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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CAMINHO PARA CANÁ / Anne Rice
O CAMINHO PARA CANÁ / Anne Rice

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CAMINHO PARA CANÁ

 

QUEM É CRISTO SENHOR?

Os anjos anunciaram seu nascimento. Magos do Oriente levaram presentes: ouro, incenso e mirra. Deram esses presentes para ele, para a mãe dele, Maria, e para o homem, José, que afirmava ser seu pai.

No Templo, um velho pegou o bebê nos braços. O velho disse para o Senhor, segurando o bebê: “A luz da revelação para os gentios e glória para o seu povo, Israel.”

Minha mãe me contou essas histórias.

Isso foi muitos anos atrás.

É possível que Cristo Senhor seja um carpinteiro na cidade de Nazaré, um homem com mais de trinta anos de idade, de uma família de carpintei­ros, família de homens, mulheres e crianças que ocupam dez cômodos de uma casa antiga e que, nesse inverno sem chuva, de seca interminável, de conversas sobre problemas na Judéia, Cristo Senhor durma com um manto gasto de lã, num quarto com outros homens, ao lado de um braseiro fume­gante? Será possível que nesse quarto, dormindo, ele sonhe?

Sim. Eu sei que é possível. Eu sou Cristo Senhor. Eu sei. O que devo saber, sei. E o que devo aprender, aprendo.

E neste corpo eu vivo, transpiro, respiro e sofro. Sinto dor nos ombros. Meus olhos estão secos com esses intermináveis dias sem chuva, com as longas caminhadas até Séforis pelos campos cinzentos nos quais as semen­tes se desidratam ao fraco sol de inverno porque as chuvas não vêm.

Eu sou Cristo Senhor. Eu sei. Outros sabem, mas o que eles sabem mui­tas vezes esquecem. Minha mãe não diz uma palavra sobre isso há anos. Meu pai adotivo, José, agora está velho, de cabelos brancos e dado a devaneios.

Eu nunca esqueço.

E, quando adormeço, às vezes sinto medo, porque meus sonhos não são meus aliados. Meus sonhos são selvagens como as samambaias ou os repen­tinos ventos terrais que se abatem sobre os vales da Galiléia.

Mas eu sonho, como todos os homens sonham.

E assim esta noite, ao lado do fogareiro, mãos e pés gelados, sob o meu manto, sonhei.

Sonhei com uma mulher, próxima, uma mulher, minha, uma mulher que se tornou donzela, que se tornou minha Abigail no tumulto constante dos meus sonhos.

Despertei. Sentei-me no escuro. Todos os outros ainda dormiam de bocas abertas e o carvão no fogareiro tinha virado cinza.

Vá embora, menina amada. Não devo conhecer isso, e Cristo Senhor não conhe­cerá o que não deseja conhecer... ou o que só conheceria pela forma da sua ausência.

Ela não queria ir... não ela, a Abigail dos sonhos, com o cabelo solto sobre as minhas mãos, como se o Senhor a tivesse criado para mim no Jardim do Éden.

Não. Talvez o Senhor criasse os sonhos para transmitir esse conhecimento... assim parecia ao Cristo Senhor.

Levantei-me da esteira e, procurando não fazer barulho, pus mais carvão no fogareiro. Meus irmãos e sobrinhos não se mexeram. Tiago estava com sua mulher esta noite em outro quarto. O pequeno Judas e o peque­no José, ambos pais, também dormiam ali, longe dos filhos e se aconche­gando às suas esposas. E lá dormiam os filhos de Tiago: Menachim, Isaac e Shabi, amontoados como ninhada de filhotes.

Passei por cima de um após outro e peguei um manto limpo da arca, a lã cheirava ao sol sob o qual havia secado. Tudo naquela arca estava limpo.

Peguei o manto e saí da casa. Uma lufada de ar gelado no pátio deser­to. O estalido das folhas secas no chão.

Parei um segundo na rua de pedras e olhei para a vastidão de estrelas cintilantes além dos telhados agrupados.

O céu frio e sem nuvens, tão repleto daquelas luzes infinitesimais, pareceu belo naquele instante. Meu coração ficou apertado. Parecia que aquele céu olhava para mim, me envolvia... algo de bondade e de presença, uma rede imensa lançada por uma única mão... e não a vastidão inevitável da noite sobre a minúscula cidade adormecida, que se espalhava como cente­nas de outras na encosta entre cavernas distantes de ossos e campos seden­tos e bosques de oliveiras.

Eu estava sozinho.

Em algum lugar mais abaixo na encosta da colina, perto do mercado antigo, um homem cantava com voz grave e ébria, e uma centelha de luz brilhava ali, na entrada da taverna de outrora. Eco de risadas.

Mas todo o resto era silêncio, sem uma tocha para iluminar o caminho.

A casa de Abigail diante da nossa estava fechada como qualquer outra. Lá dentro, Abigail, minha jovem parenta, dormia com Hannah Silenciosa, sua doce companheira, e com as duas velhas que serviam a ela e ao homem amargo, Shemayah, seu pai.

Nazaré nem sempre teve uma beldade. Eu tinha visto gerações de jovens donzelas crescerem, cada uma mais fresca e adorável de ter como qualquer flor silvestre. Os pais não queriam que suas filhas fossem belas. Mas Nazaré agora tinha uma bela e era Abigail. Recentemente recusara dois pretendentes, ou seu pai os havia recusado por ela, e havia uma dúvi­da real nas mentes das mulheres da nossa casa, se Abigail chegara a conhe­cer os pretendentes que a cortejavam.

De repente, me dei conta de que muito em breve estaria entre os tocheiros no casamento dela. Abigail tinha quinze anos. Poderia ter se casado um ano atrás, mas Shemayah não deixava. Shemayah era um homem rico que só possuía uma coisa, a única coisa que lhe dava felicidade, sua filha, Abigail.

Subi a colina e fui além do cume. Conhecia cada família que morava atrás de cada porta. Conhecia os poucos forasteiros que chegavam e par­tiam, um encolhido num pátio do lado de fora da casa do rabino e o outro no telhado lá em cima, onde tantos dormiam, mesmo no inverno. Era uma cidade calma no dia-a-dia e aparentemente não guardava nenhum segredo.

Desci pelo outro lado da encosta até chegar à fonte, a poeira subia com cada passo que eu dava e acabei tossindo, sufocado.

Poeira, poeira e poeira.

Obrigado, Pai do Universo, por esta noite não estar tão fria, não, não tão fria como poderia estar, e mande-nos a chuva de acordo com a Sua vontade, porque sabe que precisamos dela.

Quando passei pela sinagoga, ouvi a fonte antes de poder vê-la.

A fonte estava secando, mas por enquanto ainda jorrava e enchia duas bacias cortadas na rocha, no meio da colina, e escorria ladeira abaixo em fios cintilantes até o leito pedregoso por onde seguia em direção à floresta ao longe.

O capim ali crescia macio e fragrante.

Eu sabia que, em menos de uma hora, as mulheres iam chegar, algumas paia encher os cântaros, outras, as mais pobres, para lavar as roupas da melhor maneira possível e batê-las nas pedras.

Mas por hora a fonte era minha.

Despi o velho manto e o pus no leito do riacho, onde a água o enchar­cou bem depressa, deixou-o escuro a ponto de não poder mais vê-lo. Coloquei o manto limpo ao lado, numa pedra, e me aproximei da bacia. Lavei-me com a água gelada nas duas mãos em concha, molhei o cabelo, o rosto, o peito, deixei a água escorrer pelas costas e pelas pernas. Sim, jogue fora os sonhos como o velho manto e lave-os até que se vão. A mulher do sonho agora não tem nome nem voz, e o que era, aquela pontada dolorida quando ela ria ou estendia a mão, bem, isso se foi, desaparecendo aos pou­cos, como a própria noite, e como a poeira da terra seca, sufocante, que não existia naquele momento. Havia apenas a água.

Deitei-me na margem mais distante, do outro lado da sinagoga. Os passarinhos haviam começado a cantar e, como sempre, não notei o instante exato. Era uma brincadeira que eu fazia, de tentar ouvir o primeiro de todos os passarinhos, as aves que sabiam que o sol estava nascendo, quando ninguém mais sabia.

Vi as grandes e largas palmeiras em volta da sinagoga surgindo da mancha de sombras disformes. Palmeiras cresciam na seca. Elas não se importa­vam se a poeira cobrisse todos os seus galhos. Permaneciam como se feitas para todas as estações.

O frio estava fora de mim. Acho que o bater do coração me mantinha aquecido. Então a primeira luz se insinuou além do penhasco distante, peguei o manto limpo e o vesti pela cabeça. Tão gostoso, o tecido suntuo­samente limpo, com cheiro de água e de sol.

Deitei-me outra vez e meus pensamentos vagaram livres. Senti a brisa antes de ouvir as árvores suspirando com ela.

Bem no alto do morro, havia um bosque de oliveiras onde eu gostava muito de ficar nos momentos de solidão. Pensei nele. Que bom seria me deitar naquele leito macio de folhas mortas e dormir o dia inteiro.

Mas não tinha como, não com as tarefas que precisava cumprir, com a aldeia repleta de novas preocupações e noticias de um novo governador romano que, ao chegar à Judéia, provocaria tumultos na terra, por toda parte, enquanto não tomasse posse como todos os outros governadores tinham feito.

A terra. Quando digo a terra, me refiro à Judéia e também à Galiléia. Falo da Terra Santa, a Terra de Israel, a Terra de Deus. Não havia dúvida de que esse homem nos governava. Ele governava a Judéia e a Cidade Santa onde ficava o Templo, por isso podia também ser o nosso rei em vez de Herodes Antipas. Trabalhavam juntos, Herodes Antipas, tetrarca de um quarto da Galiléia, e esse novo homem, Pôncio Pilatos, que era temido por muitos, e, além do rio Jordão, Herodes Filipe governava e trabalhava com eles também. E assim a terra era explorada havia muito e muito tempo, e Antipas e Filipe nós conhecíamos, mas Pôncio Pilatos não, e as notícias já eram más.

O que podia um carpinteiro de Nazaré fazer? Nada, mas sem chuva, com os homens inquietos, com raiva e cheios de medo, com o povo falando da maldição divina sobre a relva seca, as desfeitas dos romanos, um imperador angustiado no exílio lamentando o filho envenenado, quando o mundo todo se sentia pressionado a oferecer o ombro para reunir forças, bem, com tudo isso, eu não ia para o bosque de oliveiras dormir o dia inteiro.

Estava clareando.

Alguém se destacou das formas escuras das casas da aldeia, descendo a ladeira correndo, na minha direção, com uma mão levantada.

Meu irmão Tiago. Irmão mais velho, filho de José e da sua primeira mulher, que morreu antes de José se casar com a minha mãe. Não dava para confundir Tiago, por causa do cabelo comprido, amarrado na nuca e cain­do pelas costas, seus ombros estreitos e ansiosos, e a velocidade com que ele veio, Tiago, o nazareno, Tiago, o capitão da nossa equipe de operários, Tiago, que agora, com a velhice de José, era o chefe da família.

Ele parou do outro lado da pequena fonte, em grande parte um manto de pedras secas com o fio faiscante de água borbulhando bem no meio, e eu pude ver claramente o rosto dele olhando para mim.

Tiago foi pisando numa grande pedra, depois em outra e mais outra, atravessando o riacho para chegar aonde eu estava. Tinha me sentado e me pus de pé, cortesia habitual pelo meu irmão mais velho.

— O que você está fazendo aqui? — ele quis saber. — O que há com você? Por que sempre me enche de preocupação?

Eu não disse nada.

Ele ergueu as mãos exasperado e olhou para as árvores, para os campos, em busca de uma explicação.

— Quando vai desposar uma mulher? — ele perguntou. — Não, não me interrompa, não levante a mão para me silenciar. Não vou me calar. Quando vai se casar? Por acaso está comprometido com esse riacho miserável, com essa água gelada? O que fará quando ele secar? Porque sabe que este ano ele vai secar, não sabe?

Eu ri disfarçadamente.

E ele continuou:

— Há dois homens com a sua idade nesta cidade que nunca se casaram. Um é aleijado. O outro é um idiota e todos sabem disso.

Ele tinha razão. Eu tinha passado dos trinta e continuava solteiro.

— Quantas vezes falamos sobre isso, Tiago? — perguntei.

Era lindo observar a luz cada vez mais forte, as cores surgindo nas pal­meiras em volta da sinagoga. Pensei ter ouvido gritos ao longe. Mas talvez fosse apenas o barulho comum de uma cidade saindo de baixo das cobertas.

— Diga-me, o que está realmente incomodando você esta manhã? — perguntei. — A cada ano, você se parece mais com seu pai — eu disse. — Mas nunca fica igual a ele de verdade. Nunca assume a paz de espírito que ele tem.

— Eu nasci preocupado — Tiago confessou, sacudindo os ombros.

Ele olhava ansioso para a aldeia.

— Está ouvindo isso?

— Estou ouvindo alguma coisa — eu disse.

— Esta é a pior estiagem que já tivemos — ele disse, olhando para o céu. — E, apesar de fazer frio, não é suficiente. Você sabe que as cisternas estão quase vazias. A mikvah está quase vazia. E você, você é uma preocupação constante para mim, Yeshua, uma preocupação constante. Você vem para cá no escuro, para o riacho. Vai para aquele bosque aonde ninguém ousa ir...

— Estão errados sobre o bosque — eu disse. — Aquelas pedras antigas não significam nada.

Era uma superstição na aldeia, de que algo pagão e terrível tinha acontecido um dia naquele bosque. Mas eram apenas as ruínas de uma antiga prensa de azeitonas, pedras que existiam anos antes de Nazaré ser Nazaré.

— Digo isso para você uma vez por ano, não digo? Mas não quero preocupá-lo, Tiago.

 

ESPEREI TIAGO FALAR.

Mas ele não disse mais nada, ficou apenas olhando fixamente para o lado da aldeia.

Pessoas gritavam, muita gente gritava.

Passei os dedos no cabelo, virei e olhei também.

Quando o dia clareou, vi um grande grupo no alto da colina, homens e meninos se engalfinhando e empurrando uns aos outros, a turba descen­do lentamente a encosta na nossa direção.

Do meio daquela confusão, apareceu o rabino, o velho Jacimus, e com ele seu jovem sobrinho, Jasão. Vi que o rabino tentava fazer a multidão parar, mas ele foi empurrado para o pé do morro, para a sinagoga, enquanto o grupo avançava como o estouro de uma manada, até que todos pararam na clareira diante das palmeiras.

Da encosta do outro lado do riacho, podíamos vê-los claramente.

Do meio deles, apareceram dois jovens, Yitra bar Nahom e, ao lado dele, o irmão de Hannah Silenciosa, o que chamávamos simplesmente de Órfão.

O rabino subiu correndo os degraus que davam no telhado da sinagoga.

Eu ia chegar mais perto, mas Tiago me segurou com força.

— Fique fora disso — ele disse.

As palavras do rabino Jacimus soaram mais altas do que o barulho do ria­cho e o vozerio da multidão.

— Teremos um julgamento aqui! — ele exigiu. — E quero as testemunhas, onde elas estão? As testemunhas vão se adiantar e dizer o que viram.

Yitra e o Órfão ficaram de lado, como se um abismo intransponível os separasse dos aldeões furiosos. Alguns erguiam os punhos cerrados, outros xingavam baixinho as maldições que nem precisavam das palavras para trans­mitir seu significado.

Mais uma vez, quis me aproximar, mas Tiago me puxou de volta.

— Fique fora disso — ele disse. — Eu sabia que isso ia acontecer.

— O quê? Do que você está falando? — perguntei.

A multidão começou a gritar e protestar. Apontaram dedos. Alguém berrou.

— Abominação.

Yitra, o mais velho dos dois acusados, ainda olhava desafiador para o grupo à sua frente. Era um menino bom, de que todos gostavam, um dos melhores na escola e, quando foi levado ao Templo no ano passado, deixou o rabino orgulhoso com suas respostas para os mestres.

O Órfão, menor do que Yitra, estava branco de medo, com os olhos negros arregalados e a boca tremendo.

Jasão, sobrinho do rabino, Jasão, o Escriba, se adiantou, subiu ao telhado e repetiu as declarações do tio.

— Parem com essa loucura agora! — exclamou. — Teremos um julgamen­to de acordo com a lei, e vocês, testemunhas, onde estão? Estão com medo, vocês que começaram isso?

A multidão berrava e encobria a voz dele.

O pai de Yitra, Nahom, subiu a encosta correndo, junto com a mulher e as filhas. A multidão reiniciou a onda de insultos e acusações, com os punhos cerrados para o alto e batendo os pés. Mas Nahom abriu caminho no meio da turba e olhou para o filho.

O rabino não parava de ordenar que parassem com aquilo, mas nós não conseguíamos mais ouvi-lo.

Parecia que Nahom estava dizendo alguma coisa para o filho, mas não pude ouvir o que era.

Então a multidão chegou ao ápice da fúria, Yitra estendeu os braços, talvez sem pensar, ninguém podia adivinhar, e puxou o Órfão para perto dele, num gesto protetor.

Eu gritei:

— Não.

Mas minha voz se perdeu na balbúrdia. Saí correndo.

Pedras voavam. A multidão era uma massa compacta sob o assobio das pedras que subiam e caíam na direção dos meninos no meio da clareira.

Abri caminho empurrando as pessoas para chegar até onde estavam os meninos, com Tiago logo atrás de mim.

Mas estava tudo terminado.

O rabino rugia como um animal no telhado da sinagoga.

A multidão ficou em silêncio.

O rabino, cobrindo a boca com as mãos, olhava para o monte de pedras abaixo dele. Jasão balançou a cabeça e se virou de costas.

A mãe de Yitra soltou um uivo, depois se ouviram os soluços das irmãs dele. As pessoas foram embora. Subiram correndo a colina ou partiram apressadas pelos campos, atravessando o riacho e subindo a encosta da outra margem. Fugiram para onde podiam.

E então o rabino levantou os braços.

— Corram, sim, fujam do que fizeram aqui! Mas o Senhor nas Alturas está vendo! O Senhor nas Alturas está vendo isso! — Ele cerrou os punhos — Satã governa Nazaré! — ele berrou. — Corram, corram de vergonha pelo que fizeram, corja miserável e sem lei!

Ele pôs uma mão de cada lado do rosto e começou a soluçar, mais alto do que as mulheres de Yitra. Curvou o corpo para a frente, aos prantos. Jasão o abraçou.

As mulheres de Yitra foram reunidas e tiradas de lá por Nahom. Ele olhou para trás uma vez e depois arrastou a sua mulher morro acima, com as meninas correndo atrás.

Ficaram apenas os desgarrados, alguns trabalhadores das fazendas e as crianças espiando dos seus esconderijos embaixo das palmeiras ou atrás das portas ali perto — e Tiago e eu, olhando para o monte de pedras e os dois meninos que jaziam ali, juntos.

Yitra tinha o braço no ombro do Órfão e a cabeça sobre o peito dele. O sangue escorria de um ferimento na cabeça do Órfão. Os olhos de Yitra estavam semi-abertos. Só tinha sangue no cabelo.

Toda a vida tinha se esvaído deles.

Ouvi o barulho de passos... dos últimos homens indo embora às pressas.

José veio se juntar a nós na clareira e com ele o velho rabino Berekhiah, que mal conseguia andar, e os outros de cabelos brancos que formavam o grupo de anciãos da aldeia. Meus tios Cleofas e Alfeu estavam lá também. Ficaram ao lado de José.

Todos pareciam sonolentos, confusos e, depois, atônitos.

José olhou fixamente para os meninos mortos.

— Como foi que isso aconteceu? — ele sussurrou, olhando para Tiago e para mim.

Tiago suspirou. Lágrimas escorriam pelo seu rosto.

— Foi... assim — ele murmurou. — Nós devíamos... Não imaginei...

Ele abaixou a cabeça. Acima de nós, no telhado, o rabino soluçava no ombro do sobrinho, que olhava para o outro lado, para os campos, seu rosto uma imagem da mais profunda tristeza.

— Quem os acusou? — perguntou tio Cleofas, depois olhou para mim. — Yeshua, quem os acusou?

José e o rabino Berekhiah repetiram a pergunta.

— Eu não sei, pai — eu disse. — Acho que as testemunhas não se apresen­taram.

O rabino soluçava sem parar.

Fui até o monte de pedras.

Mais uma vez, Tiago me puxou para trás, só que dessa vez com menos brutalidade.

— Por favor, Yeshua — ele sussurrou.

Fiquei onde estava.

Olhei para eles, os dois, deitados ali como crianças dormindo, no meio do monte de pedras, sem sangue suficiente, realmente, sem bastante sangue derramado por eles para o Anjo da Morte se dignar a parar e notar que esta­vam lá.

 

FOMOS PARA A CASA DO RABINO. As portas estavam abertas. Jasão ficou no canto mais distante, encostado nas estantes de livros, de braços cruzados. O velho rabino Jacimus se sentou curvado à sua mesa, com os cotovelos apoiados num pergaminho, cobrindo a cabeça.

Ele balançava para a frente e para trás, rezava ou lia, era impossível saber. Talvez nem ele soubesse.

— Não se zangue com os homens porque não somos nada — ele mur­murou. — E não leve em conta o que fazemos, pois o que somos nós?

Fiquei ao lado de José e de Tiago, esperando e ouvindo. Cleofas ficou atrás de nós.

— Ouvi, pela Vossa vontade chegamos a este mundo e só saímos dele pela Vossa vontade. Quem já disse para pai e mãe: queremos nascer? E quem vai para o reino da Morte dizendo: recebei-nos? Que força nós temos, Senhor, para suportar a Vossa ira? Quem somos nós para suportar a Vossa justiça?

Ele percebeu que estávamos ali, recostou na cadeira, suspirou e virou um pouco na nossa direção, mas continuou sua prece.

— Abrigai-nos em Vossa graça e em Vossa misericórdia, ajudai-nos.

José repetiu essas palavras baixinho.

Jasão dava a impressão de que tudo aquilo estava além da sua capacidade de resistir, mas tinha uma suavidade triste no olhar que eu raramente vira nele. Era um belo homem de cabelo preto, sempre bem vestido, e no Sabá seus mantos de linho muitas vezes exalavam um leve perfume de incenso.

O rabino, que era um homem na plenitude da vida quando cheguei a Nazaré, estava agora meio entrevado pela idade, com o cabelo todo branco, igual a José e meus tios. Olhava para nós como se não pudéssemos vê-lo, como se não estivéssemos ali ao seu lado, como se ele nos visse de algum lugar seguro, apenas devaneando.

— Já os levaram? — disse ele sonolento, referindo-se aos corpos dos meninos.

— Já — disse José. — E levaram também as pedras ensanguentadas. Levaram tudo.

O rabino olhou para o alto e suspirou.

— Eles agora pertencem a Azazel — ele disse.

— Não, mas eles se foram — disse José. — E nós viemos procurá-lo. Sabemos que está sofrendo muito. O que quer que façamos? Devemos procurar Nahom e a mãe do menino?

O rabino fez que sim com a cabeça.

— José, antes quero que você fique aqui e me console — ele disse e balançou a cabeça —, é aqui o seu lugar. Nahom tem irmãos na Judéia. Ele deve pegar sua família e partir. Nunca mais dormirá tranquilo nesta aldeia. José, diga-me, por que isso aconteceu?

Jasão se manifestou com seu ardor habitual.

— Ninguém precisa ir para Atenas ou para Roma para aprender as coisas que esses meninos fizeram — ele disse. — Por que não pode acontecer em Nazaré?

— Não foi isso que eu perguntei — disse o rabino, olhando zangado para ele. — Não estou perguntando o que os meninos fizeram. Não sabemos o que eles fizeram! Não houve julgamento, nenhuma testemunha, não houve justiça! Eu pergunto como eles puderam apedrejar aqueles meninos, é isso que eu pergunto. Onde está a lei, onde está a justiça?

Dava a impressão de que ele desprezava o sobrinho, pelo jeito com que respondeu, mas, na verdade, o rabino amava Jasão. Os filhos do rabino tinham morrido. Jasão o mantinha jovem e sempre que Jasão não estava em Nazaré, o rabino ficava alheado e distraído. Assim que Jasão entrava pela porta, vindo de algum lugar distante, com um saco de livros no ombro, o rabino ganhava vida e às vezes, em suas discussões acaloradas, parecia um menino, de tanta paixão.

— Ah, e o que eles vão fazer — perguntou Jasão —, quando o pai de Yitra puser as mãos nos meninos que começaram isso? Eram crianças, você sabe, aqueles menininhos que ficavam diante da taverna, e eles sumiram, desapareceram antes de atirar a primeira pedra. Nahom talvez passe o resto da vida procurando esses garotos.

— Crianças — disse meu tio Cleofas —, crianças que talvez nem soubes­sem o que estavam dizendo. O quê? Dois rapazes embaixo do mesmo cobertor numa noite de inverno?

— Acabou — disse Tiago — Ora, vamos ter agora o julgamento que não tivemos antes? Está tudo terminado.

— Tem razão — disse o rabino. — Mas procure o pai e a mãe, faz isso para mim? Se eu for, vou chorar demais, tempo demais, e ficarei com raiva. Se Jasão for, ele dirá coisas estranhas.

Jasão riu com o semblante sério.

— Coisas estranhas... Que esta aldeia é um miserável monte de terra? Sim, eu diria coisas estranhas.

— Você não precisa morar aqui, Jasão — disse Tiago. — Ninguém jamais disse que Nazaré precisava ter um filósofo grego. Volte para a Alexandria, ou para Atenas, ou para Roma, ou seja lá onde for, o lugar para onde está sem­pre correndo. E nós precisamos das suas ruminações? Nunca precisamos.

— Tiago, seja paciente — disse José.

O rabino apelou para José como se não tivesse escutado a discussão.

— Vá procurá-los, José, você e Yeshua, vocês sempre encontram as pala­vras certas. Yeshua é capaz de acalmar qualquer um. Expliquem para Nahom que o filho dele era uma criança e que o Órfão... ah, o pobre Órfão...

Já íamos pedir licença para sair, quando Jasão se aproximou furtivamen­te e olhou furioso para mim. Eu levantei a cabeça e olhei para ele.

— Cuidado para os homens não dizerem as mesmas coisas de você, Yeshua — ele disse.

— O que está dizendo, Jasão? — perguntou o rabino, levantando da cadeira.

— Deixe para lá — disse José baixinho. — Não é nada, é apenas Jasão com sua dor por mais coisas do que podemos imaginar.

— O quê? Está dizendo que não vão falar coisas estranhas sobre Yeshua? — disse Jasão, olhando fixamente para José, depois para mim. — Você sabe do que o chamam, meu amigo mudo e imutável. Chamam-no de Yeshua, o Sem Pecado.

Dei risada, mas virei de lado para não parecer que estava rindo na cara dele. Só que estava mesmo rindo dele. Ele continuou falando, mas não prestei atenção. Passei a observar suas mãos. Ele tinha mãos bonitas e macias. E muitas vezes, quando falava muito ou declamava um longo poema, eu sim­plesmente observava suas mãos. Faziam com que eu pensasse em pássaros.

De repente, o rabino agarrou o manto de Jasão e o golpeou com a mão direita, como se fosse lhe dar um tapa. Mas então caiu sentado na cadeira e Jasão ficou muito vermelho. Agora ele estava arrependido, terrivelmente arrependido.

— Bem, eles falam, não falam? — disse Jasão, olhando para mim. — Onde está sua esposa, Yeshua, onde estão seus filhos?

— Não vou ficar aqui e aturar isso nem mais um minuto — disse Tiago.

Ele me puxou pelo braço, para a rua.

— Você não vai falar assim com o meu irmão — Tiago disse para Jasão. — Todos sabem o que o aflige. Pensa que somos bobos? Você não suporta isso, não é? Abigail o recusou. O pai dela riu de você com desprezo.

José empurrou Tiago para fora da sala, passando por mim.

— Chega, meu filho. Você sempre morde essa isca quando está com ele.

Cleofas meneou a cabeça, concordando.

O rabino curvou-se e apoiou a cabeça na mesa, sobre os pergaminhos.

José se abaixou e cochichou alguma coisa para o rabino. Ouvi o tom de consolo, mas não as palavras. Enquanto isso, Jasão olhava furioso para Tiago, como se agora ele fosse seu inimigo pessoal, e Tiago ria, escarnecendo de Jasão.

— Será que não há sofrimento suficiente nesta aldeia para você? — per­guntou Cleofas calmamente. — Por que sempre banca Satã? Tem de julgar meu sobrinho Yeshua porque não houve julgamento para Yitra e o Órfão?

— Às vezes penso — disse Jasão — que nasci para falar o que os outros pensam que ninguém terá coragem de dizer. Eu avisei Yeshua, só isso. — Ele abaixou a voz e disse sussurrando: — As mulheres da família dele não estão aguardando sua decisão?

— Isso não é verdade! — afirmou Tiago. — Isso é idiotice doentia de uma mente invejosa! Ela recusou você porque você é louco, e por que uma mulher se casaria com o vento, se não precisa?

De repente, todos começaram a falar ao mesmo tempo, Jasão, Tiago, Cleofas e até José e o rabino.

Eu desci para a rua. O céu estava azul e a cidade vazia. Ninguém queria sair de casa por conta do que tinha acontecido. Fui andando, mas ainda podia ouvi-los.

— Vá escrever uma carta para seus amigos epicuristas em Roma — disse Tiago, asperamente. — Conte para eles os escândalos que têm acontecido na aldeia miserável onde você está condenado a viver. Escreva uma sátira, por que não?

Ele veio atrás de mim.

Jasão seguiu Tiago e passou à frente dos mais velhos que vieram depois.

— Vou dizer uma coisa — Jasão retrucou furioso. — Se eu escrever qual­quer coisa de valor, só existe um homem neste lugar que poderá entender o que eu escrevo, e esse homem é o seu irmão, Yeshua.

— Jasão, Jasão... — eu disse. — Por que tudo isso?

— Bem, se não fosse isso, seria outra coisa qualquer — disse Tiago — Não fale com ele. Não olhe para ele. Num dia como este, ele começa uma briga. Temos um inverno duro, sem chuva, e Pôncio Pilatos ameaça pôr suas insígnias na Cidade Santa. E mesmo assim ele quer alimentar essa briga.

—Você pensa que isso é brincadeira — reclamou Jasão. — Suas insígnias? Saiba que aqueles soldados estão marchando sobre Jerusalém neste momento e porão as insígnias no próprio Templo se quiserem. Chegou a esse ponto.

— Pare, nós não temos certeza disso — disse José. — Esperamos notícias de Pôncio Pilatos, como esperamos a chuva. E acabem com isso, vocês dois.

— Volte para o seu tio — disse Tiago. — Por que vem atrás de nós, para nos aborrecer? Ninguém mais em Nazaré fala com você. Volte para lá. O seu tio precisa de você agora. Não há páginas a serem escritas para relatar esses acontecimentos terríveis? Ou será que este país vive sem leis, como os sal­teadores nas montanhas? Ora, acabamos de pô-los numa caverna e não há registro de como morreram? Volte para o seu trabalho.

José olhou muito sério para Tiago e o fez se calar. Tiago se adiantou, de cabeça baixa. Continuamos no nosso caminho, depois dele, mas Jasão nos seguiu.

— Não quero prejudicá-lo, Yeshua — ele disse.

O tom confidencial de Jasão estava deixando Tiago furioso, por isso ele deu meia-volta, mas José o impediu de prosseguir.

— Minha intenção nunca foi prejudicá-lo — repetiu Jasão. — Este lugar está amaldiçoado. A chuva não virá nunca. Os campos estão secando. Os jardins murcharam. As flores estão mortas.

— Jasão, meu amigo — eu disse —, a chuva sempre vem, mais cedo ou mais tarde.

— E se não vier? E se agora as janelas do céu estão fechadas para nós, e com razão?

Uma torrente de palavras ia jorrar da boca de Jasão. Mas eu levantei a mão.

— Venha nos visitar mais tarde e então conversaremos, com uma caneca de vinho — eu disse. — Agora preciso ir ver a família.

Jasão ficou para trás e voltou lentamente para a casa do tio. Então o ouvi dizer lá atrás de mim, já de longe:

— Yeshua, perdoe-me.

Jasão disse isso bem alto, para todos ouvirem.

— Jasão — eu disse —, você está perdoado.

 

A MÃE DE YITRA fez toda a família arrumar as coisas em trouxas. Carregaram tudo nos burricos. Os pequenos enrolavam o tapete no chão de terra, o belo tapete que talvez fosse o bem mais importante que pos­suíam.

Quando a mãe de Yitra viu José, ela se levantou e correu para os braços dele. Ela tremia, mas tinha os olhos secos, e ficou apenas ali abraçada com ele, como se temesse se afogar.

— Façam boa viagem para a Judéia — disse José. — Essa viagem lhes fará bem e, ao cair da noite, seus pequenos estarão bem longe dos sussurros e olhares deste lugar. Nós sabemos onde Yitra jaz. Cuidaremos dele.

Ela olhava sem ver, como se tentasse encontrar o sentido de tudo aquilo.

Então apareceu Nahom, o pai, com dois empregados. Percebemos que os dois tinham forçado Nahom a ir para casa, ele encostou no muro, com o olhar vazio.

— Não pense mais naquelas criaturas — José disse para ele. — Todos fugi­ram. Eles sabem que erraram. Deixe-os à mercê de Deus. Vá para a Judéia agora e limpe a terra desta cidade dos pés.

Um dos empregados, um homem gentil, se adiantou e meneou a cabe­ça enquanto abraçava José e Nahom.

— Shemayah vai comprar a sua terra e pagará um bom preço — ele disse. — Eu compraria, se pudesse. Vá embora. José tem razão. Essas criaturas que acusaram os meninos já estão longe a essa hora. Elas na certa encontrarão os salteadores nas montanhas. É para lá aonde esse tipo de lixo costuma ir. De qualquer maneira, o que pode fazer contra elas? Pode matar todos os homens desta aldeia?

A mãe de Yitra fechou os olhos e abaixou a cabeça. Pensei que ia desmaiar, mas não desmaiou.

José puxou os dois mais para perto.

— Vocês agora têm os pequeninos. O que vai acontecer com eles se não enfrentarem isso? — perguntou José. — Ouçam, quero dizer para vocês... quero dizer uma coisa...

Ele ficou sem voz, com os olhos marejados de lágrimas. Não encontrava palavras.

Eu me aproximei e abracei os dois, que, de repente, olharam para mim como crianças apavoradas.

— Não houve julgamento, vocês sabem — eu disse. — Isso significa que ninguém jamais saberá o que Yitra fez, o que o Órfão fez, como foi, quan­do foi, ou se alguma coisa realmente aconteceu. Ninguém saberá. Ninguém tem como saber. Nem mesmo os meninos que os acusaram sabiam. Só Deus sabe. Agora vocês não devem julgar aqueles meninos no seu coração. Esse julgamento não pode acontecer. Não pode haver nenhum julgamen­to. Por isso, chorem por Yitra em seus corações. E Yitra é inocente para sem­pre. Tem de ser. Não pode ser de outro jeito, não neste mundo.

A mãe de Yitra olhou para mim. Ela semicerrou os olhos e meneou a cabeça. Nahom não exprimiu nada, mas lentamente foi pegar as trouxas que restavam, carregou-as devagar até os animais de carga.

— Que vocês façam uma boa viagem — disse José —, e agora devem dizer se precisam de alguma coisa para a viagem. Meus filhos e eu providencia­remos tudo de que precisarem.

— Espere — disse a mãe de Yitra.

Ela foi até uma arca que estava no chão e desamarrou as cordas que tinha em volta. De dentro da arca, tirou uma roupa dobrada, que podia ser um manto de lã.

— Isto aqui — ela disse, entregando a roupa para mim. — Isto aqui é para Hannah Silenciosa.

Hannah Silenciosa era irmã do Órfão.

— Vocês vão cuidar dela, não vão? — perguntou a mulher.

José ficou surpreso.

— Minha filha, pobrezinha — ele disse. — É muita bondade sua pensar na Hannah Silenciosa num momento como este. É claro que cuidaremos dela. Cuidaremos dela sempre.

 

QUANDO ENTRAMOS NA CASA, VIMOS imediatamente Hannah Silenciosa com Abigail.

Agora, aonde Abigail ia, Hannah Silenciosa ia atrás e, aonde quer que as duas fossem, havia sempre um bando de crianças junto. Os filhos de Tiago, Isaac e Shabi, meus sobrinhos e sobrinhas mais velhos, havia sempre uma multidão em torno de Abigail e de Hannah Silenciosa. Era Abigail que atraía as crianças, muitas vezes cantando para elas, ensinando velhas canções, como ler partes das Escrituras, de vez em quando rimas que ela mesma inventava, deixando que as meninas a ajudassem com seus novelos e agu­lhas, e todos os aviamentos para consertos que costumava ter em seu cesto. Hannah Silenciosa, que não ouvia nem falava, passava a maior parte do tempo com Abigail, mas de vez em quando, se o pai de Abigail ficava muito doente, com seu problema na perna, Hannah Silenciosa se hospedava na nossa casa, com minhas tias e minha mãe.

Mas agora, quando chegamos, havia apenas mulheres com Abigail e Hannah Silenciosa. Era óbvio que tinham mandado as crianças embora. Hannah Silenciosa se levantou imediatamente e encarou José, implorando com os olhos.

Abigail se preparou para apoiá-la. Os olhos de Abigail estavam vermelhos de tanto chorar e subitamente ela não parecia mais a nossa Abigail, e sim uma mulher do tipo da mãe de Yitra. Seu rosto estava transfigurado pelo sofrimento. Ela olhava fixamente para Hannah Silenciosa, esperando.

Ora, Hannah Silenciosa tinha gestos fluentes e eloquentes para tudo, e todos nós os conhecíamos. Já fazia alguns anos que o Órfão e ela tinham chegado a Nazaré como pessoas errantes, ela vive aqui conosco desde então, o Órfão tem morado em muitos lugares. Mas todos nós conhecíamos sua linguagem de sinais e às vezes eu achava suas mãos lindas como as de Jasão.

Ninguém sabia a idade dela. Podia ter quinze ou dezesseis anos. O Órfão era mais jovem.

Agora ela estava diante de José e de repente começou a gesticular, per­guntando pelo irmão. Onde estava o seu irmão? O que tinha acontecido com ele? Ninguém dizia nada. Ela olhava em volta, examinava o rosto das mulheres encostadas nas paredes. O que tinha acontecido com seu irmão?

José começou a responder. Começou, mas mais uma vez seus olhos se encheram de lágrimas e ele ficou com as mãos pálidas suspensas no ar, inca­paz de descrever as formas que vira ou que queria ver.

Tiago estava preocupado. Cleofas tentou com palavras. Não conhecia muito bem os sinais. Nunca aprendeu.

Abigail não podia falar nem fazer nada.

Finalmente fiz Hannah Silenciosa se virar de frente para mim. Fiz o gesto que indicava o irmão dela e apontei para os meus lábios, que sabia que ela de vez em quando conseguia ler. Apontei para cima e fiz o sinal de oração. Fui falando bem devagar, enquanto fazia vários sinais com as mãos.

— O Senhor protege o seu irmão agora e seu irmão está dormindo. Seu irmão dorme na terra agora. Você não vai mais vê-lo.

Apontei para os olhos dela. Inclinei-me para a frente e fiz com que ela olhasse para os meus olhos, apontei para os olhos de José e para as lágrimas no rosto dele. Balancei a cabeça.

— Seu irmão está com o Senhor agora — eu disse.

Beijei meus dedos e apontei novamente para cima.

Hannah Silenciosa fez uma careta e se afastou de mim violentamente.

Abigail a segurou com firmeza.

— Seu irmão vai se levantar no dia do Juízo — disse Abigail, olhando para cima, depois soltou Hannah Silenciosa e fez um gesto abrangente, como se o mundo inteiro se reunisse sob os céus.

Hannah Silenciosa estava apavorada. Curvou os ombros e nos espiava entre os dedos das mãos.

Falei com ela outra vez, gesticulando.

— Foi rápido. Foi errado. Foi como alguém caindo. Acabou de repente.

Fiz os gestos que queriam dizer descansar, dormir, calma. Fiz o mais devagar possível.

Vi o rosto dela mudar lentamente.

— Você é nossa filha — eu disse. — Você vive conosco e com Abigail.

Ela esperou um longo tempo e depois perguntou onde tinham enter­rado o irmão. Apontei para as montanhas ao longe, bem lá no alto. Hannah Silenciosa conhecia as cavernas. Não precisava saber em qual caverna ele estava, a caverna dos que morriam apedrejados.

O rosto dela ficou inexpressivo de novo, mas só por um minuto. Então, com expressão de medo, ela gesticulou perguntando, onde está Yitra?

— A família de Yitra foi embora — eu disse.

Fiz os sinais de mãe, pai, crianças, caminhando.

Ela olhou bem para mim. Sabia que isso não podia estar certo, que não era tudo. Mais uma vez fez o gesto perguntando: onde está Yitra?

— Conte para ela — disse José.

Eu contei.

— Na terra, com o seu irmão. Ele se foi.

Ela arregalou os olhos, chocada. E, pela primeira vez, vi seus lábios se abrirem num sorriso amargo. Ela soltou um gemido, um terrível som gutu­ral, de quem não tem a capacidade de falar.

Tiago suspirou. Ele e Cleofas se entreolharam.

— Venha para casa comigo agora — disse Abigail.

Mas aquilo ainda não tinha acabado.

José gesticulou rapidamente, apontando o céu de novo, fazendo os sinais de descanso, de paz sob o céu.

— Ajude-me com ela — pediu Abigail, porque Hannah Silenciosa não se mexia.

Minha mãe e minhas tias foram ajudar. Hannah Silenciosa cedeu lentamente. Foi andando como sonâmbula. O grupo de mulheres saiu da casa.

Ela deve ter parado na rua. Ouvimos um som que parecia um bezerro mugindo, um som imenso e horrível. Era Hannah Silenciosa.

Quando cheguei perto, ela estava enlouquecida, atacava todos em volta, chutava, socava e saía dela esse berro sem forma, cada vez mais alto, ecoan­do nos muros. Ela empurrou Abigail e a jogou contra uma parede. Abigail de repente começou a soluçar e a gritar.

Shemayah, o pai de Abigail, abriu a porta.

Mas Abigail agarrou Hannah Silenciosa, soluçando, chorando e deixando as lágrimas rolarem, implorando para Hannah Silenciosa ir com ela, por favor, por favor.

— Venha comigo! — soluçou Abigail.

Hannah Silenciosa tinha parado de gemer. Ficou imóvel, olhando fixa­mente para Abigail. Abigail tremia de tanto soluçar. Levantou os braços e caiu de joelhos.

Hannah Silenciosa correu e a levantou do chão. Ela consolou Abigail.

Todas as mulheres se reuniram às duas. Alisavam os cabelos das duas jovens mulheres. Acariciavam seus braços e ombros. Hannah Silenciosa ficava secando as lágrimas de Abigail como se realmente pudesse acabar com elas de uma vez. Ela segurava o rosto de Abigail e limpava com força as lágrimas. Abigail balançava a cabeça. Hannah Silenciosa dava tapinhas nas costas de Abigail, sem parar.

Shemayah segurou a porta aberta para a filha e finalmente as duas jovens entraram na casa juntas.

Nós voltamos para a nossa casa. O carvão que ardia brilhava no escuro, alguém pôs uma caneca com água na minha mão e disse:

— Sente-se.

Vi José encostado na parede, pernas cruzadas nos tornozelos, de cabeça baixa.

— Pai, não vá conosco hoje — disse Tiago. — Fique aqui, por favor, e cuide dos pequenos. Eles precisam de você aqui hoje.

José levantou a cabeça. Por um momento, parecia que ele não sabia do que Tiago estava falando. A discussão normal não aconteceu. Ele não emi­tiu nenhum som de protesto. Então meneou a cabeça e fechou os olhos.

No pátio, Tiago bateu palmas para os meninos se apressarem.

— Nós ficamos de luto nos nossos corações — ele lembrou. — Agora esta­mos atrasados. E, vocês que estão trabalhando aqui hoje, quero esse pátio varrido, estão entendendo? Olhem só para isso.

Ele deu duas voltas apontando para as gavinhas mortas das videiras pre­sas nas treliças, para as folhas amontoadas em todo canto, para a figueira que agora parecia um monte de ossos secos.

Já na estrada, espremidos na caravana lenta de carroças com os grupos de trabalhadores, ele me puxou para perto e disse:

— Você viu o que aconteceu com o pai? Você viu? Ele tentou falar e...

— Tiago, um dia como o de hoje abateria qualquer homem, mas, depois disso... ele devia ficar em casa.

— Como podemos convencê-lo de que eu posso administrar as coisas agora? Olhe para o Cleofas. Ele está sonhando, conversando com os campos.

— Ele sabe.

— Tudo recai sobre mim.

— É como você quer — eu disse.

Cleofas era irmão da minha mãe. Não cabia a ele ser o chefe da famí­lia. Eram os filhos de Cleofas e sua filha, a pequena Salomé, quem eu cha­mava de irmãos e irmã. As mulheres desses irmãos eram minhas irmãs. A mulher de Tiago era minha irmã.

— É verdade — disse Tiago, um tanto surpreso. — Eu realmente gosto que fique tudo por minha conta. Não estou reclamando. Quero as coisas feitas como devem ser feitas.

Meneei a cabeça, concordando:

— Você é bom nisso.

José nunca mais foi trabalhar em Séforis.

 

PASSARAM-SE DOIS DIAS até eu ter uma chance de ir para o bosque, o meu bosque.

Apesar do trabalho incessante, terminamos uma série de paredes mais cedo. Nada mais podia ser feito antes de o gesso secar, por isso consegui me afastar por uma hora durante o dia, sem dizer nada para ninguém, e buscar o lugar de que eu mais gostava, no meio das antigas oliveiras, escondido sob um emaranhado de ervas trepadeiras que pareciam vicejar tanto na seca quanto na chuva.

Como disse antes, os habitantes da aldeia desconfiavam daquele lugar e ninguém ia lá. As oliveiras mais velhas não davam mais frutos e algumas estavam ocas, grandes sentinelas cinzentas com árvores novas deitando raí­zes em seus troncos vazios. Havia rochas por lá, mas, anos antes, eu desco­brira que nunca tinham sido altares pagãos ou parte de algum cemitério. E a camada de folhas as tinha coberto por tanto tempo, que o lugar era macio, bom para deitar, como seria um campo aberto com capim sedoso, cada um aconchegante do seu modo.

Tinha levado um rolo de trapos limpos que servia de travesseiro. Entrei no abrigo das árvores, me deitei e me permiti um suspiro longo e lento.

Agradeci ao Senhor por aquele esconderijo, aquela escapada.

Olhei para cima, para a luz brincando na trama dos galhos que balan­çavam um pouco. Os dias de inverno escureciam de repente. O céu já esta­va sem cor. Não me importei. Conhecia muito bem o caminho de volta para casa. Mas não podia ficar o tempo que queria. Sentiriam a minha falta e alguém iria me procurar. Eu seria uma preocupação e não era isso que queria ser, de jeito nenhum. O que eu queria era ficar sozinho.

Rezei. Procurei tirar tudo da minha cabeça. O lugar era fragrante e salutar. Era uma preciosidade. Não existia em Nazaré local como aquele e não havia lugar para mim, em Séforis ou em Magdala, em Caná ou onde quer que trabalhássemos ou fôssemos trabalhar no futuro.

E todos os cômodos da nossa casa estavam ocupados.

O pequeno Cleofas, neto do meu tio Alfeu, casara-se no ano anterior com uma prima, Maria, de Cafarnaum, e os dois ocuparam o último quar­to. Maria já estava grávida.

Então eu estava sozinho. Apenas por pouco tempo. Sozinho.

Procurei afastar a atmosfera da aldeia, o clima de recriminação que dominava o povo depois do apedrejamento. Ninguém queria falar sobre isso, mas também não conseguia pensar em outra coisa. Quem estava lá? Quem não estava? E aqueles meninos tinham fugido para se proteger com os salteadores, alguém devia procurar aqueles salteadores e forçá-los a sair das cavernas com fogo.

E é claro que os salteadores andavam atacando as aldeias. Isso acontecia muito. Ainda mais agora que, com a seca, o preço dos alimentos tinha subido. Diziam os boatos que os salteadores tinham varrido os povoados menores para roubar víveres, vinho e água. Ninguém jamais sabia quando um desses homens sanguinários chegaria galopando em sua montaria em nossas ruas.

Era essa a conversa em Séforis, sobre salteadores num inverno cruel. Mas também se falava por toda parte sobre a movimentação de Pilatos e seus soldados para Jerusalém, com insígnias que exibiam o nome de César e que não deviam passar pelos portões da cidade. Era blasfêmia portar tais insígnias, com o nome de um imperador, dentro da nossa cidade. Nós não aceitávamos imagens, não aceitávamos o nome ou a imagem de um impe­rador que se considerava um deus.

Sob o império de Augusto César isso nunca aconteceu. Ninguém jamais teve certeza de que o próprio Augusto acreditava que era um deus. É claro que ele compactuava com isso, e havia templos construídos para homenageá-lo. Talvez seu herdeiro, Tibério, também não acreditasse.

Mas as pessoas não se importavam com as opiniões pessoais do imperador. O que as preocupava eram aquelas insígnias sendo levadas por soldados romanos através da Judéia, e elas não gostavam disso, e os soldados do rei também discutiam isso fora dos portões do palácio e nas tavernas, no mercado ou onde quer que estivessem.

O próprio rei, Herodes Antipas, não estava em Séforis. Ele estava em Tibérias, sua nova cidade, uma cidade batizada com o nome do novo impe­rador, que Herodes havia construído à beira mar. Nós nunca fomos trabalhar naquela cidade. Uma nuvem pairava sobre ela. Túmulos tinham sido removidos para construí-la. E, quando os operários que não se importavam com tais coisas viajaram para o leste para trabalhar lá, tivemos mais ofertas de trabalho em Séforis do que podíamos desejar um dia.

Sempre nos demos bem em Séforis. E às vezes o rei ia para o seu palá­cio lá. Estando ele na cidade, ou não, havia uma eterna procissão dos bem­nascidos pelos vários cômodos do palácio, por suas mansões esplêndidas, e as construções nunca paravam.

Agora esses homens ricos estavam tão preocupados com os atos de Pôncio Pilatos quanto qualquer um. Quando se tratava de os romanos levarem insígnias para dentro da Cidade Sagrada, judeus de todos os níveis eram pura e simplesmente judeus.

Parecia que ninguém conhecia direito esse Pôncio Pilatos. Mas todos o desprezavam.

E, nesse meio-tempo, a notícia do apedrejamento tinha se espalhado pelos campos, as pessoas olhavam para nós como se fôssemos a desgraçada turba de Nazaré. Pelo menos, era isso que meus irmãos e sobrinhos pensa­vam quando encaravam seus próprios olhares, e as pessoas discutiam o preço da argamassa para os tijolos que eu usava ou a espessura do gesso mis­turado no pote.

É claro que tinham razão de estar preocupados com Pôncio Pilatos. Ele era novo e não conhecia nossos costumes. Corriam boatos de que o homem era do partido de Sejanus, porque Sejanus governava o mundo, ao que parece, para o imperador aposentado Tibério, e quem era Sejanus, diziam, senão um soldado conivente e perverso, o comandante da guarda pessoal do imperador?

Eu não queria pensar nessas coisas. Não queria pensar no sofrimento de Hannah Silenciosa, indo de lá para cá com Abigail, agarrada ao braço de Abigail. E também não queria pensar na tristeza que havia nos olhos de Abigail quando ela olhava para mim, aquela compreensão secreta que cala­va sua risada espontânea e o seu cantar que antes era tão frequente.

Mas não conseguia tirar esses pensamentos da cabeça. Por que eu tinha ido para o bosque de oliveiras? O que pensei que encontraria ali?

Adormeci por alguns minutos. Abigail. Não sabe que isso é o paraíso? Não é bom um homem ficar sozinho!

Acordei assustado, no escuro, recolhi meus trapos e saí do bosque para ir para casa.

Lá embaixo, vi o brilho das tochas em Nazaré. Elas sempre eram acesas nos dias de inverno. Os homens precisavam trabalhar um pouco mais à luz de lampiões ou de tochas. Achei que era uma vista alegre.

Mas, onde eu estava, o céu não tinha nuvens, não tinha lua e era lindamente negro, com estrelas infinitas.

— Quem pode vislumbrar a Sua generosidade, Senhor? — sussurrei. — O Senhor fez com o fogo os inúmeros lampiões que decoravam a noite.

Uma quietude dominou-me. A dor habitual que sentia nos braços e nos ombros desapareceu. A brisa era gelada mas agradável ao mesmo tempo. Alguma coisa dentro de mim se soltou. Fazia muito tempo que não saboreava um momento assim, desde que deixara a prisão restrita da minha carne se desfazer. Era como se estivesse indo para cima e para fora, como se a noite estivesse repleta de uma miríade de seres e o ritmo do canto desses seres abafasse as batidas ansiosas do meu coração. A carcaça do meu corpo não existia mais. Eu estava nas estrelas. Mas minha alma humana não queria me libertar. Apelei para a linguagem humana.

— Não, eu vou realizar isso — eu disse.

Eu estava no capim seco sob a abóbada do céu. Eu era pequeno. Estava isolado e cansado.

— Senhor — eu disse em voz alta para a brisa fraca. — Quanto tempo falta?

 

HAVIA DOIS LAMPIÕES ACESOS no pátio e isso era animador. Fiquei contente de ver o pátio assim, alegrou-me ver meu sobrinho, o pequeno Cleofas, e o pai dele, Silas, trabalhando, cortando uma série de tábuas. Sabia o que era aquilo, e que tinha de estar pronto no dia seguinte.

— Vocês dois parecem cansados — eu disse. — Podem parar agora que eu faço isso. Eu corto a madeira.

— Não podemos deixar que você faça isso — disse Silas. — Por que deve­ria terminar o trabalho sozinho? — Ele apontou para a casa com ar de preo­cupação. — Tem de ser feito esta noite.

— Eu posso fazer esta noite — eu disse. — Terei prazer de fazer. Quero ficar sozinho agora, com alguma coisa para me ocupar. E, Silas, a sua mulher está à sua espera na porta. Acabei de vê-la. Vá para casa.

Silas fez que sim com a cabeça e foi para casa, subindo a ladeira. Ele morava com a mulher na casa do nosso primo Levi, que era irmão da espo­sa dele. Mas o filho de Silas, o pequeno Cleofas, morava conosco.

O pequeno Cleofas me deu um breve abraço e entrou em casa.

Havia bastante luz dos lampiões para ver o que era preciso fazer ali e as linhas traçadas tinham de ser perfeitamente retas. Eu tinha a ferramenta para isso, o pedaço de cerâmica quebrado para marcar. Ia ter de riscar sete linhas.

Jasão apareceu no pátio.

A sombra dele me cobriu. Senti cheiro de vinho.

— Você tem me evitado, Yeshua — ele disse.

— Isso é bobagem, meu amigo — eu disse, rindo, e continuei com meu trabalho. — Tenho feito tudo que precisa ser feito. Não o tenho visto. Por onde tem andado?

Ele ficou andando de um lado para outro enquanto falava. Vi a sombra dele muito nítida nas lajotas do chão. Ele segurava uma caneca de vinho. Ouvi quando bebeu um gole.

— Você sabe onde tenho andado — ele disse. — Quantas vezes você subiu a ladeira, se sentou no chão ao meu lado e insistiu para que eu lesse para você? Quantas vezes eu lhe contei as notícias de Roma e você bebeu cada palavra que eu disse?

— Isso é no verão, Jasão, quando os dias são mais compridos — eu disse gentilmente.

Tracei uma linha reta.

— Yeshua, o Sem Pecado, sabe por que o chamo assim? — ele insistiu. — É porque todos o amam, Yeshua, todos, e ninguém consegue me amar.

— Não é bem assim, Jasão. Eu amo você. Seu tio o ama. Quase todos o amam. Não é difícil gostar de você. Mas às vezes é difícil entender você.

Afastei a tábua e peguei outra.

— Por que o Senhor não manda a chuva? — ele quis saber.

— Por que pergunta para mim? — respondi, sem levantar a cabeça.

— Yeshua, há muitas coisas que nunca contei para você, coisas que eu achava que não deviam ser repetidas.

— Talvez não devam mesmo.

— Não, eu não estou falando das fofocas idiotas desta aldeia. Estou falan­do de outras histórias, de histórias antigas.

Suspirei e me sentei nos calcanhares. Olhei fixamente para a frente, para além do caminhar lento de Jasão, à luz bruxuleante dos lampiões. Ele usava sandálias lindas. Eram exóticas, tacheadas com o que parecia ser ouro. As franjas do manto dele encostavam em mim quando ele fazia a volta e se movia como um animal angustiado.

— Você sabe que vivi com os essênios — ele disse —, que eu queria ser um essênio.

— Você me contou — eu disse.

— Você sabe que conheci seu parente João bar Zacarias quando vivi com os essênios — ele continuou e bebeu mais um gole de vinho.

Resolvi tentar riscar mais uma linha reta.

— Você me contou isso muitas vezes, Jasão — eu disse. — Recebeu algu­ma notícia dos seus amigos essênios? Você contaria para mim, não contaria, se alguém desse notícias do meu primo João?

— Seu primo João está no deserto, isso é tudo que dizem, no deserto, vivendo do que tem por lá. Ninguém o viu este ano. E ninguém o viu também no ano passado. Um homem contou para outro homem que contou PA outro homem que talvez tivesse visto seu primo João.

Comecei a riscar a linha.

— Mas sabe, Yeshua, nunca contei para você tudo que seu primo me disse quando eu estava lá vivendo com a comunidade.

— Jasão, você está com a cabeça cheia de coisas. Acho que meu primo João tem pouco a ver com isso, se é que tem.

Eu estava tentando desenhar a linha. A linha não estava reta. Peguei um pano, dei um nó e esfreguei na marca. Tinha cortado um pouco fundo demais, mas continuei.

— Ah, sim, seu primo João tem muito a ver com isso — ele disse, paran­do na minha frente.

— Chegue para a esquerda, você está fazendo sombra.

Ele deu meia-volta, pegou o lampião pelo gancho e botou bem diante de mim.

Sentei-me outra vez, mas não olhei para ele. A luz estava bem nos meus olhos.

— Está bem, Jasão, o que quer me contar agora sobre o meu primo João?

— Tenho jeito para poesia, não tenho?

— Sem dúvida.

Esfreguei suavemente o pano na marca e vi que ela foi sumindo aos poucos da madeira. E a tábua adquiriu um certo brilho.

— É isso que faz com que eu o provoque — ele disse —, as palavras que João confiou a mim, as ladainhas que ele ouviu dos lábios da própria mãe e que recitava todos os dias, como recitava o Shema com toda Israel, mas essas ladainhas eram suas preces particulares. Sabe quais eram essas palavras?

Pensei um pouco.

— Não, eu não sei — respondi.

— Muito bem, então vou dizer.

— Parece que está mesmo determinado a fazer isso.

Ele se abaixou. Que figura ele era, com o belo cabelo preto untado e os olhos grandes e carrancudos.

— Antes de João nascer, sua mãe foi procurar a mãe dele. Ela estava perto de Betânia na época e o marido dela, Zacarias, ainda era vivo. Só mataram Zacarias depois que João nasceu.

— Sim, a história é essa — eu disse.

Tentei riscar a linha novamente e dessa vez saiu certa, sem erros. Cortei a madeira com a lasca de cerâmica.

— Sua mãe contou para a mãe de João que um anjo tinha aparecido para ela — disse Jasão, chegando mais perto de mim.

— Todos em Nazaré conhecem essa história, Jasão — eu disse, e continuei a desenhar a linha.

— É, mas a sua mãe — ele disse —, a sua mãe, parada lá ao ar livre, abra­çando a mãe de João, a sua mãe, que fala tão pouco e tão raramente, naque­le momento, começou a cantar um hino. Olhava para além das montanhas onde o profeta Samuel estava enterrado, e fez um hino com as antigas pala­vras de Hannah.

Parei de trabalhar. Levantei a cabeça devagar e olhei para ele.

A voz de Jasão soava reverente e baixa, a expressão dele era sincera e bondosa.

— “Minha alma proclama a grandeza do Senhor. Meu espírito se rego­zija em Deus, meu Salvador. Porque Ele olhou para essa Sua serva sem valor. Eis que, de agora em diante, todos os séculos me chamarão de bendi­ta. O Todo-poderoso fez maravilhas por mim, e santo é o Seu nome. Sua misericórdia é por todos os séculos para aqueles que O temem. Ele demonstrou poder com Seu braço, afastando os que têm arrogância na mente e no coração. Derrubou governantes de seus tronos, mas ergueu os humildes. Os famintos, Ele proveu com coisas boas. Os ricos, ordenou que vagassem sem nada. Ele foi misericordioso com Israel, Seu servo, que se lembrou de Sua misericórdia, cumpriu o que prometeu aos nossos pais...”

Ele parou de recitar.

Nós nos entreolhamos.

— Você conhece essa oração? — Jasão perguntou.

Não respondi.

— Bem, então vou contar outra — ele disse. — A prece dita pelo pai de João, Zacarias, o padre, quando João recebeu seu nome.

Eu não disse nada.

— “Abençoado seja o Senhor, Deus de Israel, pois interveio e trouxe a redenção para o Seu povo. Ele criou um arauto para a nossa salvação den­tro da casa de Davi, Seu servo, e prometeu através das bocas dos antigos profetas.”— Jasão interrompeu a prece e olhou para o chão. Engoliu e então continuou: — “Salvação... dos nossos inimigos e das mãos de todos que nos odeiam... e você, meu filho...” aqui ele fala do filho dele, João... “e você, filho, será chamado de profeta do Altíssimo, você se apresentará diante do Senhor para preparar o Seu caminho...”

Ele parou de falar, incapaz de continuar.

— Para que isso? — ele sussurrou, levantou-se e virou de costas.

Eu respondi com as palavras que conhecia.

— Para dar ao Seu povo o conhecimento da salvação através do perdão dos pecados. Graças à misericórdia do nosso Senhor.

Ele olhou para mim, atônito.

Eu continuei:

— Através da qual a aurora dos céus cairá sobre nós... para brilhar naque­les que penam na escuridão e nas sombras da morte, para guiar nossos pés pelo caminho da paz.

Ele recuou, sem entender.

— Pelo caminho da paz, Jasão — eu disse. — Pelo caminho da paz.

— Mas onde ele está, o seu primo? — ele perguntou. — Onde está João, que deverá ser o profeta? Os soldados de Pôncio Pilatos estão nos portões de Jerusalém esta noite. As fogueiras indicaram isso quando o sol se pôs. O que você vai fazer?

Cruzei os braços e olhei para ele, para a imagem de seu fervor e sua fúria. Ele bebeu o resto do vinho e deixou a caneca no banco. A caneca caiu no chão e quebrou. Fiquei olhando fixamente para ela, para os cacos. Ele nem notou. Não tinha ouvido a caneca quebrar.

Jasão se aproximou de mim e se abaixou de novo, de modo que seu rosto ficou todo iluminado.

— Você acredita nessas histórias? — perguntou. — Responda. Diga-me, antes que eu enlouqueça.

Não respondi.

— Yeshua — ele suplicou.

— Sim, acredito nelas.

Ele ficou esperando que eu dissesse mais, por um longo tempo, mas permaneci calado.

Jasão pôs as mãos na cabeça.

— Ah, eu não devia ter contado essas coisas para você. Prometi para o nosso primo João que jamais revelaria isso. Não sei por que agi dessa maneira. Eu pensei que... pensei...

— Este é um momento de amargura — eu disse. — Yitra e o Órfão estão mortos. O céu está da cor da terra. Cada dia somos mais sacrificados e temos nossos corações machucados.

Ele olhou para mim. Ele queria tanto entender...

— E esperamos pela misericórdia do Senhor — continuei. — Esperamos o tempo do Senhor.

— Você não tem medo de que seja tudo mentira? Yeshua, você nunca tem medo de que seja tudo mentira?

— Você conhece as histórias que eu conheço — eu disse.

— Não tem medo do que está prestes a acontecer na Judéia? — ele per­guntou.

Balancei a cabeça.

— Eu amo você, Yeshua — ele disse.

— E eu amo você, meu irmão — eu disse.

— Não, não me ame. Seu primo não me perdoaria se soubesse que con­tei esses segredos.

— E quem é meu primo João para passar a vida inteira sem jamais confiar em um amigo? — perguntei.

— Um mau amigo, um amigo aflito — ele respondeu.

— Um amigo que está se preocupando demais — eu disse. — Você deve ter sido barulhento no meio dos essênios.

— Barulhento! — Ele deu risada. — Eles me expulsaram.

— Eu sei — eu disse.

Eu ri. Jasão adorava contar a história de quando os essênios pediram para ele ir embora. Era quase sempre a primeira coisa que contava quando conhecia alguém, que os essênios tinham pedido para ele ir embora.

Peguei o caco de cerâmica e comecei a cortar a madeira de novo, rápi­do, mantendo a medida perfeitamente imóvel. Linha reta.

— Você não vai pedir a mão de Abigail, vai? — perguntou Jasão.

— Não, não vou — respondi e peguei a outra tábua. — Nunca me casarei.

Continuei medindo.

— Não é isso que seu irmão Tiago diz — ele respondeu.

— Jasão, deixe isso para lá — pedi gentilmente. — O que Tiago diz é entre mim e ele.

— Ele diz que você vai se casar com ela... sim, Abigail, e que ele vai cui­dar disso. Diz que o pai dela vai aceitar você, que dinheiro não significa nada para Shemayah. E que você é o homem que o pai dela não...

— Pare com isso! — eu disse.

Olhei para ele e vi que estava de pé ao meu lado, como se quisesse me ameaçar.

— O que foi? — perguntei. — O que você está realmente pensando? Por que não esquece isso?

Ele se ajoelhou e sentou sobre os pés, de modo que ficamos cara a cara de novo. Jasão estava pensativo, sofrendo, e, quando falou, sua voz soou rouca.

— Você sabe o que Shemayah disse a meu respeito quando meu tio foi pedir a mão de Abigail? Sabe o que aquele velho disse para o meu tio, ape­sar de saber que eu estava atrás da cortina e podia ouvir?

— Jasão — eu disse suavemente.

— O velho disse que era capaz de ver o que eu era a mais de um quilô­metro de distância. O velho deu uma risada de deboche. E usou uma pala­vra grega para isso, a palavra que usaram para Yitra e o Órfão...

— Jasão, será que você não percebe o que há por trás disso tudo? — per­guntei. — O homem está velho, amargurado. Quando a mãe de Abigail morreu, ele morreu também. A única coisa que o mantém respirando, andando, falando e reclamando da perna ruim é Abigail.

Jasão estava descontrolado. Não escutou o que eu disse.

— Meu tio fingiu não entender o que ele dizia, aquele homem perver­so! Meu tio, você sabe, é mestre de formalidades. Ele não reconheceu esse insulto. Simplesmente se levantou e disse: “Bem, então talvez você deva considerar...” E ele nunca me contou o que Shemayah tinha dito, que era...

— Jasão, Shemayah não quer perder a filha. Ela é tudo que ele tem. Shemayah é o fazendeiro mais rico de Nazaré e podia muito bem ser um mendigo no sopé da colina. Tudo que ele tem é Abigail, e precisa entregar Abigail para alguém em matrimônio mais cedo ou mais tarde. Ele está com medo. Você chega, com sua roupa de linho puro, de cabelo bem cortado, com seus anéis e o seu dom da palavra em grego e em latim, e inspira medo nele. Perdoe Shemayah, Jasão. Perdoe-o pelo bem do seu coração.

Jasão se levantou. Começou a andar de um lado para outro.

— Você nem sabe do que estou falando, não é? — perguntou. — Você não entende o que estou tentando dizer! Num minuto, acho que entendeu, e, no minuto seguinte, você fala como um imbecil!

— Jasão, este lugar é pequeno demais para você — eu disse. — Você luta contra os seus demônios todos os dias e todas as noites em tudo que lê, tudo que escreve, tudo que pensa e provavelmente em todos os seus sonhos. Vá para Jerusalém, onde há homens que querem conversar sobre o mundo. Vá de novo para a Alexandria ou para Rodes. Você era feliz na ilha de Rodes. Era um bom lugar para você, com muitos filósofos. Talvez Roma seja o seu lugar.

— Por que deveria ir para qualquer desses lugares? — ele perguntou aspe­ramente. — Por quê? Porque você acha que aquele velho Shemayah tinha razão?

— Não, eu não acho nada disso — eu disse.

— Bem, vou dizer uma coisa. Você não sabe nada de Rodes, de Roma ou de Atenas, não conhece nada desse mundo. E chega uma hora em que qualquer homem fica saturado da boa companhia, das tabernas, das escolas, das bebedeiras nos banquetes... quando ele quer voltar para casa e passear sob as árvores que seu avô plantou. Posso não ser um essênio no fundo do meu coração, mas sou um homem.

— Eu sei.

— Você não sabe.

— Gostaria de poder dar o que você precisa.

— E o que é isso? Como se você soubesse!

— Meu ombro — eu disse — Um abraço de apoio. — Dei de ombros. — Bondade, só isso. Gostaria de poder dar-lhe isso agora.

Ele ficou atônito. As palavras fervilhavam dentro dele e nada saiu de sua boca. Virou-se para um lado, para o outro e olhou de novo para mim.

— Ah, é melhor não arriscar fazer isso — ele sussurrou, olhando fixamente para mim com os olhos semicerrados. — Eles apedrejariam nós dois se você fizesse isso, como apedrejaram aqueles meninos.

Jasão foi para uma extremidade do pátio.

— Neste inverno — eu disse —, podiam muito bem fazer isso mesmo.

— Você é um simplório e um tolo — disse Jasão, um sussurro da escuridão.

— Você conhece as Escrituras melhor do que seu tio, não conhece?

Olhei para ele, agora uma figura imprecisa, delineada contra a treliça. Com pontos de luz nos olhos.

— O que as Escrituras têm a ver com você, comigo e com isso? — ele perguntou.

— Pense um pouco — sugeri. — Seja bondoso com o estrangeiro na sua terra, pois você já foi um dia estrangeiro na terra do Egito. — Sacudi os ombros. — E você sabe o que significa ser um estrangeiro... Então me diga, como devemos tratar o estrangeiro que existe dentro de nós?

Alguém abriu a porta da casa, e Jasão se encostou de novo na treliça, assustado e trêmulo.

Era apenas Tiago.

— Qual é o seu problema esta noite? — ele perguntou para Jasão. — Por que está vagando por aí com seu manto de linho? O que está havendo? Parece que perdeu o juízo.

Meu coração ficou apertado.

Jasão bufou com desprezo.

— Ora, não é nada que um carpinteiro possa consertar — ele disse. — É só isso que tenho para dizer.

Então ele partiu, ladeira acima.

Tiago resmungou baixinho.

— Por que você tolera Jasão, por que deixa que ele venha a este pátio e fique falando como se fosse um mercado público?

Recomecei a trabalhar.

— Você gosta muito mais dele do que deixa transparecer — eu disse.

— Eu quero conversar com você — disse Tiago.

— Agora não, peço que me perdoe. Tenho de riscar estas linhas. Disse para os outros que acabaria isso hoje. Mandei-os para casa.

— Eu sei o que você fez. Está pensando que é o chefe desta família?

— Não, Tiago, não penso nada disso.

Continuei trabalhando.

— É agora que quero ter essa conversa com você — ele disse. — Agora que as mulheres estão descansando e os pequenos, fora do caminho. Vim até aqui para falar com você, e só para isso.

Ele andava para lá e para cá, na frente das tábuas. Arrumei as tábuas lado a lado. Linhas retas.

— Tiago, a cidade inteira está dormindo. Eu estou quase dormindo. Quero ir para a cama.

Risquei uma linha com o máximo de cuidado. Ficou boa. Peguei a última tábua. Parei um pouco e esfreguei as mãos. Não tinha percebido até então que meus dedos estavam quase rígidos de tanto frio.

— Yeshua — disse Tiago em voz baixa —, chegou a hora de não poder mais evitar isso. Você vai se casar. Não há mais motivo algum para adiar isso.

Olhei para ele.

— Não estou entendendo, Tiago.

— Não está? Além do mais, onde... onde, em todas as profecias, diz que você não vai se casar? — A voz dele soava áspera, e ele falava com uma lenti­dão incomum. — Quem foi que declarou que você não deve ter uma esposa?

Olhei para baixo outra vez, cuidando para fazer isso devagar, para me mo­ver com calma, para Tiago não se sentir mais desafiado do que já se sentia.

Terminei a última linha. Examinei as tábuas. E então me levantei, len­tamente. A dor nos joelhos era muito intensa e abaixei-me para esfregar os dois, primeiro o esquerdo, depois o direito.

Ele parou de braços cruzados, com uma raiva gelada, bem diferente das correntes ardentes de Jasão. Mas, do jeito dele, Tiago estava ainda mais furioso, e eu procurei não levar isso em conta, da melhor forma que pude.

— Tiago, nunca me casarei — eu disse. — Já é hora de essa dança acabar. É hora de acabar com isso de uma vez. Perturba a você... só a você.

Ele estendeu a mão como fazia sempre, segurou meu braço com força até doer e ficou imóvel.

— Não perturba só a mim — ele disse. — O que você faz é testar minha paciência ao limite, é isso que faz.

— Não tive intenção de fazer isso — eu disse. — Estou cansado.

— Você, cansado? Você?

O rosto de Tiago ficou vermelho. A luz do lampião formava sombras nos olhos dele.

— Os homens e as mulheres desta casa concordaram sobre essa questão — ele disse. — Todos dizem que é hora de você se casar, e eu estou dizendo que você vai se casar.

— Seu pai, não. Não vai me dizer que seu pai disse isso. E minha mãe também não, porque eu sei que ela não diria isso. E se os outros concorda­ram, foi porque você os fez concordar. E sim, estou cansado, Tiago, e quero me retirar agora. Estou muito cansado.

Livrei meu braço o mais devagar que pude, peguei o lampião e fui para o lado do estábulo. Estava tudo arrumado lá, os animais alimentados, o chão varrido e limpo. Cada arreio pendurado no seu gancho. O ar era quente por causa dos animais. Gostei. Deixei que me aquecesse por um tempo.

Voltei para o pátio. Tiago tinha apagado o outro lampião, estava tatean­do no escuro e me seguiu para dentro de casa.

A família tinha ido para a cama. Só José continuava sentado perto do braseiro, dormindo. Assim adormecido, seu rosto estava liso e parecia mais jovem. Eu gostava da expressão dos velhos, gostava da pureza pálida, da pele que derretia sobre os ossos. Gostava das formas distintas dos olhos sob as pálpebras.

Abaixei me perto das brasas, comecei a aquecer as mãos, então minha mãe apareceu e parou ao lado de Tiago.

— Você também não, mãe — eu disse.

Tiago começou a andar de um lado para outro como Jasão tinha feito.

— Obstinado, arrogante — ele disse entre dentes.

— Não, meu filho — minha mãe disse para mim. — Mas você precisa saber de uma coisa agora.

— Então conte-me, mãe.

O calor das brasas era delicioso nos meus dedos enrijecidos. Eu gosta­va de ver o brilho do fogo por baixo da cinza grossa dos carvões.

— Tiago, quer nos deixar sozinhos, por favor? — pediu minha mãe.

Ele hesitou, depois meneou a cabeça respeitosamente, quase curvando o corpo em deferência a ela, e foi embora. Só com minha mãe ele agia daquela maneira, sempre gentil. Tiago deixava a mulher dele exasperada muitas vezes.

Minha mãe sentou-se.

— Isso é uma coisa estranha — ela disse. — Você conhece a nossa Abigail e, bem, você sabe como é esta cidade, que parentes chegam para pedir a mão dela, vindos de Séforis, até de Jerusalém.

Eu não disse nada. Senti uma tristeza repentina e desgastante. Era uma dor que eu tentava localizar. Estava no meu peito, na minha barriga, por trás dos meus olhos. Estava no meu coração.

— Yeshua — sussurrou minha mãe. — A menina, ela mesma, quer você.

Dor.

— Ela é modesta demais para vir falar comigo — sussurrou minha mãe. — Ela falou com a Velha Bruria, com Ester e com Salomé. Falou com a pequena Salomé. Yeshua, eu acho que o pai dela diria sim.

Esse sofrimento parecia demasiado, achei que não ia suportar. Olhei fixamente para as brasas. Não quis olhar para minha mãe. Queria esconder isso dela.

— Meu filho, eu o conheço melhor do que qualquer pessoa — disse minha mãe. — Quando está com Abigail, você é todo amor.

Eu não conseguia responder. Não controlava a minha voz. Não controlava o meu coração. Fiquei imóvel. Lentamente disciplinei minha voz em tom normal e baixo, então falei:

— Mãe, esse amor irá comigo para onde eu tiver de ir, mas Abigail não irá comigo. Nenhuma esposa irá comigo... nem esposa, nem filho. Mãe, você e eu jamais precisamos conversar sobre isso. Mas, se temos de tratar disso agora, bem, então você deve saber que não mudarei de idéia.

Ela meneou a cabeça aceitando, como eu já sabia que faria. Ela beijou meu rosto. Estendi as mãos para o fogo outra vez, ela segurou minha mão direita e esfregou com a sua mão pequena e quente.

Pensei que meu coração ia parar de bater.

Ela me soltou.

Abigail. Isso é pior do que os sonhos. Não há imagens para apagar. Era simples­mente tudo que eu sabia sobre ela e que sempre soube, Abigail. Isso é quase mais do que um homem pode suportar.

Mais uma vez disciplinei a voz, em tom normal e baixo. Tornei-a suave e despreocupada.

— Mãe, Jasão era realmente insuportável para ela? — perguntei.

— Jasão?

— Quando ele a pediu em casamento, mãe, ela o considerou insuportá­vel? O nosso Jasão? Você sabe?

Ela ficou muito tempo pensando.

— Meu filho, acho que Abigail nunca soube que Jasão pediu a mão dela — ela disse. — Todos nós soubemos. Mas acho que Abigail estava aqui naque­le dia, brincando com as crianças. Não sei ao certo se Abigail chegou a comentar qualquer coisa. Shemayah veio aqui aquela noite, se sentou conosco e disse as coisas mais terríveis, desprezando Jasão. Mas Abigail não estava, estava na casa dela, dormindo. Não sei se ela achou Jasão insuportá­vel. Não. Acho que ela nunca soube.

A dor chegou ao ápice enquanto ela falava. Era cortante e profunda. Eu comecei a divagar. Seria ótimo poder chorar, estar sozinho e chorar, sem ninguém ver ou ouvir.

Carne da minha carne e sangue do meu sangue. Mantive a placidez no rosto e as mãos imóveis. Ele os criou, macho e fêmea. Tive de esconder isso da minha mãe e tive de esconder isso de mim mesmo.

— Mãe — eu disse —, você pode mencionar para ela... que Jasão a pediu em casamento. Talvez possa transmitir isso para ela, de alguma forma.

A dor ficou subitamente tão forte, que não quis mais dizer nada.

Senti os lábios dela no meu rosto. Sua mão no meu ombro.

Depois de um longo tempo, ela perguntou:

— Tem certeza de que é isso que quer que eu faça?

Fiz que sim com a cabeça.

— Yeshua, tem certeza de que é a vontade de Deus?

Esperei até a dor diminuir e poder responder com a voz normal. Então olhei para ela. No mesmo instante, sua expressão calma me deixou calmo também.

— Mãe, há coisas que eu sei e coisas que não sei. Às vezes o conheci­mento chega a mim de forma inesperada... em momentos de surpresa. Às vezes vem quando sou pressionado e nas minhas respostas súbitas para aqueles que me pressionam. Outras vezes, esse conhecimento chega com dor. Mas há sempre a certeza de que o conhecimento é mais do que eu me permitirei saber. Fica logo além de onde pretendo alcançar, logo além do que pretendo perguntar. Eu sei que virá quando eu precisar dele. Sei que pode chegar, como disse, espontaneamente. Mas há coisas de que tenho certeza e que sempre soube. Não há surpresa. Não há dúvida.

Ela ficou em silêncio outra vez e depois disse:

— Isso faz você sofrer muito. Já vi isso antes, mas nunca tão sério como agora.

— É tão ruim assim? — sussurrei e desviei o olhar, como os homens fazem quando querem ver apenas os próprios pensamentos. — Eu não sei se foi ruim para mim, mãe. O que é ruim para mim? Amar como amo Abigail... isso tem um brilho, um brilho imenso e lindo.

Ela esperou.

— Esses momentos acontecem — continuei. — Esses momentos de partir o coração... em que sentimos alegria o tristeza misturados. É uma grande descoberta, essa, de quando o sofrimento torna-se doce. Lembro-me de ter sentido isso, talvez pela primeira vez, quando viemos para cá, todos nós jun­tos, e subi a colina sobre Nazaré e vi o capim verdejante vivo, cheio de flo­res minúsculas... tantas flores... e tudo, o capim, as flores e as árvores, se movendo como se dançassem. Isso doeu.

Ela não disse nada.

Olhei para ela outra vez. Toquei de leve no peito com o punho cerrado.

— Doeu — repeti. — Mas era para ser acalentado... para sempre.

Relutantemente minha mãe assentiu com a cabeça.

Ficamos os dois calados.

Por fim, quebrei o silêncio.

— Agora conte para Abigail — eu disse. — Diga para ela que Jasão pediu sua mão. Jasão é muito dedicado a ela, e tenho de admitir que a vida com Jasão jamais será entediante.

Ela sorriu. Beijou-me novamente e se apoiou no meu ombro quando se levantou para ir embora.

Tiago tinha chegado. Ele fez do manto dobrado um travesseiro e se deitou para dormir perto da parede.

Fiquei olhando para as brasas vermelhas.

— Quanto tempo, ó Senhor? — sussurrei.

Quanto tempo?

 

O FATO ERA QUE TODAS as donzelas de Nazaré suspiravam por Jasão, com toda a timidez e modéstia que eram do feitio delas. E isso nunca ficou tão óbvio como na noite seguinte, quando a cidade enlouqueceu, quando lota­ram a sinagoga, homens, mulheres e crianças, ocupando todos os bancos, amontoados perto da porta e espremidos no salão até os pés do rabino e dos anciãos.

Assim que escureceu, as fogueiras sinalizadoras enviaram para a Galiléia a notícia que já tinha se espalhado pela Judéia. Os homens de Pôncio Pilatos tinham de fato instalado suas insígnias na Cidade Santa e se recusa­vam a removê-las, diante dos protestos do povo.

Berros e mais berros soavam da corneta de chifre de carneiro.

Aos empurrões, assumimos nossos lugares o mais perto de José que podíamos, Tiago lutando para controlar os filhos, Menachim, Isaac e Shabi. Todos os meus sobrinhos estavam lá, meus primos... na verdade, todos os homens aptos de Nazaré, ao que parecia, e os que não podiam andar sozi­nhos eram carregados nos ombros dos filhos ou dos netos. O Velho Sherebiah, que estava surdo, também foi carregado.

Abigail, Hannah Silenciosa e as minhas tias já tinham se sentado entre as mulheres, que estavam agitadas, mas em grande parte caladas.

Jasão se adiantou para dar a notícia completa e então vi Abigail olhan­do fixamente para ele, com a mesma concentração de todos os outros.

Jasão subiu no banco em que estavam sentados os anciãos.

Era uma figura impressionante com sua túnica de linho branco e fran­jas azuis e um manto alvejado sobre os ombros. Nenhum mestre sob o Pórtico de Salomão jamais pareceu tão imponente e tão elegante.

— Quantos anos já se passaram — exclamou Jasão —, desde que Tibério César expulsou toda a comunidade judaica de Roma?

Um rugido soou na assembléia, até as mulheres gritaram, mas todos silenciaram quando Jasão continuou:

— E agora, como todos sabem, esse cavaleiro, Sejanus, governa o mundo para seu cruel imperador, cujo próprio filho, Druso, foi assassinado por Sejanus!

O rabino levantou-se e exigiu silêncio. Todos balançavam a cabeça. Era perigoso dizer aquilo, mesmo no canto mais remoto do Império. Não importava que todos acreditassem. Os anciãos clamaram para Jasão também se acalmar. José fez sinal para ele se calar.

— Um relatório sobre essas insígnias na Cidade Santa já foi enviado para Tibério César — gritou o rabino. — É claro que foi. Vocês pensam que o Alto Sacerdote do Senhor, José Caiafas, ia ficar parado, assistindo a essa blasfêmia em silêncio? Pensam que Herodes Antipas não está fazendo nada? E vocês sabem muito bem, todos vocês, que esse imperador não quer desordem nessa região, ou em nenhuma região do Império. O imperador enviará uma ordem, como já fez no passado. As insígnias serão tiradas de lá. Pôncio Pilatos terá de obedecer!

José e os anciãos concordaram vigorosamente. Os homens e mulheres mais jovens não tiravam os olhos de Jasão. E Jasão só observava, insatisfeito. Então ele balançou a cabeça, discordando.

Mais murmúrios e de repente gritos também.

— O que precisamos agora é ter paciência — disse José.

Alguns tentaram fazer outros calarem para poder ouvir o que ele dizia. José era o único dos anciãos que se dispunha a falar. Mas foi inútil.

Então a voz de Jasão soou forte e zombeteira, acima do vozerio.

— E se o imperador não chegar a ver pessoalmente esse relatório? — per­guntou Jasão. — Que garantia nós temos de que esse Sejanus, que despreza e sempre desprezou a nossa raça, não vai interceptar o relatório? E que o imperador jamais porá os olhos nele?

Os gritos concordando soaram mais altos.

Menachim, o filho mais velho de Tiago, ficou de pé.

— Eu digo que devemos marchar sobre Cesárea, todos nós, unidos, exi­gindo que o governador tire as insígnias da cidade.

Os olhos de Jasão faiscaram e ele puxou Menachim para perto.

— Eu os proíbo de ir! — berrou Tiago, e outros homens da idade dele gritaram com o mesmo vigor, tentando impedir os jovens que pareciam prestes a abandonar a assembléia.

Meu tio Cleofas se levantou e gritou:

— Silêncio, turba ensandecida.

Ele se postou ao lado dos anciãos.

— O que sabe qualquer um de vocês? — ele disse, apontando o dedo para Menachim, Shabi e Jasão, e muitos outros, se virando de um lado para outro. — Digam-me, o que sabem das legiões romanas marchando para esta terra, vindas da Síria? O que vocês viram, em suas vidinhas miseráveis? Não passam de crianças impulsivas!

Ele olhou furioso para Jasão. Então subiu no banco, sem precisar da ajuda de ninguém, forçou Jasão a chegar para o lado e quase o derrubou.

Cleofas não era ancião. Não chegara nem à idade do ancião mais jovem que era, na verdade, seu cunhado José. Mas Cleofas tinha a cabeça toda gri­salha emoldurando seu rosto vigoroso, e uma voz poderosa, com o timbre da juventude e a autoridade de um mestre.

— Responda — exigiu Cleofas. — Quantas vezes, Menachim bar Tiago, você viu soldados romanos na Galiléia? Ora, quem os viu... você, você... você?

— Explique para eles — disse o rabino para Cleofas. — Porque eles não sabem. E os que sabem parece que não lembram mais.

Os mais jovens se revoltaram, berrando que sabiam muito bem o que pretendiam fazer, o que deviam fazer, o que precisavam fazer, e começaram a discutir e se impor uns aos outros, gritando cada vez mais alto.

Cleofas elevou a voz a um volume que eu nunca ouvi antes. Deu-lhes um gosto da oratória á qual estávamos acostumados sob o nosso teto.

— Vocês estão pensando que esse Sejanus, que detestam tanto — ele disse —, não vai agir para impedir os protestos na Judéia? O homem não quer dis­túrbios. Ele quer poder, e quer esse poder em Roma, não quer balbúrdia no Império oriental. Eu digo: deixem que ele tenha o poder. Os judeus volta­ram para Roma há muito tempo. Os judeus estão em paz em todas as cida­des do mundo, de Roma à Babilônia. E vocês não têm idéia de como essa paz foi forjada, então como podem investir de cabeça contra a guarda romana na Cesárea?

— Nós sabemos que somos judeus, é isso que sabemos — declarou Menachim.

Tiago quase bateu no filho, mas se conteve.

No outro lado da sinagoga, minha mãe fechou os olhos e abaixou a cabeça. Abigail arregalava os olhos para Jasão, parado de braços cruzados, como se fosse o juiz da questão, olhando com frieza para o pequeno grupo de anciãos.

— Que história vai nos contar? — quis saber Jasão, olhando para Cleofas que estava ao seu lado. — Vai nos dizer que tivemos décadas de paz sob o domínio de Augusto? Nós sabemos disso. Vai nos contar que tivemos paz sob o governo de Tibério? Nós sabemos disso. Vai nos dizer que os roma­nos toleram as nossas leis? Nós sabemos disso. Mas sabemos também que as insígnias, as insígnias com a imagem de Tibério, estão na Cidade Santa agora, e que estão lá desde esta manhã. E sabemos que o Alto Sacerdote José Caiafas não as tirou de lá. Nem Herodes Antipas. Por quê? Por que não foram tiradas de lá? Vou dizer por quê. A força é a única coisa que esse novo governador, Pôncio Pilatos, é capaz de entender. Ele foi enviado para cá por um homem brutal, e é aliado de um homem brutal, e quem dentre nós não sabia que isso podia acontecer?

A gritaria que resultou foi ensurdecedora. A casa reverberava com ela como um imenso tambor. Até as mulheres se inflamaram. Abigail se enco­lheu ao lado da minha mãe, olhando fixamente para Jasão, encantada. Até Hannah Silenciosa, ainda com os olhos inchados de dor, olhava para ele com deslumbramento meio vago.

— Silêncio! — gritou Cleofas.

Ele rugiu a ordem novamente e bateu com o pé no banco até o baru­lho cessar.

— Não é assim, como você diz, e o que representa para nós, o que esse homem é? Nós não somos homens violentos. — Ele bateu no peito com as duas mãos. — A força não é a nossa língua! Pode ser a língua desse tolo gover­nador e seus asseclas, mas nós falamos uma língua diferente e foi sempre assim. Se pensam que as legiões não podem vir da Síria e encher esta terra de cruzes em um mês, então não sabem de nada. Olhem para seus pais. Olhem para seus avós! Vocês são mais zelosos com a lei do que eles?

Ele apontou para todo lado. Apontou para Tiago. Apontou para mim. Apontou para José.

Nós nos lembramos do ano em que Herodes Arquelau foi deposto — disse Cleofas. — Dez anos governou aquele homem, e depois foi deposto. E o que aconteceu na terra quando o imperador, pelo nosso bem, fez isso? Vou contar o que aconteceu. Judas, o Galileu, e seu conspirador fariseu se ergueram nessas montanhas e encheram os campos da Judéia, da Galiléia, da Samaria de assassinatos, incêndios, pilhagens e tumultos! E nós, que já tínhamos visto isso antes, exatamente a mesma carnificina com a morte do velho Herodes, vimos de novo, onda após onda, como incêndio num campo seco, lamben­do a relva e sugando todo o ar com línguas de fogo. E vieram os romanos, como sempre fazem, e as cruzes foram erguidas, e caminhar por essas estra­das era andar em meio aos gritos e gemidos dos moribundos.

Silêncio. Até Jasão olhou para Cleofas em silêncio.

— Agora vocês querem trazer isso para cá outra vez? — perguntou Cleofas. — Mas não vão. Ficarão onde estão, nesta aldeia, aqui, em Nazaré, e deixarão o Alto Sacerdote e seus conselheiros escreverem para César para apresentar essa blasfêmia! Vocês deixarão esses homens zarpar, como certa­mente farão. E ficarão à espera da decisão deles.

Naquele momento, pareceu que a batalha estava ganha. Então ouvimos um grito vindo da porta.

— Mas estão todos indo, estão todos indo... para Cesárea.

Protestos e clamores furiosos soaram de todos os lados.

Jasão balançou a cabeça. Os mais velhos se levantaram, se empurrando e discutindo, e os homens procuravam seus filhos.

Menachim se afastou de Tiago, num gesto de desafio, e Tiago ficou ver­melho de raiva.

Os homens estão a caminho agora — gritou outra voz do fundo da sinagoga.

Uma multidão está a meio caminho de Jerusalém! — disse outra voz.

Jasão gritou sobre a confusão:

Isso é verdade. Os homens não vão tolerar essa insolência, essa blasfê­mia, em silêncio. Se José Gaiatas pensa que vamos engolir isso para manter a paz, está enganado! Digo que devemos ir para Cesárea, com nossos com­patriotas!

Gritos e exclamações foram ficando cada vez mais altos, mas ele não tinha terminado de falar.

— Não estou dizendo para irmos provocar tumulto, não! Isso seria loucura. Cleofas tem razão. Não vamos para brigar, e sim para ficar diante desse homem, desse homem arrogante, e dizer para ele que ele infringiu as nos­sas leis e que não sairemos dali enquanto ele não nos atender!

Pandemônio. Não havia mais nenhum jovem sentado no chão. Todos se levantaram, alguns pulavam de tão excitados, como as crianças que socavam o ar furiosamente e saltavam para lá e para cá. A maioria das mulheres tam­bém ficou de pé. As outras tiveram de se levantar, porque não conseguiam ver mais nada. Os bancos de um canto da sinagoga estremeciam com as batidas dos pés.

Menachim e Isaac abriram caminho até onde Jasão estava e ficaram ao lado dele, olhando para o tio com ar de desafio. Menachim pegou o manto de Jasão. Todos os jovens se esforçavam para chegar perto de Jasão.

Tiago agarrou o braço de Menachim e, antes que o filho pudesse se soltar, deu-lhe um tapa com as costas da mão, com força, mas Menachim con­tinuou firme.

— Parem com isso agora, todos vocês — Tiago gritou, mas em vão.

José soltou um gemido. Eu senti, porque não podia ouvir.

— Se vocês forem como um grupo para Cesárea — berrou Cleofas —, os romanos investirão com suas espadas em riste. Pensam que eles se importam se vocês levam adagas ou relhas de arado?

O rabino repetiu essas palavras. Os anciãos se esforçaram para apoiar e mostrar que concordavam, mas tudo se perdeu nos gritos passionais dos jovens.

Menachim subiu no banco ao lado de Jasão e Cleofas, desequilibrado, caiu. Eu o amparei, de modo que ele caiu de pé no chão.

— Nós vamos — gritou Jasão —, vamos juntos e ficaremos diante de Pôncio Pilatos, uma multidão que ele nem sequer imagina. O que será Nazaré, sinônimo de covardia? Quem é o judeu que não irá conosco?

Uma nova onda de gritaria nos envolveu e fez estremecer as paredes novamente. Pela primeira vez, ouvi o volume de exclamações vindas do lado de fora da sinagoga. As pessoas batiam nos muros. A noite se encheu de gritos. Eu os ouvia atrás de nós.

De repente, a multidão que estava na porta se separou para abrir cami­nho para um bando de homens, com roupas de viagem e os odres de vinho pendurados nos ombros. Dois eu conhecia de Caná e um, de Séforis.

— Vamos para Cesárea esta noite. Vamos acampar na frente do palácio do governador até ele retirar as insígnias! — gritou um dos homens.

José sinalizou para que eu o ajudasse. Ele apontou para Cleofas. Nós dois conseguimos pô-lo em cima do banco. Menachim desceu para dar lugar para ele e até Jasão chegou para o lado, como era sua obrigação.

José ficou um momento olhando para a multidão enlouquecida. Le­vantou as mãos. A balbúrdia rolava como uma onda que ia sufocá-lo, mas lentamente foi diminuindo e, ante a visão daquele homem do cabelos brancos, calado, apenas gesticulando com os dois braços levantados como se quisesse dividir o mar Vermelho, todos silenciaram.

— Muito bem, meus filhos — ele disse.

Mesmo os murmúrios mais discretos cessaram.

— Vocês têm de aprender sozinhos o que sabemos tão bem... nós que vimos Judas, o Galileu, e seus homens espalhando violência por essas coli­nas, nós que vimos as legiões virem mais de uma vez para esta terra a fim de restaurar a ordem. Sim, sim. Muito bem, então. Que vocês aprendam por conta própria o que não querem aprender conosco.

Tiago foi protestar. Ele agarrou Isaac com força e o filho lutava para se livrar.

— Não, meu filho — disse José para Tiago. — Não ponha a tentação na frente deles. Se proibir isso, eles farão de qualquer maneira.

Com isso, um aplauso suave e respeitoso encheu a sinagoga. Depois murmúrios e       finalmente gritos de aprovação. José continuou falando, ainda com os braços levantados.

— Sim, mostrem ao governador o seu fervor. Sim, Jasão, mostre a sua eloquência, se quiser. Fale o seu latim perfeito para esse homem, sim. Mas andem e falem em paz, estão me ouvindo? Eu aviso que, quando os roma­nos desembainharem suas espadas cintilantes, eles ceifarão todos nós. Um exército romano tomará o caminho direto para esta aldeia.

Jasão se virou de frente para José e segurou a mão direita dele, como se os dois concordassem.

— Pelo Senhor — gritou Jasão. — Eles tirarão aquelas insígnias ou bebe­rão o nosso sangue. A decisão será deles.

Uma voz de acordo, furiosa, soou em resposta.

Jasão desceu do banco com um pulo e marchou para a frente, empur­rando todos que estavam no caminho, e logo a totalidade da assembléia procurava a porta para sair, ir para a rua e segui-lo.

Bancos arranhavam o chão e batiam uns nos outros, e os bebês choravam.

O rabino se sentou, cansado, e apoiou a cabeça no meu ombro. Meus sobrinhos Shabi e Isaac escaparam das mãos de Tiago, se espremeram entre os outros e correram atrás do irmão deles, Menachim.

Pensei que Tiago ia enlouquecer.

À porta, Jasão se virou para trás, ressurgindo do mar revoltado dos que estavam em volta dele. Olhou para trás, enquanto todos passavam por ele.

— E você não vem conosco, você, acima de todos? — ele perguntou. E apontou o dedo para mim.

— Não — eu disse. Balancei a cabeça e olhei para o outro lado.

O som da minha resposta não ecoou em meio à balbúrdia, mas a forma sim, então ele se foi e todos os homens mais jovens com ele.

A rua estava tão cheia de tochas, que poderia bem ser a noite do Êxodo do Egito. Os homens agora riam e gritavam, entrando e saindo de suas casas para pegar os mantos pesados de lã e os odres de vinho para a caminhada.

Tiago segurou o filho mais novo, Isaac, e quando Isaac, um menino que não tinha mais de dez anos, se debateu para se soltar, Abigail o agarrou de repente e protestou furiosa:

— O quê? Você vai me deixar aqui sozinha? Está pensando que ninguém tem de ficar para cuidar da aldeia?

Ela o prendeu de um jeito que o pai dele jamais conseguiria fazer, porque Isaac não podia lutar contra ela. E ela chamou para perto os outros meninos menores, todos que podia ver.

— Você venha cá, Yaquim, e você também, pequeno Levi. E você, Benjamim!

Hannah Silenciosa se uniu a ela, colaborando com os chamamentos.

É claro que outras mulheres, jovens e velhas, faziam a mesma coisa, cada uma arrastando para fora da procissão qualquer um que pudessem dominar. E chegaram à aldeia mais homens do campo, camponeses, homens das aldeias próximas e distantes que todos conheciam, e finalmente eu vi até os soldados, soldados de Herodes de Séforis.

— Você está conosco? — alguém gritou.

Cobri minhas orelhas.

Entrei em casa.

Abigail praticamente arrastou Isaac para dentro com ela. Tiago, estava furioso demais para olhar para ele. Menachim e Shabi já estavam a caminho quando entramos, e Menachim olhou uma vez para Tiago, como se fosse chorar, só que então ele disse:

— Pai, eu preciso ir!

E lá foi ele.Tiago deu-lhe as costas e deixou a cabeça cair sobre o peito.

O pequeno Isaac começou a chorar.

— Meus irmãos... tenho de ir com eles, Abigail.

— Você não irá — disse Abigail.

Ela estendeu a mão para segurar os pequeninos.

— Estou dizendo que vocês ficarão aqui comigo.

Abigail tinha prendido sete meninos.

Minha mãe ajudou José a se sentar perto do fogo.

— Como pode tudo isso começar outra vez? — perguntou Cleofas. — E onde está Silas? — ele exclamou de repente. — Onde está o pequeno José? — Ele olhou em volta, em pânico, e sugeriu: — Onde estão meus filhos?

— Foram embora — disse Abigail. — Já vieram para a assembléia prontos para partir.

Ela balançou a cabeça, com pena de tudo aquilo. Segurava Isaac pelo pulso e ele se debatia.

O pai de Abigail, Shemayah, entrou na sala, desajeitado, ofegante, desar­vorado... viu Abigail com as crianças, fez um gesto que denotava desgosto, saiu e foi para a casa dele antes que alguém pudesse oferecer um copo de vinho ou de água.

Abigail se sentou com os meninos em volta, a maior parte deles com dez, onze anos, e um, Yaquim, que tinha doze anos de idade. Ela segurava com força a mão de Yaquim, como tinha segurado a de Isaac. Yaquim não tinha mãe e era bem provável que o seu pai estivesse se embebedando em alguma taverna.

— Preciso de todos vocês aqui, nós precisamos de vocês — Abigail insis­tia. — E não quero ouvir nem mais uma palavra sobre isso. Nenhum de vocês vai sair. Ficarão aqui esta noite, embaixo deste teto, onde Yeshua e Tiago podem vê-los. E vocês, meninas, vêm comigo esta noite, e você tam­bém. — Ela cutucou Hannah Silenciosa.

De repente, Abigail parou e veio falar comigo.

— Yeshua — ela disse. — O que você acha que vai acontecer?

Olhei para ela. Abigail parecia muito suave e curiosa, bem distante de qualquer medo real.

— Jasão falará por eles? — ela perguntou. — Ele apresentará a questão ao governador por eles?

— Minha querida criança — eu disse —, neste momento há mil Jasões a caminho de Cesárea. Há padres e escribas e sábios indo para lá.

— E salteadores — disse Cleofas, desgostoso. — Salteadores que vão se misturar à multidão, que transformarão a coisa toda em tumulto em um segundo, se pensarem que terão a luta que sempre quiseram, a batalha da qual jamais desistem, a luta que eles ainda mantêm em toda caverna e taber­na do interior.

Abigail então ficou com medo, como todas as mulheres, até que Tiago pediu por favor para Cleofas parar de falar, e José disse a mesma coisa.

A Velha Bruria entrou na sala, a mais velha da nossa casa, uma mulher que não tinha parentesco de sangue conosco, mas que vivia com a família havia muito tempo, desde que a terra se encharcou de sangue depois da morte do velho Herodes.

— Já chega — disse Bruria com a voz forte e marcante. — Reze, Abigail, reze como todas nós rezamos. Os mestres do Templo estão na estrada. Já estavam a caminho antes de as fogueiras de sinalização começarem a brilhar lias montanhas à noite.

Ela ficou ao lado de José. E esperou.

Bruria queria que José conduzisse a nossa prece, mas parecia que ele havia esquecido. O irmão dele, Alfeu, juntou-se a nós e só então nos demos conta de que ele não tinha ido à assembléia. Ele se sentou ao lado do irmão.

— Então muito bem — disse Bruria. — Ó Senhor, Criador do universo, tenha piedade do seu povo Israel.

A noite inteira a aldeia fervilhou com o barulho dos homens que pas­savam por ali em sua caminhada para o sul.

Às vezes, quando não conseguia dormir, eu saía para o pátio e, ali parado, de braços cruzados no escuro, podia ouvir as vozes revoltadas da taverna.

Quando amanheceu, chegaram cavaleiros à aldeia e leram em voz alta na, breves cartas, declarando que esta ou aquela cidade tinha enviado todos os seus ocupantes para o sul, para apelar ao governador.

Alguns homens mais velhos vestiram seus mantos, pegaram seus cajados e partiram para se juntar aos que passavam pela aldeia.

Até alguns idosos, montados em seus burricos, enrolados em cobertores até o nariz, também se puseram a caminho.

Tiago trabalhava sem dizer palavra, batendo o martelo com mais força do que precisava nos menores pregos.

Maria, mulher do pequeno Cleofas, começou a chorar. Além do mari­do, também tinham ido o pai dela, Levi, e os irmãos. E andavam dizendo que todo homem que valia o que ganhava estava se juntando ao movimento rumo a Cesaréa.

— Ora, este homem que vale o que ganha, não — disse Tiago.

Ele jogou a madeira na carroça.

— Não adianta ir trabalhar — ele disse. — Isso pode esperar. Tudo pode esperar, como esperamos que as janelas do céu se abram.

O céu estava azul-claro e manchado. O vento chegava cheio dos chei­ros dos estábulos e dos pátios que não tinham sido lavados, das plantações secas e mortas nos campos, da urina que atraía moscas para o reboco sujo.

A noite seguinte foi silenciosa. Todos tinham partido. O que podiam dizer as fogueiras de sinalização, senão que mais e mais pessoas iam para as estradas, senão que elas vinham do norte, do sul, do leste e do oeste? E que as insígnias continuavam na Cidade Santa.

Tiago me disse ao alvorecer:

— Eu pensava que você ia mudar as coisas.

— Guarde suas lembranças para você — disse minha mãe.

Ela serviu pão e azeitonas para nós. Serviu água.

— Pensava mesmo — disse Tiago, olhando furioso para mim. — Costu­mava pensar que você mudaria tudo. Acreditava no que tinha visto com meus próprios olhos... os presentes dos Magos postos na palha, o rosto dos pastores que tinham ouvido anjos povoando o céu. Eu costumava acreditar nisso.

— Tiago, eu imploro — disse minha mãe.

— Deixe-o em paz — disse José suavemente. — Tiago já disse isso muitas vezes. Por isso, tenhamos paciência com ele de novo.

— E você, pai, nunca pensou qual era o sentido de tudo isso? — pergun­tou Tiago.

— O Senhor fez o tempo — disse José. — E o Senhor revelará tudo a Seu tempo, quando Ele quiser revelar.

— E meus filhos morrerão — disse Tiago, com o rosto crispado de angústia. — Meus filhos vão morrer como outros homens morreram antes, e para quê?

Abigail chegou com Hannah Silenciosa e o grupo habitual de crianças.

— Por favor, não falem mais disso — disse minha tia Ester.

— Meu pai diz que o mundo inteiro foi para Cesárea — disse Abigail. — Recebemos uma carta dos nossos primos de Betânia. Dos seus primos, dos nossos primos, de todos eles de Betânia. Eles também foram.

Ela começou a chorar.

As crianças se reuniram em torno dela para consolá-la.

— Todos vão voltar para casa — disse Isaac, o pequeno protetor de Abigail. Ele a abraçou imediatamente. — Eu prometo, Abigail. Dou-lhe a minha palavra. Eles vão voltar. Meus irmãos vão voltar. Pare com isso. Vai fazer Hannah Silenciosa chorar...

— E quem vocês acham que sobrou em Nazaré? — perguntou Tiago com amargura, olhando para mim. — Ah! — ele disse, fingindo surpresa. — Yeshua, o Sem Pecado.

Abigail olhou para ele, espantada. Seus olhos vasculharam o rosto de todos em volta. Ela olhou para mim.

— E Tiago, o Justo! Ele também ficou aqui — declarou minha tia Ester.

— Tiago, o Impiedoso! — disse tia Salomé. — Cale-se, ou então vá também.

— Não, não... parem com isso, todos vocês — pediu minha mãe.

— É, por favor, eu não tive a intenção de... Perdão — disse Abigail.

— Você não fez nada — eu disse.

E assim foi aquele dia.

E o dia seguinte.

E o outro.

 

OS SALTEADORES ATACARAM A ALDEIA AO ALVORECER.

Tiago e eu tínhamos acabado de sair da casa do rabino, estávamos no topo da colina. E os vimos, dois homens esfarrapados a cavalo, descendo a galope a encosta do outro lado, indo em direção ao riacho.

As mulheres com seus cântaros de água e trouxas de roupa para lavar gritaram e correram em todas as direções, seguidas pelos filhos pequenos.

Tiago e eu demos o alarme. A corneta berrava enquanto corríamos ao encontro deles.

Apenas um deles conduziu a montaria encosta acima bem na nossa direção. As pessoas saíam de suas casas de todos os lados. O bandido avan­çou para cima de nós, Tiago e eu caímos de costas e os cascos passaram a galope por cima das nossas cabeças.

— Abigail! — berrou Tiago.

— Abigail! — mais alguém gritou, depois outros gritaram.

Enquanto eu me levantava com dificuldade, porque minha mão estava machucada e sangrando, vi o que todos já tinham visto. O homem que fica­ra para trás tinha agarrado Abigail pela cintura. As crianças jogavam pedras nele. Isaac se pendurou no ombro esquerdo do homem.

Abigail gritava e esperneava. As crianças seguraram os tornozelos dela.

Todas as mulheres correram para cima do homem e começaram a gol­pear o cavalo com seus cântaros.

Nós chegamos ao leito do rio no momento em que, assediado de todos os lados, o homem teve de largar Abigail, arrancando seu véu e o xale quan­do ela bateu nas pedras do chão. Brandindo as peças de roupa de Abigail como bandeira, o homem se abaixou para escapar das pedras que atiravam nele e fugiu cavalgando o mais rápido que podia.

Abigail se levantou, sentou sobre as pernas dobradas e curvou-se para a frente. Ela usava uma túnica de mangas compridas e o cabelo cascateava sobre o seu rosto e seus ombros. O pequeno Isaac a abraçou para preservá­-la dos olhares dos outros.

Cheguei até ela, ajoelhei-me na sua frente e segurei seus ombros.

Ela gritou meu nome e se agarrou a mim. Tinha sangue escorrendo de ferimentos na testa e no rosto.

— Eles foram embora — disse Tiago.

As mulheres nos cercaram. Minha tia Ester disse que acertou o homem em cheio com seu cântaro. O jarro quebrou na cabeça dele. As crianças soluçavam e corriam de um lado para outro.

Ouvimos gritos do alto do morro.

— O outro fugiu. Ele servia para nos distrair — disse Tiago. — Eles queriam uma mulher, aqueles selvagens pagãos, olhem só para isso, vejam o que fizeram.

— Já passou — sussurrei para Abigail. — Deixe-me olhar para você. Está com alguns cortes e arranhões.

Ela fez que sim com a cabeça. Ela me entendia.

Então ouvi uma voz sobre a minha cabeça.

— Afaste-se da minha filha. Tire suas mãos dela.

Mal pude acreditar que essas palavras eram para mim.

Minha tia Ester gesticulou para que eu recuasse. Ela tomou meu lugar ao lado de Abigail enquanto Abigail se levantava.

— Ela não está machucada — disse tia Ester. — Estávamos todos aqui, jogamos pedras e batemos nele.

Ouviu-se um coro concordando.

Shemayah olhava fixamente para Abigail, que ficou parada, tremendo, com sua túnica de lã, o cabelo despenteado, os cortes do rosto sangrando.

Tirei minha capa e rapidamente pus sobre os ombros dela. Mas ele me empurrou, perdi o equilíbrio quando ela ia se cobrir. As mulheres se adian­taram e cobriram Abigail. A túnica que usava era bastante modesta. Bastava. Mas agora ela estava completamente coberta como de costume, com a capa sobre os ombros, caindo pelas costas. E minha tia Salomé puxou para trás o cabelo de Abigail.

Shemayah levantou a filha. Ele a segurou no colo com os dois braços, como se ela fosse uma criança, e a carregou ladeira acima.

As mulheres correram atrás dele. As crianças também, rodeando Shemayah e atrapalhando cada passo que ele dava.

Tiago e eu ficamos esperando. Depois subimos a ladeira lentamente.

Quando chegamos à porta da casa de Shemayah, estava fechada e as mulheres do lado de fora.

O que é isso? Por que vocês não entraram? — perguntei.

Ele não deixou.

Minha mãe saiu da nossa casa com a Velha Bruria.

O que aconteceu?

Todas contaram sua versão ao mesmo tempo.

Velha Bruria bateu à porta.

Shemayah — ela gritou. — Abra essa porta para nós agora. Essa meni­na precisa de nós.

A porta abriu e saiu Hannah Silenciosa, jogada sobre nós como se fosse apenas uma trouxa de roupas.

A porta se fechou com estrondo.

Hannah Silenciosa estava apavorada.

Eu bati à porta. Falei bem perto da madeira, acenando para Tiago ficar afastado e não tentar me impedir.

Shemayah — eu chamei. — As mulheres estão aqui para cuidar de Abigail, deixe-as entrar.

Ela não se machucou! — declarou minha tia Salomé. — Nós todos vimos. Ela lutou e ele a deixou cair! Vocês todos viram.

Sim, nós todos vimos — disse tia Ester. — Vocês, homens, vão embora. Deixem que cuidemos disso.

Recuamos, como nos disseram para fazer. Chegaram mais mulheres. A esposa de Tiago, Mara, e Maria do pequeno Cleofas, e a esposa de Silas, e pelo menos mais uma dúzia. As mais velhas bateram juntas à porta.

—Vamos arrombar! — disse Ester.

Elas se lançaram sobre a porta, chutando, socando, até que se soltou das dobradiças e caiu para dentro.

Fui para um lugar de onde podia ver o interior escuro da casa. Vi ape­nas de relance, antes de se encher de mulheres. Abigail, muito pálida e cho­rando, descabelada e desarrumada como antes, estava num canto, feito trou­xa de roupa, e o sangue ainda escorria da sua testa.

Os protestos violentos de Shemayah foram abafados pelos das mulheres. Isaac, Yaquim e Hannah Silenciosa tentaram entrar na casa, mas não conseguiram. Estava lotada de mulheres.

E foram as mulheres que puseram a porta de volta nas dobradiças e a fecharam.

Fomos para o nosso pátio e Tiago desabafou, falando sem parar.

Ele enlouqueceu? — perguntei.

Não seja tolo — disse meu tio Cleofas. — O bandido rasgou o véu dela.

O que é um véu? — perguntou Tiago. Isaac e Yaquim nos procuraram, chorando. — O que importa, em nome do Senhor, se ele arrancou o véu de Abigail?

Ele é um homem velho e burro — disse Cleofas. — Não o defendo. Estou apenas respondendo porque parece que alguém tem de dar uma resposta.

Nós a salvamos — disse Isaac para o pai, secando as lágrimas.

Tiago beijou a cabeça do filho e o abraçou.

Vocês agiram certo, todos vocês — ele disse. — Yaquim, você e você. — Ele apontou para os menininhos parados na rua. — Venham para casa agora.

Só depois de uma hora, minha mãe chegou, junto com tia Ester e tia Salomé.

Tia Salomé estava furiosa.

Ele mandou chamar a parteira.

Como pode fazer uma coisa dessas? — gritou Tiago. — A aldeia intei­ra viu o que houve. Não aconteceu nada. Forçamos o homem a soltá-la.

Minha mãe se sentou ao lado do braseiro, aos prantos.

Ouvimos uma gritaria na rua, mais vozes de mulheres do que de homens. Yaquim e Isaac saíram correndo antes de alguém poder impedir.

Eu não me mexi.

Finalmente chegou a Velha Bruria.

A parteira já veio e já foi embora — ela disse. — Que todos saibam nesta casa e em todas as casas, que saibam todos os asnos, os valentões e os vaga­bundos desta aldeia que queiram saber, que insistam no assunto, que façam fofocas sobre isso, a menina está intacta.

Bem, isso não é nenhuma surpresa — disse tia Ester. — E você a deixou sozinha com ele?

Velha Bruria fez um gesto como se quisesse dizer que não ia fazer mais nada e foi embora para o quarto dela.

Hannah Silenciosa, que tinha visto tudo, levantou-se sem fazer barulho e saiu da casa.

Eu queria segui-la. Queria ver se Shemayah ia deixá-la entrar ou não. Mas não fiz isso. A única que seguiu Hannah Silenciosa foi minha mãe, que retornou logo depois e meneou a cabeça, indicando que estava tudo acaba­do por hora.

Ao meio-dia, Shemayah e seus empregados da fazenda saíram a cavalo para as montanhas. Na casa dele, duas empregadas ficaram com Abigail e Hannah Silenciosa e trancaram a porta depois que ele saiu, conforme a ordem dele mesmo.

Sabíamos que Shemayah não ia encontrar os bandidos. Rezamos para ele não os encontrar. Ele não saberia o que fazer contra homens armados com adagas e espadas. E o bando maltrapilho que levara com ele era forma­do apenas de homens mais velhos, os mais fracos, os que não tinham parti­do para Cesárea para protestar.

Shemayah só voltou no início da noite. Ouvimos o barulho dos cava­los, que não era comum na nossa rua.

Minha mãe e minhas tias foram à porta dele e imploraram para ver Abigail. Ele não atendeu.

No dia seguinte, ninguém entrou e ninguém saiu da casa de Shemayah. Seus empregados do campo se reuniram, conversaram e depois partiram para os quatro cantos.

O mesmo aconteceu no outro dia.

Enquanto isso, chegavam notícias de Cesárea a cada duas ou três horas.

E, no terceiro dia depois do ataque dos bandidos, recebemos uma longa carta escrita por Jasão, que foi lida em voz alta na sinagoga, dizendo que a multidão estava reunida em paz diante do palácio do governador e que dali não sairia.

Isso tranquilizou o rabino e também acalmou muitos de nós. Mas alguns ficaram imaginando o que o governador faria se aquela multidão não fosse embora.

Nem Shemayah nem ninguém da casa dele compareceu à assembléia.

No dia seguinte, Shemayah foi para o campo sozinho, de madrugada. Ninguém atendeu quando as mulheres bateram à porta. Então, à tarde, Hannah Silenciosa saiu da casa.

Ela foi para a nossa e disse, gesticulando para as mulheres, que Abigail estava prostrada no chão, que ela se recusava a comer qualquer coisa, que se recusava a beber qualquer coisa. E voltou correndo, com medo de que Shemayah tivesse chegado e descoberto que ela não estava lá. Hannah Silenciosa desapareceu dentro da casa e trancou a porta novamente.

Eu só soube dessas coisas quando voltei do trabalho em Séforis. Minha mãe me disse o que Hannah Silenciosa tinha contado para as mulheres.

Estavam todos desolados em casa.

José e Bruria foram juntos até lá e bateram à porta. Os dois eram de fato os mais velhos, para quem ninguém podia recusar abrir a porta. Mas Shemayah não atendeu. E Bruria ajudou José a voltar lentamente para casa.

 

NA MANHÃ SEGUINTE, fomos todos juntos procurar o rabino, as mulhe­res que tinham estado no riacho, as crianças que estavam lá, Tiago, eu e os outros que tinham visto tudo. Velha Bruria foi conosco, assim como José, só que ele pareceu ter mais dificuldade do que nunca para fizer a caminhada ladeira acima. Pedimos uma reunião com o rabino e fomos todos juntos para a sinagoga. Entramos e fechamos as portas.

Lá dentro estava tudo limpo e silencioso. O sol da manhã tinha até aquecido um pouco o salão. José sentou-se num banco. O rabino assumiu seu lugar habitual na cadeira à direita de José.

— A questão é a seguinte — eu disse, de pé diante do rabino. — Aquele homem não causou nenhum dano a Abigail, nossa parenta. Todos que esta­vam lá viram o que aconteceu. Viram como Abigail lutou. Viram quando ele a soltou. Viram quando ela foi levada para casa. Agora já se passaram dias. Hannah Silenciosa entra e sai de lá, mas apenas Hannah Silenciosa, e ela diz, da melhor forma que pode, que Abigail não está comendo nem be­bendo nada.

O rabino fez que sim com a cabeça. Tinha os ombros curvados sob o manto. Nos olhos, compaixão.

— Agora pedimos apenas isso — eu disse —, que as primas dela que estão aqui, estas mulheres, possam cuidar dela, tratar dos cortes e arranhões que ela sofreu quando caiu no chão. Queremos que elas possam entrar na casa para cuidar dela. Cuidar para que se alimente e beba o que precisa. O pai dela não quer permitir. As servas são mulheres idosas e senis. Era Abigail quem cuidava delas. Como essas servas podem atender a Abigail? Abigail deve estar amedrontada, chorando e sofrendo sozinha.

— Eu sei de tudo isso — disse o rabino com tristeza. — Vocês sabem que eu sei. E o pai dela saiu à procura dos malfeitores. Partiu para encharcar sua espada enferrujada de sangue. E não foi o único. Aqueles bandidos atacaram Caná. Não, eles não sequestraram uma mulher, apenas tudo que puderam agarrar. Os soldados do rei vão pegá-los. Enviaram um grupo para as mon­tanhas.

— Seja como for — eu disse. — Estamos preocupados com a nossa paren­ta, Abigail.

— Rabino, o senhor tem de fazer com que ele nos deixe entrar — disse Velha Bruria. — A menina precisa de cuidados. Ela pode estar perdendo o juízo.

— E o que é pior, estão falando na aldeia — disse tia Ester.

— O que estão dizendo? — perguntou Tiago — Sobre o que estão falando?

Minhas tias estavam exasperadas com Tiago, mas minha mãe ficou ape­nas chocada.

— Se eu não precisasse ir ao mercado, não iria mais — disse tia Ester.

Mara, mulher de Tiago, meneou a cabeça concordando e disse que também não iria mais, se pudesse.

— Do que elas estão falando? — perguntou o rabino irritado. — Que con­versa é essa?

— Estão falando de tudo que se pode imaginar — disse tia Ester. — E o que mais se podia esperar? Estão dizendo que ela estava perambulando à toa, que estava cantando para as crianças e dançando como gosta de fazer. Que chamava a atenção. A bela Abigail, Abigail com sua voz adorável. Que estava longe das outras. Que tinha tirado o véu para exibir seu cabelo. Não param de falar. Será que esqueci alguma coisa? Nada disso, nem uma pala­vra, nem uma única palavra disso é verdade! Nós estávamos lá e vimos tudo. Ela é a mais jovem, a mais linda, disso é culpada, e de quem é a culpa?

Fui até o banco, me sentei perto de José. Apoiei os cotovelos nos joe­lhos. Tinha desconfiado de que iam falar, mas odiava ouvir. Fiquei tentado a tapar as orelhas com as mãos.

Minha mãe disse, com voz suave:

— Shemayah atrai vergonha sobre si mesmo com esse comportamento. Rabino, por favor, vá com Velha Bruria e converse com ele. Peça para ele deixar a menina ter companhia e vir ter conosco como antes.

— Com vocês? — perguntou o rabino. — Vocês acham que ele vai deixar que ela visite vocês?

Todos olharam para ele espantados, em silêncio. Eu endireitei as costas e olhei para ele também.

Ele estava triste como antes, com o olhar distante, pensativo.

— Por que nós não? — perguntou tia Ester.

— Yeshua — disse o rabino.

Ele virou para mim, com ternura no olhar.

— O que você fez no riacho? O que foi que você fez?

— Ora, o que está fazendo com ele? — disse Tiago. — Ele não fez nada! Foi ajudar Abigail, como um irmão ajuda uma irmã!

Tia Ester interrompeu.

— Ela estava caída nas pedras do chão, onde o bandido a largou. Estava sangrando. Apavorada. Ele foi até ela para ajudá-la a se levantar. Deu-lhe sua capa para cobri-la.

— Ah — disse o rabino.

— Alguém discorda disso? — perguntou Tiago.

— Quem é que está comentando? — quis saber tia Ester.

— Tem alguma dúvida sobre isso? — perguntou Bruria. — Senhor Jacimus, certamente não está pensando...

— Não tenho dúvida nenhuma — disse o rabino. — Nenhuma dúvida. Então você ajudou Abigail a se levantar e deu-lhe sua capa.

— Foi o que fiz — respondi.

— E então? — disse Bruria.

— Vamos cuidar de uma coisa de cada vez — disse o rabino. — De que adianta um fariseu ir conversar com esse homem, que em sua cabeça não vê utilidade nos fariseus, não vê utilidade nos essênios, não vê utilidade em ninguém, nem em qualquer coisa, senão nos velhos fazendeiros iguais a ele, que enterram seu ouro no solo? De que adiantará eu ir conversar com ele?

— Então essa pobre menina agora está emparedada viva naquela casa, com esse homem furioso, que não consegue juntar três palavras a não ser quando impelido pela raiva? — reclamou Bruria.

— Esperar, é isso que vocês têm de fazer — disse o rabino. — Esperar.

— A menina deve ser vista agora — disse Bruria. — Ela merece cuidados, depois deve sair de casa, visitar os parentes, contar a história com voz suave para os mais próximos, deve ir para o riacho outra vez, acompanhada pelas mulheres da família, deve entrar e sair de casa normalmente! O que indica ela ficar trancada como se não pudesse ser vista?

— Eu sei disso, Bruria — disse o rabino muito sério e preocupado. — E vocês são da família dela

— Quantas testemunhas serão necessárias? — quis saber tio Cleofas. — Essa menina não fez nada. Não aconteceu nada com ela, apenas alguém tentou machucá-la e essa pessoa foi impedida.

— As testemunhas são todas mulheres e crianças — disse o rabino.

— Não são não! — declarou Tiago. — Meu irmão e eu vimos tudo. Meu irmão...

Tiago parou de falar quando olhou para mim.

Eu o encarei. Não precisei dizer nada. Ele entendeu.

— Não, diga logo — disse Bruria, olhando para mim, para Tiago e para o rabino. — Conte para todos.

— Yeshua — disse o rabino. — Se você não tivesse ido lá e abraçado a menina...

— Meu Deus, rabino... — disse Tiago. — Ele fez o que era natural fazer. Foi bondoso.

Minha mãe balançou a cabeça.

— Somos uma mesma família — ela sussurrou.

— Eu sei de tudo isso. Mas esse homem, Shemayah, não é da sua família. A mulher dele era, sim, e Abigail também é. Mas esse homem não é. E ele não é nada sutil.

— Eu não entendo, realmente não entendo — disse Tiago. — Tenham paciência comigo. Estão me dizendo que esse homem pensa que meu irmão fez algum mal para Abigail?

— Não, só que ele tomou certas liberdades com ela...

— Tomou liberdades? — gritou Tiago.

— Não é assim que eu penso — disse o rabino. — Estou apenas dizendo para vocês por que o homem não deixa ninguém entrar na casa dele, já que vocês são da família da filha dele, única família que ela tem em Nazaré. Digo isso porque esperar que ele mude de idéia, é a única coisa a fazer.

— E a família dela fora daqui? — perguntou Bruria.

— Ah, bem... — disse o rabino. — O que podemos fazer, escrever para os parentes dela na Betânia? Para a casa de José Caiafas? A carta levaria dias para chegar lá e o Sumo Sacerdote e a família dele têm preocupações maio­res do que os acontecimentos desta cidade, será que tenho de lembrar isso para vocês? Além do mais, o que imaginam que os parentes dela na Betânia poderiam fazer?

Eles continuaram conversando, gentilmente, e argumentando. José esta­va de olhos fechados, como se dormisse. Bruria insistia como se aquilo fosse um nó que poderia desatar se tivesse bastante paciência.

Eu escutava as vozes de todos, mas as palavras não faziam sentido. Fiquei lá sentado sozinho, olhando fixamente para o raio de sol que corta­va a poeira no ar, pensando apenas uma coisa: eu tinha prejudicado Abigail. Tinha aumentado seu sofrimento. Numa época de violência e desgraça, eu fui mais uma carga para seus ombros. Era eu que tinha provocado aquilo. E isso não podia ficar assim.

Finalmente, fiz sinal para que todos se calassem. Fiquei de pé.

— Sim, o que é, Yeshua? — disse o rabino.

— O senhor sabe que eu pediria desculpas para o homem — eu disse —, mas ele jamais permitiria que eu lhe dirigisse a palavra.

— Isso é verdade.

— Eu iria com meu pai, e meu pai imploraria para ele — eu disse —, mas o homem nunca nos deixaria entrar na casa dele.

— Isso é verdade.

— Bem, o senhor falou de parentes. Falou dos parentes fora daqui.

— Sim, falei.

— Do lado da mãe dela, do nosso lado, temos primos em Séforis. Aonde quero chegar é que temos primos em Caná, que o senhor conhece muito bem. Hananel de Caná é um velho amigo seu. É o primeiro que me vem à cabeça, mas há outros. No entanto, Hananel é um homem bem falante e muito persuasivo.

Todos concordaram com isso. Nós conhecíamos bem Hananel.

Aproximei-me do rabino.

— Nós fizemos o piso de mármore da casa dele anos atrás — eu disse. — Conversei com Hananel em muitas peregrinações, indo para o festival, como o senhor.

— Sim, sim, e na última vez — disse o rabino —, quando fomos todos jun­tos, Hananel chamou meu sobrinho Jasão de impertinente e rogou uma praga, não foi isso?

— O que estou dizendo não tem relação com Jasão, rabino — eu disse. — Estou falando sobre Abigail. O velho deve estar em casa. Nós saberíamos se ele tivesse deixado Caná para ir para Cesárea, e não chegou nenhuma notí­cia dele nesse sentido. Ele sabe tudo sobre a família da mãe de Abigail e tem parentesco mais estreito com ela do que conosco.

— Isso é verdade — disse Tiago —, mas ele é um velho que mora com os dois filhos, e o neto dele está vagando pelo mundo, só Deus sabe onde. O que ele pode fazer?

— Ele pode vir conversar com Shemayah e convencê-lo a parar com isso — eu disse. — E pode escrever para os parentes que não conhecemos que existem pelo mundo todo e pode também encontrar um lugar para Abigail se hospedar. Ela não precisa morrer de fome nesta aldeia. Isso não é admis­sível. Ela pode ir ao encontro de seus familiares em Séforis, ou em Cafarnaum, ou em Jerusalém. Hananel deve conhecê-los. Hananel é estu­dioso, escriba e juiz. Ele sabe falar onde não nos ouvem.

— Isso é uma possibilidade... — murmurou o rabino.

— Vou procurá-lo — eu disse. — Vou explicar o que aconteceu. Contarei para ele a história toda conforme eu vi e também a minha falta de jeito. E ele vai entender.

— Yeshua, você é corajoso como Daniel, de pôr sua cabeça na boca do leão — disse o rabino. — Mas...

— Vou até ele. Não levarei uma hora para chegar a Caná. O que ele pode fazer? Não me receber.

— Ele tem uma língua perversa, Yeshua. Faz com que Shemayah pareça uma flor do campo, cheia de alegria e doçura. Ele só faz reclamar do neto vagabundo e culpa Jasão por isso. Ele culpa Jasão pelo fato de seu neto estar sob um pórtico em Atenas, discutindo com os pagãos.

— Isso não me importa, rabino — eu disse. — Ele pode me cobrir de insultos. Ele tem uma língua ferina e impiedosa, e nenhuma paciência para homens como Shemayah. E eu acho que vai se lembrar da prima Abigail, acima de tudo.

José levantou a mão.

— Eu sei que ele vai se lembrar da sua prima Abigail — disse José com ternura. — Nós, os velhos. — Fez uma pausa, como se tivesse perdido o fio do pensamento, e depois continuou, com olhar vago. — Observamos os jovens na peregrinação, como bandos de pássaros que temos de manter na estrada. Eu o vi muitas vezes sorrindo para Abigail. Quando as meninas começavam a cantar, ele só tinha ouvidos para Abigail. Eu o vi. E uma vez, sobre uma caneca de vinho na Corte do Templo, quando estávamos juntos no último dia do festival, ele me disse que ouvia a voz dela quando dormia. Isso não faz muito tempo.Talvez dois anos. Quem sabe?

Era exatamente o que eu também tinha notado.

— Então eu vou — eu disse. — Vou pedir para ele encontrar uma casa para abrigar Abigail, longe de Nazaré, onde ela possa ser devidamente cuidada e onde possa descansar.

José olhou para mim.

— Tenha cuidado, meu filho — disse ele. — Ele será bondoso com Abigail, mas não com você.

— Ele vai provocá-lo — disse o rabino. — Vai tentar abalá-lo com seus argumentos e atraí-lo com suas perguntas. Ele não tem mais nada a fazer em sua biblioteca. E está desesperado com a perda do neto, apesar de ter sido ele mesmo que afastou o menino.

— Então me dê as armas para esta viagem, meu senhor — sugeri.

— Você saberá o que dizer — disse o rabino. — Explique como fez aqui. E não deixe que ele o expulse da casa. Se eu fosse com você, teríamos uma batalha, ele e eu, imediatamente.

— Peça para ele escrever para a família que for melhor para ela — disse José. — E depois de providenciar um lugar para ela, deixe que ele venha para cá. Então o rabino e eu iremos com ele conversar com Shemayah.

— Sim — disse o rabino. — O homem não pode dar as costas para Hananel.

— Hananel! Ele é o filho dos insultos — disse Tiago baixinho. — Uma vez ele me disse, quando eu trabalhava nas paredes da casa dele, que moveria Caná, pedra por pedra, para ficar o mais longe de Nazaré, se pudesse.

O rabino deu risada.

— Talvez ele se orgulhe de salvar a amada menina deste lugar miserável — sugeriu Bruria.

José sorriu, piscou e apontou carinhosamente para Bruria. Depois olhou para mim e cochichou:

— Talvez esse seja o caminho para o coração do homem.

Pedi licença e deixei que viessem comigo. Para a viagem, eu precisava de um par de sandálias melhores e roupas limpas. Não era uma longa cami­nhada, mas o vento estava muito forte.

Depois de vestido e pronto para partir, minha mãe me puxou para um canto, apesar de os meus irmãos, que se preparavam para ir trabalhar, esta­rem todos observando.

— Ouça, o que você fez perto do riacho — ela disse. — Foi um ato de bondade, nunca pense que não foi.

Fiz que sim com a cabeça.

— É só que... bem, é que Abigail pediu para o pai... e para nós. Ela pediu para Shemayah encará-lo com bons olhos. Foi antes de ela conversar conosco e de dizermos para ela que isso não ia acontecer.

— Entendo — eu disse.

— Magoei você?

— Não. Eu compreendo. Ele foi duplamente desonrado.

— Sim, e não é um homem sábio, não é um homem paciente.

E o que seria dela, da minha Abigail? O que seria dela neste exato momento em que o sol castigava a cidade barulhenta? Em que quarto escu­ro ela estava trancada, olhando para a escuridão?

Peguei um cajado para me fazer companhia e fui para Caná.

 

HAVIA ESCRIBAS E MAIS ESCRIBAS em Israel. Um escriba de uma aldeia podia ser o homem que escrevia os contratos de casamento, notas de venda e petições para as audiências na corte do rei, ou para o Sanhedrin judaico em Jerusalém. Esse escriba podia escrever cartas para qualquer um que pagasse para ele fazer isso, e podia ler o que chegasse para tornar o conteú­do compreensível para os que não tinham facilidade com a língua. Leitura era comum para a maioria do nosso povo, mas escrever exigia muita expe­riência e habilidade. Por isso, tínhamos esse tipo de escribas. Havia três ou quatro deles em Nazaré.

E havia também outro tipo de escriba, o “grande escriba” que tinha estudado a Lei, que passara muitos anos nas bibliotecas do Templo, o escri­ba que conhecia as tradições dos fariseus, que discutia com os essênios quando eles criticavam o Templo ou o sacerdócio, um escriba capaz de instruir os meninos que iam para o Templo aprender tudo que continha a Lei e os Profetas, os Salmos e as Escrituras, centenas e mais centenas de livros escritos além desses.

Hananel de Caná tinha sido um desses grandes escribas. Passara anos no Templo, tinha sido juiz muitos anos, em diversas cortes que se reuniam para julgar casos de Cafarnaum até Séforis.

Mas estava velho demais para essas coisas e já havia muito tempo tinha se preparado para esse dia, construindo a maior e mais linda casa em Caná. Era grande porque continha todos os livros dele, cujo número chegava aos milhares. E teve um dia os quartos dos filhos e filhas. Mas eles morreram muito tempo atrás e o deixaram sozinho neste mundo, recebendo de vez em quando uma carta de uma neta que vivia em Jerusalém e talvez, pois isso ninguém sabia, as cartas do neto que saíra da casa furioso com as regras impostas por ele, dois anos atrás.

Tiago, pequeno José, pequeno Simão, pequeno Judas, meus primos, sobrinhos e eu... nós construímos a casa de Hananel. E foi uma das alegrias daqueles anos, fazer os pisos de mármore deslumbrante, pintar as paredes com cores vivas, vermelho ou azul-escuro, decorá-las com bordas de flores e hera entrelaçada.

A casa cobria uma área enorme, era uma planta grega, com pátio inter­no cercado de quartos abertos destinados a prover o cenário perfeito para os grupos que iam visitar Hananel, os bem-nascidos da Galiléia, estudiosos da Alexandria, os fariseus e escribas da Babilônia. E de fato a casa vivia cheia de gente assim, por muitos anos, era comum ver esses viajantes na estrada indo visitar Hananel, para levar-lhe livros, se sentar nos jardins da casa ou sob seus tetos pintados e conversar com ele sobre os acontecimentos do mundo e questões da Lei que os homens adoravam discutir quando se reuniam.

Mas, como a morte esvaziou a casa, quando a neta em Jerusalém se aposentou, viúva, sem filhos, para viver com a família do marido dela, a casa ficou muito quieta, sufocando o velho.

E assim era, um monumento ao modo de vida que poderia ter sido vivido, mas que não foi, uma reluzente fortaleza na colina sobre o pequeno amontoado de casas que formava a cidade de Caná.

Parado ali no portão de ferro, portão que meus irmãos e eu tínhamos montado, olhei para as terras que pertenciam a Hananel... até onde a vista alcançava. E, muito além daquilo, eu sabia, cercando o pico distante de Nazaré, ficavam as terras de Shemayah.

Muitos que viviam nas cidades próximas trabalhavam nessas terras, nos campos, nos pomares, nos vinhedos. Mas o maior orgulho dos dois homens eram seus olivais. Por toda parte, eu via esses bosques de oliveiras e, ao lado deles, a inevitável mikvah onde os homens se banhavam antes da colheita, porque o azeite dessas azeitonas tinha de ser puro para poder ir para o Templo em Jerusalém, para poder ser vendido para os piedosos judeus da Galiléia, ou da Judéia, ou das muitas cidades do Império.

Hoje em dia, estudantes apareciam de vez em quando para consultar Hananel, mas diziam que ele não era um professor paciente.

Quando entrei na casa, vi que ele recebia um desses estudantes, um jovem chamado Natanael, que estava sentado literalmente aos pés do velho, no grande salão da casa, no lado mais distante do pátio interno. Eu mal conhecia o jovem, que vira esporadicamente nas peregrinações.

Observei os dois de longe, sentado no saguão. Um escravo paciente lavou meus pés enquanto eu bebia água de um copo de calcário, que devol­vi agradecido para ele.

— Yeshua — disse o escravo em voz baixa. — Ele está furioso hoje. Não sei por que mandou lhe chamar, mas tenha cuidado.

— Ele não mandou me chamar, meu amigo — eu disse. — Por favor, entre lá e diga que eu preciso falar com ele. E que vou esperar o tempo que for preciso.

O escravo foi embora, balançando a cabeça, e eu aproveitei um pouco o calor do sol que entrava pela grande treliça sobre a porta. O chão de mosaico do pátio tinha sido nosso melhor trabalho. Observei aquele piso e olhei lentamente para as árvores encorpadas e folhosas plantadas em vasos que cercavam o laguinho redondo no centro, que parecia um espelho.

Nenhuma ninfa nem deuses pagãos decoravam aqueles pisos ou aque­las paredes, não para aquele judeu devoto. Apenas os desenhos permitidos, círculos, arabescos, lírios, que tínhamos um dia disposto no piso para elabo­rar aquela simetria perfeita.

Tudo isso ficava ao ar livre, ao céu poeirento e sem chuva. Era aberto ao frio. Mas, por um momento, foi possível esquecer a seca, olhar para a superfície da água ondulante ou para as frutas cintilantes nas árvores, frescas com pequenas gotas do regador de um escravo, e pensar que o mundo lá fora não estava esturricado e morrendo de sede. E que jovens não conti­nuavam chegando, às centenas, à cidade de Cesárea.

O sol tinha aquecido os pisos e as paredes. O calor era doce e eu podia senti-lo nas mãos e nos pés, ali sentado na sombra.

Finalmente o jovem Natanael se levantou e saiu, sem notar que eu esta­va ali. O portão se fechou com o ruído característico.

Fiz uma prece silenciosa e segui o escravo pela pequena floresta de figueiras e palmeiras bem regadas para chegar à grandiosa biblioteca.

Tinham posto lá um banquinho para mim, um banquinho simples de dobrar, de couro e madeira encerada, muito bonito e muito confortável.

Eu permaneci de pé.

O velho estava sentado à sua mesa, numa cadeira romana, com as per­nas cruzadas, de costas para a treliça, em meio a almofadas de seda, tapetes da Babilônia, pergaminhos empilhados diante dele e transbordando das estantes em volta. As paredes eram estantes de livros. A mesa tinha tinta, penas, pedaços de papel e um tablete de cera. E uma pilha de códices, aque­les pequenos livros de pergaminho, com lombadas costuradas que os roma­nos chamavam de membrane.

A luz do sol cintilava na treliça. As folhas das palmeiras do lado de fora batiam nela.

O velho tinha ficado completamente calvo, os olhos muito desbotados, quase cinza. Ele sentia muito frio, embora o braseiro estivesse bem fornido de brasas e o ar estivesse quente e fragrante com o perfume de cedro.

— Chegue mais perto — disse ele.

Fiz o que pedia. E cumprimentei-o abaixando a cabeça.

— Yeshua bar José — eu disse. — Vim de Nazaré para vê-lo, meu senhor. Agradeço ter me recebido.

— O que você quer? — ele disse, sua voz soando bem áspera com essas palavras. — Ora, diga logo! — insistiu. — Diga.

— É um assunto que diz respeito aos seus parentes, meu senhor. Shemayah bar Hyrcanus e a filha dele, Abigail.

Ele recostou ou, melhor dizendo, desabou no seu monte de camadas. Não olhou para mim e ajeitou os cobertores mais apertados.

— Que notícias você tem de Cesárea? — ele perguntou.

— Nenhuma, meu senhor, nenhuma que não tenha chegado a Caná. Os judeus estão reunidos lá. Já faz muitos dias. Pilatos não saiu para dialogar com a multidão. E a multidão não arreda pé de lá. Foi a última notícia que ouvi esta manhã, antes de sair de Nazaré.

— Nazaré — ele sussurrou irritado —, onde apedrejam crianças pelo que dizem outras crianças.

Abaixei a cabeça.

— Yeshua, sente-se neste banquinho. Não fique aí de pé na minha fren­te como um servo. Você não veio aqui para consertar esses pisos, veio? Você me procurou para resolver algum problema das nossas famílias.

Fui até a banqueta e me sentei devagar, conforme o pedido dele. Dali eu olhava para ele de baixo para cima. Havia talvez uns dois metros entre nós. Ele estava mais alto por causa das almofadas que precisava para se aco­modar e pude ver suas mãos murchas e magras, os ossos da face quase ras­gando a pele.

Ali perto do braseiro, o calor era entorpecente. E também o sol que incidia sobre o meu rosto e na parte de trás da cabeça dele.

— Meu senhor, venho numa missão inquietante — eu disse.

— Aquele tolo, o Jasão — ele disse. — O sobrinho de Jacimus, ele está em Cesárea?

— Sim, meu senhor.

— E ele já escreveu de Cesárea?

— Apenas as notícias que transmiti para o senhor. Falei com o rabino esta manhã.

Silêncio. Esperei. Acabei falando.

— Meu senhor, o que quer saber?

— Apenas isso — ele disse. — Se Jasão teve alguma notícia do meu neto, Rubem. Se Jasão fala do meu neto. Não vou me humilhar e perguntar isso para aquele traste, mas para você pergunto confidencialmente, sob o meu teto, aqui na minha casa. Aquele miserável andarilho grego fala do meu neto Rubem?

— Não, meu senhor. Sei que eles eram amigos. Mas isso é tudo que sei.

— E meu neto pode estar hoje casado em Roma, ou na Antioquia, ou onde quer que esteja, casado com uma estrangeira, para me contrariar.

Ele abaixou a cabeça. Mudou de expressão. Parecia ter esquecido que eu estava lá, ou não se importava com quem eu era, se é que um dia tinha se importado.

— Eu causei tudo isso — ele disse. — Fui eu que fiz isso, pus o mar entre nós dois, pus o mundo entre mim e a mulher com quem ele vai se casar e o fruto do ventre dela, fui eu que fiz isso.

Esperei.

Ele se virou e olhou para mim, como se acordasse de um sonho.

— E você vem me falar dessa pobre menina, dessa criança, Abigail, que os bandidos arrebataram, a quem os bandidos assustaram de modo tão brutal.

— Sim, meu senhor — eu disse.

— Por quê? Por que veio me procurar para contar isso, e por que você, o que quer que eu faça? — ele perguntou. — Você pensa que não sofro pela menina? Coitado do homem que tem uma filha tão bonita, com uma risada tão melodiosa, com tanto talento para a música e para as palavras. Eu a vi crescer na estrada, daqui até o Templo. Bem, o que é, o que você quer de mim?

— Sinto muito, senhor, se provoco sofrimento...

— Pare com isso, continue. Por que está aqui, Yeshua, o Sem Pecado?

— Meu senhor, a menina está morrendo na casa dela. Não come e não bebe nada. E ela não sofreu nada, a não ser o insulto, a ela e ao pai dela.

— O tolo — ele disse, desgostoso. — Mandou chamar a parteira para a própria filha! Recusou-se a acreditar na própria filha!

Esperei.

— Sabe por que meu neto foi para Roma, Yeshua bar José? Aquele louco do Jasão contou para você?

— Não, meu senhor. Isso nunca foi mencionado.

— Bem, você soube que ele partiu.

— Soube, mas não por que — expliquei.

— Porque queria se casar — disse o velho, os olhos brilhantes de lágri­mas, sem olhar para mim. — Ele queria se casar e não na família de Jerusalém que eu tinha escolhido, mas com uma menina de aldeia, uma adorável menina de aldeia. Abigail.

Olhei para baixo e fiquei imóvel. Mais uma vez esperei.

— Você não sabia disso?

— Não, meu senhor. Ninguém me contou — eu disse. — Talvez ninguém saiba.

— Ah, todos sabem — ele disse. — Jacimus sabe.

— Hummm... será que sabe?

— Sim, ele sabe, soube na época, e meu neto, por conta própria, sem a minha bênção, foi procurar Shemayah e aquela menina, que não tinha mais de treze anos de idade então — ele disse, agitado, virando para um lado e para outro, com movimentos rápidos dos olhos. — E eu disse que não, você não vai se casar com uma menina tão jovem, agora não, e não de Nazaré, não me importa se o pai dela é rico, se a mãe dela era rica, se ela é rica. Não me importa, você se casará com a menina que eu escolher, entre os seus parentes em Jerusalém. E agora acontece isso! E você vem me procurar.

Ele olhou para mim novamente e foi como se me visse pela primeira vez. Eu continuei olhando para ele.

— Percebo que ele continua fazendo o papel de bobo da aldeia — ele disse.

Hananel olhava para mim como se quisesse memorizar meu rosto, meus traços.

— Meu senhor, poderia escrever uma carta em nome de Abigail, uma carta para os seus parentes em Jerusalém, ou Séforis, ou onde quer que este­jam, os que tiverem mais condições de recebê-la, de oferecer um lar do qual ela possa fazer parte? A menina não tem culpa nenhuma. Ela é inteligente. É doce e gentil. A menina é recatada.

Ele ficou surpreso e depois deu risada.

— O que o faz pensar que Shemayah vai libertá-la do seu jugo?

— Meu senhor, se encontrar um lugar para ela, e se escrever uma carta explicando esse caso, se o senhor, pessoalmente, Hananel, o Juiz, for conos­co, com o rabino e meu pai José, poderemos cuidar para que Abigail seja levada em segurança para algum lugar bem distante de Nazaré. Um homem pode dizer não para o rabino de Nazaré. Ele pode dizer não para os anciãos de Nazaré. Não é fácil dizer não para Hananel de Caná, independentemen­te do que aconteceu antes... e não sei se Shemayah tem conhecimento do que seu neto fez e do que aconteceu entre vocês.

— Ele era a favor da união — foi a resposta imediata. — Shemayah apro­vou até meu neto admitir que não tinha minha bênção, não tinha minha permissão.

— Meu senhor, alguém precisa fazer alguma coisa para salvar essa meni­na. Ela está morrendo.

Eu me levantei.

— Diga quem eu posso procurar, quais parentes em Séforis — eu disse. — Dê-me uma carta de apresentação. Diga qual é a casa. Eu vou até lá.

— Não precisa ficar tão nervoso — ele disse, com um sorriso debochado. — Sente-se. E cale-se. Vou encontrar um lugar para ela. Conheço um bom. Conheço mais de um.

Suspirei e murmurei uma prece de agradecimento.

— Diga-me, ó piedoso — ele disse. — Por que você, você mesmo, não pediu a menina em casamento? E não venha com essa conversa de que ela é boa demais para um carpinteiro. Neste momento, ela não vale nada.

— Ela é boa — eu disse. — Não tem culpa nenhuma.

— E você, filho de Maria de Joaquim e Ana, conte-me. Eu sempre quis saber. Você é homem mesmo, embaixo desse manto? Homem? Está me entendendo?

Olhei fixamente para ele. Senti meu rosto enrubescer, ficar quente. E senti que comecei a tremer, mas não tanto que ele pudesse notar. Não des­viei os olhos dele.

— Um homem como os outros homens? — ele perguntou. — Você enten­de por que eu pergunto. Ah, não é por não estar casado. O profeta Jeremias não se casou. Mas, se não me falha a memória, e sempre falha, eu bem me lembro de conversar neste exato lugar, mas não nesta casa, em outra casa, com seu avo Joaquim... e, se não me falha a memória daqueles dias, essa não falha... que o anjo que anunciou o seu nascimento para sua trêmula mãezi­nha não era simplesmente um anjo caído das hostes celestiais, era nada menos do que o anjo Gabriel.

Silêncio.

Olhamos nos olhos um do outro.

— Gabriel — ele disse, levantou um pouco o queixo e arqueou as sobrancelhas. — O anjo Gabriel em pessoa. Ele veio falar com sua mãe e com nenhum outro, exceto, como todos sabemos, com o profeta Daniel.

O calor latejava no meu rosto, latejava no meu peito. Sentia-o também na palma das mãos.

— O senhor me aperta como a uma uva — eu disse —, entre o polegar e o indicador. E sei que, quando sou pressionado dessa maneira, sou capaz de falar coisas estranhas, coisas em que nem penso no meu dia-a-dia, coisas em que não penso quando estou sozinho... ou em sonhos.

— Aperto mesmo — ele disse. — Porque o desprezo.

— É o que parece, meu senhor.

— Por que não se levanta impulsivamente de novo?

— Porque vim com uma missão.

Ele deu uma risada com imensa satisfação. Cruzou os dedos embaixo do queixo e olhou em volta, mas não para a pilha de livros, nem para as treliças com seus raios de luz e de folhagens, nem para o brilho do sol no piso de mármore, ou para a fumaça fina que saía do braseiro de bronze.

O que será preciso para resgatar Abigail?

Bem, é claro que você ama essa menina, não é? — perguntou ele. — É isso, ou então você é um tolo, como as pessoas dizem, mas só algumas, devo acrescentar.

O que precisamos fazer para ajudá-la?

Não quer saber por que o desprezo? — ele perguntou.

O senhor quer que eu saiba?

Sei de todas as suas histórias.

É o que parece.

Sobre as coisas estranhas que aconteceram quando você nasceu, como sua família fugiu para o Egito, o massacre horrível daqueles bebês em Belém, ordenado por aquele louco que se dizia nosso rei, sobre as coisas que você faz.

— Coisas que eu faço? Eu construí esse piso de mármore — eu disse. — Sou um carpinteiro. É esse tipo de coisa que faço.

Exatamente — ele disse. — E é por isso que eu o desprezo. E qualquer um também desprezaria se tivesse a memória que eu tenho!

Hananel levantou o dedo como se ensinasse a uma criança.

— O nascimento de Sansão foi anunciado, não pelo anjo Gabriel, mas certamente por um anjo. E Sansão era um homem. E nós conhecemos seus feitos grandiosos e os repetimos de geração para geração. Onde estão os seus feitos grandiosos? Onde estão seus inimigos derrotados, prostrados, mortos, empilhados, e onde estão as ruínas dos templos pagãos que você derrubou com a força do seu braço?

O calor me queimava e cegava de tão forte. Eu tinha me levantado e derrubado o banquinho sem querer. Fiquei ali parado na frente dele, mas não o via, nem via a sala.

A sensação era de que estava me lembrando de alguma coisa, algo que esquecera a vida inteira. Mas isso não era lembrança. Não, era algo comple­tamente diferente.

Templos pagãos, onde estão os seus templos pagãos? Vi os templos, em nenhum lugar ou momento determinados, eu os vi ruindo, ouvi desmoronarem, cain­do, enquanto o ar, as formas e a luz se modificavam, enquanto nuvens de poeira subiam como o céu fervente de uma tempestade, um céu que não acabava mais... e essa mudança, essa destruição, essa furiosa e ensurdecedora ruína seguia, como o mar que se modifica eternamente e jamais cessa.

Fechei os olhos. Lembranças ameaçavam a pureza dessa visão interior. Lembranças da minha infância em Alexandria, das procissões romanas ser­penteando para seus santuários com nuvens de pétalas de rosa rodopiando no ar e as batidas constantes dos tambores, o ruído dos sistros. Ouvia as mulheres cantando e vi uma divindade de ouro avançando sob um balda­quino tremulante... e então a visão retornou e levou a lembrança em sua poderosa correnteza, uma visão tão imensa e vaga, que abalava o mundo inteiro, como se as montanhas em torno do grande mar rugissem e cuspis­sem fogo e os altares caíssem. Os altares se desfaziam em pedaços.

Tudo isso desapareceu. A sala voltou ao normal.

Eu me virei e olhei para o velho Hananel. Ele parecia feito de couro e ossos. Não havia maldade nele. Parecia frágil, como um lírio próximo demais do braseiro, como algo que murcha, que queima.

Senti o sofrimento dele, cortante e profundo, seus anos de solidão, de luto pelos que perdeu, o medo dos olhos que não enxergavam mais, dos dedos que falhavam, da razão e da esperança que chegavam ao fim.

Insuportável.

Um lamento chegou aos meus ouvidos, um murmúrio de todos os cômodos da casa, um zumbido além da casa, de todos os cômodos de todas as casas... dos fracos, dos doentes, dos exaustos, dos sofredores, dos amargos.

Insuportável. Mas eu posso suportar. Eu vou suportar.

Estava olhando para ele um longo tempo, mas só agora entendia que ele tinha sido abatido pela tristeza. E ele implorava, para mim, em silêncio.

Venha aqui — ele suplicou.

Dei um passo para a frente, depois outro. Observei quando Hananel segurou e levantou a minha mão. A dele era muito sedosa, a pele da palma era muito fina. Ele levantou a cabeça e olhou para mim.

— Quando você tinha doze anos — ele disse —, quando veio para o Templo, para ser apresentado a Israel, eu estava lá. Eu era um dos escribas que testou você e os outros meninos que foram com você. Lembra-se de mim naquele dia?

Não respondi.

— Nós perguntávamos, para todos os meninos, sobre o livro de Samuel, você se lembra disso especificamente? — ele perguntou.

Hananel era ágil e cuidadoso com as palavras. Ele continuou seguran­do a minha mão.

— Falávamos da história do rei Saul, depois que ele foi escolhido para rei­nar pelo profeta Samuel... mas antes de qualquer um saber que Saul seria rei.

Ele parou de falar e passou a língua nos lábios ressecados. Mas não tira­va os olhos dos meus.

— Saul juntou-se a um grupo de profetas na estrada, você lembra, e foi tomado pelo Espírito, Saul entrou em êxtase e entrou em transe no meio dos profetas. E, dos que viram isso, dos que tiveram essa visão, um deles per­guntou: “E quem é o pai deles?”

Eu não disse nada.

— Nós pedimos para vocês, meninos, pedimos para todos vocês pen­sarem nessa história e responderem o que esse homem quis dizer, o que perguntou para Saul: “E quem é o pai deles?” Os outros meninos se apres­saram em responder que os profetas tinham vindo de famílias de profetas e Saul não, por isso era natural alguém fazer essa pergunta.

Continuei em silêncio.

A sua resposta — ele disse — foi diferente da resposta dos outros meni­nos. Você se lembra? Você disse que essa pergunta era um insulto. Era um insulto da parte daqueles que nunca conheceram o êxtase ou o poder do Espírito, daqueles que invejavam os que conheciam. O homem que zom­bava queria dizer: “Quem é você, Saul, e que direito você tem de estar entre os profetas?”

Ele me observou, ainda segurando minha mão com a mesma força.

— Você se lembra disso?

— Lembro — respondi.

— Você disse: “Os homens fazem pouco do que não são capazes de entender. Eles sofrem porque desejam isso.”

Fiquei em silêncio.

Ele tirou a mão esquerda de baixo do manto e segurou a minha com as suas duas mãos.

— Por que não ficou conosco no Templo? — ele perguntou. — Imploramos para você ficar. — Hananel suspirou. — Pense no que podia ter feito se ficasse no Templo e estudasse. Pense no menino que você era! Se tivesse dedicado sua vida ao que está escrito, imagine o que poderia ter feito. Eu me encantei com você, todos nós gostamos de você, e o Velho Berekhiah, e Sherebiah de Nazaré, como gostaram e quiseram que você ficasse! Mas veja o que você se tornou! Um carpinteiro... um de um bando de carpinteiros. Homens que fazem pisos, paredes, bancos e mesas.

Procurei soltar minha mão lentamente, mas ele não queria largá-la. Fui lentamente para a esquerda dele e vi mais luz se derramar sobre o seu rosto virado para cima.

— O mundo engoliu você — ele disse com amargura. — Você saiu do Templo e o mundo simplesmente o engoliu. É isso que o mundo faz. Engole tudo. O anjo de uma mulher é a zombaria da história de outro homem. O capim cresce sobre as ruínas de aldeias, até não se poder mais vê-las, e árvores brotam das próprias pedras sobre as quais um dia existiram grandes casas, casas como esta. Todos esses livros estão se desfazendo, não estão? Olhe aqui, veja os pedaços de pergaminho nas minhas roupas. O mundo engole a Palavra de Deus. Você devia ter ficado e estudado o Torá! O que diria o seu avô Joaquim se soubesse no que você se transformou?

Ele se recostou na cadeira. Desistiu de mim. Seus lábios se curvaram num sorriso de escárnio. Ele olhava para mim com as sobrancelhas grisalhas arqueadas. Fez sinal para eu me afastar.

Continuei no mesmo lugar.

— Por que o mundo engole a Palavra de Deus? — perguntei.

Hananel não percebeu a raiva na minha voz.

Por quê? — repeti. — Nós não somos o povo escolhido, não devemos ser uma luz clara e brilhante para as nações? Não somos nós que traremos a salvação para o mundo inteiro?

Isso é o que somos! — ele disse. — Nosso Templo é o maior Templo do Império. Quem não sabe disso?

O nosso Templo é um entre milhares de templos, meu senhor — eu disse.

Tive mais uma vez aquele clarão, que parecia vir da memória, de uma memória enterrada, de algum momento de grande agitação, mas não era memória.

— São mil templos em todo o mundo — eu disse —, e todos os dias são oferecidos sacrifícios para mil deuses de um extremo do Império ao outro.

Ele olhou furioso para mim.

Eu continuei:

Isso acontece em toda parte, na terra de Israel isso acontece. Acontece em Tiro, em Sidon, em Ashkelon; acontece na Cesárea Filipe; acontece em Tibérias. E na Antioquia, e em Corinto, e em Roma, e nas florestas do grande norte, e nos prados da Britânia. — Respirei lentamente. — Nós somos a luz das nações, meu senhor? — perguntei.

O que é tudo isso para nós? — ele retrucou.

O que é tudo isso? Egito, Itália, Grécia, Germânia, Ásia, o que é tudo isso? É o mundo, meu senhor. É isso que é para nós, é o mundo para o qual devemos ser a luz, nós, o nosso povo!

Ele ficou enraivecido.

O que está dizendo?

É onde eu vivo, meu senhor — eu disse. — Não no Templo, mas no mundo. E no mundo eu aprendo o que o mundo é e o que tem para ensi­nar, e eu pertenço a ele. O mundo é feito de madeira, de pedra e de ferro, e eu trabalho nele. Não, não no Templo. No mundo. E eu estudo o Torá, e eu rezo com a assembléia, e nas festas vou para Jerusalém ficar diante do Senhor, no Templo, mas isso faz parte do mundo, tudo isso. Do mundo. E quando chegar a hora de fazer o que o Senhor me enviou para fazer aqui, neste mundo que pertence a Ele, este mundo de madeira, de pedra e de ferro, de relva e de ar, Ele revelará para mim. E o que este carpinteiro ainda construirá no mundo nesse dia, o Senhor sabe e o Senhor revelará.

Ele ficou sem palavras.

Afastei-me um pouco dele, recuei um passo. Virei-me e olhei direto para a frente. Vi a poeira flutuando nos raios do sol de meio-dia. Cintilando nas treliças sobre estantes e mais estantes de livros. Pensei ter visto imagens na poeira, coisas que se moviam com um objetivo, coisas translúcidas e imensas, no entanto, orientadas e pacientes em seus movimentos.

Parecia que a sala estava repleta de outros, do batimento de seus cora­ções, mas eram corações invisíveis, talvez nem fossem corações. Não eram corações como o meu coração, ou o dele, de carne e sangue.

Folhas batiam nas janelas e uma rajada de vento frio deslizava sobre o piso brilhante. Eu me senti distante dali, ao mesmo tempo estava ali, embai­xo daquele teto, parado diante dele, de costas para ele e eu vagava, mas ancorado ao lugar e satisfeito de estar assim.

A raiva que eu senti desapareceu.

Dei meia-volta e olhei para ele.

Hananel estava calmo, pensativo. Adotara uma postura digna em meio aos panos que o rodeavam. Olhava para mim como se estivesse a uma gran­de distância, uma distância segura.

Quando falou, foi apenas um murmúrio.

Todos esses anos, enquanto observava você na estrada para Jerusalém, ficava imaginando: “O que será que ele está pensando? O que ele sabe?”

E obteve resposta?

Eu tenho esperança — sussurrou ele.

Pensei nisso e então meneei a cabeça devagar.

Vou escrever a carta hoje à tarde — disse Hananel. — Tenho um aluno aqui para quem posso ditar. A carta chegará às mãos das minhas primas em Séforis esta noite. São viúvas. São bondosas. Elas irão recebê-la com carinho.

Curvei-me e juntei os dedos para demonstrar minha gratidão e respei­to. Já ia saindo.

— Volte aqui dentro de três dias — ele disse. — Terei uma resposta delas ou de outra pessoa. Estará tudo acertado. E então irei com você para falar com Shemayah sobre esse assunto. E se vir a menina pessoalmente, diga que toda a família dela... que estamos todos querendo notícias.

— Obrigado, meu senhor — eu disse.

Caminhei bem depressa pela estrada para Séforis.

Queria estar com meus irmãos, queria trabalhar. Queria levantar pare­des com pedras, uma após outra, derramar a argamassa, lixar as tábuas e bater pregos. Queria qualquer coisa, menos estar com um homem de lín­gua afiada.

Mas o que ele tinha dito que meus irmãos também não disseram, do jeito deles, ou que Jasão não tivesse dito? Ah, ele ostentava seus privilégios e riquezas, e o poder arrogante que tinha para ajudar Abigail.

Mas eles me faziam as mesmas perguntas. Todos diziam as mesmas coisas.

Eu não queria relembrar tudo aquilo. Não queria repassar o que Hananel tinha dito, o que eu tinha visto ou sentido. E mais especificamen­te, não queria avaliar o que eu tinha dito para ele.

Mas, quando cheguei à cidade, com todas as suas vozes à minha volta, aquela balbúrdia assombrosa, os ruídos e barulhos, veio um pensamento à minha cabeça.

Esse pensamento era nítido e parecido com a conversa que tive.

Esse tempo todo eu andava à procura de sinais da chegada da chuva. Fi­cava olhando para o céu, para as árvores ao longe, sentindo o vento, o fres­cor do vento, com a esperança de captar apenas um beijo de gotas no rosto.

Mas talvez estivesse vendo os sinais de algo completamente diferente. Alguma coisa de fato estava chegando. Tinha de ser. Ali, em volta de mim, estavam os sinais dessa aproximação. Era um crescente, uma pressão, uma série de sinais de algo inevitável... algo como a chuva pela qual todos rezá­vamos, mas imensamente maior do que a chuva... alguma coisa que pega­ria as décadas da minha vida, sim, os anos contados pelas festas e pelas luas novas, e até as horas e os minutos... até cada segundo que vivi... e daria uma utilidade para isso.

 

NA MANHÃ SEGUINTE, Velha Bruria e tia Ester tentaram se comunicar com Abigail, mas não obtiveram resposta.

Quando voltamos da cidade aquela noite, Hannah Silenciosa estava em casa. Arrasada, encolhida e tremendo, ela havia se sentado ao lado de José, que estava com a mão sobre sua cabeça baixa. Parecia uma mulher minús­cula sob os véus de lã.

O que houve com ela? — perguntou Tiago.

Minha mãe respondeu:

Ela acha que Abigail está morrendo.

Traga-me água para lavar as mãos — eu disse. — Preciso de tinta e de um pergaminho.

Sentei-me e pus uma tábua sobre as pernas, à guisa de mesa. Peguei a pena e me surpreendi de ver como era difícil. Já fazia muito tempo que não escrevia nada, tinha muitos calos nas mãos, elas estavam grossas e até tre­miam. Tremiam.

Ah, que descoberta, essa.

Molhei a pena e rabisquei as palavras, simples e rápidas, com a letra menor possível.

“Trate de comer e beber agora, porque estou dizendo que deve. Levante-se e beba toda a água que puder agora, porque eu digo que preci­sa. Coma o que puder comer. Eu faço tudo que posso pelo seu bem, e você fará isso agora por mim e pelos que amam você. Já foram enviadas cartas dos que a amam para os que lhe querem bem. Logo você estará longe daqui. Não diga nada para o seu pai. Faça o que eu digo.”

Fui até onde Hannah Silenciosa estava e entreguei o pergaminho para ela. Gesticulei enquanto falava.

— De mim para Abigail. De mim. Você dê isso para ela.

Ela balançou a cabeça, indicando que não. Estava apavorada.

Fiz uma pose ameaçadora e uma careta para personificar Shemayah. Apontei para os meus olhos.

— Ele não poderá ler — eu disse. — Está vendo? Olhe como as letras são pequenas! Dê isso para Abigail!

Ela se levantou e saiu da casa correndo.

Horas se passaram. Hannah Silenciosa não voltou.

Mas gritos vindos da rua nos despertaram do nosso cochilo. Corremos lá para fora e descobrimos que as fogueiras de sinalização acabavam de dar a notícia: paz em Cesárea.

E Pôncio Pilatos tinha enviado ordem para Jerusalém retirar as insígnias ofensivas da Cidade Santa.

Logo a rua ficou toda iluminada, como estava na noite em que os homens partiram. As pessoas bebiam, dançavam e se abraçavam. Mas nin­guém sabia dos detalhes ainda e ninguém esperava saber. As fogueiras diziam que os homens começavam a voltar para suas casas por todo o país.

Não havia sinal de vida na casa de Shemayah, nem mesmo o brilho fra­quinho de um lampião por baixo da porta ou no parapeito de uma janela.

Minhas tias aproveitaram a ocasião festiva para bater à porta dele.

Não adiantou.

— Tomara que Hannah Silenciosa esteja dormindo ao lado dela — disse minha mãe.

O rabino chamou-nos para irmos até a sinagoga agradecer a paz.

Mas ninguém ficou realmente descansado até a tarde seguinte, quando Jasão e alguns homens chegaram a Nazaré com montarias alugadas. Largamos nossas trouxas, alimentamos os animais, e fomos para a sina­goga rezar e ouvir a história do que tinha acontecido. Como antes, a multidão de gente não cabia na sinagoga. As pessoas acenderam tochas e lampiões na rua. Estava escurecendo rapidamente.

Vi Jasão de relance, ele mal se continha de tanta animação, gesticulava muito conversando com o tio. Mas todos pediram para ele parar, esperar e contar a história para a aldeia inteira.

Finalmente arrastaram os bancos da sinagoga para a rua, arrumaram na encosta, logo cerca de mil e quinhentos homens e mulheres se aglomera­ram a céu aberto, uma tocha colada a outra, e Jasão subiu até o lugar de honra, com seus companheiros.

Não vi Hannah Silenciosa em lugar nenhum. É claro que Shemayah não estava lá e certamente não havia sinal de Abigail. Só que era difícil saber ao certo.

As pessoas se abraçavam e batiam palmas, se beijavam, dançavam. As crianças vibravam, num paroxismo de prazer. E Tiago chorava. Meus irmãos levaram José e Alfeu lentamente para a assembléia. Alguns dos outros anciãos também demoraram a chegar.

Jasão esperou. Em pé no banco, abraçava o companheiro ao lado e só quando as tochas foram levadas para perto, iluminando bem os dois, eu pude ver que o companheiro dele era o neto de Hananel, Rubem.

Minha mãe o reconheceu no mesmo instante em que eu e os comentários sussurrados começaram a se espalhar entre nós, ali parados de pé num grupo compacto.

Eu não tinha contado para eles nada do que Hananel dissera para mim. Não tinha nem perguntado para o rabino por que ele não me avisou que o neto de Hananel tinha feito a corte a Abigail.

Mas todos sabiam que o avô tinha lamentado dois anos a perda do neto que tinha ido para o exterior, e logo o nome Rubem bar Daniel bar Hananel era cochichado por toda parte.

Era elegante, esse rapaz, muito bem-vestido com mantos de linho, como Jasão, tinha a mesma barba aparada, cabelo com óleo, apesar de os dois estarem sujos de terra da longa viagem a cavalo, mas nenhum deles parecia se importar com isso.

Afinal a cidade inteira gritou pedindo para os homens contarem a his­tória.

— Seis dias — declarou Jasão, levantando os dedos para todos podermos contar. — Ficamos seis dias diante do palácio do governador, exigindo que ele retirasse suas imagens impudentes e blasfemas da nossa Cidade Santa.

Exclamações de apoio e de aprovação se elevaram como um trovão surdo.

— Ah, mas isso seria injurioso para o nosso grande Tibério, disse o homem para nós — gritou Jasão. — E respondemos que ele sempre respeitou nossas leis no passado. Entendam que, para cada dia que permanecíamos fir­mes, mais e mais homens e mulheres se juntavam a nós. Saibam que Cesárea estava abarrotada de gente! Os homens que apresentavam nossas petições entravam e saíam do palácio e, assim que eram despachados, retornavam e apresentavam as petições novamente, até que finalmente o homem não aguentou mais.

“E enquanto isso os soldados também chegavam aos montes, soldados que assumiam seus postos em todos os portões, todas as portas e ao longo dos muros e paredes que limitavam o calçamento diante da sede da justiça.”

A multidão reagiu com gritos antes de Jasão continuar seu relato, mas ele fez sinal para que se calasse.

— Finalmente, sentado lá diante daquela massa enorme, ele declarou que as imagens não seriam removidas. Ele deu o sinal que mobilizou seus sol­dados armados contra nós! Espadas saíram das bainhas. Adagas foram ergui­das. Nós nos vimos cercados de todos os lados pelos homens dele, vimos a morte diante de nós...

Jasão parou de falar. A multidão murmurava, gritava e as manifestações foram num crescendo, até Jasão pedir silêncio com gestos novamente.

— Será que não nos lembramos dos conselhos que nossos anciãos tinham dado? — perguntou Jasão. — Será que precisávamos que alguém nos dissesse que somos um povo pacífico? Precisávamos ser avisados de que os soldados romanos logo teriam nossas vidas nas mãos, por maior que fosse a multidão ali reunida?

As pessoas gritaram de todos os lados.

— Nós nos jogamos no chão — berrou Jasão. — No chão, ali mesmo, abai­xamos a cabeça e desnudamos o pescoço para as espadas... todos nós. Afirmo que centenas de nós fizeram isso. Milhares. Exibimos nossa nuca, cada um de nós, destemidos e calados, e os que foram incumbidos de falar disseram para o governador o que já sabíamos, que certamente morrería­mos, todos nós, não restaria um... Todos ali ajoelhados!... Antes de ver nos­sas leis desrespeitadas, nossos costumes abolidos.

Jasão cruzou os braços e olhou para a multidão, da esquerda para a direita, enquanto se ouviam gritos aqui e ali que lentamente foram se transformando numa melodia grandiosa de júbilo. Meneando a cabeça e sorrin­do, Jasão acenou para os meninos que aplaudiam ao pé do banco. E Rubem ao seu lado, tão dominado pela felicidade quanto ele.

Meu tio Cleofas chorava. Tiago também. Todos os homens choravam.

— E o que fez o grande governador romano diante daquele espetáculo? — exclamou Jasão. — Diante daquela inegável visão de tantos preparados para dar suas vidas para proteger nossas leis mais sagradas, o homem se levantou e deu ordens para seus soldados guardarem as armas que seguravam sobre nossos pescoços, com as Lâminas brilhando ao sol por todo canto na frente dele. “Eles não morrerão!”, declarou o governador. “Não por piedade! Não vou derramar o sangue deles, nem uma gota! Dêem o sinal. Que os solda­dos retirem as insígnias do interior das muralhas da cidade que é sagrada para eles!”

Gritos de agradecimento encheram o ar. Orações e aclamações. As pes­soas se ajoelharam na grama. O barulho era tão grande que nada mais poderiam ouvir de Jasão ou de Rubem, nem de qualquer outro, aliás.

Erguiam os punhos cerrados, havia gente dançando outra vez, e agora as mulheres soluçavam, como se só agora pudessem cair na relva e deixar fluir todo o medo de seus corações e nos braços umas das outras.

O rabino, que tinha ficado perto do cume ao lado de Jasão, abaixou a cabeça e iniciou as orações, mas não conseguíamos escutar o que ele dizia. As pessoas começaram a cantar salmos dando graças. Partes de melodias e de orações flutuaram no ar e se misturaram à nossa volta.

A pequena Maria chorava junto ao peito do meu tio Cleofas, o sogro dela, e Tiago abraçava a mulher, beijava sua testa em silêncio enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto. Eu abracei o pequeno Isaac, Yaquim e todas as crianças de Abigail, que estavam conosco agora, mesmo sabendo que isso indicava que Hannah Silenciosa e Abigail não tinham vindo para essa reunião, não, nem mesmo para essa.

E todos nós nos beijamos. Passamos odres de vinho de mão em mão. As pessoas começaram a fazer longos discursos de como isso tinha sido, como aquilo tinha acontecido. Jasão e Rubem foram pressionados e cercados para dar mais detalhes, só que os dois já pareciam completamente exaustos e prontos para desabar, se tivessem oportunidade.

José segurou a minha mão e a mão de Tiago. Nossos irmãos fizeram um círculo com suas mulheres, e as crianças pequenas ficaram no meio conos­co. Minha mãe pôs os braços sobre os meus ombros e encostou a cabeça nas minhas costas.

— Sacrifício e oferendas não são Seu desejo, ó Senhor — disse José. — E sim ouvidos atentos à obediência, foi isso que nos deu. O Senhor não exi­giu oferendas incendiadas. Então eu disse: “Aqui estou eu, Suas ordens para mim estão escritas no Torá. Fazer a Sua vontade é a minha vida, meu Senhor, Sua lei está em meu coração. Eu anunciei Suas obras para uma grande assembléia...”

Demoramos bastante para voltar para casa.

A rua estava coalhada de foliões e era óbvio que outros estavam chegando, outros que também alugaram montarias para a viagem difícil, e podíamos ouvir os gritos inequívocos das pessoas que se reencontravam.

De repente, Jasão, com o rosto brilhante e cheirando a vinho, nos alcan­çou. Ele pôs a mão no ombro de Tiago.

— Seus filhos estão bem, eles estão muito bem e ficaram firmes e fortes conosco, os dois, Menachim e Shabi, e devo dizer que todos os homens da sua casa foram firmes. Silas e Levi, eu já esperava, é claro, não aguentaram, mas o pequeno Shabi e o jovem Cleofas e todos os homens...

E ele continuou falando, beijou Tiago, depois meus tios, e beijou as mãos de José erguidas para abençoá-lo.

Chegamos ao portão do pátio e então Rubem nos alcançou. Ele ten­tou se despedir de Jasão, mas Jasão protestou. Os dois compartilharam um odre de vinho e o ofereceram para nós. Eu recusei.

— Por que você não está contente? — Jasão perguntou.

— Nós estamos felizes, todos nós estamos felizes — eu disse. — Rubem, faz muitos anos. Entre, venha descansar.

— Não, ele vai para a minha casa — disse Jasão. — Meu tio não ia se con­formar se ele não se hospedasse na nossa casa. Rubem, qual é o problema? Você não pode partir para Caná agora.

— Mas eu preciso ir, Jasão, e você sabe disso — disse Rubem.

Ele olhou para nós quando se despediu, meneando a cabeça.

— Meu avô não me vê há dois anos — ele disse.

José retribuiu o aceno de cabeça de Rubem. Todos os homens mais velhos fizeram o mesmo.

Jasão deu de ombros.

— Não venha me procurar amanhã — disse Jasão — para contar uma his­tória triste de como acordou e descobriu que estava na grande cidade de Caná!

Todos os jovens em volta deram risada.

Rubem quase desapareceu nos cantos escuros, em meio às vozes alegres e o assédio dos que queriam parabenizar Jasão e segurar a mão dele e todos que se esforçavam para ir e vir.

Finalmente, depois de nos despedir mais de cinquenta vezes, entramos em casa.

Velha Bruria tinha ido na frente e já acendera o carvão. O cheiro da sopa quente era forte e apetitoso.

Ajudei José a ocupar seu lugar encostado na parede e então vi Hannah Silenciosa.

Enquanto as pessoas iam e vinham, ela ficou perfeitamente imóvel, olhando apenas para mim, como se não houvesse mais ninguém ali esbar­rando nela.

Parecia cansada e velha, definitivamente velha, como uma anciã, tão magra e tão curvada, com as mãos fechadas segurando o véu como se fosse uma corda lançada ao mar. Ela balançou a cabeça indicando que não. Era uma negação lenta e desesperada.

— Você deu para ela o que escrevi? — perguntei. — Ela leu?

O rosto de Hannah Silenciosa não tinha expressão. Ela fez um gesto com a mão direita, repetiu inúmeras vezes, parecia que arranhava o ar.

Minha mãe disse:

— Ela entregou a carta para Abigail. Ela não sabe se Abigail leu.

— Vá agora para a casa dele — disse Velha Bruria. — Você, Cleofas, vá! Vá e leve sua nora. Vá agora e bata à porta dele. Diga que foi dar-lhe essa notícia.

— Todos que passaram por lá bateram à porta — disse Tiago. — Jasão aca­bou de bater várias vezes à porta da casa deles, quando chegamos. Já basta por hoje. Talvez o velho tolo saia por vontade própria. O barulho o mante­rá acordado a noite inteira, de qualquer maneira.

— Mas poderíamos ir até lá, sabem? — disse Cleofas. — Todos nós, dan­çando e bebendo, poderíamos simplesmente bater à porta dele e depois, claro, diríamos que sentimos muito, mas com essa notícia...

Ele parou de falar. Ninguém tinha ânimo para isso.

— Não podemos contar para Jasão esta noite — disse Tiago. — Mas pode­mos contar com ele amanhã para bater àquela porta, se tivermos de fazer isso.

Todos concordamos. E sabíamos que o tio dele, o rabino, certamente lhe contaria tudo.

 

NÃO HAVIA TRABALHO no dia seguinte. Era dia de festival, de celebração, de dar graças ao Senhor pela decisão do governador, e os que queriam beber beberam, mas a maioria das pessoas apenas foi de casa em casa para conversar sobre o grande acontecimento, que, para alguns, foi a vitória do povo e, para outros, a humilhação do governador. Para os mais velhos, foi simplesmente a vontade de Deus.

Tiago, como não conseguia ficar quieto, varreu duas vezes os estábulos e o pátio e, porque eu não podia ficar quieto se Tiago não parava um minu­to, dei água e alimento para os burros, saí para ver os estragos da seca na nossa horta, voltei pensando que era melhor não dizer nada sobre as plan­tas que estavam morrendo, olhei para o céu frio e resolvi ir para Caná.

Claro que não era dia de insistir para que Hananel fizesse qualquer coisa para ajudar ninguém. Seu amado neto estava em casa e certamente ele devia ter paz para saborear isso e dar graças como bem entendesse.

Mas eu não podia esperar. O que quer que eu fizesse, para onde quer que fosse, eu via Abigail em pensamento, Abigail, sozinha no seu quarto escu­ro. Via Abigail deitada no chão e às vezes via seus olhos vazios, vidrados.

A pequena cidade de Caná, bem menor do que Nazaré, parecia igual­mente barulhenta com as festividades, e passei despercebido, pois os homens se reuniam por toda parte para beber e conversar, e até faziam suas refeições na grama, sob as árvores. O vento não estava forte demais a ponto de atrapalhar. E parecia que as pessoas tinham esquecido a seca por comple­to. Tinham obtido uma vitória sobre algo que temiam ainda mais.

Havia uma grande comoção na casa de Hananel. Eram preparativos para um banquete. Chegavam homens trazendo cestos de frutas. Senti o cheiro de carneiro assado.

Fui até a porta e encontrei o velho escravo que tinha me recebido na última vez em que estive lá.

— Ouça, eu não posso incomodar o senhor hoje — eu disse. — Mas peço o favor de entregar para ele um recado meu.

— Claro que entrego, Yeshua, mas você deve entrar. O senhor está trans­bordando felicidade. Rubem veio para casa, a salvo e com saúde, esta manhã.

— Diga para o seu senhor que estive aqui e que desejo para ele todas as alegrias neste dia — eu disse. — E diga para ele que aguardo notícia sobre o assunto de que tratamos antes. Você fará isso para mim? Sussurre no ouvi­do dele, é só isso que peço. Dê-lhe o recado quando puder.

Fui embora antes de o escravo poder protestar e estava na metade do caminho para Nazaré, quando Jasão me encontrou na estrada. Ele estava a cavalo, uma visão incomum, talvez fosse a montaria que havia alugado para a viagem de volta de Cesárea. Assim que me viu, pulou do cavalo e veio na minha direção.

Sem qualquer introdução, ele já partiu para o discurso.

— O homem é um tolo de fizer isso com a própria filha, trancá-la e deixá-la morrer de fome, desejar isso, que ela morra.

— Eu sei — eu disse.

Então contei para ele rapidamente que Hananel de Caná tinha escrito para a família de Abigail em outra cidade.

— Por isso, agora estamos esperando a resposta.

— Para onde está indo? — ele quis saber.

— Para casa — eu respondi. — Não posso incomodar o homem no dia da volta do neto ao lar. Deixei um recado. Foi tudo que pude fazer.

— Bem, estou indo para lá agora, para jantar com eles — disse Jasão. — Foi o velho mesmo que mandou me convidar. Vou providenciar para que se lembre disso. Para ele pensar apenas nisso.

— Jasão, tenha bom senso — eu disse. — Ele já enviou cartas pedindo por ela. Não chegue na casa como tempestade com esse assunto. Fique feliz de Hananel tê-lo convidado para comemorar sob o teto dele.

Jasão fez que sim com a cabeça.

— Antes de ir, quero que me conte tudo — ele disse. — O que aqueles bandidos fizeram. Eles a jogaram no chão, foi isso que meu tio disse...

— Que importância tem isso agora? — perguntei. — Não posso fazer o que me pede. Não vou reviver tudo aquilo. Siga o seu caminho. Encontre­-me amanhã e, se ainda quiser saber, eu conto.

No final da tarde, Menachim e Shabi já estavam em casa e quase todos os jovens que tinham ido para Cesárea. A casa fervilhava de discussões e de recriminações. Tio Cleofas estava furioso com os filhos dele, José, Judas e Simão. Eles estavam parados, ouvindo calados o sermão, mas tranquilos, tro­cando olhares e sorrisos furtivos, porque tinham participado de algo esplêndido.

Tiago teria açoitado Shabi, mas sua mulher, Mara, o impediu.

Eu saí sem ser notado.

Do lado de fora da casa de Shemayah, o pequeno Isaac e Yaquim mon­tavam guarda cabisbaixos diante da porta que não abria. Hannah Silenciosa chegou do mercado com um pequeno cesto cheio de frutas e pães. Ela olhou para mim como se não me conhecesse. Bateu à porta algumas vezes, emitindo o que obviamente era um sinal, a porta se abriu e eu vi o rosto abatido da velha serva antes de fecharem a porta novamente.

Subi a rua e desci até o riacho. A água que escorria das bacias de pedra era tão pouca, que o leito do riozinho estava cinzento, como tudo, era só terra. O sol criava clarões súbitos de luz aqui e ali, onde a água ainda cor­ria, profunda, misteriosa e lenta.

Fui até a bacia, lavei as mãos e o rosto bem devagar.

Então fui para o bosque.

Ajoelhei e rezei ao Senhor pedindo por Abigail. Sabia que ia chorar e só me ocorreu depois de um tempo que chorar ali era perfeitamente acei­tável. Não havia ninguém para ver. Só o Senhor. E acabei não resistindo.

— Deus do céu, como isso foi acontecer? Como é que essa menina está sofrendo tanto, se é inocente, e como pode meu ato impensado só ter pio­rado as coisas?

Finalmente a exaustão levou a melhor, era quase uma doce exaustão, porque empurrou toda a angústia para mais adiante e eu desabei no leito macio de tolhas mortas.

Dobrei o braço para servir de travesseiro e adormeci com muita facili­dade.

Não foi um sono profundo. Foi uma espécie de integração prazerosa com os sons suaves a minha volta, o estalar das tolhas recém caídas embaixo de mim e o sussurro da folhagem das copas das árvores. Logo não podia mais ouvir meu coração. E senti as mais doces fragrâncias. Meio adormecido, fiquei pensando que, naquela seca terrível, coisas pequenas, coisas cheirosas, ainda brotavam ao sol e na sombra, e que essas coisas estavam perto de mim.

Passou-se uma hora? Ou será que foi mais?

Eu tinha uma sensação, a impressão do homem que precisa acordar bem antes do escurecer e voltar para casa. Mas não tinha consciência disso.

Fiquei inquieto, virava para um lado, mudava de posição. Alguns sons tinham me acordado, não eram incomuns naquele lugar, ou será que foi um cheiro? Um perfume intenso e delicioso.

Um perfume caro.

Não abri logo os olhos. Não queria desfazer completamente a teia do sono porque temia que, se fizesse isso, ela não voltaria. E era muito bom ficar ali simplesmente flutuando, tentando definir aquele aroma pungente, depois pensando, em algum ponto profundo da mente, onde eu sempre sentia aquela fragrância convidativa... nos casamentos, quando abriam os cântaros com óleo aromático de nardo para os noivos.

Abri os olhos. Ouvi o roçar de tecido da roupa de alguém. Senti algo pesado e mole cair sobre os meus pés descalços.

Virei-me e me sentei rapidamente, mas estava sonolento. Havia um manto escuro aos meus pés e sobre ele um véu negro e pesado. De boa lã. Lã cara. Tentei afastar a sonolência, o torpor. Quem estava ali comigo, e por quê?

Olhei para cima, fazendo força para afastar o sono dos olhos e vi uma mulher de pé na minha frente, uma mulher contra o fundo da faiscante luz do sol penetrando a copa das árvores.

Tinha o cabelo exuberantemente solto. O ouro nas barras da túnica brilhava, no pescoço e na bainha. Bordado de ouro, bem-feito e espesso, e do cabelo e das roupas dela vinha esse perfume irresistível.

Abigail. Abigail com uma túnica de casamento. Abigail, de cabelo solto cascateando, resplandecente à luz do sol. Lentamente a luz foi definindo a longa curva macia do pescoço dela, dos ombros nus sob o ouro bordado. A túnica estava desamarrada. Abigail tinha as mãos, cintilantes com anéis e pulseiras, caídas ao lado do corpo.

Toda a beleza dela incendiava as sombras, como um tesouro descober­to em segredo, guardado para só ser revelado com exclusividade.

E recuperei a consciência quando os últimos vestígios do sono me abandonaram. Ela está aqui comigo e estamos sozinhos.

Vivi toda a minha longa vida em lugares cheios de gente, indo e vindo em multidões, no meio de mulheres, que eram irmã, tia, mãe, prima... filhas ou esposas de outros, mulheres cobertas, com mantos e véus, mulheres com panos enrolados até o pescoço e as cabeças cobertas, mulheres agasalhadas sob cobertores ou vistas de relance nos casamentos da aldeia aqui e ali, com camadas de tecido fino sob cascatas de véus.

Estávamos a sós. O homem em mim sabia que estávamos sozinhos e o homem em mim sabia que eu podia possuir aquela mulher. E todos os meus sonhos, tantos sonhos torturantes, noites torturantes de negação, agora podiam levar à impensável suavidade dos braços dela.

Fiquei de pé rapidamente. Abaixei para pegar o manto e o véu de lã que ela deixara cair.

— O que você está fazendo? — perguntei. — Que loucura está passando pela sua cabeça?

Pus o manto sobre os ombros dela e o véu negro sobre a sua cabeça. Segurei Abigail pelos ombros.

— Você perdeu o juízo. Não pode fazer isso. Agora venha, vou levá-la para casa.

— Não — ela disse e me empurrou. — Irei para as ruas da cidade de Tiro — ela disse. — Vou me perder naquelas ruas. Não. Não tente me impedir. Se não quer aproveitar aqui o que muitos homens logo terão, todos que qui­serem, então vou embora agora.

Abigail já ia se afastando, mas eu a segurei pelo pulso.

— Abigail, isso é um delírio infantil — sussurrei.

Os olhos dela estavam frios e cheios de amargura, mas, apesar de tudo, começaram a lacrimejar.

— Yeshua, deixe-me ir — ela disse.

— Você não sabe o que está dizendo — eu disse. — As ruas de Tiro! Você nunca viu uma cidade como Tiro. Isso é tolice de criança. Pensa que as ruas são seios onde pode descansar a cabeça? Abigail, você virá para casa comigo, venha para a minha casa, ficar com minha mãe e minhas irmãs. Abigail, você pensa que observamos todos esses acontecimentos em silêncio, sem fazer nada?

— Eu sei o que vocês fizeram — ela disse. — Não adianta. Estou conde­nada e não vou morrer de fome sob o teto do homem que me condenou. Não vou, de jeito nenhum!

— Você vai sair de Nazaré — eu disse.

— Vou sim — ela declarou.

— Não, você não está entendendo. Seu parente, Hananel de Caná, ele escreveu cartas, ele...

— Ele veio até a minha porta hoje — ela disse com raiva na voz. — Sim, Hananel e o neto dele, Rubem. Eles ficaram diante do meu pai e pediram a minha mão.

Ela se afastou de mim. Tremia violentamente.

— E sabe o que o meu pai disse para aqueles homens, para Hananel de Caná e o neto dele, Rubem? Ele recusou o pedido deles! “Estão pensando que esse vaso quebrado”, ele disse, “pensam que este vaso quebrado é seu pote de ouro?”

Ela tremia muito e engoliu em seco. Fiquei sem palavras.

— “Não porei esse vaso quebrado em leilão”, meu pai disse... “Não porei a minha vergonha no mercado para vocês comprarem!”

— O homem está louco.

— Ah, louco, sim, louco porque sua filha Abigail foi tocada, porque ela foi desonrada! E ele preferia que ela morresse na desonra! Ele disse isso para Rubem de Caná! Não tenho filha para vocês. Vão embora.

Ela parou de falar. Não conseguia continuar. Estava tão abalada, que não era capaz de pronunciar nem uma palavra. Segurei seus ombros.

— Então você está livre do seu pai.

— Sim, estou — ela confirmou.

— Então venha para a minha casa. Viverá sob o meu teto até podermos tirá-la deste lugar e levá-la para seus parentes em Betânia.

— Ah, então a casa de Caifás acolherá a menina do interior, humilhada e desonrada, a menina negada pelo próprio pai, o pai que escorraçou todos os homens que pediram sua mão em dois anos e que agora bateu a porta na cara de Jasão novamente, e de Rubem de Caná, Rubem que deixou de lado o orgulho e implorou de joelhos?!

Ela se soltou de mim.

— Abigail, não vou deixar você ir.

Ela começou a soluçar. Eu a segurei.

— Yeshua bar José, faça isso — ela sussurrou baixinho. — Estou aqui com você. Possua-me. Eu imploro. Não tenho vergonha nenhuma. Possua-me, por favor, Yeshua. Sou sua.

Comecei a chorar. Não conseguia parar e era um choro tão forte como antes de Abigail chegar, tão grave, talvez, como o choro dela.

— Abigail, preste atenção. Digo que para Deus nada é impossível e você estará segura com minha mãe e minhas tias. Vou enviá-la para ficar com minha irmã Salomé em Cafarnaum. Minhas tias vão abrigá-la. Abigail, você precisa vir para casa comigo.

Ela desmoronou nos meus braços, eu a abracei e os soluços dela foram ficando mais suaves.

— Diga-me — ela disse por fim, com a voz fraca. — Yeshua, se você tives­se de se casar, eu seria sua noiva?

— Sim, minha linda menina — eu disse. — Minha doce e linda menina.

Ela levantou o rosto para olhar para mim e mordeu o lábio que tremia.

— Então tome-me como sua meretriz. Por favor. Eu não me importo. — Ela fechou os olhos que se encheram de lágrimas. — Não me importo, não me importo.

— Cale-se, não diga mais uma palavra — eu disse gentilmente.

Peguei a ponta do meu manto e sequei o rosto de Abigail. Afastei-a do meu peito e a fiz se manter de pé. Enrolei o véu em volta dela e joguei a ponta sobre o seu ombro. Fechei o manto para ninguém poder ver a túni­ca com bordas douradas por baixo.

— Vou levá-la para casa como minha irmã, a mais querida — eu disse. — Você virá comigo, e estas palavras e este momento permanecerão trancados nos nossos corações.

Subitamente ela ficou cansada demais para responder.

— Abigail? — chamei. — Olhe para mim. Você fará o que estou dizendo.

Ela fez que sim com a cabeça. As lágrimas tinham secado, mas a raiva deixou um vazio, Abigail parecia perdida. E, por um momento, pensei que ela ia cair.

Eu a segurei.

— Abigail, vou pedir uma reunião dos anciãos. Vou pedir para o rabino promover um julgamento na aldeia.

Ela olhou para mim confusa, depois olhou para longe, como se essas palavras a perturbassem.

— Este homem, Shemayah, não é o juiz da vida e da morte, nem mesmo de sua única filha.

— Um julgamento? — ela sussurrou. — Os anciãos?

— Sim — eu disse. — Vamos esclarecer esse assunto. Vamos exigir um vere­dicto da sua inocência, e com isso você irá para Cafarnaum, ou para Betânia, ou para qualquer lugar que seja o melhor para você.

Ela olhou para mim com firmeza, pela primeira vez.

— Isso é possível? — ela perguntou.

— É — respondi. — É possível. Seu pai disse que não tem filha. Bem, então ele não tem autoridade sobre essa filha e nós, seus parentes, agora temos essa autoridade e os anciãos têm essa autoridade. Está escutando o que estou dizendo?

Ela fez que sim com a cabeça.

— Esqueça tudo que disse aqui. Suas palavras foram para mim, para seu irmão, que sabe que você é uma criança inocente e sofredora.

Pus a mão no meu coração.

— Senhor, dê um novo coração para a minha irmã — murmurei. — Senhor, dê-lhe um coração novo.

Fiquei parado, de olhos fechados, rezando, com a mão esquerda no ombro de Abigail.

Quando abri os olhos Abigail tinha o semblante calmo. Era Abigail de novo, a nossa Abigail de antes de tudo aquilo começar.

— Venha, então. Vamos tratar disso — eu disse.

— Não, você não precisa procurar os anciãos, não precisa fazer isso. Seria só humilhação para o meu pai. Eu vou para Cafarnaum, ficar com Salomé — ela disse. — Vou para Betânia, para onde você quiser.

Endireitei o véu dela outra vez. Procurei tirar umas folhas da lã e do manto, mas era impossível. Abigail estava coberta de pedaços de folhas secas.

— Perdoe-me, Yeshua — ela sussurrou.

— Por quê? Por estar com medo? Por estar sozinha? Por estar magoada e por ter sido condenada?

— Amo você, meu irmão — ela disse.

Eu quis beijá-la. Queria apenas abraçá-la bem perto de mim de novo, no mais puro amor e beijar sua testa. Mas não fiz nada disso.

— Você é mesmo filho dos anjos — ela disse com tristeza.

— Não, minha amada. Sou um homem. Acredite em mim, eu sou.

Ela sorriu. O sorriso mais triste e mais sábio.

— Agora vá para Nazaré antes de mim e vá direto para a minha casa. Pergunte pela minha mãe e, se vir seu pai no caminho, dê meia-volta e fuja dele, dê uma volta e retorne à nossa porta.

Ela meneou a cabeça, concordando. E virou-se para ir.

Fiquei esperando, recuperando o fôlego, secando rapidamente as minhas lágrimas, procurando parar de tremer.

Então ouvi Abigail gritar angustiada, atrás do bosque.

 

SAÍ CORRENDO PELO MEIO DAS SAMAMBAIAS.

Ela estava poucos metros à minha frente, e mais adiante, na descida da encosta, havia um grupo de pessoas espalhadas e silenciosas.

Tiago, Josué, Simão, meu tio Cleofas e dezenas de homens olhavam fi­xamente para nós dois. Shabi e Yaquim se adiantaram e começaram a subir, mas os mais velhos os fizeram parar. Apenas Hannah Silenciosa escapou deles, balançando a cabeça, apontando e correndo para Abigail. Tiago olha­va diretamente para mim, depois para ela, para mim outra vez e então, com uma expressão de profunda dor, abaixou a cabeça.

— Não, parem com isso, todos vocês, voltem — eu disse, descendo a encosta, passando por Abigail e parando na frente dela. Hannah Silenciosa parou de repente. Ela olhava para mim e para o grupo. Num segundo, deu sinal de que estava entendendo o que tinha feito.

E eu também entendi. Ela deu o alarme de que Abigail havia fugido. Ela levou todos até lá e só naquele momento compreendeu o erro terrível que cometeu.

Atrás de mim, Abigail murmurava uma oração engasgada.

Mais e mais homens foram chegando, parecia que vinham de todos os lados, dos campos, da aldeia, da estrada mais ao longe. Meninos corriam na nossa direção.

Da aldeia, veio Jasão, com passos largos, e Rubem de Caná ao lado dele.

Alguém chamou o rabino. Todos começaram a gritar chamando o rabino.

Tiago gritou para os filhos irem buscar José e os anciãos naquele ins­tante. O nome Shemayah escapava dos lábios de todos os presentes, e de repente Abigail correu para mim e, num gesto tão fatal quanto o de Yitra quando segurou o Órfão, ela se jogou em cima de mim de braços abertos.

Pedras assobiaram no ar e uma quase acertou minha orelha. Gritos de “hipócrita”, de “meretriz”, seguiam o percurso das pedras.

Virei de costas e protegi Abigail. Tiago correu e ficou na nossa frente, de braços abertos. Minha tia Ester tinha chegado com um grupo de mulhe­res em fila atrás dela e então ela também correu para a frente da multidão. Ela gritava enquanto assumia sua posição junto a nós. As pedradas acabaram.

— Shemayah! Shemayah! — gritavam os homens, enquanto a multidão abria um espaço para a passagem do rabino, de Hananel de Caná e de dois anciãos ao lado deles.

Atônito, o rabino olhou para nós, assimilando com os olhos cada detalhe da cena que estava vendo. Eu me adiantei e para isso quase tive de empurrar Tiago para fora do caminho.

— Tenho a dizer que nada aconteceu aqui, apenas palavras, palavras tro­cadas em conversa que tivemos aqui no bosque para onde venho sempre, para onde todos sabem que eu venho!

— Abigail, você acusa este homem? — gritou o rabino, com o rosto bran­co de choque.

Ela sacudiu a cabeça violentamente. Deu um grito sufocado de indignação.

— Não — ela exclamou. — Não, ele é inocente. Não, ele não fez nada.

— Então que loucura é essa? — gritou o rabino.

Ele se virou para a multidão, que agora já tinha triplicado em número, repleta de pescoços espichados e exigências raivosas para ver e para saber.

— Estou ordenando que parem com isso agora mesmo e vão para suas casas.

— Voltem para suas casas já, todos vocês — gritou Jasão. — Não há nada para ver aqui. Afastem-se deste lugar. Vocês estão bêbados, todos vocês, com suas comemorações! Vão para casa.

Mas resmungos e invectivas se espalharam em todas as direções.

— Sozinhos no bosque, juntos Yeshua e Abigail.

Escutei isso em partes e fragmentos de conversas. Vi José subindo rápi­do a encosta. Menachim praticamente o carregava. Mais e mais mulheres corriam para onde nós estávamos. Abigail estava soluçando e chorando.

— Levem-na para casa agora, levem-na — eu disse.

Mas, de repente, meu irmão Josué veio por trás e passou o braço nas minhas costas e meu irmão José fez a mesma coisa.

— Não! Parem com isso! — eu disse.

— Shemayah — exclamou Josué, e lá estava o homem, subindo o morro com passos largos, afastando a multidão, tirando as pessoas do seu caminho.

Quando viu o pai, Abigail desmoronou. Minha tia Ester tentou ampará-la, mas Abigail curvou-se e tropeçou para trás, escapando das mãos de Ester.

O rabino pôs-se no caminho de Shemayah. Shemayah ia golpeá-lo, mas os trabalhadores da fazenda seguraram seu braço erguido. Alguns homens imobilizaram Jasão antes de ele atacar Shemayah e outros seguraram Rubem. Parecia que todos estavam lutando.

Shemayah se livrou dos que o seguravam. Olhou furioso para a filha e paia mim.

E ele correu para mim.

— Você vai beber desse vaso quebrado o resto da sua vida, ah, se vai! — praguejou Shemayah. — Seu mentiroso, trapaceiro imundo, seu ladrão amal­diçoado.

Abigail berrou.

— Não, pare, ele não... ele não fez nada!

Ela se levantou e estendeu os braços para ele.

— Pai, ele não fez nada.

— Que você seja amaldiçoado — gritou Shemayah para mim.

Meus irmãos se puseram na frente dele, bloqueando seu caminho e me empurrando para trás. Senti os braços da tia Salomé me envolvendo e depois os braços dos meus primos Silas e Levi.

— Soltem-me, parem! — exclamei, mas eles eram muitos.

— Você pensa que minha filha é uma meretriz para poder fazer isso com ela? — berrou Shemayah, fazendo força para se livrar dos homens que o seguravam, com o rosto todo vermelho.

Por cima dos braços que me prendiam, pude ver Shemayah avançando para Abigail, ele agarrou a filha pelos ombros e a sacudiu com tanta força, que a cabeça dela foi jogada para trás e seu véu caiu.

Um sonoro hurra nasceu da multidão, tão alto, que fez com que todos se calassem.

O manto escuro de Abigail estava aberto. Todos podiam ver a gaze branca da túnica com bordas de ouro. Shemayah viu. Shemayah arrancou o manto dela e o jogou para um lado.

O choque da multidão foi uma imensa voz silenciosa.

Abigail ficou lá paralisada e horrorizada, sem entender o que tinha acontecido. Então ela olhou para baixo, para si mesma, e viu o que todos viam. A túnica de casamento, frágil, fina e branca, bordada nas mangas e na bainha com fios dourados.

Hannah Silenciosa e Shabi pegaram o manto de Abigail e tentaram entregá-lo para ela. Shemayah derrubou Shabi de costas no chão com um soco.

Abigail olhava espantada para o pai. Segurava a gola da túnica, os fios soltos dourados que estavam desamarrados quando ela me procurou e então, de repente, ela deu um grito surdo e terrível.

— Então eu sou uma meretriz? Meretriz! Com a túnica de casamento da minha mãe, eu sou uma meretriz!

— Façam-na parar, segurem-na! — pedi. — Rabino, ela é uma criança.

— Meretriz! — Abigail exclamou novamente, então rasgou a gola da túnica. — Eu sou sim uma meretriz, sou a sua meretriz — ela soluçou, cam­baleando para trás, livre das mãos do pai, livre das crianças.

— Não — berrei. — Abigail, pare com isso. Rabino! Faça-a parar!

Jasão lutou, correu, mas foi jogado no chão pelos homens em volta dele.

Mais uma vez, se ouviu aquele som horrendo, o barulho de pedras voan­do. As crianças berraram aterrorizadas. Hannah Silenciosa caiu no chão.

— Não, parem com isso, em nome de Deus! — gritei.

Abigail recuou de novo, berrando mais alto ainda.

— Meretriz! — ela exclamou.

Levantou as mãos como garras, enfiou-as nos cabelos, embaraçou tudo e as mechas caíram sobre o seu rosto.

— Olhem para esta meretriz!

O coro de condenação cresceu com gritos e berros frenéticos e furio­sos. Voaram pedras de todos os lados. Eu lutei com toda a força contra os meus irmãos que me arrastaram e me derrubaram no chão. Senti mãos prendendo meus joelhos e meus tornozelos. Esperneando, bufando e gri­tando, estavam me levando embora.

Os gritos e o choro das crianças vararam os xingamentos e execrações.

— Senhor Deus do céu, isto não pode acontecer! — gritei. — Impeça isso!

Pai, mande a chuva!

Um estalo ensurdecedor de trovão soou com estrondo.

O céu escureceu, a luz foi morrendo diante dos meus olhos, eu caí para a frente na terra cheia de pedras e com esforço fiquei de joelhos. Ouvi mais uma trovoada, imensa, ecoando por um bom tempo. Fiquei de pé. Olhei para as nuvens pesadas, cor de chumbo, que se juntavam sobre nós.

Um raio me deixou cego. A multidão soltou um grito de espanto, mais uma vez em uníssono. Outra trovoada e outro relâmpago.

Vi à minha frente, na encosta, Abigail ainda de pé, Abigail, cercada de crianças, salva pelas crianças, por Isaac, Shabi. Yaquim e Hannah Silenciosa, todos agarrados a ela junto com muitos outros, alguns deitados aos pés dela, soluçando, chorando, olhando dela para os pais apavorados, dos pais para o céu tempestuoso. Minha tia Ester se agarrou a Abigail, cobriu a cabeça dela com os braços. Tiago se levantou do chão, libertado pelos que o prendiam, e olhou espantado para as nuvens.

— Salva — sussurrei.

Respirei o vento quente e úmido. Salva. Fechei os olhos e caí de joelhos.

As janelas do céu se abriram.

A chuva finalmente caiu.

 

ERA UMA CHUVA TÃO DENSA e caiu tão rápido, que trouxe com ela o anoitecer, fechando o mundo diante dos olhos dos homens. Tiago e Ester pegaram Abigail, levantaram-na do chão, isso eu consegui ver, e Tiago a acomodou bem alto, sobre o ombro, pois assim era melhor para carregá-la, e todos correram para a aldeia ou para qualquer abrigo que pudessem encontrar.

Com meus irmãos, eu segurei José, o pusemos sobre os ombros e des­cemos a encosta correndo.

Antes de chegar à rua, já estávamos encharcados, e a ladeira era um rio caudaloso. Tínhamos alguns lampiões fraquinhos para nos guiar no escuro, em meio à debandada geral, as pessoas gritando de medo, algumas rezando.

Mas nada podia impedir que chegássemos ao pátio da nossa casa, que abríssemos as portas e corrêssemos todos para dentro.

Acomodamos José gentilmente no mesmo instante. Seu cabelo branco estava grudado na cabeça. Acendemos todos os lampiões.

As mulheres carregaram Abigail em grupo para os fundos da casa, os soluços dela ecoavam nas paredes enquanto subiam a escada para os quar­tos pequenos do segundo andar, que pertenciam às mulheres.

Os homens caíram exaustos pelos cantos.

Velha Bruria e minha mãe chegaram com roupas secas para nós e, junto com a pequena Maria e Mara, que ficaram com elas o tempo todo, nos secaram, tiraram nossas roupas molhadas e pentearam nosso cabelo.

Tiago se deitou de costas, sem fôlego, ficou olhando para o teto. Eu me encostei na parede.

O velho tio Alfeu apareceu, confuso e espantado. Depois chegou tio Cleofas, vindo da rua, pingando e sem ar. As crianças que faltavam chegaram com ele. Foi ele, com Menachim, que trancou a porta com a tramela.

A chuva batia forte nas telhas das casas. Corria pelas canaletas laterais, descia pelos canos até as cisternas e para a mikvah, para os inúmeros cânta­ros embaixo das calhas em volta da casa. A chuva martelava as persianas de madeira, açoitava com pancadas constantes as portas que estremeciam.

Ninguém disse nada enquanto nos secávamos e vestíamos a roupa limpa que nos tinham dado. Minha mãe cuidou de José, tirando gentilmen­te seu manto encharcado. As crianças amontoaram carvão e andavam de um lado para outro excitadas, procurando mais lampiões para acender naquele lugar apinhado, aconchegante e seguro.

De repente, ouvimos alguém bater à porta com muita força.

— Se ele se atrever... — disse Tiago, que se levantou com a mão estendi­da. — Se ele se atrever a vir aqui, eu o mato.

— Cale-se, pare com isso! — exclamou sua mulher, Mara.

Bateram outra vez, uma batida deliberada e insistente.

Ouviram uma voz atrás da porta de madeira.

Fui atender. Levantei a tramela e abri a porta.

Lá estavam Rubem, com sua roupa de linho fino, tão encharcado como qualquer um de nós, e o seu avô, encolhido sob uma manta de lã molhada; atrás deles, seus cavalos e os empregados.

Tiago os recebeu imediatamente e os fez entrar.

Fui com os empregados e os animais para o estábulo. Não tinham fechado a porta. O lugar estava molhado, mas logo tiramos os arreios dos cavalos e pusemos uma nova camada de feno no chão. Os homens agrade­ceram com gestos. Pegaram o próprio vinho, mostraram seus odres e indi­caram que estavam bem, que eu podia ir.

Voltei, procurando me esquivar da chuva, por baixo do alpendre, mas mesmo assim cheguei em casa bastante molhado. Mais uma vez, minha mãe me recebeu com um manto seco e eu fiquei encostado na porta, respirando profundamente, recuperando o fôlego.

Hananel e o neto, já trajando roupas limpas e secas de lã, estavam sen­tados ao lado do braseiro no chão, de frente para José. Todos tinham copos com vinho nas mãos. José disse a bênção em voz baixa e pediu para os hós­pedes beberem.

O velho estudioso olhou para mim e depois para José. Então provou o vinho e pôs o copo na frente dos tornozelos cruzados.

— Quem fala pela menina agora? — perguntou ele.

— Vovô, por favor... — disse Rubem. — Agradeço a todos pela gentileza, obrigado.

— Quem fala por ela? — exigiu saber Hananel. — Não ficarei nesta cida­de miserável um minuto a mais do que for necessário. Vim aqui para isso e é sobre isso que estou falando.

José apontou para Tiago.

— Eu falo por ela — respondeu Tiago. — Meu pai e eu falamos por ela. E o que o senhor quer dizer para mim sobre ela? A menina é nossa parenta.

— Ah, e nossa também — disse Hananel. — O que acha que eu quero dizer? Por que pensa que saí da minha casa neste temporal? Vim aqui hoje com uma oferta de casamento para a menina, em nome do meu neto, Rubem, que está sentado à minha direita e que vocês conhecem muito bem, assim como conhecem a mim. E eu falo agora de casamento, do meu neto e dessa menina. O pai perverso a abandonou diante dos anciãos desta aldeia e bem à vista de todos os presentes, inclusive de mim e meu neto; por isso, se fala por ela, então fale por ela agora, para mim.

José deu uma risada.

Ninguém mais disse palavra, nem se mexeu, nem sequer respirou mais fundo. Mas José deu risada. E olhou para o teto. O cabelo dele já tinha seca­do, estava muito branco, e os olhos úmidos cintilando com a luz das brasas. Ele riu como se estivesse sonhando.

— Ah, Hananel — disse ele. — Como senti a sua falta, e eu nem me dava conta disso.

— Sim, e eu também senti a sua, José — disse Hananel. — Agora, antes que qualquer um de vocês, homens inteligentes, se pronunciem, permitam-me dizer: a menina é inocente. Ela era inocente ontem. Ela é inocente hoje. E a menina é jovem demais.

— Amém — eu disse.

— Mas ela não é pobre — disse Tiago sem perder um segundo. — Ela tem o dinheiro da mãe dela e terá um contrato de casamento apropriado, gra­vado aqui nesta sala antes de se comprometer ou se casar com qualquer um, e será uma noiva que sairá por esta porta na noite do seu matrimônio.

Hananel balançou a cabeça, concordando.

— Pegue a tinta e o pergaminho — ele disse. — Ah, ouçam só essa chuva. Que chance eu tenho de dormir sob o meu teto esta noite?

— O senhor é bem vindo para dormir sob o nosso teto — eu disse.

Tiago murmurou sua aprovação enfaticamente. E todos concordaram, oferecendo hospitalidade. Minha mãe e Velha Bruria serviram sopa para nós com pão quente.

De algum lugar nos fundos da casa, em algum ponto acima do primei­ro andar, eu ouvia o murmúrio de vozes femininas. Mesmo sob o martelar constante da chuva. Vi Mara voltar para a sala, nem tinha visto quando ela saiu. Então Abigail sabia de tudo aquilo, minha preciosa e angustiada Abigail.

Tia Ester trouxe o pergaminho, algumas folhas soltas, a tinta e a pena.

— Escrevam aí, escrevam tudo — disse Hananel tranquilamente. — Escrevam que tudo que pertence à herança da mãe é dela, de acordo com todos os registros públicos, particulares, escritos e não escritos, segundo a tradição e não gravados, a não ser por consentimento mútuo ou de acordo com a própria aprovação da menina, e apesar da negação do pai dela. Escrevam aí.

— Meu senhor — disse minha mãe. — Temo que isso seja tudo que temos para oferecer, um pouco de sopa, mas o pão está fresco e acabou de ser aquecido.

— É um banquete, minha filha — ele disse, abaixando a cabeça muito sério. — Eu conheci o seu pai e gostava muito dele. Este pão é bom. — Ele sorriu para ela e olhou feio para Tiago. — E o que você está escrevendo?

— Ora, estou escrevendo exatamente o que o senhor disse.

E foi assim que começou.

Durou uma hora.

Eles falavam, ora um, ora outro, de todas as condições e propriedades, como era o costume. Tiago rebatia sem piedade cada ponto discutido. Os bens da menina eram dela para sempre e, se o marido a abandonasse, não importa o que qualquer pessoa dissesse, seus bens lhe seriam devolvidos e com as reparações que os parentes dela exigissem, e assim por diante, e esta­va quase pronto, um falava, o outro retrucava, um afirmava, o outro rebatia. Mas Tiago conseguiu firmar todos os pontos. De vez em quando, Cleofas balançava a cabeça para ele ou levantava o dedo indicando cuidado, mas em geral era Tiago que tratava cada assunto, até estar tudo escrito no pergami­nho. E assinado.

— Agora quero pedir, meus senhores, que permitam que essa noiva se case imediatamente — declarou Hananel, sacudindo o ombro com ar de cansaço.

A voz dele já soava arrastada por causa do vinho, ele apertou o nariz como se os olhos doessem.

— Diante do que aquela criança sofreu, em vista da disposição do pai dela, que isso aconteça logo. Dentro de três dias, ou até mais cedo. Eu insisto, pelo bem da menina. Irei tratar de preparar a minha casa imediatamente.

— Não, meu senhor — eu disse. — Isso não pode ser assim.

Tiago olhou para mim, fazendo uma careta, cheio de apreensão e desconfiança. Mas nenhuma das mulheres que estavam na sala olhou para mim. Para elas, estava bem claro o que eu queria dizer.

— Daqui a alguns meses — eu disse —, no Purim, Abigail estará pronta para receber seu noivo aqui nesta casa, enfeitada de modo apropriado para seu novo marido e sob o dossel, com todos os nossos parentes para saudá-­los e cantar para vocês, recebê-los e dançar com vocês, e então ela será sua.

Tiago olhava para mim com expressão de ódio. Meu tio ergueu as sobrancelhas, mas não falou nada. José observava calado.

Mas minha mãe meneou a cabeça, concordando. As outras mulheres também concordaram.

— Mas são mais de três meses — disse Rubem, dando um suspiro.

— Sim, meu senhor — eu disse. — E logo depois do Purim, depois de todos termos ouvido o Pergaminho de Ester, como se deve.

Hananel olhou bem para mim e fez que sim com a cabeça.

— Isso está bom. Então estamos de acordo.

— Mas agora, se me permitem... — disse Rubem. — Se eu puder ver a menina apenas um minuto, falar com ela, entregar este presente para ela...

— Que presente é esse? — Tiago quis saber.

Fiz sinal para ele não se meter. Todos sabiam que o noivado não estaria selado até Abigail receber o presente de Rubem.

Tiago olhou fixamente para Rubem, de cara amarrada.

Rubem obedeceu e mostrou o presente, abriu o embrulho de seda. Era um colar de ouro, muito delicado e muito lindo. Tinha pedras cintilantes. Eu raramente vira jóia como aquela. Devia ter vindo da Babilônia ou de Roma.

— Vou ver se a menina está bem e se pode falar com o senhor — disse minha mãe. — Meu senhor, beba o seu vinho e me dê licença para eu con­versar com ela. Voltarei assim que puder.

Ouvimos um barulho abafado no quarto ao lado. Algumas mulheres apareceram na sala. Rubem se levantou Tiago também. Eu já estava de pé.

Hananel olhou para elas ansioso, com um brilho na expressão levemente debochada e entediada.

Levaram Abigail para a porta da sala.

Ela usava uma túnica simples de lã alvejada e um vestido, e tinha o cabelo bem penteado.

As mulheres a empurraram gentilmente para a frente. Rubem adiantou-se e ficou na frente dela.

Ele sussurrou seu nome. Ofereceu o presente embrulhado com seda com as duas mãos, como se fosse algo frágil que pudesse quebrar.

— Para você, minha noiva — ele disse. — Se quiser aceitar.

Abigail olhou para mim. Balancei a cabeça uma vez, indicando que sim.

— Ande, pode aceitar — disse Tiago.

Abigail recebeu o presente e abriu a seda. Ficou olhando fixamente para o colar. Sem dizer nada. Atônita.

Os olhos dela se prenderam aos de Rubem de Caná.

Eu olhei para o rosto do avô de Rubem. Tinha se transformado. O olhar frio e duro de desprezo estava desfeito, tinha se dissolvido. Ele olhava para Abigail e para o neto. Não disse nada.

Foi Rubem que falou, com a voz embargada.

— Minha preciosa Abigail — ele disse. — Viajei muitos quilômetros desde a última vez que a vi. Vi muitas maravilhas e estudei em muitas escolas, conheci muitos lugares. Mas, por todos esses lugares, carreguei em meu cora­ção uma lembrança, a mais valiosa, de você, Abigail, quando cantava com as donzelas na estrada para Jerusalém. E nos meus sonhos, ouvi sua voz.

Um não tirava os olhos do outro. O rosto de Abigail era sereno, o olhar suave em seus olhos grandes. Então Rubem ficou vermelho e apressou-se em pegar o colar, o tirou da seda que estava nas mãos dela e o pedaço de tecido caiu no chão. Ele abriu o fecho e perguntou com gestos se podia pôr no pescoço dela.

— Pode — disse minha mãe.

Minha mãe pegou o colar da mão de Rubem e fechou a presilha na nuca de Abigail.

Eu me aproximei e pus as mãos nos ombros de Rubem e de Abigail.

— Converse com o jovem, Abigail — eu disse em voz baixa. — Deixe que ele saiba o que há em seu coração.

A expressão de Abigail ficou mais suave e animada, e a voz dela soou baixa e cheia de emoção.

— Estou feliz, Rubem. — Então os olhos dela se derreteram. — Eu sofri uma desventura — ela sussurrou.

— Sei disso...

— Eu não fui sensata!

— Abigail — eu disse. — Você agora vai se casar.

— Minha jovem — disse Rubem. — Quem pode ser sensato numa situa­ção adversa como essa? O que é a juventude, o que é a inocência, senão tesouros que cedo perdemos nas provações da vida? Eu só posso agradecer o fato de o bom Deus tê-la preservado para mim durante todos esses anos em que tolamente perambulei por aí.

As mulheres cercaram o casal, elas os abraçaram e acariciaram, então afastaram Rubem, levaram Abigail embora, para os fundos da casa, subiram a escada.

Olhei para Hananel. Ele olhava fixamente para mim. Seu olhar era perspicaz, mas parecia arrependido e um pouco triste.

Logo todos pareciam se mover ao mesmo tempo na sala, chamaram nossos hóspedes para se preparar para dormir numa cama em um quarto limpo e seco que tinham arrumado para eles, se quisessem, outros insistiram para que bebessem mais vinho, ou que tomassem mais sopa, ou que descan­sassem, ou qualquer outra coisa que desejassem.

Hananel não tirava os olhos de mim. Estendeu sua mão para mim. Eu fui até lá e me sentei ao seu lado.

— Senhor? — perguntei.

— Obrigado, Yeshua bar José — ele disse —, por ter ido à minha casa.

 

FINALMENTE NOSSOS HÓSPEDES foram para a cama em seus quartos, com os melhores tapetes que arrumamos sobre palha como camas, com as poucas almofadas boas de que pudemos dispor, e o inevitável braseiro com brasas, além de água, caso precisassem. É claro que eles disseram que era mais do que esperavam e nós sabíamos que não era, insistimos que desejá­vamos poder oferecer roupa de cama de seda... eles disseram que devíamos ir dormir, eu voltei para a sala principal onde quase sempre dormia e me deitei ao lado do braseiro.

José continuava sentado e calado como antes, olhando para mim pen­sativo, e tio Cleofas de frente para o fogo, saboreando seu copo de vinho, bebendo e falando sozinho.

Eu conhecia aquele sofrimento dilacerador. Senti-o ali deitado e imó­vel, em silêncio, no escuro, ignorando os meus irmãos José e Judas que che­garam para se instalar. Senti aquilo vagamente, como tinha consciência de que Silas e Levi estavam ali também, e o pequeno Cleofas com a mulher dele, Maria.

Eu sabia que Abigail estava salva. Sabia que de algum modo o sofrimen­to dela tinha acabado. Sabia que Hananel e o seu neto, Rubem, seriam bons para ela em toda a sua vida. Eu sabia disso.

Mas também sabia que tinha dado Abigail para outro homem, que tinha desistido dela para sempre.

E uma profusão de possibilidades me veio à cabeça agora, possibilida­des que eu talvez tivesse vislumbrado nos momentos de paixão no bosque, quando a abracei, possibilidades sufocadas pela necessidade e pela decisão tomada. Agora elas apareciam como visões sussurradas que assumiam uma forma etérea e passavam diante dos meus olhos vidrados... Abigail, minha mulher, Abigail e eu juntos numa casa cheia de crianças, Abigail e eu cuidando de afazeres triviais entre as videiras, cansados e doloridos, eu ousava pensar, lábios tocando lábios, sim, e um corpo perfeitamente encaixado ao meu na escuridão da noite... ah, a essência de tudo que aconteceria depois e que poderia ter acontecido, se eu a tomasse como esposa, se eu tivesse feito o que todo homem na aldeia esperava que eu fizesse, o que meus irmãos esperavam de mim muito antes dos outros homens, o que nossos costumes e tradição mandavam que eu fizesse. Se eu tivesse feito o que meu coração parecia querer de mim.

Não queria dormir. Tive medo de adormecer. Eu queria paz, queria que o dia chegasse para poder sair e caminhar, queria que a chuva conti­nuasse a cair para apagar todos os ruídos naquela sala, todas as palavras ditas. E por que, àquela hora e depois de tanta coisa, eles ainda falavam?

Levantei a cabeça. Tiago estava de pé ao meu lado, olhando furioso para mim. Ao lado dele, Cleofas. E minha mãe estava lá, tentando puxar seu irmão para longe de mim, mas finalmente Tiago desabafou.

— Como vamos arrumar para essa noiva as vestes e véus apropriados, um dossel e todas as aias que você mencionou com tanta veemência, para que se case com um homem como o neto de Hananel de Caná? — Ele ficou nas pontas dos pés de tanta raiva. — Diga, o que há por trás da sua empáfia, você, que provocou esse desastre, exatamente esse desastre? Como pode pedir para ela os adereços e preparações que ninguém nesta casa jamais poderá oferecer para a sua irmã?

Ainda havia uma torrente de palavras para serem ditas.

Mas eu me levantei.

Meu tio Cleofas falou gentilmente.

— Por que você não podia se casar com ela, meu filho? — ele perguntou com tristeza. — Quem é que pede isso de você, que nunca se case?

— Ah... ele é bom demais para isso — declarou Tiago. — Ele seria melhor do que Moisés não se casando. Seria melhor do que Elias. Viveria como um essênio, mas não com os essênios, porque é bom demais para eles. E se fosse qualquer outro homem naquele bosque com a menina, ela estaria arruina­da. Mas todos o conhecem... Não, você jamais tocaria nela.

Tiago respirou fundo para continuar a falar, mas eu o fiz parar.

— Antes de ficar doente de tanta raiva — eu disse —, deixe-me pedir para minha mãe trazer aqui, agora, por favor, os presentes que deram para mim quando nasci. Ponha lodos aqui na nossa frente.

— Meu filho, tem certeza disso?

— Tenho — eu disse.

Fiquei olhando para Tiago.

Ele recomeçou a falar.

— Espere — eu disse.

Minha mãe saiu da sala imediatamente.

Tiago olhava para mim com um desprezo frio, pronto para extravasar a qualquer momento. Meus irmãos tinham se agrupado atrás dele. Meus sobrinhos observavam a cena, e tia Ester e Mara tinham entrado na sala. Shabi, Isaac e Menachim estavam encostados na parede.

Olhei com firmeza para Tiago.

— Estou cansado de você, meu irmão — eu disse. — Cansei, no fundo do meu coração.

Ele semicerrou os olhos. Ficou atônito.

Minha mãe voltou carregando uma arca que era muito pesada para ela. Mara e Ester a ajudaram a trazê-la para o meio da sala e puseram-na no chão, na nossa frente.

Essa arca ficara décadas escondida, desde a nossa volta do Egito para Nazaré. Tiago tinha visto essa arca. Ele sabia o que era, mas meus outros irmãos nunca viram, nem os filhos do meu tio Cleofas que nasceram depois de mim. Nenhum dos homens mais jovens tinha visto aquela arca. E os meninos ali na sala talvez nunca tivessem ouvido talar dela. Mara e a peque­na Maria talvez não soubessem que existia.

Era uma arca persa, folheada com ouro e com uma decoração exótica de romãs e vinhas. Até as suas alças eram douradas. Faiscava com a luz, bri­lhante como o ouro do colar que cintilava no pescoço de Abigail.

— Nada é o bastante para você, não é mesmo,Tiago? — eu disse, em voz baixa. Lutei contra a raiva que sentia. — Nem os anjos povoando o céu noturno sobre Belém, nem os pastores que entraram no estábulo para con­tar a canção do anjo para meu pai e minha mãe, não, isso não basta para você. Nem os próprios reis Magos, aqueles homens bem vestidos da Pérsia que chegaram em caravana pelas ruas estreitas de Belém, levados por uma estrela que iluminou os céus. Nada disso basta para você! Não basta você mesmo ter visto esses homens pondo esta arca aos pés do meu berço. Não, não é suficiente, nunca é suficiente, nenhum sinal. Nem as palavras da nossa abençoada prima Isabel, mãe de João bar Zacarias, antes de morrer, quando nos revelou todas as palavras ditas pelo seu marido quando deu o nome de João ao filho, quando nos contou que um anjo apareceu para ele. Não, nada disso basta. Nem mesmo as palavras dos profetas.

Parei de falar. Tiago estava assustado. Ele recuou e meus irmãos também se afastaram ressabiados de mim.

Eu avancei e Tiago recuou novamente.

— Bem, você é meu irmão mais velho — eu disse — e é o chefe desta família, eu lhe devo obediência e lhe devo paciência. E obedeci e tentei ter paciência, e vou tentar outra vez, e, com tudo isso, terei respeito por você, que eu amo e sempre amei, conhecendo quem você é e o que você é, o que passou e o que nós todos teremos de passar.

Tiago ficou mudo e abalado.

— Mas agora — eu continuei. — Agora ouçam bem o que vou dizer.

Eu me abaixei e abri a arca. Empurrei a tampa para trás. Olhei para o que tinha dentro, os jarros brilhantes de alabastro e a grande coleção de moedas de ouro que continha, aninhadas numa caixa atapetada. Peguei-a. Derramei as moedas no chão. Vi brilharem quando se espalhavam.

— Agora ouçam — eu disse. — Isto é meu, foi dado para mim quando nasci e agora ofereço para o enxoval do casamento de Abigail, para os seus anéis, para suas pulseiras e para toda a riqueza que foi tirada dela. Ofereço isso para o seu dossel. Estou dando isso para ela! E meu irmão, agora lhe digo que não me casarei. E este... este é o pagamento da minha redenção! — Apontei para as moedas. — A minha redenção!

Impotente, Tiago olhava para mim. E olhava para as moedas espalhadas no chão. Moedas persas. Ouro puro. O ouro mais puro com o qual o homem podia moldar uma moeda.

Não olhei para as moedas novamente. Eu as tinha visto uma vez, muito tempo antes. Sabia como eram. Sabia qual era a sensação de segurá-las, sabia quanto pesavam. Não olhei mais para elas. Mas as vi brilhando no escuro.

Minha visão estava embaçada quando olhei para Tiago.

— Amo você, meu irmão — eu disse. — Deixe-me em paz agora!

Tiago ficou sem saber o que fazia com as mãos, abriu os dedos, indeci­so. Estendeu os braços para mim.

Abri os braços para ele.

Mas então alguém bateu à porta, uma batida insistente, depois mais uma e outra.

Lá de fora, veio a voz forte de Jasão.

— Yeshua, abra a porta para nós. Yeshua, abra esta porta agora.

Abaixei a cabeça e cruzei os braços. Olhei para minha mãe com o sorriso mais exaurido e ela pôs a mão na minha nuca.

Cleofas abriu a porta.

Do aguaceiro violento, saiu o rabino, sob o abrigo de mantas de lã, e com ele Jasão, protegido do mesmo jeito. O vento fez a porta bater e inva­diu a sala, como um animal solto ali dentro conosco. Cleofas fechou a porta.

— Yeshua — disse o rabino, sem se dirigir a mais ninguém. — Em nome de Deus, pare com isso.

— Parar com isso? — perguntou Tiago. — Parar com o quê?

— A chuva, Yeshua! — disse o rabino aflito, implorando para mim, com a cabeça coberta pelo capuz de lã. — Yeshua, está inundando tudo!

— Yeshua — disse Jasão —, a aldeia vai ser destruída. Todas as cisternas, mikvahs e cântaros estão cheios. Isso aqui virou um lago! Dê uma olhada lá fora. Preste atenção. Você está ouvindo?

— Querem que eu reze para a chuva parar? — perguntei.

— Queremos — disse o rabino. — Você rezou para ela começar, não rezou?

— Eu passei semanas rezando, como todo mundo — eu disse.

Isso era verdade. Então me lembrei daquele momento terrível lá fora, na encosta. Pai, impeça isso... mande a chuva.

— Rabino — eu disse —, não importa qual foi a minha prece, foi o Nosso Senhor que mandou essa chuva para nós.

— Bem, isso é verdade, certamente é verdade, meu filho — disse o rabi­no conciliador, estendendo as mãos para segurar as minhas. — Mas faça o favor de rezar agora para o Senhor fazer essa chuva parar! Eu imploro.

Minha tia Ester começou a rir. Aos poucos, Cleofas também riu, mas era uma risada como um sussurro, baixa. Então minha tia Salomé juntou-­se aos dois e depois a pequena Maria.

— Silêncio! — exclamou Tiago.

Ele ainda estava abalado com tudo que acontecera antes, mas se recompôs e olhou para mim.

— Yeshua, lidere uma oração conosco para que o Senhor feche as jane­las do céu agora, se for essa a Sua vontade.

— Andem logo com isso! — disse Jasão.

— Fique quieto disse o rabino. Yeshua, reze.

Abaixei a cabeça. Tirei todos eles da mente. Afastei tudo que poderia ficar entre mim e as palavras que ia dizer. Pus meu coração e minha vida nessas palavras.

— Senhor misericordioso, Criador de todas as coisas boas — eu disse —, que nos salvou hoje de derramar o sangue inocente...

— Yeshua! Reze apenas para a chuva parar! — gritou Jasão. — Senão todos os membros desta família terão de pegar martelo, pregos e tábuas para começar a construir uma arca lá fora, porque todos vamos precisar de uma!

Cleofas desmontou numa gargalhada irresistível. As mulheres sufocavam o riso. As crianças nos olhavam espantadíssimas.

— Posso continuar?

— Por favor, faça isso, antes que todas as casas desmoronem — disse Jasão.

— Senhor que está no céu, se for a Sua vontade, faça parar essa chuva.

A chuva parou.

As pancadas no telhado pararam. As batidas nas persianas pararam. Não se ouvia mais o assobio agudo da chuva açoitando as flâmulas lá fora.

Fez-se um silêncio ressabiado na sala. Ouvimos o gorgolejo da água que ainda escorria nas calhas, descia pelos canos, pingava e caía das canale­tas nos alpendres.

Uma frieza tomou conta de mim, uma sensação de formigamento, como se minha pele estivesse duplamente viva. Senti um vazio e depois a volta, aos poucos, do que quer que tenha saído de mim. Suspirei e mais uma vez meus olhos se encheram de lágrimas e minha visão ficou embaçada.

Ouvi o rabino entoar o salmo de agradecimento. Falei as palavras junto com ele.

Quando chegamos à última frase, iniciei outra prece, na língua sagrada.

— Que o mar e tudo que há nele ressoe, e o mundo e todos que vivem nele. Que os rios batam palmas, que as montanhas exultem com eles em alegria, diante do Senhor que chega, que chega para governar a terra, para governar o mundo com justiça e os povos com integridade.

Todos rezaram comigo.

Fiquei tonto e tão cansado, que poderia ter caído e adormecido ali mesmo onde estava. Virei-me para trás, apoiei a mão na parede e fui me sentando devagar, à esquerda do braseiro. José continuava sentado ali, obser­vando tudo como antes.

Finalmente levantei a cabeça. Estavam todos calados, quietos, até as crianças menores. O rabino olhava para mim com doçura, pensativo, e Jasão parecia deslumbrado.

Então Jasão despertou de repente daquele torpor e disse, curvando-se na minha frente:

— Obrigado,Yeshua.

O rabino também agradeceu e todos que estavam presentes fizeram o mesmo, um por um.

Jasão apontou para o chão.

— Ah, o que é isso?

Ele olhava para a arca dourada, depois viu as moedas espalhadas que cintilava na penumbra.

Ficou boquiaberto de espanto.

— Então esse é o tesouro... — ele disse. — Ora, eu nunca acreditei de ver­dade que ele existia...

— Venha, vamos embora — disse o rabino, empurrando Jasão para a porta. — Boa noite para vocês, meus filhos abençoados, e bênçãos para todos sob este teto. Mais uma vez, agradecemos.

Sussurros polidos despontaram aqui e ali, oferecendo vinho, os visitan­tes obviamente recusaram, a porta se abriu e se fechou atrás deles. Silêncio. Eu caí de lado no chão, apoiei a cabeça no braço dobrado à guisa de traves­seiro e fechei os olhos.

Alguém recolheu as moedas, guardou-as de volta na caixa. Isso eu che­guei a ouvir. Passos suaves. Então fui flutuando para um lugar seguro, um lugar em que podia ficar algum tempo sozinho, não importa quantos esti­vessem à minha volta.

 

TODA A TERRA ESTAVA LAVADA. O riacho quase transbordava, os campos tinham bebido a chuva e logo ficaram prontos para o plantio, em tempo ainda para uma abundante colheita. A terra não sufocava mais a relva verde e as árvores centenárias e as estradas, apesar de encharcadas e esponjosas no primeiro dia, já estavam transitáveis no segundo. Em todas as encostas não cultivadas, brotaram as persistentes flores silvestres.

Todas as cisternas, mikvahs, jarras, cântaros, baldes e barris em Nazaré e nas cidades vizinhas estavam cheios de água. E a cidade se agitou quando todos lavavam as roupas com água abundante e muita alegria. As mulheres foram trabalhar com renovada dedicação nas hortas das cozinhas.

É claro que as lendas contavam histórias de muitos homens capazes de fazer chover, de fazer a chuva parar, quando apelavam para Deus. O mais famoso deles era Honi, o Desenhista do Círculo, um galileu que vivera gerações atrás, mas havia muitos outros.

Por isso, as pessoas vieram me procurar, em casa e na rua, mas não para dizer: “Ah, que milagre, Yeshua”, e sim: “Por que não rezou para a chuva vir antes?”, ou “Yeshua, sabíamos que se você rezasse ela viria, mas por que esperou tanto tempo?”, era isso que sempre perguntavam.

Alguns diziam isso brincando, a maioria com toda a boa vontade. Mas outros faziam esses comentários com um sorriso debochado e ouvi muitos cochichos, no trabalho e em Nazaré, dizendo: “Se fosse outro homem naquele bosque...” e “Bem, você sabe que foi o Yeshua, é claro, porque nada aconteceu.”

A família estava toda mobilizada para o trabalho que precisava ser feito e até Hannah Silenciosa ficou animada para sair da aldeia pela primeira vez desde a sua chegada anos antes, e ir com minhas tias e minha mãe até Séforis, para comprar lá o melhor linho para a túnica de Abigail, seus mantos e véus, e para encontrar quem fizesse ou vendesse os bordados mais intrincados com fios de ouro.

Enquanto trabalhávamos em diversas empreitadas em Séforis, eu procurava todos os pretextos possíveis para ajudar Tiago, e ele aceitava com gratidão essa minha bondade. Eu punha o braço no ombro dele sempre que podia, e ele reagia fazendo o mesmo comigo. Nossos irmãos viam esses abraços, ouviam as palavras gentis que trocávamos. As mulheres em casa também viam e ouviam nosso entrosamento. Aliás, a mulher dele, Mara, disse que ele parecia um novo homem e que desejava que eu o tivesse apoiado assim muito tempo antes. Mas isso ela não disse para mim. Eu soube por minha tia Ester, que me contou em segredo.

É claro que, em dado momento, Tiago perguntou, porque achava melhor, se alguém não devia chamar a parteira de novo para tranquilizar Rubem de Caná. Pensei que minhas tias iam matá-lo com as próprias mãos.

— E quantas parteiras você pensa que podem invadir aquele território virgem — quis saber minha tia Ester — sem derrubar exatamente a porta que procuram encontrar intacta?

E esse assunto morreu ali.

Nunca mais vi Abigail. Ela ficou escondida com a Velha Bruria em cômodos só frequentados pelas mulheres, mas chegaram para ela três cartas de Rubem bar Daniel bar Hananel de Caná, e ela as leu em voz alta para todos reunidos, escreveu as respostas de próprio punho, sentimentos suaves e doces, e essas cartas eu mesmo levei para Caná.

Quanto a Rubem, ele ia para a aldeia sempre que tinha oportunidade, discutia com Jasão um ou outro ponto da lei, mas em geral ficava por lá com a esperança vã de vislumbrar sua noiva, só que isso nunca aconteceu.

No caso de Shemayah, sua desonra foi apagada. Um homem rico, muito mais rico do que qualquer um em Nazaré, tinha feito o que um homem pobre poderia sonhar em fazer, e aqueles entre eles talvez nunca tentassem. E isso foi feito com rapidez e definitivamente.

A primeira vez que se teve notícia de Shemayah foi uma semana depois, quando ele jogou no nosso pátio todas as coisas e peças de roupa que pertenciam a filha dele, Abigail.

Ah, bem, essas coisas preciosas estavam em baús de couro e não foram danificadas por terem sido jogadas através das treliças, como tantos mísseis atirados sobre uma cidade sitiada.

Quanto a mim, eu vivia um tormento.

Exausto como um homem que tivesse me arrastado montanha acima sete dias sem parar. Não podia ir ao bosque para dormir. Não, o bosque agora estava maculado pelas minhas trapalhadas e jamais teria aquela paz novamente, não sem atrair novas recriminações, reprimendas e zombaria. O bosque era território proibido.

E eu nunca precisei tanto dele. Nunca precisei tanto ficar sozinho, por mais agradável que fosse estar naquele meio de felicidade sincera e inocente.

Eu caminhava.

Caminhava pelas montanhas à noite. Caminhava até Caná e voltava, andava o mais longe possível e ás vezes retornava para casa na mais comple­ta escuridão, enrolado no manto, com os dedos congelados. Não me importava com o frio. Não me importava com o cansaço. Tinha um único objetivo, que era me esgotar para poder dormir e não sonhar, e assim supor­tar a dor que sentia.

Não conseguia pôr realmente o dedo nessa ferida. Não era o fato de os homens cochicharem que eu estive sozinho com a menina, não era porque em breve a veria casada e feliz. Não era nem porque tinha magoado meu irmão já que no processo de cura daquela ferida senti o amor dele por mim e o meu por ele mais intensos ainda.

Era uma inquietude, uma aflição terrível, a sensação mais uma vez de que tudo que acontecia à minha volta era um sinal para mim.

Finalmente uma tarde, depois de o trabalho do dia terminar, na verda­de a colocação de um piso na qual machuquei seriamente os joelhos, como nunca acontecera antes, fui à Casa dos Essênios em Séforis e deixei que os homens gentis de lá, com roupas de linho, lavassem meus pés, como faziam com qualquer homem cansado que entrasse lá, e aceitei quando me deram um copo de água fresca.

Sentei-me em um pequeno saguão perto do pátio e os observei um longo tempo. Não conhecia bem os nomes dos que trabalhavam naquela casa. Os essênios tinham muitas casas como aquela, mas claro que não eram para homens como eu, que moravam a poucos quilômetros, e sim para via­jantes e andarilhos que precisavam de abrigo.

E esses jovens, que vinham de outras comunidades de essênios, me conheciam? Eu não sabia. Procurei entre os grupos que se revezavam var­rendo e limpando e até fui além, buscando os que liam numa pequena biblioteca. Ali havia homens mais velhos, anciãos que sem dúvida deviam conhecer todos.

Não ousei formular uma pergunta na minha mente. Só fiquei ali sen­tado, esperando. Esperando.

Por fim, um dos homens bem mais velhos, que se aproximou de mim mancando, arrastando uma perna, apoiado num cajado, se sentou no banco ao meu lado.

— Yeshua bar José — ele disse —, ouviu alguma notícia recentemente do nosso primo?

Essa era a resposta para a minha pergunta.

Eles não sabiam onde estava João bar Zacarias, como nós também não sabíamos.

Admiti que não tínhamos notícia nenhuma e então conversamos cal­mamente, o velho e eu, sobre aqueles que partem para rezar no deserto, para ficar sozinhos com o Senhor, e como devem ser aquelas noites solitá­rias sob as estrelas, ouvindo os uivos do vento do deserto. O ancião não sabia. Eu não sabia. O nome de João não foi pronunciado novamente por nenhum de nós.

Acabei indo para casa pelo caminho mais longo, subi uma pequena colina, desci pela plantação de oliveiras, atravessei o riacho e segui seu curso, continuei até ficar exausto e contente de cair ao lado do fogo e poder parecer, sem esforço maior, realmente cansado demais para que qual­quer um me perguntasse alguma coisa.

Quantos dias se passaram?

Não os contei. A chuva nos visitou de novo com pancadas leves e lindas. Uma bênção para cada lâmina de capim nos campos.

Shemayah foi visto de volta ao trabalho, com os servos que prosseguiram no plantio quando ele se trancou em casa e se recusou a dar as ordens mais simples. Eu o vi uma manhã na rua, andando com passos pesados e batendo com força a porta como se declarasse guerra à própria casa.

Dias. Dias de frio muito intenso, de nuvens brancas deslizando no céu, com a terra verde e vibrante à nossa volta. Dias em que as heras treparam mais uma vez nas treliças, dias de desígnios felizes e esperanças alegres. O pequeno Cleofas e a pequena Maria logo teriam um filho, pelo menos foi isso que me disseram, mas é claro que eu vi a prova. E não havia nada de novo da Judéia, a não ser que Pôncio Pilatos, o governador, parecia ter se instalado e tido apenas poucos desentendimentos com as autoridades do Templo.

Uma noite, depois de vagar deliberadamente até não aguentar mais, voltei para casa com a cabeça latejando, cheguei bem depois da ceia, comi um pedaço de pão com um pouco de sopa e fui dormir. Senti minha mãe me cobrir com um cobertor limpo e cheiroso. Com toda aquela abundân­cia de água a casa tinha o aroma de lã recém-lavada. Beijei a mão dela e depois ela se retirou. Passei por várias camadas de sonhos e suavemente mergulhei no nada.

De repente acordei. Tinha estado com alguém que chorava. Um pran­to terrível. O pranto de um homem que não consegue chorar. O pranto sufocante e desesperado de alguém que não suporta isso.

Estava tudo bem na sala. As mulheres costuravam perto do fogo. Minha mãe perguntou:

— O que foi?

— Choro — eu disse. — Alguém chorando.

— Não nesta casa — disse Tiago.

Tirei o cobertor de cima de mim.

— Onde está o contrato de casamento de Abigail?

— Ora, bem seguro naquela arca, por que pergunta? — disse Tiago. — O que está havendo com você?

Aquela não era a arca dourada dos presentes dos reis Magos. Era a arca simples em que guardávamos nossa tinta e nossos papéis importantes. Fui até a arca, abri e peguei o contrato de casamento. Enrolei o perga­minho bem apertado, amarrei uma tira de couro em volta e saí.

Uma chuva fina tinha caído mais cedo.

As ruas brilhavam. Nazaré, sob o céu luminoso, parecia uma cidade pra­teada. A porta da casa de Shemayah estava aberta. Havia uma luz fraquinha vinda lá de dentro.

Fui até a porta e empurrei.

Ouvi o choro dele. Ouvi aquele som sufocante e horrível, aquele som amargo que era quase como se ele estivesse estrangulando a própria dor.

Shemayah estava sozinho na sala triste. O carvão tinha virado cinza havia muito tempo. Havia um lampião aceso, no chão, um lampião peque­no de louça de barro e o óleo era levemente perfumado... o único confor­to naquela casa.

Fechei a porta e fui me sentar ao lado dele. Ele não olhou para mim.

Eu sabia como aquilo tinha de começar, por isso disse que sentia muito por tudo que tinha feito e que o fez sofrer tanto. Confessei.

— Eu sinto muito, Shemayah — eu disse.

Os soluços dele aumentaram. Ficaram imensos na pequena sala. Mas ele não tinha palavras. Curvou-se para a frente. Ficou balançando o corpo para a frente e para trás.

— Shemayah, tenho aqui comigo o contrato de casamento dela — eu disse. — Tudo foi feito corretamente e ela se casará com Rubem de Caná. Está aqui, Shemayah, por escrito.

Ele levantou a mão esquerda, bateu de leve no pergaminho, empurrou gentilmente o contrato para longe e então se virou para mim sem enxergar e eu senti seu braço pesado em volta do meu pescoço. Ele chorou no meu ombro.

 

DEVO TER FICADO COM ELE UMA HORA. Levei o contrato de casamen­to de volta para casa e o guardei na arca. Ninguém notou.

Jasão estava lá, e o rabino. Os dois estavam de pé e também quase todos os meus irmãos. Conversavam animados.

— Por onde você andou? — exclamou minha mãe.

Fiquei cercado por rostos ansiosos. Ouvi o barulho de pergaminho sendo manuseado e Jasão sacudiu meus ombros.

— Jasão, deixe-me em paz esta noite, por favor — eu disse. — Estou com sono e só quero ir para a cama. Seja o que for, não podemos tratar disso amanhã?

— Ah, mas você precisa ouvir isso — disse minha mãe. — Pequena Maria. Vá, chame Abigail.

Eu ia perguntar o que precisava ouvir, o que era tão importante para terem de acordar Abigail, levá-la até a sala, mas todos explicaram ao mesmo tempo, com frases entrecortadas.

— Cartas — disse minha mãe. — Cartas que você precisa ouvir.

— Cartas — disse o rabino —, cartas de Cafarnaum, do seu primo, João bar Zebedeu, e da sua irmã, pequena Salomé.

— O cavaleiro acabou de trazer a correspondência — informou Jasão. — Eu recebi uma carta. Meu tio recebeu uma carta. Chegaram cartas para pes­soas de todo esse lado da colina e do outro também. Preste atenção, você precisa ouvir tudo isso. Amanhã e depois de amanhã toda a Galiléia saberá dessas coisas.

Sentei-me no meu canto habitual.

José estava acordado, sentado, com as costas muito retas encostadas na parede, observando atentamente os outros.

— Essa notícia é de Jerusalém — disse Jasão —, e a carta para o meu tio é do Tibérias.

Abigail, sonolenta e preocupada, já estava na sala e tinha se sentado no chão com a pequena Maria.

Tiago ergueu a carta para eu ver.

— De João bar Zebedeu, nosso primo — ele disse. — E isto é para todos nós... e para você.

O rabino tirou a carta da mão de Tiago.

— Por favor, Tiago — ele disse —, posso ler? Porque foi ele que viu essas coisas, seu jovem primo.

Tiago entregou a carta para ele na mesma hora. Josué deu para Tiago o lampião e ele o segurou bem alto para iluminar a carta que o rabino ia ler.

A carta estava escrita em grego. O rabino leu bem rápido a saudação.

— Todos vocês devem saber disso e devem informar especialmente ao meu primo Yeshua bar José. Não devem descansar enquanto ele não souber disso.

“Nosso parente, João bar Zacarias, saiu do deserto e foi para o rio Jordão, está indo para o norte, em direção ao mar da Galiléia. Ele está bati­zando todos que o procuram. Usa apenas um casaco de pêlo de camelo e um cinto de couro e viveu no deserto se alimentando apenas de gafanho­tos e mel silvestre. Agora ele diz para todos: ‘Sou a voz de um só pregando no deserto. Sigam o caminho do Senhor.’ E: ‘Arrependam-se, pois o reino dos Céus está próximo.’ E todos estão indo com ele, de Jerusalém, de Jericó e das cidades ao norte e ao sul do mar. E esses ele batiza enquanto confessam seus pecados. E foi isso que João disse para os fariseus que foram interrogá-lo. ‘Não, eu não sou o Cristo. E também não sou o profeta. Eu batizo com água. Mas depois de mim virá um mais poderoso do que eu, cujas sandálias eu não sou digno de carregar. Ele vai batizá-los com o Espírito Santo, e com fogo. Ele está entre vocês, mas vocês não sabem quem Ele é.’ ”

O rabino fez uma pausa e depois continuou a ler.

— “Isso eu vi com os meus olhos e peço mais uma vez para vocês, meus parentes, para passar estas palavras para Yeshua bar José, enquanto retorno agora para o Jordão, João bar Zebedeu.”

O rabino abaixou o pergaminho grosso, olhou para mim, para José e para Jasão.

— São centenas de pessoas que estão indo procurá-lo — disse Jasão. — De todas as cidades rio acima e rio abaixo, da Cidade Santa e de todos os can­tos. Os padres e os fariseus foram ter com ele.

— Mas o que isso quer dizer — perguntou meu tio Cleofas —, que ele batiza para perdoar os pecados? Quando foi que alguém fez algo assim? Ele faz isso como um padre, como foi o pai dele?

— Não — disse o rabino. — Não acho que ele faz isso como padre.

O rabino Jacimus devolveu a carta para Tiago.

— Ouçam isso — disse Jasão. — Foi o que ele disse para os fariseus e sadu­ceus que saíram de Jerusalém e foram questioná-lo.

Ele leu da carta que recebera.

— “Vocês são uma geração de víboras, e quem avisou para que fugissem da ira que virá? Tragam os frutos do arrependimento antes de vir a mim. E nem pensem em dizer para si mesmos ou para os outros. Nós temos Abraão como pai. Pois eu digo que Deus é capaz de pegar estas pedras aqui e erguer delas os filhos de Abraão.”

Jasão parou de ler e olhou para mim. Olhou para José e depois para o rabino. Meu irmão Josué falou:

— Mas o que isso significa? Ele está declarando, com os essênios, que o Templo é impuro, que as oferendas de pecados feitas lá não importam?

— Ele agora está indo para o norte, chegando à região de Perea — disse Jasão. — Eu vou para lá. Quero ver essa novidade pessoalmente.

— E você será batizado? Vai participar desse ritual para obter o perdão dos seus pecados? — perguntou o rabino em voz baixa. — Você fará isso?

— Farei, se achar que é certo fazer — declarou Jasão.

— Mas o que pode significar um homem batizando outro, ou uma mulher, até? — perguntou minha tia Ester. — O que significa? Não somos todos judeus? Não somos purificados quando saímos das piscinas e entra­mos nos salões do Templo? Nem mesmo os convertidos se banham pelo perdão dos pecados, não é? Ele está dizendo para todos nós que devemos nos converter?

Eu me levantei.

— Eu vou até lá — eu disse.

— Nós todos vamos com você — disse José.

Minha mãe disse a mesma coisa no mesmo instante. Todos os meus irmãos concordaram.

Minha mãe me deu a carta que tinha recebido da minha irmã, a pequena Salomé. Vi imediatamente as palavras “de Betsaida, Cafarnaum”.

Velha Bruna se manifestou.

— Eu quero fazer essa viagem. Vamos levar esta criança conosco — disse ela, pondo o braço no ombro de Abigail.

— Vamos todos fazer essa viagem — disse Tiago. — Todos nós, assim que o dia clarear, arrumaremos as nossas coisas e partiremos, levaremos provisões como fazemos para o festival. Vamos todos.

— Sim — disse o rabino —, como se estivéssemos indo para o Templo, para o festival, todos nós. Sim. Eu vou com vocês. Agora venha comigo, Jasão. Preciso conversar com os anciãos.

— Ouço vozes lá fora — disse Menachim. — Ouçam. Estão todos falando disso.

Ele correu para a escuridão da rua e deixou a porta aberta.

Minha mãe abaixou a cabeça e pós a mão na orelha, como se escutasse uma voz distante e baixa. Cheguei perto dela.

Jasão também correu lá para fora. O rabino estava de saída. Velha Bruria veio ficar ao nosso lado.

Minha mãe estava se lembrando, recitava:

— “E ele receberá o Espírito Santo, desde o ventre de sua mãe. Converterá muitos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus. Ele ficará diante d’Ele no espírito e no poder de Elias para levar os corações dos pais para os filhos e os desobedientes para a compreensão dos justos... para preparar um povo digno do Senhor.”

— Mas quem disse isso? — perguntou o pequeno José.

Shabi e Isaac fizeram a mesma pergunta.

— De quem são essas palavras? — Silas quis saber.

— Foram ditas para outra pessoa — disse minha mãe —, mas por um que também veio a mim.

Ela olhou para mim e seu olhar era de tristeza.

Todos em volta começaram a comentar aqueles fatos, fazer perguntas, falar dos preparativos.

— Não tenha medo — eu disse para minha mãe.

Puxei-a para perto e dei-lhe um beijo. Mal podia conter minha alegria.

Ela fechou os olhos e encostou a cabeça no meu peito.

De repente, no meio daquela agitação e falatório, em meio ao consenso geral de que todos nós faríamos a viagem, que nada podia ser feito naquele momento, enquanto era noite, que precisávamos esperar o dia clarear, em meio a tudo isso, abraçado com minha mãe, compreendi a expressão que tinha visto em seus olhos. Entendi o que pensei ser medo ou tristeza.

E olharei para trás, para esses dias, esses longos e exaustivos dias... olha­rei para trás e me lembrarei deles de algum outro lugar, muito longe daqui, e pensarei: Ah, aqueles foram dias abençoados? Será que eles serão doces recordações?

Ninguém ouviu o que minha mãe disse, apenas eu.

— Havia um homem no Templo quando levamos você para lá — ela disse —, logo depois que nasceu, antes de os Magos chegarem com seus presentes.

Prestei atenção ao que ela dizia.

— E ele disse para mim: “Uma espada cortará também o seu coração.”

— Ah, você nunca me contou isso antes — respondi, murmurando baixi­nho, como se estivesse apenas dando um beijo em sua face.

— Nunca contei, mas fico pensando se não será agora — ela disse.

— Este momento é de alegria — eu disse. — Este momento é doce e bom, e somos todos uma família quando sairmos daqui. Não é assim?

— É — ela sussurrou. — Agora deixe-me ir. Tenho muita coisa para fazer.

— Só mais um minuto — eu disse e a abracei com força.

Só a soltei quando tive de soltar. Alguém estava gritando que Rubem tinha chegado a cavalo de Caná, que ele também recebera a notícia. E que Shemayah estava do outro lado da rua, olhando fixamente para o nosso pátio.

Eu sabia que tinha de ir falar com ele, segurar sua mão e trazê-lo para ver Abigail.

 

FOI UMA LONGA JORNADA PARA O LESTE e para o sul, passo a passo, can­ção após canção.

Na noite do primeiro dia, éramos uma grande massa disforme de pere­grinos, numerosa como jamais vi na estrada para Jerusalém e de fato muitos saíam das aldeias e das cidades para essa viagem, como fariam para aquela.

Shemayah e todos os seus servos do campo foram conosco. Mas Abigail viajava na carroça com minha mãe e minhas tias mais idosas e a pequena Maria. Elas raramente subiam na carroça juntas, ao mesmo tempo. José e tio Cleofas seguiram junto com tio Alfeu na carroça maior, sobre as muitas trouxas e cestas. O rabino viajava em seu burrico branco, e Rubem e Jasão, em suas montarias poderosas e ariscas, que muitas vezes os levavam nervo­sos até lá na frente, e eles nos esperavam no mercado da cidade seguinte, ou no poço, ou simplesmente cavalgavam lentamente de volta.

O velho Hananel de Caná e seus escravos nos alcançaram no terceiro dia e a partir daí viajaram junto conosco, apesar de seguirmos num ritmo bastante lento. E à noite era como nas peregrinações. Estendíamos nossos cobertores, nossas tendas, acendíamos as fogueiras, fazíamos nossas orações e cantávamos nossos hinos.

Em todo lugar em que parávamos, encontrávamos gente que tinha estado no rio, os que tinham sido batizados por João e seus discípulos, os que ouviram “o profeta João!” pessoalmente. Uma sensação de êxtase cerca­va os que voltavam para casa, um sentido novo de expectativa, apesar de não ter relação com nenhuma profecia específica, sem nenhuma reclamação ou inquietação.

É claro que os homens não paravam de perguntar como era esse batis­mo e o que ele significava. Mestres e estudiosos juntaram-se a nós, jovens, a cavalo passaram por nós. Encontramos grupos de soldados do rei que tinham ido até o rio Jordão e que só tinham boas notícias a dar, e até ban­dos de soldados romanos que estavam indo para o rio, saídos de Cesárea, paravam para beber vinho conosco ou tomar um pouco de sopa com pão.

Os romanos estavam curiosos em relação a esse homem desconhecido que atraía multidões para as margens do rio. Comentavam meio desconfia­dos. No entanto, eles também queriam ver o homem que usava pêlo de camelo, que ficava com a água do rio Jordão até o joelho, oferecendo puri­ficação. Afinal, disseram eles, todos tinham santuários próprios em casa, aqui e ali, e seus próprios rituais, como nós também tínhamos. E concordamos com isso. Ficamos felizes de recebê-los assim, de oferecer um pouco de comida antes de partirem apressados.

Os estudiosos se sentavam em roda à noite, recitavam as Escrituras que tratavam desse grande assunto de se purificar nas águas do rio Jordão. Falaram do profeta Elisha, de quando ele mandou Naaman, o leproso, banhar-se sete vezes no Jordão.

— Mas o profeta não batizou Naaman — disse um dos estudiosos. — Não, nem a si mesmo, mas disse para o velho banhar-se no rio.

— E lembrem-se — disse o rabino uma noite — que o leproso zombava do profeta, não zombava? Fazia pouco dele, sim, lembrem-se. E ficou com raiva porque o profeta nem saiu de casa para saudá-lo, em vez disso reco­mendou que ele se banhasse no rio. E pergunto a vocês, o que aconteceu?

Muitas vezes surgia a pergunta: se estávamos comemorando nossa recente vitória em Cesárea. Os rabinos e os fariseus falaram disso, e também os soldados. Os rabinos destacaram, com muita firmeza, que o lugar para dar graças ao Senhor não era na margem do rio, e sim no Templo, o Templo que fora tão profanado com a apresentação das insígnias de Pilatos. Ninguém discordou disso.

E, quando os soldados romanos perguntaram se estávamos celebrando porque o governador tinha recuado e tirado as insígnias, não estavam pro­vocando nem preocupados com aquilo, apenas queriam saber. Por que tanta gente está indo procurar esse homem, pessoas do norte, do sul, do leste e do oeste, até o povo das cidades gregas da Decápolis?

De fato, mais cedo ou mais tarde, quase todos ali tinham algo a dizer sobre a imensa multidão que caminhava para o rio.

— Será que estamos tão cansados e tão sedentos de um verdadeiro pro­feta depois de centenas de anos — perguntou Jasão —, que nos mobilizamos, deixamos nossas casas, nossos campos e partimos diante da mera menção de que um homem pode nos trazer uma nova luz, algum consolo especial?

— Faz realmente quatrocentos anos — disse o tio dele, Jacimus — desde que um profeta se pronunciou, ou será que estamos simplesmente surdos para os profetas que o Senhor tem enviado? Não posso deixar de pensar nisso.

Era inevitável que os homens discutissem sobre o Templo. Eles discu­tiam se o Templo era ou não era grego demais, grande demais, cheio demais de livros, de mestres e de cambistas, de multidões de gentios boquiabertos e deslumbrados, a quem sempre tinham de avisar para ficarem fora dos salões internos, sempre ameaçados de morte se não obedecessem às leis, e quanto aos sacerdotes, José Caifás e o sogro dele, Anuas, bem, os homens tinham muito que dizer sobre esse assunto também.

— Uma coisa está clara quanto ao Caifás — meu tio Cleofas dizia, sem­pre que podia. — O homem enfrentou as correntes políticas por muito tempo.

— Você diz isso porque é parente dele — observou alguém.

— Não, eu digo isso porque é verdade — retrucou Cleofas e logo citou os nomes dos Sumos Sacerdotes que tinham passado pelo Templo, inclusive os que foram indicados pela Casa de Herodes e mais tarde pelos romanos.

Essa questão da nomeação dos nossos Sumos Sacerdotes pelos romanos já era por si só estopim de uma renhida batalha. Mas havia sempre os mais velhos por perto para acalmar os mais esquentados, e até Hananel se mani­festou uma ou duas vezes para encerrar com desprezo qualquer conversa de purificação do Templo, como os essênios queriam fazer há muito tempo.

— Isso — dizia ele — é conversa mole. O Templo é nosso!

Eu tinha ouvido essas discussões, essas ponderações, minha vida inteira. Às vezes acompanhava o raciocínio. Mas em geral deixava minha mente divagar. De qualquer modo, ninguém esperava qualquer comentário meu.

Poucas pessoas que se juntavam a nós sabiam que João bar Zacarias era nosso primo. Os que sabiam eram logo silenciados quando simplesmente admitíamos que sabíamos pouco dele, que décadas e quilômetros nos sepa­raram completamente.

A última vez que eu tinha visto João foi quando era um menino de sete anos.

Jasão, é claro, podia descrevê-lo vivamente, mas sempre acabava com a mesma imagem interessante, porém remota: estudioso, piedoso, modelo entre os essênios... que tinha desaparecido para a vida ainda mais dura no deserto escaldante.

Minha mãe, que poderia ter mais histórias para contar sobre João e os pais dele do que qualquer um ali presente, não dizia nada. Minha mãe, meses antes do meu nascimento, tinha se hospedado na casa de Isabel e Zacarias, e era desse tempo que vinham as histórias que Jasão repetiu para mim, a canção de felicidade da minha mãe, a profecia de Zacarias quando seu filho nasceu. Todas essas coisas minha mãe conhecia muito bem. Mas agora ela não se esforçava, como aliás, nunca se esforçou mesmo, para par­ticipar da conversa dos fariseus e dos escribas, e dos jovens sobrinhos e algumas sobrinhas, que só conheciam fragmentos dessas coisas e que esta­vam sedentos por mais.

Jasão também guardava seus segredos, mas pude ver muitas noites dian­te da fogueira que ele quase explodia com o desejo de se levantar e recitar de memória todas as orações que havia aprendido com João, que vieram do pai e da mãe de João e da minha mãe.

Eu sorria para ele de vez em quando, e ele piscava e balançava a cabe­ça. Mas aceitava que essas histórias não eram dele, que não tinha o direito de contá-las. E prosseguia nas discussões em que perguntavam quem era esse João com quem nós todos estávamos nos comprometendo.

Quando deixamos as montanhas mais altas da Galiléia e descemos para o vale do Jordão, alcançamos uma temperatura mais quente e confortável. No início estava muito seco. Então chegamos o mais perto possível dos ala­gados cheios de junco ao longo do rio, e cada hora trazia novas notícias de que João, aproximando-se pelo sul enquanto pregava, estava mais perto de nós do que imaginávamos. E que qualquer dia desses iríamos encontrá-lo.

José não estava bem.

José passou a dormir na carroça constantemente e Tiago e eu ficávamos arrepiados de ver aquele sono profundo e interminável. Todos nós conhe­cíamos aquele tipo de torpor. Conhecíamos bem aquela respiração ritma­da e estranha, que continuava inabalável e aparentemente sem esforço, ape­sar do barulho das rodas e do sacolejo sobre pedras e sulcos.

As mulheres notaram, sem dúvida nenhuma, mas pareciam mais pacientes e resignadas com isso do que meu tio Cleofas ou meus irmãos mais novos que acordavam José por qualquer pretexto.

— Deixem no descansar — disse minha mãe.

Tia Ester ordenou que todos fizessem o mesmo.

O olhar de minha mãe estava triste como na noite em que recebemos a carta. Mas havia firmeza naquela tristeza. Nada a surpreendia nem a dei­xava alarmada. De vez em quando, sentava-se ao lado de José, entre ele e o irmão dela, Cleofas. Ela embalava José aninhado em seu ombro. Dava-lhe água quando ele despertava, mas em geral evitava que os outros o acordas­sem, e isso eles faziam principalmente para se tranquilizar e ter certeza de que ele podia de fato despertar.

Uma noite, José acordou e não sabia onde nós estávamos. Por mais que tentássemos explicar, ele não entendia que estávamos indo para o rio Jordão a fim de encontrar João bar Zacarias e seus seguidores lá. Tiago até pegou a carta amassada e a leu inteira para ele, com a luz fraca que tínhamos.

Finalmente minha mãe disse:

— Você pensa que o levaríamos a algum lugar para onde não quisesse ir? Jamais faríamos isso. Trate de dormir agora.

Ele ficou imediatamente tranquilo e fechou os olhos.

Tiago se isolou e foi para longe, para ninguém ver que estava choran­do. Era o pai dele que estava nos deixando. Ah, éramos todos irmãos, mas aquele era o pai de Tiago, com uma jovem esposa que nenhum de nós, exceto Alfeu e Cleofas, tinha conhecido. Quando era menino, Tiago ficou ao lado do leito de morte de sua mãe, junto com José. E em breve José tam­bém ia partir.

Fui para perto de Tiago e, quando ele resolveu, fez sinal para eu me aproximar. Ele estava perturbado, como sempre, inquieto, virando para um lado e para outro.

— Eu não devia ter insistido para ele vir.

— Mas você não insistiu — eu disse —, e ele quis vir. Amanhã, quando o sol nascer... estaremos lá.

— Mas o que significa isso, de um batizar o outro, de não irmos mais até o rio para nos banhar sozinhos, como sempre foi, que outro... E você faça o favor de prestar atenção aos soldados. A notícia dessa comoção toda vai atiçar esse tolo desse governador, você sabe que vai.

Eu sabia que ele precisava ter todas essas preocupações, para não ter de encarar a verdadeira preocupação, a de que José estava morrendo. Por isso, não disse nada para ele. E em pouco tempo ele foi discutir o assunto de novo, muitas vezes, com Jasão, com Rubem, com Hananel, com o rabino e com o grupo mais recente de soldados do rei, alguns dos quais acompanha­vam os ricos que viajavam em liteiras muito coloridas. Eu ficava observando a enorme multidão que se espalhava pelo terreno pedregoso e depois olhava para o céu que já escurecia.

O ar quente era doce com o perfume do rio e dos alagados verdejan­tes. Ouvi o canto dos pássaros que sempre se reuniam perto do rio. Gostei daquilo e meu coração disparou, também senti aquela tristeza novamente, como sentira com minha mãe. Era pequena, mas era terrível. Provocava uma espécie de devaneio e deslumbramento com as coisas mais triviais e insignificantes.

Alguma coisa estava mudando e era para sempre. As crianças, que agora eram chamadas para ir dormir, querendo ou não, não percebiam essa mudança, apenas a novidade e a aventura, como se estivessem numa excur­são para o grande mar.

Até meus irmãos tinham se rendido a uma exultação pelo cansaço, que definiam com firmeza uns para os outros quando concordavam que iam confessar, entrar na água e de fato permitir que fossem batizados, se era isso que João bar Zacarias queria, e voltariam para seus afazeres, e para este ou aquele problema da vida, com força renovada.

Em mim, a consciência era completamente diferente. Eu não precisava ter pressa e não ficava para trás. Não lamentava a distância de jeito nenhum. Movia-me devagar para aquilo que finalmente ia me distinguir de todos à minha volta. Eu sabia disso. E soube sem saber como, nem o que realmen­te ia acontecer. E o único lugar em que via esse mesmo despertar da cons­ciência — e uma parte dessa mesma aceitação — era no olhar suave, habitual, da minha mãe.

 

NO MEIO DA MANHÃ, sob um céu cinzento e ameaçador, chegamos ao local dos batizados.

Mesmo a nossa própria multidão não nos preparou para a magnitude do que vimos, a vasta massa de pessoas nos dois lados do rio, se espalhando até onde a vista alcançava, e muitas com grandes tendas ricamente decora­das, com banquetes postos em seus tapetes, enquanto outras eram os gru­pos dos oprimidos que estavam lá, lado a lado, com os sacerdotes e os escri­bas, com suas vestes maltrapilhas.

Aleijados, mendigos, os muito velhos e até as mulheres pintadas das ruas faziam parte da multidão, junto com todos os que se uniram a nós na viagem.

Havia soldados do rei por toda parte e reconhecemos o vestuário dos que serviam ao rei Herodes Antipas ali, aqueles que serviam ao irmão dele, Filipe aqui, e havia também muitas mulheres lindamente vestidas, ladeadas pelos servos, ou simplesmente emergindo de suas suntuosas liteiras.

Quando finalmente avistamos João, a multidão estava calada e os hinos cantados ali eram um pano de fundo distante. Homens e mulheres tiravam as roupas e entravam na água apenas de túnica, alguns homens tiravam até as túnicas e iam apenas de tanga para perto de João e seus inúmeros discí­pulos.

Em volta de nós, pessoas sussurravam confessando seus pecados, implo­rando o perdão de Deus, murmurando apenas alto suficiente para que se ouvisse uma voz, mas não as palavras ditas, de olhos fechados, roupas deixa­das no junco das margens. As pessoas passavam pela margem alagada e depois entravam no rio.

Os discípulos de João estavam à direita e à esquerda dele.

E ele mesmo era inconfundível. Alto, com o cabelo preto todo emara­nhado caindo sobre os ombros, descendo pelas costas, João recebia um peregrino após o outro, seus olhos escuros brilhavam muito à luz da manhã cinzenta, sua voz baixa ecoava mais forte do que o burburinho de vozes em torno dele.

— Arrependa-se, pois é chegado o reino dos Céus — ele declarava todas as vezes como se fosse a primeira, e os que estavam perto dele repetiam com ele, até que percebemos que era um cântico, um cântico que se mis­turava de vez em quando em timbre e em tom com as confissões aleatórias e incessantes.

Jasão e os mais jovens ficaram um pouco afastados, observando, de bra­ços cruzados. Mas um por um meus irmãos foram descendo, tiraram as rou­pas e entraram na água.

Vi Tiago mergulhar e subir lentamente enquanto João, sem demons­trar que o estava reconhecendo, derramava uma concha de água sobre a cabeça dele.

Josué, Judas e Simão foram na direção dos discípulos, levando os filhos e os sobrinhos com eles. Menachim tinha levado o pequeno Isaac pela mão bem perto dele, pois parecia apreensivo com a terra esponjosa e com a den­sidade dos juncos, até com o próprio rio, se bem que a água só chegava aos joelhos dos que lá estavam de pé.

Uma tenda bem alta montada em quatro postes enfeitados adejava rui­dosamente ao vento, e as nuvens cinzentas deslizavam na frente do sol radiante. De dentro da tenda, saiu um rico coletor de impostos, um homem que eu conhecia de passagem das inevitáveis jornadas para trabalhar ou para visitar Cafarnaum.

Ele ficou ao meu lado, observando a grande massa móvel de batizandos e de batizados e realmente o centro da multidão parecia inchar e se esticar para a direita e para a esquerda enquanto olhávamos.

Do grupo que estava atrás de nós, um fariseu muito bem vestido, de bar­ba branca e comprida, se adiantou e passou entre nós dois, com mais dois homens que certamente deviam ser sacerdotes, trajando o linho mais puro.

— Com autorização de quem você faz isso? — perguntou o fariseu de barba branca. — Responda, João bar Zacarias. Se você não é Elias, então quem é para atrair os homens para cá a fim de terem perdoados seus peca­dos? Quem são os seus discípulos?

João parou e olhou para cima.

O sol atrás das nuvens cinza fizeram João semicerrar os olhos quando procurava o homem que o desafiava. Seu olhar passou por mim e pelo cole­tor de impostos.

O fariseu declarou mais uma vez:

— Com autoridade de quem você ousa trazer essas pessoas para cá?

— Trazê-las? Eu não trouxe ninguém! — respondeu João.

A voz dele reverberou sem esforço por toda a massa de gente. Ele res­pirou fundo como alguém que está acostumado a falar mais alto que o barulho do vento.

— Já disse para vocês. Eu não sou Elias. Não sou o Cristo. Já disse para vocês que Ele, o que virá depois de mim existe antes de mim!

Parecia que ele ganhava força enquanto falava.

Os discípulos continuaram a batizar os peregrinos.

Vi Abigail descer para o rio completamente vestida. Percebi que o jovem que fez sinal para ela se aproximar, que ergueu a concha e pediu para ela se ajoelhar na água, era meu primo João bar Zebedeu. Lá estava ele, com sua roupa molhada grudada no corpo, o cabelo comprido e maltratado, um menino de vinte anos de idade ao lado do homem que exclamava para que todos ouvissem.

— Eu digo mais uma vez que vocês são um ninho de víboras! E não estarão seguros se declarando filhos de Abraão. Eu digo que o Senhor pode erguer filhos de Abraão destas pedras. Enquanto estou aqui, neste momen­to, o machado está na base da árvore. Toda árvore que não der bons frutos será derrubada e lançada ao fogo!

De todos os pontos da massa humana, pessoas olharam para os rabinos e os sacerdotes que se adiantavam ao som da voz de João. Jasão perguntou de repente:

— Mas, João, de onde vem a sua autoridade para declarar essas coisas para nós? É isso que todos os homens querem saber.

João olhou para ele, mas aparentemente não reconheceu Jasão, como não reconhecia qualquer pessoa, e respondeu:

— Então eu já não disse para vocês? Vou dizer novamente. “Sou a voz do que brada no deserto, preparem o caminho do Senhor, tornem retos os Seus caminhos. Toda ravina ficará repleta, e toda montanha e colina serão rebaixadas, o torto ficará direito e as estradas acidentadas se tornarão lisas... e toda carne verá a salvação de Deus!”

Ele podia ser ouvido nos limites mais distantes da multidão. Ouvimos gritos de gratidão e mais e mais gente descia para o rio. Jasão e Rubem foram para lá também.

Vi Tiago subindo a margem do rio, com o cabelo comprido e solto ainda muito molhado. Ele estendeu a mão para José. Tiago e minha mãe levaram José juntos para o rio.

O coletor de impostos observou aquele idoso descer.

João recebeu José pessoalmente, mas mais uma vez não vi sinal de reco­nhecimento nos olhos dele, daquele homem e daquela mulher que estavam diante dele. Eles entraram na água como todos faziam. E João derramou a água da concha sobre as suas cabeças.

Mais gritos do meio da multidão.

Dessa vez, era Shemayah que gritava, num rompante, como se não con­seguisse se conter.

— Então o que temos de fazer?

— E eu preciso dizer? — respondeu João.

João chegou para trás e de novo elevou a voz sem esforço, com o poder de um orador.

— O homem no meio de vocês que tem duas túnicas deve reparti-las com o que não tem nenhuma. E os que têm comida devem dar para os que não têm nada!

Subitamente, o coletor de impostos ao meu lado exclamou:

— Mestre, o que nós temos de fazer?

As pessoas viraram para ver quem tinha feito aquela pergunta passional, que vinha do seu coração.

— Ah, não recolha mais do que foi ordenado que recolhesse — respon­deu João.

Uma enorme onda de murmúrios de aprovação percorreu a multidão que ocupava as margens do rio. O coletor de impostos meneou a cabeça.

Mas agora eram os soldados do rei que se adiantavam.

— E o que tem a dizer para nós, Mestre? — gritou um. — Diga, o que podemos fazer?

João olhou para eles e mais uma vez semicerrou os olhos contra o sol prateado no céu nublado.

— Não tirem dinheiro pela força, é isso que podem fazer. E nunca acusem alguém falsamente, fiquem satisfeitos com os seus salários.

As pessoas reagiram balançando a cabeça e murmurando aprovação.

— O que vem depois de mim já tem seu forcado de joeirar na mão para limpar Sua eira e para juntar o trigo no celeiro, ou queimar o rebotalho com um fogo voraz.

Muitos que ainda não tinham descido fizeram isso, mas uma enorme comoção perturbou a multidão de repente. As pessoas se viravam para ver e gritavam atônitas.

À direita e acima de onde eu estava, na encosta, apareceu um grande grupo de soldados, e, do meio deles, saiu com passos largos uma figura muito conhecida, que surpreendeu e silenciou a todos quando se aproxi­mou da ribanceira na margem do rio. Os soldados abaixavam o capim para ele passar e seguravam a bainha de sua longa capa roxa.

Era Herodes Antipas. Eu raramente o vira assim tão de perto, como estava agora. Era um homem alto, marcante segundo qualquer critério, com olhar gentil. Ele olhava deslumbrado para o homem que batizava no meio do rio.

— João bar Zacarias! — exclamou o rei.

Um silêncio rápido foi se espalhando erraticamente entre todos que o viram e todos que ouviram a voz dele.

João levantou a cabeça. Semicerrou os olhos de novo. E levantou a mão à testa para proteger os olhos da luz.

— O que eu devo fazer? — perguntou o rei. — Diga-me. Como devo me arrepender?

O rosto do rei era comprido e sério, mas não havia sinal de zombaria, apenas uma concentração intensa.

João não respondeu logo e quando o fez foi com uma voz muito potente.

— Desista da mulher do seu irmão. Ela não é sua mulher. Você conhece a Lei! Você não é um judeu?

A multidão ficou chocada. Os soldados chegaram mais perto do rei como se previssem alguma ordem, mas o próprio rei ficou imóvel, apenas observando enquanto João segurava os ombros do meu amado José e o aju­dava a se levantar na água.

O coletor de impostos foi andando na direção da minha mãe e de Tiago, para ajudá-los. Então tirou sua rica manta e a deixou cair como se fosse uma veste comum de lã, ficou diante de João e se ajoelhou como todos os outros tinham feito antes dele.

José observou o coletor de impostos mergulhar a cabeça na água e levantá-la, tirando a água do rosto com as mãos. Algumas gotas ficaram no seu cabelo untado com óleo.

O rei ficou impassível na ribanceira, depois, sem dizer palavra, deu meia-volta e desapareceu entre as fileiras de seus soldados. O grupo todo, com suas lanças de ponteiras brilhantes de ouro e escudos redondos, se afas­tou até se perder de vista, engolido pelos peregrinos que vinham na nossa direção.

Dezenas de homens e mulheres se encaminharam para o rio.

Vi José olhando fixamente para mim, com o olhar bem lúcido e expres­são familiar.

Desci até o rio. Passei por José e por minha mãe, pelo coletor de impos­tos que estava ao lado de José, pronto para ajudá-lo, por conta da sua idade, apesar de Tiago também estar ali.

Parei na frente de João bar Zacarias.

A postura que sempre adotei foi a de olhar para baixo. Alvo de comentá­rios e insultos em grande parte da minha vida, eu raramente encarava um homem olho no olho, em geral desviava o olhar e me concentrava no meu trabalho. Era um comportamento tranquilo.

Mas não fiz isso diante de João. Não era mais meu jeito de ser. Isso era passado.

Ele ficou paralisado, olhando fixamente para mim. Olhei para ele, para sua aparência robusta, para os pêlos grudados no peito, a capa escura de pêlo de camelo que o cobria parcialmente. Vi que seus olhos se fixavam nos meus.

E os olhos dele estavam vidrados, a defesa natural para uma multidão de rostos, uma multidão de olhares, uma multidão de expectativas.

Mas, quando nos encaramos, ele só um pouco mais alto do que eu, os olhos dele ficaram suaves. Perderam o franzido constante, o ar distante. Ouvi sua respiração como um suspiro.

E então soou algo que parecia o bater de asas, gentil mas imenso, como o de muitos pombos que se agitam assustados num pombal, todos tentando voar para o céu.

João olhou para cima, para a direita e para a esquerda e depois para mim outra vez.

Não descobriu a fonte daquele ruído.

Eu disse para ele em hebraico:

— Johanan bar Zechariah.

Ele arregalou os olhos.

— Yeshua bar José — disse ele.

O coletor de impostos se aproximou para observar, para escutar. Per­cebi as formas vagas de minha mãe e de José ali perto. Senti outros virando lentamente para nós, caminhando constrangidos para onde estávamos.

— É você! — sussurrou João. — Você... venha me batizar! — Ele estendeu a concha cheia de água.

Os discípulos à direita e à esquerda interromperam o que estavam fazendo. Os que saíam da água pararam, prestando atenção. Alguma coisa havia mudado no homem santo. O que mudou?

Senti aquela massa de gente como uma coisa viva conectada e respiran­do conosco.

Levantei as mãos.

— Somos feito à imagem d’Ele, você e eu — eu disse. — Isto é carne, não é? Eu sou um homem, não sou? Batize-me como fez com todos os outros, faça isso, em nome da justiça.

Eu me abaixei na água. Senti a mão de João no ombro esquerdo. Senti seus dedos se fechando em torno do meu pescoço. Não vi nada, não senti nada, não ouvi nada além do fluxo frio da água, e então subi e saí dela len­tamente. Fiquei de pé, chocado com o brilho da luz do sol.

As nuvens tinham se dispersado. O barulho de asas batendo enchia meus ouvidos. Olhei para a frente e vi a sombra de um pombo voando para o alto estampada no rosto de João e depois vi o próprio pássaro subindo para uma grande abertura de céu azul, ouvi um sussurro perto da minha cabeça, um sussurro que penetrava o barulho das asas, como se lábios tives­sem tocado minhas orelhas ao mesmo tempo e, apesar de suave, secreto e fraco, parecia a reverberação de um imenso eco.

Este é o meu Filho, este é o meu amado.

Todos às margens do rio estavam imóveis e calados.

Depois o barulho, o barulho conhecido. Gritos e exclamações, aqueles ruídos todos misturados na minha cabeça, na minha alma, do apedrejamen­to de Yitra e da turba em volta de Abigail, o barulho de jovens triunfantes, os gritos incessantes dos peregrinos, ouvi tudo aquilo em volta de mim, o ritmo animado e a balbúrdia de vozes se misturando umas com as outras, respondendo umas para as outras, ficando cada vez mais altas, competindo entre si.

Olhei para cima, para o infinito espaço de azul e vi o pombo voando, subindo, subindo. Ficou bem pequeno, um pontinho no brilho trêmulo do sol que inundava tudo.

Cambaleei para trás. Quase perdi o equilíbrio. Olhei para José. Vi seus olhos cinza fixos em mim, vi um pequeno sorriso em seus lábios e vi no mesmo instante o rosto de minha mãe, sereno e ainda um pouco triste, de uma tristeza amorosa, ali parada ao meu lado.

— É você! — disse João bar Zacarias novamente.

Não respondi.

O coro da multidão ganhou força.

Fui para a margem mais distante, tropeçando nas plantas aquáticas, andando cada vez mais depressa. Parei e olhei para trás uma vez. Vi José de novo, nos braços solícitos do coletor de impostos, que olhava aflito para mim. O semblante de José estava sereno e triste e ele meneou a cabeça cobrindo a distância que havia entre nós. Vi meus irmãos, vi todos os meus parentes lá, vi Shemayah, vi Abigail. Vi a figura diminuta de Hannah Silenciosa.

Vi todos eles e vi cada um deles. A inocência suave dos muito velhos, com os olhos úmidos brilhando sob camadas pesadas de pele, o súbito intervalo do cansaço dos maduros, que ficavam equilibrados entre a conde­nação e o deslumbramento, a excitação sincera das crianças que implora­vam para os pais explicarem para elas o que tinha acontecido... e mesclado com tudo isso, os atarefados, os preocupados, os desgastados, os confusos, cada um e todos tocando uns nos outros.

Nunca os tinha visto daquele jeito, ancorados em preocupação, mas mesmo assim aliados aos da direita e da esquerda, e agitados, não na areia, mas como se estivessem à beira do mar, em meio às ondas.

Virei-me e olhei para João, e ele se virou também, para olhar para mim. Ele abriu a boca para falar qualquer coisa, mas não disse nada.

Dei as costas para ele. Por um segundo, o sol que brilhava nos galhos de uma árvore movida pelo vento me deixou paralisado. Se as árvores e o capim soprado pelo vento podiam falar, estavam falando comigo.

E falavam de silêncio.

Caminhei sem parar, com a mente repleta apenas do som dos meus pas­sos, passando por pântanos, junco, depois pelo solo seco e cheio de pedras, fui andando, andando, minhas sandálias batiam no caminho e na terra nua onde não havia mais caminho.

Agora cu precisava ficar sozinho, ir para o lugar onde ninguém me encontraria, onde ninguém me questionaria. Não agora. Precisava buscar a solidão que me tinha sido negada toda a minha vida.

Tinha de procurar a solidão além das aldeias, das cidades ou dos acam­pamentos. Tinha de buscá-la onde não havia nada além da areia ardente, do vento cortante e dos penhascos mais altos da terra. Tinha de procurá-la, como se ela não estivesse em lugar nenhum e não contivesse nada... quan­do, na verdade, era a palma da mão que me sustentava.

 

VOZES. ELAS NÃO PARAVAM.

Passei pelas últimas pequenas aldeias dias atrás. Tinha bebido água pela última vez lá.

Não sabia mais onde estava, só que fazia frio e que o único som real era o do vento uivando e varrendo o vale. Agarrei-me ao penhasco e fui subin­do. Escurecia rapidamente. Por isso fazia tanto frio.

E as vozes não paravam, todas as discussões, todos os cálculos, todas as declarações, todas as ponderações, sem parar, sem parar.

Quanto mais cansado eu ficava, mais altas elas se tornavam.

Deitei-me numa pequena caverna para escapar do vento cortante e enrolei-me no meu manto. Não sentia mais sede. Não tinha mais fome. Isso queria dizer que já tinham se passado muitos dias, porque a sede e a fome chegaram a doer muito tempo e isso agora tinha acabado. Meio tonto, com a cabeça vazia, eu desejava tudo e nenhuma coisa em especial. Meus lábios estavam rachados, a pele deles descascava. Minhas mãos estavam vermelhas, muito queimadas. Meus olhos doíam, abertos ou fechados.

Mas as vozes não cessavam, e bem devagar rolei para ficar de costas e espiei as estrelas além da entrada da caverna, como sempre fiz, pensando naquela claridade absoluta, sem nuvens, sobre as dunas de areia, o que cha­mamos de magnificência.

E então veio a lembrança, e ela afastou as vozes arbitrárias da censura... a lembrança de cada coisa solitária que eu fiz nesta minha existência terrena.

Não era uma sequência. Não tinha a ordem das palavras escritas em pergaminho, de um lado da coluna até o outro, voltando para o início, sem­pre. Mas mesmo assim se desenrolava em um sentido.

E borbulhantes em densidade eram os momentos de dor, de perda, de medo, de súbito arrependimento, de tristeza, de desconcertamento e de assombro atormentado.

Dor como as próprias estrelas, cada momento com sua forma e sua magnitude infinitesimal. Todas aquelas lembranças se reuniram em volta de mim, como se compusessem um grande traje que era a minha vida, um manto que se enrolava várias vezes, por cima, por baixo, até me envolver como a minha pele, completamente.

Em algum momento antes do amanhecer, compreendi uma coisa. Que eu podia, sem o menor esforço, manter qualquer um e todos esses momen­tos na minha mente. Que eles coexistiam, essas agonias variadas, minúscu­las e incontáveis. Pequenas agonias.

Quando clareou o dia e o vento amargo morreu com a luz do sol, eu segui caminhando, deixei virem esses infinitos momentos, deixei a minha mente lançá-los nos meus olhos e no meu coração, como a areia que quei­mava meus olhos, a areia que queimava meus lábios. Continuei lembrando.

No meio da noite, acordei. Aquela era a minha voz recitando o que estava escrito? “E todas as coisas secretas serão reveladas e todos os espaços escuros iluminados.”

Meu Deus, não, não deixe que eles saibam disso, não deixe que conheçam o grande acúmulo de tudo isso, essa agonia e essa alegria, esse sofrimento, esse alívio, essa busca, essa dor sufocante, essa...

Mas eles vão saber, cada um deles, todos vão saber. E vão saber porque o que você está lembrando é o que aconteceu com cada um deles, com todos eles. Pensou que isso era mais ou menos para você? Pensou que...?

E quando tiverem de prestar contas, quando estiverem nus diante de Deus e cada incidente e cada palavra dita forem desvendados... você, você saberá de tudo com cada um deles e com todos eles!

Eu me ajoelhei na areia.

Será que isso é possível, Senhor, estar com cada um deles quando vie­rem a saber? Estar lá para cada lamento de angústia? Para a lembrança de sofrimento e dor de cada alegria insatisfeita?

Ó Senhor, meu Deus, o que é esse juízo e como pode ser, se não supor­to estar com todos eles por cada palavra má, cada grito áspero e desespera­do, por cada gesto estudado, por cada feito explorado até as raízes? E eu vi esses feitos, os da minha própria vida, os menores, as coisas mais triviais, eu os vi de repente como sementes e brotos, com seus galhos despontando. Eu os vi crescer, se interligar com outros feitos formando uma mata densa, uma floresta e uma enorme selva que fez o mundo ficar pequeno como o que seguramos num mapa, o mundo que guardamos em nossas mentes. Meu Deus, perto disso, dessa vastidão infinita de feito em feito, de palavra em palavra, de pensamento em pensamento, o mundo é nada. Cada uma dessas almas é um mundo!

Comecei a chorar. Mas não conseguia apagar essa visão... não, deixe-me ver, e todos os que pegaram pedras, e eu, eu cometendo erros, e a expres­são de Tiago quando eu disse: Estou cansado de você, meu irmão, e daquele momento em diante houve um milhão de ecos dessas palavras e todos os presentes que ouviram, ou que pensaram ter ouvido, que iam se lembrar, que iam repetir, confessar, defender... e assim vai... por um dedo erguido, o lançamento do navio, a derrota de um exército numa floresta do norte, o incêndio de uma cidade quando as chamas devoram uma casa depois da outra! Meu Deus, eu não posso... mas vou. Eu vou.

Solucei alto. Eu vou. Ó Pai que está no céu, eu imploro com as mãos de carne e sangue. Estou diante do Senhor em Sua perfeição, com este coração que é imperfeito! E estou diante do Senhor com o que está deca­dente ante os meus próprios olhos, e vejo as Suas estrelas de dentro da pri­são deste corpo, mas não é a minha prisão, esta é a minha Vontade. Esta é a Sua Vontade.

Prostrei-me aos prantos.

E agora eu vou descer, vou descer com cada um deles para as profun­dezas do Sheol, para a escuridão de cada um, para a angústia exposta para todos os olhos e para os Seus olhos, para o medo, para o fogo que é o calor de cada mente. Estarei com eles, com cada um dos solitários. Eu sou um deles! E eu sou Seu Filho! Sou Seu único Filho gerado! E trazido até aqui pelo Seu Espírito, eu choro porque não posso fazer nada além de entender, já que não posso conter isso nessa mente de carne e sangue, e com Sua licença eu choro.

Eu chorei. Eu chorei e eu chorei.

Senhor, dê-me este momento para poder chorar, pois ouvi dizer que lágrimas podem muito...

Sozinho? Você disse que queria ficar sozinho? Queria isso, ficar sozinho? Você queria o silêncio? Queria ficar sozinho e em silêncio. Não compreende agora a tentação que é ficar sozinho? Você está sozinho. Ora, você está completamente sozinho porque você é o Único que pode fazer isso!

Que julgamento pode haver para o homem, a mulher, a criança, se eu não estiver lá para cada batida do coração em toda a profundidade do seu tormento?

Amanheceu.

E amanheceu outra vez, e mais outra, e outra ainda.

Fiquei deitado, prostrado, e a areia era soprada sobre mim.

E a voz do Senhor não estava no vento. E não estava na areia. E não estava no sol. E não estava nas estrelas.

Estava dentro de mim.

Eu sempre soube quem eu realmente era. Eu era Deus. E escolhi não saber. Bem, agora eu sabia exatamente o que significava ser o homem que sabia que era Deus.

 

QUARENTA DIAS E QUARENTA NOITES. Foi esse o tempo que Moisés permaneceu no Sinai. Foi esse o tempo que Elias jejuou antes de o Senhor falar com ele.

— Senhor, eu consegui — sussurrei. — E sei também o que eles esperam de mim. Sei muito bem.

Minhas sandálias estavam se desfazendo. Perdi a conta das vezes em que tive de amarrar as tiras. A visão das minhas mãos queimadas de sol era afli­tiva, mas apenas ri baixinho. Eu estava indo para casa.

Desci das montanhas a caminho do deserto escaldante que me separa­va do rio que não podia ver.

— Sozinho, sozinho, sozinho — cantei.

Jamais senti tanta fome. Jamais senti tanta sede. A fome e a sede cresciam como se respondessem ao meu pronunciamento.

— Ah, sim, quantas vezes desejei isso — cantei para mim mesmo. — Estar sozinho.

E agora estava sozinho, sem pão, sem água, sem ter onde deitar a cabeça.

— Sozinho?

Era uma voz. Uma voz conhecida, uma voz de homem, conhecida em timbre e tom.

Virei-me para trás.

Fiquei de costas para o sol, de modo que a luz era clara e indolor.

Ele tinha a minha altura, estava muito bem vestido, suas vestes eram mais lindas e mais ricas até do que as de Rubem de Caná ou de Jasão. Era mais como a aparência do rei. Usava uma túnica de linho bordada na barra com folhas verdes e flores vermelhas, e cada pequena floresta brilhava com fios de ouro. As bordas do seu manto branco eram ainda mais exuberantes, mais elaboradas, tecidas como são os mantos dos sacerdotes e até tinham pequenos sinos de ouro pendurados. Suas sandálias tinham fivelas cintilan­tes. E, na cintura, ele usava um cinto grosso de couro com pontas de bron­ze incrustadas, como o dos soldados. E de fato havia uma espada em bainha coberta de pedras preciosas pendurada ao lado.

O cabelo dele era comprido e brilhante, castanho-escuro. Seus olhos suaves também eram castanho-escuro.

— Minha piadinha não o fez rir — ele disse gentilmente, fazendo uma mesura.

— Sua piada?

— Você nem se olha no espelho. Não reconhece sua própria imagem?

O choque se espalhou pelo meu rosto e depois por toda a minha pele. Ele era meu duplo, só que nunca me vi com aquela roupa.

Ele desenhou um pequeno círculo na areia para eu poder ver melhor o que fazia. Fiquei fascinado com a expressão... ou falta dela... nos seus olhos grandes e penetrantes.

— Pode-se dizer — ele disse — que eu me sinto de certa forma obrigado a lembrá-lo de quem você é. Entenda, estou a par da sua ilusão pessoal. Você não se considera um mero profeta ou um homem santo, como seu primo João. Você pensa que é o próprio Deus.

Não respondi.

— Ah, eu sei. Você queria manter segredo disso, e realmente consegue proteger seus pensamentos muito bem, pelo menos é o que me parece, mas aqui neste deserto? Bem, você murmurou em voz alta muitas vezes.

Ele chegou mais perto e levantou a borda da manga para ele mesmo poder admirar o bordado, as folhas com pontas finas, as flores que explo­diam com fios rubros.

— É claro que você não vai conversar comigo, não é? — ele disse, num tom meio zombeteiro.

Eu ficava assim quando dava esse sorriso zombeteiro. Se é que algum dia já fiz isso.

— Mas eu sei que você está com fome, está terrivelmente faminto. Está com tanta fome, que faria quase qualquer coisa para obter algo para comer. Você está devorando sua própria carne, seu próprio sangue.

Dei as costas para ele e comecei a me afastar.

— Agora, se você é um homem santo de Deus — ele disse quando me alcançou e foi andando ao meu lado, olhando bem nos meus olhos quando eu me virava para ele —, e vamos esquecer por enquanto essa ilusão de que você é o Criador do Universo, então você certamente consegue transfor­mar essas pedras, qualquer uma delas, em pão quente.

Parei de andar. Fui dominado pelo cheiro de pão quente. Dava para sentir na boca.

— Isso não seria problema para Elias — ele disse. — Aliás, nem para Moisés. E você afirma que é um santo de Deus, não é? Filho de Deus? Filho amado? Então faça. Transforme as pedras em pão.

Olhei para as pedras e saí andando de novo.

— Muito bem — ele disse me acompanhando, com os sininhos soando suavemente enquanto ele andava. — Vamos voltar para a sua ilusão. Você é Deus. Agora, segundo o seu primo, Deus é capaz de erguer filhos de Abraão destas pedras, ou daquelas pedras, ou de quaisquer pedras, não é? Bem, então transforme estas pedras em pães. Você está precisando muito comer, não está?

Virei-me e ri dele.

— O homem não vive apenas do pão — respondi —, mas de tudo que vem da boca de Deus.

— Que tradução literal horrorosa — ele disse, balançando a cabeça —, e devo observar, meu piedoso e iludido, que suas roupas não foram tão pre­servadas nesses meros quarenta dias, como as dos seus antepassados nos qua­renta anos que eles vagaram, que você é um mendigo maltrapilho que muito em breve estará descalço também.

Ri outra vez.

— Mesmo assim — eu disse —, vou seguir meu caminho.

— Bem — disse ele antes de eu começar —, é tarde demais para você enterrar o seu pai. Isso já foi feito.

Parei.

— Ora, ora, não me diga que o profeta cujo nascimento foi cercado por tantos sinais e maravilhas não sabe que seu pai, José, está morto?

Não respondi. Senti meu coração crescer e latejar nos ouvidos. Olhei para longe, para os montes de areia.

— Como parece que você, na melhor das hipóteses, foi profeta por algum tempo — ele continuou com a mesma voz calma, a minha voz —, vou contar os detalhes. Foi na tenda e nos braços de um coletor de impostos que ele deu seu último suspiro, apesar de o filho estar sentado perto dele e sua mãe chorando. Você pode imaginar? E sabe como ele passou suas últi­mas horas? Contando para o coletor de impostos e para quem quisesse ouvir tudo que conseguiu se lembrar do seu nascimento... Ah, você conhe­ce a velha cantilena sobre o anjo aparecendo para a sua pobre mãe apavo­rada, e a longa viagem para Belém para você poder chegar berrando ao mundo no pior clima, e depois a visita dos anjos do céu aos pastores, logo os pastores... e aqueles homens. Os reis Magos. Ele contou para o coletor sobre a visita deles também. E então morreu, delirando, pode-se dizer, só que baixinho.

Olhei para a frente, para o solo do deserto. Qual era a distância até o rio?

— Chorando! Ora, vejam só, você está chorando — ele disse. — Eu não esperava. Esperava que você ficasse envergonhado com o fato de um homem tão íntegro morrer nos braços de um respeitado ladrão, mas não esperava essas lágrimas. Afinal de contas, você foi embora e deixou o velho no rio, não foi?

Não respondi.

Ele assobiou, despreocupado, uma pequena canção, como qualquer um poderia assobiar ou cantarolar num passeio, e ficou andando em volta de mim, em círculos.

— Bem — ele disse, parando na minha frente. — Você é sensível, disso nós sabemos. Mas profeta? Acho que não. Quanto à ilusão de que criou o mundo inteiro, bem, devo lembrar o que você, sem dúvida, já sabe: uma ilu­são semelhante a essa custou meu lugar lá em cima, na Corte Celestial.

— Acho que está atenuando os fatos — eu disse.

Minha voz soou rouca com as lágrimas, mas elas secavam ao vento quente do deserto.

— Ah, você fala comigo, não cita as Escrituras, usa palavras mesmo — ele disse.

Ele deu risada, uma imitação perfeita do meu riso minutos antes, e sor­riu para mim, um sorriso simpático que era quase bonito.

— Sabe, os homens santos quase nunca falam comigo. Escrevem poesias longas e sonoras sobre o que eu falo para o Senhor da Criação e o que Ele diz para mim, mas eles mesmos, os escribas? À simples menção do meu nome, saem correndo e gritando, mortos de medo.

— E você gosta mesmo que mencionem seu nome, não gosta? — eu disse. — Qualquer que seja ele — continuei falando devagar. — Ahriman, Mastema, Satanel, Satã, Lúcifer... você gosta de ser chamado por qualquer um deles, não é?

Ele ficou em silêncio.

— Belzebu — eu disse. — É o seu favorito? — Então eu disse em grego: — Senhor das Moscas.

— Eu odeio esse nome! — ele disse num lampejo de raiva. — Não aten­do a nenhum desses nomes.

— Claro que não. Que nome poderia resgatá-lo do caos que é o seu maior objetivo? — perguntei. — Demônio, diabo, adversário. — Balancei a cabeça. — Não, não atenda a nenhum. Não responda ao nome Azazel tam­bém. Nomes são a matéria dos seus sonhos, nomes e propósito e esperan­ça, dos quais você não tem nenhum.

Dei meia-volta e comecei a andar.

Ele me alcançou.

— Por que está falando comigo? — ele perguntou furioso.

— Por que você está falando comigo?

— Sinais e maravilhas — ele disse, com o sangue aflorando no rosto, ou assim queria que parecesse. — Sinais e maravilhas demais cercando você, meu pobre e maltrapilho amigo. E já conversei com você uma vez. Apareci uma vez em seus sonhos.

— Eu me lembro — eu disse. — E também trajava belas roupas na ocasião. Deve ser alguma coisa que deseja muito.

— Você não sabe nada a meu respeito. Não tem a menor idéia! Eu fui o primogênito do Senhor que você diz que é seu pai, seu mendigo miserável.

— Cuidado — eu disse. — Se ficar com muita raiva pode se desmanchar numa nuvem de fumaça.

— Não estou brincando, seu filhote de profeta — ele disse. — Não apare­ço e desapareço por capricho.

— Desapareça por capricho — eu disse. — Basta isso.

— Você sabe quem eu sou realmente? — ele perguntou e de repente ado­tou uma expressão de tristeza. — Bem, vou contar para você.

E em hebraico ele disse:

— Helel ben-Shahar.

— Sol brilhante da manhã — eu disse.

Levantei a mão direita e estalei os dedos.

— Eu o vejo caindo... assim.

Uma trovoada terrível me cercou e a areia voou por todos os lados, como se uma tempestade surgisse da plácida luz do sol e fosse me derrubar do penhasco.

Senti que era puxado para cima com velocidade espantosa e subitamente soou outro trovão, mais familiar e imenso, que me envolveu. Então parei na beirada do parapeito do Templo, do Templo de Jerusalém, sob o céu vastíssimo, acima da enorme multidão dos que entravam e saíam dele. Eu estava no pináculo. E via lá embaixo os pátios em volta.

O barulho e os cheiros da multidão subiram até as minhas narinas. Senti uma fome tão profunda, que chegava a doer. E, de todos os lados, vi os telha­dos de Jerusalém, as pessoas andando no emaranhado de ruas estreitas.

— Olhe só para tudo isso — ele disse, ao meu lado.

— Por que deveria? — perguntei. — Nada disso é real.

— Ah, não? Você não acredita? Pensa que é uma ilusão? — Você é cheio de ilusões e mentiras.

— Então jogue-se lá embaixo agora, desta altura. Jogue-se no meio daquela multidão. Vamos ver se é ilusão. E se não for? Não está escrito que “Ele enviará Seus anjos para cuidarem de você, vão guiá-lo com suas mãos para que não dê uma topada em uma pedra?”

— Ah, você foi um assassino desde o início — eu disse. — Ia adorar me ver cair lá embaixo, ver meus ossos quebrados, ver esse rosto que imita ferido e desfigurado, mas você quer mais do que isso, não é? O corpo não é nada para você, por mais que o torture com toda a crueldade. Você deseja a minha alma.

— Não, você está enganado — ele disse em voz baixa, chegando o mais perto de mim que podia. — E estamos aqui sim, eu o trouxe para cá, não com ilusões ou mentiras, mas para mostrar o lugar exato onde deve começar o seu trabalho. É você que afirma ser o Cristo. É você que outros chamam de Filho de Davi, o príncipe que vai liderar esse povo à vitória na batalha, são você e o seu povo que têm celebrado seu grande poder e eventual conquista em livros e mais livros, poemas e mais poemas. Jogue-se daqui! Faça isso e deixe os anjos segurarem-no. Deixe sua batalha começar com aquele pacto entre você e o Senhor a quem diz servir!

— Não vou testar o Senhor aqui — eu disse. — E isso também está escrito: “Você não porá tentação diante do Senhor seu Deus.”

— Então onde vai começar sua batalha? — ele perguntou como se since­ramente quisesse saber. — Como reunirá seus exércitos? Como proclamará sua mensagem para todos os judeus de toda esta terra e da próxima e da outra depois dessa? Como enviará a sua palavra às comunidades distantes de judeus por todo o Império, dizendo que é hora de pegar a espada e o escu­do sob a sua bandeira, em nome do seu Deus?

— Eu já sabia quando era criança — eu disse, olhando para ele.

— Sabia o quê?

— Que você é o Senhor das Moscas, mas está à mercê do tempo. Não sabe o que vai acontecer.

— Bem, se isso é verdade, então a metade do tempo você não é melhor do que eu, porque você também não sabe, e aqueles vermes lá embaixo não são nada, aqueles que você chama de irmãos e irmãs, porque eles não sabem nada de um instante para outro. Você, pelo menos, tem visões e planos.

Ele estendeu os braços para mim como se fosse me segurar e seu rosto ficou retorcido de maldade.

— O que você soube do tempo nesses melancólicos anos que passou em Nazaré? O que é esse tempo em que vocês moem seus músculos doloridos até virar pó, todos vocês? Por que suporta isso? Por que Ele suporta isso? Você afirma conhecer a vontade d’Ele. Diga-me, por que Ele não o faz parar?

— Parar o tempo? — perguntei em voz baixa. — A dádiva do tempo?

— A dádiva? É uma dádiva ficar perdido nesse mundo miserável d’Ele, perdido diante da impiedosa ignorância dos outros, no tempo?

— Ah, uma coisa você conhece bem, é o sofrimento — eu disse.

— Eu? Eu conheço o sofrimento? E que sofrimento eles conhecem, dia após dia, e que sofrimento você conheceu com eles? Pensa que esta vida e este tempo foram uma dádiva para aquele menino Yitra, que os moradores da sua aldeia apedrejaram? Você sabe que ele era inocente, não sabe? Ah, ele ficou tentado, mas era inocente. E o Órfão? Aquela criança nem soube por que morreu. Você sabe o que havia no coração deles quando viram as pedras sendo atiradas? O que pensa que há no coração da mãe de Yitra, onde ela chora, neste exato momento?

— E eu perguntaria, de onde vem a esperança, senão do tempo? Eu per­guntaria isso e lhe daria a resposta, mas você tomou sua decisão, total, com­pleta e para sempre, e para você não existe tempo.

— Eu devia jogá-lo daqui de cima! — ele sussurrou.

Ele ergueu as mãos para me agarrar, mas não encostou no meu pescoço.

— Eu devia esmagá-lo naquelas pedras. Não tenho receio nenhum de tentar o Senhor seu Deus. Nunca tive.

Ele recuou, por um instante furioso demais para falar. Então respirou fundo.

— Talvez você seja algum fantasma, criado pela Mente intransitável e inclemente d’Ele. Senão como poderia não sentir por Abigail quando ela ficou apavorada no meio daquelas crianças, aguardando a mesma morte que a aldeia impusera a Yitra e ao Órfão? Você sente piedade por algum deles, em algum lugar, alguma vez?

A luz mudou. Então o ar começou a se mover.

Toda a visão do Templo e da multidão ali mudou, se desfez, como cenas pintadas em seda.

Eu estava num redemoinho e estendi a mão.

De repente, estávamos de pé, juntos, o lindamente vestido e eu, no topo de uma montanha, talvez a mais alta montanha de toda a terra. Só que não era em nenhuma terra definida.

Embaixo de nós, se estendia o que parecia ser um mapa, mas não era mapa... na verdade, eram desenhos de montanhas, rios, vales e oceanos que formavam o mundo inteiro.

— Isso mesmo — ele disse ao vento suave. — O mundo. Você o vê como eu vejo. Uma linda visão.

Ele ficou um tempo como se contemplasse com prazer aquela perspec­tiva majestosa, eu olhei para o que ele afirmava estar revelando e depois para ele.

Eu o vi de perfil, o meu perfil, o cabelo escuro soprado para trás, dei­xando à mostra as maçãs do rosto, o olhar suave como o meu costumava ser, segurando a capa ao lado do corpo, com elegância e naturalidade.

— Você realmente quer ajudá-los? — perguntou ele, com o dedo em riste. — Digo de verdade... quer ajudá-los? Realmente? Ou pretende assustá-los e deixá-los em situação muito pior, sendo mais um profeta que chega vociferando, denunciando e declarando o que nunca irá acontecer?

Ele se virou para mim e seus olhos se encheram de lágrimas. Sem dúvi­da também iguais às lágrimas que ele me vira derramar pouco tempo atrás. Juntou as mãos diante do rosto e olhou para mim através do choro dramá­tico e cintilante.

— Você de fato chegou em meio a sinais e maravilhas — ele disse pensa­tivo, como se as palavras fossem arrancadas de uma alma. — E esses são tem­pos notáveis. Há judeus em todas as cidades do Império. As Escrituras do seu Deus estão em grego para que possam ler, não importa onde vivam, se estudaram ou não. O nome do seu Deus sem nome talvez seja pronuncia­do até nas fronteiras mais distantes ao norte. Quem sabe? E você, um carpinteiro imundo, sim, mas você é o Filho de Davi, é muito inteligente e fala muito bem.

— Obrigado — eu disse.

— As Escrituras falam de um que vai liderá-los para a independência e para o triunfo. E você conhece essas Escrituras. Sabia o que queriam dizer quando era criança... essas palavras... Cristo Senhor.

— Sabia — eu disse.

— Você pode ajudá-los. Pode liderar os exércitos. Pode atrair todos aqueles grupos de devotos que estão à espera para vir apoiá-lo. Ora, há judeus em Roma que levariam você e seu exército para a cidade. Com você na liderança, eles invadiriam o palácio do imperador, dariam um fim a todos os homens do Senado e da guarda pretoriana. É capaz de ver isso? Consegue imaginar o que estou tentando explicar?

— Eu vejo — eu disse. — Mas isso não irá acontecer.

— Mas será que não entende? Estou tentando deixar claro que isso pode acontecer! Você pode reuni-los, todos das cidades para onde foram, e trazê­-los da Terra Santa como um enorme redemoinho que varrerá toda a costa do mar inteiro.

— Eu entendo. Entendi desde o princípio. Não vai acontecer.

— Mas por que não vai acontecer? Você vai decepcioná-los? Vai fazer orações e discursos como seu primo com a água do rio até os joelhos, exe­cutando gestos vazios, e deixar que eles voltem a odiá-lo porque partiu seus corações?

Não respondi.

— Estou oferecendo a você uma vitória que seu povo não tem há cem anos — ele disse com voz suave. — E se não fizer isso, seu povo estará liqui­dado. O mundo os está engolindo, Yeshua bar José, como aquele velho em Caná, o tolo Hananel, disse que o mundo estava engolindo você.

Não respondi.

— Já estava tudo acabado para o seu povo muito tempo atrás — ele con­tinuou concentrado, como se estivesse de fato perdido nos próprios pensa­mentos. — Acabou tudo quando Alexandre marchou por esta terra e trouxe a língua grega com ele e o modo de vida grego. Acabou quando os roma­nos passaram por esta terra e foram para o seu Templo, provando com vio­lência brutal que não havia nada, absolutamente nada lá dentro! Se você não lhes der essa última chance, de se reunirem em torno de um poderoso líder, seu povo não morrerá de fome, nem de sede, nem pela espada ou pela lança. Ele simplesmente irá desaparecer. Já estão desaparecendo e continua­do a desaparecer, a esquecer sua língua sagrada, misturando-se através das esposas e dos jovens ambiciosos com romanos, gregos e egípcios, até nin­guém mais se lembrar da Língua dos Anjos, até ninguém mais lembrar do nome judeu. Dou-lhes o quê? Cem anos? Sem uma vitória, não levará tanto tempo. Estarão acabados. Será como se nunca tivessem existido.

— Ah, maldito e ardiloso Espírito — eu disse. — Não se lembra nada do céu? Certamente deve saber que há coisas sendo desvendadas no ventre do tempo que estão muito além dos seus sonhos, e às vezes até além dos meus.

— O quê? O que está sendo desvendado? — ele perguntou. — O mundo está maior a cada ano que passa e vocês diminuem, vocês, o povo do Único Deus Verdadeiro, o povo do Deus sem nome que não admitia nenhum deus antes d’Ele. Vocês não os converteram aos seus costumes, e eles estão comendo-os vivos. Estou oferecendo a você a única coisa que pode salvá-­los, não vê? E quando esse mapa que os romanos desenharam para vocês estiver sob o seu controle, então poderão ensinar todas as Leis que Ele lhes deu no Monte Sagrado. Estou disposto a pôr isso nas suas mãos!

— Você? Você quer me ajudar? Ajudar a todos nós? Por quê?

— Preste atenção, tolo. Estou perdendo a paciência. Nada aqui é feito sem mim. Nada. Nem a mais simples vitória é conquistada se eu não fizer parte dela. E este é o meu mundo, e essas são todas as minhas nações. Quer se ajoelhar e me adorar?

O rosto dele ficou todo enrugado. As lágrimas escorriam sem parar.

Era assim que eu ficava quando estava triste? Quando chorava?

Ele estremeceu como se aquele vento que ele mesmo criara provocas­se frio. E olhou para o mundo inteiro da forma com que o via, com um olhar desesperado e pesaroso.

Por um momento, me esqueci dele.

Esqueci completamente que ele estava ali. Olhei para longe e vi uma coisa, algo que tinha visto antes, no estúdio de Hananel em Caná, algo que via com muita nitidez agora. Altares caindo, milhares e milhares de altares desmoronando, como se um tremor da própria terra os derrubasse, e sobre eles caíam seus ídolos, mármore, bronze e ouro se espatifando, a poeira subindo e os fragmentos se espalhando. E parecia que o barulho reverbera­va sobre o mundo que ele apresentou para mim, sobre o mapa que proje­tou para mim, mas o que eu via era isso, e isso era o mundo. Todos os alta­res ruindo.

Cristo Senhor.

— O que foi? — ele quis saber. — O que você disse?

Virei-me e olhei para ele, despertando daquela visão terrível, daquela imensa onda de destruição. Eu o vi novamente, vívido, com sua roupa ele­gante, a pele também fina e bem tratada, como as vestes caras.

— Essas nações não são suas — eu disse. — Os reinos deste mundo não são seus. Nunca foram seus.

— É claro que são meus — ele disse.

Foi quase um sibilo.

— Sou eu que governo este mundo e sempre governei. Eu sou seu prín­cipe.

— Não — eu disse. — Nada disso pertence a você. Nunca pertenceu.

— Adore a mim — ele disse gentilmente, sedutor. — E lhe mostrarei que é meu. Eu lhe darei a vitória que seus profetas cantaram.

— É o Senhor Deus do céu que eu venero, e a ninguém mais — eu disse. — Você sabe disso, e sabe disso com cada mentira que diz. E você, você não governa nada, e nunca governou. — Apontei. — Olhe lá para baixo, para esse mapa que considera tão valioso. Pense nos milhares e milhares de pessoas que acordam todos os dias e vão dormir sem jamais pensar em maldade, sem praticar o mal, cujos corações se voltam para as esposas, para os mari­dos, para pais e mães, para os filhos, para a colheita, para a chuva da prima­vera, para o novo vinho e a nova lua. Pense neles em todas as terras e em todas as línguas, pense naqueles que estão sedentos pela Palavra de Deus até quando não há ninguém para dar isso a eles, pense como eles buscam isso, como retornam da dor, do sofrimento e da injustiça, por mais que você queira impedir!

— Mentiroso! — ele disse, cuspindo a palavra.

— Olhe para eles, use seus poderosos olhos para vê-los por toda parte, à sua volta — eu disse. — Use seus ouvidos poderosos para escutar a risada de alegria deles, as canções deles. Olhe bem para longe e para todos os lados e veja que eles se reúnem para celebrar as simples dádivas da vida, das profun­dezas da selva até as alturas cobertas de neve. O que o faz pensar que gover­na esse povo? O que, que um pode falhar, outro tropeçar, que alguém con­fuso deixe de amar apesar de ter se esforçado para isso, ou que um dos seus servos malignos seja capaz de instigar as massas por um mês de revolta e ruína? Príncipe deste mundo?

“Eu poderia rir de você, se você não fosse tão execrável. Você é o príncipe da Mentira. E a mentira é esta: que você e o Senhor Deus são iguais, presos em combate um com o outro. Isso nunca existiu!”

Ele estava quase petrificado de tanta fúria.

— Seu profetazinho de aldeia miserável e estúpido! — ele disse. — Vão rir de você em Nazaré.

— É o Senhor Deus que governa — eu disse —, e Ele sempre governou. Você não é nada, não tem nada e não governa nada. Nem mesmo seus subalternos partilham com você o seu vazio e a sua fúria.

Ele ficou sem fala, com o rosto vermelho.

— Ah, sim, você os tem, seus comandados. Eu os vi. E tem seus seguido­res, aquelas pobres almas amaldiçoadas que você espreme com seu punho angustiado.Tem até seus altares. Mas como são pálidos seus parcos triunfos neste vasto mundo cheio de vida, do trigo dançando ao vento e do brilho da luz do sol! São grotescas suas tentativas de aproveitar cada pequena dis­córdia, de erguer seu estandarte mesquinho sobre todas as disputas horren­das ou as redes tênues de avareza e despeito... patética a única coisa que realmente possui: suas mentiras! Suas abomináveis mentiras! E sempre pro­cura levar os homens ao desespero, quer sempre convencê-los, com sua inveja e ganância, de que seu arquiinimigo, o Senhor Deus, é inimigo deles, que Ele está fora do alcance, longe da dor que sentem, distante de suas carências. Você mente! Você sempre mentiu! Se dominasse este mundo, não ofereceria nem uma parte dele. Não poderia. Não haveria mundo para compartilhar, porque você o destruiria. Você é a própria mentira! E nada além disso.

— Pare! Ordeno que você pare! — ele berrou e pôs as mãos sobre as orelhas.

— Eu é que vim para fazer você parar! — retruquei. — Eu vim para reve­lar que o seu desespero é uma fraude! Estou aqui para dizer para cada um e para todos que você não tem poder, e nunca teve, que, no grande plano das coisas, você não passa de um bandoleiro imundo, um bandido marginaliza­do, um carniceiro que com sua inveja impotente rodeia os grupos de homens e mulheres! E vou destruir seu governo fantasioso, como destruo você... como o expulso, pisoteio e apago... e não com exércitos violentos em banhos de sangue, não com a fumaça e o terror do ódio que tanto deseja, não com espadas e lanças em corpos partidos. Farei isso de um modo que você não pode imaginar, farei isso nas famílias, nos acampamentos, nas aldeias, nos vilarejos e nas cidades. Farei nas mesas de banquetes, nos meno­res quartos e nas maiores mansões. Farei isso nos corações, um por um. E farei nas almas, uma por uma. Sim, o mundo está preparado. Sim, o mapa está pronto. Sim, as Escrituras são divulgadas na linguagem comum do mundo. Sim. E assim sigo meu caminho para fazer isso, e você lutou aqui mais uma vez, e para sempre, em vão.

Saí de perto dele e fui andando, meus pés encontraram terra firme. Veio um vento muito forte e me cegou por um instante, mas então vi a encosta que conhecia aparecer, a encosta por onde caminhava quando ele me abor­dou e mais adiante vi, pela primeira vez, ao longe, os riscos verdes líquidos que marcavam o progresso do rio.

— Você se arrependerá do dia em que me desprezou! — ele gritou atrás de mim.

Eu estava nauseado. A fome devorava minhas entranhas. Estava tonto.

Olhei para trás, para ele. Ele mantinha a ilusão, as roupas lindas reuni­das em graciosas dobras, e as apontava para mim.

— Olhe bem para essas roupas macias! — ele berrou, com a boca tremen­do como criança. — Nunca mais vai se ver vestido dessa maneira.

Ele gemeu. Curvou-se de dor ao gemer. Apontou o punho cerrado para mim.

Dei risada e continuei andando.

Ele apareceu de repente ao meu lado.

— Você morrerá numa cruz romana se tentar fazer isso sem mim! — ele disse.

Parei para encará-lo.

Ele deu um passo para trás e então foi jogado a uma grande distância, como se empurrado por uma força invisível. Recuperou o equilíbrio com esforço.

— Para trás, Satã — eu disse. — Para trás!

E com uma forte lufada de vento e a areia subindo, eu o ouvi gritar e depois o grito se transformou num uivo lancinante.

E a tempestade de areia chegou para valer. Os uivos dele faziam parte dela, eram parte do vento implacável.

Senti que estava caindo e o penhasco surgiu na minha frente, a areia arranhava minhas pernas, minhas mãos e meu rosto.

Eu me virei e fui caindo, cada vez mais rápido, rolando, protegendo a cabeça com os braços. Fui caindo, caindo.

Meus ouvidos estavam cheios de vento, cheios daqueles uivos distantes, e então surgiu suavemente o mesmo som que tinha ouvido no rio, aquele leve bater de asas.

Ouvi o esvoaçar, o adejar, o abafado bater de asas. Senti em todo o corpo o toque suave de mãos, como se fossem mãos, infinitas mãos gentis, um toque ainda mais suave de lábios, lábios encostando no meu rosto, na testa, nas pálpebras ressecadas. Parecia que estava perdido no adorável e levíssimo som de uma música que tinha substituído o vento, sem um som verdadeiro. E ela me carregou docemente para baixo. Ela me abraçou. Cuidou de mim.

— Não — eu disse. — Não.

E agora o canto era choro. Um choro puro e triste, mas irresistível de tão doce. Tinha a imensidão do júbilo. E aqueles dedos macios vieram com mais urgência, alisando o meu rosto e meus braços queimados.

— Não — eu disse. — Eu farei isso. Deixem-me agora. Eu farei, como já disse.

Escapei deles, ou então eles se dispersaram sem emitir um som, como haviam chegado, subiram e se afastaram em todas as direções, me libertando.

Sozinho outra vez.

Estava no fundo do vale.

Fui caminhando. A sandália do pé esquerdo se soltou. Olhei para ela. Quase caí. Parei para pegar o que restava da sandália, aquele pedaço de couro. E continuei andando, sem parar, na brisa quente.

 

AGITADO, ANDEI PARA LÁ, PARA CÁ, inclinado pelo vento, depois me endireitava, fazia força para prosseguir.

Surgiram formas no horizonte tremulante.

Lá deslizava o que parecia uma pequena embarcação e, em volta dela, seres flutuando nas ondas de calor que eram como um mar.

Mas não era um barco e os seres eram homens a cavalo.

Ao vento suave, ouvi o cavalo que se aproximava. Eu o vi chegando, cada vez mais nítido.

Andei na direção dele. Ouvi um barulho indistinto e terrível mais ao longe, depois do cavalo, na imagem indefinida de palmeiras verdes que indicavam o lugar distante que prometia água.

O cavaleiro galopou até onde eu estava.

— Homem santo — ele chamou.

Ele tentou controlar o animal. Passou dançando por mim e depois vol­tou. O homem ofereceu um odre com água.

— Beba, homem santo — ele disse. — Tome.

Estendi a mão, mas o odre subiu, desceu, se afastou, como se estivesse pendurado numa corda. Continuei andando.

Então o homem desmontou do cavalo. Roupas caras. Brilho de anéis.

— Homem santo — ele disse, pôs uma mão no meu ombro e aproximou o odre com a outra.

Ele apertou o odre, a água jorrou na minha boca. Caiu na minha lín­gua fresca e deliciosa. Encheu minha boca. Escorreu pelos meus lábios rachados e no meu peito que ardia.

Tentei segurar com as duas mãos. Ele me sustentou para que eu me fir­masse.

— Não beba demais, meu amigo — ele disse. — Não beba demais, porque está morto de fome.

Ele ergueu o odre, derramou a água na minha cabeça e eu fiquei de olhos fechados, sentindo o líquido lavando meus olhos, meu rosto, por den­tro da minha roupa esfarrapada, aplacando o calor desconfortável.

Então ouvi um uivo... o uivo dele!

Abri os olhos e olhei para a frente. Havia gotas de água nos meus cílios. Não era um barco que eu tinha visto, apenas a estrutura de uma magnífica tenda ao longe.

E veio aquele uivo novamente. Não ouse!

— Meu amigo, perdoe — disse o homem ao meu lado. — Esse som que está ouvindo é a minha irmã. Perdoe minha irmã, homem santo. Vamos levá-la agora para o Templo, pela última vez, para ver se podem ajudá-la.

O uivo soou novamente e se transformou numa gargalhada imensa e rouca.

Um sussurro chegou aos meus ouvidos. Você vai pisar cm mim? Corações, um por um? Almas, uma por uma?

Mais uma vez, ouvi o uivo, que agora se convertia em gemidos tão lancinantes e terríveis, que pareciam o lamento de uma multidão, em vez de um só.

— Venha comigo, venha se sentar conosco. Coma e beba — disse o jovem.

— Leve-me até ela... sua irmã.

Fui andando aos tropeços, cambaleando, avançando sem contar com a tentativa dele de me equilibrar.

A mulher estava presa na liteira. Ao lado da tenda, a liteira, com teto e cortinas, balançava como se o chão tremesse embaixo dela.

Os berros agudos e os uivos cortavam o ar.

Irmãos mais jovens se reuniram ao irmão mais velho que tinha me dado a água.

— Eu o conheço — disse um deles. — Você é Yeshua bar José, o carpintei­ro. Você estava no rio.

— E eu também o conheço — eu disse. — Ravid bar Oded de Magdala.

Aproximei-me da liteira.

Parecia impensável que um ser humano pudesse produzir aqueles sons. Olhei para a cortina franjada e fechada da liteira.

— Homem santo, se puder ajudá-la...

Era uma mulher que falava. Ela se aproximou com duas mulheres mais jovens. Mais adiante, estavam os carregadores da liteira, escravos musculosos, de braços cruzados, observando, e, junto a eles, os servos com os cavalos amarrados.

— Meu senhor — disse a mulher —, eu imploro, ela não está purificada.

Passei por ela. Fiquei diante da enorme liteira com dossel e abri a cor­tina.

Ela estava deitada num monte de almofadas, uma mulher na plenitude da vida, seu corpo muito magro coberto com um manto de linho, o cabe­lo castanho encharcado de suor, emaranhado como um grande ninho embaixo dela. O fedor de urina era insuportável.

Presa do pescoço aos pés com tiras de couro, com os braços abertos em cruz, ela se contorcia e se agitava com fúria, cortava os lábios com os den­tes. Cuspiu o sangue no meu rosto.

Senti bater no nariz e na face. Depois veio o escarro, saído do fundo da garganta e lançado em mim.

— Homem santo — disse a mulher ao meu lado. — Ela está assim há sete anos. E digo que nunca houve mulher mais virtuosa em Magdala.

— Eu sei — eu disse. — Maria, mãe de dois filhos, que se perderam com o marido dela no mar.

A mulher sufocou um grito de espanto e balançou a cabeça, concor­dando.

— Homem santo — disse o irmão Ravid. — Pode ajudar nossa irmã?

A mulher na cama teve uma convulsão e seu grito reverberou no ar, depois veio o uivo, exatamente o uivo que eu tinha ouvido na montanha. O uivo dele. Que explodiu mais uma vez em uma gargalhada.

Você pensa que pode tomá-la de mim? Pensa que depois de sete anos pode fazer o que nenhum Sacerdote do Templo jamais conseguiu fazer? Tolo. Eles cuspirão em você por suas palhaçadas, cuspirão como ela cospe.

Num súbito espasmo de fúria, ela se levantou e arrebentou as correias que prendiam seus braços. Os irmãos e a mulher chegaram para trás.

Ela era ossos, músculos e uma fúria fria.

Elevando-se o mais alto que podia, arrancando a tira do pescoço de estalo, ela sibilou para mim.

— Filho de Davi, o que veio fazer conosco? Afaste-se de nós. Deixe-nos.

Os irmãos estavam horrorizados. As mulheres se juntaram.

— Nunca, meu senhor, ela nunca falou em todos esses anos. Meu senhor, o maligno vai nos matar.

As tiras em volta dos seios dela se romperam. A liteira, apesar de ser muito grande, balançou no chão, e de repente, com um movimento violen­to, ela arrebentou as tiras que restavam, que prendiam suas pernas juntas. Ela se ergueu, ficou de cócoras e pulou, jogando para trás o dossel da liteira. Ela saiu rapidamente para o ar livre, caiu na areia e se levantou com a agilidade de uma dançarina.

E soltou um grito exultante. Rodopiou e aterrorizou os irmãos e as mulheres.

O irmão mais velho, o que tinha me oferecido água, correu para segurá-la. Mas o mais novo gritou.

— Micha, deixe que ele fale com ela.

Ela balançou, dando risada, grunhindo como um animal, então quase caiu, as pernas se dobraram, e, quando avançou para mim, revelou os braços cobertos de marcas e lanhos. Por um momento, seu rosto pareceu o rosto de uma mulher, mas voltou a ser a cara de um animal.

— Yeshua de Nazaré! — ela berrou. — Você quer nos destruir?

Ela se abaixou e começou a jogar punhados de areia em mim.

— Não falem comigo, espíritos imundos — respondi e cheguei mais perto. — Eu os expulso em nome do Altíssimo, ordeno que deixem a minha serva Maria. Saiam e vão embora deste lugar. Deixem-na.

Ela arqueou as costas ao se levantar. Mas outro berro lançou-a para a frente, como se fosse uma corrente ancorada dentro dela.

Ordenei mais uma vez:

— Em nome do céu, deixem esta mulher!

Ela caiu ajoelhada, com a boca molhada e tremendo, ofegante. Pôs as mãos na barriga como se fosse explodir. O corpo todo tremia e, quando ela levantou o punho cerrado para mim, foi como se outra mão segurasse a dela, que ela usava toda a sua força na luta para fazer outro gesto.

— Filho de Deus — ela berrou. — Eu o amaldiçôo.

— Saiam dela, eu digo, todos vocês. Eu os expulso!

Ela se contorceu, para um lado, para outro, gritando sem parar.

— Filho de Deus, Filho de Deus — dizia ela o tempo todo.

Seu corpo mergulhou para a frente e ela bateu com a testa na areia. O cabelo se soltou e revelou a nuca. Os sons que saíam dela estavam mais fra­cos, angustiados, suplicantes.

— Fora, todos vocês, um por um, de um a sete! — exclamei.

Cheguei mais perto e fiquei ali de pé sobre ela. Seu cabelo cobriu meus pés. Ela estendeu a mão como se estivesse cega, procurando um apoio.

— Pelo poder do Altíssimo, eu digo, me obedeçam! Deixem esta filha de Deus como era antes de a possuírem!

Ela levantou a cabeça. Estendeu as mãos de novo, mas dessa vez para poder ficar de pé, e ficou, de um tranco repentino, como se alguém a puxasse pelo cabelo.

— Para fora, de um a sete, eu os expulso agora!

Mais um grito varou o ar.

E então ela ficou imóvel.

Ela estremeceu, um tremor demorado, natural e cheio de dor. E ela lentamente se sentou na areia, se deitou de costas com a cabeça de lado, os olhos semicerrados.

Silêncio.

As mulheres começaram a chorar desesperadas, depois a implorar com orações frenéticas. Se ela estava morta, era a vontade de Deus. A vontade de Deus. A vontade de Deus. Eles se aproximaram temerosos.

Quando Ravid e Micha chegaram ao meu lado, levantei a mão.

Com a voz suave, eu disse:

— Maria.

Apenas quietude, o gemido do vento, o adejar das folhas das palmeiras, o suave farfalhar da cortina de seda da liteira.

— Maria — repeti. — Vire-se para mim. Olhe para mim.

Lentamente ela fez o que eu pedi.

— O Senhor misericordioso — disse Ravid em voz baixa. — Meu Senhor misericordioso, esta é nossa irmã.

Ela olhou para todos em volta como alguém que desperta de um sonho, um pouco atordoada e pensativa.

Eu me ajoelhei e estendi os braços. Ela me recebeu. Puxei-a para perto de mim. Ela não emitiu nenhum som, mas agarrou-se a mim quando bei­jei sua testa.

— Senhor — ela disse. — Meu Senhor.

O choro rouco de Ravid era o único ruído na quietude que nos cer­cava.

Adormeci.

Eu os vi, senti suas mãos, mas não opus resistência.

Os escravos me lavaram com luxuosa abundância de água. Senti quan­do tiraram o velho manto, quando derramaram água no meu cabelo, que escorreu pelas costas e sobre os ombros.

De vez em quando, meus olhos rolavam para cima. Vi o linho dourado da tenda batendo ao vento. E continuaram me lavando.

— Tome um pouco de sopa, meu senhor — disse a mulher ao meu lado. — Só um pouco, porque estava morto de fome.

Tomei a sopa.

— Chega. Agora durma.

E dormi embaixo da tenda.

O deserto esfriou, mas não senti falta de mantos e cobertores. Sopa outra vez, tome isso, depois durma. Sopa, só um pouco. E depois as vozes deles distantes, agitadas, gentis.

Amanheceu.

Vi o amanhecer com um olho só, do travesseiro de seda. Vi a claridade chegar e empurrar a escuridão para cima, sempre para cima, até sumir e o mundo inteiro ficar cheio de luz. A sombra da tenda era fresca e acolhedora.

Ravid apareceu diante de mim.

— Meu senhor, minha irmã pediu permissão para vir até aqui. Pedimos que venha conosco para a nossa casa, que nos deixe cuidar do senhor até ficar bom, que fique conosco, sob o nosso teto em Magdala.

Sentei-me. Eu trajava roupas de linho, com bordado de folhas e flores nas bordas. E um manto macio, alvejado, com bordas elaboradas e pesadas.

Sorri.

— Meu senhor, o que podemos fazer para ajudá-lo? O senhor nos devolveu nossa amada irmã.

Estendi os braços para Ravid.

Ele se ajoelhou e me abraçou.

— Meu senhor — ele disse. — Ela se lembrou de tudo. Sabe que os filhos estão mortos, que seu marido está morto. Ela chorou por eles e vai chorar outras vezes, mas é a nossa irmã.

Ele refez o convite. Chegou Micha e ele também insistiu.

— O senhor está fraco, apesar de os demônios obedecerem às suas ordens, está fraco — disse o irmão mais velho. — Precisa comer carne, beber e descansar. O senhor fez essa coisa maravilhosa. Deixe-nos ajudá-lo a se recuperar.

O outro, Micha, se ajoelhou. Segurava um par de sandálias novas, san­dálias com fivelas brilhantes. E ele fez o que tenho certeza de que nunca tinha feito em toda a sua vida de homem. Ele afivelou a sandália nos meus pés.

As mulheres estavam separadas deles. No meio delas, Maria.

Ela se aproximou passo a passo, como se esperasse que eu a proibisse a qualquer momento. Parou a mais ou menos um metro de mim. O sol nascente estava atrás dela. Ela tinha tomado banho e vestido roupas limpas de linho, o cabelo estava preso sob o véu, o rosto tranquilo apesar dos arra­nhões e manchas.

— E o Senhor me abençoou, me perdoou e me trouxe de volta do poder da escuridão — ela disse.

— Amém — eu disse.

— O que posso fazer para retribuir?

— Vá para o Templo — eu disse. — Era para lá que estava indo. Você me verá outra vez. Saberá quando eu precisar da sua ajuda. Mas, no momento, eu preciso ir. Devo voltar ao rio.

Ela não sabia o que isso significava, mas os irmãos sabiam. Eles me aju­daram a ficar de pé.

— Maria — eu disse, estendendo a mão para ela. — Olhe. É um mundo novo. Você vê?

Ela sorriu.

— Eu vejo, rabino — ela disse.

— Abrace seus irmãos — eu disse. — E, quando avistar os lindos jardins de Jericó, pare e admire os jardins à sua volta.

— Amém, rabino — ela disse.

Os servos me deram uma trouxa bem amarrada com minhas roupas arruinadas, minhas sandálias destruídas. E fizeram um cajado para mim.

— Para onde vai? — perguntou Ravid.

— Vou ver meu parente João bar Zacarias no rio... ao norte. Preciso encontrá-lo.

— Vá depressa e tenha cuidado, meu senhor — disse Ravid. — Ele deixou o rei furioso. Dizem que os dias dele estão contados.

Fiz que sim com a cabeça. Abracei um por um, todos os presentes, os irmãos, as mulheres, os escravos que me banharam. Acenei para me despe­dir dos carregadores cansados que estavam à sombra das palmeiras.

Eles ofereceram ouro, alimentos, vinho para a viagem. Não aceitei nada, só um copo de água, deliciosa.

Olhei para a minha nova túnica e o esplêndido manto. Olhei para as sandálias bem-feitas. E sorri.

— Uma roupa tão macia — sussurrei. — Nunca me vi vestido dessa maneira.

O vento seco do deserto sibilou.

— Não é nada, meu senhor, é o mínimo, o mínimo dos mínimos — disse Ravid, os outros disseram a mesma coisa e ele repetiu.

— Vocês foram bons demais comigo — eu disse. — Vocês me vestiram como eu devia estar vestido, porque estou a caminho de um casamento.

— Meu senhor, coma devagar e bem pouco de cada vez — disse a mulher que tinha me alimentado. — O senhor está muito magro e febril.

Beijei os dedos dela e concordei.

E parti para o norte.

 

COMO ANTES, o clima de júbilo dominava os que estavam no rio, envol­vendo os peregrinos que chegavam e partiam. As multidões eram ainda maiores do que antes e o número de soldados havia aumentado muito, eram grupos de romanos aqui e ali, muitos soldados do rei observando desconfiados, mas parecia que ninguém os notava.

O Jordão fluía com rapidez e estava cheio. Estávamos um pouco ao sul do mar.

Vi meu primo João sentado numa pedra perto do rio, observando seus discípulos que batizavam os homens e mulheres ajoelhados.

De repente, João levantou a cabeça, como se despertasse de suas diva­gações ao compreender alguma coisa.

Ele olhou para mim, do outro lado do rio, quando cheguei caminhan­do devagar, passando pelo meio da multidão, olhando fixamente para ele.

João se levantou e apontou o dedo para mim.

— O Cordeiro de Deus! — ele gritou. — O Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo.

Foi como o som de uma trompa que fez virar todas as cabeças.

Meu primo mais novo, João bar Zebedeu, deu para João a concha que estava usando.

Olhei nos olhos de João bar Zacarias um tempo. Depois, lenta e deli­beradamente, olhei para as massas de soldados à esquerda e à direita. João levantou a cabeça, fez que sim discretamente. Retribuí com o mesmo sinal.

Senti um arrepio. Fez-se uma escuridão como se as montanhas se elevas­sem e bloqueassem o sol. O rio cintilante não existia mais. O rosto radiante de João não existia mais. Meu coração ficou frio e apertado. Mas depois se aqueceu e senti que batia. O sol refletiu na água de novo e incendiou o rio. João bar Zebedeu e outro discípulo estavam vindo na minha direção.

A multidão reverberava com suas vozes habituais, alegres e animadas.

— Onde está hospedado, rabino? — perguntou João bar Zebedeu. — Sou seu parente.

— Eu sei quem você é — eu disse. — Venha e veja. Eu vou para Cafarnaum. Vou me hospedar na casa do coletor de impostos.

Continuei andando. Meu jovem primo me cobriu de perguntas.

— Meu senhor, o que quer que façamos? Meu senhor, somos seus ser­vos. Diga-nos, Senhor, o que quer de nós.

Respondi a todas essas perguntas com uma risada suave. Íamos levar horas para chegar a Cafarnaum.

Minha pequena irmã Salomé vivia em Cafarnaum. Ela era viúva, tinha um filho pequeno e morava com a família do marido, que eram nossos parentes e de Zebedeu. E eu queria vê-la.

Mas quando chegamos a Cafarnaum, André bar Jonas, que tinha vindo comigo e com João desde o Jordão, foi dizer para o irmão dele, Simão, que tinham verdadeiramente encontrado o Messias. Ele foi até a beira do mar e eu o segui. Vi o irmão dele Simão trazendo seu barco e com ele estava Zebedeu, pai de João, e o irmão de João, Tiago, também estava no barco com ele.

Esses homens ficaram assustados com as palavras excitadas de André.

Olharam para mim atônitos, em silêncio.

Esperei.

Então disse para Tiago e Simão virem comigo.

Eles vieram na mesma hora, e Simão implorou, pediu por favor, para eu ir até sua casa porque a sogra dele estava doente, tinha febre. O relato de que eu tinha expulsado os demônios da famosa possuída de Magdala já tinha chegado ao mar. Será que eu poderia curar essa mulher?

Entrei na casa e a vi deitada, já tão doente, que não se importava se seus filhos faziam barulho perto dela. Eles falaram de um homem santo e de palavras muito importantes ditas à beira do rio Jordão.

Segurei a mão dela. Ela virou-se e olhou para mim, no início irritada de alguém a estar incomodando daquele jeito. Então ela se sentou.

— Quem disse que eu estava doente? Quem disse que eu devia ficar nesta cama? — ela perguntou.

E, no mesmo instante, ela se levantou e começou a correr pela casa, serviu sopa em potes para nós, bateu palmas para sua serva nos trazer água fresca.

— Olhe só para você, como está magro — ela disse para mim. — Ora, pen­sei tê-lo reconhecido quando entrou aqui, pensei já tê-lo visto em algum lugar, mas nunca vi ninguém como você. — Ela pôs o pote com sopa na minha mão. — Tome um pouco disso, senão vai ficar doente. Vai acabar engasgando. — Ela olhou zangada para o genro. — Você disse que eu estava doente?

Ele levantou as mãos e balançou a cabeça, maravilhado.

— Simão — eu disse quando nos sentamos. — Tenho um novo nome para você. Pedro é o seu nome de hoje em diante.

Ele estava atônito. E continuava mudo, sem conseguir falar. Só balança­va a cabeça.

João se sentou imediatamente ao meu lado.

— Vai dar novos nomes para nós, rabino? — perguntou ele.

Eu sorri.

— Você é ansioso demais, e sabe disso. Tenha paciência. Por enquanto, vou chamar você e seu irmão de Filhos do Trovão.

Segui o conselho da velha mulher. Tomei apenas um pouco da sopa. Apesar de muito faminto, meu corpo parecia não querer mais do que isso.

Sentamo-nos todos no chão, de pernas cruzadas como de hábito. De vez em quando, eu esquecia completamente que estava usando roupas finas, que já estavam empoeiradas. Olhei para Simão, que disse que precisava vol­tar para a pesca.

Balancei a cabeça.

— Não, agora você vai ser pescador de homens — eu disse. — Você virá comigo. Por que acha que lhe dei um novo nome? Nada na sua vida será o mesmo a partir de agora. Não espere que seja.

Ele ficou muito espantado, mas seu irmão meneou a cabeça vigorosa­mente para ele. Eu me deitei e cochilei enquanto conversavam sobre todas essas coisas. De vez em quando, eu os observava, como se não estivessem me vendo. De fato, não podiam adivinhar o que eu estava vendo. Era como abrir um livro e ler o seu conteúdo para saber quanto eu quisesse sobre cada um deles.

Uma multidão estava se formando na porta da casa.

Minha irmã pequena Salomé estava lá, a mais querida e mais próxima de mim de todos os meus parentes. Era uma dor que me incomodava o fato de ela ter ido morar em Cafarnaum.

Ainda estava meio dormindo quando o beijo dela me acordou. O olhar dela era profundo e cheio de vida, e falava de uma intimidade que eu tal­vez não compartilhasse com mais ninguém neste mundo, exceto minha mãe. Até a forma do braço dela entre os meus dedos, o toque do ombro dela no meu, essas coisas trouxeram de volta cascatas de lembranças e uma ternura indescritível.

Fiquei muito tempo apenas abraçado com ela. Quando ela se afastou e olhou para mim, foi de um jeito completamente diferente. Ela também pareceu perdida por alguns segundos, com a associação de lembranças. Então compreendi que ela estava memorizando como me via agora, as mudanças na minha expressão, no meu comportamento.

O filho dela se aproximou. Ele tinha cabelo crespo e um ar de curiosidade — a imagem do meu tio Cleofas, pai da pequena Salomé —, embora fosse apenas um menino de seis anos.

— Pequeno Tobias! — Dei-lhe um beijo.

Tinha visto o menino na última peregrinação, mas só rapidamente em Jerusalém, e parecia ter sido um século atrás.

— Tio — ele disse. — O mundo inteiro está falando de você!

Os olhos dele tinham um quê de risonhos, muito parecidos com os do avô.

— Agora fique quieto — disse minha amada irmã. — Yeshua, olhe só para você! Está que é só pele e osso. Seu rosto brilha, mas você deve estar com febre. Venha agora para casa conosco e deixe-me cuidar de você, até estar recuperado para continuar.

— O quê, e não estar aqui para o casamento de Abigail daqui a três dias? Dei risada. — Você pensa que não estarei aqui para isso? Deve saber de toda a história...

— Eu sei que nunca o vi como está agora — ela disse. — Se não é febre, então o que é, irmão? Venha ficar comigo.

— Estou com fome, Salomé. Mas ouça. Vou partir numa missão. E leva­rei esses homens comigo, esses homens que vieram para cá comigo... — hesi­tei e depois continuei: — Só tenho uma noite para passar aqui, depois parti­mos para o casamento, e vou procurar o coletor de impostos. Jantarei com ele esta noite, sob o seu teto. Isso não pode esperar.

— O coletor de impostos? — João bar Zebedeu ficou logo agitado. — Não pode estar se referindo a Mateus, o coletor de impostos que trabalha aqui no posto aduaneiro. Rabino, ele é um ladrão. Não pode jantar com ele.

— Ele é um ladrão até agora? — perguntei. — Ele não confessou seus pecados e entrou no rio?

— Ele está no posto da aduana, trabalhando com afinco como sempre trabalhou — disse Simão. — Senhor, jante comigo, embaixo do meu teto. Jante com sua irmã. Jantaremos juntos onde quiser, acamparemos na beira do mar, comeremos o que pesquei. Mas não com Mateus, o coletor de impostos. Todos vão ver e saber disso.

— Você não deve isso a ele, Yeshua — disse Salomé. — Quer fazer isso por­que nosso querido José morreu na tenda do coletor de impostos. Mas não precisa fazer isso. Ninguém vai exigir isso de você.

— Eu exijo de mim — eu disse gentilmente e beijei-a de novo.

Ela encostou a cabeça no meu peito.

— Yeshua, chegaram tantas cartas de Nazaré... Recebemos notícias de Jerusalém. Você tem sido observado com muita expectativa, e com toda a razão.

— Preste atenção — eu disse.

Não queria me separar dela.

— Vá agora e pergunte ao seu sogro se você pode vir conosco para Na­zaré comemorar o casamento de Rubem e Abigail. Você e este pequenino, Tobias, que ainda não conhece a casa do avô, a nossa casa. Seu sogro vai per­mitir. Arrume sua roupa de casamento que vamos pegá-los ao amanhecer.

Ela ia protestar, dizer o inevitável, que o sogro precisava dela, que ele jamais permitiria, mas essas palavras morreram em seus lábios. Ela ficou muito animada, deu-me um último beijo, pegou o pequeno Tobias e saiu correndo com ele.

Os outros me seguiram.

Quando saímos da casa, havia um jovem que olhava aflito para mim. Ele era forte e estava coberto de terra do trabalho que fazia, mas tinha man­chas de tinta nos dedos.

— Estão falando de você — ele disse — em toda a costa. Estão dizendo que João Batista apontou para você.

— Seu nome é grego, Filipe — eu disse. — Gosto desse nome. Gosto de tudo que vejo em você. Venha comigo, siga-me.

Filipe levou um susto. Ele fez que ia segurar minha mão, mas esperou que eu deixasse.

— Vou chamar um amigo meu que está aqui na cidade comigo.

Pensei um pouco. Vi o amigo dele mentalmente. Sabia que era Nata­nael de Caná, o aluno de Hananel que eu tinha visto na casa dele quando fui lhe falar. Num pátio ali perto, atrás de muros caiados, o jovem guardava seus pergaminhos, papiros e roupas para a viagem de volta para casa, para Caná. Tinha estado esse tempo todo trabalhando perto do mar, e, de vez em quando, observava João Batista de longe. Sua cabeça pesava de tantas preo­cupações. Achava aquela viagem para casa um aborrecimento, mas não podia deixar de ir ao casamento. Não imaginava que Filipe estivesse cor­rendo para chamá-lo enquanto empacotava suas coisas.

Fui caminhando pela rua e fiquei maravilhado com a quantidade de gente que nos seguia, as crianças que vinham nos ver, os adultos que se esforçavam para controlá-las, apesar de ficarem cochichando e apontando. Ouvi dizerem meu nome. Muitas e muitas vezes pronunciaram meu nome.

Natanael de Caná nos alcançou logo antes de chegarmos à estrada movimentada, bem na frente do posto da aduana, onde o vaivém dos via­jantes reduziu o ritmo da agitação e todos se reuniram num só grupo.

Agora havia uma grande multidão em volta de nós. As pessoas chega­vam para me ver e dizer, sim, este é o homem que viram no rio, ah, sim, este é o homem que expulsou os demônios de Maria Madalena, a Maria de Magdala. Outros diziam não, não é ele. Alguns declaravam que Batista ia ser preso por atrair aquela multidão para lá e outros insistiam que era porque Batista tinha provocado o rei.

Parei e abaixei a cabeça. Eu podia ouvir cada palavra que diziam, ouvia tudo que diziam, até as palavras que ainda não tinham sido proferidas. Deixei que tudo se reduzisse ao silêncio, ao vento doce que chegava do mar distante e cintilante.

Só os sons mais próximos retornaram — Simão Pedro estava contando que eu havia curado sua sogra com um simples toque na mão dela.

Virei-me de frente para a brisa úmida. Era deliciosa, leve, cheia do per­fume da água. Meu corpo ressecado bebia essa água do ar. Sentia uma fome imensa.

Longe, atrás de nós, sabia que Filipe e Natanael discutiam alguma coisa e mais uma vez me permiti escutar o que os que estavam ao meu lado não podiam ouvir. Natanael não aceitava, recusava-se a ser levado contra a sua vontade.

— De Nazaré? — ele disse. — O Messias. Espera que eu acredite nisso? Filipe, eu moro muito perto de Nazaré. Você está me dizendo que o Messias e de lá? Isso que está falando são coisas impossíveis, homem.

Meu primo João tinha voltado para juntar-se a eles.

— Não, é ele, realmente — declarou meu jovem primo.

Ele falava com tanto fervor, tão cheio de assombro, como se ainda esti­vesse sendo banhado no milagre do rio, banhado no Espírito que visitou as águas no momento em que o céu se abriu.

— É ele sim, estou dizendo. Eu vi quando ele foi batizado. E o Batista disse, o próprio Batista, pessoalmente, disse essas palavras...

Parei de ouvir. Deixei o vento engolir a discussão deles. Olhei para o ho­rizonte distante que se iluminava, onde as colinas claras se misturavam com o azul do céu e as nuvens iam aparecendo como se fossem as velas dos navios.

Natanael veio atrás de mim, desconfiado, olhando de lado quando o cumprimentei com a cabeça e acertamos o passo, lado a lado.

— Ah, então nada de bom pode vir de Nazaré? — perguntei.

Ele ficou vermelho de vergonha.

Eu dei risada.

— Eis um israelita no qual não há nenhum Jacó — eu disse.

Com isso, quis dizer que ele não tinha malícia. Dissera o que lhe pas­sou pela cabeça, sem esperteza nenhuma. Falou do fundo do coração. Eu ri outra vez, com simpatia.

Caminhamos no meio da multidão vagarosa na estrada.

— Como me conhece? — perguntou Natanael.

— Ah, ora, poderia dizer que o conheço da casa de Hananel, onde você me viu recentemente, o carpinteiro.

Isso o surpreendeu. Ele não podia acreditar que eu era aquele homem. Ele mal se lembrava daquele homem, a não ser que, por causa dele, teve de escrever muitas cartas para Hananel. E lentamente foi associando as lem­branças, o carpinteiro frágil e comum que estava lá aquele dia. Então olhou fixamente para mim, para os meus olhos, especialmente para os meus olhos.

— Mas vou contar como realmente o conheço — eu disse. — Eu o vi agora mesmo embaixo da figueira, sozinho e zangado, resmungando para si mesmo, empilhando seus livros pesados e suas trouxas para a viagem de amanhã, irritado demais por ter de ir para casa, para o casamento de Rubem e Abigail, porque tinha certeza de que algo melhor, alguma coisa mais importante ia acontecer com você, aqui, perto do mar.

Ele ficou chocado. E também com medo, por algum tempo. João, André, Tiago e Filipe fizeram uma rodinha em volta dele. Pedro ficou de fora. Todos o observavam constrangidos. Não pude deixar de rir outra vez, discretamente, baixinho.

— Então, não o conheço? — perguntei.

— Rabino, você é o Filho de Deus — sussurrou Natanael. — Você é o rei de Israel.

— Por que o vi com a visão da minha mente, sob a figueira, aborrecido com tanta coisa que tinha de levar para o casamento? — Pensei um pouco, depois confiando no meu raciocínio e nas minhas palavras, disse: — Amém, amém. Você também verá o céu se abrir como João viu. Só que não verá um pombo quando isso acontecer. Você verá os anjos do Senhor indo e vindo sobre o Filho do Homem.

Pus a mão no meu peito.

Ele ficou atônito. E os outros também, mas eram dominados por um fascínio coletivo, um deslumbramento crescente.

Tínhamos chegado ao posto aduaneiro.

Lá estava o rico coletor de impostos que eu tinha visto no rio, o homem que descreveram tão bem para mim, como aquele que levou meu amado José para fora do rio, aquele que levou o corpo de José para casa, para Nazaré, para ser enterrado.

Fui até ele. Os que estavam ali esperando para falar com ele se afasta­ram. Logo o grupo de pessoas ficou grande demais e comprimido demais, cheio de reclamações que eram mais do que casuais. Cavaleiros, burros car­regados de mercadorias, carroças cheias de cestos de peixe... todos espera­vam, e as pessoas começaram a se irritar de esperar tanto.

Meus novos discípulos se reuniram em volta de mim.

O coletor de impostos escrevia no seu livro, com os dentes cerrados, os lábios um pouco tensos com os traços da sua pena. Finalmente ele se desli­gou, de má vontade, dos seus cálculos para ver quem era aquela sombra ao lado que não saía dali, levantou a cabeça e me viu.

— Mateus — eu disse, sorrindo. — Você escreveu com sua bela caligrafia as coisas que meu pai contou?

— Rabino! — ele sussurrou.

Mateus ficou de pé. Não encontrou palavras para descrever a transfor­mação que via em mim, todas as pequenas diferenças que estava notando. A roupa de tecido fino era a menor parte. Roupas finas para ele eram comuns.

Ele não notou os outros que se afastaram dele. Não percebeu João e Tiago bar Zebedeu olhando com cara feia para ele, como se quisessem apedrejá-lo, nem Natanael que o fitava com frieza. Ele olhava apenas para mim.

— Rabino — ele disse outra vez. — Se me permitisse eu escreveria sim, todas as histórias que seu pai contou e mais ainda, mais do que eu mesmo vi quando você entrou no rio.

— Venha comigo — eu disse. — Estive no deserto muitos e muitos dias. Eu quero jantar com você esta noite, eu e esses meus amigos. Venha, providen­cie um banquete para nós. Convide-nos para ir à sua casa.

Ele saiu do posto da aduana sem olhar para trás, segurou o meu braço e me levou para o centro da pequena cidade à beira-mar.

Os outros não quiseram insultá-lo, não na presença dele. Mas Mateus certamente ouviu as críticas casuais que partiam dos que estavam atrás de nós, e daqueles que se espalharam e nos seguiram, como um pequeno rebanho.

Sem me soltar, ele mandou um menino na frente para avisar aos seus servos para se prepararem para nós.

— Mas e o casamento, rabino? — perguntou Natanael, claramente abor­recido. — Precisamos ir, senão não vamos chegar a tempo.

— Temos o tempo desta única noite — eu disse. — Não se preocupe. Nada poderá me impedir de ir a esse casamento. E tenho muito que contar esta noite, sobre o que me aconteceu quando estava no deserto. Vocês sabem muito bem, todos vocês, ou logo saberão, o que aconteceu quando fui ser batizado no rio Jordão pelo meu primo João. Mas a história dos dias que passei no deserto só eu posso contar.

 

A NOITE VIOLETA BRILHAVA sobre as colinas quando entramos em Nazaré sem sermos notados.

Eu dei uma volta com eles para não sermos vistos, porque já estavam acendendo as tochas e podíamos ouvir as vozes animadas. O noivo era esperado em menos de uma hora. As crianças brincavam nas ruas. Mulheres com suas melhores roupas brancas já esperavam com lampiões. Outras ainda colhiam flores e faziam guirlandas. As pessoas chegavam dos bosques em volta com braçadas de galhos de murta e de palmeira.

Encontramos a casa em alvoroço de preparativos festivos.

Minha mãe gritou assim que pôs os olhos em mim e correu para os meus braços.

— E você pensava que ele não estaria aqui — disse meu tio Cleofas, que abraçou nós dois juntos, minha mãe e eu.

— Olhem aqui quem eu trouxe para vocês — eu disse e apontei para a pequena Salomé, que na mesma hora teve um acesso de choro nos braços do pai com o pequeno Tobias. Os sobrinhos e primos nos cercaram, os pequeninos ficaram mexendo na minha roupa nova e todos receberam aqueles cujos nomes eu falei rapidamente.

Meus irmãos me saudaram, todos olhando para mim meio desconfia­dos... especialmente Tiago.

Todos conheciam Mateus como o homem que lamentara com eles a morte de José. Ninguém questionou a presença dele, menos ainda os tios Alfeu e Cleofas, nem minhas tias. E sua roupa sempre muito fina não pro­vocou a atenção de ninguém.

Mas não havia tempo para conversar.

O noivo estava chegando.

Tínhamos de espanar toda a poeira das nossas roupas, limpar as sandálias, lavar mãos e rostos, pentear e passar óleo no cabelo, tirar as roupas de casa­mento dos embrulhos, o pequeno Tobias tinha de ser escovado como um legume e vestido imediatamente, por isso nos perdemos nesses preparativos.

O pequeno Shabi veio correndo anunciar que nunca tinha visto tantas tochas em Nazaré. Todos, da aldeia inteira, compareceram. Já tinham come­çado a bater palmas e a cantar.

E através das paredes podíamos ouvir os pandeiros e as melodias agudas dos clarins.

Nem sinal da minha amada Abigail.

Finalmente saímos para o pátio, e todos nós, homens, formamos um círculo em volta. Dos cestos, as crianças tiraram as guirlandas exóticas feitas de hera e flores com pétalas brancas, e puseram essas guirlandas em todas as cabeças abaixadas. Yaquim estava conosco. Hannah Silenciosa, vestida de branco alvíssimo, com o cabelo graciosamente penteado sob o véu, pôs a guirlanda na minha cabeça, sorrindo e com os olhos cheios de lágrimas.

Olhei para ela quando se afastou. Ouvi a música do jeito como ela ouvia, o ritmo insistente. Vi as tochas da mesma maneira com que ela via, fulgurantes, sem som nenhum.

Já era noite.

A luz dos lampiões, das velas e das tochas era deslumbrante, explodia e tremulava nas treliças e nos telhados por toda a rua.

Pude ouvir o canto crescendo com o dedilhar das cordas da harpa e o latejar mais profundo das cordas dos alaúdes. Até os estalos das tochas se misturavam ao canto.

De repente, soaram os clarins.

O noivo estava chegando a Nazaré. Ele e os homens que o acompanha­vam subiam a ladeira e eram saudados alegremente por muitos aplausos.

Mais tochas se acenderam de repente no pátio à nossa volta.

Da porta central da casa, saíram as mulheres com seus mantos de lã alvejada, com tecidos de cores vivas enrolados, de cabelo preso sob seus melhores véus brancos.

Então esticaram e levantaram o grande pálio de linho branco enfeitado com fitas. Meus irmãos Josué, Judas e Simão, e meu primo Silas seguravam os postigos.

A rua diante do pátio explodiu com saudações animadas.

Rubem surgiu sob a luz das tochas, com uma guirlanda na cabeça, lin­damente vestido, feliz, com uma expressão tão satisfeita, que meus olhos se encheram de lágrimas. E, ao lado dele, o dedicado amigo do noivo, Jasão, que procurou apresentá-lo com voz ressonante.

— Rubem bar Daniel bar Hananel de Caná está aqui! — proclamou Jasão. — Por sua noiva.

Tiago se adiantou e, pela primeira vez, vi ao lado dele o desajeitado e carrancudo Shemayah, com a guirlanda um pouco torta, seu traje de casamento que não chegava ao comprimento adequado devido à largura dos ombros e dos braços enormes.

Mas ele estava lá! Estava lá e empurrou Tiago para a frente, agora para o excitado e tremendamente feliz Rubem, que entrou no pátio de braços abertos.

Hannah Silenciosa correu para a porta da casa.

Tiago recebeu o abraço de Rubem.

— Saudações e felicidades, meu irmão! — disse Tiago bem alto para toda a multidão lá fora poder ouvir, e a resposta foi um aplauso vigoroso. — Saudações e felicidades pela sua vinda a esta casa de seus irmãos para des­posar sua parenta.

Tiago chegou para o lado. As tochas foram para a porta, Hannah Silenciosa saiu da casa e fez sinal para Abigail aparecer.

E ela apareceu.

Coberta por véus e mais véus de gaze egípcia, ela se expôs à ilumina­ção feérica, os véus tinham aplicações de ouro, nos braços enfeites de ouro, nos dedos anéis brilhantes e multicoloridos. E, através daquela espessa névoa tremulante de tecido branco, pude ver nitidamente o brilho dos seus olhos escuros. Cachos de cabelo preto caíam sobre os seus seios por baixo desses véus e, até nos pés calçados com sandálias, havia jóias grandes, redon­das e cintilantes.

Tiago falou bem alto.

— Esta é Abigail, filha de Shemayah, sua parenta e sua irmã, que é des­posada agora com a bênção de seu pai, seus irmãos e irmãs, para ser sua mulher, na casa do seu pai, e que de hoje em diante ela seja uma irmã para você, e que os filhos que vocês vão ter sejam irmãos e irmãs, segundo a Lei de Moisés, e como está escrito, assim seja.

Os clarins soaram, as harpas tocaram, as batidas dos pandeiros cada vez mais rápidas. As mulheres ergueram seus pandeiros para se juntar ao ritmo dos que eram locados na rua.

Rubem chegou para a frente, Abigail fez o mesmo, até ficarem os dois frente a frente sob o pálio. As lágrimas escorriam pelo rosto de Rubem, silenciosas, quando ele estendeu as mãos para levantar os véus da noiva.

Tiago pôs a mão entre os dois. Rubem continuou falando para o rosto que podia ver claramente agora, bem na sua frente, sob o tecido transparente.

— Ah, minha amada. Você foi destinada para mim desde o princípio do mundo!

Tiago empurrou Shemayah para ele ficar ao lado do jovem noivo. Shemayah olhou para Tiago como se fosse um prisioneiro que fugiria se pudesse, mas então Tiago sussurrou para ele se apressar e Shemayah falou.

— Entrego minha filha a você a partir de hoje, e para sempre — ele disse, olhando ressabiado para Tiago, que meneou a cabeça, aprovando. Então Shemayah continuou: — Que o Senhor guie vocês dois, que lhes dê prospe­ridade esta noite e misericórdia e paz eternas.

Antes que os gritos de júbilo pudessem silenciá-lo, Tiago disse em alto e bom som:

— Aceite Abigail como sua esposa, de acordo com a lei e decreto escrito no Livro de Moisés.Tome-a agora e a leve em segurança para a casa que é sua e do seu pai. E que o Senhor os abençoe na sua jornada para casa e nesta vida.

E foi uma avalanche incontrolável de aplausos e vivas.

As mulheres cerraram fileiras em torno de Abigail. Jasão puxou Rubem para trás, para fora do pátio e todos os homens foram atrás deles, exceto meus tios e irmãos. Dobraram o baldaquino apenas o suficiente para que ficasse mais estreito e passasse pelo portão. A noiva, ladeada por todas as mulheres da casa, inclusive a pequena Maria, a pequena Salomé e Hannah Silenciosa, seguiu em frente, Abigail embaixo do dossel. Na rua, abriram o dossel outra vez.

O sopro dos clarins cresceu acima dos tons mais rápidos e mais furio­sos das cordas da harpa. As flautas e os pífaros faziam uma melodia doce e enlevante.

O grupo todo foi descendo, passou pelas portas iluminadas e pelos ros­tos radiantes, pelas mãos que aplaudiam. Crianças corriam na frente, algu­mas levando lampiões pendurados em paus. Outras carregavam velas, pro­tegendo as chamas da brisa com as mãozinhas pequenas.

As mulheres levantaram seus pandeiros. Dos pátios e das portas, saíram outras com suas harpas, seus clarins e seus pandeiros. Aqui e ali, se ouviam o chocalhar dos sistros e o badalo de sinos.

E todos começaram a cantar.

Quando chegamos à estrada que ia para Caná, vimos o espetáculo ina­creditável das tochas dos dois lados, iluminando o caminho até onde a vista alcançava. E havia tochas vindo em nossa direção, de encostas distantes e pelos campos escuros.

O dossel foi esticado por inteiro. Jogaram pétalas de flores para o alto. A música ficou mais alta e mais rápida, a noiva foi caminhando cercada pelas mulheres e os homens, dos dois lados, na frente e atrás, se deram os braços e começaram a dançar.

Rubem e Jasão dançaram para a esquerda e para a direita, de braços dados, passando um pé na frente do outro, para um lado, depois para o outro, balançando o corpo, gesticulando, cantando ao ritmo da música, com o braço solto acima da cabeça.

Formaram longas filas que ladeavam a procissão e eu entrei na dança, com meus tios e meus irmãos. O pequeno Shabi, Yaquim e Isaac e os outros meninos pulavam e saltavam, batiam palmas alegremente.

E a cada passo, em cada curva, víamos a estrada à frente ainda toda ilu­minada com aquela abundância de luzes acolhedoras. Mais e mais tochas iam se aproximando. Mais e mais aldeões aderiam às nossas fileiras.

E assim fomos, até chegar aos salões enormes da casa de Hananel.

Ele se levantou do seu sofá na enorme sala de jantar para receber a noiva do neto de braços abertos. Apertou as mãos de Tiago e de Shemayah.

— Entre, minha filha! — disse Hananel. — Entre nesta casa, que é minha e do seu marido. Abençoado seja o Senhor que a trouxe para nós, minha filha, abençoada seja a memória de sua mãe, abençoado seja seu pai, aben­çoado seja meu neto Rubem. Entrem agora na casa de vocês! Bem-vindos, com a minha bênção e satisfação!

Ele deu meia-volta e mostrou o caminho, passando pelos candelabros acesos, até a sala de jantar e outros cômodos destinados apenas às mulheres, onde iam comer e dançar o quanto quisessem. Véus de linho com as bor­das e as franjas em roxo e dourado foram puxados para separar as mulheres dos homens nos inúmeros vãos em arco do salão do banquete. Através des­ses véus passavam o riso, as canções, a música e a alegria, e eles davam às mulheres a liberdade de ser formas pálidas longe dos olhos dos homens barulhentos e impetuosos.

Sob o teto bem alto da casa, a música explodiu. Os clarins competiam com os pífaros nas melodias e os pandeiros continuaram marcando o ritmo como antes.

Haviam posto mesas enormes em todos os salões principais, junto com sofás preparados para Shemayah e todos os homens da família da filha dele que tinham ido com ele, e para Rubem, para Jasão, para os rabinos de Caná e de Nazaré, e para um grande grupo de homens distintos, amigos de Hananel, todos que conhecíamos e os que não conhecíamos.

Pelas portas abertas, vimos grandes tendas espalhadas sobre a grama macia e tapetes por toda parte, mesas em que todos podiam se reunir, ou em sofás ou tapetes, onde desejassem. Em todos os cantos, ardiam os cande­labros com centenas de chamas pequeninas.

Apareceram grandes bandejas com comida, fumaça saindo de um cor­deiro assado, frutas brilhantes, bolos salgados bem temperados, e bolos de mel, pilhas de passas, tâmaras e nozes.

Em todos os cômodos, homens e mulheres recorreram aos jarros de água e aos servos ao lado deles para lavar as mãos.

Em cada salão de banquete, havia alinhados seis enormes cântaros. E mais seis embaixo de cada tenda.

Os servos derramavam água nas mãos estendidas dos convidados e ofe­reciam toalhas de linho branco para secá-las. A água caía em bacias de ouro e prata.

A música e o aroma dos pratos abundantes se misturavam no ar e, por um momento, parado bem no centro do pátio, observando todos os grupos de convivas, admirando até os castos véus que nos separavam das silhuetas das mulheres que dançavam, tive a impressão de estar em um imenso uni­verso contínuo de pura felicidade, no qual nenhum mal podia entrar. Éramos um vasto campo de flores primaveris, unidos por uma corrente suave de brisa diáfana.

Esqueci-me de mim mesmo. Eu não era nada nem ninguém, apenas fazia parte daquilo tudo.

Fui lá para fora, passei pelas filas de dançarinos e pelas mesas lindamen­te servidas cercadas de comensais, e procurei, como sempre faço, como sempre fiz, as luzes do céu.

E me pareceu que as luzes do céu ali eram o tesouro profundo e parti­cular de cada alma.

Não poderia morrer agora? Não poderia me desfazer deste corpo e ascender, como tantas vezes pensei, sem peso e íntegro, para ficar na com­panhia das estrelas?

Ah, se ao menos eu pudesse realmente fazer o tempo parar, parar ali, parar para sempre naquele grande banquete, e deixar que o mundo inteiro viesse para cá, agora, num fluxo contínuo, fora do Tempo e além do Tempo, para participar da dança, para se banquetear nessas mesas abundantes, para rir e cantar e até chorar na fumaça das luzes tremulantes das velas. E se ao menos eu pudesse resgatar todos eles, com essa música linda e acolhedora, resgatar todos eles, dos mais jovens aos anciãos, com sua paciência e doçu­ra, com sua esperança arrebatadora e inesperada? E se eu pudesse reunir todos em um grande e único abraço?

Mas não era para ser assim. O tempo continuou passando, as mãos cont­inuaram batendo no couro dos pandeiros, os pés no mármore ou na grama macia.

O tempo não pára e no tempo, como havia dito para o Tentador, sim, quando ele me tentou a parar o tempo para sempre... no tempo havia coi­sas que ainda não nasceram. Isso provocou um tremor profundo e sinistro dentro de mim, um frio intenso. Mas era apenas o tremor e o medo conhe­cidos por todos os homens.

Não vim para fazê-lo parar, não vim para interrompê-lo num momen­to de felicidade misteriosa. Vim para vivê-lo, render-me a ele, suportá-lo, descobrir nele o que eu tinha de fazer e, o que quer que fosse, bem, estava apenas começando.

Observei à minha volta os muitos rostos suados e vermelhos. Vi o jovem João e Mateus, Pedro e André, e Natanael, todos dançando. Vi Hananel chorando abraçado com o neto, Rubem, que oferecia a taça para ele beber, e Jasão abraçando os dois. Jasão muito feliz, muito orgulhoso.

Observei tudo. Sem ser notado, fui de sala em sala. Passei por baixo das tendas. Andei pelo pátio com suas velas imensas e as tochas presas no alto. Olhei para trás, para os grandes grupos de mulheres reunidas atrás dos véus.

Deixei minha mente seguir à minha frente. Fui para onde o homem não pode ir.

Abigail, com o véu levantado já que estava sozinha com as crianças que podiam entrar no quarto da noiva, e Hannah Silenciosa, sentada no sofá aos pés dela. Abigail, de olhos fechados, dormindo.

Vi mentalmente com a mesma clareza e simultaneamente aquele ins­tante no pátio de casa quando Rubem disse para ela: “Minha amada, você foi destinada para mim desde o princípio do mundo.”

Meu coração se encheu de dor; foi dominado pela dor.

Adeus, minha querida, abençoada.

Deixei a tristeza vir. Deixei-a percorrer minhas veias. Não era tristeza por ela, mas pela ausência dela para sempre, a ausência daquela intimidade, daquele coração que poderia estar tão próximo. Reconheci essa ausência, então beijei a testa da imagem que tinha dela, com todo o meu coração, e me desprendi. Deixe-me, eu disse para a lembrança. Não posso levá-la para onde estou indo. Sempre soube que não podia. E agora eu a deixo ir, sim, outra vez e para sempre — deixo ir o desejo, deixo ir a sensação da perda, mas não o saber... não, eu jamais deixarei ir esse reconhecimento da perda.

Uma hora antes da aurora, Rubem foi levado para o quarto da noiva.

As mulheres já tinham levado Abigail para a cama nupcial. Estava coberta de flores. Véus dourados cercavam a cama.

Jasão abraçou Rubem e bateu nas costas dele com vigor.

Quando Rubem entrou e a porta se fechou, a música cresceu em novo delírio, os homens dançaram mais rápido ainda e com maior ânimo, os velhos se levantaram, até os que mal conseguiam se mexer sem a ajuda dos filhos e dos netos. E parecia que toda a casa estava mais uma vez repleta de exclamações de alegria e júbilo, como antes.

Ainda chegavam pessoas do campo que expressavam seu deslumbra­mento arregalando os olhos diante daquilo tudo.

Puseram mesas do lado de fora, na relva, para os pobres das aldeias, e bandejas cheias de pão quente com potes de caldo de carne eram servidas para eles. Tinham levado para lá mendigos, alguns fracos demais, que costu­mavam se agrupar do lado de fora dos portões de tais banquetes para rece­ber as migalhas.

Atrás dos véus, longas filas de mulheres dançavam, davam passos para a esquerda, depois paravam, rodopiavam e balançavam com a música. Filas de dançarinos passaram por mim serpenteando pelas portas em arco, girando em volta da mesa central, por trás do orgulhoso avô que se apoiava no braço de Jasão. Natanael estava sentado ao lado de Hananel e Hananel, apesar de todo o vinho que tinha bebido, bombardeava Natanael com perguntas, enquanto Jasão sorria e sonhava, como se nada tivesse importância.

Aqui e ali homens olhavam para mim, especialmente alguns dos recém­chegados, e eu ouvia as perguntas que faziam cochichando. É ele o escolhido?

Ouvi isso a noite inteira, quando queria ouvir. E vi a noite inteira tam­bém cabeças se virando, olhares furtivos e rápidos.

De repente, percebi que alguma coisa estava errada.

Era como ouvir a primeira trovoada de uma tempestade quando nin­guém mais ouve. Era um momento em que somos tentados a levantar a mão e dizer: “Silêncio. Deixem-me escutar.”

Mas não precisei dizer isso.

Vi no fundo da sala de jantar os servos discutindo nervosos uns com os outros. Outros dois se juntaram a eles. E trocaram mais cochichos aflitos.

Hananel percebeu. Fez sinal para um deles se aproximar e contar o motivo da agitação no ouvido dele.

Chocado, Hananel se virou e tentou ficar de pé, dispensando Jasão, que procurou, sem muita disposição e entorpecido pela bebida, ajudá-lo. O velho foi ao encontro dos servos. Um deles desapareceu no quarto das mulheres e voltou.

Outros servos chegaram. Sim, alguma coisa estava muito errada.

Da privacidade atrás dos véus do salão de banquete das mulheres, minha mãe apareceu. Ela andou pelos cantos da sala, sem ser notada, de olhos baixos, ignorando os bêbados que dançavam e riam como costuma­vam fazer. Ela ia na direção de Cleofas, seu irmão, que estava sentado à grande mesa de frente para o sofá de Hananel. Hananel continuava discu­tindo muito com seus servos, e o seu rosto pálido estava ficando vermelho.

Minha mãe tocou no ombro do irmão. Ele se levantou no mesmo ins­tante. Vi que os dois me procuravam.

Eu estava no pátio, bem no centro da casa. Fiquei ali, perto das velas, onde já estava havia bastante tempo.

Minha mãe veio a mim e pôs a mão no meu braço. Vi pânico nos olhos dela. Ela olhou para todos em volta, para centenas de pessoas reunidas sob aquele teto e do lado de fora nas tendas, para os que se abraçavam, riam e conversavam às mesas, sem se dar conta da reunião distante dos servos nem da expressão no rosto da minha mãe.

— Filho — ela disse. — O vinho está acabando.

Olhei para ela e vi o motivo daquilo. Ela não precisou me contar. A caravana que trazia o vinho para o sul tinha sido atacada na estrada por ban­doleiros. Carroças carregadas de vinho foram roubadas e levadas para as colinas. Essa notícia tinha acabado de chegar, e dúzias de homens e mulhe­res continuavam aparecendo para o banquete que ia durar mais um dia inteiro.

Era um desastre de proporções inimagináveis e terríveis.

Olhei nos olhos dela. Minha mãe implorava com urgência.

Inclinei-me para a frente e pus a mão em sua nuca.

— Mulher, o que isso tem a ver com você e comigo? — perguntei gen­tilmente e sacudi os ombros. — Minha hora não chegou ainda — murmurei baixinho.

Ela se afastou lentamente. Olhou para mim um bom tempo, com uma expressão curiosa, combinação de repreensão bem-humorada e depois confiança tranquila. Virou-se e levantou a mão com um dedo em riste. Esperou. Do outro lado do pátio, depois da sala de jantar principal, um dos servos a viu, entendeu seu olhar e o gesto. Ela fez que sim com a cabeça e ele tez o mesmo para ela. Minha mãe fez sinal para ele se aproximar. Ela abriu a mão e chamou todos eles.

Hananel se viu sozinho de repente, sem os servos, vendo-os abrindo caminho no meio da multidão de convidados e indo na nossa direção.

— Mãe! — exclamei baixinho.

— Filho! — ela respondeu gentilmente, imitando meu tom de voz.

Minha mãe se virou para tio Cleofas, pôs a mão delicadamente no ombro dele, olhou para mim com o canto do olho e disse para Cleofas:

— Irmão, diga o mandamento para o meu filho. Ele já recebeu a bênção do pai dele. Faça-o lembrar. Honrar pai e mãe. Não são essas as palavras?

Eu sorri. Abaixei e beijei a testa dela. Ela levantou um pouco o queixo, com suavidade no olhar, mas não sorriu.

Os servos nos rodearam. E ficaram esperando. Meus novos seguidores estavam chegando, João, Tiago, Pedro, André e Filipe. Eles nunca ficaram longe de mim a noite inteira e agora se aproximaram mais.

— O que foi, rabino? — perguntou João.

Lá longe avistei a pequena figura de Hananel, de braços cruzados, à luz das velas, olhando fixamente para mim, fascinado e perplexo.

Minha mãe apontou para mim enquanto falava com os servos.

— Façam o que ele disser para fazer.

O rosto dela já estava gentil e natural, ela olhou para mim e sorriu, como uma criança sorriria.

Os discípulos estavam confusos e preocupados.

Cleofas riu baixinho, para si mesmo. Cobriu a boca com a mão esquer­da e olhou para mim com ar brincalhão. Minha mãe foi embora. Virou-se para trás e olhou bem para mim com a expressão doce e confiante, depois se retirou pela porta da sala de banquete das mulheres e lá ficou esperando, meio escondida pela cortina fechada.

Olhei para os seis cântaros enormes de calcário do pátio, que continham a água para a purificação, para lavar as mãos. E disse para os servos:

— Encham esses cântaros até a boca.

— Meu senhor, eles têm capacidade para muitos galões. Teremos de usar a força de todos nós para levá-los até o poço.

— Então é melhor se apressarem — eu disse. — E chamem os outros para ajudar.

Eles levantaram na mesma hora o primeiro cântaro e o carregaram para fora, pela sala de jantar dos fundos. Apareceu outro grupo de servos para pegar o segundo e mais um para pegar o terceiro, e assim trabalharam depressa, de modo que em poucos minutos os seis cântaros estavam de volta ao mesmo lugar, completamente cheios.

Hananel observava tudo isso com muita atenção, mas ninguém olhava para ele. As pessoas passavam por ele, cumprimentavam-no, agradeciam-lhe, abençoavam Hananel. Mas não o notavam realmente. Ele foi voltando len­tamente para seu lugar à mesa. Sentou-se e ficou no meio da alegre con­versa de Natanael e Jasão. Continuou com os olhos fixos em mim.

— Meu senhor, está feito — disse o primeiro servo, parado ao lado dos cântaros.

Apontei para uma bandeja com copos ali perto, uma de muitas por todo o lugar.

Ouvi na minha mente a voz do Tentador no deserto. Uma ilusão!... Ora, até Elias teria conseguido isso!

Olhei para o servo-chefe. Vi tensão e quase desespero nos olhos dele. Vi o medo no rosto dos outros.

— Encha aquele copo desse cântaro agora — eu disse. — Leve-o para Jasão, o amigo do noivo que está sentado ao lado do seu patrão. Ele não é o senhor do banquete?

— Sim, meu senhor — respondeu o servo desconfiado. Ele enfiou a con­cha dentro do cântaro e soltou um grito sufocado, longo e baixo.

O vinho tinto brilhava à luz das velas. Os discípulos olhavam atônitos o vinho escorrendo da concha para o copo na mão do servo.

Senti o mesmo frio na pele que havia sentido no rio Jordão. E tive tam­bém uma sensação fraca e deliciosa de formigamento, que sumiu tão rápi­da e silenciosamente como veio.

— Leve para ele — eu disse para o servo, apontando para Jasão.

Meu tio não conseguia rir, nem falar. Os discípulos prenderam juntos a respiração.

O servo foi quase correndo para o salão do banquete e deu a volta na mesa. Pôs o copo na mão de Jasão.

Deixei as palavras chegarem até mim em meio à barulheira da multidão.

— O vinho que acabou de chegar — disse o servo, tremendo, quase sem conseguir pronunciar as palavras.

Jasão bebeu longamente, sem hesitar.

— Meu senhor! — exclamou ele para Hananel. — O senhor fez uma coisa esplêndida! Ele se levantou e bebeu mais do copo. — A maioria dos homens espera até o primeiro vinho cumprir sua função, para só depois servir o vinho de pior safra. O senhor guardou o melhor vinho para o fim.

Hananel olhou espantado para ele. Em voz baixa e fria, disse:

— Dê-me esse copo.

Jasão não percebeu a frieza. Já estava discutindo com Natanael de novo, mas Natanael olhava para a frente, por cima da mesa e além, para o nosso grupo reunido no pátio ao lado dos cântaros.

Hananel bebeu. Recostou-se na cadeira. Olhamos um para o outro de longe.

Os servos correram para os cântaros e serviram o vinho nos copos e taças. Levaram bandejas e mais bandejas para as mesas e os tapetes do ban­quete.

Ninguém viu Hananel olhando para mim, só Natanael. Natanael se levantou devagar e veio na nossa direção.

Com o canto do olho, vi minha mãe sair do seu posto à porta da sala de banquete e desaparecer atrás dos diáfanos véus de gaze.

O jovem João beijou minha mão. Pedro se ajoelhou e beijou minha mão. Os outros se aproximaram para beijar minha mão.

— Não, parem com isso — eu disse. — Vocês não devem fazer isso.

Virei-me e saí do pátio, passei pelo saguão e cheguei a um jardim aber­to, longe dos convivas. Fui andando até chegar ao ponto mais distante do pomar murado, de onde podia ver as salas das mulheres daquele lado da casa. Os arcos estavam repletos de luz pulsante.

Todos os discípulos vieram para perto de mim. Tiago também veio e meus irmãos mais novos.

Cleofas chegou e parou na minha frente.

Jasão, Natanael e Mateus saíram da casa. Mateus estava discutindo enfaticamente com o jovem João e com um dos servos, um menino, que ficou para trás timidamente, curvou a cabeça e recuou.

— Eu estou dizendo, não acredito! — disse Mateus.

— O que quer dizer, não acredita? — disse jovem João. — Eu vi. Eu vi quando levaram os cântaros até o poço e quando os trouxeram de volta. Conversei com os servos. Vi o rosto deles. Eu vi. Como pode ficar aí dizen­do que não acredita?

— Isso explica por que você acredita — disse Jasão. — Mas não porque devemos acreditar. — Ele correu para mim, abrindo caminho entre os outros. — Yeshua, você afirma que fez isso, que transformou a água daqueles seis cântaros em vinho?

— Como ousa fazer essa pergunta para ele? — disse Pedro. — Quantas tes­temunhas serão necessárias para você acreditar? Nós estávamos lá. O tio dele estava lá.

— Ora, eu não acredito nisso — declarou meu irmão Tiago. — Cleofas, você viu isso mesmo, o que eles estão dizendo, que todo o vinho que estão servindo agora era água antes de ele transformá-la? Olha, isso é loucura!

De repente, todos começaram a falar ao mesmo tempo, menos Cleofas. Só Cleofas ficou lá parado me observando.

A noite estava indo embora e já surgia o azul mais profundo da aurora. As estrelas, minhas preciosas estrelas, ainda eram visíveis. E mais além, a casa ainda estava cheia de canções e pulsando com as danças.

— O que vai fazer agora? — perguntou Cleofas.

Pensei um longo tempo. Depois respondi:

— Vou prosseguir, de surpresa em surpresa.

— O que está dizendo? — quis saber Tiago.

Eles começaram a discutir de novo. Jasão gesticulou furiosamente, pedindo silêncio.

— Yeshua, exijo que diga para esses crédulos e tolos que não transfor­mou a água em vinho.

Meu tio começou a rir. E como sempre a risada dele começou baixa, foi crescendo, ganhando força e profundidade. Continuou baixa, mas ficou misteriosa e forte.

— Diga para eles — disse Tiago. — Nosso jovem primo aqui será motivo de chacota com essa história. Ele fará de você motivo de riso também. Diga para eles que isso não aconteceu.

— Aconteceu sim, nós vimos — disse Pedro.

André e Tiago bar Zebedeu concordaram enfaticamente com Pedro. Então meu irmão Tiago levantou as mãos.

— Acredito que você possa ter expulsado o demônio de uma mulher — disse Jasão. — Acredito que possa rezar para fazer a chuva parar e que ela pare. Nessas coisas, sim, acredito nelas. Mas nisso não, isso eu não aceito.

Cleofas falou novamente.

— O que você vai fazer? — Ele chegou muito perto de mim, de modo que eu não pudesse escapar, mas os outros ainda podiam ouvir o que ele dizia. — Quando era pequeno, você fazia muitas perguntas para mim. Lembra-se disso?

— Lembro.

— Um dia, eu disse que você é que ia nos dar as respostas. E também disse para você que ia explicar tudo que eu sabia.

— Sim.

— Bem, eu digo agora: você é o Eleito. Você é Cristo Senhor. E deve nos guiar.

Pedro, os filhos de Zebedeu e Filipe concordaram e disseram que tam­bém acreditavam nisso.

— Você deve ser nosso líder agora — disse Cleofas. — Não tem escolha. Deve tomar a iniciativa e reagir a todos os desafios que Israel enfrenta. Deve pegar em armas como os profetas previram.

— Não.

— Yeshua, você não pode fugir disso — disse Cleofas. — Eu vi e ouvi tudo no rio Jordão. Eu vi a água virar vinho.

— Sim, você viu essas coisas — eu disse —, mas eu não vou liderar o nosso povo em batalha.

— Mas olhe só em volta — disse Jasão com fervor. — Esses tempos exigem isso. Pôncio Pilatos... ora, foi por causa dele que João saiu do deserto. Foi Pilatos, com suas malditas insígnias. E a Casa de Caifás, o que eles fizeram para evitar o desastre? Yeshua, você deve convocar Israel a pegar em armas agora.

— Meu irmão — disse Tiago. Isso é verdade.

— Yeshua, as palavras de Isaías o levam a isso — disse Cleofas.

— Não cite as palavras de Isaías para mim, tio. Eu as conheço.

— Yeshua, se você fez isso aqui — disse Tiago —, como podemos perder? Precisamos nos armar. Estávamos esperando esse momento, estávamos rezando por isso. Se me disser que você fez isso...

— Ah, eu sei que vocês todos estão muito desapontados — eu disse. — E vi com os olhos da mente os exércitos que poderia liderar e as vitórias que poderíamos conquistar. Como podem pensar que não sei essas coisas?

— Então por que não aceita o seu destino? — perguntou Tiago com amargura. — Por que você sempre recua?

— Tiago, você não entende o que eu quero? Olhe à sua volta para os rostos desses homens que viram o vinho sair dos cântaros. Eu quero uma inovação que incendiará o mundo. Aquele vinho é, nada mais, nada menos, o sangue que corre em minhas veias. Eu vim trazer a Face do Senhor... para o mundo inteiro!

Eles se calaram.

— A Face do Senhor — repeti.

Olhei intensamente para Tiago e para Cleofas. Olhei para cada um deles.

— Pretendo levar a todos a Face do Senhor.

Silêncio. Eles ficaram juntos ali, olhando para mim, enlevados, mas sem coragem de falar.

— Vocês não sabem que as batalhas com espadas acabam sendo perdidas? — perguntei. — Não vêem que as Escrituras e a história estão cheias de bata­lhas? Não venham me falar de Alexandre, ou de Pompeu, ou de Augusto, ou de Germânico, ou de qualquer César. Não venham me falar das insíg­nias, se estão num mastro bem alto em Jerusalém, ou na floresta de Teutoburgo no extremo norte. Não venham me falar do rei Davi ou de seu filho, Salomão. Olhem para mim, eu estou aqui! Quero uma vitória que ultrapasse muito qualquer coisa que foi escrita, com tinta ou com sangue.

Continuei falando no silêncio deles.

— E devem confiar em mim, em como farei isso — eu disse. — Seja em sinais ou maravilhas, em momentos de retiro pessoal ou atendendo a exigências específicas e imensas! Eu os convoco a me seguir. Para descobrir isso comigo.

Nenhuma resposta.

— O começo é aqui, neste casamento — continuei. — E o vinho que vocês beberam é para o mundo inteiro. Israel é o recipiente, sim. Mas a par­tir de agora o vinho jorra para todos. Ah, desejaria poder fixar isto como o triunfo final, esta adorável manhã com o céu suave e claro. Gostaria de poder abrir os portões para todos virem e beberem esse vinho aqui e agora, e que toda dor e todo sofrimento e suspense chegassem ao fim.

“Mas não nasci para isso. Nasci para encontrar o caminho através do tempo. Sim, este é o tempo de Pôncio Pilatos. Sim, é o tempo de José Caifás. Sim, é o tempo de Tibério César. Mas esses homens não são nada para mim. Entrei na história para encarar tudo isso. E nada vai me impedir. Agora eu vou, desapontando vocês, sim, e para qual aldeia e cidade eu irei depois, não sei, só sei que vou proclamando que é chegado o reino de Deus, que o reino de Deus está conosco, que todos devem ver e prestar atenção, e vou declarar isso onde o Pai disser que eu devo, e encontrarei ouvintes diante de mim... e as surpresas... que Ele reservou.”

— Estamos com você, Mestre — sussurrou Pedro.

— Com você, rabino — disse João.

— Yeshua, eu imploro — Tiago disse suavemente. — O Senhor nos deu a Lei no Sinai. O que quer dizer... você está dizendo que vai peregrinar pelas aldeias e cidades agora? Para curar os doentes à beira da estrada? Para fazer maravilhas como esta, num vilarejo minúsculo como Caná?

— Tiago, eu amo você — eu disse. — Acredite em mim. O céu e a terra foram feitos para você, Tiago. Você vai entender.

— Temo por você, irmão — ele disse.

— Temo por mim mesmo — eu disse e sorri.

— Estamos com você, rabino — disse Natanael.

André e Tiago bar Zebedeu disseram a mesma coisa. Meu tio concor­dou, balançou a cabeça e deixou os outros virem ficar entre nós com seu clamor, de braços abertos.

Minha mãe apareceu no meio disso tudo e ficou de longe, talvez escu­tando, ou simplesmente observando. Eu não sabia. A pequena Salomé, minha irmã, estava ali, segurando o sonolento pequeno Tobias pela mão.

Atrás delas e para a esquerda, na extremidade mais distante do jardim, longe de nós, num pequeno bosque de árvores brilhantes, havia uma figu­ra bem pequena, de costas para nós, balançando de um lado para outro, de cabeça abaixada, coberta por um véu.

Pequena e solitária, aquela dançarina que parecia observar o sol nascente.

A pequena Salomé se aproximou.

— Yeshua, precisamos voltar para casa agora, para Cafarnaum — ela disse. — Venha conosco.

— Sim, rabino, volte conosco para Cafarnaum — disse Pedro.

— Iremos com você para onde quer que vá — disse João.

Pensei um pouco e então concordei.

— Preparem-se para partir — eu disse. — E, para aqueles que não vão, devemos nos despedir por ora, da melhor forma que pudermos.

Tiago ficou desolado. Balançou a cabeça. Virou-se de costas para nós. Meus irmãos se juntaram a ele perplexos e sofrendo.

— Yeshua — disse Jasão —, quer que eu vá com vocês?

O rosto dele tinha uma expressão de inocência e de urgência.

— É capaz de abandonar tudo que tem e me seguir, Jasão? — perguntei.

Ele olhou para mim sem entender. E então lentamente franziu o cenho e abaixou a cabeça. Estava magoado e dividido.

Olhei de novo para a pequena figura ao longe.

Fiz sinal para eles me esperarem ali e atravessei o jardim até ela, a pequena dançarina que parecia olhar para a luz que surgia atrás do muro.

Andei a extensão da casa, passei pelos cômodos das mulheres. Caminhei por cima das pétalas espalhadas onde antes muitos tinham dançado.

Cheguei por trás da dançarina que se movia ao ritmo das batidas dos tambores distantes.

— Hannah! — chamei.

Ela se assustou. Deu meia-volta. Olhou para mim, então moveu os olhos em todas as direções, para cima, onde estavam os passarinhos nos galhos da árvore, para os pombos arrulhando nas telhas do telhado. Ela olhou para a casa, ainda cheia de luzes, movimento e barulho, um barulho adorável, insistente e ritmado.

— Hannah — eu disse de novo e sorri para ela. Pus a mão no meu peito. — Yeshua — falei. Abri a mão e pus sobre o meu coração. — Yeshua.

Pus a mão suavemente na garganta dela.

Ela resistiu, arregalou os olhos e então sussurrou:

— Yeshua!

Ela empalideceu de susto.

— Yeshua! — disse com voz rouca, depois mais alto. Yeshua.

Yeshua. Yeshua. Yeshua.

— Preste atenção — eu disse, pus a mão na orelha dela e depois no meu coração... os velhos gestos. — Ouça, ó Israel — eu disse —, o Senhor Nosso Deus é o Único Deus.

Ela começou a falar. Eu repeti, dessa vez com os gestos que Hannah tinha visto, os que fazíamos para ela quando rezávamos todos os dias. Repeti mais uma vez e, na terceira vez, ela disse as palavras junto comigo.

Ouça, ó Israel. O Senhor Nosso Deus é o Único Deus.

Abracei Hannah.

E voltei para me juntar aos outros.

Partimos para a estrada.

 

                                                                                            Anne Rice

 

 

                      

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