensar em Blaise, em Guendoloena ou no seu filho. Recordava-os com uma infinita tristeza, não tanto porque sentisse saudades, mas porque tinham ficado naquele mundo tristonho, longe do sossego das árvores, e ele não conseguia dar-lhes a conhecer aquela inocente felicidade.

Repentinamente, num dia de morrinha com um céu encoberto e fosco, Gwydion parou.

— É ali — disse. — Tens de continuar só...

O rapaz olhou à volta. Acabavam de sair dos arvoredos e desciam a encosta suave de um valezinho coberto com ervas altas, no meio do qual se erguia uma pequena mata e onde corria um riacho. Nada mais.

Ele ia interpelar o avô, mas um simples olhar deste apagou o sorriso zombeteiro dos lábios de Merlim.

— Esperas por mim?

— Não. Não te rales: quando saíres de lá, saberás onde encontrar-me. Vai lá, elas estão à tua espera.

— Elas? «Elas» quem?

— A irmandade do Sid. As sete Bandrui, guardiãs do bosque sagrado.

— Não percebo avô...

— Eu sei.

O velho elfo meneou a cabeça, recuou um passo, sem deixar de o fixar gravemente. Em seguida, deu meia volta e foi-se embora sem mais uma palavra.

Merlim seguiu-o com o olhar até que se apagou por entre o chuvisco. De um só lance, sentia-se como tirado das ilusões, regressado abruptamente aos medos e à solidão. Não ousava avançar. Começou por observar todos os bocados da orla coberta de tojo que circundava o valezinho. A chuva miudinha deixava-o meio cego, mas ele sabia que não havia ninguém, nem elfos, nem animais. Apenas o silêncio das árvores.

Além, para oriente, distinguia-se, o encrespamento das altas frondescências, por detrás do cortinado da chuva. A floresta estendia-se infinita, para onde quer que se voltasse o olhar. Ali encontrava-se o verdadeiro fim da sua longa viagem. O «coração da floresta», como lhe havia chamado Gwydion, era aquela imensa clareira, cercada de todos os lados por um oceano de árvores.

Completando a sua volta ao horizonte, o rapaz baixou os olhos para a pequena mata, ali mais ao pé. O que poderia ter de sagrado? Não passava de um bosquezinho, mesmo que, observando bem, parecessem diferentes, umas das outras todas as árvores que o compunham. Então, aproximou-se, devagar. Gwydion não tinha falado em sete guardiãs? Dominando todas as outras havia ali sete árvores, em círculo, pertencentes a sete espécies diferentes: um amieiro, um carvalho, um azevinho, um salgueiro, uma macieira carregada de maçãs, uma aveleira e uma bétula, alta e clara. No centro jorrava uma fonte, formando um pequeno riacho que corria pelo valezinho.

A partir do momento em que o seu olhar assentou sobre aquelas águas, Merlim sentiu uma sede intensa e um irresistível desejo de nelas se banhar. Não, mais do que um desejo, uma carência, uma necessidade vital, mais forte do que o seu medo. Foi aquela sede que o fez avançar na direção do bosquezinho. Até o alcançar, até pousar a mão sobre a casca rugosa do carvalho, não viu ninguém, o que o assustou e tranqüilizou ao mesmo tempo.

Mas tocou o tronco e elas apareceram ali.

Sete mulheres idosas, fadas ou feiticeiras, envoltas em longas túnicas pretas sobre as quais escorriam os seus cabelos grisalhos. Surpreendido pela aparição súbita da guardiã do carvalho, mesmo a seu lado, Merlim afastou-se prontamente e, sem sequer se ter dado conta, tinha entrado para o centro do círculo. Ali, não chovia. Não estava frio. Uma luz suave iluminava uma pulverização de pólen que se lhe agarrou logo à pele e às roupas molhadas pela chuva. As sete mulheres aproximaram-se, todas tão diferentes como as sete árvores donde emanavam, mas igualmente assustadoras pelo seu mutismo e lentidão de movimentos. Suavemente, despiram-no por completo e a seguir uma delas, pálida, delgada e alta, tomou-o pela mão e levou-o para a bétula, contra a qual o encostou. Da manga da sua veste negra, tirou uma pequena taça de barro, cheia de uma tinta escura e viscosa, na qual molhou o dedo antes de desenhar uma longa linha no lado esquerdo do rapaz, a partir do queixo, passando pelo pescoço e ombro, até ao fim do braço e unha do polegar. A seguir, molhando de novo o dedo na taça, traçou um simples traço horizontal à direita da linha, ao nível do punho. Um ogham. A runa de Beth, a bétula, árvore do amor e do renascimento da vida, de que era a guardiã.

— Hlystan Beth, aetheling — cochichou-lhe ao ouvido. — Nethan mid healda treow.

Com o coração a bater tão forte que todos os membros lhe tremiam, Merlim contemplou-a com os olhos encarquilhados. Tinha compreendido cada uma das palavras que ela acabava de pronunciar. Cada um dos termos: «Escuta a Bétula, nobre príncipe. Avança entre as guardiãs das árvores.»

Com a cabeça inclinada, ela mirou-o com o seu olhar sombrio, com um sorriso enternecido, mas quando Merlim ia abrir a boca para lhe falar, sentiu-se de novo apanhado pelo braço. Outra, igualmente alta mas com pele escura, conduzia-o para a sua árvore, um amieiro de casca acastanhada, ornado de pequenas folhas redondas e de botões encarnados. Suavemente, encostou-o ao tronco, tirou da manga da sua veste um vaso de barro cheio da mesma substância e estriou o braço do rapaz com três traços horizontais, sempre à direita da linha, mas desta vez, exatamente por baixo da articulação do cotovelo. A runa ogâmica de Fearn, o amieiro, símbolo da força e da resistência porque as suas folhas permanecem verdes até caírem.

— Hlystan Fearn, anmod bearn — disse. — Restan leas instylle for recyd Ban Drui.

«Escuta o amieiro, bravo rapaz... Repousa sem receio entre as druidas do refúgio.»

De igual modo procederam as fadas ou as feiticeiras do azevinho, do salgueiro, da aveleira e do carvalho, traçando uma após outra a sua marca, primeiro no braço esquerdo e depois no direito.

Hlystan Tinne, eorl bearn... Brucan oferceald waeter. Merlim já não tinha medo. Já não tremia.

Hlystan Saille, haele... Wrathu wyrtruma blod. Os seus encantamentos murmurados ao ouvido, os seus olhares afetuosos, a carícia das suas mãos enrugadas, tudo aquilo se parecia com uma dança, lenta e sem música, mas fascinante, quase hipnótica.

Hlystan Coll, hyrde... Byrnan blaed. Merlim tinha sede, mais do que nunca. A casca das árvores parecia abrasadora, a erva debaixo dos seus pés não lhe transmitia qualquer frescura.

Hlystan Duir, modig nith... Tohiht treow zvyrthmynde. Todo o seu corpo só pretendia lançar-se na torrente, banhar-se naquela água gelada, ao alcance da mão. Cambaleava, desamparado, quase embriagado por aquela roda de Bandrui em torno dele, os seus resmungos indistintos e o roçar sedoso das suas vestes negras quando, repentinamente, se afastaram. Merlim ficou por instantes confuso, com a respiração rápida e a vista enevoada. E quando veio a si, descobriu na sua frente a última delas, ao pé da sua árvore.

Uma macieira.

A macieira, pois claro, a árvore da sabedoria, da revelação, a árvore do Outro Mundo que, segundo o ensinamento dos druidas, reuniu as três esferas da existência. Diziam que as suas raízes, ao mergulharem no solo, participavam da esfera inferior, a dos mortos e do passado. O tronco, visível por todos, pertencia ao Abred, o círculo vil da divagação e do presente. As folhas e os ramos elevavam-se para Gwynfyd, a esfera superior, a dos deuses e das idéias.

Além, do outro lado do pequeno bosque, a Bandrui da macieira não se tinha movido e olhava-o fixamente com uma expressão no olhar que o perturbou. Ela parecia ter medo, não por si própria, mas por ele... Merlim desviou-se por um momento daquele olhar, procurou as outras, mas tinham desaparecido. As runas, todavia, estavam sempre lá, nos seus braços, provando que não tinha sonhado, nem continuava a sonhar. Só aquela permanecia no bosquezinho, esperando calmamente que ele se juntasse a ela, do outro lado do riacho. O rapaz deu um passo e logo lançou um murmúrio de dor. Sentia o corpo pesado, hirto como uma pedra, quente como uma brasa. Os Duilifedha, os Elementos do bosque marcados nos seus braços, começaram a arder-lhe horrivelmente, como ferros em brasa colocados sobre a sua pele, e as palavras das feiticeiras começaram a ressoar-lhe na cabeça, cada vez com mais força.

Escuta o Azevinho, valoroso rapaz... Refresca-te na água gelada. A água estava ali, límpida e fresca, mesmo ao pé. Ele ainda deu um passo, mas a erva tinha-se tornado cortante e pontiaguda como um tapete de punhais. Apenas um passo e os pés ficaram em sangue. Ofegante, levantou a cabeça e por detrás das lágrimas viu a nascente, a menos de dois côvados. Brotava de grandes pedras musgosas, entre as quais uma raiz de cada uma das sete árvores tinha aberto caminho. As raízes juntavam-se e misturavam-se intimamente formando apenas uma, que mergulhava numa caldeira de cobre colocada sob o repuxo da nascente. A água transbordava dali para um lago e corria para o valezinho. Beber naquela fonte... Acalmar o seu sofrimento!

Escuta o Salgueiro, herói... leva com paciência o sangue das raízes. As vozes das fadas tinham-se tornado num alarido ensurdecedor, insuportável. Recomeçou a andar e logo todo o seu corpo parecia chicoteado por espinheiros. A dor foi tal que caiu de joelhos a gritar.

Escuta a Aveleira, guardião... Arde com o sopro da vida. Merlim voltou a pôr-se de pé e, à custa de um esforço extremo, continuou a avançar. Então, as runas inflamaram-se nos seus braços. Não via mais nada, a dor era tão intensa que até já nem conseguia gritar. Uma só coisa contava: atirar-se ao lago, apagar as chamas que o consumiam.

Escuta o Carvalho, corajoso mortal... Tem confiança na honra que te fazem as árvores. A voz do Carvalho chegou ao seu cérebro torturado. A sua pele e os seus cabelos encrespavam-se, espalhando um pivete horrível. O sangue fervia-lhe nas veias e assolava-lhe o corpo por dentro enquanto a garganta e os pulmões por sua vez se tinham incendiado. Todavia, voltou a pôr-se de pé, fechou os olhos e avançou para a frente. Ter confiança... Superar a prova... Um passo, outro passo, sem olhar para a água. Um passo, outro passo em direção à macieira. Outro passo... Outro passo...

Uma nova mão agarrou-o suavemente.

Merlim abriu os olhos, com o rosto ainda deformado pelos tormentos que acabava de sofrer. A Bandrui sorria-lhe, pequena e redonda como uma maçã. O rapaz sobressaltou-se e examinou-se de relance. O braço que ela continuava a segurar não apresentava qualquer marca nem queimadura, nem o corpo, nem os cabelos. Os pés, as pernas estavam intactos. Nem sangue, nem feridas...

O rapaz tremia de forma incoercível, mas a dor tinha desaparecido, não deixando outra marca para além da sua abominável recordação. Voltou-se para o caminho percorrido. Não mais que um arremesso de pedra.

Hlystan Quert, earm hraiv firas.

Merlim fez um movimento de recuo e de terror. Deu de frente com a última guardiã do Sid, o seu olhar calmo confirmou o que lhe parecia ter compreendido. «Lastimável cadáver animado», assim lhe havia ela chamado. Então estava morto?

— Brucan oferceald waeter — murmurou ela. — Byrnan blaed, Wrathu wyrtruma blod.

Finalmente, beber água, animar-se com o sopro da vida, saciar-se com o sangue das raízes... Como as outras, ela molhou o dedo no vaso de tinta, mas foi na fronte dele que desenhou o ogham de Quert, a macieira. Cinco barras, à esquerda de uma linha que lhe havia traçado da base dos cabelos até ao queixo. Em seguida, com aquele sorriso tão afável e tão aterrador, para dizer a verdade, depois dos horrores que acabava de atravessar, ela conduziu-o à nascente, mandou-o sentar-se e tirou, ela própria, água da caldeira.

A água cintilava ao sol, nas suas velhas mãos reunidas em concha. Merlim inclinou-se, viu o seu próprio reflexo, aureolado pelos cabelos resplandecentes, como um capacete de prata, e marcado na fronte com a runa de Quert. Iria, também ela, incendiar-se, mergulhá-lo novamente nos horrores do martírio? Bebeu a tremer, para se acabar, como uma rainha antiga ao beber cicuta, como um desesperado ao lançar-se do alto de uma falésia. Bebeu e lançou-se novamente para trás, com um olhar de provocação. Ela contentou-se em menear a cabeça.

— Hlystan Quert — disse ela ao levantar-se. — Weorthan Dru Wid. Weorthan wita... Torna-te sábio pelas árvores[50]. Torna-te naquele-que-sabe.

Em seguida, afastou-se dele, voltou para junto da sua árvore. Merlim hesitou, sentiu vontade de se levantar e segui-la, mas não conseguiu. Tinha esperado por tudo, sofrimento, iluminação, morte, mas aquilo não... Tinha bebido, não se passava nada.

Acabrunhado, o rapaz continuou junto da nascente e chorou em silêncio, de vergonha, de esgotamento, de desespero. Uma lágrima desceu-lhe pela face, passou pelo canto do queixo e caiu no lago. No momento exato em que tocou a água, o bosquezinho desapareceu. Ele estava na água. Fundia-se com ela. Ele era a água, gota entre as gotas, a correr na corrente, descendo pelo leito do regato, acariciando as pedras e as algas, vivo, gelado, límpido, infinito... Mais longe, deslizou sobre um cadoz e tornou-se peixe, a nadar no fundo do regato, raspando o fundo com os barbelões, à procura de larvas de insetos ou moluscos. O regato ganhava força, descia o embrenhado e levava-o rio abaixo. De repente, uma lontra agarrou-o com a pata grifanha e espalmada. Tornou-se lontra e devorou o cadoz. A seguir tornou-se erva contra a qual o animal se esfregou, ninho, ovo e pardal, o falcão à caça pelos ares, a nuvem ao longe à deriva sobre a terra dos mortais, a chuva a cair sobre as árvores, a seiva, a casca e a raiz. Ficou árvore durante dias, semanas ou meses, até ao Outono em que se tornou na folha morta a rodopiar, a pedra musgosa que a recebeu, a terra insensível, a neve fundente, o rebento de erva a abrir caminho para o ar livre. Uma corça nascida nesse ano roeu aquela erva e ele conheceu as suas divagações medrosas na orla da floresta. Foi mosca de Verão impacientando os animais, a aranha tecendo a sua teia para apanhar os insetos, depois a andorinha fugindo a mais um Inverno.

Assim se passou, durante anos, a vida de Merlim.

 

                                    Uma Noite de Neve

Era uma manhã de Inverno, nem mais austera nem mais suave do que as outras. A neve tinha coberto a floresta, os campos, as cabanas dos monges e o telhado da igreja, um simples oratório dedicado a São João Baptista. Tinham saído, à terceira hora de laudes, para contemplar a aurora, e tinham-se sentado num pequeno muro de pedras que rodeava o seu modesto quintal, sorvendo tigelas de leite gordo e quente, ordenhado nesse instante. Estavam ali, os quatro, dois noviços, um monge com hábito preto e o abade, agasalhados em grossos capotes de pele de carneiro, com o capucho da túnica cobrindo as cabeças tonsuradas, saboreando aquele momento de sossego antes de um novo dia de trabalho. Ocupar-se dos animais do estábulo, apanhar lenha seca, quebrar o gelo no riacho, ir visitar os doentes na aldeia e recitar os salmos, prima, tércia, sexta, nona, vésperas e matinas... Um dia como outro qualquer, no isolamento e na oração.

O sol elevou-se num céu cor de malva, por cima do horizonte escuro das árvores. A neve resplandecia sob os primeiros raios, enquanto a sombras da floresta, pouco a pouco se iam apagando. Diante deles apresentava-se o domínio de Trefoss, a terra mais pobre e mais recôndita, jamais consagrada a Deus... algumas construções no mais recôndito da floresta, atravessadas por uma estrada que conduzia à aldeia de Guadel e ao cômoro fortificado do senhor Cadvan. Uma simples tapada monástica que Méen tinha edificado com as suas próprias mãos, muitos anos antes, com a ajuda do irmão Blaise e alguns outros, que o isolamento e os perigos da floresta tinham feito fugir, ou que repousavam agora no seu pequeno cemitério. Além, estendiam-se algumas jeiras de terra desarborizada, nas quais experimentavam desde há anos a produção de trigo ou aveia. Em vão... Todos os anos, por altura das colheitas, veados e javalis surgiam da floresta, arrasavam as vedações e devoravam as espigas maduras. Assim sucessivamente. E durante o resto do ano, não viam mais nenhum.

Era uma das razões pelas quais a maior parte dos religiosos tinham abandonado o local. Uma daquelas razões de que não se fala, mas que cada um sente no mais íntimo de si próprio. Por algum motivo desconhecido, os habitantes da floresta toleravam a presença deles, mas infalivelmente destruíam-lhes as colheitas, tal como as colméias ou o moinho que quiseram erguer na ribeira.

— Padre Méen, olhe! — exclamou um dos noviços. — Vem um cavaleiro na nossa direção!

Todo feliz, o noviço pôs-se a fazer-lhe sinais, logo imitado pelo mais jovem, enquanto os dois monges franziam os olhos, tentando ver alguma coisa através da neblina da sua vista enfraquecida.

— Estás a vê-lo? — murmurou Méen.

— Sim, está ali... Parece um militar. Traz um segundo cavalo com ele. Ou vem de longe ou vem buscar algum de nós.

O abade segurou o colega pelo braço.

— Blaise, meu amigo, talvez seja melhor entrares...

— Depois deste tempo, duvido que venha por mim — fez o monge sorrindo-lhe. — Além disso já nos viu, é demasiado tarde.

Com um gesto, Blaise saudou o cavaleiro logo antes de ele entrar na tapada monástica.

— O que te traz por cá quando o sol apenas se levantou? — gritou Méen enquanto ele desmontava e confiava os animais aos noviços, satisfeitos com aquele entretenimento.

— Senhor padre, venho a mando do senhor de Cadvan.

O homem inclinou-se diante do abade, removendo para a nuca o capacete de ferro entrançado e de couro que lhe cobria a cabeça.

— Eu conheço-te — disse Méen. — Tu és o filho de Elouan, o moleiro!

— Herbot, senhor padre.

— Herbot, isso mesmo... Eu não sabia que te tinhas alistado. O jovem militar sorriu, depois encolheu os ombros.

— Senhor padre, praticamente não tive alternativa...

— Claro... A guerra, como sempre. Que Deus me perdoe por não ter sabido conduzir o conde Waroc à razão. Há dez anos que anda a arruinar o país...

— Senhor padre, desta vez são os Francos que nos atacam. Dizem que a rainha Frédégonde enviou dois exércitos contra nós, comandados pelos duques Ebrachaire e Beppolen. É preciso defendermo-nos!

— Com certeza. E depois? Vieste alistar-nos também a nós?

— Virgem Santa, Deus me livre! — exclamou o soldado rindo a bom rir. — Vim em busca do irmão Blaise.

O riso apagou-se no rosto dos dois religiosos, que trocaram um breve olhar alarmado. O outro apercebeu-se, franziu as sobrancelhas e retomou em seguida:

— Um velhote chegou à aldeia, ontem à noite. Ao que parece, em mísero estado. Perguntou pelo irmão Blaise... O confessor da rainha Ida ou qualquer coisa assim...

— Aldan — murmurou Blaise sombriamente.

— Talvez seja. Seja como for, não podemos demorar. E traga consigo os sacramentos, senhor padre, acho que o pobre diabo não vai durar muito tempo.

— Espera um pouco, eu não demoro.

À pressa, Blaise chegou à cela, uma cubata de pedra e telhado de colmo, calçou as botas em vez das sandálias e meteu numa sacola um crucifixo, uma bíblia e uma estola de padre. Se era uma armadilha, se aquele Herbot era enviado por algum bispo na seqüência de uma denúncia qualquer, ele avançava resignado. Depois de dez anos, até talvez onze ou doze, passados naquele cercado em plena floresta, a sua excomunhão já era apenas uma recordação longínqua, quase esquecida. Desde que tinham chegado àquilo que não passava então de uma clareira no meio do bosque, Méen tinha-o tratado como um irmão, em todo o sentido do termo. E quando os outros religiosos se tinham ido embora, uns após os outros, quando tinham ficado sós, bem perto de, por sua vez, desaparecerem, Méen tinha levantado a sanção, tal como o seu mestre Samson lhe havia dado poderes. No entanto, Blaise continuava anátema aos olhos da Igreja, senão de Deus, enquanto o seu perdão não fosse concedido por um bispo nomeado para o efeito. Continuava-lhe interdito administrar os sacramentos, tal como celebrar a missa ou mesmo entrar em lugares sagrados. Infringir aquela proibição podia custar-lhe muito mais do que uma nova excomunhão.

Qual a importância... Se verdadeiramente o viajante tinha referido a rainha Aldan, então ninguém no mundo iria impedi-lo de se dirigir à sua cabeceira, quaisquer que fossem as conseqüências. Aquele nome fazia-o voltar muito atrás, ao tempo em que era jovem, ainda, e em que a sua vida parecia traçada nos ouros da Igreja. Antes de Aldan lhe ter confiado o seu filho Merlim, antes de se desequilibrar a sua vida...

Saiu a toda a pressa, cumprimentou os noviços e ajoelhou-se para receber a bênção de Méen, em seguida subiu um pouco desajeitadamente para o cavalo. Blaise nunca tinha sido bom cavaleiro e a idade, juntamente com aqueles anos longe do mundo, não tinham ajudado nada. Ainda assim, ele conseguiu manter-se na sela, não obstante os solavancos de um pequeno galope que, em menos de uma hora, os levou até junto do cômoro fortificado do senhor Cad-van. Com as coxas avermelhadas e os rins partidos, ele seguiu atrás de Herbot até à sala comum onde, junto à lareira, se encontrava instalado o viajante.

Blaise despiu a capa e sentou-se a seu lado.

Era um homem idoso e cansado, com os olhos encovados e os lábios descorados, quase azuis. O frio tinha-o vencido. Estava a dormir de boca aberta, parecendo-se já com o cadáver em que em breve se ia transformar. O monge abanou-lhe suavemente o ombro para o acordar.

— Meu filho, tu pediste para me ver. Eu sou o irmão Blaise. Outrora era eu o confessor da rainha Aldan Ambrosia.

O velhote abriu os olhos. Pareceu-lhe que sorria.

— És aquele que acompanhava Merlim?— balbuciou com voz tão fraca que Blaise teve de mandá-lo repetir, julgando ter ouvido mal.

Inclinado sobre ele, sentiu-se avidamente agarrado por uma mão trêmula.

— Chamo-me Cylid — soprou o moribundo. — Eu estava ao serviço... da rainha Guendoloena... Onde está... Merlim?

— Não sei.

Cylid fitou com um ar estarrecido, depois fechou os olhos e deixou-se cair para trás. Correram-lhe algumas lágrimas pelo rosto pergamináceo, cintilantes à luz do lume que ardia na lareira.

— Eu andava com ele — disse Blaise, transtornado com a angústia silenciosa do ancião. — Acho... acho que continua a viver na floresta.

— Então é preciso encontrá-lo!

Cylid tinha gritado, com força suficiente para que um dos servos que trabalhavam na sala comum lhe lançasse um olhar intrigado.

— Diz-me porque o procuras — soprou Blaise. — E a rainha Guendoloena quem te envia?

O velhote disse que sim com a cabeça. Tinha as mãos agitadas e a tremer, o seu olhar tornava-se fixo. Blaise ensopou prestemente um pano de linho numa taça com água fria colocada junto ao catre e aplicou-lhe a compressa na fronte, o que pareceu reanimá-lo.

— A rainha está em perigo?

O mesmo gesto com a cabeça.

— E... filho...

— O filho dela? O filho dela está em perigo?

Cylid conseguiu apenas comprimir as pálpebras em sinal de concordância. Blaise suava sangue e água, junto ao fogo com a sua capa de pele de carneiro. Olhou para todos os lados, sem saber o que fazer. Herbot tinha-se ido embora. Os servos também. Só estavam eles na sala comum. Então puxou a si a sacola, tirou a estola, que beijou antes de passar à volta do pescoço, depois o crucifixo que aproximou dos lábios do moribundo.

— Acreditas em Deus, meu filho?

Como única resposta, Cylid afastou o crucifixo com as costas da mão e fixou Blaise com um olhar suplicante que lhe destroçou o coração.

— A rainha enviou-te à procura da ajuda de Merlim, para ela e para o filho... Para o filho deles, não é?

A cabeça do velhote começou a resvalar, mas Blaise segurou-a, e abanou-o.

— Ouve-me! Pensa nele. Pensa em Merlim. Chama por ele. Pensa na rainha, pensa no filho deles! Morres por uma causa, amigo. Ele ouvir-te-á. Em nome do Céu, juro-te. Pensa nele! Pensa em Merlim! Pensa...

Blaise interrompeu-se. Já não valia a pena falar.

Com o rosto banhado em suor, torcido por um ricto medonho, ele levantou-se e afastou-se lentamente do corpo, sem vida, de Cylid. Assim, Merlim tinha falado verdade, quando sentira o nascimento daquele filho, no próprio dia da sua chegada à ilha de Battha.

Ressoaram passos na sala, atrás dele. Era o mordomo do senhor Cadvan, que vinha saber notícias.

— Acabou?— perguntou depois de um simples olhar para a cama.

— Sim — murmurou o monge. — Morreu com os sacramentos. Mandem enterrá-lo no cemitério. Chamava-se Cylid...

— Não fica, senhor padre?

Blaise meneou a cabeça com um leve sorriso de agradecimento. Pegou na capa e na sacola e saiu, reencontrando agradecido o ar fresco da rua.

Merlim... Com o tempo, tinha chegado ao ponto de já não pensar nele todos os dias, de já não o ver atrás das árvores, de já não ouvir as suas gargalhadas no vento. Pensou em Cylid, vindo de tão longe na pegada do rapaz para obedecer a uma rainha. Como ele. Exatamente como ele... Naquele momento a sua alma estaria a voar perto de Merlim? Já lhe teria transmitido tudo o que sabia? Era uma idéia muito pouco cristã a que tinha tido, mais digna de um feiticeiro do que de um homem de Deus. Como tinha sido capaz de semelhante coisa? Em vez de dar assistência ao moribundo, obter a sua conversão e administrar-lhe os sacramentos, tinha-o impelido a invocar o nome de Merlim, como se o rapaz pudesse ouvi-lo! Como se pudesse arrastar para ele a alma daquele desgraçado e alimentar-se nele! Os bispos tinham razão. Já não era digno de usar o hábito, já não era digno da Cruz.

Erguendo os olhos, viu o cavalo que o tinha trazido até ali, sempre preso ao alpendre. Sem pensar duas vezes, avançou na sua direção, desatou as rédeas e montou. Em seguida, tomou a direção da floresta.

A neve cobria o país de Eliande. Granizo e gelo cobriam as árvores, as ervas e os matagais. Sob um sol pálido que salpicava os musgos das matas com manchas de luz, a floresta hibernava silenciosa. Era um tempo danado, tão duro que as matilhas até saiam em pleno dia, em busca das raríssimas presas, tão frio que os rios tinham gelado e as árvores despidas estalavam com gemidos lúgubres.

Agachado ao pé de uma faia com os ramos torturados e a casca coberta de heras, confundida com ela na sua capa furta-cores, Gwendyd sustinha a respiração, com os olhos fixos numa manada de veados que passava pela orla da floresta. Um grande veado adulto do tamanho de um cavalo, com a cabeça coroada com uma armação de pequenos chifres afiados como punhais, montava guarda, imóvel e magnífico no meio da clareira. Outros dois, de menor porte, estavam colocados de um e outro lado da manada, prontos igualmente a intervir. Perto dela, um lobo gemeu e lambeu a beiça, mas a elfinha agarrou-lhe firmemente o focinho e abateu-se um pouco mais no escuro azuláceo dos matagais cobertos de neve. Felizmente, os veados não tinham ouvido nada.

Tinha de esperar. Cedo ou tarde, uma corça imprudente ou uma cerva demasiado sôfrega, avançaria por debaixo da árvores à procura de bolotas ou de uma moita ainda com folhas. Então, os lobos atacariam. Sob a confusão de ramagens e arbustos, os grandes machos não poderiam servir-se dos seus chifres. Com certeza que nem interviriam. Esperar, pese embora a fome que os assediava. Esperar em silêncio, até que a neve os esconda.

Ao cair do dia, um jovem veado avançou por debaixo das árvores. Apenas a alguns passos. O bastante para que os lobos o cercassem e atacassem repentinamente, três, quatro ao mesmo tempo, mordendo-lhe o pescoço e as patas. Gwendyd correu para ele e matou-o com um golpe de chuço, acabando com os seus bramidos transtornados, no momento em que as feras o devoravam ainda vivo.

Ela partiu em seguida, fugindo à ignóbil carniça, e eclipsou-se por entre os arvoredos. Desde que acompanhava os lobos, ela nunca tinha conseguido acostumar-se àquilo. O sangue, o pivete das vísceras, o frenesi obsceno das feras zurzindo as carnes ainda palpitantes...

Gwendyd correu assim até que as pernas não pudessem mais e desabou a chorar, com a alma na boca. Adormeceu de seguida, encarquilhada ao pé de um carvalho, indiferente ao frio glacial da noite.

Quando acordou, caía uma neve suave, em remoinho, que esbatia os ruídos da floresta. Tudo estava branco, cinzento ou negro, imóvel, morto, triste. Naquela manhã, não quis ficar só.

Contrariamente aos outros elfos, Gwendyd não vivia em clã. Desde a morte da mãe ou, mais propriamente, desde que seu pai Morvryn tinha fugido com aquela tal Gwenwiffar que não tinha clã, à exceção do avô Gwydion... e agora, aquele ser estranho que ele dizia ser seu irmão.

Lentamente, quase de má vontade, tomou o caminho de Sid, o bosquezinho das sete árvores. Chegou lá pelo crepúsculo, quando o vento já tinha vencido a neve e um sol poente avivava a floresta. Como sempre, Gwydion estava lá. Luas e luas eram passadas desde a altura em que tinha trazido para ali o rapaz dos cabelos brancos. Uma eternidade, mesmo para uma elfa, sem que Merlim tivesse dado o menor sinal de vida. Com o passar dos anos, heras e musgo tinham-no parcialmente coberto, a tal ponto que mais parecia um tronco de árvore ou uma rocha, fazendo parte da fonte, do que um ser vivo. Gwydion não se mostrava surpreendido com aquilo, nem preocupado. Os que bebiam da caldeira de cobre permaneciam assim, às vezes durante anos, perdidos num divagar longínquo, fora do corpo que não envelhecia. Dizia-se que as pedras erguidas que salpicavam a floresta eram os corpos esquecidos daqueles que nunca mais tinham acordado. A elfinha sempre se tinha questionado se tal seria verdade...

Assim que entrou no bosquezinho, Gwendyd sentiu algo diferente. Gwydion, de joelhos ao lado de Merlim, voltou-se para ela com um sorriso feliz no rosto banhado em lágrimas. Ela continuou a aproximar-se e sentiu um nó na garganta.

Merlim tinha aberto os olhos.

Os arvoredos enchiam-se de murmúrios ameaçadores. Com os olhos esbugalhados, inflamados pela fadiga, Blaise distinguia perfeitamente, à luz do luar, o halo da neve entre as massas negras das árvores e dos matagais. Estalasse uma casca, estremecesse uma sarça ou resfolgasse o cavalo, ele punha-se de pé, com o coração palpitante, agitando um tosco ramo como se fosse uma moca. Depois passava imenso tempo até serenar um pouco que fosse, voltava a acomodar-se contra o tronco que lhe servia de abrigo e tentava encontrar, senão o sono, pelo menos o repouso. Até ao ruído seguinte.

Antes da meia-noite, já a sua coragem se tinha esgotado por completo. Blaise não tinha conseguido acender o lume de tão úmida que estava a lenha. Sem luz nem calor, enregelado e às escuras, sustinha a respiração a cada momento para espreitar os mil e um ruídos da floresta, que ele não conseguia identificar. Aquela vigília glacial tinha depressa triunfado sobre o seu acesso de entusiasmo. Como tinha sido capaz de meter-se tão cegamente pelos bosques, sem sequer se equipar, pelo menos de provisões? E como tinha sido capaz de acreditar que ia encontrar o rapaz naquela imensidão hostil, cheia de silvas e urtigas, de matagais impenetráveis e valezinhos perdidos, infestada de lobos, javalis e por aquele povo esquecido por Deus ao qual Merlim julgava pertencer? Nunca em tantos anos, nem ele nem Méen tinham visto o menor daqueles diabos. Mas não se passava uma única estação sem que a região não vibrasse com uma nova história de soldados ou lenhadores crivados de flechas, um Verão sem que as suas colheitas fossem destruídas, como se os elfos da floresta não aceitassem a sua presença senão dentro de certos limites. Limites que ele indubitavelmente acabava de ultrapassar, com o perigo da sua vida, por pura loucura.

Amanhã, se Deus tiver compaixão dele e lhe conservar a vida, amanhã dará meia volta e regressará a Trefoss para junto do padre Méen, lá onde era o seu lugar, sem outro desejo senão acabar ali os seus dias, remir o seu pecado e esquecer Merlim. O rapaz podia estar vivo ou morto, a floresta manteria esse segredo, e era melhor assim. As palavras de Cylid tinham reavivado nele um fogo que ele julgava extinto, despertado o seu sonho ímpio, indigno de um cristão. Quem era ele, pobre monge, para pôr em causa a Palavra de Deus, para ousar crer nas suas próprias intuições, em vez de confiar n’Ele, mesmo para o incompreensível, sobretudo para o incompreensível? «Felizes os que acreditam sem ver», tinha dito Cristo a Tome. Como o apóstolo, ele tinha-se cegado com argumentações e orgulho. Não obstante todo aquele tempo passado em orações e sacrifícios, bastou que se pronunciasse o nome de Merlim para ele correr à sua procura. Mas por quê? Por que sonho absurdo? O caminho do rapaz não conduzia à Luz, mas à dúvida, ao cinismo e à destruição.

Bruscamente, o seu cavalo lançou um relincho estridente e começou a escoucinhar com tanta força que desprendeu as rédeas enroladas à volta de um ramo. De repente, o animal fugiu a galope no meio da escuridão. Blaise só teve tempo de se levantar e às apalpadelas procurar a moca. Com ela na mão, reteve a respiração e sentiu instantaneamente gelar-lhe o sangue. Projetadas na neve, formas escuras e baixas avançavam lentamente na sua direção. Lobos, a cercá-lo por todos os lados.

O monge recuou até bater com as costas no tronco, depois animou as trevas a gritar, com uma cajadada que só encontrou o vazio e pouco faltou que se desequilibrasse. Mesmo junto dele, um lobo lançou uma rosnada rouca. Ele bateu e, desta vez acertou na fera que se afastou com um latido agudo. Blaise sentia-se já a deitar os bofes pela boca, com os pulmões a arder e os braços pesados. Os outros mantinham-se à distância, no entanto próximos o suficiente para o monge ver, sob a fraca claridade da lua, os seus espinhaços agachados e as suas beiçanas arreganhadas sobre presas luminescentes. Contornando o tronco, afastou-se pé ante pé, sem que eles se mexessem e sem ver, atrás de si, o chefe da matilha que o esperava para a parada da morte. O suor luzia na sua fronte e ardia-lhe nos olhos. O sangue batia-lhe como um martelo nas fontes. Os braços tremiam convulsivamente. Menos de três côvados atrás, o grande lobo, comprimiu-se sobre si próprio, pronto para saltar.

Foi então que um grito agudo cortou o silêncio da noite, imobilizando-os de igual modo, o homem e o animal. Blaise voltou-se de um salto, viu a fera e bateu em retirada. No mesmo instante, formas humanas apareceram entre as árvores, passaram entre os lobos sem sequer olhar para eles e avançaram na sua direção. Blaise distinguiu uma dessas figuras quando ela passou à sua frente para ir pôr-se de cócoras junto do macho principal. A forma era humana, mas não era homem. Maior que uma criança, deslocava-se sem qualquer ruído, deixando no seu rasto um odor a erva cortada. Não era uma criança, já não, nem uma mulher. A sua voz elevou-se, calma e clara no escuro.

— Gewitan, maegenheard wuth. Hlystan Gwendyd. Laetan nith leofian... O lobo deu uma rosnada irritável, como que a responder àquela linguagem estranha, retirando-se em seguida e desapareceu, em marcha lenta na noite, seguido pelo resto da matilha.

— É imprudente andar desarmado na floresta... Arrepiado, Blaise deixou cair o ramo que lhe servia de moca.

Aquela voz, aquele tom zombeteiro... Uma sombra esguia, coroada com um halo de cabelos brancos, destacou-se do grupo e aproximou-se dele.

— Merlim... és tu?

— Sou eu, meu irmão.

Merlim avançou mais, o suficiente para o monge poder reconhecer os seus traços, mesmo no escuro. Com um nó na garganta, esforçou-se por não o dar a perceber, mas o aspecto do companheiro tinha-o impressionado. Realmente, Gwydion tinha-lhe dito que ele tinha permanecido muito tempo no bosquezinho, tinha visto o musgo e a hera que o tinham coberto com o fluir dos dias, mas os elfos não têm a noção do tempo. «Muito tempo» podiam ser semanas ou meses. Ao ver Blaise, percebeu que tinham sido anos. O monge tinha emagrecido, a pele estava enrugada, a barba tinha embranquecido. Blaise era agora um homem de idade, quase um velho... Os dois companheiros abraçaram-se longamente, o que pareceu tranqüilizar os elfos, até então de pé atrás. Merlim sentia Blaise a tremer nos seus braços.

— Genip se bregean, maga! — lançou o rapaz enquanto se afastava dele. — Byrnan fyr tham.

— O que é que estás a dizer?

— Pedi-lhes para acenderem o lume para que te possas aquecer.

— Então tu falas a sua linguagem...

Passados alguns instantes, as faíscas surgiram a dois passos dali, incendiando um monte de ramos que iluminou o rosto de Blaise, assolado pela emoção.

— Eu falo muitas línguas — murmurou Merlim enquanto o levava para junto da fogueira. — Incluindo a dos mortos, lembras-te?

— Então, Cylid chegou a...

— Sim, Cylid. Uma vida verdadeiramente espantosa... Vamos, vem aquecer-te.

Com o braço à sua volta, levou-o até à fogueira e mandou-o sentar-se, em seguida ofereceu-lhe uma espécie de bolo vulgar que o monge devorou com gosto. Por um bom bocado, permaneceram ali sem uma palavra, lado a lado, o tempo de se recomporem. E enquanto pensavam ambos em tudo aquilo que os havia unido e em tudo o que os havia separado, os elfos foram instalar-se para passarem a noite, mantendo-se afastados do fogo que não lhes fazia qualquer falta, nem para andarem na noite nem para se aquecerem, mas que claramente os fascinava. A elfinha que, um pouco antes, tinha falado ao lobo, sentou-se ao lado de Merlim e lançou sobre o monge um olhar fanfarrão, quase irônico, tão parecido com o do seu companheiro que Blaise começou a rir, abanando a cabeça.

— É incrível...

— O quê?

— Tudo isto! Ver-te aqui, surgindo das trevas como... como um diabo, no momento em que eu estava prestes a ser devorado vivo, estes elfos que se mostram tão simplesmente quando nunca ninguém jamais os vira, e o modo como aquela menina falou para o lobo, a sua semelhança contigo! Ou é um sonho, ou então estou morto...

— Estarias com certeza se ela não tivesse corrido com os lobos — disse Merlim com um sorriso, para a elfa acocorada junto dele. — Ela chama-se Gwendyd. Nós, ela e eu, tivemos o mesmo pai.

— Então era verdade? Tudo o que julgavas era verdade?

Blaise suspirou satisfeito e deslocou-se para o outro lado da fogueira para ver a ambos de frente. A sua parecença não saltava aos olhos, mas Gwendyd trouxe-lhe à mente o Merlim da época do seu encontro, o rapaz rejeitado e agressivo que fora outrora. Havia já muito tempo.

— Se eu fosse presunçoso, diria que Deus anda a mangar comigo — disse ele, escorando-se confortavelmente contra um penedo. — Dir-se-ia que basta eu resolver acreditar em alguma coisa para que me revele o contrário. Vês, esta manhã, eu tinha a certeza que te ia encontrar. Estava convencido disso. E há menos de uma hora tinha igualmente a certeza que seria impossível, que tinha de renunciar a ver-te novamente e que já não devia consagrar-me senão a Deus e à remissão dos meus pecados. Tinha medo... Senhor, eu tinha realmente medo. Implorei-lhe que me deixasse viver até terminar a noite, mas ele enviou-me os lobos.

— Continuas vivo — murmurou Merlim.

— Sim... Mas devo-o a Ele ou a ti? Achas que foi Ele que te enviou?

— Não sei... Acho que é a isso que chamamos fé, não achas? Em todo o caso, se o teu deus enviou alguém, não sou eu, mas Gwendyd.

— Pois bem, acho que lhe devo a vida... Apresenta-lhe os meus agradecimentos.

O rapaz dirigiu-se ao monge com um gesto enfático.

— Halig nüh bettacan ar, maga.

Os outros começaram a rir, mas a elfinha agradeceu-lhe com sinal de cabeça, antes de insinuar ao ouvido de Merlim algumas palavras que o fizeram sorrir. Nesse instante, Blaise tornou a vê-lo tal como o havia conhecido, tal como havia permanecido na sua memória.

— Olha para ti... Tu não mudaste. Há quê, dez anos? Pela primeira vez, Merlim pareceu abalado.

— Assim tantos? — inquiriu ele com um ar perturbado, que escapou ao monge.

— Sem dúvida mais — disse ele contendo um bocejo. — Talvez doze ou treze. Perdi-lhes a conta... O que fizeste, durante todo este tempo? Onde estavas?

O rapaz dos cabelos brancos não respondeu, mas ficou perdido em pensamentos distantes e a tal ponto alucinado que Gwendyd se assustou e o abanou violentamente. Merlim acalmou-a com um sinal de cabeça, depois fez um leve esforço para sorrir ao companheiro.

— Lembras-te do canto das árvores?

Vivi sob inúmeras formas

Antes de revestir uma forma pensante

Estive na água, na espuma.

Fui ferro no fogo,

Árvore no meio do bosque.

Na colina fui serpente sarapintada.

E no lago fui dragão...

Merlim interrompeu-se, abanou a cabeça e sorriu.

— Agora sei o que Taliesin queria dizer quando escreveu isto[51]. Vivi o mesmo, essas metamorfoses. Mas nunca julguei que tivesse demorado tanto... Talvez tenhas sido tu que me salvaste, ao enviar-me a alma de Cylid.

Blaise anuiu com alguma indulgência, mas não compreendia manifestamente uma palavra daquilo que Merlim acabava de dizer. À luz vacilante das chamas, o rosto meio adormecido do religioso aparecia entalhado de rugas, marcado por todos aqueles anos dos quais ele não sabia nada. O que lhe teria acontecido desde que o havia abandonado em Yeun Elez? O que teria sofrido para estar a tal ponto estragado? Também Guendoloena devia ter mudado. Na memória de Cylid, ela era rainha, esposa de um rei escoto que o velho homem odiava. Como tudo isso era distante de Broceliande...

— Nunca teria acreditado ter de sair daqui um dia — murmurou tristemente. — Achas que possam estar verdadeiramente em perigo?

— Ora essa! — resmoneou Blaise com um trejeito fatalista. — Depois de tantos anos, até já podem estar ambos mortos, ela e o teu filho. Ou talvez o perigo tenha passado. Mas só há uma forma de sabê-lo...

Merlim elevou os olhos ao céu e contemplou o cintilar das estrelas. O fogo ia-se lentamente apagando, difundindo apenas uma luz avermelhada. Gwendyd tinha adormecido encostada ao seu ombro e Blaise também tinha mergulhado no sono. Então, Merlim fechou os olhos e chorou, em silêncio.

 

                             Regresso a Dun Breatann

Ryderc tinha esperado, todo o dia, por aquele momento. Estar finalmente só, no alto da mais alta colina que resguardava a sua fortaleza, poder contemplar o crepúsculo sobre o estuário do Clyde, contemplar o mar depois do calor do dia, já não ter de falar, já não dar ordens, já não ocupar o seu posto... Aqui, apoiado ao parapeito de toros do baluarte superior, podia ficar calado, deixar o seu espírito à deriva, seguir o vôo das gaivotas por cima do rio e já não pensar em nada. Ali, já não o atingia o alarido da cidade baixa invadida de tropas, nem o extenuante zumbido dos conselheiros e dos cortesãos. Com o tempo, as incessantes bajulações e petições tinham-se tornado insuportáveis. Ele era rico, claro, sem dúvida mais do que qualquer rei bretão, à exceção de Mynydog, soberano de Manau Goddodin, mas aquela riqueza tinha-o rodeado permanentemente de uma corte insaciável, embebida em mexericos e conluios, na qual dificilmente se encontraria uma pessoa desinteressada. Ele comandava o exército mais poderoso, exceção feita talvez ao de Urien de Rheged, mas não tinha travado nenhuma batalha digna desse nome, pelo menos contra os Saxões. A partir da altura em que as suas tropas tinham metido a saque a fortaleza de Caernarfon[52], morto o senhor Gurgi e forçado o rei Rhun a render-se, a autoridade de Ryderc estendia-se desde as montanhas do Norte até às costas de Dyfed. Ninguém como ele podia alinhar tantas lanças em batalha, tantos cavalos, tantos barcos de guerra, nem tanta infantaria e archeiros. Sob a sua proteção, o bispo Kentigern tinha erguido mosteiros por todo o reino, em Cambuslang, em Glesgu, em Whithorn e até nas fronteiras dos pictos, em Luss e Knock. Centenas de monges percorriam o país para pregar a submissão a Deus e o dever sagrado da guerra contra os pagãos, anglos e saxões. Mas tudo não passava de um edifício de vidro, Ryderc sabia-o bem.

O cordão de Artur que lhe pesava ao pescoço já não bastava para manter unidos todos os príncipes bretões. A guerra arrastava-se havia já demasiado tempo, infrutífera. Nem ouro nem glória. As cidades e aldeias fronteiriças tinham sofrido tanto que sobreviviam com dificuldade, os campos estavam desertos. As terras do Norte tinham sido irremediavelmente abandonadas. As populações tinham partido, levando os seus bens, e mais grupo nenhum conseguia viver no local nem tirar proveito suficiente para continuar a lutar. Doravante tinham de pagar, de uma maneira ou de outra, para assegurar a sua defesa. Ouro ou terras. Um posto de comando, no melhor dos casos. O rei estava farto de discursos enfadonhos, para convencer por vezes um simples chefe de bando que conduzia menos de cem cavaleiros... Aqueles momentos de isolamento tinham-se tornado indispensáveis.

O sol entrava no seu declínio e o céu começava a ficar escuro. O Clyde, qual rio dourado, brilhava liso e calmo, aos últimos clarões do dia. Fora aquilo que ele fora procurar no alto do fortim. Aquele espetáculo imutável e tranqüilo, aquela força insolente do rio a correr para o mar. Sejam os seus exércitos como o Clyde, que se espalhem pela ilha da Bretanha arrastando tudo à sua passagem... De repente viu ao longe uma pequena vela quadrada, barco de pescador ou coracle, navegando suavemente mesmo na direção da barreira de navios de guerra dispostos a toda a largura do curso. Um pouco tarde para regressar da pesca... Aqueles imprudentes seriam recompensados com uma noite ao relento, nas margens de um rio, a menos que os seus comandantes decidissem divertir-se um pouco com eles... Ryderc viu a embarcação abeirar-se de um dos seus barcos, sorriu e fechou os olhos. Mudanças bruscas de vento levavam até ele o ar marítimo e o cheiro a gordura queimada que subia dos aquartelamentos. Um pouco por toda a parte, desde a cidade baixa até milhas a jusante do rio, a tropa acendia as suas fogueiras e o cheiro das cozinhas, misturado com o dos estábulos e dos potros, empestava a atmosfera. Quanto tempo seria preciso ainda esperar? Agora que estavam reunidas condições, agora que todos os exércitos bretões se preparavam para arremessar conjuntamente contra os Anglos da

Nortúmbria, cada dia perdido punha um pouco mais à prova os seus nervos.

Só uma coisa contava: a chegada de uma mensagem de Aedan, indicando que também os escotas estavam prontos para atacar. Então podia finalmente começar a guerra. A verdadeira, já não aquelas operações rápidas e inconseqüentes perante um inimigo em fuga. Uma guerra sem piedade até Lindisfarne e Bamburgh, até que o reino da Nortúmbria deixe de existir, até que a cabeça de Ethelric, filho de Ida, seja enfiada numa lança na poterna da sua fortaleza, até que Bernícia seja libertada do jugo dos Anglos, assim como a Deira e a Mércia. Assim só lhes restava atacar os Saxões de Ceawlin ou conciliar-se com eles. Mas que todo o Norte, pelo menos, se torne bretão e que o nome de Artur se apague perante as suas próprias vitórias.

Ryderc apoiou a fronte contra a paliçada e, por debaixo da fivela do manto, segurou no cordão de ouro. Tinha sido preciso tempo para fazer calar todas as vozes dissonantes, depois o insucesso da sua cavalgada para Sul. Demasiado longe da base, mal preparada, demasiado lenta... Não tinham conseguido impedir as conquistas de Ceawlin e tinham colocado em perigo as suas próprias terras. A reconquista da ilha não se podia fazer senão a partir do Norte e ao preço de uma aliança sólida com Aedan, não se tinha cansado de o dizer. Porque não o tinham ouvido, na altura, em vez de perderem tantos anos?

Agora, estavam finalmente reunidas todas as condições. Três anos antes, o Escoto tinha declarado guerra aos Pictos de Fortriu, matando o seu rei, Brude. Também ele estava pronto para uma nova ofensiva contra o que sobrava do reino, enquanto a partir de Lothian, o rei Mynydog atacaria os Pictos do Sul. Dentro de algumas semanas as colheitas armazenariam nos celeiros o suficiente para alimentar os exércitos por alguns meses de campanha. Ryderc poderia então lançar contra a Nortúmbria aquele bulício de soldadesca barulhenta que lhe invadia a cidade, juntar-se às tropas de Urien e Morcant, subir o Clyde na frota de navios acumulados nas suas margens, mais depressa e mais longe do que poderia fazer qualquer cavalaria, e forçar os Anglos à luta.

Mais algumas semanas...

Ele desviou-se da paliçada com um suspiro, alisou a barba e os cabelos grisalhos, enrolados pelo vento. Ao fundo, nos aquartelamentos reais, criados e escravos deviam ter cozido as carnes e preparado o banquete. Era preciso beber e rir, fazer escorrer a potes a cerveja e servir vinho em honra dos hóspedes. Contra vontade, dispôs-se a descer, depois de um último olhar sobre o rio. Estranhamente, o pequeno barco de vela quadrada tinha transposto a barreira e aproximava-se das margens. Afinal, talvez não fossem pescadores. E se fossem os tais emissários de Dal Riada que ele esperava com tanta impaciência?

Desceu rapidamente os degraus que conduziam ao cimo da colina, até ao valezinho que protegia a grande sala e as dependências senhoriais. Amig encontrava-se ali, protegendo o acesso ao fortim com alguns guardas impávidos. Depois da morte de Sawel e de Daffyd, era um dos poucos chefes em quem tinha plena confiança.

— Pega em alguns homens e desce até ao porto! — gritou Ryderc assim que o viu. — Acaba de chegar um barco. Traz-me todos os que estiverem nele.

— É para já.

— Com todas as honras, se forem Escotas!

As margens pareciam inacessíveis por estarem tão atravancadas com barcos de todos os tamanhos, desde longa navis de dois mastros da época romana até grandes barcos a remos capazes de embarcar uns dez cavalos e o dobro de homens. Blaise tinha arriado a sua vela e, regressado à barra, deixava o coracle vogar no seu rasto, levado ainda pelo vento que dificultava o avanço do seu grande casco de couro e madeira.

Merlim já não dizia uma palavra desde que tinham deixado para trás a ilha de Arran e atracado no estuário, logo de manhã, depois de terem combinado a conduta a manter quando abordassem nas margens de Strathclyde. Aquilo não fazia grande diferença. Os dois companheiros navegavam há semanas sem já não trocarem senão algumas conversas banais, a maior parte do tempo quando acostavam para reabastecer. Tudo o que tinham para contar, um ao outro, tinha sido dito quando caminhavam através da floresta para chegarem à costa. Desde o momento em que haviam deixado o abrigo das árvores, deixando para trás Gwendyd e a sua escolta de elfos, o rapaz tinha-se remetido a um mutismo melancólico, do qual não saía senão para repentinos acessos de raiva, deveras excessivos, mas sobre os quais nunca dava qualquer explicação.

Naquela tarde, ao levantar os olhos para as massas gêmeas dos dois cabeços de Petra Coithe, «a pedra do Clyde», negras e gigantescas na penumbra do crepúsculo, até o próprio monge teria sido incapaz da menor palavra. Com as mãos úmidas e a garganta seca, ele reconduzia de vez em quando a embarcação para a margem com uma remada, mas sem procurar apressar a abordagem entre aquela multidão de homens armados que atulhavam a cidade baixa.

— Ali — disse Merlim, à frente do coracle, indicando uma passagem entre dois barcos.

— Tens a certeza do que estás a fazer?

O rapaz dos cabelos brancos virou-se lentamente para Blaise e meneou silencioso a cabeça, com um ar grave que o magoou. Como se tivesse repentinamente recuperado o tempo perdido, Merlim parecia ter envelhecido desde a sua partida. Os seus ditos tinham-se tornado duros, afirmados. Blaise já não se recordava de lhe ter visto aquele sorriso zombeteiro que outrora exibia quase permanentemente, aquela indiferença que parecia colocar em todas as coisas. O rapaz-mago tinha-se tornado triste, ao ponto de o monge se questionar se não andaria a procurar acabar com aquilo, entregando-se assim nas mãos do inimigo. Obedeceu, todavia, e empurrou a embarcação para uma estacaria onde podiam atracar.

Foi só o tempo de lançar para terra as suas magras bagagens e saltar para o apeadeiro e logo foram rodeados por um esquadrão de guardas vestidos com grandes grevas de couro acolchoado e capas vermelho-vivo. O chefe Amig, observou Merlim com um ar indeciso e optou por dirigir-se ao monge.

— Sois os enviados do rei Aedan? — perguntou.

— Não — respondeu Blaise — nós...

— Queremos ver o rei Ryderc — interveio Merlim. — Diz-lhe que o príncipe Emrys Myrddin, filho de Aldan Ambrosia dos Sete Cantões, pretende falar-lhe.

— Tu é que lhe vais dizer — retorquiu Amig. — Tenho ordens para vos levar ao rei, quem quer que sejais.

Merlim sentiu sobre si o peso dos olhos do seu companheiro e lançou um olhar na sua direção. Com o rosto escarlate e a luzir, Blaise volvia olhares inquietos, procurando visivelmente uma idéia para se safarem dali.

— É a mim que o teu rei quer ver — disse voltando-se para Amig. — O monge não lhe interessa.

— Sendo assim, se não lhe interessa, deixá-lo-á com certeza voltar a partir. Vamos. Ele está à nossa espera...

O rapaz-mago aquiesceu e começou a andar, direito ao fortim, com uma segurança tal que os aldeões e os militares se afastavam à sua passagem, julgando ver um príncipe real e a sua escolta — o que era — e não um prisioneiro e os seus guardas — o que era igualmente.

A cidade baixa tinha o cheiro e o aspecto de uma pocilga. Não obstante a baforada quente dos dias, as ruelas estavam lamacentas. Um lamaçal cheio de imundícies e excrementos, coberto por uma barafunda de soldados a cheirar a gordura, a suor e a urina, num zunzum de cantos, disputas e gargalhadas. Dun Breatann não se parecia nada com a orgulhosa cidade das suas recordações, no tempo da assembléia dos reis. Dir-se-ia antes, um campo em vésperas de batalha, uma cidade posta a saque pelas suas próprias tropas, sem uma mulher que se visse para além das meretrizes, sem uma criança, sem um animal à exceção dos cavalos de combate. Ele ergueu os olhos para a primeira cintura de pedras rente à água, no sítio onde, outrora, tinha visto Guendoloena antes de correr ao seu encontro e fugirem ambos. Não viu lá senão guardas de capa encarnada, o brilho das suas lanças e capacetes, tochas e estandartes. Por momentos pareceu hesitar, mas Amig empurrou-o para a frente, para a poterna que conduzia aos aposentos reais através de uma estreita escadaria de pedra fortemente defendida. Assim que a subiram, o ambiente tornou-se familiar ao rapaz-mago. A falésia de basalto, preta e abrupta, da mais alta das duas colinas, a casa baixa onde se tinha reunido o conselho, a encosta suave, coberta de erva rasteira, do segundo pico... O rei estava de costas, a atender uma idosa cuja jóia mais ínfima teria alimentado uma aldeia inteira durante um ano. Amig fez-lhes sinal para pararem ali, aproximou-se dele e disse-lhe algumas palavras ao ouvido. Imediatamente, Ryderc voltou-se e, sem mais se ocupar da sua interlocutora, avançou para Merlim olhando-o de frente, com um sorriso assombrado nos lábios.

— Emrys Myrddin — murmurou ele quase debaixo do seu nariz. — Acho que não te teria reconhecido com esses cabelos brancos... Exatamente. Tu és o bardo que cantou antes de Taliesin, no banquete... Agora, estou a recordar-me de ti. Tinhas fugido com a minha irmã, Guendoloena...

— É por ela que me encontro aqui.

— De verdade? Nesse caso, chegaste atrasado... Guendoloena casou, não sabias? Casou com o rei dos Escotos, Aedan, de quem teve três filhos.

Merlim teve um movimento de recuo, do qual Ryderc desdenhou.

— Claro, tu não sabias... O último, Eocho Bude, ainda está em ama-de-leite, mas o maior deve ter treze ou talvez catorze anos. Aedan deu-lhe o nome de Artur, em nossa honra. O que achas?

— É também por ele que estou aqui. Por Artur... A tua imã chamou-me em seu auxílio. Ela temia pela sua vida e pela do filho. Preciso da tua ajuda, rei Ryderc.

Este ficou calado por instantes, depois recuou e olhou à sua volta. As cabeças baixaram-se logo, mas estava demasiada gente a ouvi-los, naquele Vestíbulo. Refletiu um pouco. Em baixo, na sala comum, terminavam os preparativos do banquete. Não deixariam de comentar a passagem daquele indivíduo estranho com cabelo branco e daquele monge, escoltados por homens armados. Com um sinal de cabeça, indicou a segunda colina a Amig. Havia lá alguns aposentos que abrigavam os guardas e os alojamentos da corte. Era possível encontrar ali um sítio para falar.

Momentos depois, encontravam-se fechados num abrigo de pedra onde ficava a sala da guarda, sem outra abertura para além de uma porta baixa diante da qual se havia colocado Amig.

Ryderc desapertou o colchete de ouro que lhe segurava a capa e sentou-se à mesa. Os homens tinham deixado lá um pote de cerveja, algumas taças de terracota ou de estanho, um pão do tamanho de um escudo e um presunto encetado. Serviu-se, bebeu cerveja e voltou a pousar a taça.

— O que foi que ela disse exatamente? — insistiu, olhando alternadamente para Merlim e para o monge.

— A tua irmã teme pela sua vida — repetiu Merlim.

— Mas por quê? O que pode ter mudado para que... A menos que...

O rei levantou-se bruscamente, tombando com o seu movimento o mocho no qual se tinha sentado.

— ...A menos que seja Aedan quem tenha mudado! Agora que os Pictos estão vencidos, talvez planeie voltar-se contra nós. Aí então, sim, Guendoloena estaria em perigo.

Contornando a mesa, aproximou-se rapidamente de Merlim?

— Foi isso? Foi isso que ela te disse?

O rapaz-mago ficou algum tempo sem responder. À luz das candeias de sebo que iluminavam a sala, o colar de ouro do riothime expandia um reflexo mate, por baixo da barba grisalha do rei. A insígnia do comando. O cordão de Artur, pelo qual teria dado a vida, alguns anos atrás, e que havia custado a de Guendoleu... Ryderc viu aquele olhar, levou instintivamente a mão ao pescoço e recuou, como se Merlim fosse arrancar-lho. Recompôs-se de imediato, mas aquele reflexo de temor encheu-o de raiva, contra si próprio e contra o rapaz.

— Senhor, desculpai-me, mas foi isso — interveio Blaise.

O rei olhou mais uma vez de soslaio para Merlim e fez um esforço para conter a sua irritação.

— Quem és tu?

— Senhor, sou o padre Blaise. Eu era o confessor da rainha Al-dan. Antes de morrer, ela pediu-me que olhasse pelo príncipe.

— Sim, bom, e depois?

— Senhor, o bispo Kentigern tinha-me igualmente confiado uma missão...

Ryderc observou o religioso com um olhar diferente. Cruzou os braços, sentou-se contra a mesa e bebeu um copázio de cerveja, tépida e amarga, que pousou com uma careta.

— Eu devia mantê-lo informado da conduta do rapaz, obrigação que cumpri na medida do possível, ao longo de todos estes anos — prosseguiu Blaise. — E se me é permitido, senhor, fui eu quem remeteu o cordão ao bispo Dawi, para que vos fosse entregue.

— De verdade?

O riothime acariciou com a ponta dos dedos o pesado colar de ouro que lhe pendia ao pescoço, observando Merlim com um sorriso hilariante. Pálido como um cadáver, o rapaz dos cabelos brancos mantinha o olhar fixo em frente, com ar desfigurado.

— Nesse caso, o que é que fazes ainda na companhia dele? — inquiriu, dirigindo-se novamente para Blaise.

— Senhor, ele confiava em mim... Consegui convencê-lo a vir aqui, antes de tentar encontrar-se com a rainha em Dunadd. Só Deus sabe o mal que ele poderia ter causado, se eles se tivessem voltado a ver.

— Nada — disse Ryderc com um riso desdenhoso. — A rainha já não está em Dunadd, mas em Dundurn[53], junto do rei Aedan e do seu filho Garnait, que é atualmente o rei dos Pictos de Fortrenn. Como vês, não teria conseguido grande coisa em Dunadd, exceto deixar-se prender...

— Senhor, talvez fosse o que ele pretendia.

— O que queres dizer?

— Deixar-se apanhar por Aedan e desacreditar a rainha...

Naquele instante, Merlim lançou-se repentinamente sobre o companheiro, agarrando-o pelo pescoço e cobriu-o de insultos. Tê-lo-ia estrangulado se Ryderc e Amig não tivessem reagido. Uma chuva de golpes abateu-se sobre o rapaz até que caiu por terra, meio inconsciente. Blaise cambaleava, com o rosto arroxeado e crispado de dor. Amig teve de ajudá-lo a sentar-se e dar-lhe de beber para que se recompusesse.

— Desembainha a espada — disse-lhe Ryderc, apontando com o queixo o rapaz estendido no chão. — Se voltar a mexer-se, príncipe ou não, corta-lhe as goelas...

Foi em seguida sentar-se ao lado do monge, serviu-lhe mais bebida e brindou com ele.

— Desculpe-me, padre... Devíamos ter desconfiado dele. Blaise agradeceu-lhe com uma vênia, notando com satisfação a mudança de tom.

— Consegue falar?

— Com certeza...

— Então, continue. Como teria ele desacreditado a minha irmã?

— Julgo que bastar-lhe-ia aparecer — articulou com dificuldade o monge. — A semelhança deve ser notória.

— Que semelhança? Pela sua saúde, de que está a falar?

— O príncipe Artur, senhor, não é filho de Aedan... Ryderc olhou-o espantado.

— Queres dizer que...

Blaise limitou-se a abanar a cabeça, baixando os olhos em seguida. Durante um bom bocado, Ryderc permaneceu calado, depois cobriu o rosto com as mãos, atordoado com o que acabava de ouvir. Venha Aedan a saber de tal coisa e todos estes anos de esforços para construir uma aliança sólida entre Strathclyde e o reino de Dal Riada estariam arruinados. O Escoto nunca suportaria tal afronta.

— Senhor Deus — murmurou voltando-se para o rapaz ainda no chão. — Mas porque teria feito aquilo? Aedan tê-lo-ia feito em pedaços!

— Senhor, acho que a sua raiva para consigo é mais forte do que o preço que o prende à própria vida... Acha-vos responsável pela morte do rei Guendoleu, em Arderyd. Claro que não faz sentido, mas nunca consegui dissuadi-lo.

— Então, é isso.

Ryderc levantou-se a custo, deu com a ponta da bota nas pernas de Merlim e colocou a mão no ombro do monge.

— Padre, darei a conhecer ao bispo tudo o que fez para a glória de Deus... Zelarei para que lhe dêem uma abadia.

Blaise ia responder, mas uma voz fraca e dolorosa interrompeu-o.

— Tens o que querias, monge maldito...

Merlim levantou-se gemendo, com o rosto gaspeado de golpes.

— És um traidor. Não tens honra.

— O que julgavas? — avançou Blaise com uma raiva repentina. — Durante todos estes anos, sofri com paciência por tua causa! Para ganhar o quê? Fome, frio, miséria, desprezo de todos! Olha para ti, Emrys Myrddin. És um lapso de Deus! Serviste-te de mim durante todos estes anos, sem compreender que eu só servia a Ele! Desejo-te uma morte lenta, filho do diabo, que tenhas tempo de ver triunfar os exércitos de Deus!

Um ricto de ódio puro deformava o rosto de Merlim, que apanhou um susto ao tentar levantar-se. Nesse preciso instante a espada de Amig encostou em sua garganta.

— Guardas! — gritou Ryderc. — Levem-no. Para o calabouço, sob boa escolta, e que ninguém se aproxime dele. Respondereis por ele com a vossa própria vida.

Com a cara ainda vermelha de cólera, Blaise assoprava como uma forja e tremia de raiva, o que fez sorrir o rei.

— Venha comigo, padre... Vamos comer e beber algo, sem ser este mijo de asno pestilento. Amanhã, mandarei escrever a Kentigern.

— Senhor, agradeço-vos, não deveis tardar. A Senhora Guendoloena tem de ser avisada. Se outros, que não ele, chegassem junto do rei Aedan...

— Mas... há outros? — gaguejou o rei.

— Não sei. Durante todo esse tempo, ele pode ter falado... Vós tendes muitos inimigos.

— Senhor...

— Deixai-me ir lá. Com uma escolta, conseguirei chegar junto da rainha e possivelmente transmitir-lhe uma mensagem da vossa parte.

Ryderc mirou o monge enquanto refletia. A guerra estava apenas por uma questão de dias, semanas na pior das hipóteses. Que importava o que acontecesse depois?! A única coisa que contava, de momento, era que nada viesse romper a aliança entre Escotos e Bretões.

— Sabes escrever?

— Sim, senhor.

— Bem. Vou ditar-te uma carta, para lhe entregares em mão-própria... Amig acompanhar-te-á. Ele tem toda a minha confiança.

Com um amplo sorriso, conduziu Blaise pelo ombro, seguido pelo seu servo da gleba.

— Venham os dois... Alguma vez bebeu vinho, padre?

— Creio que nunca, para além do vinho de missa.

— Sendo assim, esta noite, Amig corre o risco de carregar consigo!

 

                               A Profecia de Columb Cille

A embriaguez tinha cedido o lugar à indolência. Os Escotos festejavam desde o meio-dia e a noite ia já adiantada. Alguns tinham-se deixado cair sobre as mesas e coziam a bebedeira, outros resmoneavam falatórios de beberrões, em pequenos grupos, mas a maior parte dos convivas havia-se retirado, enquanto ainda conseguia andar. Na mesa real, um príncipe picto recentemente convertido ressonava na cadeira, com o rosto coberto de tatuagens azuis e a boca toda aberta, à direita de um chefe militar de Cenel nCEngusa, vindo da longínqua ilha de Islay, que meneava a cabeça procurando, ao menos, manter-se direito. Alguns meses ou anos antes, os dois homens ter-se-iam esventrado um ao outro, em vez de encherem a pança à mesma mesa.

Aedan observava-os pelo canto do olho, enquanto o filho Garnait repisava o seu plano de batalha... Qual plano? O número era-lhes favorável numa altura em que os inimigos de ontem se tinham tornado numa só nação. Tal como aqueles dois soldados da velha guarda ensopados em hidromel, Escotos e Pictos tinham cessado de matar-se uns aos outros. Todos os dias, os monges da ilha de lona, obedecendo às ordens do santíssimo Columb Cille, penetravam um pouco mais nas imensidões pictas, por montanhas e vales, nos extensos pinhais selvagens das Terras Altas e até às ilhas remotas, para espalharem a palavra de Deus. Quatro anos após a batalha de Circenn, todos aqueles que não haviam perecido nesse dia ao lado do velho Brude mac Maelchon, tinham prestado juramento de fidelidade a Garnait, novo soberano. Segundo os seus costumes, só a descendência por matriarcado podia aspirar à filiação, fosse ela real, senhorial ou plebéia. Ora, Garnait, filho de Aedan, senhor de Cenel nGabrain e rei de Dal Riada de Albany[54], tinha por mãe Domelach, a própria irmã do defunto rei, e isso bastava, aos olhos dos Pictos, para legitimar o seu poder. O velho Brude, ao forçar o casamento da irmã com Aedan, julgara conseguir assenhorear-se do trono de Dal Riada por força desse costume, mas o Escoto tinha educado o filho na fé cristã, segundo a qual as mulheres não tinham qualquer direito, e as tramóias do Picto tinham-se virado contra ele próprio.

Em quatro anos, a maior parte das sete províncias do reino picto, Fortrenn, Fotlaig, Circenn, Ce e Fidach tinham-se submetido, pois segundo as leis deles, Garnait era príncipe de sangue. Só as longínquas regiões do Norte, o condado de Cait e as Órcades não tinham ainda prestado juramento de fidelidade ao novo rei, mas que perigo podiam representar aqueles bárbaros semi-nus? Chegaria a vez deles, mais cedo ou mais tarde... Por agora, era para sul que se impunha apontar as armas. A província de Fib, na fronteira de Lothian do rei Mynydog, tinha-se revoltado. Dois mosteiros haviam sido saqueados, em Dunblane e Aberfoyle, e os seus monges massacrados com uma selvajaria repugnante. Era lá que viviam os Miathi, um clã bárbaro, à margem de todo o reino, um conglomerado de tribos pictas e bretas expulsas outrora pelos Romanos para além do muro de Antonino, ponto extremo da sua vanguarda na ilha da Bretanha.

Não, não haveria plano. Evitando o confronto em batalhas campais, aqueles cães só desencadeavam combates em emboscadas. Seria assim preciso acossá-los como cães ou lobos, queimar-lhes as aldeias, matar mulheres e crianças, desencová-los até ao último. Esmagar a sua revolta pela força. Opor à sua selvajaria uma repressão tão forte que os sobreviventes ficariam para sempre marcados pelo terror... Aedan desviou o olhar da sua taça, colocou a mão sobre o braço de Garnait para o mandar calar e sorriu-lhe, com um ar enfastiado.

— Está bem — disse ele. — Amanhã daremos a ordem de marcha... Quero três ou quatro colunas de cavaleiros para cobrir o máximo de território possível e eu seguirei com a tropa. Tu vais comandar a coluna principal, com os teus Pictos. Quanto aos teus irmãos...

O rei fez uma interrupção para percorrer os grupos de convivas, à procura dos filhos. Os mais novos, Artur e Conaing, tinham adormecido, vencidos pela fadiga, tocados logo aos primeiros goles de hidromel. Tuthal não se via em nenhuma parte. Talvez tivesse encontrado boa sorte junto de uma rapariga mais indomável. Em compensação, os dois mais velhos, Eochaid Find e Domangart retesaram-se assim que viram o olhar do pai colocado neles, mas o aspecto sombrio de Aedan condensou-lhes rapidamente o sorriso de expectativa.

— ...Confia-lhes uma chefia — disse ele voltando-se. — Faz como achares melhor. Ele levantou-se pesadamente, logo imitado por todos os que, na assistência, ainda o conseguiam fazer, saindo em seguida sem se voltar, com a garganta presa e os olhos avermelhados. O ar gelado da noite fez-lhe bem. Tinha sem dúvida bebido e comido demais, como sempre... A cerveja e o hidromel faziam-lhe bater as fontes e tinham-lhe tirado as forças, ao ponto de ficar quase a chorar, como uma donzela, diante dos seus filhos e chefes militares. Tudo por causa daquele maldito vaticínio...

Eram passados três anos.

Três anos desde a coroação de Garnait como rei de Fortrenn, na sua capital Dundurn. O santo homem da ilha de lona, Columb Cule, tinha empreendido a viagem não obstante a sua velhice extrema, para sagrar-lhe o filho mais velho tal como havia feito ao próprio Aedan, muitos anos antes, em Dunadd. Era o mínimo que podiam fazer a tal ponto a sua vitória tinha qualquer coisa de miraculoso. Alguns milhares de Escotos tinham vencido o mais poderoso reino de toda a ilha da Bretanha. E, como se isso não fosse suficiente, Aedan tinha tido a honra ou a sorte de matar com as suas próprias mãos o velho Brude vingando assim a morte do seu próprio pai... Como não ver nisso um sinal de Deus e o triunfo de Columb Cule? Graças a ele e aos seus monges, os Pictos convertiam-se em massa e submetiam-se com muito mais segurança do que se exércitos inteiros tivessem reprimido o seu infindo território. E aquelas multidões de guerreiros obedeciam-lhes, agora, mais temíveis ainda, a partir da altura em que combatiam em nome de Deus e sob o comando dos Escotos, não sendo já uma massa uivante e fanática.

Naquele dia, Aedan tinha acompanhado o velho abade até ao quarto. Tinham conversado uma boa parte do dia, reavivado as memórias dos tempos antigos e fixado os empreendimentos futuros, até que o rei viesse a evocar a sua sucessão.

— Agora que Garnait se tornou Rex Pictorum, qual dos meus filhos mais velhos me irá suceder, padre santo? Artur, Eochaid Find ou Domangart?

O velho homem pareceu à primeira vista não ter ouvido. Ele já estava quase cego nessa altura e, pelo menos na mesma medida, surdo. Durante longos minutos, tinha permanecido em silêncio, como que metido consigo próprio. Em seguida, repentinamente, quando Aedan se preparava para deixá-lo, julgando que tinha adormecido, Columbano tinha-se posto de pé, ele que não se deslocava senão com a maior das dificuldades, como que transfigurado por uma visão que parecia iluminá-lo a partir de dentro.

— Os teus filhos morrerão ao travarem as tuas batalhas — havia dito. — Artur e Eochaid Find cairão sob os dardos dos Miathi e, nesse dia, trezentos e três morrerão com eles. Domangart morrerá em terras dos Anglos. Acaba de nascer aquele que vai reinar e o seu nome é Eocho Bude. Assim é a vontade do Senhor...

Três anos.

Aedan havia quase esquecido a profecia de Columb Cille, até os Miathi se revoltarem, chamando-o Garnait em seu auxílio. Artur era apenas uma criança, nessa altura. Tinha hoje treze anos, quase catorze. Era mais magro que os seus irmãos, mas da mesma altura e mais impulsivo, com uma energia pouco habitual. Bastava ver a alegria com que tinha alinhado a seu lado, vestido de militar e de espada, quando o exército tinha deixado Dunadd. Bastava vê-lo galopar com a guarda-avançada, passar firme diante do carro que transportava a mãe e os irmãos mais novos, Conaing e Eocho Bude... Como mantê-los afastados dos combates, ele e Eochaid Find, sem lhes infligir uma humilhação pior do que a morte? Eram príncipes e o seu papel era combater à frente dos exércitos do pai. Morrer também, se fosse necessário. Mas horrorizavam-no aquelas mortes anunciadas. Enviar assim os seus filhos para o sacrifício era superior às suas forças; mantê-los fora dos combates corresponderia a um impensável sinal de fraqueza... Que Garnait decida em seu lugar e que Deus ou o destino façam o resto.

O rei lançou um olhar turvo sobre a constelação de fogueiras do acampamento que rompiam o escuro em toda a volta da fortaleza. Em seguida, lentamente, curvado como um velho, começou a andar na direção dos aposentos que Garnait havia reservado à gente da casa real. Guendoloena há muito que devia estar a dormir sem desconfiar da sorte dos seus filhos, em vias de se selar... Ele notou atrás de si o roçar metálico de uma escolta de homens armados, movimentando-se para acompanhá-lo, e mandou-os embora com um latido raivoso. Que ninguém o visse assim, a gemer como uma velha, quando tantos homens iam morrer, se Columbano houvera visto bem. Trezentos e três... Senhor, se tinham de morrer tantos guerreiros para dominar uma simples revolta, quantos haviam de sucumbir contra os Anglos, numa verdadeira batalha? E, Senhor, seria mesmo necessário que se contassem entre eles os seus filhos?

Com a cabeça levantada e o corpo erguido, segurando alto a bandeira vermelha de Strathclyde com desdenhosa arrogância, Amig tinha entretanto esporeado o cavalo para passar do trote ao pequeno galope, o que Blaise tomou como um indício de inquietação, pelo menos, uma perda de postura perante o amontoado dos homens de armas que se deixavam ver às primeiras luzes do dia. Tinham dormido algumas horas na abadia de Aberfoyle para voltarem a montar à hora das laudes[55], depois das rezas. Para além do vau de Forth, um destacamento de cavaleiros escotos tinha-lhes barrado o caminho, antes de os terem deixado prosseguir. Mais longe, tinham visto duas fogueiras de outros acampamentos, mas nos acessos de Dundurn já não se tratava de grupos dispersos. Ao longo de todo o caminho encovado que seguiam, havia centenas, milhares, armados de lanças e machados, dissimulados sobre as escarpas, amontoados em volta de fogueiras na bruma da aurora ou ainda a dormir, enrolados nas suas capas. Havia ali Pictos intratáveis, cobertos de tatuagens e usando kilts de couro ruço, Escotos enroupados em seus longos mantos e cotas de malha, archeiros e soldados armados de pique, cavaleiros cobertos de ferro e toda uma infantaria de moços de armas, ferreiros, cozinheiros e monges, sob um mar de tendas e abrigos discordantes, encimado tudo por centenas de estandartes e pendões. Uma multidão pronta a marchar para sul como um rio a transbordar do seu leito, mais assustadora ainda pelo seu silêncio e a indiferença que parecia manifestar para com o seu magro esquadrão.

Quando atingiram as primeiras muralhas de Dundurn, o sol nascente tinha dissipado a bruma e começava a aquecer o cimo das colinas cobertas de geada. Ao longe, voando calmamente nas correntes de ar quente, planava um gavião, de asas esticadas. Blaise observou-o quando ele aterrou em frente ao posto da guarda e seguiu-o com o olhar por um momento, enquanto Amig parlamentava. Quando haviam deixado Dun Breatann, um gavião tinha voado do cimo da fortaleza, com um pio roufenho que tinha atraído a sua atenção. E sempre que levantara o nariz para o céu, lá estava ele, rodopiando por cima do seu destacamento. Devia ser apenas mera coincidência...

— Padre!

Blaise apressou-se a chegar-se a Amig, único com autorização para acompanhá-lo até aos aposentos reais, com a condição de andar desarmado. Quando se apresentaram à poterna do último reduto, um ruço do tamanho de uma torre mandou que os revistassem antes de os mandar avançar, escoltados por um grupo de soldados armados de pique, na direção da sala de audiências, onde tiveram de aguardar.

Durante horas, odores de cozinha vieram estimular as narinas do monge, pois o seu ventre esfomeado incomodava-o dolorosamente. Como não havia ali outra cadeira para além dos dois tronos cobertos de peles e colocados sobre um estrado, Amig e ele tinham-se sentado no chão, encostados à parede, e tinham acabado por apanhar uma piela, vencidos pela longa cavalgada. Foi assim que o arauto de Aedan os encontrou acordando-os sem deferência, apenas alguns instantes antes de entrarem na sala os soberanos escotas.

— Depressa, monge! — disse Aedan ao sentar-se. — Como pudeste ver, tenho uma guerra para gerir!

— Senhor, trago-vos os cumprimentos de Ryderc, soberano de Strathclyde e de...

— Está bem, eu conheço Ryderc! O que é que ele quer? Blaise perdeu por um instante a postura, mas inclinou-se de novo, desta vez perante a rainha.

— O vosso irmão saúda-vos, minha senhora, e confiou-me uma mensagem para vós.

— E mais nada?

— Senhor, perdoai-me — interveio Amig. — O meu senhor Ryderc faz-vos saber que os seus exércitos estão prontos para o combate e pergunta se vós também o estais.

— Pois bem, poderás informá-lo do que viste — disse Aedan com uma risota abafada. — Diz-lhe que se despache, se quiser ter ainda terras para conquistar... O exército avançará amanhã, ao romper do sol.

O Escoto voltou-se para a rainha, e por instantes os seus olhares cruzaram-se. Blaise ficou profundamente perturbado. Não era o olhar de uma esposa submissa, a tremer diante de um marido mais velho, ou de um bruto inculto para uma concubina. Guendoloena estava tão pálida quanto ele estava rubicundo, com o aspecto enfadado por uma má noite e com acentuadas olheiras. Ela mantinha-se direita, no seu vestido de lã azul onde sobressaía um grande peitoral de ouro e pedras preciosas sobre o qual recaíam os seus pesados cabelos entrançados, mas parecia ter todas as dificuldades do mundo em conter-se. Seria a iminência daquela partida que a afetava assim, ou haveria outra coisa?

— Senhor Aedan, minha senhora, não é tudo — disse ele depois de ter arranhado a garganta para atrair a atenção. — O rei Ryderc quis ditar-me uma carta que vos caberá ler de imediato, mas também me encarregou de uma petição a favor do seu irmão em Jesus Cristo.

Amig olhou-o com um ar surpreendido, que Blaise ignorou.

— A guerra corre o risco de ser longa — prosseguiu olhando de frente o Escoto. — Suficientemente longa, talvez, para manter vossa majestade afastado da rainha durante vários meses.

De novo aquela troca de olhares entre ambos, carregada de melancolia.

— A rainha poderia encontrar refúgio em Dun Breatann, longe dos combates e perto dos seus. Assim o rei não terá de ficar em cuidados pela sua segurança...

Aedan mirou o fradeco com um ar espantado, à primeira vista surpreendido com a proposta e visivelmente hesitante, entre o alívio e a irritação. Havia naquilo algo de ofensivo, a marca de uma desconfiança para com a solidez do seu reino ou fidelidade dos seus homens. Portanto, as palavras de Blaise tinham feito eco às suas próprias suspeitas. A revolta dos Miathi mostrava a que ponto o trono de Garnait assentava ainda em bases frágeis. Após a partida do exército, Dundurn seria uma presa fácil para uma facção de Pictos rebeldes e a rainha uma refém de eleição. A rainha e os seus filhos mais novos... Se a profecia de Columb Cule fosse verdade, não seria aquele o meio mais seguro de resguardar Eocho Bude, seu herdeiro?

Voltou-se para Guendoloena, que o olhou longamente de frente antes de anuir, com uma simples piscadela das pálpebras, à qual ele respondeu com um simples abanar de cabeça, antes de se dirigir a Amig.

— Quantos homens tens contigo?

— Dez cavaleiros, Senhor.

— Não chegam. Se tiver de confiar-te a minha mulher e os meus filhos, precisas pelo menos de cinqüenta, e archeiros! Está bem... Dar-te-ei a conhecer a minha decisão.

Levantou-se em seguida, tomou a mão da esposa para ajudá-la a descer do estrado e fez um gesto na direção do arauto, que se apressou a abrir a porta.

— Senhora! — gritou Blaise. — E a carta?

— Daqui a pouco. Espera por mim.

Logo que o arauto fechou a porta atrás deles e se encontraram sós na antecâmara da sala de audiências, o rei abraçou Guendoloena.

— É o que desejas? — murmurou sorvendo os seus longos cabelos negros.

— Tu sabes bem o que desejo.

— Não posso. Seria demasiado perigoso... Na guerra ninguém está verdadeiramente seguro, mesmo longe das batalhas.

A rainha não respondeu, mas estreitou-se um pouco mais contra ele.

— Prepara-te para partires amanhã — retomou Aedan. — As bagagens poderão seguir mais tarde.

Beijou-lhe os cabelos e fez menção de afastar-se dela, mas Guendoloena reteve-o.

— Falaste dos nossos filhos — disse ela olhando-o nos olhos. — Artur vem comigo?

Aedan disse que não com a cabeça.

— Garnait decidiu confiar-lhe uma chefia — confessou. — E uma honra para ele... Eu nada posso fazer.

De seguida, subtraiu-se à empresa e saiu. Guendoloena não teve uma palavra nem um gesto para detê-lo, mas obstinou-se um pouco mais ao vê-lo afastar-se e cruzou as mãos sobre a escarcela para acalmar o seu temor. Garnait sempre havia manifestado um ódio profundo para com ela e Artur. Não era com certeza uma honra que ele prestava ao seu filho...

Com um nó na garganta e os olhos a brilhar com lágrimas, voltou para a sala de audiências e interpelou vivamente o monge.

— Então, essa carta?

Blaise tirou da manga um rolo lacrado e avançou logo para ele.

— Minha rainha, trata-se de um amigo que outrora chamastes em vossa ajuda. — soprou quando chegou junto dela.

E no momento em que ela levantava para ele os seus olhos vermelhos:

— Eu era o confessor da rainha Aldan. Tenho acompanhado o príncipe Myrddin durante todos estes anos e considero-o como filho. Ele está em Dun Breatann, senhora. E sei que nunca deixou de pensar em vós.

Em seguida, inclinou-se com deferência e saiu, seguido por Amig. Fora, o gavião continuava a pairar por cima de Dundurn.

 

                                 As Três Mortes

A porta do calabouço abriu-se sobre um patamar de luz deslumbrante, no qual apareceu a figura de Guendoloena. Ela parou na soleira, o tempo dos seus olhos se habituarem ao escuro, e por momentos Merlim observou-a em silêncio, sem se mostrar.

Ela tinha medo.

Imóvel no enquadramento da porta, a rainha voltou-se para Blaise, que lhe sussurrou ao ouvido algumas palavras que o rapaz-mago não entendeu, mas que a convenceram a descer alguns degraus da enxovia na qual Ryderc o havia mandado lançar. Merlim levantou-se e avançou lentamente para ela, até ao ponto de ela se aperceber da sua presença, não sem um sobressalto de espanto que o melindrou um pouco mais.

Guendoloena tinha envelhecido. Era uma mulher e já não a jovem indolente que ele havia outrora retido em seus braços. Mulher e rainha, mais bela do que em seus sonhos, mas de uma beleza fria, para sempre inacessível. Rainha e mãe, que o tinha esquecido desde há muito e que tinha sobrevivido aos seus medos, por amor aos filhos. Os seus lindos olhos claros incidiram sobre ele, percorreram os seus cabelos brancos, as suas roupas furta-cores, o seu rosto de criança, pálida e delicada. E aquele rosto transtornou-a. Era o rosto do seu filho. De Artur, que ficara em Dundurn...

Ela esboçou um movimento na sua direção, hesitou, e depois voltou parcialmente a cabeça para a porta do calabouço. Blaise encontrava-se lá, segurando uma tocha que, a um sinal da rainha, colocou no tocheiro. Ao sair, o monge procurou o olhar de Merlim. O rapaz agradeceu-lhe com um sorriso que lhe trouxe as lágrimas aos olhos.

— Finalmente, vieste — resfolgou ela assim que ele fechou a porta. — Depois de todos estes anos...

Ela tinha dado um passo na sua direção, mas mantinha-se inultrapassável a distância que os separava. Apesar dos cabelos brancos, Merlim não parecia nada mais velho do que Artur e parecia-se com ele mais como um irmão mais velho do que como pai. Uma semelhança tal que o amor que ela sentia pelo filho mentalmente o transportou para Merlim e, ao ver-lhe os olhos cheios de desespero, ficou com o coração despedaçado.

— Sei que é demasiado tarde — disse ele. — Perdoa-me... Guendoloena abanou a cabeça e voltou a aproximar-se.

— Eu é que te peço perdão, Emrys. O irmão Blaise falou-me da vossa longa viagem, de tudo aquilo por que passaram. Muitas coisas me pareceram inacreditáveis, até que te vejo... Não devia ter-te enviado Cylid.

— Estavas em perigo.

— Já não estou, Emrys. Julgava estar rodeada de inimigos, mas não era verdade. Aedan... Aedan ofereceu-me mais do que eu esperava.

— Filhos.

— Sim, mais filhos. E o seu amor... Ele cuidou de Artur como se fosse seu próprio filho, mesmo que não pudesse acreditar que fosse dele. Até podia tê-lo mandado matar à nascença. Mas amou-o, Merlim, como aos nossos outros filhos.

Ela estava tão próxima dele, ao ponto de erguer a mão até ao rosto de Merlim e passá-la pelo seu rosto banhado em lágrimas.

— É mais do que aquilo que alguma vez fiz — murmurou ele, fechando os olhos.

— Tu deste-lhe a vida... É mais do que ele fez.

Merlim ergueu a cabeça e sorriu. Os seus rostos estavam muito juntos, como nos longínquos dias do seu amor. Ela continuava com a mão sobre a face dele.

O rapaz esticou o pescoço e beijou-a nos lábios.

— Adeus, minha rainha. Tenho de ir.

Ela franziu as sobrancelhas, mas disfarçou, sem procurar retê-lo nem entendê-lo. Calmamente, ele avançou até aos degraus, subiu-os e bateu à porta da sua masmorra. Blaise abriu-a logo, com o rosto desfigurado.

Abraçaram-se sem uma palavra, apertados um contra o outro. Em seguida, Merlim afastou-a calmamente e sorriu-lhe.

— Preciso ainda de ti, meu irmão...

O monge não conseguia responder, mas deu consentimento com a cabeça. Merlim franziu os olhos ao contemplar o céu, ofuscado pela luz do dia. Respirou fundo e saiu.

Dois guardas armados estavam sentados junto ao cárcere. O primeiro conseguiu levantar-se antes que o rapaz-mago lhe batesse em cheio e o mandasse aos tombos sobre a erva. O outro ia agarrar-se a ele quando Blaise se pendurou na sua capa gritando:

— Detenham-no! Vai fugir!

Enquanto o guarda se desembaraçava do monge, Merlim tinha fugido e subia a toda a brida as frontarias, não na direção dos baluartes e do mar, mas em sentido contrário, na direção dos aquartelamentos reais. Os gritos de alarme iam ficando para trás dele e nenhum dos que encontrou pelo caminho teve tempo ou coragem para o deter. Nem os guardas colocados à porta de Ryderc, que se afastaram do rapaz como se fosse o diabo em pessoa. Estava ofegante quando empurrou a porta com as costas.

Ryderc encontrava-se à mesa, debruçado sobre um mapa. Voltou-se por completo quando a porta se voltou a fechar e estremeceu ao ver Merlim. O rei estava desarmado. A espada e o punhal descansavam numa caixa, tal como o escudo e o cordão de Artur.

— Vieste matar-me? — articulou penosamente encarando-o.

— Absolutamente, não...

O rapaz avançou sem pressa, com os olhos fixos em Ryderc, e agarrou com as duas mãos o pesado colar de ouro, que apertou contra si.

— Vim por isto.

Sem desviar o olhar do rei, Merlim recuou até à porta.

— Como achas que vais escapar? — perguntou Ryderc. — Antes da noite, terei a tua cabeça na ponta de uma lança!

— Antes da noite estarei morto. Morrerei de três mortes, traspassado, afogado e enforcado. Mas não conseguirás a minha cabeça.

— Isso não faz sentido.

Merlim abriu a porta, com o colar sempre apertado contra o peito. Avançou ao longo dos corredores desertos, saiu dos aquartelamentos reais e dirigiu-se para a mais alta das duas colinas, que subiu sem pressa, até ao fortim que lhe coroava o cume. Aí, ergueu-se sobre a paliçada de toros que se erguia sobre o estuário do Clyde, a mais de dez perchas acima do mar. O vento tinha parado. Gaivotas descreviam círculos um pouco mais abaixo, emitindo o seu grito roufenho. Um sol encoberto fazia cintilar o rio, salpicado de velas brancas. Rico tempo para a pesca. Todos os coracles deviam ter saído.

— Por amor de Deus, desce daí!

O rapaz voltou-se lentamente e olhou-os de frente. Ryderc tinha disposto os seus homens, ao longo da paliçada, aproximando-se dele por todos os lados. Sem uma palavra, estendeu o braço, segurando o colar por cima, a pique. Com um gesto, o rei parou a progressão dos guardas.

— Não faças isso! — gritou. — Entrega o colar e a tua vida será salva. Juro perante todos!

— Por que haveria eu de querer a vida salva?

Merlim começou a rir, em seguida elevou os olhos ao céu e voltou-se para o precipício.

— Não faças isso! — gritou novamente Ryderc, arrancando um chuço das mãos de um dos seus guardas.

Merlim já não o ouvia. Com um nó na garganta, deslizou por entre as mãos o colar de ouro, com uma polegada de espessura e gravado a todo o comprimento com delicados ornatos entrelaçados. Na extremidade do colar, duas efígies representavam um javali e um urso. O javali de Lug, Deus supremo do panteão celta, e o urso que tinha valido o nome a Artur... Doravante, mais ninguém poderia reclamá-lo.

Com uma espantosa calma, o rapaz lançou o colar de ouro no vazio. Viu-o a rodopiar e cair no rio, a vinte braças das margens. Voltou-se então para os soldados do rei.

— Acabou-se, Ryderc! — gritou com voz possante. — Já não vales nada! Faz a tua guerra, perdê-la-ás. Amaldiçoo-te, a ti e à tua descendência! Amaldiçôo as tuas guerras e o teu Deus! Hlystan Myrddin, beorn lyft leodl Onginna leofian! Onginna leofian!

Branco e furioso, Ryderc atirou o chuço, que o atravessou de um lado ao outro. E sem um grito, Merlim caiu para trás, desamparado.

Por momentos, os homens presentes no fortim ficaram tomados de assombro, depois Ryderc lançou-se colina abaixo com um grito de raiva e desceu as frontarias até às primeiras cinturas de muralhas. Ofegante, rompeu por entre a infantaria amontoada pelas ruelas da cidade baixa para irromper no porto, por baixo do fortim. Havia ali uma multidão tumultuosa através da qual abriu brutalmente passagem.

Ao cair, Merlim tinha quebrado as estacas onde estavam a secar as redes de pesca. Uma delas enrolara-se no pescoço partindo-lhe a nuca, antes de mergulhar na água, um bocadinho apenas abaixo da superfície. Ryderc caiu de joelhos, esbaforido e com o rosto encarnado pela louca corrida. Os longos cabelos brancos do rapaz-mago ondulavam como algas na ressaca, mas o corpo estava sem vida.

Três vezes morto.

Traspassado, enforcado, afogado.

O espírito de Merlim vogou no rio, em direção ao mar. Ele foi uma enguia a deslizar por entre as rochas, um grande moleiro[56] mergulhando do alto das falésias, um gavião, mais uma vez, a regressar para Dundurn. Como uma ave, voltou a subir o rio e costeou as altas colinas, onde homens aos berros avançavam para a luta.

A batalha de Aedan já estava comprometida.

 

Foram anos terríveis, para Escotos e Bretões. As colunas de cavalaria comandadas por Artur mac Aedan e Eochaid Find caíram numa emboscada perto de um rio chamado Dubglas, sendo exterminados até ao último pelos Miathi, sem que Garnait tivesse acorrido em seu auxílio. Como havia vaticinado o santo homem, pereceram trezentos e três, e ainda os dois príncipes.

Mais tarde, Aedan perdeu quase todo o seu exército em Degsastan na luta contra Ethelfrith, filho de Ethelric, rei dos Anglos da Nortúmbria. O rei Mynydog, soberano dos Manau Goddodin, foi por sua vez vencido na batalha de Cattraeth, tendo o seu bardo Aneurin escrito o poema I Goddodin para perpetuar a memória de todos os que pereceram naquele dia, na primeira linha dos quais o jovem príncipe Owen.

Geralmente, Owen, andavas montado a cavalo; eis-te abatido diante da trincheira, tu a mais bela linhagem. É sem medida, é sem fim que devo cantos a este chefe dos chefes, sobre quem se estende e comprime, assim como sobre os seus oficiais, uma campa verde[57].

Ryderc de Strathclyde, Urien Rheged e os chefes Morcant e Gwallaug repeliram o rei Teodorico da Bernícia até à ilha de Lindisfarne, mas estava destinado que os exércitos bretões não conheceriam nem mais uma vitória. Uma noite, o príncipe Morcant, senhor de Strathclyde, mandou assassinar Urien de Rheged, cuja glória lhe fazia sombra. E o bardo de Urien Liwarc’h Henn cantou a sua trágica morte:

Trago a meu lado a cabeça de Urien que com ponderação comandava o exército; sobre o seu peito imaculado, um corvo negro!

Trago na minha túnica a cabeça de Urien que com ponderação dirigia a corte; sobre seu peito imaculado, empanturra-se o corvo[58].

Alguns anos mais tarde, em 596, o papa Gregório enviou santo Agostinho para a ilha da Bretanha, acompanhado por um exército de monges, a fim de evangelizarem os Anglos e os Saxões. Os dois primeiros bispos saxônios, Justus e Mellitus, foram sagrados em 604.

O rei Ryderc desapareceu em 612, pouco depois da sua fortaleza de Dun Breatann ter sido destruída pelo seu antigo aliado, Aedan mac Gabran. Diz-se que morreu no seu leito, tal como havia pressagiado Columb Cule.

Houve muitas outras guerras na ilha da Bretanha, mas é assim que acaba a história de Merlim, filho e pai de Artur, nem propriamente filho nem propriamente pai, cuja alma se diz continuar a viver em Broceliande, perto de Gwendyd.

 

 

[1] Nome que os Celtas da ilha da Bretanha davam à Armórica. Os autóctones chamavam-se Letivi.

[2] Do latim Longa navis, grande navio à vela e a remos, à moda romana.

[3] Mil passos, mais ou menos quilômetro e meio.

[4] «A querida família», ou Glas Chu, «a querida terra verde», antigos nomes gaélicos de Glasgow.

[5] Atualmente Cirencester e Gloucester.

[6] Arpento — medida celta correspondente ao espaço lavrado por uma junta de bois num dia. (N. do T.)

[7] Paulo Aureliano, fundador do mosteiro na ilha de Batz (Insula Battha) e depois bispo de Leão, que deu o nome à cidade de Saint-Pol.

[8] A terceira hora do dia, nove da manhã.

[9] A Irlanda.

[10] «Porque não é coroado senão quem a isso consagrou legitimamente todos os seus esforços.»

[11] Hoje Saint-Pol-de-Léon.

[12] O «país das duas águas», um dos nove pagus — ou cantões — da Domnónia armoricana na alta Idade Média.

[13] Pequeno fortim construído sobre uma leva de terra, dominando sobre concessões de caráter servil.

[14] Kynan Meyryadawc, segundo a lenda primeiro rei bretão por volta de 380. O nome Kynan contém a raiz bretã Ki, o cão.

[15] Literalmente «o forte». Atualmente, Chester.

[16] Tradução do nome galês Gwynedd, região montanhosa do Norte dominada pelo maciço do Eryri, também chamado Snowdonia.

[17] Hoje Bath, oito milhas a sul de Derham.

[18] Sawel o Ruço.

[19] Hoje o rio Severn.

[20] Antigo campo romano, literalmente «o campo das legiões», próximo de Cardiff, no sul do país de Gales.

[21] Levítico 12:2,12:4 (N. da E.)

[22] Levítico 12:6,12:8 (N. da E.)

[23] Lévitico, 12:7 (N. da E.)

[24] «Não rejeites as orações que vos dirigimos nas nossas necessidades, mas livrai-nos de todos os perigos» (Sub Tuum Praesidium).

[25] Hoje Carhaix.

[26] «Mas sei o que vi, e tu também sabes. Esta criança não é deste mundo.

[27] «Enganas-te! Aquela criança...»

[28] «Tens razão, Cetomerinus... eu não pertenço ao teu mundo.»

[29] Atualmente Chester, Rhuddlan e Llandudno.

[30] Animais de carga.

[31] Atualmente, Plounéour-Menez.

[32] O reino de Lloegr, ou Logres, representa as terras da Bretanha ocupadas pelas tribos saxônias.

[33] Apelido bretão do reino de Rheged, no norte da Inglaterra.

[34] Nome romano de Cirencester (Caer Geri para os Bretões), um dos maiores aglomerados da época romana, capital da província Brittania Prima, de que dependia Glevum (Gloucester), «a cidade brilhante».

[35] Retirado da Ode BT 62 bis, Taliesin.

[36] O intendente.

[37] Hoje Vannes e Castennec.

[38] O maior reino da Bretanha armoricana, que compreendia toda a parte setentrional da península. O rei Commore ou Conomore, apoiado pelo rei franco Chil-debert, mandou matar o soberano legítimo, Jonas. O filho deste, Judual, retomou o poder graças à ajuda de São Samson. Conomore talvez tenha sido igualmente soberano da Domnónia britânica.

[39] Respectivamente a sexta (onze e meia) e a tércia (nove horas) horas do dia.

[40] Bispados de Mans e de Tours.

[41] Divisões territoriais da época de Carlos Magno.

[42] Diocese de Leão, bispado de Kastell Paol.

[43] Em 567.

[44] Mateus, 18.

[45] Disposição que sujeitava os clérigos unicamente à jurisdição dos tribunais eclesiásticos. O foro interior é a consciência de cada um, o foro exterior a decisão da Igreja.

[46] 2 Tessalonicenses, 3:6.

[47] Hoje Gael.

[48] Hoje, Gael e Ploêrmel.

[49] Hoje, Loudéac.

[50] Tradução literal do termo Dru Wid, que está na origem da palavra «druida»

[51] Extratos de Cat Goddeu, «o combate das árvores», de Taliesin.

[52] Em 584.

[53] Capital de Fortriu, ou Fortrenn, a maior das sete províncias pictas.

[54] Antiga designação da Escócia.

[55] Três da manhã.

[56] Ave marinha da Antártida e Amazônia. (N. do T.)

[57] I Goddodin, LIV, tradução de Theodore Hersart de la Villemarqué.

[58] Canto da morte de Urien, tradução de Theodore Hersart de la Villemarqué.

 

                                                                                Jean Louis Fetjaine  

 

                      

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